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A segunda continuidade é a das pessoas. Muitos deputados e senadores


começaram suas carreiras durante os períodos pluralista ou militar da
política brasileira e trouxeram com eles uma série de preferências em
relação à escolha de instituições. A terceira continuidade é a da organização
política no plano estadual, uma herança do regime militar.
Em que condições institucionais foi elaborada a nova Constituição
brasileira? A Assembléia Constituinte de 1987/88 consistiu numa série de
sessões conjuntas do Senado e da Câmara dos Deputados, realizadas todas
as manhãs. Os deputados tinham sido eleitos em 1986 na vigência do
mesmo sistema de representação proporcional de lista aberta que o país
adota desde 1947, enquanto os senadores permaneceram sob regras
majoritárias. Muito se discutiu sobre alternativas ao sistema de
representação proporcional de lista aberta, e os constituintes debateram
exaustivamente propostas de substituição do regime presidencialista pelo
parlamentarismo. Não é surpresa que eles não tenham conseguido mudar as
regras eleitorais sob as quais tinham sido eleitos.38
É possível que os redatores da Constituição de 1988 tenham mantido o
arcabouço institucional da democracia do período de 1947-64 simplesmente
porque se elegeram sob esse sistema, mas essa explicação me parece
demasiado simplista. Por isso, examino o problema à luz da teoria dos veto-
players, do papel das idéias e das conseqüências dos interesses e
preferências. Os fatos que indicam a existência de um excesso de veto-
players não permitem conclusões definitivas, mas são sugestivos. No
primeiro ano do período, 1986, o PMDB tinha maioria absoluta nas duas
câmaras legislativas; pelo critério de absorção total, o número de veto-
players era um. Só que o partido estava fragmentado e dividido em facções.
Durante a Assembléia Constituinte, dezenas de deputados da esquerda do
PMDB desligaram-se do partido para formar o PSDB, mas, mesmo antes
desse racha, o PMDB já havia deixado de ser uma organização coesa do
ponto de vista dos princípios programáticos e de uma atuação disciplinada
no Congresso. O número de veto-players efetivos nunca fora tão grande
quanto veio a ser no governo seguinte (quando aumentou para sete), mas
isso provavelmente contribuiu para que não houvesse uma mudança
institucional mais drástica. Porém a força do fisiologismo também foi muito
importante: o presidente Sarney deparou-se com muitos parlamentares
indiferentes às questões institucionais, mas nem um pouco insensíveis ao
apelo do fisiologismo.
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Para compreender o papel das idéias na Assembléia Constituinte, é


preciso ter uma noção do que pensavam os parlamentares sobre o golpe de
1964. Será que havia a percepção de que as patologias institucionais tinham
tido um importante papel na ruptura da democracia?39 Embora muitos
líderes do PMDB fossem favoráveis ao parlamentarismo, minhas
entrevistas com os constituintes sugerem que somente uma pequena parcela
atribuía a falência da democracia a fatores institucionais, pelo menos em
sentido amplo.40 Ao contrário, eles se fixavam nas questões candentes
imediatas: os excessos dos líderes populistas, os interesses do empresariado
reacionário (que tinha o apoio dos Estados Unidos), a óbvia incompetência
do presidente civil João Goulart, e a fase recessiva do ciclo econômico.
Ao fim e ao cabo, a Assembléia Constituinte quase aprovou o
parlamentarismo, mas a força dos interesses dos constituintes levou-os a
manter o status quo institucional. Uma maioria de deputados provenientes
dos estados mais desenvolvidos era favorável à adoção do parlamentarismo,
assim como a maior parte das bancadas de esquerda, mas a questão se
embaralhou nas estratégias de sobrevivência do presidente José Sarney e de
outros dirigentes partidários. Conforme demonstrará o capítulo 5, o poder
persuasivo do fisiologismo posto em prática por Sarney fez com que muitos
deputados apoiassem a manutenção do presidencialismo e a extensão do
mandato do presidente. Leonel Brizola e Orestes Quércia, aspirantes à
presidência da República — o primeiro, ex-governador do Rio de Janeiro, e
o segundo, governador de São Paulo —, convenceram seus seguidores a
fazer oposição ao parlamentarismo. Voltarei a esse tema no capítulo 7; por
ora basta assinalar que, não fosse a habilidade do Executivo para persuadir
os deputados indiferentes ao tema, e não fosse pela tática dos potenciais
presidenciáveis, o parlamentarismo teria vencido.
A questão dos interesses dos constituintes introduz o segundo fator de
continuidade, a continuidade de pessoas. Francis Hagopian (1996:246)
mostra que muitas famílias tradicionais de políticos — as que dominaram a
política brasileira de 1947 a 1964 — sobreviveram e prosperaram durante o
regime militar e prosseguiram na Nova República. Seis governadores
eleitos em 1990, por exemplo, tinham sido governadores indicados pelo
PDS, partido que apoiou o regime militar, em meados dos anos 1980. O
partido de maior representação na Assembléia Constituinte, o PMDB, era
um adversário histórico dos governos militares, mas em 1996 um quarto de
sua bancada era formada por antigos membros da Arena, agremiação de
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direita criada pelo regime militar (Fleischer, 1987:2). Em geral, o


