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TEATRO ENDOSCOPIA

dramaturgia:

Sérgio Pires
VERMELHO 2

MOVIMENTO 1 – TERRA VERMELHA


SAMBA

Luzia Tem gente que me vê e pensa que eu tenho o corpo fechado. Estão vendo,
aqui, do meu lado? E deste outro lado, vocês estão vendo? A morte sempre
me cercou e eu continuo crescendo. (Luzia entra brigando) Tira a mão de
cima de mim tem certeza que toda essa violência por causa de um pedaço de
comidajogado no lixo? Encham de paralelepípedos debaixo do viaduto.
Fechem os vidros do carro quando me aproximo. Tranquem-se no ar
condicionado. Só não esqueçam que a natureza tem seu próprio estatuto.
Quem você pensa que é? Eu sou arvore eu sou pássaro. Meu nome é Luzia...
É Socorro... É Maria... Eu é que não sou mulher de homem que abaixa a
cabeça pra Deus capitalista. (para a platéia) Você tem um cigarro? Tudo o
que eu não quero é a sua misericórdia. Eu pego comida do chão, mas eu não
como ração. Eu fujo de carro de bacana, eu durmo nas ruas, nos becos. Não
tenho medo de ser ratazana. Peguei o sentido da vida e deixei tudo o que
vocês inventam pra trás. Por mais que a gente invente, é só o sentido da vida
que nos satisfaz. Teve, sim, um tiro naquele dia. Sempre tá tudo ali, no
meio. A pobreza, as queimadas, os preconceitos, os vírus, a riqueza... Tá
tudo entre a discórdia e a misericórdia. Eu não quero o tiro de misericórdia
pra cima de mim. Porque bala perdida só atinge quem não faz parte do
sistema. SAMBA FIM
SAMBA VOLTA COM A DANÇA DA LUZIA

Camila Todos os dias eu acordo olho para o pote de café que eu nunca faço e saio de
casa.

Jorge Eu tenho que repor as prateleiras do mercado

Camila Caminho 3 Km até o ponto de ônibus.

Jorge Arruma, desarrumam, arruma de novo.

Camila Vou tomando encoxada até a escola aonde eu trabalho.

Jorge Todos os dias eu me espremo no ônibus lotado.

Extra extra notícias de última hora! Oito milhões de mulheres perderam seus
empregos durante a pandemia. Tem um feto dentro de mim.
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Projeção de imagens que mostram a destruição do Planeta Terra.

Som de tiro.

MOVIMENTO 2 – CICATRIZES

MUSICA CABEÇAS
Cabeças sobre duas MESAS, uma ao lado da outra.

Jorge Tudo o que eu tenho a dizer é que os meus sonhos são confusos e eu nunca me
lembro deles.

Luzia Eu sonho com ruídos de passos que se aproximam. Surgem seres meio
humanos, meio animais: cabeças de cobras, lagartos, urubus em corpos
humanos.

Adalto Eu sonho que quero viver. Viver por mais de 20, 30, 50 anos…

Jorge São como pesadelos e deixam em mim uma sensação avassaladora.


Destruidora mesmo!

Camila Eu sonho, todas as noites, com uma fogueira enorme que reluz no pátio da
escola.

Adalto Mas em meus sonhos sempre surgem caixões repletos de flores vermelhas.
Uma infinidade deles distribuídos pelas avenidas.

Camila Eles jogam livros na fogueira. Livros! Caixas e caixas de livros jogados na
fogueira.

VOZ Cala a boca! Cala a boca!

Luzia Vejo árvores caindo sobre a cidade, cobrindo ruas, prédios, casas…

Jorge Acordo e a insônia toma conta do meu corpo, fico me virando e revirando na
cama e tenho pensamentos desconexos. Me sinto como se tivesse passado por
uma sessão de tortura. Todas as noites são assim!
Luzia Ando pelas ruas e tudo que ouço é um silêncio assustador.
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Camila Toca a sirene, é ensurdecedora! Crianças surgem em fila segurando pratos
vazios, suas mães choram.

Luzia Ruas desertas em ruínas, aparecem homens… eles riem de mim

Adalto Corpos nús envolvidos em sacos plásticos ou amontoados em câmaras


frigoríficas.
VOZ País de maricas! Chega de mimimi!

Jorge Eu me olho no espelho e não me reconheço.

Adalto Trabalhadores da saúde fazem manifestação reivindicando melhores


condições de trabalho.

VOZ É uma questão grave, mas não podemos entrar no campo da histeria.

Camila Trabalhadores da educação fazem manifestação reivindicando melhores


condições de trabalho.

