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Em palavras de Henri Lefebvre, “a cidade atrai para si tudo o que nasce, da natureza e do trabalho, noutros
lugares [...]. O que ela cria? Nada. Ela centraliza as criações. E, no entanto, ela cria tudo. Nada existe sem
troca, sem aproximação, sem proximidade, isto é, sem relações. Ela cria uma situação, a situação urbana,
onde as coisas diferentes advêm umas das outras e não existem separadamente, mas segundo as diferen-
ça”. (LEFEBVRE, 2002, p. 111)
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Para os interessados em maiores informações sobre os transeuntes do centro de Salvador, ver Carvalho
Filho e Montoya Uriarte, 2014.
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Um dia, anotei em meu caderno de campo: “me sinto observando
como o personagem de Janela indiscreta”. Mas, de fato, não deve-
mos nos iludir. Em qualquer campo todo mundo está observando
todo mundo. Lembro de uma conversa com Bob no primeiro dia em
que me aproximei dele: em um momento ele me disse “você estava
aqui ontem, sentada ali, eu tava observando”, ao que respondi “eu
também estava te observando”. Na praça, todo mundo está filmando.
Observar não é privilégio de antropólogo.
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Os boleros musicalizaram as manhãs de minha infância, entre as 6 e
7 horas, quando me preparava para ir à escola. Minha mãe os sinto-
nizava numa velha radiola que tinha pertencido a meu avô.
A partir desse momento, meu olhar aquietou, parou de se deixar levar por
toda pessoa que passava ou se mexia e cessei de tentar registrar freneticamen-
te qualquer detalhe em meu caderno de campo, para me centrar no sentir do
ouvir, meu e dos idosos sentados na Praça. Sem ter me planejado para isso, lá
estava eu percebendo fenomenologicamente a Praça da Piedade: deixando o
corpo sentir, sem intermediação de representações, sem tentar objetivar mi-
nhas sensações.5 Passei, pois, a experienciar corporalmente a Praça e minha
primeira reflexão sobre ela advém dessa experiência. Comecei a regis-
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Merleau-Ponty (1971, p. 242) escreveu: “meu corpo não é somente um objeto entre todos os outros objetos,
um complexo de qualidades sensíveis entre outras, ele é um objeto sensível a todos os outros, que ressoa
[...] Senta-se uma senhora de uns 50 anos. Veio ver CDs, mas me viu sentada
e, eu acho, se animou a sentar-se também. Diz que mora no Politeama, numa
casa de 5 cômodos. Gosta de fazer as coisas ouvindo sua música. Compra um
CD de Altemar Dutra. Já comprou em outras ocasiões CDs de Moacyr Franco
e Roberta Miranda. Pergunto-lhe o que será que cada idoso está pensando. Ela
diz apenas ‘é uma terapia vir à praça. A música nos volta ao passado’. Com
efeito, há aqueles que chegam até a fechar os olhos com as músicas. Ela fica
meia hora sentada ao meu lado, ouvindo as músicas, até que se levanta e vai
embora [...]
[...] Aparece um frequentador assíduo. Mora em Itapagipe. Vem todo dia de
tarde. Tem aparência altiva, é bem asseado, cabelos brancos bem penteados.
[...] Por volta das 8 horas chega alguém e se instala do lado de um dos bustos:
arruma seus 2 bancos, 1 microfone, uma mesa, 4 malas pequenas de alça
contendo livros e DVDs, uma toalha de mesa, uma vassoura, 2 plásticos para
proteção da chuva, uma caixa de som e um guarda-chuva, um banner com a
foto de Luís Gama onde se lê ‘poesia livre’ e um cartaz, que pendura nas duas
árvores, onde está escrito ‘Afoxé Filhas de Olorum’. É um rasta. Veste-se com-
pletamente de preto. Na mesa, instala livros. Bota som moderado na praça:
chorinhos, boleros, serestas.
