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#1

auto
bio
gra
fia
autobiografia
O que emerge nesse tempo instaurado é maior que
tudo que possamos dizer.

Corre
teu olho e
tuas mãos por essa revista e só então volta
ao texto.

Aqui não se explica nada. Escrevemos do lugar de


não saber. Uma suspensão-mergulho em mar aberto.
Nerva é feita do que as pessoas dizem de si mesmas,
do que fabricam o olho e a pele e as mãos e o jeito
O susto de se perceber carne, segredo, experiência,
ficção.

A própria voz gravada, repetida, conversando consigo,


do antes para o agora.

Guardar a palavra. Esquecê-la. Nerva é corpo. E é


também a fratura no próprio corpo. A fenda. O que
não tem cabimento.

Houve um tempo em que acreditamos na separação


entre o insólito e o irreal do mundo o, entre o im-
de fazer. É feita também do que não se pronuncia, do possível de quem somos e o que dizemos sobre nós.
que extrapola, escorre, derrama: sempre além, sem- Como se não fôssemos feitos do mesmo material do
pre um tanto mais. indizível. Como se não fabricássemos, a cada dia, a
experiência de quem somos no mundo e, ao mes-
O instante de prender a respiração e dar o corpo à queda. mo tempo, um mundo pra abrigar nossa experiência.
6
Tudo que não faz sentido e que não pode ser explica- Fabricar a si e ao mundo é uma atividade do cor-
do nos atravessa e se instaura. É por isso que NERVA po inteiro, como tudo que aí está. E sequer sabemos
é uma revista que é duas, mas é uma só. Porque so- como nomear. É o embaçado de tirar os óculos e é o
mos muites. Incontáveis. Mesmo aqui, tão dissonan- vermelho de fechar os olhos no sol.
tes tantas vezes.
É com os pedaços do impronunciável que contamos si eu mundo nós tempo sonho mim a gente
nossas histórias. silêncio
[talvez falar de si seja isso]
É um gesto imenso - muito maior que nós - manejar
as obras que escorrem aqui. Escorrem porque flui- Essa revista é um jeito de guardar as nossas histórias.
das, porque água e também língua de fogo, lambendo As que nos negaram, as que tiraram de nós, as que
tudo enquanto se fortalecem e se avolumam. moldamos e também as que nos acompanham des-
de que nascemos e são repetidas à exaustão, até que
Cozer essa superfície revista nos convoca como os no- pareçam nossas e façamos delas uma casa ou uma
mes próprios convocam quando são ditos em voz alta. luva para pegar a vida que passa. É também um jeito
de se ver: guardar um pedaço de si numa superfície.
É preciso cuidado e é preciso também delírio: mer- Fazer de cada página uma granada ou um travesseiro,
gulhar e turvar a vista, abrir as mãos e deixar o ar talvez uma janela, ou ainda um pôster, pra botar na
circular. Abraçar as contradições. As impossibilidades. parede do banheiro ou na porta da geladeira.
As ilusões. As ficções.
Agora que contamos nossas próprias histórias, e com
Um dia, Karina das Oliveiras empunhou um espelho elas fabricamos o mundo, nosso corpo - superfície da
que tanto brilha e reflete quanto encandeia: a vista memória - recebe a si e a outres de nós.
turva, a mão segura um pedaço de sol. Daqui fazemos
a Nerva como quem olha o espelho, a mão, como NÓS SOMOS O PERIGO NÓS SOMOS O PERIGO NÓS
quem olha Karina e olha a parede verde - a Nerva e a SOMOS O PERIGO NÓS SOMOS O PERIGO NÓS SO-
parede tão desprevenidas de tanta luz e tanta opaci- MOS O PERIGO NÓS SOMOS O PERIGO NÓS SOMOS
dade. Atônitas. Nerva talvez seja o desejo atônito do
que jamais conseguiríamos se já não fosse. Você pode ouvir? É Monstra quem diz. E, com ela,
dizemos nós. E dizemos como diz Beatriz Almeida e
NERVA diz com sotaque cearense. Cantado. Tenta- diz Mathilde:
mos juntes, aqui, uma canção desesquecida. Entoada
como quem olha o tempo. A dança a que empresta- não deixarei você esquecer.
mos nosso corpo é essa dança impossível de quem
se espanta e se cala e se transforma e aumenta por
dentro. Nosso exercício é de quem abre e fecha os
olhos e as mãos. Essa revista é feita do que é dito e
visto e é feita do impronunciável e do invisível.
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10 42 66
Rhaiza Oliveira Judá Nunes Raíssa Dias
_ _ _
12 46 68
Mel Andrade Beija Dayane Araújo
_ _ _
16 50 70
Luana Diogo Jaque Mika
_ Rodrigues _
20 _
72
Yasmin Nogueira 52 Cau
SID+
_
24 31
Rafaela Texeira Barbara Moira
_
32
G Gomes
_
34 _

26 Arthemis
_
54
Juliana Fontes Vitória Sena
36 _ 75
Ma Njanu
Ana Reis
_
56 _
Louise
38 Formiga 78
Paloma Pajarito
Marcela Cavalcante
_ _
_
40 58 80
Elton Panamby Flora Tavares
Geysa Moura
_ _ _
41 62 82
Larissa Moraes Rayellen Alves Beatriz Gurgel
86 expeDieNTe
_
Rachel Gomes 117
_ Cassia Albano
88 118
Talita Sales Fruta Gogoia corpo editorial:
ANA ALINE,
_ _
90 121
Gabriela Guido
_
Iaci ANIE BARRETO,
LOUISE FÉLIX,
_
92 122
Pâmela Queiroz
_
Socorro Souza MARÍLIA OLIVEIRA
94
_
104
_
SIMONE BARRETO
CAPA
Beatriz Almeida
_
Luabia Lui Foito TAIS MONTEIRO,
editoriais:
_
98 textos
ZINE
Nastroyanni
106
Barbara Freitas
Ella Monstra MARÍLIA OLIVEIRA
_ _ TAIS MONTEIRO
103 108
Taliboy
revisão geral:
Zona
_ LOUISE FÉLIX
110 s i t e :
Joyce S. Vidal
_ ANIE BARRETO
112
Amanda Guimarães edição de arte, projeto gráfico,
_
produção gráfica, diagramação,
114
Pequeno Marginal tratamento de imagem:
_
115
DARWIN MARINHO
Zeza Maria ELLA MONSTRA
Rhaiza Oliveira, PE