Luzia Moradores de rua fazem barricada para defender suas roupas e comidas.

Adalto Uma onda gigante de jalecos brancos manchados de sangue.

Camila Homens fardados marcham, com a mão direita batem (fazem) continência e
com a esquerda seguram cabeças decapitadas.

Adalto Soldados caminham em nossa direção, uma marcha fúnebre, robotizada.


MARCHAM

TODOS Eles marcham! Eles marcham!

VOZ Quem é de direita toma cloroquina. Quem é de esquerda toma tubaína.

Camila Eles querem nos jogar na fogueira.Sinto o calor do fogo queimando o meu
corpo.

Adalto Pessoas chorando e se abraçando ao redor de caixões repletos de flores


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vermelhas.

VOZ E daí? Não sou coveiro!

Luzia Ouço frases como pronunciadas num carro de som.

Adalto Escolhe! Escolhe logo! Quem vai para o respirador?

VOZ: Vai comprar vacina na casa da sua mãe.

Jorge Minha cabeça gira, sinto falta de ar….Não consigo respirar!

Luzia Eles avançam com o carro para cima de mim.

VOZ Vai ter voto impresso e ponto final.


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MOVIMENTO 3 – DEPOIMENTO

Imagem de Luzia debaixo da mesa.

Luzia Houve, sim, um tiro naquele dia. Eu ouvi. Mas quem é que se importa?
Quando vocês olham pra mim... Olhem pra mim! Amanhã é dia de eleição.
Quando vocês olham pra mim, vocês votam em alguém ou vocês anulam o
voto? Porque eu não sou uma pessoa anulada. Nem os mortos são anulados. Eu
nunca peguei numa arma e me dei um tiro na cabeça. Se eu pedir pra vocês
votarem por mim, vocês votam? (Silêncio) Não é votar em mim, é votar por
mim! Porque quando eu danço, eu não estou dançando só pra mim. Vocês estão
me entendendo? O que é um tiro pra vocês? Por que é que vocês querem deixar
tudo à beira da misericórdia?

DELEGACIA GOTAS

Jorge e Camila em focos distintos. Como se estivessem conversando com


alguém.

CORTE 1

Jorge Dá, licença? Bom dia. Eu trabalho como repositorem mercado.

Camila Senhor? (...) Professora. (...) Professora de artes para o ensino


fundamental. (...)O endereço é este mesmo.

Jorge Éramos vizinhos, sim. (...) Três. Três apartamentos, só. (...) Conhecia eles de
corredor.

Camila Isso! (...) Os apartamentos ficam em cima da funerária. (...) O


endereço é de frente para o cemitério.

Jorge Quem é que dormia com a funerária trabalhando a noite toda? (...) Eu saia
pra trabalhar sempre no mesmo horário.

Camila O tiro foi por volta das 6h50. (...) Vê eu não vi. Mas ouvi toda discussão.

CORTE 2
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Jorge Não foi crime. Foi acidente,

Camila O senhor me desculpe, mas nada justifica matar alguém desse jeito.

Jorge Eu saio de casa às 6h, pra trabalhar. Só chego por volta das 20h. (...) Não
fiquei em casa durante a pandemia, não. Pelo contrário, trabalhei mais
ainda. Enfrentei a pandemia foi como homem que eu sou. (Noutro tom)
Me arrependo de ter levado a doença pra dentro de casa. Cidadania! Fiz
tudo direitinho. Eu não ia ter uma arma ilegal e dar mau exemplo pro meu
filho. (...) Isso mesmo. Só pra me defender. (...)

Camila Sim. Eu a conhecia.

Jorge Advogado?

CORTE 3

Camila Não sei, doutor! Não sei se ele costumava sair armado

Jorge Por quê eu estava indo trabalhar armado? Tava distraído... Cabeça quente...
Acho que peguei a arma sem querer (Pausa) Sabe quando a gente pega algo
sem querer e coloca no bolso, na mochila...

Camila Que eu saiba, ele não costumava receber visitas.

Jorge Sim! Sempre me dei muito bem com todo mundo no meu trabalho. (...) Meu
patrão? Sempre foi meu amigo!

Camila Pra mim, quando uma pessoa tem arma em casa, ela sofre de intolerância
humana.

Jorge Quando ela veio pra cima de mim, achei que tivesse armada também.
Meu filho tá morando com a avó dele a mãe da minha esposa. Em menos de
dez dias eu enterrei Mariana e também minha mãe. Até o coveiro me olhou
com piedade. Até o dia em que Mariana ficou doente, eu nunca tinha usado
uma máscara.
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MOVIMENTO 4 – FERIDA EXPOSTA

Adalto Durante aqueles anos, eu abria a janela e o cheiro de coroa de flores invadia o
apartamento. Olhava para o coveiro e pensava: eu quero viver.

