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INSTITUTO DE LETRAS
NITERÓI
2020
André Lima Cordeiro
NITERÓI
2020
André Lima Cordeiro
Aprovado em:_____________________________________________________________
Banca examinadora:
_____________________________________________________________
Profa. Dra. Luciana Maria Almeida de Freitas – Orientadora
Universidade Federal Fluminense – UFF
_____________________________________________________________
Profa. Dra. Sandra Lucia Escovedo Selles
Universidade Federal Fluminense – UFF
_____________________________________________________________
Profa. Dra. Angela Correa Ferreira Baalbaki
Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ
_____________________________________________________________
Profa. Dra. Giselle da Motta Gil
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro – IFRJ
_____________________________________________________________
Profa. Dra. Mylene Cristina Santiago
Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF
_____________________________________________________________
Profa. Dra. Dayala Paiva de Medeiros Vargens - Suplente
Universidade Federal Fluminense – UFF
_____________________________________________________________
Profa. Dra. Bruna Maria Silva Silvério - Suplente
Instituto Federal Catarinense – IF-Catarinense
Para a mais bela flor de qualquer jardim,
Áurea.
AGRADECIMENTOS
À minha orientadora pela condução carinhosa, respeitosa e sempre muito lúcida dessa
nossa relação durante a pesquisa e fora dela.
Às integrantes da banca de qualificação e defesa pela disponibilidade e contribuições dadas
ao trabalho.
À minha família pelo apoio de sempre.
Ao Renato pela segurança de um amor imenso.
Aos queridos alunos e colegas surdos que lutam tanto para superar todas as dificuldades
que a vida lhes impõe.
Às minhas colegas do INES Isabel e Rossana pelas trocas intensas e divertidas nessa
jornada que é atuar como professores no instituto e, especialmente à Danielle com quem
além dessas trocas também dividi as angustias de ser doutorando.
À Lindka e Suelyn pelas constantes lembranças do que realmente importa nisso tudo.
À Maria Gabriela, companheira de UFF assistindo aulas e trocando ideias.
RESUMO
This study analyses the meanings of deaf education and Brazilian sign language in legal
and pedagogical documents through the curricular trajectory of the National Institute of
Deaf Education (INES). To such analysis we operate in a dialogical perspective of
language (BAKHTIN, 2003; VOLÓCHINOV, 2017), that tries to understand the
conditions of production of enunciations and the net of meanings mobilized. We brought
also concepts that are close to a discursive logic of language such as rhizome (DELEUZE;
GUATTARI, 2011) and discursive formation (FOUCAULT, 1969). We begin with the
trajectory of deaf education and its intersections with the position of Brazilian sign
language (libras) on the deaf community context, more specifically, the history of INES.
We go deeper on the possible meanings of deafness and the deaf subjects under tow main
optics: the so called classical clinic view and the linguistic minority. We discuss the social
implications in the ways of existing of a community through these different grids of
meanings. We articulate these discussions with the analysis of legal and pedagogical
documents of national coverage. They are the Law 10.436 of 2020, known as the Law of
Libras, and its subsequent decree, number 5.626 of 2005. We analyzed also the notices of
ENEM that predicted the exams in libras from 2017 on and the notices that summoned and
organized the exams of ProLibras. We turn, then, to a curricular history of INES where we
bring back all the discussions presented and, through five time frames we verify the shifts
on the meaning of deafness, libras and deaf education throughout time. In these analysis
we detected that there is a dual movement that, and in many ways antagonists, in the
characterization of libras, sometimes as a language dissociated of culture and identity, and
others as a language connected with a community that produces its own meanings and, is
also, produced by it. We have concluded also that throughout the documents there is a
gradual transition between the identitary construction of the deaf as a handicapped and
unable to a subject that has their own education needs, without letting go the intersections
of the classical clinic view in its enunciates.
INTRODUÇÃO.............................................................................................................. 12
REFERÊNCIAS............................................................................................................ 144
12
INTRODUÇÃO
lei. Buscamos fazer um levantamento da situação legislativa das línguas de sinais nos
países e trazer perspectiva para a situação da libras. Em seguida, ainda no terceiro
capítulo, investigamos documentos que se voltam mais para a área pedagógica, porém
são externos ao INES, como os editais do ENEM de 2017 (ano que introduziu a prova
em libras) em diante e o último edital do Prolibras elaborado pelo instituto em parceria
com a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Essas mudanças mencionadas afetaram diretamente a forma como o INES se
organiza e as suas propostas pedagógicas direcionadas ao público surdo. Portanto, no
quarto e último capítulo da tese aprofundamo-nos em um histórico curricular do CAP-
INES a partir de documentos de cinco momentos históricos distintos. Partimos desde sua
criação no meio do século XIX e chegamos até a composição curricular atual. Buscamos
esses documentos do INES pois, além de ser meu local de trabalho, ele é uma escola
especializada na educação de surdos e possui importância reconhecida em âmbito nacional
desse contexto. Ao se colocar como uma instituição bilíngue, atualmente, consideramos
que o documento dialoga com as práticas educacionais vigentes na instituição com a
educação bilíngue e que não deixará de guardar memórias relativas às práticas
historicamente instituídas na educação de surdos.
Relacionamos, portanto, por meio das análises presentes nesse capítulo os
sentidos que emergem na relação com o que é ser surdo, o que é libras e o que se entende
por educação de surdos em cada um desses contextos históricos. O INES, como uma
instituição referenciada na área, produz e que acaba por contribuir para a fixação desses
sentidos de determinada maneira. Juntamente com as análises do capítulo três, objetivamos
verificar as relações entre a libras e a língua portuguesa no campo educacional e legislativo
do país. Interessa-nos investigar as relações de força estabelecidas na dinâmica das
disputas de sentidos constante entre os sentidos que circulam sobre essas duas línguas.
Essas discussões se conectam com as polarizações encontradas nas significações de surdos
a partir da visão clínica clássica e minoria linguística discutidas no segundo capítulo.
Termino essa introdução chamando a atenção para o meu lugar no contexto da
surda, para a posição que ocupo dentro do cenário da educação de surdos sobre a qual
investigo neste trabalho. Atuo sim como professor de surdos e busco mobilizar todos os
meus conhecimentos e sensibilidades para desempenhar um papel que agregue, porém não
sou surdo. Portanto, ao falar da educação de surdos nunca serei alguém falando do lugar da
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experiência de ser, apenas alguém que busca expandir suas perspectivas e deslocar-se para
chegar o mais próximo possível.
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outros, constrói um passado que o é sob um contexto específico e uma grade de sentidos
própria, conforme se faz predominantemente no campo da historiografia há cerca de 90
anos, desde a ruptura promovida pela École des Annales com a tradição positivista
(BURKE, 1997). Operamos dentro de uma lógica rizomática (DELEUZE; GUATTARI,
2011) em que os textos estabelecem relações múltiplas, pivotantes e existem apenas nas
interações que se constroem a partir de agenciamentos (DELEUZE; GUATTARI, 2011).
Esses agenciamentos existem apenas em conexão com outros agenciamentos e seus
significados se dão a partir das conexões que se estabelecem nas situações de interação.
Dessa forma, não é nossa pretensão estabelecer as razões das rupturas e encadeamentos
lógicos que expliquem a existência ou não de determinados métodos da educação de
surdos. Aliados às ideias de Deleuze e Guattari (2011), baseamo-nos em uma perspectiva
discursiva que postula que somos atravessados por discursos que circulam dentro dos
contextos sócio-históricos nos quais estamos inseridos. Não é possível, portanto, dizer que
uma ideia deixe de existir a partir do momento em que outra surja e que deixamos de nos
influenciar por ela. Nossa constituição como sujeito seja na posição de professor, de
ouvinte, de surdo ou todas elas combinadas, está preenchida por esse fluxo discursivo que
nos afeta, nos modifica e provoca resultados além da nossa vontade, razão ou controle.
Trazendo a discussão para a temática desta tese, a crença predominante nos dias
de hoje de que o oralismo1 não é mais o modo mais adequado para ensinar os surdos não se
traduz necessariamente na supressão de interpenetrações de discursos relacionados a essa
perspectiva em enunciados recentes. Todas as tendências seguem presentes, porém, por
circunstâncias que se inserem em questões sócio-histórico-educativas, há momentos em
que uma ou outra tendência se fixa como hegemônica em detrimento de outras. Operamos
dentro de uma lógica de disputas de sentidos constante que se dá na interação social e
nossas análises se voltam para compreender a dinâmica que se estabelece nos processos de
fixação de determinados sentidos em momentos específicos.
É importante ressaltar também que os registros que temos atualmente para nos
basear foram produzidos por ouvintes, ou seja, os protagonistas da história que buscamos
nos aproximar estão silenciados. Trazemos a noção de lugar de fala discutida por Ribeiro
(2017). A autora em seu livro Lugar de Fala volta-se para a discussão sobre o lugar de fala
das mulheres negras no debate do feminismo que foram isoladas e relegadas a um lugar de
1
Oralismo é a prática de, na educação de surdos, fazer com que os alunos usem a língua oral por meios de
exercícios repetidos. Esse tema e definição será mais explorado no decorrer da tese.
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O indivíduo que nasce surdo está submetido a uma relação com as línguas
completamente diferente daquela vivenciada pelos ouvintes. Se considerarmos que, no
Brasil, 95% das crianças surdas são filhas de pais ouvintes que, geralmente, desconhecem
ou rejeitam a libras (SKLIAR, 1997), constatamos que a exposição desses indivíduos à
língua (seja oral ou de sinais) é limitada ou, em alguns casos, inexistente. Por
desconhecimento dos pais da existência de uma língua própria da comunidade surda ou por
falta de condições de se dedicar ao seu aprendizado, os pais ouvintes de filhos surdos, em
geral, podem não interagir por meio de uma língua com seus filhos, limitando-se a mímicas
que restringem muito as possibilidades de expressão e de desenvolvimento do pensamento.
Ainda que a capacidade de construir linguagem seja inerente a qualquer ser humano, a falta
de exposição a uma língua afeta sua constituição como sujeito, seus processos de
construção de identidade e relação com a cultura do contexto em que se inserem.
Discutiremos, então, as interpenetrações constitutivas de língua, identidade e cultura à luz
das questões relacionadas à surdez.
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A partir dessa tríade com a qual pretendemos trabalhar, entendemos que língua,
cultura e identidade têm uma relação estreita e que é difícil estabelecer em que momento
uma acaba e a outra inicia. Pela língua os sentidos de cultura, de identidade e os
mecanismos que os instituem nos sujeitos são construídos e também acabam por construir
a língua em um processo circular e retroalimentar. Nesse momento, vamos relacionar os
três conceitos à luz dos preceitos teóricos com os quais operamos neste trabalho para, em
seguida, aprofundarmos mais na questão da surdez ao tratar da cultura surda e identidade
surda.
Dada a temática do nosso trabalho, nosso conceito de língua não será relevante
apenas como apoio teórico nas discussões levantadas ao longo da tese, mas também como
definidora da forma como significamos o surdo, a libras, o bilinguismo, todos estes temas
de nossa investigação. Por isso, iniciamos o primeiro capítulo já com a discussão do que é
língua no contexto do nosso trabalho.
Operamos com uma perspectiva discursiva de linguagem ancorada nos estudos da
Análise do Discurso (AD) francesa de base enunciativa (MAINGUENEAU, 1989, 2008,
2011). Dessa forma, defendemos a língua como um construto sócio-histórico que existe,
exclusivamente, em situações reais de interação. Portanto, de acordo com nossa
perspectiva, a língua não é um sistema abstrato de regras fechado em si ou um instrumento
externo ao sujeito sob o qual ele tem controle e lança mão de acordo com suas intenções. A
língua é uma possibilidade que ganha concretude no ato de enunciação e está ligada ao uso
que se faz dela e as condições de produção no momento desse uso.
Entendemos que as análises discursivas devem considerar a língua como uma
maneira de expressão e de relação com o mundo e, por isso, precisam levar em conta
elementos que vão além do que foi dito para contemplar também o como foi dito, quando,
por quem, para quem, em qual situação, por qual meio, dentre tantas outras variáveis que
servirão de recorte de análise para os estudiosos do discurso. Logo, não nos interessa
analisar frases considerando apenas o léxico ou a gramática da língua; temos como objeto
de análise os enunciados (MAINGUENEAU, 2011), que levam em consideração todos
esses elementos anteriormente citados. Uma mesma sequência de palavras, portanto uma
mesma frase, será um enunciado outro a partir de outras condições de produção. Os
enunciados são únicos, visto que é impossível repetir todos os elementos que o
constituíram, que vão além da materialidade linguística, no momento de sua produção.
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Portanto, as análises na perspectiva da AD que adotamos buscam voltar seu olhar para
fatores sócio-históricos que compõem a construção de sentidos dos enunciados em questão.
Nas análises dentro do campo da AD não há a busca por um sentido original que necessita
ser desvendado ou apreendido. Assim, não operamos com mecanismos de interpretação
sistêmicos que contribuam para a interpretação de determinado texto, senão buscamos as
interdiscursividades presentes nos enunciados e a rede de sentidos que subjazem a eles.
Como desdobramento da dissociação estabelecida entre frase e enunciado, é
preciso também discutir o conceito de enunciador e seu descolamento da ideia de autor. Na
visão de língua que adotamos, o enunciador não é aquele sujeito empírico que emitiu a
frase, mas que está inserido dentro de um contexto específico, estabelece relações próprias
com os discursos que o circundam. O enunciador não é da ordem do físico, senão da ordem
do discursivo, passível de ser apreendido apenas se considerados os elementos que
constituem os enunciados e os discursos. Ao optar por tratar do enunciador, abandonamos
relações de causas e efeitos que envolvam a história pessoal de quem proferiu uma
determinada frase e passamos a voltar nosso olhar para os interdiscursos que tornaram
possível ser dito o que foi dito, no momento em que foi dito, da maneira que foi dito dentre
tantas outras características que compõem o enunciado que se analisa.
Ao tratar dos interdiscursos, retomamos a diferenciação estabelecida por
Maingueneau (2011) entre universo discursivo, campo discursivo e espaço discursivo. O
universo discursivo é o mais abrangente e contempla o conjunto finito de formações
discursivas que interagem em uma determinada data. Inseridos nele estão os campos
discursivos que tratam de formações discursivas concorrentes, isto é, formações que
competem, em certa medida, nas definições encontradas para uma mesma função social.
Os campos não são estáticos, tratam de abstrações criadas a fim de organizar as análises
pretendidas. Pode-se, por exemplo, tratar do campo filosófico, político, educacional dentre
outros. Esse recorte ganha mais relevância a medida que pensamos que o discurso se
constitui dentro do campo discursivo, porém as relações entre os discursos afetam a
construção de sentidos dentro delas. São os interdiscursos mencionados por Maingueneau
(2011) que são singulares visto que cada relação entre discursos será única. A categoria do
campo é e nos interessa mais para organizar o material de estudo. Por último, há o espaço
discursivo que são ―subconjuntos de formações discursivas que o analista, diante de seu
propósito, julga relevante pôr em relação‖ (MAINGUENEAU, 1997, p.35).
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Dentro dessa lógica de língua como uma construção social inseridas nas
discussões sobre enunciador e coenunciador, é importante levantar as ideias de discurso e
de sujeito com as quais optamos por trabalhar. Maingueneau (2008, p. 15) define discurso
como: ―uma dispersão de textos, cujo modo de inscrição histórica permite definir como um
espaço de regularidades enunciativas‖. Vemos, nessa definição, a questão histórica sendo
trazida pelo linguista como havíamos ressaltado quando tratávamos do enunciado.
Maingueneau (2009) estabelece uma relação entre discurso e enunciado na qual um contém
o outro. O discurso, portanto, contém enunciados que guardam regularidades em comum e
formam um conjunto. Foucault (1969, p. 146) também traz essa ideia quando diz que ―um
discurso é um conjunto de enunciados que tem seus princípios de regularidade em uma
mesma formação discursiva‖.
O conceito proposto também por Foucault (1969) de formação discursiva trata da
criação de um espaço comum discursivo regido por ―regras de formação‖ (FOUCAULT,
1969, p. 147) que permitem ou excluem certos dizeres. Dentro de uma formação discursiva
estabelecida alguns dizeres são passíveis de existir enquanto outros não o são. Por
exemplo, dentro de uma escola sem surdos, não faz parte da formação discursiva daquele
espaço discussões sobre lutas do movimento surdo. Seguramente essas regras são
ressignificadas a cada momento e fazem parte de um recorte que está limitado pelo olhar
de quem o faz.