10
11
NAQUELE DIA HOUVE UM BEIJO, UM JOGO DE PRINCESA E FOGO NA CASA AO
LADO. MEU PRIMEIRO BEIJO FOI UMA MISSÃO DE PRINCESA, PARA ACORDAR
O HOMEM QUE DORMIA SONO PROFUNDO NA CAMA DA MINHA MÃE.
ERA IMPORTANTE QUE HOUVESSE O BEIJO, ELE PODERIA MORRER CASO
NÃO FOSSE ACORDADO PELO BEIJO. E LOGO DEPOIS O FOGO COMEÇOU.
MAMÃE CHEGOU DEPRESSA DE SUAS COMPRAS NO CENTRO. ACREDITAVA
SER NA NOSSA CASA, O FOGO. ERA O FOGO DO INÍCIO DO INFERNO. MAS
AS CHAMAS PEGARAM NO LUGAR ERRADO, ERRO POR DUAS CASAS NO
DADO JOGADO POR DEUS. HAVIAM GRITOS. ERAM DO HUSKY SIBERIANO DA
VIZINHA. ELE FICARA PRESO AO BUJÃO DE GÁS E MORREU CARBONIZADO.
QUEM ESTAVA LÁ, LEMBRA QUE PARECIA GENTE GRITANDO. A DOR DELE
ECOA A CADA VEZ QUE SE PODE LEMBRAR. ELE GRITAVA POR ELE E POR MIM.

Mel Andrade, CE

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AUTOBIOGRAFIA

15
Luana Diogo, CE

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18
19
Yasmin Nogueira, BA Embrulha-me o estômago recordar dessa condição objetual em
que éramos colocadas, coisas, peças, instrumentos negociáveis
os quais eram apresentados repletos de adjetivos qualificando
o produto, produto-corpo, produto-mulher, produto-leite, assim
como as qualidades para a execução de afazeres domésticos,
porque não bastavam os usos sexuais do corpo, o instrumento
de procriação e aleitamento. Independente de nossas condições,
se gestantes ou recém-paridas, a vantagem em nos adquirir esta-
va também no investimento em obter além de uma ama, alguém
para lavar, passar, engomar, coser, cozinhar e todas as demais
ocupações com o lar.

Sob o adjetivo prendada, éramos expostas como vitrine, afinal, a


propaganda é a alma do negócio. Além dos atributos para a ma-
nutenção das casas, eram chamativas as frases que anunciavam
o muito bom e abundante leite, a “imagem ideal de ama de leite
requeria, portanto, que seus corpos fossem enaltecidos em ter-
mos dos atributos físicos e biológicos usualmente desejáveis, por
exemplo, pelo fato da lactante ser “robusta” ou ter ‘leite sadio”
O leite abundante era umas das importantes qualidades, deverí-
amos ser boas reprodutoras para que o alimento fosse frequente
e novo, como a negra Elvira nos registros da Santa Casa da Mise-
ricórdia do Rio de Janeiro, em que serviu por oito anos, de feve-
reiro de 1861 até junho de 1869. A escritura aponta por meio do
nome da proprietária, tratar-se da mesma cativa, mas os papéis
não detalham sua condição de mãe, se tivera filhos e/ou abortos,
apenas que seria boa de leite. “Elvira era uma daquelas conside-
radas como “boa cabra”, como animal farto e disponível para boas
práticas de ordenha.

Designada para usos diversos e ilimitados, incluindo práticas se-


xuais, a exploração mantinha um ciclo ininterrupto de produção
e reprodução, enquanto ainda pudéssemos estar pejadas e ama-
mentar, girava a roda da economia. Utilizadas de todas as formas
para gerar lucro e prazer, não importavam os frutos de nossas
entranhas, visto que nossas vidas poucos valiam. A dos negros
rebentos menos importava pois o lucro tardava, sem contar que
tais vidas sob as péssimas condições, pouco vingavam.
Corpo-objeto, receptáculo tomado como posse através do ato
sexual, a reprodução forçada.

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Desapossamento, posição de inferioridade “de sexo-gênero e
de raça-etnia e exprimem a própria possibilidade do uso/abuso
daqueles corpos de mulheres subjugados às formas da explo-
ração compulsória”. Escorria por entre as pernas líquido viscoso,
espesso, vermelho e quente, não o natural que retornava de 28
em 28 dias quando não gestava fruto no ventre, não o sangue
das minhas regras, mas o sangue violento do abuso, da violação.
Rompidas as barreiras do não, da negação do ato, era dor que
me escorria entre as pernas. Tais práticas “vincaram as relações
sociais e sexuais da sociedade oitocentista sendo, portanto, na-
turalizadas nas vivências cotidianas das famílias proprietárias de
escravos e também naquelas que não possuíam escravos, por
estarem orientadas pelo imaginário do patriarcado escravista”.

