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Introdução em laboratório. Relatos sobre episódio não


Breno Arsioli Moura são exclusividade do tempo presente. Por
Centro de Ciências Naturais e

N
a física, o nome de Benjamin exemplo, em um livro de 1882 destinado
Humanas, Universidade Federal do Franklin (1706-1790) (Fig. 1) é a ensinar filosofia natural a crianças e
ABC, Santo André, SP, Brasil usualmente lembrado pelas suas jovens estadunidenses, encontramos uma
E-mail: breno.moura@ufabc.edu.br contribuições à eletricidade, especialmente gravura (Fig. 2) mostrando o experimento
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pela criação dos para-raios e pelo famoso e a seguinte descrição:
experimento da pipa empinada em meio
Quem primeiro obteve raios
a uma tempestade. Com isso, Franklin
das nuvens? – Dr. Franklin
marcou seu nome na história como um
primeiro obteve eletricidade
grande inventor e experimentador, trazen-
das nuvens de tal maneira a
do novas interpretações para os fenô-
ser capaz de examiná-la e
menos elétricos estudados no século XVIII.
provar que o raio nada mais
Especificamente sobre o experimento
é que eletricidade.
da pipa, os relatos são ainda muito co-
muns nos livros didáticos e de divulgação
Como ele fez isso? – Essa des-
científica [1]. Eles dão conta de que, em
coberta da natureza dos raios
meio a uma forte tempestade, Franklin
foi uma das mais importan-
empinou uma pipa, com uma chave
tes já feitas na ciência e, não
amarrada ao barbante. Com a eletricidade
obstante, Dr. Franklin a fez
sendo transmitida das nuvens até a chave
simplesmente empinando
pelo barbante, ele pôde observar faíscas
uma pipa em um temporal
elétricas e concluir que os raios tinham a
com trovões. [2, p. 158]
mesma natureza da eletricidade produzida
Porém, é razoável nos perguntarmos:
suas únicas contribuições para o estudo
da eletricidade foram o experimento da
pipa e a invenção dos para-raios? Franklin
simplesmente empinou uma pipa em
meio a uma tempestade e descobriu que
os raios tinham a mesma natureza da ele-
tricidade comum, como sugere o livro de
1882? O estudo da história da ciência nos
fornece uma boa resposta a essas ques-
tões. Franklin fez muito mais que apenas
propor um experimento ou inventar um
Em muitos manuais escolares, Benjamin Fran- dispositivo. Imerso em um contexto em
klin é retratado única e exclusivamente como o que as pesquisas em eletricidade estavam
descobridor da natureza elétrica dos raios, espe- em ascensão, ele propôs a existência de
cialmente por meio de seu famoso experimento um único fluido elétrico e se esforçou em
da pipa. Porém, estudos historiográficos mos- estabelecer suas propriedades principais.
tram como suas contribuições foram muito A partir disso, procurou explicar os mais
mais amplas e que o experimento da pipa desem-
variados fenômenos elétricos estudados na
penhou um papel quase coadjuvante em meio a
tantas ideias importantes. Neste artigo, discuto
época, expandindo ideias já existentes e
algumas de suas principais teorias, no intuito Figura 1: Benjamin Franklin por volta de criando outras inteiramente novas. Nesse
de esclarecer como Franklin auxiliou a aprimorar 1785, em pintura de Joseph Siffred cenário, o experimento da pipa e a ideia
os estudos em eletricidade do século XVIII. Duplessis (1725-1802). dos para-raios fizeram parte de um corpo

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Os estudos em Na mesma época de Gray, surgiram
eletricidade do os estudos de Charles Du Fay (1698-
início do século XVIII 1739). Du Fay reconheceu a repulsão
como uma propriedade característica da
Franklin começou a eletricidade e descreveu o mecanismo ACR
se envolver com eletrici- (atração-contato-repulsão). Ele propôs a
dade por volta da década existência de dois tipos de eletricidade: ví-
de 1740. Nessa época, os trea e resinosa. Como os nomes sugerem,
estudos na área cresciam a eletricidade vítrea poderia ser obtida
em número e em quali- quando o vidro era atritado, enquanto a
dade, aprimorando o pou- resinosa estava presente em resinas como
co que se sabia até então. a copal. Corpos com a mesma eletricidade
Quando Franklin iniciou se repeliam e com eletricidades diferentes
seus estudos sobre os fe- se atraíam [5]. Mais tarde, outros filósofos
nômenos elétricos, outros naturais, como John Canton (1718-
filósofos naturais já ti- 1772), mostraram que o tipo de eletri-
nham descrito algumas de zação não dependia apenas do corpo atri-
suas principais proprieda- tado, mas também daquele que atritava.
des e apresentado alguns Outro filósofo natural que se desta-
conceitos para explicá-los. cou por suas contribuições à eletricidade
Abordarei as contribui- foi William Watson (1715-1787). Na dé-
ções de alguns desses filó- cada de 1740, ele reportou aos colegas da
sofos naturais a seguir. Royal Society de Londres os resultados de
Um dos filósofos na- vários experimentos elétricos e, entre 1745
turais do início do século e 1746, publicou o Experiments and Ob-
XVIII que estudou eletri- servations tending to illustrate the Nature
cidade foi Stephen Gray and Properties of Electricity [Experimentos
(1666-1736), que escre- e observações buscando ilustrar a natu-
veu vários artigos sobre o reza e as propriedades da eletricidade]. No
tema entre as décadas de ano seguinte, o texto ganhou a famosa
1700 e 1730. Em um de- Sequel [Sequência], que ampliou os estu-
les, publicado em 1731, dos do material anterior. Nesses trabalhos,
Gray relatou a descoberta Watson discutiu vários fenômenos elétri-
de que a eletricidade po- cos conhecidos, relatando, por exemplo,
deria ser transmitida de a diferença nas descargas obtidas por cor-
Figura 2: Gravura ilustrando o experimento da pipa. Fonte: um corpo a outro e a exis- pos pontudos e corpos embotados [6,
Ref. [2, p. 159]. tência de corpos mais pro- p. 298].
pensos a transmiti-la que Na França, um dos herdeiros dos
maior de conhecimentos sobre a eletri- outros. Nesse mesmo texto, ele descreveu estudos de Du Fay foi Jean-Antoine Nollet
cidade, que compreendeu outros elemen- o famoso experimento de um garoto sus- (1700-1770). Ele desenvolveu o conceito
tos tão importantes quanto esses. penso atraindo pequenos materiais por de um único fluido elétrico, que saía e en-
Neste artigo, discutirei algumas das diferentes partes do seu corpo, quando em trava nos corpos eletrizados, como um
principais contribuições de Franklin para contato com um tudo de vidro eletrizado fluxo. Um corpo eletrizado emitiria ao
o desenvolvimento da eletricidade no sé- (Fig. 3) [3]. mesmo tempo correntes “afluente” e
culo XVIII: a concepção de matéria e
atmosfera elétricas, o poder das pontas,
a eletrização positiva e negativa, o
funcionamento da garrafa de Leiden e os
experimentos da guarita – relacionado à
invenção dos para-raios – e da pipa. Essa
discussão será precedida por duas
pequenas seções sobre o próprio Franklin
e seu envolvimento com a filosofia natu-
ral e sobre os estudos em eletricidade no
período. Pretende-se, a partir disso,
oferecer subsídios para uma abordagem
histórica mais adequada sobre Franklin
em contextos de sala de aula, bem como
proporcionar uma compreensão ampla de
suas ideias acerca dos fenômenos
elétricos. Isso é especialmente relevante
no contexto brasileiro, uma vez que
faltam materiais em português sobre o Figura 3: O famoso experimento de Gray, ilustrado em trabalho posterior à publicação
autor.1 de seus artigos. Fonte: Ref. [4].