Luzia Como que eu posso explicar para vocês o que foi o meu isolamento?

Camila Eu via a área verde do cemitério desaparecer. O corpo cansado do coveiro


cavando mais valas...

Luzia Tem gente que olha para o cemitério e pensa que o coveiro é o dono do
cativeiro. Se tem uma coisa que a morte não pede é dinheiro pra resgate.

Adalto Eram filas de um caixões, um atrás do outro.

Luzia Tem gente que despreza o coveiro porque ele não é corporativo. Mas tem uma
coisa que só o coveiro percebeu: o coletivo! Esquece o coveiro! Esquece. Pensa
que tudo o que tá enterrado ali é o povo brasileiro.

Jorge Eu passava noites com os olhos fixos no cemitério.

Luzia A terra só está pedindo silêncio. Quanto mais se mata, mais vermelha fica a
terra. Por baixo deste asfalto tem muito sangue meu. Porque o nosso sangue,
mesmo, não é só aquele que corre no corpo da gente. O nosso sangue é até
onde os olhos de vocês não conseguem mais alcançar. A terra vermelha, a
lama, também é nosso sangue. Vocês me entendem?

Adalto A sensação de morar em um dos apartamentos que fica sobre a funerária, me


faz lembrar os abraços que eu nunca recebi.
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Jorge Mariana caminhava pelos cômodos do nosso apartamento. O cheiro do café. O


vento que entrava pela janela bagunçava o seu cabelo... Mariana morreu e eu
não pude ver o seu rosto dentro do caixão.

Luzia Quando vocês me veem, vocês enxergam o que está atrás de mim? (Pausa) A
gente não é só ordem e progresso, só andar pra frente, só futuro... Tem o lá
atrás! Eu não coloco tijolo neste muro. Quando a gente nasce o estado já tem
um plano definido pra nós! Sonhar baixo, temer e idolatrar o algoz. Pra todos
nós é assim: nascer, crescer, reproduzir e adorar o Deus capitalista. Adoecer e
morrer sem enfrentar o fundamentalista. Se decompor, tentando não se
esquecer das palavras do evangelista. Esse é o plano?

MOVIMENTO 5 – COTIDIANOS
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Adalto Eu observo a leveza da mulher que dança na rua. Sua dança me traz á memória
a imagem de Marco Antônio e eu rezo em silêncio. Penso que todos nós só
queremos viver. Sinto o choro de vizinha abafado pela água que cai do
chuveiro. Escuto os passos do vizinho zanzando pelo seu apartamento.
Agradeço. Me sinto protegido quando eles estão em casa.

Camila Eu nunca quis abortar. Nunca. Mas eu também nunca quis ser mãe.

Adalto A insônia me traz à mente os rostos das pessoas que eu vejo morrer no hospital.
O apito do eletrocardiograma informando que o coração parou é um zumbido
constante dentro da minha cabeça.

Jorge Tudo o que eu faço é andar pelo apartamento. Olho pela janela e Mariana
parece me chamar até o cemitério. Lembro que tenho que procurar o titulo de
eleitor...

Adalto Ouço os passos do vizinho acompanhando os segundos da madrugada. Tomo


um segundo comprimido pra dormir. Coisa mais difícil na vida é escolher quem
vai para o respirador e quem vai em direção ao coveiro.

Camila Penso no aborto e me vem à memória a lembrança da minha primeira


menstruação. Doze anos eu tinha. No primeiro dia eu senti vergonha de contar
para alguém que eu vazava sangue. Fui ao fundo do quintal e enterrei a
calcinha manchada ao lado do pé de pitanga. Dia seguinte eu estava na igreja.
Todos em silêncio ouvindo as palavras do pastor. As cólicas começaram e eu
gritei de dor. O pastor se calou. O meu grito ecoava na igreja. As pessoas
ficaram me olhando. O meu vestido sujo de sangue. Eu disse para minha mãe
que eu iria vomitar. Eu vomitei.

Jorge Tem sido assim todas as noites. Eu nunca acordo. Eu apenas afugento a
insônia. Amanhã eu me espremo no ônibus lotado e sinto minha culpa vazar
como se fosse uma espinha. Penso em meu filho, nos boletos que eu preciso
pagar... Forço minha cabeça a pensar nos boletos. Não consigo. Não como
antes.