Apesar dos nomes organizadamente anotados nos cadernos das


instituições como a Santa Casa, ali não eram de fato os nossos
nomes que importavam no documento, mas o controle financeiro
do uso do corpo cativo. Não interessavam sob que circunstân-
cias éramos lactantes, se prenhas pela primeira vez, se vítimas de
aborto – natural ou provocado pelas inúmeras atrocidades as que
éramos expostas – se tínhamos filhos que vingaram, se esses po-
deriam estar com tanta fome quanto os expostos da Misericórdia.
O nome marcado nas folhas hoje amareladas não atesta quem
fomos, continuávamos anônimas tal qual as registradas nas foto-
grafias dos estúdios sob as lentes do olhar europeu, permanecía-
mos silenciadas. Quem foi a pobre Elvira por tantos anos servindo
à Santa Casa? Quais as condições que fizeram de seu corpo um
produtor assíduo de alimento? Registros de nomes não nos fi-
zeram mais humanas que as próprias cabras. Uma tarja negra
cobria nossos olhos, não para que não pudéssemos ver o que ali
se passava, isso já estava muito bem impresso em nossos corpos,
mas não éramos de fato seres identificáveis, de subjetividades
relevantes. De tarja nos olhos e sangue quente e fresco escorren-
do por entre as pernas, nossa produção leiteira era como a atual
indústria alimentícia, produzindo para servir, para nutrir não os
nossos, mas os outros, aqueles que ocupam principalmente uma
posição de poder, que especialmente podem pagar. Fui às ruas
exibir a dor. Nas imagens: vendada, ensanguentada, de seios co-
bertos com a embalagem que acondiciona o produto resultante
da exploração da maternidade.

22
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24
Rafaela Teixeira, CE

25
26
Ju Fontes, SE
27
28
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Bárbara Moira, CE

30
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G Gomes, CE

33
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Arthemis, CE
35
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Ana Reis, BA

37
Marcela Cavalcante, CE

38
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40 Geysa Moura, CE
Larissa Moraes, CE
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CÓDIGO BINÁRIO

CÓDIGO Desde a infância, quando me entendo, de racismo, endemonização, escravidão, tortura


entendo também as regras e os códigos. Ou seja, e morte, a morte como prática de silenciamento,
como tal comportamento era/é proibido por não exclusão e apagamento permanente da memória
ser adequado ao que foi pré-estabelecido para material e imaterial desses corpos que tentam
o meu corpo. Sobre como eu não deveria me nessa estrutura, sobreviver ou viver na excelência
comportar, os gestos que eram “feios”, o que e construir táticas politicas sociais de equidade e
não usar, quais lugares eram proibidos... Estou libertação. Quando eu reexisto às normas desse
falando aqui, dos gestos e comportamentos código, o cistema não me identifica como huma-
que influenciam um imaginário coletivo sobre no e porventura, me acusa como corpo estranho.
o que é ser “homem” ou “mulher”, “hetero” ou Na medicina, quando o corpo humano percebe
“homossexual”. Daí me encontro mergulhada na um “Corpo estranho” dentro dele, ele reage para
necessidade de articular estratégias de camufla- expulsar este “objeto”. Essa metáfora é adequa-
gem para fugir das repressões e imposições de da para entendermos que a norma colonial esta-
condultas cisheteronormativas, o que nem sem- beleceu corpos adequados e corpos estranhos,
pre se apresenta como uma tecnologia de dis- dessa forma, quando o corpo estranho é detec-
farces normativos da representação cisgênera e tado todo o cistema se elabora para expulsão do
heterossexual, inclusive, ela pode se apresentar mesmo. Nesse sentido não há outra escolha, se
como uma distorção ou uma grande confusão não, de construir a partir do próprio corpo e das
estética, causando caos e contradições. marcas deixadas as minhas próprias estratégias
de sobrevivência. Acho importante dizer que, não
estou determinando uma outra norma, muito
O Brasil é um país predominantemente cristão menos criando um manual a ser seguido a ris-
e como tal, nasci em berço católico/protestante co, estou aqui construindo um processo pessoal
e cresci dentro dos fundamentos e cultos pro- de libertação e emancipação do meu corpo e da
testantes. É importante então relembrar que minha identidade enquanto performance. Como
a constituição do que conhecemos hoje como minha vó diz, “Viny, desde pequenininho é cheio
Brasil é baseada em processos coloniais, logo, de lambança”. Se pensarmos no quanto o mun-
fundamentalizadas no cristianismo. Assim, a po- do tem de “lambança” e significar essa palavra
lítica do cristianismo colonial é um instrumento como “diferente” ou “fora do normal” (cisgênero),
bélico de controle civilizatório e, como tal, prevê sim eu (Judá) sou cheia de lambança.
códigos e uma norma. O corpo que ñ se adequa
ao “código binário” é submetido aos processos Judá Nunes, BA

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44
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Beija, CE

EU CORRO NA
CHUVA, ME REGO NAS
TEMPESTADES DE MIM.
MEU PEITO DERRAMA
LEITE QUE BANHA
A TERRA. DURANTE
TODO O TEMPO,
OLHOS FECHADOS
E PEITO ABERTO.
46
47
48
49
Jaque Rodrigues, CE

50
51
SID+, CE

52
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Vitória Sena, PB

54
55
56
Louise Formiga, PI
57
58
AUTOBIOGRAFIA

59
60
AUTOBIOGRAFIA

Elton Panamby, MA
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Rayellen Alves, PE

62
AUTOBIOGRAFIA

63
64
AUTOBIOGRAFIA

65
Raíssa Dias, CE

66
67
Dayane Araújo, CE

68
69
Mika, PI

70
71
Cau, BA

72
73
74
75
Ma Njanu, CE

I. II.

Não sinto sem que sintamos


corpórea

I. rostos em série e coloridos entre tons quentes


destacam-se numa escala cinza.

