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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

INSTITUTO DE LETRAS

DOUTORADO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM

COM QUANTAS VOZES SE CONSTRÓI A SURDEZ:


o INES e os sentidos da educação de surdos

André Lima Cordeiro

NITERÓI
2020
André Lima Cordeiro

COM QUANTAS VOZES SE CONSTRÓI A SURDEZ:


o INES e os sentidos da educação de surdos

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Estudos de Linguagem da
Universidade Federal Fluminense como quesito
para a obtenção do Título de Doutor em
Estudos de Linguagem (Linha 2 – Teorias do
texto, do discurso e da tradução).

Orientadora: Profa. Dra. Luciana Maria


Almeida de Freitas

NITERÓI
2020
André Lima Cordeiro

COM QUANTAS VOZES SE CONSTRÓI A SURDEZ:


o INES e os sentidos da educação de surdos

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Estudos de Linguagem da
Universidade Federal Fluminense como quesito
para a obtenção do Título de Doutor em
Estudos de Linguagem (Linha 2 – Teorias do
texto, do discurso e da tradução).

Orientadora: Profa. Dra. Luciana Maria


Almeida de Freitas

Aprovado em:_____________________________________________________________

Banca examinadora:

_____________________________________________________________
Profa. Dra. Luciana Maria Almeida de Freitas – Orientadora
Universidade Federal Fluminense – UFF

_____________________________________________________________
Profa. Dra. Sandra Lucia Escovedo Selles
Universidade Federal Fluminense – UFF

_____________________________________________________________
Profa. Dra. Angela Correa Ferreira Baalbaki
Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ

_____________________________________________________________
Profa. Dra. Giselle da Motta Gil
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro – IFRJ

_____________________________________________________________
Profa. Dra. Mylene Cristina Santiago
Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF

_____________________________________________________________
Profa. Dra. Dayala Paiva de Medeiros Vargens - Suplente
Universidade Federal Fluminense – UFF

_____________________________________________________________
Profa. Dra. Bruna Maria Silva Silvério - Suplente
Instituto Federal Catarinense – IF-Catarinense
Para a mais bela flor de qualquer jardim,
Áurea.
AGRADECIMENTOS

À minha orientadora pela condução carinhosa, respeitosa e sempre muito lúcida dessa
nossa relação durante a pesquisa e fora dela.
Às integrantes da banca de qualificação e defesa pela disponibilidade e contribuições dadas
ao trabalho.
À minha família pelo apoio de sempre.
Ao Renato pela segurança de um amor imenso.
Aos queridos alunos e colegas surdos que lutam tanto para superar todas as dificuldades
que a vida lhes impõe.
Às minhas colegas do INES Isabel e Rossana pelas trocas intensas e divertidas nessa
jornada que é atuar como professores no instituto e, especialmente à Danielle com quem
além dessas trocas também dividi as angustias de ser doutorando.
À Lindka e Suelyn pelas constantes lembranças do que realmente importa nisso tudo.
À Maria Gabriela, companheira de UFF assistindo aulas e trocando ideias.
RESUMO

CORDEIRO, André Lima. Com quantas vozes se constrói a surdez: o INES e os


sentidos da educação de surdos. 2020. 150 f. Tese (Doutorado em Estudos da Linguagem)
– Instituto de Letras, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2020.

Este trabalho analisa os sentidos de educação de surdos e de libras em documentos


jurídicos e pedagógicos à luz da trajetória curricular do Instituto Nacional de Educação de
Surdos (INES). Para tais análises operamos em uma perspectiva dialógica da linguagem
(BAKHTIN, 2003; VOLÓCHINOV, 2017), que busca compreender as condições de
produção de enunciados e a rede de sentidos mobilizada. Trazemos também conceitos que
se aproximam de uma lógica discursiva de língua como rizoma (DELEUZE; GUATTARI,
2011) e formação discursiva (FOUCAULT, 1969). Iniciamos com a trajetória da educação
de surdos e suas interseções com a posição da libras no contexto da comunidade surda,
mais especificamente, no histórico do INES. Aprofundamo-nos nas possíveis significações
da surdez e dos sujeitos surdos sob duas óticas principais: a chamada visão clínica clássica
e de minoria linguística. Discutimos as implicações sociais nas condições de existir de uma
comunidade a partir dessas grades de sentidos distintas. Articulamos essas discussões com
a análise de documentos jurídicos e pedagógicos de âmbito nacional. São eles a Lei 10.436
de 2002, conhecida como a Lei de Libras, e seu subsequente decreto, de número 5.626 de
2005. Analisamos também os editais do ENEM que previram as provas em libras a partir
de 2017 e os editais que convocaram e organizaram os exames do ProLibras. Voltamo-nos,
então, para um histórico curricular do INES no qual retomamos todas as discussões
apresentadas e, ao longo de cinco recortes temporais verificamos os deslizamentos de
sentidos de surdez, libras e educação de surdos no decorrer do tempo. Nessas análises
detectamos que há um movimento duplo e, em muitos aspectos antagônicos, na
caracterização da libras, ora como língua dissociada de cultura e identidade, ora como
língua conectada com uma comunidade que produz seus sentidos e é, também, produzida
por ela. Podemos concluir também que ao longo dos documentos há uma transição gradual
entre a construção identitária do surdo como um deficiente e incapaz para a de um sujeito,
alguém que tem necessidades educacionais próprias, porém sem deixar de escapar
atravessamentos da visão clínica clássica em seus enunciados.

Palavras-chave: Educação de surdos. INES. Dialogismo.


ABSTRACT

CORDEIRO, André Lima. Com quantas vozes se constrói a surdez: o INES e os


sentidos da educação de surdos. 2020. 150 f. Tese (Doutorado em Estudos da Linguagem)
– Instituto de Letras, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2020.

This study analyses the meanings of deaf education and Brazilian sign language in legal
and pedagogical documents through the curricular trajectory of the National Institute of
Deaf Education (INES). To such analysis we operate in a dialogical perspective of
language (BAKHTIN, 2003; VOLÓCHINOV, 2017), that tries to understand the
conditions of production of enunciations and the net of meanings mobilized. We brought
also concepts that are close to a discursive logic of language such as rhizome (DELEUZE;
GUATTARI, 2011) and discursive formation (FOUCAULT, 1969). We begin with the
trajectory of deaf education and its intersections with the position of Brazilian sign
language (libras) on the deaf community context, more specifically, the history of INES.
We go deeper on the possible meanings of deafness and the deaf subjects under tow main
optics: the so called classical clinic view and the linguistic minority. We discuss the social
implications in the ways of existing of a community through these different grids of
meanings. We articulate these discussions with the analysis of legal and pedagogical
documents of national coverage. They are the Law 10.436 of 2020, known as the Law of
Libras, and its subsequent decree, number 5.626 of 2005. We analyzed also the notices of
ENEM that predicted the exams in libras from 2017 on and the notices that summoned and
organized the exams of ProLibras. We turn, then, to a curricular history of INES where we
bring back all the discussions presented and, through five time frames we verify the shifts
on the meaning of deafness, libras and deaf education throughout time. In these analysis
we detected that there is a dual movement that, and in many ways antagonists, in the
characterization of libras, sometimes as a language dissociated of culture and identity, and
others as a language connected with a community that produces its own meanings and, is
also, produced by it. We have concluded also that throughout the documents there is a
gradual transition between the identitary construction of the deaf as a handicapped and
unable to a subject that has their own education needs, without letting go the intersections
of the classical clinic view in its enunciates.

Keywords: Deaf education. INES. Dialogism.


LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 - Obras de ensino para surdos na Europa no século XVII................................ 34


Figura 2 - Fachada do Instituto Nacional de Educação de Surdos na atualidade.......... 40
Figura 3 - Documento de instituição do INES com Huet como diretor.......................... 41
Tabela 1 - Caracterização médica da surdez................................................................... 65
Figura 4 - Alfabetos Manuais da libras e da LGP........................................................... 71
Tabela 2 - Situação de reconhecimento explícito das línguas de sinais pelo mundo...... 73
Tabela 3 - Universidades públicas federais que oferecem curso de libras...................... 93
Tabela 4 - Documentos base para análise das grades curriculares.................................. 112
Figura 4 - Documentos de inauguração do INES............................................................ 114
Figura 5 - Documentos de inauguração do INES............................................................ 114
Tabela 5 - Componentes curriculares oferecidos no Cap-INES nos períodos
selecionados.............................................................................................. 116
Figura 6 - Anos Iniciais do Ensino Fundamental............................................................ 130
Figura 7 - Anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio.................................... 130
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.............................................................................................................. 12

1 HISTÓRICO DA EDUCAÇÃO DE SURDOS: REDEFININDO FOCO ............... 17


1.1 Identidade e cultura surdas: construindo conceitos.............................................. 20
1.1.1 Língua e a construção da cultura surda ..................................................... 24
1.1.2 Identidade e a construção do sujeito surdo................................................. 27

1.2 Identidade e cultura surdas: práticas de uma trajetória......................................... 31


1.2.1 Sujeitos de língua: lutando por existir........................................................ 31
1.2.2 Escola como refúgio: língua e educação em seus primeiros contatos........ 33
1.2.3 Escola de surdos no Brasil: entre ida e vindas........................................... 40

1.3 Em uma escola bilíngue: descobrindo caminhos.................................................. 45

2 VISÃO CLÍNICA CLÁSSICA VERSUS MINORIA LINGUÍSTICA..................... 49


2.1 Designações, palavras de ordem e identidade...................................................... 49

2.2 Minoria Linguística.............................................................................................. 54

2.3. Visão Clínica Clássica......................................................................................... 62

3 ANÁLISE DE DOCUMENTOS LEGAIS SOBRE A EDUCAÇÃO DE


SURDOS................................................................................................................... 70
3.1 Línguas de sinais pelo mundo: práticas sociais ou questões legais?..................... 70

3.2 Caracterização dos documentos jurídicos............................................................. 76


3.2.1 Lei de Libras e seu decreto........................................................................ 81
3.2.2 Pró-Libras e ENEM................................................................................... 94

4 ANÁLISE DE DOCUMENTOS PEDAGÓGICOS: O CAP-INES......................... 105


4.1 As partes de um todo: com quantos documentos se constrói o currículo............. 106

4.2 A trajetória curricular do CAp-INES.................................................................... 111


4.3 As vozes dos currículos para a comunidade surda................................................ 118
4.3.1 O currículo e o surdo.................................................................................. 118
4.3.2 O currículo e a libras.................................................................................. 125
4.3.3 O currículo e a educação de surdos............................................................ 131

CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................ 138

REFERÊNCIAS............................................................................................................ 144
12

INTRODUÇÃO

Em 2014, ao entrar como professor no Instituto Nacional de Educação de


Surdos (INES), pela primeira vez me tornei ouvinte. Na minha breve trajetória
profissional como docente já havia me descoberto um professor em muitos papeis, como
é inerente à profissão. Eu já tinha estado professor, professor de espanhol, professor
mestrando, professor em greve, professor pesquisador, professor educador, professor
disciplinador dentre tantas outras maneiras de estar no mundo como docente. Porém,
somente me tornei um professor ouvinte quando me deparei com o outro: aluno surdo.
Junto com a descoberta de mim mesmo como um professor ouvinte e do outro,
surdo, emergiram diversos sentidos que circulam dentro desse campo como, por
exemplo, a língua brasileira de sinais (libras), oralização, implante coclear, datilologia,
alfabeto manual, língua espaço-visual, sign-writting. Poderia enumerar centenas de
termos com os quais nunca me havia deparado seja na licenciatura, seja na minha vida
profissional ou fora dela.
Tomado por essa nova dinâmica de interação que se impõe em meu local de
trabalho e sentindo-me convocado a encontrar possíveis formas de diálogo dentro de
uma escola especializada no público surdo como professor de língua espanhola,
desenvolvo esta pesquisa sobre educação de surdos.
Acredito que nossa constituição como sujeito se dá a partir das nossas
interações na língua com o outro. Esse outro pode ser alguém, empiricamente, como
pode ser também ideias, enunciados, discursos com os quais dialogamos e nos
transformamos, além de transformar. Ao constituir-nos apenas na interação e pela língua,
tornar-me ouvinte significou um deslocamento significativo das minhas práticas não
apenas como professor, mas como indivíduo no mundo e que se conhece (ou reconhece)
a partir de uma língua nova e também de uma ótica nova, portanto, com novas funções,
novas percepções, novas potencialidades de pensamento e de visões de mundo.
13

O INES, ao longo de sua história de mais de 160 anos, vivenciou épocas


distintas no que tange às perspectivas de educação de surdos. Os entendimentos dos
papeis da língua portuguesa e da libras no decorrer desse tempo foram deslocando-se de
acordo com a própria mudança na legislação brasileira. Em 2002, houve um marco no
campo da surdez, com o reconhecimento da libras como um ―meio legal de comunicação
e expressão‖ (BRASIL, 2002), pela Lei 10.436 que, em 2005, foi regulamentada pelo
Decreto 5.626 (BRASIL, 2005). Esses dispositivos jurídicos fazem parte de um
movimento, que veio sendo construído desde o final dos anos 1980, buscando garantir
para a comunidade surda o reconhecimento de direitos enquanto comunidade linguística
e cultural.
Decorrente dessa luta histórica liderada pelo movimento social surdo que teve
lei e decreto como marcos, outros desdobramentos surgiram, principalmente na área da
educação. O decreto instituiu o Exame de Proficiência em Libras (Prolibras) para
pessoas que queriam atuar no ensino e na interpretação e/ou tradução de libras. O Exame
Nacional do Ensino Médio (ENEM) também se voltou para a questão da surdez com
mais profundidade ao, em 2017, disponibilizar sua prova em libras para os surdos.
Todos esses movimentos revelam um crescimento das conquistas surdas e da
necessidade de uma discussão sobre o lugar da libras e da surdez, seja na educação, na
legislação e em outros meios de circulação social. As pesquisas na área da surdez vêm
crescendo após a Lei 10.436 e a abertura de cursos de licenciatura em Letras-Libras pelo
país, no entanto, acreditamos que haja poucas pesquisas, especialmente as discursivas,
enfocando a educação de surdos. Dessa forma, entendemos a relevância de nossas buscas
a fim de contribuir para as discussões que giram em torno de sentidos centrais da área da
surdez.
Objetivamos analisar, portanto, os sentidos de educação de surdos e de libras
em documentos jurídicos e pedagógicos à luz da trajetória curricular do Instituto
Nacional de Educação de Surdos.
No ano de 2020, o decreto que regulamentou a lei e provisionou ações concretas
em relação à comunidade surda completa quinze anos de existência. Perguntamo-nos a
partir da pesquisa, portanto, como os entendimentos sobre esse público e sua língua de
identidade se dão nos documentos legislativos e nas relações com os documentos
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pedagógicos. Interessa-nos saber se há diálogo nesse percurso legal e consonância com


as práticas educacionais voltadas para os surdos.
Para tais análises operamos em uma perspectiva dialógica da linguagem , que
busca compreender as condições de produção de enunciados e as redes de sentidos
mobilizadas. Trazemos também conceitos que se aproximam de uma lógica discursiva de
língua como rizoma (DELEUZE; GUATTARI, 2011) e como formação discursiva
(FOUCAULT, 1969). Trazemos, no diálogo com o campo curricular as contribuições
que entendem o currículo como discurso (LOPES; MACEDO, 2011; SILVA, 1999), um
construto que se dá na língua e pela língua em uso, mobilizando memórias e discursos
que se interpenetram a cada interação.
No primeiro capítulo da tese, construiremos um histórico da situação
educacional dos surdos ao longo do tempo a fim de relacioná-lo à situação linguística
instituída em cada período da história. As práticas educacionais direcionadas ao público
surdo guardam uma relação muito estreita com a situação da língua de sinais vigente, já
que o próprio reconhecimento de uma língua própria dessa comunidade determina os
entendimentos do quanto, como ou até mesmo se é possível ensinar para esse público.
Para compreender os caminhos pelos quais passou a educação desse público no
Ocidente, retomamos a história das primeiras escolas direcionadas especificamente para
surdos até chegar ao INES.
Nessa trajetória pudemos verificar dois caminhos mais evidentes de significar o
surdo e, por conseguinte, a surdez. Dessa forma, no segundo capítulo nos aprofundamos
nas visões clínica clássica e de minoria linguística nas construções de sentidos sobre o
que é ser surdo. Buscamos explicitar e contrastar as implicações e memórias mobilizadas
em cada uma dessas duas construções. A surdez vista a partir de uma perspectiva
médica, que entende o surdo como sujeito da falta, que precisa ser diagnosticado e,
eventualmente, corrigido. E, também, a surdez vista a partir da condição de língua
minorizada ao qual subjazem sentidos de construção identitária e cultural de um
determinado grupo.
Após discutir esses campos de significação, partimos para a textualidade do
corpus que reunimos a fim de identificar as construções de sentidos feitas para libras,
surdo e educação de surdos. Começamos com documentos jurídicos, isto é, a Lei 10.436
de 2002, conhecida como a Lei de Libras e o Decreto 5.626 de 2005, que regulamentou a
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lei. Buscamos fazer um levantamento da situação legislativa das línguas de sinais nos
países e trazer perspectiva para a situação da libras. Em seguida, ainda no terceiro
capítulo, investigamos documentos que se voltam mais para a área pedagógica, porém
são externos ao INES, como os editais do ENEM de 2017 (ano que introduziu a prova
em libras) em diante e o último edital do Prolibras elaborado pelo instituto em parceria
com a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Essas mudanças mencionadas afetaram diretamente a forma como o INES se
organiza e as suas propostas pedagógicas direcionadas ao público surdo. Portanto, no
quarto e último capítulo da tese aprofundamo-nos em um histórico curricular do CAP-
INES a partir de documentos de cinco momentos históricos distintos. Partimos desde sua
criação no meio do século XIX e chegamos até a composição curricular atual. Buscamos
esses documentos do INES pois, além de ser meu local de trabalho, ele é uma escola
especializada na educação de surdos e possui importância reconhecida em âmbito nacional
desse contexto. Ao se colocar como uma instituição bilíngue, atualmente, consideramos
que o documento dialoga com as práticas educacionais vigentes na instituição com a
educação bilíngue e que não deixará de guardar memórias relativas às práticas
historicamente instituídas na educação de surdos.
Relacionamos, portanto, por meio das análises presentes nesse capítulo os
sentidos que emergem na relação com o que é ser surdo, o que é libras e o que se entende
por educação de surdos em cada um desses contextos históricos. O INES, como uma
instituição referenciada na área, produz e que acaba por contribuir para a fixação desses
sentidos de determinada maneira. Juntamente com as análises do capítulo três, objetivamos
verificar as relações entre a libras e a língua portuguesa no campo educacional e legislativo
do país. Interessa-nos investigar as relações de força estabelecidas na dinâmica das
disputas de sentidos constante entre os sentidos que circulam sobre essas duas línguas.
Essas discussões se conectam com as polarizações encontradas nas significações de surdos
a partir da visão clínica clássica e minoria linguística discutidas no segundo capítulo.
Termino essa introdução chamando a atenção para o meu lugar no contexto da
surda, para a posição que ocupo dentro do cenário da educação de surdos sobre a qual
investigo neste trabalho. Atuo sim como professor de surdos e busco mobilizar todos os
meus conhecimentos e sensibilidades para desempenhar um papel que agregue, porém não
sou surdo. Portanto, ao falar da educação de surdos nunca serei alguém falando do lugar da
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experiência de ser, apenas alguém que busca expandir suas perspectivas e deslocar-se para
chegar o mais próximo possível.
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1 HISTÓRICO DA EDUCAÇÃO DE SURDOS: REDEFININDO FOCO

A ideia de que educação e a língua em que se dá a interação estão intimamente


ligadas pode passar despercebida quando pensamos na realidade dos ouvintes e falantes de
língua portuguesa dentro do seu repertório linguístico, já que essa é uma questão
aparentemente consolidada: o ensino se dá em língua portuguesa e encerra-se a discussão.
Excetuam-se aqui as disciplinas de língua estrangeira na escola que merecem outro nível
de problematização, ao qual não nos deteremos por não ser o interesse no momento, ou
instituições escolares internacionais ou com efetivo ensino bilíngue que, de qualquer
maneira, inclui o português. Não trataremos também dos casos excepcionais como as
regiões de fronteiras em que há também disputas por soberanias linguísticas e, por
conseguinte, uma relação menos óbvia entre escola e língua de interação. Em comunidades
do sul do Brasil, por exemplo, em que há uma identificação linguística tanto com o
português como com o espanhol (às vezes até mesmo com o portunhol), a língua de
interação na escola é alvo de disputas. O mesmo pode-se dizer nos casos de comunidades
provenientes de imigração europeia, por exemplo, em que a língua é fator de perpetuação
da identidade cultural dos antepassados e dos que vivem nessas comunidades.
No entanto, ao pensar na educação de surdos veremos que seu histórico se
constrói junto com propostas linguísticas para esses sujeitos que implicam não apenas o
ensino de línguas para surdos, mas o ensino em geral, de qualquer componente curricular,
será atravessado pela proposta de interação linguística de cada momento histórico.
Portanto, pretendemos nesta seção construir uma linha temporal da educação de surdos e
sua relação com as propostas linguísticas predominantes para esse determinado grupo.
Sobre a questão da linha do tempo é importante destacar que acreditamos na
história como uma construção discursiva, ou seja, a própria eleição de fatos que são
dispostos sucessivamente já conta com escolhas que, ao evidenciar alguns dados e omitir
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outros, constrói um passado que o é sob um contexto específico e uma grade de sentidos
própria, conforme se faz predominantemente no campo da historiografia há cerca de 90
anos, desde a ruptura promovida pela École des Annales com a tradição positivista
(BURKE, 1997). Operamos dentro de uma lógica rizomática (DELEUZE; GUATTARI,
2011) em que os textos estabelecem relações múltiplas, pivotantes e existem apenas nas
interações que se constroem a partir de agenciamentos (DELEUZE; GUATTARI, 2011).
Esses agenciamentos existem apenas em conexão com outros agenciamentos e seus
significados se dão a partir das conexões que se estabelecem nas situações de interação.
Dessa forma, não é nossa pretensão estabelecer as razões das rupturas e encadeamentos
lógicos que expliquem a existência ou não de determinados métodos da educação de
surdos. Aliados às ideias de Deleuze e Guattari (2011), baseamo-nos em uma perspectiva
discursiva que postula que somos atravessados por discursos que circulam dentro dos
contextos sócio-históricos nos quais estamos inseridos. Não é possível, portanto, dizer que
uma ideia deixe de existir a partir do momento em que outra surja e que deixamos de nos
influenciar por ela. Nossa constituição como sujeito seja na posição de professor, de
ouvinte, de surdo ou todas elas combinadas, está preenchida por esse fluxo discursivo que
nos afeta, nos modifica e provoca resultados além da nossa vontade, razão ou controle.
Trazendo a discussão para a temática desta tese, a crença predominante nos dias
de hoje de que o oralismo1 não é mais o modo mais adequado para ensinar os surdos não se
traduz necessariamente na supressão de interpenetrações de discursos relacionados a essa
perspectiva em enunciados recentes. Todas as tendências seguem presentes, porém, por
circunstâncias que se inserem em questões sócio-histórico-educativas, há momentos em
que uma ou outra tendência se fixa como hegemônica em detrimento de outras. Operamos
dentro de uma lógica de disputas de sentidos constante que se dá na interação social e
nossas análises se voltam para compreender a dinâmica que se estabelece nos processos de
fixação de determinados sentidos em momentos específicos.
É importante ressaltar também que os registros que temos atualmente para nos
basear foram produzidos por ouvintes, ou seja, os protagonistas da história que buscamos
nos aproximar estão silenciados. Trazemos a noção de lugar de fala discutida por Ribeiro
(2017). A autora em seu livro Lugar de Fala volta-se para a discussão sobre o lugar de fala
das mulheres negras no debate do feminismo que foram isoladas e relegadas a um lugar de
1
Oralismo é a prática de, na educação de surdos, fazer com que os alunos usem a língua oral por meios de
exercícios repetidos. Esse tema e definição será mais explorado no decorrer da tese.
19

inexpressão enquanto o espaço de mulheres brancas, cis e de classe média ganharam,


historicamente mais espaço e amplitude. A autora reivindica que as pautas não sejam
uniformizadas e as experiências múltiplas não sejam silenciadas.
Acreditamos que esse silenciamento se dá não por omissão, mas por um histórico
de repressão das formas de expressão do sujeito surdo que contribuiu para carência de
espaços com condições e autorização para que tivessem a palavra. A visão do outro, a
história construída a partir de um olhar externo tem consequências e implicações no nosso
entendimento do presente que é, invariavelmente, afetado pelas construções do que se
entende pelo passado e o que se projeta para o futuro. Ambos são idealizados e construídos
a partir da grade de sentidos do outro, aquele que não se identifica como surdo. Apenas
mais recentemente que há estudos desenvolvidos por surdos que buscam relatar suas
memórias, como Campello e Rezende (2014) e Santos e Molon (2014).
Há paralelos mais comumente discutidos sobre essa questão como, por exemplo, a
história do Brasil sendo contada sob a ótica dos portugueses. Na verdade, em qualquer
história seja de colonização ou não, apresenta-se o dilema do ponto de vista em que a
narrativa acontece. Ainda que haja um esforço para se deslocar à posição do outro, esta
será apenas uma projeção a partir de uma grade de sentidos própria e, portanto,
intransferível, inapreensível. Eu, por exemplo, vejo a partir da minha grade de sentidos
contaminada pelo fato de ser ouvinte que constrói textos sobre a comunidade surda. Com
essa armadilha criada da versão única de uma história plural em que os protagonistas não
têm voz, sentidos se perdem, relatos se empobrecem e realidades opressoras são
construídas.
O paralelo que se pode construir entre a história brasileira e dos surdos aprofunda-
se ainda mais quando vemos que, de certa forma, os ouvintes com sua língua oral
estabelecida e majoritária serviram como espécie de colonizadores sobre o surdo cujas
decisões sobre sua vida, suas possibilidades educacionais eram tomadas por outros, pelos
ouvintes. Os povos originários que já viviam em terras brasileiras antes da chegada dos
portugueses também sofreram esse processo de dominância que passou, em grande parte
pelo linguístico.
Tentaremos, então, nesta seção resgatar um pouco essas condições de produção
das tendências educacionais dos surdos ao longo da história tendo como foco de
20

observação a proposta linguística que a acompanhava. Baseamo-nos primordialmente nos


estudos de Skliar (1997), Lima (2004) e Rocha (2009).
Este capítulo está composto por quatro seções sendo que, na primeira delas,
buscamos estabelecer a relação entre língua, cultura e processos de identificação dos
sujeitos. Esses entendimentos serão importantes para, em seguida, discutir as relações entre
o sujeito surdo e suas formas de existir no mundo por meio da língua. Baseados nessas
reflexões, buscamos, na segunda seção, entender a visão que se tinha sobre os indivíduos
surdos antes de se reconhecer neles a capacidade de desenvolver qualquer tipo de língua,
seja de sinais ou oral. Em seguida, superada essa etapa, na terceira seção, retomamos a
época em que começaram a surgir escolas específicas para o público surdo e qual relação
entre língua e ensino era proposta nessas escolas. Em seguida, voltamo-nos para o contexto
brasileiro na quarta seção e nos detemos na criação do Instituto Nacional de Educação de
Surdos (INES) e em sua trajetória no que tange à relação entre língua e ensino e em sua
configuração atual.

1.1. Identidade e cultura surdas: construindo conceitos

O indivíduo que nasce surdo está submetido a uma relação com as línguas
completamente diferente daquela vivenciada pelos ouvintes. Se considerarmos que, no
Brasil, 95% das crianças surdas são filhas de pais ouvintes que, geralmente, desconhecem
ou rejeitam a libras (SKLIAR, 1997), constatamos que a exposição desses indivíduos à
língua (seja oral ou de sinais) é limitada ou, em alguns casos, inexistente. Por
desconhecimento dos pais da existência de uma língua própria da comunidade surda ou por
falta de condições de se dedicar ao seu aprendizado, os pais ouvintes de filhos surdos, em
geral, podem não interagir por meio de uma língua com seus filhos, limitando-se a mímicas
que restringem muito as possibilidades de expressão e de desenvolvimento do pensamento.
Ainda que a capacidade de construir linguagem seja inerente a qualquer ser humano, a falta
de exposição a uma língua afeta sua constituição como sujeito, seus processos de
construção de identidade e relação com a cultura do contexto em que se inserem.
Discutiremos, então, as interpenetrações constitutivas de língua, identidade e cultura à luz
das questões relacionadas à surdez.
21

A partir dessa tríade com a qual pretendemos trabalhar, entendemos que língua,
cultura e identidade têm uma relação estreita e que é difícil estabelecer em que momento
uma acaba e a outra inicia. Pela língua os sentidos de cultura, de identidade e os
mecanismos que os instituem nos sujeitos são construídos e também acabam por construir
a língua em um processo circular e retroalimentar. Nesse momento, vamos relacionar os
três conceitos à luz dos preceitos teóricos com os quais operamos neste trabalho para, em
seguida, aprofundarmos mais na questão da surdez ao tratar da cultura surda e identidade
surda.
Dada a temática do nosso trabalho, nosso conceito de língua não será relevante
apenas como apoio teórico nas discussões levantadas ao longo da tese, mas também como
definidora da forma como significamos o surdo, a libras, o bilinguismo, todos estes temas
de nossa investigação. Por isso, iniciamos o primeiro capítulo já com a discussão do que é
língua no contexto do nosso trabalho.
Operamos com uma perspectiva discursiva de linguagem ancorada nos estudos da
Análise do Discurso (AD) francesa de base enunciativa (MAINGUENEAU, 1989, 2008,
2011). Dessa forma, defendemos a língua como um construto sócio-histórico que existe,
exclusivamente, em situações reais de interação. Portanto, de acordo com nossa
perspectiva, a língua não é um sistema abstrato de regras fechado em si ou um instrumento
externo ao sujeito sob o qual ele tem controle e lança mão de acordo com suas intenções. A
língua é uma possibilidade que ganha concretude no ato de enunciação e está ligada ao uso
que se faz dela e as condições de produção no momento desse uso.
Entendemos que as análises discursivas devem considerar a língua como uma
maneira de expressão e de relação com o mundo e, por isso, precisam levar em conta
elementos que vão além do que foi dito para contemplar também o como foi dito, quando,
por quem, para quem, em qual situação, por qual meio, dentre tantas outras variáveis que
servirão de recorte de análise para os estudiosos do discurso. Logo, não nos interessa
analisar frases considerando apenas o léxico ou a gramática da língua; temos como objeto
de análise os enunciados (MAINGUENEAU, 2011), que levam em consideração todos
esses elementos anteriormente citados. Uma mesma sequência de palavras, portanto uma
mesma frase, será um enunciado outro a partir de outras condições de produção. Os
enunciados são únicos, visto que é impossível repetir todos os elementos que o
constituíram, que vão além da materialidade linguística, no momento de sua produção.
22

Portanto, as análises na perspectiva da AD que adotamos buscam voltar seu olhar para
fatores sócio-históricos que compõem a construção de sentidos dos enunciados em questão.
Nas análises dentro do campo da AD não há a busca por um sentido original que necessita
ser desvendado ou apreendido. Assim, não operamos com mecanismos de interpretação
sistêmicos que contribuam para a interpretação de determinado texto, senão buscamos as
interdiscursividades presentes nos enunciados e a rede de sentidos que subjazem a eles.
Como desdobramento da dissociação estabelecida entre frase e enunciado, é
preciso também discutir o conceito de enunciador e seu descolamento da ideia de autor. Na
visão de língua que adotamos, o enunciador não é aquele sujeito empírico que emitiu a
frase, mas que está inserido dentro de um contexto específico, estabelece relações próprias
com os discursos que o circundam. O enunciador não é da ordem do físico, senão da ordem
do discursivo, passível de ser apreendido apenas se considerados os elementos que
constituem os enunciados e os discursos. Ao optar por tratar do enunciador, abandonamos
relações de causas e efeitos que envolvam a história pessoal de quem proferiu uma
determinada frase e passamos a voltar nosso olhar para os interdiscursos que tornaram
possível ser dito o que foi dito, no momento em que foi dito, da maneira que foi dito dentre
tantas outras características que compõem o enunciado que se analisa.
Ao tratar dos interdiscursos, retomamos a diferenciação estabelecida por
Maingueneau (2011) entre universo discursivo, campo discursivo e espaço discursivo. O
universo discursivo é o mais abrangente e contempla o conjunto finito de formações
discursivas que interagem em uma determinada data. Inseridos nele estão os campos
discursivos que tratam de formações discursivas concorrentes, isto é, formações que
competem, em certa medida, nas definições encontradas para uma mesma função social.
Os campos não são estáticos, tratam de abstrações criadas a fim de organizar as análises
pretendidas. Pode-se, por exemplo, tratar do campo filosófico, político, educacional dentre
outros. Esse recorte ganha mais relevância a medida que pensamos que o discurso se
constitui dentro do campo discursivo, porém as relações entre os discursos afetam a
construção de sentidos dentro delas. São os interdiscursos mencionados por Maingueneau
(2011) que são singulares visto que cada relação entre discursos será única. A categoria do
campo é e nos interessa mais para organizar o material de estudo. Por último, há o espaço
discursivo que são ―subconjuntos de formações discursivas que o analista, diante de seu
propósito, julga relevante pôr em relação‖ (MAINGUENEAU, 1997, p.35).
23

Dentro dessa lógica de língua como uma construção social inseridas nas
discussões sobre enunciador e coenunciador, é importante levantar as ideias de discurso e
de sujeito com as quais optamos por trabalhar. Maingueneau (2008, p. 15) define discurso
como: ―uma dispersão de textos, cujo modo de inscrição histórica permite definir como um
espaço de regularidades enunciativas‖. Vemos, nessa definição, a questão histórica sendo
trazida pelo linguista como havíamos ressaltado quando tratávamos do enunciado.
Maingueneau (2009) estabelece uma relação entre discurso e enunciado na qual um contém
o outro. O discurso, portanto, contém enunciados que guardam regularidades em comum e
formam um conjunto. Foucault (1969, p. 146) também traz essa ideia quando diz que ―um
discurso é um conjunto de enunciados que tem seus princípios de regularidade em uma
mesma formação discursiva‖.
O conceito proposto também por Foucault (1969) de formação discursiva trata da
criação de um espaço comum discursivo regido por ―regras de formação‖ (FOUCAULT,
1969, p. 147) que permitem ou excluem certos dizeres. Dentro de uma formação discursiva
estabelecida alguns dizeres são passíveis de existir enquanto outros não o são. Por
exemplo, dentro de uma escola sem surdos, não faz parte da formação discursiva daquele
espaço discussões sobre lutas do movimento surdo. Seguramente essas regras são
ressignificadas a cada momento e fazem parte de um recorte que está limitado pelo olhar
de quem o faz.
Podemos ver, a partir desses conceitos apresentados, como a língua não está sob
domínio do indivíduo, mas, na verdade, ela tem caráter social e acaba por contribuir na
constituição do sujeito.
A ideia de que há inúmeros fatores que contribuem para formar um enunciado, um
enunciador e um discurso nos aproxima de uma percepção de que a língua é subjetiva, ou
seja, não apresenta verdades, mas as constrói de acordo com as formações discursivas,
enunciadores, condições de produção.
A relação entre língua e sujeito perpassa os contatos que podemos estabelecer
entre língua, cultura e identidade que nos interessam nesse momento. A noção de sujeito
está ligada à imagem que se constrói sobre a posição de fala em um determinado
enunciado. Portanto, a percepção desse sujeito se constrói na língua e pela língua.
Trabalhamos com a ideia de um sujeito descentrado, ou seja, não é completamente
consciente do seu dizer e, portanto, não se pode atribuir exclusivamente a ele o que diz,
24

como fonte e origem das suas ideias. O sujeito não domina completamente seus próprios
pensamentos e, com isso, seu dizer. Ao incorporar os estudos da psicanálise de Freud e sua
ideia de subconsciente, entende-se que o sujeito não opera mais com total razão e
consciência, mas está subjugado a pensamentos que não consegue controlar. Por isso,
operamos com uma perspectiva dialógica da linguagem (VOLÓCHINOV, 2017) em que os
enunciados estão em constante diálogo com o que já foi produzido e também com o que
ainda será. O sujeito, por estar inserido no fluxo da linguagem, é atravessado por ideias,
formas de dizer, que já circulam socialmente.
Dentro desses fluxos de sentidos estão os discursos sobre cultura e identidade. O
que constitui uma cultura, como ela se apresenta e quem faz parte dela são sentidos que
estão em diálogo a todo o momento. Assim como as identidades que se atribuem aos
sujeitos também não estão dadas no mundo, mas são alvos de construções da língua e do
discurso. Ter uma cultura surda ou ter identidade surda são processos discursivos que
precisam ser tratados como tal, isto é, é preciso que se entenda quais as condições de
produção desses discursos que possibilitem que estes existam, se tornem mais ou menos
hegemônicos em diferentes espaços.
Nas seções que se seguem vamos nos deter às questões da cultura e da identidade
surda.

