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A homossexualidade no Brasil: o sanatório e os

sujeitos invertidos

Marcelo Hailer Sanches

Sempre que um novo folhetim é anunciado para estrear na faixa das 21h do
canal Rede Globo e que esta nova trama terá entre os seus personagens um
gay o movimento social e parte dos cidadãos homossexuais já desconfiam de
que será “caricato”, termo utilizado para designar homossexuais afeminados e
que também pode ser empregado em sujeitos que fazem apresentações
caricaturais em casas noturnas, que são as transformistas, que a partir dos
anos 90 passam a ser chamadas de Drag Queens por conta do sucesso
mundial do filme “Priscila, a rainha do deserto” (GONTIJO; 2009: 100).

Mas, por que o personagem gay afeminado incomoda tanto entre os


homossexuais masculinos? Para entender de onde nasce à ojeriza ao sujeito
masculino afeminado é preciso voltar ao Brasil do começo do século XX e do
início das políticas de controle e de saúde da população, que ganhou força no
Estado Novo de Getúlio Vargas (GREEN; 2000: 234), que trabalhava em cima
do ideal masculino que foi chamado de “A nova educação física”

O governo promoveu a “nova” masculinidade, idealizando força,


juventude e poder. Uma revista de educação física sintetizava esse ideal: “A
nova Educação Física deverá formar um homem típico que tenha as seguintes
características: de talhe mais delgado que cheio, gracioso de musculatura,
flexível, de olhos claros, pele sã, ágil, desperto, ereto, dócil, entusiasta, alegre,
víril, imaginoso, senhor de si mesmo, sincero, honesto, puro de atos e
pensamentos. (GREEN; 2000: 235)
A ideologia governamental à época não fala explicitamente de uma
heterossexualidade normativa (BUTLER; 1990), mas a partir de tal discurso e
de sua técnica de micropoder (FOUCAULT; 1979), visto que será a partir das
aulas de educação física e de materiais didáticos na rede pública de ensino
que a Era Vargas vai disseminar o conceito de masculinidade que irá permear
até o fim dos anos 50, cria-se um discurso do que seria o “homem de verdade”
(BENTO; 2006). Na década seguinte, com o surgimento dos movimentos de
contracultura, a masculinidade viril ou a dos “homens de verdade” vai dar
espaço para uma performance masculina liberta de códigos normativos e viris.
Porém, com o advento da AIDS, no início dos anos 80, os dispositivos
discursivos sobre o corpo saudável e viril voltam à tona, mas sobre este tema
iremos nos deter mais à frente, antes é preciso entender a constituição do
discurso que vai reconhecer alguns sujeitos e relegar outros, que não fazem
parte da “sociedade fecundante” (FOUCAULT; 1986: 10), à margem.
Posteriormente, estes signos da masculinidade e da sexualidade “oficial” vão
ditar e pautar a construção das personagens homossexuais nas telenovelas e
também na imprensa brasileira.

1.1 A higienização dos corpos e o governo das mentalidades

Na década de 20 do século passado as instituições de saúde e católica


estabeleceram um Código de Moralidade que era divulgado e aplicado pela
Igreja Católica, que contava com o apoio da polícia na repressão e
posteriormente no cárcere psiquiátrico dos sujeitos de “condutas perversas”
(GREEN; 2000: 191). Segundo pesquisa do antropólogo James N. Green
(2000), as famílias buscavam apoio da Igreja, esta se apoiava na polícia para,
junto com as famílias, “conter e controlar as práticas perversas”

Os especialistas profissionais consideravam o comportamento


homoerótico patológico, necessitando de assistência médica ou patológica para
modificar a conduta do indivíduo. Muitos membros da família tentavam reprimir
e controlar o que consideravam uma conduta embaraçosa e imprópria de
parentes envolvidos em relações sexuais “perversas”. Quando fracassavam, às
vezes recorriam à intervenção do Estado. A polícia, a justiça e a medicina
trabalhavam em uníssono para conter e contralar esse “desvio”. Presume-se que
esse tipo de pressão institucional a de desencorajar atividades homossexuais
servia para disciplinar e desmoralizar alguns indivíduos, que acabariam por
reverter a um estado de “normalidade” heterossexual (GREEN; 2000: 191)

O relato de Green sobre como as famílias e as instituições do Estado e


religiosa atuavam juntas a fim de fazer com que sujeitos “anormais” aderissem
a uma pratica sexual “normal” nos leva para uma questão que era a influência
dos profissionais da saúde brasileira por teorias de cientistas europeus. Estas
teorias chegavam ao Brasil e tinham forte influência filosófica positivista no que
diz respeito a políticas “eugenistas” (GREEN; 2000) e que trabalhavam com a
tese da internação para “curar” sujeitos “invertidos”, esta expressão era uma
das palavras que se utilizava para designar condutas homossexuais e que foi
adotada pelos médicos e pesquisadores à época. Durante as décadas de 20 e
30 se desenvolveu no Brasil uma corrente de pesquisadores ligados à medicina
e que defendiam o Estado enquanto mola propulsora para uma política de
“purificação da nação brasileira” (GREEN; 2000). Nesta época as áreas dos
saberes a respeito da medicina, criminologia, psiquiatria e direito atuavam
juntos para “curar” os sujeitos homossexuais.

É importante notar que neste contexto dos anos 20 e 30, no Brasil, todo um
saber médico e legal começa a ser constituído em torno dos homossexuais, ou
sujeitos considerados “anormais” (FOUCAULT; 2001) e “desviantes” e que
deveriam ser adequados aos padrões de masculinidade proposto pelas
instituições em questão. Influenciados pelas teorias que chegavam da Europa,
os médicos que se dedicavam a pesquisar o tema dos “invertidos” apontavam
para algumas características destes homens. Pontuavam que alguns
“disfarçavam” o biotipo homossexual, mas que outros não e que muitos se
aproximavam dos trejeitos femininos. Constrói-se a partir daí códigos que
visam tornar patológicos os homens com trejeitos afeminados, o próprio uso do
termo “invertido” já nos remete a um homem ao contrário, ou seja, aquele que
se parece com uma mulher. Além da questão de rebaixar à categoria de
doentes os homens afeminados, estes estudos também revelam discursos com
forte teor sexista ao comparar feminilidade à doença. Apesar de boa parte dos
saberes medicinais è época se apoiarem em valores bíblicos para apontar a
homossexualidade como uma prática antinatural, a Igreja Católica não terá
papel fundamental na patologização dos “invertidos” nesta época, pois, os
médicos insistiam que não se tratava de um “vício” ou “pecado”, mas que
faltava uma educação moral e de “fibra” por parte dos pais aos seus filhos
(GREEN; 2000).

Os pesquisadores do Brasil que se debruçaram sobre o assunto da


homossexualidade durante os anos 20, 30 e 40, importaram os estudos sobre
comportamentos homossexuais realizados na França, Alemanha e Inglaterra
(GREEN; 2000: 198). De todos estes estudos importados a respeito das
políticas eugenistas, comportamento criminal e desvio social, dois
pesquisadores tiveram fundamental incidência no discurso e desenvolvimento
do saber brasileiro a cerca de temas como “raça, gênero, criminalidade e
biologia”: Cesare Lombroso, criminologista italiano; e Gregorio Marañon,
professor da universidade de Madri (GREEN; 2000). Marañon e Lombroso
serão os responsáveis por desenvolver teorias que apontavam diferenças
físicas entre os sujeitos “normais” e aqueles que possuíam algum tipo de
“desequilíbrio endocrinológico” como justificativa para um possível desvio
sexual. Destes dois, são as ideias de Marañon que irão permear todos os
trabalhos brasileiros a respeito da homossexualidade durante os anos 30 e 40.
Uma das características que será apontada como signo enunciador de um
sujeito homossexual será a proximidade com a feminilidade. Os sujeitos
femininos à época ficarão conhecidos como “pederastas passivos”.

Este percurso medicinal/ criminal de identificação dos sujeitos invertidos ou


“pederastas passivos” nos ajuda a entender a construção deste ser abjeto que
é o homossexual masculino com códigos femininos que atualmente ainda é
tratado como abjeto dentro e fora dos espaços conhecidos como guetos, ou
espaços de lazer e de encontro entre homossexuais. Se durante a primeira
metade do século XX do Brasil estes homens afeminados serão perseguidos
pela polícia, estado e igreja, neste início de século XXI estes homens que se
parecem com mulheres continuam a serem perseguidos, mas, ironicamente,
por sujeitos homossexuais adequados aos códigos masculinos construídos ao
longo do século XX e aceitos pela sociedade, visto que ainda carregamos um
forte discurso higienista, que é propagado pela política e pela cultura de
massas. Em pleno século XXI os homens femininos ainda são negados pela
sociedade heteronormativa e também pela nova sociedade que se constitui, a
homonormativa. Ambos os grupos, homo e heteronormativos estão
enquadrados pelo discurso do neo-liberalismo brasileiro, que, assim como o faz
em todo o mundo, a partir da Indústria da Cultura, oferece alguns modos de
viver, mas claro, dentro de seu regime, que, além de ser o regime do Império
do Capital, será também o regime do Império do sexo normativo/ modalizante
(PRECIADO; 2011).