Camila Minha mãe pediu que eu acompanhasse o pastor, que ele queria falar comigo.
Eu fui com um casaco emprestado que tapou o vestido manchado de sangue.
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Senta-se! Ele disse. Senti um frio na espinha. Só meneei a cabeça dizendo
que eu queria permanecer em pé. Ele abriu o evangelho e leu: À mulher ele
declarou: multiplicarei grandemente o sofrimento na gravidez; com
sofrimento você dará à luz filhos! Seu desejo será para o seu marido, e
ele a dominará.1 Fechou o evangelho e disse que eu poderia abandonar as
bonecas. Sempre detestei as bonecas. Ele sorriu. Gentil, até. Eu também sorri.
Só que naquele momento os meus olhos de menina achou aquele homem
horrível. Por dentro eu pedia a Deus o milagre de não menstruar nunca mais.

Jorge Olho pra minha arma. Mariana ficou uma semana sem falar comigo. Ela
não entendia que a arma era para a nossa proteção. Lembro do rosto do meu
patrão me parabenizando pela minha nova posse. Perco ainda mais o sono.
Podia ser qualquer mês do ano, todo dia dez eu fazia a compra do mês e pagava
todos os boletos juntos. Nota em cima de nota. Fazia questão de pagar com
dinheiro. Dia dez era o dia que eu me sentia meio herói, meio que homem nota
dez mesmo! Um homem de bem, um pai de família. Todo dia dez eu e Mariana
não deixávamos de fazer sexo. Mariana não tinha desculpas, não podia me
negar nada. Pagar boletos me fazia, sim, um homem perfeito.

Camila Na semana seguinte uma tia me presenteou com sabonete e neutralizadores de


odor. Eu olhei pra ela e perguntei Eu to fedida? Ela sorriu e me chamou de
ingênua. Minha mãe meneou a cabeça como quem diz “essa menina não
sabe nada da vida”. Algo morreu em mim. Entendi que tudo o que diz
respeito ao corpo da mulher é uma forma de ganhar dinheiro. Minha mãe era
uma espécie de produtora do evento. Só não conseguia entender se aquela
espetacularização era pra mim ou para o mercado publicitário! O meu corpo
não é um quebra cabeça inacabado para que eu seja obrigada a ter filhos. Nunca
quis abortar, mas nunca quis ser mãe. Eu tenho medo de morrer. Vocês nos
suicidam!

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Gênesis 3:16
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Jorge Mariana disse que queria ir pra casa da mãe durante aquela pandemia. “Nem
pensar”. Tira-se tudo de um homem que paga suas contas, menos o sexo. Hoje
eu me olho no espelho e não me reconheço. O meu filho chorando porque
queria ver o rosto da mãe dentro do caixão. Eu também não pude ver o rosto da
minha mãe dentro do caixão. Elas simplesmente desapareceram. Quem pagou o
caixão da minha esposa e da minha mãe foi a generosidade do meu patrão. O
luto me mostrou que eu nunca soube lutar. Só agora eu compreendo que meu
patrão nunca foi meu amigo.

Camila Avisto uma chamada na capa do jornal: Mais de 8 milhões de mulheres


deixaram o mercado de trabalho desde o início da pandemia2. Tem um
feto dentro de mim.

Jorge Comprei esse paletó, velho e surrado, para tentar tramar e ensaiar diante do espelho
um assassinato. Só no luto eu percebi que nunca havia lutado. Eu repunha as
prateleiras do mercado e pagava boletos. Quando chegou a pandemia eu assumi a
morte como companheira no transporte público, nas prateleiras do mercado, nas mãos
do meu patrão. Eu que sempre fui um herói, um pai de família, levei a morte pra casa.
Dezessete vezes eu fui o funcionário do mês. “Pensa no futuro do seu filho,
Jorge.” Dezessete vezes a minha cara sorridente na porta do mercado. “Você
ainda será nosso gerente, Jorge”. Nunca cheguei um segundo atrasado.
Dezessete vezes que ele vai descontar, ali no holerite, o valor do caixão que
ele comprou pra minha esposa e minha mãe. “Vai por mim, Jorge. Se quiser
fazer umas horas extras eu deixo!” Quando eu comprei uma arma me senti
próximo do meu patrão. Quando o coveiro jogou a primeira pá de terra sobre o
caixão de Mariana, eu só lembrei dela brigando comigo por causa da arma.
Penso que nem homem eu sou. Eu tento organizar minhas ideias dentro da
cabeça... Minhas vistas ficam turvas.

