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IRVING WALLACE

A VIGÉSIMA SÉTIMA MULHER

Tradução de ISABEL BRAGA

Círculo de Leitores

Título original: THE TWENTY SEVENTH WIFE

Capa: JOSÉ ANTUNES

Licença editorial por cortesia de Livros do Brasil

Impresso e encadernado para Círculo de Leitores

por Printer Portuguesa

em Dezembro de 1993

Número de edição 3612

Depósito legal número 68 427/93

ISBN 972-42-0807-9

A FUGITIVA

Pensa, que me deixarão sair daqui? ANN ELIZA YOUNG

Constitui um facto curioso da História que o ano de 1873 o ano em que Ulysses S. Grant iniciou o
seu segundo mandato como presidente dos Estados Unidos, em que o pânico financeiro levou à
falência cinco mil empresas, em que a febre-amarela dizimou o Sul, em que William «Boss» Tweed
foi condenado como burlão, em que se inaugurou o carro-eléctrico em São Francisco tivesse sido
também o ano em que uma grande parte dos Americanos se sentiu fascinada, agitada ou de qualquer
modo preocupada com o assunto da vida num harém. E foram duas mulheres que mais contribuíram
para esta estranha obcecação uma delas nascida no País de Gales, vivera cinco anos num harém
siamês, enquanto a outra, natural do Ilinóis, passara quatro anos encerrada num harém nos Estados
Unidos.

A inglesa, que pode ser considerada uma autoridade acerca da vida nos serralhos, era a Sr.a Anna
H. Leonowens. Em 1873, o seu insólito livro The Romance of the Harem foi publicado por James
R. Osgood and Company, de Boston, apenas três anos depois de a Sr.a Leonowens ter alcançado
uma pequena mas sólida notoriedade com a sua primeira obra, The English Governess at the
Siamese Court, uma história que viria a ser mais conhecida no século seguinte com o título de Anna
and the King of Siam ou The King and I.

Após a morte do marido na índia, a Sr.a Leonowens, que tinha então vinte e sete anos, aceitara o
lugar de preceptora dos sessenta e sete filhos do rei Mongut de Muang Thai, ou Sião. No primeiro
livro, a Sr.a Leonowens descrevera as suas aventuras durante os cinco anos que passara na corte
bárbara de um tirano benevolente. Depois, encorajada por dois dos seus amigos, Henry Wadsworth
Longfellow e Harriet Beecher Stowe, empreendeu, num segundo livro, a revelação dos pormenores
da vida no harém do rei siamês, onde habitavam nove mil esposas e concubinas, além da descrição
das trinta esposas e amantes que haviam gerado uma enorme quantidade de crianças.

«A poligamia ou melhor, a concubinagem e a escravatura constituem as pragas desse país»,


escrevia a Sr.a Leonowens em 1873. E acrescentava: «O número das concubinas é limitado
unicamente pelas possibilidades do homem. Uma vez que o rei representa a fonte de toda a riqueza
e influência, os reis dependentes, os príncipes e os nobres, bem como todos aqueles que pretendem
obter os favores reais, entram em despique para verem qual deles apresenta ao harém as mais belas
e prendadas filhas.

«[...] A mulher é escrava do homem.»

Esta descrição vitoriana da poligamia no Sião, embora menos divulgada que o então famoso livro
de Júlio Verne A Volta ao Mundo em Oitenta Dias, suscitou calorosas discussões entre os leitores
americanos. Estes sabiam, como aliás quase todos os seus contemporâneos, que mesmo debaixo dos
seus narizes, à distância de uma pequena viagem de comboio, nos isolados e montanhosos
territórios do Utah, mais de dez por cento dos membros da vasta e sempre crescente colónia dos
seus concidadãos praticavam abertamente idêntica poligamia t que o chefe dessa colónia natural de
Vermont possuía vinte e sete mulheres e cinquenta e seis filhos. «O maometanismo moderno»,
escrevia em Chicago Francês E. Willard, paladina da temperança, «tem a sua Meca em Salt Lake
City.»

Vinte e um anos antes, Brigham Young, presidente da Igreja de Jesus Cristo e dos Santos dos
Últimos Dias, proclamara em público, como revelação divina, o mandamento celeste do casamento
múltiplo ou poligamia. Duas décadas depois, a prática da poligamia na América tornar-se-ia tema
de uma intensa e viva controvérsia nacional e até internacional. Já em 1856, o candidato
republicano à Presidência dos Estados Unidos, John Charles Fremont, apresentara um violento
programa de ataque contra «essas duas relíquias do barbarismo a poligamia e a escravatura». Em
1873, a escravatura fora abolida à custa de um banho de sangue, mas a outra relíquia do barbarismo
ainda se mantinha e continuava a florescer.

Os cem mil santos mórmones do território do Utah, tendo sobrevivido a uma perseguição selvagem,
defendiam ardorosamente a sua poligamia permitida por Deus, além de afirmarem ter sido o próprio
Senhor que lhes ordenara tal prática. «A controvérsia só poderá atingir Deus, e não a nós», afirmava
Eliza Roxey Snow, ex-mulher de Joseph Smith, fundador do mormonismo, e que era então
platonicamente casada com Brigham Young. E insistiam em afirmar que os mórmones não faziam
mais que seguir as pegadas de Abraão, adoptando assim uma forma de casamento que fora
sancionada por Lutero, Santo Agostinho e John Milton. Além disso, insistiam em que praticavam
uma forma de casamento múltiplo sem luxúria, tendo apenas como desígnio a procriação. «Deus
não ordenou o casamento no intuito de satisfazer os desejos carnais do homem», afirmava Brigham
Young, «mas, pelo contrário, ordenou-o com o fim expresso de instituir em Seu nome um
verdadeiro sacerdócio, para formar um povo eleito.» Heber C. Kimball, o alter ego de Brigham
Young, com quarenta e cinco esposas e sessenta e cinco filhos, a quem um jovem escritor que o
conheceu achou parecido com um «charlatão de feira italiano do século xvn», apresentou o caso de
uma maneira mais sucinta. « Falando francamente, Sr. Kimball, diga-me para que quer tantas
mulheres.» Ambos se encontravam perante uma vasta assembleia. E Kimball respondeu: « Foi o
Senhor que me ordenou que as tomasse. Para quê? Para gerar novos mórmones... não para me
entregar à luxúria nem para satisfazer a concupiscência da carne, mas apenas para gerar filhos.»
Como resultado desta poligamia isenta de paixão, afirmavam os mórmones, tinham deixado de
existir os malefícios do celibato das mulheres, como a prostituição, o adultério e outros pequenos
cancros do mundo monogâmico.

Porém, esse estranho mundo monogâmico dos gentios, como os mórmones gostam de chamar a
todos os não-crentes, continuou a sentir-se ultrajado e horrorizado, reagindo indignadamente
durante mais de vinte anos. Os não-mórmones1 teimavam em acreditar que os mórmones não
pretendiam dar satisfação a Deus, mas sim aos mais baixos

1 Gentile Designação dada aos não-mórmones ou estranhos à religião mórmon instintos carnais, e a
sua atitude foi bem ilustrada através de uma anedota que se contava acerca de um chefe polígamo
de Marrocos. Ò Dr. Edward Westermarck, uma autoridade em matéria da evolução matrimonial,
acompanhara um grupo de senhoras inglesas numa visita a esse chefe marroquino, quando a certa
altura uma dessas senhoras lhe perguntou por que motivo os Árabes não se contentavam com uma
só mulher, tal como os Europeus. Então o chefe marroquino mostrou-se admirado com a pergunta.
«Porquê!? Porque também ninguém come peixe todos os dias», declarou.

Relativamente à poligamia, não seria possível qualquer entendimento entre gentios e mórmones.

O capitão Richard Burton, recentemente chegado de uma viagem a Meca, visitara Salt Lake City, e
definiu claramente o conflito: «Os antimórmones declaram que ela [a poligamia] representa ao
mesmo tempo fornicação e adultério um pecado que engloba todos os outros. Os mórmones
apontam com orgulho [...] a ausência dessa imundície, dessa pouca-vergonha que caracteriza as
cidades do mundo civilizado.»

Para além da indignação moral perante a ofensa quanto aos sentimentos de família, os inimigos da
poligamia dos mórmones tinham várias razões particulares, conscientes ou inconscientes, para se
oporem ao casamento múltiplo. Os padres consideravam essa prática uma ameaça às antigas
religiões estabelecidas. Os homens de negócios preocupavam-se com a estrutura económico-
cooperativa dos mórmones e os políticos, preocupados com a força representada pela unidade dos
mórmones, viam na poligamia um atractivo que lhes permitiria alcançar certos propósitos
inconfessados.

Os reformistas masculinos, invejando talvez «a variedade sexual proporcionada pelo facto de


disporem de várias mulheres», e os reformistas femininos, que encaravam tal sistema como uma
ameaça à sua própria segurança, todos irritados, além disso, com as provas cie virilidade dos
mórmones, traduziam os seus agravos em protestos de índole moral. Os gentios da região do Utah,
assim como aqueles que lá tinham vivido ou por lá haviam passado, ocultavam muitas vezes os
interesses pessoais sob a capa da virtude ultrajada.

Durante vinte e um anos, a campanha contra o chama-

do «harém americano» prosseguiu sem tréguas. Horace Greeley, após uma investigação preliminar,
escreveu: «O fanatismo e a crença de que somos os eleitos de Deus pode levar-nos muito longe,
mas o instinto natural que se alberga no peito de cada mulher dir-lhe-á que ser a terceira ou a quarta
esposa de um homem é o mesmo que ser a esposa de ninguém.» Harriet Beecher Stowe apelava
para as suas conterrâneas para que «quebrassem os laços de uma escravatura cruel cujas grilhetas se
haviam cravado no próprio coração de milhares de irmãs nossas uma escravatura que rebaixa e
degrada a mulher na família». J. H. Beadle, jornalista e escritor, declarava: «Os habitantes brancos
do Utah constituem o único ramo da raça caucasiana que adopta a poligamia desde há muitos
séculos. Têm demonstrado sempre uma notória e crescente tendência para o mal, e sob muitos
aspectos revelam-se piores que os próprios maometanos.» Fanny Stenhouse, cujo marido sucumbira
à tentação do casamento múltiplo, mas depois se arrependera, escrevia: «Algumas pessoas que
visitem o estado do Utah poderão dizer-nos que as mulheres mórmones vivem felizes na poligamia,
pois ela faz parte da sua religião. Nunca! Enquanto não derem um novo coração e uma nova
natureza às mulheres do Utah, enquanto não lhes extirparem da alma tudo quanto é feminino, puro e
sagrado, nenhuma mulher poderá sentir-se feliz com a poligamia.» Quanto à moderação puritana
que se poderia tentar encontrar na poligamia, uma das noras de Brigham Young tern a última
palavra. «Se fosse possível cobrir com um só telhado toda a cidade de Salt Lake City», escrevia ela
no The New York Times, «teríamos assim o maior bordel de todo o mundo.»

Saber se a poligamia dos mórmones fazia de Salt Lake City um templo de virtude ou um bordel era
o problema que absorvia a opinião pública em 1873. O aparecimento do livro de Anna H.
Leonowens, The Romance of the Harem, verídico porque baseado em factos, ainda mais ateou o
fogo da controvérsia, que iria transformar-se numa fogueira ardente através da dramática
intervenção de uma bela e atraente jovem do Utah, Ann Eliza Webb Young.

Mormon pelo nascimento, era actriz e divorciada, e, mais importante ainda, fora a vigésima sétima
esposa de Brigham Young.

No Verão de 1873, Ann Eliza deixou o marido, Brigham Young, profeta e colonizador, instaurando-
lhe um processo de divórcio, e depois conseguiu metê-lo na cadeia, tendo as repercussões deste
facto abalado a Igreja Mórmon até aos seus mais fundos alicerces.

com esta deserção na qual arriscou a reputação e a vida, conforme ela própria declarou e erguendo
subsequentemente a voz nos mais veementes protestos que alguma vez se tinham ouvido contra o
harém americano, Ann Eliza Young vibrou um profundíssimo golpe na poligamia nos Estados
Unidos, do qual esta nunca mais se recomporia. De um dia para o outro, esta jovem atingiu uma
celebridade que não iria durar apenas nove dias ou nove meses, mas nove anos. Porque, através de
Ann Eliza Young, a vigésima sétima esposa, os mais íntimos segredos do harém americano
passaram ao domínio público, aquela relíquia extremamente poderosa do barbarismo transformou-
se numa curiosidade histórica e numa aberração sexual, enquanto a recém-criada actividade dos
conferencistas profissionais iria ter, finalmente, a sua primeira estrela de sensação.

Na madrugada de 15 de Julho de 1873, uma terça-feira, três carroças de mudanças encontravam-se


paradas jundo de um edifício novo de dois andares. A casa, de estilo gótico, com beirais inclinados
e janelas de vidros coloridos, situava-se na esquina sudoeste da South Temple Street e da Second
East Street, em Salt Lake City, estado do Utah. Apressadamente, quase furtivamente, antes que a
cidade despertasse, os carregadores afadigavam-se em esvaziar a casa de todo o mobiliário.

Lá dentro, sob os tectos altos, Ann Eliza comandava com nervosismo os carregadores através dos
quartos atravancados de móveis dos dois andares do prédio. Para explicar a tensão que a dominava
nessa manhã, Ann Eliza escreveu: «Tracei rapidamente os meus planos com a ajuda de amigos que
encontrei naquela hora difícil e executei-os imediatamente antes que fossem descobertos pelos
espiões mórmones.»

Durante os seis meses anteriores, Ann Eliza estivera de cama e sentira-se demasiado doente para se
revoltar contra aquela vida de solidão e pobreza que levava na sua qualidade de vigésima sétima
esposa de Brigham Young. Nessa altura, andava ela a ser tratada pelo Dr. J. N. Williamson,

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que não lhe cobrava honorários. «Esta senhora sofre de um mal frequente nas mulheres que lhe
causa grande mal-estar e muitas dores nas costas, bem como dores semelhantes às do parto, o que a
torna bastante nervosa», declararia mais tarde o excelente médico. E acrescentava: «Do que ela
necessita é de cuidados e simpatia.» Como o seu ilustre marido nada disso lhe proporcionava, Ann
Eliza aproximou-se dos amigos, entre os quais se contavam um padre, um juiz, um general
reformado, um jornalista e dois dos seus hóspedes, de quem recebia os conselhos e o apoio de que
necessitava naquela crise emocional. Finalmente, auxiliada por esses amigos e apelando para a
energia física que ainda lhe restava, tomou uma decisão: transpor rapidamente a barreira entre o
mundo isolado dos Santos dos Últimos Dias e o mundo dos não-mórmones, de modo a libertar-se
do mais célebre harém do mundo e ir respirar para o ar livre da vida monogâmica, fazer, numa
palavra, o que nenhuma outra esposa de Brigham Young ousara ainda: fugir sem conhecimento dele
e sem a sua licença.

Agora, ao contemplar os carregadores que lhe transportavam a mobília modesta e usada, Ann Eliza
era ainda uma mulher bastante atraente, apesar dos desgostos que vinha sofrendo. Alta e esbelta,
continuava a usar, aos vinte e nove anos, os cabelos negros soltos pelos ombros como uma
rapariguinha. Os seus olhos muito azuis, o nariz largo e perfeito, os lábios vermelhos e carnudos, os
dentes brancos, contrastavam com a pele extremamente branca. Tinha uma expressão triste e suave,
mas o brilho dos olhos e a firmeza do queixo denotavam forte personalidade. Naquela manhã
envergava um fato preto comprido, muito simples, como se vestisse luto por aqueles quatro anos em
que estivera casada pela segunda vez. No entanto, estava longe de se tratar de um traje de luto, com
a brancura da gola e dos punhos, uma gravata verde, uns brincos e um alfinete de azeviche, a
completarem-lhe a toilette. Alguns dias depois, um repórter do Herald de Nova Iorque manifestaria
a sua admiração nestas palavras que publicou: «A primeira coisa que nos ocorre é que o Profeta
devia ser muito estúpido para ter deixado fugir do seu harém uma beleza destas.»

Ao fim de quarenta minutos, as três carroças ficaram carregadas e partiram imediatamente para casa
de um leiloeiro. No dia seguinte, a mobília de Ann Eliza seria vendi-

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da por trezentos e oitenta dólares. Ela, porém, não se considerou prejudicada. «As minhas coisas
não valiam praticamente nada, estavam velhas e gastas, e não eram de muito boa qualidade»,
declarou. «Contudo, os meus amigos adquiriram-nas por bom preço a fim de auxiliarem uma jovem
apóstata...»

Ann Eliza foi então buscar o mais novo dos dois filhos do seu primeiro casamento, Leonard
Lorenzo Dee. Edward Wesley Dee, este um ano mais velho, fora mandado para casa da mãe de Ann
Eliza, dez milhas ao sul de Salt Lake City, a pretexto de uma mudança de ares e de ambiente. com o
pequeno Leonard pela mão, Ann Eliza abandonou a triste residência que Brigham Young mandara
construir para ela, e dirigiu-se para uma casa perto da Igreja Metodista Episcopal, na Third South
Street, onde a aguardavam os seus protectores, o reverendo C. C. Stratton e a mulher.

Até ao momento em que, com entusiástica aprovação de Brigham Young, começara a admitir
hóspedes, a fim de ajudar nas despesas diárias, Ann Eliza considerara todos os não-mórmones ou
gentios como filhos de Satanás. Mas durante uma reunião mundana em casa de uma amiga veio a
conhecer um gentio chamado Howard Sawyer, e ficou então agradavelmente surpreendida ao
verificar que ele não tinha chifres. Um pouco mais tarde, noutra reunião em casa de um mórmon,
encontrou de novo Howard Sawyer, que por sua vez a apresentou ao reverendo C. C. Stratton, na
ocasião ali presente.

Durante quase duas décadas após a fundação de Salt Lake City, a religião mórmon exercera uma
autoridade exclusiva na comunidade. Em 1865, um capelão do exército, antipoligâmico feroz, o
reverendo Norman MacLeod, pregara a Igreja Congregacional naquela cidade. Por ocasião de uma
viagem ao Leste, destinada à angariação de fundos, o reverendo MacLeod condenara o casamento
poligâmico perante uma comissão do Congresso e fora avisado pelos mórmones de que não devia
voltar a pôr ali os pés. O reverendo acatou o aviso e não apareceu mais em Salt Lake City até ao ano
de 1872. Um sacerdote católico, o padre E. Kelly, veio a Salt Lake City em 1866, mas viu
malogrados os seus esforços evangelizadores. Os católicos só ali se instalaram em 1871, quando
Brigham Young lhes concedeu uma parcela de terreno e lhes ofereceu o donativo de quinhentos
dólares para a construção de uma igreja. Dois pregadores protestantes, o reverendo George W.
Foote e o reverendo Thomas W. Haskins, chegaram em 1867. Brigham Young opôs-lhes uma fraca
resistência; os missionários foram pouco eficientes, conquistando apenas cento e um adeptos no
espaço de três anos. Por alturas de 1870, o primeiro pregador metodista, o reverendo G. M. Peirce,
apareceu a pregar os seus sermões num celeiro por cima de um curral. O seu trabalho obteve alguns
resultados, ao que parece. Os metodistas construíram uma igreja no valor de cinquenta mil dólares,
que foi o primeiro lugar de culto não-mórmon em Salt Lake City e em todo o território do Utah. Em
1872, o reverendo Stratton veio tomar posse dessa igreja e, muito embora os metodistas não
contassem mais de cento e oitenta e nove fiéis, em breve ele era tido como uma das personalidades
não-mórmones de mais destaque em toda a região.

A certa altura, na escola social dos mórmones, o reverendo Stratton começou a entabular conversa
com a vigésima sétima esposa de Brigham Young. O eclesiástico sentiu-se fascinado quando
Sawyer lhe afirmou que podia interrogá-la livremente, pois receberia respostas «francas e
honestas». Ann Eliza ficou também encantada. «O Sr. Stratton era o primeiro representante de uma
religião estranha à crença mórmon que me era dado conhecer», declararia ela, «e eu escutava
avidamente todas as suas palavras, esperando encontrar nelas qualquer rio de luz e de esperança.» O
padre tinha um grande poder de persuasão, e Ann Eliza, ao deixá-lo, confessou sentir-se
«fortemente atraída para o mundo que ele e o Sr. Sawyer representavam».

Poucas semanas depois, sofrendo de uma indisposição e cada vez mais desanimada com a sua
religião, com o marido e com a vida que levava no harém, Ann Eliza recordou as palavras
amigáveis de Stratton. Pediu então a um dos seus hóspedes, Malcolm Graham, um ferroviário
bastante prestável, que lhe levasse um recado ao reverendo Stratton. O homem acedeu de bom
grado. Considerava que Ann Eliza estava sendo maltratada. Embora a soubesse doente e com falta
de alimentos, remédios e serviçais, Graham declarava «nunca ter visto nem ouvido dizer que o Sr.
Brigham a viesse visitar». Ann Eliza estava praticamente «a morrer de fome», afirmava Graham, e
só conseguia sobreviver graças aos auxílios dos seus hóspedes e vizinhos. Assim, não foi preciso
insistir para que ele, desempenhando o papel do bom samaritano, corresse a casa do reverendo
Stratton com a mensagem de Ann Eliza a pedir uma entrevista.

Nessa mesma tarde, Stratton e a mulher foram ao encontro de Ann Eliza. «Eles mostraram-se tão
cordiais», recorda ela, «que o meu coração logo de início se encheu de amizade por ambos. Abri-
lhes a alma, sem reservas. Falei-Ihes da minha infância, da minha aprendizagem religiosa, da infeliz
experiência doméstica, contei-lhes todos os pormenores do meu casamento com Brigham Young.
Escutaram-me com interessada compaixão e quando terminei a minha história prodigalizaram-me
palavras de piedade e consolo. Nunca na minha vida as esquecerei, pois foram as mais doces que
alguns vez ouvira e que depois me ajudaram a libertar-me da escravatura.»

De regresso a casa, Ann Eliza sentia-se fortalecida por nova coragem. «Dentro de mim tomava
forma rapidamente uma resolução», declara ela, «que iria decidir da minha vida, arrastar-me para
uma nova e estranha existência.» Ann Eliza passou a encontrar-se, cada vez com mais frequência,
com o reverendo Stratton. Este recordá-la-á mais tarde com estas palavras: «O seu coração não
estava com a Igreja Mórmon; ela fora apenas a esposa nominal de Brigham Young, pois vivia numa
casa à parte e não recebia qualquer atenção da parte dele. Desejava pois ser libertada pela lei dos
Estados Unidos.» Era portanto este o desejo dela: abandonar o serralho de Brigham Young e
divorciar-se dele.

Muito embora Ann Eliza desejasse apaixonadamente libertar-se, o reverendo Stratton encarava a
situação dela no futuro com mais objectividade. Como dirigente conservador que era, lembrou-lhe
que ela possuía «uma casa confortável» e que, apesar de tudo, recebia algumas ajudas de Brigham
Young. No caso de o deixar, ficaria sem a casa e sem o auxílio. Colocar-se-ia, mesmo, numa
situação ainda pior. A lei dos Estados Unidos podia muito bem não reconhecer como válido o seu
casamento poligâmico com Brigham Young, e nesse caso ela não seria mais do que uma concubina
revoltada contra o seu senhor e portanto sem quaisquer direitos. Achava ele que o mais acertado
seria continuar com a vida no harém e aguardar que o Congresso legislasse a seu favor, ou então
que Deus viesse em seu auxílio por qualquer outro meio. Ann Eliza, porém, não se sentia com
paciência para esperar nem por Deus nem pelo Congresso. Queria a sua liberdade, e já. Nesse caso,
aconselhou-a o reverendo Stratton, era necessário procurar um «advogado competente». Pela sua
parte, tentara mostrar-lhe o aspecto menos optimista da situação, fazer-lhe ver as dificuldades que a
esperavam; mas uma vez que ela, depois de elucidada, persistia na sua ideia, ele estaria sempre a
seu lado.

O «advogado competente» apareceu como que enviado pela própria Providência. Ann Eliza alugava
quartos em sua casa a três dólares por semana, e entre os seus hóspedes mais recentes figuravam o
juiz Albert Hagan e a mulher. Hagan contava trinta e oito anos de idade, era natural do Missuri e
tinha banca de advogado. Ann Eliza veio a saber que ele fora coronel dos Confederados até ser
preso no Kentucky, onde conhecera a mulher com quem se casara havia nove anos. Terminada a
guerra, mudara-se para Santa Cruz, na Califórnia, onde iniciara a sua carreira de jurista nas questões
legais mineiras, e dali viera tentar fortuna em Salt Lake City.
Algum tempo depois da chegada dos Hagan, Ann Eliza fora visitar o marido, Brigham Young, e
durante esse encontro achara-o extremamente desagradável. Muito ferida, regressou a casa, sem
poder ocultar a sua amargura.

«Os olhos compassivos da Sr.a Hagan descobriram a minha tristeza», declarou Ann Eliza, «e logo
insistiu para que me confiasse a ela. Foi depois contar tudo ao marido, e este, indignado com a
maneira como eu estava a ser tratada, consultou alguns colegas, e todos foram unânimes em me
aconselhar o divórcio com o pedido de uma pensão alimentar.

«O Sr. Hagan afirmou-me que, embora não ganhasse a questão, isso serviria ao menos para arranjar
maneira de me libertar do mormonismo; disse-me que o meu caso serviria de exemplo para se
verificar se as esposas poligâmicas dos mórmones se encontravam ou não ao abrigo da lei e disse-
me que eu iria encontrar simpatia de todo o mundo exterior.»

Chegado o momento de tomar uma decisão, Ann Eliza hesitava. A sua educação feita na crença
mormon, a fervorosa dedicação da sua extremosa mãe por essa mesma crenca, a ideia aterradora de
se insurgir contra o poderoso Profeta, tudo em breve lhe abalou o ânimo. O juiz Hagan declarou ter
de ir fazer uma viagem de negócios à Califórnia. Esperava que, entretanto, ela ponderasse
maduramente os seus conselhos, de modo a tomar uma decisão mal ele regressasse.

Logo que o juiz Hagan partiu, dois membros da Brigada de Professores da Igreja Mórmon vieram
visitar Ann Eliza por ocasião de uma das suas inspecções de rotina. Um deles fez-lhe uma das
perguntas habituais: «Irmã Young sente-se satisfeita com o espírito da sua religião?» Ann Eliza
respondeu, mal-humorada: «Não sinto, não senhor!»

Admirado, o professor começou a catequizá-la. Por fim insistiu para que se fizesse baptizar de
novo, afirmando-lhe que esta experiência magnífica lhe restituiria a fé. Farta de ouvir sermões, Ann
Eliza consentiu em se prestar mais uma vez àquela cerimónia. Porém, ao dirigir-se à Casa dos Dons,
viu a sua entrada impedida durante duas horas por formalidades burocráticas. Finalmente, por se
tratar da mulher do Profeta, deixaram-na passar à frente de um grupo de emigrantes dinamarqueses.

Deu-se então início ao novo baptizado de Ann Eliza. «Os oficiantes conversavam, riam, etc., como
se se tratasse de um acto sem importância», recorda ela, ao passo que eu me esforçava por sentir a
solenidade da função e por espevitar a minha fé. Foi um falhanço total, garanto. Tiraram-me da
água a tiritar e sentaram-me numa cadeira. Proferiram ainda algumas palavras sobre a minha cabeça
e a farsa terminou. Tudo aquilo foi executado de uma forma tão indiferente, com uma ausência tão
completa de devoção, que acabei por me sentir enjoada e não fiz qualquer esforço mais para aderir
ao mormonismo nem aos seus preceitos.»

No intuito de resistir ao traumatismo que lhe causara o facto de haver abandonado intimamente a
sua verdadeira religião, e ainda afastar a ideia da decisão que teria de tomar no regresso do juiz
Albert Hagan, Eliza dedicou-se com mais afinco do que nunca aos seus deveres de dona de uma
casa de hóspedes. Como se esta ocupação pudesse constituir a resolução de todos os seus
problemas, tentou desesperadamente transformar tal negócio num êxito. Tinha os quartos todos
ocupados e verificou que necessitava de um fogão maior para servir tantos comensais. Visto tratar-
se de uma necessidade de ordem prática, encheu-se de coragem e foi procurar o marido, Brignam
Young, ao escritório. Ao ouvi-la pedir um fogão maior, Young ergueu os olhos da secretária.

Quando ela terminou, o seu rosto de feições duras revelou surpresa.

Estou informado de que tens hóspedes em casa murmurou.


Pois tenho. E é por isso que necessito de um fogão grande para cozinhar para tanta gente.

Brigham mostrou-se enfadado:

Se precisas de um fogão grande vai comprá-lo. Arranjei-te uma boa casa e agora compete-te tratar
do resto. Não tenho tempo para atender as pessoas que vêm ter comigo sempre que precisam de
qualquer minharia.

Revoltada com esta recusa e com tamanha frieza, Ann Eliza decretou que nunca mais procuraria o
marido. Voltou para casa e, no caminho, todas as suas indecisões se desvaneceram.

Quando o juiz Hagan regressou da Califórnia, Ann Eliza avistou-se com ele. Conversaram
largamente, e Hagan, ao convencer-se de que a vigésima sétima esposa não fraquejaria, foi procurar
colegas, dois ilustres advogados da terra, F. M. Smith e Frank Tilford, interessando-os no caso.
Tratava-se de uma questão sem precedentes, como muito bem afirmara o reverendo Stratton, e com
alguns pontos fracos (pois era discutível que um tribunal federal reconhecesse como mulheres
legítimas todas as esposas de um só marido), e assim o juiz Hagan tratou de se precaver contra
todas as dificuldades.

Podemos estar certos de que o juiz Hagan, antes de permitir que Ann Eliza tomasse qualquer
iniciativa, tivera o cuidado de interessar no caso não só os seus próprios amigos, como também os
da sua constituinte, assim como todas as pessoas influentes que votavam ódio aos mórmones e
podiam revelar-se úteis nesta causa. Entre os adeptos não-mórmones contava-se o juiz federal, que
devia julgar a questão, um político de grande prestígio militar que desempenhava o papel de
«defensor e amigo» de Ann Eliza no tribunal, e um jornalista do porta-voz antimórmon, o Tribune
de Salt Lake City.
Deste triunvirato em breve todos se tornaram amigos íntimos de Ann Eliza e um deles passou até
por seu amante mais tarde , o mais importante e valioso era o juiz James B. McKean, supremo
magistrado do Utah. Tal como o seu inimigo figadal Brigham Young, McKean nascera também em
Vermont. No decurso da sua agitada carreira, fora simultaneamente metodista e advogado em Nova
Iorque. Era um homem bem-parecido, erudito e tolerante em todos os assuntos, excepto no que
respeitava à poligamia. De acordo com informações de origem mórmon, quando o presidente
nomeou McKean para o Tribunal Federal do Utah, no ano de 1869, McKean confessara ao cunhado
do presidente que se acaso as leis locais o manietassem «as calcaria aos pés... tão certo como haver
Deus!». Os antimórmones duvidam que ele algum dia tivesse a imprudência de afirmar semelhante
coisa, mas a verdade é que um ano após ter chegado ao Utah, com quarenta e nove anos de idade,
logo bateu o recorde da beligerância contra os Santos dos Últimos Dias.

Certo dia, ao dirigir-se a um júri em Salt Lake City, o juiz McKean berrou: «Atrevo-me a afirmar
que não virá longe o tempo em que a alta hierarquia, tão desleal, da chamada Igreja de Jesus Cristo
e dos Santos dos Últimos Dias será obrigada a curvar-se perante as leis que vigoram em toda a
parte, ou será por elas reduzida a pó.» Dirigindo-se ao procurador-geral dos Estados Unidos, em
Washington, D.C., o juiz Mckean declarava numa carta: «Nunca até hoje tive conhecimento de que
houvesse algures um território cristão, como este, inteiramente à mercê de impostores, criminosos e
traidores.»

A história não nos deixou qualquer depoimento objectivo acerca do juiz McKean. O procurador do
Distrito dos Estados Unidos no Utah, R. N. Baskin, não-mórmon, admirava-o: «Como cidadão era
um homem sem mancha. Isento, literalmente isento de qualquer vício, fiel aos seus compromissos,
sério nas suas afirmações, honesto nas suas convicções, sincero naquilo que dizia, ardente nas
amizades e verdadeiro nas afeições.» O historiador mórmon Brigham H. Roberts era de opinião
inteiramente contrária e denegriria o mais possível o juiz McKean: «A história tem algo a dizer
acerca do juiz McKean como funcionário público. Em desacordo com as suas qualidades pessoais
de integridade e temperança, dominam-no por vezes loucos precon-

ceitos e um ódio incrível a um sistema religioso que não merece a sua aprovação. Este fanatismo
leva-o a cometer certas usurpações da autoridade, a deformar mesmo a lei, somente na ânsia de
satisfazer a sua maldade.»

Ann Eliza não podia ter encontrado melhor aliado no tribunal. Outro tanto se verificava em relação
ao seu advogado, Albert Hagan. Ela sabia que o juiz McKean «se interessara especialmente pelo
seu caso, tendo contribuído para que resolvesse sacrificar-se a si próprio e às suas inclinações pelo
bem dos outros.»

Quem ajudou igualmente Ann Eliza na sua luta foi o general George R. Maxwell, um veterano
inválido da Guerra Civil que desempenhava as funções de escrivão federal do Tribunal Territorial
do Utah. «Era um indivíduo muito sociável», refere um amigo jornalista, S. A. Kenner, «e estava
longe de seguir os métodos que usualmente caracterizam os professores das escolas dominicais;
mas tudo se lhe desculpava pelo facto de haver combatido como soldado da União durante a Guerra
Civil e ter ficado mais ou menos feito em bocados.» Três anos antes de conhecer Ann Eliza,
Maxwell apresentara-se como candidato a delegado territorial do Congresso contra o capitão
William H. Hooper, candidato da confiança de Brigham Young. As probabilidades de Maxwell
eram mais ou menos as mesmas que teria Custer1 se quisesse obter a maioria dos votos dos índios
Sioux. Dos vinte mil votos distribuídos, Maxwell apenas obteve mil e quinhentos. Mais tarde
protestou contra a eleição do capitão Hooper, invocando a deslealdade deste ao governo dos
Estados Unidos, mas sem resultado. Agora, animado pela resolução de Ann Eliza no sentido de
combater o Profeta, o general Maxwell preparou-se para a apoiar no tribunal.

Outro adepto de Ann Eliza era James Burton Pond, um jornalista do Tribune de Salt Lake City,
viúvo havia dois anos e com boa aparência física. Pond e a filha, ainda criança, eram hóspedes de
Ann Eliza. Este jornalista tinha um passado bastante tumultoso. Nascera no condado de Allegany,
estado de Nova Iorque, onde o pai trabalhara de terreiro. Educado em Kenosha, no Wisconsin, aos
quinze anos era tipógrafo em Fond du Lac e aos dezoito combatia com uma carabina Sharp a favor
de John Brown1 no estado do Kansas.
’ George Armstrong Custer (1836-1876), oficial americano que se notabilizou na guerra contra os
índios (N. da T.)
Após ter escalado Pikes Peak, alistou-se nas forças da União durante a Guerra Civil, sendo citado
pelos seus bons serviços e nomeado major. Finda a guerra, fez-se jornalista, levando uma vida
irrequieta até que veio instalar-se em Salt Lake City, onde repartia o seu tempo entre a angariação
de notícias para o Tribune e a direcção de um armazém de mobílias. De todos os amigos de Ann
Eliza, o major Pond foi o que se revelou mais útil no momento crítico. Viria também a ser acusado,
mais tarde, de comportamento escandaloso com a sua protegida.

A 10 de Julho de 1873, animada pelos seus instigadores, Ann Eliza foi mais uma vez visitar o
reverendo Stratton antes de tomar uma decisão final. Relatou-lhe as actividades do juiz Hagan e dos
seus dois colegas a favor dela. Disse que aquele estava pronto a entrar em acção. O reverendo não
podia fazer mais do que dar-lhe a sua bênção. Junto deles encontraria conselheiros íntegros, decerto
valiosos e, uma vez que lhe garantiam o êxito da sua causa, devia confiar neles até ao fim.

E foi assim que na manhã de 15 de Julho de 1873 Ann Eliza retirou de casa a mobília de Brigham
Young, vendendo-a em seguida, e indo logo albergar-se à protecção do reverendo Stratton e da sua
mulher. Passou uma tarde medonha junto dos seus mentores à espera do cair da noite. «À tardinha»,
conta ela, «o Sr. e a Sr.a Stratton levaram-nos para a Walker House, um hotel de não-mórmones,
que se tornou a minha residência em Salt Lake City.» Ann Eliza atravessara a fronteira entre dois
mundos; o passo estava dado e agora já não havia regresso possível para ela.

A Walker House, que existia apenas há um ano, era talvez o hotel mais moderno das montanhas
Rochosas: um edifício imponente de quatro andares, com seis colunas e uma varanda a ornar-lhe a
frontaria. A propaganda que dirigia aos viajantes fatigados, e era publicada em todo o território,
rezava assim: «Esta casa é a maior e mais bem equipada do Utah e possui acomodações para
trezentos e cinquenta hóspedes.

1 Abolicionista americano (1860-1869), lutava pela libertação dos escravos, tendo chegado a
estabelecer uma fortaleza para albergar os escravos fugitivos. Acusado de alta traição, acabou na
forca. (N. da T.)

Dispõe de carruagens e diligências que fazem ligação com White Sulphur Baths; salas de leitura
onde se encontram jornais de toda a parte; banhos, bar, telégrafo, quiosque de tabacos e jornais
anexo à casa.» Era este o baluarte da oposição a Brigham Young, uma fortaleza para viajantes, que
se erguia em frente do enorme Tabernáculo do Profeta, do seu harém particular, em Lion House, e
das instalações da Colmeia. Nesta casa, as figuras do juiz McKean, do juiz Hagan, do general
Maxwell e do repórter Pond haviam-se tornado familiares, e era lá que costumavam hospedar-se os
mais ilustres e indiscretos visitantes vindos do Médio Oeste e do Leste, tais como o presidente
Ulysses S. Grant, Phineas S. Sherman, George Francis Train, o vice-presidente Schuyler Colfax, o
Sr. e a Sr.a torn Thumb e D. Pedro II, imperador do Brasil.

A entrada de Ann Eliza no vestíbulo iluminado a gás, a sua inscrição no hotel, a ascensão até aos
andares superiores acompanhada pelo filho e pelos Stratton, quase não despertaram curiosidade
porquanto a notícia da sua abdicação de rainha do harém não fora ainda tornada pública. No quarto
andar encontrava-se preparado um apartamento constituído por dois pequenos quartos, onde as
bagagens haviam sido já depositadas. A saleta fora mobilada com uma chaise-longue, uma
secretária pequena com tampo de mármore, uma sólida arca de castanho, uma máquina de costura e
a mala de Ann Eliza. O compartimento contíguo era o quarto de dormir, onde avultava uma cama
de casal.

Depois de adormecer o filho, Ann Eliza foi reunir-se aos Stratton. O hotel representava para ela um
lugar estranho e sentia-se incrivelmente receosa. Antes disso, os Stratton haviam-na convidado para
a sua casa, e agora arrependia-se de não ter aceitado a oferta. Decerto teriam renovado o convite.
Porém, Ann Eliza sentia que a partir dessa noite teria de suportar sozinha os principais efeitos da
sua decisão. Se acaso procurasse refúgio junto dos Stratton, iria expô-los à fúria dos mórmones,
pondo assim em risco a vida e os haveres dos seus amigos. Decidira portanto ficar na Walker House
definitivamente, «embora tomada de intenso pavor».

Logo que os Stratton se foram embora, Ann Eliza abriu a mala. Retirando de lá as preciosas
fotografias da mãe, do pai, dos irmãos e parentes, pendurou-as nas paredes da sala. Durante um
momento sentiu-se confortada. Por fim, começou a despir-se. Depois de tirar o vestido preto e as
botas altas de pelica com botõezinhos, ficou em camisa e calças, o que a fazia parecer mais baixa. O
quarto tinha duas janelas que davam para Temple Street. Baixou a luz dos candeeiros e aproximou-
se de uma das janelas. Lá em baixo havia luzes acesas que iluminavam as carruagens em
movimento de um lado e do outro. Espreitando para baixo, avistou a Casa dos Dons, onde haviam
começado todos os seus sofrimentos, e o edifício do Tabernáculo, de forma elíptica, que contava já
sessenta anos de existência. Mais para além, na escuridão, erguiam-se as montanhas Wasatch e, por
detrás das sentinelas dos picos, estendia-se um paraíso de liberdade que ela não tinha ainda a
certeza de poder alcançar um dia.

Trémula e exausta, deitou-se na cama. No entanto, naquela noite não poderia conciliar o sono, pois
toda ela foi um pesadelo de sonhos despertos.

Mesmo ao cabo de três anos, ao recordar, na sua biografia, aquela longa vigília e os pensamentos
que então a assaltaram, todos os terrores dessa noite lhe vinham à memória como os tormentos do
quarto escuro durante a meninice:

«Imaginem os meus sentimentos ao encontrar-me sozinha com o meu filho naquele lugar estranho,
em circunstâncias tão especiais. Abandonara a minha religião, deixara pai e mãe, casa e amigos,
voltara deliberadamente as costas a todos, sabendo muito bem que, dado esse passo, jamais poderia
recuar. O meu coração clamava pela presença de minha mãe, a quem esta minha atitude iria ferir
mais do que a qualquer outra pessoa. Se pudesse, tê-la-ia poupado a isto, mas não me fora possível
agir de outro modo.

«Encontrava-me pela primeira vez num hotel e, sabendo-me rodeada por pessoas que sempre me
haviam apontado como os meus piores inimigos, invadia-me um sentimento de amargo desamparo.
Ignorava qual viria a ser a minha sorte. Todos os passos que ouvia no vestíbulo causavam-me
sobressaltos; receava que fossem o prenúncio de uma morte pavorosa. Acabei por acreditar que
aquela noite seria para mim a última neste mundo e preparei-me para morrer; mas aquela
expectativa era um horror. Tinham-me convencido de que os gentios eram capazes de cometer
todos os ultrajes, todos os crimes, na pessoa dos mórmones, e eu acedera a colocar-me inteiramente
à sua mercê, de modo a poderem fazer de mim o que entendessem, sem que a minha sorte pudesse
jamais ser conhecida.

«De repente, comecei a pensar por que não deixava eu aquele lugar estranho e não regressava ao
meu mundo tranquilo, embora infeliz, indo procurar refúgio junto de qualquer amigo mórmon.
Compreendi então que jamais nenhum mórmon me aceitaria nem se arriscaria a proteger-me.
Encontrava-me em guerra aberta com o seu chefe, e se ficasse mais um dia no meio deles a minha
perda seria irremediável.»

Pouco a pouco, durante as horas cinzentas da madrugada, acabou por se convencer de que os não-
mórmones o reverendo Stratton, o juiz McKean, o general Maxwell, o major Pond e o juiz Hagan
eram os seus verdadeiros aliados e de que os inimigos que tinha a recear eram aqueles de quem
fugira Brigham Young, os Apóstolos da Igreja, os vingativos Danitas.

A ideia de que a morte se avizinhava não deixara de estar presente no seu espírito, só a imagem de
quem viria infligir-lha se modificara. Em lugar da face anónima de um não-mórmon, via agora o
rosto familiar de um mórmon. Nenhum danita, dizia consigo horrorizada, iria permitir que ela
permanecesse viva naquele hotel inimigo ou fugisse o território do Utah.

Ann Eliza sabia de cor todas as ameaças públicas que Brigham Young gritava do alto do púlpito, no
Tabernáculo, contra os apóstatas e contra todos aqueles que traíam a sua fé. Recordava-se
particularmente de uma destas ameaças, «É chegada a hora da justiça, a hora em que pegaremos na
espada para perguntar: És por Deus ou contra Ele? E se não estiveres inteiramente ao lado de Deus
serás cortado em pedaços.»

Embora alimentando todos estes pensamentos fantasistas acerca dos intuitos assassinos de Brigham
Young, não era provável que este se atrevesse ou sequer desejasse enviar um carrasco a Walker
House, com o fim de estrangular ou esfaquear a sua vigésima sétima esposa. No entanto, nada era
impossível naquela fronteira selvagem e demente. Além do mais, havia provas de que mórmones
tinham mantido nos seus primeiros tempos do Ilinóis e do Missuri, e talvez ainda no Utah, naquele
Verão de 1873, um serviço secreto! especial destinado a amedrontar ou mesmo a suprimir os
perigosos inimigos da sua igreja.

De facto, em 1838, data em que foi fundada esta organização, os mórmones criaram uma
«sociedade de morte», como a alcunhara Elder John Hyde. A princípio, a sociedade chamara-se As
Filhas de Zion, ou Filhas de Gedeão, segundo uma frase da Bíblia, mas tal nome fora considerado
excessivamente feminino para um bando de jovens fortes e barbudos, e passou a ser denominada
Anjos da Destruição. Mas também este nome foi julgado muito teatral e em breve tomou o nome de
O Grande Leque, o que simbolizava as lâminas de uma máquina de bater o trigo. Finalmente,
inspirado num verso do Génesis «Dan será uma serpente, uma cobra a rastejar no caminho, que
morderá as patas dos cavalos e fará cair para trás os cavaleiros» adoptaram definitivamente a
designação de Danitas, abreviatura de Filhos de Dan.
O facto de possuírem bandos armados era justificado pelos mórmones como necessidade de se
defenderem dos seus perseguidores, o que em certa medida seria uma explicação sincera. Ann Eliza
sempre afirmou que os Danitas existiam «com o único fim de pilharem e atormentarem as
populações das terras vizinhas. Contou-me uma pessoa que ouvira os juramentos feitos durante uma
reunião do bando, no condado de Daviess».
Sob a direcção de dois assassinos a soldo, um deles chá mado Orrin Porter Rockwell, com fama de
ter morto o governador do Missuri, e o outro, William Hickman, que publicara num opúsculo a
confissão das atrocidades come tidas, o ideal dos Danitas parecia ter sobrevivido ao êxodo para o
Oeste. «Alguns dos dirigentes do bando ainda vivem em Salt Lake City», escrevia Elder Hyde, em
1857. «Embora não mantenham a antiga organização, visto estarem ao i serviço de Brigham Young,
como seus guarda-costas, conti- i nuam a exercer a mesma actividade sob outro nome.»
Em 1860, Horace Greeley dava crédito aos rumores que l ainda corriam acerca das ameaças e
violências a que se en-1 tregavam. Alguns soldados dos Estados Unidos acampados! perto de Salt
Lake City tinham-lhe afirmado que «nadai mais nada menos do que setenta e cinco sentenças de
morte i

24 l

executadas pelos mórmones com fundamento na apostasia... eram conhecidas das autoridades
locais». Greeley tomara conhecimento da história da inditosa família Parrish. «Estes antigos
mórmones haviam apostatado, tentando em seguida regressar aos Estados Unidos; avisaram-nos de
que seriam mortos caso persistissem no seu intento; mas eles teimaram e foram liquidados.»
Analisando friamente as fantásticas histórias dos crimes mórmones, Greeley concluía: «Algumas
destas histórias devem ter sido inventadas maldosamente pelos não-mórmones, outras
indubitavelmente exageradas. No entanto, existe alguma verdade na crença corrente entre os não-
mórmones de que os mórmones roubam, cometem atrocidades e até matam pessoas dentro dos seus
territórios... Lamento profundamente ter de acreditar nisto, mas trata-se de factos incontestáveis.»

Um ano mais tarde, o capitão Richard Burton falou também com os soldados de guarnição
instalados perto de Salt Lake City. «Estes antimórmones declaram que em Nova Zion foram
cometidos em média dez assassínios por ano, os quais ficaram impunes... Atribuem este fenómeno
ao facto de se tornar impossível obter qualquer prova testemunhal e às absolvições ilegais da parte
do júri...»

Durante o primeiro ano em que Ann Eliza esteve casada com Brigham Young, o antimórmon J. H.
Beadle fez publicamente uma tenebrosa descrição da seita: «Estes bandidos sem lei perseguiam
obstinadamente os estrangeiros com facas e revólveres Colt.» Se acaso o estrangeiro teimava em
não abandonar o território, assunto arrumado: «Nunca mais ninguém ouvia falar dele a actuação
dos ”anjos destruidores” era súbita e total.» E apenas dois anos antes da deserção de Ann Eliza,
Mark Twain relatava histórias ouvidas aos não-mórmones, nas quais se contava como Rockwell e
Hickman haviam levado a cabo alguns assassínios de não-mórmones convictos. Ann Eliza nunca
acreditou que o próprio Brigham Young jamais tivesse morto alguém. Estava certa até de ser ele
quem chefiava os Danitas. «Desta forma», afirmava ela, «Brigham Young dirigira muitos
assassínios, dos quais com certeza se declarava inteiramente inocente, uma vez que não os cometera
com as suas próprias mãos... Visto de fora parece totalmente limpo, mas por dentro está apodrecido
até ao âmago.» Ann Eliza, porém, era uma esposa ultrajada.

25
Naquela noite, hirta nessa cama estranha, ela não conse- l guiu conciliar o sono. l

«Fiquei desperta a noite inteira, a suspirar pela manhã, l receando ao mesmo tempo não chegar a vê-
la; e, quando o ] primeiro raio de luz se filtrou pela minha janela, senti-me i aliviada e de novo
esperançosa.» i

Contudo, embora animada com a chegada do novo dia, j não podia deixar de antever as vitórias e
derrotas, as ale- j grias e misérias, a paz e os escândalos que se sucederiam ao i longo das semanas,
dos meses e dos anos que tinha na sua l frente. Talvez fosse preferível ignorar o futuro. Em vez dis-
l só, e enquanto se agitava naquele leito estranho, passaria l mentalmente em revista todos os factos
incríveis, imprová- l yeis, bizarros, que a tinham conduzido àquela situação, i àquela fuga secreta, a
este refúgio... i

II

O PROFETA

Sempre que vejo uma mulher bonita, tenho de me encomendar a Deus. JOSEPH SMITH

Chamava-se Ann Eliza Webb e nascera na comunidade fortificada de Nauvoo, no Ilinóis, em 13 de


Setembro de
1844.

Era o ano de «Que é que Deus escreveu?» do Christmas Carol de Dickens e da farsa do balão de
Põe, o ano em que o primeiro mormon Joseph Smith, quando se candidatava à Presidência dos
Estados Unidos contra James K. Polk e Henry Clay, foi brutalmente assassinado por uma multidão
demente. Era também o ano em que um carpinteiro de quarenta e dois anos, missionário, mórmon,
chamado Brigham Young, ia substituir o mártir Joseph Smith como chefe da Igreja de Jesus Cristo
e dos Santos dos Últimos Dias.

Antes do nascimento de Ann Eliza, a família Webb tinha já três filhos varões, Chauncey Gilbert, a
quem chamavam apenas Gilbert, Edward Milo e Lorenzo Dow, e uma rapariga, Helen Maria, que
morreu em criança. Ann Eliza foi o último rebento do casal Webb. O pai, Chauncey G. Webb,
construtor de carros, contava trinta e dois anos de idade quando a filha nasceu. A mãe, Eliza
Churchill Webb, tinha vinte e nove anos e era professora.

Quando Ann Eliza nasceu, a Igreja Mórmon existia como sociedade organizada havia apenas
catorze anos e os seus pais contavam-se entre os primeiros e mais dedicados adeptos da nova fé.
Ambos tinham entrado para a igreja dois anos após a sua fundação, facto que, como se se tratasse de
um gene, viria a influir mais tarde no destino da jovem.

Para melhor compreendermos certas vidas, afirmou um dia o velho puritano William Bradford,
«devemos começar pelas raízes» da árvore familiar. Porém, no caso particular

27
de Ann Eliza Webb as mais poderosas características da sua maneira de ser tiveram origem não nas
raízes ancestrais, mas sim nos fundamentos da sua igreja.

O mormonismo que dominara e moldara Ann Eliza e seus pais criara os seus alicerces numa época
de renovação e renascimento religiosos. Aleluia era a palavra que andava em todas as bocas. Muito
embora a jovem nação tivesse fortes antecedentes metodistas e presbiterianos, nela floresciam
certas utopias sectárias. O mormonismo de Joseph Smith era o herdeiro natural da Sociedade
Ephrata, de Conrad Beisel, do culto Shaker, de Lucy Wright, da Nova Harmonia, de Robert Owen,
e da Colónia Oneida, de John Humphrey Noyes.

Os pais de Ann Eliza, claro, adoptaram a versão mórmon logo no seu início. A Igreja de Jesus
Cristo e dos San- ! tos dos Últimos Dias nasceu num belo dia de Verão, dentro de uma encantadora
mata, perto de Palmira, estado de Nova Iorque, para o lado do Noroeste. Joseph Smith Junior, de
quinze anos de idade, era filho de um lavrador presbite- riano e sentia-se desorientado no meio de
uma imensidade de solicitações religiosas. Ao consultar a Bíblia, em busca \ do verdadeiro
caminho, leu o seguinte, numa epístola de \ S. Tiago: «Se algum de vós necessita de sabedoria,
implore- j -a de Deus...» Certo dia em que passeava na mata, junto à quinta dos pais, acabou por se
ajoelhar no chão e implorar a Deus. Talvez não se sentisse muito surpreendido ao ver surgir na sua
frente uma luz muito brilhante. Viu imediata- i mente que no meio do clarão havia alguém.
«Tratava-se de duas figuras de um brilho e de uma majestade indescrití- j veis, pairando no ar»,
relataria ele mais tarde. Identifica- ] ram-se como sendo o Pai e o Filho. com uma presença de ]
espírito notável, o jovem Smith perguntou-lhes qual a seita j religiosa que deveria adoptar.
Aconselharam-no terminan- | temente a não aderir a nenhuma, pois todas eram indignas j dele.

Smith descreveu esta visão a um pastor metodista lá da terra. O pastor denotou cepticismo ao ouvir
a história e declarou que «aquelas coisas tinham acabado com os apóstolos». Smith, porém, achava
que a era das visões e dos milagres não estava ainda ultrapassada e começou a contar a toda a gente
a sua aventura. Durante três anos foi escutado com desconfiança e repelido. Entretanto, como
lenitivo pa-

28 i

rã o trabalho a que se dedicava com intermitências, entregava-se aos prazeres da carne. «Caí com
frequência em erros e loucuras», confessaria mais tarde, «e dei largas às fraquezas da juventude e
aos defeitos da natureza humana.»

Mas, tal como sucede a quem teve um dia uma visão, estes pecados pesavam-lhe na consciência.
Certa noite, em Setembro de 1823, contava então dezoito anos, quando no seu quarto implorava
perdão a Deus, tornou a ver a mesma luz deslumbrante envolvendo uma figura. «Junto ao meu leito
surgiu uma personagem, pairando no ar sem que os pés lhe tocassem no solo», afirmou Smith.
«Vestia uma comprida túnica, de alvura deslumbrante.» O estranho visitante apresentou-se como
sendo o anjo Moroni, mensageiro do Altíssimo. «Este», relata Smith, «declarou que o Senhor me
destinara uma tarefa e que o meu nome seria uma bênção e uma maldição para muita gente entre as
nações de todas as línguas e raças... Informou-me que existia um livro escrito em tábuas de oiro no
qual se falava dos primeiros habitantes deste continente e das suas origens. Afirmava também que
todo o Evangelho estava ali contido, tal como Deus o ensinara aos antigos habitantes da Terra;
havia ainda duas pedras ligadas por fitas de prata, juntas num medalhão, chamadas Urim e
Thummim1, que se encontravam juntamente com as tábuas. Usadas ao pescoço, eram elas que
transformavam as pessoas em videntes, tanto nos tempos antigos como no presente. Deus pusera-as
ali a fim de permitir a tradução do Seu livro.»
Muito embora o anjo Moroni tivesse desaparecido, Smith não ficou sozinho nessa noite nem voltou
mais a pregar olho, pois a visita repetiu-se mais quatro vezes. No dia seguinte, Smith dirigiu-se para
a encosta do lado oeste da mais alta colina dos arredores de Manchester, estado de Nova Iorque,
onde foi encontrar as tábuas escondidas debaixo de uma rocha, dentro de um cofre de pedra. Mas
como
0 anjo o avisara de que as tábuas deviam permanecer enterradas por mais quatro anos, Smith voltou
de mãos vazias.

Embora tocado pelas mãos divinas, Smith não deixou

Urim e Thummin, pedras mencionadas no Antigo Testamento que os sumos sacerdotes usavam
penduradas ao peito num medalhão, as quais concediam o poder de transmitir ao povo as vontades
de Deus. (N. da T.)

29
por isso de se preocupar com os assuntos terrenos durante l os quatro anos seguintes. Empregou-se
por conta de um j sujeito velho, Isaac Hale, que o encarregou da exploração! de uma antiga mina de
prata espanhola. Nesta época, Smith l era hóspede de Isaac Hale, o qual tinha uma filha muito]
bonita, de pele morena e olhos garços, chamada Emma. I Smith começou a cortejá-la. Ao pai da
rapariga, porém, não j agradava a perspectiva de o ter como genro. «Quando apa- i receu na mina»,
declarava Isaac Hale, «a sua aparência era ai de um jovem desmazelado, com pouca educação,
bastante | atrevido e insolente para com o próprio pai.» Apesar dal perspectiva de vir a possuir as
tábuas de oiro, o patrão con-1 tinuou a opor resistência ao seu namoro com a filha. Con- j tudo, no
ano de 1827, o jovem Smith, com vinte e dois i anos, casava-se com Emma que então contava vinte
e três. i

Nesse mesmo ano, Smith foi desenterrar as tábuas dei oiro com os seus hieróglifos egípcios
juntamente com as j pedras que permitiam a sua tradução, Urim e Thummim. J Mal a notícia da
existência destas se espalhou pelo estado] de Nova Iorque, não tardaram a chegar avalanchas de am-
j biciosos prontos a roubá-las. Smith viu-se obrigado a es-1 conde-las em vários lugares, entre eles
um tronco furado e I uma barrica de feijões. Finalmente, acompanhado pela noi-| vá e na posse das
tábuas, voltou para Harmony, na Pensil-1 vânia, comprou uma pequena quinta e empreendeu então l
ali o melindroso trabalho de traduzir as tábuas para inglês. J

com o auxílio de Martin Harris, um comerciante el agricultor de meia-idade que ficara


impressionado com as J visões de Smith, este encetou a gigantesca tarefa de ditar a] sua tradução.
Para o efeito, em Abril de 1828 Smith e Har-1 ris começaram por se sentar um diante do outro,
separados! por um espesso reposteiro. De um dos lados, Smith con-l templava as tábuas,
espreitando através de Urim e Thum-1 mim, e via então as palavras milagrosamente traduzidas pa-J
rã inglês. Em seguida ia ditando as frases uma a uma.l Harris, do outro lado do reposteiro, escrevia
o texto em fo-I lhas de papel, lia-o em voz alta e emendava quando se tor-j nava necessário. l

Ao cabo de oito semanas, Harris escrevera cento e de-1 zasseis páginas do que viria a ser O Livro
dos Mórmones.m Tratava-se da história de três povos antigos, os Jaraditas, osl Lamanitas e os
Nefitas, que se haviam deslocado de Jerusa-1

lém e da Babilónia até à América, antes do nascimento de Cristo. com o andar dos tempos, estes
povos acabaram por se destruir uns aos outros em guerras sucessivas. Os Nefitas registaram toda
esta história nas tábuas de oiro, quatrocentos e vinte um anos antes de Cristo, deixando-as como
herança às futuras gerações menos esclarecidas. Tudo o que restara destes povos foram os índios da
América, descendentes dos Lamanitas, e as tábuas de oiro, destinadas por Deus a virem ter às mãos
de Joseph Smith Junior.

O facto de Martin Harris haver abandonado a família a fim de colaborar nos assuntos divinos
causara-lhe complicações domésticas. A mulher fazia-lhe a vida negra. Segundo ela declarava, o
marido «tornava-se cada vez mais mal-humorado, turbulento e desagradável para mim». Um dia,
furioso porque a mulher o invectivara a respeito d’O Livro dos Mórmones, Harris bateu-lhe com o
cabo de um chicote. Até que, fartos destes conflitos domésticos, ele pediu a Joseph Smith licença
para que mostrasse à mulher as cento e dezasseis páginas traduzidas, a fim de a convencer da
importância daquele trabalho. Smith acedeu de má vontade. Entretanto, a. mãe de Joseph Smith,
Lucy Mack Smith, não acreditava muito naquelas coisas. E escrevia nas suas memórias : «A mulher
do Sr. Harris era uma criatura estranha, de natureza bastante ciumenta; além disso tinha o ouvido
duro e ficava logo desconfiada quando se dizia qualquer coisa que não conseguia perceber,
pensando que se tratava de um segredo que lhe estavam escondendo propositadamente.» Além
disto, a mãe de Smith nunca perdoaria à Sr.a Harris o facto de ter um dia chamado «grande
impostor» ao filho. Fosse como fosse, mostraram as cento e dezasseis páginas à Sr.a Harris e ela
ficou convencida.

Harris guardava o manuscrito numa gaveta da cómoda da mulher. Certo dia, num momento de
grande entusiasmo, ansioso por mostrar o seu trabalho a alguns amigos, Harris foi procurar a chave
da gaveta, mas não conseguiu encontrá-la. Então arrombou-a, danificando assim o móvel. Mais
tarde, quando Joseph Smith quis ver as páginas, deu-se com a gaveta vazia. Harris virou a casa do
avesso, mas as cento e dezasseis páginas nunca mais foram vistas. A historia não dá qualquer
explicação para o facto, a não ser a que é fornecida pela Sr.a Lucy Mack Smith. Segundo esta, a
Sr.a Harris, irritada com o acto de vandalismo praticado

30

31
pelo marido, e também pela influência que Joseph Smith exercia sobre este, roubara as preciosas
páginas, escondendo-as em seguida. «Não há dúvida de que foi a Sr.a Harris quem as tirou da
gaveta no intuito de as reter até sair nova tradução, alterando ela própria o original a fim de revelar
discrepâncias entre os dois textos de modo a dar a tudo aquilo um aspecto de falsidade.»

Desta altura em diante, Martin Harris deixou de exercer as funções de escriba. Um ano depois, um
professor de vinte e três anos de idade, Oliver Cowdery, ofereceu-se para o substituir. Voltando ao
princípio, de novo oculto atrás de um reposteiro, Joseph Smith ditou a Cowdery um volume
composto de duzentas e setenta e cinco mil palavras. Harris recuperou as boas graças de Smith ao
oferecer-se para financiar a impressão do sagrado volume: três mil dólares por cinco mil exemplares
impressos em Palmira, estado de Nova Iorque, na Primavera de 1830. Feita a publicação, veio um
anjo levar de novo as tábuas para o Céu, mas não sem deixar de revelar a sua presença e a das
tábuas a três testemunhas: Harris, Cowdery e um lavrador chamado David Whitmer, e depois a mais
oito pessoas. Caso interessante, muito embora, passado tempo, tanto Cowdery como Harris e
Whitmer tivessem cortado relações com Smith, nenhum deles negou o facto de ter visto o anjo e as
tábuas de oiro.

A 6 de Abril de 1830, Joseph Smith e os seus Amigos instituíam a Igreja de Jesus Cristo e dos
Santos dos Últimos Dias. Possuíam já o seu livro sagrado e uma hierarquia composta por quinze
membros. Joseph Smith era o Profeta e o presidente, secundado por dois conselheiros e doze
apóstolos. Dali a uma semana começava o árduo trabalho do proselitismo e da conversão de
adeptos.

Os missionários do mormonismo deparavam em toda a parte com uma forte resistência e um grande
cepticismo. A história milagrosa das tábuas de oiro era considerada suspeita. Peter Ingersoll,
vizinho de Joseph Smith, declarou que este lhe revelara ter inventado aquela história por simples
brincadeira, afirmando aos amigos não haver dentro do embrulho nenhumas tábuas de oiro, mas sim
vulgares tijolos.

A versão mais largamente aceite pelos antimórmones era a de que se tratava de um plágio ao livro
de Spaulding. No ano de 1812, inspirado numa escavação arqueológica

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realizada no Ohio, o reverendo Solomon Spaulding, licenciado em Dartmouth e ministro


presbiteriano, escrevera um romance intitulado O Manuscrito Descoberto. Tratava-se de umas
tábuas encontradas debaixo da terra no Ohio, e nas quais se falava da existência de antigas tribos de
Israel na América pré-colombiana. Pouco antes de morrer tuberculoso, o reverendo Spaulding
entregara dois originais do seu livro, um à mulher, outro a um livreiro de Pittsburg. Ao ter
conhecimento d’O Livro dos Mórmones, a viúva de Spaulding insurgiu-se publicamente,
considerando-o um plágio. Lembrava que em 1825 um dos originais do marido tinha levado
descaminho. Por estranha coincidência, acrescentava, Joseph Smith trabalhava nessa altura na
abertura de um poço por conta de um vizinho deles. A maioria dos antimórmones aceitara esta
versão que ainda hoje é aceite. Contudo, o Dr. M. Wilford Poulson, da Universidade de Brigham
Young, o maior especialista vivo nos assuntos referentes a Joseph Smith e às origens do
mormonismo, depois de estudar todos os documentos, declarou ao autor destas linhas que a teoria
de Spaulding «era puro dispa-

rate».
Outra tecla constantemente batida pelos antigos mórmones: o facto de Joseph Smith estar
totalmente deslocado no papel de Profeta. Argumentavam que Deus nunca teria escolhido um ser
humano cheio de fraquezas para levar a cabo uma missão tão espiritual como esta. O gigantesco
Joseph Smith era realmente um homem do mundo, em toda a acepção da palavra. Aliando as
delicadas feições de ídolo cinematográfico ao físico de atleta, praticava a luta, jogava, praguejava
«como um pirata» e, como viria a declarar o governador do Ilinóis, era bêbedo e libertino.

O prefeito de Boston, Josiah Quincy, traçou dele um retrato fiel. Acompanhado por seu primo,
Charles Francis Adams, filho do presidente John Quincy Adams, fora visitar Smith no ano de 1844.
Encontraram o Profeta vestido com o traje de carpinteiro... Era um tipo forte e atlético, de olhos
azuis e tez clara, nariz comprido e testa fugidia. Usava calças às riscas, casaco de linho, que há
muito não era lavado, e ostentava uma barba de três dias. Quincy relata que tanto ele como o primo
foram introduzidos junto de Smith sem qualquer cerimonial. «Para começar, que Deus vos
abençoe!», exclamou Joseph Smith, erguendo as mãos e

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poisando-as nos ombros de Adams. «Esta bênção, sem dúvida sincera, tinha no entanto um estranho
sabor que se poderia classificar de familiaridade oficial, no torn que adoptaria um rei ao receber o
herdeiro presuntivo de qualquer estado vizinho. A saudação que me dirigiu era cordial, como se
fosse o director de um colégio ao cumprimentar um aluno bem classificado.»

Durante a conversa, Quincy declarou francamente a Smith que este dispunha de um poder
demasiado grande. Sem se mostrar indignado, Smith replicou: «Nas suas mãos ou nas de qualquer
outra pessoa tal poder seria sem dúvida um perigo. Eu sou o único homem no mundo que pode
detê-lo sem prejuízo. Lembre-se de que sou um Profeta!» A isto acrescentava Quincy, dirigindo-se
aos leitores: «As cinco últimas palavras foram ditas em torn de cómico aparte, como se ele, no
íntimo, reconhecesse a que ponto deveriam parecer ridículas para os ouvidos de um não-
mormonista.»

Os seus colegas mórmones não negavam os hábitos e costumes de Joseph Smith. De facto, Brigham
Young parece ter afirmado algures que «o Profeta era um homem de origem humilde, tinha mau
génio, bebia de mais, não primava pela honestidade, mas isto em nada afectava a sua missão.
Muitas vezes sucede que Deus utiliza para O servirem os mais vis instrumentos. Embora proceda
como um demónio, Joseph Smith instituiu uma doutrina que nos poderá salvar se aderirmos a ela.
Pode embebedar-se todos os dias, dormir todas as noites com a mulher do próximo... mas a doutrina
que prega salvar-me-á a mim e aos outros e a todo o mundo».

Para os antimórmones a tradução das tábuas de oiro revela-se tão inaceitável como o seu autor. A
crítica de Mark Twain é um exemplo bastante típico. Considerava O Livro dos Mórmones «um
plágio enfadonho e insípido» do Novo Testamento. E acrescentava: «É uma espécie de clorofórmio
em letra de forma. Se acaso foi Joseph Smith que o compôs, realizou pelo menos um milagre o de
se manter acordado enquanto o escrevia. O próprio capitão Richard Burton, que na sua qualidade de
amigo do mormonismo devia ser um juiz mais justo e benévolo, afirma: ”Por certo nunca existiu
livro mais pesado e enfadonho do que este; é monótono como um deserto de salva.”»

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No entanto, a filosofia nele contida e o seu novo ideal não tardaram a conquistar grande número de
adeptos, entre estes os pais de Ann Eliza Webb Young. O pai, Chauncey G. Webb, nascera e fora
criado em Hanôver, estado de Nova Iorque. Vivia com os pais, bastante idosos, trabalhava
manualmente como fabricante de rodas de carro e gostava de gozar os prazeres da vida. Era um
jovem simples e equilibrado, conservador, realista e muitas vezes céptico. Não tinha muita
paciência para os assuntos espirituais e desconhecia aquele sentimento de evangelização que tanto
entusiasmava os seus contemporâneos. Pelo que respeitava aos pais, estes haviam chegado àquela
idade avançada em que as pessoas habitualmente anseiam pela esperança e pela promessa da
imortalidade. Ao tomarem conhecimento do mormonismo e das verdes planícies do seu paraíso,
aderiram prontamente a ele. E quando a nova igreja demarcou terrenos com vista à concretização de
uma utopia na longínqua região de Kirtland, no Ohio de acordo com uma revelação que tivera
Joseph Smith , prepararam-se para o seguir.

Os pais de Chauncey Webb pediram-lhe que os acompanhasse tinha então vinte e três anos; o rapaz
hesitou. Não lhe interessava grandemente esta nova religião, nem aliás qualquer outra. Acabou por
aceder, pois não desejava contrariar os pais nem separar-se da família, e concordou em ser
baptizado na Igreja Mórmon antes de empreender a viagem para o Ohio. Foi ali que, em 1834, veio
a conhecer Eliza Churchill, por quem se apaixonou e com quem casou em seguida.
Até aos dezassete anos, a vida de Eliza Churchill fora um daqueles pequenos infernos que Charles
Dickens se comprazia em relatar nas suas obras. Natural de Union Springs, Nova Iorque, a jovem
perdera a mãe aos quatro anos de idade. O pai, impossibilitado de criar sozinho os três filhos Eliza
e mais outros dois , colocou-os a cada um junto de famílias estranhas, até poder juntar o dinheiro
suficiente para os reunir de novo. Nunca, porém, conseguiu realizar este sonho.

Eliza Churchill ficou entregue a uma família rígida e numerosa de apelido Brown, de que desejava
ardentemente separar-se. Durante doze anos de martírio viveu como órfã sob o domínio de uns pais
adoptivos que não a estimavam.

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Tendo-lhe sido negada a instrução que tanto desejava, obrigaram-na a executar (como nas antigas
histórias de fadas) os trabalhos mais rudes da casa. Nem por isso diminuiu a sua vontade de
aprender. A sua instrução tinha de ser adquirida secretamente, mas lá ia devorando às escondidas
toda a espécie de livros, desde o Almanaque do Lavrador até às obras de John Wesley.

Aos quinze anos, Eliza Churchill era uma rapariga inteligente e culta, porém bastante imatura e
muito dada a fantasias. Sonhava acordada, tinha visões, acreditava em milagres, e foi isso que lhe
permitiu resistir ao seu destino infeliz. Quando os missionários mórmones, entre eles um jovem
fanático, de nome Brigham Young, apareceram nas vizinhanças da quinta onde vivia, sendo
alcunhados de blasfemos pelos pais adoptivos da rapariga, esta sentiu-se interessada. Eles
ofereciam-lhe precisamente o que ela desejava: uma nova esperança. Aceitou imediatamente o
princípio divino da nova religião. Dali a dois dias era baptizada por Brigham Young.

Fortalecida pela sua recente conversão, e mais revoltada do que nunca com os tutores, confessou a
estes a sua nova fé. Os Brown ficaram furiosos e ordenaram-lhe que renunciasse imediatamente a
semelhante idiotice. Eliza recusou. Prenderam-na então numa cela da quinta onde ficou alguns dias
a pão e água. Isto fortaleceu a sua decisão. Não fraquejaria. Ao perceberem que o fanatismo da
rapariga não se deixaria dominar, os Brown acabaram por lhe abrir a porta da prisão e ordenaram-
lhe que abandonasse o único lar que até então conhecera. Eliza partiu, muito satisfeita, na certeza de
que os seus amigos mórmones tomariam conta dela; e não se enganava. Brigham Young
acompanhou-a até Kirtland, no Ohio, onde ficou a ensinar em troca do alojamento, até que
Chauncey Webb, chegando ali, travou ; conhecimento com ela. ;

«Deve ter sido a atracção dos contrastes que aproximou ] aquele homem céptico, prático e
espertalhão, da rapariga l dedicada, entusiasta e piedosa, que era Eliza», escreveria Í mais tarde Ann
Eliza Young acerca dos pais. «Foi sem dú- ! vida essa diferença que o levou a sentir tanta ternura e
inte- : resse por aquela rapariga órfã e abandonada e que fez com ; que ela confiasse na sua força.»

Em 1835, casavam-se, ou «uniam-se», segundo a ex-

pressão usada pelos mórmones. Ao contrário dos não-mórmones, que se casavam até que a morte os
viesse separar, os mórmones, como Chauncey Webb e Eliza Churchill, uniam-se «para o tempo e
para a eternidade». Sucedia também às vezes que se casavam apenas para o tempo, visto já terem
prometido a eternidade a outro. Porém, no caso de Chauncey e Eliza Churchill, as perspectivas eram
optimistas e o casamento prometia durar toda a passagem de ambos pela Terra e muitos milhões de
anos na outra vida. Logo a seguir à boda, Chauncey abriu uma pequena oficina por conta própria,
destinada ao fabrico de carroças, e começou a prosperar. Não tardou a construir uma casa para ele e
para a mulher, em Kirtland. «Foi por esta altura», relata Ann Eliza, «que teve início a amizade entre
minha mãe e Brigham Young, a qual durou muitos anos: uma amizade verdadeira da parte dela,
mas, quanto a ele, não existia mais que falsidade e traição.» Entretanto, o neófito Chauncey ia sendo
catequizado por Joseph Smith. Em consequência de uma série de revelações, o Profeta fora avisado
de que deveria dedicar-se aos negócios bancários. Neste sentido organizou a Sociedade Bancária de
Kirtland. A fim de reunir capital, convenceu Chauncey e mais alguns mórmones a investirem nela
todas as suas economias e haveres. Mas Smith começou a emitir notas sem cobertura em oiro ou
prata, e o governo via com maus olhos os seus projectos. Smith reorganizou a firma com a
designação de Companhia Antibancária de Kirtland; e as notas, ostentando a sua assinatura,
invadiram a comunidade.

Passando de mão em mão, em breve este dinheiro fictício transpôs as fronteiras da colónia mórmon,
relata Ann Eliza. «Algum chegou até Pittsburg, e um banqueiro desta cidade, que o recebera de um
seu cliente, enviou um funcionário a Kirtland a fim de investigar o caso. O enviado verificou que a
população era laboriosa e aparentemente próspera. Foi visitar Smith e certificou-se de que as notas
da Companhia Antibancária eram tão válidas como a moeda. Mas quando exibiu as que levava e
pediu o seu equivalente em oiro, o torn de Smith modificou-se. Declarou ao agente que as notas
eram feitas para circular e não para serem compradas. Isso estragaria todo o jogo. Após acalorada
discussão, o agente retirou-se e foi relatar aos seus supen°res em que consistia aquele novo método
bancário. Os

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banqueiros apelaram imediatamente para o Tribunal dos j Estados Unidos. Nesta altura o negócio
foi por água abai-j xo; o meu pai e muitos outros mórmones perderam tudo! quanto haviam
investido.» j

As fontes de informação mórmones atribuem esta falên-1 cia bancária ao alarme financeiro de
1837. Ann Eliza, no| entanto, manteve a sua acusação: «Se acaso um negócio co-i mo este houvesse
tido lugar no mundo dos não-mórmones,| chamar-se-lhe-ia burla.» j

Cheio de ressentimento, Chauncey Webb esteve à beiral de abandonar a igreja. Somente as súplicas
da mulher e ai necessidade de educar o filho, Gilbert, nascido em Dezem-j bro de 1837, o
impediram de apostatar. Assim desfalcado! no dinheiro e na fé, Chauncey voltou a dedicar-se
laborio-1 samente à construção de carroças. Outros cidadãos, porém,! mórmones e não-mórmones,
mostraram-se menos carido-l sós para com o Profeta. Juntaram-se contra ele e, certa noi-| te, uma
multidão de jovens desvairados assaltou-lhe a casa,| arrastou-o para a rua e apertou-lhe em seguida
o pescoço! até o deixarem inconsciente. Tentaram mesmo, mas em vão, J enfiar-lhe um frasco de
ácido pela boca dentro. Por fim,! despiram-no por completo, untaram-no de alcatrão, cobri-J ram-no
de penas e abandonaram-no à mercê do seu reba-1 nho de crentes. i

Pouco depois, sabendo através dos seus missionáriosl que a cidade de Far West, no Missuri, era
talvez mais per-J meável à utopia, Smith teve a revelação de que a sua igrejal devia transferir-se
para o tranquilo reino dos Céus, tendol para isso de atravessar os territórios de Indiana e Ilinóis.I O
Profeta partiu a cavalo para o Missuri, em Janeiro dei
1838. Chauncey e Eliza Churchill Webb, acompanhados! pelo filho e por todos aqueles que
conseguiram convencer,! liquidaram os seus negócios e seguiram-no de carroça. l

Aquele ano no Missuri revelou-se ainda menos tranqui-1 Io do que o precedente no Ohio. As duas
principais coló-j nias mórmones no Missuri eram, em primeiro lugar, a cidade l de Far West, e, em
segundo, outra, chamada vulgarmente! Spring Hill, trinta milhas ao norte, no condado de Daviess,!
chamada pelos mórmones Adam-ondi-Ahman (nome estel escolhido por Joseph Smith e que
significava «o lugar onde! Adão visitará o seu povo»). Chauncey construiu ali uma ca-1 bana de
toros e uma oficina, e foi lá que a mulher deu à luz l

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o seu segundo filho, Edward Milo. Tal como da primeira vez, as qualidades de trabalho e de
perseverança de Chauncey permitiram-lhe prosperar. Mas de novo foi sol de pouca dura.

Os habitantes do Missuri eram francamente hostis aos mórmones. Donos de escravos, aqueles
velhos colonos consideravam todos os «Santos» recém-chegados como inimigos vindos do Norte.
Além disso, repugnava-lhes aquela religião tão pouco ortodoxa e temiam a competição económica
que eles lhes traziam, bem como o facto de considerarem os índios como fazendo parte do «povo
escolhido por Deus».

Recomeçaram as hostilidades contra os mórmones, as quais, embora não fossem organizadas, nem
por isso deixavam de se repetir. Alguns dos «Santos» respondiam com a violência e Joseph Smith
incitava o povo de Adam-ondi-Ahman a reforçar a defesa. Reunindo as suas ovelhas, entre elas a
família Webb, Smith proclamava: «Façam tudo o que estiver na vossa mão para molestar o inimigo:
nunca senti tanto em mim o espírito de Deus como desde que começámos a praticar o incêndio e os
assaltos.» Um dos melhores auxiliares de Smith, um pregador de Campbell recentemente
convertido, chamado Sidney Rigdon, proferiu um discurso ainda mais inflamado: «Perseguiremos a
turba que vem atacar-nos até lhes termos feito verter a última gota de sangue», preconizava ele, «de
contrário seremos exterminados. Levaremos a guerra até ao seio das suas próprias famílias...»

Infelizmente para eles, as multidões em fúria do Missuri eram cada vez mais numerosas e audazes.
Para lhes fazer frente, os mórmones instituíram os seus bandos de danitas vingadores. A batalha
estava travada. Quando um dos chefes do Missuri se apresentou como candidato a senador do
estado, os mórmones decidiram votar em massa contra ele. Doze mórmones tentaram ir às urnas em
Gallatin, mas foram obrigados a retirar. Como vingança, alguns cavaleiros mórmones devastaram a
cidade. Em Outubro de 1838, doze milhas a leste de Far West, na colónia de Haun’s Mills, no
estado do Missuri, um destacamento de tropas sob o comando do coronel William O. Jennings
atacou um mal armado grupo de mórmones, homens, mulheres e crianças. Morreram dezassete
pessoas. Um miliciano que assassinara

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um rapazinho de dez anos explicava depois: «É das lêndeas que nascem os piolhos, e este garoto, se
vivesse, viria a ser um mórmon.» Quando a guerra se transformou numa fúria insana pôs-se de parte
todo e qualquer raciocínio justo. De ambas as partes, bandos armados assaltavam, queimavam,!
cometiam violações e assassínios. ;

No auge da violência, Chauncey e Eliza Churchill Webb, bem como os filhos, mais uma vez foram
obriga- < dos a abandonar o lar e a oficina, indo refugiar-se na cida- l de de Far West, relativamente
mais segura. Mas em breve j a sua situação se tornou precária. O governador Lillburn | W. Boggs,
que mais tarde esteve a ponto de perder a vida às mãos de um assassino desconhecido (houve quem
afirmasse tratar-se do danita Orrin Porter Rockwell), publicou a seguinte odiosa proclamação: «Os
mórmones devem ser] tratados como inimigos e é preciso exterminá-los ou expulsá-los do estado,
se tanto for necessário, para bem da co- j munidade.» j

Ao ver aproximar-se uma milícia de seis mil homens, j Joseph Smith pediu tréguas e rendeu-se aos
perseguidores, l Um tribunal marcial reunido à pressa condenou-o à morte por fuzilamento na praça
principal do Far West, acusando-1 -o do crime de alta traição. Acorrentado juntamente com quatro
dos seus auxiliares numa única cela, Smith aguarda- j vá o seu destino. Afinal, talvez fosse o álcool,
mais do que j as orações, o que lhe salvou a vida. Certa noite, ao fim de l seis meses de cativeiro, os
guardas da prisão começaram a j beber sem conta nem medida. Smith e os seus dois discípulos
ofereceram-lhes quatrocentos dólares em troca da liber- l dade. Quando quatro dos guardas estavam
já bêbedos a j cair, o quinto resolveu libertar os prisioneiros. Foram dez > dias de penosa viagem,
ora a pé ora a cavalo, ao fim dos ] quais Smith e os seus companheiros se acolheram à cidade j de
Quincy, no Ilinóis. J

Mas ainda antes da miraculosa fuga de Smith, Chauncey j e Eliza Churchill Webb haviam trocado o
Missuri pela ré- j gião mais acolhedora do Ilinóis. Uma vez que os vândalos l lhe haviam roubado
os cavalos, Chauncey atrelou uma jun- l ta de bois a uma carroça aberta e partiu através da
planície ] áspera e varrida pelos ventos. «Durante toda aquela extensa j e enfadonha jornada a
minha mãe levou os filhos apertados ] nos braços para que não perecessem. Possuía só um vesti- !

i
40 ’

do, pois abandonara o condado de Daviess a toda a pressa, levando consigo apenas os filhos.»

Em Abril de 1839, exaustos e famintos, os Webb atravessaram o rio Missuri e chegaram a Quincy,
poucos dias antes da entrada triunfal de Smith e dos seus companheiros naquela cidade. O
ressentimento que Eliza Churchill Webb nutria pelos homens do Missuri «nunca lhes perdoaria o
facto de terem castigado mulheres e crianças inocentes» em breve foi atenuado pelo caloroso
acolhimento que lhes dispensou o povo de Quincy. Deram-lhes roupas, comida e arranjaram-lhes
trabalho. Após dois meses de permanência em Quincy, Chauncey Webo levou a família para a
cidade de Payson, mais ao sul, no Ilinóis, onde de novo edificou uma casa e uma oficina de
construção de carroças. Os Webb demoraram-se ali três anos e durante esse tempo conseguiram
fazer algumas economias. No entanto, embora satisfeita por ter dado à luz mais dois filhos, Lorenzo
Dow e Helen Maria (esta viria a morrer com quatro meses), Eliza Churchill Webb não cessava de
lamentar o afastamento em que vivia dos seus companheiros de religião. Desejaria seguir Joseph
Smith, e Joseph Smith não se encontrava ali.

Três anos antes, sempre em demanda da sua utopia, Smith partira em reconhecimento através de
vastas áreas ocidentais. Cinquenta milhas ao norte de Quincy, no ponto em que o Mississipi corre
entre pântanos baixos e rocnedos alcantilados, na margem leste deste rio, ficava a aldeia de
Commerce. Excluindo um velho forte de pedra e cal, composto de duas casamatas e sete cabanas de
toros, a paisagem circundante conservava toda a sua beleza desértica e selvagem. Em frente, na
margem oeste do rio, espalhavam-se os alojamentos militares, agora abandonados, de uma aldeia
fantasma chamada Montrose, Iowa. Joseph Smith ficou impressionado. com cento e sessenta mil
dólares que pediu emprestados a um juro exorbitante, comprou vastas extensões de terreno nas duas
localidades. Em seguida dividiu-os em grandes lotes que vendeu a famílias mórmones ao preço de
quinhentos dólares cada um. Àqueles que se encontravam na miséria após os ataques sofridos no
Missuri dava-os de graça.

Smith construiu então a sua primeira residência no Ilinóis, uma cabana de toros, na margem mais
acessível do pó, uma milha ao sul de Commerce. Um dos seus apósto»°s preferidos, Brigham
Young, alojou-se defronte, num

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dos barracões abandonados de Montrose. Logo de início ol nome de Commerce repugnara ao chefe
mormon. Era co-J mo se a sua comunidade não representasse mais do quá uma paragem para
caixeiros-viajantes e não a Meca doa Profetas. Após uma breve deliberação, Smith baptizou J sua
capital com o nome de Nauvoo, Ilinóis o que, seJ gundo ele, significava em hebreu «local
aprazível», muitoj embora nenhum erudito da língua hebraica jamais tivesse! tido conhecimento da
existência desse vocábulo. J

A primeira ocupação de Nauvoo teve lugar em Junhtil de 1839. Dali a oito meses a aldeia
transformara-se numa cidade florescente de duas mil cabanas de toros e barracas toscas, as quais
dentro em breve deram lugar a casas de ti-1 jolos com o seu jardim. Passados cinco anos, Nauvoo
era a primeira cidade do Ilinóis, com uma população de vinte mil habitantes, duas vezes superior à
de Chicago. |

Não tardou que, a seguir a uma epidemia de malária! Smith mandasse drenar os pântanos,
instalando-se a seguia no coração da cidade. Obedecera a uma ordem do Senhor! afirmava, o qual
lhe indicara que devia vender lotes da pro-1 priedade aos seus irmãos a fim de construir uma grande
ca-l sã que o albergasse a ele e à família. Isto depressa se tornoid uma realidade, e ficou sendo
conhecida pela Casa de Nau-l voo. Uma das salas, destinada a museu, continha algumas! múmias
egípcias e um autógrafo atribuído a Moisés, sobrei pergaminho. A mãe do Profeta, Lucy Mack
Smith, exercisl as funções de conservadora. Smith acompanhava muitas ve-1 zes os visitantes
ilustres numa volta pelo museu e no fimi costumava dizer: «Meus senhores, todos aqueles que
vêem! estas curiosidades oferecem geralmente à minha mãe uml quarto de dólar.» Pelos vistos, até
os profetas se preocupam! com as despesas. Mais tarde, Smith viria a possuir um hotell e um
armazém de mercadorias no qual instalara o seu escri-j tório particular. l

Desde a primeira hora Smith teve consciência de quí| poderia vir a tornar-se numa potência política
do IlinóisJ Dispunha de um sólido punhado de votos que pôs à dispo*! sição de quem mais o
ajudasse. Os dois partidos políticos! rivais no Ilinóis, os democratas e os «Whigs»1, disputavam!

1 Partido Conservador. (N. da T)

esses votos. Em troca deles, Smith exigia que lhe fosse concedida a carta cívica de Nauvoo, a fim
de transformar aquela cidade numa comunidade poderosa e autónoma, talvez a mais forte da
América. Os «Whigs» concordavam com tudo e Smith fechou o negócio com eles. Para o
representar na elaboração da carta de Nauvoo enviou à nova capital do estado, Springfield, um
homem recém-convertido que se tornara no seu braço direito, o Dr. John C. Bennett, médico
mercenário, abortador, patife, vira-casacas de profissão, um sujeito que se poderia colocar à testa de
uma quadrilha de bandidos. Aos trinta e sete anos, Bennett exercia já as profissões de médico e
professor numa maternidade do Ohio e fora também chefe do Estado-Maior no Ilinóis. Ocultando o
seu oportunismo sob a simpatia que fingia manifestar pelos mórmones, aderiu à igreja deles.

Durante a sua missão em Springfield, o representante do Profeta fez mão-baixa nas leis dos
«Whigs». A carta de Nauvoo devia conferir à cidade o direito de fazer e aplicar as suas próprias
leis, de eleger os seus tribunais particulares, de ter exército próprio e de construir uma universidade.
Os historiadores mórmones consideram os vinte e oito artigos da carta «os mais liberais da História
da América». O projecto de lei autorizando essa carta foi aprovado pelo Parlamento do Ilinóis em
Dezembro de 1840, e entre os votantes contava-se a assinatura de um jovem político chamado
Abraão Lincoln.

Como recompensa da sua actuação, o Dr. Bennett foi nomeado primeiro prefeito de Nauvoo. Smith
reservava para si próprio um lugar mais elevado. A sombra da carta, criou a Legião de Nauvoo,
constituída por seis mil mórmones de todas as idades, desde os dezoito aos quarenta e cinco anos,
trajando fardas de ópera-cómica, porém armados de mosquetes a sério. Smith nomeou-se a si
mesmo tenente-general dessa legião, lugar que só fora preenchido na História americana por George
Washington.

A medida que Nauvoo ia crescendo, Joseph Smith lanÇava os olhos a outras iniciativas. Mandou
levantar da cama, onde se encontrava doente, o seu auxiliar Brigham Young e enviou-o juntamente
com outros missionários pregar a palavra nova para a Inglaterra. Brigham partiu para Liverpool,
levando apenas no bolso dezoito dólares. A sua viagem for coroada de um êxito espantoso. Num só
ano ar-

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ranjou fundos para mandar imprimir cinco mil volume*] d’O Livro dos Mórmones e enviou um de
presente à rainha] Victoria. Fundou também um jornal mórmon, chamado] Estrela Milenária.
Exercia a sua missão no meio dos pobresf e esgotados trabalhadores das fábricas e pintava-lhes a
vidaj no paraíso dos mórmones com cores tão deslumbrantes co-i mo as do paraíso de Maomé.
Conseguiu assim oito mill adeptos para a sua igreja, dos quais enviou para a florescen-j te cidade de
Nauvoo nada menos do que setecentos e sessenta e nove, na sua maior parte mulheres.

Um ano após a chegada da primeira leva de convertidos ingleses, surgiu novo grupo. Eliza
Churchill Webb acabara por convencer o marido de que nunca se poderia sentir feliz tão longe do
seu amado Profeta Smith e de Brigham Young. Cedendo, finalmente, Chauncey dirigiu-se para o
Norte, sozinho, a fim de ver se encontrava em Nauvoo um terreno que lhe conviesse. Escolheu um
love de cinco hectares planos, fechou o negócio e pagou a primeira prestação, voltando em seguida
a Payson, para ir buscar a mulher e os filhost bem como a mobília. Mudaram-se todos para Nauvoo.
À chegada, porém, Chauncey foi informado de que a validade do seu negócio era discutível. Um
certo Dr. Robert D. Foster, um homem muito rico e recém-convertido ao mormonismo, reinvidicara
a prioridade na compra, com fundamento num contrato verbal anterior ao dele dois anos. O caso foi
entregue à arbitragem da igreja. Visto sef amigo íntimo de Joseph Smith, o Dr. Foster levou a
melhor. Mais tarde, agradeceria ao Profeta afastando-se da igreja e procedendo como um Judas.

Desapontado, Chauncey não perdeu tempo com recriminações. Procurou outros lotes que lhe
conviessem tanto como o primeiro, comprou-os a pronto pagamento e construiu outra casa
confortável e uma nova oficina de carroças. Eliza Churchill Webb sentia-se agora feliz em Nauvoo,
mas em breve teria graves razões para se arrepender da mudança.

Todos os paraísos têm a sua serpente e a de Nauvoo era representada pelo Dr. John C. Bennett, o
prefeito da cidade. De um dia para o outro, Bennett era obrigado a comparecer perante o governo
municipal sob a acusação de conduta desonesta. A igreja excomungou-o. Smith foi ocupar o
gabinete do prefeito, enquanto este, a espumar de raiva, seguia para leste, a ruminar a futura
vingança. O que sucedeu

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depois viria a ter graves consequências tanto para Chauncey e Eliza Churchill Webb, como para
todos os seus vizinhos mórmones.

A 8 de Julho de 1842, Bennett anunciava a publicação de toda a verdade, a verdade escandalosa, até
aí secreta, acerca de Joseph Smith, numa série de artigos no Jornal de Sangamo e num futuro livro.
Fizera-se mórmon com o único fito de desmascarar a sua perfídia. «Convenci-me a certa altura de
que a melhor maneira e também a mais rápida de vencer o impostor e de mostrar ao mundo a sua
indignidade seria converter-me à doutrina que ele professava e sentar-me com ele na cadeira do
poder.» Agora estava pronto a revelar ao mundo tudo quanto sabia acerca do «sagrado Joseph e do
seu bando de assassinos danitas».

Bennett publica a sua série de artigos, reunindo depois estes num livro de trezentas e quarenta e
uma páginas, no ano de 1842. Chamava-se ele A História dos Santos ou Uma. Exposição acerca de
Joseph Smith e do Mormonismo, impresso nas oficinas de Leland and Whiting, de Boston. O maior
escândalo revelado por este livro foi o facto de Joseph Smith e a sua hierarquia mórmon praticarem
secretamente a poligamia no Ilinóis.

Isto era realmente verdade, mas os mórmones tanto se empenharam em desacreditar a personagem e
a carreira de Bennett que a nação hesitou em dar crédito às suas acusações, salvo os antigos
mórmones do Ilinóis, e a obra abriu caminho a uma série de exposições que contribuíram para a
ruína da idílica cidade de Nauvoo.

O conflito de Bennett com Smith tivera a sua origem sobretudo numa jovem e atraente rapariga.
Tratava-se de Nancy Rigdon, filha do ilustre Sidney Rigdon. No dizer de Bennett, o Profeta pedira-
lhe que representasse o papel de John Alden1. «Se me ajudares a conseguir fazer de Nancy uma das
minhas esposas espirituais», afirmara Smith, «dou~te quinhentos dólares ou o melhor love na Rua
Principal.» E Bennett afirmava que recusara tal ajuda tendo em vista defender a virtude feminina. O
que ele, porém, não confessava era que também pretendera Nancy. Nessa altura,

John Alden [1599(?)-1687], pioneiro peregrino da colónia de Ply[fiouth personagem de um poema


de Longfellow «The Courtship of Miles Standish». (N. da T)

45
Smith resolveu convidar pessoalmente a rapariga para ir vil sitá-lo à sua oficina de tipografia.
Furioso, Bennett prevel niu Nancy dos planos do Profeta, mas esta, mesmo assiml foi à entrevista.
«O Joseph estava lá e. levou-a para um gal binete particular (o seu escritório preferido para receber
vil sitas) e FECHOU A PORTA À CHAVE... Depois fê-lj jurar que guardaria segredo absoluto e
confessou-lhe qui ela era há muito o ídolo das suas afeições, que pedira muita por ela ao Senhor e
que era vontade d’Ele que ela fossa sua... Em seguida tentou beijá-la e que ela o beijasse taml bem...
A jovem ameaçou-o de alarmar a vizinhança se nãJ lhe abrisse imediatamente a porta e a deixasse
sair! Ele as J sim fez...» Depois ditou também uma carta que dirigiu i rapariga: «A felicidade é o
desejo e o fito de todos nós nl vida», escrevia, insistindo no namoro. Nancy foi mostrar a carta ao
pai, o qual, por sua vez, a apresentou a Smith pej dindo-lhe contas. O Profeta começou por negar,
mas açaí bou por admitir que tentara Nancy «para lhe experimentai a virtude». J

A darmos crédito à exposição de Bennett, os apóstoloa daquela igreja eram todos libertinos, na sua
maioria tão dei savergonhados como o chefe. Uma das histórias mais sen! sacionais de Bennett é a
que se refere à tentativa de sedução na pessoa de Martha H. Brotherton, uma emigrada inglesai
bonita e culta, levada a cabo por Brigham Young, nessa ali tura já casado, e com a ajuda de Joseph
Smith. Bennett afirl mava possuir uma declaração de Martha Brotherton, assil nada pelo notário,
com data de 13 de Julho de 1842, errij que ela revelava que o seu destino fora pior do que a mor-l
te. Certa tarde, estava ela em Nauvoo havia três semanas! Brigham Young pedira-lhe uma entrevista
numa sala do sei gundo andar do armazém de Smith. Ficou surpreendida aJ ver escrito na porta:
«Proibida a entrada». Encontrou-se li dentro com Brigham Young e Joseph Smith. Depois dl
cumprimentar o Profeta, ficou a sós com Brigham Youngj «o qual se levantou para ir fechar a
janela, correr as cortil nas e trancar a porta». Pediu-lhe então para guardar absol luto segredo e
suplicou-lhe para ser sua esposa em regimj de poligamia. l

Tal proposta deixou Martha Brotherton boquiaberta! Poderia consentir uma coisa dessas? «Se fosse
legal e justo! talvez consentisse», respondeu ela. «Mas o senhor bem sabJ que não é.» i

«Ora bem», retorquiu Brigham. «O irmão Joseph teve uma revelação divina em que lhe foi
afirmado ser justo e legal que um homem tivesse várias esposas...»

Martha quis ganhar tempo. Precisava de obter licença dos pais. Brigham, porém, não tinha
paciência para esperar e exigiu logo um beijo. Martha não acedeu. Então, sem perder a esperança de
a persuadir, ele fechou-a sozinha na sala durante dez minutos e foi procurar o Profeta. Voltou daí a
pouco acompanhado de Joseph Smith. Brigham voltou-se para este:

A irmã Martha só concorda se souber que isto é legal e permitido por Deus.

Pois bem, Martha. Isto é legal e permitido por Deus. Eu sei que é. Escuta, irmãzinha, não me
acreditas?... Então, Martha, faz o que te pede Brigham. Ele é o homem melhor que há no mundo, a
seguir a mim.

Martha continuou a pedir que lhe dessem tempo para pensar. Smith impacientou-se. «Declarou que
não teriam outra oportunidade senão dali a muitos meses, pois aquela sala estava quase sempre,
ocupada», contou mais tarde Martha. Porém, nenhum argumento conseguiu demovê-la. Permaneceu
firme na defesa da sua castidade e saiu dali com a virtude intacta. Logo a seguir, fugia para St.
Louis, onde escreveu a declaração que entregou a Bennett. A história desperta então grande
escândalo, mas em breve este foi atenuado quando uma irmã de Martha, Elizabeth Brotherton,
mormonista convicta e que dentro em pouco se tornaria esposa poligâmica de Parley P. Pratt, alto
membro da hierarquia mórmon, redigiu por sua vez uma declaração em que acusava Martha não só
de «mentirosa» como também de «imoral».
Entretanto, a grosseira descrição feita por Bennett do modo como «o Senhor do Harém saciava os
seus apetites animalescos» sob o disfarce de um mandamento divino, causava agitação tanto entre
os mórmones como entre os não-mórmones do Ilinóis. Os «Santos» vulgares especulavam,
perguntando a si próprios há quanto tempo aquele harém oriental existiria mesmo debaixo dos seus
narizes. Aquilo que acabavam de saber e o que muitos antimórmones adivinhavam despertou uma
onda de apostasia no seio da igreja e uma profunda repulsa entre os metodistas e presbiterianos
sinceros do exterior. Nauvoo nunca mais se recomporia daquele revés.

46

47
Segundo uma descrição posterior de Brigham Younj Joseph Smith encarava a possibilidade de já
existirem matrl mónios celestiais ou poligâmicos desde o ano de 1829 quando lia as tábuas da lei
através das pedras Urim l Thummim e andava ditando a tradução daquelas ao pedi gogo Oliver
Cowdery. l

Irmão Joseph perguntou Cowdery, certo da

porque não praticamos nós a poligamia tal como a ff ziam os nossos antepassados? Se sabemos que
a verdade l esta, porque estamos com adiamentos? j

Eu sei que possuímos a verdade e que esta nos f<| revelada por Deus respondeu Smith com toda a
calml

Mas ainda não chegou a nossa hora. J Pelos vistos, durante o período de Kirtland, no Ohii

Joseph Smith pensou que essa hora estava prestes a chega Ao elaborar a sua versão do Velho
Testamento, o Prorel sentira-se intrigado com as práticas poligâmicas de Abraãa Jacob, Salomão e
David. Acreditava sinceramente que o sil tema adoptado pelos antigos tinha a aprovação de Deu]
Além disso, devem ter havido certos factores de ordel pessoal que actuaram de maneira decisiva. E
muito provi vel que a sua insípida e rebarbativa esposa, Emma, não few se uma companheira muito
divertida na cama. Smith pal suía sem dúvida um temperamento bastante inclinado I variedade
sexual. No entanto, a sua educação rígida e pun tana não lhe permitia prevaricar sem sentir
remorsos. Faldj va-lhe a coragem de arranjar amantes. E assim, sancionaa do o casamento
poligâmico, arranjava maneira de receberl troco, ficando com a nota. Como tal sistema, porém, na
era usual no Ocidente desde a Idade Média, sendo apenl praticado pelos Turcos e Árabes, Smith
entendia que parai poder adoptar necessitava de o tornar extensivo aos sell numerosos adeptos. Mas
isto só seria possível se fosse aprl sentado como uma ordem divina. l

No entanto, mesmo antes da oficialização de tal ditanj superior, Smith começara já a dedicar-se
prematuramente! poligamia. Em Kirtland, Emma acedera a dar casa e alimeM tacão a uma pobre
mas atraente rapariguinha órfã de dezai sete anos, chamada Fanny Alger. Smith casou com ela sjl
cretamente, fez uso dos seus direitos conjugais, e em bre« a menina Fanny, na realidade a Sr.a
Fanny, ficou grávidl As más-línguas começaram a falar. Uma vizinha chamadl

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Fanny Brewer viria mais tarde a fazer uma declaração tornada pública: «Lavrava grande revolta
contra o Profeta por muitas razões, entre elas as suas relações ilícitas com uma rapariga órfã que
vivia em sua casa e sob a sua protecção!!! O Sr. Martin Harris declarou-me que o Profeta tinha
fama de ser mentiroso e um sem-vergonha!!!...»

Estes inúmeros pontos de exclamação não conseguiram ocultar a verdade. Caiu a venda dos olhos
de Emma, e esta, num acesso de fúria, pôs a sua rival no olho da rua.

Sem desanimar, Joseph Smith continuou a espalhar as sementes do novo princípio. Os relatórios
oficiais da igreja atribuem-lhe vinte e sete esposas poligâmicas. O falecido M. Brodie, o seu melhor
biógrafo, descobriu documentação relativa a quarenta e nove esposas. Diz-se que, entre 1835 e
1843, quando o Senhor lhe concedeu plenos poderes, Smith casou-se com onze ou talvez vinte e
seis jovens, na sua maioria menores de vinte anos. Todos estes casamentos foram realizados à
socapa, visto Emma haver-se mostrado tão intratável. Afirma-se que esta, a pedido do Profeta,
instituíra em Nauvoo uma residência especial destinada a jovens sem família nem meios de
subsistência. Havia ali doze, todas elas esposas poligâmicas do dono da casa, sem que Emma
tivesse disso conhecimento. Quando a mulher veio a saber a verdade, expulsou dez, dando licença
ao marido para se casar apenas com duas, as irmãs Eliza e Emily Partridge, de dezoito e dezanove
anos, respectivamente, ignorando que ele tivesse já casado com elas.

Por alturas de 1843, a actividade conjugal de Joseph Smith tornara-se conhecida em Nauvoo e nos
arredores. A fim de pôr termo a comentários perigosos, Smith proclamou na imprensa que «uma
comunidade de esposas» constituía «uma abominação aos olhos do Senhor». Quando um
missionário, Hyram Brown, mostrou que o não tomava a sério, Smith «expulsou-o da igreja»,
acusando-o de «pregar a poligamia e outras doutrinas falsas e corruptas» no Michigan. Entretanto, o
Profeta continuava a travar com o Senhor muitas conversas prolongadas e úteis acerca do
casamento, até que por fim se considerou apto a transmitir o seu grande segredo aos membros
menos iluminados da hierarquia.

Em Fevereiro de 1843, convidou o seu secretário, William Clayton, para ir passear com ele. Como
por acaso, foi

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orientando a conversa para o assunto que trazia em mentj Mostrou-se sabedor de que Clayton,
embora casado, nutij profunda afeição por outra mulher, uma inglesa recérj -convertida. Clayton
não se atreveu a negar. Smith sugei que o secretário a mandasse vir e casasse com ela, ficam assim
com duas esposas. Se acaso Clayton se mostrou e candalizado, Smith fingiu não se aperceber disso.
«Tens privilégio de possuir as mulheres que quiseres», declan friamente. Em seguida pôs-se a
descrever as revelações q tivera. Clayton explica depois: «Foi esta a primeira vez qi falou comigo
acerca do casamento poligâmico. Informo -me que tal doutrina estava de acordo com os desígnios <
nosso Pai do Céu e que ela fazia parte da ordem e da glói celestial.»

Dois meses mais tarde, Lorenzo Snow, recém-chega< de uma missão na Europa, era também
convidado pé Profeta a dar um passeio na sua companhia. «Conversam durante um bocado», relata
Snow, «e depois sentámo-n num tronco perto da margem do rio. Foi ali que ele me e plicou a
doutrina do casamento poligâmico. Declarou q o Senhor lha revelara ordenando-lhe que se unisse a
ván mulheres; que previa já os dissabores que isso lhe causaria portanto pensara em deixar de
cumprir as ordens de Dei mas que lhe aparecera um anjo do Céu com uma espa nua ameaçando-o
de destruição se acaso se recusasse a ob decer ao mandamento. Disse ainda que a minha irmã, Eli R.
Snow, se unira a ele como esposa para a vida e para eternidade...»

Numa quarta-feira, 12 de Julho de 1843, Joseph Smi confessou ao irmão Hyrum e ao secretário
Clayton que l repugnava dar-lhes cumprimentos por causa da reacção q isso provocaria da parte de
Emma, sua primeira espoi

Hyrum era de opinião de que tudo se harmonizar

Se tu escrevesses a revelação que tiveste acerca do c samento celestial declarou-lhe o irmão , eu


irei lê-la Emma, e estou certo de que a convencerei da verdade e qi dali em diante viverás em paz. !

Smith sorriu com cepticismo.

Tu não conheces Emma tão bem como eu. Hyrum, porém, não queria estar com mais demora

A doutrina é de tal maneira clara que eu sou caps de convencer qualquer homem ou mulher normais
da s» pureza, da sua verdade e da sua origem divina.

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Está bem respondeu Smith. Nesse caso you escrevê-la e veremos.

Clayton foi logo buscar papel; Hyrum e Smith sentaram-se. O Profeta explicou que, n’O Livro dos
Mórmones, os «Santos» tinham ordem de se limitar a uma só mulher e a não ter concubinas. Mas,
por outro lado, no Velho Testamento, Abraão e os antigos possuíam «muitas esposas e concubinas».
Então, logicamente, Smith perguntara ao Senhor se Abraão havia cometido o pecado da poligamia.
Depois explicou a Clayton a resposta do Senhor e a sua revelação: «Na verdade, já que tu, Joseph,
meu servo, me fazes essa pergunta e desejas saber se acho justificação para os meus servos Isaac e
Jacob, e também para Moisés, David e Salomão, meus servos, acerca do princípio e da doutrina que
lhes permitiu terem várias esposas e concubinas, escuta! Presta atenção: Eu sou o teu Senhor e you
responder-te...» Nesta altura, depois de muito palavreado, o Senhor declarou ao Profeta que Abraão
praticara a poligamia por ordem divina. «Vai, pois, e segue o exemplo de Abraão; cumpre a minha
lei e serás salvo.»
Ao ditar esta revelação, Smith esclarecera a validade do casamento poligâmico repetindo as
palavras do Senhor: «Se um homem desposar uma virgem e depois desejar desposar outra e a
primeira der o seu consentimento, e se forem todas virgens e não tiverem relações com nenhum
outro homem, então ele está justificado... e se possuir dez virgens a ele unidas segundo esta lei, não
cometerá adultério porque elas lhe pertencem; desta forma, está justificado.»

No entanto, isto continuava a representar para Emma um problema complicado. O Profeta resolvera
partilhar a revelação com ela, a fim de evitar a sua futura cólera. Inquirira do Senhor, prevendo já a
pergunta que Emma lhe iria fazer, se as mulheres teriam o direito de praticar a pouandria, ou seja de
ter vários maridos, tal como o marido podia ter várias esposas. O Senhor tranquilizara-o, ao mesmo
tempo que avisava Emma: «Na verdade te digo, este é o mandamento que eu dou à minha serva
Emma, tua esposa, que te foi entregue por Mim. Ela deve permanecer com° e e não repudiar aquilo
que ordeno. Eu assim o quis, para provar a todos vós, como o fiz a Abraão...» Mas se esmo assim
Emma repudiasse e opusesse resistência à poigamia? O Senhor não suportaria isso. Smith ditou a
or-

51
;

dem do Senhor: «Ordeno que a minha serva Emma Smit aceite todas aquelas que dei como esposas
ao meu servo Jo seph, que são mulheres virtuosas e puras aos meus olhos...

Estava finalmente passada ao papel a célebre revelação «Depois de tudo escrito», relata Clayton,
«Joseph pediu -me que o lesse com cuidado e vagar, o que fiz, e ele decla rou estar certo.»

Animado de relativa confiança, o irmão Hyrum pego no documento e apressou-se a ir procurar


Emma. Esta ou viu, do princípio ao fim, e não achou graça nenhuma. Aça bou por descompor
asperamente Hyrum e pô-lo fora d casa mais a sua revelação. Hyrum voltou, de orelha mur chá,
para junto do Profeta.

Nunca na minha vida fui assim insultado por um mulher! confessou com espanto.

Agora que possuía o mandamento escrito, Smith passo a lê-lo aos seus íntimos, Sidney Rigdon,
Brigham Younj William Law, um convertido canadiano, e todos ficarar pasmados. «Ao ouvi-lo pela
primeira vez», refere Brighai Young, «desejei morrer e por momentos senti-me deso rientado.»
Smith prosseguia na leitura. O bispo Newe K. Whitney mostrou-se impressionado e pediu para tira
uma cópia. O Profeta consentiu.

O que aconteceu em seguida descreve-o Brigham Youn alguns anos mais tarde:

«Depois de ter estado com o bispo Whitney, Smith fa para casa; Emma começou a massacrá-lo por
causa da revê lação. Dizia ela: ”Joseph, tu prometeste dar-me essa revela cão e, se és um homem de
palavra, deves cumpri-la.” Jo seph tirou-a do bolso e respondeu: ”Aqui a tens.” Então mulher
aproximou-se da chaminé, colocou dentro o papel queimou-o com uma vela, pensando que assim
acabari com tudo, o que sem dúvida lhe valeu ser condenada. Ora como Joseph costumava afirmar
que seria capaz de a segui nem que fosse até ao Inferno, com certeza que foi lá cai também, pois é
sem dúvida alguma aí que ela se encontra.

A verdade, porém, é que existia outro exemplar da revê lação, ou até vários, e assim a doutrina
continuou a circula entre a elite da igreja. A notícia espalhou-lhe por toda a co munidade. Uma
jovem do New Hampshire, de visita Nauvoo, a bela Charlotte Haven, escrevia à família, n< Leste
americano: «Aqui há um mês ou dois, um dos após

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tolos, chamado Adams, regressou de uma missão de dois anos em Inglaterra, trazendo consigo uma
esposa e um filho, embora ao partir tivesse deixado aqui a mulher e outros filhos. Estou informada
de que a primeira mulher se conformou com a vinda da intrusa, que certamente lhe desagradava,
porque o marido e outros a convenceram de que a multiplicidade das esposas é ensinada na Bíblia...
Não posso acreditar que Joseph jamais venha a sancionar tais doutrinas e, se acaso os mórmores de
algum modo incluem este artigo na sua religião, não tardará que esta caia aos bocados, pois qual é a
comunidade ou estado que possa sancionar tamanha imoralidade?»

Por fim, até Chauncey e Eliza Webb foram abordados por Joseph Smith que os informou da nova
doutrina. Chauncey prosperara com a sua nova oficina de carroças, sendo considerado uma
personagem influente em Nauvoo, e Smith queria tê-lo do seu lado. Ordenou-lhe que «fizesse uso
dos seus privilégios» e arranjasse mais esposas. Eliza Churchill Webb, apesar do respeito e
dedicação que nutria pelo Profeta, mostrou-se horrorizada com a prática do casamento celestial.
Queria conformar-se, obedecer ao chefe
3ue adorava, ter a certeza de que alcançaria um belo lugar o paraíso mórmon, mas não podia admitir
a ideia de partilhar a vida de Chauncey com outra mulher. Durante noites a fio, os Webb discutiram
o caminho a seguir, sem conseguirem chegar a uma conclusão. Tão absorvidos estavam com o seu
próprio problema que nem se davam conta dos dramáticos acontecimentos que atingiam proporções
catastróficas nas ruas de Nauvoo e nas cidades vizinhas não-mórmones.

Durante os meses que haviam precedido a revelação da poligamia, o ressentimento contra os


mórmones fora crescendo gradualmente, sobretudo contra Joseph Smith. Agora, os cidadãos do
Ilinóis começavam a conhecer de perto o mormonismo e a detestá-lo. «A história idiota das placas
de Olro e da colonização do continente americano por emigrantes de Jerusalém», escrevia Bernard
DeVoto, «os rituais primitivos, semibíblicos, de uma maçonaria degenerada, a estupidez
apocalíptica mórmon tudo isto era o bastante Para causar a perturbação na frente entusiástica dos
presbiterianos e metodistas.»

A prosperidade e o oportunismo político dos mórmo-

53
nes despertavam também o antagonismo dos seus vizinhoi

Para cúmulo, Joseph Smith resolvera candidatar-se a presi

dente dos Estados Unidos contra James S. Polk, candidat

dos democratas, e contra Henry Clay, do partido de

«Whigs». Pouco antes, acenando com os votos de que dií

punha, Smith perguntara aos dois candidatos de que manei

rã iriam tratar os mórmones no caso de serem eleitos. Am

bas as respostas lhe desagradaram. Smith viu então que o

votos deveriam ser unicamente para si. Organizou-se ei

Nauvoo uma convenção política que tinha Smith com

presidente e Sidney Rigdon como vice-presidente. O candi

dato Smith, para consolidar o seu prestígio, enviou duzeq

tos e cinquenta missionários mórmones para todos os can

tos dos Estados Unidos, incumbidos de fazerem a sn

propaganda. Fazia parte do seu programa reduzir o Con

gresso a um terço dos seus membros, diminuir o salári

destes para dois dólares por dia, empregar o dinheiro eco

nomizado com tais cortes na libertação de escravos, aboli

a escravatura no espaço de cinco anos, indultar os prisio

neiros do Estado, utilizar as tropas federais na repressã

dos tumultos, fundar um banco nacional e convidar o Me

xico e o Canadá a fazerem parte dos Estados Unidos.

Como se teria comportado Joseph Smith em face da urnas nunca se chegou a saber, pois a tragédia
espreitava-e A sua intensa actividade política, juntamente com os co mentários suscitados pela
revelação da poligamia e o fac to de ela ser praticada em larga escala pela hierarquia d Igreja
Mórmon despertaram grande repulsa e um ódi feroz da parte do público. Bastava uma faúlha para
trans formar o Ilinóis no campo de batalha sangrenta que o «Santos» tinham conhecido no Ohio e
no Missuri. l
Isso não tardou a suceder. O canadiano William La^B segundo-conselheiro de Smith, entrou em
conflito com i Profeta. Estava em causa saber-se se os materiais que est possuía deviam ser
utilizados na construção das suas casa particulares ou empregados no templo mórmon que entã
estava a ser edificado. A dissidência transformou-se em lut aberta quando Law, que sempre
ameaçara de morte tod) aquele que viesse a sua casa pregar a poligamia, veio a sabe que o Profeta
andava a fazer propostas à sua bela esposa Nunca se apurou se William Law, bem como o irmão
Wil son e o Dr. Foster, abandonaram espontaneamente a Igrej

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Mórmon ou se foram excomungados. A verdade é que se tornaram subitamente antimórmones e


começaram a confirmar as declarações que o Dr. Bennett tornava públicas.

Law resolveu fazer alarde das suas queixas. Utilizando uma tipografia instalada num armazém,
escreveu e publicou um jornal chamado Nauvoo Expositor. Saiu apenas um número, mas foi o
bastante. Em 7 de Junho de 1844, o jornal de Law era distribuído em Nauvoo e nas cidades
vizinhas, com o objectivo, segundo nele se dizia, de «censurar e desmascarar as imperfeições»
evidentes do «monarca auto-instituído». O artigo de fundo proclamava: «Estamos tentando destruir
os maldosos princípios de Joseph Smith e de todos aqueles que praticam a mesma abominável
prostituição...» De acordo com o Expositor, importavam-se do estrangeiro mulheres incautas para
satisfazerem os apetites carnais do Profeta. Cada recém-chegada era conduzida aos aposentos
particulares de Smith e obrigada a dormir com este. A mulher fica siderada, desmaia, volta a si e
recusa. Pensa no grande sacrifício que fez, nas muitas milhas que percorreu, considera que tem de
salvar a sua alma da ruína iminente e replica: «Faça-se a vontade de Deus e não a minha.»

Tudo isto podia considerar-se crime de lesa-majestade e Smith sabia que tinha de o impedir
imediatamente. Depois de declarar o Expositor um mal público, o Profeta fez uso da sua qualidade
de prefeito, dando a seguinte ordem ao intendente da polícia da cidade: «Fica intimado a destruir a
tipografia onde é impresso o Nauvoo Expositor e a espalhar pela rua os tipos da dita casa...»

Smith e os seus satélites acompanharam o intendente até ao armazém de Law. Em frente da porta
fazia sentinela um guarda atlético. No momento em que os mórmones pretendiam entrar, o guarda
reagiu deitando por terra três dos assaltantes. Só então, segundo se diz, Smith interveio derrubando
o agressor com um soco. A tipografia foi desmantelada num instante e os caracteres espalhados pela
rua, ao mesmo tempo que os jornais.

Em face desta táctica violenta, toda a região protestou

com fúria. Smith foi acusado de incitamento ao tumulto, e

0 governador do Ilinóis, Thomas Ford, emitiu contra ele

uma ordem de prisão. Ao perceber que fora longe de mais,

mith, acompanhado pelo irmão, Hyrum, fugiu de barco,

55
atravessando as águas revoltas do Mississipi, para se dirigi a Montrose, no Iowa. Tencionava
prosseguir para Oeste,; caminho do Oregon ou da Califórnia, e mais tarde regres saria a Nauvoo a
fim de a restaurar. Porém, quando andavj fugido, recebeu uma carta de Emma, sua mulher, em quj
esta lhe comunicava que o facto de abandonar o seu povi| naquele momento crítico seria
interpretado como um acq de cobardia. Muito abalado com tal ideia, pois ele conside rava-se acima
de tudo um homem leal e destemido, o Proj feta hesitou. Por fim, tendo obtido do governador Ford j
promessa de que seria protegido, regressou de má vontadj a Nauvoo. No momento em que se rendia
às autoridades murmurou: «Sinto-me uma ovelha que vai para o açougue mas estou tão calmo como
uma manhã de Verão.»

Joseph Smith e seu irmão Hyrum, acusados do crime d traição contra o Estado, foram presos numa
espaçosa cel; de prisão de Cartago, vinte milhas ao sul de Nauvoo. Un destacamento da milícia
ficou de guarda ao edifício. Smitl e o irmão passaram uma noite inquieta na cela. No dia se guinte,
na manhã soturna de terça-feira, 27 de Junho d
1844, depois de terem chamado em vão a Legião de Nau voo para os libertar, os irmãos Smith
rezaram, conversaran e distraíram-se com a visita de dois amigos, John Taylor Willard Richards. Às
cinco da tarde, na sua cela no segun do andar, os quatro homens ouviram ao longe ecos abafa dos de
tiroteio.

Em baixo, no pátio, a multidão anónima crescia de insí tante para instante. Uma centena de
assassinos, de rostos enegrecidos, empunhando espingardas e facas, saltara a vê dação, vencera a
resistência aparente dos guardas que dispa ravam para o ar e começava a invadir o edifício. Na cela
em mangas de camisa, Joseph Smith entornou o vinho qu estava bebendo e pôs-se de súbito em pé,
de um salto, a< mesmo tempo que tirava do bolso a pistola de seis tiros qu( lhe fora entregue a
ocultas por um dos seus condiscípulos O irmão, Hyrum, sacou de um revólver. Os atacantes ar
rombaram nesse momento a porta da cela e logo estalou < tiroteio. Smith alvejou três inimigos. Os
tiros destes, pó rém, atingiram Hyrum na cabeça, no peito e numa perna matando-o
instantaneamente. Taylor foi gravemente feridc com quatro tiros. Ao ver-se perdido, Smith atirou
fora í pistola e correu para a janela. Mas quando subia para o pá

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rapeito crepitaram balas vindas da porta da cela, e também do pátio em baixo, que o atingiram.
«Meu Deus, meu Deus!», gemeu ele. Depois curvou-se e caiu da altura de dois andares. Há quem
diga que já estava morto quando chegou ao chão; outros afirmam que ainda se encontrava vivo e
que conseguiu sentar-se. Reza uma lenda mórmon que, quando um dos atacantes se aproximava no
intuito de

0 decapitar com uma faca de mato a sua cabeça continuava a prémio no estado do Missuri , caiu do
céu um raio muito a propósito, impedindo-o de cometer tal sacrilégio.

Julgara a turba do Ilinóis que a morte do Profeta significaria o fim do mormonismo, mas enganara-
se redondamente. A Igreja Mórmon resistiu por duas razões: primeiro, o assassínio de Smith
fornecera-lhe um gólgota e um Cristo martirizado; em segundo lugar, abria caminho para a eleição
do chefe de que ela neste momento precisava Brigham Young, um dos maiores organizadores da
História da América.

Só duas semanas após o morticínio a notícia da morte do Profeta chegou ao conhecimento de


Brigham Young, que se encontrava em Boston. Por tal motivo, Young apressou-se a regressar ao
Ilinóis. Entrou em Nauvoo na noite de 6 de Agosto de 1844, onde verificou que Sidney Rigdon,
tendo chegado de Pittsburg três dias antes, já estava a agir no sentido de se tornar o «guarda da
igreja». Realizou-se uma reunião crucial no dia 8. Os doze apóstolos e uma multidão de «Santos»
congregaram-se num prado a fim de ouvirem os discursos de Rigdon e de Brigham Young.