II. não sucumbimos ao chegar aqui. mesmo ante


todas as investidas, compartimos a experiência do
corpo, o gosto, a face na superfície do desejo
ou a própria sensação, que caminha na presença.

76
III. IV.

III. EU TAMBÉM SINTO


e não sinto sem que sintamos.

IV. a queimação urge entre o medo


e a coragem: resistências contra a mortificação.
seja pelo praguejar e na esconjuração, os rostos
distorcidos flutuam para a incandescência de ser,
isto é, desatando cada um dos nodos coloniais fixa-dores.

{próxima página}

V. a plasticidade como elogio


do movimento: quando “estou sendo”
destruo toda imobilidade e as sintaxes que nos
dissolvem/transfigurar, aqui, é demolir a ideia de inexistência da sensibilidade.

77
78
No dia que dormi e acordei triste o céu me acompanhou, desci a escadi-
nha de casa e botei os pés na areia era injusto morar num paraíso e não
conseguir sair do buraco que eu cavava por dentro dos meus ossos era
injusto cavar um buraco desse tamanho nos meus ossos e a minha co-
luna nem cabia mais em mim passei um tempo que não lembro quanto
olhando tudo aquilo imenso pensei que merda eu devia gravar uma ima-
gem disso da minha cara sabe pra esfregar na minha própria cara sabe
daqui a um tempo tipo quando eu encontrasse esquecidas essas fotos
num harddrive emprestado da minha namorada e você me pergunta se
doem meus ossos eu digo as vezes querida, mas cê sabe que é menti-
ra o tempo de cavar buracos já era, mas o cheiro do ar continua o mes-
mo daquele dia que eu dormi e acordei pensando que ainda era noite.

Paloma Pajarito, CE
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Flora Tavares, BA

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Invasão descontrolada desavisada, exercício de ficção, construção de narrativas, uma
mentira como todas as outras. Desejei ontem o cheiro do suor de um desconhecido que
dançaria agarrado comigo uma noite inteira. Desejei como quem é possuída por uma
besta fera que me engole de dentro pra fora. E de todas as bestas, feras e monstros que
habitam dentro de mim, o desejo é o que mais tenho medo. Culpa. Culpa cristã que car-
rego entalada na garganta. Toda forma de prazer é e sempre foi proibida. Até ontem tive
medo de encarar o desejo de frente, mas a partir de hoje essa fera há de engolir cada pe-
daço de culpa puta, profana. Que esse monstro rasgue o peito e saia pelos olhos, tome de
conta das minhas mãos e escorra pela boca. Que todo pedaço de dentro de mim venha
pra fora e dance. Dance dance dance, dance gritando e exorcizando cada mentira que me
fizeram acreditar para querer menos, desejar menos, poder menos. Mova os meus pés
em direções estranhas, pois o desejo sobretudo tem o poder de mover e levar a novos
caminhos. É a energia que toma conta do corpo, que invade sem pedir permissão e que
precisa se esvair de alguma forma. Vazar pelos olhos, pelos poros quando suor ou pelos
dedos quando escrevo esse texto.

São os dragões que me saem do meio do peito.

Amanhã desejo que as pernas ainda dancem dentro ou fora do ritmo e que eu saiba re-
ceber e encarar o desavisado que me foge das mãos.

Beatriz Gurgel, CE
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AUTOBIOGRAFIA

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Larissa Rachel Gomes Silva, CE

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Talita Salles, CE

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Gabrielle Guido, BA
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Pâmela Queiroz, CE

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MATILDE SIGNIFICA FORÇA DE COMBATE.
DESSE NOME MUITAS LEMBRANÇAS
SE CONSTROEM. ESFUMAÇADAS, COM
SILÊNCIOS. NA PAREDE DA CASA HÁ
PENDURADO UMA FOTOPINTURA,
ÚNICO REGISTRO DOS ANOS PASSADOS,
COMPARTILHADOS COM UM HOMEM.
APENAS IMAGINO A OPRESSÃO QUE
MATILDE VIVEU SENDO ACUSADA
JUDICIALMENTE PELA MORTE DELE. AGORA
ELA ENCORPORA COMO RESISTÊNCIA
DE UMA MEMÓRIA. UM FRAGMENTO
DE OUTRO TEMPO E DIMENSÃO.
Beatriz Almeida, CE

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Nastroyanni, CE

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99
100
101
LUABIA, CE

102
Luabia, CE
103
Bárbara Freitas, CE

104
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Taliboy, BA

106
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109
Joyce S. Vidal, CE

110
111
Amanda Guimarães, CE

112
113
Pequeno Marginal, CE

114
Zona, PB
115
Zeza Maria, BA

116
Cássia Albano, CE
117
118
Fruta Gogoia, PI
119
120
Iaci, AL
121
122
Socorro Souza, CE
124
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*
#2
ENCONTRO COM O INSÓLITO