CORTE 2
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MOVIMENTO 6 – BARRA DA SAIA


TAMBORES

Luzia Eu sou Luzia! Meu nome é Luzia. Mas também é Maria... Socorro! Meu nome
é Ana... Violeta... Bastiana. É Cleusa... Lourdes... Andréa... Dilma... Mariele! É
Rosana... Ayiosha... Andressa... Jandira... Camila! Eu observo, eu reconheço,
eu respiro. Eu tomo distância, eu percebo, eu sigo em frente. Eu danço! E
mesmo quando eu respondo, sou eu quem faço as perguntas. Eu vivo é para me
deseducar, mesmo! Muitas são as formas do divino e muitas coisas os
deuses fazem sem nos contar. O que se espera só não se realiza para
que o inesperado possa encontrar seu caminho. Tudo o que eu busco é o
inesperado. Tudo o que encontro é burocratizado. Um dia a minha natureza
também foi legislada. Pra uns, a legislação é só opressão. Daí a gente escolhe
ser transgressão ou ser amordaçada. Se eu disser que amo vocês, vocês vão
gostar, vão se assustar ou vão me institucionalizar? Sabedoria não é
sensatez. Sabedoria não é raciocinar acima de quem morre. A vida é
curta para quem busca grandeza pra lá da medida. Os bens não
sustentam4. Eu amo vocês se eu quiser. Amo tudo o que está acima da minha
cabeça e tudo o que está abaixo dos meus pés. O amor mora mesmo é na
deseducação.

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AS BACANTES, Eurípedes.
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AS BACANTES, Eurípedes.

Adalto Tenho medo de morrer e de ser encontrado pelas baratas. Tantas pessoas
morrem na minha frente. Fecham os olhos e num passe de mágica esvaziam o
corpo doente. Sinto certa gratidão quando isso acontece. É no meu olhar que
muitas pessoas encontram coragem para fechar os olhos pela última vez. Cuido
das pessoas, das doenças que elas possuem... Tenho receio de morrer olhando
para o nada.

Luzia Só que deseducar não apaga cicatrizes da pele nem da terra nem da natureza.
Foi por conta da ganância que se criou os guetos, os becos, a favela. Agora, a
ganância, a exploração, a escravidão chegaram até aqui foi pelo mar, foi de
caravela! Vocês não conseguem criar uma lei que não venha acompanhada de
negligência. FIM TAMBORES Vocês querem é a minha vida, mas eu não vou
dar.
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Camila É importante que eu ressalte que sou apenas uma personagem! Não quero que
os homens se sintam envergonhados nem ameaçados. Também não desejo que
as mulheres se sintam cúmplices ou denunciadas pelo que minha personagem
faz. A maternidade é um reino mágico no qual a personagem nunca quis entrar.

Adalto Eu sou assim! Cresci olhando a vida pela fresta de uma janela. Eu me
encantava com a liberdade das meninas e dos meninos que brincavam na rua.

Camila E todas as personagens de uma certa forma mutilam sentimentos nossos. É


como esse vestido que veste uma atriz

Adalto Minha madrinha me servia chá com bolo de laranja, ligava a tevê no desenho
animado... Eu preferia olhar a vida pela fresta da janela.

Camila Algumas partes desse vestido estão costuradas do avesso. Daí aparece
pesponto, linhas mal cortadas, um lado menos brilhoso do tecido... O avesso de
uma mulher nunca é fedido. É só o avesso.

Adalto As meninas e meninos me chamavam de viadinho.

Camila Um avesso com a mesma textura de pele da atriz. Minha mãe costuma repetir
que o papel da mulher é ser para o homem o que a água benta é para a cura...
Um dia a minha bisavó sussurrou em meu ouvido “agua benta não cura”. Eu
respondi, ainda mais baixinho: “Eu sei”!

Adalto Um dia cheguei espancado pelos meninos da escola. O sangue vermelho que
escorrendo pelo nariz. Foi a primeira vez que a minha madrinha me bateu. Ela
me batia e me pedia desculpas. Eu apanhava e não sabia bem o porquê, ou
talvez soubesse. Eu me lembro do olhar da madrinha quando eu assistia TV
com o meu padrinho e ele pegava a minha mão e colocava em sua coxa.

MOVIMENTO 7 – ÚTERO

Camila TEXTO CAMILA QUE AIYOSHA VAI MANDAR Todos os dias no mesmo
horário ela dança sempre a mesma coreografia.
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Camila Ela dança porque não tem móveis. Eu nunca quis abortar. Eu vendi quase todos
os móveis da casa. Vendi guarda roupa, cômoda, armário de cozinha... Tudo o
que tinha portas e gavetas. Arranquei cortinas, joguei fora os tapetes.

