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O A N JO M A L D I T O

Monólogo

Texto de:
JULIO CARRARA

Escrita em 1997
Julio Carrara O Anjo Maldito 1

PERSONAGEM:
ANJO MALDITO, um rapaz de 17 anos, que atende por esse apelido.

ÉPOCA: Atual

CENÁRIO: O piso que reveste o assoalho do palco é um grande tabuleiro de


xadrez. Algumas peças do jogo como um cavalo preto, um rei preto, uma
rainha branca, um bispo branco e uma torre preta. As peças deverão ser
construídas com espuma e deverão ser bem leves. O ator irá contracenar com
essas peças, pois cada peça representa um personagem da história. Cada peça,
aos poucos, vai sendo eliminada do jogo até o Anjo Maldito dar “xeque-mate”
no Rei.

OBSERVAÇÃO: O Anjo Maldito é assassinado por um cliente durante um


programa e durante a agonia, sua vida inteira lhe vem à mente através de “flashes”,
onde a realidade e a memória se confundem.
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CENA 1
(O pano se abre lentamente. Uma forte contraluz vermelha sobe em resistência. Um
rapaz está na parte superior central do palco de costas para a plateia, completamente
nu. Lentamente começa a pegar suas roupas que estão espalhadas no chão e vai se
vestindo. Primeiro põe uma sunga preta, depois uma calça jeans toda esfarrapada e um
colete, deixando aparecer nitidamente seu físico. Depois de vestido, vira-se de frente
para o público e caminha para o centro do palco. Foco central sobe em resistência.
vemos em seu rosto uma expressão angustiada e irada ao mesmo tempo. É um
personagem extremamente bonito. Sua face é angelical e ao mesmo tempo demoníaca.)

ANJO MALDITO
(Apresenta-se.)
Meu nome é...

(Põe a mão na cabeça, tentando se lembrar.)

Não me lembro. Esqueci o meu nome... Todos me conhecem por “anjo


maldito”. Ganhei esse apelido de uma professora quando tava na terceira série
da escola. Desde que me conheceu, ela nunca foi com a minha cara e vivia me
maltratando. Até que um dia eu não agüentei e mandei ela tomar no cu. (Ri
histericamente.) A vaca me mandou pra diretoria e na presença da diretora, se
referiu a mim como “o anjo maldito”, que levava todos os alunos pro mau
caminho. Eu perguntei o porquê desse apelido e ela me respondeu que eu
parecia um anjo. Mas que via o demônio em pessoa quando olhava pro fundo
dos meus olhos. Me achava traiçoeiro e por isso não gostava de mim. E a partir
deste dia, ninguém mais me chamou pelo meu nome de batismo.

(Anda pelo ambiente.)

Moro aqui neste buraco. O aluguel é barato e dá pra bancar sem


problema e posso trazer quem quiser aqui prum programinha. Mas aqui me
sinto como um prisioneiro... E não adianta fugir. Pra onde quer que eu vá, vou
tá sempre preso no meu passado... A única coisa que me falta na vida é poder
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me libertar dessas sombras que me atormentam e que não me deixam em paz


um segundo sequer.

(Pega um maço de cigarros que está jogado em um canto qualquer. Acende um. Fuma.
Suas mãos estão trêmulas e ele está muito nervoso. Solta a fumaça, que se espalha
lentamente. Fica olhando para ela e parte de sua vida lhe vem à mente.)

Parece que foi ontem toda a desgraça que caiu sobre minha cabeça...

(Narra a cena e vai participando dela.)

Minha mãe tava na cozinha, fazendo seus trabalhos de dona-de-casa e


meu pai chegando do boteco, bêbado pra caralho. Sempre que ele chegava
desse jeito, eu corria pro meu quarto e ficava espiando por uma fresta da
porta, sem que eles percebessem. Minha mãe começou a discutir com ele
porque não agüentava mais trabalhar como uma escrava, lavando,
cozinhando, passando roupa pra fora, enquanto ele, que estava desempregado,
não ia procurar emprego e pegava toda a grana dela pra gastar em bebida no
boteco da esquina.