Foi aquele o primeiro a Falar, empoleirado numa carroça. A sua palestra, cheia de constantes
pausas, foi pouco inspirada e não causou grande impressão na assembleia. A tarde, falou Brigham:
«Ninguém pode substituir um

1 rofeta, um Vidente ou um Revelador», afirmou ele. «Só Ueus o pode fazer. Vós sois como
crianças sem pai ou ove”ias sem pastor. Não podeis indicar nenhum homem como vosso chefe: se
assim fosse seriam os apóstolos a dar-lhes essa ordem.» Em vez de procederem assim, Brigham
sugena-lhes que ocupassem o lugar de Smith. O que não acrescentou é que seria ele o chefe desses
apóstolos. Propunha que a Igreja Mórmon fosse dirigida por homens sábios, ao Passo que Rigdon se
propunha a si próprio, sozinho, como

57
chefe. Contudo, não foi apenas esta diferença que decidia os assistentes. A habilidade teatral
instintiva de Brigham lei you a melhor.

Muito mais tarde, um dos veteranos da Igreja Mórmon Orson Hyde, viria a recordar: «Ele falou e as
suas palavrai trespassaram-me como se fossem uma corrente eléctrica Estarei enganado, disse
comigo, ou isto é a voz de Josep] Smith? Eis o meu testemunho: não me parecia apenas ouvi a voz
de Joseph, mas também ver as suas feições e a sua esm tatura. E, embora possa dizer-se que o
presidente Young J um excelente mímico, desafio quem quer que seja a imitar J estatura de outra
pessoa mais alta ao que ela quinze otâ vinte centímetros.» i

Ao cair da noite, Brigham Young, pintor de portas e carpinteiro em Whitingham, no Vermont, com
quarenta c três anos de idade, tornara-se virtualmente o novo Profeta da Igreja Mórmon. Entre
aqueles que o apoiaram na reunião daquele dia contavam-se Chauncey e Eliza Webb, esta grávida
da oito meses da filha que seria a última do casal e, mais tarde, a vigésima sétima esposa de
Brigham. Dali a quatro meses, no Nebrasca, Brigham Young era oficialmente eleito presidente da
Igreja de Jesus Cristo e dos Santos dos Últimos Dias.

Trinta dias após Brigham ter assumido a chefia dos mórmones, Eliza Churchill Webb dava à luz o
seu quinto! filho, uma rapariga, baptizada com o nome de Ann Elizal Webb. Entretanto, Sidney
Rigdon tinha sido excomungado,! os nove assassinos de Joseph Smith absolvidos em tribunal, l a
carta de Nauvoo estava em vias de ser revogada e as mui-1 tidões começavam a agitar-se pedindo a
completa expulsão dos mórmones.

«Nasci em 13 de Setembro de 1844», escreveria mais’ tarde Ann Eliza, «no momento mais crítico e
tempestuoso da história dos mórmones.» >

Chauncey e Eliza Churchill Webb não tiveram muito tempo para se sentirem felizes com o
nascimento de mais l esta filha. Ela própria o viria a declarar anos depois, já em l plena maturidade:
«Fui destinada à tragédia pelo baptismo l das lágrimas que a minha mãe verteu sobre a minha cabe-
l ca... As minhas mãos pequeninas enxugaram prantos, os i meus dedos infantis acariciaram uma
face sulcada por eles, J os meus olhos de criança não conseguiam distinguir nada l

58 *

para além da névoa que eles provocavam. Fui-lhe dada ao mesmo tempo que a maior desgraça da
sua vida estava prestes a atingi-la.»

Essa «maior desgraça» não consistia na violência da turba lá fora mas sim no inevitável problema
da poligamia. Joseph Smith aconselhara um dia Chauncey a «desfrutar das suas prerrogativas».
Porém a morte súbita do Profeta parecia ter resolvido o problema. Agora, o seu sucessor, embora
preocupado com o futuro da Igreja Mórmon, procurava cumprir os desejos do fundador-mártir.
Quando Ann Eliza contava apenas um ano, Brigham Young mandou chamar os pais dela,
ordenando severamente a Chauncey que aceitasse a revelação acerca do casamento poligâmico e a
pusesse em prática. Chauncey entregou a solução do caso às mãos da esposa: ou abandonava o
mormonismo ou partilhava a sua casa e o marido com outra mulher. Eliza Churchill Webb sofria os
tormentos do Inferno. Este problema angustiava-a e ela não fazia senão rezar. A poligamia,
escreveria à filha mais tarde, era «a coisa mais odiosa do mundo», odiava-a e temia, mas receava
opor-se-lhe, com medo de ser acusada de se erguer contra o Senhor.

Quando Brigham insistiu para que tomasse uma decisão, Eliza Churchill Webb cedeu. O casal
deparou logo com outro problema. Quem havia de ser a nova esposa? Chauncey e a mulher fizeram
a sua escolha separadamente. Ambos haviam designado a mesma rapariga. Tinha dezanove anos,
era atraente e já vivia sob o seu tecto. Chamava-se Elizabeth Lydia Taft. Pouco depois do
nascimento de Ann Eliza, ela e a irmã tinham vindo hospedar-se em casa dos Webb. «Era uma
criatura simpática, amável e afectuosa», escreveu Ann Eliza, «e não tardou que toda a família se lhe
afeiçoasse... Mostrava-se atenciosa para com a minha mãe e terna para connosco, animava-nos e
atendia aos nossos caprichos de criança. E todos nós a amávamos ternamente.»

Muito atrapalhado, Chauncey, que então contava trinta £^ três anos, propôs casamento à sua
hóspede. Elizabeth l aft ficou estupefacta com a ideia e sem saber que decisão tomar. Por um lado,
não queria ser motivo de desgosto pa”^ Eliza Churchill Webb; por outro, desejava agradar a
Chauncey. Por fim, rígida na sua fé, decidiu fazer a vontade do homem. Aceitou a proposta. com a
condição de que
0 casamento fosse adiado até Março de 1846, a fim de dar

59
tempo a que os seus pais chegassem do Michigan. BrigharM foi consultado, mas não admitiu
delongas. Em Janeiro des-l se mesmo ano, no novo templo de Nauvoo, ChauncejJ Webb casava-se
pela segunda vez, tendo como testemunhal a sua primeira esposa. Ann Eliza ficava assim com duaa
mães. |

«Na Primavera de 1846», recordará Ann Eliza, «a nossd família abandonou Nauvoo com um grande
grupo de ”San^ tos”» e foi em busca de um novo lar no Oeste americano.» Durante o tempo que
decorrera, quase dois anos, desde o assassínio de Joseph Smith e da sua substituição por Brigham
Young a reacção antimórmon no Ilinóis não diminuíra. O governador Ford, desejoso de evitar mais
violências, tinha utilizado todos os estratagemas possíveis para se ver livre dos mórmones. Depois
de sugerir a Brigham que tx> masse a iniciativa de «se ir embora, juntamente com os seus
companheiros, para um sítio onde pudessem viver em paz»,| resolveu mudar de táctica. Informou
Brigham de que se osl mórmones não abandonassem o território imediatamente, o governo federal
poderia não os autorizar a fazê-lo mais tarde, receando que se fossem juntar a outras forças das
montanhas Rochosas e também aos Ingleses, numa tentativa de se apoderarem do Oeste americano.
Isto era uma farsa, e Brigham decerto o sabia, mas, espicaçado pelo governador, pela milícia e pelas
multidões, não conseguiu resistir mais. l O chefe dos apóstolos compreendeu que chegara a altura I
do último êxodo.

Durante a manhã de 4 de Fevereiro de 1846, sob uma rija invernia, o primeiro contingente de
«Santos» atravessou o Mississipi gelado em direcção à fronteira, do lado do lowa, sem outro destino
que não fosse alcançar a segurança. Dali a onze dias, Brigham Young, acompanhado pelas esposas
e filhos, todos em carros, abandonou a sua casa de ti- i jolos e grande parte dos bens e, juntamente
com Willard Richards (que escapara incólume do morticínio na cadeia de Cartago), atravessou o rio
gelado para se reunir à vanguarda dos «Santos», acampados temporariamente em Sugar Creek, a
nove milhas no interior do Iowa.

No espaço de duas semanas, dois mil mórmones, homens, mulheres e crianças, com quatrocentas
carroças, haviam-se concentrado em Sugar Creek. As condições de vida no acampamento eram
muito primitivas. Na primeira noite l

60 *

nasceram nove crianças. Não se passava um dia sem que nascesse alguma, afirmava Eliza R. Snow.
«Umas nas tendas, outras nas carroças, sob chuva torrencial ou tempestades de neve. Ouvi falar de
uma mulher que deu à luz debaixo de uma tenda feita de cobertores presos ao chão por estacas, com
um tecto de cortiça donde pingava a chuva. Esta era apanhada em bacias que algumas das nossas
caridosas irmãs iam segurando nas mãos, a fim de proteger o recém-nascido e a mãe daquele
dilúvio.»

Sempre com receio de um massacre, Brigham resolveu alongar a distância entre os fugitivos e as
multidões do Ilinóis. No dia l de Março de 1846, Sugar Creek foi abandonada, tal como sucedera a
Nauvoo, e as quatrocentas carroças lá seguiram chiando e gemendo, a calcorrear a lama, a caminho
do Oeste. Na maior parte dos dias não conseguiam avançar mais de seis milhas. Os animais
alimentavam-se de cortiça quando não havia erva. As pessoas morriam de frio. Só em Junho, dali a
três meses e meio, conseguiram alcançar o rio Missuri. Os «Santos» atravessaram-no em barcos
feitos por eles próprios para a região do Nebrasca e o seu chefe ergueu um acampamento seis
milhas ao norte, no sítio onde é hoje Omaha. Este lugar veio a chamar-se Winter Quarters (Quartel
de Inverno), e ficava a meio caminho das montanhas Rochosas.
Entretanto, um grupo de «Santos» mais numeroso ainda do que este, no qual se incorporava quase
toda a comunidade, salvo os velhos, os doentes e aqueles cuja fé era tíbia, havia abandonado
também Nauvoo no mês de Abril, seguindo na pista da caravana de Brigham Young. Entre estes
contavam-se os Webb. A causa da sua demora fora o facto de Chauncey não ter tido mãos a medir
na construção de carroças do tipo chamado Conestoga, que seriam utilizadas para aquilo que o
historiador Hubert H. Bancroft considerou uma «imigração sem paralelo na História do mundo».
Não tardou que os velhos e doentes resolvessem partir também. Cercados em Nauvoo durante dois
dias e duas noites, roubados e espancados, compraram a vida à custa dos seus haveres e
abandonaram a cidade de um dia para o outro. Nauvoo transformou-se praticamente em cidade-
lantasma.

Urna das figuras mais destacadas dos mórmones que ficaram para trás era a primeira mulher do
falecido Profeta,

61
Emma Smith, que se encontrava grávida no momento do assassínio do marido e dera à luz um filho
dele nos fins d«
1844. Recusando-se a aceitar Brigham como novo chefej Emma permaneceu em Nauvoo com a sua
numerosa famíi lia. Dois anos após o êxodo, Emma casou-se com um jovem barbudo e de expressão
infantil, o major Lewis C. Bi» damon, dono de uma taverna, e passou o resto da vida t ajudá-lo no
negócio. Já depois de velha, passou a negar as visões de Joseph Smith e o facto de este haver
praticado a poligamia. Antes de morrer, em 1879, com setenta e cinco anos, afirmou ao terceiro
filho: «Nunca em vida do meu marido se ensinou, quer em público quer em particular, qualquer
coisa parecida com a poligamia ou o casamento espiritual. Ele nunca teve outra mulher senão eu,
nem terá^ que eu saiba.» O filho mais velho, Joseph, fundou a Igreja Reorganizada de Jesus Cristo e
dos Santos dos Últimos Dias, na cidade de Independence, no Iowa, durante o ano de 1859.
Afirmava que essa é que era a verdadeira Igreja Mórmon, pura e monogâmica, tendo sido Brigham
Young quem corrompera a velha igreja introduzindo nela a poligamia.

Em 1846, porém, quase todos os mórmones seguiam a; velha igreja fora de Nauvoo. Durante sete
meses, um ininterrupto caudal humano vinte mil crentes, ao todo, acompanhados dos seus gados
convergiu para Winter Quarters. Durante esses meses tormentosos, afirma Ber-^ nard DeVoto, «a
planície do Iowa foi atravessada por um: cortejo como nunca se vira desde que os Godos haviam in-
l vadido Roma». No Nebrasca, Brigham tentou fundar uma m espécie de cidade, mas a pressa e a
pobreza tornaram im- l possível semelhante tarefa. Winter Quarters ergueu-se so-1 bre os rochedos
do rio Missuri como uma cidade-miragem, l com as suas mulas, cavalos, bois, crianças, gado,
galinhas, l cabras e ovelhas, cobrindo os quarenta e um blocos de ca- l banas de toros, furnas,
cavernas e barracões com tecto de l lama.

No meio daquele caos, Brigham mantinha uma discipli- l na e uma organização de ferro. A
hierarquia planeava o fu- i turo numa casa de reuniões feita à pressa. Continuavam a l seguir para
Inglaterra missionários, enquanto outros regres- l savam. Construíram um moinho e semearam as
terras. Evi- l tavam o escorbuto importando batatas do Missuri que tro- l

62 ’

cavam por cestos de vime fabricados pelas mulheres. A monotonia e a miséria eram aliviadas pelas
danças e sessões de canto que se realizavam todas as noites com o inspirado acompanhamento
musical da banda regida pelo capitão William Pitt, que fora convertido em Inglaterra. Não era
permitida qualquer forma de anarquia ou desleixo. Três jovens, Barnum, Clothier e Brown, que se
entregaram a desmandos na companhia de mulheres, acusados de «adultério e de terem tido
contactos carnais» durante quinze noites, sofreram a pena da flagelação.

Embora Ann Eliza Webb contasse pouco mais de dois anos nessa época, afirmou mais tarde que «a
primeira coisa de que me recordava claramente era de Winter Quarters». A irmã, Helen Maria,
morrera em 1843, e agora ela vivia com os irmãos, as duas mães e o pai numa rústica cabana de
toros construída por Chauncey. Este lar, contudo, iria desfazer-se mais uma vez. Ao perceber que a
hierarquia planeava novo avanço para Oeste, Chauncey pretendeu juntar dinheiro para se abastecer.
Em Winter Quarters não se podia pensar em salários, por isso Chauncey propôs transferirem-se para
uma colónia do Missuri, no intuito de ali ganhar alguma coisa. Deixando a segunda mulher,
Elizabeth Taft, com os dois filhos, Gilbert e Edward Milo, na cabana de toros, levou consigo a
primeira esposa, o filho mais novo, Lorenzo Dow, e Ann Eliza, para o Missuri.

«Esse Inverno passado no Missuri», recorda Ann Eliza, «é uma das melhores recordações que
conservo da infância e que me agrada relembrar. Foi, na verdade, o único tempo feliz da minha
vida. O meu pai estava ocupado durante a maior parte do tempo e nós vivíamos com bastante
conforto em relação à época e ao lugar; a minha mãe andava tão bem disposta como nunca a vira e
o ambiente da nossa casa era pacífico. A segunda esposa tinha ficado em Winter Quarters, no
Nebrasca, e a minha mãe desfrutava exclusivamente todos os cuidados e atenções do marido, como
nos velhos tempos, antes que a praga da poligamia a atingisse.» À noite, era costume tocar uma
banda de negros, e Ann Eliza, contando apenas dois anos, em breve aprendeu a dançar algumas
modas populares entre os escravos.

Em fins de Janeiro de 1847, este feliz entremez terminou abruptamente. Os Webb tiveram
conhecimento de que tfngham Young fora distinguido com a primeira revelação

63
do Senhor. Nunca tal lhe sucedera e, ao contrário do seu predecessor, isso não se verificaria muitas
vezes. O momento era crucial. Pelos vistos, Brigham fora informado de que devia procurar um local
de instalação permanente para os seus «Santos», algures nas montanhas Rochosas reconheceria o
lugar assim que o visse , e a revelação também o elucidara «acerca do caminho que devia seguir a
caravana de Israel na direcção do Oeste». Os Webb foram intimados a voltar para Winter Quarters.

De regresso às margens do Missuri, Chauncey pensava que ele a família acompanhariam Brigham e
a primeira leva de pioneiros, mas tal não sucedeu. Brigham ordenou a Chauncey que permanecesse
mais um ano em Winter Quarters e se ocupasse da construção de carroças destinadas a transportar o
grosso da expedição. Nessa altura, uma carroça de mil e quinhentos quilos de peso e oito metros de
comprido exigia o trabalho de quatro homens e levava dois meses a construir. E ninguém havia
mais habilitado para orientar os trabalhos do que Chauncey. Além disso, Brigham desejava que
Chauncey dirigisse ele próprio a segunda caravana que lhe havia de seguir as pegadas. Deste modo,
Chauncey voltou para as suas verrumas e cavilhas, enquanto a pequena Ann Eliza recomeçava com
as lições de dança e Brigham se preparava para aquela viagem perigosíssima.

Brigham pensara ir instalar-se numa região desolada do Oeste, chamada Salt Lake Basin. Quatro
anos antes, o senador George H. McDuffie, da Carolina do Sul, informara o Senado de que não
daria «uma pitada de rapé por todo aquele território. Prouvera a Deus que ele não nos pertencesse».
Também os relatórios do explorador John Charles Fremont e outros que Brigham consultara o
descreviam como uma terra improdutiva, coberta apenas de relva, árvores do algodão e salgueiros,
alguns regatos e lagos. Apesar disto, ou talvez mesmo por esse motivo, uma vez que desejava um
oásis isolado, longe das perseguições dos antimórmones e da zona do Império em marcha, Brigham
adoptou como objectivo este deserto de Salt Lake. Segundo afirmou a um repórter do Times de
Nova Iorque, «guiando-nos pelos relatórios de Fremont, resolvemos juntar as nossas carroças e
formar uma grande caravana para atravessar o país até Salt Lake, que ficava a mil milhas de
qualquer povoação civilizada».

64

A 9 de Abril de 1847, começou a etapa final. Eram cento e quarenta e três os membros deste grupo
de vanguarda, incluindo Brigham e a sua sexta esposa poligâmica, Clara Decker Young, uma
rapariga de dezanove anos, calma, culta, natural de Nova Iorque, que se casara com o Profeta havia
três anos. Faziam também parte da expedição mais duas mulheres, dois brancos não-mórmonres e
três escravos negros. Viajando em sessenta e quatro carroças e carros mais ligeiros, seguindo os
homens a pé
junto dos bois, com as espingardas carregadas debaixo do braço, a caravana percorreu quinhentas e
catorze milhas em sete semanas, até Fort Laramie, onde chegou no dia do quadragésimo quinto
aniversário de Brigham. Seguindo a velna pista do Oregon, da qual, porém, se afastavam muitas
vezes para evitar encontros com antimórmones e com os índios, serviam-se dos mapas de Fremont e
de dois sextantes; de dez em dez milhas, colocavam caixas de correio (muitas delas feitas de
caveiras de búfalo), onde deixavam cartas para os que viessem depois. Também tinham de repelir as
investidas dos índios Pawnees e de construir jangadas para atravessar o rio Platte.

Aquela rotina transformou-se num pesadelo de monotonia. Acordavam com os primeiros raios do
Sol, às cinco da manhã, muitas vezes ao som de um búzio. Então, o pequeno grupo cozinhava o
almoço e durante duas horas dava de comer às juntas de bois. As sete retomava a marcha, que
parecia nunca mais ter fim, através das terras levemente onduladas, aquelas vastas planícies que o
capitão Richard Burton classificaria de «um oceano onde a terra se perde de vista». Às oito e meia
da noite, detinham-se, extenuados, formavam um círculo com as carroças para se protegerem dos
peles-vermelhas, depois comiam, oravam, dançavam se lhes apetecia, jogavam às cartas e a outros
jogos de sala.

Muitas vezes, como reacção aos incómodos da viagem, os «Santos» divertiam-se muito para além
da hora habitual do recolher. Certa vez, conta Brigham, «reuni o acampamento e censurei aqueles
irmãos que se entregavam demasiado ao pagode, às danças e ao jogo das cartas...» Nessa altura,
Brigham Young declarou àqueles que reunira em torno da sua carroça: «Se os homens tivessem o
juízo suficiente para jogarem um jogo de cartas ou dançarem um pouco sem pretenderem passar
todo o tempo nisso, se en-

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carassem essas coisas apenas como exercício e depois não pensassem mais nelas, só lhes faria bem.
Mas vocês não sabem dominar os sentidos... Suponhamos que os anjos tinham presenciado as
danças selváticas e a gritaria de ontem à noite. Não se teriam sentido envergonhados? Eu, sinto-
me.»

Arrependidos, os viajantes passaram a viajar mais piedosamente, mais em silêncio. No Wyoming,


surgiu-lhes pela frente uma figura simpática, a de Jim Bridger, rei dos homens da montanha havia
um quarto de século. Tentou convencer Young a desistir da caminhada até à bacia de Salt Lake.
«Sr. Young», dizia Bridger, «eu daria mil dólares a quem me garantisse que era possível criar ao
menos uma espiga de trigo nessas montanhas. Ando por aqui há vinte anos e tenho-o tentado em
vão.» Confiante nas suas visões, Brigham replicou que, «se Bridger quisesse esperar um ano ou
dois, mostrar-lhe-ia que isso era possível».

Estava-se agora em pleno Verão e a caravana encontrava-se no meio das montanhas, onde era
preciso cortar árvores, roçar os arbustos e afastar os pedregulhos para abrir caminho. Nesta altura,
começou a grassar entre os viajantes uma estranha doença. Fazendo seguir a informação para os
outros «Santos» que haviam ficado em Winter Quarters, Brigham Young tentava explicar-lhes a
moléstia: «As noites frias dos desfiladeiros, seguidas de dias muito quentes, juntamente com o pó
que se ergue na planície, tendem a produzir uma doença que causa dores na cabeça e nas costas
acompanhada de febre... Todos se devem precaver com roupas e ter cautela para não se deixarem
arrefecer nos desfiladeiros, particularmente ao anoitecer, evitando tanto quanto possível o ar da
noite e também a poeira.»

A 23 de Julho de 1847 alcançaram o enorme vale de Salt Lake Basin. Brigham, muito doente, não
pôde prosseguir. Mandou em seu lugar um homem de idade, Orson Pratt, acompanhado de mais
quarenta e dois, a fim de explorarem o vale. Nessa noite, Pratt acampou no lugar onde viria a
erguer-se Salt Lake City. Ao romper do dia, Pratt ordenou que tentassem cavar a terra. Esta, porém,
ressequida pelo sol, era dura como rocha e quebrava a rábica dos arados. Pratt ordenou
imediatamente que fizessem uma barragem num ribeiro, de modo a irrigarem a terra, e assim
cresceu a primeira seara mormon com vários hectares de extensão.

No dia seguinte, um apóstolo, Wilford Woodruff, conduziu até à entrada do vale uma carroça ligeira
onde seguia reclinado Brigham Young. «Levei a minha carroça onde o presidente Young ia deitado
até ao meio do vale, seguido pelo resto da caravana», escreveu Woodruff. «Quando saímos do
canyon, dei meia volta, e o presidente, de frente para Oeste, pôde apreciar o panorama, semierguido
no leito. Ao contemplar a cena, caiu em transe durante alguns minutos. Já conhecia aquele vale de
uma visão que tivera
e naquele momento a estava antevendo a futura glória da religião cristã e de Israel, no vale das
montanhas. Quando a visão acabou, disse: ”Basta. Eis o lugar. Continua.” Então eu segui para o
acampamento que já começara a formar-se.»

Ao fim de quatro dias Brigham estava a pé. Isto viria a ser Salt Lake City, no estado mormon de
Deseret, o que significa abelha. A cidade foi logo ali planeada: um quadrado perfeito de blocos de
dez hectares, cada qual dividido em lotes de um a um quarto de hectare. Deixaram-se de parte
quarenta hectares destinados à construção de um templo gigantesco. E como havia indícios da
presença de índios hostis, deu-se prioridade à edificação de um forte de adobe e toros. Não tardou
que este começasse a erguer-se do solo, ocupando uma área de dez hectares, com paredes de dois
metros e meio de altura e de mais de um metro de espessura. Criaram-se novas searas, instalaram-se
moinhos, oficinas de curtumes e lojas. Brigham decidiu que era altura de mandar vir o resto dos
«Santos» do Leste que estavam impacientes por se reunir aos seus irmãos.

A 26 de Agosto de 1847, o Profeta empreendeu a enfadonha viagem de regresso ao rio Missuri. Ã


meio caminho, encontrou-se com uma caravana de dois mil mórmones. Elucidou-os acerca dos
perigos que os esperariam no trajecto, animou-os e despediu-se deles, retomando a marcha em
direcção a Winter Quarters. Nove semanas depois, alcançava a colónia do Nebrasca, onde aguardou
a chegada do resto dos «Santos», entre os quais se encontravam os Webb.

Durante esse Outono e Inverno, Brigham Young esteve ocupado na organização da segunda e
última caravana que ele deveria conduzir até Salt Lake Basin. Entretanto, Chauncey Webb
martelava sem descanso nas novas carro-

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ças que vendia para comprar as provisões necessárias para a jornada. Quando chegou a Primavera,
tudo estava a postos. A caravana compunha-se de mil duzentos e vinte e nove mórmones, incluindo
os sete Webb, e trezentos e noventa e sete carros, entre estes dois mais perfeitos que Chauncey
construíra para transportar a família. Além de próprios para passageiros, estes carros possuíam
tejadilho e estavam equipados com todo o conforto da civilização, desde fogões de aquecimento a
pianos e a alfaias agrícolas. O gado que acompanhava a caravana fazia com que esta se
assemelhasse a uma arca de Noé: havia mil duzentos e setenta e cinco bois, seiscentas e noventa e
nove vacas, setenta e quatro cavalos, oitenta e dois cães, trinta e sete gatos, cinco colmeias e um
esquilo.

A 4 de Maio de 1848, quando a terra começou a florir e Ann Eliza era uma criança de três anos e
oito meses, a enorme caravana pôs-se a caminho para as montanhas Rochosas. Os Webb contavam-
se entre as famílias mais prósperas do séquito. Chauncey equipara as suas carroças com provisões
suficientes para um ano e os veículos eram puxados por três valentes juntas de bois. A despeito dos
incómodos da viagem, os Webb seguiam cheios de coragem e esperança.

Ann Eliza reflectia o estado a de espírito do resto da família. Para ela a carroça era uma espécie de
circo itinerante e cada manhã se dava um novo milagre. Mais tarde, havia de recordar: «Durante
parte do dia eu corria ao lado dos carros, apanhava flores pelo caminho e conversava com toda a
gente, pois todos eram meus conhecidos e animavam-me tanto como os meus velhos amigos negros
do Missuri. Era milagre eu não estar ainda completamente estragada; e creio bem que isso teria
sucedido se não fosse a minha mãe educar-me com toda a sua sensatez. Eu era o seu ídolo, aquilo
que ela mais estimava no mundo; mas apesar disso exigia de mim uma obediência total, ao mesmo
tempo que me tratava com todo o amor e dedicação.

«Recordo-me perfeitamente daquela viagem. Ela escrevia muito, relatando no seu diário tudo
quanto nos ia acontecendo, à mistura com profundas meditações religiosas e algumas fantasias
poéticas. Anotava tudo num grande livro que mais tarde destruiu.

«Descansávamos todos os sábados e assistíamos a ceri-

68

mónias religiosas. Por vezes, ficávamos acampados durante uma semana para que os bois
repousassem e todos nós recuperássemos forças. Estava-se numa época do ano muito aprazível e
podia-se viajar sem pressas. Havíamos partido muito cedo de Winter Quarters, de modo que
tínhamos tempo de sobra para chegar ao vale de Salt Lake antes de começar a estação de Inverno.»

Ann Eliza não se recordava das dificuldades daquela caminhada de mil e trinta e uma milhas. O que
lhe ficou gravado na memória para sempre foi uma agradável aventura. Lembrava-se acima de tudo
dos hinos entusiásticos e das canções
uma delas da autoria da mãe que se cantavam em coro nos acampamentos de domingo. «Quando
fecho os olhos», escrevia ela já mulher, «vejo um grande grupo de pessoas reunidas, ao crepúsculo,
numa vasta planíce que me parecia tão imensa como o oceano. O céu azul e estrelado estendia-se
sobre as nossas cabeças. As carroças de tejadilho branco pareciam fantasmas na penumbra. Ardiam
fogueiras; homens, mulheres e crianças juntavam-se em grupos, e a conversa tinha como assunto os
velhos tempos cheios de dificuldades e perseguições que todos haviam suportado; antevia-se um
futuro feliz, abençoado por Deus, longe da fúria dos homens. No entusiasmo da esperança, alguém
começava a entoar um hino fervoroso... e os acordes reboavam pela planície. Eu ficava toda
encolhida ao lado da minha mãe, fascinada e quieta, mas contente por sentir a mão dela a apertar a
minha e por ver o brilho dos seus olhos. Terminado o canto, ecoavam de todos os lados as
”hossanas” e os ”améns”; no céu azul, as estrelas sorriam-nos com um brilho de calma e esperança.

«Junto do rio Webber, a poucos dias de viagem do nosso destino, parámos para acampar durante
uma semana. As mulheres pescavam, os homens consertavam os eixos e os selins, Brigham Young
repetia pormenores da sua revelação.» Quando se festejou o quarto aniversário de Ann Eliza) o
Profeta estava presente. «Nessa altura», recorda ela, «eu era uma das suas crianças preferidas.
Quem me havia de dizer», acrescenta depois com amargura, «quais viriam a ser mais tarde as
minhas relações com esse homem, mais velho do que o meu pai. Ninguém teria podido prever o
meu futuro nessa jornada de Verão em busca de um lar.

«Levantou-se por fim o acampamento do rio Webber.

69
Os últimos dias de marcha, com os pés calejados, foram atacados com pressa e vigor. E, embora
tivesse acabado de viver quatro meses de viagem esgotante, foi como se o vale de Salt Lake se
abrisse por encanto debaixo dos nossos olhos. Aguardava-nos uma nova espécie de civilização.» Ao
lado da mãe, Ann Eliza contemplava uma cidade composta de quatrocentas e cinquenta casas de
adobe e de toros, uma fortaleza imponente, três serrações e cinco mil hectares irrigados de terreno
de cultura (que escapara milagrosamente de uma invasão de gaivotas e de uma praga de grilos). No
dia 20 de Setembro de 1848, Ann Eliza e os pais entraram no vale.

Finalmente, a paz! era o estribilho que andava em todas as bocas. Quem poderia imaginar que essa
paz seria de pouca dura?

In

AS CINCO SENHORAS WEBB

Santo Deus! Tenho mais mulheres do que seria necessário para, chicotear os Estados Unidos em
peso.

HEBER C. KIMBALL

A 29 de Agosto de 1852, quatro anos após ter descoberto Salt Lake City, Brigham Young anunciou
aos seus discípulos, à nação e a todo o mundo que daí em diante o casamento poligâmico era um
dogma oficial da Igreja Mórmon.

O momento escolhido para esta comunicação explosiva foi uma conferência de rotina a que
assistiram cento e seis missionários presentes em Salt Lake City, onde iam receber instruções antes
de partirem para as terras distantes da França, da índia, da Rússia e da África do Sul.

Na manhã do segundo dia de reunião, mal os missionários acabavam de ocupar os seus lugares,
Orson Pratt, que era apóstolo da igreja havia dezassete anos e contava quarenta e um, espírito
brilhante e chefe intelectual dos mórmones, casado com dez mulheres, ergueu-se de súbito e
começou a discorrer acerca da revelação secreta sobre a poligamia que tivera Joseph Smith em
Nauvoo, no ano de
1843.,

«E sabido por todos... aqueles que se encontram aqui reunidos na minha frente», declarou Pratt,
«que os Santos dos Últimos Dias abraçaram a doutrina que lhes ordena ter várias esposas e
consideram que esta faz parte da sua fé religiosa... se acaso alguém objectar que não vê por que
motivo tal doutrina deva ser considerada matéria de fé religiosa... nós responderemos que ela faz
parte integrante da nossa religião e é necessária para a completa exaltação da glória do Senhor no
mundo eterno.»

Pratt dissertou então largamente acerca dos aspectos celestiais da poligamia e dos seus antecedentes
bíblicos.

«Compreendemos, pois, a partir deste princípio, e anaI’sando apenas as graças que Abraão recebeu
para não

71
falarmos também de Isaac e Jacob , sim, compreendemos!

a necessidade de fazermos como eles, e aquele que não se-j

guir as pegadas de Abraão e não lhe seguir o exemplo será

privado de todas as graças. j

«Vejamos agora: o que acontecerá àqueles indivíduos]

que recebem claramente estes ensinamentos e os rejeitam H

Eu vo-lo digo. Serão condenados, disse o Altíssimo na re-1

velação que nos fez.» j

Querendo antecipar-se a qualquer dúvida que pudesse!

surgir, Pratt afirmou aos seus atónitos ouvintes que a poli-I

gamia mórmon não tinha como objectivo «satisfazer osl

apetites carnais e os sentimentos do homem», devendo, pe-l

Io contrário, ser praticada em obediência ao Senhor. Prattl

insistiu em que, abraçando esta doutrina, os ”Santos” cum-1

priam uma ordem do Senhor e não estavam apenas seguin-l

do o exemplo dos patriarcas do Velho Testamento. «Osl

Santos dos Últimos Dias praticam a poligamia neste terri-1

tório, não porque a lei de Moisés a ordene; não por ter si-jl

do praticada pelos varões mais ilustres da Bíblia, os velhos

patriarcas, Abraão, Jacob e outros... Não temos o direito»

de a praticar pelo facto de eles a terem praticado, mas simB

porque nos foi preceituada por ordem divina.»

Seria que a lei divina contrariava a lei temporal? PrattM


afirmava categoricamente que isso não era verdade. NãoB

havia nada na Constituição dos Estados Unidos a respeito»

do número de mulheres que o cidadão americano podia le-M

galmente possuir. «Acho que ninguém poderá, na actuaM

forma de governo (refiro-me ao governo dos Estados Uni-H

dos), acusar-nos de traição por acreditarmos e praticarmos B

o que nos ensinam os nossos princípios religiosos. Se não H

estou em erro, acho que a Constituição concede a todos osfl

habitantes deste país o livre exercício das suas ideias reli-M

giosas. Nesse caso, se se provar claramente que os SantosB

dos Últimos Dias abraçaram, como fazendo parte da suaM

religião, a doutrina da poligamia, esta tem de ser constitu-^1

cional. E se aparecer alguma lei emanada do governo all

proibir o livre exercício desta religião, tal lei será pois in-^B

constitucional.» ^1

Ainda assim Pratt receava que esta lei revolucionária^!

acerca do casamento pudesse fazer vacilar os mais tímidos. ^1

Foi a estes que dirigiu um aviso final: «Haverá muitos queH

não quererão aceitar inteiramente este novo e eterno açor- jH

72

do, mas esses nunca serão exaltados, nunca serão tidos como dignos de empunhar o ceptro do poder
sobre uma numerosa descendência que se multiplicará eternamente como as areias da praia.»

Se acaso alguns dos cento e seis missionários mórmones se sentiram confundidos com este notável
aspecto dos acontecimentos e se tiveram dificuldades em digerir o almoço, mal sabiam eles que os
esperava ainda um discurso muito mais duro na conferência da tarde. Brigham Young, segundo
Profeta e recentemente
nomeado primeiro governador do território do Utah, tinha muito a acrescentar. Diante dos
missionários e dos seus próprios auxiliares, Brigham consagrou com exaltação a ousada doutrina.

«Ouvistes todos o irmão Pratt declarar que seria lida esta tarde uma revelação que nos foi feita antes
da morte do Profeta Joseph», declarou Brigham. «Ela contém uma doutrina à qual se opõe uma
parte do mundo; porém posso fazer uma profecia acerca de tal matéria. Embora essa doutrina não
tenha sido pregada pelos nossos maiores, este povo acredita nela há muitos anos.

«A cópia desta revelação foi queimada. Escreveu-a William Clayton, ditada pela boca do Profeta.
Entretanto, ficou na posse do bispo Whitney. Este pediu licença para a copiar, licença essa que lhe
foi concedida pelo irmão Joseph. A irmã Emma queimou o original. Revelo hoje aqui estes factos
porque o povo ignorava a existência dela nessa altura.

«Vai ser-vos lida a revelação. Nós acreditamos no princípio exposto pelo irmão Pratt esta manhã. E
eu digo-vos, porque o sei, que ela vingará e triunfará sobre todos os preconceitos e intrigas dos
padres actuais; será mantida e acreditada nas zonas mais inteligentes do mundo como sendo uma
das melhores doutrinas jamais proclamadas a qualquer povo.

«Todos sabiam, ainda em vida dele, que o irmão Joseph possuía mais do que uma esposa. Um dos
senadores do Congresso sabia-o perfeitamente. Alguma vez se lhe opôs? Nunca! Concordou
connosco desde sempre, especialmente neste capítulo. E afirmava aos amigos: ”Se os Estados
Unidos não adoptarem tal método (o casamento poligâmico), deixá-los continuar como estão; que
sigam o caminho que seguiram até hoje e o seu fim será este: as suas gerações não

73
chegarão aos trinta anos; estão votados à destruição; J

doença grassa de tal maneira entre os habitantes dos Estai

dos Unidos que já nascem podres e dentro de poucos anol

deixarão de existir.” O irmão Joseph introduziu entre nó J

o melhor plano para restaurar e restabelecer a força e a lonl

gevidade entre os homens da terra e por isso os mórmoneJ

são um povo bom e virtuoso. l

«Muitos outros são do mesmo parecer; e esses nãd

ignoram o que estamos fazendo dentro das nossas capaci-I

dades sociais. Há muito que nos pediam: proclamem-noi

Mas tal não seria oportuno uns anos atrás; tudo se quer m

seu tempo e na hora própria. Agora estou pronto a procla-1

má-lo. l

«Esta revelação encontra-se na minha posse há muitos!

anos; e quem sabia disso? Ninguém, senão aqueles que deM

viam sabê-lo. Tenho na minha secretária uma fechadura ea

só dali sai aquilo que deve sair.» l

Mas agora Brigham Young abrira voluntariamente essam

tal fechadura de segurança e revelara a notícia. Dali a de J

zasseis dias, no dia seguinte ao oitavo aniversário de Ann»

Eliza Webb, o The Deseret News, fundado dois anos ante»

como o porta-voz da Igreja Mórmon, publicava uma ediçãoH

especial de quinze centimes destinada a confirmar em letraí

de imprensa o acontecimento perante a nação incrédula.»


E sete meses depois, em Liverpool, na Inglaterra, A EstrelaU

Milenária proclamava a doutrina ao mundo inteiro. B

Vinha finalmente à luz do dia aquilo que dantes se pra-B

ticava misteriosa e particularmente. Todo o mundo ficou defl

boca aberta. Os Mórmones dos Estados Unidos eram ol

primeiro povo ocidental que defendia e encorajava a vidaB

de harém. Foi talvez a ousadia da notícia que maior choqueH

causou. Retirando-se para a região pouco povoada dol

Utah, os mórmones haviam procurado fugir às persegui-M

coes e censuras. No entanto, sabendo perfeitamente que sell

fizessem público alarde da poligamia isso atrairia sobre asjH

suas cabeças a justa cólera de toda a nação monogâmica, ajH

hierarquia da Igreja Mórmon sancionara a doutrina. O queH

teria levado Brigham Young a fazer esta proclamação pública?

Vários motivos havia para se divulgar aquilo que consti-^B

tuíra um segredo até 1852. Desde os tempos de NauvoojM

que os «Santos» viviam secretamente a sua doutrina, mas H

esse segredo não estava bem guardado. A própria Ann Eli- fl

74

za Webb viria a explicar alguns anos depois: «O mandamento ordenava que os homens tomassem
mais esposas sem se querer saber se havia lugar para elas; tinham de viver em regime de poligamia.
O caso mantinha-se secreto para o mundo exterior e os homens mais velhos enviados em missão
recebiam ordem de guardar o mais completo silêncio acerca dele. Começaram a espalhar-se os
boatos, sobretudo depois de os mineiros da Califórnia começarem a passar pelo Utah. Não existia
nenhum hotel em Salt Lake City nessa altura, e os emigrantes que ali paravam
para descansar antes do fim da viagem tinham forçosamente de ser hóspedes das famílias
mórmones, onde deparavam com esposas poligâmicas e com os filhos destas, claro está. É natural
que acabassem por sentir curiosidade a tal respeito, e quando as perguntas se tornavam embaraçosas
tornava-se necessário lançar mão de todos os subterfúgios para manter os hóspedes na ignorância.
Porém, por mais que se esforçassem, a verdade acabava sempre por transparecer.»

Foram os mineiros de 1849, a caminho das minas de oiro no Norte da Califórnia, que espalharam o
escândalo no Oeste. Mas não foram só eles. Dali a um ano, em 1850, o Utah passou a ser
considerado pelo Congresso território dos Estados Unidos. Depois de nomear Brigham primeiro
governador desse território, que tinha uma população de onze mil habitantes, o presidente Millard
Fillmore nomeou também nove homens como seus auxiliares federais. Desses nove, quatro eram
mórmones e cinco antimórmones. O mais assanhado destes era Perry E. Brocchus, do Alabama, que
fora escolhido para juiz adjunto do território do Utah.

A 8 de Setembro de 1850, o juiz Brocchus pediu licença para falar aos «Santos» num comício na
Bowery, um tabernáculo improvisado, ao ar livre, com dois mil e quinhentos lugares. Brigham
concedeu a licença e foi assistir ao discurso do juiz Brocchus, que começou a falar em torn suave e
nada político. Os mórmones haviam prometido enviar um bloco de mármore como contributo para
o monumento a Washington, e então o juiz Brocchus alvitrava que semelhante dádiva só devia ser
apresentada por um povo leal ao governo. No meio de um silêncio de chumbo, o juiz interpelou
claramente Brigham acerca da sua lealdade. Ainda estava lembrado de que Brigham, por ocasião da
morte do

75
presidente Zachary Taylor, ressentido por este haver rejeitado o pedido do território de Utah para se
tornar estado, declarara: «O presidente Zachary Taylor morreu e foi para o Inferno, o que muito me
alegra... Profetizo, em nome de Jesus e mercê do poder sacerdotal que me foi conferido, que
qualquer outro presidente dos Estados Unidos morrerá! prematuramente e irá parar ao Inferno se
acaso erguer nemj que seja um dedo contra este povo.»

O juiz referia-se aqui muito pouco diplomaticamente a essa observação de Brigham, como mais
tarde havia de referir ao presidente Fillmore: «Eu pretendia demonstrar a injustiça dos sentimentos
deles para com o governo e aludi claramente e de maneira acintosa às declarações sacrílegas do
governador Young com respeito à memória do falecido Taylor. Defendi, tanto quanto mo permitiam
as minhas fracas forças, o nome e o carácter do nosso chorado herói contra as asserções injustas de
que foi alvo, e observei que, na segunda parte das azedas declarações de Young, este se mostrava
”satisfeito por o presidente Taylor ter ido para ol Inferno”, o que revelava da sua parte um espírito
muitol pouco cristão, e acrescentei que no caso de Brigham se nãol arrepender, em breve, desta
declaração cruel, havia de so-I frer-lhe os remorsos no leito de morte.» l

Como se isto não bastasse, o intrépido e atrevido juizl voltou-se para as mulheres mórmones: «Oh,
minhas senhoras, minhas queridas senhoras», perguntava ele, referindo-se a Brigham Young, «por
que motivo vos deixais seduzir por semelhante homem? Os vossos sorrisos seriam mais bem
dirigidos a homens capazes de empunhar a espada: George Washington e Zachary Taylor, esse
segundo Washington. Oh, o governador Young não é capaz de empunhar uma espada!» O juiz
estava absolutamente certo da existência da poligamia clandestina. Como poderia aquele povo
oferecer um bloco de mármore ao governo? «A fim de tornar o vosso presente aceitável», afirmava
o juiz Brocchus, «deveis tornar-vos virtuosos e ensinar as vossas filhas a sê-lo também, de contrário
será preferível que a vossa oferta fique para sempre encerrada no seio das vossas montanhas
natais.» > Ouvindo isto, logo uma multidão de homens mórmones se pôs de pé aos berros.
Tremendo de raiva, Brigham erguera-se ainda antes dos outros. «O ar dele», confessou o

76

juiz ao presidente, «era o de um homem extremamente furioso, indignado, de cabeça perdida. Se


não tivesse receado sanções, ter-me-ia apontado com o dedo e eu seria logo ali um homem morto.»

Brigham, de facto, apontou com o dedo para o juiz, mas apenas para o vexar: «Pergunto-vos»,
gritou ele para a excitada assistência, «se alguma vez ouvistes maior série de dislates». E voltando-
se para Brocchus: «Então, o senhor, apesar de juiz, nem sequer é capaz de falar como um homem de
leis, um político? Parece que
nunca leu uma História da América! Deveria ter vergonha, seu analfabeto, por não saber dizer mais
nada em favor de Washington senão que era apenas um guerreiro bruto. Washington foi célebre na
guerra, mas também se tornou célebre na paz, e era o primeiro no coração de todos os seus
compatriotas. Tinha uma grande cabeça e um grande coração. Claro que sabia lutar. Mas, santo
Deus, qual é o homem que o não sabe? Qual é o homem aqui presente capaz de afirmar em frente
das mulheres que é mais cobarde do que Washington? Manejar a espada? Eu sei manejar a espada
tão bem como Washington. Teria vergonha de afirmar o contrário. Mas você, que aí está, branco
como a cal e todo a tremer diante do sarilho em que se meteu você é um covarde; e só por esse
motivo é que admira aqueles que o não são!»

A seguir, Brigham manifestou o maior desprezo quanto às insinuações do juiz acerca da


imoralidade feminina e da vida licenciosa que levavam os mórmones nos seus haréns: «A respeito
daquilo que o senhor não se atreveu a dizer claramente em relação à nossa moral, não me darei ao
trabalho de o comentar, a não ser na medida em que peço particularmente a cada marido e irmão
aqui presentes para lhe não darem a resposta que merece. O senhor fala apenas por aquilo que
”ouviu dizer” desde que se encontra entre nós. you também dizer-lhe o que tenho ouvido a seu
respeito

que o senhor está descontente e tem de se ir embora porque não está cá a fazer nada. O que o senhor
gostaria de levar daqui, não sei dizê-lo, mas posso afirmar que o não conseguirá. Aos meninos que
têm birras como você, costumamos nós deitar açúcar no sabão para os convencer a tomar banho
sábado à noite. Ponha-se a mexer, vá para debaixo das saias da sua mãezinha, e quanto mais cedo
melhor!»

77
Dali a menos de um ano, depois de ter sido votado aã mais completo ostracismo, o juiz Brocchus,
bem como to-j dos os funcionários antimórmones, haviam regressado a Washington. Tal como os
homens de 1849 tinham levado para a costa oeste a notícia da poligamia clandestina, também os
funcionários federais espalhavam agora pela costa leste toda a espécie de picantes pormenores
acerca da vida no harém. Brigham Young ficava furioso com a caricatura do casamento celestial
que resultava destes boatos, ao mêsmo tempo que detestava ter de guardar segredo da prática que
seguia. O casamento poligâmico, afinal de contas, constava de uma revelação do Senhor, e
Brigham sentia orgulho nisso. Além do mais, durante os escassos anos decorridos desde que
fundara Salt Lake City, vira o seu povo Srosperar: naquela área existia gado no valor de meio milão
de dólares, estavam cultivados dezasseis mil hectares de terreno, havia duzentas e cinquenta milhas
de colónias! espalhadas pelo território do Utah, cada uma delas repre-j sentado um pilar do reino
dos Céus, e Brigham sentia-se forte e em segurança naquele vale isolado das montanhas Rochosas.
Por fim, e visto ser acima de tudo um homem; prático, Brigham convenceu-se da necessidade de
propagar a raça naquele território fronteiriço e longínquo. Uma só, mulher para um só homem
produziria filhos, mas não era quantidade e com a rapidez suficientes. Por outro lado, várias
mulheres ao serviço de um só esposo fértil produziriam grande número de crianças, e essa crescente
população asj seguraria a prosperidade e a força da Igreja Mormon no futuro. Em face de todas
estas razões, Brigham Young resolveu pôr fim a todas as evasivas e transformar a doutrina das
esposas poligâmicas numa prática corrente e pública.

O tumulto que provocou esta inovação matrimonial foi imediato, persistente, e não terminou com o
século. Auto-B rés famosos e jornalistas atravessavam, em diligências, asm planícies e as
montanhas, a fim de visitarem Salt Lake City,.* como quem visita um jardim zoológico, colhendo
aí ele^JB mentos e sensações acerca dessa estranha e humilhante ins-S tituição.

A atracção por excelência, a maior de1 todas, era a pró-B pria casa de Brigham Young. Irritava-o
que os visitantes B pouca importância ligassem aos assuntos estranhos à sua fa-1 mília poligâmica.
«Quando os estrangeiros me visitam», di-

78 ”

zia ele, «a sua primeira reacção é esta: ”Gostaria de lhe fazer uma pergunta se não me acanhasse”.
”Qual é ela?” ”Refere-se às suas mulheres.” ”Meu Deus, que geração de senhoras e cavalheiros nós
temos!”»

Num rasgo da sua brilhante eloquência dos últimos anos, Brigham declarou uma vez aos fiéis: «As
senhoras que vêm ao meu gabinete dizem muitas vezes: ”Gostaria de saber se ele se ofende por lhe
perguntarem quantas mulheres tem!” Posso afirmar aqui diante do mundo inteiro que tanto me faz
que me façam essa pergunta como outra qualquer; mas
gostaria de as ver mais interessadas em ouvir o Evangelho. Ter diversas mulheres é secundário; está
dentro do âmbito do dever e portanto está certo. Porém, pregar o Evangelho, salvar os filhos dos
homens, construir o reino de Deus, trazer a justiça ao seio do povo, dominarmo-nos a nós próprios e
às nossas famílias e àqueles sobre quem tenhamos influência, sermos todos um só coração e uma só
alma... isto é que interessa, e nada importa o número de mulheres que um homem possui: tal
assunto não é para aqui chamado. Quero afirmar e tornar público que não me importa nada que me
perguntem quantas mulheres tenho, que me façam essa ou qualquer outra pergunta, é-me
indiferente. Mas preferia que os meus visitantes trouxessem alguma coisa mais em mente do que a
ideia de quantas mulheres eu tenho, ou com qual delas teria dormido esta noite! Posso responder às
pessoas que mostram curiosidade sobre este assunto: ”Dormi com todas! Dormimos num leito
universal, o seio da nossa mãe Terra.” Mas havia alguém na sua cama? Havia sim. Quem? A minha
mulher. Não era a sua, nem tão-pouco a sua filha ou a sua irmã, a não ser que ela seja minha esposa
legal. Posso proclamar isto a todo o mundo e todos os homens honestos podem afirmar o mesmo;
no entanto, nem todos os que se dizem cristãos o podem fazer.»

Brigham Young não nascera para o papel de marido modelo da poligamia. As suas origens haviam
sido dominadas pelo puritanismo, pela pobreza e pela monogamia. Nascido de uma família de
lavradores de Vermont, era o nono de um rancho de onze irmãos. Órfão de mãe na idade Pe catorze
anos, apanhava pancada do pai à mais pequena mtracção das leis familiares. A moralidade era então
muito severa, e ele nunca teve licença para passear mais de meia

79
hora aos domingos. Aos vinte e um anos, tornou-se meto dista. Um ano depois, estava casado. A
sua primeira mu lher foi Miriam Works, de dezoito anos, natural do conda do de Cayuga, Nova
Iorque. Brigham trabalhava entãc como pintor de paredes, carpinteiro, moço de lavoura, etc. para
sustentar a mulher e as duas filhas que esta lhe devi Em Abril e Maio de 1832, Brigham e Miriam
foram bapti zados na Igreja Mórmon por Joseph Smith. Quatro mese mais tarde, em Mendon, Nova
Iorque, Miriam «batia pai mas e louvava o Senhor», antes de morrer tísica, deixand< o marido
viúvo aos trinta e um anos.

Passaram dois anos antes que Brigham se casasse outrt

vez. A sua segunda mulher foi Mary Ann Angell, de rai;

puritana e convicções baptistas, nascida em Nova Iorque i

educada em Rhode Island. Durante a adolescência enchen

a cabeça com as Escrituras e decretara que só se casari;

quando encontrasse um «homem de Deus». Convertida a<

mormonismo em 1830, foi para Kirtland, no Ohio, sozi

nhã, e aí conheceu o seu homem de Deus, casando-se, aã

trinta e um anos, já solteirona, com Brigham Young, ert

Fevereiro de 1834. Durante os quarenta e cinco anos qui

esteve casada com o Profeta deu-lhe seis filhos, três rapaze

e três raparigas. Detestava a poligamia, no entanto, na su.

qualidade de primeira esposa, deu o consentimento para ca

da um dos novos casamentos poligâmicos do marido (por

menor técnico este exigido pela lei mormon). Em 1852

quando a poligamia se tornou pública, tinha Mary Am

Angell quarenta e nove anos. Emboa inteligente, possuí.

uma natureza tímida, mas dominava as outras esposas mer-’

cê do ascendente que lhe conferia a idade. Nesse tempo, a

esposas de Brigham Young viviam em Salt Lake City, nun

edifício em forma de L, formado por compartimentos dfi


toros e adobe. Somente Mary Ann usufruía de um quartd

separado das outras. Estas cuidavam dela e chamavam-lhe í

«Mãe Young». Ela sabia que a sua superioridade residis

unicamente num ponto da lei: se a poligamia fosse algumí

vez considerada ilegal, só ela ficaria sendo a esposa legal de

Brigham Young e principal herdeira dos seus bens.

Embora Joseph Smith não tivesse ditado a revelação do casamento poligâmico senão em 12 de
Junho de 1843, Brigham Young começara a pôr em prática as teorias do Profeta uns bons treze
meses antes dessa data. A 15 de Junho de

80

1842, Brigham casou com a sua primeira esposa polígama, Lucy Ann Decker, de vinte anos, a qual
lhe deu sete filhos (e que sempre permitiu a estes que dormissem até altas horas do dia, pois
lembrava-se com desgosto da sua infância na Nova Inglaterra, quando era obrigada a acordar
sempre às cinco da manhã).

Embora afirmasse haver aderido à poligamia contra vontade, Brigham Young praticava-a agora
com grande (e
compreensível) zelo. Celebrou o aniversário da revelação, em 1843, com mais dois casamentos
realizados no mesmo dia, nos princípios de Novembro. A primeira das duas noivas, prima em
segundo grau de Ralph Waldo Emerson, era uma rapariga alta, de dezanove anos, de boa educação.
Nascera em Nova Iorque e chamava-se Harriet Elizabeth Cook Campbell. Ao cabo de três anos,
teve um filho de Brigham. Em contrapartida, a segunda era uma mulher de mais idade. Chamava-se
Augusta Adams, pertencia a uma família distinta do Massachusetts, tinha quarenta e um anos e não
viria nunca a ter filhos.

Entre Maio e Setembro de 1848, Brigham adquiriu mais três esposas. Na Primavera, aos quarenta e
três anos de idade, casou-se com uma noiva muito jovem, dezasseis anos apenas, Clara Decker,
irmã mais nova da sua terceira esposa. Foi Clara quem, três anos depois, o acompanhou na sua
primeira e difícil jornada às montanhas Rochosas. Nesse Outono, Brigham casou-se com uma bela
morena de Nova Iorque, Clarissa Ross, que contava trinta anos e lhe deu três filhos. Pouco tempo
depois, Brigham tomou como mulher a primeira das seis viúvas de Joseph Smith, Emily Dow
Partridge, uma esbelta morena de trinta anos que nascera no Ohio e fora educada no mormonismo
desde os sete anos. Na adolescência, ouvira o pai apresentá-la a um amigo como sendo a rapariga
«esquisita» da família. Pelos vistos, esta experiência traumatizara-a, porque muito mais tarde
escrevia aos filhos: «Aconselho-os a que, no caso de terem algum filho a qualquer título fora do
normal, nunca lho dêem a perceber por palavras ou atitudes. Muitas vezes as mais nobres
qualidades foram assim esmagadas ou destruídas quando ainda em embrião por não ter havido
quem as compreendesse.»

Aos dezanove anos, juntamente com uma irmã mais veItla> Emily Dow unira-se a Joseph Smith
como vigésima

81
terceira esposa, diante da presença hostil da primeira esposa deste, Emma Hale. «A partir desse
instante, Emma tornou-; -se a nossa pior inimiga», revelou certa vez Emily Do”w Partridge.
«Ficámos ainda a viver em comum durante ai-! guns meses, mas as coisas iam de mal a pior, e
fomos obrigadas a sair e a procurar outra casa.» Durante esse ano,j Emily Dow não teve filhos, no
entanto viria a dar a Brig* ham Young dois rapazes e cinco raparigas.

Em 1845, Brigham encontrava-se tão ocupado com z sucessão do Profeta que não teve tempo para
tomar mais do que uma esposa. Esta, a nona, chamava-se Olive Grey Frost, era uma frágil
costureira de alfaiate do Maine, quí trabalhara como missionária em Inglaterra e casara com Joseph
Smith pouco antes de este ser assassinado. Diante de caixão deste, um caixote de madeira coberto
com umí manta de cavalo e erva, Olive Grey Frost «ficou completa-* mente transtornada», segundo
se disse. Aos vinte e noví anos, ainda chorosa e doente, casou-se com Brigharn Young. Estavam
casados havia oito meses apenas quandd ela morreu com uma pneumonia, em Nauvoo.

A 15 de Fevereiro de 1846, sob a ameaça das turbas: Brigham Young foi obrigado a abandonar para
sempre Nauvoo. Durante os vinte e três dias que precederam tí êxodo, quer se sentisse excitado por
um recrudescimento de fé religiosa quer pretendesse assegurar um lugar no paraíso à custa de boas
obras praticadas neste mundo, o certc é que Brigham casou com onze mulheres de idades varia-*
veis entre os dezassete e os quarenta e dois anos. Só em sete dias, desde 14 a 21 de Janeiro, uniu-se
a sete noivas. Mais tarde, entre 2 e 6 de Fevereiro de 1846, casou mais quatro vezes.

Esta febre matrimonial começou a 14 de Janeiro dê


1846, um mês antes da partida de Nauvoo. Nesse mesmQ dia, Brigham casou-se com Louisa
Beaman, Emmeline Free e Margaret Maria Alley. A primeira, natural de Nova Iorque, de busto
forte e muito bonita, era outra das viúvas dí Joseph Smith. Teve mais tarde dois pares de gémeos,
todo! rapazes, os primeiros dos quais receberam os nomes saudosos de Joseph e Hyrum, em
memória do primeiro marido í do cunhado. Este casamento de Brigham foi imediatamente seguido
de outro com a bela e adorável Emmeline Free, a despeito da oposição dos pais desta. A jovem
Emmeline

82

amimava e enchia de carinhos o marido e, por alturas de

1852, podia considerar-se a sua esposa preferida. A respeito dela, escreveria John Hyde, em 1857:
«Brigham tem uma esposa favorita. É uma mulher muito bonita, com cerca de trinta anos, alta, de
olhos meigos e azuis, grandes e salientes. Os cabelos são castanhos, a pele branca, e toda ela possui
um ar inteligente e possessivo... Por amor dela, Brigham deixou
de cumprir a sua própria lei. Durante um certo tempo, deu-se ao luxo de usar o cabelo encaracolado,
o que provocou grande risota e vários comentários das pessoas que o viam à noite com o cabelo
cheio de ganchos e papelotes. O seu hábil cabeleireiro era a própria mulher.» Segundo as
aparências, Brigham rodeava Emmeline de mais atenções do que qualquer outra das suas
precedentes esposas. Entre 1847 e 1864, um período de dezassete anos durante o qual, pelo menos,
dezassete esposas lhe disputaram o leito, Emmeline deu-lhe dez filhos, quatro deles rapazes. A
terceira mulher com quem Brigham se casara nesse mesmo dia era Margaret Maria Alley, uma
jovem do Massachusetts, de vinte e um anos. Iria morrer seis anos depois, em Salt Lake City, logo
após a publicação da lei da poligamia, e os seus filhos seriam educados por Clara Decker.

Uma semana depois, em Nauvoo, a 21 de Janeiro de


1846, Brigham casou-se com mais quatro mulheres desde a madrugada até ao anoitecer. Uma delas
era Susan Snively, de trinta e um anos, enérgica e agressiva, natural da Virgínia e alemã de raça; a
segunda, Ellen Rockwood, do Massachusetts, contava dezasseis anos; a terceira foi Martha Bowler,
de vinte e quatro anos, oriunda de Nova Jérsia; a quarta era uma jovem viúva de Joseph Smith,
Maria Lawfence, de vinte e três anos, nascida no Canadá. No entanto, nenhuma das quatro mulheres
a quem se unira neste dia espantoso o havia de presentear com filhos. No dia seguinte,
22 de Janeiro de 1846, como que para reparar um esquecimento, Brigham veio a casar-se com a sua
décima sétima esposa, uma rapariga encantadora, da Pensilvânia, de vinte e dois anos, Margaret
Pierce. Esta não teve filhos durante nove anos, mas ao cabo desse tempo, em 1854, deu à luz uma
criança que seria o quinquagésimo descendente de Bngham.

Após onze anos passados a recuperar forças desta maratona de casamentos celestiais, Brigham
voltou com todo o

83
vigor junto do altar a 2 de Fevereiro de 1846, para se tornai o segundo marido de Zina Diantha
Huntington, de Water-S town, Nova Iorque. Descendente de um dos padres pere-^ grinos, Zina
convertera-se ao mormonismo aos quinze anosi e casara-se com Henry Bailey Jacobs, em Nauvoo,
durantd a marcha de 1841. Dali a sete meses, quando Jacobs se en-j centrava em missão na
Inglaterra, Zina tornou-se mulhea de Joseph Smith, embora estivesse grávida do primeiro filho de
Jacobs. Como ele adorava a mulher, o Profeta permitiu que esta fosse partilhada entre os dois. Zina
estava casada havia sete anos com Joseph Smith como esposa poligâmica quando ficou viúva deste
último. Aos vinte e cinco, casava-se com Brigham Young, na presença de Jacobs, que testemunhou
a cerimónia.

No dia seguinte ao casamento com Zina, e pelos vistoj ainda em maré de recuperar as viúvas de
Joseph Smith, Brigham casou com Eliza Roxey Snow, irmã de um dos apóstolos, Lorenzo Snow,
que se unira secretamente a Joseph Smith em Junho de 1842. Eliza Roxey Snow vivera soo o
mesmo tecto de Joseph Smith e da primeira mulhei deste, Emma Hale. Na Primavera de 1844, tanto
Emma como Éliza encontravam-se ambas grávidas dele. Quando Emma, que não desconfiava de
nada, saiu certa manhã do quarto e foi encontrar Eliza Roxey, de roupão, no patamar, abraçada ao
marido, perdeu a cabeça. Agarrando numa vassoura correu sobre Eliza, a qual ao fugir caiu pelas
escadas| abaixo. Furiosa, Emma pôs na rua a rival. Como conse-B quência desta dolorosa cena,
Eliza abortou. Mais tarde, tratou de ocultar o passado atrás da cortina da respeitabilidade e do
conservadorismo. Professora e poetisa de grande actividade, Eliza Roxey veio a ser a mais ardente
defensora dá poligamia e talvez a mulher com mais influência dentro da Igreja Mórmon. Não teve
nenhum filho de Brigham e é provável que o casamento de ambos nunca tivesse passado além do
simples platonismo.

Três dias após a sua união com Eliza Roxey Snow, a 6 de Fevereiro de 1846, Brigham casou-se
com a sua vigésimsfjB esposa, uma viúva do Massachusetts, baixinha, de vinte em cinco anos, que
se assinava Naamah Kendel Jenkins Carter» Twiss. Uns nove meses antes, o próprio Brigham
presidira» ao casamento de Naamah com um certo John S. Twiss. Es-fl te morria dali a três meses, e
Naamah ficou viúva até ser« recuperada por Brigham. l

84

Dali em diante e durante treze meses, Brigham dedicou-se, em Winter Quarters, a tarefas menos
românticas relacionadas com a Igreja Mórmon. Porém, vinte e quatro dias antes de partir para o
Oeste, contraiu matrimónio com duas irmãs no mesmo dia. A 20 de Março de 1847, contando
quarenta e seis anos, tomou como esposa Mary Jane Bigelow, uma rapariga de vinte anos, do
Massachusetts, e sua irmã Lucy Bigelow, de dezassete. Ao chegar a Salt
Lake City, a mais velha, Mary Jane, que ainda não vivera em comum com Brigham, pediu uma
anulação do casamento ou uma separação legal, que lhe foi concedida. No entanto, a irmã mais
nova permaneceu uma defensora acérrima da poligamia e foi uma companheira fiel do marido
durante toda a vida, dando-lhe três filhos, entre 1852 e 1863.

Uma vez estabelecido em Salt Lake City, Brigham restringiu por uns tempos as suas aquisições
matrimoniais e concentrou temporariamente todas as energias na organização de uma comunidade
segura e civilizada. Não voltou a acrescentar mais mulheres ao seu lar já superlotado, até anunciar
publicamente o casamento poligâmico como uma instituição celestial de inspiração divina.

E assim, no momento em que ele reconhecia oficialmente a poligamia, apresentava-se logo à sua
gente e ao mundo inteiro como o primeiro praticante dessa santa doutrina. Em Agosto de 1852,
havia-se casado já vinte e duas vezes. Duas das suas mulheres tinham morrido, e uma encontrava-se
separada dele; possuía portanto, nesta altura, dezanove mulheres.

Os Estados Unidos em peso desejavam, ao que parece, saber mais coisas acerca da poligamia em
geral e do harém de Brigham em particular. Os antimórmones mostravam-se fanáticos nas suas
censuras; os mórmones revelavam-se ’gualmente fanáticos na defesa. Na década seguinte a 1852, a
objectividade era uma coisa quase impraticável. Durante esses anos confusos, no entanto, entre os
jornalistas e escritores que acorreram a Salt Lake City, vieram dois repórteres, se não totalmente
objectivos nas suas opiniões, pelo roenos propensos a descrever com moderação os relatos daquilo
que viam. Um deles era Horace Greeley, que censurava a poligamia; outro, o capitão Richard
Burton, que a apoiava.

Quando Horace Greeley, de quarenta e oito anos, che-

85
gou de diligência a Salt Lake City, vindo do Leste, em Julho de 1859, era tão famoso no bom
sentido quanto Brigham Young, mais velho do que ele dez anos, se tornara execrado. Colaborador
do célebre jornal Tribune, de Nova Iorque, ele incarnava muitas vezes a consciência da América e
contribuía em alto grau para a formação da opinião pública. Nos seus escritos empolgantes pugnava
pelo sufrágio das mulheres, o teatro, o divórcio frequente, os monopólios e a escravatura. Defendia
teimosamente as tarifas altas, a independência da Irlanda, a proibição do álcool, as coligações e os
projectos de lei. Pusera o seu jornal à disposição de uma série de homens de talento: Edgar Allan
Põe, Mark Twain, Charles Dickens, Karl Marx. Dotado de umi antevisão notável, aconselhava os
jovens a irem para o Oeste. Por fim, cheio de curiosidade acerca do mormonismo, de Brigham
Young e do casamento poligâmico, foi ele próprio até lá.

Às duas horas da tarde do dia 13 de Junho de 1859, Horace Greeley encontrava-se sentado em
frente de Brigham Young, o qual tinha a seu lado dois dos filhos mais velhos, Herbert C. Kimball e
mais alguns funcionários da Igreja Mormon. Horace Greeley começou por formular algumas
perguntas, e Brigham respondeu-lhe com agradável franqueza. «Falava com facilidade», informou
depois Greeley os seus leitores, «nem sempre com grande correcção gramatical, mas sem qualquer
reserva ou hesitação aparente, não parecendo também desejar esconder fosse o que fosse. Não se
recusava igualmente a responder às minhas perguntas mais indiscretas. Estava simplesmente vestido
com trajes de Verão, sem se dar ares de santidade ou fanatismo. Na aparência, víamos um homem
espadaúdo, franco, bem-humorado, forte, de cinquenta e cinco anos, que parecia amar a vida e não
mostrava pressa em ingressar no paraíso.»

Após breve troca de frases preliminares, Greeley, aguerrido abolicionista, quis saber a opinião de
Brigham acerca do assunto palpitante da escravatura, que o antecessor deste denunciara outrora.

Qual é a posição da sua igreja com respeito à escravatura? interrogou Greeley.

Consideramo-la uma instituição divina retorquiu Brigham serenamente que não deve ser abolida
enquanto’

86

a maldição que pesava sobre Ham continuar suspensa sobre a cabeça dos seus descendentes.

Existem alguns escravos neste território?

Existem, sim.

As vossas leis territoriais defendem a escravatura?

Essas leis estão impressas, pode lê-las com os seus olhos. Quando os escravos são para aqui trazidos
pelos seus senhores que já os possuíam nos Estados Unidos não favorecemos a sua fuga.

Greeley sentia-se de certo modo irritado:

Devo depreender que, se o território do Utah for admitido como membro da União Federal, ficará
sendo um estado escravo?

Brigham, que desejava a todo o custo ser integrado na União, viu logo de que lado soprava o vento
e usou de diplomacia:

Não, ficará sendo um estado livre declarou secamente. A escravatura aqui revelar-se-ia inútil e
antieconómica. Eu considero-a de um modo geral um prejuízo para o patrão. Quanto a mim,
emprego muitos trabalhadores e pago-lhes um salário justo. Não me poderia dar ao luxo de ser dono
deles. Não estou disposto a ter a obrigação de os alimentar e vestir, assim como às famílias e de ser
responsável pela sua saúde e bem-estar. O Utah não é uma região adaptável ao trabalho escravo.

Já mais tranquilo, Greeley fez perguntas acerca de outros aspectos da estrutura da Igreja Mórmon, e,
finalmente, abordou o assunto que mais o interessava (a ele e aos leitores), a seguir à escravatura.
Antes, porém, formulou uma pergunta preliminar:

Pode dar-me uma explicação racional para o ódio com que o seu povo é geralmente olhado por
aqueles que tem estado em contacto mais directo com ele?

Brigham nem sequer pestanejou:

Não tenho outra explicação a dar além dos motivos que levaram à crucificação de Cristo e do
tratamento semelhante que tem sido aplicado aos ministros de Deus e a todos os santos e profetas,
através dos tempos.

Terminada a introdução, Greeley atirou-se de cabeça:

Até que ponto se generalizou entre vós a prática da Poligamia?

Não sei dizê-lo. Alguns dos presentes têm só uma

87
esposa; outros possuem mais; cada qual é que sabe o que deve fazer.

Qual é o maior número de esposas que compete a, qualquer homem? quis saber Greeley.

Eu por mim tenho quinze respondeu Brigham. Não conheço ninguém que possua mais, mas
algumas das senhoras a quem me uni são idosas e considero-as mais como mães do que como
esposas. Tenho-as comigo a fim de as amparar e sustentar.

Não é certo Cristo ter afirmado que quem repudia a sua mulher ou vai buscar a que outro repudiou
comete adultério?

Sim, e eu sustento que nenhum homem deve abandonar jamais a sua mulher a não ser em caso de
adultério, e mesmo assim nem sempre. Este é o meu ponto de vista individual. Não estou a afirmar
que não haja quem repudie a sua mulher dentro da nossa igreja, declaro apenas que não aprovo tal
prática.

A entrevista durara duas horas e, na opinião de Greeley, tudo se tinha passado com honestidade de
parte a parte. No entanto, durante os dois dias que passou em Salt Lake City a fazer a sua
reportagem, o assunto do casamento poligâmico continuou a ocupar-lhe o espírito. Tentava distrair-
se com outras observações: mórmones e não-mórmones não conviviam socialmente; os sermões do
Novo Tabernáculo eram demasiado palavrosos e vagos; a grande maioria dos mórmones era
«honesta e sincera na sua fé», embora possivelmente esta pseudo-religião (tal como todas as outras)
pudesse representar «um contributo para a escravidão e o enfraquecimento de muitos, em proveito
do engrandecimento de uma minoria»; Brigham era um ditador e como consequência disso todos os
funcionários federais estavam reduzidos à impotência, tornando-se necessário reti* rá-los, e o
próprio território, depois de reduzido no seu tamanho, deveria ser entregue aos mórmones como
uma espécie de reserva autónoma; nesta cidade foram vendidos «mais de mil barris de uísque
durante o último ano», muito embora a lei dos Santos dos Últimos Dias proíba o uso de álcool forte;
a vida dos trabalhadores no Utah era mais dura do que no Kansas.

Mas o que continuava a fascinar Horace Greeley eram í as esposas poligâmicas. Esta «degradação»
da mulher, rele-

gada apenas para a categoria de «parideira de filhos», perturbava-o profundamente. As mulheres


que viviam em poligamia afiguravam-se-lhe inertes, inactivas, sem vida. Oito anos mais tarde, um
visitante inglês, William Hepworth Dixon, experimentaria a mesma sensação: «Nunca observei esta
espécie de timidez entre mulheres adultas, a não ser nas tendas sírias.» Afirmava Greeley: «Nunca
nenhum mormon me deu a conhecer a opinião da esposa ou de outra mulher em qualquer assunto;
não fui apresentado nem falei a nenhuma delas; embora tenha sido convidado para casa de alguns
mórmones, nem um só me referiu que a sua mulher (ou mulheres) desejasse conhecer-me ou sequer
ver-me, nem tão-pouco nenhum deles mencionou a existência de semelhantes seres.»

Antes de abandonar Salt Lake City, Horace Greeley


revelou a sua última opinião acerca do assunto: «Não acredito que o sistema de esposas poligâmicas
possa durar muito; no entanto, todos os homens com quem falei me parecem intensamente,
fanaticamente partidários dele, considerando-o digno de todos os louvores. Mas estou certo de que o
mesmo se não dá com as mulheres; reparei na expressão delas quando Elder Taylor, numa reunião
social no sábado à noite, se entregava a divagações humorísticas acerca deste aspecto do sistema
mormon, com grande gáudio dos homens presentes; não consegui descobrir a sombra de um sorriso
no rosto de qualquer mulher. Antes pelo contrário, afigurava-se-me que desejavam ver guardar
silêncio sobre o caso.»

A 25 de Agosto de 1860, pouco mais de um ano após a estada de Greeley no Utah, o capitão
Richard Burton, célebre explorador inglês e orientalista (que então ainda não recebera o título
nobiliárquico), chegou a Salt Lake City numa carroça coberta, após uma viagem de noventa dias
desde a cidade de S. José, no Missuri. Aos trinta e nove anos, Burton vivera já nove vidas. Depois
de deixar Oxrord, foi capitão da Infantaria Nativa de Bombaim. Quando a British Intelligence lhe
pediu um relatório acerca das condições de vida em Karachi, Burton apresentou um ensaio onde
relatava as perversões sexuais praticadas pelos Indianos. Sentia-se igualmente no seu meio, tanto
em Goa como na Somália. Descobriu o lago Tanganica e o Vitória Nianza. Falava correntemente
uma dúzia de línguas, in-

88

89
cluindo o jataki, dialecto do Afeganistão. Sete anos antes* resolvera ser um dos poucos homens
brancos que visitaram Meca. Pintou a pele de escuro, decorou o complicado ritual maometano e
submeteu-se à dolorosa prova da circuncisão^ Em seguida, mascarado de pathan haji, não teve
dificulda* dês em entrar em Meca. A prática da poligamia nas regiõq do Oriente intrigava-o, e
agora que os mórmones a pratica^ vam também, sentia-se desejoso de saber o resultado qu^ dava no
Ocidente. Acreditava nos benefícios da poligamia, talvez por ser um sistema bizarro e exótico, e
defendia-aj com grande desespero da sua esposa Isabel. Esta, numa ati-j tude de defesa, afirmava
sempre aos visitantes que o maridq se contentava só com uma mulher e que era um «homeroí
caseiro, atormentado pelas saudades sempre que se encontrava longe do lar»!

Burton chegou ao Utah com um chapéu de abas largas, casaco de caça à inglesa, calças de flanela e
armado coiq duas pistolas, uma comprida faca e o Dicionário do Ameríi cartismo debaixo do braço.
Era um gigante de grandes bigo-^ dês, de uma beleza selvagem, cabelo rapado à escovinha para
evitar ser escalpelizado pelos índios. (Mais tarde viria <| fazer uma conferência na Sociedade
Antropológica de Lon^ dres acerca da arte de escalpelizar.) Para comparecer à pri-i meira entrevista
que teve com Brigham Young combina-s da pelo gordíssimo governador Alfred Gumming, d^
Georgia, que então fora nomeado para o Utah , Burton^ em sinal de respeito, trocou o seu traje
grosseiro por uiH chapéu alto e um fraque preto. t

No dia 31 de Agosto, ao meio-dia, foi conduzido pelo’ governador Gumming ao gabinete de


Brigham Young, onde o aguardava o Profeta, juntamente com alguns dos seus auxiliares. Após as
apresentações e os apertos de mão preliminares, Burton sentou-se num sofá e pôs-se a observar o
homem por causa de quem atravessara o oceano e um continente inteiro.

«Esperava encontrar um ancião venerando», escrevia Burton na City of the Saints, no ano seguinte.
«Mas a sua cabeleira quase não apresentava um fio branco: era de um torn castanho-claro, basto, de
risca ao lado, e chegava-lhe até às orelhas... Tinha a testa estreita, as sobrancelhas finas, os olhos de
um cinzento azulado, a expressão calma e reservada... O nariz, fino e um tanto pontiagudo, curvava-
se;

90

ligeiramente para a esquerda. Cerrava os lábios, como é costume dos homens da Nova Inglaterra, e
tinha os dentes ;mperfeitos, sobretudo os do maxilar superior. As bochechas carnudas apresentavam
um sulco entre o nariz e os cantos da boca; o queixo era bicudo e bem barbeado, com excepção das
maxilas onde deixara crescer a barba. Possuía umas mãos bem modeladas, sem anéis. Forte, de
ombros largos, curvava-se um pouco quando estava de pé.

«O traje do Profeta era tão simples como o de


outro homem qualquer, de tecido caseiro cinzento, com excepção da gravata e do colete. O corte do
fato lembrava um modelo antigo, com as calças descaídas e botões pretos. Trazia uma gravata de
seda com um laço grande sobre um colarinho sem goma, que se voltava naturalmente para baixo. O
colete era de cetim preto...

«De um modo geral, a aparência do Profeta recordava a de um fidalgo lavrador da Nova Inglaterra
o que ele era na realidade... É um homem bem conservado, facto este que alguém atribui ao seu
hábito de dormir... sozinho. As suas maneiras são afáveis e imponentes, simples e corteses: a
ausência de pretensiosismo que o caracteriza contrasta favoravelmente com o de certos
pseudoprofetas que conheço... Não mostra indícios de dogmatismo, beatice ou fanatismo, e nunca,
pelo menos diante de mim, tentou abordar o assunto da religião. O visitante sente-se bem
impressionado com a sensação de força espiritual que provém dele: os seus discípulos mostram-se
literalmente fascinados, claro, pela superioridade mental daquele homem... Não posso dizer qual
seja a sua cultura: ”Homens em lugar de livros, acções em vez de palavras”, foi sempre o seu lema;
deve ter, provavelmente, ”um cérebro não corrompido pelos livros”, como disse o Sr. Randolph
acerca do Sr. Johnston... Não se dá ares de santidade, mostra sim modos honestos. Us seus
discípulos consideram-no ”um anjo de luz”, os seus inimigos um ”demónio do inferno”; eu acho
que não e urna coisa nem outra... Há quem lhe chame hipócrita, trapaceiro, falsário, assassino. Não
tem nada cara disso.»

A conversa que se seguiu durou uma hora. Na primeira

troca de palavras Burton mostrou curiosidade acerca de

Urna pistola de modelo fora do vulgar e de uma carabina

Hue V1u penduradas na parede. Brigham explicou que uma

e^s era «um modelo novo de doze tiros», destinado a

91
substituir o outro mais antiquado de seis tiros. O Profej entretanto, mostrou-se interessado em
conhecer o motii que determinara aquela visita de Burton. O explorador e plicou-lhe que, «tendo
lido e ouvido dizer muitas cois acerca do Utah, estava ansioso por ver como aquilo era < facto». Por
sorte, Brigham tentou descrever o Utah «tal o mo na realidade era, expandindo-se largamente acerca
< agricultura e da criação do gado». No resto do país corria grandes boatos a respeito de violências
e massacres pratic dos naquela região. Brigham referiu-se-lhes como tratandi -se de simples
«guerras dos índios» e lamentou que u morto ou dois e outros tantos feridos fossem exagerad< para
vinte, quando a notícia chegava ao mundo exteric Por fim, Burton resolveu exprimir em voz alta
aqui que lhe ocupava o pensamento desde o princípio da entn vista. Declarou a Brigham que se
sentia fascinado pé mormonismo e pelos seus costumes, e que desejava entr para aquela igreja e ser
baptizado na misteriosa Capela d Ofertas. Brigham, que fora informado da táctica segui< por
Burton de aderir a novos cultos, já estava preparai para isso.

Não, meu capitão objectou com suavidade acho que o senhor é useiro e vezeiro nisso. (A
curiosida< pelos ritos mórmones não diminuiu através dos anos. N< tempos modernos, segundo
afirma John Gunther, o esci tor Sinclair Lewis pediu a um dos sucessores de Brighai David O.
McKay, autorização para explorar o Temp Mormon, que viera substituir a Capela das Ofertas. «Po
sim», respondeu então McKay. «Tudo o que tem a faz para isso é aderir à nossa fé, abolir o álcool e
o tabaco e dí para sempre à igreja um décimo dos seus rendimentos. Ao ver recusada a admissão na
Igreja Mormon, Burt< defendeu a sinceridade do seu pedido. Afirmou ter vin< do Velho para o
Novo Mundo a fim de fazer parte de u povo «suficientemente sensato para permitir a poligamia Por
muito persuasivos que fossem os argumentos, Brigha não se deixou convencer. Preferiu mudar de
assunto. Aça! teria o visitante percorrido o mesmo caminho, em Áfric do missionário escocês, Dr.
Livingstone?, inquiriu. Burt< respondeu que avançara dez graus para norte da Zambéz e das
cataratas de Vitória. Um dos apóstolos presentes, A bert Carrington, ergueu-se para apontar num
mapa que e!

92

tava pendurado na parede o percurso de Burton. Porém o seu dedo aproximou-se de mais do
Equador. Brigham emendou: «Um pouco mais abaixo», e Carrington obedeceu. Burton admirou
tanta exactidão: «Existem muitos homens cultos na Inglaterra», escreveu ele, «que não seriam
capazes de corrigir aquele erro.» A entrevista terminou e Burton partiu sem ter obtido licença para
praticar a poligamia, como esperara. No entanto, permaneceu ainda um mês em Salt Lake City, e
continuou a estudar a poligamia. Viera ali favoravelmente
disposto a aceitar aquela doutrina e aquilo que à primeira vista observou não o desiludiu. «Ao
viajante desprovido de preconceitos», escrevia ele, «afigurava-se-lhe que a poligamia é a lei
requerida nos lugares onde se torna necessário aumentar a população e onde o grande mal social
ainda não teve tempo de se desenvolver. Em Paris ou em Londres, tal instituição, do mesmo modo
que a escravatura, morreria de morte natural; na Arábia e nos desertos das montanhas Rochosas ela
entrincheira-se contra os sentimentos humanos... Outra razão para a prática da poligamia no Utah é
de ordem económica. As criadas são poucas e caras; fica mais barato e é mais confortável os
homens casarem-se com elas.»

Claro, confessava Burton, os mórmones haviam transformado o romance «numa ligação doméstica
tranquila e desprovida de paixão». A companhia monogâmica de dois seres gera a ternura; a
convivência poligâmica de três torna a casa superlotada. No entanto, talvez isso não seja um mal
por aí além. «As mulheres não ficam tão amimadas e exigentes como nos estados do Leste; a
inevitável cíclica nive-la-se, o que, na minha opinião, lhes dá mais felicidade do que quando se
encontram num trono artificial.»

Antes de sair do Utah para se dirigir à Califórnia, ao l anamá e depois à Inglaterra, Burton chegou à
seguinte conclusão: «O lar dos mórmones tem sido descrito pelos S£us inimigos como um inferno
de ciúmes, ódios e malícia um antro de suicídios e assassínios. O mesmo se tem dito dos haréns
muçulmanos. Em ambos os casos, segundo |^e parece, tais afirmações pecam por ignorância e por
ideias preconcebidas. O carácter do Novo Mundo é tão dierente do do antigo que, por estranho que
nos pareça, as sposas rivais vivem pacificamente em comum e confirmam
0 provérbio: ”Quanto mais melhor...” Elas sabem que no-

93
venta por cento dos lares nas grandes cidades são infeliz!

em consequência de casamentos precipitados e preferem $1

a quinta esposa de David a estar na pele da única e sobrl

carregada mulher de Lázaro.» j

A enorme publicidade feita pela imprensa em volta a

proclamação do casamento poligâmico e mais tarde certa

relatórios, tais como o de Burton e de Greeley, criaram|

falsa ideia de que todos os homens mórmones do Utah pri

ticavam a poligamia. Isto não era verdade. Nessa altura, i

estatísticas da Igreja Mórmon referiam que apenas dez pq

cento dos mórmones seguiam tal doutrina. Nos ultima

anos os historiadores mórmones rectificaram a percentage!

para três por cento. No entanto, na revista The Western

Humanities Revue, de 1856, Stanley S. Ivins, após um esol

do sobre a poligamia, chegava à seguinte conclusão: «El

acordo com as informaçõs obtidas de fontes fidedignas, dflj

vê ter havido uma época em que quinze a vinte por centa

das famílias mórmones do Utah eram polígamas. Isto colai

ca a maioria dos mórmones na posição de culpados no qul

se refere à pluralidade das esposas.»

Grande parte dos praticantes da poligamia contavam-»

entre os mórmones mais ricos e influentes do territóriâ

O casamento poligâmico era uma regalia de natureza ecq|

nómica. Apenas os ricos podiam gozá-lo sem inconvenieql

tes. Habitualmente, só os membros importantes da Igrejí

Mórmon estavam em contacto directo com a hierarquia*


portanto, mesmo quando não concordavam com ela, eraflB

obrigados a ceder. Entre aqueles a quem foi imposta a poffl

gamia, pelo facto de ser rico e importante, conta-se ChaunB

cey Webb. Era um homem trabalhador. Foi favorecido Pe|B

fortuna. Como já sucedera no Ohio, no Missuri e no Iln

nóis, também prosperara em Salt Lake City. Em conseí

quência disto, a sua única filha que escapou, Ann EliaB

Webb, foi educada por cinco mães, pelo menos aos olhoB

da Igreja Mórmon.

Devemos estar lembrados de que os Webb chegaram M

Salt Lake City em 20 de Setembro de 1848. Na carroça cffl

berta que os transportava vinham duas senhoras WebbrjjM

mãe de Ann Eliza, a primeira mulher de Chauncey e a únSM

ca legal, Eliza Churchill, e a outra esposa polígama mais jòH

vem do que esta, Elizabeth Taft, que vinha grávida. Os paj

de Elizabeth, que haviam chegado mais cedo a Salt LaK|H

94

City, já ali se encontravam para receber a caravana. Os Taft habitavam uma cabana de toros dentro
do vasto forte e deram guarida aos Webb durante algum tempo. Porém, Chauncey, de natureza
independente, em breve ergueu uma tenda, albergando nela, assim como dentro da carroça coberta,
as duas esposas e os seus três filhos, bem como a pequena Ann Eliza. E não tardou a começar a
construir uma grande casa de adobe que ficou concluída em três meses. «Era a primeira residência
com pretensões que se erguia em Salt Lake City», e a segunda casa da comunidade do estilo
das do Leste.

Esta casa estava-se tornando muito necessária à família de Chauncey, pois um mês antes, em
Fevereiro de 1849, Elizabeth Taft dera à luz um filho, Seth Taft Webb. «Nesta ocasião, a coragem
da minha mãe foi posta à prova», escreveu Ann Eliza, referindo-se ao nascimento do seu meio-
irmão, «mas ela suportou tudo com ânimo e revelou-se uma mulher verdadeiramente cristã, forte e
compreensiva. Tratou carinhosamente tanto a criança como a mãe, e dedicou-se a esta como se
fosse sua filha. Se acaso albergava no coração algum ressentimento, não o demonstrou neste
momento critico. A posição dela era bastante melindrosa... uma mulher a tratar de outra que acaba
de dar à luz um filho do seu próprio marido.»

A convalescença do parto de Elizabeth Taft foi prolongada. Ao recordar este acontecimento


ocorrido em 1849, Ann Eliza escrevia: «Na falta de um médico, só a minha mãe era responsável por
Elizabeth e pela criança. Ela sempre afirmou que pretendera nesta ocasião penitenciar-se da má
vontade que por vezes sentira e manifestara. Nunca esperou conformar-se com a situação familiar,
mas uma vez que esta era inevitável, estava resolvida a fazer tudo o que pudesse para ajudar os que
nela se encontravam envolvidos e a tornar a sua casa em Zion o mais pacífica e harmoniosa
Possível. Tarefa difícil, sem dúvida, contudo a poligamia lr»ipunha tarefas difíceis e situações
dolorosas... A minha mae dedicou-se à criança e esta retribuía-lhe o afecto. Conta hoje vmte e seis
anos, mas conservou sempre o mesmo amor pela ”Tia”, como chama à minha mãe, e esta continua f
’”teressar-se muito por ela. De facto, os filhos da Elizaeth gostam profundamente da minha mãe e
as nossas duas anilhas encontram-se mais unidas do que é frequente na

95
poligamia. Isto deve-se à sensatez das duas mães pois... ai bas reconhecem que a outra não tem
culpa do mútuo sofi mento. Durante doze anos viveram sob o mesmo tecto, o meram à mesma
mesa, sem que nunca fosse trocada ení ambas uma palavra mais azeda.» á

A tolerância da primeira Sr.” Webb para com a seguia era tanto mais notável quanto é certo que
esta, nos doa anos que viveram juntas, deu a Chauncey pelo menos si filhos, quatro rapazes e duas
raparigas. Até morrer, ej
1909, Elizabeth Taft dera à luz onze filhos. Porém, a dí peito desta prova contínua de entusiasmo do
seu marii pela segunda mulher, a primeira Sr.a Webb conseguiu sei pré ocultar os ciúmes.

No entanto, nem sempre a vida foi tranquila no lar d Webb. Muitas e muitas vezes, ao ver o marido
retirarpara passar a noite na companhia de Elizabeth Taft, a pi meira Sr.a Webb pensou em suicidar-
se. O que sempre ei tou que consumasse tal acto foi a noção da responsabilid de e dos seus deveres
para com a pequena Ann Eliza, < quatro anos apenas. O que mais lhe custava a suportar í ver as
atenções e carinhos que Elizabeth Taft, com o s feitio meigo e expansivo, dispensava a Chauncey.

Certo dia, quando ambas se encontravam sozinhas, E

za Churchill Webb voltou-se para a jovem rival e, semi

poder dominar, suplicou-lhe que se abstivesse de expansõ

amorosas para com Chauncey diante dela. <

Num acesso de fúria, Elizabeth replicou:

Pensa que eu também não tenho problemas? f

Deus me perdoe e tenha pena de nós ambas foi resposta imediata e compreensiva de Eliza. Sei que
deve ter.

Dali em diante, a primeira Sr.a Webb guardou para si < seus sentimentos e manteve a paz com a
outra esposa. M não conseguiu calar-se junto do marido, que parecia teradaptado rapidamente a esta
vida de harém.

Certa vez, ao reparar que a primeira mulher estava trií e sabendo o motivo disso, Chauncey abanou
a cabeça e di se-lhe:

Não percebo. A princípio consentiste. Qual é a dl culdade agora? Não achas a Elizabeth uma
rapariga boa honesta?

Acho, sim concordou Eliza Churchill. «

96

Não acreditas então na poligamia?

Parece-me que sim. Pelo menos desejo viver segundo a minha religião.
Que havemos de fazer nesse caso?

Oh, não sei retorquiu Eliza, desolada. Mas acho que não aguento mais esta vida!

Aceitaste-a de livre vontade lembrou-lhe Chauncey, implacável. Não te percebo. És muito


incoerente.

A própria Eliza Churchill não se compreendia a si própria, dilacerada entre a fé, que amava, e a
doutrina dessa fé, que detestava. Como sempre, refugiou-se no silêncio.

Não tardou, porém, que Chauncey se visse a braços com o problema fundamental da sobrevivência.
Trouxera uma reserva de mantimentos do Nebrasca mas em breve a despensa ficou vazia. «Foi um
ano de privações e renúncias»,
recorda Ann Eliza. «Durante todo esse ano os Webb alimentaram-se de pão grosseiro feito de milho
mal moído, carne seca de búfalo, por vezes um bocado de fruta seca e chá racionado. Enquanto as
duas mulheres se ocupavam das crianças e faziam malha, pois não havia ali possibilidade de
comprar roupas feitas, Chauncey ia aos canyons vizinhos buscar madeira para construir uma oficina
de carroças.»

Quando Ann Eliza fez cinco anos, já o pai estava outra vez a ganhar dinheiro. Os víveres
começaram a ser importados dos estados vizinhos, e Chauncey pagava um dólar e cinco cêntimos
por uma libra de açúcar e cinco dólares por uma libra de chá. Pouco a pouco, a lã de ovelha foi
substituindo a de búfalo no vestuário e não tardou que se encontrassem à venda vestidos de chita já
feitos e roupas de homem que para ali eram trazidos na diligência.

Desde que Chauncey conseguira elevar-se dentro da comunidade, Brigham Young considerava-o
um mormon ilustfe- Como tal recebeu ordem para ir cumprir uma missão de apostolado em
Sheffield, na Escócia. Cada vez mais ligado a Igreja Mormon em virtude da poligamia pois, se
Desertasse, onde poderia ser recebido, com duas esposas
1ue tanto estimava? , Chauncey teve de obedecer. Uma missão no estrangeiro não comportava
despesa nem lucro. AS duas mulheres teriam de viver das suas magras econolas. Mas estas não
eram suficientes e, por isso, durante a ausência do marido, Eliza Churchill Webb fechou a casa

97
grande e foi viver com os pais de Elizabeth Taft. Começ

também a ensinar, como antigamente, tanto em Salt La

City como na vizinha cidade de Payson, no Utah. A |

quena Ann Eliza acompanhava a mãe e tomava tamb^

parte nas aulas. í

Mal regressou da sua estada em Inglaterra, Chaund

voltou imediatamente a dedicar-se à construção de cart

ças. Foram outra vez viver para a casa grande, toda a fan

lia reunida debaixo do mesmo tecto, e o pé-de-meia volti

a crescer. Este aumento de prosperidade de novo chami

as atenções de Brigham Young, que incitou Chauncey a a

gar mais uma vez o seu tributo à poligamia. Todas as obja

coes que este outrora levantara contra o casamento polia

mico haviam-se desvanecido. Tal como parecia suceder ca

todos os três mil missionários mórmones que haviam pi

sado pela Inglaterra, especialmente pelo País de Galj

Chauncey passara a sentir um fraco pelas camponesas loia

e brancas daquela terra. Em 1856, abundavam em Salt Lai

City essas robustas e bonitas raparigas, muitas delas arríj

tando consigo em carrinhos de mão todos os seus haverá

Uma vez que era obrigado a povoar de novo o seu leito a

sua mesa (no que não fazia grande sacrifício, é preciso <m

se note), Chauncey considerou que essas emigrantes ingH

sãs eram mais decorativas do que o produto nacional. E el

tão, como muito bem se recorda Ann Eliza, pois contai

na altura doze anos e o pai quarenta e quatro, casou-se


mesmo tempo com três raparigas, todas com menos de mi

tade da idade dele, ficando assim com cinco senhora

Webb. l

A Eliza Churchill Webb e Elizabeth Taft Webb vierai

agora juntar-se Lizzie Webb, Eliza Webb e Louisa WebB

A terceira e a quarta esposa haviam sido escolhidas p<l

Chauncey, mas a quinta foi ela quem o pescou descarada

mente. «Foi a Louisa», declarava sarcasticamente a mãe <

Ann Eliza, «que escolheu o ”nosso” marido!» Esta avalaifl

chá feminina pouco impressionava a esposa legal. «A minH

mãe já sofrera o que tinha a sofrer», escreveu Ann Eliza, W

desde que fora obrigada a ver outra usurpar o amor e o cjfl

rinho que por direito lhe pertenciam, a ela e só a ela, p«H

sou a desinteressar-se do assunto. E declarava que m^»

mulher menos mulher, a ela tanto se lhe dava. Sentia-se tal

satisfeita com metade do marido como com um quinto aplj

nas.» No entanto, a segunda Sr.a Webb, Elizabeth Taft, não aceitou a situação com a mesma calma.
Era a primeira vez que se via preterida. Muito embora se não levantasse, caiu à cama com um
colapso nervoso e levou tempo a recuperar o equilíbrio e a readaptar-se à vida do harém.

Chauncey tentava desesperadamente estabelecer uma democracia eficaz na sua casa. Compreendeu
que não podia admitir, fosse por que preço fosse, ciúmes e rivalidades. Quando comprava
um chapéu novo para uma das mulheres, fazia o mesmo para todas. Mas nem sempre conseguia
manter uma perfeita igualdade. Uma vez, pelo Natal, quando as cinco esposas viviam em casas
separadas, um amigo de Chauncey ofereceu-lhe um peru. Vendo que um só peru não era o bastante
para fornecer cinco mesas, e uma vez que andava em baixo de fundos, e não podia, portanto,
comprar cinco perus, Chauncey resolveu esconder aquele, evitanto assim conflitos. Mas, por pouca
sorte, a primeira mulher, a mãe de Ann Eliza, descobriu-o.

Que vais fazer dele? perguntou Eliza Churchill. Apanhado com a boca na botija. Chauncey
replicou:

Sei lá, se quiseres podes ficar com ele. Não sei que destino lhe dar.

Experimentando um prazer maldoso com a atrapalhação do marido, e porque não podia ver as suas
jovens rivais inglesas, a primeira Sr.a Webb resolveu fazer uso do seu direito de prioridade:

Oh, na verdade não estou muito interessada no peru declarou. Sabes, tenho galinhas e também
gosto de galinha. Até a prefiro ao peru. Mas gostaria de ser eu a resolver qual das tuas mulheres o
há-de comer, se me dás licença...

Muito bem. Eu dei-to, agora oferece-o a quem quiseres.

Obrigada respondeu a primeira Sr.a Webb.

Gostaria de o dar à Elizabeth. Bern o merece, faz-lhe arranjo e sei que ficará muito agradecida. E,
bem vês, como vem a seguir a mim, poderia invocar o seu direito.

Chauncey concordou. A primeira esposa ofereceu o pe-

u a segunda, a fim de pôr as outras em xeque. E o infeliz

nauncey, para evitar reclamações, lá teve de puxar pelos

oes à bolsa e contentar as suas esposas inglesas, visto

99
Este problema levantado pelas esposas múltiplas não ej

só dele. Susan Young Gates, uma das filhas de Brigham, ej

creveu: «Se algum homem porventura imagina que as nd

lheres da sua casa é que hão-de pagar as favas enquanto ej

passa vida regalada, engana-se redondamente. As mulher|

mórmones são pessoas, e não um rebanho de fêmeaj

O homem não tardará a descobrir que o seu principal papi

vai ser o de moderador doméstico.» J

Certa vez, em 1856, Brigham perdeu a paciência com l

lamúrias das suas múltiplas esposas. Durante um serml

propôs desobrigar do casamento, dentro de duas semanal

todas as «choramingas». |

Dizem para aí que as mulheres se encontram presas!

oprimidas declarou ele à assistência , que são maltr

tadas e não gozam da liberdade que deviam ter, que muit

delas passam a vida afogadas em lágrimas... Preparem-

para daqui a duas semanas... Garanto-vos que, se ficare

com os vossos maridos depois de vos ter dado esta oportl

nidade de vos libertardes, tereis de aguentar e submeter-vi

à lei celestial. Daqui a duas semanas podeis ir para ondj

quiserdes, mas não quero ouvir mais lamúrias. I

Kimball Young, neto de Brigham e notável sociólogÉ

ao estudar num ensaio cento e setenta e cinco antigas fana

lias polígamas, chegou à conclusão de que apenas vinte!

cinco por cento dos casamentos originaram conflitos «gl*


vês» ou «severos», ao passo que setenta e sete por cenl

eram «relativamente» ou «completamente» felizes. Nos IM

rés mais agitados, a maioria dos desgostos das mulherw

provinham da incerteza. Mas também por vezes um maricl

insensível podia causar conflitos. Heber C. Kimball amuB

jou um sarilho que parecia não ter fim no dia em que dU

clarou aos amigos: «Não reflicto mais quando quero arrafl|

jar outra mulher do que quando compro mais uma vacajB

Chauncey Webb não considerava as suas companheir*

como vacas. E por isso as cinco senhoras Webb entendiailH

-se excepcionalmente bem. Não lhes agradava a poligamijl

mas gostavam de Chauncey, da casa dele e do dinheiro q<w

ganhava. Esforçavam-se por não discutir umas com as olM

trás e tinham o cuidado de esconder do marido os respect»

vos agravos. As raras discussões que houve foram motivai

das quase sempre pela preferência e pelo afecto excessrvw

que Chauncey manifestava pela sua terceira esposa, LizziíB

100 *

O conflito maior que surgiu na família foi motivado por Louisa, sua quinta esposa. Visto ter sido
Louisa quem descaradamente propusera casamento a Chauncey, as outras esposas haviam-na
alcunhado entre si de «A Voluntária». De todas elas, só Louisa se recusava a tomar parte nos
trabalhos caseiros por se julgar superior. Em tempos fora actriz, afirmava orgulhosamente, e os
trabalhos manuais não lhe diziam respeito. Escusado será dizer que as outras se sentiam indignadas,
«aborrecidas com tanto egoísmo e preguiça», como dizia Ann Eliza.

Durante este período, Chauncey transportou as cinco mulheres e os filhos para uma quinta que
distava sete milhas a oeste de Salt Lake City. Algum tempo depois, teve de fazer uma viagem no
desempenho de uma missão da Igreja Mórmon. Entretanto, Louise começou a fazer olhos bonitos a
alguns dos trabalhadores mais bem-parecidos que se ocupavam na lavoura da quinta. Não se sabe se
chegou a cometer adultério com alguns desses homens ou se aquilo não passava de namoro. O certo
é que Chauncey, quando regressou da sua breve missão, foi informado pela primeira esposa do
comportamento de Louisa. O homem ficou indignado e teve uma explicação com ela, afirmando-lhe
que a mandaria embora se acaso «não procedesse de maneira mais decente e digna».

Humilhada, Louisa desfez-se em desculpas. Quando Chauncey se ausentou da quinta para conduzir
uma manada de gado a Salt Lake City, ela meteu-se na cama a gemer afirmando que chegara ao fim
dos seus dias. Era a pequena Ann Eliza quem a tratava, e Louisa chegou a oferecer à criança, como
herança antecipada, um relógio e uma corrente. Assustada, Ann Eliza foi chamar a mãe que chegou
correndo.

Morro! Morro! exclamava Louisa. Já não causo mais complicações à família... O meu marido não
gosta de mim e assim não posso viver. Só desejo a morte!

Nem sempre é fácil uma pessoa morrer quando quer respondeu a primeira Sr.a Webb rispidamente.

Mas eu arranjei maneira de não falhar replicou Louisa. Tomei veneno.

Não podendo adquirir a certeza de que Louisa tentara

a verdade suicidar-se ou estava a representar o seu papel

c°mo actriz, a primeira Sr.a Webb acabou por mandar cha-

101
mar o filho, Edward Milo, ao campo, onde andava a trabj

lhar, e despachou-o a toda a pressa pela estrada de Salt Li

ke City em busca do pai. Era noite quando este chegou!

casa. Disseram-lhe que Louisa estava a morrer. Aquela cen

de agonia era a mais prolongada de que havia memóril

Chauncey entrou no quarto com ar grave, perguntou-lhej

que é que ela tinha tomado e mandou vir um antídoto, ci

seja pimenta vermelha de Caiena, e chá. Louisa debateu-J

ferozmente, para não tomar a mistela, mas foi obrigada!

engoli-la e então é que ia morrendo de verdade. m

No dia seguinte, porém, achava-se boa. Chauncey dim

se-lhe francamente que estava farto da sua preguiça e dm

suas cenas teatrais. Andava a comprometer a reputação <

sua casa e por isso o melhor era ir-se embora. Lavada efl

lágrimas, Louisa confessou a farsa do veneno, afirmandB

que só pretendera despertar a compaixão do marido, e pM

diu a este que a deixasse ficar. Chauncey, porém, não se c<M

moveu. Levou-a para Salt Lake City, onde se divorciou d<a

Ia, contentando-se dali em diante com as outras quati«

esposas, de natureza menos teatral. Quanto a Louisa, casol

pela segunda vez em Salt Lake City, divorciou-se ao cabl

de três semanas, depois uniu-se a outro homem do Utah U

durante uma viagem que fizeram a St. Louis, fugiu-lhe coil

o dinheiro todo para Inglaterra. B

Entretanto, esta estranha vida doméstica, com os seuí

valores confusos, ia deixando uma marca indelével na jam


vem Ann Eliza Webb. Ao entrar na adolescência, primeinB

com uma mãe apenas, depois com duas, cinco e finalmeneM

quatro, Ann Eliza experimentava uma insegurança da quáfl

nunca mais conseguiria curar-se. A poligamia despertarH

nela um sentimento de hostilidade para com os homen^B

que manteria durante muito tempo, embora nem sempre sfl

apercebesse disso. As sombras de Chauncey e das suas ciail

co esposas projectar-se-iam no futuro de Ann Eliza, afec-«

tando-lhe gravemente as experiências matrimoniais. Jm

A declaração da lei da poligamia, em 1852, tinha ela OM|

to anos, foi o acontecimento que primeiro e mais profuiwB

damente a afectou, no entanto outro houve no mesmo ano|M

talvez de não menor importância. com oito dias apenaáB

Ann Eliza tinha sido abençoada pela igreja de seus pais.jB

Mas só aos oito anos se tornou oficialmente membro dessa»

igreja. No dia em que os completou foi baptizada pelo bis”B

pó Taft, pai da segunda mulher de Chauncey Webb.

102

«Senti-me positivamente aterrada», recorda Ann Eliza. «Levaram-me Para Junt° de um tanque, o
bispo pegou-me ao colo e mergulhou-me na água. Õ choque nervoso que senti foi tão grande que
durante muito tempo não podia recordar-me desse acto sem estremecer.

«No fim, a minha mãe mostrou-se


muito contente por eu me ter tornado filha da igreja, ficando assim consagrada a Deus e à fé
mórmon.»

Desde esta data até atingir a maioridade e a independência, volvida uma década, ou seja aos dezoito
anos, a evolução de Ann Eliza coincidiu com o fortalecimento da Igreja Mórmon e muitos dos
acontecimentos dramáticos do reinado de Brigham Young.

Três anos depois do baptismo de Ann Eliza, na semana que precedeu o seu décimo primeiro
aniversário, em 1857, ocorreu a maior tragédia que atingiu a igreja desde a declaração pública da
poligamia: o crime a sangue-frio cometido a sudoeste do Utah e conhecido pelo nome de Massacre
de Mountain Meadows.

Esta mudança foi sem dúvida a consequência directa de uma série de pressões que vinham sendo
exercidas sobre os mórmones de há dois anos a essa parte. Talvez tudo tivesse origem na fatal
emigração em pequenas carretas de mão, um fiasco a que a família Webb esteve estreitamente
ligada.

O Inverno de 1855 fora particularmente rigoroso no Utah, e por tal motivo muitos hectares de
searas haviam sucumbido ao gelo e à neve e o gado morrera de frio ou de fome. O Fundo de
Emigração Perpétua Mórmon estava esgotado. Os grupos de convertidos que constantemente
anuíam da Europa encontravam quase sempre ao seu dispor um número suficiente de carroças
cobertas para a viagem até ao Oeste. Agora, porém, acabara-se o dinheiro para adquirir mais
carroças. Contudo, em lugar de interromper a emigração, Brigham Young tentou pôr em prática
uma das suas ideias que ainda não fora experimentada, «mo estamos em condições de comprar
carros e juntas de ”Ois como antigamente», declarou em Setembro de 1855.
* lenho forçosamente de pôr em prática o meu velho plano as carretas de mão para que a emigração
se faça a pé... Um grupo dessa natureza pode gastar sessenta ou setenta dias a viagem, fazendo mais
rapidamente do que qualquer carde bois a travessia da planície. Deixemos vir todos os

103
”Santos”... enquanto têm o caminho aberto. Deixemo-] vir a pé... de carroça ou em carretas de
mão.»

Brigham fez saber aos possíveis convertidos, tanto ;

Inglaterra como no continente, que bastariam apenas q^

renta e cinco dólares para virem de Liverpool até Salt Laj

City. Isso, e umas pernas fortes. Tudo o resto era secunj

rio. Imediatamente, só na Inglaterra inscreveram-se milj

trezentos recém-baptizados na mesma caravana. No ano s

guinte ascendeu a três mil o número dos candidatos mas j

uma parte deles completou a viagem. j

Entretanto, Brigham escolhia Iowa City para ponto Í

partida. Comprava-se a madeira em St. Louis e os melhora

ferreiros e carpinteiros eram enviados para Iowa Cita

Franklin D. Richards, apóstolo de setenta anos e dono l

dez esposas, foi encarregado da operação. Decidido a triui

far, Richards quis utilizar os melhores especialistas. tell

grafou de Liverpool para Chauncey Webb, que então cuá

pria o seu quarto ano de serviço como missionário q

Sheffield, na Inglaterra, e ordenou-lhe que se dirigisse à pi

tria com a maior rapidez. Depois de uma rude travessia cm

durou duas semanas, Chauncey chegou a Boston. Dalffl

dez dias encontrava-se em Iowa City, a dirigir a construdj

de uns carrinhos de duas rodas que lembravam riqueí*

como os usados no Japão em 1870.

Chauncey começou logo de início a experimentar dífl


culdades. Como construtor de carruagens já antigo e exjm

riente, exigia o melhor material e os melhores operárial

Cada carrinho tinha de ser suficientemente reforçado paj

aguentar uma viagem de mil e trezentas milhas. ContuoB

os seus superiores mórmones eram de opinião de que dl

veículo mais barato podia desempenhar o mesmo papll

E exigiram categoricamente de Chauncey que «construísB

os carros o mais economicamente possível». m

Cada dia que passava trazia a Chauncey novas dificdB

dades. Dizia Ann Eliza: «Eles não queriam fornecer ferjM

para os aros das rodas, por ficar muito caro; o couro cB

faria o mesmo serviço, tinham a certeza. O meu pai disdB

tiu este ponto com eles e por fim os dirigentes desistiraM

do couro cru e deram-lhe aros de ferro. O meu pai, apes»

de aborrecido e furioso, continuou sempre a fazer carrcM

com a menor despesa possível.» fl

Os carros de duas rodas estavam já prontos quanoB

104

chegou o primeiro grande grupo de emigrantes. Dois grupos de quatrocentos e quarenta e seis
«Santos», utilizando noventa e seis carroças de mão e cinco carros de dirigentes, partiram de Iowa
City, nos princípios de Junho de 1856. Os homens empurravam os carrinhos com a bagagem e as
mulheres e as crianças caminhavam ao lado deles. Atravessaram desta forma o Iowa, o Nebrasca, o
Wyoming e o Utah, suportando a fadiga e alguns ataques dos Cheyennes. A viagem durou quatro
meses. Ao chegarem a Salt Lake City,
nos fins de Setembro, Brigham declarou que o plano fora um êxito e que os restantes peregrinos
viriam até ali da mesma maneira.

Entretanto, centenas de «Santos» estrangeiros concentravam-se em Iowa City, onde a produção dos
carros de Chauncey não conseguia de modo algum dar vencimento aos pedidos. Em face disto, a
hierarquia resolveu deixar de sastisfazer as exigências de Chauncey e desatou a fazer carros de
qualquer maneira, utilizando madeira verde, etc. Quando dois grandes grupos de fiéis, retidos pela
demora dos carros, se preparavam para partir em pleno Verão, Chauncey protestou, energicamente,
explicando que morreriam todos a meio do caminho se acaso o Inverno chegasse adiantado. Mais
uma vez a hierarquia desprezou os seus conselhos: os dois grupos tiveram ordem para seguir.

A 15 de Julho de 1856, o primeiro grupo, chefiado pelo capitão James G. Willie, partiu de Iowa
City. Compunha-se de quatrocentos e quatro indivíduos, homens, mulheres e crianças da Inglaterra,
da Escócia, da Alemanha e da Escandinávia. Faziam-se acompanhar por um carro de mantimentos e
dezoito vacas. Dali a duas semanas partia também ° grupo comandado por Edwin Martin, composto
por quinhentos e setenta e seis novos «Santos».

Confiando ainda em que seriam capazes de escapar ao Inverno, pois andavam uma média de vinte
milhas por dia, ambos os grupos partiram do Nebrasca na segunda quinzena de Agosto. O grupo de
Willie alimentava-se bem: uma ração de carne de búfalo, uma libra de farinha, arroz, açúcar> chá
ou leite fresco para cada uma das quatrocentas e quatro pessoas. Ao chegarem, porém, a Fort
Laramie, a reserva de alimentos esgotara-se e não puderam reabastecerVSrnr^’ como esperavam.
Para cúmulo, o Inverno chegara. Willie quis avançar o mais depressa possível. Foi uma lou-

105
cura. Os obstáculos começaram a multiplicar-se, os índifl

atacavam com frequência, as vacas extraviavam-se no mejj

das manadas de búfalos em fuga, a comida parecia evapd

rar-se e as rações diárias tiveram de ser reduzidas pai

umas escassas onças por cabeça. l

O Inverno atingia o auge. A neve impedia o avanço. À

tempestades de granizo e as baixas temperaturas flagelava!

a caravana, cujos membros levavam apenas roupa de Verá

e não tinham maneira de arranjar abrigos. Conforní

Chauncey previra, as carroças de mão começaram a desJ

gregar-se sob o temporal partiam-se eixos, a madein

verde contraía-se e saltavam os aros das rodas. Todos o|

dias se registavam mortes. Em Sweetwater, ao amanhece|

foram encontradas mortas pelo frio nada menos que quinaj

pessoas. i

Muito antes disto, Chauncey tinha ultrapassado a cara

vana em direcção a Salt Lake City, viajando numa rápicj

coluna de carros puxados a mulas. Imaginava perfeitament

o destino daquela gente que encontrara pelo caminho. Fa

lou no caso a Brigham Young. Ao cabo de uma separaçã

de quatro anos, demorou-se dois dias junto da família,

depois voltou a trabalhar dia e noite na preparação de umj

caravana de socorro. J

Brigham enviou um dos filhos e um amigo ao encontrí

de Willie e Martin, a fim de os prevenir de que os socorro!


não tardariam a chegar. Ann Eliza assistiu à partida das cai»

roças que levavam o pai e o irmão, Edward Milo. Largaraiaj

de Salt Lake City a 9 de Novembro de 1856, juntamentl

com um grupo de carroças de apoio transportando roupaí

quentes e cobertores, batatas e farinha. Depararam com m

grupo de Willie bloqueado pela neve nas colinas. Logo M

seguir descobriram o grupo de Martin com sessenta e setB

baixas. l

«Recordo-me perfeitamente da chegada destes grupos»B

escreveu Ann Eliza, «e na altura senti-me impressionada

pelo estado em que vinham. Depois disso voltei a ver muiB

tos deles na cidade, paralíticos e inutilizados, a vaguearei»

pelas ruas.» B

Brigham atribuía a culpa a toda a gente, ao passo qu(B

todos lhe atribuíam as culpas a ele. Chauncey ficou tão re-B

voltado contra os superiores que chegou a falar em abando^

nar a igreja. Mas tal como sucedera havia já muitos anos, #1

106

mãe de Ann Eliza dissuadiu-o. Entretanto, o plano das carroças de mão era posto definitivamente de
parte. O único lucro que Chauncey extraiu desse negócio foi o ter travado conhecimento com as
suas três últimas esposas.

A fome e o desânimo provocado pelo malogro da viagem com as carroças de mão suscitaram nova
crise na Igreja Mórmon. Muitos mórmones, fartos de lutar contra o solo maninho do Utah e contra o
mau tempo, apostataram e procuraram o sol da Califórnia. Outros mórmones não guardavam o
sábado, faziam mau uso da poligamia, cometiam adultério, questionavam com os amigos e com os
vizinhos. Tornava-se
urgente fazer qualquer coisa. E foi assim que surgiu o período de fanatismo conhecido dentro da
igreja pelo nome de Reforma.

Ann Eliza assistiu aos seus começos aos onze anos, quando residia com os pais em Payson, setenta
milhas ao sul de Salt Lake City, onde a mãe fora professora enquanto o pai estava no estrangeiro.
Um savonarola do Utah chamado Joseph Hovey, veio a Payson fazer uma pregação. Ann Eliza
relata mais tarde: «Ele começou por acusar o povo de toda a espécie de crimes e más acções,
invectivando-o com as palavras mais duras e insultuosas. Toda a gente tremia sob as suas acusações
e encolhia-se diante dele como se estivesse na presença de um anjo vingador. Alcunhava-os de
ladrões, libertinos, velhacos, intrujões, dissimulados, hipócritas e tíbios na fé, numa palavra, de
todos os pecados... ”Arrependam-se, confessem-se, baptizem-se de novo e todos os vossos pecados
vos serão perdoados; sim, tudo isto é verdade porque o Senhor o prometeu.”»

Surgiu então um novo surto religioso, impulsionado por um jovem apóstolo chamado Jedediah M.
Grant. Os missionários andavam de porta em porta a interrogar os pecadores, querendo saber se
haviam cometido adultério, derramado sangue inocente, abusado da bebida, se pagavam o dizimo à
igreja. A cólera contra a «letargia religiosa», como me chamava Brigham, contra os trânsfugas e
antimórmones atingiu o auge. Houve muitas mortes, pelo menos assim se dizia. Segundo descreve
Ann Eliza, uma prima sua demorara-se no Utah a caminho da Califórnia. Era casada com um nao-
rnórmon de nome Hatten. Os parentes de Ann Eliza ’caram desolados pelo facto de uma pessoa da
família se

107
ter casado com um herege. Esses parentes consultaram o^ promotores da Reforma e estes
aconselharam-nos da sej guinte maneira: «Ponham-no fora. É um pecado ver um mulher virtuosa
andar por esse mundo fora ligada a un gentio.» Dali a poucos dias espalhava-se a notícia de qu
Hatten fora assassinado pelos «índios».

Dois funcionários federais do Utah informaram Wa

shington deste estado de coisas. O juiz George P. Stiles d«

clarava que os relatórios do Supremo Tribunal do Utah ti

nham sido roubados e queimados. Na verdade, haviam sidi

mudados de lugar, mas não destruídos. O juiz William ^

Drummond, que irritara os mórmones ao máximo permj

tindo que a sua amante (por quem ele abandonara mulher

filhos, no Ilinóis) se sentasse a seu lado no tribunal, acusoJ

a Reforma de três crimes de morte. Em Washington, o prei

sidente James Buchanan ficou profundamente perturbada

com essa notícia. Pressentia no ar sinais de rebelião. Resotl

véu pois agir sem mais investigações. Dirigindo-se ao Conl

gresso, Buchanan afirmou: «Esta é a primeira rebelião qua

surge nos nossos territórios; e até por uma questão de hd|

manidade é indispensável que a sufoquemos de modo qua

não volte a registar-se.» m

A 28 de Maio de 1857, o secretário da Guerra, John Bi

Floyd no intuito de evitar que o território do Utah $

separasse da União , mandou reunir em Fort Leaven*

worth, no Kansas, dois mil e quinhentos soldados de elite!

com instruções para marcharem sobre Salt Lake City. Em«


bora os preparativos fossem efectuados em segredo, doisj

mórmones do Kansas tiveram conhecimento do que se gi<«

zava. Passaram palavra a Abraham O. Smoot, um ancião dm

igreja, que correu a levar a notícia para o Oeste.

A 24 de Julho de 1857, Brigham e alguns milhares dm

«Santos» encontravam-se celebrando a principal festa relil|

giosa dos mórmones num acampamento chamado Silveffl

Lake. Estava a festa no auge quando Smoot chegou a cavall

Io, depois de três dias passados na companhia de mais treSM

trazendo a novidade de que os Estados Unidos se prepara^

vam para atacar o Utah.

Brigham e os seus auxiliares ficaram furiosos e mortoSl

por combater. Do púlpito, Brigham desafiou o exército qu*l

se aproximava: «Podeis vir com os vossos milhares de sol-l

dados ilegalmente comandados», berrava ele, «e eu vos Pro”l

108 *

meto, em nome do Deus de Israel, que ficareis derretidos como a neve ao sol de um dia de Julho!»
A isto acrescentava Heber C. Kimball com desprezo: «Santo Deus! Tenho mulheres que chegam
para chicotear os Estados Unidos em peso...» Brigham, e não apenas ele, imaginava que esta
invasão trazia consigo um motivo económico. E afirmava que o secretário da Guerra, Floyd, firmara
contratos com o exército, que lhe haviam trazido um lucro de cinco milhões de dólares. Os
acontecimentos posteriores
revelaram que esta acusação em parte era verdadeira. A invasão do Utah custaria aos Estados
Unidos quinze milhões de dólares. Em
1860, Buchanan iria obrigar o secretário da Guerra, Floyd, a demitir-se em consequência dos
escândalos ocasionados pelos contratos por este firmados.

Os mórmones preparavam-se para lutar com unhas e dentes. Instalados no vale havia dez anos,
sentiam-se fortes e seguros. Declarada a lei marcial, Brigham ressuscitou a Legião de Nauvoo.
Foram chamados às fileiras dois mil homens, ficando mais três mil de reserva. Um pequeno
destacamento de fuzileiros, comandado pelo major Lot Smith, foi encarregado de provocar o
exército dos Estados Unidos. Aquele, só de uma ocasião, atacou um comboio de abastecimentos
lançando o fogo a setenta e quatro carros. Ele e os seus homens puseram em fuga as manadas de
gado pertencentes ao exército e começaram a queimar toda a erva das planícies. Outro
destacamento reduziu a cinzas o Forte Bridger e o Forte Suppley. A maior parte das forças da
Legião de Nauvoo dispunha-se junto à entrada do vale de Echo Canyon. Entretanto, com receio de
um avanço súbito do inimigo, Brigham Young mandou evacuar a cidade de Salt Lake, com
excepção de algumas brigadas que haviam recebido ordem para queimar a capital se tanto fosse
necessário. Tudo foi evacuado da cidade, desde os cereais até à tipografia do jornal The Deseret
News; trinta mil «oantos» retiraram-se para o Sul, contando-se entre eles os Webb.