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“efluente” do fluido elétrico, as quais, ao damente, o experimento consistia em
interagir com outras correntes de diferen- erguer uma longa haste metálica no topo
tes intensidades em outros corpos, ocasio- de um prédio alto e extrair a eletricidade
nariam os fenômenos elétricos conhecidos de nuvens em tempestades. Ele tinha esse
[7]. O famoso experimento da pena flu- nome por conta da guarita em que o
tuando ao redor de um tubo de vidro atri- observador ficava. Dois anos mais tarde,
tado seria facilmente explicado por esse Collinson reuniu em um livro todas as
princípio. A atração seria ocasionada pela comunicações que Franklin lhe enviara,
corrente afluente. Ao tocar o tubo, a pena sob o título Experiments and observations
seria estimulada a emitir suas próprias on electricity, made at Philadelphia [Experi-
correntes, originando a repulsão pelas mentos e observações em eletricidade,
correntes da pena e do tubo. feitos na Filadélfia], publicado em 1751.4
Na mesma década de 1740, uma im- O livro teve outras cinco edições, sendo a
portante descoberta foi feita. Tratou-se do quarta a primeira a ter sido organizada
instrumento que ficou conhecido como pelo próprio Franklin e a utilizada como
“garrafa de Leiden”. A construção da gar- fonte para as citações neste artigo [12].
rafa foi guiada pelos experimentos de A publicação do Experimentos e obser-
Georg Mathias Bose (1710-1761), que ha- vações em 1751 tornou o trabalho de Fran-
via eletrizado a água dentro de um copo klin mais divulgado na Europa. Na Grã-
de vidro e extraído faíscas dela. Buscando Bretanha, seus escritos já eram relativa-
aprimorar os efeitos observados por Bose, mente conhecidos, uma vez que Collinson
Ewald Jürgen von Kleist (1700-1748), comunicava frequentemente aos mem-
alemão, e Pieter von Musschenbroek, bros da Royal Society de Londres – da qual
holandês (1692-1761), em duas situações fazia parte – os textos do estadunidense.
distintas [8, 9],2 desenvolveram o que Na França, o livro fez bastante sucesso,
viria a ser chamado de garrafa de Leiden.3 por conta, dentre outros motivos, da
Basicamente, a garrafa funcionava como reprodução de experimentos descritos por
um tipo primário de capacitor, podendo Franklin, em especial o experimento da
acumular eletricidade por um longo tem- Figura 4: Típica configuração de uma gar- guarita (Fig. 5).
po. Em suas configurações iniciais, ela rafa de Leiden, com seus dois revestimen- A repercussão de suas ideias o levou
consistia de um recipiente de vidro pre- tos de condutor (A e B), produzida anos a receber a medalha Copley da Royal Soci-
enchido com água e envolvido interna e mais tarde de sua invenção. Nos modelos ety em 1753, por suas contribuições à ele-
externamente por um material condutor. iniciais, a garrafa era preenchida com tricidade, e a tornar-se membro dessa
Um fio que saía da garrafa conectava o água, ligando o fio com o revestimento sociedade, em 1756. Ao final dessa década,
revestimento condutor interno com o ge- interno. Fonte: Ref. [10, p. 86]. Franklin não produziu nenhum outro tra-
rador de eletricidade (Fig. 4). balho relevante na área, dedicando-se a
A invenção da garrafa de Leiden foi eventos, Franklin e seus companheiros co- outros assuntos. Mesmo assim, conti-
mais um fator que impulsionou os estu- meçaram a realizar suas próprias inves- nuou recebendo homenagens e desfrutou
dos na área, pois muitos queriam entender tigações em eletricidade. de grande prestígio dentre os filósofos
como um dispositivo tão simples poderia Em 1747, Franklin enviou suas pri- naturais. Uma de suas últimas honrarias
armazenar eletricidade por um tempo tão meiras comunicações sobre eletricidade a foi a eleição como membro estrangeiro da
longo. Nos anos seguintes, vários filósofos Collinson. Nelas, discutiu aqueles que se Académie Royale des Sciences, em 1772.
naturais conseguiram descrever as princi- tornariam seus principais conceitos, tais Quando morreu, em 1790, era uma figu-
pais propriedades da garrafa e os efeitos como: teoria de um único fluido elétrico, ra ilustre e conhecida, ganhando várias
que ocasionava [6, p. 316-321]. Nesse atmosfera elétrica, poder das pontas e a biografias, relatos e reverências póstumas.
momento, apareceram os primeiros estu- eletrização positiva e negativa. Nos anos
dos de Franklin. seguintes, Franklin continuou a enviar Principais conceitos e
cartas a Collinson, uma delas contendo o experimentos
Benjamin Franklin e a eletricidade que provavelmente foi seu mais impor- Nesta seção, apresento os principais
Os primeiros passos de Franklin na tante ensaio em eletricidade, o texto Opin- conceitos e experimentos em eletricidade
eletricidade foram dados em meados de ions and conjectures desenvolvidos por
1743. Nesse ano, ele assistiu a conferên- concerning the proper- Franklin e publicados
A a garrafa de Leiden
cias do reverendo escocês Archibald Spen- ties and effects of the no Experimentos e
funcionava como um tipo
cer (1698?-1760), que discutiu, dentre electrical matter [Opi- observações. Busco
primário de capacitor, podendo
outros assuntos, alguns fenômenos elé- niões e conjecturas apontar não apenas
acumular eletricidade por um
tricos. Dois anos mais tarde, Peter Collin- sobre as propriedades seus aspectos favorá-
longo tempo
son (1694-1768), frequente colaborador e efeitos da matéria veis, mas também
de Franklin e seus companheiros estadu- elétrica], escrito em suas falhas, sempre à
nidenses, enviou como presente uma des- 1749. Nesse trabalho, Franklin aprofun- luz do contexto em que foram produzidos.
crição de “experimentos alemães” e um dou conceitualmente suas ideias e apre- Isso significa que a análise das ideias de
tubo de vidro com instruções para realizar sentou experimentos novos, incluindo o Franklin procura evitar anacronismos e
alguns fenômenos elétricos. Os “experi- famoso experimento da guarita, desenvol- interpretações distorcidas que vangloriem
mentos alemães” traziam, principalmen- vido para demonstrar que as nuvens em o autor em detrimento de um estudo mais
te, as ideias de Bose. Inspirado por esses tempestades estavam eletrizadas. Resumi- cuidadoso de suas contribuições.

