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DOI: 10.1590/1413-81232017222.

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Poulain JP. Sociologia da obesidade. São Paulo: por consequência, o autor aborda a estigmatização

RESENHAS BOOK REVIEWS


Editora Senac São Paulo; 2013. provocada pelo sobrepeso nas sociedades modernas.
Ela seria capaz de alterar trajetórias sociais intra e
Daniel Coelho de Oliveira 1 intergeracionais; nesse sentido, as representações
negativas e estereotipadas poderiam funcionar como
1
Universidade Estadual de Montes Claros as self-fulfilling prophecy, ou seja, trajetórias que se
tornariam autorrealizáveis nos diferentes cursos
A obesidade pode ser analisada a partir da perspectiva dos sujeitos.
das ciências sociais? Poulain assume o convite mais A retórica desenvolvida no livro destaca que a
ou menos explícito dos especialistas médicos da luta contra a obesidade deve ser examinada com
obesidade, os quais, de um modo geral, a designam atenção. Essa posição se fundamenta na visão de que
como um problema da “sociedade”. Nesse cenário, o fracasso do tratamento contra obesidade pressupõe
um dos maiores desafios está relacionado ao fato de a necessidade de um deslocamento do plano curativo
a abordagem temática conter elevadas “porções” de para o preventivo. O autor argumenta que intelec-
moralidade. Como apontam Fischle e Masson1, o tuais como Michel Focault e Norbert Elias podem
debate sobre alimentação, em determinadas situações, ser resgatados. O primeiro, “Para extrair do ativismo
pode ser mais moralizante do que questões ligadas à antiobesidade o retorno de um dos vários modelos
religião e à sexualidade. Com ousadas pretensões, o de uma política de controle dos indivíduos”3. Já o
livro pretende focalizar as dimensões sociais da obesi- segundo poderia ser utilizado para situar novamente,
dade. Entre elas, algumas são mais explícitas, como a em uma longa perspectiva histórica, o processo de
diferenciação social da corpulência; enquanto outras interiorização do locus, controle que hoje em dia
são muito menos perceptíveis, como o impacto da torna-se visível em várias esferas.
nutricionalização ou da medicalização, ou, ainda, os Ao adotar uma leitura crítica denominada como
efeitos da estigmatização das pessoas obesas. “sociologia do conhecimento sobre obesidade”, Pou-
Logo no prefácio da edição brasileira, o autor lain argumenta que ela seria responsável por tratar
destaca que a obesidade é um complexo fenômeno; da produção do saber científico como produto das
trata-se de um problema ao mesmo tempo de saúde interações entre os meios de pesquisa e os diferentes
pública e de estigmatização. De acordo com Poulain, grupos de pressão, sejam eles políticos, econômicos
a obesidade ganhou o primeiro plano do debate midi- ou de consumidores. Conforme já destacou Latour3,
ático e político, desde que a Organização Mundial de o conhecimento científico é uma construção social,
Saúde (OMS) passou a considera-la como “epidemia isto é, o resultado de uma série de fenômenos de
mundial”. O autor tranquiliza o leitor ao destacar interação que escapam em maior ou menor grau à
que o discurso clássico sobre a obesidade não será consciência de seus atores. A abordagem se contra-
negligenciado. A vertente apresenta a obesidade como põe à ideia de uma ciência “pura”, “desencarnada” e
consequência de uma transformação nos modos de totalmente desconectada dos interesses dos indiví-
vida, que se supõe ter sido capaz de alterar o balanço duos que a praticam.
energético do homem contemporâneo. O desequilí- Na trilha do fenômeno da obesidade, o autor
brio é apontado como produto da redução do gasto de destaca que a mesma, ainda, não é vista como uma
energia, e, por outro lado, o aumento do consumo de questão de saúde pública, nem como questão social,
calorias, motivado principalmente pelo barateamento e tampouco política. Para Poulain, o reconhecimento
dos alimentos. da obesidade como uma questão de saúde pública
Nos capítulos iniciais, Poulain utiliza uma série passa por duas condições. A primeira seria a institu-
de informações estatísticas para demonstrar que se, cionalização da temática, com o estabelecimento de
no passado, a obesidade era um problema dos “países sociedade de especialistas, de revistas especializadas,
ricos”, hoje existe um crescimento exponencial nos de de serviços também especializados nos hospitais. A
renda baixa ou média, sobretudo nas populações dos segunda passaria pela transformação de seu estatuto
perímetros urbanos. A obesidade também é apresen- epistemológico, com o deslocamento de sua defini-
tada como uma doença de “transição demográfica”, ção qualitativa, com sua designação enquanto doen-
classificada como “sociopatias”, consequências de um ça, e, enfim, com a utilização do termo “epidemia”.
conjunto de transformações de práticas alimentares A denominação da obesidade como epidemia
e do ambiente social da alimentação. Tal abordagem está relacionada à sua socialização, a qual, desde
se aproxima do fenômeno que Fischer2 denominou então, diz respeito à sociedade como um todo. Ela
de “gastro-anomia”. também contribui para que se considerem os modos
Ao final da primeira parte do livro, é proposto um de vida como determinantes, e se articule o problema
debate sobre a relação entre obesidade e posição social; da má alimentação. Para Poulain, é necessário obser-
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Resenhas Book Reviews