Os dois mil e quinhentos homens do exército dos Estados Unidos eram comandados pelo coronel
Albert Sidney Johnston, do Kentucky, que se dizia ter jogado um dia à Pancada com um cadete de
West Point chamado Jefferson uavis, por causa da filha de um taberneiro, e que agora esava morto
por lutar. Mas não houve luta alguma. Ha\ia

109
quem conservasse a calma e encetasse negociações. O govâ

nador Gumming chegara para conferenciar com Brighaj

Young, bem como o coronel Thomas L. Kane, de Filada

fia, grande amigo que os mórmones contavam no Leste d

quem estes haviam salvo a vida quando estivera doente à

Nebrasca. Enquanto Johnston e o seu exército trepidava!

de impaciência em Camp Scott, as conversações prossegui

ram pelo Inverno fora. A 26 de Junho de 1858, Johnstd

obteve licença para trazer as suas tropas até à cidade deseii

de Salt Lake e ocupar posições definitivas em Camp Floyi

a quarenta e cinco milhas de distância. l

Os Webb regressaram por fim a Salt Lake City, junta

mente com outras famílias mórmones. Johnston mantinha

-se de atalaia. A irritação e o mal-estar continuavam a fl

zer-se sentir. Um grupo de exaltados planeava rapta

Brigham, porém o governador Gumming não permitiu qij

a ameaça fosse por diante. Soldados desmobilizados e vagai

bundos praticavam roubos e entregavam-se ao debocM

dentro da cidade. ’l

A paz acabou por ser firmada. Buchanan perdoou ata

mórmones. Johnston regressou à Califórnia. Em 1861, doí

mil e quinhentos soldados abandonaram Camp Floyd pall

irem combater na Guerra Civil, no Leste. Dali a um anã

Johnston atacava Ulysses S. Grant, em Shilon, e era morta

na refrega. O governador Gumming resgatava a sua respolfl


sabilidade no conflito numa prisão do Norte. O secretár»

da Guerra Floyd tornava-se oficial confederado. BuchanaM

cedia o lugar ao presidente Lincoln e afirmava ao jornalisl|

mórmon Stenhouse: «Quando eu era garoto, na minhH

quinta do Ilinóis, tínhamos uma grande porção de madein

na propriedade, que era preciso tirar dali. De vez em quanj

do deparávamos com um tronco demasiado duro para fazíB

em cavacas, muito verde para queimar e excessivamente pem

sado para transportar. Então cavávamos um fosso em voltfl

e enterrávamo-lo. E isso que tenciono fazer com os mótjB

mones. Vá ter com Brigham Young e diga-lhe que me dei«B

em paz que eu também não lhe faço mal.»

A paz era uma coisa boa, mas veio demasiado tarde P3ÍÊ

rã ser útil aos mórmones, no Leste, cercados de hostilidadfflM

Precisamente na altura em que Buchanan se preparava P^Tl

a chamada guerra do Utah, um mórmon muito conhecid<|I

viu-se ligado a um escândalo que confirmava a ideia de qu^B

110

todos os Santos dos Últimos Dias não passavam de uns devassos.

Em 1857, Parley Parker Pratt podia considerar-se um dos pilares da igreja. Homem forte, de cara
rapada, de cinquenta anos, fazia parte dos doze apóstolos: era poeta, e também polígamo, pois
contava seis esposas, e podia considerar-se um dos principais missionários de Brigham. Segundo
Ann Eliza ouviu contar e foi relatado nos jornais antimórmones da época, Pratt encontrava-se numa
missão em São Francisco quando converteu para a igreja
uma tal Eleanor McLean, mulher muito bonita, casada com um comerciante chamado Hector
McLean e mãe de três crianças. Pratt não só conquistou Eleanor para a sua igreja, como também
para si próprio. Seduziu-a, viveu com ela ilegalmente e convenceu-a a tornar-se na sua sexta esposa
quando regressasse ao Utah. Segundo a versão dos mórmones, a Sr.a McLean já era mórmon e vivia
separada do marido quando conheceu Pratt. Entre outras coisas, afirmavam os mórmones, Hector
McLean batia na mulher e era um bêbedo. O único interesse que Pratt manifestara por ela resumia-
se na ajuda que lhe dava para reaver os três filhos que estavam na posse do seu indigno marido.

Segundo ambas as versões, Hector McLean enviou os filhos para casa do sogro, na Luisiana. A Sr.a
McLean não tardou a ir também para lá, e depois de se prontificar a renunciar à religião mórmon
obteve a guarda de uma das crianças. Combinara por carta encontrar-se com Pratt numa reserva de
índios do Arcansas. Ao saber disto, Hector McLean acusou Pratt de lhe roubar o amor da esposa,
levando-a a abandonar os filhos. Pratt foi preso e julgado em Van Buren, no Arcansas.

Pratt sofreu atrozmente durante o julgamento. Muitas das cartas que ele escrevera à Sr.a McLean
referiam-se mais a assuntos pessoais relativos a ambos do que aos negócios da igreja. Ao ter de
enfrentar esta vergonha, Hector McLean puxou da pistola em pleno tribunal na intenção de se
matar, mas foi impedido de o fazer. A multidão, indig°ada, tomando o partido de McLean, enchia o
tribunal e ”janifestava-se ruidosamente. Como, porém, a Sr.a McLean afirmava que Pratt estava
inocente de qualquer tentativa de a seduzir ou de a levar a abandonar os filhos, o juiz não teve outro
remédio senão absolvê-lo.

111
Na manhã seguinte, Pratt partiu a cavalo de Van Buren

no intuito de reunir-se a uma caravana de emigrantes cod

destino ao Utah, onde Eleanor McLean iria juntar-se-lljl

mais tarde. No entanto, os planos do marido ultrajada

eram outros. Ele resolvera fazer justiça por suas própria

mãos e partiu também a cavalo em perseguição de Pra«

A luta foi renhida. McLean galopava atrás do outro e dia

parava contra ele, mas não lograva atingi-lo. Pouco a poifl

co, porém, foi ganhando terreno sobre o fugitivo e, quancn

estavam lado a lado, McLean puxou de uma faca e enteq

rou-a até ao cabo nas costas do antagonista. Pratt caiu d|

cavalo, ferido de morte. Mesmo assim, para maior seguram

ca, McLean meteu-lhe uma bala no corpo. Em seguida raj

gressou à cidade onde foi acolhido pela população e ovai

cionado como um herói em todo o Arcansas. Ninguém J

prendeu nem levou a tribunal. Conseguiu reaver o terceira

filho e seguiu em liberdade para a Luisiana. No Utah,

povo vestiu-se de luto e chorou Parley Parker Pratt coma

um mártir, passando a considerar todos os naturais do Am

cansas criminosos. B

O fracasso das carretas de mão, a fome, a Reforma, tul

do contribuiu para exacerbar os espíritos, levando-os a untB

tensão insustentável. Foi no entanto o assassínio de PratlB

bem como a aproximação dos exércitos de Buchanan, o qufl


fez transbordar a taça. Nos princípios do Outono de 185»

um tal capitão Fancher chefiava uma caravana compôs»

por trinta carroças e cento e trinta e sete emigrantes, quB

atravessou Salt Lake City em direcção ao Sudoeste, coflB

destino à Califórnia. A maior parte dos membros dessa cam

ravana, oriundos de quatro condados do Arcansas, eranB

pessoas bem-comportadas; os restantes, porém, não passa»

vam de aventureiros selvagens do Missuri, chamados «GíM

tos Bravos», uns autênticos rufias. Estava armado o cenárilB

para o infame Massacre de Mountain Meadows.

Quando os componentes da caravana de Fancher atraH

vessavam as colónias do Utah que ficavam mais ao sul, $<fl

gundo a versão dos mórmones, principiaram a provocar H

população em todos os pontos onde paravam para acampanB

Dizia-se que os emigrantes se gabavam de ter feito paí*^

das turbas que haviam expulsado a igreja do Missuri e Par’|B

ticipado no assassínio de Joseph Smith. Como, em vistíM

disto, lhe recusassem os víveres de que necessitavam, desa^»

112

taram a destruir as vedações das herdades, a insultar as mulheres mórmones, ameaçando que
arrasariam a cidade de Fillmore e voltariam em breve para ajudar o exército federal a esmagar os
«Santos». Afirmou-se também que tinham utilizado arsénico para envenenar as nascentes de Com
Creek, causando assim a morte de muito gado dos índios.

Depois de terem atravessado Cedar City, no Utah, onde compraram cinquenta alqueires de trigo, a
caravana de Fancher
chegou a um lugar que ficava trinta e cinco milhas mais para sudoeste, chamado Mountain
Meadows. Era um vale muito verde, de oito milhas de comprimento por uma de largura. A caravana
deteve-se ali para repousar uns dias e dar de comer às seiscentas cabeças de gado que levava
consigo. Entretanto, em Cedar City reunia-se um grupo de mórmones chefiado pelo coronel Isaac
C. Haight, comandante da milícia local, que se juntou na igreja a fim de discutir o procedimento dos
companheiros de Fancher. Metade do grupo era de opinião de que deviam atacar os viajantes,
vingando assim a morte de Joseph Smith e de Parley Pratt; a outra metade aconselhava a que se
deixassem em paz os emigrantes. Na segunda-feira, 7 de Setembro de 1857, Haight enviou um
mensageiro a cavalo a Salt Lake City, a fim de pedir conselho a Brigham Young. Três dias depois,
o mensageiro chegou junto do Profeta, que respondeu: «Parte já a toda a velocidade, não poupes o
cavalo, e diz que ninguém toque nos emigrantes. Custe o que custar, estes devem seguir em
liberdade para o seu destino.»

A verdade, porém, é que, mal o mensageiro partira a galope de Cedar City, o grupo de Fancher,
acampado em Mountain Meadows, era atacado. Ao romper do dia 7 de Setembro, viu-se rodeado
por uma enorme turba de índios. A primeira descarga de tiros matou logo sete brancos e feriu
dezasseis. Os emigrantes fizeram a toda a pressa um círculo com as carroças e começaram a
defender-se. tornbaram alguns índios, entre eles dois dos chefes. Imediatamente os assaltantes
mandaram pedir reforços a outras tribos e chamaram para os comandar John Doyle Lee, um
próspero lavrador mórmon que era o delegado do governo junto dos índios naquela área.

Os emigrantes ergueram barricadas de terra e dispuseram-se a aguentar o cerco. Ao fim de dois


dias, como vissem diminuir a reserva de alimentos e de água, resolveram

113
pedir auxílio a Cedar City. Iludindo a vigilância, três hoi

mens saíram do acampamento a cavalo. Dois deles dirm

giram-se para Oeste mas foram logo interceptados pelol

peles-vermelhas. O terceiro, William Aiden, conseguiu transi

por com o seu cavalo o círculo dos inimigos e largou enj

direcção a Cedar City. Porém, os mórmones estavam feitol

com os índios. com um tiro de espingarda, um mórmoa

atingiu Aiden, que morreu logo ali. Este acto foi presencial

do pelos emigrantes sitiados, que ficaram sabendo assinÉ

que grande parte dos seus assaltantes eram mórmonesl

E, ao verificarem isto, descobriram que nenhuma esperança

lhes restava. B

Neste momento, a caravana de Fancher estava sendfll

atacada por cinquenta e cinco homens brancos, incluindo dl

coronel Haight, John D. Lee e um tal major John M. Hig«

bee, e talvez mais de trezentos índios. Os assaltantes reuni«B

ram um conselho de guerra. Os mórmones eram de opinião!

de que os sitiados deviam ser todos mortos para que nã<fl

restasse nenhuma testemunha adulta que pudesse depolB

contra a igreja. Os poucos que protestavam frouxamentJB

contra aquele banho de sangue foram rapidamente reduziw

dos ao silêncio pelos índios furiosos que os ameaçavamfH

Durante a noite inteira, brancos e peles-vermelhas discuti-B

ram o plano e, pela madrugada, estavam todos de acordo»


Ao nascer o Sol do dia 11 de Setembro, dois mórmoreSJM

Lee e William Bateman, arvorando a bandeira branca d3JH

paz, avançaram numa carroça para o círculo dos carros doíM

emigrantes, onde fora também hasteada uma bandeira deM

tréguas. Lee declarou aos companheiros de Fancher que erffl

um «Santo» que vinha ali para os salvar, pois sabia a qudH

meios recorrer para aplacar os índios. Aconselhava os emi-H

grantes a deporem todas as suas armas, espingardas, pisto-Hj

Ias e facas, dentro das carroças e a saírem cá para fora de-«

sarmados, entregando as carroças e o gado aos índios. LeejM

prometia que, se assim fizessem, seriam escoltados pelos»

mórmones, a pé, até Cedar City. Os sitiados não tiverarnJM

outro remédio senão aceder. ’

Os companheiros de Fancher saíram em fila para o ter- |B

reno descoberto. Dezassete crianças com menos de sete

anos foram metidas numa carroça, enquanto uma mulher e JB

três homens feridos tomavam lugar noutra. A outra mulher

que fazia parte da caravana, e as crianças mais crescidas, co- 9

114

meçaram a atravessar o vale de Mountain Meadows a pé, escoltadas pelos mórmones. Um quarto de
milha atrás deles, marchava a coluna dos emigrantes masculinos, levando cada um a seu lado um
mórmon armado. De súbito, numa ravina rodeada de vegetação espessa, Haight gritou: «Alto!
Cumpram o vosso dever para com Deus!»

Então, os mórmones armados voltaram-se cada qual para o prisioneiro que acompanhava e matou-o
a tiro. Outros mórmones disparavam contra as mulheres
e as crianças e os que tentavam fugir eram massacrados. Apenas pouparam as dezassete crianças
com menos de sete anos, pois o seu testemunho pouco valor teria. Este assassínio em massa,
cometido a sangue-frio, demorou apenas alguns minutos. Mountain Meadows ficou coalhado de
cadáveres, a apodrecer, cujo cheiro iria invadir todo o país.

Os mórmones afastaram-se, para irem comer um bom almoço, e depois regressaram ao local do
crime. Antes de partirem com o produto do roubo, os índios esfacelaram e mutilaram os corpos. Os
mórmones enterraram então os mortos, mas a uma profundidade tão pequena que em breve os lobos
vieram escavar o sítio espalhando a carne e os ossos dos mortos por todo o vale. Dali a dois dias, os
mórmones recebiam a mensagem de Brigham Young, na qual lhes ordenava: «Os viajantes devem
seguir em liberdade para o seu destino», e só então Haight se apercebeu da gravidade do seu acto.
«Já não vem a tempo!», gemia ele. «Já não vem a tempo!» Foi nesta altura que os assassinos
pediram que fosse mantida em segredo a sua colaboração.

Dezoito dias mais tarde, John Lee chegava a Salt Lake City e comunicava a Brigham Young o
massacre cometido «pelos índios». Ao ouvir a triste nova, Brigham chorou e torceu as mãos de
desespero, enquanto passeava de um lado para o outro. «Isto é o pior que tem sucedido à igreja!»,
exclamava ele. «Receio que tenha havido alguma traição da Parte dos irmãos que lá se
encontravam. Se alguém contar o que lá se passou, isso pode causar-nos um grande prejuízo.»

E a verdade é que não tardou que a notícia se espalhasse

P°r toda a parte. Até mesmo Ann Eliza Webb, que então

contava treze anos, veio a conhecê-la. «Nesse tempo eu era

m3 criança», escreveu ela mais tarde, «mas recordo-me

Perfeitamente de ter ouvido dizer que uma caravana de

115
emigrantes fora atacada pelos índios e que todos havijj

perecido com excepção de algumas crianças pequeni

Também me recordo de ter visto essas crianças... J

«Embora muito jovem, pressentia o mistério que enva

via tudo aquilo, e sabia instintivamente, assim como muia

outros, que os dirigentes escondiam algo da maioria do d

blico crente, e que não achavam prudente revelar; porei

os ”Santos” sinceros não suspeitavam da terrível verdada

Dentro de dois meses, a notícia era conhecida por toi

o país e desconfiava-se dos mórmones. A suspeita paira

no ar. Brigham resolveu então antecipar-se ao governai

mandou George A. Smith para o local do crime a fim l

investigar os factos. Smith contou que os mórmones id

viam andado pelas vizinhanças, mas que o massacre fora jl

facto cometido por vinte índios. Satisfeito com isto, Brí

ham informou Washington. O governo, porém, é que rm

se deu por satisfeito. O juiz George Cradlebaugh, acompj

nhado por uma escolta militar, recebeu ordem para se difl

gir a Iron County, a fim de localizar todos os mórmo

que tivessem estado presentes na área do massacre, enU«

gando-lhes trinta e seis mandados de captura. Avisados dfl

to, os cúmplices mórmones desapareceram. Lee, munido

um binóculo, observava as investigações emboscado nufB


gruta que ficava perto da sua propriedade. Nem um só <fl

mandados de captura foi utilizado. JB

O decorrer do tempo não atenuou a indignação nem»

pressões. Muito embora Haight e John D. Lee, sobretufl

este último, fossem amigos íntimos do Profeta, BrighjB

achou por bem excomungá-los. Mais tarde, Haight foi sU

cretamente reintegrado na Igreja Mórmon. Quanto a Lee,fl

fim de se conservar escondido, abandonou as dez esposM

que lhe restavam já possuíra dezanove e tivera sessentajB

quatro filhos , deixando-as encarregadas de velar Pe^V

suas casas em Harmony e em Washington, no Utah, efiB

quanto ele próprio ia residir numa casinha isolada, perto dm

rio Colorado. No entanto, os ecos do massacre continulM

vam a chegar com insistência aos ouvidos de Brigham. N^B

ma reunião do Congresso, o juiz Cradlebaugh acusou abeiM

tamente os mórmones e classificou aquele acto como *U^B

dos crimes mais cruéis, cobardes e sangrentos de que reza «l

história». Finalmente, para acabar com uma acusação ql*j|

durava havia dezassete anos, Brigham consentiu no julgada

mento de Lee. l

116

No dia 7 de Novembro, Lee foi visitar algumas das suas esposas que viviam em Panguitch, no Utah.
Apareceu logo ali um funcionário judicial encarregado de o prender. Lee escondeu-se numa
pocilga. Descobriram-no e levaram-no. Poi julgado no Verão de 1875. Embora expulso da
comunidade, Lee sabia que a igreja o protegia, pois o caso também lhe dizia respeito. O júri era
composto por nove mórmones e três não-mórmones. As testemunhas depuseram de uma maneira
vaga.
Ninguém no Utah ficou surpreendido pelo facto de o júri estar comprado e Lee ser absolvido. Mas a
imprensa livre de todo o país deu por paus e por pedras, e Brigham teve de se convencer de que era
necessário um bode expiatório para acalmar os protestos.

Uma vez mais, agora no Outono de 1876, Lee compareceu no tribunal. É possível que Brigham
tenha feito um acordo com o governo: condenem Lee, se quiserem, mas não levem por diante as
acusações contra o resto dos cúmplices. Foi o que aconteceu. Lee ficou sozinho contra todos. Desta
vez, o júri não foi subomado. As testemunhas reticentes falaram pelos cotovelos. As memórias
funcionaram. A conclusão a que chegaram foi a de que Lee havia dirigido, sozinho, os índios. E foi
considerado réu de assassínio em primeiro grau. Condenaram-no a ser fuzilado no local do crime.

Enquanto esperava pela execução, Lee escreveu um livro, que o seu advogado escamoteou, no qual
ele acusava o mormonismo, apresentando Brigham como um «tirano», e acusando Haight de ter
comandado o massacre. Por fim, no solo agora árido de Mountain Meadows, Lee assistiu ao fabrico
do seu caixão de pinho. Um fotógrafo pediu-lhe que deixasse tirar-lhe o retrato. Ele concordou, com
a condição de serem enviadas cópias às suas três esposas que lhe fmham permanecido fiéis. Dirigiu
então um discurso aos jornalistas. Referiu-se favoravelmente a Joseph Smith e atirou-se a Brigham
Young. «Vejam como cheguei a isto», declarou. «Fui sacrificado de uma maneira cobarde e infame!
A minha última palavra é esta: Foi assim mesmo.» Depois sentou-se dentro do caixão enquanto
escutava calmamente a oração de um padre metodista. Olhou para os cinco homens ^que
compunham o pelotão e exclamou: «Apontem ao c°ração, rapazes. Não me massacrem o corpo!» A
descarga s°ou e Lee caiu para dentro do caixão. Mountain Meadows estava finalmente vingada.

117
com o correr dos anos, os comentadores mais serend

passaram a ver com clareza uma série de factos através dj

confuso amontoado de mentiras e contradições que se vel

ficaram na época. Brigham não era com certeza o responsa

vel pelo massacre. A sua acção foi talvez mais subtil, sei

que teve alguma. Os sermões agressivos que proferia condj

os não-mórmones e as pessoas estranhas à igreja havia!

comunicado um grande desejo de luta aos seus sicário!

tornando assim possível o caso de Mountain Meadcrvii

Mas até mesmo estes sermões podem explicar-se em faaj

das perseguições constantes que a igreja vinha sofrenda

O mais provável é que a responsabilidade do massacre ri

caia sobre um grande número de brancos e índios que nei

tomaram parte. John D. Lee era tão culpado como os oil

tros cinquenta mórmones e, com a sua injusta condenaçil

tornou-se mais uma das pequenas vítimas da história, ufl

dos muitos bodes expiatórios tão necessários, pelos vistoí

para o equilíbrio da sociedade. Foi neste clima de contro|

vérsia e violência que Ann Eliza se fez mulher. Deixou <B

ser jovem muito cedo. Aos doze anos, já recebera vária

propostas de casamento da parte de «dignitários da igreja*

Não era coisa rara os velhos polígamos do Utah lançare«

as suas vistas para as rapariguinhas muito novas. «Um vjl

lhote entusiasta», refere Ann Eliza, «guardou para sua efl

posa uma pequena de onze anos e viam-se muitas vezí

noivas de treze e catorze anos...» Chauncey Webb, porédl


não queria casar a sua única filha aos doze anos, por isal

rejeitou todas as propostas. fl

A educação de Ann Eliza na escola foi estritameníM

mórmon. Ensinaram-lhe sempre a aceitar a poligamia. «Em

pouca atenção prestava a esse pormenor», confessa ela, «

lá ia construindo o meu romance imaginário como é hábitfl

das raparigas.» Aos doze anos, Ann Eliza não considera’»

desagradável a vida em comum com as cinco senhor»

Webb. Mas o mesmo se não dava com a mãe. AprimeiaH

Sr.a Webb pedia constantemente ao marido que lhe dessjB

uma casa separada. Ele, porém, recusava. Desesperada, fl

primeira Sr.a Webb pediu licença para levar Ann EliziJ

a passar umas férias prolongadas em Skull Valley, distant^

de Salt Lake City umas setenta milhas, onde os irmãos dfl

pequena tinham uma cabana de toros e se dedicavam a cu”lB

tivar pastagens. Chauncey consentiu nisso sem dificuldade»

118

Quando as outras mulheres souberam do caso, uma delas quis ir também. A primeira Sr.a Webb
tentou impedi-la e disse a Ann Eliza: «Como é que ela não entende que o meu desejo é fugir a toda
esta confusão e ir-me embora sozinha?» Mas acabou por levar consigo a outra mulher para Skull
Valley.

Dali a pouco tempo, Brigham Young teve a inspiração de fundar uma companhia de transportes que
utilizaria um único tipo de carruagem concebido por ele. Essas carruagens seriam construídas
em Chicago, e Brigham mandou vir Chauncey do Ilinóis para fiscalizar o trabalho. Muito embora
nunca lhe tivesse pago nada pela sua missão em Inglaterra nem pelo seu trabalho no fabrico das
carretas de mão no Iowa, desta vez prometeu-lhe um salário. No entanto, enquanto o dinheiro não
vinha, Chauncey não podia deixar de apertar os cordões à bolsa. Por isso pediu aos filhos que
ampliassem a cabana de toros de Skull Valley e mandou para lá o resto das mulheres. A primeira
Sr.a Webb ficou furiosa e declarou a Ann Eliza que «nunca na sua vida se sentira tão revoltada
como agora»! Nem sequer pedia nas suas orações pelo feliz regresso de Chauncey no fim dos
trabalhos que fora fiscalizar em Chicago. E como se as cinco concubinas não representassem já para
ela um castigo suficiente, não tardou a cair-lhe mais outro em cima. O filho primogénio, Gilbert,
recebeu ordem de partir inesperadamente para uma missão de cinco anos nas ilhas Sanduíche, como
então se chamavam as Havaí. A saúde da primeira Sr.a Webb não resistiu e Ann Eliza ficou
aterrada com a ideia de que a mãe pudesse morrer.

A tarefa de Chauncey em Chicago foi um desastre, sob todos os pontos de vista. Brigham resolvera
fundar uma companhia com o título de Expresso B. Young, a qual transportaria passageiros, carga e
correio entre Independence, no Missuri, e Salt Lake City. Descontente com os actuais meios de
transporte, desenhara meticulosamente um novo tipo de carruagem de tracção animal. Era cinco
vezes ° tamanho de xima diligência normal, de formato rectangular> e tinha doze janelas e rodas
gigantescas. Todos os construtores de Chicago fizeram troça do projecto monstruoso, ate que
apareceu um, interessado no negócio dos mórmones, qup tomou conta da obra com a assistência de
Chauncey.

ngham encomendara catorze carruagens, mas Chaun-

carruagens, mas

119
chey só fez duas. Cada uma delas seria capaz de transporta uma caravana inteira e nunca se soube
de ninguém que i tivesse utilizado para viajar. Desiludido, Brigham emprJ gou-as no transporte de
mercadorias até se espatifarem,! acabou por desinteressar-se do assunto. j

Quando Chauncey lhe pediu a recompensa dos sea serviços em Chicago, Brigham procurou
esquivar-se. Preíl ria considerar o trabalho de Chauncey como uma «díviJ de gratidão à igreja».
Nessa altura, Chauncey encontrava^! demasiado doente para protestar. Adoecera em Chicagol
agora, já em Salt Lake City, requisitara a presença da pi meira Sr.a Webb para o tratar. Esta recusou
e fez-se subslj tuir pela segunda mulher de Webb, Elizabeth Taft. Chauí cey, porém, queria ver a
seu lado a primeira esposa, a qu se sentia triunfante com a preferência, sem no entanj abandonar o
velho ressentimento.

As súplicas que o marido lhe enviava através de ua

mensageiro despertaram-lhe por fim os remorsos e voltou!

toda a pressa, acompanhada de Ann Eliza, para a sua cadl

de Salt Lake City. Não tardou a sentir-se feliz a tratar <m

homem. Quando, porém, as outras quatro esposas quisâ

ram vir ter com ela, para a ajudar, a antiga cólera ressusca

tou. «Passei a fazer o meu trabalho sem gosto algum», dfl

clarou ela à filha. «O meu coração estava morto. Naj

sentia a mais leve emoção perante aquele homem ali esteia

dido na minha frente e importava-me tanto com ele confll

se fosse um estranho... Também não lhe desejava a mortw

era-me apenas indiferente.» l

Ao cabo de algum tempo, a febre de Chauncey baixouj

Mal o viu a caminho da convalescença, a primeiri

Sr.a Webb pegou na filha e partiu para o Sul, de visita à fá|

mília. Em seguida, foi ensinar de novo para Payson e am

passou quase um ano separada do marido.

Em Setembro de 1860 regressou de má vontade ?*

junto da família, que detestava, instalando-se em Salt Lahfl

City. Este regresso foi assinalado pelo décimo sexto aniveB


sário de Ann Eliza, e quase imediatamente esta adoecdB

com uma afecção pulmonar. Em virtude de os médicos siM

rem então muito pouco considerados, Ann Eliza foi tratatw

exclusivamente pelo clero mórmon, sobretudo pelo bispH

Taft. Os medicamentos resumiam-se a orações. Não se p^fa

cebiam quaisquer melhoras e receava-se que Ann EliZw

120 ”

viesse a morrer tuberculosa. Nesta altura, Heber C. Kimball decretou que a pequena só se salvaria
se lhe ministrassem a confirmação antecipadamente, o que constituía uma subida honra, dado que
tal cerimónia raramente era facultada a adolescentes. Como preparação, Ann Eliza foi rebaptizada
por imersão na pia baptismal da casa de reunião do Décimo Segundo Bairro. Como por milagre, a
saúde da rapariga começou a melhorar. Resolveu-se que o acto final, o da confirmação, se realizaria
na misteriosa Casa dos Votos, que ficava na esquina ao noroeste do Largo do Templo.

A Casa dos Votos era uma construção de dois pisos, em adobe «com um telhado inclinado e quatro
janelas, uma destas sempre condenada», descreve Burton e que era utilizada para os casamentos
poligâmicos, para as confirmações e outras cerimónias religiosas. Tal como a santa Kaaba de Meca,
esta casa era vedada aos descrentes. Em virtude de os seus rituais serem celebrados à porta fechada,
corriam os piores boatos, entre os não-mórmones, acerca das coisas ali praticadas. A Casa dos
Votos ficou célebre em todo o Oeste da América e no estrangeiro como sendo um antro de magia
negra medieval e de orgias sexuais. P. T. Van Zile, juiz do Distrito Federal do Utah, chamava-lhe
«uma latrina de iniquidades». John Hyde, que se gabava de ter sido iniciado nos mistérios da Casa
dos Votos, escreveu: «Não se pode descrever toda a pouca-vergonha, com o rótulo de religião, a
que serviam de pretexto as cerimónias dos casamentos.» E afirmava: «A Casa dos Votos é um lugar
de grande virtude mágica e tudo o que lhe diz respeito mantém-se cuidadosamente secreto para os
olhos e para os ouvidos dos não-mórmones: de facto, há mesmo quem diga que se praticam
sacrifícios humanos adentro das suas paredes.» A verdade, porém, é que os ritos ali celebrados e
inspirados na Bíblia, em Milton e na Maçonaria, eram afinal inócuos e sem importância.

No dia em que completava os dezasseis anos, Ann Eliza dirigm-se à Casa dos Votos, para ser
confirmada; levava consigo um farnel e os fatos especiais para a função que a mãe lhe preparara.
Depois de descalçar os sapatos, declinar
0 nome e a identidade diante de um porteiro, Ann Eliza entrou e foi juntar-se a outros mórmones
que ali aguardavam a altura de serem confirmados. Conduziram-na a um espaçoso quarto de banho
com um cortinado ao meio a

121
separar os homens das mulheres. Em seguida, despiram-*

completamente e meteram-na numa banheira de água. 5

tão, Eliza R. Snow, a poetisa, uma das várias esposas j

Brigham Young, lavou-a dos pés à cabeça, ao mesmo tetj

pó que murmurava orações. Besuntaram-lhe todo o coqj

com uma espessa camada de azeite, enquanto a irmã Sn<jj

lhe benzia os membros todos, em especial «os rins e i

seios», para que ela «pudesse produzir uma geração nurrí

rosa». Õ azeite causava enjoos a Ann Eliza, que mal pôí

suportar a cerimónia até ao fim. i

Para terminar, vestiram-lhe uma túnica de musselil

branca, uma camisa de noite e uma saia, e ainda o compj

do fato de linho que a mãe lhe fizera para a cerimónia. Dl

pois de lhe terem dado o nome secreto e santo de San

Ann Eliza, juntamente com os seus companheiros mórmi

nes, participou de uma pequena peça teatral que evocava!

Criação, a Queda do Homem e o seu Regresso à antqj

glória. Os principais actores, embora disfarçados, foram M

go reconhecidos por Ann Eliza. Brigham representava!

Deus Principal; Heber C. Kimball, o de Jeová; Dana

H. Wells fazia de Jesus Cristo, e Eliza R. Snow figurai

Eva. J

No fim da peça, realizou-se uma cerimónia maçónioi

«Ensinaram-nos uns certos sinais, senhas e gestos, dispuSl

ram-nos em círculo e mandaram-nos ajoelhar», conta Am


Eliza; «as mulheres receberam também ordem para coba

rem o rosto com os véus; depois mandaram-nos erguer!

mão direita e jurar obediência total e segredo inviolável

Ao fim do dia, a doença de Ann Eliza tinha desapareci

do, mas com ela também a sensação de entusiasmo. «Fiqwj

absolutamente exausta em virtude de tudo aquilo por qu|

passara», declara ela. «Sentia-me também muito insatisfeita

Era tudo tão diferente do que esperara e isso entristecia-rtjl

e decepcionava-me. Os sentimentos que me animavam cfl

manhã haviam sofrido uma modificação total. Já não arda

de entusiasmo e de fervor religioso; tudo isso morrera e <fl

sentia-me tão desanimada e apática quanto me sentia antdl

entusiasmada e ardente. «

«Logo a seguir aos meus votos, Brigham Young coms!

çou a interessar-se pela minha pessoa. Até ali vira-me corf|

frequência, mas sempre me considerara uma criança. De rtM

pente, foi como se se apercebesse de que eu me tornara

122

mulher, e como primeira manifestação disso começou a interferir com os meus admiradores.»

No ano de 1861, com dezassete anos e a seguir ao luto pela morte prematura do irmão mais novo,
Lorenzo Dow, Ann Eliza começara a frequentar a sociedade e a conviver com jovens do sexo
oposto. O seu amigo mais íntimo era Finley Free, irmão mais novo de Emmeline Free, nessa altura
a esposa favorita de Brigham. Finley Free era um rapaz muito alegre e expansivo, possuindo muitos
interesses em comum com Ann Eliza, e esta adorava-o. Os Free tinham residência própria, e Ann
Eliza visitava-os amiúde. No ano seguinte, 1862, com dezoito anos, a rapariga mantinha ainda
relações de amizade com ele e iam muitas vezes juntos ao Teatro de Salt Lake City, que abrira
havia pouco.

Parece que Brigham Young os viu, por duas vezes, de braço dado no terraço. Movido por um
impulso inexplicável, procurou a mãe de Ann Eliza e avisou-a de que a filha não devia andar
sempre agarrada «a esses Free», porque eram «pessoas ordinárias». Pediu à Sr.a Webb para tomar
as suas providências no sentido de não consentir que a rapariga voltasse a encontrar-se com Finley.
A Sr.a Webb obedeceu. A filha, porém, protestou energicamente contra a intervenção de Young.

Certa noite, estando Ann Eliza a conversar com algumas jovens amigas, todas elas sabedoras do seu
namoro com Free, uma delas declarou que o velho polígamo andava sempre a meter-se na vida
amorosa delas porque queria as mulheres todas só para ele. E, voltando-se para Ann Eliza, disse:

Talvez o irmão Brigham tencione casar contigo. Essa ideia revoltou Ann Eliza.

Isso nunca! retorquiu ela, furiosa. Nem que mo pedisse mil vezes... aquele tipo horroroso!

Como não podia deixar de ser, esta declaração de Ann Eliza chegou aos ouvidos do Profeta. E
possível que tenha ncado aborrecido, ou melhor, intrigado. Dali em diante, não mais deixou de
observar Ann Eliza, e certa tarde, ao Passar de carruagem, avistou-a a caminho de casa. . Ainda
tens muito que andar disse ele para a rapan§a. Sobe e vem comigo. you levar-te a casa.

Ann Eliza não teve outro remédio senão obedecer. Seguiram em silêncio durante algum tempo.

123
De súbito, Brigham voltou-se para a sua bela compj nheira e declarou: s

Ouvi dizer que não serias capaz de casar comijj nem que to pedisse mil vezes. i

Muito atrapalhada, a rapariga tentou negar evasivament

«Estou convencida», escreveu mais tarde Ann Eliza, «c que Brigham jurou a si próprio naquele
momento que « havia de vir a ser sua mulher.»

Caso assim tenha sucedido, Brigham deve ter com preendido no entanto que não seria muito fácil
resolver problema que a diferença de idades entre ambos represe^ tava. Isto passava-se em 1862,
Brigham tinha sessenta e ui anos e Ann Eliza apenas dezoito. Mas nesse mesmo Outí no, no dia em
que a jovem completava os dezoito anoi Brigham fez nova tentativa para se aproximar mais dela, c
modo a poder vigiá-la melhor, tornou-a uma personagetj ilustre da comunidade. ;

«Pediu-me para fazer parte da companhia de teatroi relata ela, «pois gostaria que eu fosse actriz.» ’)

Foi este o início da carreira pública de Ann Eliza Weblj

IV

A PRIMEIRA SENHORA DEE

Julgais que sou um homem velho? Posso provar a esta congregação que sou jovem; poucos rapazes
têm, como eu, tantas raparigas que os pretendam para marido.

BRIGHAM YOUNG

«Se me encontrasse numa ilha de selvagens», observou certo dia Brigham Young, «e me
encarregasse de civilizar aquele povo, a primeira coisa que eu faria era construir um

teatro.»

Em 1862, antes do advento do caminho-de-ferro, Salt Lake City encontrava-se quase tão isolada dos
requintes da civilização como uma ilha de selvagens. Havia-se gasto catorze longos e penosos anos
para organizar a comunidade. Pouco tempo sobrara para futilidades, divertimentos e repouso. Os
homens, claro, tinham a poligamia, que embora por vezes constituísse uma dura prova, por outro
lado representava uma forma de prazer. Edith Young Booth confessava ao autor destas linhas: «Os
homens divertiam-se à grande com a poligamia.» No entanto, Brigham tinha a clarividência
suficiente para ver que isso não bastava, não só aos homens, mas também às mulheres e às famílias;
precisavam de algo mais que os aliviasse do pesado fardo que era a vida na fronteira. Por
conseguinte, Brigham resolveu oferecer ao seu povo que já tinha pão mas queria circo urna espécie
de circo, um teatro extraordinário, a maior casa de espectáculos a oeste de Chicago, um teatro igual
em dimensões e luxo aos de Nova Iorque, Londres e Paris. No dia l de Junho de 1861 iniciou-se a
construção do que viria a ser oficialmente chamado o Teatro de Salt Lake ^’ty mas que todos
designavam por Teatro de Brigham Young. Na realidade, salvo apenas durante dois anos, este teatro
foi propriedade particular de Brigham. Após doze anos de tal situação, ele vendeu o terreno e o
edifício a uma

125
sociedade composta por seis indivíduos (entre estes do dos seus filhos), por cem mil dólares. Dois
meses decorr, dos, voltou a adquiri-lo por cento e dezasseis mil dólare Na altura da sua morte, esta
propriedade foi avaliada et cento e vinte e cinco mil dólares.

No entanto, e mercê de uma série de acasos felizes, i

custo do edifício e da decoração foi relativamente acessível

Uma vez que a casa pertencia ao Profeta, a mão-de-obra fij

cou barata. Um grupo de seis cabouqueiros, oito canteiroí

quinze carpinteiros e três maquinistas trabalharam sob a dl

recção de um arquitecto, William H. Folsom. Dali a uii

ano, Folsom entregaria também ao Profeta a sua filha, qua

viria a ser a vigésima quinta esposa e a favorita do harénl

Os materiais, fornecidos por Joseph Young, irmão de Brigl

ham, ficaram quase de graça. Exceptuando um quarto dl

milhão de tijolos de adobe, trazidos em carroças, a maiol

parte dos materiais veio de Camp Floyd. Logo que o presa

dente Lincoln mandou seguir para leste o exército di

Johnston, a fim de tomar parte na Guerra Civil, autorizou

a venda de todo o material pertencente ao governo pdffl

maior oferta. Brigham despendeu imediatamente quarenta

mil dólares na compra de cento e setenta e cinco carros da

exército a dez dólares cada um, muitos sacos de farinha

que valiam vinte e oito dólares, por cinquenta e dois cêntífl

mós e, o que era ainda melhor, todos os materiais de consí

truçáo necessários para o seu projectado teatro. m

No espaço de nove meses, o Teatro de Salt Lake Citfl


estava concluído. Obedecendo à sugestão de um arquitecta

londrino que ali estivera de visita, o interior, que comporei

tava dois mil e quinhentos espectadores, era copiado ddj

Drury Lane Theater. O palco media dezoito metros de lar-J

go. As poltronas de orquestra, de importação estrangeira»

tinham as costas e os assentos de cana e via-se no meio de4

Ias um cadeirão de baloiço destinado ao Profeta. Os cama-«

rotes e as frisas, muito ornamentados, dispunham tambénf|

de todo o conforto. ’”

Quando Fitz Hugh Ludlow, crítico em Nova Iof’«

que, contista, morfinómano e grande entusiasta de Marfejl

Twain, visitou Salt Lake City, foi convidado de honra dojl

Profeta num espectáculo que se realizou no teatro recém-*

-inaugurado. Ludlow mostrou-se muito surpreendido com I

o que viu. «O que mais admirei foi a beleza extraordinária fl

126

dos dourados e das pinturas artísticas do arco por cima do palco, as comijas e os motivos em
estuque sobre os camarotes de boca. O presidente Young declarou-me com justificado orgulho que
todos os pormenores das decorações eram produto do trabalho indígena e das mãos dos ”Santos”.»

Brigham chamou a atenção de Ludlow para o lustre central, «um círculo em talha dourada»,
descreve Ludlow, «representando troncos de videira, folhas e gavinhas, todo iluminado
por velas e suspenso de uma grossa corrente dourada».

De onde imagina que veio este lustre inquiriu Brigham , e quanto lhe parece ter custado?

Talvez de Nova Iorque e deve ter custado cerca de mil dólares.

Nem por sombras! Fui eu quem o fez! exclamou o Profeta. O círculo é uma roda de carro que
mandei lavar e dourar. Está pendurado por correntes de prender os bois, também douradas, e os
ornamentos dos castiçais foram recortados em folha de lata, de acordo com desenhos meus!

Esta obra-prima de trabalho artesanal foi oficialmente inaugurada na noite de 6 de Março de 1862.
A assistência ao primeiro espectáculo era constituída apenas por convidados, e assemelhou-se mais
a uma reunião religiosa do que a uma estreia teatral. Antes da representação Brigham chamou à
ordem a assistência. Em seguida, um coro entoou o cântico «Eis que Ele aparece no alto da
montanha». Depois Daniel H. Wells leu a consagração. «Oh Deus», suplicava e’e a certa altura,
«fazei que esta casa se mantenha pura e santa para habitação do teu povo. Que nenhum mal nem
qualquer influência malévola penetre dentro destas paredes nem aqui tenha lugar a desordem, a
embriaguez, o deboche, a luxúria, seja de que espécie for; mais ainda, não a deixeis cair nas mãos
dos malvados ou dos não-mórmones, ’azei que, em vez disso, ela pereça e se desfaça em pó.»

Logo após, ouviu-se o hino «A bandeira estrelada» e a seguir o discurso principal proferido por
Brigham Young. ^ste afirmou ter sido piedosamente educado na crença de lue o teatro era um antro
de Satanás. Existiam ainda certos Crentes adeptos da teoria de que todo o divertimento cons!tuia um
pecado. No entanto, nada daquilo que Deus

127
criou podia ser pecado só a fragilidade do homem JM

conseguia transformar em coisa pecaminosa. Aquele teatnl

portanto, poderia ser um local de prazer, desde que »

mantivesse puro como um tabernáculo. JÊ

Durante a sua alocução, Brigham, desempenhando pJ

momentos o papel de crítico teatral, revelou os seus pontal

de vista acerca do assunto. Declarou terminantemente pnB

ferir a comédia à tragédia. «Se a minha vontade prevalecei»

afirmou, «nunca se representará neste palco uma tragédJM

A vida quotidiana é já por si bastante trágica e devemos vfl

aqui procurar apenas uma diversão.» Mais adiante, a fim qm

esclarecer bem este ponto de vista, acrescentou: «A traga

dia tem grande cotação no mundo exterior; quanto a miijH

não a merece. Não desejo ver o crime com todos os horrdj

rés que a ele conduzem retratado na presença das nossB

mulheres e filhos; não quero que nenhuma criança vá pail

casa com medo do azorrague, da espada, da pistola ou <$

punhal, e venha a ter pesadelos de noite. Prefiro que as pfl

ças aqui representadas tenham o condão de fazer com qd|

os espectadores se sintam bem...» Segundo informa AIM

Eliza Webb, Brigham declarou ainda à assistência: «N3B

permitirei que nenhum ”gentio” pise este palco... Quera

que seja um teatro dos ”Santos”, um teatro para os ”San|

tos” e unindo-nos veremos o que somos capazes de fazer»

No entanto, antes do fim daquele ano, tanto as tragédia

como os actores não-mórmones já tinham passado peljl


palco do novo teatro. i

Ao cabo de mais alguns discursos, subiu à cena uma pi

ca curta, O Orgulho do Mercador, de J. R. Planche. Find

a representação esvaziou-se o palco para ter lugar o baile aí

som de uma orquestra de vinte figuras dirigidas por ui

professor inglês. E a cerimónia terminou num ambiente d

alegria.

Dali a dois dias o Teatro de Salt Lake City era abert ao público sob a direcção do genro preferido de
Brighatt Hiram B. Clawson. Os lugares nas cadeiras de orquestii custavam setenta e cinco centimes,
tanto no terceiro baleia como nas galerias superiores. O pano subiu às sete horsa da noite. Entre 8 de
Março e 19 de Abril, representaram-SÍ duas peças de cada vez, durante quinze dias, sempre com jl
casa à cunha. Isto constituiu um êxito logo na primeirfl época e o teatro foi encerrado durante o
Verão e o Outonfl

128

para abrir novamente na véspera de Natal. Agora viam-se algumas caras novas no elenco da
Associação Dramática peseret. Uma das mais atraentes era a de Ann Eliza Webb, que então contava
dezoito anos.

Sentindo-se bastante confusa e um tanto nervosa, ela fez a sua estreia na noite de 25 de Dezembro
de 1862, numa peça anunciada no cartaz como sendo «uma farsa irlandesa que provocava o riso».
Intitulava-se O Rapaz de Paddy Miles ou Partidas Irlandesas. Nela entravam sete personagens e a
última que vinha no programa era «Jane Fidget... Miss Webb». Dois dias depois dessa estreia de
Natal, Ann Eliza voltou a representar, agora no papel de Caroline Leslie, Os Dois Polts. Quatro dias
depois subia mais uma vez à cena, encarnando a personagem juvenil de Blanche Howard, em O
Aniversário do Velho Phil.

O que mais intrigava Ann Eliza era não saber qual o objectivo de Brigham ao convidá-la para
representar. Imaginava que talvez o Profeta pretendesse ornamentar com a sua beleza o elenco do
teatro. Aos dezoito anos, Ann Eliza era uma beleza clássica, de cabelos escuros e muito esbelta. Ou
então, sentia-se tão atraído por ela que a desejava ter mais perto de si. Sabia, pelo menos, que não
fora a sua habilidade artística que o levara a convida-la. «Eu não possuía qualquer talento especial
nem gosto pelo teatro», confessava ela. «E não percebia patavina da arte de representar. Não tinha
tido qualquer experiência, mas entreguei-me por completo a essa tarefa, na ignorância total do que
estava a fazer. Desempenhava papéis de ingénua e, de vez em quando, para variar, encarnava uma
soubrette, mas sem grande

êxito.»

A acrescentar à sua actividade de actriz, verificara-se ainda outra mudança na vida de Ann Eliza.
Como tinha de estar presente no teatro à tarde, para ensaiar, e à noite, para representar, e em virtude
de a casa ficar bastante longe, Brigham foi de opinião de que essas viagens para cá e para lá se
tornavam «muito incómodas». Perguntou, portanto, à primeira Sr.1 Webb se não seria mais sensato
Ann Eliza ir viver com as filhas dele para a Casa do Leão, residência Principal do Profeta junto do
teatro, durante a época teatral. A mãe de Ann Eliza, lisonjeada com o convite, concordou em que a
rapariga passasse quatro dias por semana, a’em do domingo, na Casa do Leão, e nos outros viesse
ficar a casa.

129
A rapariga sujeitou-se, de má vontade, e mudou-se pai

o harém de três andares e vinte empenas construído pç

Brigham sete anos antes. Viviam ali, em aposentos separa

dos, doze das esposas de Brigham. Ann Eliza evitava en

contrá-las tanto quanto possível e acompanhava sobretud

com as filhas do Profeta, cuja idade se aproximava mais d

sua. Ann Eliza tinha muitas afinidades, pelo menos, côa

dez destas jovens, um grupo encantador e atraente, que fq

rã também agregado ao teatro como membros da compaj

nhia e representavam o coro (com os artelhos escândalos^

mente à vista por baixo das saias de tarlatana azul) nj

Sílfide da Montanha.. Uma delas, Alice Young, que veio j

casar com Hiram B. Clawson, e que então se tornara céleblj

pelos seus namoros, possuía talento suficiente para desemi

penhar os principais papéis. Apesar disso, tal como Anij

Eliza., fazia-o por dever. «Não gosto lá muito de represei?

tar», confessava ela a um visitante inglês. «Mas o meu pá

quer que eu e a minha irmã tomemos por vezes parte njj

peças, para não ter que pedir a qualquer sujeito pobre qú

deixe as filhas fazerem aquilo que ele não permite que a

suas façam.»

Se exceptuarmos a companhia destas robustas rapariga^ nada agradava a Ann Eliza na Casa do
Leão. Detestava : frugalidade, a austeridade e o alarde que ali se fazia da poll gamia. Não se sentia
seduzida pelo seu tamanho e esplen dor. Quando tocava a sineta para o almoço, as filhas d Brigham
tinham o costume de descer a cantar em torn ré belde: «Pão com manteiga e calda de pêssego!» Ann
Eh’z acompanhava-as sempre nesta cantiga de troça, porque í pão com manteiga e calda de pêssego
eram sempre mono tonamente servidos todos os dias, havia anos e anos. Am Eliza esperava sempre
com impaciência pelos três dias qui passava em casa, onde podia saborear a cozinha farta d mãe, a
que estava habituada, e fugir aos olhos penetrante do Profeta.
Pouco a pouco, durante os meses trabalhosos que se se guiram, a jovem passou a ligar cada vez
menos importâncií à Casa do Leão e a preocupar-se sempre mais com a arte d representar. O facto
de aparecer no enorme palco já Ihfl não causava qualquer abalo nervoso, pois ia adquirindo ex-«
periência, o talento revelava-se, habituara-se a recebei aplausos e a ser alvo de críticas favoráveis. \

130 4

No entanto, nunca tomou muito a sério esta habilidade. Nunca consideraria a sua actuação como um
«êxito completo», confessou ela. «Apesar disso», apressou-se a acrescentar, «eu era uma espécie de
favorita e ouvia comentários muito agradáveis, não só em Salt Lake City, como até em jornais da
Califórnia, escritos por algumas pessoas que me tinham visto representar. Não sei o que me impediu
de ser uma nulidade completa. A verdade é que não tive a mais leve preparação para aquela
actividade. Limitava-me a desempenhar o meu papel conforme me parecia e nunca recorri a
qualquer subterfúgio ou maneirismo. Se assim sucedesse, seria a minha condenação. Calculo que a
tendência que sempre tive para me conservar natural e o esforço contínuo que fazia para não
exagerar os papéis devem ter contribuído para a minha popularidade; todos gostavam de mim,
embora eu não fosse uma artista, e acho que não é orgulho dizê-lo... O público, para mim, era como
que um grupo de amigos, sentia-me sempre à vontade diante dele, e também grata pelo incentivo
que me dava.» Numa palavra, Ann Eliza não excedia os papéis, nem sequer os encarnava a valer:
limitava-se a desempenhá-los com simplicidade e realismo, e obtinha mais êxito junto do público
vulgar do que dos espectadores e críticos mais exigentes.

Durante todo o resto da estação de férias e depois, nos meses de Janeiro, Fevereiro e Março de
1863, a companhia limitou-se a levar à cena um repertório medíocre, tais como as peças Secret
Agent, That Blessed Baby, Damon and Pythias e The Good-for-Nothing. Ann Eliza apareceu em
várias destas peças, em papéis secundários de ingénua, mas representou também outros mais
importantes, como o de Mrs. Fitpalian em Simpson and Company e o de Emily Wilton, em The
Artful Dodge.

Durante toda a carreira teatral de Ann Eliza, e até nos anos seguintes, a personalidade de Brigham
Young dominou o Teatro de Salt Lake City, desde os bastidores até à orquestra. Era ele quem exigia
que Ann Eliza e os outros actores mórmones fornecessem os seus próprios guarda-roupas e
representassem sem receber qualquer retribuição. Mais tarde, a fim de atrair actores célebres de
fora, bem coroo vedetas de vaudeville e conferencistas ilustres, Brigham teve de aprender a agir
com mais justiça. Chegou mesmo a Pagar à sua própria companhia. Não consentia que entras-

131
sem no seu teatro nem álcool, nem cigarros, nem armas dç fogo, nem crianças. Uma das
originalidades daquele teatro era o facto de a importância dos bilhetes ser por vezes paga

r^ J f 61

em «géneros: trigo e artigos caseiros», .hm virtude de ai moedas de prata e oiro, bem como as notas,
serem raras em Salt Lake City, Brigham consentia que as pessoas entregasj sem géneros e gado na
bilheteira. Artemus Ward relata, taljj vez com ironia, que recebeu, pela sua actuação numa soa
noite, a seguinte remuneração: «Vinte alqueires de milhall cinco de trigo, quatro de batatas... dois
presuntos, um pon| co vivo, uma pele de lobo, cinco libras de mel em favoáB dezasseis cordões de
salsichas... um jogo de roupa intericJ| bordada, para criança.» Diz-se que um entusiasta pelo teajl tro
pagou uma vez pela sua cadeira de orquestra um periwM recebendo de troco dois frangainhos. -JÊ

A mão firme de Brigham dirigia também as peças e o|K actores que nelas entravam. Claro que ele
próprio possudM o seu passado histriónico: noutros tempos, em Nauvoo, re|H presentara o papel de
sumo sacerdote numa peça chamadjH Pizarro; na Casa dos Votos era ele quem encarnava a pefjjH
sonagem principal no drama da Criação; além disso, todaJH as semanas dava largas, no púlpito, a
uma gama completl» de habilidades dramáticas. |H

Brigham continuava a mostrar-se hostil à tragédia e adi melodrama. Nem mesmo Charles Dickens
lhe escapavaM Em 1869 subiu à cena Oliver Twist, com James A. HernejB um dos principais
actores do grupo de Fagin, no papel dJH Bill Sikes, e Lucile Western no de Nancy, uma rapariga d3|
B ruas. Numa das cenas culminantes passadas nos bastidoresjjM Sikes, ao saber que Nancy o
denunciara, espanca-a crueíJM mente e esta aparece no palco, exausta e a sangrar, acabawH do por
morrer junto à ribalta. Na noite da estreia, a fim dlB tornar a cena mais realista, Lucile Western, no
papel defl Nancy, colou um bocado de carne crua na testa, para simu-J lar a pele rasgada até ao
osso, esborratou a cara com tintáM vermelha e desgrenhou os cabelos. Quando ela entrou riosM
palco aos tropeções, a reacção foi imediata. Vinha tão «iroiB pressionada», refere John Lindsay,
que assistiu ao especta’H culo, «que algumas mulheres na assistência desmaiaram». B Brigham
ficou indignado. Exigiu que Oliver Twist fosse B imediatamente retirado de cena, e assim se fez. fl

Os romances sentimentais relacionados com a monoga- fl


132

mia também eram vistos com maus olhos, não só por Brigham como também por outros praticantes
da poligamia. Refere Artemus Wald: «Conforme se sabe, Cecil Melnotte, na peça The Lady of
Lions, ao regressar da guerra, aperta Pauline contra o peito e declama várias frases de carácter
apaixonado e lamechas. Certa noite, quando se representava aquela peça, um velho mórmon
levantou-se do seu lugar e saiu da sala acompanhado pelas suas vinte e quatro esposas, declarando
furioso que não estava disposto a ver uma obra em que um homem fazia tamanho escarcéu só por
cattw de uma única mulherl»

A nudez pública nas danças ou peças musicais e isto significava a exposição de qualquer pedaço de
carne entre os tornozelos e os joelhos era também alvo de censuras severas da parte de Brigham
Young. Certo dia em que um ballet autêntico veio a Salt Lake City, as bailarinas preparavam-se
para aparecer em cena com o traje francês habitual, isto é, saias de balão abaixo do joelho,
chamadas tutus. O gerente, muito atrapalhado, consultou Brigham, e este proibiu que o ballet se
exibisse, a não ser que as dançarinas envergassem saias até aos pés. A sensibilidade estética de
Clawson sentiu-se revoltada por tamanho puritanismo e defendeu energicamente as saias curtas,
sendo por isso severamente chamado à ordem. O tão discutido ballet apareceu pois em cena como
lhe fora ordenado, com as saias quase a varrer o chão. Brigham, que assistia de perto, manifestou o
seu agrado. Mas, depois de ter visto o espectáculo a primeira vez, não voltou ao teatro. Clawson
passou imediatamente a combater a censura; antes de o corpo de baile subir à cena na noite
seguinte, muniu-se de uma tesoura e cortou uns dez centímetros às saias. Dali em diante passou a
cortar todas as noites mais dez centímetros a cada saia, de forma que na sexta e última noite as
bailarinas apareceram a dançar e a fazer piruetas com as coxas e as nádegas bem à vista e as pernas
totalmente livres de indumentária. A assistência mostrou-se tão encantada como se estivesse em
Pans. Só depois de a companhia se encontrar a salvo a caminho do Leste é que a notícia chegou aos
ouvidos de Brigham, tendo-se passado muito tempo antes que Clawson, votado às feras, pudesse ali
aparecer de novo.

O interesse de Brigham pela moralidade dos actores não ”cava aquém do que votava à das próprias
peças. Os confli-

133
tos eram constantes entre ele e George Paucefort, brilhanc

actor inglês e chefe de companhia, que obtivera um êxit^

louco no papel de Armand Duval em Camille, na Broad

way, e entusiasmara Salt Lake City nas suas interpretaçõá

de Hamlet e Macbeth. No dia em que certo actor chamadl

David Mackenzie fez o papel de Pai Tomás, em A Cabana

do Pai Tomas, sem a pronúncia dos negros, conforna

Pauncefort lhe ordenara, Brigham revogou imediatamente i

ordem e exigiu que ele retomasse o sotaque. O Profea

continuava a tolerar Pauncefort em virtude do seu talentaj

mas somente até vir a ter conhecimento do estilo de vidl

«pouco decente» do actor, segundo relata um historiado!

mórmon. Parece que Paucefort e a estrela da companhia, i

Sr.a Florence Bell, que viera com ele de Denver, mantj

nham, fora da cena, certas relações que nada tinham de piai

tónicas. Como Pauncefort estava ligado ao teatro por ura

contrato, Brigham não podia despedi-lo. Por outro ladol

não queria transigir com um casal que vivia em pecado. EtJj

tão, sempre que o actor inglês representava, Brigham recul

sava-se a assistir ao espectáculo ou a permitir que lá pusesJl

os pés qualquer das suas esposas, filhos ou associadofflj

E, assim que lhe foi possível, despediu Paucefort. fl

Mas este apresentou, mais tarde, razões bem diferentaj

para explicar a má vontade do Profecia. J. Cannon, filho dm

George Q. Cannon, andava em viagem pelo Japão quandw

um dia descobriu com espanto uma casinha de chá no al£wl


de uma colina. A casa de chá ostentava uma tabuletas

«A taberna de Shakespeare, de George Paucefort». Lá derrtl

tro deparou com o actor, de setenta anos, na companhia dM

uma mulher japonesa e de um exemplar de The Deserem

News. O actor recordava-se bem da sua questão com Brigill

ham Young, mas apresentava uma nova versão. «Eu estava!

tendo um êxito louco com a minha arte em Salt Lake Cityaj

mas cometi dois erros gravíssimos. Um deles foi dançar de-J

masiadas vezes com Amélia Folsom, esposa favorita dtijl

Brigham; depois apaixonei-me por uma das suas filhas...»!

Nem mesmo a minha arte, que Brigham tanto apreciava»!!

era suficientemente sagrada aos seus olhos para me permitir!

a entrada na família.» I

Brigham exercia um domínio mais eficaz sobre os acto- i

rés mórmones. Certo dia, ao ouvir uma jovem recém- l

-convertida, Sara Alexander, ler uma carta para uma amiga J

134

que se encontrava ausente, Brigham ordenou-lhe que encetasse a carreira teatral. Como descobridor
de talentos, Brigham era inexcedível, pois Sara Alexander veio a ser a melhor actriz mórmon. A sua
fama estendia-se da Califórnia até Nova Iorque, e quando morreu, já muito velha, em
1926, ainda costumava aparecer em filmes cinematográficos em companhia de Norma Talmadge e
de William Farnum. No entanto, durante a mocidade, na época em que era ainda pupila e protegida
de Brigham Young, a sua vida romântica estava à mercê dos caprichos do Profeta. Quando um actor
não-mórmon que visitou Salt Lake City se apaixonou doidamente por ela e se declarou, a jovem
aconselhou-o a revelar as suas intenções a Brigham Young. O rapaz assim fez. O Profeta, porém,
tinha outras ideias. «Jovem», disse ele, «já o vi representar Ricardo In e Júlio César com relativo
êxito, mas aconselho-o a não aspirar a Alexandre!»

Diz-se que o interesse manifestado por Brigham em relação às jovens actrizes como no caso de
Ann Eliza Webb não era apenas de carácter paternal. Certa ocasião, segundo relata o Dr. Wilhelm
Wyle, investigador alemão, Heber C. Kimball reuniu a família à sua volta no intuito de rezar por
Brigham Young. Mas de repente exclamou: «Não sou capaz de rezar por esse homem, embora ele
muito precise de orações. Pois quanto mais desavergonhadas são as mulheres mais o irmão Brigham
as persegue.» Esta história, de origem antimórmon, é sem dúvida apócrifa, no entanto parece ser um
facto provado ele ter tido relações amorosas e públicas com uma actriz. Tratava-se da muito célebre
Julia Dean Hayne, mulher de beleza estonteante. Brigham, no dizer de Ann Eliza, «esteve
loucamente apaixonado por ela».

Julia Dean nascera em Pleasant Valley, Nova Iorque, no ano de 1830. Era uma menina-prodígio e
seguiu a carreira teatral. Aos dezasseis anos, quando surgiu no palco do Old Bowery Theater, em
Manhattan, obteve grande êxito no Papel de Esmeralda, na peça O Corcunda de Notre Dame. O seu
encanto tímido atraiu Joseph Jefferson, jovem actor de grande futuro, mais velho do que ela apenas
um ano, e que ainda se não celebrizara então com a sua interpretação de Rip van Winkle. A actriz
foi sua amante durante um curto período. Mais tarde, aos vinte e cinco anos, conheceu
0 Dr. Hayne, em Charleston, e casou-se com ele. Porém,

135
Julia Dean Hayne não fora feita para o matrimónio. Sem

pré irrequieta, prosseguiu o seu caminho. Em 1864 embat

cou num barco à vela com destino ao Panamá, atravessou i

istmo a cavalo e terminou a jornada de novo por mar, ad

São Francisco. Aí, tendo-se divorciado do Dr. Hayne, ert

controu por acaso um amigo que conhecera no Leste, Johij

S. Potter, gerente teatral de setenta anos, que andava entãí

a formar uma companhia, a fim de realizar uma digressa^

pelos territórios do Oeste. Julia Dean Hayne entrou para t

companhia de Potter na qualidade de estrela e representoij

em toda a Califórnia, depois no Idaho, no Oregon e ens

Montana. Em toda a parte onde paravam ouviam historiai

fantásticas acerca do moderno e fabuloso Teatro de Salt Lai

ke City. Resolvidos a tentar aí a sua sorte, os comediante!

partiram de Montana numa diligência, com destino %á

Utah. A 26 de Julho de 1865, Julia Dean Hayne, então coira

trinta e cinco anos, avistou pela primeira vez a capital doa

mórmones. J

Potter conseguiu imediatamente obter um contrato de

uma semana. A 11 de Agosto de 1865, perante uma casa

cunha, Julia Dean Hayne estreava-se no papel de Camilli

Gauthier, na peça de Alexandre Dumas, Camille. O seu deJ

sempenho foi tão sensacional que o próprio Brighanl

Young comandou a apoteótica ovação que se lhe seguiujj

Esse contrato de uma semana foi prorrogado e só ao fim da

onze meses os mórmones deixaram partir a artista. À deJI


pedida, Brigham, afastando-se de Potter, convenceu a actri»

a abandonar a companhia e a ficar sozinha a representara

juntamente com o elenco mórmon, que recebia um saláridl

mínimo. Visto que Brigham Young lhe ofereceu trezentos!

dólares de ordenado, uma soma fabulosa para aqueles tem«|

pôs, Julia Dean Hayne não teve remédio senão aceitar»’!

Furioso por se ver abandonado, Potter prometeu a swj

próprio que havia de dar uma ensinadela ao Profeta, benfi

como à sua antiga estrela. com sete mil dólares que pediu]!

emprestados, construiu em trinta dias um novo teatro, da

Academia de Música. A construção era tão frágil que as P^jl

redes finas foram cheias com serradura. A peça de estreia/!

Damon and Pythias, representou-se perante uma plateiaji

quase deserta. Tudo conspirava contra Potter: a peça, <IueJ

já ali fora levada à cena demasiadas vezes, a má vontade do ’i

Profeta, uma estrela rival que se tornara o ídolo de todo o m

136

território. Por fim, os credores caíram-lhe em cima e Potter abriu falência. Brigham adquiriu a casa
por preço diminuto, deitou-a abaixo e empregou as madeiras para fazer vedações nas suas quintas.
Potter foi-se embora, vencido em toda a linha.

Julia Dean Hayne passou a constituir uma atracção maior do que nunca. Depois de Camille
Gauthier, representou Peg Woffington, Lucrécia Bórgia e Medeia. Chegou mesmo a ter ensejo de
representar duas peças simultaneamente sendo uma delas Aladino ou a Lâmpada Maravilhosa.
Pelos vistos, todos queriam escrever para ela. O editor do Herald, de Salt Lake City, Edward L.
Sloan, escreveu em sua honra uma peça índia, chamada Osceola, na qual a artista encarnava o papel
da filha de um chefe guerreiro. O historiador mórmon Edward W. Tullidge dedicou-lhe a obra
Eleanor De Vere, na qual Julia representava o papel de camareira da rainha Isabel. Mais tarde,
encarregou Tullidge de criar a peça Elizabeth of England. Esta obra parecia excelente, e Julia
Hayne projectava representá-la em Nova Iorque. Tullidge estava disposto a arriscar tudo. Por
infelicidade, a actriz chegou a Nova Iorque na altura em que a famosa comediante italiana Lady
Ristori acabava de estrear a peça Elizabeth, de Giacometti. Ristori teve um êxito estrondoso. Julia
Dean resolveu não levar à cena a sua peça, e Tullidge, segundo se diz, perdeu o juízo e teve de ser
internado num hospital.

Ao mesmo tempo que Julia Dean conquistava os aplausos dos amadores de teatro mórmones,
apossava-se também do coração de Brigham Young. «Não faltaram comentários», recorda John S.
Lindsay, em 1905, «e causou grande surpresa e espanto em certos meios o facto de o Profeta Young
se dignar fazer mais caso de uma actriz do que nunca fizera de qualquer das suas esposas.»

Isto parece significar que Brignam, aos sessenta e quatro anos, teve relações profundamente
românticas com Julia Dean Hayne. Mandou construir para os desportos de Inverno um enorme
trenó que ostentava num dos lados, pintado em grandes letras, o nome «Julia Dean». Este trenó,
ornado com duas cabeças de cisne e puxado por seis cavalos, poderia transportar duas ou três dúzias
de adultos. Por duas vezes o Profeta organizou grandes festas na sua próPna casa, «The Farm
House», quatro milhas distante da cidade, em honra da actriz, que foi para lá conduzida no trenó.

137
Diz-se que Brigham tentou converter Julia à fé mórmoql e que até lhe propôs casamento. Ela,
porém, não desejava ^H sua tutela, nem como Profeta nem como marido poligâmi» co. De resto,
apaixonara-se já por um sujeito não-mórmoriH Tratava-se de James G. Cooper, aristocrata do Sul,
alto |H extremamente bem-parecido, que fora nomeado secretári<|M do território do Utah. Grande
frequentador do teatroM Cooper fora seduzido pela actriz durante os oitenta e cincqM espectáculos
em que ela apareceu no Teatro de Salt Lakdl City. Quando descobriu que a residência dela ficava
parelM des-meias com o seu gabinete, resolveu dirigir-se-lhe. Pelcnl vistos, o amor foi recíproco.
Após um breve namoro, casa» ram no ano de 1866 e mudaram-se para o Leste. |B

Na noite de 4 de Julho de 1866, depois de haver reprelB

sentado The Pope of Rome, na presença de Brigham e d«|

uma casa à cunha, Julia Dean Hayne avançou para a frentijM

do pano e proferiu um comovente discurso: ;]

«Minhas senhoras e meus senhores. Raramente permitcH

que a mulher se sobreponha em mim própria à actriz oiJB

i f i i - jm

que um sentimento pessoal interfira nas minhas relaçoeiB

com o público. No entanto, talvez agora, à despedida, m«« desculpem ao vir falar-vos da minha
eterna gratidão. Se du|» rante a minha estada entre vós alguns escolhos encontrei nojl meu caminho,
também por outro lado fui alvo das maiores» amabilidades. As setas da malícia caíram sem me
atingir frj as palavras malévolas dos corações falsos perderam-se noa ar. E talvez que, neste
momento dedicado à gratidão, eui deva também agradecer à maldade que me granjeou tantos!
amigos. Tudo isto, podem crer, ficará gravado tão profun-1 damente na minha recordação que não
mais será destruído | por qualquer outro sentimento. l

«Ao presidente Young, que tantas bondades dispensou j a uma estranha, só e desprotegida,
apresento os meus agra-1 decimentos mais sinceros; e creio que ele me permitirá, em i nome da
minha arte, exprimir todo o apreço que me merecem a ordem e a elevação com que dirige esta casa.

«Quem me dera ver imperar a mesma dignidade em todos os templos do ensino dramático. Nessa
altura teríamos um grande objectivo e eles seriam na verdade uma escola.

Onde a alma acorda, para os grandes impulsos da arte, O génio se eleva e o coração se aperfeiçoa,.

138

«Mas estou a falar de mais e permitam-me que me detenha para a última despedida:

Essa. palavra que no passado e no futuro Fica. sempre connosco: Adens!»

A vida de Julia Dean Hayne no Leste, na companhia do segundo marido, viria a ser tragicamente
breve. Voltou aos palcos de Nova Iorque, para representar Lucrécia Bórgia e The Woman in White,
actuando pela última vez, grávida, aos trinta e sete anos, durante o mês de Outubro de 1867. A 19
de Maio morria ao dar à luz uma filha que nasceria morta. Foi enterrada em Port Jervis, Nova
Iorque.

No longínquo território do Utah, Brigham Young chorou a sua morte. «Nunca se esqueceu dela»,
escreveu Ann Eliza Webb, «e ouvi dizer a pessoas autorizadas, embora eu o não possa garantir
como certo, que depois de ela morrer mandou baptizar uma das suas esposas com o nome da actriz
e depois uniu-se a ela pelo matrimónio espiritual, julgando assim vir a possuí-la no outro mundo, já
que neste

nada obtivera.»

Isto que Ann Eliza refere era de facto exacto. Uma vez que o princípio do casamento celeste
permitia que um polígamo tomasse como esposa uma mulher morta que se iria juntar à família para
toda a eternidade, Brigham decidiu que havia de possuir Julia Dean Hayne ao menos desta maneira.
Alguns anais já esquecidos da igreja referem que, POUCO depois da morte da actriz, Brigham
conduziu a sua vigésima quinta esposa à Casa dos Votos e fê-la aí representar a querida artista.
Mandou baptizar Julia Dean Hayne na pessoa de Amélia Folsom e a seguir uniu-se a ela para toda a
eternidade segundo o rito do casamento da Igreja Mórm°n. James G. Cooper pode ter ganho a
última batalha, P°rem Brigham ficou convencido de que, de certo modo, tora ele quem ganhara a
guerra.

Contudo, seis anos antes, quem representava o centro

e todas as atenções de Brigham Young era uma actriz

muito menos experiente, a jovem Ann Eliza Webb, de de-

zoito anos apenas. Embora não tivesse feito qualquer pro-

P°sta à sua protegida, quer dentro do teatro quer na Casa

° Leão, durante todo o Inverno de 1862, continuou a reve-

139
lar-se o seu mais dedicado admirador. Levava-a muitas ^H

zes para o teatro, a ela e às outras actrizes, na sua Pr°PiH

carruagem. Ann Eliza tinha permissão para entrar no edijH

cio através de uma porta particular reservada a BrighaH

Young, às suas esposas e aos filhos. ,^l

Quando o pano se preparava para subir antes de utH

nova peça, era raro que ele se não encontrasse preseoj^B

«Brigham sentava-se habitualmente a meio da plateia, nuijB

cadeira de baloiço e de chapéu na cabeça», observa AriH

mus Ward. «Não acompanha as esposas ao teatro, estas VJH

sozinhas. Quando a peça se arrasta, ele costuma cair nuaH

tranquila sonolência ou então vai-se embora.» Arteríjj^B

Ward não era totalmente exacto nas suas afirmações, Brij^B

ham permitia frequentemente que as esposas o acomaH

nhassem ao teatro e raras vezes saía a meio ou se deixaJM

adormecer. Segundo nos informa uma das suas filhas, CÍH

rissa Young Spencer, a família tinha sempre reservada pa(|l

das cadeiras da orquestra. As filhas sentavam-se numa fuH

os filhos noutra e a maior parte das esposas ao centijjM

«O pai tinha ainda um camarote reservado na parte oeifl

do teatro», afirma a Sr.a Spencer, «e eu acompanhei-o nnj

tas vezes e assisti ao espectáculo a seu lado. Nos interva^B

levava-me pela mão até uma pequena varanda que parqB

das traseiras do camarote e ali se deixava ficar, a observjH

tudo sem ser visto». Habitualmente, algumas esposas e B

lhos acompanhavam-no a este camarote e a atmosfera M


era a de piquenique caseiro. Mais de uma vez houve quefl

visse qualquer das favoritas de Brigham a descascar unfl

maçã durante a representação. m

Ann Eliza retirou-se do palco em Abril de 1864. Dai

rante a sua permanência em Salt Lake City, mais nove an£9

ao todo, ia de quando em quando ao teatro, mas só P3^

assistir. Nesse tempo, as conferências humorísticas <*i

Artemus Ward, Mark Twain, Josh Billings, Petroleum «

Nasby eram tão apreciadas como as peças estrangeiras

Uma das maiores atracções destas conferências era Artenuw

Ward, um homem estranho, severo e tuberculoso. J

Quando Artemus Ward chegou a Salt Lake City, depo^j

de uma viagem pela Califórnia, vinha já marcado pela celftl

bridade. O mais ardente dos seus admiradores era o habtf

tante da Casa Branca, Abraão Lincoln, que não levava^ í

mal a sua ironia. Em 1862, o presidente abrira uma sessaq

140 :

solene destinada a discutir a Proclamação da Emancipação, lendo em voz alta um capítulo do último
livro cómico de Artemus Ward. Todos riram à gargalhada, excepto o secretário de Estado Steward,
que não achou graça alguma. Noutra ocasião, a seguir à sangrenta batalha de Fredericksburg, um
membro do Congresso, Isaac N. Arnold, convidou o presidente a discutir a situação militar. Este,
em vez disso, preferiu ler-lhe outro trecho de uma obra de Artemus Ward. Arnold mostrou-se
escandalizado: «Senhor Presidente! Será possível que, no momento em que todo o país se encontra
acabrunhado e coberto de luto por causa do revés que ontem sofremos, o senhor consiga entregar-se
a tais {utilidades?» Lincoln poisou o livro de Ward e exclamou: «Sr. Arnold, se eu não fosse capaz
de me alhear por uns momentos do pesado fardo que pesa constantemente sobre mim, o meu
coração já tinha estoirado!»

Artemus Ward tinha trinta anos quando chegou ao Utah. Nascera perto de Waterford, no Maine, e o
seu verdadeiro nome era Charles Farrar Brown. Deixara de estudar por morte do pai, em 1846,
contava então doze anos, e começara a trabalhar numa tipografia da Nova Inglaterra. Veio mais
tarde a ganhar quatro dólares por semana como tipógrafo em Tiffin, no Ohio, e dedicou-se nessa
altura à publicação de alguns artigos humorísticos. Os seus trabalhos foram notados pelo jornal de
Cleveland, Plain Dealer, que o contratou por doze dólares por semana na qualidade de repórter e
jornalista de actualidades. Criou então uma rubrica de comentários irónicos, sob o pseudónimo de
Artemus Ward. O seu humor revelava-se muitas vezes pouco agressivo. Quando um jornalista seu
rival, fisicamente pouco favorecido, lhe dirigia qualquer alfinetada, Ward respon<ha, fazendo em
público a descrição do seu inimigo: «Este homem é dos mais bem-parecidos da América...
Ofereceram-lhe um belo ordenado para servir de espantalho aos pássaros num trigal. Vê-se
obrigado a ausentar-se três vezes Durante a noite a fim de repousar as feições.»

Artemus Ward tornou-se realmente célebre a partir da

a’tura em que, utilizando palavras mal escritas, inventou

^a espécie de dialecto, em que os termos eram emprega-

°s com um segundo sentido. Muito embora nunca tivesse

^°nhecido Brigham Young, já lera coisas a seu respeito,

ern como acerca do casamento poligâmico, e escrevera

141
mais ou menos o seguinte: «Numa cumbersa pribada cuH Brigham, bim a saber o que bão ber: leba
seis meses pjl beijar todas as isposas. E isso acuntece uma bez por aiiH cumo quem faz a limpeza à
casa. Diz que num conhece tyH dos os seus filhos, porque tem uma cambada deles. E o^l que todas
as crienças que incontra lhe chamam paizinhdH intão ele faz cacredita. Diz cãs mulheres lê ficam
munto <JH rãs. Andam sempra pedir-le bestidos e se num compra pjl todas elas, fazem um
chiqueiro. Diz mais que não lê ojB um momento de descanso. Parece candam sempre às bulhjM
umas cãs outras por isso até mandou fazer uma sala própnH só pra elas se esgadanharem.» |H

Depois de ganhar fama, aceitou um lugar na revista VM nity Fair, de Nova Iorque, publicando
então o primeiro j|H vro de uma série de cinco (do qual vendeu logo quareiuB mil exemplares), e
por fim, em 1861, tornou-se conferenqjM ta teatral. Melville D. Landon descreve-o nesse períod<H
«É um homem alto e magro. Tem um nariz proeminente|H as faces coradas; bigodes compridos e
uma voz clara e suqH vê... Durante as conferências, nunca sorri, nem mesnsM quando profere as
coisas mais absurdas; as frases humoriH ticas caem-lhe dos lábios como se não lhes
compreendesjjM o significado. Pelo contrário, enquanto escreve as sua palejjM trás, ri
constantemente e funga sozinho.» 1M

Antes de proferir a conferência que vinha fazer ao Ts|M tro de Salt Lake City, Ward foi convidado a
visitar BrijM ham Young. Em companhia de Clawson, o humorista diflH giu-se para a entrevista
com certo nervosismo. Dar-se-ia|M caso de o Profeta se recordar ainda da carta-aberta que p*fl
blicara acerca da «cumbersa pribada cum Brigham»? P°rélB a entrevista decorreu calmamente, e
Ward recordava ma«H tarde: «Quando me despedi do Profeta, este apertou-n» cordialmente a mão
e convidou-me a voltar. Senti-me lisoiw jeado, pois quando ele antipatiza com alguém à primei
vista nunca mais o quer ver. Não fez qualquer alusão à calí ta que eu escrevera a respeito da sua
comunidade. Lá for^| passeavam guardas de um lado para o outro, em frente doa portões, mas todos
me sorriam com simpatia. A varanda estava cheia de mineiros não-mórmones e pareceram sur^j
preendidos de não me verem sair com os pés para a frente Cj o pescoço cortado de uma orelha à
outra.» $

Como reclamo à sua conferência e para troçar um pou-i

142

co da poligamia, Artemus Ward mandou imprimir convites especiais, os quais rezavam assim: «O
portador deste convite pode fazer-se acompanhar apenas de uma esposa. com os agradecimentos de
A. Ward.» Na noite da conferência, o teatro encontrava-se repleto de mórmones. A orquestra tocou
uma abertura; o pano subiu e apareceu um salão. Ward descreve as suas impressões ao ver-se em
face de toda a cidade de Salt Lake de nariz no ar. A conferência intitulava-se «Meninos do
Bosque». Ao que parece, Ward ficou satisfeito com o acolhimento que lhe dispensaram. «Nunca fui
escutado com mais atenção e agrado do que ali», escreveu ele. Quatro anos depois, quando J. H.
Beadle foi a Salt Lake City para publicar um pequeno jornal, a conferência ainda era tema de
conversas. Beadle teve a sensação de que o êxito não fora tão grande como Ward imaginara.
«Alguns cidadãos ali residentes há muito informaram-me que a palestra de Artemus Ward em Salt
Lake City fora um autêntico falhanço do ponto de vista profissional», escreveu Beadle, «pela
simples razão de que estava demasiado bem escrita para aquele público. Algumas pessoas riam-se
com as graças mais evidentes, mas durante uma hora completa, enquanto o orador dava o melhor de
si próprio para os fazer rir, os ouvintes olhavam-no como boi para palácio, sem esboçarem sequer
um leve sorriso. É um milagre que isto não tenha causado a morte a um escritor tão sensível.»

I Na realidade, Artemus Ward tirou extraordinário proveito desta visita ao Utah. «Os mórmones
têm uma religião singular e mulheres no plural», costumava ele afirmar. A poligamia mórmon
fascinara-o de um modo particular. «Já disse algures», escreve Ward, «que Brigham goza da fania
de ter oitenta mulheres e afirma no seu livro que ele dorme sempre sozinho num pequeno quarto
que tem por detrás do seu gabinete. Se é certo que possui oitenta mulheres, não o censuro. Deve
sentir-se muito atrapalhado. Cá Por rrum, sei bem que, se tivesse oitenta mulheres só minnas, ficaria
tão confundido que não dormiria em parte alguma. Tentei uma vez contar as meias que elas tinham
pos-
0 a secar numa corda no pátio das traseiras. Em menos de meia hora, já esgotara a tabuada de
multiplicar.» Por fim, Aspirado na sua aventura em Salt Lake City, Ward escreeu a conferência
mais lucrativa: «Uma visita aos mórmoes>>- Esta palestra, de torn irónico e muitíssimo cómico,
143
era proferida contra um fundo de projecções luminosas í chamava-se «O Panorama de Artemus
Ward.» J

Em 1866, Ward apresentou em Londres esta palest ilustrada, no Egyptian Hall, causando sensação
com aqui mistura de realidade e fantasia. Quando surgia no ecrã a f tografia da Casa do Leão, Ward
descrevia-a com pormea rés, e acrescentava: «Brigham Young possui duzentas esp sãs. Imaginem
só! Peco-vos o favor de pensar no que isi representa! Quero dizer, ele tem oitenta mulheres de cari e
osso e está espiritualmente com mais cento e vinte. Es^ casamentos espirituais, como lhes chamam
os mórmonj são contraídos com mulheres idosas e viúvas que consid ram uma grande honra
unirem-se os mórmones chama a isso unirem-se ao Profeta. ,

«Podemos afirmar, portanto, que tem duzentas esppsí Ele não é mode/ado no amor, ama duzentas
vezes mais ( que os outros. É um homem horrivelmente casado. É o hi mem mais casado que eu
conheço.

«Quando lá estive, conheci a sogra dele. Isto é, não j ao certo quantas tem, mas sei que são muitas.
A coisa ir pressiona-me, pois reconheço que uma sogra é mais do qi suficiente numa família a não
ser que um sujeito gos de complicações.

«Poucos dias antes da minha chegada ao Utah, soul que Brigham se casara de novo com uma jovem
de fac bonita [provavelmente tratar-se-ia de Mary van Cott, esp sã número vinte e seis], mas ele diz
que agora fica por a Confessou-me em segredo que não voltará a casar-se. D clara que quer viver
em paz o resto dos seus dias e dese ter a família à sua volta quando morrer tranquilamente. I só está
muito certo, sim senhor, mas suponhamos que e tem a família toda à sua volta quando morrer!
Nesse cãs tem de sair de casa para poder morrer tranquilamente.

«A propósito, Shakespeare admite a poligamia. Foi e quem escreveu a peça As Alegres Esposas de
Winásoi Quantas esposas teria esse tal Sr. Windsor? Mas deixemí isso.»

Durante a sétima semana em que actuou no Egyptií Hall, Artemus Ward, minado pela tuberculose,
caiu graví

1 A tradução adoptada em português da referida peça é As Aleg Comadres de Windsor. (N. da T.)

144

mente enfermo. Morreu no dia 6 de Março de 1867, aos trinta e dois anos.

Embora outros nomes famosos seguissem as pegadas de Ward no Teatro de Salt Lake City, nunca
nenhum deles foi acolhido com o mesmo carinho e admiração que despertara o esgalgado
humorista. Actuaram no teatro de Brigham um violinista norueguês, especialista em Paganini,
chamado Ole B. Buli, que cobrou quinhentos dólares por um concerto; Thomas Nast, desenhista no
Harper’s Bazar, que arruinara William Marcy «Boss» Tweed, o qual ilustrou a sua conferência com
desenhos a carvão; Sir Henry M. Stanley, que descobrira Livingstone no coração de África, o qual
veio a falar acerca das tribos dos pigmeus; George Francis Train, o milionário excêntrico, cuja
viagem à volta do mundo inspirara a figura de Júlio Verne, Phileas Fogg, que veio elogiar os
mórmones e o seu chefe (este, enquanto escutava a conferência, verificou que três dos candeeiros de
petróleo da ribalta se tinham incendiado; então saltou calmamente para o palco e apagou-os com os
pés); Phineas T. Barnum, que ganhara quatro milhões de dólares a exibir fenómenos, tais como
Jenny Lind e os autênticos gémeos siameses, o qual falou acerca dos caminhos da fortuna (referindo
depois com prazer que se encontravam na assistência «uma dúzia de esposas de Brigham Young e
umas dezenas de filhos deste»); e o general torn Thumb, um anão com pouco mais de um metro de
altura, que soubera conquistar o coração da rainha Victoria e que imitava Napoleão (mais tarde
afirmaria, falando com o Profeta: «Posso compreender tudo menos a vossa poligamia.» Ao que este
respondeu, batendo na cabeça do anão: «Sim, sim, eu sei; só poderá compreendê-la quando for do
meu tamanho.»)

com o correr dos anos, as celebridades continuaram a desfilar pelo palco do teatro de Brigham:
Maud Adams, fazendo a sua estreia; Buffalo Bill, a representar The Knight °f the Plains; Edwin
Booth, no Hamlet; Susan B. Anthony> a defender o voto feminino (direito este que já fora
concedido às mulheres mórmones); Henry Ward Beecher, a Pregar um sermão, e John L. Sullivan,
tentando aos tropeções desempenhar um papel em Honest Hearts and Willing Hands. Quase todos
os principais artistas do século xix Passaram pelo Teatro de Salt Lake City: Joseph Jefferson, Tony
Pastor, Oscar Wilde, Madame Modjeska, Sarah Bern-

145
hardt, James O’Neil, Lillian Russell aos quais se segi

ram, no século xx, John Barrymore, George Arliss, Ed<

Foy, Harry Lauder, Al Jonhson, Jane Cowl. Por fim,

cabo de sessenta e seis anos de vida, o teatro de Brigiy

Young foi deitado abaixo para dar lugar a uma bomba i

gasolina. \

Comparada com tão deslumbrante chuva de estrelas,]

breve carreira teatral de Ann Eliza Webb, no Teatro de Sj

Lake City, mal deixou vestígios na história da cena. No es

tanto, o seu afastamento do palco, em Abril de 1864, ns

teve como motivo o desinteresse do público, mas sim a {à

ta de tempo para dedicar à sua vida privada, pois nessa i

tura encontrava-se ela noiva e profundamente apaixonai

por um homem. i

Uma noite, estando o teatro fechado, Ann Eliza assisl

rã a uma festa em casa de certos amigos. Foi aí que viu pá

primeira vez James Leech Dee, um jovem inglês, mórmoni

solteiro, que viera de Hanley, no Stafford. Estucador |

profissão e actor por vocação, James Dee era extremameffl

simpático, muito alto e senhor de um fascínio que atraía!

mulheres, isto tudo aliado a um profundo conhecimento Q

Shakespeare. Ann Eliza, que então contava dezoito anel

apaixona-se à primeira vista. E como ele era muito dispuoj

do entre as raparigas, relata Ann Eliza, as atenções que cB

dicou só a ela tornavam-se duplamente lisonjeiras. f

«Este encontro de acaso em breve degenerou em amizl


de», conta Ann Eliza, «e depois num tipo de relações rnJj

íntimas. Toda a minha vida ficou iluminada por aquele na

vo e doce entusiasmo que me submergia como uma torrai

te. Tudo se me afigurava novidade e as coisas mais comezl

nhãs adquiriam um interesse estranho e desconhecida

Nada me parecia natural. Toda a minha vida adquirira noj

vás dimensões à luz desta experiência. As pessoas vulgaraj

revestiam-se de interesse, os factos triviais fascinavam-ma

O mundo inteiro tomava os tons rosados do meu romanCflj

Era feliz.» i

Havia, no entanto, outras jovens, pertencentes ao círcui

Io das amigas de Ann Eliza, que não viam com bons olhoi

aquele casamento. Conheciam melhor Dee e manifestava»

a sua desaprovação. «Adivinhavam que ele não era de mil

neira alguma o homem que me convinha», diz Ann Elizflj

«mas eu estava tão cega que não via o que se metia peloi

146

olhos dentro. Havia uma diferença de génios e temperamentos e tudo isto, para uns olhos
clarividentes, indicava que seríamos infelizes na intimidade.»

Quando Ann Eliza anunciou o seu noivado com Dee, os pais, Eliza Churchill e Chauncey Webb,
ficaram tão desiludidos como as amigas. Porém, quanto mais eles insistiam, mais ela se agarrava ao
seu amado. Tanto a família como as amigas consideravam Dee «egoísta, autoritário e dominador».
Ann Eliza concordava com isso, mas depois acrescentava que ele «nunca mostrara tais disposições
nos primeiros tempos de namoro; fazia-me todas as vontades, afirmava amar-me ternamente, e
acredito que me amasse na medida em que era capaz de querer a alguém ou a alguma coisa fora de
si próprio». Quando foi do pedido de casamento, os pais de Ann Eliza consentiram «de má
vontade». Nem mesmo Brigham Young se interpôs, visto nessa altura andar entretido com outra.
Dois meses antes do casamento de Ann Eliza desposara ele a sua vigésima quinta esposa, Amélia
Folsom, que dali em diante passou a dominá-lo, a ele e a todo o harém.

No dia 4 de Abril de 1863, Ann Eliza e James Leech Dee compareceram solenemente perante o
Profeta, numa das salas da Casa dos Votos. O seu traje de noiva consistia num vestido branco tipo
saco e numa espécie de avental verde; as roupas interiores ostentavam desenhos cabalísticos sobre
os seios, o umbigo e o joelho direito. Testemunharam o acto a mãe e alguns amigos mais íntimos.

Brigham dirigiu-se ao noivo:

Irmão James Dee, quer tomar por esposa a irmã Ann Eliza Webb e promete ser um esposo fiel e
dedicado no tempo e na eternidade, comprometendo-se a cumprir as leis e os ritos respeitantes a
este santo matrimónio agora e sempre, fazendo isto na presença de Deus, dos anjos e de todos
aqueles que a ele assistem, por sua livre vontade?

Sim respondeu James Dee.

Brigham voltou-se para a sua pupila, Ann Eliza, e sornu-lhe:

Irmã Ann Eliza, quer tomar por marido o irmão Jaroes Dee e promete ser uma esposa fiel e
dedicada no temPO e na eternidade...?

Sim respondeu Ann Eliza. Brigham olhou-os a ambos e preparou-se para os unir.

147
Em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo e na min

qualidade sagrada de sacerdote declaro-vos legalmente n

rido e mulher no tempo e na eternidade. E derramo sol

vós as bênçãos da santa ressurreição para que vos levante

vestidos de glória e de imortalidade, nessa primeira manl

para viverdes eternamente; imploro também sobre vós

bênçãos dos tronos e das dominações, das forças e das p

testades, juntamente com a bênção de Abraão, de Isaac e <

Jacob. E a vós ordeno-vos que cresçais e vos multiplique

até povoar toda a terra para verdes com alegria a vossa dfl

cendência até ao dia de Nosso Senhor Jesus Cristo. Que ti

das estas bênçãos se espalhem sobre as vossas cabeças ma|

tendo-vos fiéis até ao fim, através da minha autoridade 4

sacerdote e em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santj

Ámen. |

O secretário da Casa dos Votos assentou a data no livl

dos casamentos, juntamente com as assinaturas das tesa

munhas. Ann Eliza ficou sendo oficialmente a Sr.a Jarni

L. Dee. I

Porém a noiva ainda era actriz e a sua noite de núpcíj

foi passada no palco do Teatro de Salt Lake City, encoa

trando-se o feliz marido entre a assistência. Durante todo!

período do namoro Ann Eliza continuara a fazer parte q

companhia na sua qualidade de ingénua. Na verdade, sell

tia-se inspirada pelo seu amado. «Tornei-me ambiciosal

confessa ela, «e passei a representar melhor. Penso que, Jj


continuasse a representar, talvez não tivesse perdido o má

ideal, acabando por conseguir realizar qualquer coisa m

minha profissão. O amor torna as mulheres ambiciosa!

Mesmo que nunca até então as tenha animado tal sentimeffl

to, o amor leva-as a excederem-se a si próprias para se vai

lorizarem aos olhos do amado.» Por isso, naquela noita

antes de começar o seu casamento, Ann Eliza represento!

para Dee e para mais uns milhares de pessoas. i

Na noite de 4 de Abril de 1863, o Teatro de Salt Laki

City levava à cena três peças curtas: Porter’s Knot, Thlt

Artful Dodger e Bambastes Furioso. Ann Eliza entrava nf

primeira. A notícia do seu casamento espalhara-se e, muitíl

embora o papel que interpretava não tivesse grande impor1!

tância, a sua figura dominava a cena. Ann Eliza nunca esfj

quecera essa noite: «Fui recebida, ao entrar em cena, conl|

os mais quentes aplausos», declara ela. «As ovações suce-|

148

diam-se e decorreram alguns minutos antes que eu pudesse integrar-me no meu papel. Todas as
vezes que tinha de aparecer em cena sentia-me deveras embaraçada, tão constantes eram as palmas.
A excitação talvez fosse maior pelo facto de eu haver mantido secreto o meu casamento, sendo
poucas as pessoas que dele haviam tido conhecimento prévio... Naquele momento era eu a figura
central no palco e todos os meus superiores me cediam o lugar de boa vontade.»

Dali a sete dias a companhia teatral de Brigham encerrava a época com o Mercador de Veneza e, ao
mesmo tempo, Ann Eliza dava por terminada também a primeira fase da sua carreira artística na
companhia de Shakespeare. Muito embora continuasse a frequentar o teatro ensaiando para a época
seguinte, quando a companhia voltou a actuar no mês de Outubro Ann Eliza estava demasiado
preocupada com as cenas que tinham lugar em sua casa para se importar com isso.

Dee possuía uma vivenda, mas alugara-a a longo prazo. Os seus aposentos de solteiro eram
acanhados para um casal. Por isso Ann Eliza convenceu-o a transferirem-se para os aposentos que
se encontravam vagos na casa da cidade que pertencia aos pais. Dee concordou e aí, a despeito dos
olhares penetrantes da mãe de Ann Eliza e das idas e vindas das várias esposas e dos numerosos
filhos de Chauncey Webb, conseguiam manter uma certa independência.

Durante o mês que se seguiu ao casamento, Ann Eliza desfrutou das atenções e da consideração de
Dee, certa de que o seu casamento se manteria monogâmico, segundo o marido lhe prometera. Não
tardou, porém, a descobrir certo aspecto do seu carácter que apenas era conhecido dos amigos
íntimos. As promessas matrimoniais, na opinião de Dee, nada tinham a ver com os seus privilégios
de homem solteiro, e Ann Eliza queixava-se de que ele «não tardara em andar atrás das raparigas,
dirigindo-lhes aquelas amabilidades de que até ali só ela fora alvo...» Ann Eliza não se conformava
com a indiferença do marido nem com as ameaças veladas que este lhe fazia no sentido de contrair
novo matrimónio. Seguiam-se tremendas discussões. No dizer de Ann Eliza, Dee entregava-se a
«violentos ataques de fúria que me deixavam literalmente aterrada. Dirigia-me palavras insultuosas
e fazia-me sofrer os piores tratos».

O que mais desesperava Ann Eliza, confessa ela mais

149
tarde, era a ameaça que Dee lhe fazia de trazer para c%

outra esposa. Ele divertia-se a descrever-lhe as mulhetj

encantadoras com quem pensava em se casar, nomeando^

a todas, incluindo algumas que eram amigas da mulhe

«Eu tinha uma amiga de quem muito gostava», relata e|

«Dee começou a sentir ciúmes desta afeição e, no intuito d

me afastar dela e pôr fim à nossa amizade, fingiu-se muii

interessado por essa pessoa. Deixava-me regressar do teatj

sozinha e saía com ela, demorando-se muito tempo foJ

Quando voltava, contava-me as conversas que ambos q

nham tido, nas quais ela mostrava um grande amor por el

Até que acabei por a odiar. Evitava-a sempre que podia J

se nos encontrávamos, eu fazia apenas o possível por nm

ser mal-educada.» Mais tarde, Ann Eliza veio a descobil

que tudo isto era mentira, no entanto não conseguiu volta

a ter com essa rapariga as anteriores relações de amizadl

Num esforço desesperado para salvar o seu casamenti

Ann Eliza quis ter filhos. Durante aquele ano e meio qd

esteve casada com Dee nasceram dois rapazes o primaj

ro, James Edward Dee, conhecido mais tarde pelo nome m

Edward Lesley Dee, veio ao mundo em 1864, e o segunda

Leonard Lorenzo Dee, nasceu em 1865. Ann Eliza adore»

o primeiro filho, mas as esperanças de que ele conseguis*

aproximar mais dela o marido em breve foram por águl

abaixo. Durante o período da gravidez algumas amigaa

umas mal outras bem-intencionadas, contavam-lhe que DM


era visto no teatro ou a passear nas ruas acompanhado pç*

uma mulher bonita. «Ele costumava fazer apreciações a tem

peito das amigas que me visitavam», conta Ann Eliza, «nol

mesmos termos em que os mórmones falam das mulhere»

isto é, referindo-se à sua classe, tal como fazem os jóqueis om

os importadores de gado, falando de animais de boa raça.*

Pouco a pouco, a saúde de Ann Eliza começou a ir-$fl

abaixo. O facto de o marido não se importar com isso desj

gostava-a mais ainda. Até então as suas rixas não havianjl

passado de palavras azedas. Porém, no oitavo mês da sell

gunda gravidez, Dee agrediu fisicamente a mulher. «QuerijB

exigir de mim uma coisa», explica ela, «que me era totatS

mente impossível satisfazer-lhe, e, na sua fúria contra aquifl

Io que ele considerava teimosia ou rebelião da minha partea

bateu-me violentamente e eu caí desmaiada.» Arrependido!

imediatamente do que fizera, e receando ter molestado ai

150

sério a mulher, Dee levou-a para a cama e prestou-lhe todos os cuidados. Depois disto, desfez-se em
desculpas e manifestações de pesar. Até ao nascimento de Edward houve umas tréguas entre o
casal. Assim que a criança veio ao mundo, Dee retomou os antigos hábitos. Mas como o filhito era
muito doente, Ann Eliza tinha mais com que se preocupar do que com o abandono do marido.

Assim que Edward melhorou, a vida de Ann Eliza continuou infeliz como dantes. Sozinha com o
filho, passava o tempo, muito desconsolada, no seu quarto, tentando esconder da mãe e das outras
esposas do pai a infelicidade que a torturava, enquanto o marido se divertia na cidade. Ou porque
continuasse a acreditar que uma família numerosa lhe restituiria a afeição, ou talvez por acidente, a
verdade é que dentro em breve Ann Eliza voltava a estar grávida. Duas semanas antes do segundo
parto as suas relações com Dee atingiram o auge da crise.

Foi numa tarde de Outono. Ann Eliza, com o ventre muito inchado, encontrava-se sentada numa
cadeira de baloiço, com Edward ao colo, enquanto o marido lia na sua frente. O quinto filho da
segunda mulher de Chauncey, Louis Webb, criança de três anos, entrou no quarto. Dee ergueu os
olhos e pediu-lhe que fosse buscar um certo objecto que se encontrava numa prateleira alta junto de
um vaso muito pesado. Ann interveio, dizendo que o objecto estava muito alto e a criança corria o
risco de o fazer cair em cima da cabeça. E, sempre com o filho nos braços, ergueu-se da cadeira,
disposta a ir ela própria buscar o que o marido pedia. Este, furioso por ser contrariado, ordenou a
Ann Eliza que não saísse do seu lugar.

O Louis vai buscar aquilo que eu pedi disse com firmeza.

Ele não é capaz declarou Ann Eliza.

Pois eu digo-te que é. E Dee voltou-se para a cnança, com intimativa: Vai já buscar o que te pedi!

Ann Eliza deu um passo em frente:

Louis, não vais!

Enraivecido, Lee correu para a mulher. Esta nunca mais Se esqueceria do que se seguiu.

«O meu marido, louco de fúria por eu me ter atrevido a contrariá-lo, agarrou-me pelo pescoço e fez-
me sentar na cadeira. Ao ouvir os gritos da criança aterrada, a minha

151
mãe apareceu imediatamente. Tirou-me do colo o meu fj lho que eu continuava a apertar
convulsivamente, enquant^ os dedos do meu marido me apertavam cada vez mais j garganta.
Sentia-me tonta com as dores e quase sufocada mas o meu instinto materno era mais forte e nunca
largufl a criança. í

«A minha mãe foi chamar o meu pai, que me veio livraj do homem raivoso que me estrangulava, e
levaram-me parç o quarto da minha mãe.» t;

Só então Ann Eliza, a soluçar, revelou toda a históri dos maus tratos que Dee lhe infligia. Ao ouvir
isto, Chaun cey e os irmãos de Ann Eliza, Gilbert e Edward Milo, de cidiram que a irmã não devia
voltar a encontrar-se com < marido. Fecharam-na no quarto da mãe, enquanto iam di zer a Dee que
saísse imediatamente daquela casa. Ainda c« go de raiva, Dee proferiu toda a espécie de ameaças
contr a mulher, mas ao cabo e ao resto viu-se obrigado a abando nar a residência. ’

Eliza Churchill e Chauncey Webb consultaram Brig ham Young e George Q. Cannon, delegado
mormon junta do Congresso, e amigo dos Webb, para se resolver sem de mora o divórcio. Brigham
concordou em que era urgent livrar Ann Eliza daquele marido, mas foi de opinião de qti tal divórcio
só seria reconhecido dentro da igreja. A fim d que ela pudesse conservar a custódia dos filhos,
aconselhoui a requerer o divórcio junto do tribunal de Salt Lake Cit]

Na manhã de 23 de Dezembro de 1865, Ann Elizl acompanhada pelo pai e por um amigo,
compareceu n presença do juiz E. Smith. James Dee encontrava-se auseu te. A queixa foi aceite e
em breve Ann Eliza obtinha o di vórcio e o direito aos filhos. Dois dias depois, conta ela, cê lebrava
o Natal mais alegre de que se recordava havi muitos anos. Dali em diante Ann Eliza, ao falar de
Jame Dee, referia-se sempre a ele como ao homem que lhe «estragara a vida». Mesmo volvidos
trinta anos, ao conversa com um compilador de biografias do Michigan, ela recordava Dee como
«um daqueles tipos exigentes e cruéis qu6 estão convencidos de que as mulheres devem ser
escravas...»

Mas tudo isto não passa da versão pessoal de Ann Eliza acerca do seu primeiro casamento. É
natural que James Dee tenha outra muito diferente. E fora de dúvida que Ann Eli-

152 á

za possuía um temperamento nervoso e obstinado, e não deve ter sido uma esposa muito dócil.
Além disto há provas de que Dee tinha problemas com a sogra. Ann Eliza não negava a oposição
levantada pela mãe ao seu casamento, mas no entanto defendia-a. «O meu marido não ignorava a
guerra que ela fizera ao nosso casamento e não via com bons olhos aquilo a que chamava a
interferência da sogra; quanto a mim, ainda hoje não compreendo por que motivo uma mãe não há-
de defender os interesses da filha sem que isso seja considerado como uma interferência.» Ann
Eliza fora a primeira Sr.a Dee, mas houve uma outra que, pelos vistos, teve mais sorte do que ela.
Nove meses depois do divórcio, James Dee voltou a casar, e desta vez a sua união foi duradoura. A
2 de Outubro de 1866, desposava uma jovem de dezassete anos, Esther Ellen Brown. A segunda
Sr.a Dee descendia de uma família mormon muito ilustre e devota. O pai, o capitão James Brown,
era veterano das guerras do México e natural da Carolina do Norte. Ajudara a fundar a cidade de
Ogden. A mãe pertencia também a uma boa estirpe, pois, antes do nascimento de Esther, e durante a
gravidez, tomara parte na longa caminhada de Nauvoo até Salt Lake City.

Enquanto Ann Eliza se tornava famosa no mundo distante dos gentios, James Dee contentava-se
com uma vida obscura mas próspera, no Utah. Continuou a trabalhar como estucador nas cabanas
de toros. Mais tarde transferiu-se para Ogden, onde abriu um restaurante e um saloon. E quando a
família aumentou adquiriu várias propriedades os terrenos que possuía valiam, na altura da sua
morte, uns trinta mil dólares. Construiu uma casa de estuque composta de dez divisões, tendo ao pé
um lago artificial e uma pastagem de gado. Ia todos os dias para Ogden numa luxuosa carruagem
inglesa. E nunca mais revelou as más qualidades que lhe atribuía Ann Eliza.

James Dee teve dois filhos da primeira mulher. A segunda, Esther Ellen, deu-lhe sete, quatro
rapazes e três raParigas. Pouco depois do nascimento do último, um rapaz a quem foi posto o nome
de Ernest Leon, Esther Ellen Correu com quarenta e cinco anos. Este filho é o único que ainda vive.
Habitou sempre com uma das irmãs mais velhas, Elizabeth, que morreu com noventa e um anos, em

A 7 Jo.

153
Ernest Leon Dee, engenheiro electrotécnico e um de pilares da Igreja Mórmon, reformou-se aos
setenta e cinc anos e vive em Salt Lake City. Dotado de excelente memí ria, recorda-se de tudo o
que se passou. Acha que Ann Eli za difamou o pai, e nunca lhe perdoou isso. «Ann Eliz afirmava
que o meu pai lhe batia», declarou Ernest Leon ai autor deste livro. «Isso é inacreditável. Ele nunca
bateu nfl filhos, nem sequer ergueu um dedo contra qualquer de nó^ Não praguejava, não fumava
nem bebia e nunca foi políg^ mo. Eu tinha doze anos quando ele morreu e recordo-rni muito bem de
tudo. Era um homem muito culto e repr^ sentava Shakespeare como amador. Nos tempos antigol
nós tínhamos uma grande sala de jantar, na nossa casa d Ogden, e o meu pai, que era um homem
alto, forte e coi uns pés enormes, costumava passear nessa sala, de um lad para o outro,
transportando-me sobre um dos pés e emp« nhando uma espada, a declamar o papel do rei Lear. ’,

«Não deixou testamento ao morrer, mas manifestara desejo de que os filhos que ele tivera de Ann
Eliza herdai sem os seus bens em igualdade connosco. Cada um recebe dois mil dólares. Isso hoje
equivale a trinta e dois mil. J pode ver que o meu pai era um homem abastado. Ouvi <í zer que o
verdadeiro motivo que Ann Eliza tinha para S divorciar não foi aquele que invocou, mas sim o facto
de* mãe dela se mostrar agressiva porque queria que a filha ai cendesse na sociedade. Teria dito à
filha: ”Divorcia-te d Lee que eu arranjo-te o casamento com Brigham YoungJ E foi o que veio a
suceder.»

O primeiro marido de Ann Eliza morreu a 6 de Junhi de 1897. Nessa data, seis dos filhos que tivera
de Esther Ei len já o haviam precedido na sepultura havia quatro anos apenas restava um para lhe
herdar os bens. O filho mais vê lho de Ann Eliza, Edward Wesley Dee, que trabalhava nu mas
minas em Denver e vivia ali com a mulher e os filhol foi informado de que era um dos sete
herdeiros de Jamí Leech Dee. Depois de assinar uma declaração em com consentia na venda dos
bens imóveis do pai para pagar a dívidas e o resto ser dividido pelos herdeiros, veio a recebei os
dois mil dólares que lhe cabiam. í

Ann Eliza casara mais duas vezes, mas nunca esquecerí James Dee nem cessara de o atacar. Talvez,
como afirmava^ ele a tivesse marcado para toda a vida com as suas infidel

154

dades e com o facto de lhe haver batido. Ou talvez, segundo a versão do filho mais novo, ela tivesse
inventado aqueles maus tratos com o fito de ocultar a sua deslealdade para com ele e de fazer a
vontade à ambição da mãe.

Fossem quais fossem os motivos que a impeliram, a liberdade que Ann Eliza conquistara em 1865
proporcionar-lhe-ia grande felicidade nessa altura. Depois das festas e das férias do Natal passadas
em Salt Lake City, transferiu-se com os dois filhos e na companhia dos pais e das várias madrastas
para a quinta dos Webb uma grande casa caiada, tipo estábulo, empoleirada no alto de um monte,
em South Cottonwood, no Utah, a dez milhas da capital.

Os meses que se seguiram foram felizes e tranquilos para Ann Eliza. Brincava com os filhos,
partilhava dos trabalhos caseiros, comia, dormia e recuperava as forças. «Nada mais desejava além
daquela vida tranquila», escreve ela. «Aquilo bastava-me. Invadira-me tal paz que me imaginava a
envelhecer naquele lugar calmo, com os meus dois rapazes, fortes e sadios, perto de mim... As
melhoras que obtivera davam-me uma grande satisfação. Nunca me sentira tão bem. Recuperara as
cores, o brilho dos olhos, o sorriso, a elasticidade no andar, e readquirira parte da minha antiga boa
disposição, embora tivesse sofrido demasiado para poder encarar a vida com a mesma leviandade
dos velhos tempos em que me divertia com os meus camaradas, granjeava amigos no teatro e
rabujava com ”as pequenas” por causa da comida monótona, em casa do Profeta.»
Aos vinte e um anos, Ann Eliza era uma mulher mais atraente e feminina do que nunca. Cortejada
por alguns admiradores, recebera várias propostas de casamento. Mas rejeitara-as a todas, e
explicava a sua recusa a um dos ardentes apaixonados, dizendo: «Tenho os meus filhos; só quero
viver para eles, são os meus únicos amores.» Quando os pretendentes apelavam para Chauncey
Webb e para a primeira Sr.a Webb, no sentido de intervirem, estes declaravam que Ann Eliza tinha
idade suficiente para saber o que queria.

E assim, durante o ano de 1866 e a Primavera de 1867, Ann Eliza permaneceu recatada no seu
divórcio. Em South Cottonwood quase nada acontecia e ela sentia-se feliz com aquela existência
pacata. Mas, de súbito, numa manhã do princípio do Verão, surgiu grande alvoroço. Chegara a
nollcia de que o Profeta, na sua viagem anual pelos domínios,

155
vinha a caminho de South Cottonwood, onde pretendi) reunir uma assembleia para reavivar a fé e
pregar dois ser mões de domingo.

Quando entrou em South Cottonwood, acompanhad< pelos apóstolos e toda a sua comitiva,
Brigham Young en um homem vigoroso para os seus sessenta e seis anos e ainj da na posse de
todas as suas faculdades. Sob a direcção d& lê, a Igreja Mórmon constituía uma força nacional e
acaba/ vá de fazer grandes progressos. Ainda recentemente, depoij de cortar um ovo pela base e de
o espetar em palitos, Brig ham idealizara um tabernáculo constituído por um tecto gt gantesco
assente em quarenta e quatro pilares de cantari«| Após três anos gastos na construção, a obra estava
quas< pronta. Brigham estendera também uma rede de linhas tele^ gráficas por todo o território e
planeara instalar uma uni* versidade na capital. f;

A despeito de toda esta actividade exterior, ainda arranjava tempo para aumentar o número das suas
mulheres^ Devemos estar lembrados de que em 1852, quando anuni ciara ao mundo a lei da
poligamia, Brigham já se casarí vinte e duas vezes e vivia com dezanove esposas. Nos c* torze anos
decorridos entre 1852 e esta viagem a Soutl Cottonwood, em 1867, Brigham adquirira mais quatro
esi posas. :

A 3 de Outubro de 1852, menos de seis semanas depoil de revelar o casamento celestial, Brigham
casara com Elizí Burgess, uma emigrante pobre, de vinte e quatro anos, qu< fora criada voluntária
em sua casa durante sete anos. DeJ pois disto, o Profeta aguardara mais de três anos e meio an* tes
de se casar com a sua vigésima quarta esposa. A 14 dí Março de 1856, casara-se com Harriet
Barney, de vinte < cinco anos e divorciada. Harriet era uma rapariga pálida alta e de cabelos
escuros, que casara muito nova e dera ao primeiro marido duas filhas e dois filhos. Divorciara-s<
quando do nascimento da última filha, um ano antes de ew( trar para o harém de Brigham. Ao fim
de sete anos de casa»»; da com o Profeta, deu à luz um rapaz.

A 24 de Janeiro de 1863, após um longo e difícil namoro que durara três anos, Brigham conseguiu
finalmente ca-1} sar com a mais nervosa e exigente de todas as suas esposas, i Amélia Folsom,
jovem de vinte e cinco anos, filha do arquitecto preferido do Profeta. E em 8 de Janeiro de 1865,

156

casou-se com mais outra divorciada, Mary van Cott, bonita e meiga, de vinte e um anos, que alguns
anos antes, ainda quase criança, desposara um homem chamado James Cobb e tivera dele uma filha,
Louella, nascida já após o divórcio, passados uns anos, a filha do primeiro marido de Mary casava-
se com um dos filhos do segundo marido desta. Tal união, embora não se pudesse considerar
incestuosa, era no entanto um pouco estranha. Brigham casara com Mary não havia ainda seis
meses quando da sua visita a South Cottonwood. Esta era a sua vigésima sexta esposa e agora, ao
entrar naquela terra onde iria pregar, Brigham acabava de chegar à cidade que lhe forneceria a
última e também a mais indomável de todas as suas mulheres.

Quando Brigham, acompanhado por uma enorme comitiva de cem carruagens e cinquenta
cavaleiros, fez a sua entrada em South Cottonwood, a população veio em peso para a rua receber e
ovacionar o seu chefe. Uma banda tocava e as pessoas agitavam bandeiras e cartazes que diziam:
«Viva o Profeta» e «O Leão do Senhor». Os homens agitavam os chapéus e as mulheres acenavam
com os lenços. No meio destas, ostentando uma bandeira com o dístico «As Virtuosas Filhas de
Zion», encontrava-se Ann Eliza em companhia da mãe e das restantes esposas de Webb. «A
verdade é que eu tomei parte na manifestação de boas-vindas ao presidente, em Cottonwood»,
declara Ann Eliza, «bem como toda a família. E, como éramos amigos dele, tanto pessoal como
espiritualmente, a minha mãe, sobretudo, estava contentíssima, pois entre eles existiu sempre uma
profunda amizade.» A primeira Sr.a Webb sentia-se duplamente grata para com o Profeta porque
fora ele quem ajudara a libertar a filha das garras de James Dee. Visto não existir um tabernáculo
em South Cottonwood, as cerimónias religiosas de domingo eram sempre realizadas num alpendre
coberto de ramos de árvores. O alpendre estava apinhado de «Santos» ansiosos por aclamar
Brigham e entre estes contava-se Ann Eliza, envergando o seu melhor vestido, bem como quase
toda a família, ttngham falou do púlpito, como de costume, sem utilizar quaisquer notas nem ter
estudado o sermão. Pregou em termos violentos, censurando os trajes extravagantes das Mulheres e
o alcoolismo dos homens, em South Cottonwood. Costumava mostrar-se particularmente severo
para

157
com a moda feminina. Quatro anos antes, encetara ura

campanha em favor dos tecidos de algodão caseiro, de fj

brico mormon, em substituição das modas fantasistas de

gentios. Nessa altura, afirmara ele numa linguagem quaj

impossível de transcrever: «As mulheres dizem consigo: j

que as putas usam anquinhas vamos nós usá-las também. S

elas andassem na rua com um calhau espetado no rabo, vo

cês decerto faziam o mesmo. Eu odeio essas malditas md

das, os seus disfarces, as suas poucas-vergonhas... Não £

passa um dia em que eu não veja as pernas às mulheres, j

então quando há vento vejo-as até lá acima... Que impo|j

tância devemos ligar a esses ”gentios” do diabo? Se eles edj

fiarem um penico na cabeça, isso é razão para que eu qi

imite? Sei que devia envergonhar-me de dizer isto, ma

quando vocês mostram a coisa acho que tenho o direito d|

falar nela. Se a conservam escondida, então eu serei pudica

e não falarei nela.» J

Foi em termos semelhantes que Brigham se dirigiu nesj

se domingo às mulheres de South Cottonwood. A sul

maior fúria, porém, tinha como objecto os homens. Erani

todos uns bêbedos, afirmava, uns demónios, e não CUIQJ

priam as normas salutares que Joseph Smith deixara irnl

pressas no seu Livro da Sabedoria. O pior de todos eles erl

um tal Howard, que trabalhava na destilaria de South Cof|

tonwood. Obtivera licença de fabricar álcool para os «gen»

tios» (não-mórmones), mas andava a perverter os «Santosáj


Esse Howard exclamava Brigham não poss^íl um cêntimo que lhe não tenha sido dado por mim.
Fui dl mesmo quem lhe ofereceu o próprio chão em que viveij

O dito Howard, um mórmon, encontrava-se sentada! junto dos Webb. Pôs-se de pé ao ouvir isto,
cheio de indigSj nação. i

Isso não é verdade e o senhor sabe-o muito bem ~^Ê gritou ele para Brigham. A terra fui eu quem a
comprí|| e paguei-lhe mil e duzentos dólares! Jl

Estás a mentir! tornou Brigham. Fui eu <luelíS ta dei! Jl

Deu-ma por mil e duzentos dólares! teimou Ho*« ward. m

Nunca recebi um cêntimo por ela. «

O senhor sabe muito bem que isso é mentira! l Furioso, Brigham dirigiu-se à assistência e
rugiu: l

158

Não há aí ninguém que ponha este homem lá fora?

Howard imediatamente foi rodeado por uma dúzia de fiéis que o afastaram à força do alpendre.

Apaziguado, Brigham voltou ao sermão. Depois de ter desancado a assistência, passou a um torn
menos agressivo. Enquanto falava, o seu olhar caiu sobre Ann Eliza, que não via há mais de dois
anos. Ficou fascinado. As frases bíblicas saíam-lhe instintivamente da boca, mas toda a sua atenção
se concentrava naquela encantadora divorciada de vinte e um anos.

Ann Eliza apercebeu-se do interesse que estava despertando no Profeta. A princípio, imaginou que a
sua cara lhe dera nas vistas por se tratar de uma pessoa conhecida. Mas logo pensou que havia na
assistência mais rostos que deviam ser familiares ao Profeta. Contudo, ele procurava sempre
encontrar-lhe o olhar e ela começou a sentir-se pouco à vontade.

«O olhar dele perturbou-me», viria a escrever «e pensei se não haveria na minha aparência algo que
lhe desagradasse. Talvez o vestido... Percebia muito bem que ele não me fitava com indiferença ou
por distracção, via pelo sobrolho franzido e pelo olhar penetrante que me estava observando
atentamente e desejava que desviasse de mim os olhos. Comecei a agitar-me no banco e a fingir que
compunha o vestido. Fiz tudo, menos o que me apetecia, que era sair dali para fora e desatar a
correr, fugindo assim àquele olhar devassador. Tenho a certeza de que ele percebeu a minha
atrapalhação, mas, implacável, nunca deixou de me fitar enquanto falava. Tentei mostrar-me
indiferente e olhar para todos os lados, menos para ele, porém sentia-me atraída e acabava por fitá-
lo, mesmo contra vontade. Naquele momento dei-me conta, como nunca me sucedera antes, de toda
a força que dele emanava, e percebi então o motivo por que conseguia levar os outros a obedecer-
lhe, mesmo contra as próprias inclinações.»

As cerimónias da manhã terminaram finalmente e Ann Wiza ficou livre daqueles olhos hipnóticos.
Levando o filho a sua frente, saiu para o sol lá de fora. Nessa altura verificou que o Profeta a
seguira. Quando o viu na sua frente, tingiu-se surpreendida, mas não há dúvida de que se sentia
orgulhosa por ele a distinguir assim e ver que toda a gente
08 observava.

159
Segundo a versão de Ann Eliza, Brigham Young olhoi para ela e inquiriu: j

Está boa? ’<

Estou, como vê respondeu ela com vivacidade

Pdsso acompanhá-la a casa? 5

Se quiser, dá-me muito prazer. i A comitiva de Brigham e os dignitários lá da terra maní

tinham-se um pouco atrás, trocando olhares uns com o outros, enquanto a multidão se afastava para
dar passagen ao velho Profeta e à jovem divorciada com o filho ao ladtí Brigham pegou na mão da
criança.

Que lindo menino. Que vai fazer dele?

Se puder, gostaria de fazer dele um homem de bed

Aposto que há-de ser melhor do que o pai rei pondeu Brigham. ;

Deus o permita, de contrário pouca satisfação m daria respondeu Ann Eliza emocionada.

Seguiram calados, e ela percebeu que o Profeta a obser vava. Por fim, falou de novo:

Você melhorou muito depois que a vi pela últint vez, sabe? É uma jovem interessante.

Ann Eliza riu com nervosismo: í

Se me disser que sou uma boa rapariga também fiei muito satisfeita.

Acho que é uma boa rapariga e também uma bo; mãe respondeu Brigham. E igualmente uma boa
eí posa. Só aquele idiota não soube apreciá-la.

Obrigada mais uma vez. Não sei se deva aceitar taq tas amabilidades, pois duvido que as mereça.

É digna filha da sua mãe, e está tudo dito. Mas falei -me de si. Sente-se feliz?

Muito respondeu depressa Ann Eliza. Nunc fui tão feliz na minha vida.

Então diga-me o que a torna assim tão feliz nese momento.

Oh, os meus filhos, a minha mãe, a vida calma qu< levo depois das lutas e tribulações que sofri para
aguenta tudo. i

Brigham fitou-a atentamente:

Nesse caso não está arrependida de se ter divorciado!

Nem por sombras respondeu Ann Eliza com de*1 cisão. E já agora, irmão Young, deixe-me
agradecer-lhe *
160

sua bondade em me ter ajudado a libertar-me. Tem de contentar-se com a minha gratidão, pois não
posso retribuir-Ihe de outro modo.

Ann Eliza nunca se esqueceu da maneira como ele a fitou naquele momento, sorrindo
enigmaticamente, como se se preparasse para dizer mais qualquer coisa. Mas deve ter mudado de
ideias, e continuaram a dirigir-se calados para a quinta dos Webb.

Brigham quebrou abruptamente o silêncio.

Calculo que tenha recebido muitas propostas de casamento desde que se separou de Dee.

Sim, muitas.

Sente-se inclinada a aceitar alguma?

Não, de maneira alguma. Não me sinto atraída por qualquer deles.

Não sente preferência por qualquer dos seus admiradores?

Garanto-lhe que não.

Nunca teve desejos de responder afirmativamente a qualquer proposta que lhe tenha sido feita?
insistiu Brigham.

Nem por sombras declarou Ann Eliza. Afigura-se-nos que neste ponto das insistentes perguntas de
Brigham acerca da sua vida amorosa, a rapariga deveria ter suspeitado dos motivos que as
provocavam. Mas ela sustentou sempre que as atribuía a um simples interesse de natureza paternal.
Depois de lhe haver afirmado que recusara todos os pretendentes, acrescentou: Todos os meus
apaixonados tinham contra si um rival na minha afeição.

Quem é? perguntou asperamente Brigham. Ann Eliza bateu no ombro do filho que se comportava

com a maior compostura.

Este respondeu ela e o outro querido filho que Deus me deu. Não tenho lugar para outros amores
enquanto precisar de cuidar destes. Enchem-me totalmente a vida e S1nto-me tão satisfeita e feliz
com eles que teria ciúmes de qualquer pessoa que tentasse, só de leve, interpor-se. Não seria capaz
de amar outra pessoa. Acho isso impossível.