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klin chamou objetos desse tipo de
“não elétricos”.
A matéria e a atmosfera elétricas
Para Franklin, os fenômenos da eletri-
cidade eram causados pela manifestação
de um fluido elétrico elástico, sutil e im-
possível de ser criado ou destruído. Partí-
culas dessa matéria elétrica se repeliam,
mas eram fortemente atraídas pela ma-
téria comum. Por isso, havia matéria elé-
trica em todos os corpos naturais. A ele-
trização de um corpo dependeria da
ausência ou excesso de fluido elétrico nes-
ses corpos. A garrafa de Leiden seria uma
das principais evidências da existência de
um tipo particular de matéria, uma vez
que ela demonstrava que algo poderia ser
armazenado, sendo distinto de outras ma-
térias, pelos efeitos que gerava [12, p. 306-
309].
Franklin afirmou que os corpos se-
riam como “esponjas” para a matéria elé-
trica. Quando fornecíamos a eles um ex-
cesso de matéria elétrica, essa não era em-
purrada para seus interiores, mas ficava
ao redor deles, formando o que Franklin
denominou de “atmosferas elétricas”. As-
sim como a água transbordava de uma
esponja já cheia, a matéria elétrica exce-
dente “transbordava” ao redor do corpo
eletrizado. Daí a analogia com as espon-
jas. Embora o conceito de atmosferas elé-
tricas também possa ser encontrado em
outros filósofos naturais anteriores a
Franklin, ele foi o primeiro a empregá-lo
para explicar a interação entre corpos ele-
trizados. Outra contribuição original foi
atribuir às atmosferas elétricas a mesma
forma do corpo eletrizado que envolvia.
O poder das pontas
Figura 5: Reprodução do experimento da guarita na França, em 1752. Por meio desse O segundo conceito fundamental
experimento, era possível atestar a natureza elétrica dos raios em tempestades. Pela trabalhado por Franklin foi o poder das
figura, é possível notar o observador dentro da guarita e a longa haste metálica. Fonte: pontas. Segundo ele, corpos pontudos –
Ref. [13, p. 291]. como um punhal ou uma agulha –
tinham a propriedade de extrair ou lançar
Para facilitar a leitura da discussão envolvia a existência de partículas fluido elétrico de corpos eletrizados. Um
abaixo, que envolve termos e ideias do sé- de matéria elétrica ao redor do cor- dos experimentos descritos por ele
culo XVIII, listo algumas informações im- po. envolveu uma bala metálica (de armas
portantes: • Nem Franklin nem seus coetâneos de fogo) sobre a boca de um frasco de
• No início do século XVIII, o eletro- pensou em elétrons ou prótons. A vidro eletrizado e uma bola de cortiça em
magnetismo enquanto área de ideia de matéria, fluido ou fogo elé- contato com ela. Após a eletrização, a
estudo não existia. Fenômenos da trico era semelhante à da matéria bola e a bala se repeliam. Se a ponta de
eletricidade e do magnetismo eram que formava os corpos naturais. A um punhal fosse aproximada, a
estudados por vias diferentes, em- eletrização positiva e negativa tinha repelência seria “destruída” e as duas
bora os filósofos naturais notassem relação com o excesso ou a falta de voltavam a se tocar. Nesse caso, Fran-
algumas semelhanças entre eles – matéria elétrica. klin acreditava que a ponta extraía o
a atração e a repulsão, por exem- • Os objetos isolantes eram chamados fluido da bala e da bola, eliminando a
plo. de “elétricos”, pois conseguiam ser repelência. Na segunda carta a Collinson,
• Não existia o conceito de campo elé- eletrizados. Consequentemente, enviada em 1747, ele discutiu outras va-
trico. A ideia de atmosferas elétricas objetos condutores eram chamados riantes, incluindo casos em que as pontas
de Franklin não pressupunha um de “não elétricos”. Na época, o ter- lançavam fluido elétrico e impediam a
tipo primordial de campo, pois ela mo “condutor” já existia, mas Fran- eletrização dos materiais.