1.2 O Caso Febrônio Índio do Brasil e a patologização da


homossexualidade no Brasil

Durante os anos 20 e 30 o Brasil acompanhou o caso de Febrônio Índio do


Brasil, que foi preso em 1927 e condenado como “louco moral”, que à época
era um dispositivo jurídico e psiquiátrico que se aplicava aos sujeitos que
violassem as regras da “norma estabelecida” (TREVISAN; 2003). Febrônio foi
preso em agosto de 1927 sob a acusação de estupro de dois jovens. O caso é
sintomático para se entender como o discurso em torno da homossexualidade
ganha ares de crime e doença na primeira metade do século XX no Brasil, pois
revela como os juristas e médicos vão lidar com a questão e de como o
dispositivo de patologização da homossexualidade será utilizado para fazer
com que o acusado não vá para a prisão comum, mas sim para um sanatório.
O advogado de Febrônio utilizou o discurso sobre a homossexualidade de
Febrônio como um fator responsável pelas atitudes “transgressoras” de seu
cliente e que, portanto ele não deveria ser encaminhado para a prisão, mas sim
para um sanatório. O mais intrigante na história de Febrônio é que ele será
internado não por conta dos supostos estupros pelos quais foi acusado, mas
sim por uma possível homossexualidade que atenta contra as normas
estabelecidas à época

Partindo da ideia de que sadismo e homossexualismo estão conectados


e aludindo à sua religiosidade criminosa, o advogado apresentava Febrônio
como um “louco moral”, portanto tão responsável por seus atos quanto o cego
por sua cegueira – argumento esse muito comum na época. Assim, eis Febrônio
retirado das mãos da justiça e atirado às garras da psiquiatria, para receber o tal
tratamento “mais justo e mais cientifico”, como diria o Dr. Leonídio Ribeiro, então
diretor do Instituto de identificação e Estatística do Rio de Janeiro. (TREVISAN;
2007; 197)

Febrônio permaneceu internado o resto de sua vida. No primeiro ano de sua


internação ele seria observado pelo diretor do Manicômio Judiciário, o perito
Heitor Carrilho, que declarou tratar-se de um caso de “anormalidade
constitucional, em alusão à sua homossexualidade sádica” (TREVISAN; 2007).
Febrônio Índio do Brasil permaneceu internado de 1927 a 1984, tendo vivido
recluso por 57 anos. O caso de Febrônio não despertou apenas o interesse da
imprensa da época e dos juristas, mas principalmente fez com que alguns
médicos pesquisadores se debruçassem sobre o caso para estudar a
homossexualidade, com destaque para o médico Leonídio Ribeiro, que a partir
dos estudos sobre o caso Febrônio vai apontar a homossexualidade como um
fator que causava “degenerescência” e “insanidade” no sujeito. Ribeiro fez
parte dos criminologistas que depuseram no julgamento de Febrônio
sustentando que ele era “louco” (GREEN; 2000: 210).

Leonídio Ribeiro era adepto da teoria eugenista que já vigorava desde o século
XVIII na Europa e que chegava ao Brasil no final do séc. XIX começo do séc.
XX. A teoria eugenista acreditava na “raça pura” e na interferência da ciência
sobre o corpo, além disso, os teóricos eugenistas vão apontar as misturas
raciais como fator degenerativo dos seres humanos e usar tal argumento para
justificar a existência de pessoas loucas, sujeitos invertidos, enfim, a
marginalidade como um todo era fruto da miscigenação. Em seu trabalho sobre
Febrônio, Ribeiro o define como “mestiço escuro em quem são francos os
caracteres do cruzamento caboclo-preto”, ou seja, o médico perito se utiliza da
miscigenação de Febrônio em seu discurso como produtora de um sujeito
marginal, com problemas mentais e com tendências homossexuais (GREEN;
2000). Além de Ribeiro, outros médicos vão propagar o discurso da
miscigenação e de diferenças físicas para designar homossexuais e
criminosos. Com a disseminação de tal ideologia eugenista, estes médicos da
primeira metade do século XX no Brasil vão defender a internação de
“invertidos” em sanatórios para tranquilizá-los e curá-los da prática de
pederastia passiva.

Em seu trabalho sobre a homossexualidade no Brasil no século XX, James


Green (2000) relata que, apesar das teorias apresentadas na época, que
classificavam a homossexualidade como uma doença ou desvio de conduta,
estarem repletas de fraquezas argumentativas, elas eram recebidas “de braços
abertos” pelos pesquisadores brasileiros, principalmente se eram realizadas
por europeus, ao invés de serem confrontadas. Green também atenta para o
fato de que, a partir do desenvolvimento dos estudos destes médicos
eugenistas do começo do século XX brasileiro criou-se uma cultura discursiva
que abordava a homossexualidade como doença e algo nocivo à sociedade

Muitos intelectuais brasileiros acolhiam de peito aberto noções


eugênicas da inferioridade de determinadas raças e da natureza degenerada de
determinados tipos sociais, especialmente quando os proponentes destas
teorias eram europeus. Além do mais, o sistema de apadrinhamento e o caráter
hermético dessa área de estudo desencorajavam a crítica aos mestres,
patrocinadores e colegas. Em vez de reconhecer e confrontar a inconsistência
dos métodos de pesquisa e das teorias de europeus e brasileiros envolvendo
crime, raça ou homossexualidade, um pequeno círculo de intelectuais tecia loas
aos trabalhos de uns aos outros, escrevia introduções laudatórias às
monografias de seus pares e citava as “descobertas” recíprocas de cada um. A
cultura gerada dentro dessa intricada rede de profissionais brasileiros
desencorajava as reflexões críticas sobre os resultados da pesquisa, fossem
eles relacionados com a identificação de degenerescência, fossem uma
proposta de antídoto para a doença da homossexualidade. (GREEN; 2000: 213)
A partir deste cenário de introdução e influência da teoria eugenista nos
estudos medicinais brasileiros e também a partir dos escritos de Leonídio
Ribeiro sobre o caso Febrônio Índio do Brasil identificamos o início da prática
que será chamada por Foucault (2004) de técnica “biopolítica”, onde as
instituições medicinais, psiquiátricas, jurídicas, políticas, policiais e o Estado
vão atuar em conjunto para aplicar políticas de controle sobre a população
enquanto um corpo que deve ser saudável. Os dispositivos que se
encontravam em pleno vigor na Europa desde o fim do século XVIII, porém,
como podemos observar, é partir do inicio do século XX que começam a ser
aplicados no Brasil. Estes dispositivos de biopoder vem juntamente com a
influência do liberalismo enquanto regime econômico e político que começa a
vigorar no Brasil e ganha força com a Era Vargas e posteriormente com a
presidência de Juscelino Kubitschek.

Temos a construção do trinômio sujeito – perigo – perversão que vai se dá com


a junção entre o poder jurídico e psiquiátrico. É a partir desta união, diz
Foucault, e também a partir dos laudos médicos que irão servir de bases para
julgamentos de sujeitos “perigosos”, que o poder psiquiátrico vai assumir a
função do poder judiciário e categorizar novos tipos de sujeitos que não são em
si criminosos, mas que carregam consigo perversões que devem ser tratadas
pelas instituições medicinais. Os sujeitos classificados como “perversos” e que
segundo os laudos psiquiátricos cometeram crimes por conta de um histórico
de problemas psiquiátricos não serão mais mandados às prisões, mas sim para
tratamentos. Foucault (2001) diz que a partir deste momento histórico, os anos
50, o que se visa punir não é o ato criminoso cometido, mas, sim o sujeito
criado pela instituição psiquiátrica. Estes sujeitos criados pelo discurso
psiquiátrico carregam, todos eles, dois componentes que vão marcar boa parte
dos símbolos ao redor dos sujeitos homossexuais ou daqueles que não se
enquadram nos parâmetros da “heteronormatividade compulsória” (BUTLER;
1996): Perigo e perversão. A partir deste aparato discursivo cria-se uma rede
de signos que vão nomear grupos de sujeitos enquanto perversos e criminosos
e que devem ser tratados ou, como veremos adiante, normalizados para os
padrões posto pela “sociedade disciplinar” (FOUCAULT; 1986) que vigora
desde os anos 60 com a ascensão do neoliberalismo e ganha força nos anos
80 com o fim da União Soviética e com o fim da divisão do mundo entre o polo
Capitalista e Comunista. Foucault ainda ressalta que esta junção entre
judiciário e poder médico “implica” na “reativação de um discurso
essencialmente parental-infantil, parental-pueril, que é o discurso dos pais para
os filhos, que é o discurso da moralização mesma da criança” (FOUCAULT;
2010: 31). Este discurso produzido para as crianças tem como objetivo prevenir
as crianças do “perigo social” e será um dispositivo para detectar o “perigo” e
“opor-se a ele”. De que medo e perigo fala Foucault? Quem ou que grupo
representa este “perigo social”? Trata-se dos sujeitos “invertidos”, estes, que
como observamos, “atentavam” para o bom funcionamento da nação brasileira.
Portanto, os homens-femininos, os pederastas, os homens que não
correspondem aos símbolos da masculinidade desenvolvidos a partir de
materiais pedagógicos da Era Vargas passam a representar este “perigo social”
que permanecerá patologizado até o inicio dos anos 90 pelo poder judiciário e
medicinal.

1.3 O carnaval, as caricatas e a imprensa: A festa entre sujeitos


“invertidos” e sujeitos “legalizados”

Se durante o final do século XIX e começo do século XX todo um saber e poder


médico – jurídico foi desenvolvido para, a partir do “conhecimento – legal”,
patologizar os sujeitos que até os anos 30 e 40 ainda eram chamados de
“invertidos” ou “pederastas passivos”, é a partir do fim da década de 50 e início
dos anos 60 que os homossexuais masculinos vão se apropriar de espaços
ditos heterossexuais durante a celebração do carnaval e se apropriar de
vestimentas femininas para subverter o espaço público. É também a partir
deste momento que se inicia um processo de construção identitária do
homossexual brasileiro. Durante as décadas de 60 e 70 as primeiras
identidades gays começam a circular pela sociedade brasileira, nesta época
estes sujeitos eram chamados de “bonecas”, “enxutos” e “almofadinhas”
(GONTIJO; 2009: 27). O inicio do movimento gay é apontado por Gontijo
(2009) como propulsor desta mudança discursiva em torno dos homossexuais
brasileiros, porém, ele atenta para o fato de que ainda não havia uma
“identidade homossexual”, pois, “esses indivíduos eram associados (e se
associavam) simbolicamente ao gênero oposto”. Ainda segundo Gontijo é a
partir da década de 70 que começa a se constituir uma identidade
homossexual no Brasil com o surgimento das “travestis, transformistas,
caricatas e entendidos, criando uma espécie de subcultura gay nos grandes
centros urbanos” (GONTIJO; 2009).

O Carnaval brasileiro já chamava a atenção de turistas desde os anos 30


(GREEN; 2000) por conta de seu caráter de “desregramento” e “subversão dos
papeis de gêneros” (GONTIJO; 2009). Para Green (2000), mais do que
subverter os papéis de gênero, o carnaval brasileiro “reflete tensões sociais
profundamente arraigadas”. No carnaval os homens definidos como
heterossexuais podem “tomar bijuterias e maquiagens emprestada de suas
mulheres”, pois, estes homens ao se “travestirem” de mulheres durante o
carnaval não abandonam os papéis de “homens de verdade” na sociedade
brasileira. Findada a festa, todos estes homens voltam para os seus lares. Mas
Green reconhece que o carnaval é o momento “onde muitos homossexuais
brasileiros têm a oportunidade de intensificar suas experiências como
indivíduos que transgridem papéis de gênero e fronteiras sexuais socialmente
aceitáveis o ano inteiro” (GREEN; 2000: 335). Portanto, os dispositivos da
heteronorma adormecem durante o carnaval para acordarem na quarta-feira de
cinzas.