Podemos ver, a partir desses conceitos apresentados, como a língua não está sob
domínio do indivíduo, mas, na verdade, ela tem caráter social e acaba por contribuir na
constituição do sujeito.
A ideia de que há inúmeros fatores que contribuem para formar um enunciado, um
enunciador e um discurso nos aproxima de uma percepção de que a língua é subjetiva, ou
seja, não apresenta verdades, mas as constrói de acordo com as formações discursivas,
enunciadores, condições de produção.
A relação entre língua e sujeito perpassa os contatos que podemos estabelecer
entre língua, cultura e identidade que nos interessam nesse momento. A noção de sujeito
está ligada à imagem que se constrói sobre a posição de fala em um determinado
enunciado. Portanto, a percepção desse sujeito se constrói na língua e pela língua.
Trabalhamos com a ideia de um sujeito descentrado, ou seja, não é completamente
consciente do seu dizer e, portanto, não se pode atribuir exclusivamente a ele o que diz,
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como fonte e origem das suas ideias. O sujeito não domina completamente seus próprios
pensamentos e, com isso, seu dizer. Ao incorporar os estudos da psicanálise de Freud e sua
ideia de subconsciente, entende-se que o sujeito não opera mais com total razão e
consciência, mas está subjugado a pensamentos que não consegue controlar. Por isso,
operamos com uma perspectiva dialógica da linguagem (VOLÓCHINOV, 2017) em que os
enunciados estão em constante diálogo com o que já foi produzido e também com o que
ainda será. O sujeito, por estar inserido no fluxo da linguagem, é atravessado por ideias,
formas de dizer, que já circulam socialmente.
Dentro desses fluxos de sentidos estão os discursos sobre cultura e identidade. O
que constitui uma cultura, como ela se apresenta e quem faz parte dela são sentidos que
estão em diálogo a todo o momento. Assim como as identidades que se atribuem aos
sujeitos também não estão dadas no mundo, mas são alvos de construções da língua e do
discurso. Ter uma cultura surda ou ter identidade surda são processos discursivos que
precisam ser tratados como tal, isto é, é preciso que se entenda quais as condições de
produção desses discursos que possibilitem que estes existam, se tornem mais ou menos
hegemônicos em diferentes espaços.
Nas seções que se seguem vamos nos deter às questões da cultura e da identidade
surda.
esse conceito enuncia. Porém, esse é um movimento constante e complexo e, com isso,
impossível de ser totalmente estabelecido e apreendido.
Dessa forma, ao entender a libras como uma língua e, como tal, que constitui
sujeitos e produz sentidos, podemos afirmar que esta também é produtora desses sentidos
que constituem cultura. Os enunciados que são produzidos em libras são dizeres próprios
dessa língua e trazem, consigo elementos particulares da sua construção sócio-histórica e
da relação com a comunidade que a usa.
Se levarmos em consideração que a libras é a língua própria da comunidade surda,
é possível defender a existência de uma cultura surda que se cria a partir das interações
nessa língua. Os fluxos culturais que podem se estabelecer a partir desse recorte linguístico
não se restringem a uma condição médica: ser uma pessoa com deficiência auditiva ou não.
Trata-se de processos de identificação com a libras e com os interdiscursos que se colocam
a partir dessa incorporação linguística.
Esses sentidos que produzem e são produzidos pelos fluxos culturais também se
determinam pela dimensão política da linguagem e pelas relações de poder que nela estão
contidas. Dentro do escopo da minoria linguística, operamos com a lógica de que as
disputas de poder se dão pelas línguas e nas línguas e, por isso, é preciso considerar fatores
de ordem sócio-histórica ao tratar desse assunto.
Como já foi mencionado anteriormente, que mais de 90% dos surdos têm pais
ouvintes, portanto, a interação linguística se dá, em muitos casos, mais em contextos
extrafamiliares como escola, igrejas, associações, onde o contato com outros surdos é
possível. Sobre essa interação, Paz e Salucci (2009, p.5) afirmam que:
Os surdos não são um grupo racial, a grande maioria deles não está unida
por laços sanguíneos, mas a relação que se estabelece entre eles se torna
tão forte que, para muitos, sua comunidade se converte em sua segunda
família e o participar e pertencer a ela passa a ser uma necessidade e uma
prioridade.
Dentro dessa comunidade que se constitui na língua, cria-se uma rede de sentidos
compartilhada que alimenta os fluxos culturais que identificam um grupo surdo. As
experiências linguísticas extrapolam para as situações do cotidiano que, inevitavelmente,
são construídas no discurso. Por exemplo, além de compartilharem uma mesma língua, há
organizações sociais, políticas, esportivas, de entretenimento, educacionais como o próprio
INES que constituem a representatividade de um grupo que busca identificação.
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A questão da identidade costuma ser tratada tanto nos domínios do social a partir
do individual (HALL, 2006). Devido à relação que estabelecemos entre cultura e
identidade, buscaremos abordar a questão mais em seu âmbito social, como Hall (2006)
propõe, mesmo porque uma clara dissociação não nos parece produtiva ou sequer possível.
Uma forma de ver a relação entre a identidade e a cultura é nas divisões
estabelecidas entre países. Essas não são apenas linhas traçadas em um mapa, mas a
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2
Avançaremos na discussão sobre identidade nacional para a tese.
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participa, mas também a influencia. O sujeito é produtor desses discursos e, por isso, não é
passivo a sistemas que o identificam com essa ou aquela categoria. Defendemos, portanto,
para exemplificar, que um brasileiro ao ser identificado como tal também está construindo
sentidos para o que se entende por ser brasileiro.
Em virtude dessa relação de mão dupla na constituição de uma identidade,
levantamos a questão também dos processos que levam à identificação de um sujeito. Por
exemplo, ao trazer para o tema desta tese, quais os caminhos que levam um sujeito a
identificar-se e ser identificado como surdo. Por tudo que foi explicitado até aqui
acreditamos que esses processos estejam além de um simples laudo médico que ateste a
quantidade de decibéis que alguém consegue ouvir.
Os fluxos de identificação sobre os quais nos referimos também se constroem
discursivamente, por meio de textos com os quais interagimos em um determinado
contexto. E por ter essa dimensão discursiva, esses fluxos são, mais uma vez, construídos
pelo próprio sujeito e também pelo seu entorno, já que, como dissemos, o sujeito é
descentrado e não completamente consciente do seu dizer. Identificar-se como surdo é um
conjunto de forças que inserem sua própria visão de si como também a visão dos outros.
Porém, sua própria visão de si já está impregnada pela visão dos outros e vice-versa.
Portanto, a atribuição de uma identidade a um sujeito passa por uma rede de significações
que ganham sentido naquele momento, naquele contexto, a partir daquelas demandas.
O fato de pensarmos na identidade como uma construção fluida e contingencial
(LACLAU, 1996), nos permite defender que a atribuição de uma identidade a um sujeito
deve vir cercada de elementos que a situem em um tempo, espaço e interdiscursos que a
sustentam e estabelecem diálogos. Uma identidade pode ser atribuída a alguém em uma
determinada situação e o oposto acontecer em outra. Por exemplo, há identificações
ideológicas dentro do campo político com as mais diversas formações discursivas. De
maneira simplificada a fim de prosseguir com a exemplificação destacamos a identificação
com os campos de esquerda e direita. Essas identificações costumam sofrer deslizes de
acordo com a situação apresentada. Um sujeito pode ser identificado como alguém filiado
a visões de esquerda ou de direita dependendo da configuração que se apresente. É o
exterior que toma parte na constituição do sujeito e nos seus processos de identificação
reforçando a ideia da não fixação de identidades defendida nesta tese.
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constantes gemidos que produziam eram comparados aos sons produzidos pelos animais e
contribuíam ainda mais para uma percepção do surdo como não humano. Tal luta era, na
verdade, quase inexistente já que os meios para conquistar direitos estavam inscritos na
língua e por ela (SKLIAR, 1997).
As sociedades egípcia, judaica e romana também não acreditavam na
possibilidade de se educar um surdo, ainda que já houvesse reconhecimento do seu direito
à vida. No código Justiniano de Roma, de 483 a.C., por exemplo, o sujeito que nascia
surdo não era passível de ser educado (LIMA, 2004, p.15).
Ainda de acordo com Lima (2004), na Grécia, Aristóteles também considerava o
surdo um sujeito sem possibilidade de ser educado por não conseguir se expressar, formar
pensamentos e, com isso, impossibilitado de interagir socialmente. Muitas dessas
concepções sobre o surdo estavam atreladas a pensamentos de que eram sujeitos
amaldiçoados e que sua condição era algum castigo que sofria.
Com todos esses sentidos construídos sobre o que era ser surdo, especula-se que
esses indivíduos viviam, de fato, à margem da sociedade, sem língua, ainda que,
possivelmente, com alguma linguagem. Por conseguinte, ao surdo não era considerada a
possibilidade da educação e o acesso a qualquer tipo de atividade laboral ou mesmo outras
inserções sociais que poderiam integrá-los ao local em que viviam.
Dentro do contexto do Mediterrâneo na Antiguidade, sem cogitar a
possibilidade de uma língua própria ou mesmo que se aprendesse uma língua oral, a
comunicação com os surdos não era nem mesmo considerada. As consequências de
vislumbrar um grupo de pessoas incapazes de se comunicar foram devastadoras para
esses indivíduos que, dentro dos contextos ocidentais que explicitamos, por mais de dois
mil anos, tiveram que lutar para existir. Existir não através do discurso, existir não a
partir do que diziam ou pensavam, mas apenas existir fisicamente, seguir vivos em um
mundo que os via como seres sem nenhuma função social. A língua torna-se sinônimo de
ser visto no mundo, ou melhor, a falta da língua ganha sentidos de invisibilidade do
sujeito.
desse tema no Brasil. Esse movimento se dá pela própria história de colonização europeia
na América, em um processo iniciado no século anterior.
Nessa época, o olhar para o surdo começa a mudar e atribui-se razão a esses
indivíduos como podemos ver pelos exemplos em seguida. Espalhada pelo continente, a
educação de surdos ganha seus primeiros entusiastas: Girolamo Cardano, médico e
matemático italiano, já defendia a possibilidade de educar os surdos sem necessitar o uso
de palavras faladas, porém através da leitura e escrita. Seu investimento no assunto se deu
por ter um filho surdo. Ainda em meados do século XVI, na Espanha, o monge beneditino
Pedro Ponce de Leon se dedica a educar os surdos. Com uma motivação religiosa e atendo-
se aos filhos da nobreza, o sacerdote busca ensinar os surdos a falar, ler, escrever e, a partir
dessas experiências, fundou uma escola de professores de surdos em San Salvador, na
província de Burgos (WIDELL, 1992). Podemos dizer, então, que, na Espanha, temos o
primeiro movimento de formação docente voltado para a questão da surdez na Europa.
Outros estudiosos, ao longo do século seguinte também se dedicaram a
desenvolver métodos de ensino para os surdos como Juan Pablo Bonet que em 1620
publicou o livro Reduction de las letras y arte para enseñar a ablar los mudos, John
Bulwer, na Inglaterra, que publicou em 1644 Man Transform´d: or The Artificiall
Changling e George Dalgarno, escocês que publicou Didascalocophus or the Deaf and
Dumb man's tutor, em 1680. Seguem as imagens dos livros publicados:
Reduction de las letras y arte Man Transform´d: or The Didascalocophus or the Deaf and
para enseñar a ablar los mudos Artificiall Changling Dumb man's tutor
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Todas essas publicações têm em comum, além dos fatos de surgirem na Europa do
século XVII e advirem de experiências com membros de famílias da nobreza, a perspectiva
de ensino por meio do alfabeto manual, que é um sistema de representação das letras dos
alfabetos das línguas orais por meio das mãos. Ainda que alguns considerem a ideia da
oralização como possibilidade, ou seja, fazer com que o surdo por meio de exercícios use a
língua oral, acreditava-se que o uso das mãos era, para o aprendizado, uma maneira mais
prática para o surdo.
Ressaltamos aqui, portanto, não apenas o reconhecimento de que o surdo é um ser
de razão, capaz de aprender, mas também a indicação de que não é apenas a língua oral ou
mesmo escrita sua única forma de interação. Ainda nomeados como gestos, mímica ou
alfabeto manual, a língua de sinais ganha registro, valor e função social para a educação de
surdos. Nessa época, inclusive, é dito por Bulwer (1644) que com a língua de sinais podia-
se expressar os mesmos conceitos expressados pelas línguas orais.
Seguindo esse crescente desenvolvimento do interesse e das possibilidades de
educação de surdos, na França, já no século XVIII, o sacerdote Carlos Michel L‘Épée
começou a ensinar dois surdos através de que chamou de ―Sinais Metódicos‖, um método
em que mesclava sinais e língua falada. Alguns anos depois, o religioso inaugura o Refuge
pour les sourdes-muettes (DUFAU, 1847), em Paris, no qual abarca surdos menos
favorecidos e, devido ao seu sucesso, ensina crianças surdas na escola em Truffaut, na
França, em 1762. Em seguida, L‘Épée deu prosseguimento ao seu trabalho na sua própria
casa, onde inicia a primeira escola exclusivamente para surdos de que se tem notícia, o
Institut National de Jeunes Sourds de Paris, tendo como aluno, por exemplo, Abbe Sicard
que mais tarde se tornou professor de surdos e abriu sua própria escola em Boudeaux,
chamada Institution Nationale des Sourdes-Muettes. Outro aluno do instituto localizado em
Paris foi Thomas Hopkins Gallaudet que, junto com Laurent Clérc, fundou a primeira
escola para surdos na América, nos Estados Unidos, hoje em dia, a Gallaudet University
que é um importante centro educacional voltado para surdos e que conta com cursos de
graduação e de pós-graduação.
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Em uma nota pessoal, a fim de ilustrar que a ideia do refúgio que se perpetua até hoje no INES, ainda que
em condições de produção diferentes e, portanto, com efeitos de sentidos outros, nos três anos como docente,
atuo no projeto do pré-vestibular, que é de inscrição facultativa pelos estudantes. Tenho dois alunos que há
três anos cursam o pré-vestibular sem nenhuma intenção declarada de preparar-se para ingressar na
universidade, mas apenas para estar no INES, socializar com colegas surdos, ou seja, refugiar-se.
36
Essa concepção de educação opera com a ideia de que o surdo é alguém que
possui uma deficiência que deve ser compensada e corrigida a partir do exercício da língua
oral para conseguir produzir sons e, assim, existir em uma sociedade de ouvintes. Essa é
uma visão mais voltada para um entendimento clínico da surdez e a atuação de
fonoaudiólogos é central para a implementação das práticas de oralização.
Segundo Goldfeld (2002, p.34):
O Oralismo percebe a surdez como uma deficiência que deve ser
minimizada pela estimulação auditiva. Essa estimulação possibilitaria a
aprendizagem da língua portuguesa e levaria a criança surda a integrar-se
na comunidade ouvinte e desenvolver uma personalidade como a de um
ouvinte. Ou seja, o objetivo do Oralismo é fazer uma reabilitação da
criança surda em direção à normalidade.
essas ações tenham encontrado resistência por parte dos que já habitavam esta parte do
mundo. Como exemplo, temos a gramática desenvolvida por Antonio de Nebrija a pedido
da monarquia espanhola. No prólogo da obra o autor ele diz que:
Prólogo Ala mui alta y assí esclarecida princesa doña Isabel. la tercera
deste nombre […]
Cuando bien comigo pienso mui esclarecida Reina: y pongo delante los
ojos el antigüedad de todas las cosas: que para nuestra recordación e
memoria quedaron escriptas: una cosa hallo y saco por conclusión mui
cierta: que siempre la lengua fue compañera del imperio: y de tal manera
lo siguió: que junta mente començaron. crecieron. y florecieron. y
después junta fue la caída de entrambos. (NEBRIJA, 1492, grifo nosso)
seja, por quase um século, o instituto existiu sob o nome de Instituto Nacional de Surdos-
Mudos. Foi pela Lei nº 3.198, de 6 de julho de 1957 (BRASIL, 1957), que o Congresso
Nacional decretou que o Instituto Nacional de Educação de Surdos teria esse nome.