(Desesperado.)

O desgraçado começou a xingar minha mãe, apertava seu braço com


força, dava chutes, murros nela, que gritava de dor.

(Cada vez mais alucinado.)

Eu não podia fazer nada. Não tinha metade da força dele e se eu


enfrentasse o infeliz, ele iria me encher de porrada. A única coisa que fiz foi
chorar. Chorar e mais nada! No meio da briga, o filho da puta empurrou
minha mãe com tanta força e ela caiu pra trás, batendo a cabeça na quina da
mesa. Quando ele percebeu o que tinha feito, saiu correndo e só pude ouvir o
barulho do carro saindo em disparada. Saí do meu quarto pra ver o que tinha
acontecido com a minha mãe. Cheguei perto dela e ela estava caída no chão,
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sem se mexer enquanto um sangue negro que saía de sua cabeça jorrava e
escorria pelo chão.

(Põe a cabeça da mãe em seu colo. É a rainha branca. Olha para ela. Uma luz especial
sobe em resistência sobre o rapaz, que fala como um menino de doze anos.)

Mãe, levanta... Oh, mãe, não brinca comigo...

(Vai se desesperando ao ver que ela não se move.)

Mãe, fala comigo! Fala comigo, mãe.

(Chacoalha-a.)

Mãe!!! Não, mãe! Nããããããoooo!!!!!!!

(Contorcendo-se.)

Não adiantava mais nada. Ela tava morta! Morta!

(Aproxima-se do centro do palco. Está diante do caixão de sua mãe.)

Quando vi minha mãe no caixão, fiz um juramento diante de seu corpo.

(Jurando, com ira.)

Mãe, sua morte vai ser vingada. Juro por tudo que é mais sagrado que
vou matar seu assassino. E não vou sossegar enquanto isso não acontecer, nem
que pra isso eu tenha que descer até às profundezas do inferno!

(Luz especial desce em resistência. A ira do rapaz chega ao ápice.)

Eu vou te encontrar, velho de uma figa e vou te matar. Quero te ver


sangrar como um porco e vou ter o prazer de cuspir na tua cara. Você tirou a
vida de quem eu mais amava neste mundo. Eu nunca vou te perdoar.

(Grita com todas as suas forças.)


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Nunca!!!!!!!!!

(Desaba no chão num sofrimento profundo.)

CENA 2
ANJO MALDITO
(Narrando.)

Depois do enterro, saí correndo do cemitério sem que ninguém me visse.


Corri, corri, corri. Sem rumo, sem destino, pra onde Deus ou o Diabo quisesse
me levar. Queria voar, como um anjo. Pra bem longe, onde ninguém pudesse
me encontrar... Voltei pra casa com a esperança de encontrar com “aquele que
se dizia meu pai”. Eu tava pronto pra cumprir meu juramento, mas ele havia
desaparecido, sem deixar nenhuma pista sobre seu paradeiro. Não aguentava
mais ficar naquela casa onde reinava a maldição. Quando chegou a noite, não
tinha aonde dormir. Fiquei perambulando pelas ruas com a intenção de
enganar o sono, mas ele me venceu e acabei dormindo num banco gelado da
praça da República... Lá pelas quatro da madrugada, um andarilho me
acordou e me levou debaixo do Minhocão, onde ele vivia. No dia seguinte, fui
com ele fazer malabares no semáforo. Na segunda semana, ele construiu pra
mim uma caixa de engraxate e fui engraxar sapatos no Centro. Fiquei três anos
nesta vida até que não agüentando mais, larguei essa vida e me enfiei na noite.
Arrumei um trampo numa boate num show chamado “A Noite dos Leopardos”.
Lembro como se fosse hoje: com uma máscara de leopardo, um chicote e uma
capa, pisei no palco pela primeira vez...