O primeiro bloco carnavalesco assumidamente “travesti” e “homossexual” que


se tem notícia é o “Caçadores de Veados”, os organizadores se “apropriaram
da terminologia que era utilizada no cotidiano brasileiro” (GREEN; 2000) para
fazer uso debochado à expressão. Fez parte do bloco o lendário personagem
Madame Satã, que ficou famoso pelas suas exuberantes fantasias que
ganharam inúmeros prêmios durante os anos 40 e que teve a sua vida
retratada no longa metragem que leva o seu nome (Madame Satã; 2002). Mas,
é apenas no final dos anos 50 que surgem os blocos exclusivamente para
travestis, homossexuais, lésbicas e transexuais e que começam a ser
pensados e organizados por empresários e foliões. Mesmo o carnaval sendo a
festa onde homens heterossexuais se apropriavam do aparato feminino para se
fantasiar, a presença de homossexuais e outros sujeitos não heterossexuais
não era bem vista pelos participantes dos blocos carnavalescos (GONTIJO;
2009). Por conta disso e também pelo aumento expressivo de homossexuais e
de seu poder aquisitivo, inicia-se a organização de bailes, blocos e festas
voltadas exclusivamente para as travestis, que mais tarde ficaria conhecido
como o “Gala Gay”.

A primeira metade do século XX no Brasil vai servir para constituir a imagem do


homossexual enquanto sujeito “invertido” e digno de tratamento, a segunda
metade do século XX vai se dar pela constituição das identidades dos
homossexuais. Isso se dará principalmente por meio de festas e blocos
carnavalesco e do incipiente movimento gay, que ganha a sua primeira versão
com o grupo anárquico “SOMOS – Grupo de Afirmação Homossexual”,
fundado em 1978, na cidade de São Paulo. Mas antes de aprofundarmos a
questão do surgimento do movimento homossexual no Brasil, é importante que
entendamos a importância do carnaval e dos blocos carnavalescos como
ferramentas no desenvolvimento da identidade homossexual dentro da
sociedade brasileira. Será no carnaval que irão emergir as figuras controversas
a romper com o binarismo de gênero heteronormativo, seja nas representações
ou nas práticas sexuais, que imperava nos dispositivos sociais à época.
Destaques para as caricatas, que faziam de seus corpos travestidos uma
paródia das mulheres. Surgem também as transformistas, que além de fazer
shows de humor parodiando o gênero e os códigos do feminino, interpretavam
figuras femininas da música. Tanto as caricatas quanto as transformistas
tornar-se-iam personagens fundamentais da subcultura gay que se desenvolvia
no final dos anos 70.

O primeiro bloco de carnaval a ganhar destaque na imprensa foi a “Banda de


Ipanema”, fundada em 1965 na zona sul do Rio de Janeiro. A Banda de
Ipanema seria o primeiro bloco a utilizar o termo “banda” (GONTIJO; 2009) e
logo se tornaria um fenômeno popular. Fundada por intelectuais que se
contrapunham aos desfiles de carnaval que na opinião deles estavam se
“mercantilizando” (Ibidem). Ainda hoje a Banda de Ipanema é considerada uma
das mais libertárias e mais frequentada por “homossexuais” (Ibidem). Com o
sucesso da Banda de Ipanema, os realizadores do bloco vão incentivar outros
bairros do Rio de Janeiro a fundarem a suas bandas. A primeira banda
assumidamente homossexual será a “Banda Carmem Miranda”. Além do
caráter subversivo de levar o carnaval de volta às ruas, as bandas serão
responsáveis por ocupar boa parte da imprensa durante o carnaval e fazer com
que gays e transformistas sejam matérias de capa das principais publicações
da imprensa em vigor nos anos 70 e 80, com destaque para a extinta revista
Manchete, que em 1977 fez uma longa reportagem sobre a Banda de Ipanema
e pela primeira vez citava as palavras “homossexuais” e “caricatas” para
descrever os participantes da banda que apareciam em seis grandes fotos,
sendo que três destas fotos foram de “caricatas”, algo que até então não tinha
acontecido em nenhum veículo de grande circulação da imprensa brasileira
(GONTIJO; 2009).

Não será apenas o carnaval o responsável por produzir figuras e expressões


artísticas que irão contrapor a estruturas normativas da sociedade organizada
sob os ditames heterossexuais. No teatro e na música do Brasil dos anos 70
aconteceu, o que se chamou à época, um verdadeiro “desbunde”, termo que se
utilizava nos anos setenta para designar os sujeitos e grupos que vivenciavam
as suas experiências “fora do sistema” (FACCHINI; SIMÕES; 2009). Na música
o grupo Secos & Molhados causava furor com as performances andróginas de
Ney Matrogrosso, que ora eram femininas, ora agressivas, mas sempre
contestadoras de um status quo comportamental – sexual que imperava na
época. Em um estilo similar, porém mais radical e de alcance maior, o grupo
musical e teatral Dzi Croquettes causou uma revolução silenciosa que durante
anos não foi atingida ou silenciada pelo crivo da censura militar, que entrava na
pior fase no Brasil após a promulgação do Ato Institucional nº 5. Os Dzi
Croquettes eram liderados pelo bailarino norte-americano Lannie Dale, que
junto do grupo trouxeram para o Brasil o estilo que nos Estados Unidos era
conhecido como genderfucker (ibidem), movimento desenvolvido no norte da
América no fim dos anos 60 que tinha como ideologia a não representação dos
gêneros em suas formas unitárias, a ideia era representar corpos nem machos,
nem fêmeas, uma mistura, uma não convenção em torno dos gêneros
enquanto representação performativa. Os Dzi Croquettes levaram isso ao
extremo pelo Brasil afora, principalmente nas cidades de São Paulo e Rio de
Janeiro, onde tinham um séquito de fãs que os perseguiam e que foi apelidado
pelo grupo de “tietes” (Ibidem).

A grande diferença dos Dzi Croquettes com os outros artistas do Brasil é que,
aqueles homens que subiam aos palcos com cílios postiços, maquiados, com
vestidos, mas ainda com pelos, transformaram o Dzi Croquettes num estilo de
vida. Os integrantes do grupo vivenciavam o seu cotidiano assim como no
palco, ou seja, no dia a dia usavam calças justas, roupas coloridas, batom,
salto alto e mini blusa. Por conta disso, os fãs do grupo passaram a se portar
igual aos integrantes do grupo e uma “família” foi formada. É a partir deste
surto “dzi croquetteano” que os militares passaram a investigar o grupo e
consequentemente a censurá-los e no fim dos anos 70, exilá-los (LESSA,
Raphael; ISSA, TATIANA; Dzi Croquettes: 2009).

Os Dzi Croquettes colocaram nos palcos brasileiros uma ambiguidade


de virulência inédita entre nós – influenciados também pelo espírito dos
genderfucker americanos. Em seus espetáculos, homens de bigode e barba
apresentavam-se com vestes femininas e cílios postiços, usando meias de
futebol com sapatos de salto alto e sutiãs em peitos peludos. Assim, nem
homens nem mulheres (ou exageradamente homens e mulheres), eles
dançavam em cena e contavam piadas cheias de humor ambíguo, tentando furar
o cerco repressivo desse período ditatorial em que a censura e a polícia
mobilizavam-se ao menos movimento que destoasse dos parâmetros permitidos.
(TREVISAN; 2005: 288)

Trevisan (2007) prossegue o seu relato a respeito do grupo Dzi Croquettes


dizendo que o sucesso “fulminante” do grupo se deu entre a “juventude mais
insatisfeita da época” e que eles conseguiram construir, como relatado acima,
dentro e fora do palco, uma importante contestação da “moral sexual” e
também em torno das experiências com drogas como “forma de libertação
interior”. Trevisan também diz que a radicalidade estética do grupo foi
importante para introduzir no Brasil o debate a respeito da sexualidade e
também por colocar em xeque os papéis sexuais e de gênero e também por
introduzir a figura da “bicha”, que servia de contraponto a figura da “bicha viril”
que começava a surgir no Brasil dos anos 70. Por fim, os Dzi Croquettes
trouxeram para o Brasil “o que de mais contemporâneo e questionador havia
no movimento homossexual internacional”. A posteriori, a cultura da bicha ou
do genderfucker proposta pelo Dzi Croquette seria substituída pela “moda
conformista dos gays machos da década de 1980 e das barbies dos anos 90”
(Ibidem).

1.4 O surgimento do movimento homossexual no Brasil: o


grupo Somos e o jornal O Lampião de Esquina

Observamos até aqui que a identidade construída em tornos dos sujeitos


homossexuais, até a primeira metade do século XX, será a do sujeito
“invertido” que ameaça o bom funcionamento da moral e dos costumes da
sociedade heteronormativa, que se pauta pela reprodução. A identidade dos
homossexuais enquanto “pervertidos” e “invertidos” foram construídas pelos
médicos e biopesquisadores do final do século XIX e começo do século XX,
estes pesquisadores acabam por fazer nascer uma identidade que se
desnudava frente a uma sociedade até então acostumada apenas a enxergar e
conviver com sujeitos entendidos enquanto heterossexuais. O surgimento
desse “poder-saber” (FOUCAULT; 1988) sobre a vida humana enquanto
projeto político e como forma de controle sobre o funcionamento da sociedade
data do século XVIII. Foucault aponta para o fato de que “pela primeira vez na
história, sem dúvida, o biológico reflete-se no político” e de que a intervenção
do poder político sobre as populações vai se ocupar de como estes sujeitos
devem viver. Foucault diz que nasce aí a “bio-história” e os mecanismos de
cálculos governamentais que fará do “poder-saber um agente de transformação
da vida humana”
Se pudéssemos chamar de “bio-história” as pressões por meio dos quais
os movimentos de vida e os processos da história interferem entre si, deveríamos
falar de “bio-política” para designar o que faz com que a vida e seus mecanismos
entrem no domínio dos cálculos explícitos, e faz do poder-saber um agente de
transformação da vida humana; não é que a vida tenha sido exaustivamente
integrada em técnicas que a dominem e gerem; ela lhes escapa continuamente.
(FOCAULT; 1988: 156)