O INES teve sua primeira sede no Centro do Rio de Janeiro e contou com o
Marquês de Abrantes, então conselheiro de Estado, designado pelo imperador para
fiscalizar e orientar os rumos do instituto logo após sua criação por Huet. Ao
acompanhar seus primeiros passos, o INES já nasce calcado em apoio governamental
para que consiga existir e levar adiante seu projeto com o público surdo.
Vindo de uma tradição francesa de estudos relacionados à educação de surdos, o
estudioso francês propunha caminhos apoiados na língua de sinais; porém sua estadia no
país foi interrompida junto com essa empreitada em 1861, ocasionando um período de
crise do instituto, com ameaça de seu fechamento.
De acordo com o Decreto n. 4046, de 19 de dezembro de 1867 (BRASIL, 1867)
que aprova o regulamento provisório do Instituto dos Surdos-Mudos, em sua proposta
42
inicial, Huet4 apresenta como programa de ensino das seguintes disciplinas divididas nos
seguintes anos:
1º anno. - Articulação artificial, e leitura sobre os labios - Leitura -
escripta - as 4 especies - Doutrina Christã.
2º anno. - Leitura - escripta - arithmetica - Grammatica portugueza -
Historia Sagrada;
3º anno. - Portuguez - Arithmetica, pesos e medidas - Geometria
elementar e Desenho linear;
4º anno. - Arithmetica - Elementos de historia e geographia - Portuguez e
Francez;
5º anno. - Continuação da Historia e Geographia - Portuguez, Francez e
Escripturação Mercantil5
4
O instituto contava, na verdade, com suas direções: uma para os meninos e outra para as meninas.
5
Optamos por manter a grafia da época.
6
Em 2019, assumiu a direção geral do INES Paulo André Bulhões, professor de libras e surdo, encerrando
essa sucessão de diretores ouvintes desde Huet. Vale ressaltar que nas eleições internas do Instituto a chapa
liderada Paulo André ficou em segundo lugar, porém foi nomeada pela Presidência da República, já que foi
enviada uma lista tríplice com as três chapas melhores colocadas na consulta à comunidade do INES,
contrariando a tradição de nomeação da chapa mais votada por docentes, técnicos e estudantes.
43
linguística, o INES, nesse momento, tendia para o ensino da escrita como forma de
socialização do sujeito surdo, assim como no Instituto de Paris, e recorria à oralização
apenas ao ―surdo-mudo acidental‖, ou seja, àquele de surdez adquirida.
Em 1881, Tobias Leite, alegando não haver obras de consulta para auxiliar o
professor em seu trabalho com o indivíduo surdo publica o ―Compêndio para o Ensio de
Surdos-Mudos‖. Nele, o ex-diretor do instituto desenvolve uma parte teórica e uma prática
para consulta dos docentes. Ao descrever o surdo congênito Tobias o faz como alguém
que: ―tem a face pallida, a physionomia morta, o olhar fixo, a caixa toráxica deprimida,
movimentos lentos e o caminhar tropego e oscillante, é excessivamente tímido e
desconfiado‖ (LEITE, 1881, p. VIII). Podemos ver, então, nessa caracterização do surdo, a
ideia de um indivíduo sem condições de interação social, apático. Estes eram vistos como
infelizes e idiotizados.
Outro caminho defendido e seguido pelo instituto, já desde a época de Huet, era o
de profissionalizar o aluno dentro de uma lógica sexista na qual ficava a cargo dos meninos
tarefas historicamente ligadas a esse gênero. As disciplinas eram divididas em conteúdo
literário, que compreendia matemática, língua portuguesa, história, geografia, e as de
conteúdo profissionalizante. É interessante notar que a educação profissional é um tema
que está presente desde o nascimento do instituto e se perpetua até os dias atuais, seja em
forma de parceria com outras instituições como o Serviço Nacional de Aprendizagem
Industrial (SENAI). Vale ressaltar também que há, atualmente no INES, uma Divisão de
Qualificação e Encaminhamento Profissional que oferece cursos como informática ou
matemática financeira. Nesse embate entram ideias de qual seria o papel do surdo na
sociedade, até onde ele pode chegar e como a escola pode e deve contribuir para esse
desenvolvimento e inserção social do sujeito surdo.
Nota-se, portanto, ao significar a surdez, uma construção dicotômica dos sujeitos
surdos entre os que nasceram surdos ou os que se tornaram após seu nascimento. Essas
construções já atravessavam as estratégias educativas para os estudantes do instituto entre
os que deveriam ter aulas de leitura labial dos que não tinham ―aptidão‖ para essa
atividade. No entanto, ambas as estratégias tinham a língua portuguesa como sua base, seja
na que se pautava pelo ensino através modalidade escrita da língua portuguesa, seja na que
buscava oralizar o aluno.
44
A ideia de uma língua que constitui uma identidade e cultura próprias ainda não é
reconhecida nesse momento no instituto de surdos. Ao comparar essa etapa com aquela em
que se viam os surdos como seres não capazes de adquirir uma língua e, por isso, não
humanos, podemos dizer que eles ainda não são vistos como surdos, senão como
deficientes que, com acesso à língua portuguesa, conseguirão integrar-se à sociedade.
Operamos com a ideia de surdo como um traço identitário que se constrói a partir de língua
e de cultura próprias.
Houve, ao longo da história do instituto, oscilações entre métodos oralistas e os de
ênfase na escrita que perduram até a década de 1950, quando Ana Rímoli assume a gestão
e implementa o projeto de aquisição da linguagem oral para todos, indiscriminadamente. É
possível que haja um diálogo com os discursos circulantes no Congresso de Milão de 1880
no qual se instituía a oralização como caminho na educação de surdos. A disciplina
chamada ―Linguagem Articulada‖, responsável pelo trabalho de oralização dos alunos
passou por inúmeros docentes enquanto, por outro lado, havia a disciplina de ―Linguagem
Escrita‖, abolida em 1911 pelo Decreto 9.198 (BRASIL, 1911) que determinava que o
método oral puro deveria ser adotado por todas as disciplinas. Ao descrever o curso de seis
anos de duração havia, no decreto: ―a) do ensino da linguagem articulada e leitura sobre os
labios, que será professado por quatro professores e quatro repetidores [...]‖ (BRASIL,
1911) ademais de afirmar que ―Art. 9º O methodo oral puro será adoptado no ensino de
todas as disciplinas‖.
No entanto, a disciplina de ―Linguagem Escrita‖ foi retomada no início do século
XX a partir do Decreto 6.892 (BRASIL, 1908), de 19 de março de 1908, baseado em um
relatório de Custódio Ferreira Martins, diretor do instituto por vinte e três anos, que dizia
que 60% dos alunos submetidos ao método oralista puro não chegaram a um nível
satisfatório. O INES, em 1930, passou a integrar o Ministério da Educação e Saúde,
revelando que as interfaces as filosofias educativas e concepções médicas eram mais
abrangentes que apenas na educação de surdos.
Vinte anos mais tarde, por volta de 1970, após uma visita da professora Ivete
Vasconcelos à Universidade de Gallaudet, é instaurado o método de Comunicação Total no
Brasil (LIMA, 2004, p. 27). Em virtude de análises que consideravam resultados pouco
expressivos com a educação de surdos através do oralismo e também influenciados por
movimentos educacionais nos EUA, o método de comunicação total ganha destaque no
45
Brasil na década de 1970. Uma evidência desse destaque é que a Lei de Diretrizes e Bases
de 1971 muda o nome do componente curricular ―Língua Portuguesa‖ para ―Comunicação
e Expressão‖. Privilegia-se, nesse momento, não mais o trabalho com uma determinada
língua em detrimento de outra, senão a função comunicativa da linguagem. Reconhece-se
que a oralização não estava sendo suficiente para o objetivo de comunicação entre surdos e
ouvintes e, ao invés de descartá-la, incorporam-se inúmeros recursos para que se consiga
constituir diálogo.
A partir dessa visão mais comunicativa desvia-se o foco do surdo como um
indivíduo da falta, da deficiência e o coloca mais como um sujeito que deseja, precisa,
pode se usar sua língua de outras maneiras que não a já estabelecida na comunidade
ouvinte.
Dessa forma, a língua de sinais voltou a ser permitida no ambiente escolar
(ROCHA, 2009), ainda que tenha seguido sendo utilizada em outros ambientes do
cotidiano dentro da comunidade surda, e coexistiu institucionalmente autorizada junto com
o oralismo. Ademais desses recursos já discutidos, havia também a leitura orofacial,
amplificação e alfabeto manual para fornecer input linguístico para estudantes surdos.
Priorizava-se mais o conforto linguístico do indivíduo do que qualquer imposição
metodológica.
Há detratores desse método que defendem que o oralismo seguiu predominante e
prioritário enquanto a língua de sinais, os gestos e os outros recursos eram apenas meios
para chegar à comunicação falada.
segue presente nos discursos e nas práticas de educação de surdos, conforme será
explicitado mais adiante nas nossas análises.
Uma proposta bilíngue traz à tona os entendimentos do que é ser bilíngue.
Segundo Favorito (2006, p. 93), no que diz respeito a esse tema no contexto da surdez, há
dois modos como esse conceito vinha sendo entendido:
uma visão idealizada marcada pelos mitos do bilinguismo ideal,
bilinguismo completo e bilinguismo equilibrado em que o indivíduo
bilíngue é concebido de modo abstrato independente do contexto sócio
histórico de que participa; e uma outra vertente, sócio funcional, em que
o bilinguismo é examinado em correlação com fatores políticos,
econômicos e sócio interacionais.
7
O Instituto Benjamin Constant é o centro de referência nacional na área da cegueira.
48
atravessamentos e história que produzem efeitos concretos. Dar nome a qualquer evento ou
elemento que se apresente é, de certa forma, transformá-lo em um enunciado. Em uma
perspectiva dialógica, uma escolha feita (seja ela consciente, inconsciente ou uma
combinação de ambos) estão contidas todas as demais que ficaram de fora; isto é, seguir
um caminho traz consigo a escolha de não percorrer tantos outros com os quais dialoga.
Operamos, portanto, com a ideia de que as palavras, postas em situações concretas de
interação, trazem consigo sentidos que permitem estabelecer relações de poder e de
produção de realidade (DELEUZE; GUATTARI, 2011).
Cada enunciar, portanto, também está contaminado, impregnado com as
subjetividades de sua inscrição sócio-histórica. As condições sociais são parte fundamental
da sustentação de determinado enunciado e, por isso, imprescindível sua compreensão para
que se entenda tal enunciado.
Dessa forma, não nos interessa a visão do mundo como algo dado, uma realidade
posta em que os indivíduos apenas reconhecem e descrevem o que se vê. O real é versão, o
dado é construído e tudo é feito através da palavra. E, partindo desse princípio, o ato de
nomear ganha outros contornos e precisa ser investigado a partir desse olhar.
Apoiamo-nos nas ideias de Deleuze e Guattari (2011) sobre o tema quando
avançam um pouco mais nessa discussão e tratam da palavra não só como produtora de
realidade, mas como palavra de ordem. Os autores fazem uma discussão desconstruindo
alguns postulados da linguística estruturalista e um deles é que a linguagem seria
informativa e comunicativa. Trazem para a discussão a dimensão política da linguagem e
dizem que: ―A linguagem não é mesmo feita para que se acredite nela, mas para obedecer e
fazer obedecer‖ (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 12).
Um dos entendimentos que sustentam essa ideia, a da linguagem como palavra de
ordem, trazemos do Círculo de Bakhtin (BAKHTIN, 2003; VOLÓCHINOV, 2017) que é o
de que, ao enunciar, estamos, invariavelmente, referindo-nos a outros enunciados, ou seja,
evocamos outros sujeitos. O caráter heterogêneo do discurso faz com que sejamos, em
certa medida, implicados com os dizeres que antecedem aquele meu dizer. Nas palavras de
Deleuze e Guattari (2011, p. 13),
Se a linguagem parece supor a linguagem, se não se pode fixar um ponto
de partida não linguístico, é porque a linguagem não é estabelecida entre
algo visto (ou sentido) e algo dito, mas vai sempre de um dizer a um
dizer. Não acreditamos, a esse respeito, que a narrativa consista em
51
Nessa linha, dentro de um fluxo de sentidos que acaba por dizer um outro dizer
que, por sua vez, remete-se a outro dizer, que operamos dentro da lógica da linguagem
descolada da ideia de transmissão de informação, simplesmente. A linguagem está atrelada
a uma inscrição sócio-histórica (BAKHTIN, 2003; VOLÓCHINOV, 2017) que carrega
consigo sentidos prévios e que atribuem essa força de ordem. Nessa sucessão de discursos
indiretos que remontam a tempos impossíveis de resgatar completamente é que nos
sujeitamos e subjetivamos, em alguma medida, ou que já compõe nosso dizer. Com isso,
captar uma informação e transmiti-la, dentro dessa ótica, não é um ato desinvestido de toda
essa carga histórico-social e discursiva que cada enunciado carrega.
Esses sentidos sobre os quais nos referimos são atualizados e ressignificados a
cada enunciar e seus entendimentos entram em disputa a todo o momento, estando sujeitos
a fatores diversos que contribuem para que se fixem em um ou outro ponto. Um dos
sentidos construídos através de enunciados e que será importante para as discussões
levantadas nessa tese é o de identidade. Ao pensar nas diferentes formas de constituir e
nomear o sujeito surdo, discutiremos processos de identificação desse público ao longo do
tempo.
Primeiramente, é importante localizar a discussão da identidade dentro das
perspectivas pós-estruturalistas dos estudos culturais (HALL, 1997; SILVA, 1999;
WOODWARD, 2000) e estabelecer uma distinção entre a essencialização identitária na
forma de identidades mestras e uma pluralização infinita de pertencimentos. O primeiro
entendimento trata da identidade como um processo fechado e estático, ou seja, o
indivíduo traz consigo uma essência imutável, própria e individual. É como se houvesse
identidades prévias ao sujeito e caberia ao indivíduo a tarefa de se encaixar nessas
identidades disponíveis.
Caminhamos para uma compreensão de identidade mais voltada para algo
contínuo, dinâmico e permeável ao entorno. Com isso, preferimos inclusive operar com o
termo processos identitários exatamente para caracterizá-lo como algo sempre inacabado e
passível de ressignificações permanentes. Hall (1997, p.108) caracteriza essa concepção
como uma que:
Aceita que as identidades não são nunca unificadas; que elas são, na
modernidade tardia, cada vez mais fragmentadas e fraturadas; que elas
52
8
É importante destacar as questões de variação linguística presentes dentro dos contextos específico s. As
comunidades linguísticas se constituem também a partir da sua produção linguística e ela varia dentro de
cada agrupamento. No entanto, o caso dos surdos é diferente, pois estamos falando de duas línguas diferentes
e não de variações de uma mesma.
53
sentidos distintas e como elas se relacionam entre si. São elas: a visão de minoria
linguística da surdez e a visão clínica clássica desse grupo.
Dessa forma, ao caracterizar a língua como um objeto, algo da ordem das criações
do homem pelo discurso, é possível também pensá-las como algo que se transforma a
partir do momento que os discursos se transformam. Abandonamos, então, a ideia de
língua como um dado da natureza que deve ser estudado, descoberto, analisado, mas como
algo que nós criamos, mudamos, construímos e hierarquizamos.
Dessa forma, corroboramos a fala de Calvet (1996, p.62) que diz que: ―na
realidade, todas as línguas não podem cumprir, igualmente, as mesmas funções‖. Dentro de
um contexto no qual há duas ou mais línguas em coexistência, há atribuições de status
diferentes para cada uma delas de maneira geral e, em particular, para cada indivíduo.
Dentro do campo das políticas linguísticas há a área de planejamento de status que
compreende, por exemplo, alguns status que as línguas podem exercer como língua
nacional, oficial, de trabalho, cooficial, oficial no âmbito municipal, língua de ensino (nos
diferentes níveis escolares), língua com funções jurídicas, línguas artísticas, religiosas,
científicas, tecnológicas, línguas de comunicação de massa, línguas literárias, línguas
proibidas etc. Essas designações não possuem caráter técnico científico, senão político e as
relações entre as línguas são dinâmicas e sustentadas pelos discursos que circulam nos
contextos nos quais elas existem. Portanto, entendemos que a simples mudança de status
de uma língua (oficializando-a, por exemplo) não é, necessariamente, uma mudança nas
práticas legitimadores que interferem na sua hierarquização em relação às outras línguas
que coexistem em determinado contexto.
