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Química Virtual, Setembro de 2010

A série ‘Acidentes Explicados pela Ciência’ tem


por objetivo mostrar os maiores e mais incríveis
acidentes causados pelo homem mostrando es-
sencialmente o que aconteceu sob o ponto de
vista científico. As reações químicas aqui descri-
tas não devem, em hipótese alguma, ser reprodu-
zidas devido ao seu alto grau de periculosidade.

Desastre em Bhopal

Conheça os detalhes do um vazamento de gás veneno-


maior acidente na indústria so, o metil isocianato (MIC)
(veja Figura 1). O acidente foi
química da história. resultado da inesperada reação
química deste gás com água
EMILIANO CHEMELLO que ocorreu nas instalações da
chemelloe@yahoo.com.br Union Carbide, indústria quí-
mica multinacional de agrotó-
Bhopal, centro da Índia,
xicos, a qual produzia condi-
3 de dezembro de 1984. Um
ções para que houvesse ali-
local e data que fazem a gente
mentos para uma Índia em As razões para que o-
ter dois sentimentos distintos.
plena expansão populacional corresse o acidente ainda hoje
O primeiro é de tristeza em
nas décadas de 60 e 70. O pes- são controversas. Porém, várias
saber que quase 4 mil morre-
ticida produzido pela Union fontes indicam a manutenção
ram neste dia por causa de um
Carbide era conhecido como errada (limpeza) dos canos que
acidente em uma indústria
Sevin, que agia atacando o sis- conduziam a matéria prima
química. Somado-se as 20 mil
tema nervoso dos insetos. Sua para síntese do Sevin o fator
vítimas fatais posteriores, além
produção envolvia substâncias inicial do acidente. Como na
das 500.000 mil pessoas que
muito perigosas e. na noite do preparação de um bolo, a in-
sofreram injúrias por causa do
dia 3 de dezembro, estas subs- dústria química possuía os
gás, estes números fizeram
tâncias ficaram ‘fora de contro- ingredientes que, quando mis-
deste episódio o mais terrível
le’. turados na proporção certa,
na história da indústria quími-
ca. O segundo sentimento é de resultam no pesticida. O gás
justiça, pois a negligência de fosgênio era um destes ingre-
meia dúzia de funcionários e dientes. Extremamente letal, foi
dos donos da indústria fez mi- utilizado nas guerras mundiais.
lhares de pessoas vítimas do Mas o fosgênio era apenas um
‘gás da morte’. Vejamos como dos componentes e, devido a
foi esta história e qual foi seu O
desfecho.
Cl O NH C
A cidade de Bhopal fica
a beira de um grande lago,
C + H3C NH2
H3C
+ HCl
quase no centro da Índia. Com Cl Cl
mais de um milhão de habitan- fosgênio metilamina cloreto de metilcarbamoril
tes na época, era um lugar agi-
tado e cheio de vida. Mas na O amina
terciária
noite de domingo do dia 2 para
a segunda-feira do dia 3 de C
O OH
dezembro de 1984, esta cidade NH CH3
N O
seria o cenário de uma tragédia
sem precedentes. Estima-se + H3C C
que pelo menos quatro mil pes-
soas tenham morrido (muitas
Inseticida Sevin α-naftol metil isocianato (MIC)
enquanto dormiam) devido a
Figura 1 – Síntese do metil isocianato a partir de fosgênio e metilamina; síntese do
inseticida Sevin, a partir do metil isocianato e α-naftol.
1
sua periculosidade, era arma-
zenado em quantidades sufici-
entes para a síntese de curtos 3 H3C O
períodos de produção. Outros N C O
componentes eram utilizados, catalisador H3C CH3
em especial o MIC, o qual, ao N N
metil isocianato (MIC)
contrário do fosgênio, era ar-
mazenado em vários tanques
pressurizados, cada um com
O N O
capacidade para 42 toneladas
de gás liquefeito, capazes de
CH3
matar milhares de pessoas ca- trimetil-isocianato
so algo desse errado.
Figura 2 – Trimerização do MIC
O MIC é usualmente
sintetizado a partir de metila- sa. Caso alguém inalar baixas a água não possa fluir para
mina e fosgênio (veja Figura 1). concentrações de MIC, esta dentro dos compartimentos
Em seguida, MIC reage com α- pessoa vai ser afetada primei- com as substâncias perigosas.
naftol para formar o inseticida ramente nas partes úmidas do Este procedimento, que demora
conhecido como Sevin, o qual corpo, como os olhos, a boca e cerca de duas hora para ser
foi introduzido no mercado em as vias respiratórias superio- executado, foi ignorado pelos
1958. Em 1984, a indústria res. Em altas concentrações, o funcionários da Union Carbide,
funcionava apenas com um MIC chega no pulmão e o dani- os quais fizeram a lavagem dos
quarto da capacidade total de fica, fazendo-o sangrar provo- canos sem isolá-los das demais
produção devido a diminuição cando asfixia com o próprio seções.
da demanda deste pesticida e o sangue, mecanismo semelhan-
surgimento de concorrentes Mesmo com a entrada
te com que o fosgênio faz como
mais eficientes. A intenção da de água, o acidente poderia ser
gás de guerra.
fábrica era fechar a filial, mas evitado. Porém, os medidores
pressões governamentais solici- Pelo planejamento da de pressão da válvula que liga-
taram o seu funcionamento. empresa, deveria existir um va os canos aos tanques de
Com redução de pessoal e pro- impedimento da entrada de reservatório estavam com defei-
cedimentos de manutenção água no tanque. Mas este foi to. Pior, a válvula estava com
falhos, a empresa continuou a apenas um dos inúmeros pon- vazamento e, se gás saia, água
operar. tos falhos de segurança que a poderia entrar. E entrou.
indústria química Union Car-
Voltando ao acidente, Um dos produtos da re-
bide cometeu. A tragédia teve
durante a etapa de manuten- ação do MIC com a água é o
início quando 35 toneladas de
ção, a adição de água promo- dióxido de carbono, além de
MIC reagiram com água e vapo-
veu o entupimento dos canos, muito calor (papo de cientista:
rizaram. Mas somente isto não
em virtude da sujeita que acu- reação exotérmica). Então, te-
causaria a morte de milhares
mulou-se com a lavagem. Com mos um ciclo auto consistente:
de indianos. Uma incrível com-
isto, a água começou a fazer o quando mais calor é gerado,
binação de falhas ocasionou a
caminho inverso que deveria. mais rápida é a reação e, quan-
tragédia. Por exemplo, antes da
Devido a alta reatividade do to mais rápida, mais calor é
limpeza dos canos, um proce-
MIC, a interação entre os dois liberado. Isto em química é
dimento de segurança adequa-
líquidos seria altamente perigo- conhecido como princípio Le
do é isolar uma seção para que