Foucault segue explicando que se inicia uma era onde a vida do homem
moderno está em questão e que inúmeros dispositivos são colocados em
prática a partir do que ele chama de “bio-política” ou “governamentalidade”
para reger e sugerir comportamentos aceitáveis. A partir deste momento onde
surgem os estudos medicinais sobre alguns tipos de comportamentos e onde
também já observamos uma união entre os poderes religiosos, medicinais,
psiquiátricos, políticos e policiais emerge uma série de “tecnologias políticas”
que irão “investir sobre o corpo, a saúde, as maneiras de se alimentar e de
morar, as condições de vida, todo o espaço da existência” (Ibidem). É também
a partir dos surgimentos destas técnicas de poder sobre a vida que nasce a
“sociedade normalizadora”

Uma sociedade normalizadora é o efeito histórico de uma tecnologia de


poder centrada na vida. Por referência às sociedades que conhecemos até o
século XVIII, nós entramos em uma fase de regressão jurídica; as Constituições
escritas no mundo inteiro a partir da Revolução Francesa, os códigos redigidos
e reformados, toda uma atividade legislativa permanente e ruidosa não devem
iludir-nos: são formas que tornam aceitável um poder essencialmente
normalizador. (FOUCAULT; 1988: 157)

Estes saberes e poderes que ganham corpo e força no século XIX e que visam
uma sociedade homogênea e normatizada vão produzir a partir de seus
próprios discursos os primeiros focos de resistência que irão se apropriar de
estudos e projetos políticos aplicados a partir de dispositivos estatais para
desconstruir a identidade do sujeito “invertido” como personagem nocivo ao
bom funcionamento da sociedade. A partir do momento em que os poderes se
voltaram para o corpo e para a população é “o sexo o alvo central de um poder
que se organiza em torno da gestão da vida, mais do que a ameaça da morte”
(FOUCAULT; 1988: 160). É exatamente este poder e controle sobre o sexo que
vai gerar os discursos contrários a estas formas de controle e normalização
sobre a sexualidade dos corpos. Um dos primeiros filósofos a trabalhar pela
desconstrução do discurso em torno do homossexual enquanto sujeito
“invertido” e também pelos direitos civis da comunidade homossexual que se
formava à época foi Edward Carpenter (1844-1929), militante socialista;
também atuou neste campo Magnus Hirschfeld (1868-1935), médico e que
fundou o Comitê Humanitário Cientifíco, em 1897. Esta organização trabalhou
com o discurso de que a homossexualidade era um “terceiro sexo” com o
intuito de retirar a categoria homossexual da marginalidade e do hall de
doentes e assegurar “os direitos básicos atribuídos a homens e mulheres”
(FACCHINI; SIMÕES; 2009: 38).

Hirschfeld e Carpenter iniciaram um ativismo contestatório dos saberes


médicos que tratavam a homossexualidade como uma categoria “degradada”,
podemos então apontá-los como responsáveis pelo início de um ativismo
dentro do aparelho ideológico medicinal com vistas a desconstruir um saber em
que insistia encerrar os sujeitos homossexuais nas prisões e nos sanatórios. As
ações de Hirschfeld e Carpenter vão extrapolar os espaços medicinais e
culminar com aquilo que se identifica como primeiro foco de um movimento
político homossexual organizado no fim do século XIX e começo do século XX
e que irá culminar com a luta pela descriminalização da homossexualidade na
Alemanha, quando Hirschfeld lidera a campanha pela extinção do parágrafo
175 do Código Penal da Alemanha, que considerava crime as práticas
homossexuais (Ibidem). Este movimento liderado por Hirschfeld ficou
conhecido como o “movimento da reforma sexual” (Ibidem) e teve o seu auge
entre as décadas de 1910 e 1920. Quando, em 1917 conseguiu fazer com que
o governo Bolchevique retirasse as leis anti-homossexuais de sua constituição
e com a fundação do Instituto de Ciência Sexual, em 1919.

O Instituo de Ciência Sexual, fundado por Hirscfeld, foi responsável por iniciar
debates a respeito das diferenças entre “homossexuais”, “andróginos”,
“travestis” e “hermafroditas” que, segundo o pesquisador, “eram variantes
benigmas, provavelmente de base orgânica e inata”. Segundo Facchini e
Simões estas divisões foram importantes por suplantarem a base do discurso
que seria vociferado por boa parte do movimento homossexual e também
“serviriam como referências para a produção de novas identidades sociais e
sexuais, que buscariam espaço no movimento político” (FACCHINI; SIMÕES;
2009: 42). Porém, todo este avanço em torno de teorias que visavam retirar
das identidades homossexuais o estigma de “degenerados” ou “invertidos”
seriam soterradas a partir dos anos 30 pelo Nazismo e pelo regime Stalinista,
na União Soviética. A mando do governo nazista, o Instituto de Ciências
Sexuais seria destruído. A Rússia Soviética e a Alemanha nazista passariam
então a “promover violentas campanhas contra a homossexualidade”, a
criminalização da homossexualidade voltaria a configurar a Constituição dos
dois países. Se na Alemanha a homossexualidade era tida como uma ameaça
à construção da raça ariana, na Rússia soviética a relação entre pessoas do
mesmo sexo constituiria um desvio revolucionário e símbolo da decadência
burguesa (ibidem).

Posteriormente a Segunda Guerra Mundial dois fatos dariam novo gás para a
rearticulação do movimento homossexual e de sua luta pela despatologização
da homossexualidade. O primeiro seria com a publicação, em 1948, do
Relatório Kinsey. O pesquisador Alfred kinsey publicaria uma série de relatórios
a respeito da sexualidade que “originou a revisão sobre o comportamento
sexual masculino, a partir de hipóteses como a de que 37% dos homens
americanos haviam tido algum experiência homossexual” (FIGARI; 2007: 369).
Os relatórios de Kinsey ajudaram na desconstrução de que as relações
homossexuais estavam restritas a pequenos grupos e que, mais do que
imaginava o senso comum, as relações sexuais entre pessoas do mesmo se
fazia presente para além dos guetos. Posteriormente, mais especificamente no
ano de 1949, seria publicado o livro “O Segundo Sexo”, de Simone de
Beauvoir, que traria novos conceitos não apenas para a homossexualidade
feminina, mas germinaria em um novo debate a respeito da constituição do
gênero enquanto discurso político e criação cultural voltado para a dominação
dos sujeitos efeminados pelos sujeitos viris.

No ano de 1951 ativistas lésbicas e homossexuais de Los Angeles fundaram o


grupo Mattachine Society (Ibidem),alguns anos depois da fundação deste
grupo surgiram algumas dissidências, a qual se destaca o grupo lésbico
Daughters of Bilits, nome inspirado no livro de contos lésbicos eróticos
Chansons de Bilits. A década de 50 ainda acompanharia o surgimento de
vários grupos políticos em prol da causa homossexual surgirem na Holanda,
Dinamarca e França (Ibidem). Estes grupos de ativistas homossexuais
articulados na primeira metade do século XX tinham como foco a luta pela
descriminalização e despatologização da homossexualidade e um discurso
mais conservador e, ao contrário dos argumentos de Kinsey, que trabalhava
com a possibilidade de várias manifestações da sexualidade, estes grupos
focavam os seus discursos no dualismo homo/ hétero. Os grupos mais radicais
surgiriam durante os anos 60, principalmente nos Estados Unidos, onde seriam
influenciados pelos movimentos hippie e de contracultura no geral (FACCHINI;
SIMÕES; 2009).

O fato responsável pelo surgimento de um movimento gay articulado nos


Estados Unidos, Europa e mais tarde no Brasil, é o levante de Stonewall Inn,
bar localizado na Christopher Street, Manhattan, Nova York, região boêmia e
ponto de encontro de homossexuais. Na noite de 28 de junho de 1969, a
polícia de Nova York baixou no bar para fazer uma batida, porém, os
frequentadores do local, cansados de serem humilhados pelos policiais,
resolveram enfrentar a polícia e travaram uma batalha de “pedras e garrafas
com os policiais” (FACCHINI; SIMÕES; 2009).

O levante de Stonewall teve repercussão internacional e despertou entre a


comunidade gay a necessidade de uma luta organizada pelos direitos civis e
pela desconstrução do discurso marginal e patologizador que ainda perdurava
sobre os sujeitos homossexuais. Facchini e Simões (2009) destacam que a
revolta de Stonewall “não foi um acontecimento espetacular isolado”, mas foi o
responsável por suscitar o movimento de orgulho em torno da identidade
homossexual. A partir de então o dia 28 de junho passaria a ser comemorado
como o “Dia do Orgulho Gay e Lésbico”. A partir dos anos 70 as expressões
“se assumir” e “sair do armário” passariam a ser utilizadas como expressões
políticas de afirmação da identidade gay frente a uma sociedade e sistema
políticos normativos que resistiam em reconhecer o coletivo homossexual como
sujeitos de direitos civis. Os ativistas à época também lutariam contra a
imagem de minoria que circundava a comunidade gay. Do levante de Stonewall
emergiu o gay Power e o orgulho gay, mas grupos mais radicais trabalhariam a
concepção de identidade gay enquanto contestadora do sujeito homossexual
pensado até o momento. Grupos como o norte-americano Gay Liberation Front
preconizavam o rompimento com o binarismo homo-hétero, para este grupo o
sujeito gay deveria atuar como dispositivo de subversão das categorias
binárias, “não dizia respeito a uma preferência ou orientação sexual
determinada, mas equivalia, antes, a um modo de vida eroticamente
subversivo” (FACCHINI; SIMÕES; 2009: 45). A América Latina teve militância
parecida com o grupo argentino Nuestro Mundo, organizado em 1969 e que a
partir de 1971 se chamaria Frente de Liberación Homossexual (FLH). A FLH
teve uma publicação que levava o nome de Somos, que inspiraria o nome do
primeiro grupo gay ativista do Brasil. Porém, por conta da ditadura militar
argentina, a FLH foi “destroçada” em 1976 (Ibidem).