Com efeito, é possível falar na condição minoritária de línguas (ARACIL, 1983),
ou seja, uma condição que ―não está relacionada simplesmente com aspectos numéricos ou
quantitativos, mas fundamentalmente qualitativos‖ (LAGARES, 2011, p. 170). Portanto,
para diferenciar as ideias de quantitativo e qualitativo optamos por usar o termo
minorizada para caracterizar uma língua que não conta com o mesmo reconhecimento
político-social em uma comunidade humana em um momento histórico concreto quando
comparadas à língua com a qual disputa.
58
O autor, portanto, reforça a relação entre língua e poder que vimos defendendo até
aqui. As práticas discursivas permitidas e legitimadas através de uma língua majoritária
diferem daquelas possíveis com uma língua minorizada. Por exemplo, dentro do âmbito
acadêmico, ainda é uma luta para que surdos possam apresentar dissertações e teses em
libras e não em língua portuguesa.
Uma comunidade linguística pode ser considerada minorizada, de acordo com
Guillem Calaforra (2003), no momento em que possui, principalmente, três características:
(a) normas sociais restritivas em relação ao próprio uso – isto é, essa língua não se pode
usar em determinados âmbitos – contra as normas de amplo uso características da língua
dominante; (b) bilinguismo unilateral dos membros dessa comunidade, isto é, falantes da
língua minoritária têm em seu repertório a língua própria e a dominante, enquanto que os
falantes dessa última tendem a ser falantes monolíngues; (c) transformação da comunidade
linguística minorizada, como resultado da situação acima, em um subconjunto da
dominante. Os membros da comunidade minorizada tendem a apresentar-se como parte da
comunidade dominante, e assim são percebidos pelo resto do mundo (CALAFORRA,
2003, p. 2).
60
para esse público. Essa situação caracteriza formalmente a condição bilíngue dos surdos
brasileiros.
Essa hegemonia da língua oral sobre a de sinais reflete-se na própria forma de
caracterizar a libras nos meios de comunicação. Reportagens da grande mídia que trazem a
inserção da libras em algum âmbito social, muito frequentemente, a tratam como
linguagem de sinais e não como língua. A esse tratamento subjaz uma ideia de
diferenciação da língua oral com a língua sinais. Marca-se o sentido de que ambas não
estão no mesmo patamar e que uma seria língua, enquanto a outra, linguagem.
Outro fator que nos leva a construir a ideia da libras como língua minorizada é
seu próprio histórico recente de luta por reconhecimento legal e social. Dentro do país,
segundo Fernandes e Moreira (2014) os anos noventa foram um marco do surgimento de
movimentos surdos. Esses movimentos buscavam, principalmente, o reconhecimento da
libras como língua, opondo-se à ideia de um conjunto de gestos ou mímicas que se pode
ver até hoje em certos contextos.
Apenas após esse reconhecimento como língua é que se pode começar a discutir
identidade, cultura e, inclusive a condição minorizada da libras em relação a outras línguas
orais-auditivas. Assim, foi possível, inclusive, voltar-se para a situação de bilinguismo
vivida pelos surdos no país.
Voltando-nos à educação de surdos, buscamos as contribuições de Fernandes e
Moreira (2014) que advertem para
o modelo assimilacionista que caracteriza a educação bilíngue dos
surdos brasileiros, tendo em vista que o sistema educacional conduz a
um monolinguismo, ou a um limitado bilinguismo, em que a língua de
sinais tem sido sistematicamente negada como principal meio de
comunicação e de acesso ao conhecimento, em direção a práticas
linguístico-culturais que têm no português sua referência mais
significativa. Fruto desse "bilinguismo incipiente", a educação
linguística das crianças surdas não constrói referências de
identificação culturais positivas e o precário aprendizado da língua
portuguesa como segunda língua tem contribuído para a
marginalização e a exclusão dos estudantes. (p. 3).
que desvia do grupo maior não seria o suficiente para determinar a condição de
anormalidade ou normalidade. É importante para qualquer tipo de análise, segundo
Canguilhem, atrelar essas características às possibilidades fisiológicas e contextuais do
indivíduo já que, antes da doença, existe o doente e buscar compreender sua situação é
imprescindível para diagnosticá-lo.
Para o autor (CANGUILHEM, 2007, p. 145), o patológico é uma ―norma que não
tolera nenhum desvio das condições na qual é válida, pois é incapaz de se tornar outra
norma‖. A patologia, portanto, reside na incapacidade de uma determinada condição de
tornar-se hegemônica o suficiente a ponto de ser vista como o padrão. O normal é aquele
que atende aos preceitos fixados em determinado contexto social.
Dessa forma, esses preceitos são construídos discursivamente e podem ser
reestabelecidos a qualquer momento, pois são sentidos que estão em constante disputa.
Foucault em História da Loucura (1972) nos mostra como o ideal da loucura foi sendo
ressignificado ao longo dos tempos assim como as possibilidades de tratamento como o
isolamento, o confinamento e o convívio social:
A internação é uma criação institucional própria ao século XVII. Ela
assumiu, desde o início, uma amplitude que não lhe permite uma
comparação com a prisão tal como esta era praticada na Idade Média.
Como medida econômica e precaução social, ela tem valor de invenção.
Mas na história do desatino, ela designa um evento decisivo: o momento
em que a loucura é percebida no horizonte social da pobreza, da
incapacidade para o trabalho, da impossibilidade de integrar-se no grupo;
o momento em que começa a inserir-se no texto dos problemas da cidade.
As novas significações atribuídas à pobreza, a importância dada à
obrigação do trabalho e todos os valores éticos a ele ligados determinam
a experiência que se faz da loucura e modificam-lhe o sentido.
(FOUCAULT, 1972, p. 78).
A patologia, portanto, não está dada, ela não existe anteriormente à sua análise
dentro de uma situação social real e somente é possível caracterizá-la ―nos meios próprios
do homem, que este seja, em momentos diferentes, normal ou anormal‖ (CANGUILHEM,
2007, p.162). Assim como nas palavras de Foucault, a loucura foi ganhando forma de
patologia que impossibilitaria o indivíduo de trabalhar, agir socialmente e estaria fadado à
pobreza.
No caso que estamos tratando nesta tese, destacamos que uma maneira de olhar
para o surdo é a partir da visão clínica clássica que, como o próprio nome já diz, está
atrelada à medicalização desse grupo de pessoas. Sob essa ótica, olha-se para o surdo a
64
partir da sua falta, do que pode ser corrigido sobre sua surdez. Subjaz a esse entendimento
uma acepção cartesiana do corpo humano, visto como uma máquina que deve ser corrigida
ao apresentar qualquer defeito. O corpo, portanto, não estaria inscrito no tempo e no
espaço, e apresentaria constantes comuns independentemente dos fatores sociais.
A audição, portanto, é considerada característica a ser alcançada e o meio para que
se chegue a isso são interferências médicas, às vezes até cirúrgicas, a fim de igualar um
surdo a um ouvinte. Nesse modelo o surdo é
[...] considerado uma pessoa que não ouve e, portanto, não fala. É
definido por suas características negativas; a educação se converte em
terapêutica, o objetivo do currículo escolar é dar ao sujeito o que lhe
falta: a audição, e seu derivado: a fala. Os surdos são considerados
doentes reabilitáveis e as tentativas pedagógicas são unicamente práticas
reabilitatórias derivadas do diagnóstico médico cujo fim é unicamente a
ortopedia da fala (SKLIAR, 1997, p.113).
Uma das perguntas que mais nos interessa neste trabalho é a de quais sentidos
constituem o ser surdo. Desde o ponto de vista clínico clássico, alicerçado nessas
construções descritivas fisiológicas da surdez, começa-se a construir os sentidos do que,
nessa perspectiva, preferem chamar de deficiente auditivo. Quantas e quais dessas
subdivisões apresentadas um indivíduo precisa contemplar para que seja considerado um
deficiente auditivo? Quem e com qual propósito terá a palavra final nessa decisão?
As inúmeras respostas possíveis para essa pergunta se inserem na construção da
própria identidade da comunidade surda. Esses são discursos que circulam socialmente e
trazem consigo, como vimos, o prestígio social dos profissionais de saúde. Dessa forma, os
enunciados que circulam constituindo o ser surdo interpenetram não apenas a visão dos
66
ouvintes sobre o outro, o surdo, mas também a própria visão dessa comunidade sobre si. Se
considerarmos que, historicamente, a maioria do material produzido sobre surdos, seja sob
a ótica social ou a médica, é feita por ouvintes, como esta tese, o pressuposto da influência
dos ouvintes na construção da autoimagem da comunidade surda se acentua. Essa é uma
realidade presente também nos textos sobre a educação de surdos.
Um dos campos de interpenetração dos textos médicos sobre a surdez é o da
legislação. Como será visto mais adiante, as leis que tratam de pessoas com deficiência
buscam respaldo nas afirmações da comunidade médica para definir esse público,
corroborando a legitimidade que essa comunidade encontra na sociedade de maneira geral.
Os textos do campo legislativo, na sua própria razão de existir, buscam a objetividade a
fim de dirimir múltiplas interpretações e possibilitar a aplicabilidade da lei para todos de
maneira igual. Por isso, esses textos se baseiam na cientificidade médica que
pretensamente chegaram a conclusões irrefutáveis, definitivas e apoiadas em provas
construídas através de métodos científicos ditos objetivos. No entanto, vale ressaltar que
dentro da linha teórica que seguimos, não acreditamos em uma ciência que revela e
descreve o mundo previamente dado, mas sim o constrói a partir das contingências da
pesquisa, do pesquisador e uma grade de sentidos que o constitui e, por isso, constitui o
mundo que ele recorta na pesquisa. Sendo assim, cada pesquisa está impregnada dos
enunciados que atravessam aquele momento, aquele sujeito e, por isso, cada pesquisa é
diferente e não é passível de ser replicada indiscriminadamente sem considerar os
contextos.
Assim, esses discursos de medicalização do público surdo, sendo significados
como deficientes auditivos, atravessaram não apenas o campo médico ou legislativo, mas
também o educacional. Como destaca Rodrigues (2008), a educação de surdos incorporou
processos de correção da deficiência dentro da sala de aula e os recursos utilizados também
tinham objetivo reparador e normalizador do indivíduo, ou seja, percebe-se ao longo da
história da educação de surdos uma tentativa de reparar e/ou consertar um defeito. Mais
adiante, no capítulo 4, nos deteremos na influência desses discursos na educação de surdos
no Brasil e, especialmente, no INES.
A partir dessa lógica, a língua de sinais não tem seu lugar e estratégias como a
leitura labial e a tentativa de que o aluno use a língua oral através de exercícios
fonoaudiológicos são adotadas.
67
Nesse momento vale destacar que a distribuição das línguas de sinais pelos países
ao redor do mundo não guarda relação com a configuração das línguas orais. Portanto,
países que compartilham a língua inglesa, por exemplo, não terão a mesma língua de
sinais. O mesmo vale para as línguas espanhola, portuguesa etc. Por exemplo, no Brasil
temos a libras, que em seu próprio nome já explicita que é do Brasil, enquanto em Portugal
adota-se a língua gestual portuguesa.
Nesses casos, nem mesmo o alfabeto manual se assemelha como se assemelham
alguns alfabetos das línguas orais. Logo, os parâmetros da língua como sistema diferem
nas mais diversas línguas de sinais do mundo. Como exemplo, nas duas imagens abaixo,
estão à direita o alfabeto manual da libras e à esquerda o alfabeto manual da língua gestual
portuguesa:
Cada país terá sua especificidade e daremos um panorama geral das línguas de
sinais pelo mundo no que diz respeito ao seu aspecto legal. Pensamos que, dessa forma, é
possível obter algum tipo de parâmetro e de contextualização para analisar com mais
profundidade a situação da libras no Brasil. Entendemos que as relações de políticas
linguísticas não se resumem à legislação, isto é, as leis dialogam com situações concretas
da sociedade proibindo o que se faz e permitindo o que se proíbe, porém sabemos que esse
é um componente importante na teia de sentidos que se fixam e se deslocam na
significação do que é uma língua dentro de determinado recorte sócio-histórico.
Há, até 2015, trinta e um países com a língua de sinais reconhecida em legislações
que afetam o status e/ou os direitos das línguas e, dentre esses países, a maioria está no
âmbito da União Europeia (DE MEULDER, 2015). Nessa contabilização não entram
países que tenham tratado da língua de sinais apenas em documentos educacionais, de
inclusão ou de igualdade. Trata-se, de fato, de mudanças de status ou de direitos
linguísticos. Entendemos que esses documentos legais são reconhecimentos explícitos da
língua e que vêm a fortalecer e a reforçar reconhecimentos implícitos já existentes através
da luta da comunidade surda de determinado local. As leis ou decretos estão inseridos
dentro dos seus contextos de produção e, por isso, em diálogo com os discursos que
circulam em seu entorno. Dessa forma, pensamos que, para chegar ao reconhecimento
legal, a língua de sinais já percorria um caminho anterior de lutas e de produção de
sentidos na direção de legitimá-la como língua de uma comunidade.
Segundo De Meulder (2015), as línguas de sinais, muitas vezes, não ganham status
de oficial, cooficial ou mesmo de língua minoritária por parte de muitos legisladores, visto
que há uma predominância de olhar o surdo a partir da sua deficiência e, portanto, não
precisam de uma língua reconhecida desde um prisma sociocultural, senão de leis
reparadoras, leis que, usualmente, juntam-se a outras questões também consideradas
deficiências alheias à surdez.
É possível pensar em cinco categorias de reconhecimento explícito da língua de
sinais nesses trinta e um países que mencionamos. Mostraremos uma tabela com uma visão
geral das cinco categorias e os países que nela se incluem e, em seguida, nos
aprofundaremos em alguns países, em particular para ver suas legislações.
73
9
Ainda que a Catalunha não seja um país, a região possui uma língua oral própria que também se desdobrou
em uma língua de sinais própria.
74
Antes de tratar das línguas de sinais presentes na tabela, é importante destacar uma
língua de sinais referente a dois países que não estão listados. Trata-se, inclusive, da língua
de sinais mais usada no mundo, a dos Estados Unidos e a parte anglófona do Canadá, que
usam a American Sign Language (ASL). Há outros 22 países que também usam a ASL
dentre suas comunidades surdas. (EBERHARD; GARY; CHARLES, 2020) Esta língua
não está na tabela, pois não figura em lei nacional alguma que a reconheça, legitime ou a
obrigue a ser utilizada em qualquer contexto social. Há apenas leis de âmbito estadual nos
EUA. Já no Canadá, há uma Carta de Direitos e Liberdade (CANADÁ, 1982) que, em seu
capítulo quatorze, assegura um julgamento na língua do acusado qualquer que seja ela e
menciona a surdez como uma possibilidade de oferta de intérprete.
Por conta do regime de governo desses países em que os estados possuem
autonomia maior em relação à federação, podemos verificar que inúmeros estados
tornaram a ASL como língua oficial de minoria. Nas províncias de Manitoba (1988),
Alberta (1990) e Ontario (1993) a ASL foi oficializada como língua de minoria enquanto,
nos EUA, todos os cinquenta estados reconhecem a ASL como uma língua, porém, nem
todos garantem que haja educação ou formação universitária nessa língua.
Passamos ainda para outra região que não está listada diretamente na tabela por não
se tratar de um país, porém vários de seus países-membro estão mencionados. Trata-se da
União Europeia que, em 1988, assinou uma resolução pelo Parlamento Europeu (UNIAO
EUROPEIA, 2016) dispondo sobre as línguas de sinais e seus intérpretes profissionais. O
documento, atualizado em 2016, é abrangente e dispõe sobre educação, acessibilidade,
emprego e a relação das línguas de sinais com as instituições da União Europeia. Em linhas
gerais, o texto faz uma série de recomendações sobre a necessidade de haver informações
acessíveis em língua de sinais e de que se promovam condições para que os surdos possam
ter sua cultura valorizada dentro dos países-membro. Vale ressaltar a correlação
estabelecida entre língua e cultura, o reconhecimento de que há uma cultura constituída dos
sujeitos surdos. Essa questão será retomada, ainda neste capítulo, quando entrarmos na
discussão sobre a lei brasileira de reconhecimento da libras como língua.