contingente de parlamentares que se haviam iniciado na política como
membros do partido que apoiava os militares era maior que o dos que
haviam começado na oposição.
Por que estou enfatizando a durabilidade das oligarquias tradicionais? O
governo militar reprimiu a esquerda, mas entregou aos cuidados dos
políticos de centro e de direita a nova democracia brasileira. De fato, esses
líderes começaram em grande vantagem, e a competição política foi travada
nos termos por eles ditados. A maior parte da bancada conservadora na
Assembléia Constituinte de 1987/88 contava com máquinas políticas
pessoais, construídas na base da patronagem, e estava consciente de que o
sistema eleitoral haveria de ter um grande impacto no futuro de seus redutos
de apoio.41 Mas os estrategistas do regime militar fizeram mais do que
simplesmente incentivar os políticos de direita. Com a saída dos militares
do poder, os generais procuraram resguardar seu legado criando condições
para maximizar um futuro apoio. O regime buscou aumentar a influência
dos seus possíveis defensores e reduzir o peso dos prováveis adversários. A
fusão de dois estados industrializados, por exemplo, eliminou três senadores
da oposição. A formação de novos estados nas regiões de fronteira criou
novas bancadas com grande possibilidade de ser ocupadas por
conservadores. O fomento à industrialização de regiões fora do eixo Rio-
São Paulo poderia render mais cargos políticos no Nordeste conservador.
Esses lances estratégicos se sobrepuseram à histórica desproporcionalidade
da alocação de cadeiras no Congresso, que reduzia em cerca de 40%, ou
aproximadamente 50 cadeiras, a bancada de São Paulo na Câmara dos
Deputados.42
O resultado da ação de todas essas forças não é difícil de perceber:
empurrar para a direita todo o espectro das posições políticas. Na
Assembléia Constituinte, bem como nos períodos legislativos posteriores,
os parlamentares aumentaram o prazo do mandato do presidente Sarney e
mantiveram o presidencialismo. Rejeitaram a reforma agrária, um sistema
eleitoral distrital misto, semelhante ao modelo alemão, e as reformas
partidária e administrativa. Evidentemente, não se pode afirmar com
segurança o que teria acontecido se os políticos de direita não tivessem sido
tão beneficiados, mas, como se verá no capítulo 1, os resultados apertados
na votação dessas questões sugerem que muitas delas poderiam ter um
desfecho bem diferente.
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A terceira continuidade refere-se ao que denominei continuidade das