H3C C CH3
NH NH
e
od 1,3-dimetil-ureia
e ss
c
ex a
om á gu
C
N O
H3C C + H2O CO2 + Co
O O
água m
metil isocianato (MIC) m e e xc
t il e H3C C C CH3
iso sso NH N
cia de NH
na
to
H3C
1,3,5-trimetil-biureto
Figura 3 – A reação exotérmica entre a água e o MIC resultando em dióxido de carbono e, dependendo das concentrações, dois
produtos com temperaturas de ebulição em média de aproximadamente 120 ºC.

2
Para saber mais:
 Les Films Roger Leenhardt –
documentário com simulação
do que aconteceu
http://www.youtube.com/wat-
ch?v=dy7Mb6azXIs&featu-
re=related

Figura 4 – Imagem real das vítimas fatais do desastre em Bhopal.  The Bhopal disaster and its
aftermath: a review
Chatelier (veja Figura 3). http://www.ehjournal.net/cont
Mas ainda sim o aciden- ent/pdf/1476-069X-4-6.pdf
te poderia ter sido evitado. Os
O Emiliano
tanques possuíam um sistema
Chemello é li-  Studies of Methyl Isocyanate
de resfriamento, mas este esta- cenciado em
va desligado desde o mês de Chemistry in the Bhopal Inci-
química pela
maio daquele fatídico ano. Com Universidade de dent. J. Org. Chem. 1986, 51,
o aquecimento, uma reação Caxias do Sul e 3781-3788.
Mestre em Ciên-
secundária de junção de três cia e Engenharia
moléculas de MIC (papo de ci- de Materiais pela
entista: trimerização), etapa  Reportagem do Jornal Esta-
mesma institui-
que gera uma molécula estável ção. Leciona em escolas de ensino dão sobre a punição dos res-
e mais calor (Figura 2). Com médio e pré-vestibular na Serra Gaú- ponsáveis:
cha.
tanta pressão sendo gerada, a http://www.estadao.com.br/no
válvula explodiu e o gás produ- Visite o site: ticias/internacional,india-
zido começou a fluir pela tubu- www.quimica.net/emiliano condena-8-pessoas-por-
lação da indústria e depois saiu acidente-em-
para a atmosfera. E assim co- bhopal,562638,0.htm
meçou a matança. Este poderia
ser o final infeliz desta história, Este material pode ser reproduzido por  Acidentes químicos amplia-
mas ainda tem mais. completo ou parcialmente, desde que dos: um desafio para a saúde
seja citada a fonte. pública. Rev. Saúde Pública.
Em junho deste ano
(quase 26 anos depois), a corte 1995, vol.29, n.6, pp. 503-514.
indiana condenou oito pessoas ISSN 0034-8910. Disponível
por negligência ao não preveni- em:
rem um dos piores acidentes http://www.scielo.br/pdf/rsp/
indústriais do mundo. O juiz v29n6/12.pdf
Mohan P. Tiwari condenou os
acusados por terem “causado
mortes por negligência” e por
“homicídio culposo, sem inten-
ção de matar”. Deverão ficar
dois anos na prisão.
Apesar de ser pouco
provável, esta história tem um
lado positivo. Juntando-se a
acidentes de menor escala na
década de 70 até o ponto cul-
minante do desastre em Bho-
pal, houve modificações na
regulamentação internacional
sobre acidentes químicos. Infe-
lizmente, para aprender as li-
ções, os responsáveis pelas
normas de segurança precisa-
ram esperar milhares de mor-
tes para tomar uma atitude.
*** Figura 5 – Protesto no vigésimo aniversário do desastre de Bhopal

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