Destacamos do documento, alguns trechos que tratam especificamente da educação
do sujeito surdo:
18. Observa que devem ser tomadas medidas de adaptação razoável,
incluindo a disponibilização de intérpretes profissionais de língua gestual,
com vista a assegurar a igualdade de acesso ao emprego, à educação e à
formação;
75
Ainda que o texto aprovado pelo Parlamento Europeu não tenha valor de legislação
com a obrigação de cumprimento pelos países-membro, vale ressaltar as ações relativas ao
ensino. No item 18, fala-se em disponibilizar intérpretes para assegurar igualdade na
educação, ou seja, nas escolas. Os itens 19 e 20 ressaltam a construção de identidade surda,
um através de informações sobre o que é ser surdo e o outro através da competência
linguística desde o início da vida do indivíduo surdo.
Em alguns países-membro da União Europeia podemos perceber a presença das
línguas de sinais na legislação nacional. Na Áustria, por exemplo, em 2005, a Língua de
Sinais Austríaca foi reconhecida como independente através de uma emenda à constituição
do país, assim como aconteceu na Finlândia dez anos antes, em 1995. Fora de Europa,
países que também tiveram a língua de sinais integrada à sua constituição foram: Uganda,
em 1996, Venezuela, em 1999 e Zimbábue, em 2013 (NAPIER; LEESON, 2016)
Há outros países em que a língua foi reconhecida, porém não na constituição como
através de um decreto do governo belga que atribui à língua de sinais do país um
―reconhecimento cultural simbólico‖. Na legislação islandesa a língua de sinais é colocada
junto à situação dos imigrantes e dispõe sobre providências de política linguística dentro
do ambiente escolar.
O reconhecimento da língua de sinais se restringe ao âmbito do ensino em países
como Turquia e Portugal, por isso não se encontram na tabela. Não há um reconhecimento
da língua no país, senão apenas uma menção no âmbito educacional. Particularmente, no
10
Chamamos atenção para a diferença de nomenclatura entre o Português brasileiro e o usado em Portugal
para o nome da língua própria da comunidade surda. Enquanto usamos, no Brasil a língua de sinais, em
Portugal, assim como a maioria dos países lusófonos, usa-se língua gestual.
76
dezembro de 2005 (BRASIL, 2005), com o fim de regulamentar alguns dos itens dispostos
na lei. Esse decreto também será matéria de discussão neste capítulo.
Destacamos que, ao contrário da lei, o decreto é uma norma jurídica que prescinde
de tramitação nos órgãos legislativos (Congresso Nacional), sendo publicada diretamente
pelo poder executivo. Por conta dessa tramitação, esse tipo de norma jurídica pode entrar
em vigor sem que haja participação social em sua elaboração.
Operamos, portanto, com a ideia da construção de um arquivo legislativo com o
qual lidaremos nas análises desenvolvidas. Dentro dos estudos que se aproximam da língua
como discurso, então, tratamos do conceito de arquivo de acordo com Foucault (1969, p.
147), que o define como:
De início, a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimento
dos enunciados como acontecimentos singulares. Mas o arquivo é,
também, o que faz com que todas as coisas ditas não se acumulem
indefinidamente em uma massa amorfa, mas que se agrupem em figuras
distintas, se componham umas com as outras segundo relações múltiplas,
se mantenham ou se esfumem segundo regularidades específicas.
Podemos expandir essas ideias não apenas às práticas judiciárias do âmbito penal,
mas também à própria textualidade da lei que se agencia criando verdades definidoras de
subjetividades, formas de saber e, também, as relações que se estabelecem entre o homem
e essa verdade criada.
Qual o poder instituído em um dispositivo legal que o legitima a oficializar uma
língua ou a reconhecê-la como tal? Quais as consequências na forma de se significar o
indivíduo surdo a partir desse acontecimento discursivo? Sobre essa última pergunta,
articulamo-nos com o pensamento do autor quando afirma:
Seria interessante tentar ver como se dá, através da história, a constituição
de um sujeito que não é dado definitivamente, que não é aquilo a partir do
que a verdade se dá na história, mas de um sujeito que se constitui no
interior mesmo da história, e que é a cada instante fundado e refundado
pela história (FOUCAULT, 1999 p. 10)
Portanto, os sentidos do que é ser surdo, do que é ser usuário de libras, do que é
educar através dessa língua são ressignificados a partir da Lei 10.436/2002. Acreditamos,
inclusive, que essas mudanças não ocorrem apenas para o que veio e para o que virá após a
lei. Não se trata apenas de uma questão de linha do tempo entre um antes e um depois
dessa norma jurídica. As próprias verdades criadas sobre o que ocorreu também são
refundadas, ressignificadas. A libras não foi tornada língua pela força da lei, foi
reconhecida como tal; portanto, entendimentos sobre essa língua como conjunto de gestos
e mímicas são redefinidas. O sujeito que era visto como alguém que tinha dificuldade de
aprender a língua nacional passa a ser aquele que tem sua própria língua e pode vir a
adquirir uma segunda língua na sua modalidade escrita, dentre outras tantas construções de
verdades e fundações de histórias que se agenciam a essa nova forma de dizer a língua
brasileira de sinais.
80
No entanto, uma simples definição do termo não garante que este será
compreendido da mesma forma por todos que o leem. A partir de Maingueneau (2011),
operamos com a ideia de que, a partir da interação entre dois ou mais sujeitos, são
produzidos enunciados que englobam mais fatores para além da materialidade textual. O
sentido se dá a partir de uma construção em que não apenas o enunciador tem influência,
senão o coenunciador também. Coenunciador é sujeito que interage com o enunciado e
também participar de sua construção de sentido. Portanto, considera-los é determinante
para a análise dos enunciados, assim como os contextos envolvidos na leitura e produção.
Um enunciado está, invariavelmente, permeado por outros discursos que o atravessam,
memórias discursivas que lhe subjazem e acabam por produzir sentidos, ainda que estes
escapem às intenções do indivíduo que o produziu. Dessa forma, os sentidos não são
estáticos ou imanentes ao texto e, de certa maneira, escapam a um fechamento completo,
estando sempre submetidos a novas construções e aportes em cada enunciação.
No círculo de Bakhtin esse tema é tratado a partir do conceito de excedente de
visão. Em Estética da Criação Verbal (2003), corrobora-se a ideia do olhar do outro como
constitutivo do sujeito. Nas palavras do autor:
[...] em qualquer situação ou proximidade que esse outro que contemplo
possa estar em relação a mim, sempre verei e saberei algo que ele, da sua
posição fora e diante de mim, não pode ver [...]
Esse excedente da minha visão, do meu conhecimento, da minha posse –
excedente sempre presente em face de qualquer outro individuo – é
condicionado pela singularidade e pela insubstitutibilidade do meu lugar
no mundo: porque nesse momento e nesse lugar, em que sou o único a
estar situado em dado conjunto de circunstâncias, todos os outros estão
fora de mim. (BAKHTIN, 2003, p.210)
Portanto, para constituir-me como sujeito não é necessário apenas estabelecer onde
me encontro, senão também compreender minha posição relacional diante do outro, ou de
tantos outros quantos possa haver investindo olhares e sentidos para mim.
O que mudou na libras para que ela fosse reconhecida como língua? O ato de
reconhecê-la como tal nos leva a olhar para trás e reconstruir as verdades instituídas,
ressignificar as formas de saber que estavam postas até o momento, afinal, por trás de
qualquer saber ou conhecimento coloca-se em jogo uma luta de poder. Portanto, nossas
análises operam com a construção de objetos de estudo, de análise, por nós mesmos, ao
contrário de ideias que defendem uma aproximação de um objeto já dado e imutável da
natureza que esteja imune a subjetividades de quem a olha.
81
Primeiramente, vale destacar que na lei, a palavra ―língua‖ é usada apenas na sua
designação, nunca para qualificá-la, apenas para designá-la a partir de um nome que já
circulava socialmente e pela qual ela já era conhecida no Brasil.
83
Além disso, ao contrário das situações que vimos sobre a língua de sinais em alguns
países, na legislação brasileira, a libras não se tornou uma língua oficial ou cooficial, senão
foi ―reconhecida como meio legal de comunicação e expressão‖ (BRASIL, 2002, grifo
nosso). Questionamo-nos quais os sentidos que emergem dessa dicotomia que se apresenta
entre meio legal e língua oficial.
A partir da lei, há uma diferença entre a libras, qualificada como ―meio legal de
comunicação e expressão‖, e o português, língua oficial do Brasil, segundo a Constituição
Federal: "Art. 13. A língua portuguesa é o idioma oficial da República Federativa do
Brasil‖ (BRASIL, 1988, grifo nosso). Igualmente, as línguas indígenas são reconhecidas
como tal na lei maior do país: ―Art. 210. [...]§ 2º O ensino fundamental regular será
ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a
utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem.‖ e ―Art. 231.
São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e
tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam,
competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.‖ (BRASIL,
1988, grifos nossos).
Tais formas de qualificar o status político dessas línguas nesses dispositivos de
legislação fazem emergir sentidos sobre elas. Para começar a construir esses sentidos
subjacentes aos enunciados da lei, buscamos uma reflexão de Baalbaki e Rodrigues (2011,
p.139) sobre o tema:
A LIBRAS foi, e talvez ainda seja, historicamente tomada como
―linguagem‖, ―gestos‖, ―mímica‖. Trata-se de uma língua marcada pelo
apagamento de sua historicidade na sua relação com os sujeitos surdos,
uma língua que parece assumir um status de ―língua-meio‖: nos
instrumentos legais analisados, ocupa um lugar bastante vinculado ao de
uma língua veicular, ou seja, que ―serviria‖ tão somente para estabelecer
a ―comunicação‖ entre falantes de uma dada comunidade linguística.
O processo histórico das línguas de sinais que, durante muito tempo eram vistas
como um conjunto de gestos limitados, contribui para que esta não seja vista como um
elemento intrínseco ao sujeito. Como é possível perceber, a lei reduz a libras a um meio de
comunicação, sem contemplar elementos subjetivos, culturais, identitários, sociais. As
autoras denominam esse status conferido a ela de ―língua-meio‖.
Subjaz à caracterização da libras apenas como um meio de comunicação a ideia de
língua externa ao sujeito, como um instrumento do qual se lança mão para dizer o que se
84
quer. A ideia de uma língua que constitui sujeito, que toma parte importante nas práticas
sociais que são construídas e que constroem cultura não atravessa os discursos presentes na
textualidade do dispositivo legal estudado. Baalbaki e Rodrigues (2011) reforçam esse
entendimento em:
E ao silenciar a oficialização, o termo ―meio‖ parece remeter a sentidos
como ―recurso‖, ―dispositivo‖, ―estratégia‖, ―instrumento‖ que permite a
comunicação, mas nega-lhe a amplitude conceitual do que se designa
como ―língua‖, facultando sua redução a um código e, por conseguinte,
promovendo o apagamento de sua historicidade.
Quando se oficializa uma língua, a lei muda seu status de não oficial para língua
oficial ou cooficial. Porém, ao pensarmos no termo usado pela Lei 10.436/2002 de que a
libras passa a ser ―meio legal‖, qual status foi alterado? A língua de sinais era ilegal e
agora passa a ter legalidade, isto é, agora se permite que ela seja usada em território
nacional? A libras nunca foi ilegal, pois nunca houve uma lei que a proibisse, no entanto,
podemos encontrar diálogos dessa ideia com a própria história das línguas de sinais e sua
proibição de uso pela comunidade surda durante quase um século a partir do Congresso de
Milão no final do século XIX conforme abordado no primeiro capítulo, principalmente, no
âmbito da educação.
Ao tornar a língua de sinais um ―meio legal‖, portanto, essa norma jurídica parece
permitir o uso da língua no território nacional. No entanto, resta o reconhecimento de que a
libras é língua, o que seria, sem dúvida, uma conquista para a comunidade surda brasileira.
Destacamos também a caracterização da língua, na lei 10.436/2002, como um
instrumento, algo externo ao sujeito, algo do qual alguém detém controle e lança mão de
acordo com suas intenções. Essa ideia opõe-se à concepção com a qual trabalhamos nessa
tese, de língua constitutiva do sujeito. A construção de sentidos dessa língua entendida
como um instrumento externo é reforçada no parágrafo único que segue o artigo primeiro e
que diz:
Parágrafo único. Entende-se como Língua Brasileira de Sinais - Libras a
forma de comunicação e expressão, em que o sistema lingüístico de
natureza visual-motora, com estrutura gramatical própria, constituem um
sistema lingüístico de transmissão de idéias e fatos, oriundos de
comunidades de pessoas surdas do Brasil. (BRASIL, 2002)
pesquisa linguística teria que ser a ‗regra do jogo‘, isto é, o sistema, e não as mensagens
que ele serve de suporte‖.
A disputa pelo reconhecimento das línguas de sinais como línguas, no âmbito dos
estudos da linguagem, data da década 1960 (SKLIAR, 1997) e sempre fez oposição com
ideias de que as estas não eram, de fato, línguas, senão um conjunto de códigos ou de
mímicas compartilhado por um grupo de indivíduos. O autor aborda também a recorrência
do uso do termo ―linguagem de sinais‖ que traz sentidos de que não possuem as mesmas
características de uma língua, ou seja, não trariam consigo a possibilidade de dizer tudo,
teriam vocabulário reduzido e capacidade de construir conceitos limitada dentre outras
afirmações.
A linguagem se refere à capacidade do indivíduo de se comunicar através dos mais
diversos meios enquanto a língua está mais ancorada na concretude das interações e é o
que possibilita essa comunicação.
Ao final do trecho que destacamos diz-se que a libras e seus elementos são
―oriundos de comunidades de pessoas surdas do Brasil‖. Operando em uma lógica de
ruptura e de segmentação entre surdos e ouvintes pode-se inferir que a libras é propriedade
dos surdos e que não cabe aos ouvintes usar essa língua. A ideia de integração entre surdos
e ouvintes em que a ―comunicação‖ se dá em libras é abandonada pelo texto da lei. Vemos,
portanto a língua de sinais subjugada a uma posição de nicho linguístico.
Importante perceber também como essa comunidade surda é caracterizada.
Enquanto a lei não trata dessa questão de maneira mais extensa, o decreto propõe uma
determinação do que é ser surdo:
Art. 2º Para os fins deste Decreto, considera-se pessoa surda aquela
que, por ter perda auditiva, compreende e interage com o mundo por
meio de experiências visuais, manifestando sua cultura principalmente
pelo uso da Língua Brasileira de Sinais - Libras.
Parágrafo único. Considera-se deficiência auditiva a perda bilateral,
parcial ou total, de quarenta e um decibéis (dB) ou mais, aferida por
audiograma nas freqüências de 500Hz, 1.000Hz, 2.000Hz e 3.000Hz.
(2005, p. 1)
seria considerada essa perda auditiva. Além de trocar o termo ―perda auditiva‖ por
―deficiência auditiva‖ há diversos parâmetros clínicos que contribuiriam na definição do
que é ser surdo.
Vemos, portanto, nesses enunciados, interdiscursos que constituem o surdo como
sujeito de língua e cultura e também como indivíduo da falta, aquele que precisa ser
diagnosticado a partir de convenções médicas.
Essa aparente paradoxo da lei que busca incluir a comunidade surda em um
movimento que exclui os ouvintes suscita uma discussão mais abrangente de propriedade
linguística. Questões como ―a quem pertence uma língua‖ emergem. Para começar a
respondê-la, é necessário refletir se a língua é um objeto que existe no mundo ou uma
ideia, uma construção discursiva feita através de disputas de poder.
Acreditamos que a língua esta se refaz a cada dizer, a cada interação. Portanto, a
língua pertence a quem a usa, seja usuário a quanto tempo for, tenha a proficiência que
tiver.
Buscamos algumas situações de cooficialização de línguas para compreender
possíveis efeitos práticos desse ato. Ressaltamos que não estamos defendendo essa medida
para a libras no Brasil, apenas investigando os efeitos de sentido em enunciados que
tornam uma língua ―meio legal de comunicação‖ e cooficial, no caso de outras línguas.
Iniciamos com situação de cooficialização de línguas dentro do Brasil, trazemos uma lei
municipal sobre a língua pomerana em um município da região Sul do país.
No município de Pomerode em Santa Catarina, promulgou-se a Lei 2.907 de 23 de
maio de 2017 (POMERODE, 2017) em que, no seu artigo primeiro diz: ―A língua
portuguesa é o idioma oficial da República Federativa do Brasil e no município de
Pomerode, fica cooficializada a língua Pomerana‖. O trecho reafirma a oficialidade da
língua portuguesa, porém não torna o pomerano um ―meio legal de comunicação‖, senão
língua cooficial.