organizações políticas estaduais. O regime militar brasileiro (ao contrário de
sua contrapartida burocrático-autoritária no Chile) jamais levou a cabo uma
reforma burocrática completa. Em vez disso, a junta militar imitou os atos
do presidente civil, Juscelino Kubitschek (1956-61), criando, fortalecendo e
insulando órgãos de governo de importância fundamental para seu projeto
econômico. Os setores responsáveis pelas áreas sociais continuaram
desorganizados e dominados pela patronagem. Onde os políticos estaduais
tinham boas relações com a junta militar e tiveram sorte e habilidade para
alcançar um prestígio transitório, a disponibilidade de grandes somas de
recursos federais permitiu-lhes construir máquinas políticas ainda
existentes. Essas máquinas detinham uma força política desproporcional ao
seu tamanho ou ao seu poderio econômico e controlavam os processos
eleitorais e a representação estadual no Congresso. Poucas delas
sobrevivem hoje, mas, como revela o capítulo 4, continuam sendo cruciais
em todo esse processo.
A Constituição de 1988 aumentou o poder dos estados e prefeituras,
ampliando sua participação na receita fiscal da União.43 Para entender por
que deputados federais e senadores pensariam em enfraquecer o governo
federal, é preciso lembrar que a trajetória das carreiras políticas no Brasil é
diferente da dos políticos americanos. A taxa de renovação na Câmara dos
Deputados chega a 50% por mandato, mas a derrota eleitoral só explica
cerca de metade desse total. Os deputados não se interessam em manter
carreiras parlamentares indefinidamente (Samuels, 2001). Concorrem a
cargos no estado ou no município depois de um ou dois mandatos na
Câmara Federal, ou voltam para a iniciativa privada e mais tarde buscam se
eleger outra vez. O federalismo fez dos estados e prefeituras arenas
políticas tão desejáveis quanto a capital federal, de modo que os deputados
procuram manter as prerrogativas desses espaços de competição.
Paralelamente, o fortalecimento dos estados — num contexto de debilidade
dos partidos — reforçou a influência dos governadores sobre as bancadas
estaduais no Congresso, principalmente na Câmara dos Deputados, e
aumentou-lhes a capacidade de nomear aliados e vetar o nome de
adversários para cargos no ministério e no primeiro escalão da burocracia
(Abrúcio, 1998).

Nota metodológica: ou por que escolhi fazer o que fiz


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A investigação científica sobre a política na América Latina, inclusive os


estudos realizados por cientistas latino-americanos, é sem sombra de dúvida
a mais avançada de todas as regiões em desenvolvimento do mundo. São
tantos os especialistas envolvidos com projetos sistemáticos de pesquisa
que fica difícil citá-los todos aqui. No entanto, ainda há uma relativa
escassez de estudos que aliem a teoria à análise empírica e apliquem essa
perspectiva a um tema amplo. Este livro tem a intenção de entender a
estrutura política brasileira mediante a associação de uma perspectiva
teórica lógica — a teoria da escolha racional — a um considerável trabalho
de verificação empírica.
O livro está estruturado na forma de uma série de enigmas. Nem todos
são solucionados com igual precisão, e os argumentos teóricos se
aprofundam mais em uns do que em outros, mas todas as partes seguem o
mesmo padrão: argumentação teórica, hipóteses, resolução empírica.
Os argumentos da teoria da escolha racional, quando aplicados aos
sistemas políticos latino-americanos, não têm significado se não forem
acompanhados por tentativas de verificação empírica; do contrário, não
poderão ser refutados. Em certo sentido, quando sou forçado a escolher
entre a elegância teórica e a integridade explanatória, opto pela última. Esse
compromisso com a explicação empírica talvez imponha dificuldades aos
leitores não familiarizados com o Brasil. Este país tem enorme diversidade
regional, e, como os estados são atores importantes na política nacional,
essa diversidade muitas vezes é um fator relevante na determinação dos
rumos da atividade política. No capítulo 4, por exemplo, faço uma análise
dos padrões de competição política em determinados grupos de estados. Às
vezes, acontecimentos políticos fortuitos, abalos acidentais que nenhuma
teoria consideraria relevantes, influenciam os fatos a longo prazo nesses
estados. O perigo, evidentemente, é que a explicação sacrifique a
abrangência em nome da precisão. De maneira geral, só levo em conta
fatores explicativos que têm efeitos a longo prazo e excluo aqueles cujos
resultados são transitórios.44
Sendo meu objetivo explicar fatos políticos reais, uso argumentos
institucionais de modo probabilístico, e não determinista. Em outras
palavras, meu interesse é prever tendências, não certezas. O fato de que o
sistema eleitoral brasileiro estimula os deputados a se empenharem na
obtenção de recursos públicos de interesse localizado ou geograficamente
específico não quer dizer que não existam os que se preocupam com o
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interesse público e as questões nacionais. O fato de centenas de deputados