|
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-/
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|
-
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Tudo o que cabe na palavra Nordeste. Tudo o que cabe Essa é uma revista-explosão.
em uma revista de arte. O gesto de imaginar. Um dia
estivemos juntes e pensamos que era possível, sim, Ficção do cotidiano, irrealidade da experiência. Chão
criar um lugar. Um lugar superfície página aberta, uma de terra vermelha, rua de calçamento, terreiro, palavra
chance de encontro e de expansão. dançarina, jeito de seguir, forma de emudecer: cada
pedaço de página é universo.
Uma festa. Uma infiltração.
Nordeste ficção mentira segredo escombro promessa
Estivemos sonhando com uma revista - que se des- delírio festejo alimento vento aracati.
dobraria entre nós e as outras pessoas que sonhas-
sem junto, uma revista feita de acreditar. Implicamos Seis corpas encontraram entre si um lugar para co-
nossas corpas nesse gesto-revista que é um pouco zer a Nerva. Nosso trabalho foi feito do exercício do
mofo na parede, um pouco sistema de irrigação, um tempo: manejar com cuidado (e também com alguma
pouco banho de mar, um pouco cachoeira. calma), manejar devagar, olhar de novo, oferecer aten-
ção. Entendemos o risco e a grandeza da tentativa de
Desejamos que, assim como a água infiltrada corre segurar as quinas
por dentro da parede e mina toda a construção, as
obras que se juntam nesse tecido-revista corroam as pontas
este mundo por dentro. E desse mundo desabrochem as extremidades
outros, em outras temporalidades e em outras for-
mas de cortar o fio - ou de tecê-lo. as incertezas dessa revista.
Um dia estivemos juntes e acreditamos que algo se Aprendemos com todas as obras: são tantos os mo-
faria aqui. Se faria a si, porque a Nerva é feita de cada dos de dizer. E de não dizer. Talvez nossa dança seja
obra que existia antes dela. Só existe porque existe o muito mais esse exercício de abertura de todo o cor-
encontro, o choque, o desacordo, a nordestinidade, o po para ouvir. As falas, as vozes, os cantos, as me-
desafio, o desejo. mórias, as ladainhas, as preces, as pragas, os dizeres:
expeDieNTe
estão todos aqui.

Houve um tempo em que acreditamos na separação


entre o insólito e o irreal do mundo e o impossível de
quem somos ou do que dizemos sobre nós. Como se

editorial:
não fôssemos nós a beira do indizível. Como se não
fabricássemos, a cada dia, a experiência de quem so- corpo
ANA ALINE,
mos no mundo e, ao mesmo tempo, um mundo pra
abrigar nossa experiência. Tudo que não faz sentido

ANIE BARRETO,
e que não pode ser explicado nos atravessa e se ins-
taura. É por isso que NERVA é uma revista que é duas,

LOUISE FÉLIX,
mas é uma só. Porque somos muites. Incontáveis.
Mesmo aqui, tão dissonantes tantas vezes.

É com os pedaços do impronunciável que contamos


nossas histórias.
MARÍLIA OLIVEIRA
Nerva é isso e é também pra onde isso nos projeta.
SIMONE BARRETO
Rhaiza Oliveira apontando para o extra campo, para
o que está fora do enquadramento, para o que ainda
TAIS MONTEIRO,
não conseguimos ver, mas existe.
textos editoriais:
Aqui dentro, xyz gabi nos oferece um passatempo. Li-
guem os pontos para encontrar. O insólito é tudo e MARÍLIA OLIVEIRA
é nada, é o que não necessitamos explicar - e que,
mesmo que quiséssemos, jamais nos seria possível. TAIS MONTEIRO
geral:
A sensação por detrás do ouvido ao sair do chuvei-
ro. Aquilo que circula, rodeia, contorna e não finda. O revisão
que dividimos, o que é completamente nosso, o que
sequer imaginamos existir (mas existe). O grito suspi- LOUISE FÉLIX
rado. O que surge do chão de areia que cobre a cama
de baleia que repousa embaixo e sobre nós. s i t e :
“Sonhei que havia búzios dentro das crateras da lua”: ANIE BARRETO
edição de arte, projeto gráfico,
Ionara Senna sonhou e de si fez ela mesma que era
outra, de si fez mais de uma e, enquanto mirava a

produção gráfica, diagramação,


câmera, nos olhou. De cá olhamos Ionara e pedimos
passagem pelo seu sonho. Seu colar de pérolas, seu

imagem:
rosto pintado, a palavra gritando no fundo: mim. Nerva
é mim, escrita num muro de fundo enquanto Ionara tratamento de
DARWIN MARINHO
se aproxima de nós.

ELLA MONSTRA
6
7
10 52 80
xyz gabi Mariana David Benia
PASSATEMPO _ _
_
54 84
11 Lira Paula Hasney
Rhaiza Oliveira Raízes: onde ensaio _
_ minhas firmezas
_
88
14 Karina das Oliveiras
Misty Queiroz 60
Bolsa das águas Ionara Sena
_
16
Marianna Viana
Desatadora de nós 30
grande Silvana Mendes
_ Libertadores Brasileiros

18 _
Renier Silva (aguere)
_ 34
Thaysa Aussuba
22 Arrudeio
Luciana Rodrigues _
como desaparecer
completamente 36
airam 64 90
_ Furo ::::::: Elisa Maria Nanda Costa
28 _ PASSATEMPO
_
_
Bruna Acioly 40 94
Ressignificância Maria Macêdo 68 Beatriz Salles
CORPOTERRA Rafaela Teixeira _
_ _
98
44 70 Luana Diogo
agah precaria Raquel Bacelar _
_ _
102
50 74 Thais Mesquita
Alexandra Martins Elton Panamby
Sonia 2 Mãos
_
8
103
Taciana Santos
AMÃOQUELIMPAMEU-
SANGUETAMBEMSE-
SUJA
_
106
Levi Banida
_
108
trexy diaba
_ 113
109 B. Benedicto
Oniresi
Ananda Nunes
_
_
110 116
Melissa Gurgel
Cibele Nogueira
_
No transe Imergência
112 118
Fernanda Luá
Rebeca Marinho
_
_
119
Madu Moreira
Madu Moreira
_
120
Palito
_
121
Nardella
Vampiskarella
_
122
xyz gabi
PASSATEMPO
9
XYZ Gabi, PE