Seguindo com a norma jurídica em questão, definem-se as consequências práticas
de dar esse novo status à língua pomerana:
Valorizar a herança linguística e cultural como forma de salvaguardar o
patrimônio imaterial e material do povo tradicional Pomerano, como base
de identidade e cidadania; II - Promover o conhecimento, a fala da língua
e a escrita da Língua Pomerana, especialmente nas famílias
descendentes de imigrantes Pomeranos e com as novas gerações, por
meio de ações de cunho social e educação informal; III - Por meio da
cultura Pomerana, caracterizar a identidade da comunidade e promover
88
Nessa lei, há sentidos que relacionam língua e cultura, especialmente, no artigo 47.
No entanto, há, assim como na lei da libras, a priorização do uso da língua portuguesa em
detrimento da língua indígena. Vale destacar que a Lei do Estatuto do Índio é da época da
ditadura militar, o que não acontece com a lei de libras. Mas isso não significa que a força
do monolinguismo deixou de se impor sobre as demais línguas.
Assim como o pomerano, em 2002, houve o reconhecimento de línguas indígenas
em nível municipal, conforme garantido pela constituição. O município de São Gabriel da
Cachoeira, no Amazonas, tornou otukano, o baniwa e o nheengatu línguas oficiais do
município, ao lado do português. A lei que regulamenta esse ato foi, inclusive, escrita nas
quatro línguas oficializadas.
Seguindo com a análise da Lei 10.436/2002, destacamos também, já ao final do seu
texto, no parágrafo único do quarto artigo o trecho que diz que diz que: ―A Língua
Brasileira de Sinais - Libras não poderá substituir a modalidade escrita da língua
portuguesa‖.
Em uma relação de disputa de poder, inerente a qualquer coexistência de duas
línguas, a libras assume uma posição, recorrente, de língua minorizada, subjugada à língua
majoritária que se sobrepõe e se impõem em qualquer circunstância. A língua portuguesa
segue na sua posição de língua primeira e primordial enquanto a libras deve ser um
adendo, algo que será produzido e levado à comunidade surda a partir da língua
portuguesa.
90
Questionamos também o fato de esta ser a única disciplina obrigatória por lei para
todas as licenciaturas, enquanto os demais componentes são determinados autonomamente
pelas universidades, seguindo as diretrizes curriculares das licenciaturas e as específicas de
cada curso. Há muitas situações pelas quais um docente passará em sua vida profissional e
a legislação não tem como antecipá-las todas como, por exemplo, alunos com altas
habilidades, cegos, altistas, além de outras situações que poderiam ser discutidas em
disciplinas específicas nas licenciaturas.
Outro item abordado no decreto e que também diz respeito à formação de
professores trata dos docentes que atuarão ensinando libras nas escolas. Sobre esse caso se
diz:
Art. 11. O Ministério da Educação promoverá, a partir da publicação
deste Decreto, programas específicos para a criação de cursos de
graduação:
I – para formação de professores surdos e ouvintes, para a educação
infantil e anos iniciais do ensino fundamental, que viabilize a educação
bilíngue: Libras – Língua Portuguesa como segunda língua;
II – de licenciatura em Letras: Libras ou em Letras: Libras/Língua
Portuguesa, como segunda língua para surdos;
III – de formação em Tradução e Interpretação de Libras – Língua
Portuguesa. (BRASIL, 2005)
11
Consideramos as instituições de ensino superior públicas federais e cursos de licenciatura, pois são os
cursos sobre os quais o Decreto 5.626/05 legisla.
12
Ainda que o nome do curso contemple a libras e uma língua estrangeira, ao buscar o projeto pedagógico do
curso constatamos que se trata de uma dupla habilitação em que a primeira é a Língua Portuguesa e a outra é
escolhida entre LIBRAS ou Língua Inglesa.
94
de acessibilidade‖ (INEP, 2020). De acordo com o edital desse ano, a aplicação do exame
passou a oferecer prova em braile, prova ampliada13, auxílio para leitura e transcrição e
tradutor/intérprete em libras. O tradutor/intérprete em libras garantiria a comunicação do
candidato no local de prova, além de poder tirar dúvidas pontuais de palavras em língua
portuguesa.
Em 2017, o INEP apresenta uma grande mudança na estrutura do exame para os
candidatos surdos: a videoprova em libras. A partir desse momento, os candidatos surdos
passam a ter acesso, além da prova impressa em língua portuguesa, a questões totalmente
traduzidas para a libras.
O edital do ENEM de 2017, sob o item de ―atendimento especializado e/ou
específico‖, divulgado em diário oficial diz que:
2.2.2.1 Sem prejuízo da oferta de tradutor-intérprete de Libras, bem
como das provas impressas, o Inep poderá oferecer ao
PARTICIPANTE surdo ou deficiente auditivo, em caráter
experimental, dispositivo contendo vídeo com a tradução de itens do
Enem 2017 em Libras. (BRASIL, 2017)
13
Prova com texto e imagens aumentados para candidatos com baixa visão.
97
O edital segue e, em seu item catorze discorre sobre a correção das redações e,
novamente, abrange a questão da surdez:
14.10 Na correção da redação dos PARTICIPANTES surdos ou com
deficiência auditiva, serão adotados mecanismos de avaliação
coerentes com o aprendizado da Língua Portuguesa como segunda
língua, de acordo com o Decreto nº 5.626, de 22 de dezembro de
2005. (BRASIL, 2017)
Mais uma vez encontramos ambas as designações: surdo e deficiente auditivo,
sem que se especifique o entendimento da diferenciação entre eles. Porém, ao contrário do
verificado no item 2.2.4 do edital, destacado anteriormente, neste há uma consideração ao
fator linguístico dos indivíduos surdos que prestarão o exame. Há o reconhecimento de que
a Língua Portuguesa não é a primeira língua do surdo e, com isso, subentende-se que a
libras o seja, reforçado pela referência ao Decreto 5.626 de 2005, que trata da língua de
sinais no país.
A prerrogativa de uma correção de redação específica também é dada aos
candidatos disléxicos e, de acordo com o edital, as redações dos disléxicos contam com
―mecanismos de avaliação que considerem as características linguísticas desse transtorno‖
(INEP, 2019, p. 63). Importante marcar a diferenciação no tratamento das duas situações
apresentadas. No caso dos surdos, há a consideração de que a língua deles não é a
portuguesa, enquanto que na situação de dislexia se mencionam características linguísticas
desse público. Ainda que seja um termo vago, ao opor-se à especificação de ―uma segunda
língua‖ atribuída aos surdos, podemos perceber um afastamento desses dois grupos e, mais
ainda, a consideração do sujeito surdo como usuário de outra língua e como isso interfere
no seu uso da língua portuguesa. Essa assunção dialoga com uma linha de estudos que
considera a libras como uma língua e poderia interferir no aprendizado de uma segunda
língua. Portanto, reforça a premissa de que a libras deva ser estudada e a relação entre ela e
a língua portuguesa investigada para que se possam considerar os aspectos dessa interseção
no momento da correção de um candidato usuário de libras. Pensando nas línguas orais, as
etapas de interlíngua na aprendizagem de um hispanofalante ao aprender português serão
diferentes daqueles anglofalantes. Da mesma forma, há momentos próprios dos usuários de
libras na relação com o português.
No entanto, essa análise mais aprofundada não pode ser feita, pois como
ressaltamos, em lugar algum encontramos quais são os critérios de correção de candidatos
que têm a língua portuguesa como segunda língua. Perguntamo-nos, inclusive, se o
99
14
Eu, como professor de língua estrangeira do INES, observo a relação dos surdos com a língua espanhola e
vejo como a experiência no contato com uma língua oral pode interferir na relação do aluno com os textos
apresentados naquele idioma. O próprio trabalho com o ENEM é um exemplo e revela, muitas vezes, um
obstáculo para o surdo maior do que para o ouvinte que tem como sua língua de identidade a LP.
101
habilitar surdos e ouvintes a atuar como professores de libras. Há um prazo de dez anos
para a vigência dessa habilitação através do Prolibras, portanto, a contar da data do
decreto, 2005, esse período expirou em 2016.
De acordo com a portaria normativa, o Prolibras teria periodicidade anual (entre
2006 e 2016, respeitando os dez anos de prazo para que as universidades implementem os
cursos de licenciatura em libras) e seria um esforço conjunto do MEC com o INEP. A
UFSC, primeiramente, era o único órgão credenciado a realizar o exame. Em 2011, a partir
de outra portaria normativa, a 20/2010 do MEC, institui-se que o exame passara a ficar sob
responsabilidade do INES. O último exame foi realizado em 2015, em uma parceria UFSC
e INES, e há uma discussão sobre a necessidade de continuar a aplicar o exame, visto que
o período estipulado pela legislação se encerrara. Em nota, a Federação Nacional de
Educação e Integração dos Surdos (FENEIS) diz que ―o Ministério da Educação volta a
discutir a necessidade de lançar uma nova edição, a fim de subsidiar algumas ações
emergentes que se encontra em algumas regiões no Brasil.‖ (FENEIS, 2017). No entanto,
nenhuma nova edição do exame foi lançada.
Para que se tenha uma dimensão da abrangência do exame, a última edição de
2015 contou com mais de onze mil inscrições sendo que destas, mais de oito mil foram
efetivadas (UFSC, 2015).
Feita essa contextualização do que é o exame e quais são suas bases de criação,
optamos por nos aproximar do edital referente ao último exame do Prolibras organizado.
Dessa forma, buscamos os entendimentos mais recentes sobre os sentidos que
investigamos nessa tese construídos por esse instrumento de avaliação que é relevante para
a educação de surdos no país.
Antes de entrarmos no último edital lançado é importante comentar os efeitos da
existência de um exame de proficiência que atesta capacidade de um indivíduo de atuar
como professor de uma determinada disciplina, no caso, libras.
As discussões sobre formação de professores mobilizam diversos campos do
conhecimento e buscam compreender como é possível preparar um profissional da área da
educação para atuar como docente. Uma das conquistas da carreira do magistério foi a
obrigatoriedade de curso superior de licenciatura para atuar nas escolas da educação básica
e ensino superior pelo país, que tem sua origem no Decreto-Lei nº. 1.190, de 4 de abril de
1939, que criou a Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, instituindo a
102
Metade dos pontos não tem, especificamente, uma menção à dimensão do ensino
que é própria certificação pretendida nessa etapa do Prolibras. Há uns pontos que tratam
apenas questões de descrição linguística e, portanto, abre-se a possibilidade de que sejam
abordadas de maneira desconectada da dimensão do ensino.
médicas ou o sujeito detentor de uma língua minorizada e, por isso, carente de políticas
linguísticas que o atendam de maneira a prove condições de convivência e integração à
sociedade.
105
departamento com direção própria e, com isso, constitui um grupo com espaço para
discutir suas ações e com certa autonomia sobre suas decisões e atos.
época, nos EUA, em que o estado começa a criar burocracias próprias para lidar com a
educação, a escolarização ganha uma proporção mais abrangente em todas as camadas da
população e a preocupação com a manutenção de uma identidade nacional ameaçada pelo
grande fluxo migratório. Todos esses fatores serviram para a ascensão do campo de
estudos do currículo nesse determinado período.
Como marco para o surgimento das teorias tradicionais e também da área de estudo
foi, mais especificamente, o livro The Curriculum, de Bobbit, lançado em 1918 nos
Estados Unidos. A grande discussão posta na obra, provocada pela problematização
imposta pela possibilidade de educar toda a população, era como determinar os objetivos
de um currículo. O autor colocava dois caminhos a percorrer: voltar-se para as disciplinas
científicas que expliquem a sociedade à sua volta ou a preparação de jovens para o mundo
do trabalho com saberes profissionais do mundo ocupacional adulto.
Essa discussão, iniciada por Bobbit (1918), avança com outros nomes como Dewey
(1922) e Tyler (1949) e mobiliza principalmente conceitos como conhecimento,
planejamento e avaliação dentro de uma lógica tecnicista e sistêmica de ensino. Nesse
momento, todos esses nomes das teorias tradicionais tendem a responder a questões sobre
os objetivos do currículo voltando-se para a preparação laboral, buscando a eficiência do
ensino com resultados que pudessem ter seu efeito imediato no mercado de trabalho. De
acordo com esses estudos, era necessário fazer um diagnóstico da realidade vivida pelos
alunos para, assim, diagnosticar quais habilidades deveriam ser aprendidas por um
determinado grupo. Dessa forma, a formulação de objetivos é parte central desse
pensamento e, por conseguinte, a criação de mecanismos de mensuração do cumprimento
desses objetivos também é primordial. No que tange ao papel do professor, a essa
concepção subjaz uma ideia de docente que detém controle total sobre o que ocorre em sua
sala de aula e, dessa forma, sabe os procedimentos exatos a seguir para que todos cheguem
ao mesmo resultado.
Dialoga-se aqui com o modelo de organização de empresas concebido por
Frederick Taylor (1909) de administração científica de fábricas ara produção em massa, de
maneira padronizada. O currículo nesse modelo é concebido como um percurso padrão, um
molde sob o qual alunos estariam subjugados e, ao final do processo, devem ter chegado ao
mesmo destino, tendo adquirido as mesmas habilidades e sendo capazes de realizar as
mesmas tarefas.
108
De acordo com essa forma de pensar, os alunos não são vistos a partir da sua
individualidade. O ponto de partida é desconsiderado, preocupando-se apenas com o ponto
de chegada. Pressupõe-se que as avaliações, invariavelmente, são capazes de dar conta de
forma exata do que se pretende aferir e qualquer subjetividade é deixada de lado. No
entanto, buscando fazer um contraponto a esse pensamento, trazemos Luckesi (2011), que
afirma que a avaliação, durante muitos anos, foi significada como um instrumento
supostamente capaz de medir o progresso de aprendizagem do aluno. No entanto, entende-
se, a partir dessa visão, que a própria avaliação é uma ferramenta que se relacionará com
cada aluno de maneira distinta, pois cada discente estabelece sua relação com o percurso
curricular.
Uma vez estabelecido o campo do currículo no início do século XX, a resposta aos
teóricos tradicionais veio com pensadores que não apenas questionavam em como fazer o
currículo, entendido na época como o conjunto de conteúdos a serem ensinado, senão a sua
própria elaboração e, com isso, preocupavam-se em como a educação servia para manter
ou alterar os arranjos sociais preestabelecidos. Esse movimento ocorreu por volta dos anos
1960 e eclodiu em diversos países como na Inglaterra, com Michael Young, França, com
Althusser, Bourdieu, e no Brasil com a obra de Paulo Freire. Evidentemente, cada contexto
traz particularidades na contribuição para o campo, mas é possível encontrar pontos de
contato entre eles.
O foco deixa de ser tanto na confecção do currículo, mas em seu papel social na
manutenção das realidades sociais com suas injustiças e desigualdades. Para isso, entra em
questão a articulação da educação com a ideologia, tema que foi sustentado pelo ensaio do
filósofo Althusser em A ideologia e os aparelhos ideológicos do Estado (1970). A escola é
um desses aparelhos do Estado que serve para perpetuar as ideologias pretendidas por
determinado grupo dominante e faz parte, portanto, do currículo, de acordo com esse
entendimento da época, a tarefa de reiterar tal prática ou modificá-la subvertendo a ordem
posta.
Não importa mais tanto com o onde se irá chegar, mas a prioridade está no caminho
percorrido para se chegar lá. O foco do processo escolar está mais voltado para os alunos
enquanto aprendizes inseridos em determinada realidade social. Os dispositivos escolares
são pensados para que o aluno se emancipe e não se prenda a essa situação que lhe é
apresentada, portanto, a escola é um mecanismo de trânsito social.
109
currículo), se está moldando o tipo de sujeito que se quer encontrar ao final do percurso.
Essa seleção pressupõe a exclusão de outros e submete os sujeitos à exposição a
determinados conteúdos e não a outros. Portanto, a partir do momento que um grupo está
em posição hegemônica para fixar sentidos sobre qual será o currículo que circula em
determinado contexto se está dando a ele o poder de influenciar de maneira determinante
em que sujeitos serão formados.
Esses sentidos mobilizados por determinado grupo não são de controle total dele.
Não se trata de uma decisão consciente e programada, afinal, trata-se de construções que se
dão através da língua, isto é, está sujeita a subjetividades de todos os envolvidos e, por
isso, impossíveis de controlar, prever, planejar.