Bngham fitou a sua companheira com certa desconfiança.

~r Pensa então que não voltará a casar-se?

E provável que Ann Eliza tenha percebido nessa altura ° cinismo oculto no fundo destas palavras.
Respondeu categoricamente:

161
Nunca mais, na minha vida!

O Profeta parecia divertido ao declarar:

Já ouvi muitas raparigas afirmarem o mesmo.

Sim, mas eu não sou uma rapariga, sou uma mulhí Uma mulher que já sofreu duras e amargas
experiênciaj uma mulher que perdeu a fé na humanidade e pouca iní portância liga ao matrimónio; e
também uma mãe que n| quer dar aos seus filhos outro rival. \

Um rival não, mas pode dar-lhes um protector ri torquiu Brigham asperamente. j

Eles não precisam disso. O meu amor por eles é pra tecção suficiente. Além disso são rapazes e eles
é que na protegerão a mim dentro de poucos anos. Por isto já vê qd não preciso de casar nem de
arranjar um protector para el| ou para mim. J

Brigham não se deu por vencido e por momentos asst miu a pose de Profeta:

Mas suponhamos que a coisa surge como um deve

Não é possível respondeu ela imediatamente. Vij a sua própria mãe esmagada durante muitos anos
de dever, não queria sobrecarregar-se com idêntico fardo. Não r< conheço deveres dessa natureza.
Considero-me suficientJ mente adulta e esclarecida para tomar conhecimento dei meus deveres sem
o auxílio de ninguém! l

Um tanto amachucado por esta tirada, Brigham obsea vou-a por instantes e quando falou foi com
voz suave e pá ternal: i

Minha filha, pareces-me muito teimosa. Não queira ser tão senhora do teu nariz. I

Não há perigo. Não sou contrariada habitualmente l por isso não tenho necessidade de me mostrar
senhora d<| meu nariz. l

Brigham continuou a fitá-la: l

Es então uma menina amimada? J

É possível. Lá em casa a minha vontade costuma sei a de todos. m

Muito bem, minha filha tornou Brigham com b4B nevolência. Mas deixa-me dar-te um pequeno
conselhd| Conheco-te há muito tempo e interesso-me por ti descM que nasceste. Na verdade é como
se pertencesses à miniMJ família, visto teres sido mais ou menos criada com as mi|| nhãs filhas. Por
isso you falar-te como se fosses uma delasjl

162 *

Acho que deves casar-te qualquer dia, muito embora por enquanto afirmes que não.

Não, nunca me casarei. Sei muito bem o que digo quando o afirmo.
Está bem tornou Brigham Young com a autoridade de quem saíra vitorioso de vinte e seis pedidos
de casamento. Bem sei. Mas tu hás-de voltar a casar-te. Nota bem o que te digo e verás.

Pois sim, mas agora não vá mandar alguém ter comigo disse Ann Eliza abespinhada.

Não tenhas medo de que eu mande alguém ter contigo. Disso podes estar certa.

Ainda bem, porque nesse caso eu tinha de lhe dizer que não, e tanto o senhor como ele ficariam
aborrecidos.

Tinham chegado à entrada da quinta, mas a conversa não acabara ali. Brigham queria dizer a última
palavra.

Apesar de tudo acrescentou acho que hás-de voltar a casar-te E a ordem natural das coisas. As
mulheres da tua idade e com a tua beleza não ficam sozimhas a vida inteira. Não penses nisso.
Agora aconselho-te o seguinte: quando te casares, escolhe um homem mais velho do que tu. Não
interessa muito que gostes dele, desde que lhe tenhas respeito e ele te possa aconselhar bem. O
respeito vale mais do que o amor, disso não há dúvida. Tu já experimentaste uma das coisas, agora
experimenta a outra. Não te deste muito bem com a primeira experiência para que desejes repeti-la,
bem o sei. Fizeste-o de livre vontade, se bem me recordo. A coisa não correu tão bem como
imaginavas. Percebi logo que ias fazer uma asneira quando vi o homem. Podia ter-to dito, mas não
me pediste conselho. Agora dou-to sem que mo peças, porque não quero ver-te cometer novo erro.
Quando fizeres a tua escolha, lembra-te do que te digo, e arranja um homem que te possa
aconselhar.

Ann Eliza agradeceu-lhe respeitosamente o interesse que manifestava por ela:

. Prometo ter em conta as suas palavras se alguma vez ° julgar necessário, mas creio bem que não.
Estou resolvida a nunca mais me casar.

E natural que os pais de Ann Eliza, que tinham vindo Para casa mais cedo com ideia de voltarem
para assistir ao sermão da tarde, se hajam apercebido de que o companheir° da filha era o próprio
Profeta. Impressionada com tama-

163

nhã honra, a primeira Sr.a Webb convidou Brigham a jantar com eles. Muito embora se tivesse
comprometido antecipadamente a tornar essa refeição com um mórmon chamado Bowman,
Brigham aceitou imediatamente o convite dos Webb. Mandaram um portador convidar também
para o jantar o irmão de Brignam, Joseph Young, e George i K. Cannon, membro do Congresso, os
quais não se fize- ’ ram esperar. >

Enquanto se punha a mesa, Ann Eliza ia pensando na j estranha amabilidade de que Brigham dava
provas: «Mos- i trava-se extraordinariamente jovial», conta ela, «e muitíssi- j mo simpático. Foi
amável para o meu pai, gracejou com a j minha mãe, recordou os velhos tempos, amimou e elogiou
j as crianças. Para mim, mostrava-se muito paternal. Revê- ] lou-se no seu melhor aspecto e tornou
aquela visita muito j agradável. Logo no princípio do jantar, o irmão de Brig- j ham e Cannon
fizeram observações acerca do meu aspecto saudável.» Brigham, de um modo especial, não lhe
regateou j elogios. «Como eu tinha melhorado muito em todos os | sentidos», refere ela mais tarde,
«não tomei as suas palavras j como um galanteio nem como uma indicação das suas futu-1 rãs
intenções.» J
Quando o jantar terminou eram horas de voltar ao ai- i pendre para as cerimónias da tarde. Toda a
família Webb, j incluindo Ann Eliza, acompanharam Brigham à cidade, j O recinto ao ar livre
encheu-se novamente. Os Webb ti- j nham o privilégio de ocupar lugares na primeira fila. Brigham
subiu ao púlpito e, extemporaneamente, pôs-se a falar J acerca da austeridade e da fé. Talvez o seu
espírito se en- l centrasse ausente do que dizia, pois naquela tarde as mu- j lheres não foram
censuradas pela maneira impudica como j vestiam nem os homens pela sua embriaguez. O torn do
sermão, de uma maneira geral, foi leve e suave. Várias vê- j zes, durante o discurso, Brigham
captou o olhar de Ann l Eliza e sorriu-lhe, como que a recordar o longo passeio e a conversa que
ambos haviam tido em particular. Ann Eliza’ fitou-o também sem temor.

Quando o sermão terminou e a assembleia começou a dispersar, os membros da comitiva do Profeta


dirigiram-se à fila de carruagens que os aguardava. Estava combinado partirem imediatamente com
destino a Willow Creek. Porém, em vez de se dirigir para o seu veículo, Brigham fi- j

164 l

cou-se para trás e disse a Chauncey Webb que tinha «um negócio importante» a discutir com ele.
Visto tratar-se de um assunto particular achou melhor voltar com Chauncey até à quinta. As
carruagens e os membros da comitiva tiveram de esperar até ao cair da noite.

Na quinta, Brigham e Chauncey Webb fecharam-se na biblioteca. Noutro compartimento, Ann


Eliza cogitava sobre qual seria o tema da conversa e pensou tratar-se da destilaria de Howard.

A tarde foi passando e os dois homens continuavam a falar à porta fechada. Decorreram duas horas
e a curiosidade de Ann Eliza ia crescendo. «Ao fim de duas horas», conta ela, «a minha mãe foi
chamada à sala e a conversa prosseguiu. Daí a pouco saíam todos. Brigham despediu-se de nós com
muita cordialidade e para mim revelou-se um pouco mais solene.

«Depois de ele se ir embora, o meu pai informou-me do assunto da conversa. Brigham Young
pedira-me em casamento.»

Durante o resto da vida, Ann Eliza nunca mais esqueceria o choque que sentiu ao ouvir aquela
notícia incrível. E revelou mais tarde ao Herald de Nova Iorque: «Não podia definir os meus
sentimentos: sentia-me assustada. Tal hipótese constituía para mim um perfeito horror. Julguei que
o meu pai endoidecera e durante horas não quis acreditar no que me estava dizendo. Quando
percebi que era um facto, desatei a chorar. A ideia de que um velho de sessenta e sete anos, casado
com mais de vinte mulheres, me queria juntar ao número destas, causava-me um nojo horrível.»

Quando a viu chorar, a mãe veio pegar-lhe na mão para a consolar. «Minha querida, que tens tu?
Estás a chorar porque o chefe da nossa igreja, o homem mais influente entre nós, te pediu em
casamento? Então! Não é caso para te afligires.»

Ann Eliza, porém, não podia conter as lágrimas. Entretanto, Chauncey Webb tentava, o melhor que
podia, relatar °s pormenores da sua conversa com Brigham. Ann Eliza escutava-o, sem poder
acreditar no que ouvia, e mais tarde contou tudo para o Herald de Nova Iorque. Brigham participara
logo de início ao pai que queria casar com Ann Eliza. «Observara-me desde a infância, vira-me
crescer, amara-me sempre e desejara casar comigo, mas, tendo

165
desposado Amelia Folsom logo após o Congresso ter projj mulgado a lei que proibia a poligamia,
receou tomar logo seguir nova esposa, com medo de algum sarilho. Não prdj via o meu casamento
com um homem novo e quando tevi| conhecimento disso não quis impedi-lo, afirmou, deixandj
correr as coisas, sempre na esperança de que um dia me vjm ria a possuir. ’

«Queria que o meu pai e a minha mãe usassem da sul influência junto de mim, pois seria essa a
melhor soluçãòl Perguntou ao meu pai se eu me contentaria com uma casa bem mobilada e mil
dólares por ano para as minhas despej sãs particulares, pois, se não fosse bastante, dar-me-ia mais.»
l

Ann Eliza ouvia os pormenores da proposta e ficava muda de espanto. Quando o pai terminou, ela
inquiriu da súbito: l

E o pai, que resposta deu? I Na verdade, Chauncey Webb tinha respondido que J

casa e o dinheiro «seriam suficientes». Mas replicou à filhai

Eu disse que ia transmitir-te a proposta e depois lha diria a tua decisão. Ele informou-me que
conversara contwl go acerca do casamento e que tu lhe tinhas afirmado nãqj teres qualquer
preferência por ninguém; agradara-lhe vea que não era fácil entusiasmares-te com um zé-ninguénfl
qualquer, pois ele poderia colocar-te numa posição muitqj superior à de todos os teus pretendentes. l

O desgosto de Ann Eliza transformou-se em indignação!

Ele não lhe disse que eu nunca mais me queria casarHj E que tencionava dedicar toda a minha vida
aos filhos JJ

Chauncey acenou que sim: I

Falou-me em qualquer coisa nesse género, mas qua não ligara importância; todas as raparigas dizem
o mesmol é a sua maneira de se fazerem caras, declarou. E que apreJ ciara a tua esperteza. l

Eu disse-lhe que já não era uma criança, mas siní uma mulher que sabia o que queria e que
aprendera a to-l mar as suas decisões à custa de muito sofrimento. Afirmei-l -lhe que a ideia de me
casar se me tornara odiosa. I

Ann Eliza estava absolutamente furiosa: contra Brig*l ham por não ter em conta os seus
sentimentos e contra osj pais por lhes passar pela cabeça a ideia de tal casamento.]

166

Só quero saber se é preciso responder-lhe mais claramente. Se assim é, pode ir procurá-lo, já que o
pai disse que me vinha consultar, e comunique-lhe que a minha resposta é NÃO, como já disse a
todos os meus pretendentes, e que nem sequer lhe agradeço a posição que tencionava dar-me, pois
já sabia que eu a recusava. Ou ele julga que me livrei de um inferno para entrar noutro? Que grande
«posição». Que encontrará ele de especial no facto de se ser uma esposa polígama, mesmo tratando-
se de Brigham Young? Nunca descobri a vantagem de tal sistema, até pelo que respeita às mulheres
dele, no número das quais terei o cuidado de não me incluir! Isso nunca, nunca!

Voltara a cair no histerismo, e o pai tentava tranquilizá-la:


Estás muito excitada, minha filha. Acalma-te e pensa maduramente no assunto. Não queiras
resolver tudo com tanta pressa.

Ann Eliza não se deixava vencer.

Posso pensar maduramente, como o pai diz, durante todo o resto da vida, que a minha resposta será
sempre a mesma. Nunca, por minha livre vontade, me casarei com Brigham Young, e pode
informá-lo desde já que isto é ponto assente.

A mãe de Ann Eliza, porém, que apoiava desesperadamente este enlace pelo prestígio que traria à
sua filha e a toda a família, interveio:

Mas, minha querida filha, e se for esse o teu dever? Ann Eliza olhou furiosa para a mãe, como se
esta a estivesse a atraiçoar:

Oh, mãe, até a minha mãe está contra mim! Terei de lutar sozinha e desamparada? Nem sequer a
mãe estará do meu lado?

Estaria do teu lado, pois és a minha querida e única filha, se achasse que tinhas razão.

Então duvida de que eu tenha razão? Pode duvidar de uma coisa dessas? gritou Ann Eliza. Ou acha
que não é um crime abafar todos os sentimentos naturais de uma pessoa, a aversão que se sente em
face de outra união, sobretudo tratando-se daquele homem? Acha que está certo eu entregar-me a
um sujeito mais idoso do que o meu próprio pai, um homem de quem sinto repulsa como marido,
que está já casado com várias mulheres e é pai de filhos muito mais velhos do que eu?

167
Mas é teu chefe espiritual observou a Sr.a WebbJ frouxamente. J

Mas não é razão para que seja o meu marido amada retorquiu a filha asperamente. Não justifica
que Ihl deva ter afeição. l

A doutrina da nossa igreja manda que te cases, l Resolvida a não se deixar envolver numa
discussão di

carácter religioso, Ann Eliza não refutou o argumento dl mãe. Sentia-se a ponto de rebentar. E
atirou à mãe estas pai lavras como quem a trespassava com uma espada: i

Quer ver-se livre de mim? i A primeira Sr.a Webb lançou-se nos braços da filha â

rompeu a soluçar. l

Bem sabes que não. Como podes dizer uma coisa dessas? Só quero o teu bem, hoje e sempre. Se
consultassJ os meus sentimentos, ninguém te quereria mais junto de si do que eu, mas penso mais
no teu bem-estar do que nol meus interesses. l

Oh, mãe! Não posso, não posso! l Enquanto as duas mulheres se abraçavam, Chauncetl

Webb aproximou-se e tocou no ombro da filha: |

Não te mortifiques, menina. you dizer ao irmãJ Brigham o que pensas e talvez ele desista da ideia.
Mas pai receu-me que ele estava mesmo resolvido a levar as coisa! por diante e não sei como
aceitará a tua decisão. l

Ann Eliza resolveu aproveitar a fraqueza do pai: l

Quem manda em mim é o pai. Diga-lhe isso e qu« não me entrega a ninguém. l

Chauncey dignou-se sorrir de leve, depois carregou <1 sobrolho em face da gravidade da
incumbência, e por fii» foi-se embora. Assim terminou esta cena trágica do sécul Io xix, segundo
consta da autobiografia de Ann Eliza, rela! tiva ao ano de 1876. Começa também aqui a série de
aeon* tecimentos que levariam à sua capitulação e à sua infern J celebridade. l

E necessário, no entanto, recordar que esta descrição d<4 namoro e do pedido de casamento de
Brigham Young re* presenta a versão que Ann Eliza nos dá do acontecimento» As testemunhas
mórmones contam-nos os factos de manei-i rã diversa. Em 1930, Susan Young Gates, a mais ilustre
daá filhas de Brigham, descreve a versão do pai numa biografia»! História da Vida de Brigham
Young. Antes da sua publica-!

168

cão, a autora foi avisada no último instante de que deveria omitir todas as referências a Ann Eliza a
fim de evitar futuras acções no tribunal, e portanto o livro saiu sem qualquer referência àquela, com
excepção de uma nota confusa no índice. No entanto, uma parte original e íntegra da biografia da
Sr.a Gates encontra-se ainda nas mãos dos seus descendentes, e foi nela que descobri a versão de
Brigham acerca do noivado com a sua vigésima sétima esposa.
«Todos nós sabíamos, claro está, por aqueles processos inexplicáveis conhecidos de todas as
raparigas, que o nosso pai não desejava casar-se com Ann Eliza», escreve a filha de Brigham na
parte não publicada do seu manuscrito. «Porém, ela insistia. Era uma mulher divorciada com dois
filhos, e não largava o nosso pai, por intermédio da mãe, falando numa união nominal ”só para
poder usar o nome dele, nada mais”! O meu pai protestava que era um homem velho e que não
queria mais mulheres. Mas ela era teimosa e acabou por vencer.

«Alguns anos mais tarde, George Q. Cannon, que foi durante muito tempo o melhor conselheiro do
pai, contou-me que Ann Eliza e a mãe costumavam vir ao escritório do pai suplicar-lhe que casasse
com a triste viuvinha. Uma vez o pai pediu a George Q. Cannon que se casasse ele com ela e lhe
desse uma casa para ela e para os filhos. Mas Cannon retorquiu-lhe que quem ela queria era ao pai e
não a ele.

«”Estou velho, irmã Webb, e tenho todas as mulheres e filhas que desejo. Sou demasiado idoso para
me casar outra vez”, defendia-se o pai.

«Mas a mãe da viúva insistia: ”Ao menos dê-lhe o seu nome, deixe-lhe ter a alegria de usar o seu
nome!”

«”Isso não lhe basta, irmã!”

«”Basta, sim senhor!”, tornava a mãe, enquanto a filha chorava tapando a cara com o lenço muito
bem dobrado.

«Ora bem, o fim de tudo isto foi o meu pai casar mesmo com ela. Obrigou-o a isso a sua própria
teoria de que as mulheres tinham o direito de escolher marido, pois elas só dispunham de uma
oportunidade de escolha, ao passo que os homens podiam ter várias. E assim ele foi vítima da sua
própria doutrina.»

A maior parte dos descendentes de Brigham não desmentiu esta versão. Edith Young Booth, neta de
Brigham,

169
informou o autor destas linhas que ouvira falar no géni<J «indomável» de Ann Eliza. Em vista
disto, «os pais delil pediram a Brigham que casasse com a filha, mesmo qual nem ele nem ela
tivessem desejo disso, apenas para a torna} uma senhora respeitável». Kimball Young, neto de Brigl
ham, declarou ao autor deste livro: «A minha mãe diztaj muitas vezes que a mãe de Ann Eliza
”cozinhou” o casa J mento com Brigham tendo em mira o prestígio e o dinheiJ ro deste.» Ernest
Leon Dee, ofendido com o que Ann Eliza dissera e escrevera acerca do pai, referia-se também à
pro« posta de casamento de ambos não como sendo da iniciativa do Profeta mas sim da mãe de Ann
Eliza. Depois de ter lei vado a filha a separar-se de Dee, a mãe da rapariga foi prol curar Brigham
Young e disse-lhe: «Veja a minha pobre fi-i lha, ela não tem meios de subsistência. Não poderá
ajudá-la?» J

De uma forma geral, a versão que prevaleceu foi a de| Ann Eliza. Mas numa ou noutra ocasião o
ponto de vistál dos mórmones foi revelado através da imprensa. Em 1882,1 o jornal Police Gazette
publicou um panfleto assinado porl «Uma esposa do Apóstolo». A autora anónima do opúscu-f Io
afirmava isto acerca de Ann Eliza: «Ela era uma verda-I deira mórmon, sedenta de poder e
intriguista quando sei tratava de o conseguir. Ambicionava a glória de ser umaJ das esposas de
Brigham e divorciou-se do marido a fim dei reinar soberana nos seus vastos domínios e sobre as
suas! numerosas esposas.» ,1

Qual a versão em que devemos acreditar? A verdade en-1 contra-se provavelmente a meio caminho
entre as duas.l É mais verosímil que a mãe de Ann Eliza, socialmente am-| biciosa no que dizia
respeito à filha e dedicada à igreja atei ao fanatismo, tivesse movido os cordelinhos a fim de a ca-l
sar com o Profeta. E talvez ela resistisse menos do quei mais tarde deu a entender. Por outro lado,
embora a pri-| meira Sr.a Webb tenha ajudado bastante, nada nos leva a j duvidar do amor e da
insistência dele junto da rapariga. Em J
1867, Ann Eliza era jovem, bonita e livre, e, nessa altura,! Brigham andava muito entusiasmado
com as duas últimas] mulheres a quem se unira, Amelia Folsom e Mary van] Cott, e ainda no ano
anterior fizera uma corte assídua à ac-1 triz Julia Dean Hayne. Talvez tivesse achado Ann Eliza]
irresistível. \

170

Seja como for, no dizer de Ann Eliza esta não tinha o menor desejo de ir aumentar o harém de
Brigham. Encarregara o pai de transmitir ao Profeta a recusa dela, no mais curto prazo de tempo
possível. «Ele disse a Brigham», refere Ann Eliza, «que eu recusava terminantemente; mas o
Profeta riu-se e afirmou que eu mudaria de ideias, com o tempo. Quanto a ele, não desistia, mas
também não era sua intenção precipitar as coisas; deixava-me entregue aos meus pais e esperava
que estes me aconselhassem a aceitar a proposta. Esta última observação fora feita com particular
ênfase e acompanhada de um sorriso sinistro... Mandou-me um recado no qual, sob a aparência de
amabilidade, se ocultava uma ameaça; e eu comecei a sentir as malhas a apertarem-se à minha
volta.»

Durante quase dois anos, através de emissários e por ocasião de algumas visitas, Brigham cortejou
Ann Eliza, mas ela resistiu-lhe. Certa vez, enquanto lhe suplicava que cedesse, afirmou-lhe que o
casamento dela com Dee fora para ele um «grande choque», e que agora, visto já estar livre, tinha
de lhe declarar o seu «amor» e insistir na sua corte. Ann Eliza permaneceu inamovível, embora se
encontrasse sozinha na sua recusa. A mãe e o pai haviam-se colocado abertamente do lado de
Brigham a primeira por razões religiosas, o segundo por uma questão de sobrevivência. Até que
por fim Brigham começou a exercer pressão sobre os irmãos da viúva, Gilbert e Edward Milo,
especialmente no que se refere ao primeiro, o que levou aquela a reconsiderar na sua posição.
No ano de 1866, este irmão de Ann Eliza, Gilbert Webb, que então contava vinte e nove anos e
tinha de sustentar duas esposas, Almira e Kate, ganhava bem a vida num negócio de transportes no
qual trabalhava com dez carros e sessenta mulas. O outro, Edward Milo, era lavrador e contentava-
se com uma só mulher. Nesse mesmo ano, Brigham Young chamou Gilbert ao seu escritório e
ofereceu-lhe um aumento substancial de lucros. Gilbert aceitou, pressuroso.

Esta oportunidade que Brigham oferecia a Gilbert consistia no corte e na preparação da madeira
destinada a postes telegráficos. No ano anterior, o Profeta elaborara um programa patrocinado pela
igreja que constava da construção de uma linha telegráfica no Utah a fim de permitir co-

171
municações rápidas entre as diversas colónias mórmoneJ daquele território. Concordara igualmente
em ajudar m construir uma linha continental comprometendo-se a inst» lar postes telegráficos entre
Salt Lake City e Denver. Brigi ham prometera pagar oito dólares por cada poste recebiddl Em vez
de fiscalizar ele próprio o negócio, entregou o casa ao filho mais velho, Joseph Young, e a um
amigo, o bispa Sharp, prometendo a cada um deles três dólares por postei De combinação com
Brigham, estes estavam prontos a cel der o trabalho a Gilbert Webb, oferecendo-lhe dois dólarea e
cinquenta centimes por cada poste.

Gilbert necessitava de mais carros, mulas e provisõea para os trinta homens que contratara, e pediu
emprestado» onze mil dólares com juros de cinco por cento ao mês, par* te a um banqueiro
«gentio» chamado Kerr, e parte a um tal William H. Hooper, representante do Território Mórmonl
junto do Congresso. A fim de obter com mais segurança estes empréstimos, Gilbert convenceu o pai
a avalizar a le-1 tra, comprometendo assim as suas propriedades. l

Logo que reuniu os trabalhadores necessários, GilberM iniciou a execução do projecto com rapidez
e eficiência, en« tregando todas as semanas os postes necessários para vinta e cinco milhas de linha
telegráfica. Quando a brigada estava quase a chegar a Denver, Gilbert recebeu ordem de BrigJ ham
para regressar a Salt Lake City. Ao entrevistar-se aã com o Profeta, este declarou-lhe que seriam
outros a termi-i nar o trabalho. Entretanto, surgira um contratempo qual*! quer relacionado com a
linha que estava a ser instalada des-1 de o sul do Utah até Montana, e Brigham desejava quel fosse
Gilbert a completar a obra. Oferecia-lhe três dólares! por cada poste cortado e mais um pelo
trabalho de o fixara ao solo. Encantado com a perspectiva de ganhar mais di-l nheiro, Gilbert não se
deu ao trabalho de exigir um contra-I to formal. Apertou a mão ao Profeta e partiu para o NorteJ
depois de conseguir convencer o irmão, Edward Milo, ai abandonar por uns tempos a lavoura para
lhe ir contratar! nova leva de operários. l

Os Webb iam-se desempenhando da tarefa, mas a certa! altura começaram a ficar preocupados à
medida que o tem-| pó passava sem que Brigham lhes enviasse o dinheiro ne-1 cessário para as
despesas gerais, como seja mantimentos,! salários dos trabalhadores e os emolumentos de ambos.
Ed- j

172

ward Milo foi o primeiro a dirigir-se a Salt Lake City no intuito de conseguir que o Profeta, o filho
deste ou o bispo Sharp lhe pagassem o combinado, mas nada obteve. Então foi Gilbert quem se
dirigiu à cidade a pedir explicações deste procedimento. Nada recebeu, porém, a não ser uma letra
de câmbio que teve de trocar num banco com grande desconto. Brigham alegava que os postes de
Gilbert vinham podres, que na sua maioria tiveram de ser inutilizados e que, de qualquer modo, não
tinha obrigação de cumprir um contrato que nunca se fizera por escrito.

No dizer da família Webb, Brigham havia-os ludibriado no negócio, arranjando maneira de


conseguir que lhe fizessem um trabalho de graça. Se acreditarmos na versão de outro dos filhos
legítimos de Brigham, John W. Young, fornecida ao Herald de Nova Iorque, em 1873, a culpa fora
inteiramente de Gilbert: «A verdade é que Brigham Young não tinha nada a ver com os embaraços
financeiros em que se envolvera um dos dois irmãos. Tratava-se apenas de uma questão entre o
irmão dela [Ann Eliza] e outro homem, respeitante a uns tantos dólares e alguns centimes. Se bem
me recordo, esse homem era o Sr. Hooper, nosso actual representante no Congresso. O irmão de
Ann Eliza fizera um contrato no qual se comprometia a entregar um certo número de postes
telegráficos, mas adquirira uns tantos milhares a mais e depois não conseguia pagá-los.»
De qualquer modo, na Primavera de 1868, Gilbert faliu. com o produto da venda da sua empresa de
transportes e das propriedades pagou honestamente aos empregados e ao banqueiro não-mórmon,
Kerr, de forma a ilibar o nome do pai. Sobrou apenas uma pequena quantia para o amigo de
Brigham, o mormon William H. Hooper. Brigham ficou aborrecido. Acusou Gilbert de favorecer os
«gentios» em prejuízo dos mórmones. Gilbert defendia-se afirmando que Brigham decidira arruiná-
lo com o fim de se enriquecer a ele próprio e a Hooper.

Entretanto, em South Cottonwood, Ann Eliza, aterrada, ia-se apercebendo da catástrofe que os
ameaçava.

Em seguida, segundo ela nos conta, Brigham fez o que )á se esperava. Foi a South Cottonwood e
ameaçou claramente a primeira Sr.a Webb: se ela não reparasse o prejuízo que Gilbert lhe causara
«aconselhando» a filha a casar com ele, excomungaria ou «expulsaria» Gilbert da igreja.

173
Pela primeira vez na vida, a primeira Sr.” Webb recusou -se a acatar uma ordem do Profeta.

Se fizer uma coisa dessas, irmão Young, nunca mal lhe perdoarei declarou ela. Mesmo que Gilbert
teníj cometido qualquer erro, a sua intenção era boa. O senht^ gostaria de ver o pai dele envolvido
na falência e arruinada As letras em posse do Sr. Kerr foram assinadas pelo mq marido. j

Se foi o pai quem assinou as letras, então ele é qd tem obrigação de as pagar retorquiu Brigham. i

Mas se Gilbert tivesse sido remunerado pelo seu traí balho, as dívidas já estariam todas pagas. j

Furioso, Brigham respondeu: j

Que é que a senhora percebe deste negócio, sempii gostava que me dissessem! j

A Sr.a Webb não se acobardou: l

Percebo o bastante para ver que os meus filhos estai a ser prejudicados e iludidos, Brigham Young.
O senhoi gostaria de ver um dos seus filhos expulso da igreja e trata do da maneira como o tem sido
Gilbert? |

Acharia isso perfeitamente justo no caso de algucl deles haver errado e merecer castigo. E
encaminhou-M para a porta: Veremos se Gilbert será capaz de pagar a dívidas aos «gentios»
primeiro do que aos seus irmão! mórmones. l

E partiu deixando esta negra ameaça a pairar sobre todjl a família. Gilbert seria excomungado,
arruinado, a não sm que Ann Eliza cedesse. Esta viu o desânimo do irmão e côa moveu-se: «Só nos
esperava o aniquilamento total se efl persistisse na minha recusa», declarava ela. «A perda dom
bens pouco significava para o meu irmão em face da ameaa ca de ser expulso da igreja e da
maldição do Profeta, poifl fora educado na crença de que não podia haver salvação fom rã do
mormonismo. Por isso tal perspectiva aterrava-o.m Além disso, havia ainda outro problema grave:
dentro d<m mormonismo ele era um homem polígamo que cumpria «i lei; mas para o mundo seria
considerado réu do crime dei bigamia. l

Desesperada, Ann Eliza resolveu dirigir-se a Salt Lakél City a fim de convencer o seu pretendente a
usar de miseri*! córdia para com Gilbert, sem exigir como preço a sua pes-1 soa em casamento.
Humilhar-se-ia diante dele e isso nãol

174 ’

poderia deixar de o comover. E foi neste estado de espírito que fez a viagem até à capital.

Uma vez ali, reuniu toda a sua coragem e encaminhou-se para a Casa do Leão. Mas ao chegar à
porta fraquejou e fugiu. Fez mais duas tentativas, acabando sempre por se afastar. Um pouco mais
tarde, ao passear na rua, avistou Brigham que vinha ao seu encontro. Nesse momento resolveu ser
inteiramente franca com ele. Encontravam-se ambos frente a frente e, de súbito, sob o olhar frio do
Profeta, a rapariga sentiu-se desfalecer e ficou muda. Além de um «cumprimento formal», não
conseguiu dizer mais nada.

Regressou vencida a South Cottonwood. O pai e a mãe esperavam-na ansiosamente, assim como o
irmão. Ann Eliza mal se atrevia a enfrentá-los.
«A minha religião, os meus pais, tudo me empurrava para aquele triste destino», escreveu ela. «E
sentia-me tão cansada de lutar que achava mais fácil ceder de uma vez. Comecei também a tornar-
me supersticiosa. Já não sabia se era contra a vontade do Profeta que lutava ou também contra a
vontade do Senhor e achava que acabaria por ser castigada por tamanha rebelião. De súbito
assaltou-me este pensamento: e se Deus me punisse, tirando-me os filhos? Fiquei aterrada. ”Faça-se
a Vossa vontade e não a minha”, foi o grito que soltou o meu coração alanceado um grito mais de
desespero do que de resignação. Fui, portanto, ter com a minha mãe e declarei-lhe que já tinha
resolvido. Seria esposa de Brigham Young!»
v

A VIGÉSIMA SÉTIMA SENHORA YOUNG

Há vantagem em se ter várias espà

sãs: discutem umas com as outras en

lugar de discutirem com o maridé

JOSH BILLINQ

Embora sentisse admiração pela maneira como o Profd ta dominava as diversas mulheres, o
apóstolo Hebq C. Kimball achou por bem um dia fazer uma profecia l Brigham Young: «Tempo
virá em que há-de ter sarilhq com uma das suas esposas.» Brigham ficou mais divertid^ do que
preocupado com o aviso do seu companheiro. S| depois do seu fracasso matrimonial com Ann Eliza
é que < Profeta confessou a Kimball: «Sim, parece-me que a su profecia saiu certa.» ;

Porém, no momento em que Ann Eliza aceitou o pedi do de casamento de Brigham tudo indicava
que este enlac se iria revelar tão auspicioso como os anteriores. À medic{ que se aproximava a data
da cerimónia, Ann Eliza ia send dominada por uma certa passividade e até uma espécie d| excitação
íntima ante a perspectiva de se tornar esposa pai ciai de uma das figuras mais representativas do
país. Quan to a Brigham, pusera de parte toda a arrogância das ante riores ameaças. Na véspera da
boda foi visitar a futur mulher e ofereceu-lhe três vestidos à moda um de seda dois de merino , bem
como uma bolsa nova contendi uma nota de cinquenta dólares.

Para começar, o casamento devia ficar secreto. Era um vontade de Brigham. Alegava o desejo de
evitar as notícia dos jornais, num momento em que o governo principiav de novo a agitar-se contra
a poligamia. No entanto, Ani Eliza desconfiava de que fosse outro o motivo. A verdadei rã razão
daquele segredo temporário era o facto de o Profe ta não querer sujeitar-se à fúria da sua vigésima
quinta esposa, Amélia Folsom.

A 7 de Abril de 1869, Brigham Young e Ann Eliza, ele

176 l

com sessenta e oito anos e ela com vinte e quatro, tornaram-se marido e mulher. A cerimónia
simples na Casa dos Votos foi presidida pelo céptico Heber C. Kimball com a assistência dos pais
da noiva e de alguns amigos. Não sabemos se Gilbert, o irmão arruinado de Ann Eliza, cujas
dificuldades com o negócio dos postes telegráficos haviam decidido aquela união, também estaria
presente na função que o salvou.

Terminada a cerimónia, Ann Eliza acompanhou o segundo marido a uma conferência mórmon,
talvez mais como protegida do que como esposa. À noite, uma vez que Brigham não estava ainda
disposto a enfrentar a fúria de Amélia e a desaprovação do harém, foi levar a noiva a casa dos pais,
fora da cidade, e retirou-se sozinho para os seus aposentos na Casa do Leão.

Há duas versões diferentes daquilo que sucedeu no mês seguinte, ambas da autoria de Ann Eliza.
Nas suas memórias, ela escreve que não viu o marido durante três semanas depois da boda e quando
por fim esteve com ele foi apenas «por alguns minutos». No entanto, ao escrever a uma amiga, Ann
Eliza confessa-lhe que durante as primeiras semanas ele lhe «prestou grande atenção e que as suas
visitas eram frequentes».

Na segunda visita desse primeiro mês, Brigham convidou a noiva para um passeio de carruagem.
Parecia desejoso de não dar pasto às más-línguas ao ser visto na companhia dela e portanto evitava
as ruas mais frequentadas. Ann Eliza gozava imenso com o nervosismo dele. Percebia que ainda
não tivera coragem para participar ao seu harém a última aquisição que fizera. Mas devia preparar-
se para o fazer dentro de pouco, pois perguntou à noiva se não se importaria de viver sob o mesmo
tecto com outras das suas esposas. «Ele queria que eu fosse habitar a Casa do Leão, mas nesse
ponto mostrei-me intransigente. Preferia ficar sempre em casa dos meus pais a ir para ali...»
Finalmente, pngham conseguiu que Ann Eliza lhe fizesse o favor de o lr visitar de tempos a tempos
à Casa do Leão, até ele lhe Preparar uma residência separada em Salt Lake City.

Alguém ouviu um dia Brigham observar que, se tivesse de recomeçar a vida daria a cada uma das
esposas um chalé Particular. Muito embora este arranjo significasse um aumento considerável de
despesa e muita fadiga para as per-

177
nas do marido, por outro lado tornaria o casamento poligl mico muito menos incómodo e quase
pacífico. Esl modalidade de conceder uma habitação particular a dete minada esposa já tivera
precedentes. Em virtude de possu grande energia e capacidades financeiras, Brigham Yom
espalhara pelo território, e em casas diferentes, um cer número das suas esposas. <,

Contudo, a maioria destas encontrava-se reunida, e


1869, na dita Casa do Leão, situada no bairro central J Salt Lake City. No dizer dos mórmones,
nunca se juntara! mais de doze mulheres a dormir ao mesmo tempo na Ca do Leão. Segundo Ann
Eliza, este número fora reduzi^ para seis no último ano do seu casamento.

Onde se encontravam então as outras esposas? Junto <

Casa do Leão e ligada por um corredor ao escritório prij

cipal de Brigham ficava outra residência de importância s

cundária. Esta casa de adobe revestida de estuque amarei

era conhecida pelo nome de Colmeia. Construída dezassel

anos antes da entrada de Ann Eliza para o harém, devial

seu nome à colmeia esculpida por cima da entrada e qm

simbolizava a indústria mórmon. Aí estivera instalado o eM

critório oficial de Brigham durante a época em que desenB

penhou as funções de governador federal do Utah. Os visl

tantes ilustres, que eram numerosos, transpunham o vasB

alpendre, batiam à porta imponente e eram introduzidos IB

átrio principal. Habitualmente, conversavam com BrighaB

na sala verde do rés-do-chão ou no seu gabinete. Raramei»

te tinham acesso ao pequeno e austero quarto de dormir dl

Profeta com uma área de uns oito metros quadrados!

cujo recheio constava de uma cama, mesa-de-cabeceira, sU

cretária, cadeiras e um lavatório ou a qualquer out»

aposento habitado pelas suas múltiplas esposas. l

Antes da construção da Casa do Leão, a Colmeia albdl

gava quase todo o harém. Ao observar as janelas de gradei


o capitão Richard Burton referia: «Nota-se um ar muçuB

mano em volta da Colmeia; raro se vê um rosto de mulhfl

à janela e nunca se lhes ouve a voz cá fora.» Até 1860, Mfl

ry Ann Angell, segunda e única esposa legal de Brigham,!

sua Khadija, era quem reinava na sumptuosa residencial

Porém a vigilância das outras esposas que viviam com efl

sob o mesmo tecto, bem como dos dezoito trabalhadoreB

da quinta que cuidavam do pomar, dos jardins e do moinhJ

178

que ficava nas traseiras e das mulheres da limpeza (às quais Brigham chamava «auxiliares»), era de
mais para as forças de Mary Ann Angell. Retirando-se da cena, entregou os poderes à terceira
esposa, Lucy Ann Decker, até que o harém se transferiu para a Casa do Leão e para outros sítios,
deixando Lucy Ann senhora absoluta da Colmeia.

Entretanto, a esposa legal de Brigham, Mary Ann Angell, foi a primeira a inaugurar um estilo de
vida monogâmico. Quando saiu da Colmeia passou a viver numa casinha relativamente pequena e
aristocrática, de dois andares, conhecida como a Casa Branca. Situada numa colina com vista sobre
a cidade, esta residência, com o telhado de tabuinhas, foi a primeira casa importante de Brigham e
também de todo o território. O seu único defeito era ter poucas janelas, pois naquele tempo o vidro
ficava caro. Ali viveu Mary Ann num orgulhoso isolamento até Brigham vender a casa a um inglês.
Depois disto, a sua esposa legal teve de ir habitar um alojamento mais modesto, situado atrás da
Casa do Leão.

Várias outras mulheres de Brigham seguiram o exemplo de Mary Ann. Emmeline Free, quando se
viu preterida como favorita, retirou-se pacatamente para a casa do falecido Jedediah M. Grant, ao
cimo da Main Street. Este edifício era suficientemente espaçoso para alojar a maior parte dos dez
filhos que Emmeline tivera de Brigham. Zina D. Huntington, a décima oitava esposa, transferiu-se
com armas e bagagens para uma vivenda na Third South Street. Emily Dow Partridge e alguns dos
sete filhos que tivera do Profeta contentaram-se com uma casinha modesta de dois andares na Third
East Street. Clara Decker, que casara com Brigham aos dezassete anos e dele tivera cinco filhos, foi
residir numa casa própria perto do Social Hall, na State Street. Duas outras esposas, Harriet Barney,
a vigésima quarta, e Mary van Cott, a vigésima sexta, eram vizinhas Urna da outra em casas
situadas na frente de South Temple Gate.

Nenhuma destas esposas residentes na cidade estava rnuito tempo sem contactar com o harém da
Casa do Leão. iodas se reuniam muitas vezes com o marido e com as ouras mulheres suas rivais em
jantares e sessões de oração, entanto, algumas delas viviam demasiado longe para Poderem
comparecer às festas da comunidade. Em certo

179
sentido, era como se se encontrassem «expatriadas». Qu

tro milhas além dos limites de Salt Lake City, ficava ^

Granja, residência de dois andares, situada numa vasta pn

priedade rural pertencente a Brigham. Ali viveu durante z

guns anos Susan Snively, esposa de Brigham, natural <

Virgínia, até ser substituída por uma série de outras qj

trabalharam na granja um ano ou mais cada uma, sucessivi

mente. A última delas foi a própria Ann Eliza. £

St. George, no Utah, tinha Brigham a sua mais luxuosa cJ

sã de Inverno dirigida por Lucy Bigelow, que para ali m

mudara nos fins de 1870. Em Provo, no Utah, tambéjl

Brigham possuía uma imponente casa estilo colonial l

telégrafo da cidade funcionava numa das suas salas e rd|

nava ali como dona a esposa inglesa, Eliza Burgess. m

Pouco antes de morrer, o Profeta iniciara a construçjB

do domicílio que sempre sonhara, e que iria ofuscar tod<»

os outros. Tratava-se da Casa Gardo, que custaria cem nm

dólares, um palácio de tijolo e cantaria, mais ou menos nfl

estilo complicado do Iranistam, de Phineas T. Barnum, nfl

Connecticut. A Casa Gardo, com janelas de vidros carosjB

espelhos importados de Paris, destinava-se a residência onl

ciai de Amélia Folsom, a rainha e abelha-mestra do haréaB

Visto ser esse o seu destino, todos lhe chamavam o PalácjB

de Amélia. Mais tarde, as obras da Casa Gardo foram cool

plêiadas pelo sucessor de Brigham, o presidente John TajB

lor, que fez dela a sua residência oficial. jB


Em 1869, porém, não existia ainda a Casa Gardo e fl

esposas que conseguiam conquistar uma certa independêlH

cia contentavam-se com instalações menos luxuosas. MiB

Ann Eliza descobriu que a maior parte das mulheres dH

Profeta não viviam encerradas na Casa do Leão, resolvaB

tomar as suas medidas. Um mês depois de casar, acompiM

nhada pela mãe (que ia viver com ela), partiu com BrighalM

para a nova casa que ele lhe comprara em Salt Lake CrriB

Ann Eliza ficou desiludida ao ver as suas instalações <jl

noiva. A casa era minúscula e pouco atraente. A mobília ofl

sala, de pinho barato, e o tapete, gasto no centro, servira jll

na Casa do Leão. A loiça da casa de jantar, os tachos e aB

panelas da cozinha tinham vindo, já velhos, de uma padariB

que pertencera a Brigham e que este vendera havia poucoM

As janelas, desprovidas de cortinas e persianas, teve ela oJB

as tapar à pressa com cobertores. m

180 ”

Uma vez que fora tão ardentemente requestada pelo Profeta, Ann Eliza esperava sem dúvida ver-se
recompensada com um luxo real. A sua desilusão foi imediata. Recebia uma vez por mês um
fornecimento de víveres: pedaços de carne de porco (raramente de vaca), cinco libras de açúcar,
uma libra de velas, uma caixa de fósforos, uma barra de sabão. Várias vezes por mês entregavam-
lhe uma ração de pão. De seis em seis meses, tinha direito a «seis jardas de pano branco e mais
outras tantas de musselina, umas vezes em bom estado, outras manchada». Segundo ela refere, a
prometida pensão de mil dólares por ano fora verbalmente aumentada para três mil, um ano antes
do casamento soma esta três vezes maior do que a estipulada para qualquer das esposas precedentes
, mas da qual ela nunca viu nem um cêntimo.

Entretanto, a notícia do casamento de Ann Eliza com o Profeta fora tornada pública. Na Casa do
Leão e nas demais residências de Brigham, a novidade tivera um acolhimento frio. Para as outras
mulheres, a nova esposa representava uma ameaça doméstica. O principal motivo deste receio era a
idade da rapariga, oito meses mais nova do que Mary van Cott, a vigésima sexta esposa do Profeta.
Contava também menos seis anos do que a favorita actual, Amélia Folsom, e tinha uma diferença de
nada menos de quarenta e um anos da esposa legal, Mary Ann Angell. A maior parte daquelas
mulheres recordavam-se de Ann Eliza como de uma jovem actriz amiga das suas filhas e sentiam
que a beleza e a juventude fariam dela uma séria rival na afeição do marido, a quem já não faltava
que fazer. Além disso, com a vinda de Ann Eliza, o conforto e a segurança económica delas
poderiam vir ainda a ser afectados. Cada nova aquisição do Profeta significava mais um corte nos
abastecimentos mensais de vestuário e alimentação.

Ann Eliza não era insensível ao antagonismo manifestado pelas suas colegas e receava enfrentá-las.
Porém, muito embora tivesse ganho a batalha no que se referia a habitar a Casa do Leão, sabia que
mais tarde ou mais cedo teria de se encontrar com elas cara a cara. Acabou por receber finalrnente
uma ordem de Brigham, disfarçada em convite. Ann tliza recorda-se de o ter aceitado e refere-se-
lhe em palavras objectivas: «Quando o meu casamento veio a ser conhecido das outras esposas, por
ocasião da minha mudança

181
para a cidade, ele convidou-me a visitar a família na Cãs; do Leão.»

Esta residência não era estranha a Ann Eliza. Conservai vá na^memória todos os cantos e recantos
da enorme mart são. E muito possível que, enquanto aguardava a chegadj da carruagem de Brigham
e o momento de enfrentar as sua) colegas, tivesse recordado o lugar onde outrora fora urr^ hóspede
despreocupada. j

Para os não-mórmones, e particularmente para as pés1 soas influenciadas pelos panfletos


especialistas em escânda* los e pelo jornalismo barato, a Casa do Leão era sinónim< de um harém
oriental. Imaginavam-na como o palácio dl um califa americano, dotada de átrios sumptuosos e de
esj cadarias monumentais, alcovas doiradas e secretas, almofadas, línguas de pavão em travessas de
oiro, incenso, alaúí dês, eunucos, tudo isto numa atmosfera de volúpia i sensualidade. Ann Eliza,
porém, sabia que isto não era ver dade. Sabia que ia entrar não num palácio do Próximí Oriente,
mas naquilo que se assemelhava mais a um dormi tório de mulheres no estilo severo de Vermont. O
ar que s* respirava na Casa do Leão era de carácter excessivamenti feminino, claro, mas também
severo. Dada a natureza d sua organização, a sexualidade ali mal se adivinhava. O de ver religioso
imperava em todas as salas, corredores e alce» vás, o que transformava o sexo numa função
humana, só bretudo procriadora e não num pecado secreto e agradável Numa palavra, dentro
daquela casa respirava-se mais un ambiente de conforto material do que de uma concubina gem
desenfreada. E Ann Eliza não era totalmente estranhi a esta atmosfera, em grande parte gerada pela
própria ar quitectura e disposição do edifício.

A construção da Casa do Leão fora iniciada em 1855 < terminara no ano seguinte. A verdade é que
Brigham Young começara já a transportar para ali as suas esposas com os carpinteiros ainda lá
dentro. As obras haviam-lhe custado cerca de trinta e cinco mil dólares um preço bastante em
conta, atendendo a que grande número de operários se tinham oferecido para trabalhar ou tinham
recebij do ordem para o fazer de graça. A casa completa não imj portaria provavelmente em menos
de sessenta e cinco mi dólares.

Esta residência tirava o seu nome do leão deitado que


182

lhe ornamentava a cimalha. Fora um inglês, William Ward, o autor dessa figura, bem como da
colmeia de pedra que encimava a porta da casa contígua. (Mais tarde veio a causar grande desgosto
o facto de este artista haver renegado a igreja.) O hirsuto animal que encimava a fachada dava pasto
a largos comentários por parte dos antimórmones. É bem conhecida esta observação da autoria de J.
H. Beadle, em 1870: «Por cima dos pilares do alpendre vê-se um leão de pedra, imagem bastante
infeliz, diga-se de passagem, uma vez que o rei dos animais costuma contentar-se apenas com uma
única fêmea. Talvez fosse melhor terem escolhido um toiro...» A verdade é que a escolha do animal
devia-se apenas a uma sensação de nostalgia. Quando em novo se exercitava no ofício de
carpinteiro, na Nova Inglaterra, Brigham Young sentira-se impressionado por um leão que enfeitava
uma casa onde trabalhara. Quando um dia teve possibilidade, adoptou para si o majestoso emblema.

Ao observar a Casa do Leão pouco tempo depois de construída, o capitão Richard Burton escreveu:
«Esta residência assemelha-se a uma mansão de dois andares das índias Orientais.» Para as
mentalidades menos exóticas e cosmopolitas lembra apenas uma das muitas habitações da Nova
Inglaterra, estilo colonial. A matéria-prima era o adobe seco ao sol. E não havia dois andares, como
imaginava Burton, mas sim três. O engano é desculpável, visto que a entrada para a rua se fazia
através de um átrio envidraçado com o fim de evitar o vento e o frio, e dali é que se passava para o
segundo piso, que era o principal. O primeiro andar ficava em baixo e não se via, o terceiro era
inacessível para a maioria dos visitantes.
Este recinto da vida comunitária fora concebido com meticuloso cuidado. Ao descer para o andar
térreo deparava-se com uma série de salas severas, transbordantes de actividade. A maior era a sala
de jantar, com dez metros de comprido e mobilada com três mesas às quais se sentavam por vezes, a
cada refeição, cinquenta mulheres e crianças. Revivendo os seus tempos de actriz, Ann Eliza
recorda este compartimento melhor do que os outros quando se sentava à mesa com as filhas de
Brigham e cantava o protesto diário contra o «pão com manteiga e calda de pêssego».

Os outros compartimentos do andar térreo eram uma manteigaria, uma sala de tecelagem, uma
copa, os aposen-

183
tos do cocheiro e uma escola. Também havia uma adega lj jeada onde se guardavam os legumes e
outros mantimento! e ainda uma casa de barreia dotada de seis tinas de madeir e uma dorna.

Os escritores antimórmones costumavam afirmar quf

este piso dava passagem para celas e corredores subterra]

neos. A Sr.a C.V. Waite dera, em 1866, crédito a esses boaj

tos ao escrever: «Diz-se que há passagens subterrâneas ei|

tre as casas de Brigham Young... e também compartimento!

debaixo da Casa do Leão onde ele guarda os seus tesourei

e castiga as esposas recalcitrantes.» Em 1940 Clarissj

Young Spencer, uma das filhas de Lucy Ann Decker, negai

vá tais rumores: «Tenho quase a certeza de que esses boáj

tos se devem ao facto de ter passado em tempos um cana

por baixo de uma propriedade do meu pai.» j

No segundo andar, o piso nobre, ficava a grande sala di

centro, utilizada para os conselhos, orações e assembleias <

do outro lado do átrio, uma série de aposentos ocupado

na sua maioria pelas esposas e pelos filhos destas. A sal

central era uma espécie de vitrina, com mobília de mogno

um tapete de Bruxelas com desenho de flores, duas mesa

ao meio, um piano de pau-rosa, um harmónio, um enorrrij

fogão de aquecimento, um sofá de veludo vermelho e uma

série de cadeiras doiradas de diversos feitios, pertencendJ

uma a cada uma das esposas. Era aí que as favoritas ou ai

mais velhas recebiam as pessoas amigas. As esposas rnenojl

importantes acolhiam os seus familiares em saletas indivilj

duais. l
Para além desta sala, ficava o único quarto de dormia

com passagem para o escritório de Brignam Young. Esta

pertencera a Emmeline Free antes de ser substituída poli

Amélia Folsom como rainha do harém. UltimamenteJ

Amélia pouco se utilizava desse quarto. Imperava nele unaa

leito de colunas sobre um tapete vermelho. O mobiliariij

era completado por belas cadeiras de castanho, um sofaa

um guarda-fato, um espelho de parede e uma lareira.

Os outros quartos do segundo andar reflectiam não só a]

posição das suas donas dentro do harém, como também ai

personalidade de cada uma delas. Emily Dow Partridge,*

natural do Ohio, possuía um quarto modestamente mobila-S

do, mas fora-lhe concedido alojamento para os seus filhos!

que conservava junto de si. Antes de se transferir para ai

184

Colmeia, Lucy Decker, a terceira esposa, dispunha de uma sala, além dos quartos dos sete filhos
que dera a Brigham. A irmã, Clara Decker, a sexta esposa, ocupava o quarto mais bem ornamentado
de todos com uma cama de talha coberta com um dossel de damasco, um sofá, persianas nas
janelas e um retrato a óleo pendurado na parede que representava Brigham Young.

O terceiro e último andar da Casa do Leão era o que despertava mais a curiosidade dos visitantes.
Do exterior avistavam-se vinte quartos com sacada e os turistas costumavam contar as chaminés
que fumegavam, tentando assim descobrir quantas esposas Brigham tinha à sua disposição. Na
verdade, este piso dispunha de vinte quartos pequenos, na sua maioria ocupados pelas esposas sem
filhos de Brigham e pelos membros mais adultos da sua descendência. Também existia lá em cima
uma enorme sala com possibilidade de ser dividida em cinco pequenos compartimentos.

Os quartos do andar superior, relativamente exíguos, mediam entre três e oito metros quadrados
cada um. Os que davam para a rua eram os mais frios, por isso dispunham de lareira. Os outros
eram aquecidos por meio de fogões. Embora estreitas, as janelas góticas davam luz suficiente. Num
desses quartos dormia Namaah Kendel Jenkins Carter, a quem Brigham chamava Twiss, o nome do
seu primeiro marido. Esta, a vigésima esposa, contentava-se com uma cama vulgar, três cadeiras de
castanho, um lavatório e um pequeno espelho de parede. Harriet Elizabeth Cook, a quarta esposa,
de génio esquisito, possuía um aposento semelhante. Do outro lado do corredor, o quarto e a saleta
de Eliza R. Snow eram mobilados com mais requinte, de acordo com a sua elevada posição. Na
qualidade de viúva do falecido Joseph Smith e de poetisa laureada do mormonismo, Eliza R. Snow
dispunha de mobiliário moderno, flores artificiais e uma mesa ao centro carregada de livros
estrangeiros. Os quartos destinados aos filhos do l rofeta eram guarnecidos segundo a sua idade e
sexo: os rapazes de idades aproximadas dormiam juntos, o mesmo sucedendo com as raparigas.

Era pois este o interior da Casa do Leão onde Ann Eliza penetrou em 1869, não já como amiga das
filhas de Brigftarn, mas sim como sua madrasta e última esposa do Profea- Lá dentro, as outras
mulheres aguardavam, enquanto ele

185
prendia os cavalos a um poste junto à porta da Águia e e(

seguida conduzia Ann Eliza pela escadaria exterior, depdj

de passarem a casa do guarda, através do vestíbulo central

Nem Ann Eliza nem nenhuma das pessoas presenti

deixou escrito quantas esposas se encontravam ali. MSB

tarde, ela referiu alguns nomes, dando no entanto a entea

der que havia mais. Falando das presentes, Ann Eliza escM

véu: «Fui muito bem recebida pela maior parte delas, sd

bretudo por Emmeline Free e Zina Huntington de quem l

era amiga. No entanto, duas, Eliza Burgess e Harríjj

Cook, não me falaram.» J

As duas esposas que mais amáveis se mostraram pai

com Ann Eliza naquele dia, Emmeline Free e Ziil

D. Huntington, tinham descido havia muito na cotação dá

Profeta. Emmeline Free, a décima primeira esposa, mona

polizara durante quase duas décadas, a seguir ao seu casa

mento, as atenções do Profeta. No dizer de Fanny Steal

house, ela era «a mais bonita das esposas de Brigham -l

alta e graciosa, de cabelos encaracolados, uns belos olhos l

bonita pele». Era também a mulher mais prolífica do há

rém, pois dera ao marido seis filhas e quatro rapazes. Côa

bitou com o Profeta pelo menos durante dezassete anoJ

visto que a sua primeira gravidez data de l847 e a última o|

1864. E significativo o facto de ela não ter voltado a ter fg

lhos desde que o Profeta se casou em 1863 com Ameia

Folsom, que então passou a dominar na Casa do Leádj


Desde que fora posta de parte em favor de Amélia FolsoiM

Emmeline sofreu uma depressão nervosa e esteve larga

tempo enferma. Poucas das suas colegas a lamentaram, ráj

comando os desgostos que ela lhes havia causado. ’l

A mais íntima amiga de Ann Eliza, na Casa do LeãoJ

Zina D. Huntington, era a décima oitava esposa. Fora casal

da simultaneamente com Henry Bailey Jacobs e JosepS

Smith, no Ilinóis. Depois do assassínio de Smith, casara-»

com Brigham em terceiras núpcias, pouco antes da camil

nhada para o Oeste. Mulher forte e soturna, profundamenj

te religiosa e temendo o terceiro esposo, Zina D. Huntings

ton pouco afecto recebia deste, embora sobre si pesasseraj

grandes responsabilidades. Utilizando os bichos-da-sedJ|

que Brigham importara de França, dirigiu sem grande exitta

uma sirgaria nos arredores da cidade. Também, na qualida-1

de de parteira oficial, foi ela quem ajudou a vir ao mundo ál

maior parte das crianças nascidas na Casa do Leão. l

186 ’

Ao que parece, Brigham Young desejava há muito afastar do seu caminho Zina D. Huntington.
Quando a única filha que esta tivera do Profeta, também chamada Zina, se apaixonou por um inglês,
Thomas Williams, Brigham declarou-lhe que, se queria ficar com a filha, tinha de levar também
consigo a mãe. Esta não se fez rogar. Saiu da Casa do Leão e foi viver com a filha e com o genro.
Mais tarde comprou a Brigham uma residência particular. Só depois da morte do marido se decidiu
a viajar, indo passar dois anos numa missão nas ilhas Sanduíche. Porém, no ano de 1869, com
quarenta e oito anos, Zina D. Huntington encontrava-se ainda muito presa à Casa do Leão e
simpatizava imediatamente com qualquer pessoa que se identificasse consigo na desilusão, por isso
sentiu logo que poderia entender-se com a vigésima sétima esposa.

Além daquelas duas que logo distinguiu pela maneira calorosa como a receberam, Ann Eliza
referiu-se mais tarde a outras que se haviam mostrado amáveis e afectuosas. Não há dúvida de que
Lucy Decker, governanta da Colmeia, veio logo prestar as suas homenagens a Ann Eliza e que a
irmã daquela, Clara Decker, se revelou igualmente simpática.
As irmãs Decker eram ambas baixas, fortes e cordiais. A mais velha, Lucy, primeira esposa
poligâmica de Brigham, contava quarenta e sete anos quando encontrou Ann Eliza depois do
casamento desta com o Profeta. Lucy separara-se do primeiro marido, o Dr. Isaac Selley, para se
consorciar com Brigham. O primeiro dos sete filhos que teve deste, um rapaz chamado Brigham
Heber, nascido em
1845, foi o primeiro descendente dos casamentos poligâmicos do Profeta. Era cadete na Academia
de West Point na altura em que Ann Eliza entrou para o harém. Lucy sentira-se feliz até então a
governar sozinha a Colmeia, lugar que ocupou até Amélia Folsom transferir para aí o seu boudoir,
obrigando assim a outra a servi-la.

Clara era a mais nova e também a mais inteligente das duas irmãs. Contava quarenta e um anos e há
um quarto de século que era esposa de Brigham. Ann passou imediatamente a adorá-la. «Raramente
exprime a sua opinião», relaj-a ela mais tarde, «mas quando tal sucede fá-lo de maneira Decidida e
o marido não fica com dúvidas acerca do que ela Pretende dizer... Ninguém pode conhecer Clara
Decker sem ficar a estimá-la.»

187
Havia ainda provavelmente mais umas seis ou sete espj

sãs na Casa do Leão que acolheram favoravelmente AÉ

Eliza quando esta ali apareceu na qualidade de colegj

Achou que a mais amável de todas era a vigésima, a tj

Sr.a Twiss, de quarenta e oito anos, loira, sardenta e rjj

chonchuda, que governava o harém. Ann Eliza tambéJ

afirma que Martha Bowler, de quarenta e sete anos, a dera

ma quinta esposa, irascível e sempre doente, «nada tinha <

brilhante do ponto de vista intelectual». A seu respeito e

crevia Fanny Stenhouse: «O irmão Brigham trata-a con

se se tivesse esquecido completamente que casou com el

por isso leva uma vida solitária de autêntica solteirona

Ann Eliza considerava Harriet Barney, a vigésima quai;

mulher que estava casada com Brigham há treze anel

«uma mulher de dotes superiores». Apesar de ser alta e foi

te, era também extraordinariamente graciosa. Amava pra

fundamente Brigham e, muito embora Ann Eliza fosse já<|

terceira que lhe sucedia, aceitou-a com a mesma tolerânca

que manifestara em relação às outras.

Entre as menos amáveis que Ann Eliza deve ter enco«

trado nesta primeira visita à Casa do Leão foi sem dúviáj

Margaret Pierce, de quarenta e seis anos de idade e decidi

sétima esposa do Profeta. O seu único filho, Morris, eral

quinquagésimo na série de Brigham Young. Havia ainfl

Lucy Bigelow, vigésima segunda esposa, cuja estada M

quinze anos na Casa do Leão terminaria no ano seguinB


com a sua transferência para St. George. A seguir, EmiH

Dow Partridge, a oitava esposa, casada primeiro duraria

poucos anos com Joseph Smith e mulher de Brigham hl

vinte e cinco. Encontrou ainda Eliza R. Snow, a qual alçais

cara a celebridade literária aos vinte e dois anos, se conveil

terá ao mormonismo aos trinta e oito e se tornara espofflj

de Brigham com quarenta e cinco. O seu papel na Casa dfl

Leão era muitas vezes o de «árbitro da tensão domésticájl

entre as esposas infelizes, no dizer de Susan Young Gates!

Ann Eliza considerava a grande poetisa Snow como «

mais intelectual de todas as esposas». ’l

À chegada de Ann Eliza, duas esposas apenas manifesfl

taram abertamente o seu antagonismo e desprezo. Forafli

elas Eliza Burgess, única estrangeira no harém, e Harridl

Cook, a tão falada esposa de Nova Iorque. Eliza Burgessi

imigrante inglesa que fora criada de Brigham Young e Maryl

188 ”

Ann Angell, no Ilinóis, tornara-se na vigésima terceira esposa do seu amo no ano de 1850 e dera-lhe
um filho três anos mais tarde. Na Casa do Leão, voltara ao seu papel de criada, ajudando a Sr.a
Twiss no governo da casa. Considerava Brigham um deus. «É quase doloroso obervar a muda
adoração que ela dedica ao seu senhor», escreve Ann Eliza, «e a maneira deferente como este a
trata.»

A vigésima sétima esposa sempre afirmou compreender o ressentimento desta sua colega. «Eliza
Burgess, embora nunca tivesse sido a primeira esposa nem sequer a favorita, sentia-se
profundamente infeliz sempre que Brigham aumentava a família. Passava dias a chorar
amargamente e por vezes fechava-se no quarto sem querer ver fosse quem fosse. Este seu desgosto
era alvo da troça por parte das outras, visto que nenhuma delas compreendia a razão disso. Mal
acabara de se revoltar contra a aliança do Profeta com Mary van Cott, recebeu o golpe do seu
casamento comigo.
«Como ela habitava a Casa do Leão há vários anos, conhecia-me muito bem, e via-me muitas vezes
durante o Inverno em que estive no teatro, pois eu passava lá muito tempo; mas quando ali voltei a
seguir ao meu casamento nem sequer me olhou nem me quis falar.»

Quando a nova esposa se retirou, Zina D. Huntington e o grupo simpático a Ann Eliza chamaram
Eliza Burgess de parte e perguntaram-lhe:

Porque é que não quiseste falar com a Ann Eliza?

Oh, hei-de falar-lhe só quando me apetecer! replicou Eliza Burgess.

Só depois de a nova esposa ter vindo por diversas vezes a Casa do Leão é que ela, cansada de
chorar e de se manter amuada, resolveu de repente dar pela sua presença:

Bons dias disse delicadamente ao vê-la. E foi-se embora. Ann Eliza depreendeu que isto era a
demonstração de que finalmente a reconhecera pelo lado oficial.

A outra inimiga que Ann Eliza contava dentro do ha-

rern, Harriet Cook, de quarenta e cinco anos, mostrara-se

menos transigente. Embora dispusesse da vantagem de ser a

quarta esposa de Brigham, detestava o marido de todas as

°rmas e feitios e este manifestava-lhe também o seu des-

Prezo. Segundo a descrição de Ann Eliza, era uma mulher

a, de feições regulares, com excepção do nariz pontiagu-

° e da boca mal-humorada. Durante os vinte e cinco anos

189
que estivera casada com Brigham adquirira uma atitude! nica em face da religião do marido. «O
mormonismo, a J ligamia e toda essa treta não passam de porcarias e po<« ir para o diabo que não
lhes ligo a menor importance costumava declarar com grande espanto das pessoas am»

Sempre que podia, Brigham Young evitava encontrai com Harriet, e quando por acaso conversavam
ele evia sempre falar em teologia. «Sentindo-a tão rebelde e vel cando ser incapaz de a submeter,
recusava-se a viver cf ela», conta Ann Eliza. «Muito embora ela continuasse ai bitar a Casa do Leão
na companhia das outras esposas,! afastava-se dela o mais possível e só parecia dar pela i presença
quando lhe era impossível deixar de o fazer.» n podemos considerar tendenciosa esta opinião de
Ann EH uma vez que há outras testemunhas a confirmá-la, l
1866, a Sr.a C. V. Waite escrevia: «Brigham não se impa nada com esta mulher e evita-a o mais
possível.» Oito am mais tarde, Fanny Stenhouse afirmava que Harriet «é \m mulher inteligente mas
nada civilizada». m

Fosse como fosse, em 1846 Harriet e Brigham tinM tido um filho. No dizer de Fanny Stenhouse, o
Profeta í tigara a sua quarta esposa não lhe concedendo mais filffl E talvez assim fosse melhor. O
único rebento daqia união, chamado Oscar, era descrito pelos cronistas am mórmones como sendo
uma criança intratável, de um gel difícil. Chamava a Brigham «o velhote» e este referia-a ele como
«o réprobo». l

Quando Ann Eliza veio a conhecer o resto do harl em 1869, Harriet Cook fazia por esquecer os seus
agr» ensinando as crianças na cave e confeccionando camia calças e casacos para os numerosos
rapazes que habitava* Casa do Leão. Não fazia o menor esforço para escondi» ódio que sentia por
Ann Eliza, ódio esse cujas raízes ml gulhavam provavelmente no passado. Segundo refere fm
Eliza., «Harriet servira como criada em casa dos meus pi em Nauvoo, e fora na verdade aí que
Brigham se casj com ela. Cuidara de mim em pequenina e quando sotl que eu me tinha casado com
o Profeta ficou tão furiosa dj lamentou sinceramente não me ter afogado nessa altura

Quatro das esposas mais importantes de Brigham dj estavam presentes na Casa do Leão no dia da
primeira vi ta de Ann Eliza. Mary Ann Angell, a esposa legal, de si

190

senta e seis anos, não apareceu. «Muitas pessoas no Utah mleam que já morreu», dizia Fanny
Stenhouse, «tão raras são as vezes em que alguém a vê ou sabe alguma coisa a seu respeito. No
entanto, encontrava-se bem viva em 1868 e assim permaneceria ainda por mais treze anos.» Esta
ausência não teria sido motivada pela vinda de uma nova esposa quarenta e dois anos mais nova do
que ela. A Sr.a C. V. Waite dava a entender que Mary Ann se mantinha longe da Casa do Leão pelo
facto de «se dar muito mal» com as outras esposas. Pelos vistos, ela tinha sempre em mente a sua
posição legal e não se coibia de o fazer sentir às companheiras, o que dava motivo ao mal-estar.

A verdade é que, muito respeitada no Utah, Mary Ann Angell levava vida reclusa na Casa Branca,
no alto da colina. Ann Eliza encontrou-se mais tarde com ela formalmente, e era de opinião de que
«não estava boa da cabeça». Tanto a primeira como a última esposa pareciam entender-se bem.
«Ela sempre se revelou simpática para comigo», diz Ann Eliza, «e eu, por minha vez, tratava-a com
respeito e deferência, sobretudo depois de vir a pertencer à família do marido. É uma mulher muito
calada, não provoca nem faz confidências, tem poucos amigos e quase não sai de casa.»

Susan Snively, de cinquenta e quatro anos, décima terceira esposa, também se encontrava ausente
da Casa do Leão. Era uma mulher do Sul, simpática e modesta, de ascendência alemã, que vivia na
Granja, uma propriedade dos arredores pertencente a Brigham. Ao cabo de oito anos de isolamento
na quinta, a orientar o fabrico da manteiga e do queijo para toda a família Young, a saúde de Susan
foi-se abaixo. Trouxeram-na inválida para a Casa do Leão e, mesfno depois de parcialmente
restabelecida, ficou ali a viver como semienferma. Foi durante este período que Ann Eliza a
conheceu e se tornou sua confidente. Certo dia, queixando-se da sua involuntária reclusão, a décima
terceira esP°sa confessou a Ann Eliza: «Como eu gostaria de dar um Passeio de carro e que bem me
havia de fazer! Temos tantas carruagens e nunca me levam a passear!»

A mais importante das esposas de Brigham, Amélia

°lsorn, de trinta e um anos de idade, bem como a noiva

que precedera Ann Eliza, Mary van Cott, não vieram, nem

Urna nem outra, dar as boas-vindas àquela. Mary van Cott

191
vivia numa casinha própria e, a pedido de Amélia Fols não tinha entrada na Casa do Leão. Amélia,
por seu li furiosa com a última fantasia matrimonial do Profeta, O’ mantinha afastada dentro da
Casa do Leão ou fora passs dia algures na cidade. De momento, e com grande sati cão de Ann Eliza,
ficou adiado o encontro, e assim se taram sarilhos.

A apresentação de Ann Eliza no harém, no fim da mavera de 1869, revestiu-se de um certo mal-
estar mas: causou grandes perturbações. Se acaso ela pensava que s esta a sua primeira e última
visita à Casa do Leão, eng: va-se absolutamente. Brigham aprovava a vida em corr e, durante o ano
que se seguiu ao casamento, até Abri
1870, convidaram-na a assistir regularmente a refeições, zás e actos sociais. Sentindo-se sozinha, e
como no ha encontrava divertimento e animação, Ann Eliza não pu objecções. Além disso, embora
o ambiente fosse propôs damente severo, a Casa do Leão dispunha de mais confí do que a velha e
minúscula residência que Brigham concedera.

Como membro oficial do harém, Ann Eliza verifi que a rotina diária das esposas na Casa do Leão
era t ordenada e caracterizava-se por uma actividade consta Brigham percebera instintivamente
aquilo que os chefes litares aprendem por experiência que, quando temi nosso cargo um grande
número de pessoas, há que mal -Ias disciplinadas e activas.

Naquele harém americano, o dia começava habid mente pouco depois do nascer do Sol, cerca das
sete da l nhã. As mulheres acordavam, vestiam os filhos, enfiavan saias e as blusas de chita e faziam
as camas. Às oito me) cinco, no Verão, na Primavera e no Outono, e às oit vinte e cinco, no
Inverno, a Sr.a Twiss ou Eliza Burgess* ziam soar uma campainha pelos corredores dos segund
terceiro andares da Casa do Leão. Dentro de cinco minií as três mesas das casas de jantar do rés-do-
chão encon vam-se repletas. O pequeno-almoço, preparado p Sr.a Twiss, ajudada por duas
cozinheiras de fora, com nha-se, na maior parte das vezes, de ovos, batatas, em dão, torradas, fruta e
a tão detestada calda de pêsse

Enquanto se servia o almoço na Casa do Leão, Brigh Young, na Colmeia, ao lado, levantava-se e
vestia-se. Pré

192

ria almoçar sozinho, embora algumas vezes o fizesse na companhia de Amélia, sendo sempre
servido por Lucy Decker. Brigham comia pouco e apressadamente: uma taça de leite, pão e fruta.
Às vezes, dava-lhe na fantasia pedir a Lucy que lhe trouxesse um prato de bolos de trigo moído que
molhava em xarope feito em Vermont.

Perto das nove horas, Brigham dirigia-se ao seu escritório contíguo à Casa do Leão. Encavalitava os
óculos minúsculos e de aros pretos sobre o nariz, lia o jornal The Deseret News, seu porta-voz
oficial, e em seguida o Tribune, de Salt Lake City, o principal periódico antimórmon. «Todas as
manhãs se enfurecia com a leitura desse jornal», observa Ann Eliza. Posto ao corrente da imprensa
local, Brigham ocupava-se do correio, lia as cartas que lhe eram dirigidas e respondia às mais
importantes. Às dez horas chegava o barbeiro para lhe fazer a barba e aparar as suíças. O resto da
manhã era dedicado a receber visitas.

Brigham orgulhava-se da atitude democrática que adoptava para com os visitantes, acolhendo da
mesma maneira tanto as suas mais humildes ovelhas como os mais ilustres viajantes vindos do
Leste. O próprio John Hyde, que poucas virtudes reconhecia no Profeta, não lhe negava esta
qualidade: «Certo dia, uma senhora de idade foi perguntar-Ihe muito a sério ”o que seria mais
agradável ao Senhor, se usar flanela amarela ou encarnada nas roupas interiores”, respondendo-lhe
ele com toda a gravidade que ”a amarela era de longe a mais indicada”. A seguir a essa senhora, o
próximo visitante poderia muito bem ter sido D. Pedro II, o último imperador do Brasil, ou o barão
de Rothschild, °u então o general William Tecumseh Sherman, pois todos estes foram recebidos por
Brigham.» De facto, durante o período em que esteve casado com Ann Eliza, Brigham teve a visita
do então já idoso Ralph Waldo Emerson, quando da sua viagem à Califórnia, onde ia fazer uma
conferênCla intitulada Imortalidade. Muito embora Brigham tivesse conversado sumariamente com
Emerson acerca dos livros rftais importantes que se ocupavam do Utah, o chefe mórm°n não parecia
aperceber-se da fama alcançada por esta grande figura literária de Concord, ou talvez se recusasse a
econhecer isso. Brigham conversava sobretudo com os ernbros da comitiva de Emerson, até que o
esquelético e erudito secretário do Profeta, não podendo conter-se por

193
mais tempo, exclamou: «Este senhor é o tão justamente! lebre Ralph Waldo Emerson? Já li quase
todos os seua vros!» Em vista disto, Brigham pediu-lhe que assinass livro dos visitantes ilustres e
em seguida despediu-se < desejando-lhe uma boa viagem.

Depois de receber os visitantes da manhã, Brigham c

pava-se dos seus negócios. O período de oito horas que

dicava ao trabalho não tinha intervalo, pois habitualrni

não almoçava. Durante a tarde, celebrava alguns casam

tos, concedia divórcios, assistia a enterros e conferên,

(com os seus apóstolos, bispos e membros da polícia

igreja) acerca de problemas urgentes e inspeccionava os

balhos públicos. ;

Entretanto, na Casa do Leão, quase todas as esposai!

Brigham se mantinham ocupadas. Raramente punha»

vista em cima do marido durante o dia, contudo afada

vam-se como se ele estivesse sempre a vigiá-las. Coma

vam pela limpeza dos aposentos. Quem lavava a loiça ea

as criadas de fora, mas as esposas, divididas em turnos!

duas ou três, tinham a seu cargo as tarefas domésticas el

da uma lavava e engomava as suas roupas. As dobadoira

as rodas de fiar estavam sempre em movimento, fabrica»

saias e fatos de algodão para as crianças. Estas, em graji

número, não deixavam às mães tempo para descansar. !

rante parte do dia, estavam ocupadas na escola de Hara

Cook. Em seguida, conforme o desejo das respectiB

mães, podiam passar a ser ensinadas por professores pai

culares. Estudavam música, dança, inglês e francês e as m

parigas aprendiam estenografia, dirigidas por um especiaa


ta. Além disto, as mães ensinavam as filhas a coa|

enquanto os rapazes ajudavam os trabalhadores nas terra

na condução do gado. Quando o calor apertava, as muM

rés levavam os filhos para a piscina do pátio, nas traseifl

da casa, a qual era alimentada por um riacho que descia cfl

montanhas. Os fatos de banho eram proibidos. As mulfl

rés e as crianças envergavam túnicas de uma mistura de HE

algodão sobre uns calções e os rapazes vestiam fat$|

-macacos leves. a

Sempre que tinham uns momentos disponíveis, as esM

sãs de Brigham sentavam-se a coser em frente das maquiai

de costura importadas de St. Louis. Muito embora os vesfl

dos de seda preta que usavam aos domingos e nas cerinM

194 ’

nias fossem comprados feitos e por vezes de um corte bastante moderno, a maior parte do vestuário,
sobretudo os toucados, as calças de musselina e as saias de algodão, era de fabrico caseiro. Brigham
reparava bastante na distinção feminina e por essa razão as esposas que mais o amavam andavam ao
despique para lhe cativar as atenções, gastando por isso muito tempo na confecção do guarda-roupa.
Até aquelas a quem o marido era indiferente continuavam a preocupar-se com a sua aparência, só
pela simples razão de serem mulheres.

A tarefa de confeccionar vestidos que seriam exibidos diante de Brigham não era coisa fácil. O seu
gosto nessa matéria revelava-se dogmático e muito limitado. Uns dez anos antes de se casar com
Ann Eliza tentara impor às esposas as suas ideias em matéria de indumentária, desenhando uma
coisa monstruosa a que chamou «o traje Deseret». Constava de um boné militar com trinta
centímetros de altura, uma saia em forma de saco que batia nas barrigas das pernas, cobrindo umas
calças inventadas pela literata emancipada Amelia Bloomer, tudo isto acompanhado por um casaco
solto de antílope. Eliza R. Snow adoptou imediatamente este traje, chegando mesmo a cortar um
dos seus vestidos de seda para o transformar nas três peças desse horrível uniforme. Não tardou que
as colegas a imitassem, embora de má vontade. Porém, uma a uma, acabaram por o pôr de parte.

No dizer de Susan Young Gates, «as mulheres mórmones eram demasiado femininas para
manterem durante muito tempo tais costumes. Apreciavam as cores garridas e os vestidos bonitos,
pelo que este traje passou de moda dentro de poucos anos, deixando apenas a recordação do espírito
de disciplina daquelas que o haviam um dia adoptado». Ann Eliza, porém, foi menos indulgente nas
suas apreciações acerca do «worth dos mórmones»: «Tratava-se de um vestuário que ficava
horrivelmente mal, tanto ao rosto como à silhueta; nada tinha de belo nem de gracioso e
provavelmente nunca as mulheres mórmones estiveram tanto à beira de se revoltar contra o Profeta
como no momento em Ijie este lhes ordenara que se mascarassem com esta medonna
indumentária.»

Vencido pela vaidade feminina, Brigham reduziu-se momentaneamente ao silêncio, mas não tardou
a erguer de no-

195
vo a voz a respeito da moda. Censurava os chapéus de £ tasia e aprovava os vestidos feitos em casa.
Quando alg« das esposas se atrevia a usar anquinhas, ou saia de balãoj qualquer espécie de
acessório mais sofisticado, ele pergl| tava-Ihe ironicamente se fazia aquilo para espantar as rnj cãs
ou os percevejos. l

Até esta campanha menos violenta de Brigham encí trava discordantes. Um dia, certo marido, farto
de ouvi queixas das esposas, interpelou o Profeta: «Irmão Brighj nós já vimos algumas senhoras
apresentarem-se em fé com vestidos singelos e feitos em casa, mas a verdade é i todos os homens
preferem as raparigas que levam em c; de si trapos no valor de cem dólares, e dançam com to elas
menos com as que ostentam esses tais vestidos simp as quais ficam toda a noite encostadas às
paredes.»

Brigham respondeu a este marido recalcitrante no i mão do dia seguinte: «Na minha opinião, uma
senhora : ganha nada em se enfeitar com penas emprestadas. Quai olho para uma mulher, reparo
mais na cara dela, a qua compõe de testa, faces, nariz, boca e queixo, e gosto de tudo isto limpo, os
cabelos sedosos e bem penteados,’ olhos claros e brilhantes; e quando isso não acontece, < me
importa o que ela traz na cabeça ou qual o tecido sua roupa?»

A maior parte das mulheres acatavam os desejos do senhor e curvavam-se sobre as máquinas de
costura conl cionando saias e blusas de modelo antiquado. Amelia I som, porém, apoiada por Lucy
Decker, Ann Eliza e mu das filhas mais velhas de Brigham, constituía o bloco < lutava pela fantasia
no vestuário feminino.

No entanto, de tempos a tempos e sem razão aparei Brigham mudava de opinião. Numa cerimónia
religií nocturna a que Ann Eliza assistiu, uma das filhas de Br ham e de Lucy Decker, chamada
Fanny, de vinte anos idade, apareceu com um vestido preto ornado com um Ião vermelho vivo.
Eliza R. Snow, toda conservadora, < fora a primeira a ostentar o traje militarista de boné alto última
a abandoná-lo, e que procurava sempre mostrar ainda mais severa do que o marido em questões
tempori torceu o nariz em face do galão escarlate de Fanny, e exc mou: «Será possível que eu esteja
a ver uma das filhas Brigham Young com um vestido enfeitado a vermelh* Nem posso acreditar!» \

196

Enfadado, Brigham voltou-se na sua cadeira e respondeu secamente a Eliza R. Snow: «O vestido
não tem nada a censurar. Deixa a rapariga em paz. Ela pode vestir-se como quiser. Já te vi com
coisas mais ridículas.»

Ao mesmo tempo, Brigham castigava as suas esposas que exigiam vestidos feitos, recusando-lhes
dinheiro e material de costura. Só Amélia conseguia tudo quanto queria. Quando Clara Decker, a
rechonchuda esposa número seis, lhe pediu uns bocados de pele para debruar um vestido, Brignam
descompô-la pela sua extravagância e pelo seu mau gosto. Clara, que já por mais de uma vez
recebera recusas deste género, não se conteve e perdeu por completo a calma: «Se está convencido,
Brigham Young, de que me importo consigo para alguma coisa a não ser por causa do dinheiro e
das coisas que me dá, engana-se redondamente. Já houve tempo em que assim não era, mas isso
passou.» E voltou-lhe as costas, furiosa. Nessa noite ele mandava-lhe as peles que ela queria.

Seis meses depois do casamento, Ann Eliza fez-lhe um pedido semelhante. Ignorava o que se
passara com a outra esposa e julgava que obtinha as desejadas peles imediatamente. Brigham,
porém, censurou-a pela sua futilidade e extravagância. Indignada com tal destempere, Ann Eliza
desatou a soluçar: «Oh, não diga isso, irmão Brigham!» Comovido com as lágrimas dela, Brigham
calou-se e no dia seguinte dava-lhe as peles.
Mais tarde, encorajada por este triunfo, Ann Eliza pediu ao marido um pedaço de seda para forrar
um regalo já usado. Brigham voltou a explodir: já lhe dera as peles e ela agora vinha pedir seda.
Que mais exigiria? Nunca ficaria satisfeita, sempre com mais pedidos? Desta vez, Ann Eliza não
lhe deu o prazer de a ver chorar. Manteve-se firme e escutou a tirada até ao fim. «Eu sabia que ele
tinha várias rnalas cheias de sedas, veludos e rendas que guardava para diversos fins», diz ela,
«portanto o forro do meu regalo não J. e custaria dinheiro. Nesse caso, a descompostura que me
dava não era merecida. Contudo, nada mais disse e ele aca°u por cortar um pedaço de seda estreita,
um quarto de Jarda, de uma peça inteira e ofereceu-mo com tanta ostenaÇao como se se tratasse de
um corte de vestido. Escusado ja dizer que não forrei o meu regalo com esse pedaço de seda.»

197
Esta atitude de desafio no que respeitava ao vestu^ não ficou por ali, quanto a Ann Eliza. Certo dia,
Briglj declarou às pessoas reunidas: «A primeira vez que eu l uma das minhas esposas com os fatos
a arrastar pelo ca you buscar uma tesoura e corto-lhos!» Na noite segui Ann Eliza apresentou-se
com uma saia a varrer o soalhe Casa do Leão. Ao transpor uma porta, deu de caras coi marido.
Quando se afastou para a deixar passar, ele pis -lhe, sem querer, a cauda. Primeiro, olhou para o
chão, pois fitou-a, mas seguiu sem dar palavra. E não foi busc tesoura. Pelo menos na batalha dos
vestidos, a vigesimal tima esposa ficou sabendo que ganhara. |

Durante nove horas em cada dia, a Casa do Leão n tencia às mulheres. Às quatro da tarde, tudo
mudava. Bi ham aparecia para visitar as esposas. Às cinco em ponto cava a sineta para o jantar e
Brigham conduzia o rebai das mulheres e dos filhos até à sala de jantar. Ninguém dia chegar tarde,
aquele que o fizesse ficava sem cor As mulheres e as crianças enchiam duas mesas com] das.
Brigham sentava-se pomposamente ao centro priflj pai, de frente para as outras. Noutros tempos,
EmmeH Free ocupava a cadeira que ficava à sua direita e Ejj R. Snow tomava lugar à esquerda.
Agora, era Amélia H| som quem se instalava à direita e a Sr.a Twiss à esquerda fim de estar mais à
mão para pedir coisas para a cozinl Por vezes, a Sr.a Twiss cedia o seu lugar a Eliza R. Snowl a
algum amigo de Brigham, por exemplo Joseph R. Smâ sobrinho do falecido Joseph Smith, ou a
qualquer ilusj visitante não-mórmon. Amélia nunca dava o seu lugafl ninguém. Por vezes, Lucy
Decker, abandonando a Cl meia, ou então Eliza R. Snow, presidia às outras rnesl Quando ali ia
jantar, Ann Eliza ficava na mesa das mulffl rés que não tinham filhos. l

Depois de Brigham fazer a oração, a Sr.a Twiss comedi vá a andar de um lado para o outro,
passando as travessa Geralmente, a refeição compunha-se de milho assado, Mj cadinhos de carneiro
ou vaca, batatas assadas, legumes, iol e queijo. A sobremesa variava entre maçãs assadas e leia -
creme. Só se comia galinha aos domingos, substituindo» por vezes os bifes de urso ou outra caça
qualquer. O peru e| reservado para o Natal e para o Dia de Acção de Graçsi Ann Eliza reparara que
na realidade havia duas espécifl

198

de comida: uma, mais simples, para as mesas das mulheres e das crianças, outra, acompanhada de
acepipes, destinada à mesa de Brigham Young. Algumas das esposas menos importantes ofendiam-
se com esta discriminação. Certo dia, uma delas, normalmente das mais pacatas, desejou um prato
que estava a ser servido a Brigham e a Amélia Folsom. Ergueu-se de súbito, cheia de nervos, e,
avançando até junto do marido, serviu-se do suculento manjar, voltando depois para a. sua mesa,
«entre os olhares consternados das colegas», observa Ann Eliza, «e perante a expressão de
indignado espanto do Profeta». Brigham não disse nada naquele momento, guardando-se talvez para
mais tarde. A verdade é que um tal acto de rebeldia não voltou a repetir-se.

Segundo conta Susan Young Gates, a atmosfera durante o jantar era descontraída mas reservada.
Mantinha-se uma conversa «agradável e jovial, sem no entanto se chegar nunca a soltar gargalhadas
nem dar mostras de alegria espalhafatosa».

Depois de todos terem acabado, seguia-se uma hora de repouso. Às sete horas, ao anoitecer,
Brigham acendia o candeeiro, no seu quarto, saía para o corredor, tocava três vezes uma campainha
que tirava de um armário com portas de vidro e dirigia-se apressadamente para a sala central do
segundo piso. Sentava-se aí numa cadeira no meio do compartimento, com o rosto iluminado pelo
candeeiro da mesinha que tinha ao lado. Observava as mulheres e os filhos que iam entrando e
ocupavam cada qual o seu lugar na sala espaçosa. Eliza R. Snow gozava o privilégio de se sentar à
direita dele. Nos primeiros meses do seu casamento, Ann Eliza assistia sempre a esta reunião, visto
que as esposas que viviam nas vizinhanças deviam estar presentes. Mas acabou por verificar que
nem todas compareciam. Isto deu-Ine coragem para lá ir cada vez menos. «Só me apresentava
quando me apetecia, o que era raro», relata ela, «e com o temP° isso tornava-se mais raro ainda.»

A oração da noite começava com vários hinos cantados

P ° §rupo. Em seguida, todos se ajoelhavam e Brigham er-

guia-se, empunhando a Bíblia, onde lia diversas orações.

maioria das esposas apreciava aquela sessão, mas tal não

ucedia com Ann Eliza. «Ele rezava com muita unção»,

°nta ela> «e talvez inconscientemente os seus modos auto-

199
ritários transpareciam na maneira como se dirigia a De

mais parecendo estar a dar-Lhe ordens do que a implor

-Lhe as bênçãos.» :

Quando por fim soava o coro de améns, Brigham \

chava a Bíblia e deixava-se cair na cadeira, enquanto as qjj

lheres o rodeavam formando círculo ou se juntavam <<

grupos umas com as outras. Era o momento do convivi!

tagarelice doméstica na Casa do Leão. l

Gozando este momento de repouso ao cabo de ojj

horas de trabalho, Brigham conversava familiarmente c|

as esposas. Nunca discutia com elas problemas da igq

nem assuntos de negócios. E explicava a Horace Greeli

«Se deparo com algum assunto que me considero mean

de resolver sem o conselho de uma das minhas mulhdj

ou de qualquer outra, ponho-o de parte.» No entanto, gJ

tava de comentar os factos do dia-a-dia: uma festa de gall

de bebedeira à qual Amélia assistira e ele não; o acrescia

do Quinto Aditamento (que continuava a proibir a entrJ|

dos negros na igreja); a recente concessão do voto às dl

lheres no Utah, as primeiras a consegui-lo na América; a J

ritação que lhe causava a presença do presidente antimB

mon Ulysses S. Grant na Casa Branca por mais um anofl

morte de Robert E. Lee e de Charles Dickens ou a derrjl

de Napoleão In em Sedan.

Por vezes, a conversa de Brigham com as esposas verfl

vá assuntos domésticos. Quando duas mulheres discutiaB


Brigham incitava-as a dizer cada qual de sua justiça e

servia de juiz e mediador. Se alguma delas tinha um probfl

ma pessoal a preocupá-la, Brigham chamava-a de partaB

dava-lhe conselhos. Se as conversas por vezes o enfadavajM

tal não sucedia nunca com a música. Terminada a oradB

Brigham costumava chamar as filhas mais velhas e dizfl

-lhes: «Vamos, meninas, toquem lá um bocado.» Então, efl

quanto as esposas escutavam atentamente e faziam malflB

uma das jovens sentava-se ao piano e tocava Fios de Prdm

no Meio do Oiro., acompanhando as outras em coro. m

Muitos destes serões de Brigham na Casa do Leão eraH

dedicados aos filhos. Na sua qualidade de pai, o ProfíB

usava de grande disciplina. Quando os mais velhos dos sew

cinquenta e seis filhos saíam para tomar parte nalguma ful|B

cão pública, ele costumava inspeccionar-lhes a indumentw

ria e avisava-os de que deviam entrar em casa antes das dew

200

Já noite. Também se mostrava muito severo em questões de namoros fora de horas. Certa noite de
domingo as filhas mais velhas conversavam com os namorados na sala do meio e Brigham ordenou
que deixassem o candeeiro aceso. Mas, pelos vistos, a luz incomodava os parzinhos e então uma das
jovens, mais atrevida do que as outras, baixou a torcida e rodeou o candeeiro com uma pilha de
livros. O quarto ficou meio às escuras e nos recantos os namorados iam-se abraçando. Nisto, abre-se
a porta de par em par e, como se fosse a Consciência personificada, a figura do Profeta surgiu entre
os umbrais, de vela na mão. Os pares puseram-se imediatamente numa posição correcta e
afastaram-se, enquanto Brigham se dirigia à mesa, retirava os livros um por um e fazia subir a luz
do candeeiro. «As meninas vão para os seus quartos», ordenou ele, «enquanto eu acompanho estes
jovens à porta.» Envergonhadas, as raparigas saíram umas atrás das outras, voltando logo em
seguida com uma montanha de chapéus e sobretudos. O serão estava terminado.

Nem mesmo os filhos mais novos eram poupados à sua cólera. Um dia em que estava pregando ao
ar livre sentiu-se incomodado com o barulho que faziam dois dos mais pequenos a correr para cima
e para baixo numa ladeira ali ao pé. Interrompendo o sermão, Brigham afastou-se da assistência, foi
até junto dos filhos e deu uma tareia em cada um. Depois, deixando-os a chorar em silêncio, voltou
calmamente para o púlpito e recomeçou a pregar a palavra do Senhor.

Logo a seguir ao casamento, Ann Eliza começou a sentir forte animosidade contra Brigham e os
filhos dele. Na sua qualidade de uma das onze esposas sem descendência do Profeta, conservava
junto de si os dois filhos do primeiro matrimónio e nutrira a princípio grandes esperanças de que
Brigham se revelasse um padrasto generoso. Durante o período de namoro sempre se mostrara
muito amigo dos dois rapazes, Edward Wesley e Leonard Dee, prometendo a Ami Eliza protegê-
los. No entanto, algum tempo depois Passara a considerá-los como «intrusos». Comprava a cada
u,m um par de sapatos e um chapéu por ano e recusava dares fatos, exigindo que a própria mãe os
fizesse. Uma vez (JUV^nn ^Za me f°i Pedir calçado para os filhos mais ceo do que era costume,
Brigham replicou: «Eles não preci-

201
sam de sapatos; as crianças devem andar sempre descai^ É mais saudável.» Ann Eliza ficou tanto
mais furiosa quj to sabia que os filhos dele andavam sempre calçados, i No entanto, ela própria
confessava que o Profeta não! revelava muito diferente na maneira de tratar a sua desci dência e era
a primeira a acreditar na seguinte história, j vulgada pelos não-mórmones. Brigham encontrava-se 4
dia numa loja a conversar com um amigo quando entn um rapazinho com uma lista de compras que
entregou l caixeiro. O Profeta achou graça ao garoto, fez-lhe uni festas e, voltando-se para o amigo,
exclamou: «Que lui criança, a quem pertence?» O amigo ficou de boca aben «Ora essa! É seu
filho!» Brigham sorriu, atrapalhado! mudou de assunto. l

Ann Eliza afirmava que o marido não era capaz de i conhecer todos os seus vinte e cinco filhos e
trinta e u| filhas, bem como os outros que adoptara. «Alguns são pi ele autênticos estranhos»,
escreve Ann Eliza. «DesconH cem por completo o afecto paterno e, muito embora seii sensíveis, do
ponto de vista social, ao prestígio que 11 confere tal parentesco, no seu íntimo apenas o teme Nunca
lhes suscita as confidências nem manifesta o meE interesse pelos assuntos deles.»

Contudo, algumas das filhas de Brigham, contradizen

terminantemente esta afirmação, declararam por escrito <m

Brigham era um pai extremoso e dedicado. Existem ainl

muitas cartas suas para os filhos que estudavam em cem

gios, confirmando o seu amor paternal. Várias pessoas >1

família ainda vivas foram testemunhas dos cuidados ql

pessoalmente lhes dedicava, como daquela vez em ql

acompanhara seis das suas filhas ao dentista, levando-as cB

pois no regresso ao seu escritório onde as aguardavam sJ

novos pequenos trenós. l

Era frequente, nos sermões, o Profeta mostrar preoca|

par-se com o bem-estar dos mais novos. No ano em qij

fazia a corte a Ann Eliza, declarava ele aos fiéis: «Quan<>

os vossos filhos acordarem de manhã, em vez de os mandJ

rem para a rua lavar-se em água fria e com um bocado (a

sabão, enxugando-os depois com força como quem lhes all

rança a pele, tornando-lhes esta negra e dura, passem-lh«

antes o rosto com um bocado de flanela macia e enxuguem!


-nos com um pano fino e seco... Criem-nos belos e de pé»

202 -

fina, e não queimada como os nativos das nossas monta-

Brigham e as suas mulheres nem sempre se limitavam aos divertimentos de sala na Casa do Leão.
Costumavam ir também ao teatro e sobretudo a bailes. Uma vez que a Bíblia não proibia a dança e
como era este o único exercício físico para o qual o Profeta conseguia arranjar tempo, praticava-o e
permitia aos seus fiéis e às suas esposas que o praticassem também. «Desejo esclarecer», explicava
ele num sermão, «que a música e a dança não fazem parte do nosso culto. Podem perguntar-me
então: nesse caso, para que servem? E eu respondo que o meu corpo deve fatigar-se ao ritmo do
espírito. O meu espírito trabalha como um homem que passa o dia a rachar lenha e é esta a razão
por

3ue eu gosto de tais passatempos: dão-me a possibilidade e esquecer tudo, de me sacudir, de


exercitar o corpo, enquanto o espírito descansa.»

Os bailes realizavam-se quase sempre no Social Hall de Salt Lake City. Dançava-se numa sala de
vinte e quatro metros de comprido por oito de largura, dominada numa das extremidades pela
plataforma da orquestra, sob um busto de Shakespeare, e na outra via-se uma grinalda de verdura
com estas palavras: «A Nossa Casa da Montanha». Junto do salão de baile, havia uma vasta sala de
jantar onde era servida uma ceia aos estafados dançarinos, cujo número se elevava muitas vezes a
duzentos e cinquenta.

A festa começava às quatro em ponto. Brigham fazia a sua entrada, envergando uma casaca de pano
preto, seguido de duas ou mais esposas. À porta, pagava um bilhete de cinco dólares para ele e
outro para uma das esposas. As restantes pagavam apenas dois dólares. Lá dentro, Brigham proferia
uma oração e esperava que a orquestra abrisse o baile. Então, comandava o primeiro cotilhão, uma
espécie de dança com marcações em quadrados e que exigia a troca dos pares.

^e todas as danças, Brigham apenas aprovava o cotilhão e a quadrilha. Proibia qualquer dança que
promovesse a excitação sexual ou pudesse ser utilizada como meio de seduÇao. A polca e a valsa
que Lord Byron afirmara serem caPazes de provocar movimentos lascivos dos membros, eram P°r
ele consideradas indecentes e portanto banira-as do So-
1 Hall. «Os que não conseguem servir a Deus dançando

203
í

com o coração puro», costumava Brigham afirmar, «é ru lhor absterem-se de dançar.»

Pelo menos, durante o primeiro cotilhão Brigham mo trava sempre um vigor extraordinário. «O
Profeta a da çar», afirmava Artemus Waldo, «é mais activo do que gi cioso. No entanto, dá provas
de uma ligeireza de pêra que causa admiração num homem da sua idade.»

Depois do primeiro cotilhão, Brigham descansava se

tado num esplêndido sofá, ladeado por Amélia Folsom, t

da vestida de seda, plumas e jóias, e por Mary Ann Ang«

envergando um fato severo de seda preta. As outras espoa

convidadas vestiam fatos de algodão e as filhas de tarlatal

franzida. .1

À medida que a noite avançava, Brigham dançava coj

as outras esposas em primeiro lugar com Amélia Fm

som, em vez de principiar pela esposa mais velha, coisa qjl

era contra os usos. Seguia-se uma dança com cada uma dl

esposas presentes. Por fim, dedicava o resto da noite«

Amélia Folsom. Certo dia, Ann Eliza recorda-se de qm

ele, em virtude de estarem presentes algumas personage*

ilustres, inverteu o hábito e dançou primeiro com a espd|

mais velha. Dessa vez, revelara-se pouco diplomata pois H

zera-se acompanhar pela antiga favorita, Emmeline FreeJ

a nova favorita, Amélia Folsom. Quando se deu início

primeiro cotilhão, Brigham procurou esquivar-se ao pfl«

blema permanecendo sentado no meio das duas mulheral

Mas quando o director do cotilhão se colocou na frente dfl

lê a incitá-lo, Brigham não teve outro remédio senão deal

dir-se. Pôs-se de pé diante de Emmeline e de Amélia qul


permaneciam de lábios cerrados. Todos os olhos se Pus»

ram no Profeta. Por fim, ele dirigiu-se a Emmeline, vislB

ser esta quem tinha a primazia sobre a vigésima quinta ea|

posa. «Vamos dançar», disse com ares rabugentos. E, sen|

lhe oferecer o braço, dirigiu-se à fila dos dançarinos espá|

rando que ela o seguisse. Durante todo o tempo que dur<xB

a dança não dirigiu uma única palavra ao seu par, mantend*

sempre a atenção fixa em Amélia, que dançava animadaj

mente com outro membro da hierarquia. Quando acabou <fl

cotilhão, Brigham conduziu Emmeline ao sofá e depoilS

correu em busca da favorita. Amélia, porém, rodeada dí|

admiradores, não aceitou as desculpas do Profeta. A música]

recomeçara a tocar. A despeito das palavras doces do mari- \

204 ’

do, Amélia não se mostrava inclinada a perdoar-lhe. Neste momento crítico, o marcador da dança
interveio de novo, perguntando a Brigham se queria honrar a assembleia participando em mais um
cotilhão. «com todo o prazer», respondeu Brigham. «Desta vez dançarei com a minha esposa.»
Ofereceu o braço a Amélia, e esta, já mais bem-disposta, aceitou-o. Durante toda a dança conversou
animadamente com o seu par, enquanto Emmeline, sentada no sofá, os observava carrancuda.

Embora a pluralidade dos pares viesse muitas vezes empanar o brilho destes serões em sociedade,
Brigham preferia isso à rebelião provocada pelo facto de levar ao baile uma única esposa. Uma vez,
no primeiro ano de casada, Ann Eliza julgou que conseguia ir sozinha a um baile com o marido. A
Sociedade Feminina de Auxílio, poderosa organização cultural e educativa mórmon, anunciara uma
festa no Social Hall em que, para variar, cada senhora escolheria o seu cavalheiro.

Ann Eliza resolveu ir lá. «Atrevi-me a convidar Brigham Young», conta ela. «Ele era o meu
marido; e quem havia eu de convidar? Brigham aceitou o convite, aparentemente com muito prazer,
e combinou vir buscar-me a casa. Foi pontual, mas quando chegou já vinha acompanhado por outra
esposa. Receava, sem dúvida, que alguém fosse dizer a Amélia e esta ficasse furiosa por o marido
ter ido sozinho comigo ao baile. Senti-me aborrecidíssima e até um pouco ofendida por ele não
querer sair comigo ao menos uma vez sem levar mais alguém atrás. Contudo, não disse nada e
mostrei-me tão cordial para com a minha colega como se tivesse sido eu a convidá-la.»

Se bem que a falta de um par monogâmico fizesse com que Ann Eliza embirrasse com os bailes,
havia outra coisa que irritava mais ainda a sua amiga Fanny Stenhouse. A esposa polígama, no dizer
da Sr.a Stenhouse, «tem de estar Presente e assistir aos namoros e aos devaneios do marido, e
obrigada a ouvi-lo dizer baboseiras a rapariguinhas idiotas que podiam ser suas filhas... Nesses
bailes vêem-se muitas vezes homens de mais de trinta anos a dançar com jovens de dezasseis ou
mesmo mais novas, brincando com elas, fazendo-lhes um namoro que muitas vezes acaba em
casamento».

No entanto, algumas mulheres apreciavam estas diverti-

205
das funções porque representavam um ensejo de se eva^ rem do tecto comum. Os bailes no Social
Hall duravqj quatro horas, portanto até às oito. Então a orquestra eni tava uma marcha e os pares
formavam bicha até à sala j jantar onde era servida a ceia. Seguia-se mais uma sessãoj dança com
intervalos de números de variedades e cantoj Embora Brigham costumasse deitar-se à meia-noite,
mui vezes demorava-se no baile até às cinco da manhã.

Para a maioria das esposas do Profeta poucos praze havia na Casa do Leão ou no Social Hall
capazes de compensar da presença dominadora de Amélia Folsom. ] ta, além de monopolizar
Brigham durante as danças, con

g lia também dominá-lo nas duas residências contígu esde que pusera o pé na Casa do Leão, na
qualidade esposa polígama, Ann Eliza percebera logo quem era a s grande rival. Ficara sabendo que
Emmeline Free, a favoi pretendida, e Harriet Barney, a esposa que precedera An lia, ambas haviam
lutado contra a influência da nova favo ta, tendo saído vencidas.

Durante algum tempo o grupo anti-Amelia alimentar; esperança de que as duas mais recentes
esposas, Mary y Cott e Ann Eliza, ambas novas e bonitas, seriam capazes destronar Amélia. Em
breve se verificou, porém, que tal i perança ficaria gorada. Mary van Cott era por de mais : nhoril e
retraída e não tinha feitio para lutas. E quantí Ann Eliza faltava-lhe confiança e experiência e talvez
i vontade de afastar Brigham de Amélia para o chamai si. Mas ainda que ela tivesse desejado
suplantar a outra, n teria possibilidades de o fazer. Tratava-se de uma inimi temível e com muita
prática. Amelia era cínica, agressii ambiciosa e até mesmo má. Tratou de dar a entender Io de
princípio a Mary van Cott e a Ann Eliza que, se aça qualquer delas pretendesse destroná-la, a luta
seria de m( te. Amélia Folsom era praticamente a cabeça do harém seis anos e desejava continuar a
sê-lo até ao fim.

O nome completo da grande rival de Ann Eliza e Harriet Amelia Folsom, nascera em Búfalo, Nova
Iorque,!
23 de Agosto de 1838. Abandonara o primeiro nome <1 Harriet quando viera para a Casa do Leão,
em 1863, coJ vinte e cinco anos, pelo facto de ali ter ido encontrar m Harriet Cook e Harriet
Barney. Decidiu pois que não sefli a terceira Harriet, mas sim a primeira e única Amelia, |
conseguiu-o. ]

206

Tanto o seu passado como os dotes que possuía constituíam outros tantos trunfos. O pai de Amelia,
William Folsom, era o brilhante arquitecto que construíra o Teatro de Salt Lake City e o
Tabernáculo Mórmon. Quando a filha contava três anos passara a fazer parte da igreja e por isso
transportara a família toda para Nauvoo. Após o assassínio de Joseph Smith, tinha então Amélia
oito anos, fugira para Keokuk, no Iowa.

Só em 1860 é que os Folsom se mudaram para Salt Lake City. Brigham Young, acompanhado por
Heber C. Kimball, deslocou-se de carruagem para vir cumprimentar pessoalmente a ilustre família e
foi aí que conheceu Amélia já uma senhora. Contava então dezoito anos, era alta, forte, imponente,
de uma beleza provocante. Uma sobrinha que a conheceu e que ainda vive acha que os adjectivos
«aristocrata» e «altiva» são os que melhor a descrevem. Tinha os cabelos castanhos, uns olhos
claros e acinzentados, nariz arrebitado e uma boca regular de lábios finos. A sua pele era de um torn
creme e impecável. O corpo era jovem e

Sracioso, embora cheio e firme. As outras mulheres consieravam as suas mãos «as mais belas do
mundo». Não tinha uma imperfeição e por isso era desejada por todos os que a viam. Dentro em
pouco via a seus pés uma dúzia de ardentes admiradores e não tardou que Brigham fizesse parte do
número.

O Profeta contava então cinquenta e nove anos, e fora já casado vinte e quatro vezes quando se
apaixonou profundamente por Amélia e quis fazer dela sua mulher. Um repórter perguntou um dia a
Amélia: «Em que altura começou o namoro?» E ela replicou: «Logo que cheguei a oak Lake City.»
O jornalista inquiriu ainda: «O presidente empregou alguns meios especiais para a conquistar?»
Amélia respondeu: «Acho que não. Eu já sabia que ele possuía um certo número de esposas não me
interessava saber quantas , mas isso em nada afectou o nosso namoro. Y presidente Young era
naturalmente muito digno e maniestava um grande à-vontade em sociedade.» . .Só com Ann Eliza,
oito anos mais tarde, é que Brigham iria a encontrar igual dificuldade na conquista de uma mu, r.
Durante semanas a fio a sua carruagem parava à porta a casa do pai de Amélia. Os assuntos da
igreja ficavam paa tras, enquanto ele, envergando a sua melhor casaca, se

207
conservava sentado na sala dos Folsom, todo enlevado < adoração de Amélia, sempre a propor-lhe
casamento. ] não era muito diferente das outras esposas. Algumas | nham sido muito bonitas e ainda
o eram, mas nenhul possuía a elegância de Amélia. Usava perfumes estrangj ros, xales de renda e
jóias, leques delicados. Sabia cantai tocar piano. Acima de tudo, era muito espirituosa e poss| uma
intuição perfeita das coisas. Tratava Brigham, não c mo se ele fosse o Profeta, mas sim um simples
admirad mais rico e poderoso do que os outros, claro, mas não p sando de um homem que andava
atrás dela. No dizer c parentes que ainda existem, o que mais perturbava Brigh era sabê-la
«profundamente apaixonada por um certo vem».

Diz-se que tanto Brigham como os pais de Amélia : ram obrigados a recordar-lhe que ele não era
um simp mortal, mas sim o chefe espiritual. Também consta que,’ ver falhar os outros argumentos,
Brigham lhe participj uma revelação divina que acabava de ter. «Amélia», diss ele, «tens de ser
minha mulher; foi Deus quem mo revelí Se casares comigo, salvo-te, não poderás ser salva por rrt
ninguém. Salvo-te e faço de ti uma rainha no reino celest mas se me recusas serás destruída em
corpo e alma.» Au depois, quando Ann Eliza veio a ter conhecimento desta l rada, observou com
amargura: «Foi esse mesmo argumen que ele empregou no meu caso. Tinha-o sempre de resen
como último recurso.»

Amélia pareceu impressionada pela revelação, mas n perdeu a cabeça. Apresentou as suas
condições: só casa com ele no caso de vir a ser a «primeira» esposa e não a j gésima quinta; queria
uma carruagem particular, um carfl rote no teatro, um guarda-roupa dispendioso e importai do
estrangeiro, uma mesada para os seus alfinetes e, qual do um dia quisesse, uma moradia particular.
Brigham ac deu em tudo. E a 24 de Janeiro de 1863, a despeito da ri cente lei federal que proibia a
poligamia, Amélia Folso tornou-se a vigésima quinta esposa de Brigham Youn «Quando fui residir
para a Casa do Leão», record Amelia mais tarde, «passei três semanas em casa. As mulhrij rés e as
filhas do presidente Young viviam todas ali e ca<8 qual, incluindo eu, tinha o seu quarto à parte.
Nessa altufl havia setenta e cinco pessoas lá em casa, contando com ai

208

cri

iadas. Jantávamos todos à mesma mesa, a que o Profeta

dia.»

presidia.» . .

Amélia foi a primeira esposa durante sete anos. Logo de início procedeu como se nenhuma das
outras existisse. Ao jantar ficava à direita do presidente. No baile de inauguração do novo Teatro de
Salt Lake City teve as honras da primeira dança. Quando ia ao teatro, ficava na maioria das vezes
no camarote de Brigham, enquanto as outras esposas tinham de se contentar com os lugares da
primeira fila. Nas casas dos subúrbios que pertenciam ao Profeta, ela encontrava-se sempre ao seu
lado, obrigando as esposas que ali residiam, Lucy Bigelow e Eliza Burgess, a servi-la.

Ao saber que o presidente Ulysses S. Grant vinha ao Utah, quis recebê-lo em sua casa, e conseguiu-
o. Para isso, mandou vir de Paris um fato de cerimónia e comprou um corte de tafetá azul no valor
de setecentos dólares. Já a pensar na sua futura moradia que viria a custar cem mil dólares,
encomendou uma cama enorme, em talha, e mais peças de mobília em mogno, cuja importância
Brigham pagou. Não se esquecia de pedir a este a prometida mesada e assim, quando Ann Eliza
apareceu em cena, era ela a única das esposas que dispunha de dez mil dólares de economias.
A sua palavra era uma ordem. Não admitia desobediências. Quando Brigham se atrevia a apresentar
desculpas ou começava com paliativos, ela insultava-o e quebrava a mobília. Certa ocasião, pediu-
lhe uma máquina de costura só para ela, e o Profeta comprou uma de uma marca pouco conhecida.
Furiosa, Amélia arrastou a máquina para fora do quarto e arremessou-a pelas escadas abaixo.
Brigham apareceu, consternado, e ela gritou-lhe: «Para que foi o senhor comprar esta porcaria? Eu
disse que queria uma Singer!» No dia seguinte, já a tinha.

Raras vezes Amélia obedecia às ordens do Profeta. Sentada ao seu lado, no camarote do teatro,
costumava comer ruidosamente maçãs e, sem se importar com os protestos do marido, atirava fora
as cascas, depois punha-se a observar a assistência através do binóculo, em vez de olhar para Os
actores. A Sr.1 C. V. Waite conta-nos que, em 1866, estava Amélia casada havia três anos, teve
lugar uma cena domestica na Casa do Leão. Ela e o marido haviam convidado urna jovem amiga
para tomar chá. Depois de terem comido

uçados, Amélia começou a descascar amendoins e a dei-

209
tar as cascas pela janela fora. Irritado, Brigham avis« «Não faças isso, Amélia. Põe as cascas no
prato.» Mas não se importou: «Isso é que não. Hei-de atirá-las para < de me apetecer.» Brigham
ficou amuado e a mulher cot nuou a descascar amendoins. Por fim, o Profeta voltoi insistir:
«Amélia, não quero que faças isso!» A favorita v, tou-se então para o marido: «Quero lá saber!
Atiro as q cãs para onde me der na cabeça e o senhor que vá passes Em seguida puxou o vestido da
amiga e ergueu-se: «An vamos lá para cima, e ele que fique a curtir a fúria!»

A maior parte das outras esposas detestava-a. Emmel Free considerava-a responsável por uma
depressão nervi que tivera. Apenas Mary Ann Angell e Eliza R. Snow aC taram Amélia como uma
coisa inevitável e ficaram amjj dela. Pouco a pouco, porém, as outras esposas foram aproximando,
em grande parte por verificarem que só at vês de Amélia podiam conseguir alguma coisa de Brigha

Apesar do ascendente que esta mulher exercia sobre c Brigham ainda sucumbiu duas vezes ao amor
e à atraq física de outras. Dois anos após o seu casamento com An lia tomou por vigésima sexta
esposa a bela viúva de vintt seis anos, Mary van Cott. Seis anos mais tarde, casava c( Ann Eliza.

Das duas vezes Amélia fez banzé. Quando soube quê marido se casara com Mary van Cott, foi
procurá-los e, gundo se afirma, puxou os cabelos da noiva e deu murr em Brigham, afirmando que
os mataria a ambos.

Preocupado com o procedimento da sua favorita, Br ham resolveu não levar Mary para a Casa do
Leão. Cone ziu-a para um chalé à parte e foi buscá-la numa carruage fechada, levando-a a um
armazém de mobílias. Nesse rm mento, surgiu Amélia, de olhos coruscantes, mas felizmei te sem
armas. Antes que Mary tivesse tempo de alcançar veículo, Amélia entrou nele e ordenou ao
cocheiro que tt masse o caminho da Casa do Leão. O homem olhava pií Brigham, perplexo, mas
este não dizia palavra. Amélia fitl vá Mary com ares triunfantes, mas a outra, «embora furiort com o
insulto», segundo relata Ann Eliza, «limitava-se | lançar-lhe olhares indignados e a corar». Brigham
continu^ vá calado. Então Amélia voltou a invectivar o cocheifCj «Vamos para casa, já disse!»

O cocheiro partiu, levando Amélia, triunfante, enquait

210

to Brigham e a noiva eram obrigados a regressar a pé. Durante todo o caminho Mary censurou o
marido pela sua fraqueza. Mas o pior estava ainda para acontecer, quando o Profeta entrou na Casa
do Leão. Amélia saltou-lhe em cima, como uma pantera, cobrindo-o de insultos, a ele e a «essa
criatura sem vergonha» chamada Mary van Cott.

Foi Mary, no entanto, quem levou a melhor, e conseguiu-o apenas com a sua feminilidade e na
cama. A 14 de Janeiro de 1870, cinco anos após o casamento, ela dava à luz o quinquagésimo sexto
e último filho do Profeta, uma rapariga a quem foi posto o nome de Fanny. Ao ser revelada a feliz
nova, Amélia ficou mais enraivecida do que nunca. Fez uma cena tempestuosa ao marido e proibiu-
o de voltar a ter relações com Mary ou sequer a vê-la. Durante uns meses, ele obedeceu
cobardemente. Porém, nas vésperas de partir para uma viagem pelo Sul do Utah, a atracção que
sentia por Mary e o desejo de ver a filha levaram a melhor. Deve ter sido a própria Mary quem
contou a Ann Eliza como as coisas se passaram. «Ela recusou-se a estender-Ihe a mão», refere Ann
Eliza, «dizendo que se ele podia estar tanto tempo sem a procurar, embora vivessem na mesma
cidade, também agora podia dispensar um aperto de

mão.»
O vigésimo sétimo casamento de Brigham irritou quase tanto o mau humor de Amélia como o
anterior. Esta, diz Ann Eliza, «não se encontrava ainda refeita da fúria contra o seu senhor por ele
haver desposado Mary van Cott de quem sentia uns ciúmes tremendos , quando nova acha veio
atear mais a fogueira ao ser-lhe apresentada uma nova Sr.a Young. Ficou furiosa contra nós ambos,
embora eu pense que odiava mais Mary van Cott do que a mim. Considerava-a a ela rival perigosa,
embora nem por isso antipatizasse menos comigo».

Amélia não se dignou aparecer quando Brigham apresentou pela primeira vez a nova esposa na
Casa do Leão. Algumas semanas mais tarde, as duas rivais encontraram-se acidentalmente pela
primeira vez. Ann Eliza andava a moscar a uma jovem amiga os jardins nas traseiras da casa.
onversavam as duas acerca de «recordações dos seus temP°s de raparigas», quando avistaram uma
senhora que as guia, escutando a conversa. Quando essa mulher chegou
0 portão, que conduzia a casa, Ann Eliza verificou que se

211
’,

tratava de Amelia Folsom. Esta ia a entrar no momento J que Ann Eliza a alcançou. Então, em lugar
de conservai portão aberto para a outra passar, fechou-lho com forçai cara, trancando-o por dentro.
E exclamou: «Ora aí te| Sempre quero ver como conseguirás entrar!» i

Estupefacta, Ann Eliza ficou a vê-la afastar-se. Depl de voltar a si do espanto, meteu a mão por
entre as gradj abriu o trinco e entrou na companhia da amiga. Nenhul delas comentou a falta de
educação de Amélia. Reatara interrompida conversa e encontraram a outra mais adiará a examinar
uma planta e a dar uma descompostura a Li gett, o jardineiro. Atravessaram o jardim em silêncio e,
vj tando para trás, saíram para a rua. Amélia desapareça mas Leggett permanecia no meio das flores
com um ar cj tristado. j

Ann Eliza deteve-se junto dele: i

Que é que tem, Sr. Leggett? i O jardineiro suspirou: l

Oh, foi a Sr.a Amélia. Ouviu as coisas que ela I disse ainda agora? Não acha horrível? Anda assim,
toda l riosa por sua causa, e então descarrega nos outros. Dd| vez quem apanhou fui eu. Às vezes
dá-me cada descompl tura! Só queria que a senhora ouvisse! Eu cá já estou aça tumado e não ligo.
Só me consolo de pensar que o intl Brigham ainda sofre mais do que eu. Quando ele está i casa, ao
menos ando descansado! l

A segunda escaramuça de Ann Eliza com Amelia 1 igualmente breve. No dia l de Junho de 1870,
todas as i posas vivas de Brigham se reuniram na sala de jantar da (l sã do Leão para festejar os
sessenta e nove anos do Profei Mary Ann Angell ocupara provavelmente o lugar de Áiflj lia Folsom
na mesa principal, ao lado de Brigham, e talil por um engano involuntário de alguém ela e Ann
Eliza i caram sentadas uma na frente da outra numa das mea compridas. O jantar decorreu sob
tensão, não tendo j duas trocado uma única palavra durante todo o tempo atii sobremesa. De súbito,
conta Ann Eliza, Amelia empurra um bolo na sua direcção, perguntando «com o torn ml gelado que
pôde arranjar: ”E servida de bolo?” Eu agraoi ci, recusando, e a conversa ficou por ali». l

Muito embora nos anos seguintes Ann Eliza continua se a considerar Amélia uma inimiga,
confessou muitas vij

212

s a admiração que lhe inspirava a maneira como ela tratais marido: «Eu estava presente certo dia em
que ela ediu ao Profeta que lhe fizesse não sei o quê. Ele recusou e ela insistiu, ameaçando-o de que
”lhe chegava” se não lhe fizesse a vontade. Escusado será dizer que não foi preciso repetir o
pedido.»

Nos últimos tempos, no entanto, Ann Eliza nunca teve uma palavra a dizer em favor de Amélia.
Afirmou sempre, a quem a quis ouvir, que Amelia era mais arranjada do que bonita, que «tinha um
génio impossível... odiava Brigham... empregava a linguagem mais torpe nas conversas familiares»
e que Brigham receava mandá-la embora não só por causa do escândalo que isso provocaria lá fora
como também com medo de que ela me revelasse os assuntos pessoais.
Os informadores mórmones são mais benévolos para a vigésima quinta esposa do Profeta. Em Nova
Iorque, um jornalista inquiriu de John B. Young, filho de Brigham: «Amélia deu alguma vez lugar a
complicações?» Young respondeu: «Ela revelou-se sempre uma pessoa respeitável. Nunca deu azo
a qualquer questão e as acusações de Ann Eliza com referência a Amelia são inteiramente
destituídas de fundamento.» Um panfleto acerca das esposas de Brigham, publicado pelas filhas dos
pioneiros do Utah, afirmava que Amelia era muito «senhoril»; referindo-se à Casa Gardo, que
custara cem mil dólares, declaravam: «A família entendia que Amélia devia viver ali e achava bem
que o Profeta a tivesse escolhido para assumir todas as responsabilidades nos assuntos sociais.»
Ainda recentemente uma das sobrinhas de Amélia declarava que esta casara com o Profeta apenas
para lhe tratar da gota, e que se ela algumas vezes se revelou autoritária foi só porque era sua
obrigação yelar atentamente pela saúde do marido.

O retrato mais objectivo de Amélia deve ser no entanto ° que nos traça uma senhora não-mórmon e
anónima que visitou Salt Lake City no tempo das lutas entre aquela e as suas rivais Mary van Cott e
Ann Eliza. Esta senhora viera e c°mboio, mas ficou horrorizada com o que viu do casamento
poligâmico, voltando imediatamente para Filadélfia onde publicou o artigo «Uma Semana entre os
Mórmones», no número de Julho de 1870 do Lippincott’s Magazine- A autora, que assinava «A.
M.», e os que a acompanha-

213
vam fizeram uma visita à cidade guiados por JOSÉ

W. Young, filho de Brigham. Uma das coisas que mais

admirou foi a figura de Amélia Folsom, a qual enqual

aguardava a construção do seu palácio deixara a Colma

habitava uma bela residência de adobe de um só piso,|

outro lado da rua. Quando os visitantes do Leste chd

ram, encontraram-na de pé, junto de um piano SteiniM

Devia ser uma figura imponente, segundo a escritora dej

ladélfia descreve mais tarde: «A Sr.a Amélia não destoajl

ambiente: alta e graciosa, com uma figura imponente e q|

cabeça que merecia melhor sorte, é difícil descobrir qufl

sua posição naquilo tudo.» A autora mostra-se maravilhí

com a «suavidade e cortesia» dela.

