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Silva, Ana Lúcia Rocha; Alencar, Leonel Figueiredo de.

Aspectos da formação de adjetivos em -vel: um


estudo com base em corpora. In: Eulália Vera Lúcia Fraga Leurquin; José de Ribamar Mendes Bezerra; Maria
Elias Soares. (Org.). Gênero, ensino e formação de professores. Campinas: Mercado de Letras, 2011, v.
1, p. 85-98.

Aspectos da formação de adjetivos em -vel: um estudo com base em


corpora *

Ana Lúcia Rocha Silva


Leonel Figueiredo de Alencar

Palavras-chave: morfologia, derivação sufixal, sufixação, sintaxe, lingüística de corpus

1. Introdução

O sufixo -vel está entre os mais produtivos da língua portuguesa. Constantemente são
criados novos adjetivos com esse afixo. Não poucos desses neologismos difundem-se, com
freqüência através dos meios de comunicação de massa, pela comunidade lingüística e,
eventualmente, “oficializam-se” como palavras do idioma, ao serem dicionarizados. Um
exemplo de criação lexical desse tipo relativamente recente é rastreável, que não consta de
dicionários do português como o Houaiss e o Aurélio (ver, respectivamente, Houaiss e Villar
2001 e Ferreira 1999), mas integra o iDicionário Aulete, de atualização mais dinâmica: 1

() Dilma Rousseff defende uso do cartão corporativo por ser mais “rastreável”.2
A cunhagem de novos lexemas pelos falantes, não raro, suscita dúvidas quanto à sua
aceitabilidade e mesmo discussões acaloradas, em alguns casos os inovadores sendo acusados
de cometer deslizes ou tachados de ignorantes, sobretudo quando não têm formação
universitária.
Bechara (2000) toma uma polêmica famosa como ponto de partida de reflexão sobre o
jogo entre os princípios que governam a língua e a liberdade do falante, debruçando-se sobre
o neologismo imexível, cunhado em 1990, como qualificativo do Plano Collor, pelo então
Ministro do Trabalho Antônio Rogério Magri (Leite 2008) – aparentemente o primeiro
sindicalista a assumir cargo de ministro no Brasil.
A despeito da leva de críticas de que Magri foi objeto na época, Bechara considera essa
palavra uma construção vocabular legítima do português, uma vez que os falantes, segundo
ele, sem dificuldade a parafraseiam como “o que não pode ser mexido”, tal como invencível
se parafraseia como “o que não pode ser vencido”. Trata-se, conforme o gramático, de criação
* Este artigo parte da análise de Silva (2009), complementando e aprofundando vários aspectos.
1 Disponível on-line em <http://aulete.uol.com.br>.
2 Exemplo extraído do site Valor Online, disponível em <http://www.valoronline.com.br>.