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Para mostrar que as pontas lançarão po] não-elétrico para receber o que é Mesmo com problemas, a parte con-
assim como extrairão o fogo elétrico lançado. Pois, o ar, embora um elétrico ceitual do poder das pontas não invalidou
coloque uma agulha longa e afiada per se, ainda tem sempre mais ou me- a constatação experimental. Corpos pon-
sobre a bala [de ferro] e você não poderá nos água e outras matérias não elétri- tudos tinham uma propriedade particu-
eletrizá-la, de modo que a faça repelir cas misturadas a ele, e essas atraem e lar, que facilitava a extração ou lançamen-
a bola de cortiça. Ou coloque uma agu- recebem o que é então descarregado to de fluido elétrico. Relatos anteriores
lha no final de um cano de uma arma [12, p. 60]. sobre o poder das pontas já existiam em
suspenso ou de uma barra de ferro, de textos de Watson e Gray, por exemplo,
modo que ela aponte para além [do cano Embora a explicação de Franklin sobre mas foi Franklin quem o incorporou den-
ou da barra] como uma pequena baio- como corpos pontudos eletrizados perde- tro de uma única teoria, utilizando-o para
neta. E, enquanto permanece lá, o cano riam facilmente seu fluido elétrico tenha explicar outros fenômenos, por exemplo,
da arma ou a barra não podem, aproxi- sido elegante e intuitiva, a situação inversa aqueles envolvendo os para-raios.
mando o tubo à outra extremidade, ser não contou com abordagem semelhante.
Franklin buscou comparar como corpos Eletrização positiva e negativa
eletrizados, de maneira a dar em uma
faísca, [pois] o fogo [elétrico está] conti- pontudos e embotados não eletrizados ex- O conceito de eletrização positiva e ne-
nuamente saindo da ponta de forma trairiam fluido elétrico de corpos eletri- gativa, ou mais e menos, foi baseado no
silenciosa. No escuro, você pode vê-lo zados, baseando-se em uma analogia com excesso ou falta de fluido elétrico em um
fazer a mesma aparição que faz no caso arrancar pelos da crina de um cavalo. Para corpo. Um corpo eletrizado positivamente
antes mencionado [12, p. 5]. ele, corpos pontudos extraíam fluido elé- possuía um excedente de fluido elétrico.
trico aos poucos, como se arrancássemos Isso implicava que esse fluido elétrico ha-
No ensaio Opiniões e conjecturas, Fran- via sido obtido de outro corpo, este ficando
pelo por pelo da crina. Em contrapartida,
klin forneceu mais detalhes sobre o com- com menos do que
corpos embotados ex-
portamento do fluido elétrico em corpos Para Franklin, corpos pontudos naturalmente possui-
traíam fluido elétrico
pontudos, utilizando como exemplo um tinham a propriedade de ria e, portanto, eletri-
de uma vez só, como
corpo em forma de pentágono irregular. extrair ou lançar fluido elétrico zado negativamente.
se arrancássemos um
Na Fig. 6, extraída do Experimentos e obser- Para mostrar a
punhado de pelos da
vações, notamos que o corpo está rodeado validade de seu argu-
crina em um único
por uma atmosfera elétrica, representada mento, Franklin discutiu um experimento
momento, ou seja, algo muito mais difí-
pela parte tracejada. envolvendo três pessoas, duas delas sobre
cil. Franklin não forneceu outros detalhes,
Para Franklin, a matéria do corpo um suporte de cera – portanto, isoladas –
o que sugere a dificuldade em estabelecer
exercia forte atração pela matéria elétrica, e a terceira em contato com o chão. Uma
uma explicação tão coerente quanto a an-
mas a parte mais pontuda da atmosfera das pessoas sobre a cera atritava um tubo
terior. Logo após descrever essa ideia, ele
– compreendida por L e M – estaria mais de vidro e a segunda tocava apenas o tubo.
reconheceu sua fragilidade:
distante do corpo, resultando em uma Como essas duas estavam isoladas sobre
atração menor sobre a matéria elétrica. Essas explicações do poder e do funcio- a cera, as únicas fontes de fluido elétrico
Atração menor somada à inerente repul- namento das pontas, quando me ocor- eram elas mesmas e o tubo de vidro. O
são entre a matéria elétrica fariam com reram pela primeira vez, e enquanto atrito no tubo fazia com que a pessoa que
que fosse mais fácil corpos não eletrizados inicialmente flutuaram em minha o atritava perdesse fluido elétrico para ele,
próximos extraí-la, por atração. Ele con- mente, pareceram perfeitamente satis- ficando eletrizada negativamente. Já a
cluiu: fatórias. Mas, agora que eu as escrevi, pessoa em contato com o tubo receberia
e as considerei mais de perto em preto esse fluido elétrico excedente, ficando ele-
Nessas considerações, supomos que e branco, devo confessar que tenho trizada positivamente. Portanto, teríamos
corpos eletrizados descarregam mais algumas dúvidas sobre elas. Ainda as- duas pessoas com quantidades de fluido
facilmente suas atmosferas em corpos sim, como agora não tenho nada me- elétrico diferentes, uma com um excesso
não eletrizados, e a uma maior distân- lhor para oferecer no lugar delas, não e outra com escassez. Se essas duas pes-
cia de seus ângulos e pontas que a par- as descarto. Pois, mesmo uma solução soas se tocassem, um forte choque seria
tir de seus lados lisos. Aquelas pontas ruim lida, e suas falhas descobertas, sentido. Se qualquer uma delas tocasse a
descarregarão também no ar, quando tem muitas vezes dado origem a uma terceira pessoa, com sua quantidade natu-
o corpo possuir demasiada atmosfera boa [solução] na mente de um leitor en- ral de fluido elétrico, outro choque seria
elétrica, sem aproximar qualquer [cor- genhoso [12, p. 62]. sentido, embora menos intenso. Em suas
próprias palavras, disponíveis na segunda
carta a Collinson, de 1747, Franklin disse:
Nós supomos, como citado anterior-
mente, que o fogo elétrico é um ele-
mento comum, do qual cada uma das
três pessoas mencionadas anterior-
mente possui quantidades iguais, an-
tes de qualquer operação ser iniciada
com o tubo. [A pessoa] A, que está sobre
a cera e fricciona o tubo, coleta o fogo
elétrico a partir de si mesma para o vi-
dro; e sendo sua comunicação com a
Figura 6: A atmosfera elétrica ao redor de um corpo pontudo. Aquela compreendida por reserva comum [o chão] impedida pela
L e M sofreria menor atração da matéria do corpo. Fonte: Ref. [12, Plate I]. cera, seu corpo não é imediatamente