10
11
Rhaiza Oliveira, PE

12
ENCONTRO COM O INSÓLITO

13
14
Mitsy Queiroz, PE
Bolsa das Águas, 2015

15
16
Em Desatadora utilizei uma pintura do século XVI do pintor Johann
Schmidtner, que representa Nossa Senhora “desatando os nós da
desgraça atados por Eva” como receptáculo para disrupções. Construí
uma colagem digital montada em símbolos: a pintura, o búzio aberto,
a concha fechada, o espelho, um mapa da América do Sul virado de
cabeça para baixo. Gosto da nossa senhora desatadora de nós, pois
ela nunca existiu em carne e osso, ela é uma interpretação do pintor
que ganhou potência ao longo dos anos, ganhou novena própria e
capela em seu nome. Transformo seu rosto em búzio aberto para
nos contar segredos, destinos, suas mãos desatam a fita que nos
une em nós. Sua auréola é uma concha fechada em contraposição.
Elementos marinhos me fazem pensar na travessia do Atlântico,
caminho que colonizadores percorreram para virar este continente
de cabeça para baixo - imagem que me serve de pano de fundo. Mas
nesta história também existe subversão. “Nuestro norte es el sur”
de Torres de Garcia me serve de referência para concluir: que então
se subvertam estes valores coloniais que nos aprisionam em nós.
Emoldurando o rosto-búzio da santa, um espelho. Para que quem
olhar, se veja nela e lembre de reflexos invertidos, contradições
e beleza, em suma, se lembre também de olhar para dentro.

Marianna Viana , SE Desatadora de Nós Grandes

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ENCONTRO COM O INSÓLITO

Renier Silva (aguere)

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serpente e a semente robustas e cheias de flores, futuros frutos. saio na mata escura
da Fruta proibida mas eis que aparece uma lagarta, cujo devir é e mudo

I
borboleta. sem medo.
e não tiro.
o presente da cobra chega na troca de pele e desejo que vira crença: que tudo aconteça
“ela só ganha pele nova quando a antiga já não abdico da idealização inicial de jardim perfeito. naturalmente
serve” (disse um Baiano). perderei algumas folhas, talvez até a planta inteira, que tudo seja calmaria depois da tempestade,
mas não tiro a lagarta. mas há resquícios do mal-tempo,
cobra-presente: ser planta é servir de alimento para os bichos do que sempre volta,
aceito! mundo, é ser luz e água que engorda e estimula. pois mar é revezamento
agradeço planta é o combustível inicial. e pescador experiente sabe a hora de ficar em casa.
ao incômodo do cheiro ruim de fruta apodrecida antes de tudo, houve planta.
cuja carne que cai é: comida combustível volátil, grama, flor: girassóis são o fracasso me constitui
da T/terra, lindos, mas erra quem acha que o girassol -- o que faço com o que fizeram de mim? --
afirmação de Vida, comprado na feira é todos girassóis do mundo, e minha vingança é construir aldeias.
prenúncio de vitória quando ele morrer acabou a beleza.
pois dá caminho girassóis são lindos e a subjetivação humana não não estou representando
dá passagem abarca o imenso do plano das plantas. não estou atuando
à Semente. o jardim no meu quintal é uma tentativa de sou, não sou, e me aproveito do não-ser para existir
reprodução de um sistema que me antecede, em momentos difíceis
serpente, ser Ente. me ultrapassa e que não se me revela: opero no onde poesia é um respiro.
ser mais que um só. mistério, alimento uma fogueira que aquece a unidade possível: sendo, que contempla as
ser Sendo mas cuja matéria que queima me escapa à ciência. nuances da pedra e de sua poesia.
olhando, ouvindo, nem sempre entendendo,
desistindo de entender, de tudo apreender, de a lagarta vira flor. deixo de ser e deixo de negociar quando tentam
prender o que é diferente e está ao redor. borboleta é girassol voando. me engolir.
sem medo covarde de colonizador.
ser Com o mundo: o que se é, muda. como lagartixa que amputa o rabo para conti-
coexisto, compartilho, sem vergonha, eu digo: e garante a planta, antes de tudo. nuar sendo,
não compreendo. garante a espécie dentro do sistema. interrompo fluxos de seiva,
sem medo de Escuro. espécie que vive em si leva à morte -- não muda. não desperdiço.

veneno é defesa planta não morre. sou mineral, vegetal, animal, espiritual,
da continuidade da semente jardim de vida: comei de todos os frutos de humano.
do Imprevisível todas as árvores. não estou desamparado.
da Vida o proibido: eliminar qualquer uma delas. ser humano sozinho: o desamparo.
da Diversidade não destrua: coma o fruto, a folha, não mate a raiz. não temer a queda: o chão é barro,
das árvores que dão frutos a todes. comer e polinizar. machuca quando seco,
sem medo das árvores que dão frutos a todes! o fim não está em mim. floresce se tem água.

III
uma vez caí de cara num pé de cannabis e fiquei
quem se abre para conversar com o mundo felizfeliz.
nunca está só. apesar de São Sebastião, ser Oxóssi. outra, engatei numa corrida de jaguatirica.

II
aprender sendo Sebastião às vezes caio e fica um rastro
com o cuidado de não virar Santo. em pirita, esmeralda e sodalita,
estou cuidado de minha horta, quero que fica o ferro,
cresçam suas folhas, seus caules, que fiquem por saber quem sou, sou Alegria, Amor e Coragem.