Durante a visita, uma das esposas de Joseph W. Yofl

perguntou-lhe: «Amélia, vamos a casa do presidente?» B

respondeu com secura: «Não é necessário, eu já o maftB

chamar!» Dentro em pouco, a carruagem chegava sem <B

mas trazia um recado para Amelia a dizer que não se

morava. fl

Para passar o tempo, Amélia levou os visitantes a |B

uma volta pela cidade. «Divertia-nos», escreve a jornatíM

de Filadélfia, «a agitação que causava nas lojas a presdH

de Amélia. Não há dúvida de que representava uma forj

Observámo-la de perto, com curiosidade. ConhecendaH

sua história, os meses de esforços que Brigham despendM

até conseguir que ela fosse a sua esposa número quareaM


ou cinquenta, não se sabe bem, sentíamo-nos maravilHH

Depois do passeio, Amélia perguntou à senhora gentSH

Que pensa agora da poligamia? Acha que se ps^Ê com aquilo que ouviu contar? |H

Não, acho que é muito pior respondeu a escritcwH No mesmo instante, Amélia revelou-se tal como
era, 4JH

dente e combativa: JH

Ah, bem, suponho que os vossos espíritos ainda njH estão suficientemente educados neste capítulo,
mas um ^H virá em que nos hão-de dar razão. Eu não sou a única ^H posa do meu marido, mas
considero-me igual, se não sfií*^Ê rior, a QUALQUER outra mulher dos Estados UniatiliM Marido
mais amável, indulgente e afectuoso do que o melB não pode haver. ,1M

Mais tarde, quando Brigham chegou uma figura bai”


214

rotunda, de cabelos e suíças grisalhos, um rosto agradávej e uma voz melíflua um pouco
entrecortada , a autora observa que ele retribuiu o cumprimento de Amélia, declarando: «Apesar de
ter muitas esposas e filhos, há uns bons quinze anos que não oiço uma mulher rabujar. Que dizem a
isto?»

A atmosfera mantinha-se cerimoniosa. «Dissemos que acreditávamos piamente nisso», replicou a


escritora de Filadélfia. E, quando regressou ao Leste, escreveu uma das poucas crónicas que
existem da autoria de um «gentio» acerca de Amélia Folsom.

Apesar de a favorita se ter revelado invencível perante todas as arremetidas das outras esposas, Ann
Eliza veio a descobrir que existia um capítulo no qual ela continuava impotente para dominar o
marido. Era no plano do amor físico. Os historiadores dos primeiros tempos do mormonismo
evitavam deliberadamente referir-se à sexualidade entre eles, talvez menos por recato do que pelo
facto de existirem poucos documentos acerca do comportamento de alcova em Salt Lake City. No
entanto, durante o reinado de Brigham Young toda a população não-mórmon dos Estados Unidos,
bem como a de toda a Inglaterra e até dos outros países da Europa, estava firmemente convencida
de que os homens mórmones viviam obcecados pelo sexo. O capitão Main Reed chamava a Salt
Lake City a «moderna Gomorra». A Sr.a Benjamin G. Ferris, esposa do secretário federal no
território do Utah, considerava os homens mórmones «um bando de malandros viciosos». O
apóstata John Hyde designava as esposas de Brigham como «companheiras das suas paixões e não
da sua vida; coniventes na luxúria, em lugar de objectos da sua afeição...»

Por toda a parte, no mundo exterior, era a impressão geral.

Os mórmones, por outro lado, continuavam a defender a poligamia como uma revelação do Senhor.
A satisfação sexual não passava de um simples acidente, explicavam, l j1 ^e divina era a procriação.
«Nunca aceitei a pluralidade das esposas como uma forma de satisfazer as minhas paixões»,
declarava Brigham Young.

Quais eram então os factos conhecidos acerca da atitude fexual dos mórmones em geral e da vida
amorosa de Brigam em particular? A maior parte dos observadores e espe-
215
cialistas da poligamia parecem considerar que tal siste» embora induzisse por natureza à
libertinagem sexual, à ti dência para a sensualidade, era na verdade praticado ci uma reserva
puritana. Havia no entanto aqueles que er» diam o «divino princípio» como um travão para os imdl
sós sexuais. Theodore Shroeder, psicólogo liberal que 11 meiro defendeu os mórmones e depois os
combaíl preocupa-se no dizer de Sidney Ditzion com« consequências que poderia ter a sua
obcecação pelo sés» Só pensavam e agiam de acordo com ele, adoravam o se« a procriação,
excitando-se continuamente, e isso conduza uma população de indivíduos hipersexuais especialmá|
no que se refere aos homens». I

Por outro lado, partilhando a opinião geral, o Drvl Wilíord Poulson, da Universidade Brigham
Young, den rou a quem escreve estas linhas que observara muitas íafl lias poligâmicas no decurso
da sua longa carreira e mi» distinguira nelas qualquer manifestação de hipersexualM de. No
entanto, um colega do Dr. Poulson, apoiandcw palavras de Schroeder, explica: «Quando um povo
faz taB alarde das suas virtudes, devemos fatalmente descorai dele.» m

A vida sexual dos mórmones devia ser, afinal de con» mais puritana do que libertina. Por outro lado
não era* teiramene alheia ao sexo, admitindo-o como uma formaâ prazer. Nesses tempos em que
ainda não se falava de inl minação artificial, as crianças eram concebidas unicamen por meio das
relações sexuais. Esse acto de prociração, effl bora os historiadores mais tarde o pretendessem nefi
proporcionava a satisfação física como um subproduf

E se acaso o acto do amor, nos tempos de Brign» Young em Salt Lake City, não se revelava tão
agradável, í pecialmente para as mulheres, como nos nossos dias, a c^ pá não cabe tanto à poligamia
como à mentalidade da é{w ca. Na segunda metade do século xix prevalecia na AmérB a seguinte
atitude: o homem tinha orgasmos e a mulher l lhos. Tudo se resumia nisso. Porém, como em tudo,
não \ sempre nem nunca, e certas mulheres conseguiam simults neamente conceber e sentir
satisfação com o acto. Tern* provas de que esta espécie de prazer da parte da mulher i verificava na
América do século xix, em Salt Lake City e I Casa do Leão.

Aleuns estetas consideravam as mulheres nórmones tão ^aieitadas que os homens tinham de dispor
de «uma certa Sdade de escolha» para se estimularem. Mark Twain orecia as mulheres mórmones
de um modo muito pouco iLnieiro, considerando-as umas criaturas «desconsoladas, sem graça,
tristemente caseiras». E J. H. Beadle confirma: «A beleza feminina era rara no Utah.»

No entanto, o capitão Richard Burton, que conhecera mulheres de todas as partes do mundo,
mostrava-se encantado com «a testa alta e inteligente, a pele translúcida, os cabelos compridos e
sedosos e, sobretudo, com o sorriso doce de um encanto singular» que unham as mulheres
mórmones. Phil Robinson, escritor inglês e compatriota de Burton, observava que «as mulheres e as
filhas dos mórmones possuíam uma silhueta que faria inveja a muitas parisienses e caminhavam
com um dignidade quase oriental». Ann Eliza, falando com aquele torn de superioridade de quem se
considera uma excepção, concordava que as mulheres mórmones eram feias, mas defendia-as
atribuindo as suas más feições a um estado de espírito melancólico provocado pela situação
conjugal. E escrevia: «Quando os jornalistas estouvados, depois de uma visita à cidade dos
”Santos”, descrevem em termos ridículos as mulheres mórmones, estão longe de imaginar quantas
experiências amargas, duras e cruéis cavaram nelas tamanhas rugas em volta dos olhos e da boca,
tornando-lhes o rosto severo e repugnante... Não admira que as mulheres do Utah não sejam belas:
nada existe na sua vida que lhes ilumine ou embeleze o rosto.»

E certo que Ann Eliza era mulher e portanto animada de preconceitos. Os homens mórmones
consideravam as suas mulheres bastante atraentes, e esta opinião não era só deles. Há sobejas
provas de que os homens «gentios» andav*m constantemente a tentar seduzir as damas mórmones
ou pretendiam casar com elas. Uma dessas histórias, passada em Salt Lake City, refere-se ao tenente
Sylvester Mow”7> Um jovem oficial do Exército que servia sob as ordens d£ coronel Edward ].
Steptoe, em 1854. Mowry, acompa. ando umas centenas de soldados a caminho da Califórma>
passou o Inverno em Salt Lake City. Numa carta a um amigo de Rh0de islan(} revela que se
divertia com algumas mulHeres e raparigas mórmones, mas que a vigilância de

que estas eram alvo por parte dos pais e dos namoradqj tornava a brincadeira perigosa. Apesar disto,
o tenemí Mowry conseguiu encontrar-se com uma das noras m Brigham Young ele chama-lhe
apenas Mary e deve trai tar-se sem dúvida da esposa do filho mais velho de Brita ham, Joseph A.
Young e tinha-a quase seduzido quarufi o Profeta veio a tomar conhecimento do caso, a que Ioga
pôs cobro. 11

O tenente Mowry não ficou inactivo durante muitj tempo. Não demorou a escrever de novo ao seu
amigo <j| Rhode Island: «Ao cabo de grandes dificuldades consegál convencer uma garota, que
convive bastante connosco, J deixar que a acompanhasse a casa no fim de uma festa enj casa do juiz
Kinney. Logo que a meti na carruagem caiiá -me nos braços e deixou que lhe apalpasse o busto,
eteJ etc. Isto quer dizer que a dificuldade não está nas mulhereíj mas sim nos guardiões... A Mary
seria acessível se houvesa oportunidade, mas ”aí é que está o gato”. A outra jovem, que veio
comigo do baile, é capaz de cair que nem uma pá» tinha, mas infelizmente não devemos ter
oportunidacfejj Brigham Young nunca subestimou o atractivo sexual dá algumas das suas ovelhas.
Após a partida para a California do atrevido Casanova, Brigham dirigiu-se, do alto do púKl pito, às
mulheres de pouca virtude: «Se algumas de vós dei sejarem ir para a Califórnia para se entregarem
à poucas -vergonha, não hesitaremos em mandar daqui um grupO| esta é a minha opinião, mas
talvez não seja preciso isso^ pois já as temos cá bastante desavergonhadas.» l

Esta fúria de Brigham contra as suas ovelhas sugeriu a<| Herald de Nova Iorque a ideia de que os
homens não* -mórmones do género de Mowry seriam a solução par*> acabar com a poligamia. O
jornal sugeriu que se o governd enviasse «um novo destacamento de soldados bem-1 -parecidos»
para Salt Lake City, as fileiras dos polígamos^ ficariam dizimadas com a «deserção das damas», até
os; mórmones se verem obrigados a contentar-se com uma esposa por cabeça. Um pouco mais
tarde, o Nation alvitrava outro plano mais sensato para impedir a poligamia: «Ponhamos
imediatamente mãos à obra a fim de diminuir o afluxo de mulheres à comunidade mórmon»,
utilizando leis de imigração especiais.

No entanto, as mulheres continuavam a afluir ao Utah.

218

Embora a vida sexual dessas mulheres sujeitas à poligamia fosse puritana e regrada, não pecava por
abstenção. Num jornal da época editado por um tal Jonathan Baker, conta-nos Kimball Young que
se realizou um conferência na qual o presidente McAllistair falou de «certos homens
prematuramente enfraquecidos e sujeitos à morte em virtude de relações sexuais demasiado
frequentes».

A poligamia não proporcionava uma grande intimidade, porém Kimball Young demonstra-nos que
tal situação não tornava as relações impossíveis. Por exemplo, certo marido mórmon via-se
obrigado a dormir no mesmo quarto com três esposas. Deitava-se no beliche superior com a
primeira enquanto as duas ficavam no de baixo. Quando desejava dormir com a segunda ou com a
terceira, informava disto a primeira, a qual dava automaticamente licença, com a condição de ele
regressar ao leito dela logo que tivesse acabado. Então, o marido ia fazer amor com uma das
mulheres do beliche inferior; em seguida trepava de novo para ir dormir o resto da noite junto da
primeira esposa. Tal prática era considerada naturalíssima por toda a gente e não é provável que
hajam surgido reclamações. Noutra ocasião, Kimball Young conta-nos que sabia de uma esposa
«que aceitava bem o segundo casamento do marido, desde que não ouvisse as botas dele a cair no
chão, no quarto da segunda esposa».

A vida amorosa de Brigham Young mereceu sempre grande atenção da parte dos não-mórmones.
De todos os lados surgiam as mais fantásticas especulações a tal respeito. A verdade é que pouco se
sabe acerca das relações românticas entre Brigham e as suas esposas. Uma vez que acreditava no
princípio de que as relações sexuais tinham como principal objectivo a procriação, aconselhava
todos os maridos a afastarem-se das suas mulheres desde que estas concebiam até a criança ser
desmamada. Tal abstinência, porém, não era tomada à letra pelo próprio. Tinha também uma série
de estranhas ideias acerca do sexo. Segundo declarou a Horace Greeley, estava certo de que, «fora
da Igreja Mórmon, todos os homens casados tinham amantes». Não considerava o incesto um
crime, embora pessoalmente alimentasse um preconceito contra tal prática. Achava que o consumo
de ovos estimulava a virilidade e ajudava a «engendrar mais filhos».

219
Os apóstatas mórmones afirmavam que Brigham nãoj convidava habitualmente as suas mulheres a
virem ao seu quarto: preferia ser ele a procurá-las. Segundo nos diz John; Hyde, «... Brigham dorme
sozinho. Não só pratica este hábito como também o aconselha a fazê-lo sem qualquer delicadeza de
pensamento ou de expressão. As razões que in* voca são estranhas e ridículas. Audie solam ad
vocem* libtdonis. Isto pode traduzir-se assim: ”Basta a presença para despertar desejos
libidinosos”, numa palavra, um homem só domina melhor as tentações».

Diz-se que, quando Brigham escolhia uma parceira para dormir, fazia um sinal a giz na porta do
quarto dela. Mais tarde, demonstrando com isto uma certa delicadeza de sen^ timentos para com as
outras esposas, seguia, pé ante pé, pe-< Io corredor fora até à porta marcada e entrava sub-^ -
repticiamente. Conta-se que, em certas ocasiões, uma da* esposas, roída de ciúmes e sequiosa do
amor do Profeta, apagava a marca a giz feita por ele noutra porta e riscava a sua. Afigura-se-nos
difícil que Brigham se deixasse alguma vez iludir, pois ele sabia muito bem o que queria.

A sua virilidade, atestada por uma descendência de cinquenta e seis filhos, era muito discutida e
secretamente invejada. Brigham teve o primeiro filho, uma rapariga, aos vinte e quatro anos, e o
último, também uma menina, aos \ sessenta e nove. Quando contava sessenta e dois anos, só j num
mês, nasceram-lhe três descendentes, dois rapazes e uma rapariga.

Prova-se também que Brigham manteve relações sexuais prolongadas com grande número das suas
esposas. Lucy Decker, a terceira, teve o primeiro filho de Brigham em;
1845 t o sétimo quinze anos depois. Clara Decker, a sexta< esposa, teve o primeiro descendente
dele em 1849 e o quinto doze anos mais tarde. Emily Dow Partridge, a oitava esposa, deu à luz o
primeiro filho em 1845 e o sétimo dali a \ dezassete anos. Emmeline Free, a décima primeira
esposa, ; deu-lhe o primeiro filho em 1847, o nono dezasseis anos depois e o décimo no ano
imediato. Lucy Bigelow, a vigésima segunda esposa, teve o primeiro filho do Profeta em
1852 e o terceiro dali a onze anos.

Todas as esposas que colaboraram com Brigham ajudando-o a produzir filhos e filhas nem sempre
mostravam entusiasmo. Na sua maioria aceitavam bem o amor do Pro-

220

feta, é certo, e todas acreditavam que a coabitação era um preceito divino; algumas, porém, não se
mostravam cooperantes e assim o demonstra a quantidade de esposas que ficaram sem filhos. Em
certos casos, como por exemplo no de Harriet Cook, sua quarta e rabugenta esposa, não houve
relações frequentes entre ambos por decisão tomada em comum. Quando Brigham contava quarenta
e cinco anos e Harriet vinte e um, tiveram um filho. Após isto, o Profeta recusou-se a voltar a ter
intimidades com Harriet, facto que ela muito agradecia. No dizer de um parente de Harriet Cook,
que vivia em Salt Lake City, esta era uma mulher do Leste, «rica e frígida». Aprovava a poligamia
porque «não acreditava no sexo», e o casamento poligâmico tornava-lhe menos pesada a sua
obrigação, visto manter Brigham ocupado com as outras sem a importunar, como sucederia se
vivesse em monogamia.

Uma vez que o Profeta amava profundamente Amélia Folsom e nunca a esqueceu nem abandonou,
é provável que a sua ligação se tivesse mantido feliz e duradoira. Amélia, segundo então se dizia,
era estéril e tinha com isso grande desgosto, pois nunca dera ao marido o filho que ambos tanto
desejavam. O seu desgosto aumentara com o facto de ter de assistir, impotente, ao nascimento de
quatro filhos de outras esposas.
Ann Eliza também não teve nunca descendência do seu casamento com Brigham, mas, uma vez que
ela era fértil, provavelmente isto obedecia a uma deliberação da sua parte. Por outro lado, uma das
netas de Brigham afirma que «o maior desejo de Ann Eliza era ter um filho com o apelido de
Young, mas Brigham não estava interessado nisso». Mais tarde, quando Ann Eliza pretendeu
desligar-se do rnormonismo, afirmou, com grande espanto de quem a ouvia, que nunca tivera
relações sexuais com o Profeta. Em certa ocasião declarou a Jennie Anderson Froiseth, editora do
Anti-Polygamy Standard, de Salt Lake City, que o seu casamento com Brigham nunca se
consumara e que o que mais o enfurecera fora o facto de ela lhe haver sempre negado o amor
sexual. Esse era o motivo, afirmava ela, que levara o marido a tratá-la mal.

No livro The Portrait and Biographical Record of Northern Michigan, publicado em 1895, apareceu
a história resumida de Ann Eliza num artigo de quatro páginas. Aí

221
também o segundo casamento dela era considerado meá

mente platónico: «Realizou-se uma cerimónia chamada j

pintuat que unia a nossa personagem a Brigham Young J

rã a vida futura, sem contudo estabelecerem relacqj

conjugais. A mulher ficava a viver com a família e isto tfi

rou uns cinco anos.» Esta informação foi sem dúvida fdj

necida por Ann Eliza e é, evidentemente, falsa. l

Depois de se casar com Brigham Young, Ann Eliza nl

ficou a viver cinco anos em casa dos pais, mas sim pool

mais de um mês. O resto do tempo, com excepção de raa

incursões à Casa do Leão, passou-o ela em três residênel

diferentes que Brigham lhe dera e nas quais o recebia sen

pré que ele pretendia visitá-la. Nessa altura, ninguém pool

duvidar nem da sua virilidade nem da sua fecundidade^

despeito da idade avançada que tinha quando casou cal

Ann Eliza, a 7 de Abril de 1869, pois nessa mesma semaaj

ou possivelmente noutra mais ou menos próxima, teve rei

coes sexuais com Mary van Cott. A prova disso é que, n|

vê meses depois, Mary deu à luz uma filha de Brighamá

quinquagésima sexta, que recebeu o nome de Fanny. Alei

disso, o testamento de Brigham, que este ditou aos seteru

e dois anos, indica claramente a sua virilidade, pois red

nhece como legítimos herdeiros todos os filhos nascidi

nove meses após a sua morte.

Tinha Ann Eliza vinte e cinco anos quando se tornC na vigésima sétima esposa do Profeta. Tempos
atrás, ao d vorciar-se de Dee, estivera bastante mal de saúde, mas d pois disso repousara,
restabelecendo-se, e encontrava-se <| óptima saúde quando ficou noiva do Profeta. Além de seri
mulher mais nova do harém, e também uma das mais bela e elegantes, não era virgem. Afigura-se-
nos improvável qil Brigham a tivesse cobiçado tão ardentemente apenas paa gozar da sua
companhia espiritual na eternidade. Tambéí nos parece inadmissível que uma mulher como Ann
Elizfl tão prudente no que respeita a segurança, quisesse, ou SM quer se atrevesse, a resistir aos
desejos de Brigham, sobra tudo se tivermos em conta o seu empenho em se sobrepor íj Amélia e às
outras esposas. Na realidade, alguns descenf dentes de Brigham afirmam que ela era sexualmente
«agre*í siva» nas suas relações com o marido. j

No pedido de divórcio contra Brigham, ela confessa^ «... durante um certo período, a queixosa
viveu e coabitoOj

222 J

com o acusado, mantendo com ele relações de amizade». Uma vez que coabitar significa «viver
como marido e mulher», implicando isto relações não apenas sociais mas também sexuais, este
documento legal afigura-se-nos uma confissão clara de que ela e Brigham teriam consumado o
matrimónio.

Porém, a consumação do acto do amor, tal como a procriação resultante do amor, não constitui
prova de felicidade emocional. Entre a sociedade não-mórmon do tempo em que a Casa do Leão se
encontrava mais povoada, despertava grande curiosidade o facto de se saber se as esposas de
Brigham se consideravam ou não felizes com o seu único esposo e com a vida doméstica em
comum.

As esposas e filhas do Profeta mais comunicativas, bem como as pessoas amigas, não hesitavam em
declarar ao mundo que a vida na Casa do Leão era ideal. Estava Ann Eliza casada com o Profeta
havia dez meses quando Eliza R. Snow convidou algumas das esposas, suas colegas mais antigas,
bem como as mulheres de alguns chefes mórmones, a apresentar ao Congresso uma exposição na
qual, como sempre, eram rebatidos os projectos de lei contra a poligamia. Nesta resolução pública,
as mulheres mórmones defendiam a poligamia e outras instituições da sua igreja «como sendo a
única salvaguarda da virtude e da inocência feminina... a única protecção segura contra o horrível
pecado da prostituição e os males dela decorrentes que se verificam lá fora, e por isso todas nós nos
unimos aos nossos irmãos, a fim de lhes darmos forças para lutar contra tais inovações».

As esposas individuais tomavam também a mesma posiÇão. Helen Kimball Whitney, filha de
Heber C. Kimball e esposa de um dos apóstolos, declarava às mulheres monógarnas que as esposas
poligâmicas poderiam denunciar a ilegalidade da poligamia, mas que nenhuma delas sentia desejos
de o fazer. «Os processos tendentes a reformar os mórmones», prossegue ela, e de libertar as
«pobres mulheres espezinhadas pelo jugo da poligamia» representaram Urr>a farsa ridícula, só
comparável ao acto de recolher esmolas para os pobres pagãos, que se sentiriam mil vezes mais
felizes se nunca tivessem visto um «cristão».

Susan Young Gates achava que o pai e as suas esposas mantmham relações perfeitas entre si.
«Nasci e fui criada

223
na Casa do Leão», escreve ela. «Nessa querida casa nun«

eu ouvi o meu pai proferir uma palavra desagradável d

irritada contra nenhuma das suas mulheres. Nem tia

-pouco fui testemunha de qualquer cena menos cortêsl

amável entre o pai e elas.» |

Ann Eliza foi o único membro da família que discorda

publicamente de tais afirmações: «Devo dizer que... rara

vezes ocorrem cenas de violência na família de Brighai

visto que a maioria das esposas tem demasiada consciênc

da dignidade da sua posição para permitir que o mundo tt

me conhecimento das divergências que porventura exista

entre elas. Há mulheres extraordinárias entre as esposas <

Profeta, mulheres que, fora do mormonismo, ilustraria

qualquer sociedade. Mulheres cultas e educadas que por eJ

tranhas circunstâncias foram levadas, primeiro, a fazer pai

te da sua igreja, e depois a entrar para o harém do ProíeJ

Penso que nada pode explicar melhor o poder de que dm

põe Brigham Young do que uma análise das mulheres qm

são ou foram suas esposas... Foi ele quem teve a habilidai

de as escolher e conquistar, mas não possui capacidade pajf

as apreciar devidamente. E não hesito em garantir, por OÍ

periência própria e pelo que conheço a respeito delas, QM

não existem no mundo criaturas tão infelizes e frustra<a|

como as esposas mais cultas e bem-educadas de Brighasl

Young.» J

Talvez que o juízo mais exacto, situado precisamertj


entre os dois extremos, seja o que emitiu Phil Robinso»

em 1883, após uma visita ao Utah: «Na poligamia, o ma«

alto grau de felicidade para as mulheres é a satisfação. Pffl|

outro lado, a maior infelicidade não passa de insatisfaça»

Nunca têm a oportunidade de atingir o amor perfeito. Mlj

também lhes é poupada a suprema angústia de sofreroÉj

ciúmes ou infidelidades. A satisfação, porém, não pode se|

considerada a felicidade completa.» m

Para Ann Eliza, nesse primeiro ano de vida no harém,

satisfação não constituía de facto a felicidade. A sua vi***!

tornara-se numa rotina calma, dividida entre a pequena vi^

venda onde habitava com os filhos e a mãe e a Casa dtfj

Leão. Brigham visitava-a esporadicamente e tratava-a cortj

«uma certa amabilidade». Algumas vezes ia ali para se ois-|

trair e tomar na companhia de Ann Eliza um chá de horte-íj

lã-pimenta. Outras vezes, levava-a a passear na sua carrua-h

224

gem. Eram estas as únicas ocasiões em que se encontravam a sós. Quando a vinha buscar para o
teatro ou para assistir a um baile, iam sempre acompanhados por mais algumas esposas. Acontecia
também convidá-la para uma excursão fora da cidade. Numa dessas ocasiões, Ann Eliza e
Emmeline Free acompanharam-no a uma conferência em Brigham City. Um dia de festa. No fim,
porém, Amélia teve uma fúria e Ann Eliza e Emmeline ficaram sozinhas.

Durante o primeiro ano, Ann Eliza viveu em relativa harmonia com as outras esposas. Aproximava-
se cada vez mais de Emmeline. As únicas inimigas activas que contava no harém continuavam a ser
Amelia Folsom e Harriet Cook; Eliza Burgess não tardou a retirar-se para Provo. O facto mais
irritante para Ann Eliza era sem dúvida a sovinice cada vez maior do marido. Aparentemente, tinha
o ar de um homem que enriquecera e prosperara: «Um inglês bem conservado da classe
aristocrata», afirma Ann Eliza. Vociferava menos e demonstrava mais cuidado com o vestuário.
Mas, simultaneamente, pensava ela, ia ficando cada vez mais avarento. Fazia ouvidos de mercador
quando ela lhe pedia dinheiro para os seus gastos pessoais; se lhe solicitava fundos para a comida e
fatos para si ou para os filhos negava-lhos pura e simplesmente ou então concedia-lhos ao cabo de
muitos protestos. Sempre que Ann Eliza se queixava disto à mãe, esta limitava-se a aconselhar-lhe
paciência. Ao cabo do primeiro ano, Ann Eliza começou a ficar farta da austeridade assim como da
presença constante das outras esposas da Casa do Leão e queixou-se disto a Brigham. Ele prometeu-
lhe uma mudança de vida.

Em Maio de 1870 o Profeta participou a Ann Eliza em que consistia a mudança. Ela ficou logo
apreensiva. Tratava-se de a transferir para a maior propriedade que ele possuía fora da cidade, a
Granja, situada a quatro milhas ao sul de Salt Lake City. Ann Eliza sabia que seis das esposas de
Brigham haviam dirigido sucessivamente a Granja e todas se mostravam muito descontentes. Susan
Snively, a decima terceira esposa, fora a que lá permanecera mais temP°> durante uns oito anos;
Lucy Bigelow, a vigésima segunda esposa, mantivera-se ali apenas um ano. Muito emOra Ann
Eliza apreciasse o isolamento da vida campestre, ernia as horas intermináveis de trabalho manual
que ali a speravam. O seu primeiro impulso foi protestar junto de

225
samento começou para ela a perder o pouco de intereM que lhe encontrara de início. J

«Recebíamos de vez em quando a visita de BrighanJ relata mais tarde. «Ele gostava de aparecer de
surpresa e J horas mais insólitas, esperando sem dúvida encontrar-no» dormir a sesta. Adorava de
tal maneira apanhar-nos em {m ta e irritava-se com tanta facilidade, que estas visitas njl nos davam
o menor prazer e eu começava a sentir-me pen tivamente aterrada sempre que o via surgir.» 9

Certa vez, Brigham entrou pela casa dentro ao mej2 -dia, no preciso momento em que a Sr.a Webb
ia servii|B almoço à filha, aos netos e aos trinta trabalhadores da qufB ta. Ficou-se entre portas, à
espera que o cumprimentasse^ depois deu lentamente a volta à mesa observando a comial Por fim,
fez sinal à sogra para que o acompanhasse à sfl contígua. |B

Quando ficaram a sós, Brigham declarou: ’

A senhora dá comida boa de mais a esta gente. Istdí muito forte para o estômago deles. M

A Sr.a Webb tentou explicar: /

Apenas pretendo dar-lhes uma coisa tragável. Tranl lham muito e não acho nada de mais que os
alimentos $ jam apetitosos; no entanto, se não aprova a minha mane|B de cozinhar, aceito as suas
sugestões, desde que não estejajl fora do orçamento. «H

Não me interessa que eles se declarem satisfeitos < não. Acho apenas mais saudável dar-lhes pão e
leite e é issi que quero que eles comam. n

A Sr.a Webb ficou estarrecida: l

Devo então dar-lhes só isso três vezes ao dia? m

Bem, de vez em quando pode também juntar tiaj pouco de manteiga. 4|

Mas então nunca lhes dou carne? J

Talvez permita que a comam de tempos a tempos -w concordou Brigham mas será mais saudável
que se ab« tenham. M

Como se isto não bastasse, o Profeta apareceu uma tail de de Verão na Granja, sem ser esperado, e
surpreendeu dl trabalhadores a jantar. De novo chamou de parte a mãe <M| Ann Eliza e declarou-
lhe que aqueles homens jantavam ce*| do de mais. Era de opinião de que deviam estar ainda a tra*
balhar nos campos mais umas três horas. com toda a pá*

228

ciência, a Sr.a Webb explicou que o trabalho do dia não estava ainda terminado. No fim do jantar os
homens teriam de ordenhar as vacas, quarenta ao todo, e de tratar dos restantes animais. Brigham,
porém, teimava que os homens deviam trabalhar durante mais três horas, no fim jantar, cuidando do
gado depois de anoitecer. E passeava de um lado para o outro, muito irritado. O trabalho duro não
matava ninguém. Convencera-se de que toda a gente só tinha em vista prejudicá-lo, «as minhas
esposas tanto como os outros», acrescentara, furioso. A Sr.a Webb prometeu fazer tudo o que
pudesse. Acompanhada por Ann Eliza, foi ter com o capataz e comunicou-lhe a exigência do patrão
relativamente a mais três horas de trabalho. O capataz exaltou-se. Não permitiria que os seus
homens trabalhassem para além das cinco ou seis horas; todos eles andavam já estafados. Ann Eliza
participou a Brigham a recusa do pessoal. Receoso de provocar uma revolta, o Profeta calou-se e
não falou mais no caso.

Durante dois anos Ann Eliza e a mãe foram as duas únicas mulheres a habitar a Granja. No terceiro
ano, com a mesma surpresa que Robinson Crusoe sentiu ao descobrir pegadas de humanos na areia,
Ann Eliza assistiu à chegada de uma mulher velha, acompanhada de bagagens, que se apresentou
como sendo a Sr.1 Lewis, esposa espiritual do Profeta. «A Sr.a Lewis nunca foi mencionada entre
as mulheres dele», declara Ann Eliza; «no entanto ele casou-se com ela dois anos depois de se ter
consorciado comigo.»

A Sr.a Lewis ficou instalada num dos quartos do andar de cima e dali a meses, já completamente
desiludida, contou a sua história a Ann Eliza. Fora em tempos uma rica viúva de Provo, com casa
própria que ela mesma construíra. Tinha os filhos todos casados, menos um. Este era um rapaz de
vinte e um anos, chamado Thomas, muito tímido e retraído. Era o consolo da sua velhice. Certo dia,
quando assistia a uma reunião nocturna, conheceu uma rapariga da sua idade, por quem se
apaixonou sem se dar conta de que
5»a era requestada para esposa polígama do bispo Snow. Thomas continuou a namorá-la, mas um
dia foi raptado P°r um grupo de patifes que o castraram. Em consequência ’’isto caiu num estado de
profunda melancolia até que desaPareceu para nunca mais voltar. A Sr.a Lewis ficou desolada e
quase não deu atenção à fábrica que Brigham começara a

229
construir junto da sua propriedade. Quando os represe tantes de Brigham a procuraram e lhe
pediram licença pá deixar passar um curso de água pelas suas terras, ela ma dou-os passear. A certa
altura, apareceu o próprio Brighs com o pretexto de que vinha «consolá-la» pelo desapara mento do
filho. Ela ficou-lhe muito grata. Em seguida* Profeta propôs-lhe casamento. Impressionada com
isteí sentindo-se muito solitária, a Sr.a Lewis aceitou. Brigh^ declarou-lhe que ali não poderia
encontrar-se com ela m| tas vezes, por isso sugeria que se mudasse para a Grani Quando veio a
saber que ele lhe confiscara a propriedadi fizera passar um ribeiro através das suas terras, tentou p|
curá-lo mas ele recusou-se sempre a recebê-la. Agora estai completamente desiludida.

Ann Eliza não o estava menos. Embora consideras* Sr.a Lewis «uma mulher muito amável e
paciente», nem j isso deixava de constituir mais um estorvo. A Granja cot nuava a ser
simultaneamente «a casa mais quente e mais j que jamais conheci». A mãe caíra doente de fadiga,
ela pi pria sentia-se também esgotada e as responsabilidades i mentaram.

Para cúmulo, as suas relações com Brigham iam de c a pior. Ele não só tornava as visitas dia a dia
mais cur como também o seu génio ia ficando cada vez mais aze em grande parte porque ela não se
lhe submetia do p< to de vista sexual e repelia com frieza todas as tentativasaproximação. Ann
Eliza fingia não perceber as irritações i marido. «Ele disse um dia que eu era a melhor de todas;
suas esposas», conta ela a uma amiga, «pois nunca lhe dil gira uma só palavra ou um olhar
agressivos. Nisso não t nho eu qualquer mérito, pois o meu silêncio explicava-! apenas pelo terror.
Nunca o amei nem lhe disse que o artí vá. Considerava-o um déspota sem coração.» <

De vez em quando, Ann Eliza tentava revelar-lhe 1 seus sentimentos. Conta-se uma história,
provavelmefl apócrifa, segundo a qual o Profeta teria um dia dado a Aí Eliza dinheiro para comprar
treze frangos. Ela adquiriu dá ze galos e um galinha. Quando Brigham se mostrou adní rado com
aquela maioria de machos, a mulher explicou-lí secamente: «Não quero que as galinhas sofram o
mesffl que sofrem as esposas!»

Estava-se no Verão de 1872. Ann Eliza andava nervosí

230

magra e esgotada. Logo de princípio embirrara com a Granja, mas agora acabara por a odiar. «Vivi
lá três anos e meio três anos longos e monótonos , odiava aquela vida!», escreveu mais tarde. «Era
uma vida triste, insípida, opressiva, e sentia umas tremendas saudades dos meus tempos passados
em Cottonwood, esses tempos tranquilos que não voltariam mais!»

Ao ver que acabara até por se desinteressar dos filhos, agora uns rapazes crescidos em idade de
frequentarem o liceu, Ann Eliza chegou à conclusão de que não aguentava nem mais um mês
daquela vida. Contudo, por muito que desejasse ser franca com Brigham, não tinha coragem.

Á verdade é que (e Ann Eliza sabia-o muito bem) tanto Brigham como a família achavam
sinceramente que ela vivia bem, sem qualquer motivo de queixa. Um ano mais tarde, depois de Ann
Eliza haver revelado ao mundo o seu ódio pela Granja, um repórter do Herald de Nova Iorque
perguntou a John Young:

Ann Eliza era obrigada a levar uma vida de escravidão?

O filho de Brigham respondeu em seu nome e no do

Pai:
Não existe uma só palavra verdadeira nas queixas dela. you explicar-lhe como ela vivia. A quinta
onde morava pode considerar-se a mais bela de todo o território e uma das melhores que existem.
Tinha uma carruagem e um cavalo à sua disposição e seis criadas para a servirem. Não precisava de
mexer um dedo.

Verdadeira ou não, era esta a atitude de Brigham, e Ann Eliza receava não conseguir demovê-lo.
Mas tinha de tentar. Antes que tomasse uma decisão, esta veio ao seu encontro.

Nesse Verão de 1872, o Profeta foi visitá-la. Levava-lhe urna boa notícia. Andava a construir uma
casa luxuosa na cidade, que lhe destinava. Tanto ela como a mãe iriam viver Para lá dentro em
pouco. No meio do seu entusiasmo, Ann Wiza nem quis indagar o motivo disto. Desconfiava não se
tratar tanto de uma prova de amor, mas antes do desejo de colocar à testa da Granja outra esposa
mais enérgica. No fntantp, isso era-lhe indiferente. Só sabia que iria regressar j Clvilização, viver
numa casa como deve ser, levar uma vi.* de senhora elegante. Sentia-se feliz. De súbito, caiu em Sl
e lembrou-se de um ponto...

231
Que foi? perguntou Brigham.

Há quartos interiores nessa nova casa?

Pois com certeza. =

Então peço o favor de não pôr as escadas a sair A saia. Que partam de qualquer quarto menos dali.
Além à hear tão e incómodo e torna-se aborrecido andar a todal hora a atravessar o melhor
compartimento da casa í

Podes ter escadas a partir de todos os quartos se J sim o desejares retorquiu Brigham muito amável
l

A satisfação de Ann Eliza era completa l

VI

A REBELDE DO HARÉM

Logo que ela deixou a família, tornou-se evidente que a sua, atitude era o resultado de uma falta de
princípios.

JOHN W. YOUNG

As escadas na nova casa de Salt Lake City partiam da coisa que saltou à vista de Ann Eliza ao
penetrar ali, a sala de visitas.

Esta monstruosidade arquitectónica foi a primeira desilusão em Agosto de 1872. De certa maneira,
as escadas representaram talvez a pedra-de-toque no seu casamento.

Vista do exterior, a «casa de Ann Eliza», como em breve todos lhe passaram a chamar, situada na
esquina da South Temple Street e da Second East Street, era bastante agradável de aspecto. O
edifício de dois andares em adobe, com as suas empenas altas e as chaminés de tijolo vermelho, as
janelas de vidro fosco e um pequeno pórtico, tinha um ar vagamente gótico. «Um belo pavilhão»,
pensou Ann Eliza, «e parece confortável.» Brigham idealizara-o de colaboração com o arquitecto
do templo mormon, Truman O. Angel. Ann Eliza avaliava o seu custo em cinco mil dólares, ao
passo que John W. Young afirma ter importado em doze mil.

Mal Ann Eliza entrou na residência, a primeira coisa que lhe saltou à vista foi a escada de caracol
que partia da sala para o andar superior e que a deixou completamente desconcertada, levando-a a
modificar a sua opinião inicial. Depois daquela desilusão, já não conseguia achar nada a seu gosto.
Quase não reparou na sala bem iluminada, com o seu vitral de caixilhos doirados, nem no espaçoso
quarto f. cama no andar de cima. A disposição do andar de baixo, «irmava ela, era muito incómoda
e mal pensada. Os compartimentos não faltavam, mas quase todos muito pequeis, sobretudo a
cozinha minúscula, com uma área de dois metros por quatro, mais própria para uma casa de
bonecas.

233
Ann Eliza descobriu também que não tinha água canali» da. Desde o primeiro dia teve de ir pedir
água aos vizinhd mas estes mostraram-se pouco satisfeitos com a invasão <jj seus domínios. j

Pouco depois de se mudar para a nova casa com a mãj os dois filhos, Ann Eliza pediu a Brigham
que codificas certas coisas fundamentais na sua residência, sem contul nada conseguir. «Falar com
ele a tal respeito era o mesa que estar calada», explica ela. «Eu não tinha a mais pequei influência
na sua vontade e todas as minhas sugestões o f ritavam. Por isso, após duas ou três tentativas no
senti! de alterar um pouco o que estava feito e tornar a casa ml cómoda, resolvi calar-me.» J

Mais tarde, quando ela tornou pública a sua opina acerca da casa e da avareza do marido, John W.
Young vi defender acaloradamente a generosidade do pai: «Ann Eli mudou-se para a cidade»,
declarou ele à imprensa, «porá não se sentia satisfeita na quinta sem que isso fosse dél do a
qualquer negligência da parte do meu pai. Sei que | lhe dava dinheiro sempre que ela lho pedia.
Uma vez dJ -lhe dinheiro para a mãe dela ir visitar uns amigos no LM te. Quando ela manifestou
desejos de vir para a cidadel meu pai construiu-lhe uma vivenda que custou doze i| dólares. Não
havia outra mais confortável na cidade.» Il foi confirmado por Mary Cairns, filha da governanta j
Brigham, que afirma recordar-se da mobília, decorada (M mármores estrangeiros, e do papel das
paredes importa de França. l

No entanto, o mal-entendido entre Ann Eliza e Bíl ham, que tivera início na Granja, azedava-se
cada vez mil Continuava a viver, segundo declarava a uma amiga, <i mesma penúria de sempre».
Queixava-se de que havia fli sés não provava carne fresca e que durante um ano ele l não dera mais
do que dois vestidos de chita. J

Era a mãe, afirmou Ann Eliza, quem a consolava e l tornava a vida mais suportável. Mas até esta
companhia <| meçou a ser vista com maus olhos pelo marido. Nos fins i
1872, foi visitar Ann Eliza e revelou-lhe que não podia stl tentar mais a Sr.a Webb, sugerindo que
ela se fosse emboj para South Cottonwood. Tamanha injustiça indignou A| Eliza, tanto mais que a
mãe «se matara a trabalhar ao ser* ço dele». Chorava amargamente ao pensar que tinha de l

234

separar da mãe. Depois de Brigham se ir embora, Ann Eliza não teve coragem de dar a triste nova à
Sr.a Webb. «Além do terror e da antipatia que experimentava em face jo meu marido», escreve ela,
«começava agora a perder a fé na religião que ele representava.»

Sem marido nem crenças em que se apoiar, a mãe tornava-se para ela uma necessidade
imprescindível. Resolveu nada dizer-lhe e tentar demover Brigham aquando da sua próxima visita.

O Profeta, porém, mostrou-se intransigente. Já que Ann Eliza não se decidia a mandar embora a
mãe, ele se encarregaria disso. A mulher suplicou-lhe que não se metesse no assunto e lhe
concedesse mais uns tempos de espera, ao que ele acedeu. Sabendo que o irmão mais velho, Gilbert,
se considerava em dívida para com ela visto tê-lo salvo da excomunhão, Ann Eliza apressou-se a
procurá-lo, expondo-lhe o ultimato do marido. Gilbert concordou imediatamente em contribuir com
cinco dólares por semana para o sustento da mãe. E assim a Sr.a Webb continuou na casa gótica
junto da filha.

Ann Eliza nunca perdoou a Brigham o desgosto e susto que lhe causara. Mais tarde diria: «A partir
do dia em que me pediu para mandar embora a minha mãe passei a odiá-lo.» No entanto, as coisas
não ficaram por aqui. Enquanto o Profeta rodeava Amélia de luxos e de toda a espécie de carinhos,
outro tanto sucedendo com algumas das restantes esposas, Ann Eliza continuava privada de bens
materiais e de afecto. «Via que ele me desprezava, insultava, humilhava», escreveu. «Estava
sozinha, à mercê de um velho a quem me encontrava ligada. As outras eram amimadas, e vê-las
assim felizes era mais do que uma mulher podia suportar.»

Decorreram ainda oito meses de privações e em Março de 1873 o marido de Ann Eliza deixou
definitivamente de a visitar. Para cúmulo, ela encontrava-se financeiramente em apuros. Dava
voltas à cabeça em busca de uma solução para at”ranjar dinheiro que juntasse ao que Brigham lhe
entregaVa> até que a encontrou. Dirigiu-se então à Colmeia para aPresentar a sua proposta.
Informou Brigham de que necessitava de mais fundos e, além disso, desejava «comprar um órgão
ao filho, Edward, que era louco por música». lsto ter alguns quartos vagos na sua casa, tivera a lem-

235
branca de tirar deles algum proveito. Importar-se-ia Brj ham que os alugasse? Brigham achou a
ideia genial, rek Ann Eliza, e concordou «prontamente». Repugnava-! que ela aceitasse hóspedes
não-mórmones? De forma aid ma, desde que estes lhe pagassem pelo menos três dólai por semana. ;

Ann Eliza meteu logo mãos à obra, convertendo a s casa particular numa pensão. Nos fins de
Março, os qui tos estavam todos ocupados. «Por coincidência», ref< Ann Eliza, «os meus hóspedes
eram todos não-mórm nes.» Entre eles contava-se um veterano da Guerra Civil major James Burton
Pond, de trinta e cinco anos, repóí do Tribune. Não tardou que para lá se mudassem tambi o juiz
Albert Hagan, ex-coronel confederado e nesta alt» fiscal das minas, com sua mulher. Tudo isto
represents um mundo novo e estranho para Ann Eliza. com o cê sentimento do Profeta, levara o
inimigo para dentro < suas portas; não tardaria também a metê-lo no seu coraçi

A vinda dos hóspedes não aliviou o fardo de Ann Efi É certo que dispunha de mais dinheiro para
alimentaçá< conseguia pôr de lado algumas economias destinada! compra do órgão para Edward.
Tinha, porém, de labu desde manhã até à noite a fim de atender os comenss E agora via-se obrigada
a fazer tudo sozinha. Sem se sal como, a mãe veio a ter conhecimento da tentativa de Br ham no
sentido de a mandar embora. Ofendida e choro a Sr.a Webb deixou a filha mas não a sua religião e
: gressou a South Cottonwood, à companhia de Chaunce; das outras esposas deste.

O acréscimo de rendimento de Ann Eliza não chega para esta se sustentar e aos filhos. Nos fins de
Maio, procurar Brigham e pediu-lhe auxílio. «Ficou aborrecido conta ela. «Lamentou-se das
despesas e disse que fosse bu car o dinheiro que juntara para o órgão do meu filho Q gastasse com a
alimentação da família... Esta entrevista dl xou-me doente e tive de ficar de cama uma semana.» Pol
cos dias depois de se haver levantado, Ann Eliza recolMJ de novo ao leito com uma pleurisia.
Apesar da doença, W mais uma vez o sacrifício de ir ao escritório de Brigham p< dir carne.
Segundo ela diz, recebeu apenas «dois bons b< cados».

Agora, que passava muito tempo de cama por causa da doença, Ann Eliza tinha tempo para ler. Até
esta data limitara as suas leituras às obras aprovadas pelos mórmones. Mas, pela primeira vez,
resolveu ler um livro antimórmon escrito por uma pessoa que conhecera noutros tempos, que
sofrera também os males da poligamia e conseguira libertar-se. Ann Eliza não achava que esta
leitura constituísse um pecado. Brigham lia muitas vezes escritos antimórmones. Declara ela:
«Lembro-me de ter entrado no seu escritório e de o encontrar a ver uma circular anunciando um
livro acerca do mormonismo escrito por uma senhora que residira uns tempos no Utah. Começou a
lê-lo para mim num torn de voz choramingão, imitando uma mulher a queixar-se. Apesar daquela
tentativa de levar o caso a rir, eu percebi que a publicação deste livro o irritava ao máximo e que
sentia uma grande curiosidade em conhecer o seu conteúdo e o efeito que produziria no público.»

O volume que Ann Eliza agora lia em segredo, provavelmente emprestado por algum dos seus
hóspedes não-mórmones, era o Expose of Polygamy in Utah, da autoria de Fanny Stenhouse.
Tratava-se de um livrinho de capa preta, dado à estampa pela American News Company, de Nova
Iorque, no ano anterior. A primeira página rezava assim: «Eu fui uma mulher mórmon e durante
vinte anos vivi entre mórmones. A fé deles era também a minha, posso dizê-lo com toda a
sinceridade; as ideias eram as minhas, bem como as suas esperanças e anseios; as opiniões
religiosas que professavam identificavam-se com as minhas. Mas isso pertencia ao passado.»

Ann Eliza prosseguia avidamente na leitura. As frases da Sr.a Stenhouse, na página setenta e cinco,
pareciam ter sido escritas para ela. «Se acaso este livrinho cair nas mãos de certas mulheres do
Utah, sei que hão-de reconhecer no seu íntimo, embora o não exprimam por palavras, a verdade
daquilo que afirmo. Um homem pode ter uma dúzia de esposas; porém, nunca receberá delas todas
juntas aquele amor verdadeiro, aquela devoção, que lhe daria uma só se acaso ele tivesse sabido
exprimir-lhe que apenas a ela dediCava afeição e só nela confiava. Como esses homens se enganam
a si próprios! Quando a paz ou, antes, o silêncio ema em suas casas, pensam que nelas habita o
espírito de eus. Mas isso não é verdade. Semelhante calma não se as-

236

237
semelha ao doce silêncio do sono, é antes a terrível imobjj dade da morte a morte das mais puras
afeições e de tuí aquilo que merece o nome de amor.» |

Na página cento e noventa e dois, Ann Eliza encontt o seu nome catalogado como sendo a décima
quinta esp< de Brigham Young. Dentro em pouco chegava ao últií parágrafo do livro: «Terminei a
minha tarefa e estou pres a largar a pena. Sei que serei condenada por todas es mulheres devotas,
que passam a vida a cantar hinos, quais, privadas do marido e dos filhos, sonham com a g ria do
mundo que há-de vir, desconhecendo completame as obrigações, as doces e sagradas afinidades do
mundo que vivem. Aos olhos delas cometi sem dúvida um ”pecs imperdoável”. Escrevi para as
tristes e martirizadas mui rés polígamas. Essas compreender-me-ão e é a elas que dirijo. Estou
pronta a ouvir a sua sentença diante do Gtt de Tribunal.»

Como não é de estranhar, Ann Eliza sentia-se proft damente emocionada. Ela compreendia a
comovente c< fissão da Sr.a Stenhouse acerca da vida em poligamia. I livro, confessou mais tarde a
quem a quis ouvir, «fez-i ver as coisas sob uma luz diferente. Eu sabia, por triste periência, que
todas aquelas palavras eram verdadeiras e só ajudou-me a deixar a horrível vida poligâmica». >

Na mesma altura em que lera a obra da Sr.a Stenhou Ann Eliza conheceu também o reverendo C. C.
Stratt numa reunião de sociedade e encontrou nele um amigo < lhe escutava as queixas. Dali a
algum tempo, a seu pedi< Ann Eliza visitou secretamente o reverendo e a mulhe contou-lhes toda a
história da sua vida com Brigham. I pois disso passou a discutir frequentemente com eles
possibilidades de alcançar a liberdade.

Na última semana de Junho voltou a cair de cama cô uma doença grave, sendo apenas acarinhada
pelos seus < dicados hóspedes. Brigham, afirmava ela, não fazia caso dtj seus apelos. Ninguém da
família a foi visitar, com uma úrç ca excepção. Por estranho que pareça, essa excepção foi vá dos
enteados, Brigham Young Jr., o segundo filho legítio) do Profeta. Ann Eliza tinha bastante
intimidade com é para o tratar por «Briggy». Era um rapaz forte, estúpia mas bondoso, casado com
três mulheres. Ann Eliza nutr por ele uma simpatia particular pelo facto de ele ter um «

238

levado a melhor ao pai num assunto amoroso. A rivalidade entre os dois surgira com a chegada a
Salt Lake City de Lizzie Fentom, uma rapariga de Filadélfia, alta e decidida. «Imediatamente pai e
filho ficaram entusiasmados com ela», conta Ann Eliza, «começando logo ambos a rodeá-la de
atenções. Durante uns tempos manteve-se uma grande rivalidade entre pai e filho.» Ann Eliza ficou
encantada com o facto de ter sido o filho quem venceu, fazendo de Lizzie a sua terceira esposa e
também a favorita.

Ao visitar agora a madrasta, Brigham Young Jr. ficou chocado com o aspecto dela e com a narrativa
do desprezo a que seu pai a votara. Num acesso de fúria, correu até à Colmeia e fez uma cena a
Brigham Young, que almoçava na companhia de Amélia Folsom e de Lucy Decker.

Pai, acho que é uma vergonha a maneira como está tratando Ann Eliza exclamou o rapaz. Ela
encontra-se muito doente e se não faz qualquer coisa por ela morre por sua culpa. Fui visitá-la e sei
aquilo que digo!

Brigham ficou demasiado abalado para dar qualquer resposta. Mas daí a pouco Ann Eliza recebia
um fornecimento de remédios e comida enviados da Colmeia.
No entanto, na opinião dela, nenhum medicamento poderia remediar o prejuízo emocional que lhe
haviam causado. Não tentava ocultar dos hóspedes o seu desgosto. A Sr.a Hagan viu-a, ouviu a sua
história e mandou chamar o marido que era advogado. Este aconselhou o divórcio. Ia partir para
uma viagem à Califórnia, e pensou que ao regressar Ann Eliza teria já tomado uma decisão.

Esta, entretanto, fora assaltada por dúvidas e piorara dos seus padecimentos nervosos. Deixou-se
rebaptizar e mais uma vez saiu desiludida da Casa dos Votos. Consultou de novo o reverendo
Stratton. Avistou-se com Brigflam, pela última vez, e o facto de ele lhe recusar um fogão novo que
lhe pediu levou-a a endurecer a sua atitude, yuando o juiz Hagan regressou da Califórnia, Ann Eliza
Declarou-lhe que estava resolvida a divorciar-se de Brigham Young.

A 15 de Julho de 1873, assim que os carregadores levararn a mobília, que mandou vender em leilão,
e o filho, Ed’yard Wesley, foi para junto dos avós, Ann Eliza desertou ~a casa de Brigham e,
levando pela mão o filho mais novo, Leonard, foi acolher-se junto dos Stratton. Durante essa

239
noite horrível e solitária passada no refúgio precário J

Walker House, o célebre hotel «gentio», receou seriameM

morrer estrangulada às mãos dos danitas, sectários de Br3

ham. Porém a aurora do primeiro dia de liberdade encoí

trou-a incólume e, apesar de «aliviada e esperançosa», ca

meçou a perguntar a si própria o que iria acontecer m

seguida. Quando acabou de se vestir, surgiu-lhe a resposjl

A manhã de 16 de Julho de 1875 foi como uma expia

são de artilharia para a vigésima sétima esposa de BrignaÉ

Young, a esposa apóstata.

De que forma a notícia se espalhou ninguém o safai

Talvez o juiz Hagan e o major Pond tivessem movido M

cordelinhos durante a noite. Talvez o rastilho partisse M

átrio da Walker House e alastrasse pela cidade. Talvez

espiões, tanto mórmones como «gentios», tivessem entra<B

em acção. A verdade é que, logo pela manhã, a bela, a 3m

sustada, a desprezada Ann Eliza estava em vias de alcança

a celebridade internacional através do escândalo. J

Sem poder acreditar no que lhe acontecia, viu-se famosa*

registou as suas sensações, o que não sucedeu a Lord Byro||

«A notícia da minha evasão tinha corrido de boca en

boca e os jornais da manhã não falavam de outra coisa M

os mórmones acusando-me, os não-mórmones exaltandwj

-me. Nunca imaginara tal coisa. Nunca me ocorrera qw

poderia vir a ser objecto da curiosidade pública e isso rjt

pugnava-me. Sentia-me uma pessoa marcada. Os reportei»


procuravam-me, solicitando entrevistas para os jornais <m

Califórnia, de Chicago, de Nova Iorque, e interrogavas»

-me até me deixarem a cabeça em água. Quando me deita*

na véspera, eu era uma pobre mulher ultrajada e sem derdl

sã, tentando fugir de uma vida falsa e procurando qualquífl

coisa de melhor e mais válida. Ao acordar, verificava que m

meu nome enchia todo o país, que era conhecida em todalj

parte como a esposa rebelde de Brigham Young. O not^l

foi invadido por pessoas curiosas por verem uma das e5?4?*

sãs do Profeta. Não me atrevia a sair do quarto nem deixlH

o meu filho afastar-se da minha vista durante mais de ulw

mês. Os jornais mórmones atacavam-me de todas as formai!

e feitios, enquanto os não-mórmones tomavam unanime^

mente a minha defesa.» l

O primeiro jornal que Ann Eliza leu pela manhã era o,

seu paladino, o Tribune, de Salt Lake City, e nele o jorna-1

240

lista, provavelmente o major Pond, mostrava-se discreto. O artigo de fundo ostentava o título: UM
SINAL DOS TEMPOS. E dizia assim:

«O Tribune tem vindo sempre a afirmar que a poligamia mórmon pereceria com a actual raça dos
mórmones de Nauvoo e que essa anomalia social apresentada como ”casamento espiritual” ou
”matrimónio celestial” acabaria em breve por ceder à vontade da nação, quando as influências de
fora tivessem oportunidade de ir exercendo a sua acção, em vez de se pretender desenraizar
bruscamente um uso que conta uns trinta ou quarenta anos de existência...

«O exemplo que talvez melhor ilustre a verdade da nossa afirmação é o facto de a esposa mais
jovem de Brigham Young ter vencido a sua educação religiosa, a sua experiência mórmon e o temor
dos anátemas hierárquicos, ao ponto de abandonar os deveres poligâmicos e se encontrar hoje
hospedada num dos nossos principais hotéis.

«Abstemo-nos de publicar o nome dessa senhora ou qualquer pormenor do acontecimento, ou


mesmo de encarar o facto de ânimo leve ou sob o aspecto irónico, aproveitando a ocasião para
vibrar mais um golpe na poligamia. Não queremos importunar mais as mulheres honestas mas
infelizes, que afinal são vítimas de uma falsa concepção dos seus deveres religiosos.»

Na página seguinte, numa coluna de comentários rápidos e humorísticos acerca das novidades
locais, intitulada «Notas Breves», Pond ou um dos colegas de redacção refena-se em ar de troça à
reacção dos mórmones: «O irmão Brigham está desolado. A sua última costela desertou do leito
conjugal.» A mesma coluna acrescentava no dia seguinte: «O irmão Brigham encontra-se o melhor
que é possível, dada a fatalidade que o atingiu.»

Outro diário de Salt Lake City, de inspiração nãornórmon, o Journal, não hesitava em publicar o
nome da dama, e em todo o território do Utah, nessa primeira matthã, a imprensa não-mórmon
rejubilava. O Daily Repórter, de Corinne, dá-nos um exemplo:

«Os jornais de Salt Lake anunciam que a esposa favorita de Brigham Young o abandonou para ir
viver entre os ateus. A Sr.a Young encontra-se instalada num hotel, onde causará sensação, até que
uma dúzia das suas colegas se resolva também a quebrar as cadeias. Nos velhos tempos da

241
cerâmica grosseira e da tecelagem manual, quem mandai

era o patrão, mas, ai de nós!, hoje, as modas e as loucuia

do paganismo quebraram as grades e os ferrolhos da nom

estranha instituição. Primeiro acabou-se com a côngrdl

agora é a poligamia que está pela hora da morte.» Ij

O resto do país mostrava-se menos discreto. De costa

costa, a «desorientada» e renegada esposa tinha honras m

primeira página. As referências de que era objecto neji

sempre se revelavam correctas, catalogando-a como sendoj

décima sétima ou décima nona esposa de Brigham YounI

um lapso bastante desculpável, visto que tanto a impreij

como a própria Ann Eliza contavam apenas as esposas <

Profeta que se encontravam vivas por essa altura. Na vJ|

dade, Ann Eliza era a vigésima sétima esposa. m

Em São Francisco, o Evening Bulletin intitulava assim»

seu artigo da primeira página: AS CULPAS DE BRH9

HAM. O primeiro parágrafo começava: <

«Salt Lake City, 16 de Julho. Causou hoje grande sen

sacão nesta cidade a notícia de que a décima sétima espoa

de Brigham Young, Ann Eliza Webb Young, o abandona

definitivamente levando consigo a mobília e outros objdl

tos pessoais. Brigham tentará reaver os seus bens. A Sfl

Young encontra-se na Walker House e estão a trabaUw

três advogados num processo de divórcio em que é exigial

uma elevada pensão alimentar. Esperam-se importantes rm

velações a respeito da vida doméstica do Profeta. A Sfl


Young goza das simpatias de todas as damas ”gentias” e <B

polígamos mórmones encontram-se bastante alarmados*

Na costa oriental, mais populosa e civilizada, o Tirrtm

de Nova Iorque dedicava uma coluna inteira da sua austefl|

página editorial à recente notícia. Esta intitulava-se simpleal

mente: A DÉCIMA SÉTIMA. E começava assim: H

«A poligamia recebeu um profundo golpe e mais out*|I

cause célebre se vem juntar à lista já bastante longa desMJ

ano que corre. A décima sétima esposa de Brigham Youngl

o Profeta, rescindiu o seu contrato e isso talvez represenjl

o dobre a finados da ”estranha instituição” do Utah. SH

acaso Ann Eliza Webb Young conseguir ganhar a questã<«|

é quase certo que algumas das suas predecessoras, não f*Í

lando já nas suas colegas do futuro, lhe seguirão o exemplo?!

E não podemos esperar que os filhos e discípulos do Profe-”l

ta continuem a seguir uma prática que lhe acarretou a ele j

.
242 ^

tamanho desaire. Se ficar estabelecido este precedente, o que não poderá deixar de verificar-se, isso
terá grandes consequências para o território. Um caso como o do pretenso Tichbome (Arthur Orton,
de Wagga-Wagga, na Austrália, que pretendeu fazer-se passar por Sir Roger Tichbome, herdeiro de
uma abastada e nobre família de Inglaterra, e foi condenado a catorze anos de prisão pela sua
intrujice) só lhe diz respeito a ele e aos verdadeiros parentes dos Tichbome; porém, um caso como o
da décima sétima esposa de Brigham Young é de interesse capital não só para o batalhão das
esposas deste como também para todas as mulheres que vivem em poligamia na comunidade
mórmon.»

Mas o Times de Nova Iorque, ao mesmo tempo que divulgava a sensacional notícia por todo o
Leste, fazia também uma observação que muito feria Ann Eliza: «Agora resta saber qual será a
posição social de uma senhora... que aderiu praticamente às doutrinas da poligamia e vem agora
pedir auxílio às leis que foram criadas unicamente para defender causas monogâmicas»,
questionava o editorial. «Ela não pode alegar que se meteu naquele sarilho de olhos vendados... O
que nos parece estranho é o facto de ela gozar das simpatias de todas as senhoras não-mórmones de
Salt Lake City, segundo nos informam pelo telégrafo, como se se tratasse de uma mulher infeliz e
sem culpa alguma dos sofrimentos que lhe caíram em cima. Se é vergonhoso viver em
concubinagem num país cristão, não podemos deixar de louvar quem se liberta; porém, não
podemos esquecer o

£ie há de odioso em ter aderido de livre vontade a semeante situação.»

Se bem que esta crítica vinda do Leste já tivesse enervado Ann Eliza, o que mais a magoou foi o
parágrafo insultuoso que veio a público no Chronicle de São Francisco, a
17 de Julho. Rezava assim: UMA DAS ESPOSAS DE BRIGHAM YOUNG ABANDONA O bom
CAMINHO. E prosseguia:

«Causa o maior escândalo a sua familiaridade com as Partes contrárias e é opinião geral que foram
elas as instigadoras da sua atitude. Espera-se o início de um processo de vorcio... O Journal
considera este caso um acontecimento |5ue fará correr um arrepio de surpresa e terror em muitos
ares poligâmicos, ao passo que os mórmones consideram~no como uma consequência natural de
falta de princípios.»

243
Ann Eliza e os seus amigos tentaram localizar a origdj

desta história escandalosa. Na opinião dela, o autor dam

ser um homem recém-chegado a Salt Lake City, nãJ

-mormon, chamado W. H. Harrington, revisor do Heram

jornal pró-mórmon, e operador do telégrafo, o qual tell

enviado o artigo para São Francisco. «Por intermédio

Brigham Young», afirmava Ann Eliza, «que goza da fan

de controlar a Associated Press e o Western Telegraph Cm

fice no Utah, o homem tem acesso ao telégrafo e envia tn

das as notícias que o patrão lhe encomenda.» l

Num artigo de fundo, o Tribune avisou Harringto»

«E costume os cavalheiros terem cuidado com o que dizei

acerca da reputação das senhoras nesta região do Ocideol

aqui o código de honra tem larga e pronta aplicação!

Publicar deliberadamente o nome de uma dama em granai

letras, relatar em pormenor incidentes de um casamena

anterior, insinuar liaisons com amantes não-mórmones, rjl

vela uma grande temeridade.» O Tribune concluía: «ActíjB

selhamos o senhor H. a arrepender-se quanto antes, prtB

trando-se aos pés dessa senhora para lhe pedir perdãjl

exprimir os sentimentos de profunda angústia que lhe dl

chem a alma, fazer as pazes com a família dela e evitar (

qui para o futuro os maus conselheiros que lhe fornecáB

matéria para denegrir o nome de uma mulher bastante CB

i-ii i ’ B

rajosa para se libertar de uma situação desumana e incoinB


da, se não ultrajante para o seu sentido de honra femininjB Indignado, W. H. Harrington não deixou
cair o desajH em saco roto. No Herald de Salt Lake City começou pfl alcunhar o Tribune de «aborto
no campo da literatura jdl nalística». Referia-se insultuosamente a Ann Eliza e ad| seus adeptos
como «híbridos» e insinuava que só se lh<jl poderia ensinar boas maneiras por meio de «revólveres
M chicote». Fora ele, claro está, quem escrevera a história pw| blicada em São Francisco, mas
insistia em que ela não ertj de origem mórmon.

Muitos anos depois, Ann Eliza teria a satisfação de di* zer a última palavra acerca de Harrington:
«Como pré011 J do seu trabalho, prometeram dar-lhe por noiva a filha dtl prefeito Wells. A
rapariga não esteve pelos ajustes e esscij patife indecente passou dali em diante a ser desprezado
tan- * to pelos mórmones como pelos não-mórmones.»

Brigham Young não se dignou reconhecer oficialmente

244

a apostasia da sua última esposa nem fez quaisquer declarações no sentido de desmentir as histórias
desta. Limitou-se apenas a admitir haver utilizado os serviços do renegado telegrafista. Também
não exerceu qualquer pressão no sentido de coagir a mulher a regressar ao leito conjugal ou ao seio
da igreja. Apesar dos seus setenta e dois anos e das suas maneiras delicadas e amáveis em
sociedade, o Leão do Senhor, como lhe chamavam os colegas, era ainda capaz de rugir quando o
espicaçavam. Segundo parece, ele começara por considerar o afastamento de Ann Eliza como um
capricho temporário, filho do seu génio violento, da doença e das más companhias. Achava que ela
não tardaria a reconhecer a loucura da sua atitude e a regressar ao redil, cheia de contrição. Mas
quando, passados quatro dias, a 19 de Julho de 1873, ela consentiu que os «patifes» dos seus
advogados redigissem oficialmente e nos piores termos o pedido de divórico, Brigham Young
mostrou-se simultaneamente espantado e furioso.

«Embora esta atitude causasse surpresa a toda a gente, penso que ninguém se mostrou mais
espantado do que o próprio Profeta», declara Ann Eliza sem esconder a sua alegria. «Ele podia
esperar uma coisa destas de qualquer das suas esposas, menos de mim. Eu mostrara-me sempre
calada e timorata durante a minha vida de casada! Ficou aborrecido com a publicidade do caso,
pois, muito embora goste de se tornar notado, não lhe agradava nada aparecer como réu num
processo de divórcio em que era acusado de negligência e de faltar com o necessário à mulher. O
assunto causaria um péssimo efeito entre os não-mórmones.»

Pouco antes da redacção do pedido de divórcio, Ann Eliza tivera uma breve altercação com os seus
advogados. Tanto o juiz Hagan como os amigos exigiam cinquenta por cento de qualquer quantia
que se conseguisse extorquir a Brigham Young. Ouvindo isto, a fraqueza e a timidez de Ann Eliza
desapareceram como por encanto. Uma vez que a sentença contra o marido constituía a sua única
segurança quanto ao futuro, não estava na disposição de ceder metade do lucro a ninguém. Daria
única e exclusivamente os vinte Por cento que mandava a lei. O juiz Hagan não conseguiu demovê-
la e os outros tiveram de acabar por concordar.

Depois de se chegar a este acordo entre a queixosa e os

245
advogados, o ataque tanto legal como religioso foi fins

mente apresentado a 19 de Julho, assinado por «Ann Eli

Young representada pelo seu amigo George R. Maxwq

advogado de acusação, contra Brigham Young». O pedi^

de divórcio foi aceite pelo meritíssimo James B. McKeaj

juiz do Terceiro Tribunal Judicial, sendo a queixa tambâ

dirigida contra Brigham Young, presidente da Igreja de B

sus Cristo e dos Santos dos Últimos Dias. J

Depois de declarar que Ann Eliza nascera em NauvcJ

no Ilinóis, residira em Salt Lake City, desde 1848, se casa

com Brigham Young em 7 de Abril de 1869, e que era mi

de dois filhos de um matrimónio anterior, a queixa concol

dava em que «por um período de um ano o réu vivera!

coabitara com a queixosa dispensando-lhe uma certa amid

de e atenção e que durante esse espaço de tempo contrib

rã para a manutenção dela e dos dois filhos, sem que no em

tanto o fizesse de harmonia com as suas possibilidades nen

com a categoria da esposa». Jl

Ann Eliza declarava que, «durante o período menciona

do e até depois dele... desempenhara com fidelidade toda

os deveres e obrigações que lhe competiam como muW|

casada e que sempre tratara o réu com a maior ternulB

consciente das suas responsabilidades de esposa».

No entanto, «cerca de um ano após o dito casamenOT

por qualquer motivo desconhecido da queixosa, o réu prial

cipiara a olhá-la sistematicamente com desprezo e má voflB


tade, tratando-a de maneira cruel e desumana, acabando all

por a abandonar por completo, o que dava a entender |B

queixosa que deixara de nutrir por ela o mínimo sentimeffl|

to de afeição ou respeito, retirando-lhe ao mesmo tempo m

seu auxílio e protecção». jl

Isto era um resumo. Seguem-se agora os pormenoreiB

Um ano depois do casamento, declarava Ann Eliza, folfl|

exilada para uma grande casa nos subúrbios, casa essa qu^l

pertencia ao marido e era conhecida pelo nome de Granjs«

Ali suportara, durante dois anos e meio, toda a espécie (UB

trabalhos duros, bem como sua mãe, cuja saúde não resistida

rã. Brigham Young raramente visitava a Granja, demoran-*j|

do-se nela apenas uns escassos minutos ou no máximo mei*i

hora; nessas ocasiões, tratava a queixosa com deliberada l

desprezo e falta de atenção, dando a entender que tais visi’ |

tas não eram para ela, mas antes tinham como finalidade vi- j

giar os trabalhos da quinta. J

246

A partir do Outono de 1872, quando se mudara para a casa gótica de Salt Lake City, a sua vida
matrimonial não sofrera modificação. Brigham Young, prosseguiu ela, «vivia completamente
separado dela e recusava-se a visitá-la no seu domicílio ou em qualquer outra parte». Ela pedira-lhe
dinheiro e alimentos. «Em resposta a estas repetidas solicitações, o réu empregara uma linguagem
insultuosa e altamente ofensiva e desde o Outono de 1870 raramente lhe fornecera géneros, e nunca
em quantidade suficiente nem de qualidade capaz para o consumo dela e dos filhos.»

A respeito desta parcimónia, Brigham Young «era, na altura do citado casamento, e continua a ser,
senhor de avultada fortuna que se eleva a alguns milhões de dólares com um rendimento mensal não
inferior a quarenta mil dólares». Brigham Young negou sempre essa riqueza. Uns três meses antes,
num telegrama autobiográfico para o Herald, de Nova Iorque, ele declarara que, se acaso possuísse
esses hipotéticos milhões, «empregá-los-ia sem dúvida em ir buscar os pobres membros da nossa
igreja que vivem em países antigos e trazia-os para aqui a fim de lhes melhorar as condições de
vida». Ann Eliza, porém, insistia na afirmação de que a fortuna do marido devia orçar por essa
importância. Numa declaração pública esclarecedora ela afirmou que aquela se elevava a oito
milhões de dólares. Infelizmente, não possuía qualquer quinhão dessa soma. Os seus rendimentos
resumiam-se a trezentos e oitenta dólares. Por isso pedia a separação, exigindo mil dólares mensais
até obter o divórcio e em seguida mais dois mil para os filhos, além de vinte mil para pagar aos
advogados.

As revelações públicas feitas na queixa de Ann Eliza emocionaram o mundo inteiro. A reacção
principiou em salt Lake City, estendeu-se a todo o território e depois a Leste e a Oeste, acabando
por atravessar o Atlântico. Em ^alt Lake City, o Herald, jornal pró-mórmon, afirmava que Ann
Eliza «se tornara consciente e deliberadamente esposa Polígama de um homem que já era casado
com várias muJneres. Tal casamento, puramente eclesiástico, independente de qualquer cerimónia
civil e sem validade legal, só lhe dava direito aos cuidados, atenções e protecção no que respeitava
às exigências da fé que ambos professavam... As leis °s Estados Unidos não reconheciam
semelhante casamen-
0: °s tribunais dos Estados Unidos não podiam aceitá-lo

247
sem reconhecerem a legalidade da poligamia». O Tribttâ replicava: «Quando os homens não
auxiliam as esposas i maneira compatível com as necessidades da vida, a lei vj em auxílio da parte
mais fraca e obriga o homem a cumpl o seu dever. Estará este caso para além dos limites das n gras
vulgares do senso comum?» Algures, fora do terrid rio, o Daily Repórter, da cidade de Corinne,
perfilhava! ponto de vista mórmon. «Segundo as nossas leis, ela é tanj mulher do presidente Young
como do xá da Pérsia; e uni vez que o seu casamento não possui validade legal, nj existe
fundamento para o divórcio.» J

O Daily Alta, de São Francisco, trazia na primeira páaj na o seguinte cabeçalho: SUMÁRIO DO
PROCESSO 3 DIVÓRCIO DE ANN ELIZA. O Public Ledger, de Fij délfia, publicava uma
narrativa concisa mas completa ca exigências de Ann Eliza. O Times, de Nova Iorque, sobl título O
PROCESSO DE DIVÓRCIO DE BRIGHA1 YOUNG, e com um pequeno mas atrevido subtítulo
’m TEXTO INTEGRAL DAS ACUSAÇÕES E EXIGEM CIAS DA ESPOSA , dedicava três
colunas ao caso J divórico. O Times, de Londres, transcrevendo as notíca do Pall Mall Gazette,
vaticinava que «o divórcio de Aã Eliza originaria um conflito jurídico na América... entrei tribunal
territorial ou mórmon e o dos não-mórmoneffl

Finalmente, Brigham Young, convencendo-se da ser|| dade das acusações e reconhecendo que tinha
um adveráj rio tremendo no quarto andar da Walker House, agi prontamente no sentido de levar a
sua incómoda esposll retirar a queixa. Embora ele fosse um diplomata inexf* riente e brusco,
procedeu então com toda a subtileza de u| autêntico fronteiriço. Apelou primeiramente para a
SUSCOT tibilidade religiosa de Ann Eliza. J

Certo dia, dois professores mórmones foram visitá-H Depois de minuciosamente interrogados e
tendo-se chegi do à conclusão de que não eram danitas, foram levados! sua presença. l

Como se se tratasse de qualquer outra circunstância um deles inquiriu: |

A senhora sente conforto com a sua religião? |

De modo nenhum retorquiu Ann Eliza com fif* meza.

Ah, volte para junto de nós e talvez o Senhor envi»

urn anjo com uma mensagem para Brigham e este passe a considerá-la a sua esposa favorita.

Não tenho o menor desejo de que tal coisa suceda! __ exclamou ela.

Nada mais havia que dizer e os professores retiraram-se vencidos.

Ann Eliza queixara-se de que, durante a sua doença, nem um só dos seus amigos mórmones a
visitara na Walker House. Brigham Young teve conhecimento disto e talvez fosse ele o responsável
pela primeira visita mórmon que ela recebeu. Ou talvez a coisa se passasse de um modo espontâneo.
Ann Eliza, porém, estava certa do contrário.

Essa visita chamava-se Clara Stenhouse Young e era filha da célebre Fanny Stenhouse, escritora e
conferencista, e de T. B. H. Stenhouse, jornalista polígamo. Tinha Clara quinze anos quando o filho
mais velho de Brigham Young, Joseph A. Young, que já possuía três esposas, se apaixonou por ela.
A princípio, a mãe de Clara, de ideias monogâmicas, contrariou o casamento. «Pessoalmente eu
nada tinha contra o namorado de Clara», escreveu ela. «Conhecia-o há muitos anos, era um rapaz
inteligente e bem-parecido, ocupando uma bela posição entre os ”Santos”, e também rico.
Apreciava-o e estimava-o como amigo; mas o facto de um polígamo querer casar com a minha
querida filha repugnava aos meus sentimentos.» Apesar disto, Clara Stenhouse tornou-se a quarta
esposa de Joseph A. Young. «Ele era um polígamo convicto», refere Ann Eliza. «Contudo, em certo
sentido era monogâmico, pois embora possuísse três esposas só vivia com uma.» Esta, a favorita,
era Clara Stenhouse. Quando Joseph se embebedava, o que sucedia frequentes vezes, maltratava-a,
e um dia chegou a persegui-la com uma pistola (foi nesta altura que ela se separou até que ele a f°i
de novo buscar); apesar de tudo isto, Joseph Young deu-lhe uma casa esplêndida e bem mobilada,
uma carruagem, jóias e vestidos elegantes. Mesmo depois de os pais dela renunciarem ao
mormonismo e fugirem para Leste, onde escreveram livros de ataque a essa religião, a filha
permaneceu casada com Joseph Young. Clara e Ann Eliza haVlam sido amigas íntimas. «Ela sabia
bem tudo o que eu tinna sofrido», declara Ann Eliza, «pois viveu em minha casa durante uns
meses.»

Nessa altura, Clara veio visitar Ann Eliza, na Walker nouse.

248

249
Depois de um preâmbulo, Clara declarou sentir-se ira camente admirada com a atitude da amiga. ,;

Terias procedido da mesma forma observou ej se acaso fosses tratada como eu fui.

Talvez admitiu por fim Clara. ! A visita terminou amigavelmente, como nos velli

tempos, e Ann Eliza manifestou desejos de que a outra i voltasse. Clara assim prometeu. Passado
pouco tempo, a| sita repetiu-se. Mas desta feita o ambiente era pouco nad ral, reinava um certo mal-
estar e notava-se da parte de Q rã uma grande curiosidade. Ann Eliza não a convidot voltar. «Desta
última vez», confessou a uma amiga «gí tia», «tive a certeza de que ela viera espiar-me.»

Já nem a antiga fé nem as velhas amizades tinhair condão de atrair de novo Ann Eliza ao redil.
Brighi Young achou que ao menos devia convencê-la a desistir’ um processo público de divórcio.
Sabendo perfeitame que ela se encontrava na penúria, a viver à custa dos ai gos, pensou que o
dinheiro devia constituir um isco irrea tível. Escolheu pois como emissário um dos seus genl mais
ilustres, Hiram B. Clawson, que encarregou de chç a um acordo com a mulher. Este rapaz adquirira
fama < mo gerente do Teatro de Salt Lake City, no tempo em c Ann Eliza representava. Fizera
fortuna quando consegi conquistar a filha mais velha do Profeta, Alice Young, vi cendo a oposição
do pai. Como esposa, Alice Young Clí son era de difícil convívio. Possuía já uma vasta crón: pois
estivera em tempos noiva de um sujeito chamado ” bin. Quando este fora obrigado a ausentar-se por
mot de negócios, prometendo voltar em breve para se casar, A cê dera-se ao convívio com outros
jovens libertinos, t destes teve mesmo de ser despachado para as ilhas hava nas, como missionário.
Quando Tobin regressou e teve c nhecimento da inconstância de Alice, rompeu o noivado
abandonou a capital mórmon. Talvez se devesse apenas uma coincidência o facto de a sua caravana
ter sofrido uu emboscada no rio Santa Clara, a trezentas e setenta milh|| ao sul de Salt Lake, da qual
a custo conseguiu escapar sell contudo poder identificar os assaltantes. í

Repudiada por Tobin, Alice casou-se com Hiraw B. Clawson. «O Profeta opunha-se a esta união»,
relats Ann Eliza, «mas Alice não desistiu de casar com ClawsoO

250

Dali a poucos anos, este casou com outra das irmãs dela. Tal como a maioria das mulheres
mórmones, Alice aceitava a doutrina da poligamia. Na prática, odiava-a e a sua vida conjugal era
bastante infeliz. Teve uns poucos de filhos, mas não foi uma boa mãe.»

Mesmo como terceira Sr.a Clawson, Alice continuou a ser namoradeira e a vestir-se com garridice.
Um dia, Brigham Young encontrou-a na rua e ficou indignado com a forma como trajava:

Santo Deus, Alice! trovejou ele. Que diabo de indumentária é essa? Pareces uma prostituta!

Alice arregalou os olhos para o pai e retorquiu:

E que sou eu mais do que isso? Qual foi a doutrina que o senhor me ensinou?

Pouco tempo depois, Alice envenenava-se. Clawson chorou-a muito pouco tempo e logo procurou
consolação junto das outras esposas.

Neste momento, já reabilitado aos olhos do sogro, Clawson preparou-se para reduzir Ann Eliza ao
silêncio. Para isso, procurou o pai dela, Chauncey Webb, bem como o seu mentor, o reverendo
Stratton; conferenciou com eles, e depois os três foram procurar a esposa recalcitrante. Clawson
dirigiu-se-lhe de uma maneira franca e inteligente, sem arrogância. O divórcio seria perigoso para a
igreja, confessou. «Se acaso ela ganhasse o processo», declarou, «isso causaria um prejuízo
incalculável, visto que centenas de mulheres mórmones, não deixariam de lhe seguir imediatamente
o exemplo.» Por conseguinte, se ela consentisse em desistir da acção, Brigham Young prometia dar-
lhe quinze mil dólares e um salvo-conduto para saírem do Utah, ela e os filhos.

Esta perspectiva de liberdade e segurança abalou profundamente as intenções de Ann Eliza.


«Confesso que quase me senti tentada a aceitar», escreveu mais tarde. «Podia ’evar os meus filhos e
retirar-me calmamente com eles, evitando a publicidade que tanto odiava. Se se tratasse apenas ae
urna questão pessoal, teria anuído imediatamente e acei.ado a sugestão. Mas ao pensar em tudo o
que estava em J°8°> no número de vidas que seriam afectadas pela resoluÇa° que eu tomasse,
afastei por completo a ideia de um acordo.»

Mais tarde, Ann Eliza comprazia-se em afirmar que fo-

251
rã ela quem aconselhara o juiz Hagan e o general MaxwdH já hesitantes, a repudiarem o subomo
monetário e a segJ rem por diante. Existem porém provas do contrário, in ÍU cando que Ann Eliza
estava prestes a sucumbir perante IB quinze mil dólares de Clawson, e que foram os seus amigfl
«gentios» que disso a dissuadiram. Fosse como fosse,« proposta não foi aceite, e Clawson regressou
vencido pqfl junto do sogro, enquanto o processo de divórcio prós» guia os seus trâmites.

Ann Eliza começou logo a ser vítima de tentativas fl intimidação através dos melhores amigos e da
família. NáB existem provas claras da responsabilidade que Brigh» Young poderia ter tido nisso, no
entanto Ann Eliza semriB afirmou que a campanha era dirigida por ele. Uma vez dl o reverendo C.
C. Stratton fora em tempos o conselheifl de Ann Eliza, que o estimava muito, sobre ele é que inciqB
o ataque mais malévolo. A 9 de Agosto de 1873 enc<ÍB trava-se ela na Walker House havia quatro
semanas ,JB jornal Chronicle de São Francisco, que fora o primeircfB caluniá-la, desatou a difamar
a piedade do reverendo StriB ton. O título era: O ESCÂNDALO MÓRMON. E ui subtítulo em
letras menores: A ATITUDE DE UM CLB RICO NO PROCESSO DE DIVÓRCIO DE
BRIGHAM YOUNG. A história que se seguia, assinada por «um ctfl respondente ocasional»,
talvez um eufemismo do nome <fl telegrafista Harrington, rezava assim, em parte: m

«O reverendo parece ter sido o primeiro a tomar un| iniciativa no sentido de defender os interesses
desta senhfl rã. Foi ele quem falou aos advogados e combinou as entcl vistas preliminares. Na
realidade, devia ter aparecido nm documentos na qualidade de ”amigo número um”, mi rosna-se
que, na altura em que vivia no Oregon, o seu n<B me apareceu ligado a um certo caso que ocupou
as atençõí do público e que daí lhe ficara uma certa aversão pela pw blicidade. Portanto, declinou
modestamente a honra de* seu nome figurar como amigo número um da irmã Ana Eliza [sic] e em
virtude disto foi substituído pelo do valentl soldado general George R. Maxwell.» l

Dois parágrafos adiante, o Chronicle ameaçava que, «si o reverendo continuasse a interferir, não se
admirasse qul alguém viesse a desenterrar certa página da história do Oret gon». As insinuações do
Chronicle acerca de um «caso hu-

252

mano» no Oregon, consideradas por alguns leitores como significando uma questão de adultério e
por outros como uma burla financeira, nunca tiveram seguimento. No entanto, o reverendo Stratton
achou-se na obrigação de explicar a sua interferência no caso da vigésima sétima esposa.

Segundo parece, a pedido do reverendo Stratton um repórter do Tribune de Salt Lake City, de
opinião favorável a Ann Eliza, fez uma entrevista que foi publicada a 21 de Agosto de 1873. O
repórter encontrou o reverendo no seu gabinete. Depois de amavelmente «convidado a sentar-se», o
jornalista perguntava em que medida o entrevistado se julgaria envolvido no escândalo de Ann
Eliza. O reverendo não teve dificuldade em responder. Fora ele quem instigara a Sr.a Young a
separar-se do marido? Não senhor. Mas já conhecia a Sr.a Young? Sim, antes da separação ela
fora muitas vezes a sua casa. E então ele não a encorajara a deixar o marido? «O que lhe aconselhei
foi a deixar-se ficar onde estava, até o Congresso legislar a seu favor ou até a Providência
interferir.» Bem, nesse caso quem a incitara a pedir o divórcio? Os seus advogados. Seria ela
movida também por um certo desejo de publicidade? «De modo algum. Ela é uma pessoa de
instintos muito femininos e acho que a presente situação lhe é bastante desagradável.» Ele alguma
vez lhe aconselhara a abandonar a Igreja Mórmon? «Nunca. Ela confessou que nunca fora mormon
no seu íntimo, de há muitos anos para cá, embora tivesse nascido e fosse criada nessa igreja. Mas
desde que se aproximara dos não-mórmones, a sua fé arrefecera muito.» O reverendo
desempenhara qualquer papel na proposta de Clawson? Sim, isso era verdade. A pedido do pai dela
e de combinação com o Sr. Clawson. Foi visitar este último na companhia do pai dela e
combinaram os termos da proposta. Mas quando Ann Eliza, a conselho dos seus advogados, a
rejeitou, o reverendo deixou de interferir.

De facto, o reverendo estava tão desejoso de proteger a sua minúscula ilha metodista no deserto
mórmon que chegou a publicar no jornal uma declaração paga na qual afirmava a sua neutralidade.
Dois dias depois de aparecer esta entrevista, o Public Ledger, de Filadélfia, acrescentava uma npta:
«O reverendo C. C. Stratton publicou uma declaraÇao a negar a sua influência sobre Ann Eliza no
sentido de ntentar um processo de divórcio e acusando os advogados e exercerem pressão sobre a
sua cliente.»

253
j

tumes e os hábitos asiáticos para o solo americano. Faj aqui com várias mulheres e a todas ouvi
acusar a poligan como o maior ultraje à liberdade da mulher americana. lj nunca vi uns olhos, pouco
antes apagados e cheios de tá teza e dor, brilhar com tanta indignação como aqueles J
acompanhavam as respostas provocadas por algumas q perguntas que fiz à Sr.a Young. Não
encontrei nela quj quer sinal de irritação, mas a sua linguagem traduzia o i dos passados desgostos.»

Quanto a Brigham Young e à Casa do Leão d

«masmorra pintada, estucada e alcatifada», segundo a

pressão de Ann Eliza , já nada significavam para (

«Deixara de estar enfeudada ao Profeta», revela o repói

do Chronicle. «Em vez disso, preferiria morrer; e dura

os últimos quatro anos por diversas ocasiões desejar)

morte para acabar com a sua desgraça. Odeia profum

mente o Profeta e afirma que ele é o homem mais vingata

e cruel que jamais conheceu... Para os estranhos, mostrai

um indivíduo simples, cortês e falador, mas, a sós, qualqiã

bagatela o irrita, é duro e intransigente para os que dele m

pendem e utiliza palavras extremamente agressivas.» j

Pelos vistos, nada disto era suficiente para satisfazes

curiosa voracidade dos habitantes de São Francisco. TM

dias depois, outro jornalista do Chronicle procurou aproa

mar-se do sofá onde Ann Eliza continuava reclinada. EÍ

teve a falta de galanteria de lhe dar «uns trinta e cirjl

anos». Na mesma altura, um repórter do Sun, de Nova I0|

que, calculava que ela contaria cerca de «vinte e cinco», Í

passo que outro, do Herald, também de Nova Iorque, affl

mitia que «essa senhora devia ter aproximadamente vintia

oito». De facto, era esta a sua idade, faltando-lhe no enta»


to apenas um mês para completar os vinte e nove anal

O seu primeiro marido era mórmon? inquiritíl segundo repórter do Chronicle. J

Ann Eliza passou a mão pela testa como se a recordaçlj do esposo humilde que precedera o Profeta
lhe causaSil desgosto: l

Era, sim respondeu. a

Tinha mais do que uma esposa? J

Não, era eu a única. Estragou-me a vida e deixou-raf pronta a fazer qualquer sacrifício. a

Como foi que veio a casar-se com Brigham Young* Fê-lo de sua livre vontade ou alguém a obrigou
a isso*

256

Bem, é uma história muito comprida, mas se quiser

ouvi-la eu conto-lha. Eu era livre para fazer o que quisesse, mas ao mesmo tempo não o era. Bem
vê, todos esses homens que governam a Igreja Mórmon têm sobre nós um poder quase ilimitado.
Podem fazer o que muito bem lhes apetece. O senhor não imagina até que ponto. Quando um cfeles
quer casar com uma mulher, esta tem de ceder. Não nos atrevemos a resistir. A história do meu
casamento com o Profeta ilustra bem a maneira como esses homens alcançam influência e o uso que
fazem dela. O meu primeiro marido tornou-me infeliz e arruinou-me a vida. Senti que a minha
única razão de viver eram os meus amigos e por eles estava pronta a qualquer sacrifício.

Um desses amigos, prossegue ela, era o irmão. Este vira-se envolvido num negócio com Brigham
Young mas, como o negócio falhasse, Brigham ameaçara-o de expulsão da igreja. A fim de salvar o
irmão, Ann Eliza aceitara a corte insistente de Brigham e tornara-se sua esposa polígama.

Quantas mulheres tinha Brigham Young na altura em que lhe propôs casamento? inquiriu o
repórter de São Francisco.

Quinze, creio eu. Deixe-me ver. Sei os nomes delas todas. you contá-las. Durante uns momentos
absorveu-se num rápido cálculo em voz alta. Sim declarou finalmente , nessa altura eram quinze.
Mary van Cott era a décima quinta e eu fui a décima sexta.

Qual era a favorita?

Amélia é a favorita e ainda faz tudo quanto ele quer. Estão casados há doze anos.

O jornalista mostrou curiosidade em saber mais coisas acerca do poder de Amélia:

Qual é a característica particular dela que a torna favorita?

Não sei respondeu Ann Eliza. Talvez a sua grande força de vontade. É uma autêntica megera e
leva tudo adiante de si. Obtém quanto quer, mas por vezes enfurece-se e parte tudo o que lhe
aparece pela frente. Nessa altura o presidente compra-lhe novas coisas. O Sr. Young a”rrna que eu
pOC[eria ter ido às lojas comprar o que me Apetecesse. Isso é falso. Amélia é a única das esposas
com
1C£nça de fazer compras a crédito.

Se Amélia foi a favorita nestes últimos doze anos,


4ue motivo levou o Profeta a casar-se consigo?

257
Bem, talvez a vaidade. Eles gostam de mostrar qo^B embora velhos, podem casar com raparigas. É
uma icu^B falsa essa de que a última esposa seja sempre a favori^B

De súbito, como se tomasse consciência de que faU^B de mais, Ann Eliza olhou com nervosismo
para a poruj^H para a janela. Quando se voltou de novo para o repórter J^B Chronicle, a sua voz era
mais baixa e agitada. ^B

Pensa que eles me deixarão sair daqui? inquií^H O repórter mostrou-se surpreendido: f^l

Não me diga que tem receios dessa natureza. A 1^1 plomacia natural do Sr. Young não lhe
permitiria tomar ^1

Ah, o senhor não os conhece! replicou muito o^l pressa Ann Eliza. Escolhi este quarto no último
anda^B rim de me proteger o mais possível. Não me atrevo a dei-^H o meu garoto sair do quarto e
tomo todas as refeições aq^H E acrescentou irritada: Bem, se resolverem suprins^B -me, o meu pai
trata-lhes da saúde. ^H

Só na véspera Ann Eliza exprimira os seus receios a <lH correspondente do Sun, de Nova Iorque.
Quando ela fã£|H num possível rapto, o espantado visitante inquirira se |H realmente temia isso. 19

Então Ann Eliza exclamou: ’|l

O senhor não sabe o poder deles. Vim para e^H quarto cá em cima para estar em segurança, mas
não sei eJH que altura eles virão arredar-me do seu caminho... Só ai dois ou três dias saí à rua, para
ir a casa do reverendo StrajM ton. Quando para aqui vim fui comer à mesa umas duas |H três vezes,
mas avisaram-me de que isso não era prudenteJB desde então mando servir as refeições no meu
quarto. H

Nunca saberemos se Ann Eliza, ao manifestar tal terr*|B era realmente sincera ou se estaria a
dramatizar, procurâ^B do proteger-se ao tornar a sua difícil posição conhecida ofl país inteiro. A
verdade é que durante o tempo que permfH neceu na Walker House se referia ao seu apartamento
corrM uma fortaleza e falava constantemente da possibilidade <M ser raptada ou assassinada. M

Quando ela serenou, o repórter de São Francisco ret(^«| mou o interrogatório: . ’l

Brigham Young alguma vez empregou para conSigQl uma linguagem obscena? ]

Não posso dizer que o tenha feito confessott|

258 :

e|a ; mas usava muitas vezes palavras insultuosas e grosseiras. Oh, é um homem ordinário. Ouvi-o
praguejar no púlpito quando se dirigia aos não-mórmones.

Dizem para aí que ele a quer acusar de adultério para

se defender.

Ann Eliza pareceu ficar chocada durante uns momentos:

E possível, é possível.
Acha que eles serão capazes de inventar algumas

provas nesse sentido?

Arranjam sem dificuldade uns duzentos mórmones dispostos a afirmar tudo o que o presidente
quiser replicou Ann Eliza indignada. E já agora creio que também não faltariam «gentios» prontos
a fazer a mesma coisa. Eles declaram que foi um homem que me trouxe para este hotel e é ele quem
paga todas as despesas. Isso é falso. Sou eu a única pessoa responsável pelas minhas acções.

Os representantes da imprensa do Leste mostravam-se igualmente curiosos acerca do passado, do


presente e do futuro de Ann Eliza. Foi o reverendo Stratton e a mulher que trouxeram o repórter do
Sun de Nova Iorque. Este seguiu mais ou menos as pegadas do seu colega de São Francisco, mas
por umas duas vezes sentiu-se tentado a interrogar a entrevistada de maneira mais indiscreta.

Quando ela explicou como se vira obrigada a casar com Brigham Young, o jornalista não se deu
inteiramente por satisfeito com as respostas.

Suponho alvitrou ele que a senhora achou mais conveniente casar com o mais alto dignitário da
igreja do que com qualquer outro homem de condição inferior.

Ann Eliza sacudiu vigorosamente a cabeça:

Não, nunca tal coisa me passou pela cabeça. Achei


4ue> de qualquer forma, já tinha a vida estragada e que o melhor seria sacrificar-me até ao fim
desde que isso pudesse salvar o meu irmão, portanto... casei-me com ele. E seis rneses antes,
precisamente, desposara ele Mary van Cott.

Quem é Mary van Cott?

’ E uma mulher mais ou menos da minha idade. E ele tratou-a tão mal como me tratou a mim. A
favorita é Amélia.

Mais uma vez Ann Eliza disse mal da colega. O visitan^ quis saber se Amélia tinha dado algurn
filho ao Profeta. tia respondeu que não. E Mary van Cott?

259
Essa teve um aqui há dois anos. É o mais novo da fí mília. j

Isto impressionou o jornalista, e quando mais tarde dl viou o artigo para o Sun, em Nova Iorque,
acrescentou-ffl uma nota: «Talvez interesse os leitores saber que Bríghal Young tem setenta e dois
anos.» A seguir ao correspond» te do Sun, e a convite do juiz Hagan, apareceu um jornal» ta por
conta do Herald, de Nova Iorque, periódico mal recente e com grande peso na opinião pública. Este
achsríi que Ann Eliza possuía «uma cara sobremaneira simpática e, ao vê-la doente, mostrara-se
bastante solícito: «Vi quei Sr.a Young estava indisposta e supliquei-lhe que não se pá vasse da
almofada que utilizava no sofá.» Percebendo qul impressionara bem o visitante, ela mostrou-se
muito acesa vel. A conversa que se seguiu decorreu de maneira fácãj

Viveu muito tempo no Utah? inquiriu o repor» do Herald. i

Vim para aqui aos quatro anos. l

Disseram-me que os seus pais ainda vivem. *j|

Sim, o meu pai e a minha mãe habitam cerca de doj milhas ao sul desta cidade e tenho dois irmãos
mais velha cá no território. J

O seu pai e os seus irmãos são polígamos? l

O meu pai tem três mulheres e teve mais duas que n morreram; o meu irmão mais velho possui duas
esposâl| mas o mais novo só tem uma. !S

Portanto a senhora foi criada na poligamia. j

Sim, não vi outra coisa em toda a minha vida. l O jornalista perguntou se ela preferia a poligamia
°un

monogamia. Ann Eliza afirmou convictamente que sempfB fora contra o casamento poligâmico. ’

Porquê, minha senhora?

Afigurava-se-me antinatural e sempre o detestei, í

As mulheres nas famílias poligâmicas sentem-se infelizes ? ,’

Na sua maioria, sim. De resto, acho que o são toda$ mas algumas procuram disfarçar. , l

Tá ouviu alguma afirmar que se sentia feliz nessa si-f . J & ^ i

tuaçao ? í

Oh, já ouvi algumas afirmar isso, mas não acredito. | Não tardou que Ann Eliza contasse todos os
pormeno-r j

rés da sua aventura dentro da poligamia e a maneira como ’> conseguira escapar.

260
O jornalista do Herald assentava tudo no seu caderno e no fim observou:

Brigham Young ri-se da sua tentativa e afirma que nunca lhe pagará qualquer pensão alimentar.

Ann Eliza não se perturbou:

Eu disse aos meus advogados que, quer vencesse quer não, o que estou fazendo tem por fim
evitar que outras mulheres caiam na mesma esparrela.

Como é que as outras mulheres se entendem com o Profeta?

Ele mantém-as sob o seu poder e não as deixa dizer seja o que for. Lamentam-se junto das amigas e
têm sofrido muito com as atitudes dele.

De que se queixam elas, acima de tudo?

Irrita-as a preferência que ele revela por Amelia e as quantias fabulosas que despende para lhe dar
tudo quanto ela quer, ao passo que as outras levam uma vida dura e são obrigadas a ganhar em
grande parte o seu sustento.

Como é que Amélia consegue obter tão grande ascendente sobre o marido? Não é pela sua beleza,
pois ela não é bonita.

Isso é o que espanta toda a gente confessou Ann Eliza. As outras acham que Brigham tem medo
porque ela é uma autêntica fúria. Parece-me que já o ameaçou centenas de vezes de que se separaria
dele.

E por que motivo suporta ele tudo isso enquanto humilha e despreza as outras?

Pensa sem dúvida que constituiria um grande escândalo ela deixá-lo. Além disso, Amélia sabe
muitas coisas que ele não gostaria de ver sair a lume.

Alguma das outras esposas já o ameaçou de separação?

Ann Eliza estava convencida de que, se ganhasse o processo e lhe fosse concedida uma pensão, isto
animaria Mary van Cott a deixar o marido. O jornalista quis saber qual a razão que levaria esta
esposa a seguir o exemplo dela.

7- Quando esta senhora teve uma filha do Profeta expncou Ann Eliza Amelia ficou tão furiosa, uma
vez
1ue era estéril, que proibiu o marido de voltar a ter relaÇ°es com esta jovem esposa.

Incrédulo, o repórter quis saber se seria a religião que evara o Profeta a casar-se com tantas
mulheres de mau gé-

261
nio. Ann Eliza achava que outrora fora esse o motivo, mil não agora. Presentemente, tratava-se mais
de uma questiB de vaidade masculina do que de religião. II

Não creio que ele acredite na sua própria religião Jl concluiu ela despeitada. .

A 8 de Agosto de 1873, o Herald de Nova Iorque n|B blicava o resultado desta entrevista em quatro
coluna»|M meia, sob vários títulos sugestivos. O maior dizia assiaB BRIGHAM PERDE OS SEUS
ATRACTIVOS. Mais abfl xo lia-se: A HISTÓRIA DA SENHORA ELIZA WEÍB CONTADA
POR ELA PRÓPRIA. E depois: O PROF» TA DO UTAH COMO AMANTE. M

As desinibidas revelações de Ann Eliza causaram sensfB cão em todo o país. O brado de simpatia
que se ergueu ejfl seu favor foi tão grande, a revolta contra o marido tão unfl nime, que este decidiu
não ficar mais tempo calado. Até enl tão não quisera dar à mulher a importância de lhe respoaB der
oficialmente ele próprio ou alguém da sua família. MJB agora o assunto assumia certa gravidade. A
vigésima sétinll esposa devia ser desmascarada em público tal como era, Jl ponto de vista dele: uma
chantagista, uma mentirosa, utnl sem-vergonha, uma cortesã! Nova Iorque e São Francis Jl tinham
de receber uma resposta imediata. A

Precisamente nesta altura o filho legal mais novo e mal civilizado de Brigham Young, John W.
Young, de vinte;H nove anos, ia a caminho de Nova Iorque. John W. era fiUijB legítimo na medida
em que o governo dos Estados Unidfil considerava a sua mãe, Mary Ann Angell Young, a primeif|
das esposas vivas de Brigham, sua única esposa legítimll Muito embora a maior parte das energias
de John W. f°^ sem empregadas em representar o pai nos negócios com <3 Leste, ele viria a ser dali
a três anos proposto como primera| ro conselheiro à Presidência. A sua ambição era suceder afll pai
na qualidade de Profeta, e quando este sonho se foi pOM água abaixo, ele retirou-se de qualquer
actividade dentro <*H igreja. Sempre fora grande adepto da poligamia. Possuía nesta altura quatro
esposas, uma das quais era filha de uffl| primeiro casamento de Mary van Cott, vigésima sexta es»
posa do pai e sua madrasta. Concentrava grande parte 0*1 sua afeição na terceira esposa, Lizzie,
que raptara estando! ela casada com outro marido havia apenas uma semana, na1] cidade de
Filadélfia. ;

262

Quando John W. Young chegou ao seu apartamento no uarto andar do Hotel St. Nicholas, em Nova
Iorque, já ali encontrou um recado do pai ordenando-lhe que refutasse as infarnantes declarações
que Ann Eliza fizera ao Herald, publicadas a 8 de Agosto. Uma vez que toda a imprensa exigia
algumas palavras do filho do Profeta, este não teve dificuldade em encontrar uma plataforma. John
W. Young resolveu atacar Ann Eliza nas mesmas colunas em que ela difamara o pai dele e seu
marido. Esta entrevista foi publicada em artigo de fundo, dividida em duas partes, no Herald de 13 e
14 de Agosto.

O repórter do Herald encontrou John W. Young, um «cavalheiro bem-parecido e atraente, de cerca


de trinta anos», sentado numa poltrona. Envergava um casaco de veludo preto, forrado de seda azul
e parecia muito à vontade. Acolheu cordialmente o repórter do Herald e exprimiu o seu desejo de
responder a todas as perguntas que lhe fossem feitas com o intuito de defender a fé mórmon, o
estilo de vida dos seus correligionários e o estado actual da presente questão. Combateu
energicamente qualquer tentativa por parte da imprensa de tornar a sua conversa numa entrevista
sensacional e mostrou-se grato ao saber que o Herald tencionava publicar as suas palavras na
íntegra. «O Sr. Young é um homem de altura média, um pouco entroncado, de faces coradas, olhos
garços e brilhantes e cabelos castanho-escuros. Esconde-lhe a boca um farto bigode.»
Depois de uma breve conversa preliminar acerca de «negócios e comércio» entre o Utah e o resto
do país, que a nenhum deles interessava, começaram finalmente a discutir o assunto que ambos
tinham em mente.

Acha que é infeliz a situação das mulheres na poligamia? perguntou o jornalista ao filho do Profeta,
que estava bem fornecido de esposas.

Pelo contrário, sempre observei que elas se mostram extremamente satisfeitas com isso replicou
John W. Young suavemente. Mais tarde Ann Eliza revelaria que a primeira mulher dele, Lucy,
sofrera tanto com a vinda de Lizzie, a terceira, que ele se vira obrigado a fechá-la à chave «num
quarto escuro» até ela se mostrar mais dócil. Passados tempos, essa mesma Lucy havia de desertar
da casa suPerlotada do marido, divorciando-se dele. Talvez fosse a iembrança de Lucy que levara
John W. Young a acrescentar

263
depois para o repórter. Claro, todas as mulheres J| mais ou menos ciumentas. Se não fossem
guiadas por <m puro espírito religioso, é certo que se sentiriam extretM mente infelizes. No nosso
caso, porém, a poligamia obedi cê a motivos que apelam para os mais altos sentimentos^ natureza
humana, os quais não deixam lugar para vis rnaJ festações de ciúme. Os nossos homens e as nossas
mulhej são castos e virtuosos como os membros de qualquer ouB seita ou religião. Não
pretendemos mais do que isso..,v« mulheres aceitam conscientemente esta doutrina da fé mfl mon
porque acreditam na justiça da poligamia e ouso all mar que entre cem famílias mórmones tiradas à
sorte p| der-se-ão encontrar menos sementes de discórdia do dfl em igual número de famílias
seleccionadas entre as popiiB coes do Leste. As perturbações familiares encontram-se, resto, em
toda a parte. fl

O repórter estava ansioso por abordar o assunto dal|B gésima sétima esposa: :fl

A Sr.a Ann Eliza Webb Young afirmou a um repiB sentante do Herald, em Salt Lake City, que o
seu irmão1 < vera relações de negócios com o Profeta e que essa circuH tância a levara a casar-se
com ele. É verdade? |B

Para começar, os dois irmãos dessa senhora são am bos cavalheiros perfeitamente íntegros declarou
Jcn W. Young com ar tolerante. Mesmo que isso estivesse B sua mão, não seriam capazes de a
coagir a casar-se. QuadH à afirmação de que um deles tinha relações de negócijB com o meu pai,
não hesito em declarar essa história totfM mente falsa. IB

Depois de discutirem durante algum tempo a capaciolH de dos irmãos de Ann Eliza relativamente a
negócios, J| conversa voltou a recair sobre esta última. O repórter iHJi quiriu: J«

O senhor já conhecia Ann Eliza Webb antes de eM se casar com o seu pai, não é verdade? jl

Sim, conhecemo-nos desde crianças. Ela tem ceroi de vinte e nove anos, quase a minha idade.
Nasceu «
1844. Andámos juntos na escola durante uns tempos. li

Ela foi educada na fé? .*|

Pois decerto. Estava a par dos costumes da poliganw*| e quando contraiu matrimónio fê-lo com os
olhos beiB,; abertos. s

264

O jornalista do Herald pretendia dar uma espreitadela ao harém e fez-se mais atrevido.

Que pensa o resto da família deste processo de divórcio?

John W. Young estava pronto a responder a isto:

Segundo estou informado, todos consideram que ela se colocou muito mal. O seu procedimento
pode ser considerado pelo menos como insensato. Desde que deixou a família tornou-se evidente
que todas as suas atitudes são o resultado de uma falta de princípios que já revelara nas suas acções
dentro de casa. Existe em Salt Lake City uma certa classe de homens infames que pretendem pôr-
nos os pés em cima e fazem tudo o que podem no sentido de se insinuarem dentro das nossas
famílias. O objectivo deles é desgraçar as mulheres e quebrar todos os laços de família. Homens
como estes existem também em Nova Iorque ou em qualquer outra parte. O entrevistado conhecia
sem dúvida a afronta que o jornalista Theodore Tilton fizera ao padre Henry Ward Beecher,
dormindo com a mulher deste durante ano e meio. Este escândalo fora publicado em todos os
jornais ao lado da notícia da fuga de Ann Eliza. Depois acrescentou: Não há dúvida de que há um
homem por detrás de todas as acções de Ann Eliza.

Será possível chegar-se a um acordo?

John W. Young ignorava a oferta de quinze mil dólares feita por Clawson no sentido de Ann Eliza
desistir do processo. Por isso respondeu:

Decerto que não haverá nenhum acordo oficial. O meu pai não tem a intenção de pagar a
advogados venais, especialmente a uns patifes que tiveram a pouca vergonha de pedir vinte mil
dólares pelos seus serviços num simples caso de divórcio. Ele está disposto a dar a Ann Eliza tudo
quanto for razoável, sob a forma de pensão alimentar, mas nao cede a chantagens.

p ~~ E verdade, segundo ela afirma, que as esposas do

rofeta são obrigadas a trabalhar?

_ ~- Não há a mínima parcela de verdade nas suas acusações replicou com calor John W. Young.
Em seguida, Passou a refutar a história das privações e falta de carinhos contada por Ann Eliza. Ela
vivera sempre no luxo, afirma-

a ele, «e essa história de pobreza é pura invenção». p Prosseguindo, John W. Young acrescentou
que Amélia orn não era a malvada que Ann Eliza descrevera.

265
Brigham proferiu logo de início uma tirada contra v seus inimigos: ^

Temos sido atacados e vilipendiados para além l que é possível suportar por esses mentirosos
agentes da is prensa. Está em marcha uma conspiração destinada a art batar-nos as terras e o
dinheiro. Não nos deixam viver à paz. Fizeram-nos vaguear de lugar em lugar e esses ladrõj esses
salteadores, perseguiram-nos até este lindo vale. Qa rem tirar-nos tudo quanto possuímos. Mas seria
melM ficarem por aqui! Hão-de acabar por se convencer de qj saberemos defender o que é nosso.
Não conseguirão extll quir-nos nem um centime. Fomos nós quem conquistar» esta terra ao deserto.
Foi-nos dada por Deus e consagrara!

r i íS

-Ia à nossa santa igreja; por isso fazemos tenção de a ca

servar. l

O repórter entendeu que isto era uma deixa e inquim

Pensa que o processo de divórcio de Ann Eliza M parte da conspiração contra o senhor? *U

Brigham sorriu «desdenhosamente», observa o «j pórter e abanou a cabeça: j

Sim, é uma pequena parte de um grande todo. N| tem outro resultado senão mostrar a que ponto são
capaJj de se rebaixar para conseguirem os seus fins. ComeçaM perceber que nada conseguirão de
uma só vez e então qtfl rem ir por partes. Isto é um simples caso de chantagem, jB rã a qual
obtiveram a cumplicidade da minha esposa. Airfl não há muito tempo fizeram contra mim a falsa
acusa$| de eu viver com esta mesma mulher em coabitação pecaM nosa. Essa conspiração caiu por
terra e agora acham pi bem reconhecê-la como minha esposa. Vão ficar derroll dos, como têm
ficado sempre. Veremos! Veremos! ’jj

Uma vez que o Profeta admitira que o processo de CM vórcio de Ann Eliza fazia parte de uma
grande conspiracy o jornalista depreendeu que ele gostaria de ir «até ao finijl O presidente vira a
acusação? Vira, sim senhor. ’l

A Sr.a Young afirma que o senhor a tratou com brrtj talidade e se mostrou cruel para com ela. Jj

O rosto de Brigham Young tornou-se escarlate de raivjl

Isso é mentira. Tratei-a como se deve tratar uma nUlf lher. Claro, se ela quer pedir o divórcio, tem
de inventai uma acusação para o conseguir. O espírito de toda esta m«| quinação tem-se revelado
pela maneira como decorre. A 1<|

i
268

territorial diz que esse caso deve ser julgado por um tribunal federal. Porque não convocam o
Supremo Tribunal? Querem outro júri comprado como o do McKean para me C0ndenar. Já o
tentaram uma vez e falharam e hão-de falhar de novo.

A Sr.a Young afirma que o senhor a privava do necessário para viver.


Eu dei-lhe carta branca para comprar o que quisesse na cooperativa Instituto Mercantil de Zion
declarou Brigham Young. É o que costumo fazer com todas as minhas esposas.

Sessenta e sete anos mais tarde, Clarissa Young Spencer, a quinquagésima primeira filha,
confirmava as declarações do pai. Ela escreveu que havia, atrás da Colmeia, a seguir à Casa do
Leão, uma cantina para uso das esposas. «Cada uma delas tinha ali a sua conta aberta, bem como no
Instituto Mercantil de Zion, o principal armazém da cidade... Pelo que me era dado saber, a
nenhuma das esposas era atribuído um limite para as suas despesas, embora calcule que elas deviam
saber até onde podiam ir.»

A seguir, Brigham dignou-se fazer ao repórter e a todo o pessoal do escritório a narrativa breve
daquele político da Pensilvânia que havia cerca de dois anos lhe prometera evitar que ele fosse para
a cadeia sob a acusação de poligamia em troca de cem mil dólares em oiro. Quando o repórter quis
saber qual a resposta que Brigham dera ao político, o Profeta desatou a rir às gargalhadas:

Bem, perguntei-lhe se em notas não servia. Quando os risos se acalmaram, o jornalista voltou ao

assunto de Ann Eliza:

Sr. Young, suponhamos que o Tribunal dos Estados Unidos aceita a queixa de divórcio. O que irá o
senhor invocar em sua defesa?

O repórter e os escriturários aguardaram em silêncio. ” penumbra invadira a sala e Brigham


mantinha-se muito quieto, a fitar, para lá da janela, o muro de três metros de

tura que rodeava o harém. Por fim voltou-se para o representante da imprensa. A sua expressão era
solene, e fa’°u numa voz soturna: , Adultério disse ele. Temos provas e havemos

e as exibir para defesa de todos os homens honestos. Deesto tomar esta atitude, mas a honra e a
dignidade da igre>a tem de ser mantidas.

269
O divórcio, porém, viu-se enredado em obtusos ptB

menores de legalidade. O primeiro era de carácter jurjjB

co. Seria qualquer tribunal federal ou territorial comfB

tente para julgar o seu caso? O problema era importara!

pois se fosse um tribunal territorial a resolver o casoJB

mórmones poderiam influenciar a sentença, ao passo dl

num tribunal federal seriam os antimórmones ou «gáB

tios» a decidir. A luta começou logo sobre a organizajM

do processo de divórcio contra Brigham Young. O j3

James B. McKean decidira que quem apresentaria o pfl

cesso seria um advogado federal. O defensor legal fl

Brigham, Charles H. Hempstead, não-mórmon que fll

anteriormente editor antimórmon e promotor de distriB

dos Estados Unidos, contestou imediatamente. Quanjfl

Hempstead apresentou o caso ao Tribunal do Terceiro DB

trito, o juiz McKean encontrava-se doente e quem o sub»

tuia era o juiz P. H. Emerson que não se mostrava tfl

favorável, do ponto de vista legal, a Ann Eliza. O JÍB

Emerson revogou imediatamente a decisão de McKeatiB

concordou em que seria o promotor territorial e não o n|

deral a apresentar o processo. Foi esta a primeira derrotalB

Ann Eliza, mas não ainda a mais importante. V

A 10 de Agosto de 1873, estando ainda o juiz McKdJB

adoentado, foi presente ao juiz Emerson uma nova contai

tacão apresentada pelo advogado de Brigham. Falando ál

nome do Profeta, Hempstead alegava que o pedido de u”m


pensão alimentar temporária e o pedido de divórcio aprJM

sentados por Ann Eliza deviam ser resolvidos por um till

bunal local e não pelo Tribunal Distrital dos Estados UraB

dos. Até mesmo o Tribune admitia que a objecção <M

Hempstead era apresentada com «muita habilidade e clatfl

za». Então saiu à estocada em favor de Ann Eliza o jud|

Tilford, replicando com uma «graciosa retórica». Este <u|B

bate durou dois dias. Dez dias depois, o juiz Emerson díi|

a decisão. Explicava que Brigham Young tinha a lei Pejw

seu lado. Em 1852, a Legislação Territorial promulga

uma lei de divórcio concedendo a jurisdição ao tribunal dM

localidade onde residisse o queixoso. «Portanto», afírma*j

o Tribune, «após as investigações que Sua Excelência íe*|

acerca deste caso, acabou por concluir que este Tribunaw

(Federal) não tem jurisdição neste assunto.» Brigham ga”1

nhara também a segunda partida. Ann Eliza seria ouvida, j

272 ’l

não pel° seu armg° Juiz McKean, mas por um tribunal local que poderia ser pró-mórmon. Resolvido
este ponto, o julgamento foi finalmente adiado para Maio de 1874.

A situação paradoxal em que se encontrava Ann Eliza fazia-lhe enorme confusão. Encontrava-se
quase na miséria, e ao mesmo tempo, quase rica. A pensão que esperava não viria a recebê-la pelo
menos antes de oito meses. Não dispunha de quaisquer recursos, a não ser os provenientes da
caridade dos seus novos amigos; contudo, lá longe, aguardava-a uma mina de oiro. Continuava
prisioneira, com medo de sair do quarto, receando até jantar em público, aterrada com a ideia de que
poderia ser raptada ou assassinada enquanto dormia. Nem a sua bolsa nem tão-pouco o seu sistema
nervoso aguentariam mais oito meses entre as espadas dos inimigos. Teria de agir, fazer qualquer
coisa mas o quê?

Foi neste momento crítico que, de acordo com os desejos do major Pond, de novo se lhe apresentou
a oportunidade de encetar uma carreira de conferencista. Pond estava farto de Salt Lake City e
sentia-se impaciente; além disso precisava de dinheiro para sustentar a mulher e a filha. Em vez de
ter em conta as ofertas de Redpath e de Barnum, porque não havia ela de deixar que ele a
representasse? Estava disposto a abandonar o jornalismo dedicando-se exclusivamente a apresentá-
la como conferencista. Conquistariam assim ambos a fama e a fortuna num mundo mais livre.

Ann Eliza escutou atentamente a proposta. E porque não? O major Pond, além de amigo e aliado,
era pessoa digna de toda a confiança. Ajudá-la-ia a alcançar a liberdade e a independência até lhe
ser concedida a pensão alimentar. Isso parecia-lhe a solução de todos os seus problemas. Não
obstante, sentia-se atormentada pela incerteza. Ela tinha uma história para contar e todo o país
estava ansioso Ror ouvi-la, mas seria ela capaz de o fazer? Suportaria uma Publicidade ainda mais
intensa? Isso não seria uma atitude POUCO senhoril? «Exibir-me a mim própria e aos meus
sor’rnentos diante de todos afigura-se-me uma coisa muito POUCO delicada!», respondera ela a
Pond. Nesta altura os utros amigos antimórmones recordaram-lhe a maneira coo Brigham a tratara,
as calúnias que lançara sobre ela, e lzeram-lhe ver que aquele estrado diante do público pode-

273
ria ser uma liça onde poderia vingar-se e ferir de mortal

sistema odioso da poligamia. Foi este último argumeial

afirmava mais tarde Ann Eliza, que a fizera mudara!

ideias, resolvendo-a. «Quando me demonstraram que»

me poderia tornar numa força contra o mormonismo»,

creveu ela, «capaz de abrir os olhos das pessoas par$B

monstruosidade daquele sistema religioso tolerado pel

governo, não hesitei.»

Mais tarde, Ann Eliza declarou repetidas vezes que r|B

foi o engodo do dinheiro que a levou a exibir-se. Quandffl|

Woman’s Journal, periódico sufragista de Boston, a acuéfl

de angariar «capitais» pelo facto de ser esposa de Brighal

Young, Ann Eliza replicou: «Alguém pode imaginar queJB

seria capaz de abrir com intuitos lucrativos o meu coraçB

ante os rudes olhares de um público curioso, suportaf*«

chufas, as acusações e os ataques de que seria alvo por panl

dos jornais mal-intencionados dos mórmones ou da in|

prensa insensata dos ”gentios”, prestar-me ao ridículo, fj|

zer com que o meu nome andasse de boca em boca? NOTJ

ca! A minha dignidade de mulher revolta-se com tal ideal

Como modo de vida, nunca o teria adoptado. Quando io|

apresentaram como um dever, aceitei-o sem hesitação,»

Toda entregue a esta cruzada, Ann Eliza sentou-se à w

cretária no seu quarto fechado à chave e, molhando coÍM

tantemente a caneta no tinteiro, escreveu e reescreveu tdl


conferências, que, segundo nos conta o fiel Tribune, eraruSj

seguinte: «A primeira relatava em termos pessoais as CJB

cunstâncias do seu casamento com o Profeta e revelâw

também alguns saborosos incidentes ocorridos no real hfl

rém... Na segunda conferência atacava a poligamia e apf|l

sentava ao ouvinte o ponto de vista de uma mulher em faâ|

”daquele mandamento divino”... A terceira conferenciai!

refere-se de uma maneira muito hábil à situação política dU

mormonismo...»

Enquanto Ann Eliza escrevia, a caneta do major P°nfl

também não estava ociosa. A sua primeira intenção, depOM

de conferenciar com outros adeptos antimórmones, forS

começar por apresentar as palestras em Washingtoitra

«A nossa gente decidiu que se Ann Eliza contasse aquetíi

história em Washington», escreveu o major Pond, poderia*!

mós chamar as atenções e conseguir que a legislação fosse jj

alterada. Até à data não tínhamos alcançado grande êxito j

274 !

’unto do público e nenhuma conquista em matéria de leis.» Quando, porém, ele começou a escrever
para diversas cidades que ficavam no caminho para Washington descobriu que a sua cliente tinha
muita procura. Por isso firmou o seu primeiro grande contrato para Denver, além de outros para
Kansas City e Chicago, e ainda nas cidades intermédias onde teriam de parar.