1
lexical que se conforma plenamente à “virtualidade ou potencialidade do idioma, isto é,
aquilo que, ainda inédito, está de acordo com as regras do sistema lingüístico” (Bechara 2000,
p. 2). Nesse ínterim, a palavra passou a constituir verbete em dicionários como o Houaiss
(Houaiss e Villar 2001) e o Dicionário iAulete. Mas a dicionarização não é critério necessário
para considerar aceitável (em termos puramente lingüísticos) uma palavra, o que depende,
antes, da sua adequação às regras da morfologia, as quais integram o conhecimento de
qualquer falante nativo dessa língua, como ressalta também Monteiro (1987, p. 144).
Três anos depois da “invenção” de Magri (que, na verdade, apenas instanciou aplicação
de regra há séculos existente na língua), Fernando Henrique Cardoso, sociólogo de reputação
internacional e, na época, Ministro da Fazenda, disse que a inflação não era mais “convivível”
(Leite 2008, p. 49). Leite compara as reações aos dois neologismos em artigo de Reinaldo
Azevedo na Folha de São Paulo, atribuindo ao preconceito lingüístico as avaliações distintas
conferidas às criações lexicais dos dois ministros. Enquanto o imexível de Magri é
considerado uma “ousadia vocabular”, fruto da “ignorância”, o convivível de Cardoso, pelo
contrário, o transformaria, segundo o articulista, em “poeta”.
Que a criação de novas palavras por derivação está sujeita a regras não é uma percepção
exclusiva de lingüistas, embora muitos falantes, mesmo professores universitários na área de
Letras, talvez por influência da tradição escolar (ou por preconceito social, como sugere Leite
2008), reajam mal a esses neologismos. Aparentemente, a escola tradicional, de modo
análogo ao estruturalismo taxonômico, privilegia o aspecto da morfologia como método de
análise lexical, em detrimento do aspecto dinâmico responsável pela geração de palavras,
inclusive daquelas completamente novas.
Neste artigo, focamos a criação lexical por meio do sufixo -vel, mostrando que não há
apenas uma, mas várias regras que se valem desse afixo para gerar novos adjetivos. Com isso,
pretendemos contribuir para a elaboração de gramáticas do português mais atentas à descrição
dos mecanismos de criação lexical vigentes na língua. Que faltam descrições empiricamente
mais fundadas sobre os processos responsáveis pela sufixação com -vel é evidenciado pela
explicação sobre a estrutura de imexível e convivível no sítio Ciderdúvidas da Língua
Portuguesa (Rocha 2009), segundo o qual apenas a primeira forma seria aceitável, a segunda
sendo considerada “semanticamente anômala” porque o verbo conviver não é transitivo nem
intransitivo com sujeito na função TEMA. No entanto, como ficará claro pela análise que
propomos, convivível é uma derivação regular tanto no que diz respeito à sintaxe interna da
palavra (i.e. a combinatória dos morfemas) quanto no que tange à semântica.
Para fundamentar empiricamente nossa análise do mecanismo da sufixação por -vel,
valemo-nos de dois corpora. O primeiro é o CAPTWWW (sigla para “corpus de adjetivos em

2
-vel em português de textos da World Wide Web”), compilado por Silva (2009). Esse
levantamento de dados permite verificar a vitalidade da sufixação por -vel no português atual,
na medida em que permite detectar itens ainda não dicionarizados. O segundo é o Corpus
Histórico do Português Tycho Brahe (doravante CHPTB). A utilização de dados do CHPTB
permite mostrar que os processos morfológicos responsáveis pela formação desses adjetivos
no português contemporâneo não constituem inovações recentes da língua, mas têm sido
responsáveis há séculos pelo enriquecimento de nosso léxico.

2. Relevância do estudo e fundamentos teóricos e metodológicos

Como arcabouço teórico, recorremos a Anderson (1992), que aplica sua teoria a um
levantamento bastante detalhado e abrangente da derivação sufixal por meio de -able em
inglês. Entre os autores consultados que se debruçaram sobre a derivação em -vel (ver, por
exemplo, Basílio 1987 e Salles e Mello 2006), não se encontra classificação com o mesmo
nível de detalhamento e abrangência, razão que nos motivou a desenvolver este trabalho com
base nessa abordagem. A outra motivação é que esses estudos não se fundamentam na análise
exaustiva de corpora digitais nem recorrem a ferramentas computacionais para extração
automática de exemplos com adjetivos em -vel. Nosso estudo apresenta o diferencial de se
basear numa análise computacional de textos (Alencar 2009), que, no caso do CHPTB,
totalizam mais de dois milhões de palavras.
A escolha de Anderson pareceu-nos também adequada por abraçar a concepção da
gramática gerativa de que o léxico não se resume a uma mera “lista de itens arbitrários”
(Anderson 1992, p. 180), mas constitui um componente do sistema cognitivo da linguagem,
responsável pela criatividade lingüística no nível das palavras. Como salientou Chomsky
(1973, p. 9-16), constitui tarefa da gramática dar conta do aspecto criativo do uso da
linguagem, o qual permite, por meio de um sistema finito de regras, expressar um número
infinito de idéias ou interpretar um número infinito de construções.
Anderson (1992, p. 186) propõe inicialmente a Regra de Formação de Palavras
(doravante RFP) de (), que funciona tanto para a análise de itens lexicalizados quanto para
geração de novos adjetivos em inglês do tipo de breakable ‘quebrável’ e movable ‘movível’. 3

Desse modo, uma RFP atende aos dois aspectos em que se desdobra a noção de criatividade
lingüística no modelo chomskyano.