Observamos, a partir dos fatos históricos narrados acima, que a construção da


identidade homossexual pode ser dividida em três fases: em um primeiro
momento os sujeitos homossexuais serão tratados pelas instituições durante os
séculos XVIII e XIX como “anormais” e “seres degradantes”. A estas práticas
sexuais restará o cárcere e a internação em clínicas para se “tratar” a
“inversão” sexual que acometia tais sujeitos; o segundo momento da
construção da identidade homossexual se dá com os trabalhos do pesquisador
alemão Hirschfeld ao iniciar o debate a respeito de várias possibilidades
identitárias e sexuais como manifestações “inatas” com a intenção de descolar
a imagem das manifestações sexuais não heterossexuais como manifestações
degradantes ou doentes. Posteriormente ao ativismo pró-homossexual de
Hirschfeld, publicou-se anos depois os relatórios sexuais de Kinsey, que
impulsionaria um novo debate nos anos 50 e incentivaria o surgimento de
grupos ativistas pela causa gay nos Estados Unidos e na Europa, que teriam
como foco a luta pela descriminalização da homofobia. Estes dois momentos
serviram como base para o discurso ativista que surgiria nas décadas
seguintes. Durante os anos 60 surgiriam os grupos mais radicais que
criticariam uma espécie de normalização na luta binária homo – hétero, tais
grupos apontavam a identidade gay como objeto de uma subversão da
sexualidade proposta pelas sociedades de então. Com o fim dos grupos e do
movimento de contracultura, prevalece a tendência menos “radical”, que
encampa a concepção de uma minoria gay e lésbica. No lugar do hedonismo
libertário dos anos 60 surgem os grupos organizados que irão desenvolver os
espaços de convivência (os guetos) e estes mesmos grupos se transformam
em forças econômicas e políticas. Durante os anos 70 e 80 surge nas grandes
metrópoles o mercado segmentado e com isso a normalização de uma luta
subversiva em pauta econômica e de mercado.

O escritor e ativista gay João Silvério Trevisan relatou em seu livro “Devassos
no Paraíso” (2004) a experiência de retornar ao Brasil, depois de ter se exilado
nos Estados Unidos, e articular no país aquele que seria o primeiro grupo de
ativismo gay organizado no Brasil, o Somos. Trevisan conta que ao se exilar
nos Estados Unidos pode entrar em contato com várias formas de se fazer
políticas voltadas para a questão homossexual, mas, ao chegar ao país, no ano
de 1976, Trevisan conta que encontrou grupos com “falta de pontualidade” nos
debates que se tentavam estabelecer em terras brasileiras, pois, segundo
Trevisan, os ativistas gays brasileiros à época já estavam fortemente
influenciados pelo discurso comunista que considerava a luta de gênero uma
pauta secundária (TREVISAN; 2007: 337). Outro problema encontrado por
Trevisan entre os ativistas brasileiros era o fato de “70%” dos ativistas acharem
normal serem tachados de “anormais” pela sociedade por conta de sua
homossexualidade. O escritor relata que os primeiros grupos a romperem com
o conservadorismo em torno do debate sobre gênero foram as feministas que
tentavam “impor uma autonomia metodológica em suas discussões, que foram
se ampliando em torno da criação de alguns jornais” (Ibidem). Outro problema
encontrado pelo ativista para colocar a discussão dos direitos civis de
homossexuais nos espaços políticos era que a questão começava a ser tratada
como um problema das minorias, que na análise de Trevisan era um “rótulo
vago e finamente depreciativo” (TREVISAN; 2007: 338). No ano de 1977, o
clima para se fazer militância gay no Brasil era hostil à esquerda e à direita, por
conta disso “alguns intelectuais, jornalistas e artistas homossexuais reuniram-
se no apartamento de Darcy Penteado” (Ibidem) e deste encontro surgiu a ideia
de se fundar um “Coletivo para a criação de um jornal feito por e com o ponto
de vista de homossexuais, que discutisse os mais diversos temas e fosse
vendido mensalmente nas bancas de todo o país” (Ibidem). Foi em abril de
1978 (Ibidem) que surgiu o número 0 do jornal O Lampião de Esquina, que na
opinião de Trevisan significou uma “ruptura” para os valores pudicos da época.

O jornal O Lampião nasce em um Brasil que ainda vivia sob o regime militar.
Nesta época, 1978, os movimentos estudantis voltavam aos poucos para as
ruas, as greves também voltavam a ser utilizadas como instrumentos de lutas e
no meio deste caldo político surgia a “minoria oprimida que se juntava, à sua
maneira, ao coro de oposição à ditadura” (FACCHINI; SIMÕES; 2009: 81).
Facchini e Simões relatam que é inegável a importância do jornal O Lampião e
posteriormente a fundação do grupo ativista Somos, mas que, mais do que
terem sido os primeiros a atuarem de forma assumida, a sua importância está
mais pelo legado que deixaram sobre como fazer política, um modelo que até
hoje inspira grupos

Não cabe dúvida sobre a importância de ambos (Lampião e SOMOS).


Mas vale ressaltar que o reconhecimento que a eles se presta, hoje, se deve não
tanto por terem sido, respectivamente, o primeiro jornal e o primeiro grupo a
tratar da homossexualidade como questão social e política, nem por terem
representado (como efetivamente foram) uma experiência marcante na vida de
seus participantes diretos e de todos aqueles que de alguma maneira estiveram
à sua volta. (FACCHINI; SIMÕES: 2009: 82)

O jornal O Lampião não foi à primeira tentativa de se fazer um meio de


comunicação voltado para as questões homossexuais, mas o que diferenciou o
jornal dos outros é que O Lampião buscava retirar a comunidade homossexual
do gueto e não mais tratá-la como “criaturas destroçadas por causa do seu
desejo, incapazes de realização pessoal e com tendências a rejeitar a própria
sexualidade” (FACCHINI; SIMÕES; 2009: 85). O que também tornava o jornal
O Lampião singular em relação aos outros meios de comunicação impresso era
o seu grupo editorial que reunia pessoas com histórias ligadas ao engajamento
político. Compunham o núcleo central do jornal: Aguinaldo Silva, que nos anos
60 fora próximo do Partido Comunista Brasileiro (PCB); João Silvério Trevisan,
que nos anos 60 militou em grupos estudantis e no grupo Ação popular (AP),
mais tarde James Green se tornaria colaborador do jornal, o pintor Darcy
Penteado, Peter Fry e João Antônio Mascarenhas. Assim, o jornal O Lampião
foi o primeiro meio de comunicação a combater estereótipos em torno dos
homossexuais e também o primeiro a fazer um trabalho que visava retirar a
comunidade gay do gueto

O jornal se propunha a “sair do gueto” e ser um veículo pluralista aberto


a diferentes pontos de vista sobre diferentes questões minoritárias. Isso foi posto
em prática com a publicação de matérias sobre o movimento feminista,
movimento negro, transexualidade, sadomasoquismo, populações indígenas,
prisioneiros, ecologia e até mesmo uso da maconha. Também se preocupava
com as condições dos que se dedicavam com a prostituição masculina e
feminina, tendo realizado matérias e entrevistas com travestis, garotos e garotas
de programa. (FACCHINI; SIMÕES; 2009: 86)

Simultaneamente ao surgimento do primeiro jornal voltado para pautas gays,


mas com uma abordagem libertária, o Brasil também acompanharia o
surgimento do primeiro grupo de ativismo gay, que foi idealizado por João
Silvério Trevisan, como relatado acima. Trevisan conta (2007) que nos
primeiros encontros os temas debatidos não eram os mesmo discutidos pelos
grupos esquerdistas da época e que as discussões do grupo, que ainda não
tinha um nome, se focavam em “experiências quotidianas enquanto
homossexuais, assim como dúvidas, problemas e projetos, visando dessa
maneira a atuar sobre a realidade sem começar pelo outro, mas por nós
próprios” (TREVISAN; 2007: 339). Outro fator que dava o tom das conversas
pelo grupo era a experiência “traumática” (Ibidem) que boa parte das pessoas
que faziam parte do grupo tinham tido com os partidos de esquerda. Por conta
disso, os ativistas desejavam realizar uma atuação política com foco no sujeito
e não mais atrelados em comitês centrais de partidos políticos. Em um artigo
escrito coletivamente, conta Trevisan, os membros do grupo classificavam as
“trepadas como atos políticos”. Também não trabalhavam com a ideia de
lideranças e temas como a quebra de papéis sexuais (ativos / passivo), a
ruptura com o modelo heterossexista de relação amorosa e a poligamia como
“proposta potencialmente transformadora”. Apesar do tom libertário do grupo,
esta forma de organização encontrou resistência à época, pois, quando jovens
iam pela primeira vez às reuniões reclamavam da “falta de orientação
ideológica e ausência de organicidade”

Para um período que ainda obedecia os ecos da revolução estilo


comunista, tal proposta soava muito atrevida, quando vinda de companheiros
esquerdistas, pois contestava a legitimidade das autodenominadas vanguardas
de esquerda tomarem o poder em “nome do povo”. Queríamos ser plenamente
responsáveis por nossa sexualidade, sem ninguém falando em nosso nome. E,
na época isso não era pouco. Mas, durante todo o primeiro ano de vida do grupo,
nosso apelo não parecia exercer muito encanto, nem entre homossexuais.
Éramos um bando de solitários, atacados pela direita e abastardados pela
esquerda, tateando em busca de uma linguagem mais adequada às dimensões
recém-descobertas de nosso desejo. Sentíamos o gosto da impotência e da
frustração. (TREVISAN; 2007: 341)

Trevisan narra como ponto culminante para o movimento gay ganhar as ruas,
pelo menos em São Paulo, um debate realizado na Universidade de São Paulo
(USP), em 8 de fevereiro, no ano de 1979 (Ibidem). O ativista e escritor conta
que o auditório da Faculdade de Ciências Sociais da USP estava lotado. Como
expõe Trevisan, o público era composto majoritariamente por jovens militantes
profissionais da esquerda universitária, mas no público também havia inúmeras
“bichas e lésbicas” (Ibidem). O debate foi tenso e os estudantes homossexuais
no meio do debate gritavam que a sua luta era o direito de ir “para cama com
quem quisesse”, enquanto jovens comunistas diziam que a luta de gênero “era
coisa de quem não tinha o que fazer” (Ibidem). O debate durou cerca de três
horas, como relata Trevisan

Ao final de três horas de debate, nossas camisas empapadas de


suor davam a sensação de que o movimento homossexual brasileiro acabava de conquistar o
espaço que lhe era devido. Nossa luta estava finalmente na rua. Emocionados e nos beijando
em público, já não sentíamos nenhum pudor ideológico. Só não sabíamos que aquele nosso
primeiro enfrentamento com a esquerda universitária não seria o último, nem o mais violento.
(TREVISAN; 2007: 344)

Posteriormente ao debate sobre a questão homossexual na Universidade de


São Paulo (USP), o principal ganho foi o aumento considerável de sujeitos
interessados em participar do incipiente movimento gay organizado. O grupo
idealizado por João Silvério Trevisan passou de dez “gatos pingados” para uma
média de 100 pessoas (TREVISAN; 2007: 345). Além do fortalecimento de uma
luta política e organizada em torno da questão homossexual, o debate
realizado na USP provocou a urgência de se debater o machismo que ainda
residia entre os ativistas gays masculinos (Ibidem) e fez com que o grupo, que
já era conhecido pelo nome Somos, germinasse os espaços voltados para
debates exclusivos sobre a questão das mulheres lésbicas e de suas
demandas específicas (Ibidem). Se por um lado, o surgimento da necessidade
das lésbicas em fazerem debates separados a respeito de suas demandas
significava um avanço no que diz respeito à questão de gênero no Brasil, por
outro lado, ativistas gays consideravam tal postura sectária e isso fez com que
houvessem tensões entre ativistas gays e lésbicas. O que no começo parecia
um avanço, por muitas vezes se tornou um problemas entre os ativistas.
Entendeu-se à época “que ser homossexual não significava uma automática
aliança com as mulheres, às vezes, até pelo contrário” (Ibidem).

