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RESUMO
Este trabalho aborda o lettering das histórias em quadrinhos no contexto do projeto tipográfico.
Baseia-se no trabalho de conclusão do autor do Curso de Design da Universidade Federal de
Santa Catarina e inicia demonstrando a herança manuscrita da tipografia moderna e a influência
da escrita nas histórias em quadrinhos. Também são abordados os caracteres especiais, as
tradições das letras para quadrinhos e a tentativa dos artistas de utilizar as letras como parte
integrante da interpretação do texto, usando como exemplo o trabalho do letrista Todd Klein.
PALAVRAS-CHAVE: Tipografia, Lettering, Histórias em Quadrinhos.
INTRODUÇÃO
1
Graduado em Design pela Universidade Federal de Santa Catarina e Mestrando em Design no Programa de Pós
Graduação em Design da Universidade do Estado de Santa Catarina (PPGDesign/CEART/UDESC) -
maxvartuli@gmail.com
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(2002), Gutemberg utilizou uma paleta de 300 glifos para representar um alfabeto de 26
caracteres, sem acentuação.
Figura 1: À esquerda a página da Bíblia de Gutenberg e à direita a Bíblia Iluminada de A.D. 1407.
Fonte: VARTULI (2006)
Existem outras evidências que aproximam não só Gutenberg, mas muitos outros
tipógrafos e impressores da irregularidade e imprevisibilidade da escrita manual. De acordo
com Gaudêncio Junior (2004), algumas das primeiras oficinas tipográficas funcionavam
anexadas às oficinas copistas. A transição da tipografia de um modo bidimensional para
tipos móveis tridimensionais, guarda até os dias atuais muitas características da caligrafia.
Cabe antes de continuar, uma diferenciação entre três conceitos fundamentais para
o entendimento deste trabalho: o de escrita, o de lettering e o de tipografia.
A escrita, feita a mão, possui um caráter único e autoral, cujas partes resultantes são um
traçado fluido. O lettering, ou forma desenhada, resulta da combinação de diversos traços,
como as vistosas letras dos cartazes litográficos do século XIX ou os grafites das grandes
metrópoles. Quanto ao caractere tipográfico, é aquele que pode ser desarticulado,
obedecendo sistemas de mecanização (GAUDÊNCIO JUNIOR, 2004, pág. 40).
Com a litografia, o artista comercial do século XIX não estava mais preso à
modularidade dos tipos móveis, anteriormente utilizados também para confeccionar
cartazes, ganhando assim liberdade para criar livremente e experimentar novos designs de
letras (figura 2).
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Características e tradições
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estas quase sempre são confeccionadas em alfabetos contendo somente letras capitulares,
ou maiúsculas. Na composição tipográfica tradicional, compor um texto somente em
maiúsculas é quase sempre uma prática reprovável. De acordo com Pereira (2004) isso se
deve em parte ao fato de que na maioria das tipografias as palavras somente com letras
em caixa-alta tende a formar um retângulo, enquanto uma palavra escrita em minúsculas
ou em minúsculas e maiúsculas, por possuir ascendentes e descendentes2, tende a ter
mais anatomia, permitindo assim, que seja reconhecida como um todo, conforme mostra
a figura 3.
Figura 3: Uma palavra escrita com letras em maiúsculas e minúsculas comparada com uma
somente em maiúsculas. Fonte: VARTULI (2006)
O letrista norte-americano Todd Klein justifica essa escolha pelas letras em caixa-
alta.
Primeiro, por que ele (o alfabeto) é usualmente em letras capitulares? Em parte por
tradição, mas mais do que isso, por praticidade. Capitulares parecem maiores na arte
finalizada, e podem ser espacejadas mais próximas, posto que não existem traços
estendendo-se abaixo da linha de base, como acontece com as letras em caixa-baixa g,
j, p, q e y (CHIARELLO, KLEIN, 2004, p.90 - tradução do autor.)
De acordo com Vartuli (2006), Klein desconsidera que na maioria das línguas
ocidentais, excluindo o inglês, existem acentos que se estendem acima da caps height3 tais
como Á, Â, Ó e É, que podem, com algum descuido do diagramador, colidir com as letras da
linha de cima, ou em partes delas que se estendem abaixo da linha de base, tais como das
letras Q e Ç.