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Luciana Rodrigues, CE
como desaparecer completamente
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Bruna Acioly, CE

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Silvana Mendes, MA
Libertadores Brasileiros
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Thaysa Aussuba, PE
Arrudeio

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airam, BA

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airam, BA

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ENCONTRO COM O INSÓLITO

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Maria Macêdo, CE
CORPOTERRA

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Agah Precária, RN

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Minha tia-avó todos os anos comemorava um aniversário
para suas bonecas. Com direito a bolo, salgadinhos, docinhos,
balões e até chapeuzinhos. E eram mais de uma centena de
pequenos objetos de plástico, pano ou porcelana. Uma senho-
ra do interior baiano que era vista pelos outres como solitária,
provinda de uma família de muitas irmãs, mas que contra a
norma, nunca casara ou tivera parcewires, além de suas bon-
ecas rosadas. Eu a reverencio por criar essa linda performance:
uma senhora negra envolta de pequenas bonecas claras.
Será que nela não está um dos Brasils que me foi narra-
do? Eu fico procurando as bonecas brancas nas minhas
roupas, músicas, filmes, crushs, filosofias, pensamen-
tos... Estamos ainda cantando parabéns, minha tia-avó?
Não sei seu nome direito e nunca a conheci ao vivo.
Mais um efeito dessa narrativa brasileira: diáspora.
Ela foi alguém que me ensinou a desconstruir solidão.

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Meu avô materno é uma incógnita, ou pelo menos é assim
a memória que me chega sobre ele. Minha mãe só o conheceu
por um dia, no qual a morte já o abraçava com diversos
tumores. Ela me conta hoje que viajara numa jornada digna
de Central do Brasil para poder conhecê-lo. E foi assim:
“oi” e “adeus”. Era esse lugar um interior baiano, nunca
estive por lá também. Minha mãe diz que ele era índio.
Eu aprendi a entender Brasil assim: feito de mães. Já os pais são
só para os “oi” e “adeus”. Ouvi alguém dizer uma vez que os
pais só entendem de afeto quando estão de mãos dadas com
o fim. Talvez seja essa a narrativa do masculino brasileira.
É, de fato, olhar para raízes uma forma
de contar a história de uma nação?

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Minha avó paterna tinha o costume de “aparecer”, de nos fazer muitas visitas, trazia
consigo sempre docinhos de presente, dos quais eu tive que aprender a dividir com os meus
irmãos mais novos (eu e a minha mania de gula). Fui ensinadE a sempre orar escondidE e
pedir a Deus para “tirar todo espírito mal” dos docinhos antes de comê-los. Fui educadE a
demonizar a minha própria avó, a chamavam de “macumbeira”. Eu precisei de uma vida
inteira pra durante minha formação em artes, conseguir visitá-la, depois de anos sem vê-
la, pra pedir desculpas, sua benção e ouvir a sua história que me foi negada, ainda bem que
tive tempo, que cheguei a tempo. Ela também foi a única que, quando eu “revelei” que tinha
um namoradO, respondeu sem pudor enquanto comia sua macarronada caseira: “quê?!
Quer dizer que vc é gay? ... ah, tudo normal né, já tem até na novela hoje em dia”. Enquanto
minha mãe ao lado: “dói até a minha alma ouvir isso”. As gerações são tão contraditórias.

No cantinho esquerdo da foto, escondido, assim como todas as minhas raízes, aparece “meu
tio” que morreu antes de eu aprender a falar. Elu foi aceite e acolhide em casa na condição
de ser “ex-travesti, homem nasceu para ser homem”. Sua vida também foi negada na
sociedade e na minha história. Até eu descobrir que eu carrego literalmente uma marca no
pulmão que, de alguma forma mórbida, fico feliz que seja provinda delu. A AIDS definhava
o corpo delu na época, uma das consequências foi a tuberculose, que eu contraí enquanto
bebê. Minha mãe repete até hoje que “Deus testou o amor dela para com Ele”, porque ela
me amava mais que a Deus. Sua punição foi uma jornada de jejum e oração, pra provar
que ela amava a Deus acima de tudo. E assim, “só por causa disso”, eu fui curado. E minha
tia travesti? Não teve ninguém para provar um amor maior a Deus? Ela não foi curada...
Queria ter podido abraçar elu. Por conta desse Deus ciumento muitos afetos que eu
poderia ter tido com as minhas raízes foram borrados. Pessoas que mais uma vez foram
hostilizadas por uma crença cega em um Deus ausente para com quem mais precisa

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Alexandra Martins, BA
Sonia 2

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Mariana David, BA

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Lira, PB Raiz

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Sonhei que haviam búzios
dentro das crateras da Lua.
Esse foi um impulso para
escavações dentro de mim.
Essas fotos são no meu
quintal, onde vivo desde
que nasci. Uma cratera
se abre em memória. E
essas memórias são como
preciosos búzios.
Ionara Sena, CE

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Carrego comigo o nome de minhas avós


e de muitas avós. Essas outras posso
até não ter conhecido, mas tenho algo
em comum com elas. Minhas meninas,
tendo sido avós ou não, têm outros
tantos entrelaces. Exatamente o que
seriam eu não sei dizer... Será que elas
sentiram dor? Choraram? Encheram e
esvaziaram o peito? Prenderam o pente
no cabelo? Tomaram banho de açude?
Tiveram decepções? Foram paridas?
Sentiram sede? Perderam alguém?
Furaram o dedo? Tomaram gota santa
depois de comer demais? Será que quem
as fotografou perguntou de suas dores?

Elisa Maria , CE

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Rafaela Teixeira , CE

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Raquel Bacelar , BA

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Elton Panamby, MA

SOBRE AS MÃOS DE MINHA AVÓ


ESCREVI PALAVRAS PARA
LIVRAR-NOS DO MAL

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FIRMAMENTO
FUNDAMENTO
FORJA
Espremi os olhos na hora do parto, mas era ela mesma sentada ali, sapatilha Mole-
ca e calça branca, camisa branca de botão e o xale vermelho de lã que ela mesma ha-
via tecido. O cabelo preto preso com fivela e os óculos multifocais. Era ela ali tangendo
a abertura da minha bacia, regendo as fissuras abertas em meu corpo para trazer à tona do
mundo a criança sua bisneta. Rita Maria da Silva, que seu nome seja dito em voz alta.
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PRODUZIRSOMDOSILÊNCIO
PRODUZIRIMAGENSDOESCURO
O silêncio era um estalo que deixava a gente surdo.
Brincadeira de desmaiar.
Teto preto.