somente apoiarem medidas macroeconômicas de estabilização quando
recompensados não quer dizer que a estabilização é impossível de alcançar.
Na realidade, o capítulo 8 vai mostrar que os legisladores abriram mão dos
interesses particularistas quando a alternativa era a iminente vitória do
candidato presidencial de esquerda, Lula. Uma vitória de Lula, na opinião
deles, poderia pôr um fim permanente, e não só temporário, à continuidade
normal das coisas.

O Brasil como estudo de caso


Se toda pesquisa que se concentra num único país ganha
automaticamente o horrível rótulo de estudo de caso, é evidente que eu me
confesso culpado. Críticas mais sensíveis tomam por base dois critérios:
será que o problema principal somente interessa aos especialistas em países
tradicionais? Os conceitos explanatórios derivam do próprio caso e são
internamente invariáveis? Espero que nenhum desses critérios se aplique a
este livro.45 O funcionamento das instituições políticas, eleitorais e
legislativas interessa aos estudiosos, aos políticos e aos cidadãos em todos
os regimes competitivos. O argumento teórico central procede basicamente
da teoria da escolha racional combinada com o institucionalismo histórico,
e há suficiente variação interna para permitir o teste de hipóteses com o
emprego de técnicas empíricas normais.
As críticas aos estudos de caso geralmente presumem que cada variável
num dado caso é medida uma única vez. No entanto, na avaliação da
utilidade científica das pesquisas, a verdadeira questão não é o número de
casos, mas o número de observações. Como afirmam King, Keohane e
Verba (1994:52), somente o número de observações tem importância para o
julgamento “da quantidade de informações de que um estudo se utiliza para
dar conta de uma questão teórica”. Repetindo um famoso exemplo de
Eckstein (1975:85), “um estudo de seis eleições gerais na Grã-Bretanha
pode ser, mas nem sempre é, um estudo n = 1. Poderia ser um estudo n = 6.
Mas pode ser também um estudo n = 120.000.000. Isso depende do tema da
pesquisa: os sistemas eleitorais, ou as eleições, ou os eleitores”.
Os dados utilizados neste livro variam enormemente. Uma lista parcial
inclui: resultados municipais da votação obtida por centenas de candidatos
ao Congresso, em cinco eleições (entre 1978 e 1994), em 19 estados da
Federação; 14 mil convênios entre o governo federal e as prefeituras; mais
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de 10 mil emendas orçamentárias propostas por parlamentares à Comissão


de Orçamento da Câmara Federal; mais de 200 entrevistas com deputados,
jornalistas e acadêmicos; agendas de reuniões particulares entre ministros e
deputados; e material histórico referente a estados específicos. Em sua
essência, os dados fornecem medidas comparativas entre estados, períodos
de tempo e níveis de governo. Em outras palavras, este livro trata do Brasil,
mas não é um estudo de caso.