Um modo também descrito por Klein para minimizar o problema das formas
retangulares das palavras, e que compõe também o repertório da tradição dos quadrinhos,
2
Ascendente é a parte de letras como o “t” e o “f” que se estende acima da altura do x. Descendente é a parte que se
estende abaixo da linha de base, tais como nas letras “p” e “q”
3
Altura máxima das capitulares, geralmente localizada um pouco abaixo da linha das ascendentes.
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é o de fazer as barras4 ligeiramente diagonais, estando mais altas do lado direito da letra,
como mostra a figura 4. Segundo Chiarello, Klein (2004), isso mantém as letras visualmente
separadas.
Figura 4: Formato das palavras com a letra de Willie Schubert e com a fonte Gill Sans de Eric Gill.
Fonte: VARTULI (2006)
Letras em maiúsculas e minúsculas, apesar de não serem tão comuns, também são
utilizadas nos quadrinhos, principalmente com propósitos narrativos especiais, ou para dar
uma voz diferente a uma personagem (figura 5). Em alguns trabalhos, as letras além de
bicamerais, por vezes são até mesmo serifadas.
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Traços horizontais da letra
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Caracteres especiais
Figura 6: Uso do traço duplo por Artie Simek. Fonte: Wein (1989)
Os traços radiantes (radianting dashes) são três pequenos traços utilizados em torno
de palavras como “ufa” e “bem” para mostrar respiração ou um suspiro, e de onomatopéias
que indicam tosse, como mostra a figura 7, em torno da palavra “koff”.
Figura 7: Uso dos traços radiantes por Richard Starkings. Fonte: Busiek (1996)
O caractere vazio, nome proposto por Vartuli (2006), quando colocado sozinho
no centro de um balão de fala pronunciada, de pensamento, ou simplesmente quando
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posicionado acima de uma personagem (figura 8) indica a falta de uma fala ou de uma ideia.
Figura 9: Caracteres I serifado e o i normal por Willie Schubert. Fonte: Ennis, McCrea (1997)
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Os quadrinhos em sua origem eram geralmente feitos por apenas um artista, que
elaborava o roteiro da história, fazia os desenhos, produzia as letras e, se fosse o caso, os
coloria também.
Com a profissionalização e o surgimento da indústria dos quadrinhos, juntamente
com como uma linha de produção, passou a ser dividido em etapas. Como consequência
dessa especialização, surge a figura do letrista. Dada a versatilidade do trabalho e o fato
destes profissionais terem presenciado a migração da letra manual para a digital, Vartuli
(2006) faz uma análise do trabalho do norte-americano Todd Klein e da brasileira Lilian
Mitsunaga. Para o proposito deste artigo, focaremos no primeiro artista.
Todd Klein pertence à geração que começou a trabalhar no auge do lettering manual
e se viu obrigado a migrar para os meios digitais. Publicou um guia onde ensina técnicas
avançadas de letreiramento e onde coloca seu ponto de vista e impressões sobre o seu
trabalho e de outros colegas. Um dos trabalhos mais conhecidos de Klein foi para a revista
Sandman, publicada pela DC Comics nos EUA entre 1988 e 1996, escrita por Neil Gaiman e
ilustrada por desenhistas, arte-finalistas e coloristas diversos. Klein, Gaiman e o artista das
capas Dave McKean foram os únicos a trabalhar em todos os setenta e cinco números da
revista, que deixou de ser publicada em março de 1996, como pode se constatar, verificando
os créditos de todas as edições.
Nas páginas de Sandman, Klein mostra uma ampla gama de tipos de letras. Além
disso, as letras são usadas como recurso narrativo, simulando em seu traço o que seria a
voz, entonação, características pessoais das personagens.
A personagem principal, Dream, tem como “voz” letras brancas em caixa alta e baixa
sobre fundo preto, em um balão de bordas sinuosas, como mostra a figura 10.
Já a personagem Desire mostra em suas falas uma letra com traços um pouco mais
arredondados, conforme mostra a figura 11.