Camila Meu ex-namorado é desse tipo de homem que acha que homem que é homem
sempre tem dinheiro na carteira. (Tirando uma calcinha) As noites são
longas e eu penso que ser mãe é algo que não termina nunca. Ser mãe é ser
sempre o dia seguinte. (Tirando uma segunda calcinha) Pensa numa loja.
Pra ter lucro ela precisa de consumidores. Só que gente é feita por gente. E
gente demora pra ser feita, demora pra virar consumidor, demora pra servir
como mão de obra. E até que essa nova gente possa alimentar a engrenagem
social ela precisa de gente pra cuidar. (Tirando uma terceira calcinha) Só
que ser mãe é uma atividade mal remunerada e ao mesmo tempo santificada.
Eu fujo da escassez e da riqueza de qualquer função milagrosa. Eu queria que
meu namorado tivesse feito vasectomia. Ele disse ter medo de sangue. Eu
pedi que ele usasse sempre camisinha. Ele disse que era desconfortável para o
pau dele. (Tirando uma quarta calcinha) Eu exigi que ele não gozasse
dentro de mim. Ele gozou. Eu implorei por uma laqueadura, o médico não
aceitou. (Tirando uma quinta calcinha) “Dizem os homens que nós,
mulheres, vivemos uma vida abrigada ao lar, enquanto eles enfrentam
a morte entre lanças. Pois eu preferia postar-me cem vezes na linha da
batalha a dar à luz uma única vez”5.

Luzia Eu olho os prédios, aquele amontoado de janelas... Sempre tem uma luz acesa
de madrugada me mostrando que ali se instalou a solidão.

Camila “Constrangedor!”, julgam a solidão feminina.

Luzia A solidão é melhor amiga na claridade. É a luz quem afugenta a urgência.

Camila “Constrangedor!”, julgam as urgências femininas.

Luzia Não é coisa minha, não, é do infeliz do teu povo. Ele sim, que vive aos
trancos, pendurados nas quinas dos barrancos. Seu povo que é
urgente. É seu povo que vive de repente porque não sabe o que vem
pela frente, morrendo de amor e por ciúme. Matando por um maço de
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cigarro e se atirando debaixo de carro . 6 6

Camila “Constrangedor!”, é como chamam o poder feminino.

Luzia Quem está do outro lado da parede não enxerga a solidão do outro. Quem está
do lado de fora percebe as rachaduras das paredes se encontrando.

Camila “Constrangedor!”, julgam o sangue feminino.

Luzia Meu nome é Luzia... é Socorro... É Maria... Eu ouço vindo das janelas os
pensamentos inseguros se tornando desespero. Lembro de minha bisavó com os
pés pardos sobre a terra vermelha. Ela erguia os braços, fechava os olhos,
saudava o sol... Os olhos fechados até o sol se por. Tem que sentir a sola dos
pés em terra vermelha. Vocês viram os pássaros se trancando? Não. Vocês que
trancam os pássaros.

Camila “Constrangedor!”, julgam a nossa liberdade.

Luzia Vocês que cortam e queimam as árvores. Eu sou pássaro. Eu sou árvore. E
durante a madrugada eu vejo uma janela aqui, outra ali, com as luzes acesas.
Escuto um grito daqui outro dali...Eu sinto vocês infartando.

Jorge Cala a boca, desgraçada!

Luzia Vem calar! Eu não espero o luto pra poder lutar, não! Quantas mulheres atrás
de mim. Meu nome é Luzia... É Socorro... É Maria... Eu é que não sou mulher
de homem que abaixa a cabeça pra Deus capitalista. Eu pego comida do asfalto,
mas eu não como ração. Meu nome é Luzia... Socorro... Maria! Meu nome é
Ana... Violeta... Bastiana. É Cleusa... Lourdes... Andréa... Dilma... Mariele! É
Rosana... Ayiosha... Jandira... Camila!

MOVIMENTO 8 – Filhote de Deus Capitalista

Luzia Está nas nossas entranhas, no sangue, nas vísceras lutar contra mutilação
imposta pela nobreza. Até no meio do capital, a gente é mãe por natureza!

Jorge (Fala em direção a Luzia) Eu tenho uma arma em casa. Eu tenho uma arma
porque ela abranda o meu ódio. O meu revólver me lembra todos os dias que
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talvez eu ainda tenha algo a perder.

Luzia Vocês querem me abortar? Eu sei o que acontece dentro do isolamento de


vocês.