A temática da surdez torna ainda mais imperativa a relação entre currículo e
cultura. Partindo da ideia de que os surdos têm sua língua de identidade e, por conseguinte,
uma cultura própria, entendemos que novos sentidos de currículo também emergem nesse
grupo, por isso, não podemos deixar de fazer a interseção desse tema com o currículo. Os
currículos também são elementos que fazem parte dessas produções discursivas e
contribuem para a fixação de um conceito de cultura e para a fixação de determinadas
culturas. No caso dos documentos educacionais produzidos pelo DEBASI, objeto de
interesse deste capítulo, os enunciados produzidos por eles tratam de reafirmar ou silenciar
algumas ideias de cultura, ou seja, fixar identidades que, nada mais são que ficções,
realidades fabricadas e tornadas possíveis através de discursos.
Sob esse aspecto, a cultura não é prévia ao currículo e este a perpetuaria, a
reproduziria ou a negaria. O currículo está na própria corrente discursiva que produz
sentidos que irão constituir sentidos do que seja cultura e como ela está disposta e dividida
em uma dita sociedade. Assim, o currículo não reflete a cultura, mas ajuda a instituí-la.
Pensa-se, portanto, não mais em cultura, porém em fluxos culturais, movimentos
discursivos que produzem sentidos todo o tempo a fim de estabelecer o que esse conceito
enuncia. Porém, esse é um movimento constante e complexo e, com isso, impossível de ser
totalmente estabelecido e apreendido.
Umas das relações entre cultura e currículo que está mais estabelecida e enraizada
nos pensamentos sobre tais campos é o contato entre ambos a partir da ciência (LOPES &
MACEDO, 2011). Ao entender o currículo como uma seleção de conhecimentos válidos,
uma ideia de cultura científica ganha importância à medida que esta validaria esses
111
conhecimentos e, portanto, haveria uma relação direta entre o que é valorizado na cultura
acadêmica para o que é selecionado para estar nos currículos. No entanto, trabalha-se para
desnaturalizar tanto a ideia da existência de uma cultura científica, como se essa fosse uma
realidade estática e preexistente ao discurso, como para desconstruir a noção de currículo
apenas como a seleção de conhecimentos.
A própria crise do conhecimento científico como algo natural, universal e absoluto
contribui para uma queda da concepção de conhecimentos válidos que precisam ser
ensinados como verdades para um determinado grupo de estudantes. Assim, começa-se a
relativizar a relação direta entre currículo e conhecimento (SILVA, 1999), mais
especificamente a partir do advento da perspectiva crítica dos estudos curriculares. O
conhecimento, e por sua vez, a cultura, passaram a ser pensados como uma construção
coletiva e dialógica em que professor, aluno e comunidade escolar contribuem para
significar, ao contrário de apenas aceitar as informações dadas, prontas, absolutas que são
vertidas sobre esses sujeitos a partir de uma comunidade científica estabelecida e
impenetrável.
Dessa maneira, a importância do estudo do currículo reside na própria importância
do que se quer como formação de sujeitos em um determinado curso. Ao trazer para este
estudo, nos referimos à formação de sujeitos surdos em uma escola especializada pública
federal na qual incontáveis forças atuam influenciando o produto final. Esses elementos
conjunturais acabam por definir, de maneira direta ou não, o currículo que se apresentou ao
longo do tempo e se apresenta hoje na educação básica do INES.
A lista de disciplinas oferecidas pelo colégio aos alunos forma parte do currículo
escolar e constituem também os sentidos construídos sobre o que se entendia e pretendia
para a educação desse público. Entender não apenas as disciplinas incluídas, mas pensar
também nas que foram deixadas de fora ou substituídas de um período para o outro, ajuda
a (re)construir a teia de significações sobre o que se entendia e se entende por ser surdo,
por educação de surdo, por libras e quais os papeis pretendidos para esse público na
sociedade. Assim como já foi ressaltado no primeiro capítulo, ao pensar na trajetória da
educação de surdo no mundo e no Brasil, é importante lembrar que as decisões foram, ao
longo dos anos, tomadas por ouvintes. Portanto, é sempre a visão do ouvinte sobre o
público surdo, uma construção de identidade surda deslocada da experiência surda.
Nosso corpus para esta seção abrange documentos publicados em seis momentos
históricos distintos desde a inauguração do instituto até os dias atuais. A pesquisa
contempla arquivos da época do Império e que estão disponibilizados na Biblioteca
Nacional, além de arquivos do próprio acervo do INES em sua biblioteca própria. Após
pesquisa extensa15, compusemos esse corpus com todos os arquivos que, de alguma forma,
continham informações sobre a grade curricular do CAp-INES em algum momento
histórico.
Com isso, contamos não apenas com a lista de disciplinas oferecidas aos alunos,
mas também com planos pedagógicos, pesquisas de desempenho escolar, programas de
curso com os conteúdos programáticos de cada ano, dentre outros documentos. Focaremos,
como dito, na grade curricular, no entanto, faremos menção a outros trechos dos
documentos de origem dessas informações quando considerarmos importante para compor
nosso trabalho. Segue a tabela com os períodos e a natureza dos documentos encontrados
nos quais nos basearemos:
15
Contamos com o auxílio da professora e historiadora Solange Rocha, responsável pela pesquisa e
conservação do acervo da biblioteca do instituto
113
O primeiro texto que compõe nosso corpus, na verdade, é composto por dois
documentos publicados na época do Império em intervalo de apenas um ano, ambos da
época em que Huet era diretor (1857-1861). O primeiro documento, de 1856, inaugura o
instituto, que cobrava uma pensão trimestral até ser encampado pelo imperador e ganhar
total apoio financeiro e possibilitar a oferta dos serviços gratuitamente. Nesse primeiro
documento constava seu nome de inauguração, Instituto Imperial para Surdos-Mudos de
Ambos os Sexos, que perdurou por um ano apenas, como podemos constatar no segundo
documento, publicado em 1857, no qual consta o nome Collegio Nacional para Surdos-
Mudos de Ambos os Sexos. Optamos por agrupar os documentos visto que as diferenças
textuais são pequenas e, dentro do nosso tema de interesse, a grade curricular, não há
alteração alguma. Nesse momento, o colégio aceitava meninos e meninas com idades entre
7 e 16 anos e oferecia um curso com seis anos de duração, independente da idade de
ingresso. A seguir seguem as imagens dos documentos que serão analisados mais
detalhadamente mais adiante:
114
A fim de ter uma primeira visão mais geral dos componentes curriculares
oferecidos em cada época no instituto, propomos uma tabela que traz esse panorama
amplo. Na seção seguinte nos deteremos nas análises específicas de cada contexto
apresentado.
16
Optamos por manter a grafia original dos documentos.
17
O nome ―ensino fundamental‖ adotado pelo instituto nesse momento não guarda relação com a etapa
escola que atualmente conhecemos por esse nome. Nesse período esse nome foi usado para diferenciar esses
componentes curriculares oferecidos daqueles que compõem o ensino profissional.
117
18
O inglês é oferecido desde o 6º ano do ensino fundamental a todos os alunos. O espanhol é inserido no
ensino médio para os alunos que optarem por essa disciplina em detrimento de seguir no inglês.
19
Oferecida apenas no ensino fundamental
118
20
As disciplinas de química, física e biologia são oferecidas apenas no ensino médio.
119
as palavras não como meras detentoras de significado, senão produtoras de sentido a partir
do momento que são enunciadas. As palavras, vistas dentro de enunciados, portanto dentro
de contextos sócio-históricos, estabelecem realidades, criam verdades para os que com elas
interagem.
Dessa maneira, acreditamos que as formas de designação do sujeito surdo ao
longo dos documentos levantados nos ajudam a entender a construção do que foi/é ser
surdo durante esse período. Essas palavras usadas para se referir aos surdos trazem consigo
interdiscursos que contribuem para a fixação de ideias sobre processos de identificação da
surdez e, com isso, nos possibilita remontar essas intersecções que formam a teia de
sentidos presentes nos enunciados. Vale relembrar que essas são construções de ouvintes
sobre o que é ser surdo e isso ganha relevância conforme pensamos nos ouvintes sempre
estando em posição majoritária e, portanto, em condições privilegiadas de fixar sentidos
dentro de contextos sociais.
Buscamos uma primeira entrada mais cronológica dos documentos para verificar a
evolução da nomeação do surdo ao longo do período de interesse deste trabalho. Nos dois
primeiros documentos que estamos tratando conjuntamente, isto é, os de 1856 e 1857, o
próprio nome do instituto já traz a designação ―surdos-mudos‖ para se referir a esse
público. O nome do instituto segue com essa mesma designação nos documentos de 1934 e
1937, porém, de 1962 em diante já há apenas a denominação ―surdos‖. A mudança ocorreu
em 1957, quando surdo-mudo foi substituída pela palavra ―mudo‖ e acrescida a palavra
―educação‖ no nome do instituto. Esse entendimento do surdo como alguém que também é
mudo dialoga com a noção de indivíduos incapazes, que fogem do padrão de normalidade
esperado e, além disso, a ideia da mudez estava associada não com problemas no aparato
fonador, que é o que poderia caracterizar essa característica em alguém, senão na falta da
articulação vocal para interagir na língua oral. Entendemos como uma atribuição de outra
deficiência ao surdo, deficiência que em termos fisiológicos ele não tem, ou seja, ele é
capaz de produzir sons vocais, não produz apenas porque não escuta. Portanto, vemos um
atravessamento de discursos que valorizam a língua oral em detrimento da língua de sinais
na contribuição para o entendimento do surdo como mudo.
Ainda no documento de 1856, um enunciado que reforça a construção de ideia de
surdo como alguém fora do normal refere-se aos surdos como: ―uma classe inteira de seres
desgraçados muito tempo abandonados‖. Há um diálogo aqui com uma concepção de
120
surdo e surdez como um castigo, uma punição divina. Esse documento ao qual nos
referimos é um primeiro esforço de direcionar uma educação especializada para o público
surdo, mas mesmo assim subjazem sentidos de inferiorização e de pessoas necessitadas de
acolhimento.
O próprio olhar para o surdo como um ente social fez com que, inclusive, voltasse
para ele estudos médicos. Dialogando, portanto, com o desenvolvimento da medicina e
esse olhar para os surdos, é que, no documento de 1934 e no de 1937, encontramos alguns
termos para referir-se aos surdos que encontram eco na visão clínica desse público.
Primeiro, segue a denominação de surdo-mudo não apenas no nome do instituto, mas ao
longo dos documentos que também, em outros momentos refere-se ao surdo como
―anormais auditivos‖ (INES, 1934, p.1) quando explicita os dois motivos principais da
educação desse público. A denominação ―anormal‖ pressupõe uma relação estreita com
discursos que veem o surdo como sujeito da falta que precisa ser corrigido tendo como
parâmetro o ouvinte, isto é, o normal que deve ser alcançado. Todos esses preceitos se
alinham com uma visão clínica clássica de surdo, isto é, indivíduos passíveis de
intervenção e de correção. Essa construção é reforçada quando, ao buscar aprofundar sua
proposta educativa no âmbito da linguagem, é feita uma categorização para ―a criança
normal‖ e ―o surdo-mudo‖ (1934, p. 6). Destacamos também outros dois momentos em
que, ao referirem-se ao surdo, estes são designados como ―anormais‖ (p. 12) e ―enfermo da
audição‖ (p.13), termos que reforçam essa visão médica do público em questão. Por tratar-
se de um documento escolar pudemos encontrar, em vários momentos, referência aos
surdos como estudantes, alunos, educandos. Dessa forma, o surdo já é visto como um
indivíduo passível de ser educado.
Nos documentos de 1962 e 1979, pudemos observar que cada vez mais há
referências aos surdos associando-os à sua condição de alunos do colégio. Portanto, em
quase todas as referências aos surdos encontramos designações como ―aluno‖, ―educando‖,
―candidato‖. Relacionamos esse movimento, por um lado, à própria especificidade dos
documentos, que focam somente nas atividades da escola e não no instituto como um todo.
Entendemos que deixar de designar o surdo como anormal ou enfermo está ligado também
a movimentos de sentido que passam a ver aquele grupo como capaz de aprender, alguém
que tem direito à educação tanto quanto os ouvintes. A recorrência de termos educacionais
para falar desse grupo ajuda a construir uma ideia de surdo, dentro desse contexto, que é
121
passível de aprender e que cada vez mais tem um ensino especializado voltado para esse
grupo.
No entanto, ainda é possível ser alguns enunciados que trazem a memória da ideia
de surdo como deficiente. Esses atravessamentos são vistos no momento em que os surdos
são designados como ―deficientes auditivos‖ (1979, p. 1) ou quando, como prática
pedagógica sugere-se sua ―demutização‖ (1962, p.7). A ideia de que o surdo também é
mudo, ainda que tenha sido suprimida do nome do instituto, está subjacente à maneira de
entender o surdo aluno do instituto.
O projeto político pedagógico vigente do CAp-INES, divulgado em 2011, apaga
totalmente qualquer menção explícita ao surdo como deficiente e passa designá-lo como
―sujeito surdo‖. No entanto, ao expor as formas de acesso e de permanência do estudante
do instituto é exigido o ―diagnóstico de surdez‖. Portanto, ainda observamos algum diálogo
com uma concepção clínica do surdo em que este precisa ser diagnosticado. É importante
ressaltar que o contexto exposto, isto é, exigências para o ingresso do aluno no INES, traz
consigo a necessidade de objetividade, uma determinação definitiva sobre quem tem
direito ou não de ser admitido em uma escola pública especializada em surdos. Quando
essa objetividade é requerida, volta-se para discursos legitimados no contexto social, ou
seja, busca na voz da medicina e em seus diagnósticos objetivos a resposta para determinar
o que é ser surdo. Assim, deixar de dialogar com elementos culturais e passa a ter relação
direta com uma característica física, aferível.
Portanto, vemos ao longo dos documentos uma transição gradual entre a
construção identitária do surdo como um deficiente, incapaz para a de um sujeito, alguém
que tem necessidades educacionais próprias, porém sem deixar de escapar atravessamentos
da visão clínica clássica em seus enunciados.
O próximo elemento a ser destacado em nossas análises na construção do sujeito
surdo a partir dos documentos levantados volta-se para a dimensão profissional. Olhando
para a lista das disciplinas disponíveis, nos anos de 1856, 1934 e 1979 encontramos,
explicitamente, uma parte voltada para o ensino profissional. Em 1856, por exemplo, há as
disciplinas: ―agricultura theorica e pratica (para meninos)‖ e ―trabalhos usuaes de agulha
(para meninas)‖. Já em 1934, há no currículo uma área descrita como ―parte profissional‖
que conta com as disciplinas: ―curso de encadernação e douração (para meninos)‖, ―curso
de marcenaria e entalhação (para meninos)‖, ―curso de sapateiro e seleiro (para meninos)‖
122
e ―curso de costura e bordado (para meninas)‖. Vale notar que para as meninas, em ambos
os casos, as oportunidades de profissionalização eram as mesmas 80 anos depois, atuar no
campo da costura, enquanto os meninos começaram a ter outros campos de atuação. Essas
propostas dialogavam com as oportunidades de atuação profissional da época para homens
e mulheres.
Como já discutimos neste capítulo, os estudos do campo do currículo abordam a
relação entre escola e formação para o trabalho desde o início da consolidação dessa área
do conhecimento. Principalmente na primeira metade do século XX, a discussão voltava-se
para o resultado obtido com os indivíduos que fossem submetidos a um determinado
currículo. Operava-se com a lógica de um processo uniforme de formação escolar em que
os indivíduos alcançassem os mesmos objetivos ao final da trajetória e muitos desses
objetivos estavam voltados para a vida profissional.
Essa discussão dialoga também com a realidade do acesso ao ensino superior no
Brasil, não apenas dos alunos surdos, mas da população em geral. As primeiras faculdades
no país surgiram no início do século XIX e foram, aos poucos, ganhando mais unidades ao
longo desses anos, principalmente após a Proclamação da República, chegando a pouco
mais dez ao final do século (HUMEREZ; JANKEVICIUS, 2015).
Ainda que ao longo do século XX foram surgindo mais faculdades, tanto públicas
como privadas, estas estavam mais restritas à população de alta renda, seja pelo valor das
mensalidades, seja pela necessidade de estudar em colégios de ponta para conseguir
classificação através dos vestibulares. A democratização desse acesso à universidade
começou apenas no século XXI com a inclusão da política de cotas, inicialmente na
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e, em seguida, espalhando-se por quase
todas as universidades públicas do país e, também, programas de financiamento dos custos
universitários como o FIES.