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suprido [de fogo elétrico] de novo. [A pes- [15, p. 851]. Quando a matéria elétrica elétrica, a única maneira de movê-la seria
soa] B (que também está sobre a cera), estava no corpo, as repulsões entre partí- revestir suas duas superfícies com mate-
passando o nó de seu dedo próximo ao culas do mesmo tipo – elétrica e comum riais não elétricos, ou seja, condutores.
tubo, recebe o fogo que foi coletado a – seriam atenuadas; porém, ao retirá-la Quando um condutor primário trans-
partir de A pelo tubo; e sua comunica- dos corpos em uma eletrização negativa, mitia fluido elétrico pelo fio da garrafa,
ção com o estoque comum sendo da a repulsão entre partículas de matéria co- ou seja, a carregava, esse fluido excedente
mesma forma impedida, retém a quan- mum se sobressaía. Dessa forma, dois cor- gerava uma atmosfera elétrica sobre a su-
tidade adicional recebida. Para [a pessoa] pos eletrizados negativamente se repeliam perfície de vidro interna, mas espalhada
C, estando no chão, ambos parecem estar por conta da repulsão entre as partículas pelo não elétrico interno. Para Franklin,
eletrizados. Pois, possuindo somente a de matéria comum de cada um, enquanto isso eletrizava positivamente esse super-
quantidade média de fogo elétrico, recebe um corpo eletrizado negativamente atraía fície e, pela repelência entre as partículas
uma faísca ao se aproximar de B, que um neutro por conta da presença de da matéria elétrica, o fluido elétrico da su-
possui uma quantidade excedente, mas matéria elétrica nesse último. Franklin não perfície externa era “empurrado” para
dá [uma faísca] para A, que possui uma comentou as alterações de Aepinus, pro- fora, em direção ao não elétrico externo.
quantidade inferior. Se A e B se vavelmente porque nessa época – final da Estando este aterrado, o fluido elétrico era
aproximam para se tocar, a faísca é mais década de 1759 – ele já não estava tão en- transmitido ao chão, deixando a superfície
forte, porque a diferença entre eles é volvido com a filosofia natural quanto externa do vidro eletrizada negativamen-
maior. Depois de tal toque, não há antes. te. A garrafa estava, portanto, efetiva-
nenhuma faísca entre eles e entre C, por- mente carregada. No “Opiniões e conjec-
que o fogo elétrico em todos foi reduzido O funcionamento da garrafa de turas”, ele escreveu:
à igualdade original [12, p. 8]. Leiden
Nem nós temos nenhuma maneira de
Em uma segunda situação, caso as Um dos pontos altos dos estudos de mover o fluido elétrico no vidro, a não
duas pessoas sobre a cera se tocassem du- Franklin em eletricidade foram seus expe- ser uma; que é por cobrir parte das
rante a fricção no tubo, nada aconteceria, rimentos com garrafas de Leiden ou obje- duas superfícies do vidro fino com
pois o fluido elétrico teria apenas circulado tos similares (Fig. 7). É importante frisar [materiais] não-elétricos, e então jo-
por elas e o tubo. Sendo assim, estava con- que Franklin não utilizou o termo “gar- gando uma quantidade adicional desse
firmado para Franklin que a eletrização rafa de Leiden” nos escritos, fazendo refe- fluido [elétrico] em uma superfície, que
positiva ou negativa nada mais seria que rência a “frascos de vidro” ou “garrafa de espalhando-se no não-elétrico, e sendo
um rearranjo das quantidades de fluido Musschenbroek”. Em 1747 e 1748, ele en- limitado por ele até aquela superfície,
elétrico. viou a Collinson duas age, por sua força repulsiva, nas partí-
Novamente, ar- Franklin acreditava que o vidro cartas descrevendo culas de fluido elétrico contidas na
gumentos semelhan- desempenhava um papel uma série de experi- outra superfície [do vidro], e as leva
tes podem ser encon- fundamental no carregamento mentos com as garra- para fora do vidro para o não-elétrico
trados em outros da garrafa de Leiden fas. Uma explicação daquele lado, de onde são descarregadas
autores do período, mais detalhada para o e, [para que] em seguida, aquelas adi-
como Watson. Em sua Sequência, ele já funcionamento delas foi descrita no Opi- cionadas no lado carregado possam
havia mencionado que os tubos funcio- niões e conjecturas, enviado em 1749. entrar. Mas, quando isso é feito, não
navam como bombas, sugando a eletri- Segundo Franklin, o aspecto funda- há mais [fluido elétrico] no vidro, nem
cidade do chão para corpos não elétricos mental da garrafa era o vidro. Pelo fato menos do que antes, somente o tanto
isolados. Dessas observações, ele aparen- de o vidro atrair fortemente a matéria que saiu de um lado e foi recebido do
temente não concluiu nada relevante [6,
p. 299, 329]. O próprio Franklin comen-
tou em sua carta que Watson demons-
trara algo similar, mas que se enganara
em suas conclusões.
O conceito de eletrização positiva e
negativa enfrentava um problema quando
associado à ideia de atmosferas elétricas.
Sabia-se que corpos com o mesmo tipo
de eletrização se repeliam, o que era facil-
mente explicado no caso da eletrização
positiva. Ambos com excesso de matéria
elétrica se repeliam porque a repulsão
natural entre partículas desse tipo era am-
plificada. Porém, como explicar a repulsão
entre corpos eletrizados negativamente,
quando não há atmosfera elétrica ou mes-
mo a quantidade natural de fluido elétrico
neles? E a atração de corpos eletrizados
negativamente com corpos neutros? Uma
proposta de solução a esse problema foi
dada mais tarde por Franz Aepinus (1724-
1802), que sugeriu a existência de repul-
são entre partículas da matéria comum Figura 7: Garrafas de Leiden utilizadas por Franklin. Fonte: Ref. [12, Plate 1].