1.1.1 Língua e a construção da cultura surda


Seguimos nas discussões que relacionam cultura e língua e a noção de que ambas
criam e são criadas a partir de práticas discursivas retroalimentares. A discussão sobre a
cultura não está primordialmente situada no campo da surdez, nem sequer exclusivamente
no campo dos estudos da linguagem, senão nos estudos antropológicos, no entanto, seus
sentidos são de grande importância para pensar as questões que se colocam nesta tese. Esse
tema é fértil e amplamente abordado por autores do âmbito das línguas e da educação
(CANDAU, 2000; ALVES, 2011; LOPES, MACEDO, 2011; FREITAS, 2011).
Um pensador que vem influenciando as discussões sobre cultura é Hall (1997), que
a define como
um dos elementos mais dinâmicos — e mais imprevisíveis — da
mudança histórica no novo milênio. Não deve nos surpreender, então, que
as lutas pelo poder sejam, crescentemente, simbólicas e discursivas, ao
invés de tomar, simplesmente, uma forma física e compulsiva, e que as
25

próprias políticas assumam progressivamente a feição de uma ―política


cultural‖ (HALL, 1997, p.20).

Dessa forma, opera-se com a ideia da cultura como um conceito dinâmico e ao


qual se atribuem inúmeros significados, frutos de lutas discursivas. De acordo com Freitas
(2011), há uma polarização aparente nos sentidos desse termo sendo apresentadas ora
como patrimônio universal ora como práticas culturais cotidianas em contextos singulares.
Ambos os entendimentos não são os almejados neste trabalho. A partir de uma perspectiva
discursiva, acredita-se que a própria ideia de cultura parte da fixação de conceitos, ideias e
estereótipos que se homogeneízam segundo um processo de disputa de sentidos e contextos
específicos.
Portanto, as línguas e suas posições de poder também são elementos que fazem
parte dessas produções discursivas e contribuem para a fixação de um conceito de cultura e
para a fixação de determinadas culturas. No caso da libras, um dos objetos de pesquisa
neste trabalho, os enunciados produzidos por ela tratam de reafirmar ou silenciar algumas
ideias de cultura, ou seja, fixar identidades que, nada mais são que ficções, realidades
fabricadas e tornadas possíveis por meio de discursos. Sob essa ótica, Appadurai afirma
que: ―as culturas são meros estancamentos artificiais dos fluxos, uma espécie de fotografia
que paralisa e nomeia o que é puro movimento‖ (APPADURAI apud LOPES; MACEDO,
2011). A forma como uma norma jurídica trata a questão da libras, por exemplo, é uma
maneira na qual a lei produz discursos e fixa/produz valores culturais. O governo federal,
que promulgou a Lei 10.436/2002 (BRASIL, 2002) reconhecendo a libras como meio legal
de comunicação e expressão, como órgão detentor de poder de autoridade sobre a
população desempenha, portanto, um papel importante na constituição desse sujeito
cultural que se constituirá nas interações que contemplam os surdos, a surdez, a libras
dentre outros sentidos relacionados ao tema.
Sob esse aspecto, a cultura não é prévia a qualquer língua que a perpetuaria, a
reproduziria ou a negaria, mas sim as línguas estão na própria corrente discursiva que
produzem sentidos do que seja cultura e como ela está disposta e dividida em uma dita
sociedade. Assim, as línguas e suas políticas não refletem a cultura, mas ajudam a instituí-
la. Pensa-se, portanto, não mais em cultura, porém em fluxos culturais (LACLAU, 1996),
movimentos discursivos que produzem sentidos todo o tempo a fim de estabelecer o que
26

esse conceito enuncia. Porém, esse é um movimento constante e complexo e, com isso,
impossível de ser totalmente estabelecido e apreendido.
Dessa forma, ao entender a libras como uma língua e, como tal, que constitui
sujeitos e produz sentidos, podemos afirmar que esta também é produtora desses sentidos
que constituem cultura. Os enunciados que são produzidos em libras são dizeres próprios
dessa língua e trazem, consigo elementos particulares da sua construção sócio-histórica e
da relação com a comunidade que a usa.
Se levarmos em consideração que a libras é a língua própria da comunidade surda,
é possível defender a existência de uma cultura surda que se cria a partir das interações
nessa língua. Os fluxos culturais que podem se estabelecer a partir desse recorte linguístico
não se restringem a uma condição médica: ser uma pessoa com deficiência auditiva ou não.
Trata-se de processos de identificação com a libras e com os interdiscursos que se colocam
a partir dessa incorporação linguística.
Esses sentidos que produzem e são produzidos pelos fluxos culturais também se
determinam pela dimensão política da linguagem e pelas relações de poder que nela estão
contidas. Dentro do escopo da minoria linguística, operamos com a lógica de que as
disputas de poder se dão pelas línguas e nas línguas e, por isso, é preciso considerar fatores
de ordem sócio-histórica ao tratar desse assunto.
Como já foi mencionado anteriormente, que mais de 90% dos surdos têm pais
ouvintes, portanto, a interação linguística se dá, em muitos casos, mais em contextos
extrafamiliares como escola, igrejas, associações, onde o contato com outros surdos é
possível. Sobre essa interação, Paz e Salucci (2009, p.5) afirmam que:
Os surdos não são um grupo racial, a grande maioria deles não está unida
por laços sanguíneos, mas a relação que se estabelece entre eles se torna
tão forte que, para muitos, sua comunidade se converte em sua segunda
família e o participar e pertencer a ela passa a ser uma necessidade e uma
prioridade.

Dentro dessa comunidade que se constitui na língua, cria-se uma rede de sentidos
compartilhada que alimenta os fluxos culturais que identificam um grupo surdo. As
experiências linguísticas extrapolam para as situações do cotidiano que, inevitavelmente,
são construídas no discurso. Por exemplo, além de compartilharem uma mesma língua, há
organizações sociais, políticas, esportivas, de entretenimento, educacionais como o próprio
INES que constituem a representatividade de um grupo que busca identificação.
27

Dentro da esfera política, temos a Federação Nacional de Educação e Integração


dos Surdos (FENEIS) que luta por causas das pessoas surdas desde sua criação nos anos
1980. No âmbito esportivo podemos mencionar a Surdolimpíadas, Olimpíadas feitas por e
para surdos que levou mais de duzentos surdos brasileiros para Turquia em 2017 e que
existe desde o início do século XX.
É importante ressaltar que, dentro dessa produção de sentidos instituinte de uma
cultura surda, há um processo que envolve também ouvintes. Segundo Skliar (1997),
durante séculos a comunidade surda esteve limitada ao tema da surdez em que os ouvintes
mantiveram estratégias colonizadoras decidindo o mais adequado para eles, levando a
discussão, quase que exclusivamente
Os discursos produzidos sobre o que é ser surdo, seja pelos próprios surdos, seja
por ouvintes, penetram também os sentidos de cultura surda. Portanto, ela não é
exclusivamente determinada por surdo, mas sim por sujeitos que, de alguma forma, se
referem ao universo da surdez.
Ao associar a cultura surda com a existência de uma língua própria da
comunidade surda, nos questionamos sobre a contribuição de usuários de libras que não
são surdos na constituição da cultura surda. Entendemos a cultura como um campo de
batalha por significação, isto é, está marcada politicamente pela luta e pelo poder. Assim,
há uma disputa de significações na cultura surda que opõe os surdos e os não surdos.
Para pensar nessa oposição e estabelecer as fronteiras dessa batalha é preciso,
primeiro, pensar na identidade surda. Fala-se, muitas vezes, sobre ―o surdo‖, no entanto,
não existe apenas um modelo de surdo ou de identidade surda. Na próxima seção, então,
buscamos relacionar as ideias já construídas sobre língua e cultura com as de identidade
que exporemos.

1.1.2 Identidade e a construção do sujeito surdo

A questão da identidade costuma ser tratada tanto nos domínios do social a partir
do individual (HALL, 2006). Devido à relação que estabelecemos entre cultura e
identidade, buscaremos abordar a questão mais em seu âmbito social, como Hall (2006)
propõe, mesmo porque uma clara dissociação não nos parece produtiva ou sequer possível.
Uma forma de ver a relação entre a identidade e a cultura é nas divisões
estabelecidas entre países. Essas não são apenas linhas traçadas em um mapa, mas a
28

instituição de uma nacionalidade acaba provocando o surgimento de diversos discursos que


aglutinam um número de indivíduos debaixo de um mesmo guarda-chuva, de uma pretensa
identidade nacional que, por ser atribuída a um grupo de pessoas, ganha denominação de
cultura. Inclusive, a constituição dessa pretensa identidade nacional é um processo sócio-
histórico-discursivo. Uma das tendências dos estudos de identidade (SILVA, 1999;
WOODWARD, 2000) tende a estabelecer uma estrutura na qual o indivíduo está preso e
não consegue escapar. No entanto, essas constantes tentativas de estabilização das
identidades nacionais são provocadas, construídas a fim de garantir que o coletivo nação se
sobreponha aos indivíduos e, com isso, formas de dominação e controle se instituam.
Dessa forma, um dos caminhos que queremos nos distanciar é o de fixar algumas
identidades mestras que limitam o que acreditamos ser uma pluralidade infinita de
pertencimentos2.
Essa pluralidade de pertencimentos está intimamente ligada a formas de
representação do sujeito, a demandas individuais que se agrupam e acabam por se tornar
demandas de um coletivo, um grupo identitário. Os sujeitos possuem incontáveis
demandas e, por isso, buscam uma filiação coletiva que os permita existir no mundo,
enunciarem e serem enunciados. Exemplos desse fenômeno que estão mais em evidência
no momento e que mostram o quão difuso podem ser essas determinações são questões
ligadas a gênero, nação, raça, orientação sexual dentre outros.
Não defendemos a ideia de identidades fechadas, preexistentes ao sujeito, senão a
processos de identificação que se constituem e atualizam a cada interação (HALL, 2006).
Rejeitamos a visão de um sujeito uno e centrado, consciente e racional e que teria uma
essência interior que o define. Assim como explicitamos na relação com o conceito de
cultura, operamos com a ideia de fluxos (LACLAU, 1996), no caso, de identificação,
opondo-se às fixações prévias. Com isso, pensamos em fluxos identitários sócio-
historicamente ancorados e que se transformam, se extinguem e se renovam ao longo dos
tempos.
A noção de sujeito adotada por nós e explicitada anteriormente vai ao encontro
das ideias aqui defendidas sobre identidade. O sujeito é constituído pelos discursos que o
cercam e, logo, pela língua que usa. Mas também a produção de identidades é construída
por esse sujeito que não apenas é influenciado pelos espaços discursivos dos quais

2
Avançaremos na discussão sobre identidade nacional para a tese.
29

participa, mas também a influencia. O sujeito é produtor desses discursos e, por isso, não é
passivo a sistemas que o identificam com essa ou aquela categoria. Defendemos, portanto,
para exemplificar, que um brasileiro ao ser identificado como tal também está construindo
sentidos para o que se entende por ser brasileiro.
Em virtude dessa relação de mão dupla na constituição de uma identidade,
levantamos a questão também dos processos que levam à identificação de um sujeito. Por
exemplo, ao trazer para o tema desta tese, quais os caminhos que levam um sujeito a
identificar-se e ser identificado como surdo. Por tudo que foi explicitado até aqui
acreditamos que esses processos estejam além de um simples laudo médico que ateste a
quantidade de decibéis que alguém consegue ouvir.
Os fluxos de identificação sobre os quais nos referimos também se constroem
discursivamente, por meio de textos com os quais interagimos em um determinado
contexto. E por ter essa dimensão discursiva, esses fluxos são, mais uma vez, construídos
pelo próprio sujeito e também pelo seu entorno, já que, como dissemos, o sujeito é
descentrado e não completamente consciente do seu dizer. Identificar-se como surdo é um
conjunto de forças que inserem sua própria visão de si como também a visão dos outros.
Porém, sua própria visão de si já está impregnada pela visão dos outros e vice-versa.
Portanto, a atribuição de uma identidade a um sujeito passa por uma rede de significações
que ganham sentido naquele momento, naquele contexto, a partir daquelas demandas.
O fato de pensarmos na identidade como uma construção fluida e contingencial
(LACLAU, 1996), nos permite defender que a atribuição de uma identidade a um sujeito
deve vir cercada de elementos que a situem em um tempo, espaço e interdiscursos que a
sustentam e estabelecem diálogos. Uma identidade pode ser atribuída a alguém em uma
determinada situação e o oposto acontecer em outra. Por exemplo, há identificações
ideológicas dentro do campo político com as mais diversas formações discursivas. De
maneira simplificada a fim de prosseguir com a exemplificação destacamos a identificação
com os campos de esquerda e direita. Essas identificações costumam sofrer deslizes de
acordo com a situação apresentada. Um sujeito pode ser identificado como alguém filiado
a visões de esquerda ou de direita dependendo da configuração que se apresente. É o
exterior que toma parte na constituição do sujeito e nos seus processos de identificação
reforçando a ideia da não fixação de identidades defendida nesta tese.
30

Pensar em identidade é também pensar em diferença (SILVA, 1999). Como não


advogamos em prol de uma lógica de língua realista, em que as palavras servem para
nomear uma dada realidade, senão para construir sistemas de significação que buscam
fixar sentidos, as identidades se constroem a partir do contraponto com a diferença. No
caso do surdo, costuma-se opô-la ao termo ―ouvinte‖, porém pouco ou nunca é discutida a
existência de uma identidade ouvinte. Esses pares de significação binários como ―surdo x
ouvinte‖ levam para reducionismos de representatividades que provocam o apagamento de
inúmeras outras formas de pertencimento e de sentidos que escapam. Portanto, apenas o
reconhecimento da diferença, independente daquilo com o que se diferencia já é
importante para nossas discussões. Isso porque as oposições também são abertas, ou seja,
se constituem e dissolvem de acordo com o contexto em que são apresentadas.
O caminho que nos leva a entender que essas identidades mestras são contingentes
e regidas por relações de poder (LACLAU, 1996) não pode nos levar a pensar em instituir
identidades mais específicas, locais que sigam o mesmo caminho. Tratar de essencializar
movimentos de identidade negra, feminista ou mesmo surda é apenas tentar mudar o centro
de orbitação da identificação do sujeito (WOODWARD, 2000). A luta contra a
centralidade do sujeito e de sua identificação a partir de um modelo pronto e fechado não
pode ser substituído por vários pequenos centros que sigam a mesma lógica. Buscamos,
portanto, o entendimento da fluidez da instituição dos processos identitários e o
reconhecimento da sua fragilidade contingencial, em que os sentidos constroem não apenas
semelhanças, pontos de contato, mas também a diferença.
Língua, cultura e identidade são conceitos que estão intimamente imbricadas. Os
sistemas de representação que possibilitam a construção de fluxos culturais e identitários
são estabelecidos discursivamente, na língua e pela língua. Portanto, nos parece impossível
dissociar tais ideias.
O sujeito surdo só pode nomear-se ou ser nomeado de tal maneira por uma rede
de sentidos, um espaço discursivo que sustente essa identificação, tais como a existência de
uma língua própria da comunidade, organizações sociais específicas desse grupo dentre
outras. Esses fluxos culturais e identitários estão ancorados sócio-historicamente e variam
de acordo com o contexto. Por isso, na próxima seção estabeleceremos algumas relações
entre o processo histórico da educação de surdos, o uso da língua e seus espaços de
representação no mundo.
31

1.2. Identidade e cultura surdas: práticas de uma trajetória

Nesse item do trabalho buscamos construir um percurso histórico da educação de


surdos tendo sempre como base a relação entre a língua, a identidade e a cultura que são
construídas e reconstruídas ao longo dos tempos.
Em um primeiro momento retomamos a antiguidade para, em seguida, falar sobre
o surgimento de escolas próprias para surdos no contexto europeu. Voltamo-nos ao final
desta seção para o Brasil e para a criação do INES como escola especializada na surdez,
cujo surgimento foi um marco para a comunidade surda e que se perpetua até hoje.

1.2.1. Sujeitos de língua: lutando por existir


Sabemos que o próprio reconhecimento da existência de uma língua não é um fato
dado, passível apenas de constatação, senão uma construção social que se sustenta a partir
de inúmeras condições contextuais. Algo que pode perecer natural e incontestável como as
nomeações das línguas é fruto de disputas glotopolíticas intensas. Um exemplo
contundente de tal situação é a própria história das línguas latinas. No século XIII houve o
registro dos primeiros textos em galego-português (TEYSSIER, 2004, p. 20), fruto de um
processo extensão de transformação e, com isso, uma transição na forma de ver a língua
usada naquela região, transpondo-se do latim para outro idioma. Ainda no século XII, com
a formação dos estados a nomeação de novas línguas foi ainda mais latente. Essas línguas
já eram de uso corrente, porém sem serem nomeadas. O português, por exemplo, só se
tornou língua oficial em 1287 (TEYSSIER, 2004), no entanto, a formação do estado
nacional só ocorreu depois da Revolução de Avis (1383-1385) e a centralização do poder
nas mãos da monarquia. Trazendo para a realidade do surdo e das libras, vemos que o
próprio reconhecimento de que existia uma língua própria da comunidade surda é algo que
só foi conquistado de maneira oficial mais recentemente, como poderemos verificar.
Retomando a história para tempos pré-cristianos e voltando-nos ao surdo, na
época dos povos egípcios, há mais de 1.500 anos a.C., os surdos, por não usar a língua oral
para expressar-se, não eram considerados humanos. Nesse tempo, a luta dos surdos não era
por educação, senão pela vida, pela possibilidade de serem vistos como seres humanos. Os
32

constantes gemidos que produziam eram comparados aos sons produzidos pelos animais e
contribuíam ainda mais para uma percepção do surdo como não humano. Tal luta era, na
verdade, quase inexistente já que os meios para conquistar direitos estavam inscritos na
língua e por ela (SKLIAR, 1997).
As sociedades egípcia, judaica e romana também não acreditavam na
possibilidade de se educar um surdo, ainda que já houvesse reconhecimento do seu direito
à vida. No código Justiniano de Roma, de 483 a.C., por exemplo, o sujeito que nascia
surdo não era passível de ser educado (LIMA, 2004, p.15).
Ainda de acordo com Lima (2004), na Grécia, Aristóteles também considerava o
surdo um sujeito sem possibilidade de ser educado por não conseguir se expressar, formar
pensamentos e, com isso, impossibilitado de interagir socialmente. Muitas dessas
concepções sobre o surdo estavam atreladas a pensamentos de que eram sujeitos
amaldiçoados e que sua condição era algum castigo que sofria.
Com todos esses sentidos construídos sobre o que era ser surdo, especula-se que
esses indivíduos viviam, de fato, à margem da sociedade, sem língua, ainda que,
possivelmente, com alguma linguagem. Por conseguinte, ao surdo não era considerada a
possibilidade da educação e o acesso a qualquer tipo de atividade laboral ou mesmo outras
inserções sociais que poderiam integrá-los ao local em que viviam.
Dentro do contexto do Mediterrâneo na Antiguidade, sem cogitar a
possibilidade de uma língua própria ou mesmo que se aprendesse uma língua oral, a
comunicação com os surdos não era nem mesmo considerada. As consequências de
vislumbrar um grupo de pessoas incapazes de se comunicar foram devastadoras para
esses indivíduos que, dentro dos contextos ocidentais que explicitamos, por mais de dois
mil anos, tiveram que lutar para existir. Existir não através do discurso, existir não a
partir do que diziam ou pensavam, mas apenas existir fisicamente, seguir vivos em um
mundo que os via como seres sem nenhuma função social. A língua torna-se sinônimo de
ser visto no mundo, ou melhor, a falta da língua ganha sentidos de invisibilidade do
sujeito.

1.2.2. Escola como refúgio: língua e educação em seus primeiros contatos


Nesse momento, trataremos da trajetória da educação de surdos na Europa do
século XVI e XVII, pois acreditamos que esta teve mais influência nos desdobramentos
33

desse tema no Brasil. Esse movimento se dá pela própria história de colonização europeia
na América, em um processo iniciado no século anterior.
Nessa época, o olhar para o surdo começa a mudar e atribui-se razão a esses
indivíduos como podemos ver pelos exemplos em seguida. Espalhada pelo continente, a
educação de surdos ganha seus primeiros entusiastas: Girolamo Cardano, médico e
matemático italiano, já defendia a possibilidade de educar os surdos sem necessitar o uso
de palavras faladas, porém através da leitura e escrita. Seu investimento no assunto se deu
por ter um filho surdo. Ainda em meados do século XVI, na Espanha, o monge beneditino
Pedro Ponce de Leon se dedica a educar os surdos. Com uma motivação religiosa e atendo-
se aos filhos da nobreza, o sacerdote busca ensinar os surdos a falar, ler, escrever e, a partir
dessas experiências, fundou uma escola de professores de surdos em San Salvador, na
província de Burgos (WIDELL, 1992). Podemos dizer, então, que, na Espanha, temos o
primeiro movimento de formação docente voltado para a questão da surdez na Europa.
Outros estudiosos, ao longo do século seguinte também se dedicaram a
desenvolver métodos de ensino para os surdos como Juan Pablo Bonet que em 1620
publicou o livro Reduction de las letras y arte para enseñar a ablar los mudos, John
Bulwer, na Inglaterra, que publicou em 1644 Man Transform´d: or The Artificiall
Changling e George Dalgarno, escocês que publicou Didascalocophus or the Deaf and
Dumb man's tutor, em 1680. Seguem as imagens dos livros publicados:

Figura 1: Obras de ensino para surdos na Europa no século XVII

Reduction de las letras y arte Man Transform´d: or The Didascalocophus or the Deaf and
para enseñar a ablar los mudos Artificiall Changling Dumb man's tutor
34

(BONET, 1620) (BULWER, 1644) (DALGARNO, 1680)

Todas essas publicações têm em comum, além dos fatos de surgirem na Europa do
século XVII e advirem de experiências com membros de famílias da nobreza, a perspectiva
de ensino por meio do alfabeto manual, que é um sistema de representação das letras dos
alfabetos das línguas orais por meio das mãos. Ainda que alguns considerem a ideia da
oralização como possibilidade, ou seja, fazer com que o surdo por meio de exercícios use a
língua oral, acreditava-se que o uso das mãos era, para o aprendizado, uma maneira mais
prática para o surdo.
Ressaltamos aqui, portanto, não apenas o reconhecimento de que o surdo é um ser
de razão, capaz de aprender, mas também a indicação de que não é apenas a língua oral ou
mesmo escrita sua única forma de interação. Ainda nomeados como gestos, mímica ou
alfabeto manual, a língua de sinais ganha registro, valor e função social para a educação de
surdos. Nessa época, inclusive, é dito por Bulwer (1644) que com a língua de sinais podia-
se expressar os mesmos conceitos expressados pelas línguas orais.
Seguindo esse crescente desenvolvimento do interesse e das possibilidades de
educação de surdos, na França, já no século XVIII, o sacerdote Carlos Michel L‘Épée
começou a ensinar dois surdos através de que chamou de ―Sinais Metódicos‖, um método
em que mesclava sinais e língua falada. Alguns anos depois, o religioso inaugura o Refuge
pour les sourdes-muettes (DUFAU, 1847), em Paris, no qual abarca surdos menos
favorecidos e, devido ao seu sucesso, ensina crianças surdas na escola em Truffaut, na
França, em 1762. Em seguida, L‘Épée deu prosseguimento ao seu trabalho na sua própria
casa, onde inicia a primeira escola exclusivamente para surdos de que se tem notícia, o
Institut National de Jeunes Sourds de Paris, tendo como aluno, por exemplo, Abbe Sicard
que mais tarde se tornou professor de surdos e abriu sua própria escola em Boudeaux,
chamada Institution Nationale des Sourdes-Muettes. Outro aluno do instituto localizado em
Paris foi Thomas Hopkins Gallaudet que, junto com Laurent Clérc, fundou a primeira
escola para surdos na América, nos Estados Unidos, hoje em dia, a Gallaudet University
que é um importante centro educacional voltado para surdos e que conta com cursos de
graduação e de pós-graduação.
35

Ao denominar um centro de ensino como ―refúgio3‖ constrói-se sentidos de que o


surdo estivesse em fuga, sob perseguição, necessitado de proteção. Há sentidos que
subjazem a essa nomenclatura e que contribuem para compreender a situação do sujeito
surdo em uma época em que a escola formal lhe era negada e que este precisava de um
local para que pudesse aprender como um refúgio, ou seja, um local protegido do mundo
externo, local em que ele pudesse ser percebido como sujeito capaz de interação,
aprendizagem, sujeito em língua.
Ao passo que na França se caminhava para a prática da língua de sinais como a
língua de educação do surdo, na Alemanha, por volta da década de 1770, com Samuel
Heinicke como seu maior expoente, os métodos orais ganhavam força.
Dentro do contexto da surdez, o termo método é amplamente usado quando se
trata da tentativa de oralizar os alunos a fim de ensiná-los. Por isso, consideramos
importante destacar, nesse momento, o que entendemos por métodos. Buscamos as
discussões de Richards e Rodgers (1982) que definem o método a partir da compreensão
de outros três termos: abordagem, design e processo. Nas palavras dos autores:
Todos os métodos de ensino de línguas operam explicitamente uma
teoria de linguagem e crenças ou teorias sobre como a língua é
aprendida. Teorias no nível de abordagem se relacionam diretamente
ao nível do design, pois elas proporcionam as bases para determinar as
metas e conteúdo de um planejamento de língua. Elas também se
relacionam ao nível do procedimento, pois elas proporcionam o
fundamento linguístico e psicolinguístico para a seleção de técnicas e
atividades de ensino particular. (Richards; Rodgers, 1982, p. 155)

A partir desse entendimento, não consideramos as práticas de oralização dos


surdos como um método, porém esse é um termo já cristalizado dentro do contexto que
vimos discutindo. Dessa forma, seguiremos usando ―método oral‖ para nos referir a essa
prática.
Esses métodos consistiam na educação de surdos por meio de estratégias que
buscavam fazer com que o aluno falasse, ademais de ler lábios e, com isso, prescindir da
língua de sinais para sua constituição e seu aprendizado. Tal perspectiva de ensino para
pessoas surdas ficou conhecida como oralismo.

3
Em uma nota pessoal, a fim de ilustrar que a ideia do refúgio que se perpetua até hoje no INES, ainda que
em condições de produção diferentes e, portanto, com efeitos de sentidos outros, nos três anos como docente,
atuo no projeto do pré-vestibular, que é de inscrição facultativa pelos estudantes. Tenho dois alunos que há
três anos cursam o pré-vestibular sem nenhuma intenção declarada de preparar-se para ingressar na
universidade, mas apenas para estar no INES, socializar com colegas surdos, ou seja, refugiar-se.
36

Essa concepção de educação opera com a ideia de que o surdo é alguém que
possui uma deficiência que deve ser compensada e corrigida a partir do exercício da língua
oral para conseguir produzir sons e, assim, existir em uma sociedade de ouvintes. Essa é
uma visão mais voltada para um entendimento clínico da surdez e a atuação de
fonoaudiólogos é central para a implementação das práticas de oralização.
Segundo Goldfeld (2002, p.34):
O Oralismo percebe a surdez como uma deficiência que deve ser
minimizada pela estimulação auditiva. Essa estimulação possibilitaria a
aprendizagem da língua portuguesa e levaria a criança surda a integrar-se
na comunidade ouvinte e desenvolver uma personalidade como a de um
ouvinte. Ou seja, o objetivo do Oralismo é fazer uma reabilitação da
criança surda em direção à normalidade.

Um dos maiores entusiastas dessa concepção era o inglês Alexander Granham


Bell que, por volta da década de 1870, com seu interesse pelos estudos da eletricidade que
culminou na criação do que conhecemos hoje como o telefone, propunha, ademais de
treinar o surdo a produzir sons inteligíveis, torná-lo capazes de ler lábios, pois, assim, se
acreditava que prescindiria totalmente da língua de sinais e poderia interagir com os
ouvintes exclusivamente pela língua oral. Vendo a língua como um elemento constitutivo
do sujeito, como consequência dessa proposta educacional para o surdo, temos uma
mudança na constituição do surdo a partir de uma língua de sinais e a tentativa de que ele
se veja, se perceba e seja percebido como alguém usuário da língua oral majoritária. Esse
não deixa de ser um projeto homogeneizador com o intuito de reduzir diferenças
linguísticas com todas as consequências advindas dessa atitude.
Projetos que buscam homogeneização pela língua podem ser vistos em diversos
contextos e ao longo da história, ainda que cada uma seja um processo com efeitos de
sentidos próprios. Podemos trazer o exemplo dos povos originários na América Latina e na
África que sofreram a imposição da língua dos colonizadores europeus. Com a língua, vem
a dominação cultural e a gradual transformação dos processos de identificação existentes
nas comunidades que aqui viviam com seus costumes e cultura próprios. No Brasil, pelo
tipo de colonização que tivemos, a obrigatoriedade da língua portuguesa ocorreu com o
Diretório dos Índios (1757). Até então, falava-se, na costa brasileira, a língua geral. Esta
foi uma língua constituída a partir do tupi pelos jesuítas portugueses que vieram ao Brasil e
buscavam catequizar os moradores do país. A ideia de que era preciso ensinar a língua para
dominar permeou as ações nessa parte do mundo na época da invasão europeia, ainda que
37

essas ações tenham encontrado resistência por parte dos que já habitavam esta parte do
mundo. Como exemplo, temos a gramática desenvolvida por Antonio de Nebrija a pedido
da monarquia espanhola. No prólogo da obra o autor ele diz que:
Prólogo Ala mui alta y assí esclarecida princesa doña Isabel. la tercera
deste nombre […]
Cuando bien comigo pienso mui esclarecida Reina: y pongo delante los
ojos el antigüedad de todas las cosas: que para nuestra recordación e
memoria quedaron escriptas: una cosa hallo y saco por conclusión mui
cierta: que siempre la lengua fue compañera del imperio: y de tal manera
lo siguió: que junta mente començaron. crecieron. y florecieron. y
después junta fue la caída de entrambos. (NEBRIJA, 1492, grifo nosso)

Assim, a imposição política e econômica é sempre acompanhada pela imposição


linguística e cultural. O mesmo pode-se dizer sobre o surdo no mundo dominado por
ouvintes.
Na Europa do século XIX, havia uma disputa entre um método que buscava
oralizar o estudante e outro que trabalhava com os gestos produzidos entre os surdos. Esse
embate ganha contornos muito importantes no cenário da educação de surdos e atravessa
até hoje as discussões sobre o tema de maneira muito presente.
Nesse embate, a partir de alguns eventos realizados na Itália que culminaram com
o Congresso Mundial sobre a Educação de Surdos. A primeira edição ocorreu em Paris,
porém o que ganhou maior destaque foi o Congresso de Milão, em 1880, no qual o método
oralista prevaleceu. Caracterizado por Rocha (2009, p. 90) como um ―evento monumento‖,
baseado em suas atas é possível afirmar que se recomendou que o método de ensino
através dos sinais era prejudicial ao aluno surdo ao passo que a eficácia estava associada ao
método de oralização. Apesar de ser uma ―recomendação, o impacto desse evento, por ter
caráter mundial, foi abrangente e provocou o fim de da língua de sinais nas escolas de
surdos pelo mundo além da erradicação de professores surdos nesse âmbito escolar‖
(ROCHA, 2009, p. 91).
De todos os países que relataram suas experiências na educação de surdos, apenas
os Estados Unidos preteriram o método oral, portanto, a cúpula do congresso, composta
exclusivamente por ouvintes, deliberou as seguintes resoluções:
I. O uso da língua falada, no ensino e educação dos surdos, deve preferir-se à
língua gestual; II. O uso da língua gestual em simultâneo com a língua oral,
no ensino de surdos, afeta a fala, a leitura labial e a clareza dos conceitos,
pelo que a língua articulada pura deve ser preferida; III. Os governos devem
tomar medidas para que todos os surdos recebam educação; IV. O método
mais apropriado para os surdos se apropriarem da fala é o método intuitivo
38

(primeiro a fala depois a escrita); a gramática deve ser ensinada através de


exemplos práticos, com a maior clareza possível; devem ser facultados aos
surdos livros com palavras e formas de linguagem conhecidas pelo surdo; V.
Os educadores de surdos, do método oralista, devem aplicar-se na elaboração
de obras específicas desta matéria; VI. Os surdos, depois de terminado o seu
ensino oralista, não esqueceram o conhecimento adquirido, devendo, por
isso, usar a língua oral na conversação com pessoas falantes, já que a fala se
desenvolve com a prática; VII. A idade mais favorável para admitir uma
criança surda na escola é entre os 8-10 anos, sendo que a criança deve
permanecer na escola um mínimo de 7-8 anos; nenhum educador de surdos
deve ter mais de 10 alunos em simultâneo; VIII. Com o objetivo de se
implementar, com urgência, o método oralista, deviam ser reunidas as
crianças surdas recém admitidas nas escolas, onde deveriam ser instruídas
através da fala; essas mesmas crianças deveriam estar separadas das crianças
mais avançadas, que já haviam recebido educação gestual, a fim de que não
fossem contaminadas; os alunos antigos também deveriam ser ensinados
segundo este novo sistema oral. (MILÃO, 1880).