As entrevistas como dados


Se o projeto acabou lidando com uma grande variedade de informações,
não comecei com todos os dados na mão ou sequer em vista. De início, os
únicos dados de que dispunha eram os resultados eleitorais de 10 estados
para as duas primeiras eleições. É claro que havia mais eleições
programadas, mas eu pensava que as entrevistas se tornassem a principal
fonte de informações, complementando os resultados eleitorais. Mas as
coisas não se passaram assim.
Entrevistar deputados federais não é nada simples. Nas primeiras vezes
que você marca uma entrevista, o deputado a cancela ou simplesmente não
aparece. Na terceira vez, você tem de esperar uma ou duas horas até que o
deputado apareça. Quando a entrevista finalmente começa, o deputado
presume que você precisa de uma aula de história do Brasil, de modo que a
conversa se inicia na Revolução de 30. Quando, por fim, a aula termina,
começam as mentiras. Fazer entrevistas não é uma coisa simples nem
mesmo para estudantes de pós-graduação.
Na verdade, as entrevistas não são tão ruins assim. Mas como é
relativamente fácil obtê-las, muitas pesquisas baseiam-se nelas sem levar
em conta os problemas incorridos. Entrevistas com informantes-chave,
como os políticos, quase nunca constituem amostras no sentido científico,
principalmente porque as pessoas dispostas a dar entrevistas costumam ser
as de mais princípios e espírito público. Embora todo mundo saiba que é
preciso checar com outras entrevistas as informações obtidas através de
certos entrevistados, a verificação muitas vezes é impossível. Poucos
pesquisadores recebem alguma instrução sobre técnicas de entrevistas. E,
por outro lado, entrevistar pode ser um problema particular para os homens:
como inúmeras mulheres me alertaram, os homens não são bons ouvintes e
tendem a impor suas idéias aos entrevistados.
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Durante a realização desta pesquisa, entrevistei o economista-chefe da


assessoria técnica da Comissão Mista de Orçamento do Congresso. Falamos
sobre a tendência ao fisiologismo dos deputados e sobre os esforços dele
para conferir alguma racionalidade à distribuição de emendas
orçamentárias. A conversa transcorreu da forma usual em entrevistas com
pessoal técnico, quase sempre muito acessíveis aos acadêmicos. Dois anos
depois, porém, esse economista foi preso por tramar o assassinato da
própria esposa, a qual prometia denunciar a participação do marido num
esquema de extorsão envolvendo a Comissão de Orçamento. A conspiração
vinha-se desenvolvendo há anos: o chefe da assessoria técnica recebia
propinas de empreiteiras, junto com um grupo de deputados, que somavam
milhões de dólares. A maioria dos deputados acusados era conhecida por
sua receptividade à prática do fisiologismo, mas um dos acusados (e
condenados) era uma daquelas pessoas de altos princípios, um dos
entrevistados preferidos pelos pesquisadores brasileiros e estrangeiros.
Suponho que muitas entrevistas tiveram de ser reexaminadas.
O objetivo dessa digressão não é dizer que os pesquisadores devem evitar
entrevistar políticos. Entrevistas são indispensáveis, mas devem ser
complementos, e não substitutos de outras fontes de informação. Espero
que as análises expostas neste livro convençam os leitores de que a América
Latina é rica em possibilidades de coleta de dados. No decorrer da pesquisa,
descobri no Brasil coleções de informações que nunca seriam acessíveis na
política americana. Fazer pesquisa sobre política na América Latina é mais
difícil do que nos Estados Unidos ou na Europa, mas os pesquisadores não
devem pressupor que seja impossível realizar estudos apurados de base
empírica sobre os países latino-americanos.

A estrutura do livro
Este livro está dividido em duas partes.46 A primeira focaliza o sistema
eleitoral e os tipos de políticos e partidos que o sistema gera. O capítulo 1
começa com uma explicação das regras eleitorais no Brasil e apresenta uma
taxonomia espacial das bases eleitorais dos deputados federais. A
taxonomia emprega um sistema geográfico de informações que visualiza
graficamente os redutos eleitorais dos parlamentares. A análise associa
esses redutos a carreiras políticas, condições econômicas e demográficas, e
acontecimentos políticos eventuais. O capítulo conclui examinando as
relações entre o sistema de representação de lista aberta, a estrutura espacial
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da competição e elementos fundamentais da consolidação democrática.