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outro [12, p. 75]. fluido elétrico, que entram em ambas ranjo: uma guarita era colocada acima de
as superfícies ao mesmo tempo, não um edifício alto e dentro dela ficava uma
Nesse sentido, não havia inserção
podem atravessar, ou passar e repassar pessoa sobre um suporte isolante, do qual
propriamente de fluido na garrafa, uma
de uma superfície a outra, e então se sairia uma longa haste metálica pontuda,
vez que sua quantidade total permanecia
misturarem. No entanto, embora as apontada para o céu (Fig. 9). Quando nu-
a mesma. Estar carregada significava que
partículas do fluido elétrico, embebidas vens passassem próximas à haste pontu-
uma superfície tinha um excedente de flui-
por cada superfície, não podem elas da, pelo seu poder de extrair fluido elétrico,
do e outra uma falta. A descarga produ-
mesmas passar através daquelas [par- este seria transmitido ao longo dela e o
zida pela garrafa tratava-se, assim, do
tículas] da outra [superfície], sua repe- homem poderia observar faíscas ao apro-
reestabelecimento do equilíbrio de fluido
lência pode, e, por isso, significa que ximar os nós dos dedos. Ele continuou:
elétrico nas duas superfícies do vidro.
agem umas sobre as outras [12, p. 76-
O aspecto fundamental da ideia de Se algum perigo ao homem for perce-
77].
Franklin era que não havia passagem de bido (embora acho que não existiria
fluido elétrico de uma superfície de vidro Ainda que a ideia de Franklin sobre a nenhum), deixe ele ficar no chão de sua
a outra. Ele propôs que as duas superfícies interação entre os fluidos elétricos nas guarita, e ocasionalmente traga para
compreendiam exatamente a metade da superfícies interna e externa guarde seme- perto da haste o laço de um fio que pos-
espessura do vidro e que não poderia pas- lhança com os modernos conceitos de sui uma das extremidades amarradas
sar fluido elétrico pela linha divisória en- indução elétrica, ressalto que esses só fo- aos fios condutores [aterrados], ele o
tre as duas (Fig. 8). ram plenamente desenvolvidos no século segurando por um cabo de cera, tal que
Para Franklin, isso tinha relação com XIX. De modo geral, os argumentos de as faíscas, se a haste for eletrizada, gol-
o resfriamento do vidro em seu processo Franklin são coerentes com o comporta- peará da haste para o fio, e não o afe-
de fabricação, o que deixava seus poros mento da garrafa, mas eles não escapam tará [12, p. 66].
muitos estreitos. A repelência entre os flui- de alguns problemas. Em sua argumen-
dos de um lado e de outro, contudo, pode- tação, ele afirmou que cada superfície do Pela descrição, é possível perceber que
ria ser comunicada. vidro tinha metade de sua espessura to- Franklin não considerava o experimento
tal, mas não explicou por que a divisão demasiadamente perigoso. Isso porque
Mas, eu suponho mais, que no resfria-
ocorria exatamente no meio. Ademais, a possivelmente ele imaginava que a haste
mento do vidro, sua textura se torna
razão pela qual a coletaria o fluido
mais próxima no meio, e forma uma O experimento da guarita tinha
repelência entre os elétrico silenciosa-
espécie de partição, na qual os poros o propósito de determinar se as
fluidos elétricos em mente, não por meio
são tão estreitos que as partículas do nuvens em tempestades
cada superfície per- de uma descarga
manecia após essa di- estavam eletrizadas abrupta. Franklin não
visão não foi comen- cogitou a incidência de
tada. Posteriormente, Franklin reconheceu um raio sobre a haste, o que certamente
a fragilidade dessa hipótese [14, p. 476, traria risco à vida do experimentador.
n. ‡], embora ela não deixe de ser bastante Portanto, o experimento da guarita não é
inventiva e elucidativa. um para-raios, tendo sido desenvolvido
especialmente para verificar a eletrização
Os experimentos da guarita e da
pipa
A descrição dos experimentos da gua-
rita e da pipa tem relação com duas dis-
cussões anteriores de Franklin: o poder das
pontas e a formação dos temporais com
raios e trovões. Essa última foi examinada
em uma carta de 1749, endereçada a John
Mitchel (1711-1768) [16]. Nela, Franklin
comentou sobre como seriam formadas
nuvens eletrizadas, a partir do vapor
d’água vindo do mar. Resumidamente, ele
considerou as nuvens como grandes
reservatórios de eletricidade e os raios uma
consequência da transferência de fluido
elétrico de uma nuvem eletrizada para um
obstáculo não eletrizado, fosse uma nu-
vem, montanha ou mesmo uma árvore
ou edifício. Nessa carta, ele fez, pela pri-
meira vez, uma associação mais detalhada
entre os raios e as faíscas obtidas por gar-
rafas de Leiden.
Figura 8: Segundo Franklin, as superfícies O experimento da guarita buscava
do vidro em uma garrafa de Leiden, por determinar se as nuvens em temporais
exemplo, compreendiam exatamente a com raios e trovões estavam eletrizadas Figura 9: O experimento da guarita,
metade de sua espessura. Fonte: elaborado ou não. Ele foi descrito no “Opiniões e con- ilustrado no Experimentos e observações.
pelo autor. jecturas” e respaldava-se no seguinte ar- Fonte: Ref. [12, Plate 1].