Durante todo o mês de Setembro e Outubro, Ann Eliza e o major Pond trabalharam, cada um por
seu lado, nas respectivas tarefas. A 5 de Novembro, o Tribune não resistiu a deixar transparecer a
notícia das próximas conferências. «Estamos informados de que a Sr.a Ann Eliza vai começar uma
série de conferências em diversas cidades... O coração do Profeta volta-se para o seu perdido amor e
bem desejaria que ela regressasse ao redil em lugar de ir contar histórias da carochinha.» Talvez por
causa desta indiscrição ela pensava encontrar-se «sob vigilância» por parte dos danitas , a partida
do Utah foi adiada.

O major Pond, ainda secretamente duvidoso dos talentos de oradora da sua cliente, resolveu fazer
uma espécie de ensaio geral da conferência autobiográfica de Ann Eliza. Informou esta de que os
outros hóspedes da Walker House estavam ansiosos por a ouvir contar de viva voz as suas
memórias. Julgando tratar-se de um pedido espontâneo e não de uma combinação do major Pond,
Ann Eliza anuiu. Marcou-se uma reunião à noite e a notícia divulgou-se.

Na noite aprazada, Ann Eliza, empunhando o seu manuscrito, entrou na sala da Walker House,
brilhantemente ijurninada para a circunstância. Esperava ir encontrar meia dúzia de amigos
«gentios» desejosos de a ouvir. Em vez disso, deparou com a sala à cunha. Todos os olhos estavam
ntos nela. «Fiquei um momento paralisada de espanto», anrmou depois. «Subiu-me o sangue todo à
cara e o meu primeiro impulso foi fugir e esconder-me no meu quarto, orem, os aplausos com que
fui acolhida, os sorrisos, os rostos tranquilizadores que se voltavam para mim, a simpatla que ia
neles, tudo me deu coragem.»

Muito nervosa, dirigiu-se a uma estante diante da as-

embleia e leu alto a colorida história da sua vida com Brig-

m Young e as suas esposas. Ao relatar os sofrimentos por

4 e passara, ia erguendo os olhos das páginas escritas para ver

eito que isso produzia na assistência. Homens fortes e

275
senhoras todos choravam em silêncio. Isso lhe bastou. Â Eliza, prosseguiu até ao fim, com
crescente determinai

O êxito foi imediato e traduziu-se em todos os roa «Vi-me rodeada pelos meus recentes amigos,
muito ea siastas nas suas manifestações de simpatia», escrevei O Tribune, na manhã seguinte,
mostrava-se animador,! bora lhe dirigisse certas críticas. A sua conferência, «d| de interesse, foi
proferida com uma fluência muito ferffl na e acompanhada de gestos naturais». No entanto: J um
manuscrito é um erro grave; desejamos que aprendi suas conferências de cor e se dirija à assistência
fitana nos olhos, sem ocultar metade da sua pessoa atrás de i estante de leitura.» O major Pond não
opunha quaisa restrições; mostrava-se extasiado: «A história mais enffl gante e romanesca que
jamais se ouviu», aplaudia ele. «l discurso foi enviado pelo telégrafo para a Associated Hj e no dia
seguinte chegavam telegramas de diversos ertffl sários teatrais, publicistas e especuladores de todos
os n tos do país.» Contudo, Pond reservava Ann Eliza par» agora só restava vencer um obstáculo:
como levá-la sã fflj vá para fora do Utah? l

Ann Eliza comunicou-lhe os seus receios, mas Pa perante tão bela perspectiva, mal lhe deu ouvidos.
GB sempre, Ann Eliza considerava-se ameaçada por um pqj real e talvez não se enganasse.
«Descobri, depois de ta as combinações feitas, que a minha intenção (de partir zer conferências)
chegara aos ouvidos dos mórmones m tes ameaçavam-me com toda a espécie de vinganças sã
teimasse em levar por diante os meus projectos.» ’l

Havia apenas uma única linha de caminho-de-ferroii unia o Utah com o Oeste: era a da Union
Pacific que I ligada com cavilhas de oiro, quatro anos antes, à Ceji Pacific. Esta linha partia de um
ponto ao norte de Salt li City e a principal estação de embarque era a cidade de fl den. Para chegar a
Ogden e alcançar o comboio que a li ria à liberdade, Ann Eliza teria de viajar de Salt Lake <| até
Ogden no ramal que pertencia a Brigham Young, l nunca ela ousaria fazer. J

No quarto de Ann Eliza houve várias conferenciais cretas. Assim, ficou assente iludir os inimigos
de Ann El e os seus possíveis perseguidores comprando bilhetes p Ogden no comboio que partia
dali a 28 de Novembro, í

hamaria as atenções dos mórmones para Ogden, enquanto Ann Eliza, numa carruagem particular,
fugiria de noite para

cidade de Uintah, a noroeste do Utah, à entrada do Weber Canyon, um pequeno apeadeiro da Union
Pacific, para lá de Ogden.

Uma vez tomada esta decisão, Ann Eliza confiou-a em segredo ao pai. Este desejou-lhe uma boa
viagem, ao passo que a mãe, ao saber do projecto, chorou perante aquilo que só podia considerar
um passo para o Inferno. Tendo ainda que se ocupar dos últimos preparativos para as conferências,
o major Pond não podia acompanhar a sua representada, e por isso arranjou-lhe uma segura
companheira de viagem. Tratava-se da Sr.a Sarah A. Cooke, uma mulher enorme, inteligente e
idosa, que passara vinte anos a leccionar os inúmeros filhos de Brigham Young e representara no
Teatro de Salt Lake City, sem nunca ter recebido salário. Depois de o marido, que era polícia, ter
morrido no cumprimento dos seus deveres, a Sr.” Cooke perdera dois mil dólares de uma pensão
por causa de Brigham Young. Não tardou a abandonar a igreja, a acusar o Profeta e em breve se
tornou presidente da Sociedade Nacional das Mulheres contra a Poligamia. Quando lhe propuseram
a viagem aceitou-a com ambas as mãos. Ela e Ann Eliza haviam sido colegas no teatro e vizinhas
na Casa do Leão. Neste momento, ambas nutriam um único desejo: vingar-se das queixas que
tinham contra Brigham Young e ajudar a destruir a poligamia.
Continuaram a fazer os planos de fuga no mais absoluto sigilo. Ann Eliza deixou os filhos junto da
família em jouth Cottonwood. Iriam ter com ela mais tarde. Não foi feita nenhuma tentativa para
retirar a sua mala da Walker pouse. Um amigo dela, o coronel J. H. Wickizer, oficial

ederal no Utah, adquiriu-lhe uma mala nova e escondeu-a nos seus aposentos. Depois, pouco a
pouco, as coisas de

nn Eliza foram sendo levadas às escondidas e guardadas ja mala nova. Quando esta ficou cheia, o
coronel Wickizer

espachou-a para Laramie, no Wyoming, «como se se traiasse °a bagagem de outra pessoa».


Nenhuma destas caute-

^S, nnr^t-« *’L_ - __ _i-_ j _ . r. _^ -._ __ - J_ A

El

>.> porem, tinha o condão de afastar os receios de Ann

za. «Haviam-me ameaçado com a morte, com o encerraento num hospital de doidos e com muitas
coisas igualÊnte horríveis», afirmava ela.

276

277
Chegou por fim o momento da partida. Jl

«Na noite de 27 de Novembro, fui com o meu pai e (fl

ou dois amigos para casa do Sr. e da Sr.a Stratton», escrJB

Ann Eliza. «Saímos do hotel pela porta das traseiras, piB

que a porta principal estava sob vigilância, embora eles dl

contassem que eu abandonasse a cidade antes da manhãlB

guinte. Cerca das onze horas deixámos os Stratton ostetS

vãmente como quem regressa a casa. Esperava-nos à es«

na uma carruagem. Entrámos, fomos buscar a Sr.a CotjH

que iria ser a minha companheira de viagem, e saímos njl

damente da cidade... IB

«Durante a noite, a escuridão era completa: não se jl

um palmo adiante do nariz e enquanto avançávamos noll

curo sentíamo-nos muito apreensivos. Não tínhamos a dfl

teza de não termos sido descobertos nem de termos codjH

guido iludir a vigilância dos mórmones. Apesar de tudoáM

Danitas, esses terríveis ministros da vingança, podiam ntjfl

to bem seguir o nosso rasto. E eu não conseguia afastai!

ideia de que cada momento que passava podia estar a aP*B

ximar-nos de uma morte certa. *IB

«O calvário entre Salt Lake City t Uintah era de qitfl

renta milhas. A estrada lamacenta e cheia de sulcos, enaB

pomares sombrios, atravessava o largo vale de Grand SM

Lake, com os seus campos de feno, moitas de alcali e vasIH

campinas geladas sob o frio da noite. O gado e as aves n<lH

turnas ocultavam-se atrás de uma cortina negra... ’’*B


«Perdemo-nos duas vezes durante essa noite», recoljj

Ann Eliza: «Da última vez saímos da estrada e seguirdM

durante algumas milhas por um estreito canyon. Eu tinha

certeza de que fôramos traídos e que o nosso cocheiro ntB

levava para a morte. Sem lhe dar a perceber as minhas S)*M

peitas, disse-lhe que seguíamos caminho errado. Ele enwfl

voltou rapidamente para trás e alcançámos a entrada aj

canyon quando nascia a aurora. com a luz do dia dcíflB

vaneceu-se a confusão e o cocheiro acertou então corft’flj

«De súbito, aos primeiros alvores daquela madrugai*^ de Novembro, a cidade de Uintah surgiu aos
nossos olnps»! Quatro anos antes, com o advento da Union Pacific, Um*j| tah começara a progredir.
Visto ser um entroncamento fef* j roviário onde se fazia o transbordo da mercadoria para Sal ^
Lake City, e por ser também um centro de fabrico de mela- ,

278 ]

havia umas centenas de casas comerciais no coração da cidade: hotéis, saloons, armazéns de secos e
molhados, etc. Um ano depois, com a construção do ramal do Utah Central pertencente a Brigham
Young, Uintah perdeu a sua importância como término e ao mesmo tempo a sua prosperidade. Só
restava uma meia dúzia de lojas para servir os colonos mais teimosos, e entre elas e a estação do
caminho-de-ferro, nada mais.»

Porém, aos olhos de Ann Eliza, da Sr.a Cooke e de Chauncey Webb, inquietos e cansados, dentro
da carruagem coberta de lama, Uintah surgia como um paraíso feérico. Ao atravessarem a cidade, já
ouviam resfolegar, na estação, o expresso de luxo que vinha de Ogden e se dirigia para Laramie,
Denver e Omaha.

No momento em que os novos travões hidráulicos da locomotiva Westinghouse faziam parar o


enorme cavalo de ferro, a carruagem de Ann Eliza penetrava na plataforma de madeira. A paragem
era apenas de um minuto, pelos vistos. O condutor, de chapéu alto e fraque, fazia já sinal ao
maquinista.

Depois de atirar um beijo apressado ao pai, Ann Eliza saltou da carruagem. Levando pela mão a
Sr.a Cooke e segurando a maleta com a outra, correu para o comboio. Um negro de casaco branco
ajudou-a a subir primeiro e depois foi a vez de a Sr.a Cooke ser içada para a carruagem Pullman. O
comboio pôs-se então em movimento.

Ann Eliza e a companheira dispunham de um compartimento numa luxuosa carruagem-cama. Tudo


ali era uma maravilha: os assentos forrados de veludo, os espessos tapetes com desenhos floridos,
os beliches, o toilette, o fogão de aquecimento, o empregado do bufete que passava com °s pratos.
Mas o melhor de tudo isto, para Ann Eliza, naquela manhã de Novembro, era o espectáculo da
cidade de Uintah a diluir-se na distância.

A sua frente aguardava-a o Wyoming e a liberdade.

£ntia-se muito excitada. Mas enquanto a locomotiva ad-

!í,la ot-idade, resfolegando e a oscilar, a vinte e quatro

ilnas à hora, esta sensação de euforia ia desaparecendo

Para dar lugar à «solidão mais completa».

Voltou-se para a Sr.a Cooke e, quando falou, a sua voz era traça e desolada:

Que vai ser de mim? murmurou ela.

279
A Sr.a Cooke tocou-lhe na mão e disse:

Mantenha a coragem e pense no que tem que faj

Ann Eliza Young, vigésima sétima esposa de Brigi

Young, reclinou-se no sofá de veludo, fechou os olha

tentou pensar nessa tarefa que a esperava imediatamí

lhe veio à ideia aquela única pessoa que seria capaz de J

pedir. Nessa altura a nostalgia foi agravada por outra en

cão ainda maior o medo. l

VII

A ADÚLTERA

O negócio de arruinar a reputação de uma mulher é entre todos o mais desprezível e o mais
mesquinho.

MIRROR, DE DENVER, 1874

Talvez, ao fim e ao cabo, todas as mulheres acabem por ser vítimas do seu passado. No entanto,
algumas há, como é o caso de Ann Eliza, capazes de se servirem dele como uma arma.

Quando conseguiu fugir do território do Utah, em


1873, levava consigo, além da bagagem, um material de grande utilidade e tão tangível como
aquela: vinte e nove anos de vida vivida. Qualquer outra mulher teria preferido libertar-se de um
passado tão estranho e doloroso como o seu, apagar dele todas as recordações e entregar-se a uma
nova fé e a um novo matrimónio. Isto não o quis ela fazer. Durante quase meio século, movida pelo
demónio do interesse e do dever, exibiu em público, vezes sem conta, todos os pormenores da sua
antiga existência. Para ela, o passado estava sempre tão vivo como o presente, e seria sempre
sinónimo do futuro.

Uma vez que esse precioso passado representava o seu ganha-pão e não apenas uma companhia
constante , era para ela um caso de vida ou de morte mante-lo sempre vivo e negociável. Em breve
descobriu que havia milhões ue pessoas nas quais a curiosidade se misturava com o cepticismo.
Sempre que mudava de terra deparava-se-lhe a dúvida a par da simpatia. Depois de o
sensacionalismo inicial a compaixão se terem esgotado, ficava apenas na mente das Pessoas a
questão inicial. Esta era aproveitada para encabeçar ° Aa Publicidade feita pelos empresários de
Ann Eliza. (<o Primeira pergunta que todos faziam era a seguinte:
* e a Sr.a Young é uma mulher tão culta e ilustrada, capaz e razer conferências que se podem
colocar ao lado das me-

281
mores, por que motivo se tornou ela mórmon e casou o Brigham Young?»

Resposta: «Ela nasceu e foi educada na Igreja Mórnj

e por isso não tivera possibilidade de escolher. Nunca l

nhecera outra religião até se casar com o Profeta.» i

Desta forma, aquela ideia odiosa de mulher polígjJ

esposa do harém, concubina, ficava explicada e absolvi

Numa palavra, o passado tenebroso daquela mulher à

era culpa dela, fora apenas uma vítima «não fora i

quem o escolhera». ]

Mas seria assim ou não? Até hoje, milhões e milhões!

pessoas têm feito a mesma pergunta. Nesse dia, no cai

bóio que partia do Utah, e durante toda a sua vida, M

Eliza continuou a perguntar a mesma coisa a si própru

A alta e desajeitada locomotiva alimentada a lenha ÍM

levando Ann Eliza e a Sr.a Cooke para nordeste, a uma l

locidade que variava entre as dezasseis e as vinte e duas o

lhas por hora. Para Ann Eliza, aquele andamento afigura»

-se vertiginoso, comparado com a travessia do continejl

que fizera em criança, numa carroça que percorria apoi

duas milhas por hora. A duração do tempo sofrera aufli

cão e agora, em cada nove milhas que avançava para lestll

seu relógio atrasava-se um minuto. l*I

A monotonia da viagem através das montanhas erajl

terrompida com frequência pelo facto de um dos índios!!

reserva ter danificado os carris ou algum passageiro rnasfl

lino se haver lembrado de disparar contra os búfalos ou vi


tra qualquer espécie de caça grossa, da plataforma da ftl

guarda. Havia paragens súbitas junto de estacoes’J

madeira tosca. Ann Eliza e a Sr.” Cooke desciam para 9

tender as pernas, juntamente com os outros passageirosl

eram logo rodeados por índios velhos a pedir esmola fl

mães índias mais atrevidas que pretendiam mostrar os Stjj

papooses1 a troco de um quarto de dólar. Jj

As novidades desse primeiro dia de viagem em bref

absorveram completamente Ann Eliza. Aquele luxuoso M

tel ambulante tinha um bufete em cada carruagem, mai|J

almoço era servido no vagão-restaurante, onde os magoíl^

cos espelhos reflectiam os painéis de madeira e os pés S

1 Bebés índios. (N. da T.)


282

nterravam nos fofos tapetes persas. As ementas eram extensas e variadas, incluindo muitos pratos
caros. Contudo, Ann Eliza não devia nunca ir além do almoço mais barato, que custava apenas um
dólar.

À tarde, surgiu um pequeno incidente que a emocionou profundamente. Do outro lado da coxia,
viajava uma rapariga nova com um filho no regaço e, sentada a seu lado, uma linda rapariguinha
dos seus oito anos. Numa das paragens, entrou um sujeito. Ao vê-lo, a rapariguinha pôs-se em pé de
um salto e exclamou:

Oh, lá vem o meu querido papá!

O homem beijou e abraçou a mulher e a filha e começou a fazer festas ao rapazinho. Ao ver aquela
cena comovente, declara depois Ann Eliza, «correram-me as lágrimas e tive de esconder a cara, pois
tinha as faces molhadas e a minha boca tremia. Lembrei-me do amor que os meus filhos não haviam
conhecido e de todas as crianças de todas as crianças do Utah que ignoram esse amor por culpa de
um sistema criminoso...»

Ao anoitecer, e sob as lâmpadas de querosene, os criados negros de casaco branco começaram a


estender lençóis engomados nos beliches, enquanto alguém tocava em surdina num pequeno órgão.
Uma vez que os passageiros de ambos os sexos dormiam na mesma carruagem, as senhoras tinham
de permanecer vestidas. Nessa primeira noite, Ann Eliza dormira reclinada no seu sofá, com uma
blusa de musselina, uma saia de lã e com os ganchos no cabelo.
Ela não descreve os pensamentos que lhe passaram pela cabeça nessas horas longas e inquietas.
Talvez se tivesse lembrado dos filhos. Estariam bem, junto da avó, em South Cottonwood? Sentir-
se-ia preocupada com o tremendo desgosto que dera à mãe? Seria esta sincera quando afirmara’
«Preferiria que tivesses morrido, a fazer o que fizeste»? ^ pai e os irmãos não iriam sofrer as
represálias do Profeta como castigo da atitude por ela tomada? E as suas coisas l.ue haviam sido
despachadas na mala para Laramie, poderia .reavê-las algum dia? E o seu precioso anjo da guarda,
o

)?r Pond, conseguiria chegar brevemente também a La-

^nne? E a sua conferência em Denver, depois a outra em

ashington, que tanto receava, e as demais que teria de fa-

L r Pelo caminho, seria alguma vez capaz de as levar a ca-

Us outros considerá-la-iam como uma concubina imo-

283
ral ou como uma vítima perseguida da poligamia e m

valente paladina da monogamia? E quanto a Brigham, c<

seguiria ela finalmente pôr-se fora do seu alcance? j]

Laramie era uma cidade fronteiriça, pequena e desori

nizada, protegida por três lados com uma barricada de pj

tes de madeira. Nas suas estreitas, sujas e lamacentas í

viam-se quase tantos animais, bois, carneiros e porcos, l

mo negociantes e boieiros. Durante dois dias, Ann Eliza

Sr.a Cooke mantiveram-se fechadas no quarto do hotel h

aquecido. A única satisfação que tiveram foi saber qui

mala havia chegado sem novidade. J

O major Pond acabou por chegar também. Trazia cq

sigo um exemplar do Tribune publicado no dia seguiria

fuga de Ann Eliza, com notícias que a interessaram, sol

título: ENVIADA NO CUMPRIMENTO DE UM

MISSÃO: «A Sr.a Ann Eliza Young deixou ontem a noi

cidade para encetar uma série de conferências no Lesa

Partiu sem aviso, receando os seus amigos que fossem |

madas providências para a impedir de realizar o seu iam

to. Leva consigo alguns segredos particulares a revelar aci

ca do Profeta e da sua instituição favorita, a poligamia,!

quais vão ser severamente tratados por ela. As revelaçfl

que irá fazer terão grande utilidade para a causa do pá

gresso, pois que a anterior situação dela na sociedade ma

mon dará enorme peso às suas afirmações... DesejaM

grandes êxitos a essa senhora no seu novo campo de aça


e não hesitamos em exprimir a nossa crença de que men|

todo o carinho que se lhe possa dispensar.» i

Agora, que o êxito da sua fuga era do domínio públ«i

Ann Eliza percebeu que havia transposto a última barreifl

A sua subsistência dependia da sinceridade e talento que n

velasse. A chegada a Laramie não permaneceu muito temjl

secreta. Antes da partida para Denver, ela e o major Pol

receberam inúmeros pedidos para que se realizasse ali mi

mo uma conferência. Como necessitavam de dinheiro e u

ensaio também não deixaria de ser útil, o major Pond cO)

venceu-a a aceder, e ela concordou. O major alugou inJ

diatamente uma sala de aula do Wymong Institute, imp*

miu e distribuiu bilhetes a um dólar e meio cada, e cfl

breve o produto se elevou a mais de seiscentos dólarC^

Na noite de 3 de Dezembro de 1873, o frio era de r*

char e nevava com abundância. A maior sala do instituí*

284

estava cheia com uma multidão entusiasta e barulhenta de nuatrocentas pessoas que aguardavam
ansiosamente Ann Fliza quando esta avançou com imponência para o estrado.

Um repórter do Independent, de Laramie, ali presente, prestava-lhe toda a atenção.

«A Sr.a Young apresentou-se modestamente vestida e as suas maneiras ao aproximar-se do estrado


eram imponentes mas discretas. O seu rosto é mais interessante do que belo e denota ao mesmo
tempo cultura e inteligência. Ao começar a história observou que uma décima nona esposa, no
século xix, era uma anomalia peculiar das instituições americanas. Da primeira à última palavra o
interesse da assistência parecia galvanizado pela narrativa sincera e empolgante dos tormentos que
lhe haviam sido infligidos pelo mormonismo. Denotava-se uma franqueza na sua maneira de falar
que conquistou inteiramente a simpatia e a aprovação dos ouvintes à medida que as revelações da
oradora pareciam abrir-lhe as portas de um mundo estranho.
«O encanto que Ann Eliza exerceu sobre os seus ouvintes de Laramie só foi quebrado pelas
gargalhadas que encheram a sala quando ela descreveu certos aspectos da avareza de Brigham
Young e contou algumas anedotas acerca do ascendente que sobre ele exercia Amélia Folsom.»

Tal como a assistência, o repórter do Independent foi totalmente subjugado pela oradora. Ao
concluir o seu relato da conferência, o jornalista escrevia: «Desejamos-lhe boa viagem, nobre
senhora! E que os frutos do seu trabalho se traduzam pela destruição dessa última relíquia do
barbarismo.»

Na manhã seguinte, em Salt Lake City, tanto Brigham Young como Amelia e bem assim o
reverendo Stratton, o general Maxwell, o juiz Hagan, o juiz McKean e o casal webb liam no
Tribune a notícia do êxito de Ann Eliza. Um telegrama de Laramie informava-os que ela fora
acolhida por «uma grande e calorosa assistência» e vaticinava que a sua conferência «estaria
destinada a causar enorme sensação em todo o país».

Este acolhimento veio dar a Ann Eliza o alento de que tanto precisava. «Senti uma nova coragem»,
confessou ela depois.

t-ntretanto, todas as aldeolas situadas entre Laramie e enver telegrafavam continuamente ao major
Pond solicito um contrato com a sua cliente. Após ter conferencia-

285
do com esta, o empresário amador informou Cheyennij

Fort Russel de que se deteriam em ambos os lugares de m

dia para o outro. Cheyenne desenvolvera-se unicamentffl

sombra da companhia Union Pacific e contava apenas sm

anos de vida. Ann Eliza proferiu a sua conferência de ter»

-feira perante uma «enorme assistência» reunida na Igili

Presbiteriana de Cheyenne e o Daily Leader considewj

que o conteúdo da sua palestra era «criminal» e a sua r*d

neira de falar eloquente e «feminina, orientada com intof

gência». À paragem em Cheyenne seguiu-se uma curta m

tada em Fort Russel, e a 6 de Dezembro Ann ElizaJI

Sr.a Cooke, Pond e a filha chegavam a Denver, no Cololl

do, e hospedaram-se no Hotel Interoceânico. m

Denver situava-se uma milha acima do nível do mar, {

montanhas Rochosas, e avistavam-se daí os cumes de Píil

Peak coroados de neve. Era a capital do território do Còfl

rado. Fundada por um caçador de peles e pela sua esptíw

sioux, dezasseis anos atrás, transformara-se numa metrójsH

lê mercê dos boatos que corriam a respeito dos seus filÍB

de oiro. Em 1870, a população da cidade elevava-se a q|B

tro mil setecentos e cinquenta e nove habitantes, tendo sal

edificados mil e quinhentos edifícios. Agora, decorriqM

três anos, a cidade expandia-se para todos os lados naqiwS

época eufórica que antecedia as férias; os casinos e as call

de jogo regurgitavam de comércio e de crimes, de janotjjM

de exploradores clandestinos e de mineiros. Nas ruas açH


tovelava-se uma multidão barulhenta e ébria. O periódiH

da cidade rival, Central City, encarava com o habitual P«M

simismo o efeito que Ann Eliza produziria naquele covil wl

bêbedos: «Duvidamos de que a sua história consiga despeja

tar o interesse do público, uma vez que, segundo se diz, efl

não possui grande talento e que o seu êxito depende uniCfB

mente da novidade da história que conta. Os jornais dfl

Denver gabam-se de que ela queria estrear-se nessa ci0*3”]!

Isso foi da sua parte um erro crasso, pois não existe nes_*||

país outro lugar como Denver onde as pessoas sejam tifflj

indiferentes quando se trata de conferências e de dramas.*|

Se bem que Ann Eliza tenha ficado abalada por este S**”T|

castiço aviso, o major Pond manteve-se imperturbável e.e J

ciente como sempre. Os seus telegramas prévios haviam,

despertado o interesse da comunidade e dos jornais, dese*

286 q

ando todos ardentemente conhecer a esposa fugitiva de grieham Young. O major Pond convidou os
editores e os repórteres de Denver, bem como os das cidades vizinhas, para uma conferência de
imprensa nos aposentos da conferencista, conferência que se efectuou no dia da chegada.

Ann Eliza envergara o seu vestido mais simples, sem rendas nem acessórios, e por cima um casaco
leve de um tecido roxo escuro. Embora preocupada, respondeu às perguntas com frieza e
sinceridade.

A conferência de imprensa abrira com a apresentação das credenciais, uma série de cartas a elogiar-
lhe as qualidades morais e a validade dos motivos que a moviam. Estas recomendações eram
assinadas pelo reverendo C. C. Stratton, pelo juiz B. McKean, pelo pastor da Igreja Metodista de
Provo, o reverendo C. P. Lynford, pelo comandante federal do Utah, J. H. Wickizer, que despachara
a mala de Ann Eliza, e pelo pastor da Igreja Baptista de Laramie, D. J. Pierce. Esta ideia das
credenciais fora um estratagema do major Pond que desejava evitar qualquer suspeita da parte dos
conservadores acerca da moralidade da sua cliente.

No receio de poder revelar a parte mais interessante da sua conferência, Ann Eliza respondeu
brevemente às perguntas. Referiu-se de passagem aos seus primeiros tempos no mormonismo, às
suas aventuras na Casa dos Votos, ao casamento com Brigham Young e ao processo de divórcio
que fora adiado. Falou na fuga de Salt Lake City e declarou ter escolhido Denver como lugar de
estreia, a despeito do estorço empreendido por alguns amigos para a dissuadir de tal coisa.
Prometeu realizar ali duas conferências. Andava a escrever uma terceira acerca da «situação política
do mornionismo». Tencionava proferir a primeira palestra no princ|pio da semana seguinte. O major
Pond, declarou, andava a|nda à procura de uma sala disponível. Depois disto, tencionava deslocar-se
a Kansas City, Missuri e Nova Iorque, endo Washington o término da viagem, onde tencionava
<<contar às pessoas certas coisas acerca do mormonismo que nunca minguém sonhara».

Ff conferência de imprensa teve um êxito retumbante.

°i aí que começou a erguer-se o mito de Ann Eliza.

major Pond conseguiu alugar a sala maior da cidade,

Pertencente à Nova Igreja Baptista, para duas sessões, a 9 e

287
a 10 de Dezembro. O fim-de-semana foi bastante árjj

para Ann Eliza. Tentava não pensar na prova a que ia stM

tar-se. Tratou de limar as duas conferências já esciJB

«A Minha Vida no Cárcere» e «A Poligamia tal como i

É», e continuava a elaborar a terceira. Receava constaj

mente um fiasco. Fora avisada para não inaugurar a su*8

rie de palestras em Denver. Estas iriam ter pela priinjB

vez uma cobertura de imprensa a nível nacional. Uma jl

vazia, uma palestra mal feita, tudo isso seria imediatamíB

transmitido através do país e representaria o fim do cifl

ainda antes de o ter começado de facto. ^Ê

O dia 9 de Dezembro acabou por chegar. Durante t|B

o dia a neve caiu e a temperatura foi descendo. Ao aHQjl

cer, o solo encontrava-se gelado e toda a cidade estava jm

volta numa tremenda e branca tempestade. À janela do M

quarto de hotel, Ann Eliza contemplava os elementos <

sencadeados e cada vez se sentia mais deprimida. «EstlM

desanimada e sem coragem», escreve mais tarde, «ponjjM

considerando aquela primeira noite como um presságiolB

minha carreira futura, só via na minha frente um fracasw

A tempestade aumentara a ponto de eu não saber se confB

guiria chegar à igreja; mas como alguns amigos fiéis jfl

haviam prometido estar lá, desse por onde desse, resqM

tentar.» !

com o coração apertado, envergou a cinta de barbas

baleia e depois, em combinação, deixou que a Sr.a CcxJ


lhe entrançasse os cabelos castanhos numa coroa enrolajiB

no alto da cabeça. Em seguida, em frente ao espelho, e C(M

a ajuda da companheira, enfiou um vestido novo de sell

preta, sem qualquer outro ornamento além de uma gargaM

tilha bordada. Calçou umas luvas de pelica branca e, Pe8^H

do no casaco e no manuscrito, ficou pronta. . j

A conferência estava marcada para as oito da nO1*a|

Uma hora antes, já o major Pond, todo elegante no seu ftfJH

que, com um relógio de oiro com corrente, chegava à Pf*^S

dos aposentos dela a fim de a acompanhar à igreja. ^a’^^

até àquele momento ele a tivesse sempre considerado cott^”

uma mulher desajeitada, mas agora ficara estático diante o»

sua beleza. Um quarto de século mais tarde, ainda ele se ré

fere nas suas memórias àquele momento inesquecível. «-K-

cordo-me da noite em que ela ia apresentar-se em Denver»»

escreveu. «Dirigi-me ao Hotel Interoceânico, onde esta

288

hospedada, para a acompanhar à igreja e não a reconheci. Estava vestida de cerimónia e, numa
palavra, era linda.»

Na carruagem que os conduzia à Nova Igreja Baptista, enquanto a tempestade de neve rugia à sua
volta, Ann Eliza confessou a sua apreensão. Ninguém viria ouvi-la. E se isso acontecesse? De
repente, chegaram à igreja. «Os meus receios eram totalmente infundados», escreve Ann Eliza.
«Muito antes de se abrirem as portas já uma grande multidão aguardava cá fora e a sala ficou cheia
antes da hora da conferência, tendo-se ido embora centenas de pessoas por não conseguirem lugar.»

Ann Eliza subestimará a sua capacidade de atracção. Naquela época puritana, em que a curiosidade
acerca dos assuntos sexuais estava vedada, Ann Eliza representava uma isca irresistível. Tinha a
possibilidade de discutir a paixão humana sob a capa da piedade, visto que os assuntos da sua
conferência eram a poligamia e a religião. Para as damas nobres e recatadas e para os seus piedosos
maridos, naquela cidade selvagem, a ousada palestra de Ann Eliza constituía um acontecimento e
uma diversão permitida. Até mesmo para alguns dos cidadãos mais libertinos, frequentadores das
casas de jogo e dos lugares de prazer, a história da vida no harém contada por Ann Eliza, com
conhecimento de causa, constituía uma atracção que não queriam perder.

Enquanto Ann Eliza encarava com receio a assistência, o major Pond abria os olhos para uma nova
perspectiva. Compreendia pela primeira vez que estava na posse de uma atracção capaz de agradar a
ambos os sexos e a todos os tiPOS das mais variadas categorias e níveis sociais. Uma vez dentro da
igreja e instalada a meio da nave, Ann Eliza lanÇou um olhar para a assistência. Nessa altura sofreu
um ataque de medo súbito. O seu primeiro receio fora o de não ver aparecer ninguém. Agora temia
que estivesse gente e mais. «Ao contemplar a casa à cunha, antes de subir para o estrado, a coragem
quase me abandonou por comple-
0>>, escreveria ela. «Mas, enquanto hesitava, a lembrança aj pobres mulheres cuja causa eu ia
defender veio-me raP’aarnente à ideia e com um passo firme e o coração aos PU|OS subi para a
plataforma e enfrentei o meu primeiro

ç° 9ue me acolheu com aplausos tumultuosos.» f U ao estrad° acompanhada pelo reverendo Win-

d Scott, o principal ministro metodista de Denver, e por

289
um outro clérigo, também seu adepto. Ann Eliza e estdl maram lugar em cadeiras à retaguarda,
enquanto o rev«]M do Scott se dirigia para a mesa. Fez uma apresentação baj e Ann Eliza avançou
para tomar o seu lugar. O recintoí perlotado até mesmo as coxias estavam pejadas de m vintes
sentados em cadeiras de desarmar acolheu-a < ruidoso entusiasmo. Ela cumprimentou e, depois de
erm a cabeça, as aclamações não se calaram. Os lábios dl tremiam de nervosismo. E então, caso
estranho, sentia!

«A décima nona esposa de um homem que vive no*

culo xix num país pagão pode talvez ser considerada vM

curiosidade», principiou ela numa voz profunda e cMl

que se ouvia distintamente nos mais afastados cantos doB

cinto. «Porém, na América civilizada e cristã, onde o cril

da poligamia é tolerado pelo governo, ela não pode cocfl

tuir, claro está, apenas uma curiosidade. Ao apresentai*!]

como conferencista em face do público, sinto que me é dl

gida uma explicação, ou pelo menos uma desculpa. PorUJB

to, logo de início, permitam-me declarar que não preteJB

fazer retórica nem ser hábil na arte de falar. Tenho no.fl

tanto alguma coisa a dizer e espero exprimi-la de modaH

fazer-me compreender. fl

«Nasci e fui educada na Igreja Mórmon, portanto fMB

atenção para o conteúdo daquilo que tenho de comunifl

mais do que para a maneira como you fazê-lo. Não esP<M

conquistar os vossos aplausos. Talvez nem mesmo coní|M

comover-vos, mas desejo captar a vossa atenção e, se ijm

possível, determinar as vossas convicções. A minha vida^H

cópia de muitas outras, tão horríveis ou mais do que e^B

Depois de explicar o significado de algumas palavaj

mórmones que poderiam ser estranhas aos ouvintes <


Denver, tais como gentio e apóstata, Ann Eliza passoulH

descrever a sua autobiografia. Falou dos pais, da sua C°JJ

versão à igreja, da sua adesão à poligamia, das condições dj

seu nascimento, da imigração para Salt Lake City, «jjM

aventuras vividas na Casa dos Votos aos dezasseis anos, <M|

sua carreira de actriz, do casamento desgraçado que iiz”i|

com James L. Dee... ’fJ

E continuou a descrever como Brigham Young e Georji

gê Q. Cannon a haviam ajudado a divorciar-se. «Ela «^ ,

bem clara neste ponto», refere o repórter do Rocky MOU””1,

290

tuins News, «porque os mórmones afirmavam que ela nuna se divorciara do primeiro marido.»

Por fim, chegou ao ponto do namoro com Brigham. A assistência inclinava-se toda para a frente.
«À saída da igreja encontrei Brigham que mostrou vontade de me acompanhar a casa e eu repliquei-
lhe que teria muito prazer nisso. Ele assim fez e, pelo caminho, perguntou-me se recebera algumas
propostas de casamento desde que me separara do meu marido. Eu disse-lhe que sim, mas que as
não aceitara. Pediu então licença para me dar um conselho, dizendo-me em seguida que nunca mais
voltasse a casar-me por amor, mas sim com alguém capaz de ser para mim um irmão e a quem
pudesse pedir conselho. A propósito, a única coisa boa que ele jamais me aconselhou foi a de
praticar a mais estrita economia.»

Estas últimas palavras foram pronunciadas por Ann Eliza com uma repugnância exagerada e os
ouvintes corresponderam rindo de maneira compreensiva. Continuou a narrar o namoro de
Brigham, a sua recusa de entrar para a poligamia, as complicações surgidas no negócio de postes do
irmão, a sua resolução de salvar este, casando-se. Descreveu, com todos os pormenores, a cerimónia
do casamento na Casa dos Votos, a sua vida na Casa do Leão, os tempos de miséria passados na
Granja, as suas aventuras com a casa de hóspedes e a fuga para a Walker House.

A conferência estava quase no fim. com a voz entrecortada, referiu-se aos últimos esforços da mãe
no sentido de a impedir de abandonar Brigham e o Utah. «O incidente mais significativo
relacionado com a sua separação do grande apóstolo do mormonismo», afirma o Tribune de
Denver> «era uma carta da mãe que, pelos vistos, partilhou com . resignadamente e por amor da
religião mórmon todas as Pnvações e sofrimentos. Nesta carta ela suplicava-lhe, com° só urna mãe
sa(De fazerj que voltasse para junto daqueles jjue lhe deveriam ser mais queridos do que tudo no
mundo. ara terminar, a mãe afirmava que preferia ver a filha morta a tornar-se numa apóstata. A
Sr.a Young leu esta parte da erencia com manifesta emoção e só a muito custo conguiu reter as
lágrimas. Foi-lhe muito difícil não fazer caso c sa carta, afirmava. Suportara tudo com a ajuda dos
seus iu’ ^T?505 amigos não-mórmones o reverendo Stratton, o McKean, o major Pond e outros
que a protegeram

291
na Walker House e a ajudaram a fugir da terra inóspitj Utah.»

«Alguns anos atrás», afirmava ela, «os ”gentios” ni atreveriam a ajudar-me. Mas por fim a porta dos
tribtÉ foi-me franqueada. Outrora eu teria tremido de pavoj com a ideia de penetrar ali, mas resolvi-
me. Suportaria i para acabar com aquela vida de humilhação. Arrisquei’ mas acabei por conquistar a
liberdade; e confio em guiada por essa mão paterna que daí em diante nunc me recusou, conseguirei
um dia alcançar uma vida új pacífica.

«Neste relato da minha escravidão e das minhas ( ranças e receios, encontrareis uma imagem fiel da
situ de muitas mulheres do Utah. Elas são por natureza tão rãs e sinceras como quaisquer outras
mulheres do mu Demonstram mais abnegação por amor da sua fé do. outras seriam capazes. Que
ninguém se atreva a açus de falta de sinceridade. O mal dos tiranos de todas as t cies tem sido
sempre infligirem aos outros certos casi que trazem consigo o seu próprio remédio. Acabais J
verificar na história que vos contei. Tudo aquilo que 5 abriu-me os olhos para as falsas pretensões
de Brig Young quanto à santidade do seu carácter e que desrrtí raram um sistema de que ele é o
chefe e eu uma das mi vítimas.

«Em face destas constantes manifestações de de» fiança e insatisfação, reneguei o meu pai e a
minha mi casa e os amigos. E certo que encontrei outros, fiéis e e rientes, que me proporcionaram
tudo aquilo que espe alcançar. Como poderá pois alguém duvidar da minha tidão em face desta
prova que, por muito dura que /< me valeu a liberdade? Se alguém duvida é porque nunca
perimentou o travo amargo da poligamia e o doce contfl da liberdade.»

Acabada a história, ela ficou imóvel, à espera da sen ca. Estava confiante. «Nunca na minha vida
falara tão como nessa noite», afirmou mais tarde. «Sentia-me cfl inspirada. Entreguei-me toda ao
assunto.»

Enquanto aguardava, a assistência, absorvida dura! muito tempo por aquela história bizarra, ficou
moment neamente em silêncio.

De súbito, rebentaram os aplausos, subiram de torn, 0

292

heram toda a sala. Dezenas de homens e de mulheres corriam para o palco a fim de a felicitarem, de
lhe apertarem a mão, de lhe tocarem. «Centenas de pessoas», observou o representante do Rocky
Mountains News, «foram-se embora de má vontade, como se só tivessem ouvido metade da
história.»

O êxito foi completo. A imprensa era unânime em a aplaudir. Até mesmo o Daily Register de
Central City, sempre pronto a criticar, e que previra um fracasso, publicava de má vontade uma
espécie de elogio: «Confessamos a nossa surpresa ao sabermos da ovação que ela recebeu. Isso para
nós constituiu uma revelação. Mas receamos bem que algumas pitadas de escândalo doméstico que
esmaltam a conferência sejam os únicos responsáveis pelo entusiasmo da população de Denver. De
qualquer forma, apraz-nos registar o progresso que se está notando na sociedade metropolitana.»

Apenas o Chronicle, de Virgínia City, vinha lá de longe apresentar o seu protesto. Talvez Ann Eliza
conseguisse ter êxito nas cidades do Leste como tivera em Denver, mas nem por isso deixava de ser
uma concubina. «Qualquer outra mulher do país que houvesse vivido num bordel teria o
descaramento de vir contar ao mundo a sua própria degradação e os seus pecados? As pessoas
sensatas não deviam desperdiçar com ela a sua compaixão, mas essas, ao verem esta mulher,
esquecem-lhe os pecados.»

A notícia do triunfo de Ann Eliza percorreu todo o país. Os pedidos de contratos choviam. Até esse
gigante no sector das conferências, James Redpath, voltara à carga. Solicitava Ann Eliza para o seu
ciclo de conferências Star Lecture Course, uma série que incluía já certos nomes célebres tais como
Frederick Douglas, Edward Everet Hale, Susan » Anthony, Josh Billings e Theodore Tilton. A
oferta preurninar de Redpath era de dez mil dólares por cinquenta actuações. O major Pond
respondeu que não aceitava.

Entretanto, livre já de todos os seus antigos receios,

n. Eliza preparava-se para proferir a sua segunda confe-

erjcia, esta menos autobiográfica e tratando sobretudo da

pratica da poligamia em geral. A publicidade alcançada pela

Perneira garantia o interesse pela segunda.

Menos pessoal do que a primeira, era no entanto consierada mais excitante. Ann Eliza descrevia o
crescimento

293
da doutrina das esposas polígamas a partir da revelação qt tivera Joseph Smith em Nauvoo, durante
o ano de 1843, j: à declaração pública feita por Brigham em Salt Lake Qj no ano de 1852. j

«Os mórmones tiveram dificuldade em admitir qa aquilo a que os ”gentios” chamam amor não
podia exis| dentro do seu sistema», declarava Ann Eliza. «Pretendia) que, no caso deles, isso
constituía antes um sentimeia mais puro de respeito, ajuda e amizade. Pôs-se muitas Vi zes a
questão: que pensam as mulheres a tal respeito? Ql ralmente elas nada dizem, a não ser que o seu
destino! muito duro. Pensam que o seu primeiro dever é a submit são e o segundo o silêncio. Os
mórmones consideram qj todas as dificuldades lhes vêm das esposas americanas a irlandesas, se
bem que haja muito poucas desta nacionali{f| de. O seu sistema social não passa de um egoísmo
orgaáj zado. Presentemente, a poligamia vive sobretudo dos eíã mentos estrangeiros. Assim que
chega um comboio Jj emigrantes, os caçadores de esposas caem sobre ele conJ abutres. As recém-
chegadas podem não perceber uma palaVM de inglês, segundo se diz, mas o amor consegue
comunidi através dos olhos e esses caçadores de esposas em breve se í$] zem entender. A
perspectiva de uma casa confortável que o» recém a essas estrangeiras que não possuem um único
amigi nem qualquer pessoa conhecida neste país levam-nas a toU narem-se, sem saberem como, na
esposa número três, GB quatro, ou dez, vindo mais tarde a arrepender-se». > À medida que
prosseguia na sua exposição, Ann Elial ia-se entusiasmando. Contava como os polígamos roubai
vam as mulheres dos «gentios», justificando com a Bíblia J expansão cada vez maior dos seus
haréns. ”l

«Eles pretendem que todos os patriarcas eram polígíl mós. Dizem que Adão, numa existência
prévia, tivera vánáil esposas, entre elas Eva. Mais ainda, sustentam que o am°l puro e exaltado de
Jesus por Marta e por Maria, bem comíi por Madalena, revela que estas eram suas esposas políga”!
mas, e que as bodas de Cana de Galileia foi uma das suail festas de noivado.» .

A assistência ficava de boca aberta e Ann Eliza aproveif | tava isto para fazer mais revelações
sensacionais. Descrevia, a infelicidade que reinava em casa de Brigham, o procedimento
inqualificável dos filhos deste dentro da poligamia> *

294

triste sorte da sua primeira esposa e a atitude inevitável de Amélia Folsom, a crueldade de Heber C.
Kimball ao chamar «vacas» às esposas, a degradação de um polígamo que se casa com seis
sobrinhas, a solidão total das crianças no Utah. Acerca das crianças, Ann Eliza acrescentava uma
anedota. Contava o caso de uma rapariguinha de um lar poligâmico que certa noite declarou à mãe:
«Gostaria que Deus tivesse criado tantos homens que cada menina pudesse ter um pai só para si.»

Ann Eliza pedia desculpa por ter de omitir certos pormenores mais excitantes da vida no harém.

«Contei de forma incompleta a história da poligamia. Muito mais teria a dizer se não estivesse em
presença de uma assembleia tão heterogénea. Nenhum estranho, nenhum repórter ou homem do
Congresso conhecerá o casamento poligâmico tal como é praticado.»

Chegara ao final da sua exposição e declarava com vigor: «Os governantes, por uma questão de
desconfiança ou de receio, concedem à poligamia o benefício da dúvida e a questão fica sempre
adiada para a próxima legislatura. Entretanto, todos os olhos ansiosos ficam postos neles, as
crianças continuam a nascer com uma maldição a pesar sobre elas, com uma marca na fronte, e todo
o país se benze, afirmando: ”Nós não fazemos mal algum, ninguém nos pode acusar, as mulheres
são livres de aceitar este sistema ou de o rejeitar de viver em conformidade com ele ou de o
abandonarem.” Mas elas não são livres. As suas almas estão acorrentadas.»
Interrompia-se para dar mais peso às suas palavras, dePOIS prosseguia: «Por mim, tive quem me
animasse a quebrar os laços da minha fé e de tudo o que com ela se relaciona, coisa que outras não
tiveram. No entanto, este passo exigia uma grande força e suscitava muitas dúvidas. Como sena eu
recebida pela sociedade? As mulheres, sobretudo, seriam capazes de aceitar uma sua irmã que fora
esposa po’gama? Até que ponto as autoridades da igreja iriam perseguir-rne? Que tentariam
caluniar-me, disso tinha eu a cereza. Chegariam ao ponto de atentar violentamente contra minha
pessoa? Como encarariam a minha atitude os meus Parentes e amigos?

«Estas e muitas outras dúvidas semelhantes atormentaam-me o espírito antes de tomar uma
resolução. Imagi-

295
nem, pois, a desorientação de uma pessoa colocada ante J

te dilema. Não posso terminar sem exprimir a mirj

gratidão para com o público pela extrema cortesia e amajl

lidade de que fui alvo desde o início. E não diria tudoj

não agradecesse ao nosso Pai do Céu o auxílio que m

prestou ao guiar-me os passos vacilantes. Deixem-me aql

mar ainda publicamente que, seja qual for o destino que H

espera, não me arrependerei nunca de ter dado um pan

que me granjeou a liberdade de acção e de consciência

Tal como na primeira noite, a palestra de Ann Eliza oa

teve aplausos gerais e mais uma vez homens e muHiCal

acorreram a rodeá-la murmurando felicitações e querer

tocar-lhe a mão. M

Dois dias depois, num sábado, 13 de Dezembro <

1873, inebriada ainda pelo êxito alcançado em Denver, AjB

Eliza tomava uma vez mais o comboio da Union Pacifia|

caminho do Médio Oeste. O major Pond firmara para dj

muitos contratos no Kansas e o primeiro ponto de paragal

era Topeka. __ B

Alugara o Teatro da Ópera naquela cidade e marcar«|

primeira conferência para segunda-feira, 15 de DezembfB

e a segunda para a noite imediata. Havia lugares reservacH

a setenta e cinco centimes cada e a geral era a cinquenJB

A imprensa de Topeka referira-se ao êxito obtido ill

Denver e o Commonwealth assinalara a chegada de all

Eliza com o seguinte editorial: A EX-COSTELA REGAM


CITRANTE DE BRIGHAM YOUNG. Apesar de tod«

estes preparativos, Ann Eliza voltou a enfrentar a assistêjB

cia com o cabelo entrançado e de novo vestida de seda pfll

ta. O teatro esgotara apenas metade da lotação e o $ta^Ê

Record de Topeka explicava assim o caso: «A falta de recH

mo, ou as más condições de tempo, ambas as coisas, OM

qualquer outro factor, foram os responsáveis pelo facto uj

o Teatro da Ópera não se ter enchido na segunda-feira m

noite para ouvir a Sr.a Young... No entanto, a sua conferefljl

cia foi ouvida com o interesse habitual e causou gran(~||

sensação.» JJÍ

Na noite seguinte, a assistência acorreu em maior nuq

mero para escutar a segunda palestra acerca, da poligamia*!

No fim, Ann Eliza viu-se rodeada por uma multidão e **^

damas da alta-roda de Topeka acolheram-na «de braços

abertos».

296

Depois de descansar três dias, Ann Eliza seguiu para Lawrence, no Kansas. Aí a preparação fora
mais cuidada. Os cidadãos de Lawrence acorreram em massa. Na noite da primeira conferência, o
Liberty Hall estava completamente cheio. Uma das figuras mais proeminentes da cidade fez a
apresentação da conferente e a actuação desta foi das melhores. O Kansas Tribune mostrava-se
encantado: «Ela mantém a assistência suspensa», declarava o jornal. «Poucas vezes temos ocasião
de ouvir uma conferência deste nível.»

A segunda paragem de Ann Eliza no Kansas foi em Leavenworth. A comunidade aguardava-a


ansiosamente. Não só os dois jornais de maior importância se lhe referiam largamente, como
também por toda a cidade se viam cartazes com o seu retrato e dístico onde se lia: A REBELDE DO
HARÉM. Ann Eliza, a Sr.a Cooke e o major Pond chegaram a Leavenworth vindos de Lawrence a
19 de Dezembro. Ao desembarcar do comboio, ao fim da tarde, Ann Eliza dava mostras de cansaço.
Declarou aos dignitários e repórteres que sofria de dores de cabeça de origem nervosa e adiou todas
as entrevistas. Em seguida foi descansar para os seus aposentos na Planter’s House. Mais tarde, já
repousada, conferenciou com o major Pond acerca de negócios. Haviam sido recebidas dezenas de
solicitações de casas editoras de Nova Iorque e Ann Eliza prometeu escrever um livro de memórias
quando se sentisse mais forte. Discutiu também com o empresário a possibilidade de fazer uma
série de conferências na Europa, onde o interesse pelo mormonismo crescia a olhos vistos, nesse
ano de 1874, e ambos concordaram em ir lá mais tarde.

Depois dos solavancos sofridos nos beliches do comboio durante a viagem desde Leavenworth, a
cama da Planter s House era um luxo. Acordou pela manhã, restabelecida da dor de cabeça e
inteiramente repousada. Informou disso o major Pond que se encarregou de avisar a imprensa.

Um repórter do Daily Times, de Leavenworth, acorreu °go aos aposentos dela. Achou-a
«interessante e graciosa»; a SUa beleza não era do tipo nórdico nem se podia considerar uma
morena latina, «pertencia àquela raça que se desen, e na atmosfera das montanhas». Foi de
opinião de que a nada tinha de tímida, não era daquelas que se curvam Malmente ao jugo da
submissão.

«A Sr.1 Young é uma boa conversadora», referia o jor-

297
já. Dentro de um ou dois dias a pessoa a quem me ré regressará com os fundos necessários e, muito
embotai nhamos sido iludidos quanto ao êxito das citadas confel cias, pagaremos até ao último
cêntimo as contas pelas qi somos responsáveis. O êxito da Sr.a Ann Eliza pode aval -se pelo facto
de que, sendo St. Louis uma cidade de d| trocentos e cinquenta mil habitantes, apenas cento e sem ta
e cinco pessoas manifestaram interesse suficiente a assistir às duas conferências dela... cujas
entradas custa» a irrisória quantia de cinquenta centimes. Isto é puraJj dade. Contudo, nas notícias
publicadas a tal respeito, am ciava-se que ela recebia pela conferência duzentos dólan

Ao ser informada da dissidência surgida entre Wallal o major Pond, o Tribune, de Salt Lake City,
saltou, cq| sempre, em defesa de Ann Eliza: «O Sr. Wallace agora l ga-se publicando nos jornais
afirmações falsas acercai Sr.1 Young. Declara que ela não atrai um grande púbji Mas isso sabemos
nós que é falso...» a

A despeito das vinganças do Sr. Wallace, Ann Elizsl nhã razões para se sentir satisfeita de festejar a
vésperja Ano Novo em Nova Iorque. Deixava atrás de si o ano ta movimentado e cheio de
peripécias da sua vida; no entai vencera, conquistara a celebridade e uma independei temporária.
Porém, enquanto brindava ao novo an41
1874 na companhia da Sr.a Cooke, do major Pond e dei guns amigos recentes, não se deixava
adormecer pelo em Sabia que a esperava um ano de grande tensão e expectai durante o qual se
decidiria a sua sorte. Tinha pela frd uma dupla tarefa; impor-se perante os ouvintes sofisticaâ do
Leste, fazer face às exigências sempre crescentes de| mês Redpath e convencer os legisladores de
Washington^ que só dizia a verdade, merecendo essa verdade todo o i gor da lei. Sabia também que
o seu futuro imediato não ( tava totalmente nas suas mãos. O silêncio súbito e inesf rado que se
verificava em Salt Lake City assemelhava* muito à medonha acalmia que precede a batalha. O
iniiWi que deixara na Colmeia e na Casa do Leão não era daq« lês que aceitam os golpes de uma
esposa desleal e apostl sem ripostar. O receio da vingança de Brigham, muito O bora houvesse
poucos mórmones no Médio Oeste e ’ Leste, não lhe saía da mente. Confiava, no entanto, na s força
sempre crescente e na fama que vinha adquiriu”

com a chegada do novo ano, a Sr.a Cooke, sempre adoentada, despediu-se e partiu para Salt Lake
City. Foi substituída na sua qualidade de dama de companhia pela filha mais velha do major Pond.
A maior prova a que Ann Eliza teria de se sujeitar, perante Redpath e os velhos conservadores de
Boston, só se verificaria em meados de Fevereiro. Restavam-lhe ainda sete semanas para se
aperfeiçoar no mister de conferencista e transformar-se em atracção. Durante essas semanas, a fim
de substituir o itinerário cancelado do Sr. Wallace, o major Pond marcara-lhe uma digressão
trabalhosa mas relativamente fácil através do Iowa, do Ilinóis e do Wisconsin. E Ann Eliza partiu
para essa digressão.

Em Burlington, no Iowa, apercebeu-se de que pela primeira vez teria de competir com outra
conferencista que acabava de aparecer. Tratava-se da célebre Victoria Clafin Woodhull. Aos trinta e
seis anos, a bela Sr.a Woodhull considerava-se uma mulher emancipada e tinha atrás de si uma
carreira excêntrica e tumultuosa. Conseguira conquistar as boas graças do comodoro Comelius
Vanderbilt, o homem mais rico dos Estados Unidos, e isso permitira-lhe abrir, em 1870, a primeira
agência de vendas da América dirigida por uma mulher. Publicara um jornal escandaloso de
dezasseis páginas chamado Woodhull & Clafin’s Weekly. Em Washington, apresentara-se no
House judiciary Committee a defender os direitos da mulher. Fora ela quem revelara ao público o
facto de o reverendo Henry Ward Beecher haver seduzido a mulher do seu maior amigo, Theodore
Tilton. Candidatara-se a presidente dos Estados Unidos, embora não tivesse voto, mas quem acabou
por ser reeleito foi

não
Ulysses S. Grant. Presa por instigação de Anthony Comsl°ck, pelo facto de ter escrito certos
comentários obscenos ^erca de Beecher, cumpriu a pena na prisão de Ludlow btreet, em Nova
Iorque, juntamente com a sua desmoraliZa”a lrmã mais nova, Tennessee Celeste Clafin, que lhe
servja de agente publicitária, Victoria percorria todo o Médio

este a pregar o amor livre. ^ Na altura em que Ann Eliza chegou ao Iowa, Victoria

°odhull obtinha aí grande sensação. Afirmara havia poui ern Chicago: «Nunca tive relações sexuais
com nenhum c°mem perante o qual me envergonhasse depois de apare-

r ern público.» Agora, no Iowa, ela declarava: «Nada se

301
f)

me afigura tão destrutivo como ter relações sexuais quefj

conduzam a uma satisfação completa e recíproca. Não*

ciso de explicar a qualquer mulher os efeitos das reljJ

não consumadas. Mas os homens precisam que lhes mji

lem isso nos ouvidos constantemente... eles não deveflM

quecer-se de que a outra parte exige a compensação dam

que dá, não quer que eles se satisfaçam sozinhos à sua«

ta, não consente que eles provoquem um desejo que dem

não compensam, por ignorância ou egoísmo...» O puni

de Iowa sentiu-se chocado e o Herald, de Dubuque, a

cordava com os ouvintes em que Victoria «causara main

cândalo, fizera mais sensação do que ninguém que jaijj

tivesse passado pelas ruas daquela cidade». v|

Em Burlington, Iowa, o caminho de Victoria Wood!

cruzou-se pela primeira vez com o de Ann Eliza. Victl

foi procurá-la ao hotel, com o intuito de a convencer am

tar-se na sua campanha em prol do amor livre. Ann El

que conhecia a má fama da outra, ficou horrorizada, flj

queria ver-se envolvida em movimentos de emancipaçij

recusou recebê-la nos seus aposentos. Victoria retiro»!

furiosa. Nessa noite, ainda um pouco enervada, Ann Bi

proferiu a sua conferência. O jornal Hawkeye, de Burla

ton, tecia-lhe elogios: «Tem um rosto agradável, uma

transparente e por vezes mostra um certo ar embaraçi

que não prejudica nada as qualidades naturais da confeM


cista... Conta a história simples da sua vida em casai

Brigham Young. Não pretende ser uma sumidade liter»

mas a sua linguagem é clara, bem escolhida e persuasifl

No dia seguinte, Ann Eliza ficou satisfeita por se ara»

de Victoria Woodhull. A sua passagem pelo Ilinóis encl

tou-a. Agradou-lhe o que se disse a seu respeito em Peod

«Ela não é de forma alguma o que se chama uma aventuíi

rã.» A assistência, em Springfield, «acolheu-a de forma»

sonjeira». Em Quincy, «dissipou por completo qualqfl

preconceito que poderia ter surgido contra ela». No dia l

guinte à conferência em Clinton, o pastor metodista escfl

via: «A nossa gente ficou a discutir a palestra que ouvia

O lugar onde tudo correu melhor foi talvez Blooming

ton. Habitualmente, o major Pond combinava a marcaçs

das conferências através dos padres metodistas e partuh*

com eles os lucros. No entanto, em Bloomington, P°”

firmara o contrato com B. P. Marsh, presidente da comn

302

. jg conferências, e com W. W. Wallace, secretário corsaspondente, representando ambos a


Associação dos Jovens Cristãos. Em troca do seu patrocínio, esta associação auferiu dois terços dos
lucros de Ann Eliza.

No Burley Hall de Bloomington juntou-se então a maior assembleia que jamais se reunira para
escutar Ann Eliza. O Daily Pantagraph exaltava-lhe a «modesta dignidade e graciosa apresentação».
O Daily Leader mostrava-se encantado com aquela «mulher sincera», que, «com modéstia e no
entanto com verdade», revelava a história íntima da vida no harém de Brigham.

Após a primeira conferência, o major Pond e a filha deste passaram a noite no Hotel Ashley de
Bloomington e no dia seguinte foram hóspedes de Marsh e de Wallace, em nome da Associação dos
Jovens Cristãos. A seguir à segunda palestra, Ann Eliza e os Pond tomaram o comboio e deitaram-
se nos respectivos beliches para estarem completamente repousados durante a próxima actuação em
Jacksonville, no Ilinóis. Não tardou que Bloomington não fosse mais do que um ponto geográfico
na recordação de Ann Eliza. Em breve, porém, teria razão para se lembrar de cada rosto e de cada
momento vivido naquela cidade, desde que chegara até ao instante da partida.

Ao deixar Jacksonville, a 16 de Janeiro de 1874 o pastor dessa cidade escrevera aos seus colegas,
dizendo: «Ela merece o apoio de todos os ministros cristãos» , o trio prosseguiu no seu caminho
para a populosa e fria cidade de Chicago. Em Windy City, pelo braço do major l ond, Ann Eliza
visitou a delegação do Lyceum Bureau de Kedpath. O encarregado do escritório era um australiano
conservador, chamado George H. Hathaway, e um dos mais activos colaboradores de Redpath.
Segundo parece, ond e Hathaway simpatizaram logo à primeira vista um com o outro. Mais tarde
viriam a ser sócios numa das mais lmP°rtantes empresas de conferências.

Impressionado pelos lucros recentes de Pond e pelo ingresse que Ann Eliza despertava no público,
aconselhou os ’sitantes a entrarem em negociações com Redpath. Pond P’icou que haviam
combinado já que este se encarregaria c£ actuação de Ann Eliza em Boston e que, se Redpath l
egasse a um acordo no sentido de lhes pagar dez mil dóes por ulteriores compromissos, eles
certamente acaba-

303
riam por firmar um contrato permanente. Hathaway gi

deixou de os avisar de que até ao momento em que o a

patrão começara a organizar conferências, isto é, seis am

antes, os oradores na América eram muito mal pagos em

encontravam um acolhimento por aí além. Calculava-se <B

os estrangeiros como Charles Dickens que talvez tivdl

auferido uns duzentos e vinte e oito mil dólares quandoj

sua segunda digressão pela América constituíam exol

coes. Waldo Emerson, trabalhando por conta própria, fl

nhava apenas cinco dólares por palestra, mas Redpath cdl

seguira-lhe quinhentos dólares. Fora Redpath quem fÍ2B

que Henry Ward Beecher recebesse mil dólares por umaH

conferência. O major Pond e Ann Eliza não tiveram <9B

culdade em se deixar convencer. Logo que chegassem a )

acordo, passariam a trabalhar por conta do escritório

Redpath.

Em Evanston, no Ilinóis, o major Pond tinha ainda dfl

tro negócio pessoal a resolver. Não querendo que a fill

passasse a vida a viajar como uma cigana, internou-a nfl

colégio daquela cidade. Mas agora precisava de outra dadl

de companhia para Ann Eliza e ali mesmo a descobfH

Tratava-se de uma solteirona de trinta e quatro anos, R-ll

Storey, que fora grande amiga da mulher do major, fljÊ

Francês, falecida havia três anos. Miss Storey concorJB

em acompanhar Ann Eliza nas suas viagens, dormindo H

quarto dela, a troco de um pequeno ordenado. |B


A conferência de Ann Eliza no famoso Tremont TepB

pie de Boston fora marcada para a noite de 19 de FevereuM

dali a mais de três semanas. Antes disso, tinha ela de cUjjjB

prir uma série ”de pequenos contratos no Wisconsin eJM

novo no Ilinóis. De Chicago, passou ao Wisconsin. £H

Madison, os legisladores coriáceos choravam como cr^M

ças. Em Janesville, a assistência interrompeu a oradora c^H

estrondosas ovações. Em Oshkosh, as pessoas que tinhaj

enchido a sala «para gozar, ficaram para rezar». Em -B|

waukee só estavam vagos os lugares de pé. JB

Em Appleton, no Wisconsin, embora satisfeita Por<l^

toda a gente apreciara a sua «franqueza e eloquência esP<j||

tâneas», Ann Eliza tinha o espírito preocupado com °U^B

assunto. Desde que deixara o Ilinóis, andava qualquer CO”S

no ar uma espécie de denso mistério. Em Appleton, a *J

de Fevereiro de 1874, sentada à secretária dos seus aposeit ^

i
304 ”*

tos na Waverly House, escreveu à pressa um bilhete dirigido a um amigo, jornalista influente,
chamado Culver. Era do seguinte teor, em parte:

Caro senhor, na minha passagem por Madison fui interrogada muitas vezes acerca da maneira como
viera a relacionar-me com o major Pond, e por que motivo era ele quem dirigia os meus negócios.
Depois da minha, partida daí escreveram-me uma carta anónima sobre o mesmo assunto. O caso
repetiu-se em Milwaukee. Far-me-ia um grande favor se publicasse no seu jornal o artigo incluso,
no qual respondo a essas perguntas...

Gostaria de receber um exemplar do seu jornal contendo esse artigo. Agradecendo antecipadamente
a sua ajuda, subscrevo-me com toda a consideração, Ann Eliza Young.

Nunca Eliza quis revelar as perguntas que lhe tinham sido dirigidas no Wisconsin relacionadas com
o major Pond. Podemos calcular qual a natureza destas. O artigo enviado ao Sr. Culver explicava
provavelmente que o major Pond, depois de haver combatido como confederado durante a Guerra
Civil, no Kansas e no Missuri, voltara à sua profissão de jornalista, aceitando um lugar no Tribune
de Salt Lake City, onde se hospedara na pensão de Ann Eliza, após a morte da mulher. Aderira ao
grupo que a aconselhara a divorciar-se de Brigham Young e tomara a seu cargo organizar o
primeiro ciclo de conferências e apresentá-la ao Congresso em Washingtton. Ann Eliza achava, sem
dúvida, que esta simples explicação acentuava o facto de as relações entre ambos serem meramente
profissionais. . Acompanhada por Miss Storey e por Pond, e sempre intranquila, continuou a
cumprir o resto dos contratos no Médio Oeste americano. Noite após noite, diante de uma j^ultidão
de rostos atentos, foi lendo a sua exposição autobiográfica acerca da poligamia. De sessão para
sessão, à meQida que se aproximava a data da importante conferência de Boston, a confiança de
Ann Eliza ficava cada vez mais abalada.

A última vez que apareceu em público no Médio Oeste °i em Freeport, e uma vez mais alcançou um
êxito returnante. O jornal de Freeport afirmava que «todos tinham lcado maravilhados com a
palestra» e acrescentava:

305
«A Sr.a Young segue daqui para Boston onde lhe desejai^

uma recepção cordial e que os seus esforços consigam dj

pertar no público uma forte reacção de repulsa contra J

dos grandes males da nossa terra, ao qual os poderes púM

cos não ligam importância e é desprezado por toda a genj

sem pensarmos nos seus terríveis efeitos.» J

Ann Eliza tomou por fim o comboio para o Leste, l

principais conferências que fizera, até então em St. Loa

e em Denver, especialmente haviam-lhe servido de exil

riência; Boston, porém, detinha a chave do futuro. Se H

lhasse em qualquer aspecto passaria a ser considerada uaj

simples curiosidade, um fenómeno, em que todos deul

riam de falar. Mas se acaso triunfasse, transformar-se-ia n|

ma das figuras mais bem pagas de Redpath, tal como Jid|

Ward Howe e Anna H. Leonowens. A sua voz passariil

ter autoridade dentro da nação e a sua segurança pessoj

deixaria de depender da pensão alimentar que Brigham U]

recusara até então. ij

Boston, com o seu quarto de milhão de habitantes, na

se Inverno de 1874, mal se refizera ainda do incêndio catai

trófico que devorara a cidade treze meses antes. Este dei

truíra setecentos e sessenta e sete edifícios, na sua mauj

parte comerciais, e representara um prejuízo de cerca de M

tenta e cinco milhões de dólares. Ficara ainda, no entannj

bastante dinheiro e suficiente interesse pela cultura pa||

que a cidade mantivesse o lugar que ocupava como Pr’nífl


pai centro intelectual. No dia em que Ann Eliza ali chego»

18 de Fevereiro de 1874, A. E. Sothern apresentava-se cwj

mo figura principal na peça Dundreary, no Boston TheaOfW

A pequena Minnie Madden era a maior atracção de Till

Nights m a Ear-Room. Estava também marcado urn com

certo no Howard Athenaeum em benefício do SigiMS

G. Operti, no Boston Music Hall. O palco do Tremoaj

Temple era ocupado pelo velho Charles Kingsley, romaM

cista inglês que aparecia nos jornais com o título de «cóntfl

go de Westminster e capelão da rainha de Inglaterra». Só”*!

direcção de Redpath, o autor de Westward Ho! fazia pá*6*!

trás (sem a sua gaguez habitual), diante de uma assistance

relativamente pouco numerosa que pagava cinquenta cêntN!

mós por lugar. À chegada de Ann Eliza teria de se irmdaÉ

para o Horticultural Hall onde falaria acerca de «Os pr*”

meiros descobridores da América.»

306

Entre as atracções anunciadas contavam-se seis conferências acerca da «Força Nervosa», proferidas
pelo professor C. E. Browns-Sequard, doutor em Medicina, no Lowell Institute, e a leitura de um
livro por Wilkie Collins, autor do Moonstone, no Parker Memorial. Porém o anúncio mais vistoso,
logo na primeira página, onde se lia: «Diversões», e que saíra durante a semana inteira, era do
seguinte teor:

REDPATH LYCEUM

ANN ELIZA YOUNG

DE SALT LAKE CITY

A HISTÓRIA DA POLIGAMIA VISTA POR UMA MULHER

No TREMONT TEMPLE
QUINTA-FEIRA A NOITE, 19 DE FEVEREIRO

A SRA. YOUNG foi educada na fé mormon e, aos vinte e quatro anos, casou com BRIGHAM
YOUNG na qualidade de décima nona esposa. A sua experiência acerca dos horrores desse sistema
levou-a a pedir o divórcio e a encetar uma cruzada a favor da abolição dessa iniquidade. Vem do
Oeste e é portadora das mais válidas credenciais de todo o clero cristão, bem como dos mais ilustres
gentios do Utah. O seu êxito no Médio Oeste como conferencista só foi igualado durante o
movimento a favor da temperança. As igrejas de toda a parte apoiam-na com entusiasmo.

Bilhetes a cinquenta cêntimos em lugares reservados. A venda na terça-feira, na Russell’s Music


Store, 126 Tremont Street.

Ann Eliza e o major Pond, arrastando consigo Miss Storey, hospedaram-se na Parker House de
Boston, pouco Passava do meio-dia de quarta-feira. Depois de arrumarem as malas e de terem
almoçado, foram visitar James Redpath, n° Lyceum Bureau, situado na Bromfield Street, n.° 36.

Redpath, um homem baixo, de quarenta e um anos, que Pesava sessenta e oito quilos, enérgico,
divertido e rubicuna°> com o rosto ornado por um bigode e suíças, havia ransformado John Brown
numa lenda e introduzira a técn’ca da entrevista no jornalismo americano, tornando deP°is o
negócio de organizar conferências no seu principal e

307
mais rendoso modo de vida. Homem que não conhecia!

medo (fingira ignorar, certa vez, uma citação do Sena<31

sempre em movimento (nunca tirava férias), defendia*

mais fracos (apoiara a causa de John Brown, a questão |J

Haiti, e andava agora muito interessado em ajudar as vjjfl

mas da poligamia e em combater pela liberdade da Irlanda

Redpath possuía quase o monopólio dos artistas mais cal

bres do estrado. Ao passo que conseguia que certos SÊ

mens célebres como Henry Ward Beecher, Mark TwaJM

outros não lhe exigissem mais do que dez por cento deli

cro, gabava-se da sua habilidade em lançar mulheres na ca|

reira de conferencista. Uma delas era Anna E. DickinsdM

jovem e ardente sufragista, que ganhara quarenta mil dó9

rés num ano. O próprio Brigham Young lamentara não B

podido ouvi-la quando ela visitara Salt Lake City durantJB

primeiro ano em que Ann Eliza estivera casada com cjl

«Tinha grande empenho em que Miss Dickinson tivesse at

lado aqui», declarara ele a um visitante. «Daria de boa vow

tade um dólar para a ouvir vociferar. Dizem-me que <m

nisso é exímia...» J|

Embora Ann Eliza não possuísse a personalidade franá

e fogosa de Miss Dickinson, Redpath pressentia nela ala|

de igualmente valioso. Era senhoril nas maneiras e no pifl

cedimento e a sua personalidade reservada representava ua|

feliz contraste com o problema sexual que se achava na b|H

se da sua história. De uma jovem tão doce, casta e sofreai!


rã todos aceitariam facilmente qualquer acusação acerca QÊ

promiscuidade na poligamia. Ann Eliza, por seu lado, fiMM

encantada com Redpath. «Ele nunca me ouvira falar», 0M

creveu, «e no entanto mostrava-se tão contrário a esse n0*!!

rível sistema, como de resto a tudo quanto estava erra”*j||

que se prontificou logo a contratar-me.» O major P°n<||

claro está, conhecia bem Redpath. Aos dezoito anos andaifl

com ele pelo Texas e considerava-o «quase um deus» nesS^

altura. Agora, já mais velho, não modificara a sua opinistó^

Tudo o que Redpath projectasse a respeito de Ann Elizâjri

Pond achava bem.

Redpath era de opinião de que todo o Leste observao* atentamente os resultados da conferênca de
Ann Eliza. Visto querer tomar conta da carreira dela e consolidá-la, ter» de conseguir uma casa à
cunha no Tremont Temple no oj
19 de Fevereiro. Para lhe assegurar o êxito, os cartazes oe

308

propaganda ostentavam não só o retrato dela mas também os aas suas rivais na Casa do Leão.
Organizara uma série imediata de entrevistas para serem publicadas nos principais jornais de
Boston e resolvera finalmente ser ele a apresentar a conferencista na noite de quinta-feira.

Muito animada depois desta conversa com Redpath, Ann Eliza regressou aos seus aposentos na
Parker House, para se vestir e assentar as ideias. De tarde vieram ter com ela Miss Storey e o major
Pond. Então os representantes da imprensa entraram um por um.

A primeira entrevista da tarde foi concedida a um repórter do Daily Globe, de Boston. Este
mostrou-se surpreendido por se encontrar na presença de três pessoas em lugar de uma. Não tardou
em identificá-las e depois descrevia-as: «A personagem central, claro está, era a Sr.a Young.
Naturalmente deve ser considerada a primeira. Se todos os meus leitores conhecerem a figura de
Miss Agnes Ethel, a actriz que representou no Glooe Theatre aqui há um ano, será desnecessário
fazer a descrição física da Sr.a Young. Esta possui a mesma silhueta elegante, esbelta e direita, um
rosto belo e estreito e uma expressão quase dolorosa. Também a voz, clara mas um pouco trémula,
lembra a de Miss Ethel. O Sr. Pond é um homem bem constituído, forte, com a aparência e até o
sotaque de um homem do Oeste. Quanto a Miss Storey é uma mulher de meia estatura,
relativamente bonita e sem dúvida de maneiras senhoris.»

O repórter do Daily Globe aceitou a cadeira que lhe ofereciam e começou a interrogar Ann Eliza.
Esta, porém, não se sabe porquê, não estava com disposição para falar: «Decerto que o meu
encarregado de negócios, o major Pond, saberá responder a tudo o que o senhor deseja.» ^ jornalista
retorquiu que o objectivo da sua visita não era conversar com o major Pond, mas sempre foi
interrogando este acerca da viagem de Ann Eliza. Não tardou, porém, que esta começasse a
interrompê-lo e a corrigir certas afirmações dele.

Satisfeito, o jornalista voltou-se outra vez para Ann Eli-


2a e lnterrogou-a directamente acerca do teor das suas três conferências.

. Essas três conferências estão relacionadas ou são inQependentes umas das outras?

- São totalmente independentes declarou Ann Elia’ Cada uma delas refere-se a um assunto
diverso.

309
Como têm elas sido aceites pelo público? J

Oh, de um modo geral, sempre muito bem reiH pondeu logo Ann Eliza com certa ênfase. Tenho
sidji tratada com toda a deferência pelos jornalistas, pelos min--Ji tros, etc. e apontava para a mesa
onde se amontoava^ correspondência. Está ali uma pilha de cartas das peij soas de maior destaque
no Oeste, e todas me tecem ^m maiores elogios. Tivemos sempre a presença da melhor sqfl ciedade
por toda a parte por onde andámos e trago cartáj de recomendação de personalidades influentes em
todos Qfl sectores. |I

A senhora viaja sozinha? ,J|

Não, ando acompanhada pelo major Pond, o mew agente de negócios, e por Miss Storey. Quando
enceteiJ| minha viagem vinha comigo uma senhora de mais idacHB mas a sua falta de saúde
obrigou-a a desistir. JB

Já se encontrou com alguém de Boston? Jal

Não, não estive com ninguém em especial, só chegai mós esta tarde... J|

O major Pond interrompeu-a de súbito: JB

A senhora Young tem estado a descansar um poujn co declarou ele ao entrevistador. B

Quanto tempo contam ficar em Boston? pergunM tou o repórter ao major. JB

Ainda não sei ao certo. Não temos planos definidcaBJ mas provavelmente o Sr. Redpath vai
marcar-nos um itiiMB rário aqui pelas vizinhanças. Deixámos uma região onde tejl ríamos Dons
contratos para vir até aqui. A Sr.a Young tiiuNB ali quantos contratos quisesse a cem dólares por
noite. njÊ vinte e duas sessões que fizemos deram lucro, com excefwj cão de uma, mas a noite
estava tempestuosa. A Sr.a Younil teve um grande auditório no Oeste: maior do que o dela sol o
conseguiu John B. Gough e o senhor sabe que ele é UBM homem diferente de todos os outros.
Acho que também 41 essa a opinião que fazem dele aqui em Boston. Espero 1u*fi amanhã o senhor
vá assistir à conferência, deve interessá-1^ muito. Ponderámos bastante este caso antes de
deixarmos Ofl Oeste, porém Boston afigurou-se-nos o melhor centro P31*® um conferencista se
estrear. O Sr. Redpath aconselhou-noíi a vir a Boston para que a Sr.a Young se tornasse conhecida.!
Ela deseja apresentar-se em Washington apoiada no público.» |

Ela vai a Washington? inquiriu o jornalista sur- i preendido. *

310 j

Vai, sim senhor respondeu o major. A Sr.a Young não empreendeu esta viagem para ganhar
dinheiro. O seu objectivo é ajudar as pobres mulheres que sofrem no Utah, e portanto vai a
Washington ver o que pode conseguir.

Sim acrescentou Ann Eliza de novo animada , um dos membros do Congresso que é do Utah, o
general Shanks, disse-me que se eu contasse a minha história, conseguiria mais do que todos os
estadistas do Utah.

Mas a senhora já leva algum projecto de lei em mente? inquiriu o repórter ou está à espera do
rumo que tomam os acontecimentos para se deixar conduzir por eles?
Bem respondeu Ann Eliza já inteiramente à vontade. Claro que tenho ideias acerca do assunto,
mas não estaria certo da minha parte querer ditar leis a esses grandes homens que estão habituados a
fazê-las. you contar simplesmente a minha história e deixo ao cuidado deles a solução que lhes
parecer melhor.

A conversa prosseguiu neste torn e o repórter foi-se embora. O desfile dos jornalistas prosseguiu ao
longo daquela tarde de Inverno e Ann Eliza atendeu a todos. Era já noite quando o último
representante do Post, de Boston, entrou na sala.

O diálogo começou animadamente com o jornalista a inqurir de Ann Eliza a sua opinião acerca do
mormonismo.

Penso que é uma das maiores fraudes da nossa época respondeu ela secamente, servindo-se de uma
das expressões preferidas de P. T. Barnum.

Depois de inquirir acerca dos antecedentes de Ann Elizai o jornalista quis saber se a maior parte dos
«Santos» eram sinceros na sua crença.

Conheço alguns que são os mais sinceros que é possível declarou Ann Eliza. Acredito piamente
que os jneus pais têm convicções absolutamente honestas e também conheço a Sr.1 Stenhouse que é
uma mulher inteligente ^ que foi uma crente sincera até se convencer, tal como eu, de que tudo
aquilo era falso. Todos nós aceitamos o moriionismo como verdadeiro e só através de grandes
sofrirftentos nos convencemos do contrário.

Existe uma insatisfação geral? quis saber o repórter.

Creio poder afirmar que existem hoje em Salt Lake

uy mais de cem mulheres que se julgam descontentes,

311
como me sucedeu a mim própria antes de me resolver l partir. já

Ann Eliza contou com todos os pormenores a sua fu« descrevendo como apanhara o comboio da
Union Paciá três minutos antes da partida. O repórter interrompe^ para perguntar como é que
Brigham Young lhe permiti! ter hóspedes não-mórmones. Ann Eliza declarou: Jl

Ele faz tudo para ganhar dinheiro ou para conseaJ que as suas esposas lho ganhem. 11

O repórter quis saber mais informações acerca do <fl nheiro de Brigham. Como conseguia ele
manter um haréã Qual o montante da sua fortuna?

Ele possui sete milhões de dólares num banco da ijt glaterra declarou Ann Eliza e as suas
propriedades fl Utah abrangem talvez só por si um terço de toda a regill O seu rendimento mensal
está avaliado em quarenta ni dólares ou até muito mais. Possui as melhores herdades, M da a
espécie de fábricas, serrações, empresas de construçSj e aqueles que aí trabalham são obrigados a
pagar-lhe pel menos um décimo de tudo quanto produzem... A acresça} tar a isto, ele ou os filhos
são donos das companhias de <m minho-de-ferro da zona com excepção da Union Pacifil Os
comboios a vapor das companhias Southern, Central Northern e os carros eléctricos da cidade
pertencem-S também. É impossível viajar em qualquer destas linhas poj sando despercebido.

O enviado do Post quis saber qual o número das espjjl sãs de Brigham. j

Neste momento, são apenas dezanove informei Ann Eliza. Mas há muitas mulheres unidas
espiritual mente a ele para a eternidade.

Seria muito difícil perguntou o jornalista stfj ber-se com quantas mulheres ele mantém apenas
relaçõáj espirituais? m

Para o senhor isso pode parecer difícil, mas ele eSÉ convencido de que Deus sabe quem elas são e
fará com qu| o esperem no outro mundo. t

Depois de ambas as partes terem concordado em q*l O Livro dos Mórmones era uma obra muito
aborrecida, f repórter voltou ao assunto do harém. Como podia Brighaflj distribuir amor por tantas
mulheres de modo a satisfazê-lasí

Em todo o Utah não existe uma dúzia de excepçõe*

312

- reera de que cada homem tem a sua esposa favorita exnlicou Ann Eliza e por aí já o senhor pode
avaliar a infelicidade que este estado de coisas ocasiona.

O repórter referiu-se a Amelia Folsom. Ann Eliza descreveu-a como sendo uma mulher alta, bem
feita, talvez pálida de mais.

E quanto a cosméticos? Acha que ela usa arsénico?

Nunca ouvi dizer isso nem sei nada a tal respeito.


E como é o nariz dela?

Ligeiramente arrebitado. A boca é pequena e os lábios muito apertados traduzem bem a sua força de
vontade, que Brigham tanto receia. Não se deixa espezinhar, e o marido sabe-o bem.

Qual a sua maneira de vestir?

Não tem lá muito bom-gosto. A esse respeito consegue tudo quanto quer, mas falta-lhe a habilidade
para escolher os modelos e as cores que poderiam favorecê-la.

No dia seguinte, quinta-feira, data marcada para a primeira conferência, as entrevistas saíram todas
em massa, anunciadas em grandes parangonas na primeira página, todas a uma coluna. Se a
publicidade bastasse para assegurar o êxito, Ann Eliza podia estar descansada.

Porém, nesse dia, ela não experimentava o menor entusiasmo. Oscilava entre o desânimo e o terror.
A verdade é que nessa tarde toda a sua calma e confiança tinham sido destruídas por um artigo
«infame» conforme ela o classificava publicado primeiro em Chicago e depois transmitido pelo
telégrafo para todo o país.

Ela andara preocupada com o silêncio dos seus inimigos enquanto viajara pelo Missuri e assaltara-a
um mau pressentimento no Wisconsin. Agora, aí estava ele justificado. O artigo era uma descrição
escandalosa da vida particular de Ann Eliza. Aparecera no Times de Chicago, datado de
Bloomington, Fevereiro 17, e vinha assinado por «Um correspondente anónimo».

O «artigo infame» começava num torn inofensivo a descrever os êxitos de Ann Eliza como
conferencista, referindo-se à sua «beleza soberana», às suas formas «voluptuosas e ppulentas» e
reproduzia sumariamente a palestra de Bloo^ington. «Mas tudo isto, caro leitor, é apenas uma
divagaÇao», prosseguia o artigo. «Vamos ao que mais interessa. a* como outras conferencistas no
género, a esposa número

313
dezanove viaja em companhia de um indivíduo que se «fl carrega dos contratos e providencia no
sentido de que «B nhuma Associação dos Jovens Cristãos a prejudique nos j^B cros. Teve porém a
pouca sorte de escolher para agente UM sujeito pândego e atrevido. Chama-se Pond. Andou pj
Wisconsin e intitula-se major. Trata-se na verdade de |B homem bem-parecido, trajando à última
moda e de fall insinuantes. Foi logo notado, tanto pelos hóspedes conl pelo pessoal da Ashley
House, que existia grande familidH dade entre a bela conferencista e o seu agente. À noite, dEB
pois da palestra, as pessoas dispersaram, indo cada um pèH as suas casas, e o par da oradora com o
seu agente par^H hotel os primeiros a imaginarem que o mormonismo |H uma coisa horrível e os
outros a contarem a receita da no|H e a combinarem os contratos futuros. Assim chegaramH Ashley
House e em breve o silêncio reinava em toda a ciJH de. O tempo foi passando e o porteiro da noite
admiravajM de que o major não tivesse vindo pedir-lhe a chave do Jl quarto, pendurada no quarto
da portaria. Na manhã Jl guinte, a criada de quartos e outros membros do pessoal |B hotel
descobriram que o galante major passara a noite coH a sua encantadora conferencista, sem dúvida
sonhando bV los sonhos relacionados com o êxito financeiro que a histfl ria da vida mórmon
certamente proporcionava àqueles QJH se empenham em desvendar as vergonhas e a maldade (H
sistema. iH

«A frágil relíquia do mormonismo e o seu apaixonaaH agente ficaram na cidade até ao dia seguinte.
Depois torflM ram o comboio para Jacksonville onde ela tinha um contnM to para ir contar de novo
a sua pequena história. JB

«E agora aqui vai o mais excitante da narrativa. O c°ÍB dutor do comboio, M. L., um velho fiel
empregado |H companhia, viu os dois passageiros juntos, mas não sab|H que tinham marcado um
beliche em comum. Pois foi o qUB aconteceu; os outros passageiros viram-nos retirar-se jut|9 tos; e,
atrás da cortina, o seu procedimento imoral ficoj| claramente provado em face da conversa que
tiveram eM voz baixa, mas audível, à laia de conferência com o P.31^ corrido. As observações de
Ann Eliza eram do seguintll teor: ”Major, deve ser mais prudente [ste] e se continua «l proceder
assim não tardará em trair-se, e a nossa carreifwl embora brilhante, não será de longa duração.
Portanto querido, deve ter mais cuidado, senão estamos perdidos, l

314 j

”Ai, minha bela mas frágil Ann Eliza, também tu deveias ter sido mais cautelosa, mais prudente, e,
acima de tudo niais virtuosa. Lembra-te de que ainda és esposa legal Ho’grande chefe do
mormonismo. Ainda nenhum tribunal dissolveu os laços que te unem a ele como marido e mulher.
Devias considerar, já que renunciaste à fé e à prática dos mórmones, que a maior jóia entre os
’gentios’ é a virtude e que só os que a praticam obtêm recompensa.”

«Os jovens da Associação Cristã desta cidade agiram de boa fé, julgando-a casta, uma estrela do
mormonismo. Receberam-na, concederam-lhe um terço dos lucros e entregaram-lhe credenciais
assinadas por bons cristãos, o que se explica, visto que aqueles jovens não tinham dinheiro nem
qualquer possibilidade de descobrir a verdade. A notícia confrangedora de que se tratava de uma
criatura duvidosa só foi conhecida depois de ela sair da cidade, e como partia de pessoas cuja honra
e veracidade não está em causa, as quais só a divulgaram no intuito de esclarecer o público acerca
das relações que esta mulher mantém indubitavelmente com o seu belo e apaixonado agente,
transcrevemos estes factos a fim de que os leitores fiquem inteirados do que é o carácter desta
mulher. E também para prevenir todas as comunidades cristãs que poderiam deixar-se iludir com
histórias maravilhosas desta dama de conduta imoral, a frágil mas bela Ann Eliza, esposa número
dezanove.»
Ann Eliza ficou varada com o insultuoso artigo. Quando conseguiu falar, as primeiras palavras que
dirigiu ao major Pond foram estas: «Por detrás de tudo isto está o dinheiro de Brigham Young.»

Contudo tanto ela como o major sabiam que o artigo podia arruiná-los. «Fiquei completamente
desorientada», escreve Ann Eliza, «pois temia que ele pusesse fim à útil carreira que eu
empreendera.» O público de 1874, sabia-o muito bem, poderia aceitar e aplaudir uma mulher que
viesse falar de sexo como um problema religioso. Porém os Seus antecedentes puritanos eram
demasiado recentes para peitar e aplaudir uma mulher que, sendo casada, tivesse repões carnais com
outro homem em quartos de hotel e em ”ienes do caminho-de-ferro. Quer a história fosse verídia
como afirmava Story, editor do Times de Chicago
1uer falsa e caluniosa, segundo Ann Eliza e o major Pond Pr°clamavam em altas vozes, o certo é
que não havia remé-

315
dio senão responder ao artigo. Ou o aniquilavam provai) que era falso, ou Ann Eliza ficava
liquidada como coq rencista. \

Durante essa noite terrível e no dia seguinte, Ann EJj o major Pond e Redpath estiveram reunidos a
deliberar.; biam que não havia tempo para investigar a origem da l tória e desmascarar as pessoas
envolvidas nela, refutandç suas alegações. De facto, só dali a dois dias o major P<j estaria
suficientemente bem informado para contra-ata< De momento, o que lhes interessava era a cidade
de Bi ton. Até que ponto circulara aí o artigo? Pelos vistos já rã lido, mas não por toda a gente.
Redpath mostrava! pronto a arriscar. Em vez de adiar a prova e entretanto C ganizar a defesa de
Ann Eliza, resolveu que se realizas*! conferência de Tremont Temple. Continuava a apoiar Al
Eliza. Se nessa noite conquistassem Boston, isto granjí| -lhe-ia um halo de respeitabilidade, bem
como o apoio < simpatia que a ajudariam na luta durante as semanas i guintes. Embora muito
desanimada, Ann Eliza tambl achava que era melhor aparecer em público. l

Durante a tarde chegaram mais notícias do Médio G te, tão más como as primeiras. Outro artigo do
Times’, Chicago, datado de Milwaukee, contava que VictO Woodhull, durante um discurso acerca
do amor livre, l clarara «ser conhecedora do escândalo». Em seguida Sr.a Woodhull contava ao
jornal que se encontrava Bloomington ao mesmo tempo que Ann Eliza e soub das relações que
havia entre ela e Pond. Não era sua inti cão criticar a colega pelo facto de «pregar uma coisa e fstí
outra». De facto, até a aprovava. As mulheres deviam fâí amor com quem quissesem, quando
quisessem e onde ql sessem. Ann Eliza não procedera mal. No fim de contas < aquilo o amor livre.
1

A confirmação dada por Victoria Woodhull ao escanol Io atingia duplamente Ann Eliza. Mas o que
mais a enfurfj cia era o facto de ela ter mentido ao dizer que se encontí| vá em Bloomington ao
mesmo tempo que Ann Eliza* Pond. ;

As probabilidades de êxito em Boston pareciam n** fracas do que nunca. Ao escrever acerca dessa
crise, a& anos mais tarde, Ann Eliza ainda se sentia estremecei «O escândalo foi publicado na
véspera da minha primei*

316

actuação em Boston e eu estava muito preocupada, receando que me prejudicasse os planos nessa
cidade. Queria que a minha visita ali fosse um êxito, pois sabia que se causasse impressão favorável
isso abrir-me-ia a porta da Nova Inglaterra. E era aos seus fortes e leais habitantes que eu ia pedir
auxílio para a minha cruzada. Os meus novos e bons amieos tinham-me ensinado a considerar a
Reforma e a Nova Inglaterra como sinónimos... Porém, depois do ataque do iornal de Chicago,
considerava o fracasso como uma certeza.»

Num estado de espírito vizinho do colapso, Ann Eliza aguardava a hora de ser julgada. Por fim,
encheu-se de coragem, arranjou-se, vestiu-se com a ajuda de Miss Storey, e dirigiu-se na companhia
de Pond e de Redpath para o Tremont Temple. Sentia-se ainda mais aflita do que em Denver.
Aproximou-se do auditório com o mesmo optimismo que sentiria uma aristocrata ao entrar no carro
que a conduzisse à guilhotina. Mas, tal como em Denver, esperava-a uma surpresa.

O Tremont Temple estava cheio como um ovo por uma multidão de duas mil pessoas.
Encontravam-se ali as melhores famílias da cidade. Nenhum rosto, naquele mar de gente, traduzia
antagonismo. Enquanto esperavam que surgisse a estrela da noite, as pessoas de Boston mostravam-
se simpáticas ou neutras.
Poucos minutos depois das sete e meia, os vendedores de programas deixaram de circular pelas
coxias. James Redpath conduziu Ann Eliza ao palco, deixou-a sentar-se e dingiu-se à boca de cena.
Saudou a multidão e explicou:

Deixei os meus afazeres para vir apresentar a Sr.a Young, pois é esse o meu dever como cristão e
como director do Lyceum.

Passou em seguida a elogiar a virtude da oradora, bem como a sua coragem e competência.
Censurou o Governo rederal pelo facto de protelar a sua acção contra a poligamia. Pediu ao
Congresso que legislasse em tal sentido. O Partido Republicano prometeu, aqui há anos, ocupar-se
desse trabalho, bem como da abolição da escravatura, pois ambas constituem uma relíquia do
barbarismo. Apelo para as senhoras de Boston pedindo-lhes que se interessem pelo caso e não
descansem enquanto a sua petição n*> for atendida.

lor fim apresentou Ann Eliza Young.

tsta ergueu-se vagarosamente e encaminhou-se para a

317
mesa. Rebentaram os aplausos e ela inclinou-se modest» mente e em silêncio. Uma senhora que
estava entre a assxl tência escrevia depois à primeira Sr.a Webb, para o UtdB «Quando a Sr.a
Young se ergueu e aproximou da platafqM ma a mesa escondera-a da minha vista até ali mal ul vi
o rosto e ouvi a voz, o meu coração comoveu-se, chdl de simpatia por ela, não em virtude das
nossas relações <9 amizade, mas pela sinceridade e pureza, pela simplicidadeH aprumo feminino
que revelava.» jM

Pelos vistos, esta opinião era partilhada por muita geifl te. Aquelas duas mil pessoas ali presentes
estavam suspenl sãs nas palavras de Ann Eliza. Contava aquela história pefl vigésima segunda vez,
mas agora não tinha a noção de fl estar repetindo, pois a sua carreira e o seu futuro de uma maneira
geral dependiam do efeito desta narrativa. !

Voltou a descrever a vida de casada com Brigham. < A certa altura a minha mãe adoeceu e ele quis
mats» dá-la embora contava Ann Eliza à assistência. Eu niB consenti nem deixei que a minha mãe
se apercebesse do d|B sejo dele, pois de contrário não quereria continuar ali. Seal tia-me
desprezada, insultada e humilhada sob todos os à$9 pectos e considerava-me incapaz de despertar
de novo m

interesse do meu marido. Podeis perguntar por que motrvB

inr ” i 1H

casava ele com tantas mulheres para as votar em seguida aU

desprezo. Só posso atribuir isso à sua vaidade. Ele desejai» mostrar que, embora velho, ainda podia
casar com muihe« rés jovens. Durante dois anos não saí à rua meia dúzia da vezes. A Utah Relief
Society deu certa noite um baile-’,w| Brigham veio buscar-me, na companhia de outra das sua$|
esposas, para assistir a ele. Senti-me aborrecida por me vira buscar juntamente com outra, mas não
disse uma palavraíl A minha intenção foi sempre dar a entender que não mil importava. Assisti a
duas dessas reuniões tão divertidas. Emf vista desta atitude, comecei a aperceber-me da falsidade,
cM má fé e da mesquinhez que ele revelava e passei a experi-J mentar graves dúvidas quanto à
verdade da fé, acabandfli por perder a saúde, que até ali era boa. _ l

Quando Ann Eliza chegou à altura de contar ao público»! a sua deserção, afirmando «Cheguei à
conclusão de que, sefj pudesse arranjar-me sozinha, seria livre», as duas mil pés- ; soas presentes
romperam em aplausos.

Ao cabo de uma hora e vinte minutos terminou aquela difícil prova.

As ovações foram estrondosas. As pessoas saltavam pa-

318

a o palco. Na plateia, Pond estava espantado. Centenas de nessoas vieram felicitar Ann Eliza. A
senhora que depois escreveu à mãe dela dizia ainda nessa carta: «No fim da conferência quis subir
ao palco para falar à Sr.a Young, mas a multidão era tamanha que não o consegui e ela acabou por
se ir embora.»

Ann Eliza saiu quase sem por os pés no chão. «Quando a conferência acabou senti que as minhas
esperanças se tinham realizado e que a Nova Inglaterra se abria na minha frente.» Se assim era,
confessava ela, devia tudo isto a James Redpath. A sua apresentação «tão amável, tão animadora,
tão generosa e também tão justa» inspirara-a, na verdade, a falar bem.

No dia seguinte os cinco jornais de maior categoria de Boston confirmavam a sentença. Todos à
uma a tinham apreciado, lamentado, e agora louvavam-na sinceramente. Redpath concordava com
Pond em que a sua pupila alcançara um «grande êxito». Contudo, para aproveitar bem esse êxito,
necessário se tornava ilibar-lhe a reputação. Pois, tal como Redpath previra, o escândalo não
chegara ao conhecimento de todos antes da noite da estreia. Agora o público em geral iria tomar
conhecimento dele e, embora o êxito alcançado em Boston lhe garantisse uns restos de simpatia e
apoio, era obrigada a responder às acusações formuladas contra ela antes de ir mais além.

Na semana seguinte à primeira conferência de Chicago, a calúnia do Times era transcrita pelos
jornais das maiores cidades do Leste. Também se difundira pelo Oeste, sobretudo em Salt Lake
City, onde fora publicada a 24 de Fevereiro, cinco dias depois da conferência de Boston. O Herald,
de feição pró-mórmon, reproduzia-a na íntegra, sob uma chusma de lúgubres cabeçalhos. O
primeiro era do seguinte teor: ANN ELIZA APAIXONADA. O segundo: A DECIMA NONA E
POUCO HONESTA PARCELA DE BRIGHAM YOUNG. O terceiro: ALGUNS INCIDENTES
ESTRANHOS E CHOCANTES DA SUA

CARREIRA NOS ÚLTIMOS TEMPOS, o quarto: DE-

l OIS DE SE LIBERTAR DA POLIGAMIA NO UTAH, fLA NAVEGA AGORA NUM «LAGO»1


DE AMOR ILÍCITO.

/», az-se aqui um trocadilho com a palavra pond, em inglês lago ”v aã T)

319
O Tribune, jornal antimórmon, ainda fiel a Ann Elj editava uma versão mais atenuada. No entanto,
o prirni cabeçalho dizia: GRANDE SENSAÇÃO. O segun ANN ELIZA E O MAJOR POND
SOFREM DISSAI RÉS. O terceiro: SENSACIONAL REPORTAG ACERCA DE CERTOS
FACTOS REPROVÁVEIS, quarto: ONDE IREMOS NÓS PARAR? Nos seus mentários, o Tribune
tentava jogar pelo seguro. Talvfi história não fosse verdadeira. «Aconselhamos o leitor a* tar um
pouco de sobreaviso. Sabe-se que o casal tem anj do sob vigilância desde o início do seu ciclo de
confeí cias. O objectivo disto era suscitar qualquer escândalo inutilizasse o trabalho da Sr.a Young.
Temos provas disj Contudo era possível que fosse verdade. Por isso, o Tri ne acrescentava: «Dentro
de um ou dois dias saberei mais informações. No entanto, se se provar a culpabilicj do casal,
esperamos, mais cedo ou mais tarde, deitar a i ao nosso apaixonado major para lhe ornamentar os
esbe flancos com alcatrão e penas. Quanto à dama, é mais p lamentar do que para acusar. Vítima
apenas de um falso tema, foi criada numa escola de luxúria e libertinagem, e melhante fim afigura-
se-nos o corolário adequado de, ensinamentos.»

De Salt Lake City, o reverendo Stratton escreveu a J Eliza e ao major Pond, informando-os de que
ele e alg amigos estavam tentando por todos os meios granjear-: as boas graças da opinião pública,
mas tudo dependia informações que chegassem de Bloomington. «Não im nem que nenhum de nós
ficou impressionado ou vai ouvidos a esta nova fase da oposição», escrevia o rever do. «Os jornais
mórmones ficaram aterrados com os es» cos levados a cabo no sentido de assegurar a acção do Cíí
gresso e não hesitarão diante seja do que for capaz de | amesquinhar a mim, ao juiz McKean ou a
quem quer <| se lhes afigure seu antagonista.» ]

Em Boston, tanto Ann Eliza como o major Pond Qj viam já iniciado a sua defesa contra o Times de
Chicag Não ignoravam, claro está, que o Times era useiro e vez< ro em processos desta natureza.
Quando do escândalo Be1 cher-Tilton, esse jornal dedicara uma coluna inteira à de crição da Sr.a
Beecher, pintando-a como «um monstro í luxúria e deboche». Quanto a Tilton, o Times interrogai

320

Victoria Woodhull acerca do atrevido editor, respondendo ela o seguinte: «Tenho obrigação de
conhecer bem o Sr Tilton, pois foi meu amante pelo espaço de mais de meio ano... Estivemos tão
apaixonados que não nos separávamos nem de noite nem de dia. Durante três meses dormiu sempre
nos meus braços.» É preciso acrescentar que tanto o Sr. Tilton como Victoria Woodhull tinham sido
casados, mas não um com o outro.

Ann Eliza e o major Pond iniciaram então um tiroteio de cartas destinadas a neutralizar os prejuízos
causados pelo Times. Por outro lado, tentaram investigar os factos que estavam na origem do
escândalo, ao mesmo tempo que se esforçavam por granjear amigos dentro de outros jornais
capazes de lhes defender a reputação.

A 21 de Fevereiro de 1874, o major Pond endereçou ao seu amigo, o jornalista Culver, uma nota
para sair na primeira página:

Meu ca.ro, calculo que tenha conhecimento do ataque indecente de que eu e a Sr.” Young fomos
vítimas da parte do Chicago Times, no dia 19. Não posso imaginar qual fosse o objectivo disso, a
não ser que por detrás de tudo se encontre a influência, dos mórmones. Se dispusesse de dinheiro
poria imediatamente uma acção por difamação contra o jornal. Peco-lhe que utilize as suas páginas
para defender uma senhora que é das mais honestas que jamais existiram. Há muito que eu esperava
ser apunhalado pelas costas por Brigham, mas ignorava como me iriam atacar. Posso fornecer-ihe
todas as provas acerca do procedimento da Sr.” Young e também do meu. Isto é um assunto da
máxima urgência. Sinceramente ao seu dispor, J. B. Pond.
Embora Ann Eliza confiasse a sua defesa quase inteiramente ao major Pond, mesmo assim lançou
mão da pena Para proclamar a sua castidade junto da Sr.a Culver, mulher do jornalista:

{-ara Sr.” Culver, sem dúvida deve ter lido aquele horrí-

**rtlgo do Chicago Times. Fiquei de cama desde que o

* rói para mim um choque tremendo, tão inesperado co-

ln]usto. O major Pond escreveu e enviou alguns artigos

a ° S£u marido, mas ainda não obteve resposta. Ando

321
preocupadíssima. Oh, minha cara. Sr.” Culver, não acret na. minha culpabilidade neste caso
horrível! Tenha cariei e dentro de pouco tempo conseguirei provar que estou i cente. Possuímos as
provas mais indubitáveis de que é ti falso. Sinto-me tão cansada de vencer dificuldades que*, go a
desanimar. Afigura-se-me que todos são meus ’ini gos, prontos a achar-me capaz de qualquer
indignidade, pocrisia ou crime. A senhora é uma mulher e portanto seus sentimentos devem levá-la
a compreender até que p to tenho sofrido com esta horrível acusação.

Chegam-nos constantemente cartas de Bloomington

sentido de que a Associação dos Jovens Cristãos anda a

zer investigações sem contudo, até hoje, haver encontr^

algo de positivo. Descobriram o homem que escreveu o 4

go e ele está pronto a retractar-se no Times, se o deixan

Marsh afirma que fará sair na íntegra a nossa justifica^

Andamos a tratar de pôr uma acção ao jornal. Sei que a

Woodhull voltou a atacar-me em Milwaukee com as tk

descaradas mentiras. Afirma que se encontrou comigo (

Bloomington e que sabia tudo acerca do escândalo, mas)

quis atirar-me a primeira pedra pelo facto de eu anda

pregar uma coisa e a praticar outra. Ela própria afirma «

de acordo com essas práticas. Creio já lhe ter falado da. t

tativa que ela fez para contactar comigo em Burlington,’

Iowa, e de eu ter recusado. Agora vinga-se desta mane

Ela encontrava-se no Nebrasca quando eu fui a Bloomí

ton. Ando sempre com uma dama de companhia que 3

me abandonou por mais de cinco minutos desde que de\

Salt Lake City. Ocupamos sempre a mesma cama. >

Evanston, no Ilinóis, arranjei outra dama de compan

que ê uma verdadeira senhora e todos simpatizam mlt

com ela. Tem cerca de trinta e quatro anos, e pode-se con


derar, portanto, uma solteirona,. É uma boa enfermeira

ajuda-me de todas as maneiras possíveis. É Miss Ruth St

rey e foi grande amiga da falecida Sr.” Pond. A filha

major Pond ficou em Evanston para frequentar um colé±

Alcancei um grande êxito em Boston, tendo ali conquistt

bons amigos. Ninguém lá acredita nesta história. Envio-

um pequeno folheto a meu respeito publicado pelo Sr. Rf

path, contendo excertos dos jornais de Boston. Por fa&

responda-me, nem que seja só em meia dúzia de Uni.

Confiando que me acredite, sou a sua sincera amiga, Alt

Eliza Young. (

322

No espaço de tempo que mediou entre o artigo enviado ao Sr. Culver pelo major Pond e a carta que
Ann Eliza escrevera à mulher, fora levada a efeito uma profunda investigação acerca do escândalo.
A pedido do major Pond, a investigação era conduzida pelo Dr. B. P. Marsh, presidente da
Comissão de Conferências da Associação dos Jovens Cristãos de Bloomington e por W. W.
Wallace, secretário correspondente da mesma associação. Enquanto estes dois faziam de Sherlock
Holmes em Bloomington, Ann Eliza contratava um tal Leonard Swett, provavelmente um
procurador, para tratar do assunto em Chicago. No Kansas, C. N. Shaw, editor do jornal
Commercial, de Leavenworth, e no Utah o pessoal do Tribune, de Salt Lake City, resolviam por seu
lado investigar os factos que pudessem apurar como certos.

Antes de prosseguirem as investigações, todas as partes exigiram uma confissão sincera e clara da
parte de Ann Eliza e do major Pond acerca das suas exactas actividades em Bloomington e no
comboio para Jacksonville. Numa série de cartas-abertas dirigidas aos jornais, o major Pond,
falando em seu nome e no de Ann Eliza, dava a versão de ambos acerca das duas noites que
estavam em causa.

No dizer de Pond, assistira à primeira conferência de Bloomington na companhia de um amigo de


Salt Lake City que ali se encontrava em férias e que ajudara Ann Eliza na sua fuga no ano anterior.
Era o coronel J. H. Wickizer. Terminada a conferência, deviam ser umas dez e meia, os dois
homens acompanharam Ann Eliza e a filha do major l ond a Ashley House, e em seguida retiraram-
se para os aposentos privados do major Pond que ficavam contíguos
7- fazia muito «frio» no quarto, nessa noite, recorda o major , e ali ficaram a conversar. Depois, os
dois amigos separaram-se e cada um foi para a sua respectiva cama. A afirmação publicada no
Times de que a chave do quarto o major Pond não fora utilizada era inteiramente falsa.

do
Na noite seguinte, em Bloomington, acabada a conferencia, quando o trio se dirigiu de comboio
para JacksonP’ A Eliza encontrava-se «tão doente» que o major

°nd «teve de lhe prestar assistência toda a noite» até chegarem ao seu destino. Era esta
provavelmente a explicação as visitas que o major teve de fazer ao beliche da sua lente durante a
noite. Numa palavra, ele desempenhara o

323
papel de Florence Nightingale e não o de Casanova. A| disso, declarava Pond, não se encontrara
durante o perctt com o condutor do comboio, pois este estivera sempre a d mir no seu cubículo e só
o vira à chegada a Jacksonville, B oito da manhã. O único empregado que Pond avistara diy te a
viagem fora o criado negro que viera fazer-lhe a ca Em Salt Lake City, o Tribune obtivera
confirmação melhante da parte de um amigo anónimo de Blooming que fizera de espião junto do
editor, acabando por apt que as acusações de mau comportamento dirigidas a i Eliza, eram
«gratuitas e infundadas». Essa tal pessoa aã centava: «Existe uma pequena congregação de mórmq
aqui nas vizinhanças e julga-se que foram eles os instiga rés do correspondente do Times.»

Entretanto o Dr. Marsh e o Sr. Wallace, da Associai dos Jovens Cristãos de Bloomington, agiam
com rapid* eficiência. Descobriram que a calúnia partira de uma l bearia, alguns dias após Ann
Eliza ter abandonado a d de. Um certo freguês fazia comentários acerca da beleza Ann Eliza,
afirmando que o major Pond «era um tipo à sorte». O condutor do comboio de Jacksonville, ali preí
te, concordara, acrescentando: «O empregado do comb diz que ele dormiu no beliche dela durante a
viagem C acredito.» O boato espalhou-se e chegou aos ouvidoás um repórter do Pantagrapb, de
Bloomington «jornal mocrático local» , que o publicou à laia de comentári o enviou ao editor Story
do Times, de Chicago. Este fi encantado com o original que lhe vinha parar às mãos, { era grande
admirador de Brigham Young, que um dia <S giara como sendo «um homem de urna
inflexibilidade a da a prova, de extraordinárias capacidades e dotado de M notável bom humor». J

Tendo apurado a origem do escândalo, o Dr. Marsh J tirar explicações ao repórter traidor de
Bloomington. *R negou», escreveu o Dr. Marsh a Pond, «mas eu insisti, im midei-o, obrigando-o a
confessar-me todas as informaçõffl que estão na origem daquilo que afirma. O artigo foi es<3| to
com fundamento numa conversa de taberna, mas_« fundo disso está o comentário do condutor do
comboi* Este, ao ser interrogado, bem como o porteiro da AshW House, negaram terminantemente
ter tido qualquer intert* rência no repugnante boato.

324

Em Chicago, o investigador que trabalhava por conta je Ann Eliza, Leonard Swett, comunicou-lhe o
que apurara Escreve ele: «George C. Bates, um advogado mórmon

que goza

de má fama e é dono de uma fortuna de vinte mil

cjólares, convenceu o jornal a publicar o artigo que teve a sua origem na imaginação malévola desse
senhor.»

Embora as partes culpadas, se acaso o eram, nunca fossem levadas a tribunal, pelo menos as
investigações serviram de alguma coisa. A pedido de Redpath, o Dr. Marsh e o Sr. Wallace
escreveram um elogio delirante acerca dos talentos de Ann Eliza e acrescentaram-lhe uma
afirmação contundente:

«Uma vez que certos boatos tendentes a denegrir a reputação da Sr.a Young têm sido largamente
divulgados por certas personalidades nisso interessadas, e como esses boatos visavam a conduta
dessa senhora enquanto permaneceu nesta cidade, investigámos os ditos boatos, tendo chegado à
conclusão de serem inteiramente falsos; por isso, a nossa associação não possui qualquer motivo
para desmentir, seja de que maneira for, o que acima fica dito.»
À maior parte dos jornais da nação deram-se por satisfeitos. O Commercial, de Leavenworth,
anunciava que as declarações escandalosas «acerca do major Pond e da Sr.a Ann Eliza Young eram
sensacionalistas e falsas sob todos os pontos de vista». O Mirror, de Denver, escrevia: «A recente
exposição, como lhe chamaram, do Times de Chicago, acerca da conduta que considerava indigna
da Sr.a Ann Eliza Young, a mormon, constitui um acto repreensível e cruel, uma autêntica nódoa
para um jornal com pretensões a integridade. A ânsia de agradar a um público de gosto depravado
levou o Times a servir-se da sua grande expansão Para esmagar uma mulher indefesa. Agora prova-
se que a história não tinha fundamento...» O Tribune, de Salt Lake ^ty, convencido de que o
escândalo era provadamente «urna mentira e uma calúnia», atacava o editor que o publicara:
«Storey [sic], editor do Times, foi publicamente chio.teado na rua como difamador. Ele é por
natureza uma rnatura cínica, atrabiliária e fria; posto à margem pela sua ac.a, vinga-se disso por
meio de um ódio feroz.» c major Pond havia ameaçado tanto o Times, de Chiku8°’. c°mo o Herald,
de Salt Lake City, de os levar aos trinais se não se retractassem. Não há provas de qual-

325

3unais
quer deles o haver feito, mas nem por isso o major Pd levou a sua ameaça por diante. \

Em Salt Lake City, o facto de o Herald não ter pe< desculpas não causou impressão em ninguém, a
não ser Chauncey Webb, pai de Ann Eliza. A 16 de Março
1874, dirigiu uma carta ao proprietário desse jornal:

Meus senhores, no vosso jornal foram publicadas A mas informações falsas e difamatórias a
respeito da rrn filha Ann Eliza Young, que muito lhe prejudicaram a n tacão e causaram grande
desgosto aos seus amigos. A f, dade de tais declarações foi cabalmente provada, sem q» senhores
tivessem a honestidade nem a hombridade â desmentir. Escrevo-lhes a exigir uma total e justa retrd
cão das falsas alegações publicadas, e que esta, seja tão vulgada como o foram as vossas
escandalosas acusações, modo que o nome da minha filha fique ilibado das vis \ nuações de que foi
vítima. <

Peço o favor de uma resposta urgente. Subscreva muito atenciosamente, C. G. Webb.

Chauncey esperou durante semanas sem receber q quer resposta, até que, furioso, enviou uma cópia
da < ao Tribune, que sempre se revelara mais favorável a ; Eliza:

Sentindo-me no dever e na obrigação de proteger a i rã da minha filha, escrevia ele, e de ilibar a sua
reput* das vis calúnias propaladas por difamadores sem princípt pessoas da mais baixa estirpe que
vendem a sua, dignià por menos do que um -prato de lentilhas, rogo-vos que bliquem esta carta,
bem como o pedido que dirigi ao : raid, e que envio juntamente, a fim de que os vossos leit possam
compreender bem os sentimentos de um pai quA vê a sua filha atacada por indivíduos piores do que
assd nos. Que se envergonhem esses cobardes capazes de <*| nhalar pelas costas uma senhoral ’

Nunca se esclareceu se esta correspondência de Chaí cey fora apenas inspirada por um impulso de
amor paterl pela filha ausente ou se seria fruto de um pedido dês O certo é que a atitude do pai
comoveu profundam^1

326

Ann Eliza* mas deixou ficar impassíveis tanto o Herald co-

mo o Times, de Chicago.

fjlti <- - - ;. « ....

Apesar do apoio total que a Associação dos Jovens Cristãos dera a Ann Eliza e do bom acolhimento
que ela tivera da parte da Imprensa, James Redpath não se deu por satisfeito. Ao assinar contratos
para novas conferências, veio a saber que algumas comissões de várias cidades haviam recebido,
ignorando quem lho enviava, o número do Herald de Salt Lake City onde o «artigo que originara o
escândalo vinha sublinhado». A origem disto afigurava-se clara para Redpath. Acusou então
publicamente Brigham Young de participar nesta guerra surda. Ao verificar que algumas comissões
mais pusilânimes se mostravam impressionadas com a leitura desses factos já ultrapassados,
Redpath resolveu publicar um volumoso panfleto intitulado A Calúnia Mormon. Era constituído
sobretudo por cartas da autoria do Dr. Marsh e do Sr. Wallace, nas quais o nome de Ann Eliza era
ilibado.

Contudo, de uma maneira geral, esta vaga de escândalo pouco efeito veio a ter na futura carreira de
Ann Eliza. Após o êxito da primeira conferência em Boston, Redpath e Pond dirigiram-se a todos os
jornais, mostrando francamente o artigo publicado no Times de Chicago aos editores que ainda o
não conheciam. Todos eles, refere Ann Eliza, se comportaram como perfeitos cavalheiros.
«Afirmavam que semelhante história, partindo de onde partia», escreve Pond, «representava apenas,
aos olhos dos cidadãos da Nova Inglaterra, um elogio ao carácter da Sr.a Young.»

Animado por uma nova confiança, Redpath marcou a segunda e a terceira conferências de Ann
Eliza, respectivamente, para o Tremont Temple e para o Horticultural Hall. A segunda, acerca da
poligamia em geral, realizou-se a 24

e revereiro, perante uma assistência «relativamente vasta».

robora doente e apesar de todos a aconselharem que ’asse a palestra, Ann Eliza não desistiu, sendo
no rim rau«o aplaudida.

^° dia l de Março, proferiu pela primeira vez a sua terra conferência que há muito andava
escrevendo. Sob o nQU.° *A Religião Mórmon», constava esta de uma permeiam’ a Descrição
da história, dos costumes e do comporento dos Mórmones, acompanhada de copiosas inforescut*65
a resPeito dos chefes da igreja. A assistência tou, absorta, o retumbante final de Ann Eliza:

327
Parecer-vos-á estranho que, outrora partidárij Igreja Mórmon, venha criticar tão severamente os
seus fés e os seus costumes. Mas quem poderá ser melhor nesta causa do que uma pessoa que toda a
vida foi esn) da e atormentada pelos seus ensinamentos; que ultimao te se viu amargurada e
vilipendiada pelas suas práticas c ainda tem presente o horror e o pesadelo que lhe ferirs alma?...
Nunca conheci outra fé e ensinaram-me que era o último e o melhor dom de Deus. Nunca tive a p
bilidade de comparar. Não me atrevia a duvidar. A< sistema devia estar certo e, quando tinha
dúvidas, ac que o defeito era meu. com a divulgação da influi «gentia», surgiram outros padrões de
religião. Foi es época das dúvidas e oscilações, de luta e agonia, e finali te de triunfo. E, agora,
como poderei eu venerar uma gião que me torturou e escravizou? Da mesma forma q prisioneiro
não consegue amar a masmorra nem o c abraçar a corrente. Finalmente, sou livrei As
amarrastencem ao passado e alegro-me com a minha libert! Encaro esse falso sistema tal como
realmente é, desprez seus erros monstruosos e espero desprezá-los sempre, vez mais. Vejo ainda
outros, sujeitos a essa servidão,, quanto o público os olha com indiferença. Por isso’ consagro à
tarefa de denunciar o logro, de sacudir a ap de fazer ouvir, o mais longe possível, a minha voz e oif
o meu exemplo de modo a despertar todos aqueles qt encontram dominados pelo abraço da morte.

Depois da recente perseguição que sofrera, o estile Ann Eliza ganhara mais força e convicção. Esta
mud não passou despercebida ao público. O Journal, de Bo! felicitava-a num artigo de fundo assim
intitulado: l NARRATIVA APAIXONANTE.

Dali em diante, Ann Eliza tornou-se o ídolo de Bos Por mais três vezes, em Março e Abril, teve de
se exibi Horticultural Hall e no Wesleyan Hall, perante salas í’t nhã que lhe manifestavam o seu
entusiasmo. Semelhai êxitos, bem como a crescente simpatia que despertava aq Ia frágil mulher tão
maltratada pela hierarquia mórfli^ traziam a Redpath catadupas de pedidos de contratos, *1 dos da
Pensilvânia, de Nova Iorque e da Nova Inglate|> Tanto Ann Eliza como Pond apressavam-se a
aceita-»

Ann Eliza entrava de novo em plena actividade.

328

contratos para South Boston e Springfield, no Massachusetts, para Titusville e Filadélfia, na


Pensilvânia, e Williamsburg, na Virgínia, eram igualmente favoráveis. A série de triunfos
alcançados culminou numa conferência, a que presidiu o vice-presidente dos Estados Unidos, Henry
Wilson, homem de sessenta e dois anos, que antes fora sapateiro e depois senador. Wilson felicitou
calorosamente Ann Eliza e declarou-lhe que ela iria sem dúvida fazer muito bem.

Dali a menos de duas semanas, a 2 de Abril de 1874, Ann Eliza chegava pela primeira vez à cidade
de Nova Iorque.

A maior comunidade da América contava na altura para cima de um milhão de habitantes. Era o
campo de acção de William Marcy Tweed, de Henry Ward Beech, de Phineas T. Barnum, de Jim
Fisk e de Horace Greeley e, ao mesmo tempo, o lugar de exibição de qualquer fenómeno, teatral ou
de outro género, que aparecesse no país. Ao atravessar Nova Iorque de carruagem, Ann Eliza ficou
sabendo que o teatro de Niblo’s Garden apresentava Frank Mayo em Davy Crockett, o Collosseum
exibia um Ciclorama de Paris à Noite, na Academia de Música cantava-se uma ópera italiana, no
Booth’s Theatre actuava Adelaide Nelson em Romeu e Julieta e no Association Hall podia assistir-
se à audição de um coral de raparigas escravas cantando melodias do Sul e que se intitulava The
Caroline Singers. Se acaso Ann Eliza receava não estar à altura de poder competir com tão grandes
atracções, esses receios dissiparam-se no momento em que chegou à Astor House. A imprensa
aguardava-a.
Nessa noite consentiu em receber o repórter que representava o Herald, de Nova Iorque. Envergara
para isso o seu vestido de seda preta com folhos no decote.

Ouvi dizer, minha senhora, que a conhecem pelo nome de Sr.a Young, que é a esposa número
dezanove e que tem a correr um processo de divórcio contra o Profeta mormon.