Se do lado do ativismo político o Brasil acompanhava o surgimento do primeiro


grupo organizado, o Somos e suas ramificações, por exemplo, as lésbicas se
organizando em torno de suas questões, o jornal O Lampião começava a sofrer
boicotes de algumas bancas de jornais que se recusavam a vender a
publicação e também a ser alvo de campanhas produzidas por grupos
conservadores que incentivavam o boicote as bancas de jornais que ousassem
vender a publicação voltada para a questão homossexual. Em agosto de 1978
o jornal seria alvo de um inquérito movido pelo Ministério da Justiça sob a
acusação de atentar contra a “moral e os bons costumes” (TREVISAN; 2007:
346). Fato curioso é que antes da ação do Ministério da Justiça, os jornalistas
de O Lampião foram interrogados e fichados pela polícia
Antes mesmo de instaurado qualquer processo judicial, fomos
intimidados e interrogados pela polícia, fotografados e
identificados criminalmente; em resumo, a polícia já nos julgava
antecipadamente culpados. No interrogatório, umas das
primeiras perguntas feitas a vários editores era a confirmação do
fato de serem homossexuais. Felizmente, os Sindicatos dos
jornalistas do Rio e de São Paulo ofereceram advogado gratuito
e apresentaram apoio ao Lampião. (TREVISAN; 2007: 346)

Esta não seria a única ação do regime ditatorial em vigor no Brasil a tentar
encerrar com as atividades do jornal O Lampião. A chamada imprensa “nanica”
ou “alternativa” também seria vítima de processos do regime ditatorial.
(FACCHINI; SIMÕES; 2009: 88). Porém, os jornalistas de O Lampião não
seriam os únicos a serem alvos da ditadura por atentarem aos “bons costumes”
ao realizar reportagens com foco na questão gay. O jornalista Celso Cury, que
assinava a Coluna do meio, espaço exclusivo para o debate gay, mas com
conotação de coluna social, que era publicado diariamente no jornal Última
Hora, foi alvo de processo dos militares. Curiosamente, a motivação do
processo do Ministério da Justiça contra O Lampião era justamente uma
reportagem publicada na edição zero que relatava o processo ao qual Cury era
alvo (Ibidem).

Além da ousadia de ter sido editado em plena ditadura militar, outra


característica que revela o valor transgressor de O Lampião era o uso de
termos como “veado”, “bicha”, “bichas loucas” e “boneca” (Ibidem). O jornal
também continha uma coluna social que se chamava “Bixórdia”, na qual uma
personagem intitulada Rafaela Mambaba “exercitava o linguajar ferino e
malicioso atribuído às travestis e às bichas loucas” (FACCHINI; SIMÕES; 2009:
89). Outra característica que marcou a existência de O Lampião foi o amplo
espaço dedicado para debates sobre o feminismo e a homossexualidade. Uma
das entrevistas que mais marcou foi a entrevista com Lecy Brandão na edição
de novembro de 1978, onde a cantora falava abertamente sobre a sua
homossexualidade (Ibidem). Cabe notar que O Lampião cumpria não apenas o
papel de retirar a comunidade e a pauta gay da marginalidade, mas também
havia uma preocupação linguística e uma atitude política de se reapropriar de
palavras que até então eram consideradas pejorativas, é o que explica
Aguinaldo Silva no número 3 do jornal

O uso de tais palavras em Lampião , na verdade tem um propósito. O


que nós pretendemos é resgatá-las do vocabulário machista para, em seguida,
desmistificá-las. Veja bem, até agora elas foram usadas como ofensa, serviam
como o meio mais simples para mostrar a “separação” que existe entre o nosso
mundo e dos outros. Isso faz com que, temendo o peso das palavras, criemos
outras igualmente mistificadoras, embora, para quem as adota, sem qualquer
tom pejorativo: entendido, por exemplo; e até mesmo que empreguemos
sutilmente termos de um outro idioma, como é o caso de gay (Lampião bagunçou
logo o coreto, traduzindo-a para guei, que significa absolutamente nada). A
primeira coisa a fazer, portanto, é perder o medo das palavras. O caminho para
isso é usá-las. (FACCHINI; SIMÕES; 2009: 89/90)

O grupo ativista Somos e o jornal O Lampião tem uma história cruzada, isso
por conta de João Silvério Trevisan que, além de fundador do Somos, também
integrava o conselho editorial do jornal O Lampião. Esta parceria fez com que
Somos e Lampião caminhassem juntos e isso fez com que reuniões de pauta
de o Lampião fossem realizadas em São Paulo, visto que a sede do jornal era
na cidade do Rio de Janeiro (FACCHINI; SIMÕES; 2009: 103). Outro fator
importante que surge com a proximidade entre o Somos e O Lampião é a
publicidade que o ativismo gay ganhava e isso fazia com que outros grupos se
articulassem e dessem início ao movimento gay no Brasil. No final dos anos 70,
além do Somos, outros grupos começavam a se articular: Eros – SP, SOMOS
Sorocaca – SP, Libertos Guarulhos – SP, Somos - RJ, Auê – RJ, Beijo Livre
Brasília – Brasília – DF, Grupo de Afirmação Gay - Caxias – RJ, Grupo 3 Ato –
Belo Horizonte – MG. Todos estes grupos se reuniram em dezembro de 1979,
no Rio de Janeiro, na sede da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), onde o
jornal O Lampião promoveu o Encontro de Homossexuais Militantes
(FACCHINI; SIMÕES; 2009: 104). Deste encontro nasceram duas pautas que
norteariam o movimento gay dali pra frente: reivindicar o respeito à “opção
sexual” e a retirada da homossexualidade da lista das doenças mentais
(Ibidem). Mas, ao mesmo tempo em que o movimento gay começava a se
articular nacionalmente e atuar na desconstrução dos homossexuais enquanto
sujeitos “doentes” e na garantia de direitos civis, o grupo Somos começava a
vivenciar cisões internas (Ibidem). A primeira foi a criação do subgrupo LF –
Lésbico Feminista, que vivenciou uma cena que marcaria o ativismo gay
durante os anos 80, quando, em março de 1980, as mulheres do LF
participariam do II Congresso da Mulher Paulista, que resultaria em um clima
tenso onde até agressões físicas ocorreriam por conta da ação de militantes
ligadas ao Movimento Revolucionário 8 de outubro (MR – 8), que na época
estava organizado dentro do Partido do Movimento Democrático Brasileiro
(PMDB), que ainda era o maior partido de oposição existente na época. Em
uma ação articulada com sindicalistas, as militantes do MR – 8 boicotaram as
discussões sobre feminismo, violência física e sexualidade (FACCHINI;
SIMÕES; 2009: 105).

Em seu livro (TREVISAN; 2007), João Silvério Trevisan retrata que a forma de
organização e atuação política do Somos era o fator que mais incomodava os
grupos de esquerda, pois, o Somos trabalhava com a tese de que os indivíduos
deveriam ser donos de suas próprias histórias e não estar alinhados em torno
de projetos políticos “messiânicos” (Ibidem) e que o grupo deveria se focar em
questões domésticas e que a revolução deveria “começar dentro de casa”
(Ibidem). O questionamento da monogamia e a possessividade em torno do
amor deveriam ser tabus a serem superados pelos ativistas gays (Ibidem).
Posteriormente a estes dois temas, os ativistas do grupo Somos também
começaram a praticar o conhecimento do corpo e com isso realizar sessões de
sexo grupal, fato que chocou alguns militantes do grupo que se recusaram
“horrorizados” a participar de tais orgias (Ibidem). Trevisan conta que as
experiência o tomaram de tal maneira que, ele e parte do grupo chegaram a
pensar em propor reuniões com nudez generalizadas “para subverter as
sisudas discussões sobre os caminhos da revolução” (TREVISAN; 2007: 350).