3 Em termos computacionais, uma RFP representa uma estrutura de dados declarativa, que pode ser usada por
algoritmos procedurais tanto para análise (parsing) quanto síntese (geração).
3
() Regra de Formação de Palavras de adjetivos do tipo de breakable ‘quebrável’: (i) RFP: [X]V
 [Xɘbl]Adj (ii) Condição: [X]V é transitivo, i.e. [+ __NP] (iii) Sintaxe: o argumento ‘objeto’ de
[X]V corresponde ao ‘sujeito’ de [Xɘbl]Adj (iv) Semântica: ‘(VERBO)’  ‘capaz de ser VERBado’
Como podemos observar em (), uma RFP implica uma descrição em vários níveis de
análise lingüística. Em (i), especifica-se a alteração fonológica do derivado em relação à base
representada por uma variável X, categorizados, respectivamente, como adjetivo (Adj) e
verbo (V). No caso de breakable ‘quebrável’, temos a relação [breɪk]V  [breɪkɘbl]Adj. Em
(ii), temos uma restrição quanto à subcategorização da base, que deve ser “transitiva”,
exigindo, portanto, um complemento do tipo NP (do inglês noun phrase, sintagma nominal).
Em (iii), estabelece-se uma relação de correspondência entre o objeto de [breɪk]V e o sujeito
de [breɪkɘbl]Adj, o que pode ser verificado em sentenças como “A criança quebrou [o
vaso]Objeto” e “[O vaso]Sujeito é quebrável”.
Finalmente, (iv) fornece o modelo pelo qual adjetivos em -vel desse tipo podem ser
parafraseados. Desse modo, quebrável parafraseia-se como ‘capaz de ser quebrado’.
No inglês, a RFP de () atende à maior parte das ocorrências de adjetivos em -able.
Anderson sistematiza os diferentes desvios dessa regra geral, a saber: (i) casos como
navigable ‘navegável’, derivado de navigate ‘navegar’, onde o elemento -ate da base é
truncado; (ii) exemplos como applicable ‘aplicável’, derivado de apply ‘aplicar’, passíveis de
análise por meio de princípio de alomorfia; (iii) casos como potable ‘potável’, onde não há
uma base verbal correspondente, embora, nos demais aspectos da RFP, esses adjetivos se
comportem conforme o padrão; (iv) exemplos como perishable ‘perecível’, derivado de
perish ‘perecer’, em que os verbos são intransitivos com sujeito na função TEMA; (v)
adjetivos com “bases categorialmente inapropriadas”, como, por exemplo, confortable
‘confortável’, em que a base é da categoria nome; (vi) adjetivos como divisible ‘divisível’ e
dividable ‘dividível’, que diferem pela aplicação ou não de algum princípio de alomorfia.
Além dessa classificação, é possível estabelecer, com base em Anderson, uma outra,
com base no critério da composicionalidade, que se refere à transparência semântica da
derivação. Em um extremo temos adjetivos como breakable ‘quebrável’, totalmente
transparentes; noutro, estão formas totalmente opacas como personable ‘bem-apessoado’, não
predizíveis a partir de um modelo geral como () (iv).