L E certo, intentei uma acção de divórcio junto do Tribunal Distrital dos Estados Unidos do Utah e
pedi uma pensão alimentar. Surgiu porém uma dissidência entre os ^punais territorial e federal neste
caso. Chamo-me Ann ’za Webb e nasci em Nauvoo, no Ilinóis. Vivi cinco anos Casada com
Brigham Young, mas não tenho filhos dele. Ti-

4°ls de um casamento anterior.

e UeP°is de explicar por que se casara com Bngh.im Young por que motivo o deixara, passou a
outros assuntos:

329
«Quanto ao facto de Ann Eliza desistir da sua vind Washington, nem pensar nisso. É esse o seu
principal! jectivo. Há-de aqui vir e falar, ainda que Brigham tenhal tecipadamente subomado todos
os jornais e todos osjf pórteres. |

«Se eu acreditasse que a história posta a correr tia qualquer fundamento, ter-me-ia imediatamente
desligj dessa senhora. Mas fazê-lo nestas condições seria urnal bardia. 4

«Não tenho a intenção de me deixar dominar por Bi ham Young e alimento a esperança de que os
senhcrf após madura reflexão, tomarão a mesma atitude não ceffl do em face dos seus emissários.» í

Depois de ler esta mensagem, a associação, até ali rea sã, enviou o seguinte telegrama a Redpath: a

MANDE SEGUIR A SENHORA YOUNG NA DATA COMBINAI

Ann Eliza, acompanhada pelo major Pond, por M

Storey e trazendo consigo credenciais do presidente GoÈ

e de James G. Elaine, orador na Câmara dos Represent!

tes, chegou a Washington num belo dia de Primavera, 131

Abril de 1874. Aguardava-a o general Maxwell, seu vá

amigo de Salt Lake City, que se encontrava em Washing!

a lutar pelo lugar no Congresso que perdera em favorl

George Q. Cannon. 18

O general Maxwell acompanhou-a imediatamente à $1

de Recepção das Senhoras na Câmara dos Representai»!

Nesse momento, os seus componentes travavam acesa fl

cussão e quem ocupava a tribuna, de martelo em pun»

era James G. Elaine, um sujeito magrinho e de barbas brffl

cãs, antigo editor, um dos fundadores do Partido Reputa

cano e que iria perder dois anos mais tarde a candidatursi

presidência desse partido. Ann Eliza mandou-lhe entregi

o seu cartão de visita juntamente com uma carta de apgj

sentação. Elaine leu o cartão e depois ergueu-se. O m^rm

Pond nunca esqueceria a cena que se seguiu: «Ele levante»


-se e veio apertar-lhe a mão. Talvez tencionasse, como!

via pela sua atitude, mostrar-se um pouco jocoso e f°’í>j|

zão, mas logo viu que ela era uma senhora, uma mulbfl

que lutava por uma causa, com toda a sinceridade, e i$»l

despertou-lhe o interesse. Não regressou ao seu Iug8*

mandou que outro o substituísse. Dentro de instantes, **

332

uém entrou no gabinete do orador e não tardou que a sala ficasse cheia com os representantes do
Congresso.»

Estes continuaram a sair em massa da Câmara dos Oradores, rodeando Ann Eliza, pedindo todos à
uma para lhe serem apresentados. Um destes, regressando à sala das sessões, correu para junto de
George Q. Cannon e segredou-lhe:

Acabo de estar com a Sr.a Young. Cannon, empertigando-se, inquiriu:

Ela falou-lhe a meu respeito?

Falou, sim.

Só disse mentiras, calculo.

Não, não me disse mentira alguma. Cannon voltou as costas e saiu da sala.

Neste momento, Ann Eliza estava passando para as mãos dos membros do Congresso várias
fotografias de esposas polígamas a fim de que obervassem bem os estragos causados pelo sistema
naqueles rostos outrora atraentes. Alguém sugeriu que ela fosse convidada para assistir à sessão.
Elaine conduziu-a galantemente pelo braço lá para dentro. «Seguiu-se um tumulto dentro da sala e
ela foi ovacionada durante duas horas. Todos queriam vê-la e ouvi-la.»

Na noite seguinte, 13 de Abril de 1874, Ann Eliza fez uma palestra intitulada «A minha vida sob a
escravatura mórmon», perante uma sala cheia onde predominavam os representantes do Congresso
e outros membros do governo com as respectivas esposas.

As palavras de abertura diferiam do texto habitual. Em vez deste, leu o seguinte:

Sei que vieram escutar-me movidos pela curiosidade, ignoro o que haja de curioso no facto de eu
ser a décima nona esposa de Brigham Young. A poligamia é sancionada Por vós nos conselhos
nacionais. Uma vez que se encontra aqui George Q. Cannon, um polígamo do Utah, que posSUl
1uatro esposas e está sentado ao lado dos delegados dos outros territórios, todo o Congresso é
responsável por um Astenia que torna possível a pluralidade de esposas no territono mórmon.

s- 5st?s Palavras granjearam-lhe logo toda a atenção da as-


a ’^nija ^a^ a nora e rneia ela era a figura central de toda

ade de Washington. com excepção do Chronicle, que

333
Cannon levara a publicar uma reportagem burlesca acewl

da conferência, a imprensa mostrava-se unânime em Ihesl

cer elogios. ]1

A notícia alastrou^-se e chegou à Casa Branca. Quai«|

Ann Eliza., sempre vestida de seda negra, se viu diante ,]

nova multidão antes de proferir a palestra «A poligamia,B

como é», distinguiu num camarote de boca os rostos grajS

do presidente Ulysses S. Grant e da sua vesga esposa, Juil

rodeados pela comitiva e pelo serviço secreto. ||

Se alguma vez ela necessitara de inspiração, era precisí

mente agora. Enquanto os aplausos prosseguiam, começai

A poligamia entre os selvagens e os turcos não r|B

choca de modo especial. Ela harmoniza-se com a sua refl

gião e com as suas condições de vida. Nos Estados Unidal

porém, para a mentalidade americana, constitui um fadl

revoltante. Se a considerarmos do ponto de vista geograB

co, é um visitante indesejável. Do ponto de vista histórwH

trata-se de um anacronismo. Vista à luz das nossas idqB

civilizadas e cristãs, é uma feia excrescência. Poligamia nl

Estados Unidos! Poligamia entre os anglo-saxões! QufjB

possuiria a imaginação suficientemente delirante para c<|B

ceber uma ideia destas? Quem seria bastante atrevido BaB

inaugurar a sua prática? E, acima de tudo, como seria pJM

sível uma coisa destas sob a capa da religião? Existe elaJJ

verdade entre nós ou tratar-se-á simplesmente de histónM

fantásticas que nos vêm do Utah, sem qualquer rel?wH


com a experiência real? A poligamia nos Estados UnídM

não é fruto da fantasia. Não é criação de ficcionistas seniM

cionais nem de ciganos irresponsáveis. Trata-se de um sistj

ma em uso para cem mil dos nossos compatriotas. Tem $M

do pregado entre eles como principal artigo de fé durawB

mais de vinte anos. Teve a sua origem num homem de álB

cendência puritana, natural do estado de Vermont. O s4M

mais característico e forte expoente é também outro me”’|»

duo nascido em Vermont. Muitos dos seus principais P31”1*»

dários são também cidadãos naturais dos Estados UnidoiB

Proponho dedicar esta conferência às origens, divulgaçãí»

expansão e frutos deste sistema. Fui testemunha de muí jl

das coisas que relato e também vítima de algumas dela»!

A meio da conferência, ao descrever certos pormenores jj

da vida no harém tal como acontecia no Utah, Ann Eliz* ;

atacou directamente George Q. Cannon.

334

__ O delegado do Utah junto do Congresso possui nuatro esposas, a terceira das quais é minha
prima. Ao contrário do que é uso, a primeira esposa domina-o com mão de ferro. Açambarca a sua
presença, é ela quem o acompanha nos passeios e nas funções sociais, tem na sua mesa as melhores
iguarias, ao passo que as outras são votadas ao desprezo. Espalhou-se no Utah a crença de que as
repudiou, isto com o fim de conseguir assento no Congresso, mas isso é inteiramente falso. Ele nega
nos jornais o facto de viver contra a lei, ao passo que explica às suas mulheres que a lei é
anticonstitucional e quem transgrediu foram os seus autores e não ele próprio.

A sensação que estas declarações causaram na assistência foi tremenda. Até o rosto do presidente
reflectiu indignação.

A conferência terminou dali a pouco. Os aplausos ressoaram aos ouvidos de Ann Eliza. Não tardou
que se visse rodeada de gente por todos os lados. De súbito, os seus admiradores afastaram-se para
dar passagem ao presidente Grant. Este apertou-lhe a mão e felicitou-a, afirmando:

Se Cannon permanecesse no Congresso isso seria uma desonra para a nação.


Cannon, no entanto, continuou no Congresso. Mas talvez não fosse coincidência o facto de, poucas
semanas depois, a tão esperada lei Poland ter sido aprovada pelo presidente que felicitara Ann
Eliza.

A vigésima sétima esposa conseguira finalmente levar a cabo a primeira parte da sua missão.
VIII I

A SEGUNDA SENHORA DENNING ’]

O Senhor retirou-me do fundo l poço, libertou os meus pés da laim firmou-se sobre a rocha e guiou-
m os passos. J

SALMOS m (Cttação preferida de Ann EtijÈ

A época que decorreu entre a altura em que Ann F.lM

apresentou diante do presidente Grant a sua acusação coii

tra a poligamia e o momento em que foi aprovado, logdl

seguir, o primeiro projecto de lei antipoligâmico, mardw

período culminante da sua carreira. A parte que lhe coiiH

nessa importante legislação não passou despercebida. «!

tremenda luta travada em Washington durante a sessão <9

Congresso há pouco terminada», escreveu o Tribune m

Salt Lake City, «a influência da Sr.a Young, mais do eM

qualquer outra, teve papel importante na aprovação de utfl

lei salutar.» E mais adiante: «As acusações que ela fez fl

apóstolo Cannon foram severas, contundentes, e a sua exfil

sição acerca dos malefícios do casamento e dos pecados fl|

hierarquia produziram um efeito tremendo sobre o Cell

gresso. Podemos agradecer em grande parte à visita que til

fez à capital o facto de ter sido aprovada a lei Polan^B

Só este feito, levado acidentalmente a cabo por uflfl

mulher num mundo dominado pelo sexo masculino, bastM

ria para tornar Ann Eliza tão feliz como célebre. Mas níB

foi isso o que sucedeu. Ela conseguira alcançar todos «l

seus objectivos, menos a tranquilidade de espírito. Jf


«Estava relativamente satisfeita, mas não tranquila», «ti

creveu. «Faltava-me qualquer coisa na vida sentia UIB|

ii

vácuo que não conseguia preencher.» J

A sua inquietação representava um sentimento vulgâ*9 nos apóstatas. Talvez, como sugere Kimball
Young no scU1, estudo psicológico acerca dos apóstatas, experimentasse uma espécie de
inconsciente remorso por se ter volta»0 contra aqueles que outrora haviam confiado nela; talve

336

sentisse que deveria sofrer represálias em paga da sua deserção; talvez pensasse que os seus novos
amigos não depositavam em si inteira confiança, visto que já traíra uma vez; talvez imaginasse que
se tornara demasiado célebre para captar a confiança e a aprovação dos que não a conheciam

bem.

Ou talvez, simplesmente, Ann Eliza sentisse saudades da mãe, a quem sempre estivera tão ligada, e
dos filhos que não tornara a ver depois da sua fuga de Salt Lake City.

Continuava a actuar maquinalmente e a receber aplausos por toda a parte onde aparecia no Leste. O
rosto que apresentava à assistência, sem deixar transparecer os sofrimentos passados e as
perturbações nervosas de que era vítima de vez em quando, era o de uma mulher que alcançou o
êxito e a satisfação. O seu rosto secreto, aquele que se ocultava aos olhos do público, continuava
perturbado e aflito. Pouco a pouco, conseguiu distinguir entre tantas preocupações uma mais
urgente. Compreendeu que vivera até ali como uma espécie de planeta morto, a gravitar no vácuo,
através do qual flutuava por falta de gravidade espiritual. Renunciara à antiga fé e desmascarara os
rigores e as consolações da religião mórmon numa religião paternalista e bem organizada, mas não
a substituíra por outra. Não se tornara agnóstica, pois continuava a acreditar num Criador Supremo.
O seu Deus, porém, não possuía rosto, não tinha a quem orar.

Só depois de ter proferido uma conferência diante dos Pregadores Metodistas de Boston é que
compreendeu pela primeira vez a natureza das suas preocupações. Reparara, durante a palestra, que
um pastor metodista, o reverendo Daniel Steele, de Auburndale, a escutava com notável interesse. O
que mais o impressionara, confessa este mais tarj ° ^acto de ela> no seu discurso, «nunca se ter
refendo a Jesus Cristo».

terminada a palestra, o reverendo Steele foi apresentado Ann Eliza. Chamou-a então de parte e
inquiriu:

7~ A senhora já encontrou outra religião capaz de substituir a superstição que acaba de renegar?
Ainda não.

Cristo?

Tem algum conhecimento teórico acerca de Jesus

Não sei nada acerca de Jesus Cristo, sou ignorante


337
como uma criança respondeu Ann Eliza. Oh, que m

zio eu sinto na alma! Como anseio por qualquer coisa <M

me satisfaça! Não quer ajudar-me? ;J

O reverendo Steele tentou apontar-lhe o caminho: «f|

Conhece o Evangelho, não é verdade? m

Nunca na minha vida li o Evangelho e apenas om dois sermões desde que me afastei daquela falsa
religiã

Em poucas e tranquilas palavras, o padre explico Ann Eliza os ensinamentos de Cristo. Ao escutá-
lo, Sm sentiu como que «nascer a alvorada, depois de uma noB de trevas densas», confessa mais
tarde.

Quando o reverendo Steele acabou, ela disse: jm

É disso mesmo que eu preciso, uma religião amor. :

E pediu-lhe que orasse por ela. ~m

Prometo orar por si e dar-lhe, por carta, todasjB instruções que me for possível. H

Enquanto Ann Eliza andou pelo Médio Oeste, sem

numa actividade constante, o reverendo Steele nunca fll

faltou com as prometidas cartas. Esses novos ensinamenaB

proporcionavam-lhe uma certa consolação, mas não eraB

bastante. Preocupava-a agora um outro género de carM

que recebia do Utah, escritas pela mãe. 9

A primeira Sr.” Webb sentira-se a princípio horroriz»

e desgostosa com os ataques de Brigham Young contra aJI

lha. De repente, passou a ver o Profeta pelos olhos de AÍB

Eliza e acabava por confessar a esta as «terríveis lutas» qfl

estava travando para se libertar da religião mormon. AflH

Eliza, que pretendia resolver os problemas da mãe, rnaM

dou-a vir a fim de a instalar em casa de uns parentes flB


Leste. Queria também internar os filhos num colégio PÇ*M

de Nova Iorque. Porém, durante a viagem pelo MédlB

Oeste, adoeceu de novo gravemente. A diminuição de tU

cursos provocada pelo cancelamento de vários contratoj

não lhe permitia sustentar, para já, a mãe e os filhos. Essl

frustração afectou-a muito. Confessava-se «desolada, prec*l

sando muito de conforto». Jj

Quando se achou suficientemente restabelecida para re<|

tomar as actividades, Ann Eliza chegou a Delaware, n0*j

Ohio, onde se hospedou, a convite do Dr. Lorenzo DoW,

McCabe, que fora, dois anos antes, nomeado presidente oA

Escola Metodista. Embora autor de um livro, Divine Pre’

338

science of Future Contingencies, e outros volumes igualmente obtusos, o Dr. McCabe era um
sujeito muito humano e compreensivo.

Durante a semana que Ann Eliza permaneceu nesse estabelecimento de ensino, o Dr. McCabe ia
visitá-la todos os dias. A princípio, interessou-se pela luta que ela empreendera contra a poligamia.
Mas em breve o preocupou mais a sua batalha íntima para adquirir a paz de espírito. O que
aconteceu a seguir conta-o Ann Eliza, alguns meses mais tarde, numa carta dirigida ao reverendo
Steele:

«Confessei-lhe [ao Dr. McCabe] todos os meus desgostos e sofrimentos e ele consolou-me
afirmando que Jesus estava pronto a aceitá-los e a encher o meu coração de paz, desde que eu
acreditasse nele. Ensinou-me a maneira de o conseguir, orou comigo até eu encontrar a paz e a
alegria. Senti que Deus me perdoava e me recebia como sua filha.

«Só aqueles que passaram por isto podem compreender como me senti feliz, perto daquele que
morrera para me salvar. Desde então não voltei a sofrer aquela terrível incerteza e sei que a não
sentirei jamais. Tenho a certeza de que Deus cuidará de mim no futuro, como o fez no passado,
desde que eu procure seguir o bom caminho. Suplico-lhe todos os dias que me ajude e muitas vezes
as minhas orações têm sido correspondidas.»

A conversão de Ann Eliza à fé metodista episcopal foi largamente divulgada pelos jornais. Alguns
observadores cínicos eram de opinião de que a atitude dela revelava oportunismo. Afirmavam que
Ann Eliza se tornara metodista para alcançar a protecção dessa igreja nas suas futuras conferências.
No entanto, muitas pessoas que a conheciam e a tinham ouvido discursar aceitavam a sua atitude
como a satisfação de uma profunda necessidade da parte dela. Ela aderira conscientemente a uma
crença muito popular e fácil e cumprir, porque esta lhe tornava a vida aceitável e a morte menos
duvidosa. Assim fortalecida, atreveu-se a aceitar um pedido que há muito lhe vinham fazendo:
tratava-se de voltar a Salt Lake City, visitar a família e desafiar o ando no seu próprio terreno. Oito
meses antes, fugira de i l-ake City para salvar a pele. Agora, porém, já não tia medo. A celebridade
que alcançara era o seu escudo. ern disso, de mês para mês, o Oeste estava cada vez mais

oado por não-mórmones. Pouco tempo antes, a vida de

339
um apóstata «não valia praticamente nada». Mas agoras tinha a certeza de que os apóstatas se
encontravam «rd vãmente a salvo de qualquer ataque da parte dos out^ Os seus inimigos podiam
insultá-la nos jornais, amaldí -Ia no Tabernáculo, condená-la ao Inferno, mas não se i veriam a
assassiná-la.

Na noite de quinta-feira, 15 de Julho de 1874, depoi uma viagem de comboio através do Médio
Oeste com pequena paragem em Laramie e um transbordo em Og Ann Eliza voltou a Salt Lake
City. O major Pond, mal lencioso agora do que por ocasião do escândalo de B mington,
acompanhava-a. No dia anterior, o Tribune o ciara a sua chegada, bem como anunciava a recepção
qu amigos não-mórmones lhe estavam preparando nos sã da Walker House. Esperavam-na na
estação o general N well e uma multidão de amigos e cidadãos curiosos. Se| do uma notícia de
origem mórmon, o general ter-llj apertado a mão, murmurando entre sorrisos e lágrij «Deus te
abençoe, Ann Eliza... Deus te abençoe, m fiii-lha!»

No caminho até à Walker House, o general prevefl de que Victoria Woodhull se encontrava na
cidade para lizar uma série de conferências acerca do caso Beec -Tilton. Assim avisada, Ann Eliza
evitou encontrar a! difamadora e nunca se avistaram. >

A rua em frente da Walker House e os salões lá de| encontravam-se repletos de uma «enorme
multidão* amigos e simpatizantes. Ouviram-se vivas e aclamai quando a vigésima sétima esposa
saiu da carruagem entrar no hotel. Atordoada com o acolhimento que lh< ziam, Ann Eliza subiu as
escadas apinhadas de gente atí salão do segundo andar onde o juiz McKean, o reveren Stratton e a
mulher, o coronel Wickizer e algumas dezena* outros amigos e funcionários federais em breve a
rodeara! Instalada por baixo do espelho de moldura doirada, ^ quanto recebia as felicitações pelo
êxito das suas palestn Ann Eliza ouviu tocar música lá fora. Era a Banda Nacl nal que executava à
entrada, em sua honra, a canção Lá Doce Lar. Demasiado comovida para poder agradecer * músicos
e à multidão da rua, a conferencista deu a entendj ao general Maxwell que gostaria que ele
agradecesse em St nome.

340

£ste dirigiu-se à varanda e quando a banda e a multidão se calaram fez um breve mas eloquente
discurso. Contou alguns pormenores da triunfal digressão de Ann Eliza pelos estados do Leste e
acrescentou que a sua vitória fora mais completa do que se julgava, pois vencera «os ataques e as
calúnias dirigidas contra ela por agentes mercenários da hierarquia mórmon».

O general referiu-se pela primeira vez a duas iniciativas da oposição mórmon. Antes da estreia em
Denver, alguns emissários de Brigham Young tinham oferecido ao editor do Tribune, de Denver, a
quantia de quinze mil dólares «pela utilização do seu jornal para caluniar e enxovalhar o bom nome
de Ann Eliza». O editor do Tribune não só rejeitara a oferta como também se portara como um
cavalheiro, alistando-se na cruzada de Ann Eliza. De novo, depois de haver conseguido comprar o
Times, de Chicago, um dos agentes do Profeta na capital do país não mencionou o nome de
Cannon oferecera ao coronel Davidson, editor do National Republican, de Washington, uma
quantia avultada se ele quisesse reeditar o escândalo relatado pelo Times. Davidson não se deixara
comprar.

O povo na rua explodiu numa ovação ao ouvir as palavras do general Maxwell. Este, entusiasmo,
prosseguiu na sua acusação contra os jornais mormons de Salt Lake City pelos seus «cobardes
ataques» contra Ann Eliza e contra a mulher do próprio general. Ela apareceu timidamente,
acenando a agradecer, enquanto se elevava na noite tépida uma ovação estrondosa. Ann Eliza
retirou-se e voltou à sala. Lá tora, a banda continuava a tocar, demorando-se ali mais de uma hora.
Antes de dar início à primeira das seis conferências que ’na proferir em Salt Lake City, Ann Eliza
resolveu descansar cinco dias na companhia da mãe, do pai e dos filhos, em ^outh Cottonwood.
Depois, no dia 20 de Julho, uma segunda-feira, foi falar na Igreja Metodista, que se encheu por
completo. Quando se dirigiu à estante e olhou para os ugares da primeira fila, teve uma surpresa.
<c.-°righam não foi assistir a nenhuma das minhas confe£ncias», escreve ela mais tarde. «Mas
mandou ir as filhas e noras sentarem-se nos lugares da frente, fazendo-me ca.as’ Ocupavam todas as
cadeiras das primeiras filas a selr ao estrado, e eu, quando as vi, senti pena delas. Co-

341
nhecia-as todas, algumas tinham sido minhas amigas J juventude e eu sabia que muitas se sentiam
desgraçai dentro daquele sistema que eu procurava combater. Eu |B sua confidente. Muitas vezes
haviam lamentado comigg| infeliz situação em que me encontrava quando estava aid casada com o
pai. Este facto, em lugar de me aborrecei desnortear por completo, como era intenção do Profá| deu-
me novo alento para alcançar os meus fins e revestirl maior calor as minhas palavras.» M

Tanto as filhas de Brigham, que ali tinham ido fazer J| retas, como todos os representantes da
imprensa morn» foram unânimes em afirmar que aquela mulher era uma ,« vá Ann Eliza. Poucas
vezes consultava as notas que tifll na sua frente. Falava com aquela segurança de quem dl habituada
a triunfar. ;

Ignorando as antigas companheiras da Casa do Lol Ann Eliza dirigiu-se aos seus amigos não-
mórmones: |B Os sentimentos que me animam ao encontrar-m<« novo diante de vós, desta vez
como conferencista, são >n|| primíveis começou ela. Há um ano apenas abandcJB a minha casa
nesta cidade e fugi em busca da protecção jfl vossas leis e do abrigo da vossa caridade. Conhecia a
vadH dade e a miséria do sistema que deixava, mas desconhaB totalmente os hábitos do mundo em
que ia penetrar, fl chegar à idade adulta, a fé da minha infância revelara-se tjfl pesadelo e não mais
me poderia apoiar nela... ArrisqilB -me, assaltada de dúvidas, e que fui eu encontrar? ToJB me
aceitaram com generosa confiança, todos me defenflM ram na ausência com a mesma generosidade,
todos me aOJB lheram generosamente quando regressei. Não posso reco^ pensar-vos como
desejava mas deixem-me afirmar-vos uffll coisa: que toda a felicidade alcançada em troca do bem
q«8 se pratica, que todas as bênçãos que eu consiga obter 0B troca das minhas orações, tudo isso
será vosso eternamenWB E que dizer da minha experiência durante o tempo que pa|i sei longe de
vós? Que sofri as picadas e o veneno de alg1*! mas setas inimigas? Sim. Que tive momentos de
fraqueza 11 desânimo? Sim. Que alguma vez me arrependi ou fique|| desapontada com o
acolhimento que me faziam? Nuncw Em seguida, passou a contar a história da sua vida. Du t, rante
vinte minutos, refere o Tribune, «foi calorosa e repetidamente aplaudida». O jornal pró-mórmon
Herald cofl-

342

f ssava de má vontade que «a conferência dela denotava ma grarid6 evolução da sua parte», e
insinuava que o texto devia ter sido escrito pelo major Pond ou pelo reverendo Stratton.

Dali a uma semana, Ann Eliza proferia a sua segunda conferência na Igreja Metodista, que se
encontrava de novo à cunha. Como desta vez o tema era inteiramente preenchido com a acusação
do casamento poligâmico, o Herald mostrava-se menos tolerante. A assistência, é certo, ficara
satisfeita, a avaliar «pela pateada e pelas palmas frenéticas que se fizeram ouvir». Porém o texto
«era constituído por uma série de frases sensacionais ligadas umas às outras para produzirem efeito
lá fora, mas sem a consistência necessária para serem aceites como factos pelos ouvintes de Salt
Lake City». O aperfeiçoamento na maneira de falar era mais notável no primeiro do que no segundo
discurso, que «desta vez foi inteiramente lido, num torn muito alto e forçado, sem qualquer
modulação ou inflexão». No entanto, terminada a conferência, os ouvintes rodearam Ann Eliza para
lhe apertarem a mão e a felicitarem.

Durante quase todo o mês de Agosto, Ann Eliza falou em diversas comunidades nos arredores do
Utah e no vizinho estado do Nebrasca. A sua presença em Alta foi pretexto para se reunir ali a
maior assembleia que jamais se juntara naquela jovem cidade mineira do Utah. Encontravam-se
presentes muitos mórmones, entre estes quatro filhos de Heber C. Kimball, o apóstolo que morrera
seis anos antes num desastre de carruagem. Depois de Alta, Ann Eliza dirigiu-se a Provo, onde o
seu querido amigo, o reverendo C. P. Lyford, a foi apresentar. com excepção uas de Salt Lake City,
as conferências de Ann Eliza em r°vo foram das que mais êxito obtiveram no Utah. O reverendo
Lyford comparou-a a «Wendell Phillips nos seus tempos áureos».

Jeguiram-se vários contratos em Bingham, Park City,

Pnir, Dry Canyon, Evanston e Ogden. Em Evanston,

entro mineiro que pagara duzentos dólares para a ouvir,

nn Ehza recordou-se do seu mentor metodista, o Dr. Lo-

^nzo Dow McCabe, de Delaware, Ohio. No intuito de lhe

C1 Prirrur a sua gratidão pela paz de espírito que lhe propor-

cjena.ra’ comprou um caixote com amostras das várias espé-

s de minério que se encontrava perto de Evanston e en-

343
viou-lho como recordação para o Wesleyan FeoJ^B A caminho de Ophir e de Stockton, Ann Eliza
recey^B a agradável notícia de que o seu caso de divórcio con^H Brigham Young, há tanto tempo
adiado, ia ser íinalmisj^H julgado. O processo intentado por ela um ano atrás íj^H adiado enquanto
se discutia o problema de jurisdição. Bra^H ham pedira que o caso fosse julgado por um tribunal
1<M^I dominado por mórmones, ao passo que Ann Eliza qud^l que se ocupasse dele um tribunal
distrital, composto -J^H funcionários federais antimórmones. O Supremo Tribu^H do Território do
Utah deu finalmente a decisão. O cascn^H ria julgado num tribunal federal, sob a presidência do
ji^H amigo, o juiz McKean. 1^1

Os advogados de Ann Eliza renovaram a petição de^^B vórcio e pensão alimentar, e o juiz McKean
exigiu a ^^^H ham que desse uma resposta. No dia 25 de Agosto de l^^l à noitinha, no Terceiro
Tribunal Distrital do Utah, B|^H ham respondeu finalmente por escrito, através dos seu^|^H
presentantes legais. Esta resposta causou sensação ao i^l publicada na primeira página dos jornais
de costa a cc^H Só o Tribune, de Salt Lake City, lhe consagrava cinco t|^l los: REVELAÇÃO!...
BRIGHAM YOUNG RESPOND NO TRIBUNAL... E JURA QUE SÓ TEM UMA ESfB SÁ... O
CASAMENTO CELESTIAL IDENTIFICAM com A PROSTITUIÇÃO... VIRTUDE DA LEI E
SH SUALIDADE DA RELIGIÃO... ESPOSA DENTRO H ESTADO E CONCUBINA DENTRO
DA IGREJjB O REINO DE DEUS REDUZIDO À ANIMALIDAfM Em Nova Iorque, o Herald, de
James Gordon BeniMiM mostrava-se ainda mais delirante. Apresentava oito cabefl lhos do
seguinte teor: POLIGAMIA... BRIGHAl YOUNG EM APUROS POR CAUSA DA SUA DE« MA
NONA ESPOSA... ADULTÉRIO SANTIFIC1 DO... A DIFERENÇA ENTRE CASAMENTO
LEGJ| E CONCUBINAGEM «CELESTIAL»... O PROFEl ACUSADO DE PERJÚRIO...
REPUDIA TOTALMEI TE O RESTO DAS ESPOSAS... OS BONS MORMi NES INDIGNAM-
SE... O RITO NUPCIAL SEGUP DO OS SANTOS DOS ÚLTIMOS DIAS. . ’

Conhecendo o projecto de lei contra a poligamia, < Poland, Brigham Young resolvera jogar pelo
seguro. Neg

344

que Ann Eliza fosse sua esposa legal, uma vez que «era e

meia é casada legalmente com James L. Dee, pois nunca se

-U1» çe2undo crê o acusado». Além disto, Brig-

’i A/WV A.nn An-

vaqueAnnr.il---

ainda é casada legalmente com James L. ucc, ^

divorciou dele, segundo crê o acusado». Além disto, Brigham afirmava possuir já uma esposa legal,
Mary Ann Aneell, com quem se casara em Kirtland, no Ohio, a 10 de Janeiro de 1834, «a qual foi e
ainda é a única esposa legal do acusado...» Quanto à cerimónia do casamento com Ann Eliza,
segundo o Herald de Nova Iorque, «Brigham não nega o adultério, mas declara que este teve o
nome de ”casamento celestial”, uma espécie de combinação mútua de

acordo com a fé».


Na sua resposta, Brigham dava-se ao trabalho de refutar uma a uma as acusações que Ann Eliza lhe
vinha fazendo publicamente durante meses. Negava terminantemente tê-la tratado com desprezo,
crueldade, parcimónia, etc. «Pelo contrário, o acusado alega que sempre se mostrou cheio de
consideração pela parte contrária.» Nunca a obrigara a ir para a Granja. Nunca lhe ordenara que
mandasse embora a mãe doente. Nunca lhe negara alimentos nem vestidos elegantes. Embora lhe
tivesse dado casa na cidade, fora ela quem «voluntariamente, e sem o seu conhecimento ou
consentimento e sem ter motivos para tal, saíra da residência do acusado...» Este nunca a
abandonara na casa de hóspedes, visitava-a ali sempre que podia. Sustentara os filhos que ela tinha
do primeiro marido. Ignorava que ela estivesse doente. Era injusto vir exigir-lhe uma pensão
alimentar e as custas do processo. Negava ser milionário ou que o seu rendimento mensal se
elevasse a quarenta mil dólares. Afirmava que os seus capitais não excediam seiscentos mil dólaI
rés e que não auferia de rendimento mensal mais do que

l uns parcos seis mil.

l A resposta de Brigham terminava assim: «O réu alega

I ainda que na altura do dito casamento ele possuía e possui

l amda uma família numerosa, que essa família consta de ses-

I Senta e três pessoas e que todas dependiam dele sob todos

j °s aspectos.

«l or tudo isto, o acusado pede ao tribunal que o dis-

Pense das ditas custas.»

A defesa de Brigham provocou imediata reacção por B Pane ”a imprensa. O Chronicle, de São
Francisco, observaI D ’ ’^resP°sta de Brigham tem em vista assegurar a simj P ia de todos aqueles
que não acreditam nos direitos da

345
mulher. Coloca a inflexível Ann Eliza na atitude antipj de perseguir um pobre e infeliz sujeito que é
vítima do to de se ter casado demasiadas vezes.» Em St. Louis, o publican declarava: «É mais do
que certo que as esp< polígamas dos ”Santos” nunca perdoarão ao Profeta o i de lhes ter chamado
concubinas... De um lado temos o de poligamia, do outro, a santificação do adultério.» Nova Iorque,
o Herald comentava: «Não se pode net grande importância deste processo, pois ele vai servi prova
para se ficar a saber de uma vez para sempre a< que o Congresso está disposto a tolerar em matéria
de j gamia. Tem ainda o interesse de permitir que se defina, rã os mórmones, a situação exacta das
esposas polígama aquilo que são e aquilo que não são.» ,

Não há dúvidas de que este processo teve repercus na Casa do Leão. Muito embora Amélia Folsom
e as o» esposas houvessem sido informadas por cinco advogi dos motivos que levavam o marido a
renegá-las no tribi a publicação do acontecimento não deixou de lhes prov uma sensação de
insegurança. Mas se acaso alguma das posas se queixou ou discutiu com ele por causa diss facto
nunca transpareceu cá para fora. Apenas a pria esposa, Mary Ann Angell, parece ter ficado satisfeita
cO processo intentado por Ann Eliza. Ao ler a resposta marido, diz-se que chorou lágrimas de
alegria.

Embora encantada com a situação falsa em que colo Brigham, Ann Eliza ficou indignada com a
resposta < Afirmava que ele mentia quando declarava que ela n« divorciara de James L. Dee.
Ordenou ao juiz McKeair imprensa que investigassem os arquivos do Tribunal de Lake City onde o
seu divórcio fora registado em l A isto respondeu Brigham, no jornal The Deseret Ne que, tendo o
Supremo Tribunal decretado recentemei que nenhum tribunal do território tinha competência pi
resolver qualquer caso de divórcio, esta decisão anulava_§ tomaticamente o divórcio dela. Um
leitor habitual do 7» bune ia ainda mais longe: «Ann Eliza casa na Casa dos V< tos, sobre o mesmo
altar e com o mesmo cerimonial, taffl com James L. Dee como com Brigham Young. Se estava c
sada com o primeiro também estava casada com o segunO Talvez Brigham pretendesse dizer que
ela não casara ne com um nem com outro. Sendo assim, ela não passava,

346

o tantas mais, de uma mulher seduzida pelos seus tru-

Os advogados de Brigham mostravam-se satisfeitos com a defesa do seu cliente, mas apesar disso a
hierarquia mórmon não se sentia muito segura do facto. Quando um desses causídicos se expandia
em elogios acerca do brilhantismo da sua réplica, um funcionário mais idoso replicara-lhe
azedamente: «Os senhores tiveram de baixar as orelhas diante da lei e arranjaram um lindo sarilho!»

Seis semanas após ter recebido a resposta de Brigham, o juiz McKean convocou os patronos de
ambas as partes para irem ao tribunal defender os respectivos constituintes. Depois de os ouvir, o
juiz declarou que daria a sentença no ano seguinte.

Por esta altura, continuando o seu programa de conferências traçado pelo major Pond, Ann Eliza
acabava de cumprir um contrato em Virginia City, no Nevada, e ia a caminho da Califórnia do
Norte, onde actuaria durante um mês. Na noite de 8 de Outubro de 1874, proferia a sua primeira
conferência em São Francisco. Em competição com a peça que nessa altura ali se representava no
Califórnia Theatre, Davy Crockett, Ann Eliza conseguiu encher «a maior parte das cadeiras» do
Mercantile Library Hall. Na noite seguinte, a assistência era ainda maior. Dois dias depois, falava
na Igreja Metodista Episcopal, e como o preço dos bilhetes descera para a módica quantia de
cinquenta cernimos, tinha a casa toda passada. A sua palestra alcançou teo grande êxito que a
mesma igreja a contratou para uma nova série de três palestras no fim do mês, pagando-lhe por >sso
mais mil dólares.
Depois de actuar em Oakland, São José, Sacramento e °utras cidades mais pequenas da Califórnia,
Ann Eliza, acompanhada pelo major Pond e por um tal Latimer PresL0tt> regressou a Salt Lake
City, no princípio de Novem-

°> para falar aí mais algumas vezes em público. Uma dessessões foi particularmente dramática.
Teve a escutá-la

* grande assistência de metodistas. A maior parte dos «., ln,tes> n° entanto, eram mórmones,
incluindo mais uma

dad f UIJ”las ^s filhas de Brigham Young. Porém a conviCo e nonra era a sua própria mãe. Esta e o
marido enem r!^uf-m~se na primeira fila. Chauncey já a ouvira falar

347
que fora preciso usar de «muita persuasão» para a anal àquele lugar público. Nesta altura, a
apostasia da Sr.a H já era do domínio geral, mas sentia-se ainda envergo» de fazer alarde dela,
especialmente numa conferênciaj mórmon realizada pela sua própria filha. 9

Esta palestra era uma das últimas da série que Amdi rã a cabo na sua terra. Dali tomou mais uma
vez o l bóio da Union Pacific com destino ao Leste, com paiSjfl ainda em Laramie e Omaha, para
novas actuações. EM guida, empreendeu uma longa digressão através do falando em Council
Bluffs, Dês Moines, Newton, Grijffl Iowa City, Mount Pleasant, Ottunawa e Creston. Do passou ao
Minnesota, discursando em St. Paul, MinnedB e Mankato. Depois percorreu o Wisconsin,
visitandoH Claire e La Crosse. O seu primeiro ano de conferefjB terminou com dois contratos em
Chicago, onde o sell migo, o editor Story, do Times, felizmente desta vez « dou silêncio. íJB

Algures entre Minnesota e o Wisconsin, Ann Eliza» conhecimento de que se quebrara o último laço
que a II dia ao passado. Foi-lhe enviado um exemplar do EvJM News, datado de 19 de Novembro
de 1874, que tB mesmo ao fundo, uma local intitulada: «Assuntos lotfl outros». Foi aí que
encontrou o seu nome: «A quem interessar: Certificamos que Ann Eliza Young Wei» expulsa pelo
Conselho Supremo da Igreja de Jesus CrjH dos Santos dos Últimos Dias, em 10 de Outubro.» Aí cia
da excomunhão era assinada por «George E. WaH secretário do Conselho Supremo». jm

Dali em diante, eles pretenderam sempre que Ann 9 fora expulsa da igreja, ao passo que ela
manteve até ao! a declaração de que fora ela a abandoná-la. Jl

Dali a menos de três meses, a 12 de Fevereiro de n o pai de Ann Eliza, Chauncey Webb,
compareceu oim do Conselho Supremo Mormon de Salt Lake City Para ponder à acusação de
«apostasia em face das doutrinaffl Igreja de Jesus Cristo e dos Santos da Ultima Hora». Eli os doze
juizes contava-se George E. Wallace, secretánOl tribunal, John T. Caine, editor do Herald, e
Angus \ Cannon, um dos seus mais velhos amigos. .j

Após as orações, perguntaram ao acusado se se cons» rava culpado ou inocente. A isso, replicou ele
com caM

348

_ Inocente da acusação de apostasia, pois era melhor ue me acusassem de dissidência em face das
inovações introduzidas na igreja por um chefe corrupto como é Brigham Young.

Então, Cannon ergueu-se para explicar que, muito embora amasse Chauncey como um irmão e o
considerasse uma pessoa de carácter e de uma grande liberalidade, ele «caíra recentemente em
graves erros».

Chauncey pôs-se imediatamente de pé. Fosse qual fosse a decisão do Conselho Supremo, perdoaria
a todos excepto a John T. Caine, editor do Herald.

Esse senhor deve estar lembrado afirmou ele, arregalando os olhos para Caine de que o seu jornal
publicou uma série de mentiras e calúnias contra o bom nome da minha filha, repetindo as
acusações acompanhadas de comentários. Aguardei que a calúnia fosse refutada e que a minha filha
aparecesse perante o mundo com a sua reputação ilibada. Então, eu pedi ao editor do Herald, numa
carta muito respeitosa, que se encarregasse de desmentir as acusações e fizesse justiça à minha
filha. Nisto nada havia de injusto ou descabido. Os meus sentimentos de pai obrigavam-me a exigir
que fosse feita justiça a uma senhora ofendida, neste caso a minha filha, mas só tive como resposta
a publicação de outro artigo mais injurioso ainda do que o primeiro... Afigura-se-me uma farsa o
facto de ser esse hopiem quem julga o meu direito de pertencer ou não à igreja, quando a verdade é
que ele próprio é um inveterado mentiroso e um caluniador.

Pouco depois foi confirmado por unanimidade o voto

de expulsão, sendo este tornado público dali a três dias, nos

seguintes termos: «A quem possa interessar: Certifica-

m°s. que C. G. Webb e Eliza Jane Webb são expulsos da

§reja de Jesus Cristo e dos Santos da Última Hora pelo

onselho Supremo deste estado de Zion. Quinta-feira, 12

fevereiro de 1875.» Assinava o sempre muito activo ^«jfge E. Wallace.

^ £ assim terminava, para a primeira Sr.a Webb, finalmente,

4 uo que há tantos anos tivera início em Kirtland, as ale-

att.as ,e SC)fnmentos em Nauvoo, nas margens do Missuri e

NãVeS jaS Plamcies nos velhos tempos de Salt Lake City.

out 11 anam muitos meses que a Sr.a Webb não rompesse

0 laço. A filha enviara-lhe dinheiro para ir para o Leste

349
com os netos. Entretanto, Chauncey Webb, a despeid sua excomunhão, preferia ficar em South
Cottonwoodl as esposas que lhe restavam. A Sr.a Webb, porém, reciaj -se a ficar. Abandonara a sua
religião e agora abandonf marido. l

Nos princípios de 1875, a Sr.a Webb, de cinquental to anos, e os dois filhos já crescidos de Ann
Eliza ia ram-se para Lockport, estado de Nova Iorque, ow Sr.a Webb tinha uma irmã. Ali, junto ao
cenário ondl correra a sua infância, a mãe de Ann Eliza veio a fl uma casa para viver com os netos e
onde a filha p\m descansar no intervalo das suas contínuas viagens. l| primeiro numa casa de
hóspedes, depois mudou-se pan chalé em Walnut Street. l

Tal mudança deu mais prazer à filha do que à mãea sado um ano, Ann Eliza escrevia: «Penso que
ninguM alegrou mais com o meu êxito do que ela e por certíM guém mais do que ela me deu alento,
coragem e H Agora, quando penso que abandonou o mormonifflj que está longe de tudo o que com
isso se relaciona, ajl a velhice junto dos seus amigos de infância, a viver felB ma casa livre da
promiscuidade da poligamia, sem a sql da beatice a dominar-lhe a razão e a vontade, sinto-mM feliz
do que nunca...» m

Contudo, a Sr.a Webb era menos entusiasta a desm a situação. Numa carta dirigida ao filho Gilbert
e datai
19 de Janeiro de 1876, escrevia: «Poucas vezes veja! Eliza. Só cá vem de seis em seis semanas
demorai» apenas dois dias para partir logo a fim de cumprir contratos. Anda bastante fraca, sempre
muito ocupadaj os seus negócios, de modo que pouco tempo lhe resta estar connosco. l

«Encontro aqui quase a mesma superstição e o ttm fanatismo que aí... e no casamento monogâmico
verifl -se mais complicações do que eu supunha; penso que w têm o seu rabo-de-palha e que o
mundo está longe i assemelhar ao paraíso, antes pelo contrário. Só Deus| os disparates a que tenho
assistido e isso parece-me bai te para me desgostar de qualquer espécie de religião.! senhor com
quem me correspondo afirma que, se fosa a escrever a Bíblia, fazia tudo ao contrário. Punha priiu o
Novo Testamento em lugar do Velho, punha o VelW

350

r do Apêndice, e deitava o Apêndice para o lume. Este

hor acha que o Novo Testamento é que está certo, mas


56 disse-lhe que, quanto a mim, atirava tudo para o lume.» CU Se acaso a Sr.a Webb fazia idênticas
queixas à filha, o ais certo era esta não ter tempo para a ouvir. Depois de ’talar a mãe junto dos
amigos de infância e de meter os filhos num colégio interno onde podia visitá-los com facilidade,
Ann Eliza podia agora dedicar-se inteiramente ao seu ofício de conferencista. A primeira época em
que actuara sob a égide do major Pond e de Redpath fora um êxito retumbante. Realizara cento e
sessenta e uma conferências, com um público só igualado por oradores veteranos como Anna E.
Dickinson e Mary A. Livermore, ganhando com isso vinte mil dólares.

Se temia que o seu êxito fosse passageiro e se devesse apenas à novidade do tema, em breve se
convenceu do contrário. O major Pond era de opinião de que bastavam os seus dotes oratórios para
lhe garantirem público por muitos anos. James Redpath achava que, enquanto a poligamia
continuasse a existir como problema nacional e enquanto ela tivesse como antagonista Brigham
Young, Ann Eliza continuaria a ser cartaz. Verificou-se que ambos tinham razão. Continuavam a
chover os pedidos de contratos. Boston queria ouvi-la durante catorze semanas a fio, com uma
conferência por semana. No princípio de 1875, Ann Eliza assinava um contrato a longo prazo com
Redpath em que figurava como conferencista permanente da Star Lecture Bourse e em breve
recomeçaiva a sua odisseia.

Iniciara a actividade no momento exacto em que podena despertar maior interesse. Se houvesse
começado mais cedo, a sua voz teria sido abafada pelo tumulto de muitas outras vozes mais
estridentes e profissionalizadas. Durante meio século que precedeu a entrada de Ann Eliza para o
^Po da palestra, esta actividade constituía ainda um paso ^fpo cultural menor e não era ainda
considerada, como

,ei° a ser mais tarde, um negócio rendoso e bem organi-

A jg2^ Pnmeira sociedade no género fora constituída em

u ’ P?r Josiah Holbrook, licenciado em Yale, que possuía

tes ,(lUlnta em Millbury, no Massachusetts. Os componen-

se o ° ^mP° ^ Holbrook juntavam-se todas as noites para

Uvirern discursar uns aos outros, bem como a outros

351
parte do elenco de Redpath. Josh Billings, célebre pel$ obra Todas as Raparigas Casam Novas no
Utah, en tro dos seus clientes. A conferência mais notável do se portório intitulava-se «Leite».
Aparecia no estrado coq copo de leite na sua frente, e falava durante todo o t< sem nunca se referir
ao copo de leite. Thomas Nash, conquistara Tammany Hall, desenhava enquanto ia di sando, e
ganhou quarenta mil dólares na primeira dign que fez por conta de Redpath. Wendell Phillips, o j|
aristocrata, auferia quinhentos dólares por cada conferi vinte vezes mais do que recebia quando
trabalhava conta própria, falando acerca de leis, da Europa, dos í| e da Irlanda. ’

Em 1871, havia cento e cinquenta senhoras confere tas que percorriam todo o país defendendo em
altos g o sufrágio da mulher, a integração dos Negros, a temp ca, falando de literatura e de outras
artes. Retendo a| para si um lucro de dez por cento, Redpath tinha coní com mais senhoras do que
qualquer outro empresai tornou-se o mais popular de todos. Até aparecer Ann za, a sua cliente mais
famosa fora Anna E. Dickinson^ jovem explosiva de cabelos castanhos e figura arrapaj Começara a
fazer conferências em público por um i fortuito. Uma noite, enquanto assistia às cerimónias i igreja
qualquer, ouvira um homem vociferar contra o fl mento feminista. Furiosa, Miss Dickinson pusera-
se’ de pé e, sacudindo os punhos na direcção do homem brira-o de injúrias. Dali em diante, passou a
guardar ass invectivas para quem lhas pagasse e começou a disci acerca da emancipação das
mulheres e dos negros. D que a ela se deveu a passagem do Vermont de estado de crático para
estado republicano. Empolgava o seu vast* ditório com a sua franqueza chocante, servindo-se de
vras pouco usadas, tais como «pernas». Sob a direcçat Redpath, chegou a ganhar de vinte a quarenta
mil dáít por ano. f

As outras clientes femininas de Redpath incluíam MJ bem Mary A. Livermore, repórter e editora,
que prega*! temperança; Julia Ward Howe, autora do livro The Bd Hymn of the Republic, que
falava acerca da escravatttj Lucy Stone, formada pela Universidade de Oberlin, que tava contra tudo
(muitas vezes lhe apontaram mangueiras quanto falava) no sentido de obter o voto para as mulher

354

Pelo ano de 1875, a maior parte destes célebres oradores havia atingido há muito o apogeu e os seus
temas começavam a ficar estafados. A escravatura, nestes tempos de reconstrução, deixara de ser
um tema explosivo. A temperança já dera o que tinha a dar. O sufrágio feminino aparecia como
uma frivolidade. Quanto aos outros oradores, John B Gough perdera a voz; Anna E. Dickinson
abandonara o estrado pelo teatro onde iria fracassar como actriz; Thomas Nast voltara a desenhar
caricaturas para o seu jornal; Henry Ward Beecher fora caluniado como sedutor e ainda não era
bem-visto pelo público; até mesmo o genial Josh Billings começara a perder prestígio.

No entanto, em 1875 havia para cima de quinhentas sociedades de conferencistas necessitadas de


sangue novo. Era o momento ideal para surgir Ann Eliza. Contava apenas trinta e um anos, era
atraente e possuía uma personalidade interessante. E o tema da poligamia tinha mais actualidade do
que nunca. Ao discutir o mormonismo, enfrentava apenas duas rivais de respeito. Uma destas era a
admirável Sr.a Fanny Stenhouse, cujo livro tivera influência na fuga de Ann Eliza. A outra era Kate
Field, que iniciara a sua actividade de conferencista quatro anos antes dela. Miss Field, bonita e
elegantemente vestida, fascinara primeiro os auditores com palestras biográficas acerca de John
Brown e de Charles Dickens. Acabou por visitar o Utah, e durante oito meses passou aí grande
parte do seu tempo a entrevistar mulheres casadas acerca da poligamia. Este tema passou a ocupar o
primeiro lugar nas suas palestras. Descrevia Brigham Young como um «velho banal, ilógico e
excêntrico». Considerava a traição mórmon muito pior do que o casamento poligâmico e trocava
correspondência com Mark :Wain acerca deste assunto. Pretendia que a poligamia fosse ’ssolvida
Pela força; Twain era de opinião de que o riso onstituía urna arma mais eficaz do que a violência.
Escreeu a Miss Field: «Pensa que sou amigo da religião mór°n- Nada disso. Desejaria vê-la
extirpada, mas sempre r r meios honestos, nunca por esses patifes do Congresliate Field só
abandonou o tema do mormonismo H ndo se apaixonou pela cremação, porque, afirmava, s ,?
°iue a cremação era não só a maneira mais limpa e ma’ a - ^e nos desfazermos dos mortos, mas
também a Poética». Contudo, nenhuma destas rivais fazia som-

355
bra a Ann Eliza. A Sr.a Stenhouse fora casada com um «jjl gamista pouco conhecido, ao passo que
Ann Eliza eraj posa do Profeta. Kate Field vinha de fora, por issolB possuía a mesma autoridade de
Ann Eliza e, além JB Miss Field só aparecera no último ano de actividade dali Ia. Pouco depois de
partir para a sua segunda digriH através do Leste, veio a saber que Redpath deixara dw seu
empresário. Sempre inconstante, incapaz de ficar sél do a uma secretária, Redpath vendera o
Lyceum BUM em 5 de Outubro de 1875, ao major Pond e a Gol H. Hathaway. Ann Eliza teve
grande desgosto com M Habituara-se a descansar em Redpath depois que eiB apoiara quando do
escândalo de Bloomington e nos ’M seguintes em que ele estivera sempre atento à sua cartjfl

Mesmo trabalhando em regime livre, Redpath njB desinteressou completamente da organização de


coníiH cias. Promoveu uma digressão de costa a costa para RdjH G. Ingersoll, grande orador e
notável agnóstico, inimidH Bíblia. Depois disto, instituiu a Redpath English Ofl Company, e
apresentou Gilbert e Sullivan nos Estfl Unidos. Acabou por sofrer um colapso nervoso e efl
abandonou de vez as conferências. Depois de ter ido rflfl belecer-se para as índias Ocidentais, fez
duas viagens > landa por conta do Tribune, de Nova Iorque. ImpressJM do com a fome que ali
observara e com as repreJM brutais exercidas pelo capitão Charles Boycott, ReapatlM solveu agir.
Conseguiu reunir a quantia de vinte e cincqB dólares a favor dos Irlandeses e depois, ao recordar-
ÍÉH que os comerciantes recusavam vender as suas mercadoB ao capitão Boycott, Redpath
inventou a palavra «boicOlB como sinónimo de «votar ao ostracismo». Em breve nfl gurava novas
cruzadas na América, uma em Nova I°r<« contra os bairros da lata, outra de apoio à teoria do únfll
to único de Henry George. Quando Ann Eliza voltou *m ber notícias de Redpath, andava ele, de
colaboração cfl Jefferson Davis, a escrever anonimamente as memóriasj velho chefe dos
Confederados. John Brown ficara nHwj para trás. _ f

Entretanto, em Boston, o apresentador de Ann E^2*»! major Pond, e o conservador Hathaway iam
organizaOT as suas deslocações. Durante aqueles quatro anos suj^< um atrito entre os dois sócios e,
em 1879, Pond vendeu

356

Hathaway a sua parte na sociedade do Redpath Lyceum o ,rM\\ e abriu um escritório em Nova
Iorque onde conti-

pllicat* , . , . .4 ,.

uou a ser empresário dos seus antigos e ilustres clientes, Ann Eliza e Henry Ward Beecher. Depois
disto, Pond ucas vezes viajava com Ann Eliza. Marcava-lhe as viaLns de comboio e mandava-a
com uma dama de companhia que contratava no Leste. Apenas se deslocava para acompanhar
Beecher, pois só com o seu apoio e sob a sua hábil direcção é que este conseguia recuperar o
interesse do público. Pond acompanhou o caluniado clérigo em deslocações que acabaram por
perfazer um total de trezentas mil milhas. Entre contratos na América e na Inglaterra, Beecher
realizou mil duzentos e sessenta e um por conta de Pond.

A década a seguir a 1873, que Ann Eliza dedicou à actividade de conferencista, foi para ela uma
época fatigante e exaustiva. Nos círculos ligados a esta actividade, chamavam-lhe «dinheiro em
caixa», significando com isto que tinha sempre o êxito de bilheteira assegurado. Até mesmo as suas
colegas sentiam simpatia por ela. Em Fevereiro de
1875, Mary A. Livermore escrevia a uma comissão de conferências de Castile, estado de Nova
Iorque: «Vão achar a Sr.a Young uma mulher encantadora. É bonita, amável, feminina e senhoril,
muito diferente da mulher rude e ignorante que nos sugere a sua origem mórmon. Conheço-a
pessoalmente, interesso-me muito por ela e posso afirmar-Ihes que o povo de Castile não só vai
simpatizar com a Sr.a Young como também interessar-se pela história comovente da sua vida...»

Ann Eliza trabalhava durante oito meses em cada ano. JJs restantes quatro passava-os em Lockport,
junto dos filhos e da mãe, ou em Nova Iorque, a consultar médicos, pzia urna média de cento e
sessenta a cento e oitenta con-

erjncias por ano. A correspondente em Washington do ’”dependent, de Nova Iorque, Mary


Clemmer Ames, descrevia assim Ann Eliza, nesse período da sua vida: «Ó seu ivf6^0 ’nc^ca
sensibilidade, requinte, uma constituição dé-

1 Possui um temperamento nervoso e a delicadeza de figura que em geral o acompanha. A sua


magreza atinge a gilidade, o pescoço é fino e as feições miúdas, como ^ontece sempre que as forças
nervosas dominam as vitais, cabelos são pretos, penteados em dois bandós como

357
agora se usa; o rosto é pálido, mas a pele tem uma trarij rência notável; as sobrancelhas negras
avultam numaji direita sobre a testa curta e os olhos azuis, rasgados J não muito grandes, ora
ardentes ora doces e tristes,»J

Ann Eliza gostou da descrição que dela fajjj Sr.a Ames e resolveu tornar-se sua amiga. Em Junlwjl
1876, quando foi passar seis semanas a Nova Iorque pam tratar com o Dr. J. Marion Sims. Ann
Eliza escrewl Sr.a Ames: «Tive sempre um grande desejo de a COHM pois nunca esquecerei o que
fez por mim e estimo-aII fundamente por isso. Parto no domingo que vem à tm para. Lockport,
onde se encontra a minha mãe e os 3 dois filhos, e onde espero passar o Verão. Gostaria n» de me
encontrar consigo...» , j|

Alguns dias depois de serem distribuídas as magnjffl circulares de quatro páginas, primeiro por
iniciatiwl Redpath e agora do major Pond nas quais const» biografia de Ann Eliza, a descrição dos
seus êxitos, as credenciais, bem como fotografias do Tabernáculo dftm Lake City, um retraio de
Ann Eliza, gravuras da Colai da Casa dos Votos e da Casa do Leão, onde se via aM com algumas
das esposas a rezar na companhia de BrigB Young , Ann Eliza vinha falar dos seus sofrimentos!!
sua revolta. Demorava-se uma semana em Mount Mtm estado de Nova Iorque, outra em Rochester,
tambéljl mesmo estado (onde a Escola Dominical Baptista davil lhetes aos estudantes para a sua
conferência como prfB escolar), outra em Pittsfield, no Massachusetts, out«3| Mihawaka, estado de
Indiana, outra em East Minneapij no Minnesota, outra em Quincy, no Ilinóis, outra em m lumbus,
no Ohio. i

Aquela vida de conferencista não era nada fácil nos m setenta. Wendell Phillips, numa carta datada
do Iowa, <M crevia a Pond em termos coloridos os tormentos por <j passava: «Tem estado um frio
de rachar. Ando por cidai pequenas, hospedo-me em hotéis ordinários e sofro basti tes
incomodidades, sempre a correr de um comboio M outro, a parar de estação em estação. Em onze
noites l dormi quatro numa cama decente.» ’

Os hotéis de tabique, gelados no Inverno e abafados t Verão, as refeições apressadas em


restaurantes ordinários, fatigante obrigação de ter de se exibir diante de um mar <

358

«tos tornava-se fatigante para Ann Eliza. Mas o pior de r°do e’ra passar a vida no comboio, com
uma sensação de laustrofooia. Afigurava-se-lhe que vivia permanentemente urna carruagem-cama
do Sr. Pullman, aos saltos, aos solavancos, sempre a parar e a partir de novo, nauseada com o cheiro
a tinta, a cobre, a madeira verde, com os olhos fatidos pejo contínuo desfilar da paisagem através
das janelas

O mais incómodo de tudo eram os beliches duros. Ao ler uma vez o Daily Times, de Leavenworth,
Kansas, descobriu que não era a única a sofrer com isso. Uma outra viajante queixava-se no jornal:
«Uma mulher, para fazer a sua toilette, prefere outra posição que não seja de cabeça para baixo.
Também não gosta de o fazer diante de toda a gente... Tem de se esconder atrás das cortinas e então
desaperta furtivamente uma fita do espartilho; envolve-se num impermeável e nem sequer se atreve
a tirar o puxo do cabelo com medo de alguma surpresa... Acho que seria um grande passo para a
civilização se arranjassem carruagens especiais para as senhoras dormirem e fazerem a sua toilette,
onde os cavalheiros não tivessem licença de entrar. Pensei nisto ao acordar, depois de um sono
sobressaltado, Suando vi que tinham baixado o estribo e havia um grupo e basbaques impávidos a
contemplarem sorridentes a minha beleza adormecida. Arranjem-nos carruagens separadas, meus
senhores...!»
Contudo, apesar de todas estas incomodidades, Ann Eliza não desistia. Enquanto a lei Poland se
revelasse pouco eficaz e a poligamia persistente, enquanto tivesse auditório que lhe pagasse as
conferências, havia de continuar. Em Agosto cie 1875, acrescentara à série uma quarta conferência
intitulada: «Utah, tal como era e como é hoje». Faziam-na ir repetidas vezes às mesmas
comunidades não só por causa do que ela dizia, como pela maneira como o dizia. com o decorrer
dos anos, as suas capacidades oratórias foram melhorando sempre. Em 1901, depois de ter sido
empresario durante quase três décadas dos mais hábeis orado^s do mundo, o major Pond afirmava
ainda, referindo-se a .n Eliza: «Posso declarar hoje que em toda a minha careira nunca encontrei um
orador tão sincero, tão interesjante e tão convicto. E tenho conhecido muitos. Ela defenQla Uin.a
causa e fazia-o sinceramente. Conseguia arrebatar auditórios com a sua eloquência.»

359
«Não tenho necessidade de lhe afirmar a minha conflj

na sua boa fé e capacidade em levar a bom termo o t$

lho ao qual se dedicou e em utilizar os talentos que B

lhe deu...» A outra, escrita por Mary A. Livermore, oft

vava que o livro fora lido «com doloroso interesse e q|

enchera de piedade e desolação», acrescentando: «Feliel

pela sua completa emancipação e por se ter finalmente!

nido àqueles que amava e que se encontravam ameadl

por um perigo real, que muito preocupava o seu coraçj|

filha e de mãe. Felicito-a igualmente por ter sido capai

dar ao mundo uma descrição do universo mormon quJ

até à data desconhecido por todos.» i

Os quarenta e um capítulos de A Esposa n.” 19 comi

vam com o nascimento e a infância de Ann Eliza e terna

vam com o seu regresso triunfal a Salt Lake City CH

conferencista famosa. A certa altura, na página trintj!

dois, a autora tenta explicar os motivos que a tinham tf

do a redigir a obra: i

«Arrisquei-me à tarefa de escrever este livro no inn

de mostrar ao mundo o que é realmente o mormonísij

de demonstrar a situação lastimável das mulheres nunÉi

tema de servidão mais cruel do que o dos escravos da M

ca, pois que ele lhes tolhe o corpo e a alma; de suscitl

compaixão pelas crianças e pelos jovens nascidos e cri|jj

numa atmosfera de impureza social; e, acima de tudo,.i|

despertar o coração do povo americano que acabará pw


sentir indignado. Consagrei-me a esta tarefa, não apfflj

por mim própria, mas por amor de todas as mulheres IH|

lizes do Utah, as quais, tal como eu, se sentem impoteil

e tímidas para quebrar as algemas que as escravizam.*!

Embora o livro se proponha descrever a historiai

Ann Eliza, ele está tão recheado de divagações acerca dej

guns dos apóstolos, dos danitas, da poligamia, tão soo!

carregado de histórias relativas a esposas polígamas maf2

zadas, que ao fim e ao cabo são raros os factos que dizl

respeito à própria autora. Não fala do nascimento dos j

lhos nem da sua educação. Nunca se refere ao nome <>

major Pond. Não apresenta cronologicamente as suas coi

ferências nem as dificuldades sofridas antes do êxito ^

T~> -K T- r

Denver. Não faz, sequer, uma descrição equilibrada da viáH pohgâmica no harém. Contudo, em
quase todas as paging

71 *”M «in« *-*V».3^i lyaW tU U111L/J. O.V4.** *» j.

pohgâmica no harém. Contudo, em quase todas as págin»1? surgem invectivas contra Brigham
Young. «Quem olha pá»-1

362

nuele homem», escreve ela na página duzentos e sessenta e ove, «rosado e sorridente, de aspecto
satisfeito, não imagina que s£Ja um déspota duro e cruel. Por fora parece limpo mas por dentro está
podre até aos ossos.»

’A prosa encontra-se cheia de um histerismo irreprimível. Na página quatrocentos e um, aparece-


nos uma passagem especialmente angustiada:

«Por que motivo os homens e as mulheres que vivem fora deste terrível sistema não se convencem
dos seus horrores e não trabalham para o destruir? A minha alma grita, por vezes, cheia de agonia:
não haverá remédio para tão grande mal? O mundo parece não lhe prestar atenção! A sua
enormidade não o atinge. Falam levianamente do mormonismo como de uma coisa grotesca que dá
vontade de rir e não o condenam. Deus sabe que nada há de grotesco nem de ridículo no que
respeita às suas vítimas. Nesse capítulo, ele constitui a mais patética, a mais trágica e séria das
realidades.»

Perto do fim, na página quinhentos e noventa e um, desculpa-se pelas invectivas que faz contra a
poligamia: «Acusam-me por vezes de exagero. Em resposta a tal acusação, apenas direi que isso é
impossível, eu não poderia exagerar, visto que a nossa linguagem é impotente para revelar metade
dos seus horrores. Há acontecimentos na vida quotidiana que a decência e a modéstia femininas não
me deixam sequer dar a entender... Nem uma palavra só desta história é exagerada ou inventada. A
dificuldade consistiu antes em suprimir e atenuar.»

. Aqui e acolá, entre os trechos de prosa espessa e os desvios das repetições, deparamos com um
facto notável acerca <ja autora e da sua vida com Brigham e com as mulheres deste. Mas uma vez
que era ela a primeira das esposas do rpteta a publicar a sua história em vida (a autobiografia de uza
R. Snow só veio a lume em 1944), Ann Eliza perdeu Uma.oportunidade de nos legar um contributo
histórico exSÍPcional, preferindo dar largas ao seu espírito de vingança. ^m 1925, M. R. Werner,
um dos biógrafos de Brigham ^oung, escrevia acerca do livro A Esposa n.” 19: «O leitor ql]rnir!a a
leitura das suas páginas desiludido com a autora, {{j e ^ão aproveitou nem metade das
oportunidades que se ela f* ec’am- Acaba por se aborrecer com os esforços que Vtz az Para se
arvorar em mártir e por se compadecer cada mais dos sofrimentos de Brigham Young.»

363
Muito embora os historiadores se mostrem desconfil tes com o livro de Ann Eliza, o mesmo não
sucedeu côa público. Dustin, Oilman and Company, os seus edital resolveram vendê-lo por
assinatura, de porta em portai tal como aconteceria com os Inocents Abroad, de MJ Twain, e com as
Memoirs, de Ulysses S. Grant, tendo d gado a pôr anúncios a pedir vendedores para se encan* rem
da campanha. «Nenhum outro livro saído das máji nas», afirmou o editor, «teve um acolhimento tão
favon nem causou uma satisfação tão completa. Chegavam! encomendas a toda a hora e todos os
dias ganhávamos terreno sem que houvesse necessidade de fazer reclalfl Os nossos agentes
alcançaram em toda a parte o êxito m extraordinário, chegando a receber por dia vinte, trini
quarenta encomendas.» v

Poucos ou nenhuns críticos de primeira plana se rqj ram ao livro. No entanto, os padres e
educadores nãolj daram em comentá-lo largamente na imprensa secB Thomas M. Dill, reitor de
uma escola de Cincinna||| Ohio, fez-lhe uma crítica notável. Achou A Esposa jjm um «contributo
necessário, instrutivo e interessante pd literatura americana». Também em Março de 1876 o dl do
The Christian Standard considerava A Esposa #.* «história simples e desataviada das penas e
sofrimW suportados por uma mulher dentro da Igreja MórnHJ O livro de Ann Eliza é um obstáculo
no caminho doj| phismo». 3

Alguns críticos mais recentes puseram em quest» facto de Ann Eliza ter sido a autora do livro,
sobrea porque a sua forma literária o tornava suspeito e tanM

ii j £ A«S

porque o tempo de que ela dispusera entre as conterei» fora em grande parte preenchido com visitas
e consÉ aos médicos. Afirma a filha de Brigham, Susan Youngi tes, naquela parte da biografia do
pai que não quis p«| car: «O livro assinado com o nome dela, A Esposa »-j escrito (de acordo com o
testemunho do seu empres^j major James B. Pond) pelo coronel Stratton que a acofflj nhava nas
conferências, era uma história lamecha ml bem urdida, contendo uma dose suficiente de verdade p
fazer chorar os leitores influenciados por Barnum.-- V* jor confessou-me que Ann Eliza não
escrevera urna ut linha das suas conferências; o seu autor era o major !>e

364

ton, qu£ também lhe escreveu o livro.» Esse escritor oculto quem a Sr.a Gates se refere como sendo
o «major Stratton» e ° «coronel Stratton» no manuscrito que só em parte veio a lume, era sem
dúvida o reverendo Stratton, que nunca acompanhou Ann Eliza nas suas viagens, embora lhe tivesse
prestado todo o auxílio literário que podia.

Stratton, porém, não é o único autor a quem foi atribuído este livro. A Sr.a John A. Widtsoe, neta de
Brigham Young, ouvira dizer que a autobiografia de Ann Eliza fora escrita às escondidas pelo
major Pond. O Dr. F. W. Cagle Jr., da Universidade do Utah e grande autoridade no que respeita à
poligamia, sugere que a obra deve ter sido escrita por J. H. Beadle, um editor falhado que andava
sempre sem dinheiro. Em 1870, Beadle publicara uma história do mormonismo intitulada A Vida
no Utah ou Mistérios e Crimes do Mormonismo, e em 1872 escrevera também anonimamente, e a
pedido do danita reformado Bill Hickman, O Anjo Destruidor de Brigham. Uma vez que Beadle se
encontrava falido em 1874 e em 1875, é possível que se tenha encarregado da tarefa de escrever por
conta de Ann Eliza. No entanto, o torn das cartas particulares desta, bem como das entrevistas
improvisadas que ela concedeu aos repórteres durante as suas viagens, tudo indica que, muito
embora pudesse ter contratado um escritor profissional para lhe corrigir os trabalhos, não oferece
dúvida de que foi ela quem escreveu e ditou A Esposa n.” 19.
Se bem que as obras de maior sucesso na época Daniel Deronda, de George Elliot, torn Sawyer, de
Mark Twain, e Miguel Strogoff, de Júlio Verne se tenham vendido mais do que ^4 Esposa n.” 19,
de Ann Eliza, a sua narrativa da vida no harém alcançou grande êxito e foi bastante rendosa.
Fizeram-se pelo menos três reedições. Nenhuma outra confissão da vida poligâmica se vendeu
tanto, nem então nem mais tarde.

Entretanto, no momento em que Ann Eliza entregava o

seu livro ao editor, tinha o seu desfecho outro problema

J^portante da vida dela, e isso proporcionou-lhe nova pu-

”cidade e redobrado interesse da parte do público. Em

,a« Lake City, o jornal The Deseret News anunciava que,

as sete da tarde do dia 25 de Fevereiro de 1875, o juiz Ja-

es B. McKean proferiria a sentença no processo de divór-

Cl° «Young contra Young».

365
Ia finalmente ser revelada a decisão. O juiz McKeaJl depois de resumir os argumentos, afirmava
que, na opin^H do tribunal, Ann Eliza estava legalmente divorciada3H James L. Dee, e que a
declaração de Brigham quanto «H facto de Mary Ann Angell ser a sua única esposa IçéB «tinha de
ser provada em tribunal antes de se poder cor^l derar como prova contra a queixosa». Portanto,
conclaH o juiz McKean, o casamento contraído entre Ann Elizdl Brigham era «legal e consistente
segundo as leis do terrilM rio e dos Estados Unidos, muito embora tivesse sido rejfl zado segundo
as fórmulas da Igreja Mormon». jH

Em conclusão, afirmava o juiz McKean, uma vez djH Ann Eliza fora esposa legal do Profeta, este
ficava obrigaaB a pagar-lhe três mil dólares pelas custas do processo dental do prazo de dez dias,
além de uma pensão alimentar cdfl efeito retroactivo desde a data em que fora entregue o pefpB do
de divórcio, ou seja um total de nove mil e quinhenwB dólares, pagáveis em vinte dias. J9

Esta decisão do juiz McKean, do Utah, causou granai celeuma nos círculos governamentais de
Washington. AÍB então o presidente Grant recusara-se a reconhecer a poliglB mia e considerava os
casamentos poligâmicos uma «prosljB tuição legalizada». Agora um dos seus funcionários, falaqB
do em nome do Governo Federal, reconhecia que udl casamento dessa natureza era legal e com isso
tornava a pOB ligamia mórmon legal e aceitável. É possível que, no stjÊ desejo de vibrar um golpe
em Brigham Young, o jutM McKean não tenha medido bem as consequências da SIM decisão. A
imprensa, no entanto, foi unânime em atacá-lfijM O Post, de Nova Iorque, escrevia: «com esta
sentença, < juiz McKean renegou os seus princípios e a Igreja Mórmonl bem pode acolhê-lo como
um convertido à doutrina da P**l ligamia.» _ JI

A agitação aumentou com a atitude tomada por ^rig ham Young. Embora satisfeito pelo facto de a
poligamia terl sido considerada legal, ficou indignado com o bom êxittff das «exigências» de Ann
Eliza. Pagava-lhe as custas nO-, montante de três mil dólares, mas recusava-se a conceder-Ihe a
pensão alimentar e punha-lhe nova acção no tribunal.

A 11 de Março de 1875, rodeado pelos seus advogados, Brigham enfrentava mais uma vez o seu
inimigo figadal, o juiz McKean. Uma vez que aquele se recusava a pagar a

366

nensão alimentar, o juiz queria provar que ele não acatara a decisão do tribunal. Os advogados de
Brigham alegaram Que haviam apelado para o Supremo Tribunal, e por isso não havia
desobediência da sua parte. O juiz replicou que a sentença «não tinha apelação». Ê depois de uma
breve controvérsia, concluiu:

«Decretamos, em vista disto, que o réu e culpado de desobediência às leis jurídicas e portanto a este
tribunal.

«E como não existe uma lei para as pessoas importantes e outra para as que o não são; e como é um
princípio fundamental da República o facto de todos os homens serem iguais perante a lei; e uma
vez que este tribunal deseja gravar bem tão grande lei, tão sublime princípio na mente de todos os
cidadãos deste território, decretamos:

«Que, em vista desta nova desobediência à justiça, o réu fica mais condenado a pagar uma multa de
vinte e cinco dólares e a cumprir um dia de prisão correccional.»

Não era esta a primeira vez que o juiz McKean mandava prender Brigham. Pouco tempo depois da
sua chegada ao Utah, cinco anos antes, ele tentara provar que o Tribunal Federal dos Não-
Mórmones tinha mais poder do que o Tribunal Territorial dos Mórmones. Sob a sua jurisdição,
certos casos até então julgados por júris mórmones passaram a sê-lo por júris não-mórmones. A
primeira questão surgiu quando Paul Engelbrecht começou a vender bebidas alcoólicas sem licença.
A polícia de Brigham assaltou-lhe o estabelecimento e despejou numa valeta todo o álcool que
encontrou. O dono do estabelecimento pôs uma questão no Tribunal Federal e foi ouvido pelo juiz
McKean e por um júri não-mórmon. Engelbrecht recebeu uma indemnização de cinquenta e nove
mil dólares, três vezes superior aos prejuízos sofridos. Os mórmones apelaram para o Supremo
Tribunal dos Estados Unidos.

Enquanto se decidia a questão, o juiz McKean resolveu

razer frente ao Profeta, que acabava de se casar então com a

sua vigésima sétima esposa. Invocando a antiga lei contra a

blgamia de 1852, McKean conseguiu que um grande júri

acusasse Brigham de «coabitação ilegal e lasciva». Liberto

mediante uma fiança de cinco mil dólares até se marcar a

ata do julgamento, Brigham resolveu ir passar o Inverno

a i>t. George. McKean interpretou esta viagem como uma

u§a à justiça e logo o intimou a comparecer no Tribunal

367
de Salt Lake City, no dia 2 de Janeiro de 1872. Os apod los recearam que Brigham fosse perseguido
e alvitrai uma fuga para o México, mas aquele recusou. «Deus tal se encontra nos tribunais como
nos campos de batalhi nos milagres», declarou. «Não oponho resistência. Obél cerei à intimação.»
Tj

Percorrendo trezentas milhas em nove dias, ora de cm rete descoberta ora no seu comboio
particular, coniJ tempo de Inverno rigoroso, Brigham regressou a Salt Lf City para ser julgado. O
juiz McKean não ocultou os 12 tivos que o impeliam. «É indispensável que ambas as pát e também
este tribunal tenham bem presente o carwj particular do caso que estamos julgando», declarou’-!
«Muito embora o processo se intitule o Povo com Young, seria mais próprio dizer ”as autoridades
fedel contra a teocracia poligâmica”... É um sistema que está» causa na pessoa de Brigham Young.»
Dentro em breve» foi considerado culpado e preso na Colmeia, sob a gun permanente de um tal
capitão Evans. Este, um home trinta e cinco anos, era tão atraente que as filhas de BB ham Young
não tardaram a apaixonar-se por ele e afila vam que «não se importavam nada de terem o pai preso»
quelas condições». Ao cabo de três meses de reel»» passados na sua maior parte numa cadeira de
baloiço e vado de pregar no púlpito bem como de ir ao teatro a viajar pelo seu reino, o destino de
Brigham foi finalmH decidido pelo Supremo Tribunal quanto ao caso Enm brecht, limitando-se
assim a jurisdição dos tribunais £ rais. A 15 de Abril de 1872, o juiz McKean recebia uirfl legrama
de Washington: «Júri considerado ilegal: anulaffl acusação; processo arquivado. Decisão unânime.»
Os p<| cias mórmones que haviam assaltado o estabelecimento*! Engelbrecht foram readmitidos e
Brigham posto em lil^j dade. f *

No domingo seguinte, Brigham apareceu no TabernaG Io diante dos fiéis e exclamou: __ ’

Uma palavra para os Santos dos Últimos Dias: b» dias!

Bons dias! respondeu a assistência.

Como têm passado?

Bem, obrigado! retorquiram em coro.

Como vai a vossa fé no Senhor?

368

. Inabalável! Que aspecto me encontram depois da minha longa

prisão.”

O melhor possível!

Por seu lado, o juiz McKean não se sentia o «melhor possível». Esperava pacientemente uma nova
oportunidade. Esta surgia agora, em 11 de Março de 1875, no julgamento da sua amiga Ann Eliza.
Era a segunda vez que ele dava ordem de prisão ao chefe mórmon.

Colocado sob a custódia do delegado dos Estados Unidos, o chefe da polícia A. K. Smith, levaram-
no até à Casa do Leão, para jantar com as suas esposas. Depois de empacotar uma muda de roupa,
entrou na carruagem do chefe da polícia e partiu para a penitenciária, situada a quatro milhas da
cidade. Aí, encerraram-no numa cela já ocupada por treze criminosos. No entanto, à noitinha, foi
mudado para um quarto confortável junto ao gabinete do guarda. O Dr. Seymour B. Young, médico
e sobrinho de Brigham, bem como Daniel H. Wells, prefeito de Salt Lake City, e um criado da
Colmeia, chamado William A. Rossiter, passaram a noite na prisão, fazendo companhia a Brigham.
No dia seguinte, 12 de Março de 1875, cumprida a pena, Brigham era posto em liberdade.

No Leste, entre duas conferências, Ann Eliza soube a boa notícia da vitória que alcançara. Através
de McKean ela triunfara onde todos os inimigos do Profeta haviam falhado obrigara-o a cumprir
uma pena numa penitenciária federal.

Por estranho que pareça, quem entretanto parecia ser considerado o vilão da farsa pelo tribunal da
opinião pública era o juiz McKean, enquanto Brigham passava por herói. Como é natural, The
Deseret News mostrava-se indignado: «As pessoas mesquinhas e desprezíveis podem considerar
uma glória o facto de um cavalheiro muito dign° e respeitável ter sido enxovalhado, ele que fez
mais pela e*Ja e pela humanidade em geral do que os seus inimigos °ros Juntos nunca serão capazes
de fazer, ainda que vivam ate à idade de Matusalém.»

. U que parece estranho é que os jornais fora de Salt La-

e City abundassem nas mesmas ideias. O Herald, de

^.niaha, considerava a sentença de McKean «uma bela exi-

Çao de mesquinhez pessoal e de malícia por parte de um

369
puritano beato que fora expulso do Congresso alguns antJi atrás». O Leader, de Pittsburg, era da
mesma opiniyH «A verdade é que o juiz McKean procedeu sempre conJH um beato falso desde que
veio para o Utah.» E o BuU^^m de São Francisco acrescentava: «A tendência para tom^l partido
afigura-se-nos aqui muito forte. O resultado é^H o juiz não tarda a assumir o papel de acusador. Já
acon^l céu isto com o predecente. Agora McKean foi vítimalH mesma influência.» ^H

Cinco dias depois da libertação de Brigham, o seu grfll de inimigo era demitido do lugar. O
presidente Grant eá|BÍ vá farto de suportar as irregularidades deste funcionária^B certa vez em que
se debatia o processo de uma compam^B mineira onde McKean possuía a maioria das acções, q^l
presidiu ao julgamento porém a legalização do casamdH to de Ann Eliza e a prisão do Profeta era o
cúmufM McKean foi posto na rua porque, segundo afirmava w^l hington, «as suas decisões eram
tirânicas, insensatas, éj^l excedia as suas funções como juiz». Vencido, McKôlB abriu banca de
advogado em Salt Lake City, onde se n^H teve até morrer com uma febre tifóide em 1879. J^l

O substituto de McKean foi o juiz David P. Lowe,i|H tigo membro do Congresso pelo Kansas. Ann
Eliza f<|^l you imediatamente o seu pedido de pensão alimentar. $ o juiz Lowe, pelos vistos
obedecendo a ordens superiojj^M revogou a sentença do seu predecessor decretando quf^l
casamento dela com Brigham não era válido e portanto’^H tinha direito a qualquer pensão. A
imprensa mórmon DM^B juiz Lowe nos carrapitos da lua. The Deseret News abnajH vá: «A
sentença foi cuidadosamente elaborada e mosnf^B profunda atenção que o juiz prestou ao assunto.
O seu ÉH ciocínio é tão claro, a todos os respeitos, que se nos afiglH indiscutível e é considerado
pelos membros do foro conWíM opinião mais douta jamais publicada pelo tribunal ne^H
território.» _ *]

O triunfo dos mórmones foi de curta duração. O JU*|H Lowe demitiu-se e foi Jacob S. Boreman
quem veio a O&0Í9 par-se do novo processo intentado por Ann Eliza. O 9°*1| se seguiu é relatado
numa carta de Brigham para Albert^ Carrington, presidente da Missão Europeia Mórmo»$*|
«Pensava-se que o processo vulgarmente chamado ”o ca» l de Ann Eliza”, pelo que respeita ao
pedido de pensão a«*

tar, não voltaria a ocupar os tribunais, porém, graças a oormenor técnico da lei que os advogados
dela desço-

lllll i1’1* ’ T»

, nram, o processo voltou a vir a lume perante o juiz Boreman que me intimou a provar em que
medida eu não desobedecera aos tribunais por não haver pago a pensão conforme ordenara o juiz
McKean... Depois de discutido o caso em conselho, ele decretou que eu devia pagar a quantia
indicada, de contrário seria preso até a entregar. Colocaram-me sob a vigilância do chefe da polícia,
Maxwell, o qual, vendo que eu estava demasiado doente para me deslocar, me colocou sob a
custódia de dois dos seus funcionários. A princípio verificou-se um certo mal-estar, mas agora tudo
corre normalmente.»

Onze dias depois, Brigham escrevia de novo a Carrington: «Continuo preso, à ordem do chefe da
polícia, embora não passasse pela cabeça de ninguém, santo ou pecador, que eu tivesse intenção de
fugir daqui, mesmo que não Houvesse qualquer chefe da polícia ou outro funcionário do governo
num raio de mil milhas.»

Brigham encontrava-se mais uma vez preso, de guarda à vista, no seu harém. Alguns jornais
consideravam este castigo cruel e desumano. Outros duvidavam que Ann Eliza tivesse direito aos
nove mil e quinhentos dólares que Brigham se recusava a pagar-lhe. Entre estes contava-se o Daily
Alta Califórnia, de São Francisco, e Ann Eliza deve ter ficado desolada ao ler o artigo de fundo de 3
de Novembro de 1875:

«Não temos qualquer simpatia especial por Brigham Young nem sentimos tolerância pelos seus
malabarismos matrimoniais. Em muitos outros aspectos consideramo-lo censurável, mas a nossa
antipatia pelo homem ou a repulsa ^e a sua religião nos inspira não nos impede de repudiar a
enorme injustiça que uma mulher e a parcialidade dos homens procuram fazer-lhe. Obrigaram-no a
escolher entre Pagar a Ann Eliza, que aos olhos da lei não passa de uma imante, o que só seria
devido a uma esposa pura e virtuo?a’ Ou, então, a ir parar à cadeia por desobediência ao tri-

«Ann Eliza já tem idade e mentalidade suficientes para

a eij ° que lhe convém. Possui a experiência da casa do

Pai> da família dos irmãos e dos outros mórmones políga-

°s à sua volta; tinha obrigação de saber o que era a poli-

370

i^

371
gamia antes de se juntar às outras esposas de BriehwB Young; ela não era nenhuma inocentinha...
í^B

«Se acaso Ann Eliza tivesse ido junto do Tribunal Ftit^B ral queixar-se de que se sentia degradada
com a poliganâ^B pedir que a libertassem, no caso de ser possível, das ^^B relações com Brigham
Young; se apenas pretendesse qtMÍ^K tribunal lhe concedesse a sua protecção, ela seria rnereceá^B
rã da simpatia que todos podem sentir pelas vítimas de<3B entusiasmo passageiro... :3JUt

«Porém, desfalcar Brigham nuns tantos milhares de JflB lares, como ela pretende, só serve para dar
força aos ntÉBI mones nas acusações que fazem aos juizes não-rnórmo«M| de que estes os
perseguem implacavelmente...» ’^B’

Se Ann Eliza julgava, apesar dos ataques da impré^Hg que estava agora perto de alcançar a vitória,
enganavstÉHfc mais uma vez. O presidente Grant nomeara J. Alexanjj^BI White juiz-presidente do
Utah. Agora era este quem totÉ^B vá conta do caso. Quando Brigham invocou o direitoxj^^B
habeas corpus, o juiz White coricedeu-lho e, ao c4H| de cinco meses de prisão, ele era de novo
libertado. A’l^B de Novembro de 1875, Amos Musser noticia no seu Jorn^H «... ele foi solto esta
manhã por ordem do juiz-presidéÉ|H| White, invocando o habeas corpus. Assim, mais uma v^|^j[’
verifica que a justiça triunfa da tirania e da opressão. ^jMMf ças a Deus!» ’’JlR

No entanto, o processo de divórcio continuava a ar^MMi tar-se. Passados três meses, o juiz White
foi-se embora JIB virtude de o Senado não ter aprovado a sua nomeação. |HB lugar dele
encontrava-se agora o juiz Michael Schaeffer. **^B te era de opinião de que Brigham devia pagar a
pensão *|R mentar, reduzindo no entanto para cem dólares a mens*Bp dade que era de quinhentos.
Estipulava igualmente que *Blp entregasse a Ann Eliza apenas três mil e seiscentos^dolw^P em vez
dos dezoito mil a que ascendera já a sua dívida P*|3|f com ela. Em face da recusa de Brigham, o juiz
confiscflW,^ ^ -lhe três parelhas de cavalos, outras três de mulas, três w* cãs, três carruagens e
preparava-se com toda a calma p»~ | as vender em hasta pública. Nessa altura, Brigham proi»
. teu pagar os três mil e seiscentos dólares e cumpriu. l

No entanto, a última palavra acerca do divórcio *J° ’ não fora ouvida. A 18 de Abril de 1877 o
Times de NOV» Iorque publicava uma nota enviada na noite anteri

372

n nrimeiro cabeçalho era do seguinte teor: UMA ESCRAVA EM LUGAR DE ESPOSA. O


segundo: O PROCESSO DE ANN ELIZA A DECISÃO. O CASAMENTO ANULADO E
INVALIDADO. Ao cabo de quatro anos de lutas incessantes, o juiz Schaeffer dava a decisão final,
desta vez sem apelação possível. Ann Eliza nunca fora casada legalmente com Brigham Young,
portanto este não lhe devia pensão alimentar alguma. Brigham deveria pagar as custas do processo.
Estava encerrado o caso.

Num editorial de 2 de Maio de 1877, o Times, de Nova Iorque, manifestava a sua aprovação formal:
«A sentença do juiz Schaeffer afigura-se-nos baseada no bom senso e na equidade. Qualquer
mulher, para ter apoio legal num processo de divórcio, tem de ser legitimamente casada. Afirmar
3ue vinte e nove mulheres têm o direito de pedir o divórcio o mesmo homem seria considerar que
todas elas estavam casadas legalmente com ele e que a poligamia era reconhecida pelos estatutos.
Brigham Young alegou que vivia numa situação de concubinagem mística. O Tribunal dos Estados
Unidos confirma este ponto de vista, pelo que respeita à concubinagem. Seria interessante saber-se
o que os mórmones, homens e mulheres, pensam disto.»
Ambas as partes parecem ter ficado aliviadas com esta conclusão, tanto os mórmones como Ann
Eliza. Os historiadores mórmones consideram o caso «uma vingança malévola»; um deles afirma
que tal vingança, instigada pela chantagem, era «uma vergonha para aquela que a instaurou». Ao
sair vitorioso, Brigham ficara com o seu dinheiro, mas perdera a última probabilidade de legalizar,
dentro do pais, o casamento poligâmico. Agora todas as suas esposas, com excepção de uma só,
eram concubinas. Se alguma delas °. deixasse não poderia esperar dele apoio financeiro nem
situação social. No caso de a vigésima sétima esposa ter ganho a questão, dizia-se que Mary van
Cott e talvez mais uma ou duas lhe teriam seguido o exemplo. Arrumado o «caso de Ann Eliza»,
voltara a reinar a paz, ou pelo menos a resignação, na casa do Profeta.

-”-Pesar do estigma da concubinagem, Ann Eliza não se

. Portara de perder o processo. Não podia dali em diante

’tular-se honestamente ex-esposa de Brigham Young,

Púhl* P^icidade que lhe alcançara a derrota atraía mais o

lco do que nunca. Este acréscimo do rendimento vinha

373
compensar a pensão que perdera. Conseguia, assim, encÉÍ

trar na derrota um certo sabor de vitória. E escreveu atj|

peito da sentença do juiz Schaeffer, alguns anos dep9

«Não há dúvida de que a sua decisão foi correcta, ro|

a questão, mas consegui obrigar aquele monstro horrra|

desmascarar-se no tribunal. Para salvar o seu dinheiro Jl

de confessar que a sua conduta era contrária à lei. Portal

o mundo inteiro que julgue o seu procedimento e a verlB

dade das suas palavras.» 9

A luta jurídica do Profeta contra Ann Eliza foi a”jm

derradeiro combate neste mundo. Dali a quatro meses ojl

gante mórmon estava moribundo. ,!||

O fim chegou pouco a pouco, como que por tentatn|

A 19 de Agosto de 1877 pregou um sermão a dois raB

quinhentos «Santos», em Brigham City. No dia segutíH

regressou de comboio a Salt Lake City. Se não fosseinH

rugas de fadiga que lhe sulcavam as faces e a tendência JH

estar mais tempo sentado do que em pé, ninguém lhe di|

setenta e seis anos. Passou o dia 23 de Agosto à secretí^B

como de costume, ora na Colmeia ora na Casa do Lttjfl

queixando-se embora de náuseas. Presidiu à oração da fl|

te com as esposas na sala principal da Casa do Leão eJM

pois discutiu com Eliza R. Snow a possibilidade de el^ji|

algumas das esposas com uma ou duas filhas fazer co^H

rências em várias terras. Eliza R. Snow era de opin””’IM

que essas felizes mulheres deveriam servir-se, como liv*i’*j^B


texto, da obra As Mulheres no Mormonismo e mesmo *j^l

derem alguns exemplares dessa obra de Edward W. TufflM

gê. Isto representava um esforço no sentido de COP*|H

-atacar o antimormonismo despertado por Ann Ehz^M

outros oradores «gentios». Brigham considerou a Pr°P^H

excelente. «Trata-se de uma experiência», declarou $!

«mas que eu gostaria que fizéssemos.» Sentia-se fatiga<wBI

pegou na vela. «Acho que agora you descansar.» Nessa |^B|

te, às onze horas, na sua cama da Casa do Leão, Bngn^|

foi atacado por aquilo que então se chamava cólera ”J°r^9

mas que mais tarde uma das filhas definiu como sendo OT*

apendicite aguda. Chamaram o Dr. Seymour B. ^°unS’J^,

brinho do Profeta, e mais outro médico, que lhe pre.star*°jj

cuidados pela noite fora. Nos dois dias seguintes foi tra-<j

do por quatro médicos. Diagnosticaram uma in flam aç^

nos intestinos. Sofria de dores intensas, mas nos interv

374

dirigia graças às pessoas de família que o rodeavam. No auarto dia, o caso agravou-se. As orações
deram lugar a cataplasmas quentes aplicadas sobre o coração e à respiração artificial- Quando
alguém, que o via gemer num estado de semj.jnconsciência, ajoelhou junto à cama, perguntando-Ihe
se sofria muito, ele replicou em voz débil: «Não, acho que não.»

Na quarta-feira, 29 de Agosto de 1877, soube-se que estava perdido. O sobrinho deu-lhe uma forte
dose de ópio e transportou-o para o enorme leito de dossel junto de uma janela aberta. Ô irmão,
Joseph Young, e o filho deste, John W. Young, encontravam-se junto dele, bem como «algumas das
esposas e muitos filhos». Passou-se a manhã e chegou a tarde. Por momentos pareceu voltar a si.
Abriu com dificuldade os olhos. Segundo diz a filha, Zina, olhou para o tecto e chamou em voz alta:
«Joseph! Joseph!» Depois ficou inconsciente. Cerca das quatro da tarde, enquanto os que o
rodeavam se ajoelhavam para orar, expirou. «Ao contemplar aquele nobre rosto», afirma Zina,
«achei que ele se parecia com um deus!»

Dali a três dias, metido num simples caixão de pinho, foi exposto sob o arco do enorme
Tabernáculo. O órgão e uma orquestra tocavam a Marcha. Fúnebre, de Mendelssohn. Foi George Q.
Cannon quem pregou o sermão. Durante dois dias, mais de quarenta mil pessoas desfilaram diante
do caixão para verem aquele a quem Cannon apelidara de «o cérebro, os olhos, os ouvidos, a boca e
as mãos de toda a igreja...» A 2 de Setembro de 1877, o caixão desceu a cripta do cemitério
privativo atrás da Casa do Leão. Acompanharam-no até à sepultura quatro mil fiéis, em filas de
oito, todos vestidos de preto. Dezasseis das esposas vivas estavam presentes diz-se que apenas
faltava Ann Eli?a- A esposa legal, Mary Ann Angell, seguia pelo braço da avonta, Amélia Folsom.
Encontrava-se também ali a maior Parte dos seus quarenta e quatro filhos vivos.

«O nome de Brigham Young é bem conhecido em todo

mundo», escrevia o jornal The Deseret News. «A sua

S andeza é universalmente aceite, porém a sua bondade a

r ucos foi revelada.» No Leste, em vésperas de partir para

a nova série de conferências, Ann Eliza não fazia parte

j SSa minoria. O luto não a impedia de continuar despeita-

ngham continuava a ser para ela «um grande embus-

375

teiro e um falso profeta cujos ensinamentos haviam trazido a todos nós estranhas vicissitudes e
muitas desgraças... Nunca deve ter existido quem exercesse maior poder sobre os homens e as
mulheres juntamente com tamanha mesquinhez e tão repelente desonestidade».

Depois de morto, Brigham retribuía-lhe a amabilidade, j O seu testamento, redigido em 1873 e


acrescentado em’
1875, contemplava todas as suas esposas vivas excepto Ann s Eliza. Nomeava seus executores
George Q. Cannon, Brigham Young Jr. e Albert Carrington, encarregando-os de administrar os dois
milhões de dólares que legava às suas mulheres e filhos. Visto o testamento ter sido feito no mês em
que Ann Eliza fugira do Utah, Brigham teve o cuidado de definir o que entendia por «esposa».
«Para evitar equívocos», escreveu ele, «as palavras casado ou casamento, neste testamento,
indicam que este facto deve ter sido consumado entre o homem e a mulher, quer por meio de uma
cerimónia praticada na presença de um magistrado legal ou j segundo o rito da Igreja de Jesus
Cristo e dos Santos dos ’ Últimos Dias ou então em virtude da coabitação segundo os nossos
costumes.»

Foram designados dezanove grupos ou «classes» para partilhar a herança. Clara Decker, Harriet
Cook, Susafl Snively, Eliza Burgess, Margaret Pierce, Eliza R. Snow, Namaah K. J. C. Twiss e
Martha Bowler herdaram a Casa do Leão «como residência enquanto vivessem». Amelia Folsom e
Mary Ann Angell ficaram com a Casa Gardo, no valor de cem mil dólares. Além destas casas e do
capital em dinheiro, Brigham deixou ainda a Mary Ann Angell uma propriedade no valor de vinte
mil dólares, duas no valor respectivamente de cinquenta mil e quarenta mil a Emmeline Free, uma
no valor de doze mil a Emily D. Partridge, duas no valor de trinta mil e cem e cinco mil e duzentos
a Clara Decker, uma no valor de dezasseis mil a Ziná D. Huntington e outra no valor de dezoito mil
a Mary van Cott. Três filhos e vinte e sete filhas receberam também heranças em propriedades
imóveis.
Menos de dois anos a seguir à morte de Brigham, os testamenteiros desviaram cerca de um milhão
de dólares da herança a favor de dignitários da igreja. Afirmavam eles que Brigham pedira grandes
somas à igreja para satisfazer as suas necessidades pessoais e que era preciso reembolsá-la.

Sete das esposas de Brigham e algumas das filhas consideraram isto uma roubalheira e instauraram-
lhes um processo no tribunal, no dia 14 de Junho de 1879. A principal instigadora do processo era
uma das filhas do Profeta e de Emmeline Free, rapariga de vinte e seis anos, chamada Emmeline A.
Young Mclntosh. Parece que esta Sr.a Mclntosh ficara descontente logo de início, pois o pai apenas
lhe deixara a ela a quantia de três mil dólares e uma pequena parte da herança da mãe. Quando
viram que o processo estava a ser muito divulgado no Leste, sobretudo através das páginas do
Times, de Nova Iorque, os testamenteiros resolveram entrar em acordo com as sete litigantes. Uma
vez que se revelava quase impossível separar os bens de Brigham dos da própria igreja, as sete
esposas e respectivas filhas decidiram dividir entre si um capital de setenta e cinco mil dólares. Por
isso, em Setembro de 1879 foi retirada a queixa do tribunal e as partes em causa consentiram em
não transformar as suas reclamações numa fraude pública.

Brigham deixara por sua morte dezassete viúvas. com excepção de Ann Eliza, todas elas acabaram
obscuramente. Mary Ann Angell, na sua qualidade de esposa legítima, tinha direito a exigir um
terço da enorme herança, mas recusou-se a fazê-lo. Sempre inválida, retirou-se para a sua casa, uma
escola abandonada que ficava atrás da Casa do Leão e onde vivia juntamente com uma vaca
instalada num dos compartimentos. Morreu a 27 de Junho de 1882, com setenta e nove anos.

Lucy Decker, a terceira esposa de Brigham, sobreviveu a este mais treze anos e veio a morrer em
Janeiro de 1890, com a idade de sessenta e oito anos. Harriet Cook, a recalcitrante quarta esposa,
deu tormentos ao marido nos últimos tempos da vida deste. Na Primavera de 1874 ameaçou-o de
seguir o exemplo de Ann Eliza e pedir o divórcio. No dizer do Tribune, de Salt Lake City, «sabe-se
que, no intuito de evitar mais litígios, o velho polígamo foi obrigado a puxar pelos cordões à bolsa,
dando-lhe as moedas suficientes para fazer calar as exigências da esposa. Esta disse um adeus
definitivo ao seu detestado senhor e daí em diante nunca perdeu a oportunidade de lhe declarar o
que pensava acerca do Divino Mandamento».

Harriet Cook não odiava menos Ann Eliza do que ao mando. Em Chicago, declarou à imprensa que
as conferên-

376

377
cias desta não passavam de mentiras, que a vigésima sétima esposa possuía belos vestidos, dinheiro
suficiente e uma boa casa no valor de vinte mil dólares e que Brigham nunca lhe dera motivos para
o divórcio. Depois da morte do marido, ficou a viver em Salt Lake City, até falecer vítima de um
ataque cardíaco, em Novembro de 1898, aos setenta e , quatro anos.

Augusta Adams, quinta esposa, sobreviveu ao marido mais nove anos, deixando este mundo em
1886, com oitenta e quatro anos. Clara Decker, a sexta esposa, habitava numa casa particular em
State Street, dedicando-se a obras de caridade, e veio a morrer em Janeiro de 1889, com sessenta e
um anos. Emily Dow Partridge, a oitava esposa, entregou-se toda ao serviço do templo. Evitava a
companhia das suas colegas e passava grande parte do tempo a escrever tiradas do seu diário, que
não mostrava a ninguém, pois continham observações «contundentes» contra Brigham Young.
Quando morreu, aos setenta e cinco anos, em Dezembro de 1899, habitava uma enorme casa de dois
andares na Third East Street. Tal como muitas das outras esposas, deixou especificado que não
desejaria ser enterrada ao lado do marido no cemitério particular.

Susan Snively, décima terceira esposa, viveu ainda muitos anos antes de sucumbir em Novembro de
1892, contando setenta e sete anos de idade. Margaret Pierce, décima sétima esposa, teve ainda uma
vida muito longa. Sobreviveu ao marido umas três décadas, morrendo aos oitenta e cinco anos, em
Janeiro de 1907. Martha Bowler, décima quinta esposa, contava sessenta e oito anos quando morreu
em Salt Lake City, em Setembro de 1890.

Zina D. Huntington, décima oitava esposa, passou a viajar a seguir à morte do marido. Após dois
anos de luto, partiu numa missão, para o Havai. Passados mais dois anos, dirigiu-se a Nova Iorque
para pregar o evangelho mormon. Em 1901, aos oitenta anos, presidia às Sociedades de Auxílio da
Igreja e empreendeu uma viagem pelo Canadá. Foi aí que adoeceu, regressando à pressa a Salt Lake
City, onde veio a morrer em Agosto do mesmo ano.

Lucy Bigelow, velha inimiga de Ann Eliza, ficou a viver na casa de Inverno de St. George, no Utah,
durante quinze anos a seguir à morte do marido. Ficara muito mal vista aos olhos deste quando
permitira que Dora, uma das suas

378

três filhas, se casasse com um não-mórmon chamado Morley Dunford, sendo a cerimónia do
casamento celebrada por um pastor episcopal. Felizmente para Lucy Bigelow, Brigham já não era
vivo para ter conhecimento do segundo enlace dessa sua filha Dora. O noivo era nem mais nem
menos do que o antigo advogado no divórcio de Ann Eliza, o juiz Albert Hagan, viúvo nessa altura.
Dele teve quatro filhos e foi por sua causa que se converteu ao catolicismo. Nos anos que se
seguiram à sua viuvez, Lucy Bigelow cumpriu várias missões fora da terra, sendo a mais notável no
Havaí. Em 1898, viveu em Berlim em companhia de uma neta que estudava canto. Morreu em
1905, com a idade de setenta e cinco anos.

Eliza R. Snow permaneceu na Casa do Leão, onde escrevia os seus poemas, dirigia as outras
esposas e se ocupava de obras de caridade. Em Dezembro de 1888, aos oitenta e quatro anos, partiu
desta vida na convicção de que iria reunir-se para toda a eternidade ao seu primeiro marido, Joseph
Smith. Eliza Burgess, a vigésima terceira esposa, fora encarregada de manter a casa de Provo
durante a vida do marido. Porém, no ano seguinte à sua morte, regressou ao tumulto de Salt Lake
City. Sobreviveu a todas as outras mulheres do harém, vindo só a morrer em Agosto de 1915, no
mesmo ano em que o Lusitânia foi ao fundo, em que Henry Ford apresentava ao público o seu
primeiro modelo de automóvel e em que Hollywood produzia um filme chamado O Nascimento de
Uma Nação. Harriet Barney, a vigésima quarta esposa, morreu em Fevereiro de 1911. Mary van
Cott, de quem Brigham teve o seu derradeiro rebento, ficou sempre desolada depois que Ann Eliza
se foi embora. A certa altura, quase resolvida a deixar o Profeta, deixou-se convencer pelos pais a
levar a cruz ao calvário. Para evitar novo escândalo, Brigham reconstruiu-lhe a casa, mobilou-Iha
de novo e ofereceu-lhe um enorme piano. Ela então, por amor da filha, desistiu da separação. Em
breve a morte de Brigham vinha conceder-lhe a liberdade que tanto desejara. Mas só sobreviveu ao
marido por mais sete anos, vindo a morrer aos quarenta, em Janeiro de 1884.

Os historiadores mórmones proclamam que nenhuma das viúvas de Brigham, com excepção de Ann
Eliza, tornou a casar. Há provas, no entanto, de que duas delas o fizeram, uma antes da sua morte e
outra depois.

379
mm

Existem duas versões acerca da maneira como Mary Jane Bigelow, a vigésima primeira esposa,
conseguiu secretamente divorciar-se do Profeta. Segundo a versão mórmon, Mary Jane descobriu
que não amava o marido e que se sentia infeliz com a poligamia. Abriu o seu coração à irmã, a
vigésima segunda esposa de Brigham, e esta aconselhou-a a revelar a verdade àquele. Foi o que ela
fez. Brigham mostrou-se compreensivo e deu-lhe a liberdade nesta vida, com a condição de se
reunir a ele na eternidade. De acordo com a versão dos não-mórmones, Brigham descobrira que
Mary Jane tinha uma ligação amorosa, acusara-a de adultério e despachara-a para casa dos pais.
Fosse como fosse, Mary Jane separou-se de Brigham e contraiu depois mais três matrimónios,
sucessivamente com John Bair, com Daniel D. Hunt e com Philander Bell, este último em Abril de
1868. Todas estas uniões eram apenas válidas no tempo. A eternidade ficava reservada para o
Profeta.

A única viúva que veio a casar-se depois da morte de Brigham foi a vigésima quinta esposa, a
favorita, Amélia Folsom. A 26 de Agosto de 1878, um ano depois da morte do chefe mórmon, o
Times, de Nova Iorque, trazia a seguinte notícia: «Um telegrama de Salt Lake City revela-nos que
Amelia Folsom, esposa favorita de Brigham Young, se casou na terça-feira, 15 de Agosto, na Casa
dos Votos, com John Leavitt, funcionário superior da Companhia de Caminhos-de-Ferro Central do
Utah. Amelia é a segunda esposa do Sr. Leavitt.» Devemos acrescentar que a imprensa mórmon não
se referiu a este segundo casamento de Amélia e quer ele se tenha realizado quer não os seus
parentes, ainda vivos, negam que ela tivesse tomado outro esposo depois , de Brigham. j

Durante a viuvez a existência de Amélia foi muito ocu- j pada e tranquila do ponto de vista
financeiro. Quando fi- . cou pronta a Casa Gardo, no valor de cem mil dólares, vi- , véu nela
durante um ano, depois decidiu que era muito grande e espalhafatosa. Vendeu-a à igreja e mudou-se
para uma residência mais confortável, na South First West Street, conhecida depois pelo nome de
Júnior Gardo. Ocupava-se de investigações genealógicas, de horticultura, de obras religiosas, sem
contudo nunca falar em público. Viajou muito pela Califórnia e pelo estado de Nova Iorque, depois
pelo estrangeiro, onde passou grandes temporadas, so-

380

bretudo em Inglaterra e França. Em 1886, assistiu ao casamento de uma prima afastada, Francês
Folsom, com o presidente Grover Cleveland, na Casa Branca.

Em 1893, com cinquenta e cinco anos, Amélia deu uma entrevista rara a um repórter do Daily
News, de Chicago.

O jornalista perguntou-lhe se fora feliz no casamento com Brigham.

Não gostaria de dizer o contrário declarou Amelia. Porque não? Pertencíamos todas à mesma
família e tratávamo-nos como tal. Seria capaz de fazer fosse o que fosse em favor das esposas do
Profeta que ainda vivem e creio bem que elas procederiam da mesma forma comigo.

Quantas vezes casou o seu marido depois de se ter unido a si?

Duas. Antes não sei quantas foram. Pode ver-se pelo seu testamento.

Mais adiante, o repórter atreveu-se a perguntar:


Dizem que a senhora era a esposa favorita.

Não posso dizer que havia favoritas respondeu Amélia. Ele era igualmente atencioso e amável
para todas nós e deixou a cada uma um legado equivalente.

Continua a acreditar na poligamia?

Pois decerto. Se dantes achava que estava certa, hoje continuo a achar. Não há razão para que um
casamento poligâmico não seja feliz, desde que se aceite com compreensão.

Depois de discutirem durante uns momentos acerca do futuro da poligamia, o repórter perguntou
subitamente se Amélia tinna filhos.

Lamento ter de dizer que não tive respondeu ela.

Sinto a todo o momento que os filhos teriam sido para mim uma fonte inestimável de conforto e
companhia na hora actual. Vivo aqui sozinha, embora as visitas constantes das outras esposas do
presidente Young constituam para mim um grande prazer.

Quantas viúvas existem ainda do presidente Young?

Somos nove declarou Amélia. Nomeou-as por ordem de idade, tendo o cuidado de se referir à
décima. Recusava-se a falar de Ann Eliza, que então vivia em Manistee, no Michigan. E terminou a
entrevista afirmando:

Reunimo-nos todas por ocasião da Festa de Acção de Graças na residência de uma das netas do
presidente Young, nesta cidade.

381

EL
Amelia viveu ainda dezassete anos depois desta entrevista. Morreu em Dezembro de 1910, com
setenta e dois anos. Foi lido no seu funeral um poema de Louisa May Alcott, e Richard W. Young
aproveitou a ocasião para pôr cobro a um boato que há muito se espalhara: «Foi a certa altura
propalado que a tia Amélia, em virtude da sua intimidade com o Profeta, induzira este a uma injusta
distribuição da sua herança. Mas depois provou-se que isso era inteiramente falso.»

De tempos a tempos, depois da morte de Brigham, afirmava-se que algumas das suas esposas
haviam abandonado Salt Lake City em troca das terras dos não-mórmones. Edgar Cayce, por
exemplo, curandeiro vidente, recorda-se de que aos sete anos, em 1883, a nova professora que viera
hospedar-se em casa de uma sua tia, em Christian County, se apresentara como sendo a Sr.a Ellison,
do Oeste, «onde pertencera à Igreja Mórmon e fora uma das esposas de Brigham Young».

No entanto, em 1877, o país preocupava-se mais com o destino da Igreja Mórmon e com o seu
sistema de poligamia do que com a sorte das viúvas do Profeta. Muitos fanáticos consideravam este
o momento ideal para acabar com o casamento celestial por meio da força. No Tabernáculo de
Brooklyn o reverendo T. DeWitt Talmadge, célebre pelo seu sensacionalismo, trovejava: «Agora,
com a morte do grande chefe mórmon, chegou o momento de o governo dos Estados Unidos vibrar
o golpe de misericórdia... Transformem o seu vasto templo num arsenal! Mandem-nos perseguir por
Phil Sheridan. Dêem a este tropas bastantes e ele ensinará ao Utah que em quarenta esposas há
trinta e nove a mais!»

Apesar disto, a perda do homem que os guiara durante mais de três décadas deixara os «Santos»
saudosos mas não enfraquecidos. Os cento e vinte mil mórmones do território desafiavam os vinte e
três mil não-mórmones que se erguiam contra eles e a fogosa oratória do Leste. Uma semana depois
do enterro de Brigham, os Apóstolos reuniram-se solenemente e nomearam chefe dos Doze John
Taylor, de Milnthorpe, na Inglaterra, homem de sessenta e nove anos. com efeito, Taylor foi
promovido a Profeta sem qualquer cerimonial. Só a 10 de Outubro de 1880, no ano festivo em que
se comemorava o quinquagésimo ano

382

da igreja, é que a hierarquia elevou o seu chefe à categoria de primeiro presidente e sucessor de
Brigham.

A eleição de Taylor como terceiro Profeta em meio século foi de certo modo uma resposta à
esperança dos não-mórmones de que a igreja abrandasse nas suas pretensões à imposição da
poligamia com a morte de Brignam. «John Taylor era um mórmon zeloso dos seus direitos da
poligamia», escreveu Ann Eliza. «Possuía já sete esposas e trinta e quatro filhos.» E o pior,
acrescenta ela, «é que exigia que estas ganhassem a sua vida, ao passo que ele lhes fazia apenas
uma visita de quando em quando».

John Taylor, um homem alto, de barbas brancas e possuindo o dom da palavra, «embora, o que é
raro num chefe, costumasse dar ouvidos a quem o aconselhava», segundo afirmava um dos
correspondentes do Times, de Londres, fora um dos melhores colaboradores e amigos de Brigham.
Ao deixar o seu país natal, emigrara para o Canadá e aí tornara-se pregador metodista. Aos vinte e
oito anos fora baptizado na fé por Joseph Smith e aos trinta era apóstolo. Daí em diante exercera
várias actividades em diversos sectores. Em 1840, encontrava-se em Washington, insistindo com o
Congresso para que indemnizasse os mórmones pelas perdas sofridas com as perseguições do
Missuri. Em
1844, estava na cadeia de Cartago, no Ilinóis, onde Joseph Smith fora assassinado. Ele próprio
recebeu quatro balas no corpo. Em 1850 pregou a fé na Inglaterra, na França e na Alemanha.
Publicou em Nova Iorque um periódico, intitulado The Mormon, e na Europa traduziu para francês
O Livro dos Mórmones. Depois, aos quarenta anos, já apóstolo e com sete casamentos celestiais no
seu activo, era a pessoa indicada para perpetuar o princípio da pluralidade das esposas.

Uma vez que fora Taylor a substituir Brigham, Ann Eliza sabia que tudo tinha ficado na mesma.
«Os homens de Estado americanos», escrevia ela, «perturbados e perplexos perante o problema
mórmon, haviam esperado em vão que, por morte do ditador Brigham Young, o poder da igreja
enfraqueceria e que a sua política iria modificar-se, que em particular a poligamia acabaria por se
extinguir pouco a pouco. Ficaram desolados ao deparar com a igreja mais agressiva do que nunca, a
poligamia defendida abertamente e cada vez mais praticada, a despeito das severas leis federais.»

383
Até 1877, as chamadas «severas leis federais» não se haviam revelado nada positivas. Os
antimórmones assanhados tinham tendência para justificar essa fraqueza das leis com as luvas que
Brigham distribuía na capital. Atribui-se aos não-mórmones a afirmação de alguém ter ouvido
Brigham gabar-se de que «quando meto a. mão num bolso, meto logo o Congresso no outro». A
explicação mais provável da pouca severidade das leis contra a poligamia seria o facto de que os
homens do Congresso se achavam pouco seguros nesse terreno. Eles tinham a consciência de que a
Constituição era pouco explícita acerca das restrições que punha ao casamento.

O primeiro projecto de lei apresentado ao Congresso, da autoria do representante Justin R. Morrill,


de Vermont, fora convertido em lei pelo presidente Lincoln, a 8 de Julho de 1862. A lei Morrill não
pretendia mostrar-se subtil. Começava assim: «Artigo destinado a punir e a evitar a prática da
poligamia nos territórios dos Estados Unidos...» Essa lei ordenava simplesmente que qualquer
homem ao casar-se com mais de uma mulher ao mesmo tempo teria de pagar uma multa de
quinhentos dólares e de cumprir quatro anos de cadeia. Deixava no entanto certas escapatórias. No
Utah, a aplicação da lei federal encontrava-se nas mãos dos tribunais locais, e não dos federais.
Uma vez que aqueles eram dominados por mórmones, todos os casos de poligamia eram julgados
por mórmones, que nunca condenavam os seus irmãos. Além disso, todos os indivíduos acusados de
poligamia se defendiam afirmando que não haviam contraído matrimónios ilegais, como tal
definidos pela lei dos Estados Unidos, e as esposas poligâmicas recusavam-se a testemunhar contra
os maridos. Numa palavra, uma vez que Lincoln, com uma guerra entre mãos, simpatizara com os
mórmones e não estava bem certo da constitucionalidade da lei Morrill, nunca deu qualquer passo
para a promulgar. Só consta terem sido castigados por ela dois homens acusados de poligamia.

Doze anos depois, no Verão de 1874, a seguir à ida de Ann Eliza a Washington, o representante
Luke P. Poland, também de Vermont, pretendeu reforçar a lei Morrill com um projecto de lei de sua
autoria que limitava a jurisdição dos tribunais territoriais do Utah e preenchia os lugares de
promotor-geral e de chefe da polícia com homens escolhi-

384

dos por Washington. No entanto, embora a lei Poland reforçasse a posição dos antipoligâmicos tais
como o juiz McKean, poucos estragos causou no domínio da poligamia.

O que atrasava a aplicação dos estatutos Morrill e Poland era a dúvida, sempre constante, acerca da
sua constitucionalidade. Por fim, em 1874, o Governo Federal, com a cooperação de alguns
mórmones importantes, decidiu pôr à prova a constitucionalidade dos projectos de lei
antipoligâmicos. George Reynolds, um inglês de trinta e dois anos, secretário de Brigham, foi
escolhido como cobaia. Acabava de se casar com uma segunda esposa e agora revoltava-se contra
as autoridades como polígamo confesso. Julgado em tribunal, consideraram-no culpado e
condenaram-no a um ano de prisão e a uma multa de quinhentos dólares. Passado um ano, tendo o
grande júri sido dado como ilegal, foi julgado e condenado novamente, desta vez com a pena
agravada, dois anos de prisão e trabalhos forçados. Imediatamente os mórmones, como há muito
estava planeado, apelaram do caso de Reynolds para o Tribunal Supremo dos Estados Unidos e
ficaram à espera, certos de que a condenação era inconstitucional.

Durante os quatro anos que o Supremo Tribunal levou a pensar e a debater a apelação de Reynolds,
as partes interessadas lutavam à porfia no sentido de influenciar o tribunal e o chefe executivo da
nação. Em 1877, Rutherford B. Hayes, antigo advogado, general na Guerra Civil, representante no
Congresso e governador-geral do Ohio, acabava de entrar para a Casa Branca depois de derrotar
Samuel J. Tilden, na Presidência, numa votação eleitoral.
Da sua casa em Lockport, Ann Eliza decidiu comunicar directamente com o presidente. Punha nisso
grandes esperanças. Nos últimos dois anos perdera a confiança no presidente Grant que agora se
retirara. Primeiro ficara desiludida com os relatos da visita deste ao Utah. Fora acolhido por filas de
crianças nos passeios crianças limpas, saudáveis, risonhas. Segundo notícias de origem mormon,
Grant voltara-se para George W. Emery, governador do Utah, e perguntara: «Quem são estas
crianças?» O governador replicara: «São filhos de mórmones.» Grant ficara calado uns momentos e
depois murmurara: «Andei enganado.» Em segundo lugar, Ann Eliza ficara irritada com a não-
intervenção de Grant no primeiro julgamento de John

385
D. Lee, quando a este fora atribuída a responsabilidade do i

Massacre de Mountain Meadows. O julgamento parcial do f

Utah fora obra de um júri desonesto, e entretanto o presi- i

dente bronzeava-se ao sol na conhecida estância de Long I

Branch, na Nova Jérsia. Influenciada por isto, Ann Eliza I

escrevera ao Globe de Boston, acusando Grant e apelando i

para as mulheres americanas: «Se ele é indiferente aos gri- l

tos das mulheres assassinadas por Lee e por Young, que a I

nossa voz atinja um torn estridente capaz de o acordar da l

sua sesta estival em Long Branch. Quando os assassinos es- i

tão a ser coroados de louros não é o momento propício pá- ’l

rã os nossos governantes gozarem férias à beira-mar.» I

Presentemente, o pouco enérgico Grant fora substituído l

por Rutherford B. Hayes, e Ann Eliza alimentava de novo l

a esperança de que os mórmones seriam castigados. A 24 l

de Setembro de 1877, dirigiu uma carta de sete páginas a i

«Sua Excelência R. B. Hayes», em Washington. A certa ai- fl

tura dizia assim:

... Nasci no mormonismo e fui criada no meio familiar

mais fanático que é possível, por isso conheço bem a escra- l

vatura em que vivem tantos milhares de mulheres como eu. ’

Fui vítima do poder e da perseguição do falecido homem l

que se fazia passar por Profeta, vidente e revelador e, con- l

tra minha vontade, casei com ele. Descobri mais tarde as I

tremendas exigências impostas aos verdadeiros crentes por i

esta falsa religião, e por isso abandonei-a. Desejo agora de J


todo o coração ver quebrado e destruído este maldito despo- l

tismo. Oh, já há muito o deveria ter sido! O solo ensan- a

guentado das terras distantes de Mountain Meadows... os l

milhares de assassínios praticados nas planícies... clamam

vingança há anos e anos, sem que ninguém lhes dê ouvidos. 1

Será que as vozes que se erguem da história sangrenta do i

mormonismo, pedindo justiça, continuarão a clamar no de- l

serto? i

Não se deixe persuadir de que o mormonismo está em f

decadência e de que se extinguira em face da oposição e do l

ódio dos cristãos. Ele aguenta essa oposição há quarenta e l

sete anos e desde aí tem vindo sempre a crescer, passando de \ uma comunidade de seis homens
para cerca de duzentos

mil. Quase todos os meses chegam mais navios repletos de \

neófitos iludidos que vêm voluntariamente e de boa fé en- ’

386 J

grassar as tristes fileiras de esposas polígamas e contribuir com o seu trabalho para aumentar o
potencial financeiro da tgreja.

Enquanto o governo os tolera e vai esperando, o mormonismo cresce ao ponto de se atrever a exigir
o controlo de um estado e a querer impor o domínio religioso à sombra das garantias
constitucionais.

Não existe qualquer desculpa válida que permita alegar a ignorância acerca deste ponto, agora que
saíram leis terminantes contra a poligamia. Conheço essas leis e sei ao mesmo tempo que os
mórmones se riem delas, considerando-as apenas a espuma inútil da cólera dos não-mórmones. Elas
não alteraram em nada os planos da igreja, não interferiram num único dos milhares de casamentos
poligâmicos consumados desde que elas foram promulgadas. Não passam de palavras, palavras
inúteis, e nada mais. Suplico-lhe que obrigue o Congresso a insuflar nas suas leis um sopro de vida,
que as transforme na voz do povo, tão terrível como a voz de Deus, para aqueles que lhe
desobedecerem. Que também não se deixe convencer de que Brigham era o pilar, a trave-mestra do
mormonismo e que este caíra por si depois da morte do Profeta. O seu actual sucessor, John Taylor,
foi o companheiro fiel e o inventor desta grande fraude, e durante anos e anos desempenhou o papel
de conselheiro e colaborador do falecido chefe. É um «santo» que possui seis esposas, um veterano
nas intrigas da igreja, um inimigo acerbo dos «gentios», por ter sido vítima de perseguições nos
primeiros tempos da igreja. E como nutre a ambição de se tornar igual ao seu notável predecessor,
devemos esperar que empregue todos os esforços no sentido de fazer triunfar a sua maldita causa.
Não virá longe o dia em que outros mais jovens, cheios de entusiasmo, atrevimento e ambição, lhe
sucedam na chefia da igreja, e veremos então uma nova era de apostolado e recrutamento que terá
como resultado a «edificação do reino». Não há dúvida de que chegou o momento de agir. Peco-lhe
pois que se digne aplicar as leis em vigor se acaso estas forem suficientes, de contrário que elas
sejam ampliadas. O mormonismo não merece contemplações. Deve ser combatido a ferro e a fogo,
pois ele tem desafiado a força e fugido às leis. Só merece... a destruição, uma vez que despreza os
avisos que lhe têm sido dirigidos. Muito respeitosamente, Ann Eliza Young.