Podemos incluir também na discussão da formação profissional na educação as
escolas técnicas que, em sua maioria federais, ganharam mais unidades também a partir de
2002. Dessa forma, a discussão de formação de mão de obra para o mercado de trabalho e
o papel da escola no Brasil conta com inúmeras variáveis que ajudam a compor o cenário
da nossa educação.
Voltando-nos para a questão desta pesquisa e a forma como se constrói a ideia do
que é ser surdo a partir dos currículos analisados, pensamos em como a inserção de uma
123
21
Deficiente auditivo
124
forma de comunicação que não seja a língua portuguesa. Toda e qualquer menção a língua
nos documentos de 1856 e 1857 se referem à língua portuguesa. Quando se elencam as
disciplinas oferecidas, as relacionadas a língua são: ―escripta e leitura, elementos da língua
nacional – Grammatica‖. Para alguns alunos também serão oferecidos: ―lições de
pronúncia, de articulação e de leitura‖.
Ressaltamos aqui não apenas a ausência de uma língua dos surdos, mas a falta de
reconhecimento de qualquer outro tipo de forma de comunicação entre os surdos que não
a, como o documento chama, língua nacional. Todos os trechos destacados constroem a
ideia de que língua portuguesa é o único meio de comunicação possível e, inclusive,
promove práticas de oralização com os alunos. Há um diálogo claro e direto com as
condições sócio-históricas de produção desses enunciados em que o oralismo era vigente
nas discussões sobre educação de surdos.
Avançamos nossas análises nos documentos de 1934 e 1937 devido a sua
proximidade temporal. Em ambos é possível ver uma preocupação mais genérica com o
que chamam de linguagem do estudante surdo. Vemos, inclusive, nos objetivos principais
da educação de surdos descritos, o reconhecimento de que é necessário que os alunos
tenham ―conhecimento da linguagem‖ (1934, p. 5). Mais adiante, o documento atribui as
falhas cognitivas dos alunos à sua anormalidade, isto é, à surdez. Como solução, é proposta
uma pedagogia emendativa que consiste no ensino da linguagem. Nas palavras do
documento:
A pedagogia emendativa tem por fim suprir falhas decorrentes da
anormalidade, buscando adaptar o educando ao nível social dos
normais. No que concerne ao surdo-mudo esse dideratum é alcançado
por intermédio do ensino de linguagem e do correspondente
desenvolvimento social. (1934, p.6)
que somos sujeitos também do nosso entorno não está contemplada na ideia de língua
apresentada pelo documento.
O documento não se aprofunda sobre o que entende como linguagem ou se está se
referindo a uma língua especificamente. Porém, pelo total apagamento da libras como
língua própria da comunidade surda e a menção reiterada da língua portuguesa como meio
pelo qual essa comunicação deve ser feita, é possível supor que, nesse enunciado, esteja
presente a ideia que a língua portuguesa é o meio de comunicação possível e proposto para
a comunidade surda na escola.
É possível estabelecer um diálogo desse entendimento de língua presente no
documento de 1934 com aquele construído na Lei de Libras, de 2002 (BRASIL, 2002). A
Lei 10.436 estabelece a libras como ―meio legal de comunicação e expressão‖, isto é,
quase as mesmas palavras desse documento que fala da linguagem como ―meio pelo qual o
indivíduo se comunica com o meio‖.
Os estudos sobre o ensino de língua portuguesa, atualmente, avançaram na
discussão da língua como sistema, como um instrumento externo ao sujeito. É possível
dizer que, atualmente, os estudos que predominam nos estudos acadêmicos sobre o ensino
de língua portuguesa é o de língua como discurso, língua como constituinte e constitutiva
do sujeito. Essa noção é diferente da encontrada tanto no documento de 1934 como na Lei
de Libras de 2002 (BRASIL, 2002).
Podemos, então, relacionar a visão do ensino de língua portuguesa expressa no
início do século XX com a visão da libras expressa no início do século XXI. O diálogo
entre esses enunciados, com contextos sócio-históricos tão diferentes, nos leva a pensar
que a Lei de libras (BRASIL, 2002), no que tange à ideia de língua e à sua relação com o
sujeito, nasceu já antiga, isto é, nasceu sem considerar quase um século de discussões
sobre língua e ensino de língua.
Ainda em diálogo com uma perspectiva utilitarista da língua, no documento de
1937, ao elaborar sobre as propostas de cursos de linguagem oral e escrita oferecidos pelo
colégio na época, afirma-se que: ―a linguagem do surdo mudo deve ser a de imediata
utilidade, aplicada aos objetos e ações mais necessárias ao convívio do aluno com o meio
que o cerca‖ (p. 11). Novamente a língua é vista como meio de comunicação. Essa poderia,
inclusive, ser uma boa defesa da libras, pensando que o aluno, no instituto, pudesse fazer
uso dessa língua para se comunicar com outros surdos e professores.
128
O texto de 1979 constrói uma ideia de língua disponível para a comunidade surda
muito semelhante à construída pelos enunciados verificados da década anterior. Quase
vinte anos depois e ainda percebemos um apagamento completo de formas de comunicação
próprias da comunidade surda. Em cima desse silenciamento, há diversos momentos de
reforço da língua portuguesa e exercícios de oralização do aluno. A construção da ideia de
que uma língua de sinais é reprovável, ainda que não seja dito explicitamente, começa
quando, dentro dos objetivos da educação de surdos no documento, coloca-se que um bom
rendimento escolar é obtido quando o educando consegue ―levar uma vida tão próxima das
situações normais da sociedade em que vive‖ (p. 5). Junte-se a isso o objetivo de
―proporcionar oportunidades que possibilitem a ampliação e a generalização do uso da
linguagem e comunicação‖ (p. 14). Aqui ainda não se especifica o que se entende por
linguagem, mas logo em seguido são expostos os objetivos específicos da educação de
surdos que são: ―desenvolver a linguagem oral e escrita como meio de comunicação‖ (p.
14).
Ao pensar na linguagem em suas modalidades oral e escrita como objetivos na
educação de surdos ambos os documentos buscam a ideia da correção do surdo a partir do
aprendizado da língua portuguesa. Subjaz a isso a ideia de que a integração social depende
do uso da língua oral, isto é, a língua de sinais é elemento de exclusão e de discriminação
dentro dos ambientes sociais e é reforçado pela escola especializada em educação de
surdos no país.
Após um período de pouco mais de 30 anos, porém com grandes transformações
no entendimento da educação de surdos e na posição da libras nesse contexto, o Projeto
Político Pedagógico elaborado em 2011 dialoga indiretamente com essas transformações,
mas também de maneira direta com referências explícita a alguns desses marcos como
quando, já na introdução, cita a Lei 10.436 de 2002, a Lei de libras, e o Decreto que a
regulamentou.
A libras também está presente na própria grade curricular dos alunos, que contam
com uma disciplina dedicada exclusivamente à língua de sinais, como mostram os quadros
com os componentes curriculares a seguir:
130
É possível ver aqui uma ideia de integração social dos surdos que, segundo o
documento, estavam abandonados por muito tempo. Não apenas incluí-los na sociedade,
mas se busca regenerar toda a classe, isto é, a educação de surdos é entendida como quase
humanizadora, caminho capaz de incluir esse público nos meios de circulação social, seja
laboral, seja familiar. Desde essa época, podemos ver alguns sentidos de formação cidadã
para os alunos, conceito que está presente em correntes educacionais nos dias de hoje.
Vale notar que o texto fala em um ―methodo especial‖, porém não o detalha nesse
documento. Temos a grade curricular para analisar e vemos que há uma lista de disciplinas
principais como o ensino de ―escripta e leitura‖ e ―elementos da língua nacional –
Grammatica‖. Chamamos essas disciplinas de principais, pois aparecem primeiro e estão
listadas em destaque no documento organizadas em duas colunas.
Em seguida, estão os componentes profissionalizantes e, por último, as disciplinas
que seriam específicas do público surdo, isto é, ―lições de pronuncia, de articulação e de
leitura‖. Entendemos que esse adendo final à grade curricular é que dá o caráter de especial
mencionado no texto. No entanto, esse método está além de colocado como um anexo do
currículo principal e não integrado a ele, serviria apenas para alunos em que ―se reconhecer
aptidão para semelhantes exercícios‖.
Assim como os próprios surdos são vistos como indivíduos à parte da sociedade e
que precisam ser integrados e a língua de sinais não é sequer mencionada, as propostas de
educação de surdos também estabelecem uma divisão entre o que seria o padrão e poderia
servir para qualquer escola e o que seria proposto especialmente aos alunos do instituto em
virtude da sua surdez.
Esse caráter de educação complementar que trataria das questões específicas da
surdez no currículo escolar se mantém na década de 1930 nos documentos analisados. No
documento de 1934, é dado o nome de ―pedagogia emendativa‖ esta que suplementa o
ensino primário com as disciplinas disponíveis em escolas regulares. Objetiva-se com essa
pedagogia emendativa: ―suprir falhas decorrentes da anormalidade, buscando adaptar o
educando ao nível social dos normais‖ (p. 6).
133
Há uma busca aqui por justificar a proposta bilíngue pretendida pelo PPP e,
enquanto a libras foi legitimada através da menção à lei, a língua portuguesa é trazida
136
sustentada pela ideia de que para se informar e interagir na sociedade é preciso saber a
língua oral usada no país. A percepção da libras como uma língua minorizada em
detrimento da majoritária língua oral sustenta o discurso da necessidade de desenvolver
uma proposta pedagógica bilíngue no instituto nesse momento. Com isso, a língua
portuguesa é vista a partir de sua utilidade comunicativa e não a partir de uma lógica de
discurso em que afeta as subjetividades e, por conseguinte, processos de identificação dos
sujeitos que por ela são constituídas.
Dessa forma, temos a libras sendo significada como um sistema linguístico
exterior ao sujeito e útil para comunicação na Lei 10.436 (BRASIL, 2002) de acordo com
nossas análises do capítulo 3 e a língua portuguesa seguindo essa mesma construção do
PPP do INES. O surdo, portanto, segue sem uma língua de identidade, de identificação e
de cultura para que ações que reconheçam e fomentem essas crenças sejam criadas pelos
atores sociais que assim desejarem.
Essa ausência de sentidos que significam uma língua de identidade do surdo
contribuiu para que eles não sejam vistos como sujeitos, não se construam imagens da
comunidade surda como um grupo identitário e, por isso, um grupo com práticas
discursivas que produzem seus próprios enunciados, sua própria cultura, seus próprios
discursos. Baseados nesses enunciados que mencionamos, o surdo é visto como alguém
que usa a língua para se comunicar. Seja a libras, um sistema de regras, seja a língua
portuguesa, a qual possui todo seu reconhecimento, porém totalmente dissociado da
comunidade surda.
Voltando-se mais para a proposta pedagógica e o que se entende por educação de
surdos, afirma-se que:
Torna-se imprescindível destacarmos que as relações estabelecidas entre
essas línguas, por si só não garantem um trabalho pedagógico eficaz. Este
cenário aponta para uma pedagogia própria na educação de surdos, na
qual o uso de representações visuais como estratégias de ensino é
fundamental para a apropriação de significados pelo sujeito surdo - a
Pedagogia Visual2, que tem na língua de sinais seu principal elemento
fundador. Considerando então, as especificidades dos nossos estudantes,
buscamos uma pedagogia que nos permite utilizar as linguagens visuais,
que sem dúvida, possuem características que, viabilizam o acesso ao
conhecimento pelos sujeitos surdos. A utilização da Pedagogia Visual ou
da visualidade no ensino tem por objetivo principal qualificar todo o
processo ensino-aprendizagem, dando mais flexibilidade às ações dos
docentes, garantido desta forma, uma prática mais contextualizada,
sedutora e significativa para o sujeito surdo. (p. 15)
137
CONSIDERAÇÕES FINAIS
com um espectro que em um extremo está o surdo definido pela sua deficiência, aquele
que não pode ouvir e nada mais pode ser dito dele. No outro extremo está o surdo que é
visto por suas múltiplas identidades e que a surdez é um dos elementos que o constitui.
Essa não é uma trajetória linear, gradual e progressiva. Não é porque avançamos
em uma discussão que outras estão superadas, extintas, apagadas dos discursos que
envolvem o surdo e a sua educação. Vimos, dentro das análises realizadas que há
atravessamentos e diálogos, em todos os momentos históricos, com noções sobre surdez
e educação de surdos de diferentes etapas observadas.
Concluímos, então, que muitas das ideias que circulam sobre a surdez nos
enunciados que compuseram nosso corpus dialogavam com duas principais visões: a
clínica clássica e a do surdo como minoria linguística. Por isso, propusemos a discussão
sobre as bases que formam ambas as linhas de pensamento e como elas afetam as
fixações de sentidos que buscamos no trabalho.
A visão clínica clássica apoia-se no discurso médico para definir o surdo, com
isso, as características fisiológicas do indivíduo, que o impossibilitam de ouvir são
priorizadas nesse entendimento. Termos como diagnóstico, deficiente e correção são
comuns em textos que dialogam com essa visão. A surdez é vista a partir da sua falta,
isto é, tendo o ouvinte como ideal normal e o surdo como alguém que precisa de uma
intervenção (na maioria das vezes, médica) para atingir esse normal. Há, inclusive,
categorias de surdos criadas a partir da quantidade de decibéis que os indivíduos
conseguem captar a partir de exames de audiometria.
Por outro lado, apresentamos as discussões a partir da visão dos surdos como
minoria linguística. Tomamos, na verdade, as discussões da glotopolítica e adotamos o
termo língua minorizada para tratar de língua que são, por assim dizer, menores não em
questões numéricas, de quantidade de falantes, mas são subjugadas a outra(s) na relação de
poder e de prestígio estabelecido em um determinado contexto. Portanto, os usuários de
libras, em comparação aos usuários de língua portuguesa, pertencem a uma minoria
linguística e a relação entre língua majoritária e minorizada seria uma relação de
negociação de sentidos constante entre mundos culturais diferentes.
Operamos com a ideia de que a libras é uma língua minorizada visto seu próprio
histórico recente de luta por reconhecimento legal e social. Os movimentos surdos que
cresceram no país principalmente nos anos noventa buscaram o reconhecimento da libras
140
como língua, opondo-se à ideia de um conjunto de gestos ou mímicas que se pode ver até
hoje em certos contextos. E entendemos que somente depois de reconhecer a libras como
língua que se pode avançar na discussão de políticas públicas voltadas a esse público que
considerem a identidade, cultura e, inclusive a condição minorizada desse idioma em
relação a outras línguas orais-auditivas.
Essas propostas teóricas nos possibilitaram avançar na discussão sobre os
desdobramentos possíveis ao significar a surdez a partir de cada um desses caminhos. A
partir de cada entendimento de mundo, entendimento dos objetos observados, no caso, os
surdos, a libras e a educação de surdos, diferentes tratamentos são dados a eles. Por isso,
avançamos nas análises de documentos jurídicos e pedagógicos, de fora e dentro do
INES, que tratam dos caminhos de agir, pensar e significar as questões que envolvem a
surdez.
Ao analisar os documentos jurídicos selecionados, sendo eles a Lei 10.436 de
2002 e o Decreto 5.626 de 2005, concluímos que há uma caracterização da libras como
língua dissociada de identidade e cultura. A libras é significada como um sistema de
regras externo ao sujeito sobre o qual ele controla e lança mão a qualquer momento que
precisa se comunicar.
Na lei, ao contrário das situações que vimos sobre a língua de sinais em alguns
países a libras não se tornou uma língua oficial ou cooficial, senão foi ―reconhecida como
meio legal de comunicação e expressão‖ (BRASIL, 2002). Entendemos que essa dicotomia
entre meio legal e língua oficial emergem sentidos de desprestígio da libras frente à língua
portuguesa que, na constituição, é descrita como idioma oficial da República Federativa do
Brasil.
Vemos diálogos com o próprio processo histórico de luta das línguas de sinais que,
durante muito tempo eram vistas como um conjunto de gestos limitados. Esse passado não
tão recente da libras contribui para que esta não seja vista como um elemento intrínseco ao
sujeito e sim apenas um meio de comunicação, sem contemplar elementos subjetivos,
culturais, identitários, sociais.
Nessa linha, vimos que o texto da lei busca legitimar a língua de sinais a partir
do reforço da sua ―estrutura‖. Assim, há um diálogo com uma visão estruturalista de
língua que, no início do século XX, com Saussure, buscava, dentre outros aspectos, alçar
a linguística como um campo científico reconhecido.
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