Esses fatores incluem o desenvolvimento partidário, a alocação
desproporcional das cadeiras no Congresso, a corrupção e a natureza da
representação e da responsabilidade pública (accountability).
O capítulo 2 estuda as estratégias de campanha dos candidatos ao
Congresso sob o sistema de representação proporcional de lista aberta.
Utilizando conceitos extraídos dos princípios da escolha racional, o
argumento prediz onde os candidatos vão buscar votos. Para testar o
argumento, é preciso medir as intenções dos deputados sem usar, como
variáveis dependentes, os votos que recebem, porque os votos resultam da
interação das estratégias de todos os candidatos. A análise resolve o
problema recorrendo às emendas orçamentárias propostas pelos
parlamentares como um indicador de sua intenção de buscar votos em
determinados municípios. O capítulo conclui com um modelo de resultados
eleitorais para avaliar a eficácia das estratégias dos candidatos.
O capítulo 3 explica a variação, espacial e temporal, da competição
política entre estados brasileiros. Começa expondo um modelo das
diferenças interestaduais na concentração espacial média das bases
eleitorais dos deputados e em sua dominância média — isto é, o grau em
que os deputados monopolizam os votos nos municípios onde obtêm
parcelas importantes de sua votação total.47 Em seguida, o capítulo
investiga como se modificaram a concentração e a dominância entre 1978 e
1994.48 Em ambos os casos, a explicação ressalta fatores econômicos e
demográficos.
O capítulo 4 introduz na análise a trajetória histórica (path dependence)
indagando se eventos históricos fortuitos produzem conseqüências
duradouras para a competição política. Breves comparações entre estados
de diferentes regiões ilustram de que maneira as condições econômicas,
sociais e demográficas interagem com fatos políticos singulares para gerar
padrões duradouros de competição política. Essas comparações incluem
Bahia, Maranhão e Ceará, no Nordeste, e Santa Catarina e Paraná, no Sul.
A segunda parte investiga a arena parlamentar. O capítulo 5 pergunta
quais são as motivações dos membros da Câmara dos Deputados.
Analisando a votação em dois períodos legislativos, a fase de elaboração
constitucional de 1987/88 e um grupo de medidas provisórias editadas
durante o governo Collor, calculo os efeitos de variações na natureza
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espacial dos eleitorados dos deputados, suas ideologias, filiações partidárias


e receptividade a projetos de puro interesse particularista.
O capítulo 6 trata dos esforços do presidente da República para manter
uma base estável de apoio no Congresso. O capítulo começa pela
identificação e explicação dos objetivos do Executivo. Que tipo de aliados,
em termos de região, partido ou facção, são recrutados pelos governantes?
Como o presidente lida com as estratégias conflitantes dos membros de seu
gabinete preocupados com a promoção de suas carreiras políticas? Será que
essa estratégia de construção de alianças é ineficiente — quer dizer, será
que ela força um aumento dos gastos do governo? Analisando os governos
Sarney, Collor, Itamar Franco e, rapidamente, Fernando Henrique Cardoso,
o capítulo examina as estratégias presidenciais elaborando um modelo da
distribuição de convênios firmados entre os ministérios e as prefeituras.
O capítulo 7 avalia os resultados das táticas presidenciais identificadas no
capítulo anterior. Em outras palavras, os esforços do presidente realmente
garantem o respaldo do Congresso? Para responder a essa pergunta é
preciso ter uma medida da disciplina e unidade partidárias em plenário.
Embora muitas vezes se tenha recorrido às votações nominais (os votos sim
e não registrados individualmente em plenário) como principal indicador da
disciplina e unidade partidárias em muitas legislaturas, esses votos são uma
medida bem ambígua. O capítulo começa com uma discussão dos
problemas das votações nominais. Elas dão conta da etapa final do processo
de negociação política que culmina na legislação. Alguns projetos nunca
chegam ao Congresso; outros nunca saem das comissões. Mesmo que um
projeto culmine numa lei aprovada, ele pode acabar incluindo inumeráveis
acordos individuais e compromissos com facções dentro dos partidos. No
Brasil, poucos projetos de lei saem incólumes do Congresso desde 1988.
Contudo, se as votações nominais não medem a efetiva concordância com
as posições da liderança, medem a satisfação individual com as negociações
realizadas com interesses privados ou de grupos no processo legislativo.
Nas últimas seções deste capítulo, analiso a tendência de alguns deputados
a votar contra a maioria dos seus partidos. Centrando a atenção em cinco
grandes partidos, analiso aproximadamente 600 votações no período de
1991 a 1998.
O capítulo 8 examina o processo de formulação de políticas na Câmara
dos Deputados. Isto é, de que maneiras as políticas são decididas, quando:
a) a maioria dos deputados pouco se interessa pelas grandes questões

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