Evidencia-se nos pontos I e II das resoluções elaboradas pelo Congresso de Milão


que o método oralista deveria ser o único adotado na educação de surdos. O método
gestualista chega a ser mencionado, porém como um inibidor do desenvolvimento do
aprendizado da fala e da leitura labial. No ponto IV, inclusive, destaca-se que os exercícios
de oralização devem preceder a escrita. Portanto, a fala não apenas é prioritária quando
comparada à língua de sinais, senão também quando comparada à modalidade escrita.
Destacamos também a resolução VIII que fala da urgência da implementação do
método oralista e, inclusive, recomenda que os alunos que já haviam sido expostos à
―educação gestual‖ fossem separados daqueles que estivessem recém ingressando em
alguma escola para que não fossem ―contaminados‖. Ao referir-se à contaminação, o
documento resultante do congresso evoca sentidos do campo discursivo médico e
aproxima a língua de sinais a um vírus que deva ser erradicado utilizando-se de
procedimentos próprios da medicina como o isolamento do paciente já contaminado.
A partir dessa construção de sentidos, é possível também aproximar a ideia da
força com que um vírus se espalha. Ao propor o isolamento dos estudantes já expostos à
língua de sinais, o documento, de certa forma, reconhece a força que o contato com os
sinais exerce na comunidade surda. Não basta que cesse o ensino em sala de aula dentro
dessa perspectiva, é preciso que qualquer contato também seja interrompido. Ao passo que,
em relação à língua oral, a recomendação é não esquecer a necessidade de o aluno seguir
usando-a, mesmo após sair da escola. A necessidade desse reforço, em contraste com a
preocupação quase higienizadora sobre os usuários da língua de sinais, revela extremos
39

opostos no que tange à naturalidade de uso de ambas as modalidades linguísticas (oral e


gestual) quando se trata do público surdo.
As discussões sobre a educação de surdos, mais uma vez, giram em torno da
língua. A libras, sendo minorizada no espaço de enunciação brasileiro, sobretudo nos
centros urbanos a partir do século XX (ARACIL, 1983), perde espaço nessa conjuntura em
que as decisões são tomadas quase que exclusivamente por ouvintes. A partir desse
congresso, o esforço é de que o estudante não tenha nenhum contato com uma língua que
se desenvolveu e era usada por seus pares para impor a dominante, a oral. Podemos supor
que parte das motivações dessas ações seria o controle desse grupo. Ainda que os gestos
ainda não fossem considerados língua, já eram vistos como forma de comunicação entre
um grupo de pessoas e, talvez, pudesse ter sido visto como ameaça iminente e, como
qualquer língua minorizada, mesmo as orais, esta foi mais uma a ser cerceada por aqueles
que estavam em posição de tomar decisões mais abrangentes.
Interessante notar que as discussões sobre métodos estavam também envoltas, no
congresso, de discussões médicas já provenientes do evento anterior ao de Milão em que,
segundo Lima (2004, p. 19) discutiu-se também ―o risco do casamento entre
consanguíneos, criação de uma anamnese para ser aplicada em todos os países‖. Essa
relação reforça a própria visão patológica da surdez que traz consequências na sua
educação como pudemos observar.
Ademais das consequências já ditas para a língua de sinais, houve também a
erradicação dos profissionais surdos nos ambientes de ensino para surdos. A partir do
momento que se limita o ensino ao recurso da oralização, prescinde-se do profissional que
era usuários da língua de sinais.
Em linhas gerais, o histórico da educação de surdos no contexto europeu percorre
esses tortuosos caminhos descritos aqui. O surdo chegou a ser visto como um ser não
passível de educação, pois não se via nele a capacidade de adquirir uma língua. Depois de
superada essa etapa, as discussões giraram em torno da melhor maneira de ensinar aos
surdos e houve uma polarização entre os métodos oralistas, em que se prioriza a fala, e o
gestualista, que enfoca na língua de sinais como meio de aprender.
Em seguida, trataremos da educação de surdos no Brasil buscando entendê-la
também a partir das relações com os discursos que circulavam no mundo naquele
determinado momento. Iniciamos justamente no final do século XIX, momento em que o
40

Congresso de Milão havia ocorrido e influenciado a educação de surdos em inúmeros


países que já tinham escolas especializadas na a educação desse público.

1.2.3. Escola de surdos no Brasil: entre ida e vindas


Voltando-nos para a situação no Brasil, podemos dizer que, por muito tempo, a
história da educação de surdos no país se confunde com a própria história do Instituto
Nacional de Educação de Surdos (INES) já que essa foi, durante quase um século, a
única escola especializada para esse público.
Antes de falar do passado do instituto buscamos apresentar um pouco do seu
presente. Situado em Laranjeiras, bairro da Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro, o
INES conta com diversos serviços para a comunidade surda como, por exemplo, um
colégio e um departamento de ensino superior.

Figura 2: Fachada do Instituto Nacional de Educação de Surdos na atualidade

O instituto foi fundado em 26 de setembro de 1857 pelo francês Ernest Huet,


que era surdo e ex-diretor do Instituto de Surdos de Bourges. Ao chegar ao Brasil, Huet
teve apoio do então imperador D. Pedro II e fundou o instituto que, ao longo da sua
história teve vários nomes. Conforme os documentos abaixo, se pode constatar que o
INES já foi denominado de Collegio Nacional para Surdos-Mudos de Ambos os Sexos e
Imperial Instituto para Surdos-Mudos de Ambos os Sexos, mas, desde 1867, de acordo
com o Decreto n. 4046 de 19 de dezembro daquele ano (BRASIL, 1867) até 1957, ou
41

seja, por quase um século, o instituto existiu sob o nome de Instituto Nacional de Surdos-
Mudos. Foi pela Lei nº 3.198, de 6 de julho de 1957 (BRASIL, 1957), que o Congresso
Nacional decretou que o Instituto Nacional de Educação de Surdos teria esse nome.

Figura 3: Documento de instituição do INES com Huet como diretor

Fonte: ROCHA, 2009

O INES teve sua primeira sede no Centro do Rio de Janeiro e contou com o
Marquês de Abrantes, então conselheiro de Estado, designado pelo imperador para
fiscalizar e orientar os rumos do instituto logo após sua criação por Huet. Ao
acompanhar seus primeiros passos, o INES já nasce calcado em apoio governamental
para que consiga existir e levar adiante seu projeto com o público surdo.
Vindo de uma tradição francesa de estudos relacionados à educação de surdos, o
estudioso francês propunha caminhos apoiados na língua de sinais; porém sua estadia no
país foi interrompida junto com essa empreitada em 1861, ocasionando um período de
crise do instituto, com ameaça de seu fechamento.
De acordo com o Decreto n. 4046, de 19 de dezembro de 1867 (BRASIL, 1867)
que aprova o regulamento provisório do Instituto dos Surdos-Mudos, em sua proposta
42

inicial, Huet4 apresenta como programa de ensino das seguintes disciplinas divididas nos
seguintes anos:
1º anno. - Articulação artificial, e leitura sobre os labios - Leitura -
escripta - as 4 especies - Doutrina Christã.
2º anno. - Leitura - escripta - arithmetica - Grammatica portugueza -
Historia Sagrada;
3º anno. - Portuguez - Arithmetica, pesos e medidas - Geometria
elementar e Desenho linear;
4º anno. - Arithmetica - Elementos de historia e geographia - Portuguez e
Francez;
5º anno. - Continuação da Historia e Geographia - Portuguez, Francez e
Escripturação Mercantil5

Havia também um complemento profissionalizante que para os meninos consistia


em curso de agricultura teórica e prática, enquanto para as meninas o curso era de costura.
A leitura labial era destinada apenas a alunos que tinham aptidão para tal habilidade, ou
seja, não tinha caráter obrigatório para todos os estudantes.
Após a passagem de mais dois diretores por curtos espaços de tempo, em 1868
assume Tobias Leite como o quarto diretor e, perpetua a série de lideranças do INES por
ouvintes, fato que perdurou até 20196. Huet, portanto, foi o primeiro diretor do instituto e
único surdo em 162 anos a ocupar o cargo, por pouco tempo, aproximadamente, cinco
anos.
Tobias Leite caracterizou o instituto como um local no qual ―não havia até aquela
data nenhuma lei orgânica ou regimento interno que discriminasse a rotina do trabalho
institucional. Era um refazer em novas bases.‖ (ROCHA, 2009, p.98). Para sanar tal
questão Tobias Leite decide fazer um diagnóstico dos alunos através de um exame que
serviu para verificar que os alunos matriculados no instituto naquele momento pouco
sabiam. É importante verificar quais as bases de formulação desse exame: quem o
elaborou, para quem ele foi elaborado, a fim de verificar quais conteúdos e quais seus
critérios de elaboração.
Como consequência dessa verificação, Tobias Leite atribuiu o pouco
conhecimento dos alunos surdos ao seu isolamento social. Portanto, como abordagem

4
O instituto contava, na verdade, com suas direções: uma para os meninos e outra para as meninas.
5
Optamos por manter a grafia da época.
6
Em 2019, assumiu a direção geral do INES Paulo André Bulhões, professor de libras e surdo, encerrando
essa sucessão de diretores ouvintes desde Huet. Vale ressaltar que nas eleições internas do Instituto a chapa
liderada Paulo André ficou em segundo lugar, porém foi nomeada pela Presidência da República, já que foi
enviada uma lista tríplice com as três chapas melhores colocadas na consulta à comunidade do INES,
contrariando a tradição de nomeação da chapa mais votada por docentes, técnicos e estudantes.
43

linguística, o INES, nesse momento, tendia para o ensino da escrita como forma de
socialização do sujeito surdo, assim como no Instituto de Paris, e recorria à oralização
apenas ao ―surdo-mudo acidental‖, ou seja, àquele de surdez adquirida.
Em 1881, Tobias Leite, alegando não haver obras de consulta para auxiliar o
professor em seu trabalho com o indivíduo surdo publica o ―Compêndio para o Ensio de
Surdos-Mudos‖. Nele, o ex-diretor do instituto desenvolve uma parte teórica e uma prática
para consulta dos docentes. Ao descrever o surdo congênito Tobias o faz como alguém
que: ―tem a face pallida, a physionomia morta, o olhar fixo, a caixa toráxica deprimida,
movimentos lentos e o caminhar tropego e oscillante, é excessivamente tímido e
desconfiado‖ (LEITE, 1881, p. VIII). Podemos ver, então, nessa caracterização do surdo, a
ideia de um indivíduo sem condições de interação social, apático. Estes eram vistos como
infelizes e idiotizados.
Outro caminho defendido e seguido pelo instituto, já desde a época de Huet, era o
de profissionalizar o aluno dentro de uma lógica sexista na qual ficava a cargo dos meninos
tarefas historicamente ligadas a esse gênero. As disciplinas eram divididas em conteúdo
literário, que compreendia matemática, língua portuguesa, história, geografia, e as de
conteúdo profissionalizante. É interessante notar que a educação profissional é um tema
que está presente desde o nascimento do instituto e se perpetua até os dias atuais, seja em
forma de parceria com outras instituições como o Serviço Nacional de Aprendizagem
Industrial (SENAI). Vale ressaltar também que há, atualmente no INES, uma Divisão de
Qualificação e Encaminhamento Profissional que oferece cursos como informática ou
matemática financeira. Nesse embate entram ideias de qual seria o papel do surdo na
sociedade, até onde ele pode chegar e como a escola pode e deve contribuir para esse
desenvolvimento e inserção social do sujeito surdo.
Nota-se, portanto, ao significar a surdez, uma construção dicotômica dos sujeitos
surdos entre os que nasceram surdos ou os que se tornaram após seu nascimento. Essas
construções já atravessavam as estratégias educativas para os estudantes do instituto entre
os que deveriam ter aulas de leitura labial dos que não tinham ―aptidão‖ para essa
atividade. No entanto, ambas as estratégias tinham a língua portuguesa como sua base, seja
na que se pautava pelo ensino através modalidade escrita da língua portuguesa, seja na que
buscava oralizar o aluno.
44

A ideia de uma língua que constitui uma identidade e cultura próprias ainda não é
reconhecida nesse momento no instituto de surdos. Ao comparar essa etapa com aquela em
que se viam os surdos como seres não capazes de adquirir uma língua e, por isso, não
humanos, podemos dizer que eles ainda não são vistos como surdos, senão como
deficientes que, com acesso à língua portuguesa, conseguirão integrar-se à sociedade.
Operamos com a ideia de surdo como um traço identitário que se constrói a partir de língua
e de cultura próprias.
Houve, ao longo da história do instituto, oscilações entre métodos oralistas e os de
ênfase na escrita que perduram até a década de 1950, quando Ana Rímoli assume a gestão
e implementa o projeto de aquisição da linguagem oral para todos, indiscriminadamente. É
possível que haja um diálogo com os discursos circulantes no Congresso de Milão de 1880
no qual se instituía a oralização como caminho na educação de surdos. A disciplina
chamada ―Linguagem Articulada‖, responsável pelo trabalho de oralização dos alunos
passou por inúmeros docentes enquanto, por outro lado, havia a disciplina de ―Linguagem
Escrita‖, abolida em 1911 pelo Decreto 9.198 (BRASIL, 1911) que determinava que o
método oral puro deveria ser adotado por todas as disciplinas. Ao descrever o curso de seis
anos de duração havia, no decreto: ―a) do ensino da linguagem articulada e leitura sobre os
labios, que será professado por quatro professores e quatro repetidores [...]‖ (BRASIL,
1911) ademais de afirmar que ―Art. 9º O methodo oral puro será adoptado no ensino de
todas as disciplinas‖.
No entanto, a disciplina de ―Linguagem Escrita‖ foi retomada no início do século
XX a partir do Decreto 6.892 (BRASIL, 1908), de 19 de março de 1908, baseado em um
relatório de Custódio Ferreira Martins, diretor do instituto por vinte e três anos, que dizia
que 60% dos alunos submetidos ao método oralista puro não chegaram a um nível
satisfatório. O INES, em 1930, passou a integrar o Ministério da Educação e Saúde,
revelando que as interfaces as filosofias educativas e concepções médicas eram mais
abrangentes que apenas na educação de surdos.
Vinte anos mais tarde, por volta de 1970, após uma visita da professora Ivete
Vasconcelos à Universidade de Gallaudet, é instaurado o método de Comunicação Total no
Brasil (LIMA, 2004, p. 27). Em virtude de análises que consideravam resultados pouco
expressivos com a educação de surdos através do oralismo e também influenciados por
movimentos educacionais nos EUA, o método de comunicação total ganha destaque no
45

Brasil na década de 1970. Uma evidência desse destaque é que a Lei de Diretrizes e Bases
de 1971 muda o nome do componente curricular ―Língua Portuguesa‖ para ―Comunicação
e Expressão‖. Privilegia-se, nesse momento, não mais o trabalho com uma determinada
língua em detrimento de outra, senão a função comunicativa da linguagem. Reconhece-se
que a oralização não estava sendo suficiente para o objetivo de comunicação entre surdos e
ouvintes e, ao invés de descartá-la, incorporam-se inúmeros recursos para que se consiga
constituir diálogo.
A partir dessa visão mais comunicativa desvia-se o foco do surdo como um
indivíduo da falta, da deficiência e o coloca mais como um sujeito que deseja, precisa,
pode se usar sua língua de outras maneiras que não a já estabelecida na comunidade
ouvinte.
Dessa forma, a língua de sinais voltou a ser permitida no ambiente escolar
(ROCHA, 2009), ainda que tenha seguido sendo utilizada em outros ambientes do
cotidiano dentro da comunidade surda, e coexistiu institucionalmente autorizada junto com
o oralismo. Ademais desses recursos já discutidos, havia também a leitura orofacial,
amplificação e alfabeto manual para fornecer input linguístico para estudantes surdos.
Priorizava-se mais o conforto linguístico do indivíduo do que qualquer imposição
metodológica.
Há detratores desse método que defendem que o oralismo seguiu predominante e
prioritário enquanto a língua de sinais, os gestos e os outros recursos eram apenas meios
para chegar à comunicação falada.

1.3. Em uma escola bilíngue: descobrindo caminhos

Atualmente, dentro dos estudos relacionados à surdez, o bilinguismo tem se


tornado central nas discussões da educação de surdos. A Política Nacional de Educação
Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (2008) caracteriza a educação do surdo
estando situada em um contexto bilíngue, tendo a libras como sua primeira língua (L1) e a
língua portuguesa escrita, sua segunda língua (L2). A partir dessa proposta bilíngue, a
oralização é oficialmente retirada de cena, porém, devido ao seu longo tempo de vigência,
46

segue presente nos discursos e nas práticas de educação de surdos, conforme será
explicitado mais adiante nas nossas análises.
Uma proposta bilíngue traz à tona os entendimentos do que é ser bilíngue.
Segundo Favorito (2006, p. 93), no que diz respeito a esse tema no contexto da surdez, há
dois modos como esse conceito vinha sendo entendido:
uma visão idealizada marcada pelos mitos do bilinguismo ideal,
bilinguismo completo e bilinguismo equilibrado em que o indivíduo
bilíngue é concebido de modo abstrato independente do contexto sócio
histórico de que participa; e uma outra vertente, sócio funcional, em que
o bilinguismo é examinado em correlação com fatores políticos,
econômicos e sócio interacionais.

Dentro de um contexto de educação de surdos, há inúmeras configurações que as


duas línguas podem assumir no processo de aprendizagem dos sujeitos. Por haver uma
maioria de surdos filhos de pais ouvintes, o contato com a libras ocorre, muitas vezes,
tardiamente. O processo de aprendizagem da língua portuguesa também costuma ocorrer
apenas em contexto escolar, nas mais diversas condições escolares que se possa encontrar
para um surdo estudar, seja na inclusão das escolas públicas, seja no INES, escola
especializada para o público surdo.
A partir dessa breve descrição de possíveis situações linguísticas de surdos, já é
possível colocar em discussão qual bilinguismo se busca na sua educação e como esse
objetivo deve e pode ser alcançado.
Ao contrario do ouvinte, o aluno surdo não chega à escola como um usuário da
língua portuguesa no seu dia a dia e, em muitos casos, nem mesmo da libras. No entanto,
diferentemente do ensino de língua estrangeira nas escolas (espanhol ou inglês, por
exemplo) o aluno surdo está imerso em um contexto em que a língua majoritária é a
portuguesa e há contextos sociais nos quais ele é confrontado com interações apenas nessa
língua.
Por conta de todos esses fatores, o que se pretende na educação de surdos deve ser
relativizado e visto a partir da construção sócio-histórica em que os sujeitos surdos estão
inscritos. Cada contexto deve ser visto, portanto, a partir das suas necessidades próprias e
pensado considerando as condições particulares da educação de surdos.
Para além da questão de a qual bilinguismo estamos referindo-nos, ao discutir
esse modelo de educação para o público surdo, é ingênuo pensar que a luta por uma escola
bilíngue para surdos seja uma disputa sem maiores conflitos.
47

Segundo Campello e Rezende (2014, p. 3) um dos marcos dessa luta ocorreu


durante a Conferência Nacional de Educação (CONAE) realizada em 2010, cujos
resultados serviram de base para a elaboração da meta 4 do Plano Nacional de Educação
(PNE), lei federal que determina diretrizes, metas e estratégias para a política educacional
para o período 2014-2024. Nessa conferência, a proposta dos delegados surdos, que dizia
respeito à criação de escolas bilíngues, não foi aprovada sob acusação de ser
segregacionista. A diretora de Políticas Educacionais Especiais (PEE) do MEC alegou que:
―A conferência é um espaço democrático e o resultado foi fruto do debate. A maioria da
plenária reconheceu que há um princípio da educação inclusiva a ser seguido e que votar
pela escola de surdos é ir contra esse princípio.‖ (FENEIS, 2010, p. 23).
Podemos notar aí uma disputa entre o discurso da inclusão contra um discurso que
trata o surdo como um sujeito constituído a partir de uma língua e que tem o direito de ser
educado nela. Mais adiante, no próximo capítulo, essa discussão em torno da dicotomia
inclusão versus escola especializada será mais aprofundada.
Houve, em 2011, uma visita da diretora de PEE do MEC ao INES para comunicar
seu fechamento, visto que não estava em linha com as políticas inclusivas propostas pelo
governo federal naquele momento. Esse fato provocou uma mobilização intensa da
comunidade surda que acabou denominando-se Movimento Surdo Brasileiro em Defesa
das Escolas Bilíngues. Essa mobilização teve seu ápice nos dias 19 e 20 de maior de 2011
com uma passeata em Brasília em prol da manutenção do INES e do Instituto Benjamin
Constant (IBC)7, também ameaçado de fechamento pelo mesmo motivo.
Vale ressaltar na história da educação de surdos no Brasil o papel da Federação
Nacional de Educação e Integração dos Deficientes Auditivos (FENEIDA), criada em 1977
e composta por ouvintes preocupados pela questão da surdez. Em 1987, com a primeira
diretora surda, Ana Regina Campello, a FENEIDA mudou seu nome para Federação
Nacional de Educação e Integração de Surdos (FENEIS). Essa entidade foi uma das
responsáveis pela mobilização em 2011, além de outras conquistas mais recentes da
comunidade surda como a possibilidade de os alunos surdos realizarem a prova do Exame
Nacional do Ensino Médio (ENEM) tanto em língua portuguesa quanto em libras, em
2017.

7
O Instituto Benjamin Constant é o centro de referência nacional na área da cegueira.
48

Diante desse panorama histórico sobre a educação de surdos, podemos perceber


que há muitos caminhos pelos quais essa disputa já percorreu. Ainda que haja discursos
que busquem fixar o bilinguismo como a maneira mais adequada de se educar o surdo na
atualidade, é importante entender os embates que subjazem aos enunciados que
buscaremos analisar para podermos levantar os interdiscursos que se apresentam.
Todas essas formas de compreender a educação de surdos, seja por meio do
entendimento do que é ser surdo, do que é libras, do que é bilinguismo, é atravessada pela
história que, ainda que se busque apresentar de maneira linear, se comporta mais como
uma rede em que os nós, os encontros, são mais frequentes e menos previsíveis.
49

2 VISÃO CLÍNICA CLÁSSICA VERSUS MINORIA LINGUÍSTICA

Neste capítulo, pretendemos problematizar possíveis subjetivações de surdo e


surdez à luz de uma dicotomia presente na história desse campo: minoria linguística vs
visão clínica clássica. Essas categorias já foram apresentadas com outras designações
dentro dos estudos relativos à surdez: modelo clínico terapêutico e o sócio-antropológico,
respectivamente (SKLIAR, 1997), a depender da linha teórica à qual se filie. Optamos por
construir uma linha de pensamentos baseado no contraponto desses dois conceitos, pois
como vimos no breve histórico do INES feito no capítulo anterior, há oscilações em como
se subjetiva o surdo e a sua educação dentro do instituto, ora como um sujeito com língua
própria que deve ser incluída no processo educacional, ora como um indivíduo da falta,
incompleto e que deve buscar sua completude através de procedimentos médicos a fim de
alcançar o padrão dos ouvintes. Dessa forma, os caminhos percorridos de idas e vindas
sobre o lugar da libras na educação de surdos estão relacionados aos sentidos atribuídos
aos próprios surdos no INES dada a importância dessa instituição no cenário da surdez no
país. Buscaremos, então, aprofundar a história curricular do Instituto Nacional de
Educação de Surdos evidenciando contrapor sentidos que tendem a significar os sujeitos
surdos como minorias linguísticas e aqueles que os significam a partir de uma visão
clínica, ou seja, adotam uma visão em que a surdez é tratada como uma deficiência
auditiva (SKLIAR, 1997).

2.1. Designações, palavras de ordem e identidade.

Dentro de uma perspectiva discursiva (DELEUZE; GUATTARI, 2011), o


aparentemente simples ato de nomear já nasce instituído de sentidos, escolhas,
50

atravessamentos e história que produzem efeitos concretos. Dar nome a qualquer evento ou
elemento que se apresente é, de certa forma, transformá-lo em um enunciado. Em uma
perspectiva dialógica, uma escolha feita (seja ela consciente, inconsciente ou uma
combinação de ambos) estão contidas todas as demais que ficaram de fora; isto é, seguir
um caminho traz consigo a escolha de não percorrer tantos outros com os quais dialoga.
Operamos, portanto, com a ideia de que as palavras, postas em situações concretas de
interação, trazem consigo sentidos que permitem estabelecer relações de poder e de
produção de realidade (DELEUZE; GUATTARI, 2011).
Cada enunciar, portanto, também está contaminado, impregnado com as
subjetividades de sua inscrição sócio-histórica. As condições sociais são parte fundamental
da sustentação de determinado enunciado e, por isso, imprescindível sua compreensão para
que se entenda tal enunciado.
Dessa forma, não nos interessa a visão do mundo como algo dado, uma realidade
posta em que os indivíduos apenas reconhecem e descrevem o que se vê. O real é versão, o
dado é construído e tudo é feito através da palavra. E, partindo desse princípio, o ato de
nomear ganha outros contornos e precisa ser investigado a partir desse olhar.
Apoiamo-nos nas ideias de Deleuze e Guattari (2011) sobre o tema quando
avançam um pouco mais nessa discussão e tratam da palavra não só como produtora de
realidade, mas como palavra de ordem. Os autores fazem uma discussão desconstruindo
alguns postulados da linguística estruturalista e um deles é que a linguagem seria
informativa e comunicativa. Trazem para a discussão a dimensão política da linguagem e
dizem que: ―A linguagem não é mesmo feita para que se acredite nela, mas para obedecer e
fazer obedecer‖ (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 12).
Um dos entendimentos que sustentam essa ideia, a da linguagem como palavra de
ordem, trazemos do Círculo de Bakhtin (BAKHTIN, 2003; VOLÓCHINOV, 2017) que é o
de que, ao enunciar, estamos, invariavelmente, referindo-nos a outros enunciados, ou seja,
evocamos outros sujeitos. O caráter heterogêneo do discurso faz com que sejamos, em
certa medida, implicados com os dizeres que antecedem aquele meu dizer. Nas palavras de
Deleuze e Guattari (2011, p. 13),
Se a linguagem parece supor a linguagem, se não se pode fixar um ponto
de partida não linguístico, é porque a linguagem não é estabelecida entre
algo visto (ou sentido) e algo dito, mas vai sempre de um dizer a um
dizer. Não acreditamos, a esse respeito, que a narrativa consista em
51

comunicar o que se viu, mas em transmitir o que se ouviu, o que um outro


disse. Ouvir dizer.

Nessa linha, dentro de um fluxo de sentidos que acaba por dizer um outro dizer
que, por sua vez, remete-se a outro dizer, que operamos dentro da lógica da linguagem
descolada da ideia de transmissão de informação, simplesmente. A linguagem está atrelada
a uma inscrição sócio-histórica (BAKHTIN, 2003; VOLÓCHINOV, 2017) que carrega
consigo sentidos prévios e que atribuem essa força de ordem. Nessa sucessão de discursos
indiretos que remontam a tempos impossíveis de resgatar completamente é que nos
sujeitamos e subjetivamos, em alguma medida, ou que já compõe nosso dizer. Com isso,
captar uma informação e transmiti-la, dentro dessa ótica, não é um ato desinvestido de toda
essa carga histórico-social e discursiva que cada enunciado carrega.
Esses sentidos sobre os quais nos referimos são atualizados e ressignificados a
cada enunciar e seus entendimentos entram em disputa a todo o momento, estando sujeitos
a fatores diversos que contribuem para que se fixem em um ou outro ponto. Um dos
sentidos construídos através de enunciados e que será importante para as discussões
levantadas nessa tese é o de identidade. Ao pensar nas diferentes formas de constituir e
nomear o sujeito surdo, discutiremos processos de identificação desse público ao longo do
tempo.
Primeiramente, é importante localizar a discussão da identidade dentro das
perspectivas pós-estruturalistas dos estudos culturais (HALL, 1997; SILVA, 1999;
WOODWARD, 2000) e estabelecer uma distinção entre a essencialização identitária na
forma de identidades mestras e uma pluralização infinita de pertencimentos. O primeiro
entendimento trata da identidade como um processo fechado e estático, ou seja, o
indivíduo traz consigo uma essência imutável, própria e individual. É como se houvesse
identidades prévias ao sujeito e caberia ao indivíduo a tarefa de se encaixar nessas
identidades disponíveis.
Caminhamos para uma compreensão de identidade mais voltada para algo
contínuo, dinâmico e permeável ao entorno. Com isso, preferimos inclusive operar com o
termo processos identitários exatamente para caracterizá-lo como algo sempre inacabado e
passível de ressignificações permanentes. Hall (1997, p.108) caracteriza essa concepção
como uma que:
Aceita que as identidades não são nunca unificadas; que elas são, na
modernidade tardia, cada vez mais fragmentadas e fraturadas; que elas
52

não são nunca, singulares, mas multiplamente construídas ao longo de


discursos, práticas e posições que podem se cruzar ou ser antagônicos. As
identidades estão sujeitas a uma historicização radical, estando em
constante processo de mudança e transformação.

O autor, portanto, afirma que as identidades se constroem a partir de múltiplos


enunciados, práticas, posições e são fragmentadas no sentido de que não se encaixam em
uma concepção predeterminada. Tratamos aqui da identidade surda, mas é importante
destacar que essa não é uma caracterização única e estática. Assim como não imobilizamos
os sentidos do que é ser um ouvinte não podemos fazê-lo com o sentido do que é ser surdo.
Vamos ao encontro do pensamento de Hall (1997) quando olhamos para o processo de
identificação como algo que ocorre em camadas diversas que se sobrepõem e se
influenciam. Os processos de identificação são múltiplos e não estão desarticulados entre
si.
Além disso, o sujeito se constitui a partir de diversos processos de identificação
múltiplos como, por exemplo, um surdo ou surda que também é negro ou negra. Ou um
surdo ou surda que também é homossexual. Ou um surdo que é negro e homossexual. São
fatias do construto social que podem ser traçadas de maneira interminável direcionada a
cada indivíduo. Acreditamos, portanto que todas essas configurações identitárias vão
contribuir para a constituição do sujeito e sua relação com o mundo. No caso do surdo
negro, por exemplo, estamos tratando de duas situações minorizadas em que há processos
de luta por direitos e preconceitos a serem combatidos. Não é possível, então, o sujeito
viver sua surdez sem que ela esteja atrelada à sua cor de pele assim como o inverso
também não é possível.
É importante ressaltar que, no caso do surdo, seus processos de construção
identitários passam pelo uso de uma língua completamente diferente daquelas usadas pelo
grupo que o opõe, os ouvintes. O mesmo não acontece com negros, homossexuais ou cegos
e tantas outras minorias que poderíamos citar8. Dessa forma, o caso que tratamos aqui
ganha contornos próprios na construção de identidades já que acreditamos que a língua é,
em si, um fator crucial para a identidade dos sujeitos.

8
É importante destacar as questões de variação linguística presentes dentro dos contextos específico s. As
comunidades linguísticas se constituem também a partir da sua produção linguística e ela varia dentro de
cada agrupamento. No entanto, o caso dos surdos é diferente, pois estamos falando de duas línguas diferentes
e não de variações de uma mesma.
53

Aprofundando mais nossos entendimentos dos processos identitários, o


entendemos como processo de construção a partir de sistemas simbólicos e práticas de
significação, isto é, processo sempre contingencial, um constante porvir. As contingências
provenientes das diversas formas pelas quais o sujeito é interpelado movimentam a
construção de identidades e se subjugam aos sistemas sociais em que estão inseridos em
determinado contexto.
Assim, é possível considerar que algumas identidades tenham ganhado destaque
em determinado período histórico e entrado em colapso em outro. Interessa-nos identificar
os processos discursivos sociais que sustentam esses deslocamentos. O entendimento do
que seria uma ―identidade brasileira‖, por exemplo, envolve muito mais do que questões
legais e burocráticas como passaporte e nacionalidade, assim como a identidade surda está
para além de números checáveis em algum exame audiométrico.
Acrescentamos que não é possível abordar a questões dos processos identitários
sem mencionar seu caráter relacional (WOODWARD, 2000) e a discussão sobre a
diferença, principalmente tratando-se de uma situação de minoria como a dos surdos.
Retomando os exemplos citados, para que se sustente a ideia da identidade brasileira é
preciso que a relacione com a argentina, colombiana, inglesa etc. A identidade é construída
e marcada pela diferença e esta é sustentada, também, pela exclusão. Da mesma forma, há
um exterior constitutivo da identidade surda que passa pela identidade ouvinte ou a
negação desta. Para se reconhecer como surdo ou para que outros o reconheçam é preciso
que haja o contraponto que pode ser polarizado com o do ouvinte, porém é construído a
partir de um emaranhado de outros conceitos e contrapontos, reforçando a ideia da
multiplicidade de identidades em cada sujeito.
Esses processos de construção identitária ocorrem a partir de disputas de sentidos,
negociações simbólicas que buscam fixar entendimentos a fim de hegemonizá-los até que
outros arranjos se estabeleçam. Com isso, é preciso considerar as relações de poder
inerentes aos enunciados dentro do cenário que estamos analisando e como essa dinâmica
se desloca e movimenta a construção de identidades.
Discutiremos, a seguir, dois dentre os caminhos possíveis na construção de
identidade surda e nas práticas de significação nesse campo de atuação. Dessa forma,
levantaremos discussões sobre formas de entender o surdo a partir de duas grades de
54

sentidos distintas e como elas se relacionam entre si. São elas: a visão de minoria
linguística da surdez e a visão clínica clássica desse grupo.