3. Tipos de formação em -vel

No presente artigo, concentramo-nos nos aspectos mais sistemáticos da formação de


adjetivos em -vel. Para uma análise de fenômenos menos regulares como alomorfia, truncação
e bases inexistentes ou não transparentes, ver Silva (2009).
Para o português, propomos, inicialmente, a seguinte regra:
4
() RFP1: adjetivos do tipo de imaginável: (i) RFP: [ X V + C] V  [XCvel]Adj (ii) Condição:
[X]V seleciona OBJ (iii) Sintaxe: o argumento OBJ de [X]V corresponde ao SUBJ de [XCvel]Adj
(iv) Semântica: ‘(VERBO)’  ‘que pode ou deve ser VERBado’
Essa regra, que convencionamos simbolizar por RFP1, é a mais produtiva no CHPTB.
Em Silva (2009), RFP1 subjaz a cerca de metade de todos os adjetivos em -vel, distribuídos
por textos que vão dos séculos XVI ao XIX. Nessa regra, [ X V + C] V, onde C (abreviatura de
morfema classificador) representa a vogal temática, constitui o tema do particípio perfeito: 4

() a. respeitar – respeitável – respeitado b. temer – temível – temido c. ver – visível – visto


Em português, as paráfrases dos adjetivos em -vel variam entre as duas modalidades
lógicas M (possibilidade) e N (necessidade), como, respectivamente, nos exemplos navegável
(ano 1608) e lamentável (ano 1644) do CHPTB (ver Silva 2009).
Nos dicionários do português, os adjetivos em -vel que envolvem a modalidade lógica
M são parafraseados por meio dos modelos “que pode ser VERBado”, “passível de ser
VERBado”, “capaz de ser VERBado”, “passível de VERBação” etc. Já os adjetivos em -vel
que incorporam no seu significado a modalidade lógica N parafraseiam-se como “digno de ser
VERBado”, “que merece ser VERBado” etc. 5

Contrariamente ao que propõe Anderson para o inglês, a condição de () (iii) está


formulada em termos das relações gramaticais sujeito (SUBJ) e objeto (OBJ), conforme o
modelo gerativo da Gramática Léxico-Funcional (LFG, do inglês Lexical-Functional
Grammar), não fazendo referência ao papel semântico TEMA. De fato, verbos do tipo de
6

amar, que, conforme Kroeger (2004, p. 10), apresentam a grade temática


EXPERIENCIADOR – ESTÍMULO, também formam adjetivos em -vel (ver amável “digno
de ser amado”). Outra contra-evidência à restrição postulada por Anderson provém de verbos
como avoid ‘evitar’, cujos objetos, segundo Davis (2001, p. 18-24), não se enquadram em
nenhum dos papéis temáticos AGENTE, TEMA, LOCAÇÃO, ORIGEM e ALVO. Esses
verbos, no entanto, admitem a derivação por meio de -able (cf. avoidable ‘evitável’).
Consideremos agora exemplos de adjetivos em -vel derivados de bases verbais
intransitivas, como, por exemplo. infalível (ano 1556, CHBTB), impecáveis (ano 1705,
CHPTB) e morrível (CAPTWWW), para os quais propomos as regras () e (). Ambas as regras
() RFP2: adjetivos do tipo de falível: (ii) Condição: [X]V é inacusativo (iii) Sintaxe: SUBJ de
[X]V corresponde a SUBJ de [XCvel]Adj (iv) Semântica: ‘(VERBO)’  ‘que pode VERBar’
() RFP3: adjetivos do tipo de pecável: (ii) Condição: [X]V é inergativo
A exemplo da regra de (), a de () também manipula verbos biargumentais. Essa última
regra, contudo, difere radicalmente da primeira nos quesitos de (ii) a (iv).

4 Os dois símbolos V na fórmula portam índices superescritos diferentes, conforme a Teoria X-barra, que
deixamos de representar para não sobrecarregar a exposição.
5 Devemos ao romanista alemão Christoph Schwarze (comunicação pessoal) a sugestão de que essas paráfrases
envolvem a noção de modalidade N.
6 OBJ é o primeiro objeto (objeto direto em português) na LFG (ver Bresnan 2001, Kroeger 2004).