O levante de Stonewall, em 28 de junho de 1969, é considerado o marco do


nascimento do movimento gay organizado dos Estados Unidos e
consequentemente o surgimento do Gay Power. No Brasil, dois fatos são
considerados marcos para o surgimento do ativismo gay brasileiro: a realização
do I Encontro Brasileiro de Homossexuais e a perseguição de homossexuais e
travestis no centro de São Paulo, ambos em 1980 (GREEN; 2000),
(TREVISAN; 2007), (FACCHINI; SIMÕES; 2009). João Silvério Trevisan
analisa o I Encontro Brasileiro de Homossexuais como o acirramento definitivo
entre os ativistas gays que desejavam se manter independentes dos grupos de
esquerdas com os militantes homossexuais que já estavam integrados a
grupos e partidos políticos, entre eles o recém fundado Partido dos
Trabalhadores (FACCHINI; SIMÕES; 2009). Durante o encontro nacional um
tema foi motivo de tensão entre os ativistas gays: a votação de uma moção que
“pretendia obrigar todo o Movimento Homossexual a participar da
comemoração de Primeiro de Maio, Dia dos Trabalhadores, num estádio de
futebol da cidade operária de São Bernardo do Campo” (TREVISAN; 2007).
Trevisan se coloca entre os contrários a participação dos homossexuais no ato
pelo dia do trabalhador, na leitura de Trevisan eles ainda eram um número
muito pequeno de ativistas para participar de uma ato político com tamanha
magnitude. Trevisan desconfiava que o movimento gay seria instrumentalizado
pelos grupos de esquerda, já que ganhava cada vez mais destaque nos
espaços políticos (Ibidem). Para o ativista gay fundador do grupo Somos, a
participação de gays e lésbicas no primeiro de maio marca a domesticação do
ainda jovem movimento gay

Foi, portanto, sob as bandeiras da Convergência Socialista que um


grupo de bichas e lésbicas do Somos participou das comemorações do Primeiro
de Maio de 1980, no Estádio da Vila Euclides, em São Bernardo. E,
orgulhosamente, desfilaram perante milhares de sindicalistas, de estudantes e
de intelectuais de esquerda, sem se dar conta de que, além de engrossar a ala
visível dos trotskistas, lá estavam melancolicamente apresentando seu
certificado de boa conduta e pedindo a benção da hierarquia proletária, como
homossexuais bem comportados. Naturalmente, receberam aprovação na forma
de aplausos. Na prática isso significou o início da domesticação do nascente
movimento homossexual brasileiro, cujo discurso de originalidade ainda
incipiente começava a ser sufocado antes mesmo de florescer. E não sei se,
depois disso, ele jamais se recuperaria. (TREVISAN; 2007: 357)
O antropólogo e também ativista, James Green, faz uma leitura (2000) distinta
da realizada por Trevisan, que notamos ser completamente contrariado ao
movimento gay ingressar nas fileiras do movimento político esquerdista que se
reorganizava no Brasil que voltava a respirar, pouco a pouco, a democracia
social e política. Enquanto Trevisan considera a participação no Primeiro de
Maio como o inicio da instrumentalização do movimento gay pelos grupos
trotskistas, Green descreve tal participação como “corajosa”

No Primeiro de Maio, um grupo de cinquenta gays e lésbicas


assumidos marchou com centenas de milhares de outros
brasileiros pelas ruas de São Bernardo do Campo, no ABC
paulista. Eles estavam ali para apoiar a greve geral dos
sindicalistas, cuja paralisação levara o governo a decretar o
estado de sítio e a convocar o Segundo Exército. Os corajosos
ativistas gays e lésbicas marchavam sob uma faixa onde se lia:
“Contra a discriminação ao trabalhador/a homossexual” [...]
Quando o grupo adentrou o estádio de futebol para participar de
uma assembleia no fim da passeata, foi aplaudido por milhares
de pessoas. (GREEN; 2000: 434)

A participação de ativistas gays do Somos no Primeiro de Maio, em 1980,


representaria uma divisão irreversível no grupo (GREEN; 2000), (TREVISAN;
2007). Este mal estar permaneceu e o que era uma divergência de ideais de
como se fazer ativismo, tornou-se, na reunião geral de 1980, uma separação
sob a alegação de que o Somos “estava com a sua autonomia comprometida
em virtude da atuação de membros ligados a organizações político –
partidárias” (FACCHINI; SIMÕES; 2009: 108) e nove membros deixaram o
Somos e fundaram o grupo Outra Coisa (ibidem). A ligação de ativistas do
Somos com grupos políticos organizados também se refletiria no jornal O
Lampião, pois parte da equipe do jornal se revelou “assustada com o ufanismo
militante e a cooptação partidária de amplos setores do movimento
homossexual em várias partes do Brasil” (TREVISAN; 2007: 360). Por conta
disso, o jornal se desligou do movimento durante o ano de 1980. Este
distanciamento de setores do movimento gay ganhou contornos “radicais e
infantis” (Ibidem) levando o jornal a um “ vago populismo” (Ibidem), o que
acabou descaracterizando o projeto original de O Lampião de Esquina que
levou a queda brusca nas vendas da publicação, que dependia da venda em
bancas de jornais para se manter (Ibidem). Outro fato que levou O Lampião a
encerrar as suas atividades em 1981, foi a questão de que a grande imprensa,
a partir dos anos 80, começava a dar espaço para reportagens voltadas para a
questão homossexual e que, não apenas levou O Lampião ao fechamento,
mas também outros meio de comunicação da chamada imprensa alternativa

O encerramento das atividades do Lampião antecipou o final de um ciclo


que, com a redemocratização, liquidou com a imprensa alternativa e permitiu que
seus temas fossem reabsorvidos pela grande imprensa. O jornal tinha sido
importante para a mobilização homossexual do período, assim como para o
debate de muitos temas relacionados à politização da sexualidade e ao
reconhecimento social das chamadas “minorias”. No momento em que encerrou
suas atividades, o jornal parecia mergulhado num vácuo: tinha abandonado o
teor contestatório sem conseguir assumir as características de uma publicação
voltada ao consumo. (FACCHINI; SIMÕES; 2009: 110)

Ao mesmo tempo em que o grupo Somos rachava e o jornal O Lampião


encerrava as suas atividades, a década de 80 vivenciaria um dos principais
atos contra o higienismo que começava a tomar conta do centro de São Paulo.
Durante o ano de 1980 o delegado José Wilson Richetti comandava a
“Operação Limpeza” que tinha por objetivo retirar os frequentadores noturnos
da rua Vieira de Carvalho e do Largo do Arouche, locais de frequência
predominantemente gay (FACCHINI; SIMÕES; 2009). Cansados de serem
abordados pela polícia militar a comunidade gay, junto do movimento
homossexual, realizou no dia 13 de junho, nas escadas do Teatro Municipal de
São Paulo, um ato público que pedia a demissão do delegado Richetti. O ato
reuniu mais de 500 homossexuais. O antropólogo James Green considera esta
manifestação o nascimento do movimento homossexual organizado em São
Paulo e no Brasil
Em 13 de junho de 1980, quinhentas pessoas se reuniram nos degraus
do Teatro Municipal para protestar contra as prisões do mês anterior.
Sob a garoa fina, os ativsitas pediram a demissão do delegado e
convocaram a assembleia para uma passeata pelas ruas do centro.
Depois de alguns breves discursos de Darcy Penteado e de outras
figuras publicas, a multidão saiu em protesto contra as prisões
arbitrárias, entoando “Abaixo a repressão, mais amor e mais tesão”. Um
movimento havia nascido. (GREEN; 2000: 436)

1.5 AIDS: o nascimento das bichas viris e o surgimento da


cultura GLS

O recém-organizado movimento homossexual brasileiro e o seu corpo de


ativistas se depararia com o surgimento da epidemia da Aids, “termo composto
pela justaposição das siglas em inglês referentes ao vírus causador da
imunodeficiência humana e à própria síndromes da imunodeficiência adquirida,
que fez as suas primeiras vítimas no Estados Unidos, em 1981, em Nova York
(FACCHINI; SIMÕES; 2009). Posteriormente, outros jovens foram
diagnosticado com um “tipo de pneumonia rara” em Los Angeles e São
Francisco e como se notou que outros jovens homossexuais havia falecidos
com sintomas parecidos logo se criou a ideia de que se tratava de uma doença
ligada a comunidade gay e posteriormente foi criada a expressão “peste gay”,
fazendo com que o debate homossexualidade e doença voltasse a tona
(Ibidem). Mas, além do retorno a patologização da homossexualidade, a
epidemia da Aids/ HIV faria com que o ativismo gay no mundo e no Brasil
criasse “experiências inovadoras no ativismo” (Ibidem). Nos Estados Unidos
destaque para o grupo Act Up/ NY , que além do ativismo político, também
atuava com pesquisas científicas e cobravam dos governos da época atuações
globais de combate a Aids (Ibidem). O Act Up/ NY não foi importante apenas
para a questão de combate a epidemia do HIV, mas também pelos
questionamentos que fazia a própria comunidade gay, a qual acusava de
reproduzir os preconceitos de classe, gênero e raça presentes na sociedade
heteronormativa. Também apontavam os limites das políticas de inclusão e de
direitos, o qual, na visão do grupo era “ilusório” (FACCHINI; SIMÕES; 2009:
52). Os ativistas do Act Up/ NY foram responsáveis por fazer emergir no final
dos anos 80 e começo dos anos 90 o Movimento Queer, que em 1990 se
articularia com o Queer Nation e se pautaria pelo “elogio” (Ibidem) a
marginalidade e “pela recusa ao fechamento das identidades sexuais e de
gênero, que estariam potencialmente presentes nas vivências bissexuais,
transexuais e intersexuais” (FACCHINI; SIMÕES; 2009: 53).

A Aids começa a ser tratada publicamente pela imprensa brasileira no ano de


1983 com a morte do estilista Markito (1952 – 1983), que seria diagnosticado
com a então desconhecida Aids, que já fazia vítimas gays masculinas nos
Estados Unidos e Europa (TREVISAN; 2007). Inicialmente, o tom dado a
doença seria de pânico e sensacionalismo, que seria classificada pelos meios
de comunicação como “peste gay” e “câncer gay”, visto que até então as
vítimas da nova doença eram predominantemente homens homossexuais. Ao
mesmo tempo começam a pipocar reportagens com novas vítimas da doença e
a maioria dos atingidos eram homens que viviam em São Paulo e tinham
passado por Nova York (Ibidem). O surto e desconhecimento frente à nova
epidemia faz com que a Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo monte e
instale um programa de diagnóstico e controle sobre a Aids. O surgimento da
Aids, que durante os anos 80 vai ser colada a imagem dos homossexuais, faz
com que os ativistas se reorganizem e iniciem campanhas de prevenção pelo
centro de São Paulo com a distribuição de camisinhas e folhetos com dicas de
como se prevenir da doença, porém, as revistas especializadas publicam as
primeiras reportagens ligadas ao tema que irão reforçar o estigma de “doença
gay” sobre a Aids. A revista “Veja” publicaria uma matéria criticando a decisão
da Secretaria de Saúde criar uma subsecretaria focada na questão da Aids. na
visão da revista semanal “as doenças da pobreza é que deveriam ter
atendimento prioritário no país e que um centro de atendimento para Aids é
mais adequado a Nova York do que a São Paulo” (TREVISAN; 2007: 431).
Setores médicos – acadêmicos também vão protestar contra a criação de um
serviço focado para a Aids com o mesmo argumento relacionando a pobreza
as prioridades do país; o Ministério da Saúde também recebe críticas do
mesmo setor que à época classificou o serviço como “luxo” gastar dinheiro com
uma doença que atinge “tão poucas pessoas” (Ibidem). A associação da Aids
com a homossexualidade ganha tons preconceituosos e muros de cidades
como Recife, onde pichações com os escritos “Viadagem da câncer” e “Aids é
câncer de bicha”. Porém, a tese de que se tratava de uma doença
exclusivamente gay começar a cair quando casos de mulheres heterossexuais
contaminadas pela Aids começam a ser divulgados pela imprensa (Ibidem). A
partir de 1984 a Aids ganha status global e já atinge praticamente todos os
países da América Latina e médicos reunidos em um simpósio em São Paulo
começam a alertar para o rápido crescimento da doença. Em 1985 já se
registra um caso de Aids por dia no Brasil e as autoridades médicas criam o
que vai se chamar de “grupos de risco”, que no caso serão os homossexuais e
os usuários de drogas injetáveis (Ibidem). Observamos aqui que, os
homossexuais voltam a ter a sua imagem ligada a patologia, neste caso, a
Aids. Esta ligação vai fazer com que o movimento homossexual brasileiro inicie
uma nova luta: além da luta pelos direitos civis, agora os ativistas terão de lutar
para desconstruir a imagem do homossexual, que será ligada automaticamente
ao vírus da Aids, fazendo assim com que surja um novo discurso em torno dos
homossexuais, se não o do louco do sanatório ou do sujeito invertido, o sujeito
homossexual passará a ser vinculado como Sujeito da Aids.