2.2. Minoria Linguística

As discussões sobre minoria linguística, geralmente, se inscrevem dentro do


grande tema da política linguística. Iniciaremos esta seção contextualizando um pouco esse
campo e estabelecendo alguns entendimentos com os quais pretendemos operar.
A problematização sobre política linguística já começa na própria forma de
nomear o campo. Além de política linguística, termos como planejamento linguístico,
engenharia linguística e tratamento linguístico costumam ser usados para tratar da
dimensão política da língua. Quando surgiram os estudos, em meados da década de 1960,
estes se voltavam para a ―resolução de problemas linguísticos‖ (RIBEIRO DA SILVA,
2014), mais especificamente, contextos multilíngues que se evidenciavam a partir da
descolonização de partes da África e da Ásia. A enorme diversidade, tanto étnico-racial
quanto linguística, era vista como um obstáculo a ser superado e os cientistas da
linguagem, a partir de seus estudos, teriam as respostas para solucioná-lo.
É importante ressaltar que grande parte dos estudos que abordam o contato
linguístico e a questão de línguas minorizadas trabalha a relação de duas ou mais línguas
orais-auditivas, isto é, línguas de mesma modalidade
Os primeiros estudos foram surgindo na Europa e a proposta europeia para a
realidade desses continentes era de ―modernizar‖ algumas línguas locais caso não fosse
avaliado que impor umas das línguas de seus países era a melhor solução. A lógica de
pensamento da época pode ser ilustrada no trecho de uma publicação de 1974, chamada
Avanços em Planejamento Linguístico, de Fishman (1974, p.25-26):
[...] obviamente, a língua vem sendo planejada, de uma forma ou de
outra, há muito tempo [...]. Também obviamente, ela, algumas vezes, foi
planejada com considerável sucesso. Por fim, está claro que a língua
continuará sendo planejada no futuro, tanto em conexão com o cultivo de
uma língua previamente modernizada, quanto em conexão com a
modernização de línguas até então utilizadas apenas para atividades
tradicionais. Assim, a questão a ser enfrentada no futuro não é se a língua
deve ou pode ser planejada (visto que obviamente ela será planejada por
aqueles propensos a fazê-lo em função do desenvolvimento social com o
qual esse tipo de planejamento sempre está inter-relacionado), mas, sim,
55

como fazer isso mais efetivamente, em conexão com critérios de sucesso


pré-estabelecidos.

Na citação, é possível perceber uma ideia de língua como um instrumento. Dentro


da nossa perspectiva teórica, não só questionamos essa premissa, como também a própria
ideia do que seria o sucesso da língua ou de uma intervenção na língua. Subjaz também à
fala de Fishman (1974) a ideia de que é possível controlar as línguas, direcioná-las em
certo sentido, manipulá-las a partir de um plano previamente acordado com estratégias de
intervenção e possibilidade de aferir posteriormente os resultados das ações tomadas.
Também é possível refletir a partir da citação sobre a relação estabelecida entre
língua e poder, entre o potencial dominador que a língua tem no contato entre povos.
Ainda na formação dos Estados-Nação da Europa e as relações estabelecidas entre eles,
podemos destacar na introdução da primeira gramática de uma língua diferente das duas
línguas clássicas, a de língua castelhana, de Antonio Nebrija (1942) na qual o autor
justifica a existência da gramática (GNERRE, 2009). A necessidade da sistematização
gramatical era a de ―difusão da língua entre os bárbaros‖, isto é, ter na língua um elemento
de expansão de poder e de influência. Assim como Fernão de Oliveira, em 1536, na
introdução de sua Grammática da Lingoagem Portuguesa revelava seus objetivos de
expansão da língua entre os povos e terras conquistadas. Cinquenta anos mais tarde, essa
visão se aprofundou ainda mais quando João de Barros em Diálogo em louvor da nossa
linguagem atesta o poder perpétuo da dominação através da língua: ―as armas e padrões
portugueses [...] materiais são e pode-os o tempo gastar, pero não gastará a doutrina, os
costumes e a linguagem que os Portugueses nestas terras deixaram‖ (HUE, 2007, p. 88).
Percebemos, então que há uma consciência de que a dominação armada tem previsão de
término enquanto a que se dá pela língua se mantém muito além. É a língua atravessando e
constituindo cultura, pensamentos e identidade.
No entanto, é importante ressaltar que, ao longo da história houve ressignificações
em um fluxo contínuo nos estudos sobre planejamento linguístico que são afetados pelas
transformações nos entendimentos de língua vigentes em determinadas épocas. Dessa
forma, começa-se a considerar o indivíduo falante da língua. Então, entram na discussão os
processos de identificação dos usuários com a determinada língua e como essa
identificação passa por como a língua desempenha determinadas funções de acordo com
cada sociedade.
56

Segundo Calvet (1996), a interferência política se dá a partir do momento em que


se define uma situação linguística qualquer e se decide que se quer alterar para uma
situação linguística outra. O caminho percorrido entre as situações se baseia em um
―planejamento linguístico‖ que, depois de aplicado, altera a determinada língua. Dentre as
possibilidades de intervir em uma língua, Calvet (1996) elenca: escrita, léxico e
padronização. Notamos ainda uma ideia de controle da língua e seguimos o
questionamento desse modelo descrito pelo autor, pois se defende que o próprio
planejamento se dá pela língua, ou seja, pelos enunciados sobre os quais não temos
controle; portanto, não é possível ter controle sobre o resultado do que foi planejado.
Nosso entendimento de política linguística vai de encontro aos inicialmente
explicitados pela área e, por isso, filiamo-nos com as discussões que preferem o termo
glotopolítica (GUESPIN; MARCELLESI, 1986, p.5) aos sintagmas ―política linguística‖
ou ―planejamento linguístico‖. De forma mais abrangente, o termo glotopolítica ―engloba
todos os fatos de linguagem em que a ação da sociedade reveste a forma do político‖
(GUESPIN; MARCELLESI, 1986, p.5).
Sendo assim, entendemos mais as relações de língua e poder pelo viés da
glotopolítica e defendemos a ideia de que as inter-relações estabelecidas por situações
enunciativas são incontroláveis e resultantes de um emaranhado de conexões contextuais.
Antes de deter-nos em questões voltadas à minoria linguística propriamente dita, é
preciso retomar, brevemente, nosso entendimento de língua, como são determinadas,
formadas e os mecanismos que as fazem existir no mundo.
Ainda que as línguas do mundo possam parecer elementos da ordem do natural,
com sua existência vinculada à própria existência do homem, operamos com a ideia de que
são construtos sociais e, logo, objetos de disputas constantes de poder (FOUCAULT,
2011). Não nos referimos à existência da língua, qualquer que seja, tampouco aos
processos de aquisição da linguagem, mas à existência de línguas propriamente ditas, suas
nomeações, delimitações, alcances e fronteiras. Estas estão atreladas a processos sócio-
históricos que se relacionam a contextos de poder e que se estabelecem a partir de
inúmeras e inapreensíveis variáveis. De acordo com Makoni e Meinhof (2006, p.193):
[...] uma língua é uma invenção, uma invenção, exatamente como outras
categorias, ―tempo‖, por exemplo. Ao falar do tempo como construção,
não se contesta o fato geográfico de que a terra gira em torno de um eixo,
mas isso implica dizer que a significação do tempo tem uma base social e
variável. De modo similar, o que é socialmente construído nas línguas é
57

―uma língua‖ e não uma categoria natural, ―língua‖. É importante


distinguir entre aspectos ―naturais‖ sobre a língua daqueles que são
resultados de intervenções culturais. Uma capacidade para a ―linguagem‖
é natural aos humanos, mas as ―línguas‖ são um produto de intervenções
sociais e históricas.

Dessa forma, ao caracterizar a língua como um objeto, algo da ordem das criações
do homem pelo discurso, é possível também pensá-las como algo que se transforma a
partir do momento que os discursos se transformam. Abandonamos, então, a ideia de
língua como um dado da natureza que deve ser estudado, descoberto, analisado, mas como
algo que nós criamos, mudamos, construímos e hierarquizamos.
Dessa forma, corroboramos a fala de Calvet (1996, p.62) que diz que: ―na
realidade, todas as línguas não podem cumprir, igualmente, as mesmas funções‖. Dentro de
um contexto no qual há duas ou mais línguas em coexistência, há atribuições de status
diferentes para cada uma delas de maneira geral e, em particular, para cada indivíduo.
Dentro do campo das políticas linguísticas há a área de planejamento de status que
compreende, por exemplo, alguns status que as línguas podem exercer como língua
nacional, oficial, de trabalho, cooficial, oficial no âmbito municipal, língua de ensino (nos
diferentes níveis escolares), língua com funções jurídicas, línguas artísticas, religiosas,
científicas, tecnológicas, línguas de comunicação de massa, línguas literárias, línguas
proibidas etc. Essas designações não possuem caráter técnico científico, senão político e as
relações entre as línguas são dinâmicas e sustentadas pelos discursos que circulam nos
contextos nos quais elas existem. Portanto, entendemos que a simples mudança de status
de uma língua (oficializando-a, por exemplo) não é, necessariamente, uma mudança nas
práticas legitimadores que interferem na sua hierarquização em relação às outras línguas
que coexistem em determinado contexto.
Com efeito, é possível falar na condição minoritária de línguas (ARACIL, 1983),
ou seja, uma condição que ―não está relacionada simplesmente com aspectos numéricos ou
quantitativos, mas fundamentalmente qualitativos‖ (LAGARES, 2011, p. 170). Portanto,
para diferenciar as ideias de quantitativo e qualitativo optamos por usar o termo
minorizada para caracterizar uma língua que não conta com o mesmo reconhecimento
político-social em uma comunidade humana em um momento histórico concreto quando
comparadas à língua com a qual disputa.
58

A fim de esclarecer a ideia por trás da diferenciação entre minoritário e


minorizado, Bagno (2017) exemplifica a partir da situação racial do Brasil. O autor explica
que a população não branca no país é majoritária, ou seja, numericamente maior, no
entanto é minorizada, pois não tem acesso aos bens sociais e direitos da mesma forma que
a população dita branca. Voltando ao caso das línguas, também pode acontecer de haver
línguas majoritárias que são minorizadas, pois, embora usadas pela maioria das respectivas
populações, não gozam de estatuto de oficialidade ou legalidade. No caso do Paraguai, por
exemplo, a língua guarani há centenas de anos é a mais usada pela população do país, mas
nem sempre teve o mesmo prestígio da língua espanhola (ZUCCOLILLO, 2000). Nas
escolas, por exemplo, apenas em 1994 com o Programa Nacional de Educação Bilíngue
que a alfabetização começou a ser trabalhada em ambas as línguas. Anteriormente era
apenas em língua espanhola, isto é, conferindo um prestígio maior para a língua do
colonizador.
Atribui-se à língua a condição minorizada, pois se opõe a ela uma língua
majoritária, não necessariamente em termos numéricos, mas em questões de status. Ainda
de acordo com Lagares (2011, p.170), na relação entre língua minorizada e majoritária:
―todas as relações comunicativas entre a comunidade minorizada e o resto da humanidade
passam necessariamente através da língua hegemônica, astro de uma constelação que tem
as línguas sob seu domínio como satélites‖. No caso da libras, portanto, as relações
comunicativas dos seus usuários passam pela língua portuguesa, a língua majoritária nesse
caso. Em geral, e não apenas no Brasil, as línguas de sinais são minoritárias e minorizadas
em relação às línguas de modalidade oral às quais se opõem. No Brasil, essa relação se
materializa na legislação em que se encontram duas línguas com status de oficialidade
distintos, como será abordado mais adiante no capítulo 3.
Como já ressaltamos anteriormente, esses estudos de políticas linguística,
principalmente os estudos que tratam do contato entre línguas se centram em na relação de
duas ou mais línguas orais-auditivas, isto é, línguas de mesma modalidade. Isso permite ou
contribui para a existência de alguns fenômenos provocados por esse contato como
language shift, code-switching, empréstimos, interferências etc. Os estudos de Aracil
(1983) mencionados acima, por exemplo, tratavam da situação de contato de línguas orais-
auditivas na Espanha.
59

No entanto, tratamos nesta tese da relação entre línguas de modalidades distintas,


isto é, oral-auditiva e espaço-visual. Acreditamos, inclusive, que a relação entre línguas
orais-auditivas e espaço-visuais será sempre estabelecida a partir de uma lógica de
privilégio da primeira em detrimento da segunda, não importa quais as línguas estão em
disputa Por isso, abordaremos algumas particularidades ao pensar nas imbricações
estabelecidas no contato das línguas e, por conseguinte dos sujeitos, culturas e identidades.
Constatamos que a libras se encontra em uma condição minoritária dentro do
contexto brasileiro atual, enquanto a língua portuguesa é a língua majoritária que se opõe.
Nessa relação, os contextos de uso e os usuários da libras também adquirem esse status
minorizado e, por muitas vezes, é levado a recorrer à língua portuguesa para dar
legitimidade a seus textos, ideias, pensamentos. De acordo com Calaforra (2003, p. 4):
O uso da língua minoritária não dá acesso a maior capital simbólico e
material, e muitas vezes inibe a capacidade de obtê-los. Por não
desempenhar as funções de discriminação e integração nessas línguas, o
poder de regular o uso linguístico (isto é, de ordenar e impedir) é
reservado à língua dominante.

O autor, portanto, reforça a relação entre língua e poder que vimos defendendo até
aqui. As práticas discursivas permitidas e legitimadas através de uma língua majoritária
diferem daquelas possíveis com uma língua minorizada. Por exemplo, dentro do âmbito
acadêmico, ainda é uma luta para que surdos possam apresentar dissertações e teses em
libras e não em língua portuguesa.
Uma comunidade linguística pode ser considerada minorizada, de acordo com
Guillem Calaforra (2003), no momento em que possui, principalmente, três características:
(a) normas sociais restritivas em relação ao próprio uso – isto é, essa língua não se pode
usar em determinados âmbitos – contra as normas de amplo uso características da língua
dominante; (b) bilinguismo unilateral dos membros dessa comunidade, isto é, falantes da
língua minoritária têm em seu repertório a língua própria e a dominante, enquanto que os
falantes dessa última tendem a ser falantes monolíngues; (c) transformação da comunidade
linguística minorizada, como resultado da situação acima, em um subconjunto da
dominante. Os membros da comunidade minorizada tendem a apresentar-se como parte da
comunidade dominante, e assim são percebidos pelo resto do mundo (CALAFORRA,
2003, p. 2).
60

Dessas três características apresentadas por Calaforra pode-se pensar que, na


primeira, a libras possui diversas restrições de uso, inclusive em âmbitos nos quais o
decreto 5.626/2005, que regulamente a lei de libras e será melhor detalhada no próximo
capítulo, já obriga que ela esteja presente como universidades públicas e outros órgãos de
atendimento ao público, como bancos e hospitais. Já os segundo e terceiro aspectos
levantados pelo autor são possíveis de identificar no próprio processo, nem sempre restrito
ao passado, de oralização dos surdos e o uso forçoso da língua dominante sobre os usuários
da libras, reforçando a ideia de que apenas a língua minorizada não é suficiente para as
interações sociais necessárias para viver em comunidade.
Os sujeitos que estão nessa condição, no nosso caso, os surdos, de acordo com
Aracil (1983), constroem sentidos para suas vidas em um lugar intermediário, de
―interposição‖. O problema de uma pesquisa linguística no contato de línguas é o de
compreender as dinâmicas e os poderes implicados nessa relação que está ―entre‖. Por
interposição, Aracil (1983) entende que o típico da situação de minoria é o fato de que
(quase) todas as relações entre a comunidade linguística de uma determinada língua e o
resto da humanidade passam por outra. Assim, a relação entre língua majoritária e
minorizada seria uma relação de negociação de sentidos constante entre mundos culturais
diferentes.
Desse modo, o bilinguismo dos surdos brasileiros constitui uma situação em que
grande parte da comunidade tem um alto grau de identificação com a libras e a utiliza
cotidianamente no encontro surdo-surdo, ou surdo-ouvinte bilíngue. Por sua manifestação
se dar por signos visuais (e não orais-auditivos, como na grande maioria das línguas
naturais), implica uma constituição de sentidos sobre o mundo diferenciada, criando uma
cultura visual (com produções na arte, na literatura, no humor, na vida social e
esportiva) com impactos que assemelham os surdos a outros grupos étnicos que utilizam
línguas minoritárias e minorizadas que também acabam por ter sua experiência do mundo
diferenciada (como os indígenas, por exemplo). A despeito dessa identificação com sua
língua de conforto, o português é a língua oficial do país, pela qual se realizam as
interações sociais básicas na maior parte das localidades brasileiras, desde a família, à
escola e o trabalho. Isso impõe a necessidade do uso social do português em ambientes
formais, que assume o status de segunda língua para os surdos brasileiros, obrigatório no
processo de escolarização dos surdos, como é refletido nos currículos de escolas voltadas
61

para esse público. Essa situação caracteriza formalmente a condição bilíngue dos surdos
brasileiros.
Essa hegemonia da língua oral sobre a de sinais reflete-se na própria forma de
caracterizar a libras nos meios de comunicação. Reportagens da grande mídia que trazem a
inserção da libras em algum âmbito social, muito frequentemente, a tratam como
linguagem de sinais e não como língua. A esse tratamento subjaz uma ideia de
diferenciação da língua oral com a língua sinais. Marca-se o sentido de que ambas não
estão no mesmo patamar e que uma seria língua, enquanto a outra, linguagem.
Outro fator que nos leva a construir a ideia da libras como língua minorizada é
seu próprio histórico recente de luta por reconhecimento legal e social. Dentro do país,
segundo Fernandes e Moreira (2014) os anos noventa foram um marco do surgimento de
movimentos surdos. Esses movimentos buscavam, principalmente, o reconhecimento da
libras como língua, opondo-se à ideia de um conjunto de gestos ou mímicas que se pode
ver até hoje em certos contextos.
Apenas após esse reconhecimento como língua é que se pode começar a discutir
identidade, cultura e, inclusive a condição minorizada da libras em relação a outras línguas
orais-auditivas. Assim, foi possível, inclusive, voltar-se para a situação de bilinguismo
vivida pelos surdos no país.
Voltando-nos à educação de surdos, buscamos as contribuições de Fernandes e
Moreira (2014) que advertem para
o modelo assimilacionista que caracteriza a educação bilíngue dos
surdos brasileiros, tendo em vista que o sistema educacional conduz a
um monolinguismo, ou a um limitado bilinguismo, em que a língua de
sinais tem sido sistematicamente negada como principal meio de
comunicação e de acesso ao conhecimento, em direção a práticas
linguístico-culturais que têm no português sua referência mais
significativa. Fruto desse "bilinguismo incipiente", a educação
linguística das crianças surdas não constrói referências de
identificação culturais positivas e o precário aprendizado da língua
portuguesa como segunda língua tem contribuído para a
marginalização e a exclusão dos estudantes. (p. 3).

Por modelo assimilacionista, entende-se a imersão de um aluno em um ambiente


monolíngue que o obrigaria a, por assimilação, aprender essa nova língua com a qual está
em contato. A preocupação das autoras, portanto, está na imersão de alunos em ambientes
de uso exclusivo de língua portuguesa deixando de lado as práticas linguísticas em libras.
62

Há inúmeras políticas linguísticas sendo praticadas para línguas consideradas em


condição minorizada pelo mundo. Dentre essas políticas, há as ações que envolvem a
educação. Buscaremos explorar, nos capítulos 3 e 4, dentro da situação da libras no Brasil
quais as possibilidade e ações sendo realizadas na educação no que tange à língua de
sinais.
Na próxima seção buscamos compreender a caracterização dos surdos não mais
como sujeitos forjados da língua e na língua, mais especificamente numa situação
minorizada, senão indivíduos que devem ser vistos a partir da sua condição clínica, a partir
de parâmetros médicos.

2.3. Visão Clínica Clássica

É possível verificar a legitimidade do discurso médico como ciência exata na


sociedade, em geral, e na educação, em particular. Como consequências disso, construiu-se
um ideal de saúde que traz, a reboque, a medicalização daqueles que não o atendem. E o
direito de determinar quem atende a esse ideal ou não é dado aos profissionais de saúde
que, apoiados em uma lógica de cientificidade positivista legitimada e ainda vigente nos
tempos atuais, distribui laudos, determina formas de conduta e prescreve procedimentos
corretivos. Em uma busca cada vez maior de explicar um propagado fracasso da escola e
os culpados para tal problema, na educação, mais especificamente, verifica-se o
surgimento de uma nomenclatura cada vez mais extensa para diagnosticar crianças e
adolescentes. Alguns exemplos são o TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção com
Hiperatividade), TA (Transtornos de Aprendizagem), TEA (Transtorno do Espectro
Autista), TGD (Transtornos Globais do Desenvolvimento), variados graus de dislexia, e de
discalculia. É importante destacar que não estamos fazendo juízos de valor sobre os
diagnósticos citados, apenas constatando sua existência e seus desdobramentos ao associar
essa questão com a aprendizagem de crianças e jovens.
Ainda que os termos tenham ganhado destaque mais recentemente, essa não é
uma discussão necessariamente nova. Destacamos, por exemplo, as contribuições trazidas
por Canguilhem em O normal e o patológico (2007) em que o autor questiona exatamente
a objetividade da determinação do que seria a patologia. Ele argumenta que uma minoria
63

que desvia do grupo maior não seria o suficiente para determinar a condição de
anormalidade ou normalidade. É importante para qualquer tipo de análise, segundo
Canguilhem, atrelar essas características às possibilidades fisiológicas e contextuais do
indivíduo já que, antes da doença, existe o doente e buscar compreender sua situação é
imprescindível para diagnosticá-lo.
Para o autor (CANGUILHEM, 2007, p. 145), o patológico é uma ―norma que não
tolera nenhum desvio das condições na qual é válida, pois é incapaz de se tornar outra
norma‖. A patologia, portanto, reside na incapacidade de uma determinada condição de
tornar-se hegemônica o suficiente a ponto de ser vista como o padrão. O normal é aquele
que atende aos preceitos fixados em determinado contexto social.
Dessa forma, esses preceitos são construídos discursivamente e podem ser
reestabelecidos a qualquer momento, pois são sentidos que estão em constante disputa.
Foucault em História da Loucura (1972) nos mostra como o ideal da loucura foi sendo
ressignificado ao longo dos tempos assim como as possibilidades de tratamento como o
isolamento, o confinamento e o convívio social:
A internação é uma criação institucional própria ao século XVII. Ela
assumiu, desde o início, uma amplitude que não lhe permite uma
comparação com a prisão tal como esta era praticada na Idade Média.
Como medida econômica e precaução social, ela tem valor de invenção.
Mas na história do desatino, ela designa um evento decisivo: o momento
em que a loucura é percebida no horizonte social da pobreza, da
incapacidade para o trabalho, da impossibilidade de integrar-se no grupo;
o momento em que começa a inserir-se no texto dos problemas da cidade.
As novas significações atribuídas à pobreza, a importância dada à
obrigação do trabalho e todos os valores éticos a ele ligados determinam
a experiência que se faz da loucura e modificam-lhe o sentido.
(FOUCAULT, 1972, p. 78).

A patologia, portanto, não está dada, ela não existe anteriormente à sua análise
dentro de uma situação social real e somente é possível caracterizá-la ―nos meios próprios
do homem, que este seja, em momentos diferentes, normal ou anormal‖ (CANGUILHEM,
2007, p.162). Assim como nas palavras de Foucault, a loucura foi ganhando forma de
patologia que impossibilitaria o indivíduo de trabalhar, agir socialmente e estaria fadado à
pobreza.
No caso que estamos tratando nesta tese, destacamos que uma maneira de olhar
para o surdo é a partir da visão clínica clássica que, como o próprio nome já diz, está
atrelada à medicalização desse grupo de pessoas. Sob essa ótica, olha-se para o surdo a
64

partir da sua falta, do que pode ser corrigido sobre sua surdez. Subjaz a esse entendimento
uma acepção cartesiana do corpo humano, visto como uma máquina que deve ser corrigida
ao apresentar qualquer defeito. O corpo, portanto, não estaria inscrito no tempo e no
espaço, e apresentaria constantes comuns independentemente dos fatores sociais.
A audição, portanto, é considerada característica a ser alcançada e o meio para que
se chegue a isso são interferências médicas, às vezes até cirúrgicas, a fim de igualar um
surdo a um ouvinte. Nesse modelo o surdo é
[...] considerado uma pessoa que não ouve e, portanto, não fala. É
definido por suas características negativas; a educação se converte em
terapêutica, o objetivo do currículo escolar é dar ao sujeito o que lhe
falta: a audição, e seu derivado: a fala. Os surdos são considerados
doentes reabilitáveis e as tentativas pedagógicas são unicamente práticas
reabilitatórias derivadas do diagnóstico médico cujo fim é unicamente a
ortopedia da fala (SKLIAR, 1997, p.113).

Nessa caracterização da surdez pela área médica, criaram-se inúmeras categorias e


designações para esse grupo. Estes podem ser descritos a partir das causas, tipos, graus,
momento de aparecimento, lateralidade, simetria, natureza do problema, dentre outros. A
categorização de acordo com a causa se subdivide em oito: ―perda auditiva relacionada à
idade, perda auditiva induzida por ruídos (PAIR), surdez congênita, perda auditiva causada
por infecções, perda auditiva causada por alterações na tireoide, perda auditiva relacionada
a medicamentos, perda auditiva causada por perfuração de tímpano, perda auditiva
transitória‖ (CRISTIANO, 2018). Já a categorização de tipo, se subdivide em três grupos:
condutiva (quando há comprometimento da passagem no som pela orelha externa e/ou
média, mas a orelha interna está normal), neurossensorial (o comprometimento está na
orelha interna – cóclea – e nervo) ou mista (quando a uma mistura das duas anteriores)
(MOREIRA, 2019). Por sua vez, há quatro graus de surdez. São eles: surdez leve (26 a 40
decibéis), a surdez moderada (41 a 60 decibéis), a surdez severa (61 a 80 decibéis) e a
surdez profunda (acima de 81 decibéis) (OMS, 2014). O momento de aparecimento possui
três subdivisões: pré-natal (ocorre durante a vida gestacional), peri-natal (ocorre durante o
nascimento) e pós-natal (ocorre após o nascimento). As outras categorias são binárias
sendo elas: lateralidade, em que há a divisão entre bilateral e unilateral; simetria, que se
divide entre simétrica e assimétrica; e natureza do problema, que pode ser hereditária ou
adquirida. Todas essas categorias buscam descrever a patologia de maneira objetiva,
aprofundando-se em cada aspecto da deficiência a fim de conseguir avançar nas formas
65

resolvê-la, corrigi-la. Compilamos essas informações em uma tabela para melhor


visualização e para dar a dimensão da quantidade de categorias e itens considerados para
que se avalie e conclua que um indivíduo é ou não surdo.
Tabela 1: Caracterização médica da surdez
Caraterização médica da surdez
Causas Tipos Graus Momento Lateralidade Simetria Natureza
Relacionada à Condutiva Leve (26 a Pré-natal Bilateral Simétrica Hereditária
idade 40 (ocorre
decibéis) durante a
vida
gestacional)
Induzida por Neuros- Moderada Perinatal Unilateral Assimétrica Adquirida
ruídos (PAIR) sensorial (41 a 60 (ocorre
decibéis) durante o
nascimento)
Surdez Mista Severa (61 Pós-natal
congênita a 80 (ocorre
decibéis) após o
nascimento)
Causada por Profunda
infecções (acima de
81
decibéis)
Causada por
alterações na
tireoide
Relacionada a
medicamentos
Causada por
perfuração de
tímpano
Transitória

Uma das perguntas que mais nos interessa neste trabalho é a de quais sentidos
constituem o ser surdo. Desde o ponto de vista clínico clássico, alicerçado nessas
construções descritivas fisiológicas da surdez, começa-se a construir os sentidos do que,
nessa perspectiva, preferem chamar de deficiente auditivo. Quantas e quais dessas
subdivisões apresentadas um indivíduo precisa contemplar para que seja considerado um
deficiente auditivo? Quem e com qual propósito terá a palavra final nessa decisão?
As inúmeras respostas possíveis para essa pergunta se inserem na construção da
própria identidade da comunidade surda. Esses são discursos que circulam socialmente e
trazem consigo, como vimos, o prestígio social dos profissionais de saúde. Dessa forma, os
enunciados que circulam constituindo o ser surdo interpenetram não apenas a visão dos
66

ouvintes sobre o outro, o surdo, mas também a própria visão dessa comunidade sobre si. Se
considerarmos que, historicamente, a maioria do material produzido sobre surdos, seja sob
a ótica social ou a médica, é feita por ouvintes, como esta tese, o pressuposto da influência
dos ouvintes na construção da autoimagem da comunidade surda se acentua. Essa é uma
realidade presente também nos textos sobre a educação de surdos.
Um dos campos de interpenetração dos textos médicos sobre a surdez é o da
legislação. Como será visto mais adiante, as leis que tratam de pessoas com deficiência
buscam respaldo nas afirmações da comunidade médica para definir esse público,
corroborando a legitimidade que essa comunidade encontra na sociedade de maneira geral.
Os textos do campo legislativo, na sua própria razão de existir, buscam a objetividade a
fim de dirimir múltiplas interpretações e possibilitar a aplicabilidade da lei para todos de
maneira igual. Por isso, esses textos se baseiam na cientificidade médica que
pretensamente chegaram a conclusões irrefutáveis, definitivas e apoiadas em provas
construídas através de métodos científicos ditos objetivos. No entanto, vale ressaltar que
dentro da linha teórica que seguimos, não acreditamos em uma ciência que revela e
descreve o mundo previamente dado, mas sim o constrói a partir das contingências da
pesquisa, do pesquisador e uma grade de sentidos que o constitui e, por isso, constitui o
mundo que ele recorta na pesquisa. Sendo assim, cada pesquisa está impregnada dos
enunciados que atravessam aquele momento, aquele sujeito e, por isso, cada pesquisa é
diferente e não é passível de ser replicada indiscriminadamente sem considerar os
contextos.
Assim, esses discursos de medicalização do público surdo, sendo significados
como deficientes auditivos, atravessaram não apenas o campo médico ou legislativo, mas
também o educacional. Como destaca Rodrigues (2008), a educação de surdos incorporou
processos de correção da deficiência dentro da sala de aula e os recursos utilizados também
tinham objetivo reparador e normalizador do indivíduo, ou seja, percebe-se ao longo da
história da educação de surdos uma tentativa de reparar e/ou consertar um defeito. Mais
adiante, no capítulo 4, nos deteremos na influência desses discursos na educação de surdos
no Brasil e, especialmente, no INES.
A partir dessa lógica, a língua de sinais não tem seu lugar e estratégias como a
leitura labial e a tentativa de que o aluno use a língua oral através de exercícios
fonoaudiológicos são adotadas.
67

Medicalizar a surdez significa orientar toda a atenção à cura do problema


auditivo, à correção de defeitos da fala, ao treinamento de certas
habilidades menores, como a leitura labial e a articulação, mais que a
interiorização de instrumentos culturais significativos, como a língua de
sinais. E significa também opor e dar prioridade ao poderoso discurso da
medicina frente à débil mensagem da pedagogia, explicitando que é mais
importante esperar a cura medicinal – encarnada atualmente nos
implantes cocleares – que compensar o déficit de audição através de
mecanismos psicológicos funcionalmente equivalentes (SKLIAR, 1997,
p. 111).