5
() RFP4: adjetivos do tipo de agradável: (ii) Condição: argumento externo de [X]V é um
ESTÍMULO, o interno, um EXPERIENCIADOR (iii) Sintaxe: SUBJ de [X] V corresponde a SUBJ de
[XCvel]Adj (iv) Semântica: ‘(VERBO)’  ‘capaz de VERBar’
Enquanto a RFP2 é postulada no inglês por Anderson, RFP3 e RFP4 não parecem
ocorrer nesse idioma. De fato, esse autor estabelece uma correlação entre o TEMA do verbo
(o objeto do verbo quando transitivo e o sujeito quando intransitivo) e o TEMA do adjetivo na
derivação por -able. Nas duas últimas regras, temos uma correspondência entre o sujeito do
verbo e o do adjetivo. RFP3 difere de RFP4 pelo fato de, no segundo caso, o verbo selecionar
argumento interno, ao qual atribui o papel EXPERIENCIADOR. As bases de RFP3, ao
contrário, são monoargumentais. O argumento interno dos verbos de RFP4, realizado
canonicamente como OBJ2 (objeto secundário na LFG, realizado em português por PP ou
dativo), mas também como OBJ (ver deleitar), comumente é expresso por uma categoria
vazia (cf. O novo modelo [de automóvel] agradou [(a)os consumidores].). 8

A regra RFP4 engendra uma configuração não detectada por Anderson: apesar de o
verbo ser biargumental e potencialmente apassivável, a paráfrase expressa um sentido “ativo”
em vez de “passivo”. No inglês, pelo contrário, o adjetivo pleasable, derivado de please
‘agradar’, parafraseia-se como “capable of being plased” (Gove 1993). Logo, a expressão a
9

pleasable person refere-se a alguém (um EXPERIENCIADOR) a quem é possível agradar. A


expressão a pleasable place 10
não faz sentido (um lugar não pode funcionar como
EXPERIENCIADOR), embora um lugar agradável seja normal em português, pois um lugar
pode constituir um ESTÍMULO para um EXPERIENCIADOR.
Outro tipo de formação por meio de -vel que não encontra paralelo na análise de
Anderson do inglês está em exemplos como irresistível (ano 1675, CHPTB). Para contemplar
casos como esse propomos a regra de (), que manipula bases verbais biargumentais com
complemento realizado por PP (sintagma preposicional, do inglês prepositional phrase). Essa
regra difere da de () também nos quesitos (iii) e (iv).
() RFP5: adjetivos do tipo de resistível: (ii) Condição: O argumento interno de [X] V é um OBL
(iii) Sintaxe: OBL de [X]V corresponde a SUBJ de [XCvel] Adj (iv) Semântica: ‘(VERBO)’  ‘ que se
pode VERBar’
No caso de RFP5, as bases são verbos como confiar em, resistir a, recorrer de,
comunicar-se com (subjacente à construção “o preso está incomunicável”), conviver com,
mexer em, gostar de etc. Como mostram exemplos do tipo de irresistível e recorrível, trata-se
de regra há muito vigente na língua. Esses verbos selecionam o tipo de complemento que a
LFG classifica como OBL (oblíquo teta), que em português é realizado como PP cujo núcleo

8 Conforme Fernandes (1987), a regência de agradar com complemento sem preposição estaria em desuso na
língua atual. No entanto, ocorrências desse tipo (condenada por normativistas como Gonçalves 1969) são
facilmente encontradas em textos contemporâneos da WWW.
9 Literalmente “capaz de ser agradado”.
10 Tradução não literal: “um lugar ao qual se pode agradar”.