Jorge (em direção a Luzia) Chega! Já não chega meu patrão que eu preciso matar
cada dia um pouquinho. (Manuseia o revolver de várias formas, em
todas as direções). Meu ódio vive sobre a eterna ditadura da ponderação.
Meu chefe disse que irá votar no último horário. Quem foi que disse que voto
de patrão é necessário? Todas as vezes eu votei exatamente em quem ele
mandou. Gosto de sentir em minha mão a friagem do aço, a extensão do meu
pau estourando, querendo botar pra foder. Quando eu seguro uma arma, eu
miro pro espelho e na verdade é ela quem me segura. Olho pro meu reflexo.
Vejo a imagem do meu patrão. Eu ensaio a morte dele. Serão dezessete tiros no
meio daquela testa. Um para cada vez em que fui o funcionário do mês. Um
homem paga todos os boletos e não tem dinheiro pro caixão da esposa. Meu
patrão me negou dias de folga. Disse ele que o amor é algo que a vida repõe.
Quem é que dá amor pro meu filho se eu só sei pagar boletos, caralho.

Luzia Você não tem culhão pra enfrentar o seu patrão. Você não foi deseducado pra
por abaixo as prateleiras do supermercado.

Jorge Cala a sua boca, desgraçada! Quem você pensa que é? Tô sendo educado.
Desaparece! Some! Todos os dias este inferno. Isso aqui é uma rua de família.
A gente quer silêncio! A gente quer ligar a tevê, a gente quer ouvir rádio... A
gente quer se distrair. (Silêncio) Some! Não aguento mais você esfregando o
cheiro deste país na cara da gente. Você fede! Você desvaloriza o valor dos
apartamentos. Você desvaloriza até o valor das valas do cemitério... Some
desgraça!

Luzia Atira! Rompe de vez a sua ligação com o povo. Caia na armadilha. Seja o herói
que esperam de você e atira logo na maltrapilha. Ao ignorante, o que fala
com senso parece não pensar bem7.

Jorge Eu lhe mato agora e nem a vala do coveiro você tem direito!

Luzia Um caráter como o teu faz sofrer sobretudo a si mesmo, e é justo que
seja assim8. Você olha pra mim e julga que eu não tenho futuro. Apesar de
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homem, continua com este olhar de menino imaturo. Meu futuro é seguir em
frente. Mãos sujas, calos nos pés, vazio na barriga, mas sem puxar saco de
gerente! E daí que sou história esquecida? Tapei os ouvidos pra catequese
porque logo entendi que era mentira, falácia, invencionice que no mundo não
há outra tese. O que é que você enxerga da vida? Hoje é dia de eleição e você
só sabe gritar sua própria ferida! Quem sabe se você atirar, você tira também
esta catarata da frente de seus olhos. Gosta é de ser funcionário do mês. Aposto
dezessete vezes que tem medo da carceragem. Pelego do mercado, você nasceu
é pra ser pau mandado.
CORTE 3

MOVIMENTO 9 – CONSCIÊNCIA.

Adalto Que lindo homem eu sou assim, em estado de implosão! Era pra ser apenas
mais uma noite em que o homem que eu sou sairia de mãos dadas com o meu
feminino. Ser drag traduz a infância que me foi furtada.

Jorge Se eu me arrependo? Lógico que eu me arrependo. Que pai quer viver assim,
com um filho que não quer lhe ver? Se eu não tivesse feito o que eu fiz, estaria
convivendo com todo aquele ódio dentro de mim. Me arrependo
principalmente do começo. E eu nem sei quanto tudo começou, pensando bem
o ódio começou bem antes da Pandemia. Só sei que nunca mais vou conseguir
olhar nos olhos do meu filho.

MOVIMENTO 10 -

Camila (Canta Aprochego) Eu só exerci a liberdade que me é negada.

BOLERO REMIX
Adalto Lembro como todas as noites eu massageava os pés de Marco Antônio. E
todas as noites ele me avisava, estou quase sonhando. Eu pedia que ele se
concentrasse no som do trem atravessando os trilhos do outro lado da cidade e
que quando o sono chegasse ele me dissesse “estou quase sonhando”. A
senha para que eu me deitasse ao seu lado. Na rua, nem olhávamos um para o
outro. Uma vez por mês, Marco Antônio chegava com uma garrafa de vinho e
uma caixa de bombons. Houve uma noite em que a garrafa não chegou até em
casa. Os rapazes do bairro deram uma surra em Marco Antônio. Bateram!
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Humilharam até sair sangue. Jogaram o vinho nas feridas que era pra doer
ainda mais. Mandaram avisar que o próximo seria eu. E que os bombons eles
enfiariam no meu cu. A pandemia da raiva sempre me rondou e a minha
experiência do amor sempre se deu num campo de batalha. Havíamos
prometidos que enfrentaríamos a AIDS juntos. Todos os dias eu visitava
Marco Antônio no hospital. Todos. E como num presságio, houve uma noite
em que o trem não atravessou a cidade. Massageei os pés de Marco Antônio e
ele continuou em silencio. Foi no silêncio de Marco Antônio que eu decidi que
queria ser enfermeiro. Convidei minha madrinha para o velório. Ela não foi.