‘O pesquisador’ senta de meu lado, trazido por Bob. Começa a falar, falar,
falar, muito e rápido. ‘Você sabe qual é a palavra em português cujo plural
se encontra no meio da palavra? Quaisquer!’, ‘Você sabe quais são as três
palavras que deram origem à palavra ‘embora’? Em boa hora!’. ‘Qual é a tua
religião?’... E as perguntas que me fez continuaram, sem quase me deixar
respondê-las.
O povo ao Poder
“A praça é do povo!
como o céu é do condor.
É o antro onde a liberdade
cria águias em seu calor.
Senhor, pois, quereis a praça?
Desgraçada a população!...”
Seu Domingo chega todo dia às 7 da manhã e fica até às 11h, volta às
16 e fica até as 19h. Há 10 anos que leva essa vida. Muitos o conhecem, o
Essa foi a primeira vez que reparei a palavra espiritual em sua fala. No de-
correr do tempo em campo ela foi sendo constantemente usada e fui enten-
dendo sua visão: os espaços têm uma vida oculta, que a maioria não vê. E me
[...] Por volta das 11h, uma mulher de uns 60 anos, vestindo jeans e camisa
curta, decotada e apertada, se aproxima da mesa de Bob, onde estávamos
em pé ele, eu e ‘o pesquisador’. Ela começa a dançar ao som de uma música
do grupo Raça Negra, que tocava na hora. Fazia movimentos com os braços,
chamando a aproximação do parceiro de dança inexistente, pois dançava só,
embora na frente de nós. Começou a rebolar. Suas cadeiras iam de um lado
para outro. Seu olhar era provocador. Senti que Bob e o ‘pesquisador’ ficaram
sem jeito. A situação era no mínimo constrangedora. O que fazer diante de
seus apelos? Para onde desviar o olhar? Daqui a pouco, ela já estava no chão,
demonstrando uma flexibilidade admirável. Subitamente, se levanta e volta
para o lado da Praça onde a TV Bahia grava um programa semanal sobre
pessoas desaparecidas. Perguntei logo a Bob: ‘você a conhece?’. ‘Nunca vi essa
mulher’, me respondeu. Após alguns segundos, acrescentou: ’Eu sei que você
não acredita, mas essa daí não é a Maria Padilha toda?’. Tive de concordar.
[...] Uma mulher de rua, muito, muito, muito magra, usando um vestido sim-
ples e desbotado, de malha, grudado no corpo, muito curto, evidentemente sob
efeito de drogas, ‘toma banho’ na fonte da praça. Ela molha uma camisa de
algodão na fonte e espreme a água no cabelo, molhando a nuca. Depois, passa
a camisa molhada pelas pernas e nas partes íntimas. Fica absolutamente vi-
sível que ela não está usando calcinha. A cena é patética: os pelos pubianos, a
sujeira, a magreza, o seu olhar perdido, que não se fixa, que parece atravessar
o visível. Depois, fuma. Lamento enormemente seu estado. Bob percebe minha
lamentação interna e me diz que é gressil, o espírito da degradação humana.
Referências
CARVALHO FILHO, M.; MONTOYA URIARTE, U. A Avenida Sete e seus transeuntes.
In: CARVALHO FILHO, M.; MONTOYA URIARTE, U. (Org.). Panoramas urbanos: Usar,
viver e construir Salvador. Salvador: Edufba, 2014. Parte I.
CARVALHO FILHO, M.; MONTOYA URIARTE, U. Transeuntes e usos da Avenida Sete.
In: CARVALHO FILHO, M.; MONTOYA URIARTE, U. (Org.). Panoramas urbanos: Usar,
viver e construir Salvador. Salvador: Edufba, 2014. Parte II.
CARVALHO SANTOS NETO, I. de.Memórias urbanas: poética para uma cidade. Salvador:
Edufba, 2012.
CRAPANZANO, V. Horizontes imaginativos e o aquém e além. Revista de Antropologia,
v.48, n.1, p. 364-384, 2005a.
CRAPANZANO, V. A cena: lançando sombra sobre o real. Mana, Rio de Janeiro, v. 11,
n. 2, p. 357-383, 2005b.
FAVRET-SAADA, J. Les mots, la mort, les sorts.Paris: Gallimard, 1977.