Física na Escola, v. 16, n. 2, 2018 As contribuições de Benjamin Franklin para a eletricidade 33


das nuvens. Uma adaptação do experi- da com uma cauda, laço e barbante,
mento para torná-lo um para-raios en- subirá no ar, como aquelas feitas de
volveria aterrar a haste ao solo, o que papel. Porém, essa sendo feita de seda,
Franklin sugeriu alguns trechos antes: é mais apropriada para enfrentar a
umidade e vento de uma tempestade
Eu digo, se essas coisas são assim, não
com raios e trovões sem rasgar. No to-
poderia o conhecimento desse poder das
po da tira vertical da cruz deve ser afi-
pontas ser útil para a humanidade, em
xado um fio pontudo muito afiado,
preservar casas, igrejas, navios etc. do
erguendo-se um pé [≈ 30 cm] ou mais
alcance dos raios, por nos direcionar a
acima da madeira. Ao final do bar-
fixar nas partes mais altas desses edi-
bante, próximo à mão, deve ser amar-
fícios hastes verticais de metal, feitas
rado um laço de seda, e onde a seda e o
afiadas como uma agulha e douradas
barbante se unem, uma chave deve ser
para prevenir o enferrujamento, e do
amarrada. [12, p. 111-112]
pé dessas hastes um fio para baixo do
exterior do prédio, para o chão, ou para Ao empinar a pipa em meio a um
baixo ao redor de uma das mortalhas temporal com raios e trovões, seria pos-
de um navio, e para baixo ao lado dela sível coletar faíscas ao aproximar os nós
até que ela atinja a água? Essas hastes dos dedos à chave ou mesmo carregar
pontudas provavel- uma garrafa de Leiden
mente não extrai- O experimento da pipa foi uma (Fig. 11). Há indícios
riam o fogo elétrico adaptação do experimento da de que teria feito o Figura 11: “Franklin extraindo eletricidade
silenciosamente de guarita experimento antes de do céu” (c. 1816), de Benjamin West
uma nuvem antes ouvir sobre os relatos (1738-1820). Esse quadro ilustra como o
que ela chegasse perto o suficiente para franceses sobre o experimento da guarita experimento da pipa enraizou-se no
golpear, e assim nos assegurariam [17, p. 69], mas até os dias atuais não há imaginário popular sobre os cientistas,
desse mal mais súbito e terrível? [12, certeza de que isso realmente ocorreu. mesmo ele não tendo tido tamanha
p. 65-66] De qualquer forma, não parece que a importância para o próprio idealizador.
pipa tenha desempenhado um papel fun- Fonte: Philadelphia Museum of Art.
Como apontei anteriormente, o expe-
damental, como as anedotas populares Disponível em: https://
rimento da guarita foi reproduzido de ma-
sugerem. Ainda que mais prático, o expe- www.philamuseum.org/collections/per-
neira bem-sucedida pelos franceses.
rimento da guarita era, sem dúvida, mais manent/57044.html (acesso em março de
Porém, nem todas as reproduções foram
seguro. Em sua autobiografia, Franklin 2018).
exitosas. Georg Richmann (1711-1753)
se referiu ao experimento da pipa apenas
morreu após repetir o experimento em São
Petersburgo, provavelmente porque não como um caso “similar” ao da guarita,
utilizou um suporte isolante [17, p. 85] este sim, classificado como “capital” para
(Fig. 10). Para piorar, alguns temiam os o estabelecimento de novas propriedades
efeitos dos para-raios, acreditando, por da eletricidade [18, p. 121].
exemplo, que ao aterrar a haste, os raios Mas, por que o experimento ficou tão
seriam acumulados no solo, ocasionando famoso? Isso provavelmente se deveu a
terremotos [14, p. 511]. Apesar desses per- Joseph Priestley (1733-1804), que publi-
calços, o sucesso do experimento em mos- cou um livro sobre história da eletricidade
trar que as nuvens em temporais com em 1767, com a contribuição de vários
raios e trovões estavam eletrizadas era evi- estudiosos na área, incluindo Franklin. No
dente, contribuindo para tornar Franklin livro, ele deu a entender que Franklin
célebre na Europa. efetivamente fez o experimento, mas não
O experimento da pipa foi uma varia- o comunicou por receio de ser ridiculari-
ção do experimento da guarita. Aparen- zado. Segundo Priestley, “isso aconteceu
temente, Franklin tinha em mente uma em junho de 1752, um mês depois que os
proposta mais prática para verificar a ele- eletricistas na França tinham verificado a
trização das nuvens, que não envolvesse mesma teoria, mas antes de ele ter ouvido
todo o aparato de construir uma guarita qualquer coisa que eles tivessem feito”
no alto de um edifício. Em uma carta [19, p. 181]. Outros historiadores repli-
sucinta a Collinson, enviada em 1752, ele caram essa história, levando à conhecida
deu direções sobre como construir a pipa anedota sobre Franklin e o experimento
para esse fim: da pipa [1, p. 152].