Jota, você jogou no vento uma vez se o silêncio era um uníssono. Eu tive pensando muito nisso.
Acho que o silêncio poder ser uníssono, mas quase sempre não.

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“O tempo é o gás, o ar, o espaço vazio”
(Stela do Patrocínio)

TECNOLOGIAS DA COMUNICAÇÃO:

Hoje eu pensei em três pessoas e elas se manifestaram .


Minha avó conversa comigo nos sonhos.
Vejo passado presente e futuro quando reviro os olhos pra trás.
O vento que bate em setembro trançando as pernas.

TUDO ISSO É ANUNCIAÇÃO

Casear a vida: abrir buracos e suturar as bordas para caber.


A b o t o o - m e .
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Benia, CE

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Paula Hasney, CE

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Trojany, Trojan, malware, ataca o computador de forma silenciosa e estratégica, sistemática


instala-se junto com um software e causa diversas complicações ao sistema operacional do
computador.
O cavalo de tróia destrói a imunidade da cidade-sistema, revoga e confronta de forma brutal
os direitos e privilégios de uma cidade imune, protegida. Trojany é um rito ou sinal difuso da
desistência de tentar entrar pela porta da frente, pois não seria necessário ter uma porta, ou a
frente, ou dentro.
Confrontar a imunidade de um sistema artístico, cisgênero, de um projeto de humanidade e de
imunidade racista. Certificado de imunização para andar por aí ou mesmo qual a diferença do
vírus e do protozoário ? Memória ram, placa mãe.
Grandes, são muros, rigidos em sua matéria, frágeis em complexidade, estritamente binárias ou
0 e 1, vou na voadora quântica, na radiação do corpo negro, atravessando como massa escura,
viro buraco negro.
E você 0 e 1, 0 e 1, 0 e 1, 000000001111111000000101100111010101111100111110
000001111100.
Viralizou total, sucesso na internet, é vírus virtual, é mortal, é erótico, looner. AAAAAAAAR, ar
entre os balões, pulmão virtual, é a matéria o ato, forte, mas basta uma agulha, nos falta ar e vida.
Inteligência artificial é falha, é humana.
Como aprender com o vírus e observar o revelar da desorganização proposital, da polarização
forçada, da sócio política - political society - e da máquina necro-necro-necro-necro-anti-políti-
ca e o revelar de nossa fragilidade enquanto "humanos", que humanos, quem? Que humanidade?
Que se finde o brazil e o normal, pois além de tudo que nos resta seria o corpo o limite ou a
morada? Uma esponja, um pulmão?
oi, ta me ouvindo? vocês estão vendo?
Enclausuradas, descoletivizada, assustada com o barulho da janela, não dorme pois passou o
dia olhando para uma tela, e buscando a ajuda da polícia digital vai e digita: azul, vermelha. A
luz ? Sim, a luz piscou e você correu com medo, ou não? Apagou-se a luz.
Vão te pegar, é um IP e foda-se o RG, é um vídeo e dura 24h, um dado no bigbrotherdata.
Não sabe mais que horas começa a trabalhar e quando vai dormir, trabalha e dorme no mesmo
quarto desde o home office. É quase invisível, é quase imaterial, mas ainda não o é, e buscará a
todo dia o além do corpo, talvez a corpa, a corporeidade sim, e a imunidade talvez, gengibre.

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Karina das Oliveira, CE

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Nnda Costa, CE
Miragem

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Beatriz Salles, CE

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Luana Diogo, CE

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Luana Diogo, CE

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Thais Mesquita, CE

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AMÃOQUELIMPAMEUSANGUETAMBEMSESUJA
é uma perfomance de protesto. Criada em 2018,ela
surge da inquietação com as tentativas de silenciamento
que atravessam mulheres negras, periféricas, LBTs, e
suas multiplicidades. A performance, que consistia em
permanecer deitada no chão, e que, ao passo que eu me
levantava, outras mulheres liam uma carta-manifesto,
transforma-se a partir de sua reapresentação em 2019,
quando conheço a música Breu, de Xênia França e também
a mitologia da orixá Nanã, que conta que ela quem cedeu
o material para a criação da humanidade, que ela é a
guardiã dos portais do ciclo da vida. Assim, este trabalho
passa a versar sobre algo que nos irmane, algo além da
dor, que permita que este ciclo se encerre, para poder
dar passagem a construção de novas formas de afetos.

Taciana Santos, CE AMÃOQUELIMPAMEUSANGUETAMBEMSESUJA

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Levi Banida, CE

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trexy diaba, PB

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Ananda Nunes, BA

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Cibele Nogueira , SE
Solitude 2020.
No transe Imergência

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acordei
levantei
fui fazer o café
ainda sonolenta
não percebi o pano
na boca do fogão
esperando ansiosamente
para queimá-lo
em suas labaredas-mãos percebi antes do fogo
se alastrar
o pano
e o tirei
intacto
é preciso de tempo pra queima

Rebeca Marinho, CE

112
B Benedicto, CE
Padmateo, BA

114
115
116
Melissa Gurgel, CE

117
Fernanda Luá, CE

118
Madu Moreira, CE
Aura
Partida

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Palito, CE
Pachamama

120
Nardella Vampiskarella, RN

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XYZ Gabi, PE

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-/
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