MOVIMENTO 11.

Jorge saí de seu apartamento e olha para Adalto que dança na rua
sozinho.

Jorge O que é isso aqui?

Adalto Bom dia.

Jorge Bom dia. O que é isso, cara? Por que é que você está vestido assim?
(Silêncio) Era só o que me faltava! Sai da minha frente, cara. Este corredor é
compartilhado. E se o meu filho tivesse aqui? Se o meu filho lhe encontrasse
vestido deste jeito? Porra! Eu não quero saber de homem vestido de mulher na
frente da minha casa, tá me entendendo?

Adalto Me respeita! Eu moro aqui. Eu não lhe ofendi.

Jorge Veado!

Adalto Só conhece esta palavra ou tem alguma outra pra me ofender? Jorge

Bichinha! Por isso que você é só, né?

Adalto Você acha mesmo que a minha solidão é mais ofensiva que a sua? Jorge

Eu não sou só! Eu sou viúvo.

Adalto Eu também.
VERMELHO 2
Jorge 0
Viúvo? Viúvo de quem? (Noutro tom) Eu sou pai de família! Eu coloquei
filho no mundo. Eu sou casado no papel. Eu sou pai no papel. Tudo o que eu
sou tá registrado em cartório. Eu posso provar.

Adalto Eu acredito!

Jorge Eu vou falar com a imobiliária e vou pedir pra lhe expulsar daqui.
Entendeu?

Adalto Vai ter veado e drag no corredor, sim!

Jorge (Apontando a arma) Tô vendo que com você o reboco tem que ser mais
grosso, né. Vou ter que ilustrar. O que é que você está querendo? Quer ir, lá,
fazer companhia pro coveiro? Eu lhe despacho pro outro lado da rua em dois
tempos. Gazela! Gente igual a você tem mesmo é que ficar à margem.

Adalto Atira! Atira! Quem você pensa que é? Você é um coitado. Não tem vergonha
nesta cara, não? Quem dera você pudesse estar à margem pra poder ser alguma
coisa. Tá se achando macho com esta arma? Quem é que lhe enxerga? Filhote
de genocida! Bactéria de fascista! Papel higiênico de miliciano! Nem merda
você é porque nem pra esterco você serve. À margem? Você está no centro de
onde? Nem pra ser fodido você serve porque nem mal amado você é. Tá
segurando esta arma pra quê, se você nunca se aguentou sozinho? Eu perco
minha paciência e arranco as bolas do teu saco com as unhas. Vai ficar me
olhando com esta cara de criança mijada até que horas? Atira! Tá fazendo o que
com esta arma? (Cínico) Vai votar? Você entra neste roteiro, deslocado,
querendo bancar o anti-herói... Você não é “anti” nada. Você é repetição, é
pau mandado, é simulacro, é mais do mesmo... (Num tom feminino) Já que
nada vai acontecer! Eu vou apanhar o título de eleitor que eu esqueci em cima
da mesa, eu vou sair para cumprir a minha função de cidadã!

MOVIMENTO 12 – FINAL.

Luzia Quando vocês se olham no espelho o que é que vocês enxergam? Eu enxergo
tudo vermelho! ENTRA TRILHA DO FIM Presta atenção no som! Vermelho,
irmão, é o sangue que alimenta as entranhas, que corre nas veias... que mancha
a camisa de gente morta, negligenciada pela nação. Eles riem de nós! Riem de
VERMELHO 21
nós! Confundem a nossa resignação com acrobacia de bufão. Mas é tragédia! E
é repousante a tragédia porque sabemos que não há mais esperança,
a suja esperança que sustentamos um dia, que seguramos como quem
segura um rato nas mãos. Tendo todo peso do céu sobre as costas, e
com certeza de que nada mais nos resta a fazer, apenas gritar, sem
gemer, sem se queixar, gritar em plenos pulmões, tudo o que se
tenha a dizer, tudo o que jamais se disse e tudo que talvez se quer
soubéssemos. E tudo isso para nada, para dizê-lo a si mesmo, para
ensinar a si mesmo12.

FIM.

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