6
P especifica o valor de , diferindo de OBJ2 por não poder ser expresso por dativo.
Contrariando Bechara (2000), é essa RFP que subjaz ao neologismo imexível, em consonância
com o verbete do iDicionário Aulete: “1. Em que não se pode mexer; [...].”
Os seguintes exemplos do corpus CAPTWWW trazem neologismos formados por meio
de RFP5. Apenas o primeiro está dicionarizado no iDicionário Aulete.
() A melhor definição que conheço de Mario Pedrosa foi dada por ele mesmo, em uma conversa que
tivemos, em que se definiu como gostável.
() [...] com ciência, antecedência e paciência, dá para achar um lugar ficável, abordável e confortável.
Nossa análise de adjetivos em -vel derivados de verbos que regem complemento
preposicionado do tipo OBL, como no caso de imexível e confiável, difere da abraçada por
Salles e Mello (2006). Essas autoras, na esteira de Mateus et al. (1989, p. 174-175), postulam
que verbos do tipo de confiar “selecionam objeto direto na estrutura profunda, sendo a
preposição um elemento inserido na sintaxe” (Salles e Mello 2006), apontando como
evidência contrastes como os seguintes:
() a. Maria confia em Deus. b. Maria confia ø que será eleita.
() a. Bia gosta de chocolate. b. Bia gosta ø que lhe dêem chocolate.
O problema para essa abordagem é que não se aplica a verbos como recorrer de, mexer
em ou ficar em, onde não há esse tipo de alternância entre PP e CP (no caso, oração
introduzida pelo complementador que). Para as autoras, gostável é preferível a imexível
porque o argumento interno deste último exerce a função locativa. Desse modo, propõem um
fator de ordem puramente lingüística para a rejeição de imexível por alguns falantes. Essa
explicação carece, porém, de base empírica. De fato, verbos com argumento na função
locativa como ficar em, viajar em/por/para, morar em etc. licenciam a derivação por meio de
-vel. No caso do último verbo, comprovam-no as muitas ocorrências de morável (casa
morável, cidade morável etc.) em textos na WWW. O adjetivo viajável consta, inclusive, do
iDicionário Aulete, com abonação de 1916 do escritor lusitano Júlio Dantas.
O último padrão de formação de adjetivos em -vel recorre a bases nominais, fenômeno,
como vimos, também constatado por Anderson no inglês. Silva (2009) lista os exemplos
desse modelo encontrados no CHPTB (como, por exemplo, amigável, desprezível, horrível,
inacessível, risível e saudável), alguns deles remontando ao século XVI. Exemplos mais
recentes, já dicionarizados, incluem colunável (que pressupõe a conceitualização de coluna
social como um espaço de um jornal ou revista), presidenciável, prefeiturável (ou
prefeitável) , reitorável e ministeriável. Um exemplo curioso fornecido pelo CAPTWWW, de
11

neologismo nesses moldes ainda não dicionarizado, é globável (derivado do nome da Rede
Globo), usado com a acepção de “digno ou próprio de figurar na Globo”.