Faça uma pequena cruz de duas tiras Conclusão


de cedro, os braços tão longos de forma Figura 10: Morte de Richmann, após ten- Os estudos de Franklin sobre a eletri-
a alcançar os quatro cantos de um lar- tar reproduzir os experimentos de Fran- cidade influenciaram muitos filósofos
go lenço fino de seda quando estendido. klin. Esse evento diminuiu o entusiasmo naturais posteriores e contribuíram sig-
Amarre os cantos do lenço às extremi- a respeito da invenção de Franklin, mas nificativamente para uma maior compre-
dades da cruz, de modo que tenha o não minimizou sua importância entre os ensão dos fenômenos elétricos. Mais que
corpo de uma pipa, a qual sendo supri- filósofos naturais. Fonte: Ref. [13, p. 293]. apenas empinar uma pipa ou apresentar

34 As contribuições de Benjamin Franklin para a eletricidade Física na Escola, v. 16, n. 2, 2018


a ideia de para-raios, Franklin desenvolveu de suas realizações, considerando-o como subsidiando abordagens mais críticas no
um conjunto de conceitos para a eletrici- um homem de seu tempo, que estudou ensino.
dade, imerso em um contexto em que os os principais fenômenos conhecidos e
estudos nessa área avançavam. propôs explicações a eles, contrapondo Agradecimentos
Este artigo buscou trazer uma ima- algumas ideias vigentes e elaborando O autor agradece a colaboração inicial
gem mais adequada das contribuições de outras novas. Entender mais de Thátyusce Bonfim e o apoio da Funda-
Franklin para os estudos em eletricidade corretamente o papel de Franklin para a ção de Amparo à Pesquisa do Estado de
do início do século XVIII. Acredito que, história da eletricidade pode abrir São Paulo (FAPESP, processo 2014/08359-
dessa maneira, seja possível evitar uma caminhos para compreendermos a 0) para a realização das pesquisas que ori-
abordagem demasiadamente idealizada natureza do conhecimento científico, ginaram este trabalho.

Referências
[1] C.C. Silva e A.C. Pimentel, Caderno Brasileiro de Ensino de Física 25 25, 141 (2008).
[2] L.R.C. Cooley, Natural Philosophy for Common and High Schools (Charles Scribner’s Sons, New York, 1882).
[3] S.L.B. Boss, A.K.T. Assis and J.J. Caluzi, Stephen Gray e a Descoberta dos Condutores e Isolantes: Tradução Comentada de seus Artigos sobre Eletricidade
e Reprodução de seus Principais Experimentos (Cultura Acadêmica, São Paulo, 2012).
[4] J.G. Doppelmayr, Neu-entdeckte Phænomena von Bewunderns-würdigen Würckungen der Natur ((Nurenburg, 1774), tab. II, disponível em http://
books.google.com.br/books?id=ek1NAAAAcAAJ&printsec=frontcover&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false.
[5] S.L.B. Boss e J.J. Caluzi, Revista Brasileira de Ensino de Física 29, 635 (2007).
[6] J.L. Heilbron, Electricity in the 17th and 18th Centuries: A Study of Early Modern Physics (University of California Press, Berkeley/ Los Angeles/
London, 1979).
[7] C.C. Silva, in: Brazilian Studies in Philosophy and History of Science: an Account of Recent Works, edited by D. Krause and A. Videira (Dordrecht,
Springer, 2011), p. 131-140.
[8] W.T. Jardim e A. Guerra, Caderno Brasileiro de Ensino de Física 34, 774 (2017).
[9] C.C. Silva, P. Heering, History of Science 56, 314 (2018).
[10] W. Larden, Electricity for Public Schools and Colleges (New York/Bombai, Longmans, Green and Co., 1903).
[11] I.B. Cohen, Benjamin Franklin’s Experiments (Harvard University Press, Cambridge, 1941).
[12] B. Franklin, Experiments and Observations on Electricity, Made at Philadelphia in America (David Henry, London, 1769).
[13] L. Figuier, Les Grandes Inventions Anciennes et Modernes dans les Sciences, l’Industrie et les Arts (L. Hachette, Paris, 1870).
[14] I.B. Cohen, Franklin and Newton: an Inquiry into Speculative Newtonian Experimental Science and Franklin’s Work in Electricity (The American
Philosophical Society, Philadelphia, 1956).
[15] I.B. Cohen, in: Dicionário de Biografias Científicas, v. 1, editado por C. Benjamin (Contraponto, Rio de Janeiro, 2007).
[16] B.A. Moura e T. Bonfim, Caderno Brasileiro de Ensino de Física 34, 460 (2017).
[17] I.B. Cohen, Benjamin Franklin’s Science (Harvard University Press, Cambridge, 1990).
[18] B. Franklin, The Autobiography of Benjamin Franklin (Dover Publications, Mineola/New York, 1996).
[19] J. Priestley. The History and Present State of Electricity, With Original Experiments (Cadell, London, 1767).

Notas
1
O leitor certamente perceberá esse fato ao ver as referências bibliográficas utilizadas neste artigo, quase todas em inglês.
2
Os dois artigos aqui referenciados trazem novas e interessantes interpretações sobre a invenção da garrafa de Leiden. O texto em inglês, de C.C.
Silva e P. Heering, traz, particularmente, uma reinterpretação historiográfica sobre a invenção, apresentando uma versão diferente da geralmente
encontrada em livros e artigos sobre o assunto.
3
Leiden era a cidade de Musschenbroek.
4
Essa, na realidade, foi a primeira parte da primeira edição. Outras duas partes foram publicadas em 1753 e 1754, complementando o texto de
1751. Juntas, elas formam o que é conhecida como a primeira edição do livro de Franklin. A publicação em partes de seu texto também foi
feita na segunda (1754, em dois momentos diferentes) e na terceira edições (1760 e 1765). A quarta e a quinta edição foram publicadas como
um texto único. Ver Ref. [11].

Física na Escola, v. 16, n. 2, 2018 As contribuições de Benjamin Franklin para a eletricidade 35

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