A lógica que subjaz a essas intervenções médicas do surdo é de que a sociedade


padrão é a dos ouvintes e as práticas sociais não podem desviar das pensadas e praticadas
por estes. Há uma busca pela reabilitação dos surdos para que estes atendam a um padrão
aceitável de convivência. Essa ideia se sustenta também na questão numérica de proporção
entre surdos e ouvintes na nossa sociedade, na qual a língua portuguesa é majoritária.
Retomamos aqui o conceito de ouvintismo (SKLIAR, 1997) em que se entende o ouvinte
com o status de superioridade a ser alcançada pelos surdos.
Além da leitura labial que já mencionamos, utiliza-se como método de
normalização dos surdos a oralização, que são exercícios propostos e supervisionados por
profissionais da área da fonoaudiologia a fim de que o surdo seja capaz de usar a língua
oral de maneira a se comunicar com os ouvintes.
Outras duas formas comuns de intervir na audição do indivíduo surdo são: o uso
de aparelho de amplificação sonora individual (AASI) e o implante coclear. O primeiro, de
acordo com Mondelli (2010) em sua tese sobre o tema, ―permite o resgate da percepção
dos sons da fala, além dos sons ambientais [...] sendo que o prognóstico dependerá do local
da lesão e do grau de perda auditiva‖. Já o segundo, ainda de acordo com Fernandes, está
indicado para indivíduos com perda auditiva severa ou profunda. A implantação cirúrgica
desse aparelho funciona através do envio de estímulos elétricos às fibras do nervo auditivo,
cumprindo o papel, de maneira parcial, da cóclea.
Esse procedimento se tornou uma política pública de saúde a partir de 2014,
através da Portaria 2.776 que posteriormente foi complementada pela Portaria 2.157/2015,
ambas do Ministério da Saúde, que incorporou o implante coclear bilateral no Sistema
Único de Saúde (SUS). Dentro de um programa denominado de Atenção Especializada às
Pessoas com Deficiência Auditiva do próprio SUS, o Ministério da Saúde se propôs a
68

capacitar médicos, fonoaudiólogos, psicólogos, assistentes sociais e enfermeiros para


cuidar dos procedimentos de implante coclear (BRASIL, 2015).
Com isso, vemos desdobramentos efetivos provenientes de formas de nomear, de
enunciar e de construir sentidos sobre a surdez. A palavra, portanto, ao compor enunciados
concretos, traz consigo uma carga de sentidos e de práticas discursivas que se impõem e
ganham valor de palavra de ordem (DELEUZE; GUATTARI, 2011). A partir da
significação do sujeito surdo como um deficiente, ou seja, como alguém que a quem falta
algo, por essa corrente que convencionamos chamar de clínica clássica, o poder público
brasileiro, através do Ministério da Saúde, embasa uma política de saúde para esses
indivíduos que justificaria a tese da deficiência.
Essa é, portanto, uma institucionalização do entendimento do surdo como um
deficiente. Os discursos que caracterizam essa comunidade pelo que lhe falta, pelo que lhe
difere dos demais, interpenetram a sociedade de forma que leis são criadas a fim de
permitir, promover e financiar procedimentos corretivos. Ao tratar da incorporação do
implante coclear no SUS, a referida Portaria faz considerações prévias que são
pressupostos que a sustentam:
Considerando que, em determinados casos de deficiência auditiva, há a
necessidade de se utilizar recursos e tecnologia mais avançados para sua
recuperação e reabilitação;
Considerando a magnitude social da deficiência auditiva na população
brasileira e suas consequências; e
Considerando a possibilidade de êxito de intervenção na história natural
da deficiência, por intermédio de equipe multiprofissional e
interdisciplinar, utilizando-se de métodos e técnicas terapêuticas
específicas. (BRASIL, 2014)

Trazemos um trecho da Portaria para destacar que se afirma sobre a ―necessidade‖


de proceder com o implante coclear para o que chamam de ―reabilitação‖. Não se sugere
ou se recomenda, mas se julga necessário para se obter ―êxito‖. Não há menção ao que se
considera êxito no texto, mas se pressupõe que este esteja relacionado com a correção da
audição. São enunciados que estão inscritos na formação discursiva da visão clínica
clássica que trazemos neste tópico do trabalho.
De acordo com Skliar (1997), dentro do âmbito educacional, é possível identificar
alguns períodos de predominância das perspectivas de minoria linguística e clínica
clássica. Tratando da história recente, o autor afirma que o modelo clínico foi
preponderante até a década de 1990 no país, mudando, a partir desse ponto, para o enfoque
69

de minoria linguística. Essa transição é atribuída ao interesse de pesquisadores das áreas da


linguística, sociologia e antropologia, a partir da década de 1960, aos fatos de que os
surdos se aglutinavam em grupos em torno das línguas de sinais e também de que os
surdos filhos de surdos obtinham níveis acadêmicos melhores e identidade equilibrada
quando comparado aos surdos que tinham contato com a língua de sinais mais tardiamente.
Relembramos que, como já foi ressaltado no primeiro capítulo dessa tese, não nos
alinhamos com um entendimento linear e concatenativo de acontecimentos históricos na
qual seria possível identificar início, meio e final de correntes de pensamento e práticas
discursivas. Apostamos, mais uma vez, no entendimento do discurso como processo em
que sentidos estão em constante disputa e, por isso, as correntes se sobrepõem umas às
outras.
Com isso, as visões clínica clássica e a de minoria linguística coexistem ao longo
do tempo e nosso objetivo é buscar os enunciados que se constroem a partir de cada uma
dessas visões. Os decretos que implementam o implante coclear no SUS são exemplos
dessa busca.
70

3 ANÁLISE DE DOCUMENTOS LEGAIS SOBRE A EDUCAÇÃO DE


SURDOS

Em nossa sociedade atual, a legislação tem papel fundamental na forma como


organizamos nossas relações. Os registros escritos que possuem valor de lei e, além de
servirem para estabelecer direitos e deveres dos cidadãos em Estados de direito, também
possuem papel de memória de práticas sociais que nos permitem identificar domínios de
saber e, por conseguinte, formas novas de sujeitos e de sujeitos de conhecimento
(FOUCAULT, 1999).
Dessa forma, nesta etapa do trabalho, nosso olhar se centra na análise de alguns
documentos legais que formam parte da rede de sentidos sobre a educação de surdos dentro
do Brasil. Buscaremos a partir dessas materialidades enunciativas, verificar, ademais do
que está sendo construído para a educação de surdos, os sentidos de surdo, de libras, de
bilinguismo e de ensino em um contexto da surdez.

3.1 Línguas de sinais pelo mundo: práticas sociais ou questões legais?

Iniciaremos nossas análises pelo que consideramos, dentre os documentos que


compõem nosso corpus, o maior marco deste século para a comunidade surda brasileira e
que provocou consequências mais significativas para a educação desse público no Brasil, a
Lei 10.436/2002 e o Decreto 5.626/2005.
Porém, antes de analisar a lei federal que reconhece a libras como língua e que a
torna ―meio legal de comunicação‖ (BRASIL, 2002) da comunidade surda, buscamos ver
qual o status das línguas de sinais em outros países a fim de estabelecer alguns parâmetros
para nossas discussões sobre a situação da legislação brasileira acerca do tema.
71

Nesse momento vale destacar que a distribuição das línguas de sinais pelos países
ao redor do mundo não guarda relação com a configuração das línguas orais. Portanto,
países que compartilham a língua inglesa, por exemplo, não terão a mesma língua de
sinais. O mesmo vale para as línguas espanhola, portuguesa etc. Por exemplo, no Brasil
temos a libras, que em seu próprio nome já explicita que é do Brasil, enquanto em Portugal
adota-se a língua gestual portuguesa.
Nesses casos, nem mesmo o alfabeto manual se assemelha como se assemelham
alguns alfabetos das línguas orais. Logo, os parâmetros da língua como sistema diferem
nas mais diversas línguas de sinais do mundo. Como exemplo, nas duas imagens abaixo,
estão à direita o alfabeto manual da libras e à esquerda o alfabeto manual da língua gestual
portuguesa:

Figura 4: Alfabetos Manuais da libras e da LGP.

Alfabeto Manual da LGP Alfabeto Manual da libras


Fonte: Vargas (2016)

De acordo com a página da internet do Ethnologue, uma pesquisa colaborativa


sobre as línguas no mundo, há 144 línguas de sinais já catalogadas no mundo. Dentre elas,
há uma subdivisão entre as línguas de uma comunidade surda, que são 125, as línguas
compartilhadas entre surdos e ouvintes, que contém 18 ocorrências e a língua de sinais
internacional que não está vinculada a nenhuma comunidade linguística com determinação
geográfica mais específica (EBERHARD; GARY; CHARLES, 2020).
72

Cada país terá sua especificidade e daremos um panorama geral das línguas de
sinais pelo mundo no que diz respeito ao seu aspecto legal. Pensamos que, dessa forma, é
possível obter algum tipo de parâmetro e de contextualização para analisar com mais
profundidade a situação da libras no Brasil. Entendemos que as relações de políticas
linguísticas não se resumem à legislação, isto é, as leis dialogam com situações concretas
da sociedade proibindo o que se faz e permitindo o que se proíbe, porém sabemos que esse
é um componente importante na teia de sentidos que se fixam e se deslocam na
significação do que é uma língua dentro de determinado recorte sócio-histórico.
Há, até 2015, trinta e um países com a língua de sinais reconhecida em legislações
que afetam o status e/ou os direitos das línguas e, dentre esses países, a maioria está no
âmbito da União Europeia (DE MEULDER, 2015). Nessa contabilização não entram
países que tenham tratado da língua de sinais apenas em documentos educacionais, de
inclusão ou de igualdade. Trata-se, de fato, de mudanças de status ou de direitos
linguísticos. Entendemos que esses documentos legais são reconhecimentos explícitos da
língua e que vêm a fortalecer e a reforçar reconhecimentos implícitos já existentes através
da luta da comunidade surda de determinado local. As leis ou decretos estão inseridos
dentro dos seus contextos de produção e, por isso, em diálogo com os discursos que
circulam em seu entorno. Dessa forma, pensamos que, para chegar ao reconhecimento
legal, a língua de sinais já percorria um caminho anterior de lutas e de produção de
sentidos na direção de legitimá-la como língua de uma comunidade.
Segundo De Meulder (2015), as línguas de sinais, muitas vezes, não ganham status
de oficial, cooficial ou mesmo de língua minoritária por parte de muitos legisladores, visto
que há uma predominância de olhar o surdo a partir da sua deficiência e, portanto, não
precisam de uma língua reconhecida desde um prisma sociocultural, senão de leis
reparadoras, leis que, usualmente, juntam-se a outras questões também consideradas
deficiências alheias à surdez.
É possível pensar em cinco categorias de reconhecimento explícito da língua de
sinais nesses trinta e um países que mencionamos. Mostraremos uma tabela com uma visão
geral das cinco categorias e os países que nela se incluem e, em seguida, nos
aprofundaremos em alguns países, em particular para ver suas legislações.
73

Tabela 2: Situação de reconhecimento explícito das línguas de sinais pelo mundo.


Categoria Países
Reconhecimento constitucional Uganda (1995), Finlândia (1995), África do
Sul (1996), Venezuela (1999) Áustria
(2005), Nova Zelândia (2006), Quênia
(2010), Zimbábue (2010) e Hungria (2011).
Reconhecimento por meio de legislação Lituânia (1999), Estônia (2007), Suécia
geral de línguas (2009) e Islândia (2011).
Reconhecimento por meio de decreto ou Eslováquia (1995), Uruguai (2001), Brasil,
lei de línguas de sinais (2002), Eslovênia (2002), Bélgica (2003),
Chipre (2006), Bósnia (2009), Macedônia
(2009), Catalunha9 (2010), Finlândia (2015)
e Sérvia (2015).
Reconhecimento por meio de decreto ou Colômbia (1996), República Tcheca
lei de línguas de sinais, incluindo outros (2008), Espanha (2007), Polônia (2011) e
meios de comunicação. Itália (2012).
Reconhecimento por meio de legislação Noruega (2009) e Dinamarca (2014).
no funcionamento do Conselho Nacional
de Línguas

Desde 1995, portanto, há reconhecimento legal de uma língua de sinais em um país.


Nota-se que, junto com a Finlândia, um país africano foram os primeiros a reconhecer uma
língua de sinais em sua constituição.
É importante ressaltar que o reconhecimento legal, a mudança de status da língua,
seja por qual das cinco categorias for, não significa, necessariamente, mudança social. As
condições de produção que permitiram o surgimento de uma lei, decreto ou qualquer que
seja o texto jurídico favorável às línguas de sinais devem ser levados em consideração; no
entanto, é possível (e provável) que haja garantia de direitos da língua de sinais através de
leis que não se traduzem em ações práticas no cotidiano dos usuários dessas línguas.

9
Ainda que a Catalunha não seja um país, a região possui uma língua oral própria que também se desdobrou
em uma língua de sinais própria.
74

Antes de tratar das línguas de sinais presentes na tabela, é importante destacar uma
língua de sinais referente a dois países que não estão listados. Trata-se, inclusive, da língua
de sinais mais usada no mundo, a dos Estados Unidos e a parte anglófona do Canadá, que
usam a American Sign Language (ASL). Há outros 22 países que também usam a ASL
dentre suas comunidades surdas. (EBERHARD; GARY; CHARLES, 2020) Esta língua
não está na tabela, pois não figura em lei nacional alguma que a reconheça, legitime ou a
obrigue a ser utilizada em qualquer contexto social. Há apenas leis de âmbito estadual nos
EUA. Já no Canadá, há uma Carta de Direitos e Liberdade (CANADÁ, 1982) que, em seu
capítulo quatorze, assegura um julgamento na língua do acusado qualquer que seja ela e
menciona a surdez como uma possibilidade de oferta de intérprete.
Por conta do regime de governo desses países em que os estados possuem
autonomia maior em relação à federação, podemos verificar que inúmeros estados
tornaram a ASL como língua oficial de minoria. Nas províncias de Manitoba (1988),
Alberta (1990) e Ontario (1993) a ASL foi oficializada como língua de minoria enquanto,
nos EUA, todos os cinquenta estados reconhecem a ASL como uma língua, porém, nem
todos garantem que haja educação ou formação universitária nessa língua.
Passamos ainda para outra região que não está listada diretamente na tabela por não
se tratar de um país, porém vários de seus países-membro estão mencionados. Trata-se da
União Europeia que, em 1988, assinou uma resolução pelo Parlamento Europeu (UNIAO
EUROPEIA, 2016) dispondo sobre as línguas de sinais e seus intérpretes profissionais. O
documento, atualizado em 2016, é abrangente e dispõe sobre educação, acessibilidade,
emprego e a relação das línguas de sinais com as instituições da União Europeia. Em linhas
gerais, o texto faz uma série de recomendações sobre a necessidade de haver informações
acessíveis em língua de sinais e de que se promovam condições para que os surdos possam
ter sua cultura valorizada dentro dos países-membro. Vale ressaltar a correlação
estabelecida entre língua e cultura, o reconhecimento de que há uma cultura constituída dos
sujeitos surdos. Essa questão será retomada, ainda neste capítulo, quando entrarmos na
discussão sobre a lei brasileira de reconhecimento da libras como língua.
Destacamos do documento, alguns trechos que tratam especificamente da educação
do sujeito surdo:
18. Observa que devem ser tomadas medidas de adaptação razoável,
incluindo a disponibilização de intérpretes profissionais de língua gestual,
com vista a assegurar a igualdade de acesso ao emprego, à educação e à
formação;
75

19. Salienta que devem ser disponibilizadas informações equilibradas e


holísticas sobre a língua gestual10 e o que significa ser surdo, para que os
pais possam fazer escolhas conscientes no superior interesse dos seus
filhos;
20. Salienta que os programas de intervenção precoce são essenciais no
desenvolvimento das competências de vida das crianças, incluindo as
competências linguísticas; observa, além disso, que esses programas
devem incluir, de preferência, pessoas surdas como exemplos;
21. Salienta que os estudantes surdos, com surdocegueira ou com
deficiência auditiva e os seus pais devem ter a possibilidade de aprender a
língua gestual nacional ou regional do seu ambiente no ensino pré-escolar
e na escola;
22. Salienta que devem ser tomadas medidas para reconhecer e promover
a identidade linguística das pessoas surdas (UNIAO EUROPEIA, 2016).

Ainda que o texto aprovado pelo Parlamento Europeu não tenha valor de legislação
com a obrigação de cumprimento pelos países-membro, vale ressaltar as ações relativas ao
ensino. No item 18, fala-se em disponibilizar intérpretes para assegurar igualdade na
educação, ou seja, nas escolas. Os itens 19 e 20 ressaltam a construção de identidade surda,
um através de informações sobre o que é ser surdo e o outro através da competência
linguística desde o início da vida do indivíduo surdo.
Em alguns países-membro da União Europeia podemos perceber a presença das
línguas de sinais na legislação nacional. Na Áustria, por exemplo, em 2005, a Língua de
Sinais Austríaca foi reconhecida como independente através de uma emenda à constituição
do país, assim como aconteceu na Finlândia dez anos antes, em 1995. Fora de Europa,
países que também tiveram a língua de sinais integrada à sua constituição foram: Uganda,
em 1996, Venezuela, em 1999 e Zimbábue, em 2013 (NAPIER; LEESON, 2016)
Há outros países em que a língua foi reconhecida, porém não na constituição como
através de um decreto do governo belga que atribui à língua de sinais do país um
―reconhecimento cultural simbólico‖. Na legislação islandesa a língua de sinais é colocada
junto à situação dos imigrantes e dispõe sobre providências de política linguística dentro
do ambiente escolar.
O reconhecimento da língua de sinais se restringe ao âmbito do ensino em países
como Turquia e Portugal, por isso não se encontram na tabela. Não há um reconhecimento
da língua no país, senão apenas uma menção no âmbito educacional. Particularmente, no

10
Chamamos atenção para a diferença de nomenclatura entre o Português brasileiro e o usado em Portugal
para o nome da língua própria da comunidade surda. Enquanto usamos, no Brasil a língua de sinais, em
Portugal, assim como a maioria dos países lusófonos, usa-se língua gestual.
76

caso de Portugal, na sua constituição encontra-se o seguinte trecho relacionado ao tema:


―Na realização da política de ensino incumbe ao Estado proteger e valorizar a língua
gestual portuguesa, enquanto expressão cultural e instrumento de acesso à educação e da
igualdade de oportunidades‖ (PORTUGAL, 2005).
No Uruguai, por exemplo, há uma lei que reconhece a língua de sinais uruguaia
como língua, porém não como língua oficial do país. De acordo com a Lei 17.378 de 10 de
julho de 2001, a Língua de Sinais Uruguaia é reconhecida ―como la lengua natural de las
personas sordas y de sus comunidades en todo el territorio de la República‖ (URUGUAI,
2001).
Por outro lado, é possível encontrar países nos quais a língua de sinais não tem
reconhecimento legal algum como Irlanda, Holanda, Índia.
Podemos perceber que há diversas configurações na relação entre língua de sinais e
legislação. O reconhecimento como língua pode estar atrelada a ações relacionadas à
educação dos surdos ou, em muitos casos, as determinações sobre a educação não estão
atreladas ao reconhecimento legal da língua. Dessa forma, é possível afirmar que muito
dos sentidos que se constroem para as línguas de sinais ao redor do mundo estão postas
dentro do âmbito escolar, mas nem sempre abrangem outros contextos sociais. Também
vale ressaltar que a relação entre legislação e prestígio social não é direta. As línguas
podem fazer parte de práticas sociais diversas e desempenharem funções de interações
variadas e não terem reconhecimento legal, assim como o contrário também pode ocorrer.

3.2. Caracterização dos documentos jurídicos

Em nossa pesquisa sobre os documentos, tomamos como ponto de partida as


teorias da Análise do Discurso de base enunciativa (MAINGUENEAU, 1989; 2008; 2011)
e sua concepção de língua, unidas às ideias sobre linguagem desenvolvidas pelo círculo de
Bakhtin (BAKHTIN, 2003; VOLÓOCHINOV, 2017), como já foi mencionado no
primeiro capítulo deste trabalho.
Pensamos no enunciado como um ato concreto de linguagem (BAKHTIN, 2003),
isto é, um dizer que está situado sócio-historicamente e que compõe sentidos que são
produzidos a todo o momento. O enunciado, por sua vez, é um elemento importante para se
77

caracterizar um gênero do discurso (BAKHTIN, 2003) e se dá através de uma interação


social entre dois ou mais indivíduos e os discursos em circulação.
Nós buscamos também, para articular aos estudos do círculo de Bakhtin
(BAKHTIN, 2003; VOLÓCHINOV, 2017), Maingueneau (2008), ao afirmar que as
interações e seus enunciados surgem apenas quando certas condições sócio-históricas estão
presentes, ou seja, determinados gêneros discursivos só são possíveis quando se encontram
elementos que lhes permitam aparecer. O sentido não está dado previamente à situação de
enunciação, senão construído à medida que é colocado em alguma situação de interação.
As análises discursivas desenvolvidas no trabalho estão baseadas no conceito de
interdiscurso (MAINGUENEAU, 2008), ou seja, parte-se do princípio que todos os
enunciados estão atravessados por outros enunciados que os sustentam. Buscaremos
apontar as pistas que guiam para esse interdiscurso de sustentação do discurso que emerge
no texto analisado.
Para tratar dessas memórias, trazemos os estudos de Amorim (2009) que, baseada
nas reflexões do Círculo de Bakhtin, elabora o conceito de ―memória do objeto‖. Pensamos
nesses documentos que serão analisados como objetos que guardam memórias ―que
perpassam as relações intersubjetivas e as constituem ao mesmo tempo em que são
atualizadas por elas‖ (AMORIM, 2009, p. 10). Nesse conceito, a memória do objeto se
descola daquela memória que tem como origem os estudos da psicologia e se expande para
buscar as referências dentro da cultura e do próprio objeto. Segundo Bakhtin (2003, p.354),
As tradições culturais e literárias (inclusive as mais antigas) se conservam
e vivem não na memória individual e subjetiva de um homem isolado ou
em algum ―psiquismo‖ coletivo, mas nas formas objetivas da própria
cultura (inclusive nas formas linguísticas e verbais), e nesse sentido elas
são intersubjetivas e interindividuais (consequentemente, também
sociais); daí elas chegam às obras literárias, às vezes quase passando por
cima da memória individual subjetiva dos autores.

Ao tratar da memória do objeto, buscamos levantar quais as ideias que estão


cristalizadas a partir de uma memória coletiva social inscrita em práticas discursivas
estabelecidas. Dentro do corpus legislativo que constituímos nesse capítulo está a Lei
Federal de número 10.436, de 24 de abril de 2002 (BRASIL, 2002), que estabelece em seu
caput a libras como uma língua e dá outras providências sobre seu uso em território
nacional. Em decorrência dessa lei, foi promulgado também o Decreto n. 5.626, de 22 de
78

dezembro de 2005 (BRASIL, 2005), com o fim de regulamentar alguns dos itens dispostos
na lei. Esse decreto também será matéria de discussão neste capítulo.
Destacamos que, ao contrário da lei, o decreto é uma norma jurídica que prescinde
de tramitação nos órgãos legislativos (Congresso Nacional), sendo publicada diretamente
pelo poder executivo. Por conta dessa tramitação, esse tipo de norma jurídica pode entrar
em vigor sem que haja participação social em sua elaboração.
Operamos, portanto, com a ideia da construção de um arquivo legislativo com o
qual lidaremos nas análises desenvolvidas. Dentro dos estudos que se aproximam da língua
como discurso, então, tratamos do conceito de arquivo de acordo com Foucault (1969, p.
147), que o define como:
De início, a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimento
dos enunciados como acontecimentos singulares. Mas o arquivo é,
também, o que faz com que todas as coisas ditas não se acumulem
indefinidamente em uma massa amorfa, mas que se agrupem em figuras
distintas, se componham umas com as outras segundo relações múltiplas,
se mantenham ou se esfumem segundo regularidades específicas.

Defendemos que na educação de surdos, tanto a Lei 10.436/2002 (BRASIL, 2002)


quanto o Decreto 5.626/2005 (BRASIL, 2005), são acontecimentos discursivos
(PÊCHEUX, 1983). De acordo com o autor, o acontecimento é ―o ponto de encontro de
uma atualidade e uma memória‖ (PÊCHEUX, 1983, p. 16). É a dimensão sócio-histórica
do enunciado que não é criado pelo sujeito, senão se insere em um continumm discursivo
anterior e posterior a ele. O acontecimento discursivo insere-se também em um nível
horizontal que trata da prática discursiva do sujeito, sua formulação imediata, o ato de
enunciar no presente. É possível localizar um acontecimento discursivo, portanto, em uma
interseção entre esses dois níveis.
Dessa forma, consideramos esses textos jurídicos (lei e decreto) como
acontecimentos discursivos dentro da trajetória dos surdos, pois eles dialogam com a
história, aproximam-se dos discursos e sentidos presentes na construção da surdez e da
libras, e também as atualizam. Ambos os documentos suscitam a redefinição e o
afastamento da memória constituída sobre a língua de sinais, além de interferir em
inúmeras práticas que circundam o uso da libras e, principalmente, seu papel na educação.
A memória, a partir do conceito com o qual trabalhamos, se dá a partir de uma
regularização discursiva que sedimenta sentidos retomados constantemente em novos
79

enunciados. Porém, um acontecimento discursivo desestabiliza essa memória e busca


reorganizar os sentidos a partir de uma nova conjuntura.
Em seus estudos sobre o direto penal, Foucault (1999, p.11), discute o valor da
verdade atribuída a uma lei e diz que:
Por outro lado, parece-me que existem, na sociedade, ou pelo menos, em
nossas sociedades, vários outros lugares onde a verdade se forma, onde
um certo número de regras de jogo são definidas - regras de jogo a partir
das quais vemos nascer certas formas de subjetividade, certos domínios
de objeto, certos tipos de saber - e por conseguinte podemos, a partir daí,
fazer uma história externa, exterior, da verdade.

Podemos expandir essas ideias não apenas às práticas judiciárias do âmbito penal,
mas também à própria textualidade da lei que se agencia criando verdades definidoras de
subjetividades, formas de saber e, também, as relações que se estabelecem entre o homem
e essa verdade criada.
Qual o poder instituído em um dispositivo legal que o legitima a oficializar uma
língua ou a reconhecê-la como tal? Quais as consequências na forma de se significar o
indivíduo surdo a partir desse acontecimento discursivo? Sobre essa última pergunta,
articulamo-nos com o pensamento do autor quando afirma:
Seria interessante tentar ver como se dá, através da história, a constituição
de um sujeito que não é dado definitivamente, que não é aquilo a partir do
que a verdade se dá na história, mas de um sujeito que se constitui no
interior mesmo da história, e que é a cada instante fundado e refundado
pela história (FOUCAULT, 1999 p. 10)

Portanto, os sentidos do que é ser surdo, do que é ser usuário de libras, do que é
educar através dessa língua são ressignificados a partir da Lei 10.436/2002. Acreditamos,
inclusive, que essas mudanças não ocorrem apenas para o que veio e para o que virá após a
lei. Não se trata apenas de uma questão de linha do tempo entre um antes e um depois
dessa norma jurídica. As próprias verdades criadas sobre o que ocorreu também são
refundadas, ressignificadas. A libras não foi tornada língua pela força da lei, foi
reconhecida como tal; portanto, entendimentos sobre essa língua como conjunto de gestos
e mímicas são redefinidas. O sujeito que era visto como alguém que tinha dificuldade de
aprender a língua nacional passa a ser aquele que tem sua própria língua e pode vir a
adquirir uma segunda língua na sua modalidade escrita, dentre outras tantas construções de
verdades e fundações de histórias que se agenciam a essa nova forma de dizer a língua
brasileira de sinais.
80

No entanto, uma simples definição do termo não garante que este será
compreendido da mesma forma por todos que o leem. A partir de Maingueneau (2011),
operamos com a ideia de que, a partir da interação entre dois ou mais sujeitos, são
produzidos enunciados que englobam mais fatores para além da materialidade textual. O
sentido se dá a partir de uma construção em que não apenas o enunciador tem influência,
senão o coenunciador também. Coenunciador é sujeito que interage com o enunciado e
também participar de sua construção de sentido. Portanto, considera-los é determinante
para a análise dos enunciados, assim como os contextos envolvidos na leitura e produção.
Um enunciado está, invariavelmente, permeado por outros discursos que o atravessam,
memórias discursivas que lhe subjazem e acabam por produzir sentidos, ainda que estes
escapem às intenções do indivíduo que o produziu. Dessa forma, os sentidos não são
estáticos ou imanentes ao texto e, de certa maneira, escapam a um fechamento completo,
estando sempre submetidos a novas construções e aportes em cada enunciação.
No círculo de Bakhtin esse tema é tratado a partir do conceito de excedente de
visão. Em Estética da Criação Verbal (2003), corrobora-se a ideia do olhar do outro como
constitutivo do sujeito. Nas palavras do autor:
[...] em qualquer situação ou proximidade que esse outro que contemplo
possa estar em relação a mim, sempre verei e saberei algo que ele, da sua
posição fora e diante de mim, não pode ver [...]
Esse excedente da minha visão, do meu conhecimento, da minha posse –
excedente sempre presente em face de qualquer outro individuo – é
condicionado pela singularidade e pela insubstitutibilidade do meu lugar
no mundo: porque nesse momento e nesse lugar, em que sou o único a
estar situado em dado conjunto de circunstâncias, todos os outros estão
fora de mim. (BAKHTIN, 2003, p.210)

Portanto, para constituir-me como sujeito não é necessário apenas estabelecer onde
me encontro, senão também compreender minha posição relacional diante do outro, ou de
tantos outros quantos possa haver investindo olhares e sentidos para mim.
O que mudou na libras para que ela fosse reconhecida como língua? O ato de
reconhecê-la como tal nos leva a olhar para trás e reconstruir as verdades instituídas,
ressignificar as formas de saber que estavam postas até o momento, afinal, por trás de
qualquer saber ou conhecimento coloca-se em jogo uma luta de poder. Portanto, nossas
análises operam com a construção de objetos de estudo, de análise, por nós mesmos, ao
contrário de ideias que defendem uma aproximação de um objeto já dado e imutável da
natureza que esteja imune a subjetividades de quem a olha.
81

Esses documentos, portanto, formam o que chamaremos de arquivo, conceito


trazido por Foucault em A arqueologia do Saber (1969). Para o autor, o conceito de
arquivo consiste em:
O arquivo é, de início, a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o
aparecimento dos enunciados como acontecimentos regulares. Mas o
arquivo é, também, o que faz com que todas as coisas ditas não se
acumulem indefinidamente em uma massa amorfa, não se inscrevam,
tampouco, em uma linearidade sem ruptura e não despareçam ao simples
acaso de acidentes externos, mas que se agrupem em figuras distintas, se
componham umas com as outras segundo relações múltiplas, se
mantenham ou se esfumem segundo regularidades específicas [...]
(FOUCAULT, 1969, p.147).

Portanto, não se trata de um compêndio de documentos, senão de uma busca por


regularidades específicas que se constroem a partir dos enunciados presentes nesses
arquivos e que tornam possível desfazer cronologias supostamente estabelecidas, explicitar
a repetição de mecanismos ideológicos e localizar deslocamentos e rupturas de sentidos
(RODRIGUES, 2010).
A própria construção desse arquivo, do que ele inclui e do que exclui, já é um
gesto de leitura impregnado pelas subjetividades dos pesquisadores e que determinam os
sentidos que podem emergir do exercício de análise. A busca pela materialidade linguística
que será foco de análise neste trabalho não envolve apenas uma contextualização do
assunto a ser tratado, mas a construção de um corpus que direciona o caminho para uma
das leituras possíveis sobre o tema escolhido, podendo até mesmo haver maneiras
contraditórias de leitura.
Na próxima seção direcionaremos nosso olhar para a situação da língua brasileira
de sinais no que diz respeito à sua situação legal dentro do país.

3.2.1 Lei de libras e seu decreto


Após um panorama da situação das línguas de sinais em relação à sua situação legal
em alguns países pelo mundo e já tendo salientado que mesmo que exista a mudança de
status não se traduz em mudança de comportamento social, apresentamos a legislação
brasileira que reconhece a libras como língua no país. Trata-se da Lei 10.436/2002
(BRASIL, 2002) e do Decreto 5.626/2005 (BRASIL, 2005) que a regulamenta, conforme
havíamos mencionado anteriormente.
82

Primeiramente, disporemos a lei em sua íntegra a seguir e, em seguida,


destacaremos seus trechos para comentários e análises. O mesmo não poderá ser feito com
o decreto, por sua extensão. Portanto, no decorrer do texto traremos trechos para
complementar nossas análises. Eis a lei:

LEI Nº 10.436, DE 24 DE ABRIL DE 2002.

Dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais – Libras e dá outras providências.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA. Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu


sanciono a seguinte Lei:
Art. 1o É reconhecida como meio legal de comunicação e expressão a Língua Brasileira de
Sinais - Libras e outros recursos de expressão a ela associados.
Parágrafo único. Entende-se como Língua Brasileira de Sinais - Libras a forma de
comunicação e expressão, em que o sistema lingüístico de natureza visual-motora, com estrutura
gramatical própria, constituem um sistema lingüístico de transmissão de idéias e fatos, oriundos de
comunidades de pessoas surdas do Brasil.
Art. 2o Deve ser garantido, por parte do poder público em geral e empresas concessionárias de
serviços públicos, formas institucionalizadas de apoiar o uso e difusão da Língua Brasileira de
Sinais - Libras como meio de comunicação objetiva e de utilização corrente das comunidades
surdas do Brasil.
Art. 3o As instituições públicas e empresas concessionárias de serviços públicos de assistência
à saúde devem garantir atendimento e tratamento adequado aos portadores de deficiência auditiva,
de acordo com as normas legais em vigor.
Art. 4o O sistema educacional federal e os sistemas educacionais estaduais, municipais e do
Distrito Federal devem garantir a inclusão nos cursos de formação de Educação Especial, de
Fonoaudiologia e de Magistério, em seus níveis médio e superior, do ensino da Língua Brasileira de
Sinais - Libras, como parte integrante dos Parâmetros Curriculares Nacionais - PCNs, conforme
legislação vigente.
Parágrafo único. A Língua Brasileira de Sinais - Libras não poderá substituir a modalidade
escrita da língua portuguesa.
Art. 5o Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Brasília, 24 de abril de 2002; 181o da Independência e 114o da República.


FERNANDO HENRIQUE CARDOSO
Paulo Renato Souza
(BRASIL, 2002)

Primeiramente, vale destacar que na lei, a palavra ―língua‖ é usada apenas na sua
designação, nunca para qualificá-la, apenas para designá-la a partir de um nome que já
circulava socialmente e pela qual ela já era conhecida no Brasil.
83

Além disso, ao contrário das situações que vimos sobre a língua de sinais em alguns
países, na legislação brasileira, a libras não se tornou uma língua oficial ou cooficial, senão
foi ―reconhecida como meio legal de comunicação e expressão‖ (BRASIL, 2002, grifo
nosso). Questionamo-nos quais os sentidos que emergem dessa dicotomia que se apresenta
entre meio legal e língua oficial.
A partir da lei, há uma diferença entre a libras, qualificada como ―meio legal de
comunicação e expressão‖, e o português, língua oficial do Brasil, segundo a Constituição
Federal: "Art. 13. A língua portuguesa é o idioma oficial da República Federativa do
Brasil‖ (BRASIL, 1988, grifo nosso). Igualmente, as línguas indígenas são reconhecidas
como tal na lei maior do país: ―Art. 210. [...]§ 2º O ensino fundamental regular será
ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a
utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem.‖ e ―Art. 231.
São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e
tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam,
competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.‖ (BRASIL,
1988, grifos nossos).
Tais formas de qualificar o status político dessas línguas nesses dispositivos de
legislação fazem emergir sentidos sobre elas. Para começar a construir esses sentidos
subjacentes aos enunciados da lei, buscamos uma reflexão de Baalbaki e Rodrigues (2011,
p.139) sobre o tema:
A LIBRAS foi, e talvez ainda seja, historicamente tomada como
―linguagem‖, ―gestos‖, ―mímica‖. Trata-se de uma língua marcada pelo
apagamento de sua historicidade na sua relação com os sujeitos surdos,
uma língua que parece assumir um status de ―língua-meio‖: nos
instrumentos legais analisados, ocupa um lugar bastante vinculado ao de
uma língua veicular, ou seja, que ―serviria‖ tão somente para estabelecer
a ―comunicação‖ entre falantes de uma dada comunidade linguística.