(O rapaz vira-se de costas e põe a capa e a máscara. Segura um chicote e inicia seu
show. Faz um “strip-tease”, colocando em prática todo o seu charme e sensualidade.
Bate com o chicote no chão e dança ao som de uma música de “strip-tease”. Acaricia o
corpo, deixando a plateia, enlouquecida. Passa a mão no pênis e movimenta os quadris
simulando o ato sexual. Os gritos da plateia ainda ecoam no seu ouvido.)
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...e naquela mesma noite, rolou a minha primeira trepada. Uma coroa
me deu uma boa grana pra foder com ela. Eu falei pra ela que ainda não
conhecia nenhuma mulher e ela me disse:

(Pega a torre preta e faz uma voz feminina.)

“Adoro meninos da sua idade, que ainda cheiram a leite. Vocês são os
melhores amantes do mundo. Vou te ensinar tudinho... de A até o Z.”

(Noutro tom.)

Me levou até o seu apê, me jogou na cama, arrancou toda a minha roupa
e bateu uma punheta pra mim. Puxava meu cabelo, me arranhava, gemia alto e
falava sacanagens no meu ouvido. Como uma leoa no cio, pediu que eu
enterrasse a pica o mais depressa possível nela. Fiz como ela pediu... A velha
tinha um apetite do caralho. Quando sentiu que eu ia gozar, tirou o cacete de
dentro dela, deu mais uma mamada, engoliu o meu leitinho e ficou brincando
com o meu pau. Depois dela, vieram outras, outras e mais outras... A grana era
alta. Eu tinha por obrigação satisfazer todo mundo...

(Muda o tom.)

Um dia, quando voltava pra casa, um cara parou o carro e me ofereceu


uma carona. Eu conhecia ele de vista e aceitei. Eu tava cansado. Mas o pior foi
quando aceitei ir até a casa dele pra tomar umas cervejas e fumar uns beck. Ele
pediu para eu passar a noite lá, porque ele tinha acabado de se separar da
mulher e precisava de alguém para desabafar. Ficou umas duas horas falando
da puta da mulher dele, da puta da vida dele, da puta que o pariu... Fomos
dormir tarde. Ele foi pro seu quarto e eu fiquei num colchão na sala.

(Deita-se no piso.)

No meio da noite, eu acordei com aquele desgraçado em cima de mim,


me encoxando.
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(Pega o cavalo preto e põe em cima do seu corpo. Luz especial. O rapaz fica apavorado.)

O que é isso? Sai de cima de mim. Você só disse que queria conversar
comigo, seu sacana, filho da puta.

(Consegue se levantar e tenta fugir. só tenta, porque o homem o agarra. O desespero do


rapaz vai aumentando.)

Me solta. Você tá me machucando. Tire essas mãos nojentas de cima de


mim. Você não vai me comer.

(Caminha com dificuldade, indo até o centro do palco. O homem faz com que ele fique
“de quatro”. O rapaz tenta resistir, mas o homem muito mais forte do que ele, baixa a
sunga do rapaz. este chora.)

Não faz isso, porra...

(O rapaz estremece o corpo. O homem penetrou nele. este grita muito e vai
estremecendo à medida que o homem o enraba. A cena é tensa. Nesta cena deverá ser
utilizado efeito de luz: o “strobo” é o mais indicado para deixar a cena em câmera lenta.
A dor do rapaz é imensa. O homem chega ao ápice de seu prazer. O rapaz rola pelo
chão. está quase desmaiando. Black-out rápido.)

CENA 3
ANJO MALDITO
Depois deste dia, nunca mais fui o mesmo. Nunca mais consegui dormir
tranqüilo. Fechava os olhos e via aquela cena. Nunca mais consegui me olhar
direito no espelho. Acho que aquele anjinho que ainda existia em mim,
morreu, fazendo com que eu me transformasse definitivamente num demônio.