Os primeiros dados que vão apontar a Aids como uma doença sem fronteiras,
ou seja, que acomete heterossexuais, bissexuais e homossexuais, data de
1985, quando a doença ganha status de epidemia. Em meados de 1985 o
Brasil já contava com 400 casos oficialmente registrados de pessoas infectadas
pela Aids, “três quartos dos casos ocorrem no Estado de São Paulo”
(TREVISAN; 2007). Nesta época o Brasil era considerado o quarto país do
mundo com o maior registro de casos de Aids (Ibidem). O surto causado pela
Aids e a associação da doença com a homossexualidade fez com que o
movimento homossexual, que após a primeira onda estava desarticulado, se
rearticule e inicie um trabalho que vai unir prevenção e a luta contra a
discriminação. Neste período os ativistas iniciam uma nova maneira de fazer
militância que é a correlação de força com o poder público. Esta aproximação
entre os ativistas e o Estado resultou na criação no primeiro programa de
prevenção feito no Brasil, que foi a criação do programa estadual de combate a
Aids, em São Paulo, em 1985. Também merece destaque o trabalho de
ativistas que atuaram no Somos – SP e em outros grupos de São Paulo e que
culminou na criação da primeira Ong – Aids Brasileira, o Grupo de Apoio e
Prevenção à Aids (Gapa) (FACCHINI; SIMÕES; 2009). A experiência paulista
teve reminiscências em outros estados do Brasil, por exemplo, no Rio de
Janeiro, onde se fundou a Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (ABIA)
e o Grupo Pela Vidda (Valorização, Integração e Dignidade do Doente de Aids)
(Ibidem). Portanto, as primeiras ações de combate e prevenção à Aids teriam
inicio em políticas estaduais, o Governo Federal lançaria o Programa Nacional
de Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST)/ Aids em 1988 (Ibidem).

O surgimento da Aids e o seu impacto sobre a população homossexual e o


movimento organizado vai ter um efeito duplo: faz com que os ativistas que
estavam desarticulados se reagrupem e deem inicio aos primeiros trabalhos de
prevenção no país, culminando, em 1988, com a criação do Programa Nacional
de Doenças Sexualmente Transmissíveis DST/ Aids; na outra ponta um efeito
perverso vai se instaurar na comunidade gay, pois, no auge da Aids a figura do
homossexual feminino seria colada a imagem da Aids e consequentemente a
de um sujeito com comportamento promíscuo. Tanto é que muitos médicos, no
começo da Aids, se recusavam a atender ou retirar sangue de pacientes
masculinos que apresentassem trejeitos femininos (TREVISAN; 2007). Sai de
cena a bicha louca/ “promíscua” e entra a bicha viril/ higienizada, estereótipo a
ser veiculado principalmente pelo mercado, que vai se voltar para a
comunidade gay no começo da década de 1990 (FACCHINI; SIMÕES; 2009).

A década de 1990 é marcada pela inclusão da sigla GLS (Gays, Lésbicas e


Simpatizantes) no cotidiano dos homossexuais. A sigla foi criada pelo jornalista
André Fischer, idealizador do Festival de Cinema Mix Brasil da Diversidade e
do primeiro portal de notícias GLS, o Mix Brasil, que está no ar desde 1994.
Mais do que trazer a questão do gay friendly, a sigla GLS vai ser de suma
importância por indicar uma abertura do gueto homossexual “àqueles que nele
desejam entrar” (FACCHINI; SIMÕES; 2009). É neste contexto do GLS, que
também surge o termo “mix” que vai designar ambientes/ casas noturnas como
sendo locais onde as orientações sexuais se misturam e propiciam um
ambiente de experimentações sexuais da geração que se articula nos anos 90

Modernos, clubbers, ravers, cybermanos passam a misturar classes


sociais, idades e orientações sexuais em eventos ou casas GLS, com
roupas, acessórios e cabelos multicoloridos, marcas corporais como
piercings e tatuagens, bebida energética, alucinógenos, estimulantes e
música eletrônica. Adolescentes de ambos os sexos passam a se
identificar como “mix”, o que parece implicar uma disposição de abertura
à experimentação erótica com pessoas do mesmo sexo, sem recorrer a
classificações hetero, homo ou bissexual. (FACCHINI; SIMÕES; 2009:
148)

Além de propiciar um terreno mais liberal para as experimentações sexuais, a


década de 1990 viu surgir outros fatores que foram determinantes para o
movimento homossexual e para o fator visibilidade de uma comunidade que
ainda se livrava do pânico estabelecido pela epidemia da Aids durante a
década de 1980. Ainda na esfera da cultura a realização do Mercado Mundo
Mix, feira dedicada aos antenados e a cultura underground, seria fundamental
para a disseminação da cultura GLS e “mix” no Brasil, que teria o seu ápice em
1997, quando o discurso ativista se aliaria ao discurso mercadológico na
realização na Parada do Amor, que teria o seu foco na sigla GLS. Durante a
parada camisinhas seriam distribuídas aos participantes: festa e ativismo juntos
(TREVISAN; 2007). A conotação festiva e política da Parada do Amor
influenciou definitivamente a estrutura da Parada Gay na cidade de São Paulo,
que em 1997 reuniu duas mil pessoas. Nesta primeira edição o caráter da
Parada ainda era altamente político, foi nas edições seguintes que os
organizadores do evento buscaram parceria com os empresários da noite gay
paulistana para que ajudassem a Parada com estrutura e que coloquem trios
elétricos na rua (Ibidem). A primeira grande virada da Parada Gay de São
Paulo se deu em sua terceira edição, quando cerca de 30 mil pessoas
comparecem as avenidas centrais de São Paulo para festejar o seu orgulho,
“um fenômeno de massa inédito no país, acostumado a ter seus cidadãos/ãs
homossexuais no armário” (TREVISAN; 2007: 379). Nos anos seguintes a
Parada do Orgulho LGBT da cidade de São Paulo passaria a fazer parte do
calendário turístico, mas isso não aconteceu por acaso, com explica João
Silvério Trevisan

Confirmando a tendência em abandonar a improvisação dos anos


anteriores e implementar a profissionalização em todas as instâncias,
jovens militantes criaram a Associação da Parada LGBT, com registro
em cartório e endereço fixo, além de página em internet. Organizada
em diversas equipes de trabalho, a Associação convidou empresários
de estabelecimentos GLS para dar suporte e apoio logístico, em troca
de divulgação do patrocínio. Acima de tudo, a Associação trocou o
peso-morto da passeata estilo operário-estudantil pela afirmação
através da celebração e da festa – o que acrescentou um componente
mais político ao consumismo guei, sem negá-lo. (TREVISAN; 2007:
380)

A visibilidade da questão homossexual também ganharia o Congresso


Nacional, quando em 1995 a então deputada federal, Marta Suplicy (PT-SP),
apresentou o projeto de lei 1.151/ 95, que ficou conhecido como Projeto de
Parceria Civil Registrada. A sua apresentação no Congresso Nacional suscitou
a reação “sombria” (TREVISAN; 2007) dos setores mais conservadores e
principalmente dos grupos católicos e evangélicos, que à época classificaram o
projeto com “antinatural” e um atentado a família tradicional (Ibidem). Por falta
de apoio parlamentar, o Projeto de Parceria Civil foi engavetado sem nunca ter
conseguido ao menos ser levado à votação no plenário do Congresso Nacional
(Ibidem). Na sociedade civil a comunidade homossexual também pode
acompanhar a fundação da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Travestis
e Transexuais (ABGLT), em 1995, sendo a primeira rede nacional que visava
congregar todas as Ongs gays do Brasil. Duas outras importantes decisões
seriam tomadas ainda nos anos 90: em 1993 a Organização Mundial da Saúde
retiraria o homossexualismo do CID (Cadastro Internacional de Doenças); em
1999 seria a vez do Conselho Federal de Psicologia baixar a Resolução nº 1,
que proibiu psicólogos de aplicarem terapias de reorientação sexual em
pacientes homossexuais. O texto da resolução foi taxativo ao afirmar que “a
homossexualidade não constitui doença, nem distúrbio e nem perversão”
(TREVISAN; 2007).

A comunidade homossexual encerra o século XX com avanços significativos,


como pudermos observar durante a construção deste contexto histórico da
homossexualidade no Brasil. Se, na primeira metade do século XX a questão
homossexual foi tratada como caso de polícia e de saúde, ao término do século
XX, pelo menos nos discursos oficiais, a homossexualidade já não mais será
tratada, pelo menos diretamente, como uma doença ou como passível de
tratamento para os sujeitos homossexuais. Mas, ao mesmo tempo em que a
sociedade civil assistia o nascimento de um novo tipo de luta social, que vai
ganhar as ruas com a organização e crescimento das Paradas Gays, com
destaque para São Paulo, e assim, se tornar um fator social não mais invisível,
estes personagens, que até então viviam encerrados em guetos e clubes
noturnos, no âmbito dos direitos civis a comunidade LGBT vai amargar derrotas
durante a primeira década do ano 2000.

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