var mais de perto os pontos de controvérsia por da lentidão do ajuste entre a oferta de alimentos
trás da obesidade. “A perspectiva que adotaremos e as necessidades energéticas que as condições
buscará identificar e compreender o mundo pelo modernas de vida fizeram diminuir rapidamente.
qual as informações são construídas e difundidas A obra também aponta para os riscos sanitários,
no universo da saúde pública e, em um sentido sociais e culturais aos quais está sujeita a medicali-
mais amplo, como elas entram na arena social e zação da alimentação cotidiana. A grande difusão
política”. Ele pretende, portanto, entender como as de informações sobre nutrição na ausência de pro-
controvérsias são mais ou menos deformadas, e de vas e de argumentação científica a respeito das rela-
que maneira estão a serviço de determinados in- ções entre o conhecimento e o comportamento faz
teresses. Para realizar um “agendamento político” com que, muito frequentemente, os conhecimentos
da obesidade, seria necessário construir números científicos e as representações morais dos mesmos
e fórmulas chocantes, para que os atores políticos permeiem o discurso médico sobre a obesidade e
e midiáticos reagissem mais favoravelmente. Em a educação nutricional. Por outro lado, os modelos
outras palavras, seria necessário dramatizar o convencionais de estética estariam intensificando
contexto como um todo. os distúrbios do comportamento alimentar. Nesse
Na segunda parte da obra, o ponto de partida cenário, a idealização da magreza e a desvalorização
é o processo de medicalização e as controvérsias das pessoas obesas ou com sobrepeso são as duas
ligadas ao olhar crítico sobre a obesidade. Ele faces de um mesmo fenômeno.
destaca que é “Por trás do aparente consenso das Apesar de enfatizar, em vários momentos do
controvérsias científicas, que a obesidade aparece texto, que a obesidade se transformou em uma
como uma arena da qual se confrontam conceitos “epidemia global”, Poulain não apresenta dados
científicos menos contraditórios. Seria o habitual sobre um conjunto significativo de países. As
da ciência que evolui graças ao impulso de con- informações se concentram na realidade francesa
tradições sucessivas? Ou devemos interpretá-las e estadunidense. Trata-se, portanto, de uma aná-
como o resultado da influência de atores sociais lise focada em duas realidades específicas; seriam
que têm interesses divergentes – indústrias agroali- necessários novos esforços de pesquisa em outros
mentares, indústrias farmacêuticas, associações de países para entender e comparar distintas especi-
consumidores, atores políticos, representantes das ficidades sociais e culturais.
administrações e os próprios pesquisadores?”3. Im- Em uma primeira vista, o livro pode ser enca-
portantes questionamentos que podem auxiliar na rado como uma obra direcionada para cientistas
construção de inúmeras abordagens de pesquisa. sociais; porém, o debate proposto sobre as contro-
Na visão do autor, é possível estabelecer dois vérsias do diagnóstico da obesidade e o processo
níveis de medicalização da alimentação. O primei- de medicalização da mesma amplia o escopo do
ro estaria ligado à inserção da alimentação no qua- debate para as ciências médicas. A leitura também
dro do tratamento de patologias. O segundo nível, é recomendada para os formuladores de políticas
que poderia ser qualificado de nutricionalização, públicas que serão cada vez mais acionados na ela-
relaciona-se com a difusão dos conhecimentos; boração de estratégias para lidar com o problema
corresponde à propagação de conhecimentos cada vez mais coletivo da obesidade.
junto ao corpo social, por meio de diversos ve-
ículos – a imprensa, a televisão, as campanhas
de educação para a saúde, etc. Nesse cenário, a Referências
motivação mais consistente da nutricionalização
1. Fischle C, Masson E. Comer: A alimentação de france-
estaria ligada à pressão dos modelos de estética
ses, outros europeus e americanos. São Paulo: Editora
corporal e o imenso desejo de emagrecer que a SENAC; 2010.
acompanha em algumas categorias de indivíduos. 2. Fischler C. Gastro-nomía y gastro-anomía. Sabiduria del
Ao final do percurso de Poulain, a obesidade cuerpo y crisis biocultural de la alimentación moderna.
aparece como uma patologia parcialmente de- Gazeta de Antropología 2010; 26(1):1-19.
3. Latour B. Ciência em Ação. São Paulo: Editora UNESP;
terminada pelo social. Ela seria resultante de um
2000.
processo de transição, consequência de efeitos

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