(Pega algumas pedras de crack e se droga. Entra em cena uma mulher, representada
pelo bispo branco. Anjo Maldito dirige-se para ela, com o olhar alucinado.)
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E aí, gatinha? Tá a fim de um programinha? Venha aqui com o papai,


vou realizar todas as suas fantasias e pra você eu faço de graça. Faço o que
você quiser.

(Abraça a mulher.)

Me abraça... Isso, sua cadelinha. Assim é que eu gosto. Bela menina!

(Geme e se masturba. de repente, seus movimentos que eram suaves, passam a ser
fortes.)

Não é qualquer uma que tem o privilégio de estar nos meus braços,
sabia? Você tem um cheiro maravilhoso. Vou te dar prazer como nunca dei a
nenhuma outra mulher.

(Mais brutal.)

Vou fazer com que você sinta tudo o que eu senti naquela maldita
noite...

(Penetra violentamente na garota. Ele grita por ela e ao mesmo tempo por ele. Seus
movimentos são idênticos do homem que o estuprou. A cena se repete só que agora o
rapaz é o violador. Vai diminuindo seus movimentos até parar. Repete a mesma marca
do trecho de seu estupro. Black-out rápido.)

Ao mesmo tempo em que estava feliz ao ver ela sangrando, gritando e


me implorando pra parar, eu me via no lugar dela. Sentia toda a dor dela...

(Flashes do Anjo Maldito sendo assassinado por uma gangue. Ele pula na estrutura de
sustentação do teto e atravessa-o todo. Ao chegar à outra extremidade, fica pendurado
de cabeça para baixo, como um morcego. Depois de um tempo, salta do teto e cai no
inferno.)

Finalmente eu te encontrei seu assassino... Já tava na hora de acertarmos


as contas, não é mesmo?
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(Seu pai, representado pelo rei preto, está frente a frente com ele.)

Eu jurei vingança diante do corpo da minha mãe e vou cumprir meu


juramento, nem que isso seja a última coisa que eu faça na porra dessa vida...

(Pega um revólver e aponta para o pai.)

Ajoelha, seu desgraçado. Você acabou de cavar sua sepultura.

(Súplica do pai, que só ele escuta.)

Cala a boca... Morrer é pouco pra você. Fique onde tá. Não se mexa...
Você vai morrer de qualquer jeito. Sua súplica é inútil... Mas eu vou dar um
tempinho para que você possa rezar um “Pai-Nosso”, se é que você sabe rezar,
né, seu bosta?...
(Tempo.)

Um... Pai Nosso, que estais no Céu... Dois... Santificado seja o Vosso
nome... Três... Venha a nós o Vosso Reino... A gente se encontra no inferno...
Seja feita a Vossa vontade.

(Atira.)

Xeque-mate.

(O rapaz ao ver o cadáver, começa a rir. Um riso macabro, que começa baixinho e vai
crescendo, crescendo, crescendo até chegar numa altura infernal. Em seguida esse riso
se transforma num choro de um bebê recém-nascido. O garoto está ajoelhado, de cabeça
baixa. Levanta a cabeça lentamente e ainda ajoelhado, estende as mãos para o céu; a
plenos pulmões.)

Eu tô livre!!!

(Dá um suspiro, aliviado.)


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Finalmente me libertei do meu passado. Finalmente voltarei a ter paz na


minha vida. O demônio que existia em mim, morreu com o assassino de minha
mãe... Eu sou um anjo... Um anjo bendito. Agora o que me resta é alçar voo.
Pra bem longe deste lugar e dessas lembranças horríveis...

(Uma suave luz azul dá lugar à luz vermelha. Uma forte neblina invade a cena. O
Anjo tem um sorriso angustiado, enquanto grossas lágrimas escorrem pela sua face. A
cena deve sugerir mistério e poesia. Black-out.)

FIM

Agosto/1997

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