O processo histórico das línguas de sinais que, durante muito tempo eram vistas
como um conjunto de gestos limitados, contribui para que esta não seja vista como um
elemento intrínseco ao sujeito. Como é possível perceber, a lei reduz a libras a um meio de
comunicação, sem contemplar elementos subjetivos, culturais, identitários, sociais. As
autoras denominam esse status conferido a ela de ―língua-meio‖.
Subjaz à caracterização da libras apenas como um meio de comunicação a ideia de
língua externa ao sujeito, como um instrumento do qual se lança mão para dizer o que se
84

quer. A ideia de uma língua que constitui sujeito, que toma parte importante nas práticas
sociais que são construídas e que constroem cultura não atravessa os discursos presentes na
textualidade do dispositivo legal estudado. Baalbaki e Rodrigues (2011) reforçam esse
entendimento em:
E ao silenciar a oficialização, o termo ―meio‖ parece remeter a sentidos
como ―recurso‖, ―dispositivo‖, ―estratégia‖, ―instrumento‖ que permite a
comunicação, mas nega-lhe a amplitude conceitual do que se designa
como ―língua‖, facultando sua redução a um código e, por conseguinte,
promovendo o apagamento de sua historicidade.

Quando se oficializa uma língua, a lei muda seu status de não oficial para língua
oficial ou cooficial. Porém, ao pensarmos no termo usado pela Lei 10.436/2002 de que a
libras passa a ser ―meio legal‖, qual status foi alterado? A língua de sinais era ilegal e
agora passa a ter legalidade, isto é, agora se permite que ela seja usada em território
nacional? A libras nunca foi ilegal, pois nunca houve uma lei que a proibisse, no entanto,
podemos encontrar diálogos dessa ideia com a própria história das línguas de sinais e sua
proibição de uso pela comunidade surda durante quase um século a partir do Congresso de
Milão no final do século XIX conforme abordado no primeiro capítulo, principalmente, no
âmbito da educação.
Ao tornar a língua de sinais um ―meio legal‖, portanto, essa norma jurídica parece
permitir o uso da língua no território nacional. No entanto, resta o reconhecimento de que a
libras é língua, o que seria, sem dúvida, uma conquista para a comunidade surda brasileira.
Destacamos também a caracterização da língua, na lei 10.436/2002, como um
instrumento, algo externo ao sujeito, algo do qual alguém detém controle e lança mão de
acordo com suas intenções. Essa ideia opõe-se à concepção com a qual trabalhamos nessa
tese, de língua constitutiva do sujeito. A construção de sentidos dessa língua entendida
como um instrumento externo é reforçada no parágrafo único que segue o artigo primeiro e
que diz:
Parágrafo único. Entende-se como Língua Brasileira de Sinais - Libras a
forma de comunicação e expressão, em que o sistema lingüístico de
natureza visual-motora, com estrutura gramatical própria, constituem um
sistema lingüístico de transmissão de idéias e fatos, oriundos de
comunidades de pessoas surdas do Brasil. (BRASIL, 2002)

Há, aqui, um entendimento dessa língua como um conjunto de regras, um sistema


linguístico. Ao percebermos a necessidade de reafirmar a libras como uma língua,
85

podemos inferir que há um não dito (DUCROT, 1987), há atravessamentos de enunciados


que dizem o contrário, ou seja, de que a libras não é língua.
Ducrot (1987) estabelece a relação entre discurso e enunciado e traz o entendimento
de uma pragmática semântica em que a preocupação com o que foi dito já não é mais a
principal, e sim o que o enunciado faz, ou seja, o que o autor chama de efeitos de
enunciação provocados pelo enunciado.
Podem-se identificar, em um mesmo discurso, inúmeros enunciados que produzam
efeitos distintos e, para tanto, deve-se descrever as ―imagens da enunciação‖ (DUCROT,
1987, p.164) que são veiculadas. Estas são, a rigor, o que se provoca de efeito de sentido
sem se voltar para a intenção de um sujeito empírico ou seus possíveis desvios. Entende-se
que o enunciador é subjetivado a partir dos atravessamentos de inúmeros interdiscursos
(MAINGUENEAU, 2008) e, por isso, não possui total controle do que diz. Dessa forma, o
enunciado não é pertencente a um autor já que, a partir do momento que é produzido,
ganha múltiplas interpretações de acordo com os coenunciadores que o compartem.
Discute-se o fato de um discurso produzir um único efeito ou este estar composto
por uma sequência de enunciados que provocariam efeitos diversos. Ducrot (1987, p.164)
afirma que:
Dizer que um discurso, considerado como um fenômeno observável, é
constituído de uma sequência linear de enunciados, é fazer a hipótese de
que o sujeito falante o apresentou como uma sucessão de segmentos em
que cada uma corresponde a uma escolha ―relativamente autônoma‖ em
relação à escolha dos outros. [...] Dizer que um discurso constitui um só
enunciado é, inversamente, supor que o sujeito falante o apresentou como
o objeto de uma única escolha.

Nesse último trecho destacado, a referência à ―estrutura gramatical própria,


constituem um sistema lingüístico de transmissão de idéias‖ (BRASIL,2002) denota uma
busca por legitimidade da língua que se dá a partir de um reforço da sua ―estrutura‖.
Assim, há um diálogo com uma visão estruturalista de língua que, no início do século XX,
com Saussure, buscava, dentre outros aspectos, alçar a linguística como um campo
científico reconhecido. Para alcançar tal objetivo, era preciso ter um objeto de estudo bem
definido e passível de ser analisado, mensurado, controlado, como se acreditava necessário
para fazer ciência dentro de uma lógica positivista da época ou, em muitos casos, até os
dias de hoje. Conforme Ilari (2011, p.57), Saussure estabeleceu que ―o objeto específico da
86

pesquisa linguística teria que ser a ‗regra do jogo‘, isto é, o sistema, e não as mensagens
que ele serve de suporte‖.
A disputa pelo reconhecimento das línguas de sinais como línguas, no âmbito dos
estudos da linguagem, data da década 1960 (SKLIAR, 1997) e sempre fez oposição com
ideias de que as estas não eram, de fato, línguas, senão um conjunto de códigos ou de
mímicas compartilhado por um grupo de indivíduos. O autor aborda também a recorrência
do uso do termo ―linguagem de sinais‖ que traz sentidos de que não possuem as mesmas
características de uma língua, ou seja, não trariam consigo a possibilidade de dizer tudo,
teriam vocabulário reduzido e capacidade de construir conceitos limitada dentre outras
afirmações.
A linguagem se refere à capacidade do indivíduo de se comunicar através dos mais
diversos meios enquanto a língua está mais ancorada na concretude das interações e é o
que possibilita essa comunicação.
Ao final do trecho que destacamos diz-se que a libras e seus elementos são
―oriundos de comunidades de pessoas surdas do Brasil‖. Operando em uma lógica de
ruptura e de segmentação entre surdos e ouvintes pode-se inferir que a libras é propriedade
dos surdos e que não cabe aos ouvintes usar essa língua. A ideia de integração entre surdos
e ouvintes em que a ―comunicação‖ se dá em libras é abandonada pelo texto da lei. Vemos,
portanto a língua de sinais subjugada a uma posição de nicho linguístico.
Importante perceber também como essa comunidade surda é caracterizada.
Enquanto a lei não trata dessa questão de maneira mais extensa, o decreto propõe uma
determinação do que é ser surdo:
Art. 2º Para os fins deste Decreto, considera-se pessoa surda aquela
que, por ter perda auditiva, compreende e interage com o mundo por
meio de experiências visuais, manifestando sua cultura principalmente
pelo uso da Língua Brasileira de Sinais - Libras.
Parágrafo único. Considera-se deficiência auditiva a perda bilateral,
parcial ou total, de quarenta e um decibéis (dB) ou mais, aferida por
audiograma nas freqüências de 500Hz, 1.000Hz, 2.000Hz e 3.000Hz.
(2005, p. 1)

É interessante notar os diálogos estabelecidos pelo enunciado do segundo artigo do


decreto. Primeiramente, destacamos atravessamentos de sentidos do surdo como um sujeito
que possui língua e, por isso, cultura próprias. Mas há também a identificação do surdo
como o indivíduo da perda auditiva e logo no parágrafo abaixo há uma explicação do que
87

seria considerada essa perda auditiva. Além de trocar o termo ―perda auditiva‖ por
―deficiência auditiva‖ há diversos parâmetros clínicos que contribuiriam na definição do
que é ser surdo.
Vemos, portanto, nesses enunciados, interdiscursos que constituem o surdo como
sujeito de língua e cultura e também como indivíduo da falta, aquele que precisa ser
diagnosticado a partir de convenções médicas.
Essa aparente paradoxo da lei que busca incluir a comunidade surda em um
movimento que exclui os ouvintes suscita uma discussão mais abrangente de propriedade
linguística. Questões como ―a quem pertence uma língua‖ emergem. Para começar a
respondê-la, é necessário refletir se a língua é um objeto que existe no mundo ou uma
ideia, uma construção discursiva feita através de disputas de poder.
Acreditamos que a língua esta se refaz a cada dizer, a cada interação. Portanto, a
língua pertence a quem a usa, seja usuário a quanto tempo for, tenha a proficiência que
tiver.
Buscamos algumas situações de cooficialização de línguas para compreender
possíveis efeitos práticos desse ato. Ressaltamos que não estamos defendendo essa medida
para a libras no Brasil, apenas investigando os efeitos de sentido em enunciados que
tornam uma língua ―meio legal de comunicação‖ e cooficial, no caso de outras línguas.
Iniciamos com situação de cooficialização de línguas dentro do Brasil, trazemos uma lei
municipal sobre a língua pomerana em um município da região Sul do país.
No município de Pomerode em Santa Catarina, promulgou-se a Lei 2.907 de 23 de
maio de 2017 (POMERODE, 2017) em que, no seu artigo primeiro diz: ―A língua
portuguesa é o idioma oficial da República Federativa do Brasil e no município de
Pomerode, fica cooficializada a língua Pomerana‖. O trecho reafirma a oficialidade da
língua portuguesa, porém não torna o pomerano um ―meio legal de comunicação‖, senão
língua cooficial.
Seguindo com a norma jurídica em questão, definem-se as consequências práticas
de dar esse novo status à língua pomerana:
Valorizar a herança linguística e cultural como forma de salvaguardar o
patrimônio imaterial e material do povo tradicional Pomerano, como base
de identidade e cidadania; II - Promover o conhecimento, a fala da língua
e a escrita da Língua Pomerana, especialmente nas famílias
descendentes de imigrantes Pomeranos e com as novas gerações, por
meio de ações de cunho social e educação informal; III - Por meio da
cultura Pomerana, caracterizar a identidade da comunidade e promover
88

turismo sustentável; IV - Criar concursos de literatura, genealogia e


sabedoria popular na Língua Pomerana ou bilíngue - Língua Portuguesa
e Pomerana; V - Possibilitar a criação de Banco de Dados sobre a
Cultura Pomerana ou bilíngue do município composto de genealogia,
imagens, documentos históricos, linguística, sabedoria popular, entre
outros; VI - Inventariar a demografia e aspectos culturais do povo
Tradicional Pomerano do município; VII - Por meio da língua
Pomerana incentivar os saberes tradicionais como música, canto, teatro,
danças, gastronomia, jogos, entre outros; VIII - Comemorar a Cultura
Pomerana na semana alusiva ao aniversário do Município; [...]
(POMERODE, 2017, grifos nossos).

Como já havíamos identificado no documento produzido pelo Parlamento Europeu,


podemos perceber na lei municipal de Pomerode sentidos que associam língua e cultura.
Nos diversos grifos que fizemos no texto da lei, identifica-se um entendimento de que a
cooficialização da língua, neste caso, está intimamente ligada à herança cultural,
imigração, identidade da comunidade etc. Diferentemente do entendimento de língua como
uma estrutura, um sistema linguístico fechado em si, presente na Lei 10.436/2002,
subjazem, nos enunciados aqui explicitados, concepções de língua como constitutiva do
sujeito, língua como uma maneira de ser e de estar no mundo, língua como interações
concretas entre sujeitos que se constituem a partir dessa língua ao mesmo tempo que a
constituem.
Podemos atribuir essas diferenças na forma de legitimar a existência de uma língua,
no caso das línguas minorizadas orais e de sinais, ao percurso traçado por elas ao longo do
tempo. Enquanto a libras (ou as línguas de sinais em geral) buscou seu reconhecimento
primeiro por meio de estudos linguísticos, isto é, a academia precisou ―provar‖ que se
tratava de uma língua através da ciência, as línguas orais traçaram caminhos como o da
língua de herança cultural, por exemplo. A libras, inclusive, não tem tanto a oportunidade
de ser uma língua de herança cultural já que, na grande maioria dos casos, não é passada de
pais pra filhas e filhos. Essa é uma diferenciação importante que se desdobra em caminhos
muito distintos para a legitimação de cada uma das línguas. Como pudemos perceber na
Lei da Libras, houve uma tentativa de justificar a libras como língua através de argumentos
científicos, argumentos que atrelam língua a uma ciência mais tradicional e estabelecida
historicamente como a visão de língua como estrutura, sistema de regras. Ao passo que no
caso das línguas orais, não se vê a necessidade de provar ou determinar que elas possuem
uma morfologia, sintaxe ou fonologia. O caminho para legitimá-la segue muito mais o
persurso das suas raízes culturais e de uso nas tradições de povos.
89

Outra situação de língua minoritária são as dos povos originários do Brasil. No


Estatuto do Índio, promulgado pela Lei 6.001, de 19 de dezembro de 1973 diz que:
Art. 47. É assegurado o respeito ao patrimônio cultural das comunidades
indígenas, seus valores artísticos e meios de expressão.
Art. 48. Estende-se à população indígena, com as necessárias adaptações,
o sistema de ensino em vigor no País.
Art. 49. A alfabetização dos índios far-se-á na língua do grupo a que
pertençam, e em português, salvaguardado o uso da primeira.
Art. 50. A educação do índio será orientada para a integração na
comunhão nacional mediante processo de gradativa compreensão dos
problemas gerais e valores da sociedade nacional, bem como do
aproveitamento das suas aptidões individuais.
Art. 51. A assistência aos menores, para fins educacionais, será prestada,
quanto possível, sem afastá-los do convívio familiar ou tribal.
Art. 52. Será proporcionada ao índio a formação profissional adequada,
de acordo com o seu grau de aculturação. (BRASIL, 1973)

Nessa lei, há sentidos que relacionam língua e cultura, especialmente, no artigo 47.
No entanto, há, assim como na lei da libras, a priorização do uso da língua portuguesa em
detrimento da língua indígena. Vale destacar que a Lei do Estatuto do Índio é da época da
ditadura militar, o que não acontece com a lei de libras. Mas isso não significa que a força
do monolinguismo deixou de se impor sobre as demais línguas.
Assim como o pomerano, em 2002, houve o reconhecimento de línguas indígenas
em nível municipal, conforme garantido pela constituição. O município de São Gabriel da
Cachoeira, no Amazonas, tornou otukano, o baniwa e o nheengatu línguas oficiais do
município, ao lado do português. A lei que regulamenta esse ato foi, inclusive, escrita nas
quatro línguas oficializadas.
Seguindo com a análise da Lei 10.436/2002, destacamos também, já ao final do seu
texto, no parágrafo único do quarto artigo o trecho que diz que diz que: ―A Língua
Brasileira de Sinais - Libras não poderá substituir a modalidade escrita da língua
portuguesa‖.
Em uma relação de disputa de poder, inerente a qualquer coexistência de duas
línguas, a libras assume uma posição, recorrente, de língua minorizada, subjugada à língua
majoritária que se sobrepõe e se impõem em qualquer circunstância. A língua portuguesa
segue na sua posição de língua primeira e primordial enquanto a libras deve ser um
adendo, algo que será produzido e levado à comunidade surda a partir da língua
portuguesa.
90

Finalmente, nos segundo e terceiro parágrafos da lei, enumeram-se ações práticas


para a difusão da libras como, por exemplo, garanti-la em instituições públicas. Seguem os
trechos:
Art. 2o Deve ser garantido, por parte do poder público em geral e
empresas concessionárias de serviços públicos, formas institucionalizadas
de apoiar o uso e difusão da Língua Brasileira de Sinais - Libras como
meio de comunicação objetiva e de utilização corrente das comunidades
surdas do Brasil.
Art. 3o As instituições públicas e empresas concessionárias de serviços
públicos de assistência à saúde devem garantir atendimento e tratamento
adequado aos portadores de deficiência auditiva, de acordo com as
normas legais em vigor.
Art. 4o O sistema educacional federal e os sistemas educacionais
estaduais, municipais e do Distrito Federal devem garantir a inclusão nos
cursos de formação de Educação Especial, de Fonoaudiologia e de
Magistério, em seus níveis médio e superior, do ensino da Língua
Brasileira de Sinais - Libras, como parte integrante dos Parâmetros
Curriculares Nacionais - PCNs, conforme legislação vigente. (BRASIL,
2002)

Destacamos ainda, no artigo 4º, quando se obriga que cursos de formação de


Educação Especial, de Fonoaudiologia e de Magistério, em seus níveis médio e superior,
do ensino da libras, como parte integrante dos PCNs.
Houve um intervalo de três anos entre a promulgação da lei e sua regulamentação,
feita através do Decreto 5.626/2005. Portanto, ações explicitadas na lei como a
implementação do ensino de Libras no magistério tiveram esse tempo sem regulamentação.
Teremos como foco principal na análise do decreto essa questão da implementação da
língua de sinais no âmbito educacional, já que esta é mais amplamente discutida no
dispositivo legal. Sobre sua implementação como disciplina curricular o Decreto diz que:
§ 1o Todos os cursos de licenciatura, nas diferentes áreas do
conhecimento, o curso normal de nível médio, o curso normal superior, o
curso de Pedagogia e o curso de Educação Especial são considerados
cursos de formação de professores e profissionais da educação para o
exercício do magistério.
§ 2o A Libras constituir-se-á em disciplina curricular optativa nos demais
cursos de educação superior e na educação profissional, a partir de um
ano da publicação deste Decreto. (BRASIL, 2005).

Portanto, decreta-se que a libras deve ser disciplina obrigatória na formação de


professores. O currículo a ser seguido por um licenciando deve, a partir da implementação
da lei, passar por essa disciplina.
91

Vale explicitar o conceito de currículo com o qual operamos e conjugá-lo com as


nossas escolhas teóricas até o momento. Trazemos, então, o estudo de Lopes e Macedo
(2011) sobre o tema, em que estas o entendem como uma produção discursiva, uma prática
que articula demandas contextuais e resulta no seu próprio fluxo de sentidos. A partir dessa
premissa, é possível defini-lo como algo que se produz simultaneamente à sua aplicação e
não como um produto prévio que se elabora por um conjunto de pessoas e que se aplica em
seguida. Os encontros enunciativos provenientes da prática curricular acabam por gerar
seus próprios planos de significação que, por si, constituem o que podemos chamar de
currículo. Nas palavras das autoras:
O entendimento de currículo como prática de significação, como criação
ou enunciação de sentidos, torna inócua distinções como currículo
formal, vivido, oculto. Qualquer manifestação do currículo, qualquer
episódio curricular, é a mesma coisa: a produção de sentidos‖ (LOPES;
MACEDO, 2011, p. 42)

Logo, entendemos que currículo não é sinônimo de conjunto de disciplinas a serem


cursadas em um determinado período de tempo ou de uma lista de conteúdos a ser
ministrada, senão algo muito mais abrangente e inapreensível. O que podemos
compreender é que esse conceito será constituído de maneira provisória e contingente a
partir das demandas contextuais que atuem em determinado momento.
Portanto, as próprias ementas e práticas existentes nas disciplinas de libras dos
currículos das licenciaturas das universidades do país contribuem para produzir sentidos
sobre o que é essa língua e o que é a educação de surdos na escola. Das quatro
universidades públicas federais do estado do Rio de Janeiro (UFRJ, UNIRIO, UFRRJ e
UFF), todas oferecem, como obrigatório, uma disciplina de um semestre letivo de Libras,
com carga de trinta horas.
O que poderia ser visto como uma potencialidade da lei e do decreto, ao deixar sem
definição um mínimo de carga horária que a disciplina Libras deve ter nas licenciaturas,
tem se provado um problema para uma proposta de educação de surdos. Qualquer que seja
a proposta da disciplina, seja ela o ensino da estrutura da língua, perspectivas de ensino
para surdos ou mesmo a discussão sobre o sujeito surdo e sua maneira de existir no mundo,
um semestre letivo é incipiente e se pode inferir que houve um esforço, por parte das
instituições de ensino superior, para apenas cumprir a legislação atendendo-a no mínimo
necessário
92

Questionamos também o fato de esta ser a única disciplina obrigatória por lei para
todas as licenciaturas, enquanto os demais componentes são determinados autonomamente
pelas universidades, seguindo as diretrizes curriculares das licenciaturas e as específicas de
cada curso. Há muitas situações pelas quais um docente passará em sua vida profissional e
a legislação não tem como antecipá-las todas como, por exemplo, alunos com altas
habilidades, cegos, altistas, além de outras situações que poderiam ser discutidas em
disciplinas específicas nas licenciaturas.
Outro item abordado no decreto e que também diz respeito à formação de
professores trata dos docentes que atuarão ensinando libras nas escolas. Sobre esse caso se
diz:
Art. 11. O Ministério da Educação promoverá, a partir da publicação
deste Decreto, programas específicos para a criação de cursos de
graduação:
I – para formação de professores surdos e ouvintes, para a educação
infantil e anos iniciais do ensino fundamental, que viabilize a educação
bilíngue: Libras – Língua Portuguesa como segunda língua;
II – de licenciatura em Letras: Libras ou em Letras: Libras/Língua
Portuguesa, como segunda língua para surdos;
III – de formação em Tradução e Interpretação de Libras – Língua
Portuguesa. (BRASIL, 2005)

Portanto, o governo se compromete a criar condições para criar cursos de


licenciatura de Letras-Libras e entende-se que apenas esse profissional estará habilitado a
atuar como professor de libras nas escolas. Nesse momento da lei, retoma-se a ideia da
educação bilíngue defendida nos documentos que tratam da inclusão no país.
Esse objetivo, repetidamente posto nos documentos, que tratam da educação de
surdos, não é mencionado no momento em que se conquista a obrigatoriedade da língua de
sinais nos cursos de formação de professores.
Até o momento, há vinte e três universidades públicas federais que oferecem o
curso Letras – LIBRAS, quatro ofertam Letras – LIBRAS / Língua Portuguesa e uma
oferece o curso Letras – LIBRAS / Língua Estrangeira (EMEC, 2020). Dentre os cursos de
habilitação única e dupla, os de licenciatura estão espalhados por vinte e dois dos 27
estados brasileiros mais o Distrito Federal conforme tabela a seguir:
93

Tabela 3: Universidades públicas federais que oferecem curso de libras11


Configuração do curso IES que oferece
IFNMG, UFAC, UFAL, UFAM, UFC,
UFCA, UFCG, UFERSA, UFG, UFJF,
Letras – LIBRAS UFMA, UFMG, UFMT, UFPA, UFPE,
UFPI, UFPR, UFRA, UFRJ, UFS, UFSC,
UFSC e UFT.
Letras – LIBRAS / Língua Portuguesa UFGD, UFPB, UFRN e UNIFAP.
Letras – LIBRAS / Língua Estrangeira UFRB12
Letras – Língua Portuguesa com domínio UFU
em LIBRAS (LPDL)
Fonte: E-MEC (2020)

Perguntamo-nos, a partir da legislação e da constatação de que há inúmeras


licenciaturas em Letras - Libras pelo país, qual a empregabilidade desses profissionais
formados, além da atuação nos próprios cursos de formação de professores na disciplina
libras das licenciaturas? Sem a criação de escolas bilíngues, o profissional formado nesses
cursos tem seu papel restrito, na educação básica, ao do que é chamado na legislação como
―instrutor de LIBRAS‖. A própria denominação de ―instrutor‖ já traz sentidos que o
diferencia de um professor, sentidos de um profissional que não cumpre o mesmo papel
educador dentro da escola. De acordo com a Classificação Brasileira de Ocupações (CBO),
um instrutor de cursos livres, por exemplo, são profissionais que ―devem ser capazes de
criar e planejar cursos livres, elaborar programas para empresas e clientes, definir materiais
didáticos, ministrar aulas, avaliar alunos e sugerir mudanças estruturais em cursos‖ (CBO,
2018). Portanto, não há necessidade de formação superior para desempenhar tal função.
Podemos dizer que nesse enunciado há um diálogo com discursos que não veem a libras
como uma disciplina curricular na escola ou com uma língua que faz parte da constituição
de sujeito do surdo e, ainda, que não requer um professor para ministrá-la.

11
Consideramos as instituições de ensino superior públicas federais e cursos de licenciatura, pois são os
cursos sobre os quais o Decreto 5.626/05 legisla.
12
Ainda que o nome do curso contemple a libras e uma língua estrangeira, ao buscar o projeto pedagógico do
curso constatamos que se trata de uma dupla habilitação em que a primeira é a Língua Portuguesa e a outra é
escolhida entre LIBRAS ou Língua Inglesa.
94

A Língua Brasileira de Sinais, a partir das análises feitas da Lei 10.436/2002 e do


Decreto 5.626/2005 é significada como um sistema fechado em si. No diálogo com
perspectivas estruturalistas da linguagem, entende-se a libras como um instrumento
externo ao sujeito que se encerra por si.
Ao contrário de língua orais de herança, como o caso do pomerano visto aqui, não
se associa a libras com práticas sociais de uso e com processos de identificação que passam
por constituição de cultura, sujeito, comunidade discursiva.
Na relação com a língua portuguesa, a libras, colocada na posição minorizada,
ganha papel de segunda língua no sentido daquela que deve vir sempre depois, em uma
ideia de adaptação feita ao público surdo. A garantia de interações realizadas
primeiramente e primordialmente em língua de sinais que sustente a existência de uma
comunidade discursiva que se constrói a partir dessa língua é ceifada da comunidade surda
a partir do momento em que se impõe a obrigatoriedade da língua portuguesa escrita em
sobreposição à libras.
No que a tange às ações voltadas ao ensino mais diretamente, podemos ver também
uma falta de entendimento da libras como língua. Na proposta de educação bilíngue, ao ter
apenas um semestre letivo de libras como disciplina curricular nas universidades do Rio de
Janeiro, questionamos a possibilidade de aprender qualquer língua e, principalmente, de
ensinar nessa língua em tão pouco tempo.
É possível, portanto encontrar atravessamentos de um discurso que significa a libras
como gestos, linguagem, mímica ou código restrito a um grupo de pessoas nas nossas
análises desses documentos legais. Esses são discursos que dialogam com a própria luta
histórica de usuários dessa língua por seu reconhecimento.

3.2.2. ENEM e Pró-Libras


Nesse momento, nos aproximaremos de dois instrumentos de avaliação existentes
na estrutura educacional brasileira que, em alguma medida, afetam a construção de
sentidos sobre o que é ser surdos e o que é a libras. Optamos por esses dois instrumentos já
que o ENEM e o Prolibras são avaliações organizadas pelo governo federal e ocupam
posições de destaque nas definições que se fixam sobre ensino de qualidade, proficiência
em língua e educação de surdos. Dessa forma, nos deteremos nesses dois instrumentos
nesta seção, começando pelo ENEM e, em seguida, o Prolibras.
95

Há pouco mais de vinte anos, em 1998, o Instituto Nacional de Estudos e


Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) aplicou o primeiro Exame Nacional do
Ensino Médio (ENEM) em apenas 184 municípios, com pouco mais de cento e cinquenta
mil inscritos e adesão de somente duas instituições de ensino superior para acesso aos seus
cursos de graduação. Seu intuito inicial era o de avaliar o Ensino Médio e não de servir
como prova de ingresso para as universidades. Com o passar dos anos o ENEM se tornou
uma realidade nacional e, atualmente, o exame é porta de entrada de quase todas as
Instituições Federais de Ensino Superior, muitas instituições estaduais e inúmeras
particulares no país. A prova está presente em, aproximadamente, mil e setecentos
municípios e, em sua última edição (2019), contou com mais de seis milhões de inscritos
em todo o país. O exame é aplicado uma vez no ano, em dois domingos consecutivos, e
divide-se em quatro áreas do conhecimento: Linguagens, Códigos e suas Tecnologias,
Ciências Humanas e suas Tecnologias, Ciências da Natureza e suas Tecnologias e
Matemática e suas Tecnologias.
Um dos efeitos da instituição de um exame dessas proporções na estrutura
educacional do Brasil é o olhar atento das escolas, principalmente no Ensino Médio, para
as bases em que a prova é formulada a fim de que suas propostas atendam à demanda de
preparar os alunos para obter bom desempenho no exame. O poder instituído nessa
avaliação, visto que ela determina o ingresso de maioria dos postulantes a vagas de
Instituições de Ensino Superior no Brasil é enorme.
Com isso, é seguro dizer que a prova do ENEM ajuda a constituir o conjunto de
enunciados que determinam o currículo escolar em âmbito nacional. Pauta-se, em maior ou
menor medida, as propostas pedagógicas das escolas no que a prova do ENEM apresenta.
Pode-se perceber esse tipo de influência, por exemplo, na dinâmica das escolas particulares
com projetos voltados ao ENEM para estudantes do 3o ano do Ensino Médio ou alunos já
formados que pretendem prestar o exame. Ainda que as escolas públicas não tenham esse
movimento tão explícito, é seguro afirmar que a linha seguida pelo ENEM influencia as
demandas educacionais da comunidade escolar na qual ela se insere.
No ano de 2000, de acordo com o histórico disponibilizado no site do INEP
(2020), há o primeiro registro de prova voltada para o público com ―necessidades
especiais‖, terminologia utilizada na época. No site consta que ―foi garantido atendimento
especializado para 376 pessoas com necessidades especiais, marcando o início de recursos
96

de acessibilidade‖ (INEP, 2020). De acordo com o edital desse ano, a aplicação do exame
passou a oferecer prova em braile, prova ampliada13, auxílio para leitura e transcrição e
tradutor/intérprete em libras. O tradutor/intérprete em libras garantiria a comunicação do
candidato no local de prova, além de poder tirar dúvidas pontuais de palavras em língua
portuguesa.
Em 2017, o INEP apresenta uma grande mudança na estrutura do exame para os
candidatos surdos: a videoprova em libras. A partir desse momento, os candidatos surdos
passam a ter acesso, além da prova impressa em língua portuguesa, a questões totalmente
traduzidas para a libras.
O edital do ENEM de 2017, sob o item de ―atendimento especializado e/ou
específico‖, divulgado em diário oficial diz que:
2.2.2.1 Sem prejuízo da oferta de tradutor-intérprete de Libras, bem
como das provas impressas, o Inep poderá oferecer ao
PARTICIPANTE surdo ou deficiente auditivo, em caráter
experimental, dispositivo contendo vídeo com a tradução de itens do
Enem 2017 em Libras. (BRASIL, 2017)

A introdução da videoprova em libras não isentou a necessidade do tradutor-


intérprete presente junto ao candidato surdo, como diz o texto do edital, já que as
interações no local de prova com aplicadores, chefes de sala, por exemplo, não estava
resolvido com a disponibilização da prova traduzida. A prova impressa em língua
portuguesa também seguiu garantida aos candidatos.
Destacamos, no entanto, as formas de designação do indivíduo que se submeterá
ao ENEM por meio da videoprova. O texto do edital fala em participante surdo ou
deficiente auditivo. Acreditamos que, por conta dessas formas de designações atreladas a
uma conjunção alternativa, subjaz ao texto o entendimento de que surdo e deficiente
auditivo são categorias diferentes, porém, a ambos é garantido o direito de fazer a prova
com o atendimento especializado. Perguntamo-nos, visto que há uma distinção, quais
possíveis ideias podem estar sendo opostas nesse enunciado. Ao pensar na designação
explicitada no capítulo dois, a que se refere ao surdo estaria atrelada mais ao sujeito que
possui sua língua, portanto cultura e identidade construídos a partir dela, enquanto a
denominação de deficiente auditivo relaciona-se ao indivíduo da falta, aquele que, em
comparação com o ouvinte, este sim reconhecido como o padrão a ser alcançado, deve ser

13
Prova com texto e imagens aumentados para candidatos com baixa visão.
97

corrigido em seus atributos físicos. Buscamos, então, outros sentidos no enunciado em


questão para compreender como essa diferenciação se dá no contexto apresentado.