387
Catorze meses depois de Ann Eliza ter dirigido este aviso ao presidente Hayes, duzentas mulheres
não-mórmones reuniram-se na Igreja Congregacional de Salt Lake City e redigiram uma petição
que enviaram à mulher do presidente e na qual pediam que fosse concedida a categoria de estado ao
Utah mediante o abandono da poligamia. No intuito de contrabalançar este movimento, duas mil
mulheres e crianças mórmones reuniram-se também no Teatro de Salt Lake City, a 16 de Novembro
de 1878. Entre as principais oradoras encontrava-se Eliza R. Snow, que declarava às suas colegas e
ao mundo, falando acerca de uma petição ao Congresso em defesa do casamento celestial:
«Acredito firmemente que um Congresso composto de homens polígamos fiéis às suas mulheres
seria muito honroso para a nação e prestaria melhores serviços do que um Congresso composto de
homens monógamos.»

Finalmente, pouco depois desta agitação feminina, o Supremo Tribunal, ouvidas ambas as partes na
apelação de Reynolds, deu a sua decisão a 6 de Janeiro de 1879: toda a legislação antipoligâmica
era constitucional e a sentença proferida contra Reynolds deveria ser cumprida. Os mórmones
ficaram desolados e empreenderam imediatamente todos os esforços para salvar Reynolds. Trinta
mil pessoas assinaram uma petição dirigida ao presidente Hayes no sentido de usar de clemência
para com o secretário de Brigham, porém o chefe do poder executivo não fez caso do pedido.
Reynolds foi enviado para uma penitenciária do Nebrasca, a seguir transferido para outra no Utah,
onde cumpriu a sua pena de dois anos de reclusão e trabalhos forçados com um comportamento
exemplar.

Depois deste golpe vibrado na poligamia pelo Supremo Tribunal, John Taylor concedeu uma
entrevista ao coronel O. J. Hollister, colector federal do Imposto de Rendimento no Utah, e também
correspondente do Tribune, de Nova Iorque, e na qual revela a reacção da igreja.

O coronel Hollister começava por inquirir:

Não é certo o casamento constituir a base da sociedade?... E portanto não será legítimo que o poder
civil de cada governo possa determinar se o casamento deve ser poligâmico ou monogâmico sob a
sua jurisdição?

Taylor não admitia tal coisa.

Quando a Constituição dos Estados Unidos foi ela-

388

borada e adoptada, as partes contratantes concordaram todas em que não haveria interferência nos
assuntos religiosos. Agora, se as nossas relações conjugais não são religiosas, ninguém tem nada
com isso.

Mais adiante, e um pouco asperamente, o coronel Hollister perguntava:

Considera que vale a pena manter a poligamia mesmo à custa de um antagonismo permanente entre
o seu povo e os seus compatriotas?

Não somos nós quem provoca esse antagonismo declarou Taylor. A revelação que nos foi
concedida em Agosto de 1831 afirma que, se queremos guardar a lei de Deus, não devemos
desobedecer às leis da terra. Depois disso, o Congresso veio com o seu decreto colocar-nos numa
posição de antagonismo contra aquilo que consideramos uma lei anticonstitucional.
Considera a poligamia superior à monogamia? quis saber o coronel Hollister.

Considero-a muito superior à lei da monogamia sob muitos aspectos replicou Taylor. Em todos os
países onde se pratica a monogamia, inclusive nos Estados Unidos, um certo número de incidentes
resultam dela. Nós reconhecemos as nossas esposas, reconhecemos os nossos filhos, não temos
amantes. Não havia cá prostituição até ser introduzida pela monogamia. A poligamia não é um
crime em si; a acção do Congresso é que fez dela um crime. O governo britânico consente que cento
e oitenta milhões dos seus súbditos a pratiquem a coberto da lei. É triste que o nosso governo
republicano seja menos generoso para com as suas províncias do que o é um governo monárquico
para com as suas colónias.

No fim da entrevista, quando o coronel perguntava qual o efeito que a decisão do Supremo Tribunal
teria sobre os mórmones, Taylor respondeu:

Não vejo que outro efeito possa ter além de nos unir, confirmar e fortalecer na nossa fé.

No entanto, Taylor concedeu mais entrevistas após a desastrosa sentença do Supremo Tribunal. A
fim de contrabalançar a grande vaga de agitação antipoligâmica, Taylor resolveu mostrar aos não-
mórmones qual era a reacção das esposas polígamas em face da sua situação. Em vez de fazer
relatórios, preferiu exibir duas das mais belas esposas que o

389

M
sistema possuía. Nos princípios de 1879, Zina Young Williams filha de Brigham Young e da sua
décima oitava esposa Zina D. Huntington , casada com um inglês que já tinha uma mulher, e
Emmeline Wells, esposa polígama do prefeito de Salt Lake City, foram a Washington para serem
recebidas pela primeira dama da nação. Nessa altura, Lucy , Webb Hayes, mulher do presidente,
contava quarenta e oito anos de idade e estava casada com ele havia mais de vinte e cinco, tendo
passado três destes na Casa Branca. Educada no Cincinnati Wesleyan Woman’s College, Lucy
Webb Hayes era muito estimada pela Womens’s Christian Temperance Union por ter conseguido
banir da Casa Branca o vinho, o uísque e todos os estimulantes. Os bebedores descontentes tinham-
lhe posto a alcunha de «Lucy Limonada».

O encontro entre a primeira dama e as duas esposas polígamas fora combinado por intermédio de
algumas sufragistas de destaque, as quais não se mostravam hostis à poligamia, impressionadas com
o facto de os mórmones terem concedido voto às suas mulheres em 1870. Em conversa com a
mulher do presidente, Zina Young Williams e Emmeline Wells explicaram-lhe que o casamento
poligâmico dava bons resultados, que as múltiplas esposas viviam em harmonia doméstica, que o
sistema concedia um marido a cada mulher, livrando-os ao mesmo tempo dos perigos do adultério e
da prostituição e que a aplicação da lei antipoligâmica de 1862 causaria grandes desgostos às
mulheres do Utah. Ao que parece, Lucy Webb Hayes ficou impressionada, talvez não tanto em face
das vantagens invocadas a favor da poligamia, mas sim pelo facto de aquelas esposas polígamas não
serem nenhuns monstros, possuindo o direito a voto, coisa que ainda não fora concedida a ela
própria, e que também elas sentiam horror pelos estimulantes alcoólicos.

Quando esta iniciativa dos mórmones chegou ao domínio público, encontrava-se Ann Eliza a fazer
uma conferência em De Pere, no Wisconsin. Não perdeu tempo para contra-atacar. Tal como já
apelara apaixonadamente para o presidente Hayes, procurou agora abrir os olhos à Sr.a Hayes. A 5
de Março de 1879, dirigiu uma carta, longa e vibrante, à primeira dama, que depois revelou à
imprensa. Era do seguinte teor:

390

Como desculpa, para me dirigir a Vossa Excelência, invoco o facto de terem sido recentemente
publicados nos jornais os pormenores de uma visita que recebeu de duas mulheres mórmones no
intuito de defenderem a poligamia...

Emmeline Wells e Zina Williams apresentaram uma defesa patética destinada a comovê-la com a
sorte que teriam as pobres mulheres e crianças mórmones se acaso a lei contra a poligamia fosse
aplicada. Concordo que essa lei, tal como está, é injusta e que, a ser aplicada, não seria equitativa e
causaria grande sofrimento. Essas mulheres, porém, aproximaram-se de Vossa Excelência com a
boca cheia de falsidades.

A poligamia não é um sistema tão ideal como elas proclamam nem possui as vantagens que lhe
atribuem. Eu poderia mostrar-lhe o que é a vida poligâmica dessas mesmas mulheres, o que a faria
estremecer e encher o seu coração de repulsa...

Essas senhoras, bem como George Q. Cannon (casado com seis mulheres), afirmam que existe uma
harmonia total nas famílias poligâmicas. Tal afirmação é inteiramente falsa! Não existe um único
homem polígamo em todo o Utah que não possua uma favorita entre as demais esposas e a quem
distingue em detrimento de todas as outras. O tempo de que dispõe, o seu dinheiro e o seu afecto
gasta-os com essa, ao passo que as outras infelizes vivem solitárias e, a maior parte das vezes, na
penúria. Isto só por si constitui um dos principais argumentos contra o sistema. A história de
milhares de famílias no Utah prova que é totalmente impossível para qualquer homem amar mais do
que uma mulher ao mesmo tempo.

Emmeline Wells goza da fama de nunca ter discutido com qualquer das suas outras colegas e penso
que é verdade. Ela vivia num tugúrio miserável, junto da minha casa, a três ou quatro quarteirões de
distância das suas colegas. Porém, as suas «irmãs» nunca a visitavam, referindo-se sempre a ela
com o máximo desprezo. Durante o ano em que foi minha vizinha, nunca o marido que possui os
títulos de «conselheiro do presidente», «comandante da Milícia do Território», «major de Salt Lake
City» e é um dos Apóstolos arranjou tempo para a ir ver. Vivia na maior pobreza e dentro de casa
reinava uma desordem incrível. Tinha o aspecto de uma mulher desesperada, desgostosa e infeliz.

391
v???*

«- 4_Ví£ * %**££*<,

Ignoro como está agora... Não sei como, Emmelme arranjou um objectivo na vida, embora este não
seja muito válido, e por isso não exibe ou não sente a sua miséria, que todos observaram durante
tantos anos.

Zma Williams, pelos vistos, também não foi muito franca acerca da sua vida doméstica. Não disse
como a «estima» a primeira mulher do mando. Não revelou que essa mesma se absteve sempre de
lhe falar, excepto quando ela foi ao funeral de um dos filhos (da outra) e quis aproximar-se do
caixão para ver a criança morta. Então, a Sr.” Williams empurrou-a para o lado e disse que não
consentiria que ela, olhasse para um filho seu. Não, estas coisas não se falam escondem-se dos
olhares «dos malditos gentios». Zina esqueceu tudo isto quando falou do pai, Bngham Young, e
disse que ele tratava igualmente bem toda a família Esqueceu-se de comparar a triste situação da
mãe quando vivia na Casa do Leão com mais doze ou quinze colegas, entre elas a favorita primeiro
Emmelme Free , quando o pai se cansou dela, Amélia Folsom, que reinava como soberana absoluta
durante os últimos dezasseis anos da vida dele. Oh, que loucura, que falsidade, que estupidez1. .

Um dos argumentos invocados por essas mulheres é tão falso como grosseiro. Refiro-me à
afirmação de que tal sistema evitava a imoralidade social Numa época a que chamaram «Reforma»,
aqui há vinte anos, numa reunião em Salt Lake City, Bngham pediu a todos os homens presentes
que porventura tivessem quebrado os votos do casamento que se levantassem, e quase todos o
fizeram. Ele ficou tão assustado que os mandou sentar a toda a pressa e acabou logo com a reunião
[Este incidente ocorrera no Social Hall. Brigham pedira a todos os homens que tivessem cometido
adultério para se porem de pé. Ergueram-se imediatamente mais de três quartos da assembleia.
Convencido de que não fora bem compreendido, Brigham repetira o pedido. Os homens
permaneceram de pé.]

Fiquei surpreendida com o apoio, tanto particular como público, que certas mulheres de destaque
que lutam pelo sufrágio feminino concedem à poligamia. Fazem-no apenas porque as vítimas do
sistema possuem o direito ao voto e, sem se darem ao trabalho de investigar se isso lhes traz alguma
melhoria de vida, as sufragistas apoiam e sustentam aquilo mesmo que amesquinha e degrada as
mulheres, re-

duzindo-as quase ao nível de animais. As mulheres do Utah so servem para produzir filhos. Sempre
que votam, acrescentam mais um elo à sua corrente, pois fazem-no para eleger homens como
George Q. Cannon, o qual usa do seu poder para perpetuar a poligamia O sufrágio não protege essas
mulheres, elas votam na ignorância total do que estão a fazer e sem saberem em quem votam

Cá por mim votei uma única vez obrigada por Brigham Young , e foi o seu cocheiro quem me veio
buscar e me ensinou como havia de fazer. As suas instruções hmitaram-se a mandar-me escrever o
nome num bocado de papel, que ele me entregara, e até hoje continuo a ignorar o nome daquele a
quem dei o meu voto. Este exemplo é um dos muitos que poderia citar acerca dos casos absurdos
que ocorrem no Utah em relação ao escrutínio ..

Sei que Vossa Excelência não apoia qualquer partido Porém, nas questões que dizem respeito ao
verdadeiro progresso das mulheres, sempre se manifestou abertamente Não hesitou em aparecer
como inimiga irredutível da embriaguez, tão frequente entre os homens da nossa terra. A poligamia,
no entanto, causa a desgraça de todos os lares onde entra. Decerto que não será descabido nem
impróprio que a senhora exerça a sua influência contra este crime que cada vez se espalha mais ..
Subscrevo-me, muito respeitosamente, Ann Eliza Young.

A publicação desta carta provocou imediatamente uma reacção favorável da parte dos
antimórmones tanto no Leste como no Médio Oeste. Certamente que tivera repercussões na Casa
Branca, tal como as anteriores conferências de Ann Eliza. É verdade que Lucy Webb Hayes não fez
qualquer comentário, a não ser talvez a sós com o presidente. Este, porém, na sua mensagem ao
Congresso em Dezembro de 1880, tomou a posição mais radical que jamais assumira até então
contra o casamento poligâmico: «E dever e obrigação do povo dos Estados Unidos», afirmou ele,
«suprimir a poligamia seja em que território for que ela exista e evitar a sua divulgação.»

Dir-se-ia que para Ann Eliza estava prestes a chegar o fim de uma longa e exaustiva batalha. O
inimigo, embora ainda combativo, em breve seria derrotado e depois aniquilado, pois de
Washington anunciavam a saída de uma nova

392

393
e severa lei que estava sendo elaborada e que em breve seria publicada e aplicada.

Através de todos esses anos difíceis, Ann Eliza nunca deixara de proferir as suas palestras pelo
espaço de oito meses em cada ano. Abandonara o major Pond e agora era ela quem marcava os
contratos directamente da sua casa em Lockport. Em Agosto de 1880, o Daily Register, de Central
City, no Colorado, trazia o anúncio da última conferência da Sr.a Young, na Ópera. Assunto:
«Dentro e fora do Utah», abrangendo um breve resumo da sua infância no mormonismo, a sua
revolta contra a poligamia t a fuga de noite de Salt Lake City, bem como alguns incidentes,
humorísticos ou não, da sua carreira de conferencista. Custo da entrada: vinte e cinco centimes.
Lugares reservados: cinquenta centimes.

Durante o ano de 1881, contava ela trinta e sete anos, o seu itinerário era descrito nas páginas de
uma revista de tendências monogâmicas, o Anti-pohgamy Standard, publi- \ cado em Salt Lake
City. Em Março, Ann Eliza foi contratada para actuar nos palcos do Ohio. Em Abril e Maio, an^ ’
dava pelo Michigan onde confessou aos seus ouvintes de Battle Creek que se sentia «desanimada e
triste» perante a indiferença dos Americanos num momento em que o Nevada e o Oregon corriam o
perigo de cair no mormonismo. Contou numerosos casos de conversões ocorridas no Médio Oeste e
no Leste americano. Conhecera «centenas» desses convertidos na Georgia, «vinte» no Kentucky,
«um grande número» deles em Oberlin, no Ohio, «um homem com seis esposas e outro com duas»,
ao norte do Michigan, um convertido que possuía dezasseis, em Canton, no Ilinóis. Uma rapariga
recém-convertida chamada Gertrude, que conhecera no Colorado, ao entrar em Covington, estado
de Indiana, como missionária mórmon, descobrira que já ali se encontravam três colegas que a
haviam precedido.

Prosseguindo na sua rota, Ann Eliza chegou a Evansville, estado de Indiana, em Junho de 1881. Aí,
implorou aos ouvintes: «Não sois vós capazes de fazer alguma coisa? De ano para ano o
mormonismo produz mais frutos maléficos. Não quereis vós, de hoje em diante, ficar a ser
conhecidos como inimigos verdadeiros deste monstro fazendo tudo o que estiver na vossa mão para
o destruir?» Em Junho, foi também a Pólo, no Ilinóis, onde ficou retida uma semana

394

em virtude de uma tempestade de neve, rara naquela época. Após ter feito duas conferências no City
Hall, proferiu mais duas, gratuitas, tendo-lhe sido oferecida, segundo descreve o ministro
presbiteriano da terra, «uma bolsa com uma soma considerável de dinheiro como recordação da sua
visita e do trabalho que ali realizara».

A torrente de palavras proferidas por Ann Eliza e pelos seus adeptos antipoligamistas começava a
surtir efeito. O presidente Hayes terminara o seu mandato e retirava-se da Casa Branca. Em Março
de 1881, James A. Garfield, republicano, era eleito presidente, sendo vice-presidente Chester A.
Arthur. No discurso inaugural, o novo chefe do governo declarava: «A Igreja Mórmon não só
constitui uma ofensa contra o sentido moral da humanidade sancionando a poligamia, como entrava
a aplicação da justiça através dos instrumentos vulgares da lei.»

Antes ainda de tomar qualquer medida contra os mórmones, Garfield foi alvejado a tiro na estação
de Washington por um descontente, chamado Charles J. Guiteau, a quem o reverendo Talmadge
acusara falsamente de ser mórmon. Dali a onze semanas, pouco mais de seis meses decorridos
desde o início do mandato, Garfield morria. O seu sucessor, Chester A. Arthur, ocupou-se da
questão da poligamia no mês de Dezembro numa mensagem dirigida ao Congresso. Referiu-se ao
casamento poligâmico como a «esse crime odiento, tão revoltante para o sentido moral e religioso
da cristandade».
Agora os legisladores monógamos juntavam os seus esforços aos do presidente. A 12 de Dezembro
de 1881, o senador George F. Edmunds, de Vermont, apresentou a lei mais violenta da história
americana contra a poligamia no Utah. A lei Edmunds, como veio a ser chamada, atacava os
aspectos vulneráveis do casamento poligâmico. Principiava assim: «Todo aquele ou aquela que
possuir um esposo ou uma esposa vivos num território ou em qualquer parte onde os Estados
Unidos exerçam jurisdição exclusiva e venha a casar com outro indivíduo, quer este seja casado ou
solteiro, ou que, no mesmo dia, se case com mais do que um indivíduo em qualquer lugar onde o
governo dos Estados Unidos tenha exclusiva jurisdição, será declarado réu de poligamia e terá de
pagar uma multa não superior a quinhentos dólares e cumprir pena de prisão não superior a

395

L
cinco anos.» Além disso, o júri encarregado de julgar semelhantes casos seria substituído se se
averiguasse que qualquer dos seus membros praticava ou professava a poligamia. Nenhum
polígamo seria autorizado a votar ou a desempenhar qualquer cargo federal em território dos
Estados Unidos. Seria concedida a amnistia a todos os que estivessem comprometidos com a
poligamia antes da publicação da lei Edmunds, desde que dali em diante se sujeitassem à lei actual,
e os filhos dos casamentos poligâ-i micos nascidos antes de 1883 seriam considerados legítimos.
Finalmente, todas as leis eleitorais do território teriam de ser revistas e todos os cargos relacionados
com o recenseamento e a votação seriam declarados vagos até que um quadro composto de cinco
pessoas nomeadas pelo presidente viesse preenchê-los de novo. Tratava-se de uma lei que, se fosse
aprovada, seria considerada constitucional e não admitia discussão. Ann Eliza e o seu séquito
rejubilavam. Verificou-se, porém, que não seria fácil esta lei vir a ser aprovada pelo Senado. Um
grupo de senadores sulistas, feridos ainda pela perseguição que os seus territórios ha-t viam sofrido
durante a Guerra Civil, opunham-se tenaz-* mente à aprovação dessa lei.

George Graham Vest, do Missuri, foi um dos senadores que mais combateram o projecto de lei. Dez
anos antes, num tribunal de Warrensburg, no Missuri, o senador Vest conquistara fama em toda a
nação ao defender o valor de um cão de caça chamado Old Drum, morto por um vizinho do seu
cliente. No elogio que fizera ao animal, afirmava: «Senhores jurados, o melhor amigo que um
homem

vá:

possa ter neste mundo acaba às vezes por se voltar contra ele e tornar-se seu inimigo. Um filho ou
uma filha voltam-se às vezes contra aquele que o criou e educou, pagando* -lhe com ingratidão... O
único amigo absolutamente dedicado que um homem pode possuir, aquele que nunca se revela
traidor ou ingrato, é o seu cão.» Os jurados, de lá” grimas nos olhos, concordaram em atribuir ao
cliente de Vest uma indemnização de quinhentos dólares por Old Drum em lugar dos cento e
cinquenta que foram propostos. Agora, em pleno Senado, o antigo paladino dos cães defendia seres
inferiores a estes animais: «Muito embora tenha denunciado já, muito embora tenha apresentado
neste Senado dois projectos de lei contra ela, considero que a

396

Constituição tem o dever de garantir a qualquer cidadão todos os direitos pelo que respeita à sua
liberdade pessoal. Afirmo-vos hoje aqui, senadores dos Estados Unidos, que se esta lei for aprovada
estabelecereis com ela um precedente cujas consequências virão a fazer-se sentir para sempre. A má
vontade que agora existe contra a poligamia pode venficar-se amanhã contra qualquer igreja, contra
qualquer classe deste vasto país.»

O senador John Tyler Morgan, antigo general confederado e representante do Alabama, concordava
com Vest: «Não estou disposto a perseguir um mórmon à sombra da Constituição dos Estados
Unidos. Não quero ir junto das tribos de índios, onde se pratica a poligamia, e dizer a esses homens
que eles não têm direito à vida e à liberdade porque são polígamos.»

O senador Joseph E. Brown fazia-se eco dos seus colegas do Sul: «Quanto a mim não tomarei parte
na elaboração nem na aprovação de uma lei tirânica, inconstitucional e opressiva», declarava, «que
tem por fim esmagar os rnórmones no intuito de agradar à Nova Inglaterra ou a qualquer outra
região... Ainda não sabemos se mais tarde virão a ser escolhidos os baptistas, os católicos ou os
quaeres como suas vítimas.»
A despeito de toda esta oposição, o Senado acabou por promulgar a lei Edmunds a 12 de Fevereiro
de 1882. Dali a um mês, após um debate semelhante, o projecto de lei passou na Câmara dos
Representantes por cento e dezanove votos contra quarenta e dois. A 22 de Março do mesmo ano, o
presidente Arthur assinava o projecto que assim ficava a figurar como lei.

As consequências dela fizeram-se sentir imediatamente tanto em Washington como em Salt Lake
City. O apóstolo inglês, casado com seis esposas, George Q. Cannon, fora reeleito representante do
Utah por dezoito mil quinhentos e sessenta e oito votos contra mil trezentos e cinquenta e sete,
menos de um ano antes. Agora o seu direito ao ocupar um lugar no Congresso tornava-se discutível
não só em virtude de ser um polígamo praticante, como ainda por ser estrangeiro não naturalizado.
Em 1883, a câmara expulsou-o. Antes de abandonar o lugar, despediu-se dos seus colegas na
tribuna: «Sou um residente do território do Utah e uma pessoa contra quem todos falam e contra
quem se fi-

397
zeram as mais graves acusações, como sucedeu aos meugi predecessores, nos primeiros tempos da
Igreja de Cristo... No entanto, eu respeito a minha fé e lamento qualquer indivíduo que, alicerçando-
se apenas no sentimento popu*i lar, se mostra disposto a calcar aos pés a Constituição e a lei,
esmagando um povo que tem contra si o sentimento popular.» \

Poucos «gentios» se atreveram a apoiar Cannon, mas; um desses foi o reverendo Thimoty Hay.
Escrevendo nq(’ Independent, este clérigo acusava o Congresso de «despre*1’ zível hipocrisia», e
explicava: «O grande crime consiste não1 em ter diversos amores, mas em casar com eles. Um ho«j
mem pode ter quantas amantes quiser, desde que reconheça-’ ter sido vítima da sua vil luxúria e das
tentações do demóf^ nio. Só quando afirma estar a proceder de acordo com *|| sua consciência é que
passa a incorrer no castigo.» «

Na capital do Utah, os polígamos aguardavam ansiosa-Jij mente que lhes fossem vibrados os
primeiros golpes. Ns|B opinião do promotor do distrito, cem mil pessoas numá| população de cento
e quarenta e quatro mil praticavam owl acreditavam na poligamia. O correspondente do Times,
d«M Londres, no Utah durante o ano de 1882 acreditava que* apenas um punhado de mórmones
eram polígamos. E afir-i mava: «Cerca de um quarto dos mórmones casados são pó- ’,( ligamos e
desses talvez menos de três por cento contam, to menos de quarenta anos.»

O Governo Federal distribuiu uma declaração estatística aos possíveis eleitores, que dizia assim:
«Não vivo nem coabito com mais do que uma mulher com quem mantenha; relações matrimoniais.»
Nessa ordem de ideias, um mor* mon, possuidor de duas esposas, ficava riscado das urnas, ao passo
que um não-mórmon, casado com uma mulher só,, mas com uma amante pública, tinha a
possibilidade de se inscrever. Os «Santos» estavam indignados. Segundo escrevia o seu historiador,
Brigham H. Roberts: «com este arranjo, aqueles que coabitam com mais do que uma mulher i em
adultério ou prostituição ficam a salvo desta proibição. O patife, o libertino, o devasso, o
proprietário de um bor- | dei, o adúltero e a adúltera podem votar. Não interessa a , que ponto um
homem ou uma mulher podem ser imorais, só os mórmones estão excluídos e postos de lado.»

Enquanto os agentes e os seus espiões invadiam Salt La-

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ke City coagindo e intimidando os próprios filhos dos mórmones no sentido de os levarem a acusar
os pais, o novo Profeta, John Taylor, acabava de transferir as suas seis esposas e os seus vinte e sete
filhos para uma casa grande. Depois de reflectir, porém, e receando ficar abrangido pela lei
Edmunds, mandou cada esposa para uma casa separada e ficou apenas a viver com uma delas.

A primeira vítima da nova lei foi um rapaz mórmon de vinte e sete anos, Rudgar Clawson, que um
dia evitara heroicamente que o cadáver de um correligionário fosse despedaçado por uma multidão
enraivecida do Sul e que gozava da fama de ser homem sóbrio e decente. Preso sob a acusação de
poligamia, foi julgado e condenado. Antes de ouvir a sentença, pediu a palavra: «Excelência»,
declarou. «Lamento rnuito que as leis do meu país entrem em conflito com as leis de Deus; mas, em
qualquer caso, eu escolho estas últimas.» Furioso, o juiz multou-o em oito mil dólares pagos em
duas prestações e condenou-o a quatro anos de penitenciária. Ao cabo de três anos, foi posto em
liberdade pelo presidente Grover Cleveland.

O chefe mórmon ficou enraivecido com esta perseguição contra Clawson. Se este jovem praticasse
um «amor ilícito» em vez de se casar com as suas mulheres, afirmava Taylor, e deixasse que, em
lugar de ter filhos, estas mandassem fazer abortos a Madame Restell [uma inglesa corpulenta e
abastada que praticava o controlo da natalidade na sua mansão de Nova Iorque], nesse caso, de
acordo com a lei Edmunds, Clawson seria considerado «um cavalheiro nobre, respeitável e
cristianíssimo». Quando, a 17 de Novembro de 1882, um mês após o julgamento de Clawson, uma
mulher mórmon, Annie Gallifant, foi julgada e condenada por se recusar a divulgar o nome do seu
marido polígamo, acabando por ser presa, muito embora se encontrasse em estado de gravidez
bastante adiantado, o presidente Taylor convenceu-se de que se tornava impossível resistir por mais
tempo à lei Edmunds. «Enquanto durar esta excitação não poderemos discutir com o mundo.
Quando ela se acalmar, então veremos.»

A despeito da dita «excitação», as condenações por crime de poligamia revelavam-se difíceis de


obter, visto ser exigida a confissão ou a prova testemunhal. Por outro lado, tornava-se mais fácil de
provar a coabitação ilegal. Lá de

399
longe, Ann Eliza gozava o seu triunfo. Mas até ela se con*. fessava impressionada pelos meios
violentos empregados! por alguns agentes federais que atacavam as mulheres mor»; mones quando
estavam na cama ou a vestir-se. «Tenho <Uj admitir», escrevia ela, «que alguns agentes
experimentanjf um prazer malévolo em aborrecer as mulheres mórmoneÉ tanto como os homens.» J

Em 1883, quase com quarenta anos, as preocupações dei Ann Eliza deixavam de ter como objectivo
a poligamia, eni virtude de uma modificação importante que ocorrera na sua vida. J

Nos anos anteriores, a carreira de conferencista começai! rã a fatigá-la. Ao fim de dez anos de vida
errante, estava farta de viajar em comboios desconfortáveis, de dormir enjj hotéis infestados de
moscas, de se exibir em público. Além disso, com a morte de Brigham e a aplicação da lei Ed3
munds, as suas conferências acabaram por deixar de ter acJI tualidade, perdiam o interesse, e a
assistência tornava-se ca-1 da vez menos numerosa. Era como estar a bater numa morto ou a lutar
contra um inimigo já derrubado. J

Por outro lado, a sua vida particular complicara-se. Ja| não podia entregar à mãe a guarda dos filhos
crescidos, Ed-i ward Wesley e Leonard, que viviam em Lockport. Erd|
1880, a mãe adoecera gravemente e fora internada num sanatório de Battle Creek, no Michigan.
com a família assim dividida entre o Leste e o Médio Oeste, cada vez sentia; mais dificuldades em
se afastar de casa. Para cúmulo, as suas perturbações nervosas tornavam-se mais frequentes.
Embora receasse a solidão e a falta de contacto com o público a que se habituara durante tantos
anos, sabia que mais cedo ou mais tarde teria de reformar-se.

Há notícia de que em 1883 a sua situação financeira pó-1 dia considerar-se segura. O dinheiro
adquirido com as duas mil conferências que proferira, embora não constituísse uma fortuna, era
bastante e estava bem colocado. O melhor investimento fizera-o nas minas do Colorado. A 14 de
Ou- i tubro de 1880, o Rocky Mountains News inseria uma notícia de Dumont: «Nunca foi revelado
que o condutor Graham, da Companhia de Caminhos-de-Ferro do Colorado Central, era sócio da
Sr.a Ann Eliza Young em várias especulações mineiras recentes daquela localidade. Possuem
ambos importantes concessões.» É possível que se trate do seu antigo nóspede de Salt Lake City,
Malcolm Graham.

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Mas embora ela pensasse já em se reformar e fosse adiando o projecto, a série de acontecimentos
que se seguiu veio apressá-lo. No fim de uma conferência no Ohio, em
1881, Ann Eliza foi apresentada a um admirador que se encontrava entre a assistência. Era um
homem alto, expansivo, de meia idade, que tinha uma das mãos aleijada. Chamava-se Moses R.
Denning, vivia em Manistee, no Michigan, era rico, e encontrava-se de visita ao Ohio. Quando ela
veio falar em Manistee, convidou-a para ir a sua casa, e ela aceitou.

Pouco depois, Denning regressou à cidade e Ann Eliza continuou na sua peregrinação como
conferencista. Apesar do interesse que lhe merecia Ann Eliza, Denning não se opôs a que, segundo
os desejos da mulher, festejassem as bodas de prata de casados. A festa realizou-se na casa dos
Denning, em Manistee, a 6 de Maio de 1881, sendo convidadas cento e cinquenta pessoas.
Descrevendo a reunião, o Advocate de Manistee escrevia: «O Sr. e a Sr.a Denning casaram há vinte
e cinco anos no estado de Pensilvânia e vieram habitar nesta cidade há quinze anos, onde têm vivido
desde então, conquistando sempre novos amigos mercê do seu trato sociável e distinto. A casa
encontrava-se brilhantemente iluminada e todos os amigos presentes se regozijaram ao trazer as
suas homenagens àqueles a quem desejam uma vida feliz até festejarem as suas bodas de oiro.» O
Times and Standard, de Manistee, apresentava também as suas felicitações: «Desejamos que
nenhum desgosto venha ofuscar, nos anos futuros, a felicidade desta família e que as bodas de oiro
os venham encontrar igualmente venturosos e unidos.»

com a chegada de Ann Eliza àquela calma cidadezinha do Norte, a hipótese das bodas de oiro
estava definitivamente afastada para o casal. As bodas de prata foram o último aniversário de
casamento que festejaram em conjunto. Aos cinquenta e três anos, Moses R. Denning, rei da
madeira e do algodão, director do Manistee National Bank, e Ann Eliza Young, de trinta e sete
anos, veterana de dez anos de conferências nos palcos da nação, haviam-se apaixonado loucamente.

Decorreu um ano antes que Ann Eliza voltasse a Manistee realizar nova conferência, em Dezembro
de 1882. Nessa altura, corria já o processo de divórcio entre Moses

401
^v tív M ^àjfev^iW f’- *, SZ-t ’fè

R. Denning e Annie R. Julga-se que aquele havia propostojB casamento a Ann Eliza e que esta
aceitara. A 7 de FevereirqjB de 1883, enquanto ela andava a fazer a sua última digressãaM pelo
Médio Oeste, o casamento dos Denning era oficialíB mente desfeito em Manistee. Annie R., que
acusara o mariJ do de «graves actos de crueldade», ganhava o processo fjJI cando com uma pensão
de vinte mil dólares. Dois meses tm meio depois, a 24 de Abril, Ann Eliza despedia-se do estra« do
falando sobre o tema «Utah, maldição e vergonha dJK nação», perante os ouvintes de Napoleon, no
Ohio. Dafl em diante, nunca mais voltaria ao estrado. S

A 19 de Maio de 1883, Ann Eliza e Moses R. encontraJB vam-se em Lodi, no Ohio, onde possuíam
amigos comunsJf e nessa mesma tarde, a que fora a vigésima sétima esposa dtt* Brigham Young
tornava-se na Sr.a Denning. Aã

A notícia do casamento foi divulgada imediatamentSJil por todo o país. O Tribune de Chicago,
numa notícia datan da de Lodi, informava os seus leitores: «A Sr.a Ann Elizffij» Young, conhecida
mórmon, décima nona esposa de BrigJI ham Young, casou à uma hora da tarde com o Sr. Moses
R«w Denning, conhecido banqueiro de Manistee, Michiganí» A cerimónia foi celebrada na
residência do Dr. A. E. Elliot^^ O reverendo E. A. Stone, de Galion, Ohio, foi o oficiante.1 Estava
presente grande número de convidados, entre estes alguns dos mais importantes cidadãos dos
arredores. MÍSS Julia F. Lee, notável oradora de Utica, Nova Iorque, fazia parte deste número. O
Sr. e a Sr.a Denning vão fixar residência em Manistee.»

Até em Albuquerque, no Novo México, a notícia do’ casamento de Ann Eliza causou sensação.
Afirmava Tht»)« Daily Democrate: «Sentimos grande alegria em anunciar O>? casamento recente
de Ann Eliza (décima nona paixão de Brigham Young) com um cavalheiro do Ohio. Isto não só
livra o país de mais uma conferencista, como ao mesmo tempo a nação tira a sua desforra do
indomável cavalheiro do Ohio.»

A maior repercussão, contudo, verificou-se em Manistee. Aí os quiosques dos jornais eram


«assaltados» pelos cidadãos que compravam jornais de outras cidades onde vinha a notícia da boda.
Quanto aos da terra, The Weekly Times reflectia uma certa desaprovação cívica: «Todos desejam
saber como o caso se processou, onde e quando o ca-

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sal se conheceu, e muitas outras coisas que até a própria Sr.a Grundy1 teria dificuldade em
explicar.» Evidentemente que a maior parte das mulheres de Manisteee consideravam Ann Eliza
como uma antiga concubina e destruidora de lares que vinha habitar no meio delas. Apenas os
editores do Times and Standard, de Manistee, se adaptavam filosoficamente àquele percalço
doméstico. Dois anos antes haviam desejado à primeira Sr.a Denning umas felizes bodas de oiro.
Agora felicitavam a segunda Sr.a Denning, afirmando: «Apresentamos-lhe os nossos
cumprimentos.»

Em Toledo, no Ohio, em plena lua-de-mel, Ann Eliza aguardava, talvez com certa ansiedade, a sua
chegada a Manistee, já não como conferencista mas como esposa cristã e monógama. Pressentia
sem dúvida que era esta a sua última aventura.

1 Figura de velha mexeriqueira, personagem de uma peça de torn Morton (1798), que ficou como
símbolo da tacanhez e da má-língua (N da T)
X

A RELÍQUIA DO BARBARISMO

DECRETAMOS... ser direito e dever l do Congresso proibir nos territórios l essas duas relíquias do
barbarismo . f a poligamia e a escravatura,. |

PLATAFORMA DO PARTIDO REPUBLICANO, 1856

Ao fim da tarde do dia 21 de Maio de 1833, Ann Eliza Denning chegou de comboio a Manistee.
Muito embora nascesse num ambiente de pioneiros e houvesse passado a maior parte dos últimos
dez anos a fazer conferências nas \ pequenas comunidades mais atrasadas da América em ex- j
pansão, não se achava no entanto preparada para a atmosfera que a aguardava naquela nova
residência.

A rude e progressiva cidade de Manistee ficava situada ao norte do Michigan, entre o lago do
mesmo nome, do lado oeste, e o lago Manistee, a leste, sendo cortada ao meio pelo grande rio
Manistee que a atravessava como uma artéria vivificante. A sua localização, afastada dos grandes
centros urbanos civilizados, conferia-lhe o aspecto e por vezes a liberdade de costumes de uma
colónia fronteiriça sem preconceitos. Os índios Chippewas tinham chamado àquela região
«Manistee», o que na língua deles significava «espírito da floresta». Os seus habitantes brancos
conservavam-Ihe o nome, mas referiam-se muitas vezes à sua terra usando a alcunha de «Cidade da
Serradura». Qualquer destas designações recordava aos visitantes que se encontravam numa região
cuja riqueza era constituída pela madeira.

Em 1883, a sua população elevava-se a vinte mil habitantes, composta na sua maioria por gente
trabalhadora, grandes bebedores, zaragateiros e madeireiros polacos que começavam a fazer
fortuna. Além dos polacos, havia ali grandes grupos de suecos, noruegueses, alemães e franceses.
Alguns desses emigrantes trabalhavam na indústria do sal, outros nos curtumes, na produção de
energia eléctrica, na indústria de colchoaria de molas ou em várias destilarias. A maioria, porém,
labutava nas florestas em volta de Manistee. No interior dos bastos pinhais, homens fortes e
amantes da bebida derrubavam sem cessar as enormes árvores, serravam-lhes os troncos, depois
faziam-nos flutuar, no abaixo, até às docas fechadas do lago Manistee. Ali, a madeira era
novamente transportada pelo rio, atravessava a cidade e ia até ao lago Michigan, onde embarcava
nos cargueiros que faziam a carreira entre os Grandes Lagos.

A mentalidade desses trabalhadores estrangeiros, sobretudo dos assalariados, era a mesma que
imperava em Klondike1. Levavam uma vida de dissipação e estúrdia, satisfazendo dia a dia os seus
apetites animais. O maior consumo de produtos de importação era álcool e mulheres. Muito embora
o edifício do Manistee National Bank, de Moses R. Denning, e o da Câmara Municipal conferissem
à rua principal da cidade um ar de respeitabilidade, e apesar do aspecto distinto do hotel de luxo,
conhecido por Dunham House, e da Civic Opera House, com capacidade para dezoito mil
espectadores, bem como das catorze igrejas, nada disto fazia esquecer a existência de quinze
tabernas e quarenta e dois saloons. Muitas vezes estes últimos abriam os seus barris de uísque para
venda ao público na própria rua.

No entanto, Manistee possuía o seu chamado «grupo dos quatrocentos». Nas monstruosas
residências victorianas, situadas no alto das colinas, com vista sobre as serrações, as docas e as
praias, bem como nas luxuosas mansões nas margens do lago Manistee, viviam os homens ricos da
comunidade, entre os quais se contava Moses R. Denning. A casa de dois andares que edificara
havia treze anos e agora preparara para receber a sua segunda esposa era mais simples, clássica e
graciosa do que as complicadas mansões victorianas dos vizinhos. A residência dos Denning era de
estilo grego e muito espaçosa.

Quando Ann Eliza veio tomar posse do seu novo lar, na noite de 21 de Maio de 1883, sentiu-se
impressionada. O pórtico exterior dava acesso a um vestíbulo, depois a uma sala. Uma porta
corrediça comunicava com outro salão e este com a sala de jantar, ricamente apainelada de
nogueira.

1 Região de minas de oiro no Norte do Canadá (N da T) Dos treze quartos de dormir existentes na
casa, sete B ficavam no rés-do-chão e seis, incluindo os melhores, no W primeiro andar. A casa dos
Denning, que os jornais classifi- JÊ cavam de «apalaçada», possuía muitas comodidades models IB
nas, entre estas água quente permanente, coisa que Ann B Eliza muito apreciava quando tomava o
seu banho na ba-H nheira de cobre forrada exteriormente de madeira.

Na manhã de Primavera que se seguiu à sua chegada, H Ann Eliza foi explorar os arredores. Em
frente da casa, er-JB guiam-se quatro árvores e algumas roseiras. Atrás ficavam B as cocheiras de
aspecto imponente e uma pequena latada de fl parreiras. Um pouco adiante, na margem do lago,
via-se a m doca pertencente ao marido povoada de algumas canoas e m uma jangada de cortiça na
qual os trabalhadores transporta- H vam os troncos de pinheiro. ”S

A princípio, Ann Eliza julgou que viria a ser bem recebida pela sociedade local. É certo que o
Standard, de Manistee, se mostrara cortês, como haoitualmente. Depois deli noticiar a chegada dos
«noivos», o semanário prosseguia: «A Sr.a Young, depois de viajar por toda a parte, concedeu a
esta cidade a honra de eleger um dos seus membros por companheiro e a nossa terra como
residência... Diz-se que a sua saúde se ressentiu ultimamente por excesso de trabalho. O casamento
proporcionar-lhe-á sem dúvida o descanso de que necessita.» ’

No entanto, a sensação de bem-estar que ela deve ter experimentado, graças às palavras do Standard
e dos outros cinco jornais da terra, em breve se dissipou perante a atitude altiva dos membros da
classe elevada. Os descendentes dos antigos colonos de Manistee recordam que «Ann Eliza J foi
recebida friamente pelas senhoras, que a consideravam uma pessoa excêntrica e um bocado
extravagante».
Durante este breve período de ostracismo, Ann Eliza não se deixou abater. Dali a seis semanas
mandava vir a mãe e os dois filhos para a sua companhia. O mais novo, Leonard Dee, agora com
dezoito anos de idade, viera para Manistee antes de Ann Eliza e estava empregado nos correios. O
mais velho, Edward Wesley Dee, tinha um emprego de vendedor em Chicago que abandonara para
vir reunir-se à mãe por um curto período. A primeira Sr.a Webb, paralítica num sanatório de Battle
Creek, foi metida num vapor dos Grandes Lagos, o Ludmgton, e veio também para casa da filha.

Esta reunião, contudo, foi de pouca dura. Nos catorze meses que se seguiram, a saúde da Sr.a Webb
piorou rapidamente. A 16 de Agosto de 1884, aos sessenta e sete anos, morria de «paralisia».
Enterraram-na dali a dois dias, num caixão rico, forrado a veludo preto. Muito tempo depois, Ann
Eliza deve ter esquecido onde ficara a campa da mãe, pois refere-se a ela como sendo «a oeste de
Nova Iorque, perto do lugar onde nascera». A verdade é que a sepultura da Sr.a Webb ainda existe,
esquecida, no cemitério de Oak Grove, em Manistee.

com a perda da mãe, Ann Eliza ficou mais do que nunca dependente da companhia do marido
durante o ano que se seguiu. Existem provas, no entanto, de que Moses R. Denning, o «velho
Moses», como lhe chamavam na terra, nada tinha de caseiro. Nascido na região florestal do Maine
em 1828, fora educado numa quinta. Depois de frequentar a escola elementar, mudou-se para a
Pensilvânia, e foi lenhador no rio Susquehanna. Em 1856, com vinte e oito anos, desposava Annie
Ralston. Quando deflagrou a Guerra Civil quis alistar-se pela União, mas, segundo refere o
Democrat de Manistee, foi rejeitado por ter uma das mãos mutilada. Mostrou-se, no entanto, activo
como não-combatente. Organizou o «Regimento Bucktail» e conduziu-o a Camp Curtin. Depois,
reuniu também os Regimentos 84.° e 110.° da Pensilvânia e foi levá-los às primeiras linhas. Por
diversas ocasiões, enfrentou o fogo do inimigo para «cuidar dos doentes e dos feridos».

Terminada a guerra, Denning ocupou-se no transporte de troncos de madeira ao longo de vários


rios. Pouco a pouco, foi investindo dinheiro em alguns negócios, comprava e vendia madeira, terras
e concessões nas minas de carvão, na Florida, no Arcansas e finalmente no Michigan. Em 1866, aos
trinta e oito anos, veio instalar-se em Manistee com a primeira mulher. Os seus negócios de
madeiras começaram imediatamente a prosperar, bem como os outros investimentos que fizera, e
fundou então o Manistee National Bank. Consciente dos seus deveres cívicos, fazia parte do corpo
docente da cidade e era vereador da câmara, onde lutava contra o estabelecimento dos saloons.

Nem a mão mutilada que habitualmente ocultava num bolso do casaco nem a nova esposa lhe
tolhiam a costumada actividade. Viajava constantemente, do Wisconsin para a Pensilvânia, em
visita aos filhos do primeiro matrimónio, passando revista às florestas de corte no Michigan, indo
até ao Arcansas, a fim de controlar os seus «altos e valiosos interesses», e dando a seguir um salto a
Washington para conferenciar com os chefes do Partido Democrático.

Em 1890, os chefes do Partido Democrático persuadiram Denning a candidatar-se a um lugar na


Legislatura do Estado. Após uma breve campanha, Denning ganhou por duzentos e quarenta e cinco
votos, e em Janeiro de 1891 foi a Lansing representar o condado de Manistee na Câmara dos
Representantes do Michigan. Denning desempenhou um mandato na câmara durante o qual fez
parte de diversas comissões, mas a experiência não o satisfez ao ponto de se candidatar a novo
cargo.

Durante esses sete anos, Ann Eliza manteve-se igualmente activa. Além de algumas viagens que
realizou em companhia do marido ao Ohio e ao Sul, assistia com ele às funções sociais de Manistee
um concerto ao ar livre, espectáculos de ópera, a representação de A Cabana, do Pai Tomás, um
baile de máscaras, a inauguração de um campo de patinagem, um passeio de barco, uma conferência
proferida por um padre no Union Hall acerca da «Questão Mórmon».

Nesses anos raramente comunicou com os jornais. No entanto, em 20 de Agosto de 1887, quando
contava quarenta e dois anos de idade, quebrou o silêncio para escrever uma carta aos editores do
Evening Journal. Este anunciara aos seus leitores que Ann Eliza resolvera fazer um jejum por
motivos de saúde e ela desejava rectificar alguns pontos da notícia.

«Há mais de oito anos que venho sofrendo de uma dispepsia nervosa, causada por inúmeros
desgostos e pelo cansaço de dez anos a realizar conferências», escreveu ela. «Nunca conheci um
caso tão grave e aparentemente incurável como o meu. Durante seis anos não fui capaz de digerir
sequer uma migalha sem tomar altas doses de pepsina ou de qualquer outra droga semelhante. Ouvi
falar nesta cura de jejum e resolvi experimentar. Escrevi a alguns doentes tratados por médicos
eminentes e eles afirmaram-me que dava resultado. Depois pus-me em contacto com o próprio
médico.»

Este era um clínico de Washington que descobrira um líquido chamado Nutriente, o qual fazia
desaparecer o apetite. Ann Eliza tomava três comeres desse líquido por dia, durante uma quinzena,
e a sua alimentação compunha-se apenas de melão, abóbora, pão integral e batata cozida. Perdeu
mais de dez quilos mas, ainda que muito fraca, «nunca estivera gravemente enferma», segundo
afirmava o jornal.
«Não digo que este tratamento não faça bem a outros, embora me não tenha curado a mim»,
concluía Ann Eliza. «Desejo agradecer as palavras amáveis que o vosso jornal me dirigiu, a respeito
do meu trabalho contra o mormonismo e a poligamia. É-me agradável verificar que ainda há quem
se lembre disso, tanto tempo depois.»

O jornal referia com prazer que «o jejum terminara de maneira satisfatória» e que Ann Eliza podia
de novo «passear de carruagem pela cidade».

Durante os anos que decorreram entre 1883 e 1890, Ann Eliza encontrava-se tão ocupada com os
filhos do primeiro matrimónio como o marido com as suas madeiras e com os filhos da primeira
mulher. O filho mais velho de Ann Eliza, Edward Wesley, casara-se com uma beldade ruiva do Sul,
chamada Mabel Rose, de Savana, Georgia, contra a vontade dos pais da rapariga, que não queriam
na família um nortista e ainda por cima antigo mormon. Edward Wesley e Mabel Rose foram residir
para Tallahassee, na Florida. Em 1885, Edward Wesley chamou para junto dele o irmão Leonard
que vivia em Manistee, e entraram ambos para um negócio de fabrico de charutos. Nessa altura,
Mabel Rose estava grávida e foi para Manistee a fim de ter a criança. Nasceu um rapaz, que se
chamou Rollins Lewis Dee. Ann Eliza ficou sendo avó. Cinco anos mais tarde, em 1890, Edward
Wesley e Mabel Rose foram viver para a cidade de Nova Iorque, onde ele continuava a ocupar-se
do negócio dos charutos. Nasceu-lhes então outro filho, Edward Clifton, e Ann Eliza correu a Nova
Iorque para ver o segundo neto.

Durante estes anos de intensa vida doméstica, nunca ela perdera o interesse pela poligamia e pelo
mormonismo. Uma das razões disto é que o pai, Chauncey Webb, vivia ainda perto de Salt Lake
City. Em 1875, fora excomungado pelos mórmones mas parece que se arrependera e recuperara as
boas graças da igreja, tendo sido rebaptizado. Dedicara-se imenso à segunda esposa, Elizabeth Taft,
de quem tivera onze filhos, entre estes três gémeos que haviam morrido à nascença. Além do elo
que a ligava ao pai, o interesse de Ann Eliza pelo Utah mantinha-se vivo pelo facto de a poligamia
continuar em vigor, apesar da lei Edmunds de 1882.

Agora, porém, o fim do casamento poligâmico estava à vista. Lá de longe, Ann Eliza contemplava-
lhe o estertor da agonia. Em Janeiro de 1885, um grande júri não-mórmon ; decretara a perseguição
do actual Profeta, John Taylor. Antes de ser preso, este pregara um sermão de despedida no l
Tabernáculo e a seguir correra a ocultar-se numa quinta ’ distante algumas milhas ao norte de Salt
Lake City, perto ’. da comunidade de Kaysville. O esconderijo, designado no código pelas letras de
D. O., estava cuidadosamente guardado por sentinelas que avisavam Taylor para este desaparecer
logo que avistassem os investigadores federais.

Outros polígamos mórmones, a exemplo do seu chefe, j viviam clandestinamente em aldeias


remotas do Utah e dos i estados vizinhos. As casas onde se escondiam esses homens j possuíam
muitas vezes alçapões que davam da sala para ca- ”1 vês imundas recheadas de mantimentos.
Muitas das esposas polígamas tinham sido espalhadas por vários sítios, estando algumas delas a
viver perto de Franklin, no Idaho, outras no Canadá e outras ainda na Inglaterra. Alguns polígamos
andavam nessa época em missão por terras estrangeiras, outros tinham-se mudado com os seus
haveres para o México.

Agora que os polígamos estavam na mó de baixo, o governo resolvera acabar com eles de vez. Em
Março de 1887, a instigações de J. Randolph Tucker, da Virgínia, o Congresso promulgava uma
nova versão da lei Edmunds que ficou conhecida pela lei Edmunds-Tucker. Esta foi a derradeira lei
federal visando o casamento celestial. Decretava que, em casos de casamento poligâmico, as
testemunhas fossem obrigadas a comparecer no tribunal, que as esposas polígamas tivessem licença
para depor contra o marido, que os eleitores e os funcionários públicos assinassem uma declaração
na qual se obrigavam a obedecer às leis antipoligâmicas, que se retirassem todos os direitos
políticos aos polígamos e os filhos destes fossem considerados ilegítimos, que os registos de
casamento da nova igreja fossem arquivados oficialmente, que se retirasse o voto às mulheres
mórmones e fosse abolida a milícia, que a Igreja Mórmon, assim como o seu fundo de emigração,
fosse desintegrada e, pior do que tudo, que as propriedades da igreja, no excedente de cinquenta mil
dólares, incluindo a Casa do Leão e o palácio de Amelia Folsom, com excepção do edifício
«utilizado para o culto de Deus», fossem confiscadas pelo Governo Federal.

«Tudo isto se passou nos Estados Unidos no ano de 1887, não na Espanha ou na Holanda da Idade
Média ou nos tempos da Inquisição», escrevia o historiador mórmon Joseph Fielding Smith.

A medida que os agentes federais pululavam cada vez mais no Utah a fim de aplicarem a lei
Edmunds-Tucker, a igreja batia em retirada, e John Taylor, assistido por duas das suas esposas e
dois conselheiros, finava-se no seu esconderijo a 25 de Julho de 1887. Segundo afirmava a igreja,
ele «morrera vítima da crueldade dos funcionários que, neste território, interpretaram mal as leis do
Governo dos Estados Unidos».

Mas, a despeito da morte do chefe, a poligamia continuava viva. O Congresso estava tão certo de
que as mulheres mórmones logo que lhes dessem para isso oportunidade haviam de abandonar o
harém, que mandou construir em Salt Lake City uma Residência Industrial para albergar e dar
emprego a «essas mulheres e crianças, pobres e abandonadas». Nunca esse albergue deu guarida a
mais do que dez mulheres, na sua maioria esposas de apóstatas, e ao cabo de dez anos o governo
vendeu o edifício em hasta pública por vinte e dois mil e quinhentos dólares.

Apesar desta resistência aparente, os mórmones estavam prontos a pedir tréguas. Em 1887, ao
requererem que o seu território passasse a estado, os mórmones acabaram por propor uma
Constituição na qual o casamento poligâmico era considerado ilegal. Esta Constituição foi ratificada
por uma votação de doze mil cento e noventa e cinco votos contra quinhentos e quatro. Dois anos
mais tarde, em Abril de 1889, os Apóstolos escolheram para seu Profeta Wilford Woodruff, de
oitenta e dois anos, aquele mesmo que indicara outrora a Brigham Young o local de Salt Lake City.
Woodruff conhecia bem os sentimentos do seu povo. Sabia também que o actual estado de coisas
não podia durar muito. Quase todos os dirigentes da igreja viviam ainda na clandestinidade, as
famílias encontravam-se desmoralizadas e mais de três quartos de milhão dos fundos da igreja
haviam passado para as mãos do Governo Federal.

Em 1890, Woodruff enviou os seus emissários a Washington entre eles um filho de George Q.
Cannon, o jovem Frank J. Cannon, que mais tarde viria a ser excomungado ao anunciar que a
hierarquia da igreja advogava em segredo a poligamia a fim de negociarem com o gordo presidente
Grover Cleveland, democrata que fora eleito apesar de ser pai de um filho ilegítimo. O presidente
Cleveland escutou-os e depois pôs-lhes a alternativa: amnistia para os antigos polígamos, restituição
das propriedades confiscadas, legitimação dos filhos de casamentos poligâmicos e categoria de
estado concedida ao Utah, em troca da completa abolição da poligamia.

Woodruff tomou então uma decisão: arrasou a Casa dos Votos como prova de boa vontade, em
seguida convocou os membros da hierarquia que andavam fugidos e informou-os de que, «de alma
contrita e amargurada, pedira conselho ao Senhor e este indicara-lhe que devia acabar com o
casamento celeste». Alguém na assembleia perguntou se isto queria dizer que acabavam as uniões
poligâmicas. Woodruff respondeu que sim. Alguém perguntou ainda se isso significava a separação
das esposas com quem estavam casados há muito e ele respondeu mais uma vez com a afirmativa.
Os apóstolos protestaram um por um, mas acabaram por se submeter.
«Ninguém pronunciou uma palavra mesquinha», escreve Frank J. Cannon, que se encontrava
presente naquele momento decisivo. «Ninguém pensava em si. O desgosto que sentiam não era
egoísta. Os seus protestos revelavam uma dignidade na tragédia que me impressionou
profundamente.» O último a falar foi Joseph F. Smith, com as lágrimas a correrem-lhe pela cara:
«Nunca desobedeci a uma revelação do Senhor. Neste momento não posso nem me atrevo a fazê-
lo.»

A 25 de Setembro de 1890, Woodruff fez sair um manifesto ou proclamação nos jornais. Rezava
assim, em parte:

«Uma vez que as leis promulgadas pelo Congresso proíbem o casamento poligâmico, leis essas
declaradas constitucionais pela última instância do tribunal, declaro publicamente sujeitar-me a elas
e prometo usar da minha influência junto dos membros da igreja à qual presido para que sejam
cumpridas... Mais declaro publicamente que aconselho aos Santos dos Últimos Dias que se
abstenham de contrair qualquer espécie de casamento proibido pelas leis do nosso país.»

A poligamia estava extinta oficialmente nos Estados Unidos, e sete anos mais tarde, quando da
sétima tentativa levada a efeito com esse fim, o Utah foi admitido como estado da União.

Sob a pressão de Ann Eliza e de outros mais, a poligamia fora obrigada a conformar-se e a
capitular; contudo, essa mesma opinião pública era contrariada nos anos que se seguiram ao
manifesto de Woodruff por um punhado considerável de mórmones que lamentavam a abolição do
casamento poligâmico. Elbert Hubbard, venerável ancião de East Aurora, Nova Iorque, escrevia:
«A poligamia, conforme reconhecem os biólogos, é, sob certos aspectos, eminentemente legítima e
aceitável, visto ser uma coisa natural. As esposas polígamas são felizes. Brigham Young não
amesquinhava as suas mulheres.» Em 1903, George Bernard Shaw afirmava: «A poligamia,
praticada em moldes democráticos e modernos, só foi destruída pela revolta de uma multidão de
homens inferiores, condenados por ela ao celibato; o instinto maternal leva uma mulher a preferir
ser senhora de um décimo de um homem de primeira categoria do que ter por inteiro um homem de
terceira categoria.»

Em 1936, o Dr. Joseph Tenenbaum, uma autoridade na história sexual das mulheres, declarava:
«Fisiologicamente, a poligamia, a seguir à agamia, é o melhor processo de acasalamento, do ponto
de vista da variedade de escolha.» Em
1947, John Gunther declarava que a poligamia «contribuiu grandemente para atingir o alto nível
moral que prevalece ainda hoje nos cidadãos do Utah», em grande parte porque evitava o adultério
e a delinquência juvenil. Gunther garantia que a situação das mulheres era beneficiada pelo
casamento poligâmico, mais do que pelo outro, uma vez que a poligamia concedia a todas uma
oportunidade de se casarem em melhores condições, até economicamente superiores, «visto que só
os homens corajosos e capazes de ganhar bem a vida se atreviam a arranjar mais de uma esposa».

Até os actuais inimigos da poligamia concordam em que esta não era uma coisa tão monstruosa
como Ann Eliza e os seus ardentes partidários faziam crer. Segundo uma estatística levada a efeito
por Stanley S. Ivins, em 1956, a maior parte dos homens polígamos não possuía vinte e sete
esposas, mas apenas duas, muitos deles não eram patriarcas barbudos que se casavam com noivas
jovens (raro acontecia os homens voltarem a casar-se depois dos quarenta anos), não costumavam
casar-se com muitas mulheres ao mesmo tempo, não era uso casarem com duas irmãs, não tinham
habitualmente mais filhos de cada mulher do que os casados com uma só (os polígamos tinham em
média seis filhos de cada mulher, ao passo que os outros tinham oito da única esposa).
«O polígamo normal», escreveu Ivins em 1956, «casava primeiro aos vinte e três anos com uma
rapariga de vinte. Treze anos depois tornava a casar com outra de vinte e dois. Havia cinquenta por
cento de probabilidades de que, tendo assim demonstrado a sua adesão à poligamia, não voltasse a
casar. Se, no entanto, arranjasse uma terceira esposa, esperava mais quatro anos e então desposava
novamente uma jovem de vinte e dois anos. Havia agora trinta por cento de probabilidades de tomar
uma quarta esposa, mas quando tal sucedia esperava então outros quatro anos e escolhia de novo
uma mulher de vinte e dois anos, embora tivesse atingido já a idade madura de quarenta e quatro.
No caso de resolver tomar uma quinta esposa, desta vez procurava uma de vinte e um anos. Isto era
o fim das suas aventuras matrimoniais, a não ser que pertencesse a uma minoria de três por cento.»

São estes resultados a que chegou a história. No entanto, em 1890, a maior parte da população não-
mórmon comprazia-se na contemplação do monstro poligâmico. Em Manistee, sobretudo, houve
grande regozijo quando Ann Eliza, com a idade de quarenta e seis anos, celebrou a vitória nacional
da monogamia à qual dera tão grande contributo. Mas a sua alegria não duraria mais de dezasseis
meses, pois nessa altura começou a surgir na sua vida conjugal uma série de problemas que, em
cima da tragédia de que já fora vítima, a levaria a odiar a monogamia como outrora detestara já a
poligamia.

Em Setembro de 1889, o filho Leornard ficou tuberculoso e Ann Eliza levou-o para o clima mais
saudável de Pima, no Arizona, onde vivia o irmão mais velho dela, Gilbert, o qual nessa altura era
considerado um indivíduo suspeito. Seis anos antes, Gilbert e a única esposa polígama que lhe
restava, Kate, exploravam uma loja em Pima, e ele era lá tão considerado que o elegeram para
prefeito da cidade. Durante esse período de abastança, Gilbert deixou-se levar por um vício comum
aos não-mórmons arranjou outra família, uma esposa ilegítima de quem teve um filho. Nesta época,
continuava a ser considerado um homem respeitável. Porém, em Maio de 1889, precisamente quatro
meses antes da chegada de Ann Eliza com o filho doente, Gilbert foi acusado de cumplicidade num
assalto então classificado como o maior crime praticado nas estradas do Oeste.

O major Joseph W. Wham, pagador do Exército dos Estados Unidos, dirigia-se para as montanhas
de Graham County com uma escolta de dezoito homens, levando consigo a quantia de vinte e oito
mil dólares que constituía o pré da guarnição de Fort Thomas. No caminho caíram numa emboscada
preparada por vinte bandidos e o dinheiro desapareceu. Decorrido pouco tempo, oito homens eram
acusados do crime, contando-se entre estes Gilbert Webb e um dos filhos, Wilford T. Webb. O
julgamento durou trinta e três dias sendo ouvidas cento e sessenta e cinco testemunhas. O júri era
quase todo composto por mórmones, e talvez por esse motivo Gilbert e o filho foram absolvidos.
Havia quem afirmasse que Gilbert participara no assalto a fim de arranjar fundos para receber Ann
Eliza e o sobrinho. No dizer de Joe T. Place, de Duncan, Arizona, que conhecia bem Gilbert, «este
adorava a irmã e beijava o chão que ela pisava». A Igreja Mórmon não viu com bons olhos este acto
de caridade e excomungou Gilbert.

Apesar destes recentes desgostos, Gilbert recebeu de braços abertos Ann Eliza e o filho,
hospedando-os durante seis meses em sua casa. Em Março de 1890, deixando Leornard aos
cuidados do tio e certa de que o clima de Arizona lhe havia de curar os pulmões, Ann Eliza deixou
Pima e regressou a Manistee. Decorridas quatro semanas, recebeu a notícia de que o filho morrera
tuberculoso, com vinte e cinco anos. O seu desgosto foi tremendo, mas ao mesmo tempo que
lamentava a sua morte prematura e lhe preparava o funeral, tencionando enterrá-lo numa campa
junto à da sua própria mãe em Manistee, veio a ter conhecimento de graves acontecimentos
domésticos ocorridos em casa.

Em 1891, para lá da fachada tranquila da casa dos Denning, rebentava um conflito muito sério entre
Ann Eliza e o marido. Na raiz da questão estava o mesmo problema que envenenara o casamento
dela com Brigham Young incompatibilidade sexual. «Denning era um homem de paixões violentas
e incontroláveis que, pelos vistos, não tentava sequer dominar-se», diria mais tarde Ann Eliza, «de
forma que a vida em comum com ele transtornou por completo a saúde da queixosa.»

Quando Ann Eliza começou a negar-lhe um lugar na sua cama, o homem procurou satisfazer-se por
outro lado. Havia em casa deles algumas criadas novas e atraentes e Denning resolveu gozar a
companhia delas na medida do possível. Ann Eliza acusava-o de as «acariciar, apalpar e manter
com elas conversas lascivas». Em certa ocasião, surpreendeu-o na cama de uma das criadas, Mamie
Larsen, em actividades carnais. Insultou o marido, mas este não se deu por vencido e chamou à
mulher os nomes mais insultuosos, acusando-a de se portar mal com metade dos homens de
Manistee.

Apesar do desgosto que a atingia, Ann Eliza não abandonou o marido. Sempre desejara um
casamento estável e monogâmico e não ia agora desprezar essas vantagens. Tentou esquecer os seus
problemas conjugais, bem como os outros desgostos que acabava de sofrer, entregando-se por
completo a uma religião relativamente nova.

Um quarto de século antes, Mary Baker Eddy, filha de um diácono congregacionista, iniciara a
prática das curas mentais depois de se ter curado a si própria das consequências de uma grave queda
numa rua coberta de gelo. Em
1879, instituíra a Primeira Igreja Científica de Cristo, em Boston, e agora, com setenta e um anos,
depois de se casar três vezes, enviava emissários, para arranjar adeptos, por todo o Médio Oeste.
Em Março de 1891, Ann Eliza convidou uma discípula de Chicago, Miss S. B. Bauer, para passar
quinze dias na sua casa de Manistee. Durante a estada de Miss Bauer, enquanto Ann Eliza passava
de praticante metodista para adepta da religião cristã científica, Moses R. Denning mantinha-se ao
largo, assistindo ao julgamento de uma questão de minas no Arcansas e a uma convenção
democrática em Lansing, no Michigan.

Ann Eliza patrocionou as três conferências com entrada livre acerca do cristianismo científico que
Miss Bauer pronunciou nas caves do Union Hall de Manistee. Depois convidou algumas pessoas
amigas para irem a sua casa assistir a uns cursos sobre o mesmo tema, em doze noites consecutivas.
Até os seus problemas conjugais atingirem o ponto culminante, Ann Eliza manteve-se entretida com
o cristianismo científico e com reuniões a favor do sufrágio da mulher. Em 1891, visitou Ludington,
no Michigan, trabalhando em favor da sua nova religião, e depois foi assistir a um congresso
feminino, em Grand Rapids. Contudo, a cura mental não bastava para superar o sofrimento moral de
Ann Eliza causado pelo marido, e assim, no ano seguinte, o conflito acabou por rebentar.

Em 1892, Moses R. Denning e Ann Eliza, contando ele sessenta e quatro e ela quarenta e oito anos,
viviam juntos havia quase nove. Foi no princípio desse ano que as suas questões domésticas se
tornaram insuportáveis. Embora Denning mantivesse relações íntimas com a mulher, estas
tornavam-se demasiado raras para o satisfazerem, e por isso as suas infidelidades eram cada vez
mais frequentes. Ele desculpava os seus pecadilhos com a frigidez da esposa. Ela acusava-o de
exigências sexuais desumanas. Fosse qual fosse o motivo, os devaneios de Denning continuaram,
dentro da sua própria casa e por toda a cidade. Certa tarde, Ann Eliza surpreendeu-o a fazer festas a
uma criada alemã, chamada Minnie, num canto do vestíbulo. Em breve veio a saber também que ele
acompanhava com mulheres «devassas, imorais e malcomportadas, e que mantinha relações
inconfessáveis e pecaminosas com essas mulheres».

Humilhada, Ann Eliza fugiu para Nova Iorque, procurando refúgio junto do filho, Edward Wesley,
e aí se manteve, amuada, até Fevereiro de 1892. De regresso a Manistee, recusou-se a reatar
relações conjugais com o marido. Na primeira noite, fechou a porta do quarto à chave. Furioso,
Denning bateu até se cansar e tentou em vão arrombá-la. Depois de ameaçar a mulher de que a
mutilava, de a acusar mais uma vez de adultério e de lhe dirigir os piores insultos, foi procurar
consolo junto de outras companheiras mais acessíveis. Dali em diante a porta do quarto de Ann
Eliza passou a ficar fechada todas as noites.

Durante dois meses, o casal Denning continuou em luta acesa até que ele, considerando ter sofrido
já o bastante, num acesso de fúria vendeu a um amigo, George M. Burr, tesoureiro do Manistee
National Bank, quatro lotes de terreno. Numa quinta-feira de manhã, no dia 22 de Abril de
1892, deixou Ann Eliza e informou os jornais de que seguia para a Pensilvânia para junto da mãe
doente.

Começaram logo a surgir boatos e os repórteres acorreram em massa. A 28 de Abril, o Advocate, de


Manistee, publicava o seguinte cabeçalho: CASO SENSACIONAL, a noticiar a separação:

«Segundo aquilo que transparece cá fora, deve existir um grave desentendimento entre o casal
Denning e em consequência disto diversos comerciantes mostram-se preocupados quanto ao
pagamento de algumas dívidas contraídas pela Sr.a Denning na semana passada.

«A Sr.a Denning, outrora Ann Eliza Young, era a décima nona esposa de Brigham Young, o chefe e
Profeta dos mórmones, que se tornou célebre em todo o país pelas suas conferências e escritos
acerca dos bastidores da vida mórmon. Casou-se há alguns anos com o Sr. Denning e viviam
aparentemente felizes. Na semana passada o Sr. Denning foi visitar vários comerciantes que
mantinham negócios com a família, pagou todas as contas, algumas destas com cheques
ligeiramente superiores ao seu débito, e, ao ser-lhe chamada a atenção para o facto, declarou que
não tinha importância, que ”ficava por conta”. No estabelecimento do Sr. Russel [Edwin Russell,
mercearias] disse que ia sair da cidade e que possivelmente não voltaria tão cedo e talvez tivessem
de esperar algum tempo pelo pagamento da conta no próximo mês.

«O Sr. Denning partiu na quinta-feira. No dia seguinte, a Sr.a Denning consultou o seu advogado e,
de acordo com o parecer deste, fez compras a crédito de tal valor que o Sr. Denning, no seu
regresso, irá ter uma grande surpresa. Em virtude de ele ser um homem consideravelmente rico,
habituado a pagar imediatamente as contas logo que estas lhe eram apresentadas, os lojistas
apressaram-se a vender tudo quanto ela lhes pediu e assim a Sr.a Denning comprou mercearia,
géneros, artigos secos, sapatos, chinelos, mobília e objectos durante uns dois dias, tudo no valor de
cerca de mil dólares.»

Quando Denning veio a ser informado desta euforia de aquisições, enviou imediatamente da
Pensilvânia um aviso para ser publicado no Daily Democrat de Manistee. Sem dirigir qualquer
acusação a Ann Eliza, declarava publicamente que «não se responsabilizava por qualquer dívida
contraída pela mulher».

O Times-Sentinel, de Manistee, desejoso de conhecer a versão de Ann Eliza acerca do


desentendimento, enviou um repórter à residência dela, seis dias depois da partida de Denning. O
jornalista encontrou Ann Eliza «calma e repousada». Ao interrogá-la, ela fez-lhe a seguinte
declaração para ele publicar:

Não há necessidade de entrar em pormenores acerca da vida do Sr. Denning. Deixarei que os seus
actos falem por si. Qualquer referência que a eles possa fazer está isenta de ressentimento ou
malquerença. Nada do que eu diga pode ser mal interpretado. Falarei apenas nos nossos negócios,
pois acho preferível proceder assim a permitir que certas suposições inverosímeis venham a lume
como factos. Durante nove anos suportei um fardo que quase me ia esmagando, e se tal não sucedeu
devo-o à bondade de Deus. Agora sinto-me perfeitamente calma e forte para enfrentar o inevitável,
pois tenho uma grande fé na justiça e no direito. A conduta do Sr. Denning era de molde a eu não
poder suportá-lo, de maneira que, no meu regresso de Nova Iorque, recusei-me a ter mais relações
conjugais com ele enquanto o seu procedimento não se modificasse. Propôs dar-me tudo o que eu
quisesse para deixar Manistee, mas recusei. Claro que isto o enfureceu e, ao ver que eu mantinha a
minha posição, iniciou os preparativos para a partida. Percebi perfeitamente, mas não tomei
qualquer iniciativa para o impedir. O recado que me deixou é absolutamente impróprio de um
homem: «Agora que morra de fome para ver se gosta», e outras observações semelhantes. Foi-se
embora na quinta-feira de manhã, 2 de Abril, e desde então não voltei a vê-lo. Sinto-me muito
aliviada com a sua ausência e sinceramente satisfeita por ter partido, uma vez que me era
impossível levar junto dele uma vida normal e respeitável. O mal que lhe desejo é que venha a
compreender a verdade, isto é, que a vida encarada de outra maneira poderia ser mais feliz, e que o
futuro lhe reserve melhores dias.

Depois desta tirada notável, Ann Eliza guardou silêncio durante nove meses, até que em Janeiro de
1893 instaurou um processo de divórcio contra o marido, alegando o facto de ele manter relações
sexuais extraconjugais. A 14 de Agosto de 1894, foi-lhe concedido o divórcio com base na extrema
crueldade dele. Ann Eliza recebeu quatrocentos dólares para pagar aos seus advogados e cinco mil
para alimentação, correspondentes aos rendimentos que devia auferir das propriedades do marido.

Denning não assistiu à dissolução do casamento. Depois de deixar Ann Eliza, dirigiu-se a
Curwensville, na Pensilvânia, para visitar a mãe. Seguidamente, acompanhado pelos dois filhos do
primeiro matrimónio, foi para Ronceverte, na Virgínia, fixando residência nessa barulhenta cidade,
nas margens do rio Greenbrier.

Após o divórcio, Ann Eliza viveu ainda três anos difíceis e solitários em Manistee. A fim de manter
o equilíbrio mental, dedicou-se de alma e coração ao cristianismo científico. Em 1895 teve a honra
de figurar com uma biografia de quatro páginas num livro dedicado exclusivamente a homens.
Portrait and Biographical Record of Northern Michigan, publicado em Chicago. Continha «breves
apontamentos acerca de alguns cidadãos representativos, além de retratos e biografias de todos os
presidentes dos Estados Unidos». A biografia de Ann Eliza contava a sua fuga do Utah, a carreira
de conferencista e os seus três casamentos. «Nos últimos anos», prosseguia, «leva uma vida retirada
e calma, rodeada pelo respeito de todos que a conhecem.» Havia ainda uma referência ao irmão
mais velho, Gilbert, que vivia no Novo México. Falava também nos dois filhos dela: «Edward W.,
que reside agora no Novo México, e Leonard L., que morreu muito novo.»

O único filho que restava a Ann Eliza saíra de Nova Iorque para o Novo México por duas razões:
primeiro, sem que se saiba porquê, separara-se da mulher, Mabel Rose, e provavelmente queria
estar longe dela; em segundo lugar, tal como o irmão, sabia que estava atacado de tuberculose e
precisava de mudar de clima. Em 1897, enquanto Ann Eliza viajava pelo Leste, Edward Wesley
mudou novamente de residência, passando do Novo México para Denver, onde foi habitar uma casa
que Ann Eliza ali possuía desde 1895.

Assim que Edward Wesley se instalou em Denver, Ann Eliza resolveu ir viver perto dele.
Regressando de Filadélfia a Manistee, vendeu a casa, já muito sobrecarregada de hipotecas, e foi
para Denver onde alugou um chalé junto do filho. Em 1899, talvez por falta de dinheiro, vendeu a
casa de Denver e viu-se obrigada a deserdar o filho.

Em seguida, durante mais de uma década, Ann Eliza viveu na obscuridade, deixando poucos
indícios das suas deslocações.
Em 1900, viu surgir o novo século, nesse ano em que grande parte dos setenta e nove milhões de
americanos falavam de Williams Jennings Bryan, Upton Sinclair, Eugene V. Debs, Theodore
Roosevelt, Jack London, Carrie Nation, Casey Jones. Foi também o ano em que o mormonismo e
até Ann Eliza constituíram mais uma vez notícia. O novo Profeta era o ancião de oitenta e sete anos
Lorenzo Snow, irmão da companheira de harém de Ann Eliza, Eliza R. Snow. O representante do
Utah no Congresso, em Washington, era Brigham H. Roberts, mas, em virtude de possuir três
esposas, a Câmara dos Representantes votou contra ele por uma maioria de duzentos e sessenta e
oito votos contra cinquenta.

No ano seguinte, Ann Eliza fez uma curta aparição. Numa segunda-feira, 22 de Abril de 1901, a
sobrinha, Effie Webb, filha do irmão Gilbert, que vivia em Salt Lake City a cuidar do avô, pai de
Ann Eliza, escrevia no diário que mantinha: «Ann Eliza e Eddie ainda não chegaram.» No dizer de
Effie Webb, «Eddie» era o filho mais velho de Ann Eliza, Edward Wesley, ainda vivo mas doente
em 1901. Pouco tempo antes, visto ele estar tuberculoso, Ann Eliza convencera-o a deixar Denver e
a ir com ela para o Texas em busca da saúde. Após umas férias em El Paso, mãe e filho deviam ir a
Salt Lake City a fim de o rapaz receber a herança de dois mil dólares deixada pelo pai, James L.
Dee, que falecera havia quatro anos. Pouco tempo antes, uma neta do segundo casamento de
Chauncey Webb referia a volta de Ann Eliza a Salt Lake City, em 1901: «Ouvi dizer que ela
regressava ao Utah bastante arrependida.»

Depois dessa visita ao Utah o filho, Edward Wesley, morria logo a seguir , Ann Eliza não voltou a
ser vista durante um ano, para reaparecer no ano de 1902, em El Paso. Provavelmente, foi ali para
estar junto do irmão, Gilbert, que trabalhava na construção de uma linha de caminho-de-ferro no
estado de Chihuahua, no México. Ann Eliza levava uma vida muito retirada nessa cidade rude da
fronteira mexicana. Poucos texanos estavam ao par da sua fama e celebridade anteriores. No
entanto, alguns polígamos mórmones que viviam exilados nas cidades mexicanas de Chuichupa,
Colónia Juarez e Pearson (fundada pelo milionário inglês Weetman Pearson, depois Lord Cowdray,
que construíra o porto de Vera Cruz, o dique do Nilo Azul, no Egipto, e os túneis por baixo de East
River em Nova Iorque) afirmavam à boca pequena que a vigésima sétima esposa de Brigham
Young se encontrava algures em El Paso.

Ann Eliza habitou quatro residências diferentes em cinco anos perto da zona comercial de El Paso.
Em 1902 e 1903, alugou um pequeno chalé de adobe em Magoffin Street, bairro muito selecto,
habitado apenas por banqueiros, homens de profissões liberais e engenheiros. Nos anos seguintes, à
medida que a sua bolsa se esvaziava, viu-se forçada a viver em três pequenos apartamentos.
Durante esses anos era conhecida pelos vizinhos apenas pelo nome de «Sr.a Ann E. Denning, viúva
de Moses R.», embora o dito Moses, bem vivo na Virgínia, não devesse achar graça nenhuma à
ideia de o darem como morto.

Durante o ano de 1907, Ann Eliza não se mostrava tão «arrependida» como meia dúzia de anos
antes no Utah. Chegara à conclusão de que o manifesto de Woodruff, abolindo a poligamia, não
fora inteiramente observado pelos «Santos». «Em 1890, o presidente Woodruff fez sair uma
proclamação hipócrita a suspender a poligamia, mas esta continuou a ser praticada como até ali»,
afirmava ela. «O mesmo faziam os seus fiéis discípulos, os apóstolos, os bispos, os anciãos e todos
os outros. O resto dos irmãos iludidos seguiam-lhe o exemplo. Neste momento, um compacto grupo
de ”Santos” no Utah, no Arizona, no Idaho e no Canadá praticava ainda a poligamia, afirmando que
John Taylor, durante o período em que vivera na clandestinidade, em 1886, tivera uma revelação
secreta do Senhor no sentido de que devia continuar a praticar o casamento celestial.»

Em Fevereiro de 1907, um polígamo mórmon causou um dos últimos escândalos no Congresso, e


Ann Eliza seguiu o caso de perto. Quatro anos antes, depois de Joseph F. Smith (sobrinho do
fundador do mormonismo) haver sucedido a Snow na presidência da igreja, a legislatura do Utah
elegera senador Reed Smoot. Imediatamente os ministros protestantes de Salt Lake City redigiram
um protesto dirigido a Washington. Muito embora Reed Smoot fosse um republicano conservador,
com uma esposa apenas, os seus inimigos acusavam-no de acreditar na poligamia por ser apóstolo
da igreja.

Espicaçada por eles, a Comissão de Privilégios e Eleições do Senado propôs-se examinar aquele
caso difícil. Recebeu montanhas de petições contra Smoot, acusando-o de ser um instrumento dos
mórmones e afirmando que ele e os seus outros apóstolos incentivavam a poligamia clandestina.
Por sua vez, Smoot negava tudo. Por fim, o Senado exigiu declarações ao Profeta, Joseph F. Smith,
e a outros membros da hierarquia. Smith causou sensação ao confessar que as suas cinco esposas
haviam continuado a dar-lhe filhos depois de o Manifesto de Woodruff ter proibido a poligamia.
Tentou convencer a comissão de que o casamento poligâmico deixara de ser permitido pela igreja
quem quer que o contraísse ficava excomungado , mas que se tornava impossível para os antigos
polígamos abandonarem as suas mulheres com quem outrora se haviam casado. «Eu estava nessas
condições», declarou ele aos senadores. «Possuía uma família polígama, como já sabeis, isto é, a
minha primeira mulher estava casada comigo há mais de trinta e oito anos e a última há vinte. Tinha
filhos delas, e preferi arriscar-me a sofrer as consequências da lei. Assim, em lugar de abandonar os
meus filhos e as mães deles, continuei a coabitar com eles, não abertamente, ou seja de molde a
ofender os vizinhos, mas visitava-os e mantinha-os. Têm-me dado filhos desde 1890, assumindo eu
a responsabilidade e sabendo que estava sob a alçada da lei.»

Em 1906, a comissão informava o Senado de que a maioria dos seus membros era contra a
admissão de Reed Smoot. A 13 de Dezembro de 1906 o caso foi apresentado ao Senado para ser
debatido e votado. Smoot foi alvo de um violento ataque, mas defendeu-o o senador Albert J.
Hopkins, do Ilinóis, afirmando que Smoot era contra a poligamia «desde a infância». Vários
senadores insurgiram-se contra o presidente Theodore Roosevelt, dizendo que ele defendia os
mórmones porque estes o haviam apoiado na eleição para a Presidência. Na véspera do voto do
Senado, Smoot falou a defender-se. Afirmou que os casamentos poligâmicos eram raros agora no
Utah e se faziam sem a aprovação da igreja. Todos os que haviam sido realizados depois de 1880
«eram expressamente condenados por ela». Pelo que lhe dizia respeito a ele, era categoricamente
contra a poligamia.

A 20 de Fevereiro de 1907, o Senado votou. Eram necessários dois terços de votos para expulsar
Smoot. Depois da contagem foi revelado que havia vinte e oito votos a favor da expulsão, quarenta
e dois contra e vinte abstenções. Smoot ficou no Senado e viria a conservar a sua posição durante
mais cinco mandatos sucessivos até que, em 1932, foi a enterrar em plena campanha eleitoral a
favor do presidente democrata Franklin D. Roosevelt.

Ao seguir de longe o caso Smoot, Ann Eliza viu confirmados os seus mais negros receios. Estava
convencida de que o casamento poligâmico continuava a ser praticado no Utah, ainda que
esporadicamente. Ou porque sentisse desejos de voltar a combater o seu velho inimigo ou por se
encontrar farta de viver na obscuridade e tivesse saudades das luzes do palco, o certo é que
começou a rever o seu livro há tanto esquecido, A Esposa n.” 19, publicado trinta e um anos atrás.

Trabalhou afincadamente e escreveu um novo prefácio: «Decorreram muitos anos desde que,
fugindo da escravidão mórmon, relatei a história do meu cativeiro e da minha entrada no mundo
desconhecido dos não-mórmones. Gastei três anos a fazer conferências e a escrever acerca dos
factos por mim sobejamente conhecidos, até que a falta de saúde me forçou a regressar à vida
privada... Não posso ignorar que esses anos de trabalho deram fruto. O Congresso votou algumas
leis declarando que a poligamia era um crime contra os Estados Unidos e o presidente assinou-as.
Afirmaram-me então que isto era resultado directo do meu esforço.»

Mas agora ela compreendia que o seu trabalho não estava terminado. Os polígamos ainda
estrebuchavam. «Contra a hoste insubmissa desses malfeitores venho de novo erguer a minha voz e
empunhar a pena, pedindo a Deus que abençoe este humilde instrumento com que pretendo destruir
esse baluarte do erro. Apelo para a nova geração que agora surge como antes apelei para os seus
pais no sentido de os animar e exortar contra o mal tremendo que ainda ameaça a nossa paz, as
nossas casas, as nossas vidas.»

O livro que se seguia constava de quinhentas e doze páginas. Até à quatrocentos e cinquenta e dois,
o texto de A Esposa n.” 19 era quase fielmente respeitado. As últimas sessenta páginas, porém,
continham novo material. Ao refundir o seu livro, Ann Eliza não só modificara a estrutura das
frases como de facto acrescentara uma quantidade de informações acerca do que havia acontecido
às suas personagens e a ela própria entre 1876 e 1907. Agora podia contar toda a história do
Massacre de Mountain Meadows e a execução de Lee que se seguira. Podia também fornecer
informações actuais acerca da vida dos filhos de Brigham e de algumas das esposas dele, e da dos
delegados mórmones ao Congresso, tais como George Q. Cannon.

Neste livro revisto, Ann Eliza falava apenas de dois dos seus três maridos. A história do infeliz
casamento que contraíra com James L. Dee era repetida mas muito cortada. No primeiro livro
dedicara página e meia ao episódio em que Dee tentara estrangulá-la. Na nova versão este ataque
reduzia-se a urna simples frase: «Por fim os meus pais foram testemunhas oculares da violência
brutal com que ele me tratava.» Talvez em 1907 o ódio de Ann Eliza tivesse diminuído com a
idade, ou talvez pretendesse assim agradecer-lhe o facto de ter legado dois mil dólares ao filho
Edward Wesley. O casamento poligâmico com Brigham Young era refeito com todos os
pormenores originais, mas agora acrescido da morte do Profeta e reproduzia a cópia do seu
testamento. Relatava também a história completa do processo do divórcio. Quanto ao seu terceiro
casamento com Moses R. Denning, nada constava nesta edição.

Depois de ter refundido todo o antigo material, Ann Eliza escrevia: «Contei a minha história o mais
simplesmente que pude. Não inventei nada, antes deixei muito por dizer. Aquilo que poderia
acrescentar daria um volume tão grande como este. A minha vida é a vida de uma só mulher ao
passo que milhares de outras estão sofrendo como eu, sem poderem sequer pedir auxílio. Por isso
venho interceder por elas. Falam pela minha boca as vozes de vinte mil mulheres que anseiam por
se libertar da tirania tanto social como religiosa.»

A parte inédita do livro começava com a narrativa da morte de Brigham, além de contar curtas
biografias dos seus sucessores, Taylor, Woodruff, Snow e Smith. Ann Eliza aprovava a lei
Edmunds e desaprovava a nomeação de Smoot para o Senado. Na página quinhentos, escrevia: «Fui
uma entre os milhares de vítimas desse maldito sistema; e tive a felicidade não só de escapar à sua
escravidão como também a possibilidade de expor, quer de viva voz quer por meio da pena, os seus
perigos ao povo americano. O chefe déspota que me fez sofrer directamente já compareceu diante
de um tribunal mais alto para receber o justo castigo. Porém o horrendo sistema que ajudou a pôr de
pé e dirigiu durante tanto tempo ainda existe, a despeito de todas as medidas com que um povo
inteiro procurou dominá-lo e suprimi-lo; ainda floresce e espalha as suas influências maléficas
sobre muitas partes do nosso amado país e até em terras estrangeiras.»

E Ann Eliza chegava ao apelo final dirigido ao público que a esquecera: «Estive muitos anos
ausente do Utah, mas nem por isso me encontro menos interessada no seu bem-estar, pois trata-se
da minha terra natal a que me ligam muitas e gratas recordações. Amo o seu povo e desejo vê-lo
liberto das intoleráveis cadeias de uma religião falsa e maligna. Todas as notícias que me chegam
desse estado afirmam que a poligamia ainda não morreu... O povo americano deve portanto
prosseguir na sua santa cruzada contra esse sistema anticristão. Deve amparar essas almas heróicas
empenhadas nesta tarefa divina. Deve educar os seus filhos e filhas numa vigilância constante e
num ódio sem tréguas contra as suas insidiosas arremetidas. Deve manter-se sempre em guarda e
não permitir que, mercê de qualquer artimanha ou estratagema, o manhoso e temível inimigo
consiga conspurcar os seus corações e os seus lares.»

Ann Eliza arranjou editor em Filadélfia onde deve ter residido entre 1908 e 1911. Esse editor era
Williams S. Jackson, que dirigia uma casa chamada Aldine Press, no Edifício Witnerspoon, e
também um escritório em Boston. Nessa altura, Jackson dividia as suas actividades entre a
publicação de livros e a venda de propriedades imóveis. É provável que Ann Eliza lhe tenha pago a
totalidade ou quase das despesas com a edição do livro.

Tratava-se de um volume de quinhentas e doze páginas, com capa vermelha, que foi apresentado ao
público em 1908. A primeira página ostentava o título: A Vida sob a Escravidão Mórmon... «Relato
completo acerca dos falsos profetas Os Danitas assassinos Chefes despóticos Súbditos
hipnotizados e iludidos... Por Ann Eliza Young... ” Esposa de Brigham Young... Edição Limitada.»

Se bem que 1908 tenha sido um ano de grandes êxitos literários, a obra de Ann Eliza não fazia parte
deles. As pessoas liam A Escada, de Caracol, de Mary Roberts Rinchart, A Pista do Pinheiro
Solitário, de John Fox Jr., e Anne de Green Gables, de Lucy M. Montgomery. Pouca gente se
mostrava interessada pela relíquia do barbarismo. Dava a impressão de que o derradeiro entusiasmo
do público acerca da poligamia se esgotara com o caso Smoot, um ano antes. Foi um fracasso. A
tiragem do livro de Ana Eliza era de mil exemplares apenas. Duvida-se de que se tivesse vendido
mais de metade. No entanto, existem provas de que alguns leitores ficaram impressionados.
Margareth Hatch Haycock, de Salt Lake City, recorda-se de que, andando ela e o marido em missão
mórmon na cidade de Los Angeles em 1908, certo número de pessoas resistiu à conversão
invocando sentimentos antimórmones despertados pela obra de Ann Eliza, A Vida sob a
Escravidão Mórmon. A Sr.a Haycock refere que Ann Eliza «vivia então no Sul da Califórnia e julgo
que escrevia contos acerca da igreja e da poligamia, ou talvez escrevesse apenas um livro, mas o
certo é que nos fez muito mal». Infelizmente para Ann Eliza, não existem provas de que esse
exemplo da Califórnia se repetisse noutros lugares.

Muito embora, no entanto, o público não tivesse despertado, ela podia ao menos sentir a satisfação
de dar a saber aos parentes e amigos que continuava viva e vigorosa aos sessenta e quatro anos. Mas
quantos dos seus familiares e antigos associados existiriam ainda para ler e apreciar A Vida sob a
Escravidão Mórmon?

Em 1908, já a mãe, Eliza Churchill Webb, morrera há quase um quarto de século. O pai de Ann
Eli/a, Chauncey G. Webb, tendo contraído seis matrimónios, falecera cinco anos antes, na manhã do
dia 7 de Abril de 1903, depois de aconselhar o médico, já no leito de morte: «Faça o que entender,
sem se importar com a opinião das autoridades da igreja. Se está certo, está certo. Se está errado, os
responsáveis são eles e não o senhor.» O seu funeral, a que assistiu grande número de parentes e
amigos, teve lugar na Nona Sala de Reuniões de Salt Lake City, com um bispo a presidir. Este era o
seu amigo íntimo, Angus M. Cannon, que outro-a o excomungara e agora lhe fazia o elogio fúnebre,
acompanhado por um coro da igreja. O jornal lhe Deseret News publicava o seu epitáfio: «... foi ele
quem construiu a carruagem utilizada pefo presidente Young quando entrou no vale». A sua
sepultura no cemitério de Salt Lake City viria a ser partilhada pela segunda esposa, Elizabeth Taft
Webb, em 1909.
Em 1908, só um dos três maridos de Ann Eliza existia ainda. Moses R. Denning vivia em
Ronceverte, na Virgínia, onde viria a falecer em 1910, com oitenta e dois anos.

Em 1908, os dois filhos de Ann Eliza tinham morrido já, mas os netos, Rollins e Edward Clifton,
estavam de boa saúde. Rollins, que trabalhava como secretário, casara dois anos antes com Aline
Yard e vivia com a mulher na Califórnia, junto da mãe, Mabel Rose. Só veio a morrer em
1941. O neto mais novo, Edward Clifton, era solteiro e trabalhava numa companhia de algodão em
Oakland, no ano de 1908. Combateu na Primeira Grande Guerra e depois ocupou-se com êxito da
compra e venda de propriedades, até vir a morte em 1948.

Em 1908, existiam ainda três dos irmãos de Ann Eliza. Gilbert, de setenta e um anos, por causa de
quem ela outrora se casara com Brigham Young e que assistira à morte do filho mais novo dela,
trabalhava ainda activamente como empreiteiro-geral no troço de caminho-de-ferro da Kansas City,
Mexico and Orient Railroad, que se prolongava por uma extensão de quinhentas e noventa e cinco
milhas através do estado de Chihuahua. Entre os seus capatazes, à frente de duzentos trabalhadores,
encontrava-se Pancho Villa, que vigiava o assentamento das travessas. Quatro anos depois, velho e
sem dinheiro, Gilbert reunir-se-ia a mil e quinhentos mórmones como ele que iriam procurar
refúgio em El Paso, fugindo à frente do seu antigo empregado Pancho Villa. Por fim, Gilbert
voltaria ao México como gerente das serrações de Pearson. Em 1922, seria readmitido na Igreja
Mórmon. Decorrido um ano, em 1923, com a idade de oitenta e seis anos, viria a morrer em Pearson
hoje Mata Ortiz e seria enterrado com toda a pompa num socalco da colina sobranceiro a Colónia
Juarez.

O outro irmão de Ann Eliza, Edward Milo, de setenta e um anos, era contratador de gado no Novo
México, em
1908. Deixara a Igreja Mórmon havia quarenta anos após uma questão violenta com Brigham
Young. Ao saber que a irmã era maltratada, Edward Milo fora procurar o Profeta ao seu escritório.
Brigham, furioso «era um homem enorme», segundo refere Edward Milo no seu diário , pegou-lhe
pela gola do casaco e pô-lo na rua. Edward Milo viria a morrer em Maio de 1927, com oitenta e
nove anos, ficando enterrado ao lado do pai, em Salt Lake City.

Em 1908, além de Ann Eliza, só viviam três das esposas de Brigham Young. A décima sétima,
Margaret Pierce, morrera um ano antes; Amélia Folsom, porém, viveria ainda mais dois, Harriet
Barney mais três e Eliza Burgess mais nove. A instituição do casamento poligâmico que todas elas
haviam partilhado não morreria definitivamente, pelo menos do ponto de vista oficial. Uma minoria
de resistentes mórmones, conhecidos pela designação de Fundamentalistas, a despeito da
proclamação de Woodruff e das ameaças de excomunhão, continuava a praticar em segredo o
casamento poligâmico, tanto em 1908 como ainda hoje. Pululam em Short Creek, no Arizona, em
Juab County, no Utah, em Los Angeles e, sobretudo, em Salt Lake City. Em 1959, um alto
funcionário da Igreja Mórmon confessava ao autor destas linhas que existem dois mil polígamos em
Salt Lake City; um advogado que faz parte da administração da cidade considerava o seu número
mais próximo dos cinco mil. O principal paladino do casamento poligâmico passa por ser um
advogado de nome Joseph W. Musser, autor de um panfleto intitulado Casamento Celeste ou
Poligâmico, no qual defende o sistema.

Dos amigos que haviam apoiado Ann Eliza nos seus ataques contra a poligamia, em 1873, e que a
tinham ajudado a alcançar a celebridade, existia ainda um em 1908. O reverendo C. C. Stratton, dez
anos depois de ter apoiado Ann Eliza, abandonara as suas ovelhas metodistas em Salt Lake City,
para ser nomeado presidente da Universidade do Pacífico e, depois, da Universidade de Portland.
Em 1908 continuava activo e só veio a morrer em 1910.
Em 1908, Ann Eliza encontrava-se mais isolada do que nunca. Ninguém se interessava pelos seus
trabalhos. O segundo livro que publicara falhara totalmente, visto que a poligamia constituíra uma
curiosidade e não uma causa. l E no ano em que as pessoas discutiam Elinor Glyn, o Edi- l fício
Singer de quarenta e sete andares, em Nova Iorque, j Mischa Elman, Orville Wright, jack Johnson e
o modelo ] «T» do Sr. Henry Ford, a vigésima sétima esposa de Brigham Young era um
anacronismo.

É caso raro na história uma pessoa célebre ter-se furtado totalmente às atenções do público. ]á
aconteceu, mas não muitas vezes. Desde que Benjamin Bathurst, diplomata inglês em Viena,
desapareceu, a 25 de Novembro de 1809, em Perleberg, na Alemanha (dirigiu a sua carruagem para
o local de uma pousada e em seguida evaporou-se para sempre), e que Ambrose Bierce, célebre
autor americano, depois de entrar no México em 1914, nunca mais foi visto, alguns exemplos houve
de pessoas conhecidas que abandonaram a cena quase sem deixarem vestígios. Ann Eliza está nesse
número.

Em 1908, publicava o seu livro e de então para cá nunca mais foi vista. Sumiu-se na atmosfera, pelo
menos assim vt^nte dos Estados mais foi vista, bumiu-sc ÍM .

parece.

Nenhuma fonte de informação importante dos Estados Unidos ou da Inglaterra, seja mórmon ou
não-mórmon, se f, refere aos últimos anos de vida de Ann Eliza, indica a data ”’, da sua morte
ou, sequer, o local onde foi enterrada. O Ar- l quivo Histórico da Igreja Mórmon, em Salt Lake
City, | possui um meticuloso obituário de todos os mórmones e f apóstatas do mormonismo,
mas as suas fichas (que eu exa- ; minei) nada incluem a respeito dela, quer sob o nome de Webb,
Dee, Young ou Denning. A grande Biblioteca Genealógica de Salt Lake City possui relatórios
extensos acerca das mulheres e dos filhos de James L. Dee, o mesmo sucedendo com as esposas de
Brigham Young, figurando Ann Eliza entre as primeiras. Mas nada contém referente à sua morte.

Nenhuma obra anti ou pró-mórmon, escrita no passado ou no presente, fornece a data do seu
falecimento. Até o livro que se pode considerar fundamental na matéria, Brigham Young As suas
Esposas e Família, publicado pelas Filhas dos Pioneiros do Utah, apenas inclui um breve
apontamento acerca do fim de Ann Eliza: «Desconhece-se a data e o local da sua morte.»

Nas grandes bibliotecas do mundo a do Congresso, em Washington, a Biblioteca Pública de Nova


Iorque e a do Museu Britânico nada existe a tal respeito. As bibliotecas especializadas e dos locais
onde ela viveu a da Sociedade Histórica do Utah e a Biblioteca Pública de Manistee não possuem
também qualquer informação. As diversas notícias acerca de conferências e conferencistas, os
extensos ficheiros do Lyceum Bureau de Chicago, as enciclopédias universais, não fazem menção a
qualquer data. Dezenas de anúncios publicados obtiveram resposta de pessoas antigas, tanto
mórmones como não-mórmones, mas nenhuma revelou a data pretendida; centenas de cartas
dirigidas aos jornais e aos cemitérios não forneceram igualmente qualquer indicação.

Tudo o que se sabe acerca do fim de Ann Eliza são boatos vagos, dos quais nenhum pôde ser
confirmado. A parte não publicada no livro de Susan Young Gates, em que esta faz a biografia do
pai, conclui da maneira seguinte a sua referência a Ann Eliza: «Que foi feito dela? Casou com um
homem de negócios do Leste e viveu até há pouco em relativa obscuridade.» Uma vez que isto era
escrito em 1925, a afirmação de que Ann Eliza «viveu até há pouco» podia significar que falecera
nos anos vinte.
A Sr.a John A. Widtsoe, de Salt Lake City, neta de Brigham Young e de Lucy Bigelow, filha de
Susan Young Gates, ouvira dizer um dia que Ann Eliza «morrera pobre, na Califórnia,
desconhecida e abandonada».

Helen Spencer Williams, de Salt Lake City, neta de Brigham Young e de Lucy Decker, situava
noutro local o passamento de Ann Eliza:
«Sempre estive convencida de que ela morrera no Arizona e que fora aí enterrada pelo bispo
mórmon da terra.»

Gaylen Snow Young, de Salt Lake City, neto de Brigham Young e de Margaret Pierce, confirma a
versão mais aceite de que Ann Eliza acabara os seus dias no Leste: «Diz-se cá na família que
morreu em Nova Iorque e que está enterrada numa campa de indigente, mas não sei sob que nome.»

Margareth Hornung Perron, de São José, Califórnia, possuía um diário inédito e por encadernar, de
quatrocentas páginas dactilografadas pelo pai, em 1935. Este era John Hornung e fora casado com
uma sobrinha de Ann Eliza. , No seu diário, Hornung, que conhecera a tia em Manistee,
considerando-a a mulher mais inteligente que jamais conhecera, dedicava-lhe algumas páginas e
concluía com uma linha única ao referir-se à sua morte: «Faleceu há anos, em Rochester (Nova
Iorque).»

O Dr. J. Edgar Lyon, de Salt Lake City, cuja mãe conhecera Ann Eliza, recordava-se de um
incidente que lançava alguma luz sobre os últimos dias de Ann Eliza: «Aqui há anos, estava eu a
fazer uma conferência, e alguém, recentemente chegado do Leste, comentou que Ann Eliza, no fim
da vida, ficara, tão pobre, tão doente e sem ninguém que olhasse por ela que acabara os seus dias
num hospital e alienados ou num asilo.»

Nos princípios dos anos trinta, uma investigadora, trabalhando por conta dos Projectos de
Administração do Utah, fora encarregada de saber qual o fim de Ann Eliza. Entrevistou Mabel
Young Sanbom, filha de Brigham Young, «a qual disse que Ann Eliza morrera pobre e que a igreja
dera o dinheiro necessário para o enterro, a fim de que ela não fosse para a vala comum». A
investigadora entrevistara então um membro do Departamento Histórico da Igreja Mórmon, que
«confirmara a história». Julga-se que Ann Eliza morrera em Brooklyn.

Finalmente, no Verão de 1959, enquanto andava investigando em Salt Lake City, o autor deste livro
ouviu a história mais estranha de todas. Numa entrevista com Ernest L. Dee, o único filho que
restava do segundo casamento de James L. Dee, inquiri se ele sabia quando morrera Ann Eliza. Dee
ignorava-o, mas sabia quando tinha sido vista pela última vez. Entre 1928 e 1930, Dee fora a Nova
Iorque em viagem de negócios por conta da General Electric. Ao entrar no edifício da Companhia
de Seguros Equitable, encontrara-se cara a cara com Rollins, o neto mais velho de Ann Eliza.
Ficaram ambos surpreendidos, «Meu Deus, Rollins, que fazes tu por aqui?», inquirira Dee. Rollins
declarara que ia partir para Nova Jérsia em viagem de negócios. Dee perguntara-lhe então por várias
pessoas da família e quisera saber o que era feito da avó, Ann Eliza. «Olha», respondera Rollins,
«acabo de a encontrar há cerca de um minuto. Seguia pela Rua 42 em direcção à Broadway. Vamos
ver se a apanhamos.» Dee afirmou que tinham percorrido vários quarteirões, tentando avistar Ann
Eliza, mas que não a conseguiram descobrir. Por fim desistiram e Rollins não se mostrara nada
pesaroso com isso. «Que vá para o diabo, não me interessa voltar a vê-la.»

Se acaso a história de Dee é exacta, Ann Eliza devia contar os seus oitenta e seis anos quando
estivera a ponto de a encontrar na cidade de Nova Iorque. No entanto, a filha de Rollins que vive
em Burlingame, na Califórnia, põe dúvidas acerca da data em que Dee situa a história: «O meu pai
não esteve em Nova Iorque há trinta anos», afirma ela. «Isso deve ter acontecido há uns trinta e
cinco anos, pois ele não voltou a Nova Iorque desde 1925 e quando ali esteve por diversas vezes foi
entre 1921 e 1925.» A partir de tão vagas recordações, temos de concluir que Ann Eliza deve ter
morrido no espaço que vai de 1909 a 1930, algures entre a Califórnia e Nova Iorque.
Talvez já nem interesse apurar-se onde e quando morreu, pois quando foi preciso combater estava
bem viva e, depois de vencer, tendo acabado com o harém na América, a sua vida, em sentido
figurado, terminara.
A sua pedra tumular não existe, porém o monumento fúnebre de Ann Eliza Young continua de pé.
Susan B. Antony conquistou o voto para as mulheres. Mary Walker e Victoria Woodhull
possibilitaram-lhe a intervenção na vida pública. Ann Eliza, porém, a vigésima sétima esposa,
ofereceu às mulheres a melhor dádiva de todas o triunfo da monogamia , uma esposa para cada
homem, uma esposa e nada mais, para honrar, amar e obedecer ao companheiro como é desejo do
seu coração...
AGRADECIMENTOS

Uma vez que a história dos mórmones vem sendo, há tanto tempo, assunto de controvérsia, afigura-
se-me que os novos escritores interessados pelo tema deveriam (tal como acontece com os jurados)
declarar se têm ou não qualquer ideia preconcebida acerca do caso. Quanto a mim, abordei a
história de Ann Eliza sem qualquer preconceito acerca dos Santos da Ultima Hora. Durante quase
três anos de investigação intensa em torno de Ann Eliza e da sua igreja, não me tornei pró-mórmon
nem antimórmon.

Resolvi escrever acerca da heroína desta biografia, que outrora fora mórmon ortodoxa,
transformando-se em antimórmon, apenas por me sentir fascinado pela mulher em si, pela sua
aventura tão pouco conhecida dentro da poligamia, pela carreira que depois seguiu e pelo
importante contributo que deu, no seu tempo, para a abolição do casamento poligâmico na América.
Além da minha função de escritor, não tinha outro objectivo.

Acho que terminei as investigações, tal como as encetara, com a minha objectividade intacta. Se
nalguma coisa me afastei do papel de observador neutral, o desvio não foi grande e resume-se no
seguinte: sinto-me mais favoravelmente impressionado do que antes pela notável odisseia de
Brigham Young e dos Santos dos Últimos Dias (talvez seja um paradoxo afirmá-lo) e fiquei
igualmente mais bem impressionado do que antes pela apaixonada e infatigável cruzada de Ann
Eliza contra a poligamia nos Estados Unidos. Quanto à poligamia no Oeste, pode, na verdade, ter
sido prejudicial ao país, tal como Ann Eliza e a maioria dos seus contemporâneos pensavam, mas
não posso acreditar que representasse um sistema tão prejudicial como pretendem os seus inimigos.
Pondo de parte a revelação divina, estou certo de que a poligamia apresentava também certas
vantagens a verdade, porém, é que sou homem.

Quando andava em investigações para escrever este livro em Salt Lake City, no Verão de 1959,
perguntei a um membro importante da hierarquia mórmon como iria a sua igreja encarar uma
biografia da vigésima sétima esposa de Brigham Young, a apóstata. Ele replicou-me: «Não pomos
qualquer objecção. A única coisa que poderia preocupar a igreja seria o facto de o senhor ilibar
completamente Ann Eliza.»

Não fiz nenhum esforço para ilibar Ann Eliza, nem tão-pouco Brigham Young; antes tentei aderir
aos dois aspectos dos factos tais como me apareceram. Procurei interpretar estes factos e contar de
novo a sua história, com todas as suas contradições, com o maior realismo possível.

Só depois de iniciar a tarefa vim a compreender as dificuldades com que iria deparar. A maior parte
das biografias incluindo as minhas obras posteriores vão abastecer-se, como fonte central, em
obras anteriores antigas ou modernas. Muitos livros, acerca de factos verdadeiros, baseiam-se
noutros livros a respeito desses mesmos factos, acrescentados de novo material, tal como os óvulos
de uma célula se dividem ao meio. O valor de cada novo biógrafo, não falando no seu talento e
sensibilidade, depende na maioria dos casos dos seus recursos, da sua originalidade, da sua
persistência em localizar as fontes acessíveis de informação situadas na periferia da fonte central.
Habitualmente, porém, no início de qualquer pesquisa, existe uma fonte central. No caso de Ann
Eliza, por mal dos meus pecados, não havia nenhuma. Quando me apercebi disso, ela afigurou-se-
me uma miragem. O caminho que trilhava na vida não apresentava pegadas, quase não havia
vestígios de outras escavações literárias. Era nisto que consistia a dificuldade e o interesse do caso.

Que eu saiba, nunca fora escrito um livro que contasse a sua vida desde que nascera, em 1844.
Apenas com uma excepção, nenhuma colectânea de biografias incluía um capítulo inteiro acerca
dela. Não vinha mencionada em qualquer enciclopédia de vulto. Quanto a histórias dos «Santos» e
dos seus chefes, da autoria de mórmones ou não-mórmones, não topei com nenhum volume, antigo
ou moderno, que lhe dedicasse mais do que uma referência de passagem. Não havia dúvida de que a
biografia de Ann Eliza teria de ser alicerçada em material contemporâneo memórias de pessoas do
seu tempo, cartas, rascunhos, diários e jornais, revistas e periódicos, bem como recordações
pessoais de membros da família, amigos e inimigos.

E foi a partir disto, na verdade, que escrevi este livro. A fonte de informação mais rendosa acerca de
Ann Eliza Young foram ainda os seus dois livros de memórias. O primeiro chama-se A Esposa n.°
19, publicado em Hartford, no Connecticut, em 1876, quando a sua autora contava trinta e três anos.
O segundo constitui parte do primeiro, ligeiramente revisto e acrescentado com novo material, A
Vida sob a. Escravidão Mórmon, publicado em Filadélfia, no ano de 1908, quando a autora
completara sessenta e quatro anos. Acerca de certos aspectos da sua vida, antes e durante o tempo
em que foi esposa polígama, essas memórias contêm trechos valiosíssimos de factos e comenta-
Jrios. Na maioria das vezes, porém, a cronologia é omitida e as preciosas páginas são dedicadas a
diatribes quase contínuas contra os horrores da poligamia, a bestialidade de Brigham Young e os
perigos do mormonismo. Exceptuando uma mão-cheia de anedotas, essas memórias registam muito
pouco do que foi a sua vida com o Profeta e raras informações a respeito da sua existência e da
família. Acerca dos pitorescos «gentios» que a ajudaram e rodearam e dos pormenores da sua
carreira de conferencista durante dez anos, assim como do escândalo que a ia destruindo, quase
nada existe. O seu terceiro casamento e os últimos anos que viveu, ’ até 1908, ficam mergulhados
num silêncio completo.

Apenas outra fonte de informação nos fornece algumas notícias acerca de Ann Eliza. No livro The
Bold Women, publicado em 1953, Helen Beal Woodward dedica um capítulo de vinte e seis
páginas a Ann Eliza, mostrando-a como uma das quinze mulheres americanas rebeldes do passado.
Outros três livros oferecem-nos breves mas valiosos lampejos da sua vida: Portrait and Biographical
Record of Northern Michigan, publicado em 1895; Eccentricities of Genius, pelo major J. B. Pond,
publicado em 1901; e The Life of James Redpath, de Charles F. Horner, publicado em 1926.

Ao preparar esta biografia deparei com grande número de livros que, embora pouco contribuindo
para a história de Ann Eliza, fornecem informações acerca de Brigham Young, da poligamia na
América e do mormonismo em geral. Encontraremos uma lista seleccionada destas obras na
bibliografia publicada no fim. No entanto, algumas delas merecem especial referência mercê do seu
valor como pesquisa. Entre os numerosos volumes a respeito do segundo marido de Ann Eliza, um
dos melhores, escrito por um autor não-mórmon, chama-se Brigham Young, é da autoria de M, R.
Werner e foi publicado em 1925; outro, intitulado também Brigham Young, foi escrito por Preston
Nibley e publicado em 1937. Das muitas narrativas relacionadas com a vida familiar do Profeta, as
mais úteis foram as biografias escritas por duas das suas filhas, The Life Story of Brigham Young,
por Susan Young Gates, publicado em 1930, e One Who Was Valiant, por Clarissa Young Spencer,
publicado em 1940.
Os autores do século xix foram prolíficos em obras acerca do casamento poligâmico. Entre esses,
um dos melhores, à parte as memórias de Ann Eliza, intitula-se Tell It All, por T. B. H. Stenhouse,
publicado em 1874. Nos tempos actuais surgiu um estudo mais honesto e compreensivo do
casamento celestial apresentado por Kimball Young, no seu livro Isn’t One Wife Enough?,
publicado em 1954.
Acerca do mormonismo em geral, uma das mais belas narrativas que existem é a de Richard F.
Burton, publicada em 1861, The City of the Saints. Entre as histórias recentes da igreja, achei
particularmente esclarecedoras as obras: Kingdom of the Saints, de Ray B. West Jr., de 1957,
Essentials in Church History, por Joseph Fielding Smith, edição de 1959, e Among the Mormons,
editado por William Mulder e A. Russel Mortensen, em 1958. Escusado será dizer que nenhum
livro sobre um tema mórmon poderia ser escrito sem se consultar as obras de Brigham H. Roberts e
a colectânea de discursos de Brigham Young. Acerca de Joseph Smith encontrei duas biografias de
toda a confiança: No Man Knows My History, por Fawn M. Brodie, 1945, e Joseph Smith The
Prophet, por Preston Nibley, 1944.
Fico no entanto muitíssimo grato a inúmeros indivíduos por esse país fora que me concederam
generosamente o seu tempo e as suas energias colaborando comigo nesta tentativa de incluir na
história uma mulher notável. Em primeiro lugar e acima de tudo, desejo agradecer a dois
assistentes-investigadores que comigo colaboraram incansavelmente durante mais de dois anos. Um
deles é Elizabeth Kempthorne, de Arlington, Califórnia. O outro, Louise Johnson, de Salt Lake
City, no Utah, agora residente em Indianapolis, no estado de Indiana. Escrevendo centenas de
cartas, passando a pente fino montanhas de jornais, descobrindo e entrevistando dezenas de velhos
de outros tempos, estas duas senhoras conseguiram trazer a lume todas as fontes de informação que
nos poderiam ser acessíveis, no que respeita a Ann Eliza Young. Desejo também agradecer aos seus
maridos, Walter Kempthorne e Roberto Johnson a assistência que me deram e a paciência que
tiveram ao ceder-me as suas esposas monógamas para me ajudar nesta caçada.
Por todo o país, outros investigadores me prestaram o seu auxílio. Sinto-me particularmente grato a
Louise Putcamp, de Salt Lake City, pelas entrevistas que fez a velhos colonos e pela descoberta de
fotografias inéditas. Devo também agradecer às seguintes pessoas: Sr.” Kenneth Stanley e Emma
Musculus, de Manistee, Michigan; Lilo e William Glozer e Elizabeth Grant, de Berkeley,
Califórnia; Shirley Johnson, de Denver, Colorado; e Helen Fanringer, de Burbank, Califórnia.
Fico eternamente grato a uma série de eruditos acerca de vários aspectos do passado mórmon em
virtude de me haverem dedicado tão benevolamente o seu tempo e comunicado tão generosamente
o que sabiam. Sinto-me, em particular, agradecido ao Dr. T. Edgar Lyon, de Salt Lake City; Dale L.
Morgan, de Berkeley, Califórnia; Kimball Young, de Evanston, Ilinóis; e Fawn M. Brodie, de
Pacific Palisades, Califórnia.
Em virtude de informações úteis que me prestaram, além de outros serviços que lhes fiquei
devendo, a minha gratidão estende-se a Grace Clayton Behle, Sr.a John M. Coleti, Burton W.
Musser, Charles Kelly, Sr.a A. D. Thorne, todos de Salt Lake City; Theron Luke, de Provo, Utah;
Dr. Ray B. West Jr., de Iowa City, Iowa; e Helen Beal Woodward, de Cincinnati, Ohio.

Dos mórmones especializados em genealogia recebi também cooperação amigável. Acho


importante especificar que, da parte desses mórmones, cujos nomes refiro, quase nenhuma
informação me chegou que se possa considerar pejorativa para com o casamento poligâmico,
Brigham Young, qualquer das suas esposas ou «Santos». A maior parte do material referente ao
ponto de vista de Ann Eliza contra Brigham Young e contra a igreja foi-me fornecido por não-
mórmones ou pelos escritos e discursos de Ann Eliza. Pela sua cooperação através de entrevistas
concedidas aos meus colaboradores e a mim, pela cedência de manuscritos inéditos, jornais, cartas e
fotografias, sinto-me profundamente agradecido aos descendentes de Brigham Young e a suas
esposas: Ann Widtsoe Wallace, senhoras Leslie H. Groesbeck, D. S. Moss, Claude W. Gates,
Lyndon W. Clayton e Franklin B. Platt, Helen Spencer Williams, Gaylen Snow Young, Georgius Y.
Cannon, Hugh W. Dougall, todos de Salt Lake City, e Edith Young Booth, de Provo, no Utah.
Também me confesso grato aos seguintes membros da igreja: Sr.a Henry Jay Black, Gwen Young
Wilcox, Caroline Keturah Parry, Dr. Harold W. Bentley, Sr.a Thomas L. Dykes, D. Conrad Larson,
William A. Moody, Sr.a Carol C. Brown, todos de Salt Lake City; Sr.a Hyman K. Mortensen, Sr.a
George A. Brown, de El Paso, Texas; Sr.a Cliff Whetten, de Colónia Juarez, México.

Quero dirigir também os meus agradecimentos a um certo número de altas personalidades da Igreja
Mórmon cuja cooperação objectiva poderia ser mal interpretada e cujos nomes não me sinto com
liberdade de revelar neste momento.

Pelo que respeita a informações acerca da família de Ann Eliza, incluindo os ramos Webb, Dee,
Young e Denning, fico muito grato a Ernest Leon Dee, Kenneth F. Cropper, Sr.a J. G. Vernieu, Sr.a
Percival O. Perkins, de Salt Lake City; Sr.a Guy Rollins, Sr.” Alberta R. Shanahan, de Los Angeles,
Califórnia; Aline Yard Dee, Virgina Dee, de Burlingame, California; Sr.a Raymond Hawley, de
Glendale, Califórnia; Sr.a W. G. Perron, Sr.a John H. Hornung, de São José, Califórnia; Sr.1 V. L.
Champion, de Wichita, Kansas; Rider Digway, Samuel Stark, de Safford, Arizona; Joe T. Place, de
Duncan, Arizona; Sr.a Fred Webb, de Pima, Arizona. Pela utilização da magnífica correspondência
e programas de Ann Eliza, do major Pond e de James Redpath, devo agradecer a Charles Hamilton
pela utilização aã mugiu* Ann Eliza, do major Pond e de James Redpam, Robert K. Black, de
Upper Montclair, Nova Jérsia. Quanto às ’”tas de Ann Eliza, fico igualmente agradecido a Charles
Hamilton, de Nova Iorque.

A minha tarefa foi facilitada mercê de sugestões e material que recebi de pessoas que há muito
labutam no campo das conferências. Desejo agradecer a Crawford A. Peffer, de Portland, Maine,
Jr., de Apple Vaaey, Francisco, Califórnia; Charles W. Worthington, ae JL.UJ ..»..D_ Califórnia; C.
Wilson, de Ronceverte, Virgínia; Marie B. Miller, de Binghamton, Nova Iorque; Helen Jackson, de
Colorado Springs, Colorado; Dr. Rex W. Strickland, de El Paso, Texas; Sr.1 Paul Thomas, James R.
Orr, de Fabens, Texas; Sam Lines, de Pima, Arizona; Sr.a Emma Skousen, de Mesa, Arizona.

Também quero agradecer a licença que me concedeu a Sr.1 C. C. Wagner, de University City,
Missuri, para citar as cartas de Mowry pertencentes à colecção do seu falecido marido.

Centenas de organizações de toda a espécie cooperaram comigo respondendo a inquéritos. Fico


muito obrigado a todas, especialmente às seguintes: Union Pacific Railroad Company; Cooper
Union for the Advancement of Science and Art; Board of Trade and Stationers’ Hall, de Londres;
Board of Missions of the Methodist Church; Denver Bureau of Mines; Mamstee County Savings
Bank; Laurel Grove Cemetery, de Savana, Georgia; Mountain View Cemetery, de El Pueblo,
Colorado.

A reunião das investigações levadas a cabo com vista a esta biografia teria sido uma tarefa
irrealizável sem a generosa cooperação de grande número de bibliotecas e sociedades, bem como
dos seus funcionários em todos os locais dos Estados Unidos. Fico especialmente agradecido aos
seguintes, pelas fotocópias que me enviaram de retratos, cartas e extractos de jornais: Watt P.
Marchman, director da Rutherford B. Hayes Library, de Fremont, Ohio; Beth Oyler, Elizabeth
Cannon N. Wmther, Gioconda Capitolo, bibliotecários na Biblioteca Pública de Salt Lake City,
Utah; Margaret Shepherd, Sr.1 R. T. Stites, bibliotecárias da Utah State Historical Society, Utah;
Charles A. Davies, historiador da Reorganized Church of Jesus Christ of Latter-day Saints, em
Independence, Missuri; Eleanor Short, bibliotecária em Manistee, Michigan, na City Public Library;
Alberta Pantle, bibliotecária da Kansas State Historical Society, em Topeka, Kansas; Henry J.
Dubester, da biblioteca do Congresso, Washington; Chad Flake, bibliotecário da Universidade
Brigham Young, em Provo, Utah; Alys Freeze, chefe do Western History Department da Biblioteca
Pública de Denver, Colorado; Clarence 0. Lewis, do Departamento de História, Court House,
Lockport, Nova Iorque; Allan Otley, bibliotecário da California Section of California State Library,
em Sacramento, Califórnia.

Também agradeço os serviços e a assistência prestados pelas seguintes bibliotecas dos Estados
Unidos e do estrangeiro: Álbuquerque Public Library; Allegheny College Reis Library; Boston
Public Library; Museu Britânico de Londres; Brooklyn Public Library; bibliotecas das
Universidades de Califórnia, Berkeley e Los Angeles; Carnegie Public Library, de Cheyenne;
Chicago Public Library; Colorado Springs Public Library; Cordelia A. Greene Library, Castile,
Nova Iorque; Denver University Libraries; Harvard University Library; Henry E. Huntington
Library, São Marino, Califórnia; Illinois State Historical Library; Iowa State Library; Latter-day
Saints Genealogical Society Archives Room e Latter-day Saints Church Historian’s Office, de Salt
Lake City; Los Angeles Public Library; Michigan State Library; New Mexico Law Library; New
York Public Library; Newberry Library, Chicago; Ohio Wesleyan University Slocum Library;
Peabody Institute Library, Baltimore; Philadelphia Free Library; Presbyterian Historical Society,
Filadélfia; Riverside Public Library; St. Louis Public Library; Savannah Public Library; Vaughn
Public Library, Ashland, Wisconsin; Washington D. C. National Archives and Records Service;
Willard Library, Battle Creek, Michigan; Wisconsin State Historical Society; Wyoming State
Archives and Historical Departament; Yale University Library.

BIBLIOGRAFIA

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