11 O neologismo prefeiturável, inexistente em Houaiss e Villar (2001), consta no iDicionário Aulete, o qual não
consigna prefeitável, com mais de três mil ocorrências em textos na WWW, embora menos freqüente que o
primeiro.
7
Para esses casos, propomos a regra (), onde [X + ]N representa o radical do substantivo,
que pode ter uma parte  (possivelmente uma cadeia vazia ) truncada ao se adjungir à
concatenação de C (vogal temática) e morfema -vel. Temos, desse modo, por meio de RFP6,
relações como [terr + or]N  [terr+í+vel]Adj e [colun + ]N  [colun+á+vel]Adj. A vogal
temática C varia entre /i/ e /a/, com forte preferência pela primeira nos exemplos mais antigos
e pela segunda nos exemplos mais recentes. Aparentemente, o /i/ não é mais produtivo na
língua atual nos adjetivos em -vel denominais. Na formulação de (iii), seguimos Barker
(1998). Desse modo, o SUBJ de presidenciável é um participante potencial (como candidato)
de um evento de eleição para presidente.
() RFP6: adjetivos do tipo de risível: (i) RFP: [X + ]N  [XCvel]Adj (ii) Condição: [X+ ]N é um
estado emocional ou físico de uma pessoa, um lugar abstrato (cargo, empresa etc.) etc. (iii) Sintaxe:
SUBJ de [XCvel]Adj é um participante potencial de evento tipicamente associado a [X+ ]N (iv)
Semântica: ‘(SUBSTANTIVO)’ → ‘CARACTERIZADO por (SUBSTANTIVO)’,
‘(SUBSTANTIVO)’  ‘que possibilita SUBSTANTIVO’, ‘(SUBSTANTIVO)’  ‘com possibilidade
de ocupar (lugar de) SUBSTANTIVO’ etc.
Nossa análise dos adjetivos em -vel denominais difere tanto da proposta de Basílio
(1987) quanto da de Salles e Mello (2006). A primeira restringe esse processo derivacional a
substantivos que denotam cargos, o que não se aplica a nomes de instituições como Globo ou
a um espaço abstrato como no caso de colunável. Salles e Mello (2006) defendem que um
adjetivo como presidenciável deriva de uma estrutura causativa “X faz Y presidente”, de
modo análogo às formas verbais petrificar ou humanizar (derivadas, segundo elas, de “X faz
Y pedra” e “X faz Y humano”, respectivamente). Para elas, o fato de formas como prefeitar
não serem atestadas constitui evidência de uma derivação denominal. Embora concordando
com o caráter denominal da derivação de presidenciar, não podemos concordar com a
estrutura semântica “X faz Y presidente”, uma vez que contraria a paráfrase natural ‘com
possibilidade de ocupar presidência’, em que o elemento causativo não está explicitado.
Como dissemos acima, RFP1 responde por cerca de metade das ocorrências no
levantamento de Silva (2009). Essa regra é plenamente produtiva no português atual, o que
implica tanto uma maior freqüência de criação de novos itens quanto uma maior
aceitabilidade da parte dos falantes. As demais regras são responsáveis por apenas parte da
outra metade, uma vez que várias ocorrências não são suscetíveis de ser analisadas por
nenhuma regra, como, por exemplo, formidável, classificado como adjetivo em -vel de base
inexistente em Silva (2009). Os dados analisados sugerem que as RPF2, RFP5 e RFP6 são
semiprodutivas e RFP3 e RPF4 são improdutivas.

Conclusão

8
Este trabalho tomou Anderson (1992) como ponto de partida, aplicando a sua teoria na
análise dos adjetivos em -vel do CHPTB e em textos contemporâneos na WWW,
complementando e aprofundando o estudo de Silva (2009) em vários aspectos. Focando nas
regularidades subjacentes à criação lexical, consoante a visão gerativista que norteou a
investigação, conseguimos delinear seis processos distintos de formação de adjetivos em -vel,
cuja atuação pudemos observar em estágios mais antigos da língua, seja de forma latente,
permitindo a análise de formas existentes, seja de forma ativa, gerando novos adjetivos.
Os ex-ministros Magri e Cardoso, embora representando pólos antípodas da sociedade
brasileira, irmanaram-se, como falantes de uma mesma língua comum, ao fazerem ambos uso
do mecanismo de derivação sufixal por meio de -vel. À luz da análise que propomos, tanto
imexível quanto convivível são bem formados, diferindo de neologismos como rastreável
apenas pelo caráter semiprodutivo da regra utilizada.
No português, o mecanismo de sufixação por -vel é mais flexível do que a derivação por
meio de -able no inglês, que licencia apenas bases verbais com argumento TEMA e bases
nominais. Os dados levantados em corpora evidenciam que a derivação em -vel licencia
também bases biargumentais com complemento regido de preposição (modelo subjacente às
invenções vocabulares ministeriais), bem como monoargumentais inergativas. Outro
diferencial do português em relação ao inglês é permitir a correlação entre o sujeito de um
verbo com grade temática ESTÍMULO – EXPERIENCIADOR e o sujeito do adjetivo em -vel
derivado, como, por exemplo, no caso de agradável.

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