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Figura 11: Letras criadas para a personagem Desire. Fonte: Gaiman (1992)
Figura 12: Formas irregulares das falas da personagem Delirium. Fonte: Gaiman (1992)
Matthew é uma personagem que possui a forma de um corvo, e para ele foram
feitos balões com traços abruptos e as letras seguem o mesmo padrão com traços quase
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A personagem Lady Bast tem sua forma inspirada em figuras zoomórficas do Egito
Antigo e as letras de suas falas lembram as primeiras formas das letras etruscas (figura 14).
Finalmente, os anjos Remiel e Duma tem suas falas elaboradas em uma delicada
escrita cursiva (figura 15).
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Considerações Finais
As letras das histórias em quadrinhos são um bom exemplo de como uma tipografia
pode servir como meio de expressão, ao mesmo tempo que é invisível. O lettering,
independente de ser feito pelo autor da HQ ou por um letrista profissional, como pode-
se ver no trabalho de Klein, deve ser suficientemente invisível (ou integrado a arte) para
não chamar muita atenção sobre si, desviando o leitor da história, mas deve expressar, se
não o gosto pessoal do autor, ao menos a “voz” da personagem. A melhor maneira de uma
tipografia para quadrinhos não chamar muita atenção para si é seguindo as tradições e
convenções dos quadrinhos. As tipografias projetadas ao longo dos séculos, se não dizem
algo a respeito dos gostos pessoais de seus autores, muito nos dizem a respeito de sua
época e da sociedade em que viveram. Como propõe Bringhurst (2005) as classificações de
tipos propostas em categorias baseadas em suas formas (tipo antigo, tipo veneziano, tipo
garaldino, tipo didones entre outras) deveriam ser substituídas por uma que contemplasse
o homem por trás do projeto, seus costumes e crenças, a sociedade em quer viveu, baseada
em períodos históricos (tipo barroco, tipo renascentista, tipo romântico e etc).
Este “homem por trás do projeto”, por vezes aparece nas histórias em quadrinhos,
colocando traços da própria caligrafia em seu lettering, como o italiano Hugo Pratt, que
imprime suas características de desenho (tal como o traço fino) em suas letras (figura 16).
Figura 16: Detalhe de “Corto Maltese - La casa dorata di Samarcanda” de Hugo Pratt.
Fonte: URL http://www.afnews.info/img/pratt/imagepages/image4.html. Acessado em 2 de
junho de 2005.
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compreender que em uma obra de expressão autoral, a voz das personagens e o estilo
do artista devem ser levados em consideração, para que o resultado final da obra seja um
conjunto verdadeiramente coerente de imagens e palavras contando uma história.
REFERÊNCIAS
BRINGHURST, Robert. Elementos do estilo tipográfico. São Paulo: Cosac Naify, 2005.
BUSIEK, Kurt. Untold Tales of Spider-Man. New York: Marvel Comics. 1996.
CHIARELLO, Mark; KLEIN, Todd. The DC Comics Guide to Coloring and Lettering Comics. New York:
Watson-Guptill Publications. 2004.
EISNER, Will. Quadrinhos e arte sequencial. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
FARIAS, Priscila L. Tipografia digital: o impacto das novas tecnologias. Rio de Janeiro: 2AB, 2000 (2ª
edição).
GAIMAN, Neil. The Sandman: Season of Mists. New York: DC Comics. 1992.
GAUDÊNCIO JUNIOR, Norberto. A herança escultórica da tipografia. São Paulo: Coleção Qual o seu
tipo?. Edições Rosari, 2004.
OLIVEIRA, Marina. Produção gráfica para designers. Rio de Janeiro: 2AB. 2002 (2ª edicão).
PEREIRA, Aldemar A. Tipos: Desenho e utilização de letras no projeto gráfico. Rio de Janeiro: Quartet,
2004.
VARTULI, Maximilian de Aguiar. A Gibi Sans e a Tipografia nas Histórias em Quadrinhos (Monografia).
Florianópolis: UFSC, 2006
WATTERSON, Bill. The complete Calvin and Hobbes. Andrews McMeel Publishing. 2005.
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