2.2.4 Dispor de laudo médico que motiva a solicitação de


ATENDIMENTO ESPECIALIZADO, no qual devem constar:
a) a identificação do PARTICIPANTE (nome completo);
b) o diagnóstico com a descrição da condição que motivou a
solicitação e o Código correspondente a Classificação Internacional de
Doença - CID 10. Os casos específicos serão tratados conforme item
2.2.4.1;
c) a assinatura, o carimbo e a identificação do médico com o
respectivo registro no Conselho Regional de Medicina - CRM.
(BRASIL, 2017)

O atendimento especializado ao qual o texto faz menção, de acordo com o edital,


engloba as seguintes situações: baixa visão, cegueira, visão monocular, deficiência física,
deficiência auditiva, surdez, deficiência intelectual (mental), surdocegueira, dislexia,
déficit de atenção, autismo e discalculia. Todos os candidatos que se enquadrem dentro de
algumas dessas categorias precisam apresentar um laudo médico que comprove o que está
sendo alegado no ato de inscrição do ENEM.
Vemos, portanto, nesse trecho do edital, elementos que se afastam da construção
de sentido de surdo como sujeito de língua e cultura próprias e, na verdade, se aproximam
da visão do surdo como deficiente, alguém que necessita da comprovação proveniente do
campo discursivo médico para apresentar-se diante do INEP. Atentamos para palavras
como ―diagnóstico‖ e ―doença‖ como integrantes dessa caracterização do surdo (e todas as
outras categorias de atendimento especializado).
No caso do surdo, o diagnóstico médico garantirá o acesso linguístico a uma
prova em vídeos com os itens em libras. A legitimação da constituição do que é ser surdo e
de quem tem direito ao acesso à língua de identidade da comunidade surda se dá através de
um documento que só pode ser emitido por um profissional da saúde. Não há outro meio,
portanto, do surdo ser surdo perante o INEP a não ser pela palavra de um médico. É,
portanto, obrigado que o surdo se declare um deficiente ou doente (como identifica a sigla
CID), para ter acessibilidade linguística no exame de acesso ao ensino superior.
Com isso, questionamos a diferenciação entre surdo e deficiente auditivo
apresentada no texto e verificamos que dialoga com os discursos que veem a surdez como
um caso médico e não como uma minoria linguística.
98

O edital segue e, em seu item catorze discorre sobre a correção das redações e,
novamente, abrange a questão da surdez:
14.10 Na correção da redação dos PARTICIPANTES surdos ou com
deficiência auditiva, serão adotados mecanismos de avaliação
coerentes com o aprendizado da Língua Portuguesa como segunda
língua, de acordo com o Decreto nº 5.626, de 22 de dezembro de
2005. (BRASIL, 2017)
Mais uma vez encontramos ambas as designações: surdo e deficiente auditivo,
sem que se especifique o entendimento da diferenciação entre eles. Porém, ao contrário do
verificado no item 2.2.4 do edital, destacado anteriormente, neste há uma consideração ao
fator linguístico dos indivíduos surdos que prestarão o exame. Há o reconhecimento de que
a Língua Portuguesa não é a primeira língua do surdo e, com isso, subentende-se que a
libras o seja, reforçado pela referência ao Decreto 5.626 de 2005, que trata da língua de
sinais no país.
A prerrogativa de uma correção de redação específica também é dada aos
candidatos disléxicos e, de acordo com o edital, as redações dos disléxicos contam com
―mecanismos de avaliação que considerem as características linguísticas desse transtorno‖
(INEP, 2019, p. 63). Importante marcar a diferenciação no tratamento das duas situações
apresentadas. No caso dos surdos, há a consideração de que a língua deles não é a
portuguesa, enquanto que na situação de dislexia se mencionam características linguísticas
desse público. Ainda que seja um termo vago, ao opor-se à especificação de ―uma segunda
língua‖ atribuída aos surdos, podemos perceber um afastamento desses dois grupos e, mais
ainda, a consideração do sujeito surdo como usuário de outra língua e como isso interfere
no seu uso da língua portuguesa. Essa assunção dialoga com uma linha de estudos que
considera a libras como uma língua e poderia interferir no aprendizado de uma segunda
língua. Portanto, reforça a premissa de que a libras deva ser estudada e a relação entre ela e
a língua portuguesa investigada para que se possam considerar os aspectos dessa interseção
no momento da correção de um candidato usuário de libras. Pensando nas línguas orais, as
etapas de interlíngua na aprendizagem de um hispanofalante ao aprender português serão
diferentes daqueles anglofalantes. Da mesma forma, há momentos próprios dos usuários de
libras na relação com o português.
No entanto, essa análise mais aprofundada não pode ser feita, pois como
ressaltamos, em lugar algum encontramos quais são os critérios de correção de candidatos
que têm a língua portuguesa como segunda língua. Perguntamo-nos, inclusive, se o
99

tratamento dado a um surdo, usuário de libras, é o mesmo dado a um candidato disléxico,


com outras especificidades, ou a um candidato estrangeiro. O mesmo não acontece com a
correção das redações de ouvintes em que as expectativas de quais e como as competências
devem ser apresentadas encontram-se em um documento de 47 páginas em que são
dispensadas apenas duas linhas para tratar da correção da redação de surdos e mais duas
sobre dislexia (INEP, 2019). Em ambos os casos, há uma repetição do texto do edital, sem
especificar quais são os critérios de correção.
Os editais dos dois anos subsequentes não sofreram muitas alterações. Saem as
marcas de um evento experimental, que se encontravam no edital de 2017, e as
videoprovas já são tratadas como uma realidade nos editais de 2018 e 2019. Outra
alteração que encontramos, é a do tempo disponibilizado para o candidato realizar as
provas. Enquanto nos primeiros editais, o tempo extra era equivalente ao dado para outras
especificidades, no edital de 2019, os candidatos que contarão com a videoprova terão
cento e vinte minutos a mais para concluir o exame em cada um dos dias de aplicação.
Consideramos importante mencionar mais alguns aspectos que excedem o edital,
mas estão relacionados à aplicação da prova no que tange a área da Linguagem, Códigos e
suas Tecnologias. Como mencionamos, essa área, presente no primeiro dia de aplicação do
exame, engloba, das disciplinas escolares que conhecemos hoje, artes, educação física,
língua estrangeira (inglês ou espanhol) e língua portuguesa. As questões do ENEM são
baseados na Teoria de Resposta ao Item, compostos por um texto, o enunciado com
situação problema e cinco alternativas para que o candidato assinale a correta.
Na vídeoprova em libras, todos os itens são traduzidos, isto é, texto, enunciado e
alternativas. Desta forma, podemos entender que, para o ENEM, a língua portuguesa está
para o ouvinte assim como a libras está para o surdo. No entanto, as provas de língua
estrangeira (espanhol e inglês) não contam com o texto traduzido. Com isso, também é
possível inferir que as línguas estrangeiras estão para surdos e para ouvintes da mesma
forma. Não é considerado o fato de as línguas orais terem uma proximidade evidente, mais
ainda por serem as três – espanhol, inglês e português – da família indoeuropeia, enquanto
que as línguas de sinais obedecem a formas e usos muito mais distantes. Consideramos que
essa é mais uma desvantagem enfrentada pelo candidato surdo, que é supostamente
colocado em situação de igualdade com o ouvinte quando se trata de língua estrangeira;
100

porém, desconsideram-se as relações entre as línguas de identidades desses grupos com as


línguas estrangeiras disponíveis no exame14.
O outro exame que nos propomos a analisar nesta seção se trata do Programa
Nacional para a Certificação de Proficiência no Uso e Ensino de Língua Brasileira de
Sinais e para a Certificação de Proficiência em Tradução e Interpretação da Libras/Língua
Portuguesa, também conhecido como Prolibras. Ele é uma iniciativa do governo federal de
realizar um exame periódico para certificar a proficiência em duas áreas relacionadas a
língua de sinais: ensino e tradução.
O Prolibras foi instituído pelo Ministério da Educação através do Decreto
5.626/2005 (BRASIL, 2005), que regulamentou a lei de libras. Nesse decreto, menciona-se
o exame em dois capítulos: ―da formação do professor de libras e do instrutor de libras‖ e
―da formação do tradutor e intérprete de libras – língua portuguesa‖. Os detalhes do exame
foram estabelecidos pela Portaria Normativa nº 29, de 20 de julho de 2007, do Ministério
de Educação (MEC, 2007).
No terceiro capítulo do decreto, que discorre sobre a formação de professores,
afirma-se que:
Art. 7º Nos próximos dez anos, a partir da publicação deste Decreto, caso
não haja docente com título de pós-graduação ou de graduação em Libras
para o ensino dessa disciplina em cursos de educação superior, ela poderá
ser ministrada por profissionais que apresentem pelo menos um dos
seguintes perfis:
I - professor de Libras, usuário dessa língua com curso de pós-graduação
ou com formação superior e certificado de proficiência em Libras, obtido
por meio de exame promovido pelo Ministério da Educação;
II - instrutor de Libras, usuário dessa língua com formação de nível
médio e com certificado obtido por meio de exame de proficiência em
Libras, promovido pelo Ministério da Educação;
III - professor ouvinte bilíngüe: Libras - Língua Portuguesa, com pós-
graduação ou formação superior e com certificado obtido por meio de
exame de proficiência em Libras, promovido pelo Ministério da
Educação.

Como o decreto também obriga a criação de graduações que formem professores


em Letras-Libras e não haveria tempo hábil de criar os cursos e de formar os profissionais,
o Prolibras vem como uma etapa intermediária de certificação profissional no intuito de

14
Eu, como professor de língua estrangeira do INES, observo a relação dos surdos com a língua espanhola e
vejo como a experiência no contato com uma língua oral pode interferir na relação do aluno com os textos
apresentados naquele idioma. O próprio trabalho com o ENEM é um exemplo e revela, muitas vezes, um
obstáculo para o surdo maior do que para o ouvinte que tem como sua língua de identidade a LP.
101

habilitar surdos e ouvintes a atuar como professores de libras. Há um prazo de dez anos
para a vigência dessa habilitação através do Prolibras, portanto, a contar da data do
decreto, 2005, esse período expirou em 2016.
De acordo com a portaria normativa, o Prolibras teria periodicidade anual (entre
2006 e 2016, respeitando os dez anos de prazo para que as universidades implementem os
cursos de licenciatura em libras) e seria um esforço conjunto do MEC com o INEP. A
UFSC, primeiramente, era o único órgão credenciado a realizar o exame. Em 2011, a partir
de outra portaria normativa, a 20/2010 do MEC, institui-se que o exame passara a ficar sob
responsabilidade do INES. O último exame foi realizado em 2015, em uma parceria UFSC
e INES, e há uma discussão sobre a necessidade de continuar a aplicar o exame, visto que
o período estipulado pela legislação se encerrara. Em nota, a Federação Nacional de
Educação e Integração dos Surdos (FENEIS) diz que ―o Ministério da Educação volta a
discutir a necessidade de lançar uma nova edição, a fim de subsidiar algumas ações
emergentes que se encontra em algumas regiões no Brasil.‖ (FENEIS, 2017). No entanto,
nenhuma nova edição do exame foi lançada.
Para que se tenha uma dimensão da abrangência do exame, a última edição de
2015 contou com mais de onze mil inscrições sendo que destas, mais de oito mil foram
efetivadas (UFSC, 2015).
Feita essa contextualização do que é o exame e quais são suas bases de criação,
optamos por nos aproximar do edital referente ao último exame do Prolibras organizado.
Dessa forma, buscamos os entendimentos mais recentes sobre os sentidos que
investigamos nessa tese construídos por esse instrumento de avaliação que é relevante para
a educação de surdos no país.
Antes de entrarmos no último edital lançado é importante comentar os efeitos da
existência de um exame de proficiência que atesta capacidade de um indivíduo de atuar
como professor de uma determinada disciplina, no caso, libras.
As discussões sobre formação de professores mobilizam diversos campos do
conhecimento e buscam compreender como é possível preparar um profissional da área da
educação para atuar como docente. Uma das conquistas da carreira do magistério foi a
obrigatoriedade de curso superior de licenciatura para atuar nas escolas da educação básica
e ensino superior pelo país, que tem sua origem no Decreto-Lei nº. 1.190, de 4 de abril de
1939, que criou a Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, instituindo a
102

obrigatoriedade das licenciaturas para docentes do Ensino Secundário (BRASIL, 1939).


Essa obrigatoriedade, desde 1996, foi reforçada pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (BRASIL, 1939).
Dessa forma, o Decreto de 2005, como já comentamos, criou um dilema para a
implementação de cursos de licenciatura em Letras - Libras. Quais os profissionais que
atuariam nesses cursos nos componentes específicos envolvendo a língua brasileira de
sinais? Para resolver a urgência em formar professores para atuar, criou-se o Prolibras e, a
fim de dar oportunidade aos surdos, criou-se esse mecanismo com o exame de proficiência.
Podemos estabelecer um diálogo com exames de proficiência das línguas
estrangeiras disponíveis no país em que há, em alguns casos, uma pretensão de certificar
indivíduos a atuar como professores. Há exemplos de certificação linguística do inglês,
espanhol e francês que, historicamente, já buscaram até mesmo parcerias com o poder
público no intuito de desempenhar a função das universidades de formar professores para
atuar na educação básica. Por exemplo, de acordo com o parecer do Conselho Federal de
Educação 1.114/79 e o Despacho Ministerial 326/94 de 15 de agosto de 1994, era
permitido aos portadores de certificados de proficiência, concedidos por sociedades
estrangeiras que mantém no Brasil cursos de língua, também estrangeira, efetuar
complementação pedagógica, matriculando-se nas matérias pedagógicas dos
correspondentes cursos de licenciatura e obter registro especial para o exercício do
magistério em ensino fundamental e médio. A LDB extinguiu essa possibilidade, porém
ainda com algumas possibilidades de parcerias aprovadas pelas Instituições de Ensino
Superior.
A diferença do Problibras é seu caráter temporário e de ação afirmativa para com
os surdos que não possuem, em sua maioria, formação em ensino superior por, dentre
muitas questões, a falta de acessibilidade linguística.
Esse caráter de ação afirmativa é reforçado já que, de acordo com o edital de 2015
o prerrequisito para realizar qualquer uma das modalidades da prova é ter concluído o
ensino médio. Com isso, o candidato não precisa ter ensino superior ou experiência com a
docência. A prova é composta por duas etapas: uma objetiva e comum às duas
certificações sobre compreensão da Libras, envolvendo conhecimentos linguísticos,
educacionais e legislação específica da Libras; uma segunda específica para cada
certificação. Vamos nos deter na parte que certifica a ―proficiência no ensino de Libras‖.
103

A segunda etapa que corresponde à certificação do ensino da libras exige, por


meio do edital que, durante vinte minutos, o candidato cumpra as etapas de:
a) apresentação pessoal, em Libras, na qual o participante deverá
identificar-se, falar sobre sua formação, sobre sua atuação junto à
comunidade de surdos e sobre suas perspectivas de atuação (máximo
de 5 minutos). b) apresentação sobre um dos pontos do programa
especificado no Anexo II deste Edital, na qual o participante deverá
expor acerca de como desenvolveria o plano de aula preparado,
detalhando o conteúdo, as estratégias, a metodologia e os recursos
didáticopedagógicos que utilizaria (máximo de 15 minutos). (UFSC,
2013)

Ainda que a exigência da conclusão do ensino médio deva ser comprovada


anteriormente mediante documentação há um espaço na prova prática para que se fale
sobre formação além de atuação junto à comunidade surda. Dessa forma, há uma
valorização da experiência e da trajetória do candidato e não apenas do que é apresentado
no momento da avaliação.
No Anexo II, os ponto a serem avaliados são:
1. Gramática da Língua de Sinais: Aspectos Fonológicos. 2.
Gramática da Língua de Sinais: aspectos morfológicos. 3. Gramática
da Língua de Sinais: aspectos sintático-discursivos. 4. Os
classificadores e sua aplicação gramatical e didática. 5. As Expressões
faciais no ensino de Libras. 6. Mitos das Línguas de sinais e
propriedades das línguas naturais. 7. A Escola Bilíngue para surdos:
desafios e possibilidades. 8. O ensino de Libras como segunda língua
(L2). 9. Cultura, comunidades e identidades surdas. 10. História da
educação de surdos (UFSC, 2013).

Metade dos pontos não tem, especificamente, uma menção à dimensão do ensino
que é própria certificação pretendida nessa etapa do Prolibras. Há uns pontos que tratam
apenas questões de descrição linguística e, portanto, abre-se a possibilidade de que sejam
abordadas de maneira desconectada da dimensão do ensino.

Podemos, então, concluir que há um movimento duplo e, em muitos aspectos


antagônicos, na caracterização da libras, ora como língua dissociada de cultura e
identidade, ora como língua conectada com uma comunidade que produz seus sentidos e é,
também, produzida por ela.
Lei e decreto analisados nos mostram esses deslizamentos na disputa constante de
sentidos que também se entrelaçam com as significações do que é ser surdo e como essa
noção também pode oscilar entre o sujeito da falta, que precisa de laudos e intervenções
104

médicas ou o sujeito detentor de uma língua minorizada e, por isso, carente de políticas
linguísticas que o atendam de maneira a prove condições de convivência e integração à
sociedade.
105

4 ANÁLISE DE DOCUMENTOS PEDAGÓGICOS: O CAP-INES

Não vemos a possibilidade de discutir educação básica sem discutir escola e na


educação de surdos não pode ser diferente. Buscaremos, portanto, nesse capítulo, nos
aproximar de documentos produzidos pela comunidade discursiva constituída no Colégio
de Aplicação (CAp) do Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES). Buscamos,
dessa forma, entender como o CAp-INES se apropriou das discussões sobre língua,
educação de surdos e surdez ao longo do tempo à luz dos enunciados que circulavam nos
determinados contextos. Interessa-nos, também, a relação entre os documentos escolares
produzidos historicamente com os documentos legais vistos no capítulo anterior desta tese
já que esses documentos legislam também sobre o ambiente escolar dos sujeitos surdos.
Propomos essa trajetória voltando-nos para dois conjuntos de textos
primordialmente: a evolução temporal da grade curricular oferecida pelo colégio na
educação escolar a alunos surdos e o Projeto Político Pedagógico (PPP) vigente do CAp-
INES. Entendemos a grade curricular como um instrumento de poder que determina as
escolhas do que será ou não estudado por um determinado grupo e, por isso, ajuda a
construir a ideia de currículo, que será abordada mais adiante, de determinado espaço.
Consideramos também o Projeto Político Pedagógico como um texto que é construído e
também constrói sentidos de uma determinada comunidade discursiva e, por isso, optamos
por incluí-la em nosso escopo de estudo.
Voltamo-nos para as discussões em torno da Educação Básica e, mais
especificamente no que abrange os anos finais Ensino Fundamental (EFII) e o Ensino
Médio (EM), por serem essas são as etapas em que atuo na instituição e, por conseguinte,
de maior interesse. Com isso, buscamos as informações para o estudo no Departamento de
Educação Básica (DEBASI) do INES. Dentro da estrutura do instituto esse é um
106

departamento com direção própria e, com isso, constitui um grupo com espaço para
discutir suas ações e com certa autonomia sobre suas decisões e atos.

4.1 As partes de um todo: com quantos documentos se constrói o currículo

Começamos a construir nosso entendimento de currículo no capítulo anterior e,


neste momento, consideramos importante abrangê-lo no intuito de inserir essa discussão no
contexto da produção de documentos educacionais pelo DEBASI, pensando em uma
proposição mais geral de currículo e nas teorias do discurso com as quais operamos neste
trabalho. A relação entre currículo, discurso e educação de surdos é a base das discussões
desta seção.
Apoiamo-nos nas leituras de Silva (1999) para obter uma perspectiva mais histórica
das teorias de currículo e entender que esse conceito passou por diversas etapas ao longo
de sua história que refletem concepções teóricas do que é ensino, através de seus objetivos,
procedimentos e expectativas de resultados a alcançar. A esse arcabouço teórico, aliamos
as leituras de Lopes e Macedo (2011) a fim de articular ideias de currículo com conceitos
como conhecimento, cultura, poder e política. Com esse histórico poderemos pensar no
próprio caminhar do que se entendia por escola e pensar, mais especificamente, na escola
objeto de trabalho dessa tese, o CAp-INES.
Em Silva (1999) encontramos uma forma de organizar os acontecimentos da área
do currículo que foram divididas a partir de uma sequência histórica e agrupadas em quatro
etapas distintas de acordo com os conceitos que foram mobilizados por cada uma delas de
maneira mais destacada São elas: as teorias tradicionais, críticas, pós-críticas e, por último,
sem dar o nome o autor reflete sobre o momento atual relacionando-o com conceitos como
saber, poder e identidade.
A primeira etapa pensada por Silva foi a das teorias tradicionais, que surge junto
com a delimitação do campo curricular como uma área de estudo formalizada. Ainda que
discussões sobre currículo já houvessem sido feitas desde que conversas sobre educação
existem, esse termo ganhou visibilidade e um campo acadêmico para tal só foi estabelecido
no início do século XX, nos Estados Unidos. Ainda de acordo com Silva (1999), há
condições próprias no contexto social para a inauguração desse campo de estudo. É uma
107

época, nos EUA, em que o estado começa a criar burocracias próprias para lidar com a
educação, a escolarização ganha uma proporção mais abrangente em todas as camadas da
população e a preocupação com a manutenção de uma identidade nacional ameaçada pelo
grande fluxo migratório. Todos esses fatores serviram para a ascensão do campo de
estudos do currículo nesse determinado período.
Como marco para o surgimento das teorias tradicionais e também da área de estudo
foi, mais especificamente, o livro The Curriculum, de Bobbit, lançado em 1918 nos
Estados Unidos. A grande discussão posta na obra, provocada pela problematização
imposta pela possibilidade de educar toda a população, era como determinar os objetivos
de um currículo. O autor colocava dois caminhos a percorrer: voltar-se para as disciplinas
científicas que expliquem a sociedade à sua volta ou a preparação de jovens para o mundo
do trabalho com saberes profissionais do mundo ocupacional adulto.
Essa discussão, iniciada por Bobbit (1918), avança com outros nomes como Dewey
(1922) e Tyler (1949) e mobiliza principalmente conceitos como conhecimento,
planejamento e avaliação dentro de uma lógica tecnicista e sistêmica de ensino. Nesse
momento, todos esses nomes das teorias tradicionais tendem a responder a questões sobre
os objetivos do currículo voltando-se para a preparação laboral, buscando a eficiência do
ensino com resultados que pudessem ter seu efeito imediato no mercado de trabalho. De
acordo com esses estudos, era necessário fazer um diagnóstico da realidade vivida pelos
alunos para, assim, diagnosticar quais habilidades deveriam ser aprendidas por um
determinado grupo. Dessa forma, a formulação de objetivos é parte central desse
pensamento e, por conseguinte, a criação de mecanismos de mensuração do cumprimento
desses objetivos também é primordial. No que tange ao papel do professor, a essa
concepção subjaz uma ideia de docente que detém controle total sobre o que ocorre em sua
sala de aula e, dessa forma, sabe os procedimentos exatos a seguir para que todos cheguem
ao mesmo resultado.
Dialoga-se aqui com o modelo de organização de empresas concebido por
Frederick Taylor (1909) de administração científica de fábricas ara produção em massa, de
maneira padronizada. O currículo nesse modelo é concebido como um percurso padrão, um
molde sob o qual alunos estariam subjugados e, ao final do processo, devem ter chegado ao
mesmo destino, tendo adquirido as mesmas habilidades e sendo capazes de realizar as
mesmas tarefas.
108

De acordo com essa forma de pensar, os alunos não são vistos a partir da sua
individualidade. O ponto de partida é desconsiderado, preocupando-se apenas com o ponto
de chegada. Pressupõe-se que as avaliações, invariavelmente, são capazes de dar conta de
forma exata do que se pretende aferir e qualquer subjetividade é deixada de lado. No
entanto, buscando fazer um contraponto a esse pensamento, trazemos Luckesi (2011), que
afirma que a avaliação, durante muitos anos, foi significada como um instrumento
supostamente capaz de medir o progresso de aprendizagem do aluno. No entanto, entende-
se, a partir dessa visão, que a própria avaliação é uma ferramenta que se relacionará com
cada aluno de maneira distinta, pois cada discente estabelece sua relação com o percurso
curricular.
Uma vez estabelecido o campo do currículo no início do século XX, a resposta aos
teóricos tradicionais veio com pensadores que não apenas questionavam em como fazer o
currículo, entendido na época como o conjunto de conteúdos a serem ensinado, senão a sua
própria elaboração e, com isso, preocupavam-se em como a educação servia para manter
ou alterar os arranjos sociais preestabelecidos. Esse movimento ocorreu por volta dos anos
1960 e eclodiu em diversos países como na Inglaterra, com Michael Young, França, com
Althusser, Bourdieu, e no Brasil com a obra de Paulo Freire. Evidentemente, cada contexto
traz particularidades na contribuição para o campo, mas é possível encontrar pontos de
contato entre eles.
O foco deixa de ser tanto na confecção do currículo, mas em seu papel social na
manutenção das realidades sociais com suas injustiças e desigualdades. Para isso, entra em
questão a articulação da educação com a ideologia, tema que foi sustentado pelo ensaio do
filósofo Althusser em A ideologia e os aparelhos ideológicos do Estado (1970). A escola é
um desses aparelhos do Estado que serve para perpetuar as ideologias pretendidas por
determinado grupo dominante e faz parte, portanto, do currículo, de acordo com esse
entendimento da época, a tarefa de reiterar tal prática ou modificá-la subvertendo a ordem
posta.
Não importa mais tanto com o onde se irá chegar, mas a prioridade está no caminho
percorrido para se chegar lá. O foco do processo escolar está mais voltado para os alunos
enquanto aprendizes inseridos em determinada realidade social. Os dispositivos escolares
são pensados para que o aluno se emancipe e não se prenda a essa situação que lhe é
apresentada, portanto, a escola é um mecanismo de trânsito social.
109

O terceiro grande grupo de concepções curriculares que se destaca é a pós-crítica


em que relações de poder e multiplicidade de sentidos entram nas discussões. Portanto, a
partir de perspectivas pós-estruturalistas que embasam esse pensamento, com ajuda de
teóricos como Derrida, Lacan, Deleuze, Foucault, o currículo deixa de pertencer a uma
realidade exterior que deva ser identificada e/ou combatida. As teorias pós-críticas
trabalham a partir da hipótese de que o currículo é construído discursivamente conforme
sua própria produção e será entendido de tantas vezes quantas for experimentado pelos
agentes.
Dessa forma, professores, alunos, diretores, todos os que participam da vida escolar
estão contribuindo para a construção de sentidos curriculares. Esses indivíduos, por sua
vez, são frutos de uma produção social, cultural e histórica e, assim, submetidos a relações
de poder estabelecidas em contextos específicos.
Em última análise, Silva (1999), ao tratar do campo do currículo à época do
lançamento de seus estudos, tentava integrar uma visão crítica a uma pós-crítica. Segundo
ele:
Embora seja evidente que somos cada vez mais governados por
mecanismos sutis de poder tais como os analisados por Foucault, é
também evidente que continuamos sendo também governados, de forma
talvez menos sutil, por relações e estruturas de poder baseadas na
propriedade de recursos econômicos. (SILVA, 1999, p. 145)

É inegável reconhecer os avanços das discussões trazidas pelas teorias pós-críticas


com a redefinição do eixo de problematização para um entendimento mais completo e
complexo não apenas do currículo, mas de escola e de educação. No entanto, também não
podemos abandonar as questões da organização do currículo e as perguntas sobre como
formulá-lo e quais objetivos podem atender.
Então, vemos o caminho percorrido por esse conceito desde as concepções
tradicionais inauguradas com Bobbit (1918), que relacionava o currículo diretamente com
a vida laboral e, por isso, concebiam a educação como uma produção mecanizada e
passível de resultados homogêneos, até a fase pós-estruturalista em que o conhecimento é
colocado como uma questão indeterminada e incerta. Incluímos, também, as discussões
trazidas por Silva (1999) que significa o currículo como um elemento de construção de
identidade e/ou de subjetividade.
Portanto, essa ideia nos traz também a relação que esse instrumento tem com o
poder. Ao selecionar um conjunto de disciplinas (elementos integrantes da ideia de
110

currículo), se está moldando o tipo de sujeito que se quer encontrar ao final do percurso.
Essa seleção pressupõe a exclusão de outros e submete os sujeitos à exposição a
determinados conteúdos e não a outros. Portanto, a partir do momento que um grupo está
em posição hegemônica para fixar sentidos sobre qual será o currículo que circula em
determinado contexto se está dando a ele o poder de influenciar de maneira determinante
em que sujeitos serão formados.
Esses sentidos mobilizados por determinado grupo não são de controle total dele.
Não se trata de uma decisão consciente e programada, afinal, trata-se de construções que se
dão através da língua, isto é, está sujeita a subjetividades de todos os envolvidos e, por
isso, impossíveis de controlar, prever, planejar.
A temática da surdez torna ainda mais imperativa a relação entre currículo e
cultura. Partindo da ideia de que os surdos têm sua língua de identidade e, por conseguinte,
uma cultura própria, entendemos que novos sentidos de currículo também emergem nesse
grupo, por isso, não podemos deixar de fazer a interseção desse tema com o currículo. Os
currículos também são elementos que fazem parte dessas produções discursivas e
contribuem para a fixação de um conceito de cultura e para a fixação de determinadas
culturas. No caso dos documentos educacionais produzidos pelo DEBASI, objeto de
interesse deste capítulo, os enunciados produzidos por eles tratam de reafirmar ou silenciar
algumas ideias de cultura, ou seja, fixar identidades que, nada mais são que ficções,
realidades fabricadas e tornadas possíveis através de discursos.
Sob esse aspecto, a cultura não é prévia ao currículo e este a perpetuaria, a
reproduziria ou a negaria. O currículo está na própria corrente discursiva que produz
sentidos que irão constituir sentidos do que seja cultura e como ela está disposta e dividida
em uma dita sociedade. Assim, o currículo não reflete a cultura, mas ajuda a instituí-la.
Pensa-se, portanto, não mais em cultura, porém em fluxos culturais, movimentos
discursivos que produzem sentidos todo o tempo a fim de estabelecer o que esse conceito
enuncia. Porém, esse é um movimento constante e complexo e, com isso, impossível de ser
totalmente estabelecido e apreendido.
Umas das relações entre cultura e currículo que está mais estabelecida e enraizada
nos pensamentos sobre tais campos é o contato entre ambos a partir da ciência (LOPES &
MACEDO, 2011). Ao entender o currículo como uma seleção de conhecimentos válidos,
uma ideia de cultura científica ganha importância à medida que esta validaria esses
111

conhecimentos e, portanto, haveria uma relação direta entre o que é valorizado na cultura
acadêmica para o que é selecionado para estar nos currículos. No entanto, trabalha-se para
desnaturalizar tanto a ideia da existência de uma cultura científica, como se essa fosse uma
realidade estática e preexistente ao discurso, como para desconstruir a noção de currículo
apenas como a seleção de conhecimentos.
A própria crise do conhecimento científico como algo natural, universal e absoluto
contribui para uma queda da concepção de conhecimentos válidos que precisam ser
ensinados como verdades para um determinado grupo de estudantes. Assim, começa-se a
relativizar a relação direta entre currículo e conhecimento (SILVA, 1999), mais
especificamente a partir do advento da perspectiva crítica dos estudos curriculares. O
conhecimento, e por sua vez, a cultura, passaram a ser pensados como uma construção
coletiva e dialógica em que professor, aluno e comunidade escolar contribuem para
significar, ao contrário de apenas aceitar as informações dadas, prontas, absolutas que são
vertidas sobre esses sujeitos a partir de uma comunidade científica estabelecida e
impenetrável.
Dessa maneira, a importância do estudo do currículo reside na própria importância
do que se quer como formação de sujeitos em um determinado curso. Ao trazer para este
estudo, nos referimos à formação de sujeitos surdos em uma escola especializada pública
federal na qual incontáveis forças atuam influenciando o produto final. Esses elementos
conjunturais acabam por definir, de maneira direta ou não, o currículo que se apresentou ao
longo do tempo e se apresenta hoje na educação básica do INES.

4.2. A trajetória curricular do CAp-INES

Focamos nossa análise, neste momento, no conjunto de disciplinas oferecidos pelo


CAp-INES aos alunos surdos no período da educação básica, mais especificamente nas
etapas dos anos finais do Ensino Fundamental (6º ao 9º ano) e do Ensino Médio (1º ao 3º
ano). As nomenclaturas e as etapas oferecidas aos alunos, ao longo dos tempos, foram
sendo acrescidas e alteradas e, com isso, buscamos as equivalências correspondentes. O
ensino secundário, por exemplo, surge apenas após a década de 1980.
112

A lista de disciplinas oferecidas pelo colégio aos alunos forma parte do currículo
escolar e constituem também os sentidos construídos sobre o que se entendia e pretendia
para a educação desse público. Entender não apenas as disciplinas incluídas, mas pensar
também nas que foram deixadas de fora ou substituídas de um período para o outro, ajuda
a (re)construir a teia de significações sobre o que se entendia e se entende por ser surdo,
por educação de surdo, por libras e quais os papeis pretendidos para esse público na
sociedade. Assim como já foi ressaltado no primeiro capítulo, ao pensar na trajetória da
educação de surdo no mundo e no Brasil, é importante lembrar que as decisões foram, ao
longo dos anos, tomadas por ouvintes. Portanto, é sempre a visão do ouvinte sobre o
público surdo, uma construção de identidade surda deslocada da experiência surda.
Nosso corpus para esta seção abrange documentos publicados em seis momentos
históricos distintos desde a inauguração do instituto até os dias atuais. A pesquisa
contempla arquivos da época do Império e que estão disponibilizados na Biblioteca
Nacional, além de arquivos do próprio acervo do INES em sua biblioteca própria. Após
pesquisa extensa15, compusemos esse corpus com todos os arquivos que, de alguma forma,
continham informações sobre a grade curricular do CAp-INES em algum momento
histórico.
Com isso, contamos não apenas com a lista de disciplinas oferecidas aos alunos,
mas também com planos pedagógicos, pesquisas de desempenho escolar, programas de
curso com os conteúdos programáticos de cada ano, dentre outros documentos. Focaremos,
como dito, na grade curricular, no entanto, faremos menção a outros trechos dos
documentos de origem dessas informações quando considerarmos importante para compor
nosso trabalho. Segue a tabela com os períodos e a natureza dos documentos encontrados
nos quais nos basearemos:

Tabela 4: Documentos base para análise das grades curriculares


Documento Data
Documento inaugural do Instituto Imperial para Surdos-Mudos de Ambos os 1856/57
Sexos
Pedagogia Emendativa do Surdo-Mudo 1934
Actividades e Documentos Estatísticos do Instituto Nacional de Surdos- 1937
Mudos

15
Contamos com o auxílio da professora e historiadora Solange Rocha, responsável pela pesquisa e
conservação do acervo da biblioteca do instituto
113

Educação de Surdos: Programas (Boletim Informativo) 1962


Plano Pedagógico 1979
Grade Curricular CAp-INES 2020

O primeiro texto que compõe nosso corpus, na verdade, é composto por dois
documentos publicados na época do Império em intervalo de apenas um ano, ambos da
época em que Huet era diretor (1857-1861). O primeiro documento, de 1856, inaugura o
instituto, que cobrava uma pensão trimestral até ser encampado pelo imperador e ganhar
total apoio financeiro e possibilitar a oferta dos serviços gratuitamente. Nesse primeiro
documento constava seu nome de inauguração, Instituto Imperial para Surdos-Mudos de
Ambos os Sexos, que perdurou por um ano apenas, como podemos constatar no segundo
documento, publicado em 1857, no qual consta o nome Collegio Nacional para Surdos-
Mudos de Ambos os Sexos. Optamos por agrupar os documentos visto que as diferenças
textuais são pequenas e, dentro do nosso tema de interesse, a grade curricular, não há
alteração alguma. Nesse momento, o colégio aceitava meninos e meninas com idades entre
7 e 16 anos e oferecia um curso com seis anos de duração, independente da idade de
ingresso. A seguir seguem as imagens dos documentos que serão analisados mais
detalhadamente mais adiante:
114

Figuras 4 e 5: Documentos de inauguração do INES

BRASIL, 1856 e BRASIL, 1857.

O segundo documento, datado de 1934, é de autoria de Armando de Lacerda,


diretor do instituto à época de sua publicação, e conta com quase trinta páginas de uma
defesa do que denominam ―pedagogia emendativa do aluno surdo‖. Para além da formação
chamada de ―primária‖ e outra ―de caráter profissional‖, o instituto decide oferecer um
adendo à sua formação no intuito de ―completar a obra educativa, fornecendo ao aluno
elementos de atuação na vida prática‖ (INES, 1934, p. 5). O foco dessas emendas
curriculares está em questões de linguagem, primordialmente, pelo método oral. Ainda que
esse documento não trate primordialmente das disciplinas básicas da grade curricular
escolar, ao tratar dessas emendas ao currículo, menciona o que é oferecido na escola.
Acreditamos que tratar dessas inclusões ao currículo é importante para entender as
propostas educacionais ao aluno surdo nesse determinado contexto.
115

Ainda que o documento de 1937 seja temporalmente próximo ao anterior, de


1934, optamos por mantê-los separadamente pela sua relevância no contexto educacional
do país. Com a ascensão de Gustavo Capanema ao Ministério da Educação e Saúde do
país, em 1934, mudanças na organização do sistema educacional do país foram iniciadas e
o ainda diretor do INES, Armando de Lacerda, recebeu a incumbência do Governo Federal
de realizar uma pesquisa com o perfil dos alunos e um relatório das atividades do instituto
ao longo dos anos. Portanto, esse documento, além de apresentar a grade curricular, faz um
balanço do caminho percorrido pelo INES além de apresentar resultados de pesquisas
feitas sobre os alunos.
Avançamos para outro momento histórico da educação brasileira, no início dos
anos 1960, quando a Lei 4.024 de 1961 (BRASIL, 1961), conhecida como a Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), foi promulgada. É nesse contexto que o
documento de 1962 é publicado. Consiste em um compilado dos conteúdos programáticos
das disciplinas oferecidas no que chama de pré-fundamental (até seis anos de idade) e no
ensino fundamental (até os catorze anos de idade). Declaradamente uma adaptação do
programa ―primário das escolas públicas do Estado da Guanabara‖ (INES, 1962, p.01), o
documento conta com os objetivos de cada disciplina para cada ano escolar além do
―mínimo que deve ser obtido pelos alunos‖.
O Plano Anual de Atividades Pedagógicas, de 1979, assemelha-se ao que
entendemos por Projeto Político Pedagógico (PPP) nos dias de hoje e conta com uma visão
mais geral sobre os ―fundamentos filosóficos da educação especial‖ além de
procedimentos mais práticos como formas e regras de ingresso. Há também os detalhes dos
objetivos de cada segmento na escola com a grade curricular, objetivos e metodologias
pretendidas por cada um desses momentos.
Por último, buscamos a grade curricular atual do CAp-INES com a lista de
disciplinas oferecidas aos alunos dos anos finais do Ensino Fundamental e do Ensino
Médio, retirado do atual PPP, que data de 2011. O contexto de confecção desse documento
já contempla a Lei de Libras (BRASIL, 2002) e o Decreto que o regulamenta (BRASIL,
2005) e é o primeiro que tem registro da participação efetiva de surdos em sua construção.
O fórum instituído para discutir e elaborar o PPP, no intuito de abarcar todos os setores do
instituto, contou, por exemplo, com um professor surdo do componente curricular Libras.
116

A fim de ter uma primeira visão mais geral dos componentes curriculares
oferecidos em cada época no instituto, propomos uma tabela que traz esse panorama
amplo. Na seção seguinte nos deteremos nas análises específicas de cada contexto
apresentado.

Tabela 5: Componentes curriculares oferecidos no Cap-INES nos períodos selecionados16


Componentes curriculares oferecidos
1856/57 Escripta e leitura
Elementos da lingua nacional – Grammatica
Noções de religião e dos deveres sociaes – Cathecismo
Geographia
Historia do Brasil
Historia sagrada e profana
Arithmetica
Desenho
Escripturação mercantil
Agricultura theorica e pratica (para meninos)
Trabalhos usuaes de agulha (para meninas)
Lições de pronuncia, articulação e de leitura (apenas para os que se
reconhecer aptidão para semelhantes exercícios).
Etapa educativa: Essas disciplinas eram oferecidas ao longo dos seis anos de
permanência dos alunos no instituto. Esse período era denominado de curso
de estudos completo.
1934 e Ensino Fundamental17
1937 Parte didática emendativa:
- Curso de linguagem escrita
- Curso de linguagem oral
Parte prática:
- Curso de desenho geral, desenho aplicado e trabalhos manuais
Parte profissional:
- Curso de encadernação e douração (para meninos)
- Curso de marcenaria e entalhação (para meninos)
- Curso de sapateiro e seleiro (para meninos)
- Curso de costura e bordado (para meninas)
Etapa educativa: Essas disciplinas eram oferecidas ao longo dos oito anos de
permanência dos alunos no instituto.

16
Optamos por manter a grafia original dos documentos.
17
O nome ―ensino fundamental‖ adotado pelo instituto nesse momento não guarda relação com a etapa
escola que atualmente conhecemos por esse nome. Nesse período esse nome foi usado para diferenciar esses
componentes curriculares oferecidos daqueles que compõem o ensino profissional.
117

Componentes curriculares oferecidos


1962 Linguagem
Matemática
História
Geografia
Ciências Naturais e Higiene
Etapa educativa: Essas disciplinas compunham o denominado Curso
Fundamental que se dividia em 1º e 2º graus. O 1º grau contempla os três
primeiros anos enquanto o 2º grau os cinco últimos, no total de oito anos de
curso. Previa-se a entrada dos alunos aos três anos de idade no primeiro ano
do 1º grau.
1979 Educação Moral e Cívica
Estudos Sociais
Educação Musical
Linguagem
Comunicação
Desenho
Matemática
Educação Artística
Ensino Religioso
Ciências
Organização Social e Política Brasileira
Artesanato (flores, tapeçaria, pintura, couro, entalhação)
Aprendizagem profissional (marcenaria, artes gráficas, meta, datilografia,
alfaiataria, corte/costura)
Qualificação profissional (técnicas comerciais, desenho cartográfico)
Etapa educativa: Essas disciplinas compunham o, então, chamado 1º grau:
séries iniciais e finais. As séries iniciais iam do 1º ao 4º anos e as finais do 5º
ao 8º anos.
2020 Artes
Educação Física
Matemática
Língua Portuguesa e Literatura
Libras
Língua Estrangeira (Espanhol e Inglês) 18
História
Ciências19
Física
Química

18
O inglês é oferecido desde o 6º ano do ensino fundamental a todos os alunos. O espanhol é inserido no
ensino médio para os alunos que optarem por essa disciplina em detrimento de seguir no inglês.
19
Oferecida apenas no ensino fundamental
118

Componentes curriculares oferecidos


20
Biologia
Sociologia
Filosofia
Etapa educativa: Essas disciplinas compõem os ensinos fundamental e
médio.

Vemos, portanto, alterações significativas no decorrer dos anos em relação ao


grupo de componentes curriculares oferecidos pelo instituto aos seus alunos. É importante
destacar também que nem sempre o INES contemplou todos os segmentos de ensino, com
o o que conhecemos como Ensino Médio hoje. Dessa forma, a lista abrange apenas o que
era oferecido naquele momento histórico.

4.3 As vozes dos currículos para a comunidade surda

Após expor parte da grade curricular do Cap-INES, buscaremos nos aproximar


dos documentos que nos muniram de informações a partir de três óticas que norteiam esta
pesquisa. Em primeiro lugar, trataremos dos sentidos construídos sobre o surdo ao longo
dos enunciados analisados. Em seguida, nos voltaremos para o recorte do currículo à luz
dos sentidos de libras que atravessam nosso córpus. Por último, nossa análise busca
verificar os entendimentos de educação de surdos que permeiam o currículo ao longo do
tempo.
Vemos, com certeza, uma sobreposição entre os tópicos que buscamos analisar
em que o entendimento de um está atravessado pelo do outro e, ainda que, para fins
metodológicos, separamos as análises em tópicos, pretendemos ressaltar os pontos de
contato entre esses entendimentos e como um contribuiu para a sustentação do outro dentro
dos enunciados disponíveis.

4.3.1 O currículo e o surdo


Como já explicitamos ao longo deste trabalho, operamos em uma lógica
discursiva da língua e, apoiados pelos estudos de Deleuze e Guatarri (2011), entendemos

20
As disciplinas de química, física e biologia são oferecidas apenas no ensino médio.
119

as palavras não como meras detentoras de significado, senão produtoras de sentido a partir
do momento que são enunciadas. As palavras, vistas dentro de enunciados, portanto dentro
de contextos sócio-históricos, estabelecem realidades, criam verdades para os que com elas
interagem.
Dessa maneira, acreditamos que as formas de designação do sujeito surdo ao
longo dos documentos levantados nos ajudam a entender a construção do que foi/é ser
surdo durante esse período. Essas palavras usadas para se referir aos surdos trazem consigo
interdiscursos que contribuem para a fixação de ideias sobre processos de identificação da
surdez e, com isso, nos possibilita remontar essas intersecções que formam a teia de
sentidos presentes nos enunciados. Vale relembrar que essas são construções de ouvintes
sobre o que é ser surdo e isso ganha relevância conforme pensamos nos ouvintes sempre
estando em posição majoritária e, portanto, em condições privilegiadas de fixar sentidos
dentro de contextos sociais.
Buscamos uma primeira entrada mais cronológica dos documentos para verificar a
evolução da nomeação do surdo ao longo do período de interesse deste trabalho. Nos dois
primeiros documentos que estamos tratando conjuntamente, isto é, os de 1856 e 1857, o
próprio nome do instituto já traz a designação ―surdos-mudos‖ para se referir a esse
público. O nome do instituto segue com essa mesma designação nos documentos de 1934 e
1937, porém, de 1962 em diante já há apenas a denominação ―surdos‖. A mudança ocorreu
em 1957, quando surdo-mudo foi substituída pela palavra ―mudo‖ e acrescida a palavra
―educação‖ no nome do instituto. Esse entendimento do surdo como alguém que também é
mudo dialoga com a noção de indivíduos incapazes, que fogem do padrão de normalidade
esperado e, além disso, a ideia da mudez estava associada não com problemas no aparato
fonador, que é o que poderia caracterizar essa característica em alguém, senão na falta da
articulação vocal para interagir na língua oral. Entendemos como uma atribuição de outra
deficiência ao surdo, deficiência que em termos fisiológicos ele não tem, ou seja, ele é
capaz de produzir sons vocais, não produz apenas porque não escuta. Portanto, vemos um
atravessamento de discursos que valorizam a língua oral em detrimento da língua de sinais
na contribuição para o entendimento do surdo como mudo.
Ainda no documento de 1856, um enunciado que reforça a construção de ideia de
surdo como alguém fora do normal refere-se aos surdos como: ―uma classe inteira de seres
desgraçados muito tempo abandonados‖. Há um diálogo aqui com uma concepção de
120

surdo e surdez como um castigo, uma punição divina. Esse documento ao qual nos
referimos é um primeiro esforço de direcionar uma educação especializada para o público
surdo, mas mesmo assim subjazem sentidos de inferiorização e de pessoas necessitadas de
acolhimento.
O próprio olhar para o surdo como um ente social fez com que, inclusive, voltasse
para ele estudos médicos. Dialogando, portanto, com o desenvolvimento da medicina e
esse olhar para os surdos, é que, no documento de 1934 e no de 1937, encontramos alguns
termos para referir-se aos surdos que encontram eco na visão clínica desse público.
Primeiro, segue a denominação de surdo-mudo não apenas no nome do instituto, mas ao
longo dos documentos que também, em outros momentos refere-se ao surdo como
―anormais auditivos‖ (INES, 1934, p.1) quando explicita os dois motivos principais da
educação desse público. A denominação ―anormal‖ pressupõe uma relação estreita com
discursos que veem o surdo como sujeito da falta que precisa ser corrigido tendo como
parâmetro o ouvinte, isto é, o normal que deve ser alcançado. Todos esses preceitos se
alinham com uma visão clínica clássica de surdo, isto é, indivíduos passíveis de
intervenção e de correção. Essa construção é reforçada quando, ao buscar aprofundar sua
proposta educativa no âmbito da linguagem, é feita uma categorização para ―a criança
normal‖ e ―o surdo-mudo‖ (1934, p. 6). Destacamos também outros dois momentos em
que, ao referirem-se ao surdo, estes são designados como ―anormais‖ (p. 12) e ―enfermo da
audição‖ (p.13), termos que reforçam essa visão médica do público em questão. Por tratar-
se de um documento escolar pudemos encontrar, em vários momentos, referência aos
surdos como estudantes, alunos, educandos. Dessa forma, o surdo já é visto como um
indivíduo passível de ser educado.
Nos documentos de 1962 e 1979, pudemos observar que cada vez mais há
referências aos surdos associando-os à sua condição de alunos do colégio. Portanto, em
quase todas as referências aos surdos encontramos designações como ―aluno‖, ―educando‖,
―candidato‖. Relacionamos esse movimento, por um lado, à própria especificidade dos
documentos, que focam somente nas atividades da escola e não no instituto como um todo.
Entendemos que deixar de designar o surdo como anormal ou enfermo está ligado também
a movimentos de sentido que passam a ver aquele grupo como capaz de aprender, alguém
que tem direito à educação tanto quanto os ouvintes. A recorrência de termos educacionais
para falar desse grupo ajuda a construir uma ideia de surdo, dentro desse contexto, que é
121

passível de aprender e que cada vez mais tem um ensino especializado voltado para esse
grupo.
No entanto, ainda é possível ser alguns enunciados que trazem a memória da ideia
de surdo como deficiente. Esses atravessamentos são vistos no momento em que os surdos
são designados como ―deficientes auditivos‖ (1979, p. 1) ou quando, como prática
pedagógica sugere-se sua ―demutização‖ (1962, p.7). A ideia de que o surdo também é
mudo, ainda que tenha sido suprimida do nome do instituto, está subjacente à maneira de
entender o surdo aluno do instituto.
O projeto político pedagógico vigente do CAp-INES, divulgado em 2011, apaga
totalmente qualquer menção explícita ao surdo como deficiente e passa designá-lo como
―sujeito surdo‖. No entanto, ao expor as formas de acesso e de permanência do estudante
do instituto é exigido o ―diagnóstico de surdez‖. Portanto, ainda observamos algum diálogo
com uma concepção clínica do surdo em que este precisa ser diagnosticado. É importante
ressaltar que o contexto exposto, isto é, exigências para o ingresso do aluno no INES, traz
consigo a necessidade de objetividade, uma determinação definitiva sobre quem tem
direito ou não de ser admitido em uma escola pública especializada em surdos. Quando
essa objetividade é requerida, volta-se para discursos legitimados no contexto social, ou
seja, busca na voz da medicina e em seus diagnósticos objetivos a resposta para determinar
o que é ser surdo. Assim, deixar de dialogar com elementos culturais e passa a ter relação
direta com uma característica física, aferível.
Portanto, vemos ao longo dos documentos uma transição gradual entre a
construção identitária do surdo como um deficiente, incapaz para a de um sujeito, alguém
que tem necessidades educacionais próprias, porém sem deixar de escapar atravessamentos
da visão clínica clássica em seus enunciados.
O próximo elemento a ser destacado em nossas análises na construção do sujeito
surdo a partir dos documentos levantados volta-se para a dimensão profissional. Olhando
para a lista das disciplinas disponíveis, nos anos de 1856, 1934 e 1979 encontramos,
explicitamente, uma parte voltada para o ensino profissional. Em 1856, por exemplo, há as
disciplinas: ―agricultura theorica e pratica (para meninos)‖ e ―trabalhos usuaes de agulha
(para meninas)‖. Já em 1934, há no currículo uma área descrita como ―parte profissional‖
que conta com as disciplinas: ―curso de encadernação e douração (para meninos)‖, ―curso
de marcenaria e entalhação (para meninos)‖, ―curso de sapateiro e seleiro (para meninos)‖
122

e ―curso de costura e bordado (para meninas)‖. Vale notar que para as meninas, em ambos
os casos, as oportunidades de profissionalização eram as mesmas 80 anos depois, atuar no
campo da costura, enquanto os meninos começaram a ter outros campos de atuação. Essas
propostas dialogavam com as oportunidades de atuação profissional da época para homens
e mulheres.
Como já discutimos neste capítulo, os estudos do campo do currículo abordam a
relação entre escola e formação para o trabalho desde o início da consolidação dessa área
do conhecimento. Principalmente na primeira metade do século XX, a discussão voltava-se
para o resultado obtido com os indivíduos que fossem submetidos a um determinado
currículo. Operava-se com a lógica de um processo uniforme de formação escolar em que
os indivíduos alcançassem os mesmos objetivos ao final da trajetória e muitos desses
objetivos estavam voltados para a vida profissional.
Essa discussão dialoga também com a realidade do acesso ao ensino superior no
Brasil, não apenas dos alunos surdos, mas da população em geral. As primeiras faculdades
no país surgiram no início do século XIX e foram, aos poucos, ganhando mais unidades ao
longo desses anos, principalmente após a Proclamação da República, chegando a pouco
mais dez ao final do século (HUMEREZ; JANKEVICIUS, 2015).
Ainda que ao longo do século XX foram surgindo mais faculdades, tanto públicas
como privadas, estas estavam mais restritas à população de alta renda, seja pelo valor das
mensalidades, seja pela necessidade de estudar em colégios de ponta para conseguir
classificação através dos vestibulares. A democratização desse acesso à universidade
começou apenas no século XXI com a inclusão da política de cotas, inicialmente na
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e, em seguida, espalhando-se por quase
todas as universidades públicas do país e, também, programas de financiamento dos custos
universitários como o FIES.
Podemos incluir também na discussão da formação profissional na educação as
escolas técnicas que, em sua maioria federais, ganharam mais unidades também a partir de
2002. Dessa forma, a discussão de formação de mão de obra para o mercado de trabalho e
o papel da escola no Brasil conta com inúmeras variáveis que ajudam a compor o cenário
da nossa educação.
Voltando-nos para a questão desta pesquisa e a forma como se constrói a ideia do
que é ser surdo a partir dos currículos analisados, pensamos em como a inserção de uma
123

dimensão profissional na gama de disciplinas disponíveis para os surdos cursarem


contribui para essa significação.
Buscamos, além das listas de disciplinas, outros elementos nos documentos que
compõem nossos corpus para ajudar na construção dessa relação entre a ideia de surdo e as
disciplinas profissionais. No documento de 1934, há um momento em que se busca
explicar a proposta pedagógica apresentada e, com isso, são expostos os objetivos da
educação dos surdos. Além da dimensão da linguagem que é apontada, diz-se que outro
objetivo é: ―habilitação profissional, afim de que possam viver do seu trabalho, deixando
de representar valores negativos no seio da sociedade‖ (p. 2). Pressupõe-se, pelo enunciado
citado que os surdos representam, por si, valores negativos e que o trabalho seria capaz de
conter o efeito desses valores negativos na interação social. Em diálogo com a Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional vigente na época (Lei 5.692/71), o documento
curricular de 1979, ao colocar seus objetivos pedagógicos, afirma que é: ―proporcionar ao
DA21 a formação necessária ao desenvolvimento de sua potencialidade, a preparação e a
habilitação profissional específica determinada, segundo orientação, princípios e normas
estabelecidos...‖ (p. 1). Depois de parafrasear uma lei federal que orienta a educação no
país, o documento segue para tratar especificamente do contexto do instituto, ou seja, da
relação currículo e surdez quando diz que: ―Para a excepcionalidade da deficiência
auditiva, há múltiplas opções profissionais compatíveis com as possibilidades alcançadas
pelo DA‖. Esse enunciado pressupõe a constituição de um sujeito surdo deficiente, incapaz
de exercer algumas funções que estariam disponíveis apenas para os ouvintes. Quais
seriam, então, as opções profissionais não compatíveis com a deficiência auditiva?
O INES nunca foi identificado como uma escola técnica ainda que tenha, em sua
trajetória, a presença constante da preocupação com a formação profissional dos alunos
que atende. Com o passar dos anos, as estruturas das escolas foram ganhando contornos
mais definidos e as nomenclaturas de escolas que, além de oferecerem a educação escolar,
também buscam formar técnicos nas mais diversas áreas para direcionar os estudantes ao
mercado de trabalho imediatamente após sua formação na escola. Atualmente, temos, no
âmbito federal, inúmeros institutos que oferecem formações complementares ao do Ensino
Médio aos seus docentes em um projeto do governo federal de criar mão de obra de nível
técnico para o mercado.

21
Deficiente auditivo
124

No entanto, ainda que, atualmente, não conste nenhuma disciplina da grade


curricular do instituto que se relacione à atividade profissional, o INES conta com a
Divisão de Qualificação e Encaminhamento Profissional (DIEPRO), que está submetida à
Direção do Departamento de Educação Básica (DEBASI), de acordo com o organograma
de departamentos do instituto.
Essa divisão tem por objetivo qualificar e encaminhar o surdo para o mercado de
trabalho através do contato direto com empresas do setor privado. Além desse contato são
oferecidos cursos preparatórios voltados para as demandas do mercado de trabalho ficados
no público surdo. É feita também a orientação para as empresas que receberão candidatos
surdos em suas estruturas.
Essa ligação direta entre escola e colocação profissional dentro do instituto pode
ser um resquício histórico da prática vigente por muitos anos, na qual a educação escolar
buscou atender à formação profissional imediata do estudante surdo. No entanto, vale
ressaltar que, atualmente, a DIEPRO seja aberta tanto para alunos do CAp-INES como
para surdos que não possuem vínculo com o instituto.
Como pudemos ver nos documentos levantados, até 1979, pelo menos, as
disciplinas profissionalizantes eram oferecidas dentro da grade curricular e contemplavam
a formação escolar do estudante enquanto, nos dias atuais, a DIEPRO cumpre esse papel
formativo para a atuação profissional de maneira facultativa e no contra-turno. No primeiro
semestre de 2018, os cursos disponíveis eram: Orientação para o Trabalho - Módulo 1,
Orientação para o Mercado - Módulo 2, Informática Básica e Matemática Básica para o
Mercado de Trabalho.
A atuação dessa divisão dialoga com a Lei 8.213, de 24 de julho de 1991, que, em
seu artigo 93 obriga empresas a preencherem seus cargos ―com beneficiários reabilitados
ou pessoas portadoras de deficiência‖ (BRASIL, 1991) proporcionalmente ao número de
empregados contratados. Os surdos estão contemplados nessa categoria e, como a lei não
especifica um grau de escolarização obrigatório, alunos do ensino médio, surdos com idade
legal de trabalho já podem preencher essas vagas e permitir que as empresas cumpram a
lei.
Acreditamos que esse olhar voltado para o mercado de trabalho após a conclusão
da educação básica também esteja relacionada com as dificuldades de acesso e
permanência dos surdos às universidades públicas. O sistema de acesso a essas
125

universidades sempre foi através de vestibulares com provas extensas em língua


portuguesa e, em muitos casos, uma redação também em língua portuguesa exigida do
candidato. Quando o ENEM entrou em cena em 1998, novamente, a prova era feita toda
em língua portuguesa e, apenas em 2017, como foi visto, é que houve uma preocupação
com os candidatos surdos ao propor uma prova com tradução em libras.
A partir do recorte de formação para o trabalho, subsidiados pelos enunciados
aqui expostos e seus atravessamentos, é possível ver uma construção de surdo como um
sujeito que deve partir da escola diretamente para o mercado de trabalho, isto é, sujeitos
inaptos a desempenhar funções de nível superior. É possível ver também uma preocupação
de inserção social desse surdo como um cidadão funcional, ou seja, alguém que tenha
atividade produtiva apesar da sua condição de surdo. Em bossa posição como cidadão,
dentro da construção cultural na qual estamos inseridos, o trabalho é elemento importante
no papel que desempenhamos. Dessa forma, as atividades permitidas a um surdo
desempenhar em uma sociedade atestam sobre o que se acredita ser um cidadão surdo. Os
cursos e disciplinas escolares disponíveis para esse público, portanto, nos ajudam a
entender que há limitações nos seus campos de atuação. Ressaltamos, claro, que estamos
tratando do contexto do INES em que há oferta de cursos em libras, voltados
especificamente para os surdos, mas que estes sempre puderam buscar fora do instituto
outras formações, no entanto, precisariam de recursos outros como intérpretes, leitura
labial etc.

4.3.2 O currículo e a libras


O caminho percorrido pela libras no decorrer da trajetória curricular do CAp-
INES está diretamente relacionado aos lugares ocupados pela língua portuguesa nesses
mesmos contextos. Ao construir o histórico do instituto no primeiro capítulo desta tese, nós
já estabelecemos essa relação de forças entre essas duas línguas. De acordo com a política
educacional vigente, havia maior ou menor valorização e legitimação de uma língua em
detrimento da outra. Vamos, portanto, ao analisar os documentos curriculares que
compõem o nosso corpus, verificar os entendimentos da língua brasileira de sinais e sua
posição relativa à língua portuguesa.
Iniciamos, mais uma vez, pelos documentos do período do Império e verificamos
que há um apagamento completo de uma língua própria dos surdos ou mesmo qualquer
126

forma de comunicação que não seja a língua portuguesa. Toda e qualquer menção a língua
nos documentos de 1856 e 1857 se referem à língua portuguesa. Quando se elencam as
disciplinas oferecidas, as relacionadas a língua são: ―escripta e leitura, elementos da língua
nacional – Grammatica‖. Para alguns alunos também serão oferecidos: ―lições de
pronúncia, de articulação e de leitura‖.
Ressaltamos aqui não apenas a ausência de uma língua dos surdos, mas a falta de
reconhecimento de qualquer outro tipo de forma de comunicação entre os surdos que não
a, como o documento chama, língua nacional. Todos os trechos destacados constroem a
ideia de que língua portuguesa é o único meio de comunicação possível e, inclusive,
promove práticas de oralização com os alunos. Há um diálogo claro e direto com as
condições sócio-históricas de produção desses enunciados em que o oralismo era vigente
nas discussões sobre educação de surdos.
Avançamos nossas análises nos documentos de 1934 e 1937 devido a sua
proximidade temporal. Em ambos é possível ver uma preocupação mais genérica com o
que chamam de linguagem do estudante surdo. Vemos, inclusive, nos objetivos principais
da educação de surdos descritos, o reconhecimento de que é necessário que os alunos
tenham ―conhecimento da linguagem‖ (1934, p. 5). Mais adiante, o documento atribui as
falhas cognitivas dos alunos à sua anormalidade, isto é, à surdez. Como solução, é proposta
uma pedagogia emendativa que consiste no ensino da linguagem. Nas palavras do
documento:
A pedagogia emendativa tem por fim suprir falhas decorrentes da
anormalidade, buscando adaptar o educando ao nível social dos
normais. No que concerne ao surdo-mudo esse dideratum é alcançado
por intermédio do ensino de linguagem e do correspondente
desenvolvimento social. (1934, p.6)

O documento avança na explicação sobre o que chama de pedagogia emendativa,


isto é, sua proposta para o trabalho com linguagem. Primeiro é importante observar que a
visão de língua que atravessa esses enunciados é a de instrumento, exterior ao indivíduo,
algo que pode ser controlado e usado de acordo com intenções previamente determinadas.
Ao explicar o que entende por linguagem o texto diz: ―A linguagem é um fenômeno de
adaptação por meio do qual o indivíduo se comunica com o meio, e sem o qual regride no
seu estado fisiológico e na sua condição psicológica e social, isolando-se dos seus
semelhantes‖. (1934, p. 6). Vemos um sentido não dialógico de linguagem, isto é, a
comunicação se dá apenas em uma via, indivíduo com o meio e não o contrário. A ideia de
127

que somos sujeitos também do nosso entorno não está contemplada na ideia de língua
apresentada pelo documento.
O documento não se aprofunda sobre o que entende como linguagem ou se está se
referindo a uma língua especificamente. Porém, pelo total apagamento da libras como
língua própria da comunidade surda e a menção reiterada da língua portuguesa como meio
pelo qual essa comunicação deve ser feita, é possível supor que, nesse enunciado, esteja
presente a ideia que a língua portuguesa é o meio de comunicação possível e proposto para
a comunidade surda na escola.
É possível estabelecer um diálogo desse entendimento de língua presente no
documento de 1934 com aquele construído na Lei de Libras, de 2002 (BRASIL, 2002). A
Lei 10.436 estabelece a libras como ―meio legal de comunicação e expressão‖, isto é,
quase as mesmas palavras desse documento que fala da linguagem como ―meio pelo qual o
indivíduo se comunica com o meio‖.
Os estudos sobre o ensino de língua portuguesa, atualmente, avançaram na
discussão da língua como sistema, como um instrumento externo ao sujeito. É possível
dizer que, atualmente, os estudos que predominam nos estudos acadêmicos sobre o ensino
de língua portuguesa é o de língua como discurso, língua como constituinte e constitutiva
do sujeito. Essa noção é diferente da encontrada tanto no documento de 1934 como na Lei
de Libras de 2002 (BRASIL, 2002).
Podemos, então, relacionar a visão do ensino de língua portuguesa expressa no
início do século XX com a visão da libras expressa no início do século XXI. O diálogo
entre esses enunciados, com contextos sócio-históricos tão diferentes, nos leva a pensar
que a Lei de libras (BRASIL, 2002), no que tange à ideia de língua e à sua relação com o
sujeito, nasceu já antiga, isto é, nasceu sem considerar quase um século de discussões
sobre língua e ensino de língua.
Ainda em diálogo com uma perspectiva utilitarista da língua, no documento de
1937, ao elaborar sobre as propostas de cursos de linguagem oral e escrita oferecidos pelo
colégio na época, afirma-se que: ―a linguagem do surdo mudo deve ser a de imediata
utilidade, aplicada aos objetos e ações mais necessárias ao convívio do aluno com o meio
que o cerca‖ (p. 11). Novamente a língua é vista como meio de comunicação. Essa poderia,
inclusive, ser uma boa defesa da libras, pensando que o aluno, no instituto, pudesse fazer
uso dessa língua para se comunicar com outros surdos e professores.
128

No entanto, ao continuar a defesa do uso da linguagem pelo aluno surdo o texto


afirma que: ―No intuito de auxiliar o ensino da linguagem habitual, tão útil ao surdo, foi
baixada uma portaria, recomendando a todos os funcionários do Instituto que usassem
sempre a linguagem falada ou escrita nas suas comunicações diárias com os alunos‖ (1934,
p. 11). Destacamos primeiro, a evidente sobreposição da língua portuguesa em relação a
libras, completamente silenciada ao longo de ambos os documentos. Outro ponto
importante de ressaltar é que, ao haver a necessidade de criar uma portaria recomendando
o uso da língua portuguesa, supõe-se que outra forma de comunicação estava sendo
adotada, isto é, a língua de sinais. Portanto, houve uma política institucional contra a língua
de sinais e com o objetivo de instituir ou reforçar a língua portuguesa como a única forma
de comunicação entre os surdos e não apenas em sua modalidade escrita, senão também na
oral.
No documento de 1934, na explicação sobre a linguagem, é feita uma comparação
entre surdos e ouvintes. Enquanto o ouvinte é caracterizado como uma ―criança normal‖
em que ―tudo contribúe para que se processe do melhor modo possível a formação e o
desenvolvimento da linguagem e da inteligência‖ (p. 6), o surdo é alguém privado desse
capital linguístico precioso o que lhe coloca em posição desvantajosa. Aqui há uma
menção a um tipo de comunicação própria da comunidade surdo e é caracterizada como
uma: ―prática elementar da expressão muscular ou gesticulada‖. (p. 6).
Enquanto nos primeiros documentos há um silenciamento completo da libras, em
1934 há uma menção a uma forma de comunicação entre surdos apenas para desqualificá-
la e colocá-la como causa do insucesso cognitivo dos surdos. A língua portuguesa é
colocada como o único caminho não apenas de interação social, mas de desenvolvimento
de uma vida intelectual.
Em 1962, o documento que lista os conteúdos mínimos que os alunos devem
saber ao longo dos anos escolares omite por completo a língua de sinais. No que tange à
aprendizagem da linguagem, desde o primeiro ano do ensino fundamental, a proposta
pedagógica divide-se em leitura, composição e gramática. Na próxima seção detalharemos
mais sobre o entendimento de educação de surdo constituído nessa proposta, mas qualquer
menção a essas atividades estão relacionadas à língua portuguesa, seja em sua modalidade
escrita ou até mesmo oral. Há um apagamento por completo de uma língua própria da
comunidade surda nesse momento histórico do instituto.
129

O texto de 1979 constrói uma ideia de língua disponível para a comunidade surda
muito semelhante à construída pelos enunciados verificados da década anterior. Quase
vinte anos depois e ainda percebemos um apagamento completo de formas de comunicação
próprias da comunidade surda. Em cima desse silenciamento, há diversos momentos de
reforço da língua portuguesa e exercícios de oralização do aluno. A construção da ideia de
que uma língua de sinais é reprovável, ainda que não seja dito explicitamente, começa
quando, dentro dos objetivos da educação de surdos no documento, coloca-se que um bom
rendimento escolar é obtido quando o educando consegue ―levar uma vida tão próxima das
situações normais da sociedade em que vive‖ (p. 5). Junte-se a isso o objetivo de
―proporcionar oportunidades que possibilitem a ampliação e a generalização do uso da
linguagem e comunicação‖ (p. 14). Aqui ainda não se especifica o que se entende por
linguagem, mas logo em seguido são expostos os objetivos específicos da educação de
surdos que são: ―desenvolver a linguagem oral e escrita como meio de comunicação‖ (p.
14).
Ao pensar na linguagem em suas modalidades oral e escrita como objetivos na
educação de surdos ambos os documentos buscam a ideia da correção do surdo a partir do
aprendizado da língua portuguesa. Subjaz a isso a ideia de que a integração social depende
do uso da língua oral, isto é, a língua de sinais é elemento de exclusão e de discriminação
dentro dos ambientes sociais e é reforçado pela escola especializada em educação de
surdos no país.
Após um período de pouco mais de 30 anos, porém com grandes transformações
no entendimento da educação de surdos e na posição da libras nesse contexto, o Projeto
Político Pedagógico elaborado em 2011 dialoga indiretamente com essas transformações,
mas também de maneira direta com referências explícita a alguns desses marcos como
quando, já na introdução, cita a Lei 10.436 de 2002, a Lei de libras, e o Decreto que a
regulamentou.
A libras também está presente na própria grade curricular dos alunos, que contam
com uma disciplina dedicada exclusivamente à língua de sinais, como mostram os quadros
com os componentes curriculares a seguir:
130

Figura 6: Anos Iniciais do Ensino Fundamental

Figura 7: Anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio

Importante destacar a presença da libras e da fonoaudiologia no mesmo local, isto


é, a parte diversificada do currículo. Isso pode ser justificado, pois estas disciplinas não são
comuns a outras escolas do país. No entanto, ter a fonoaudiologia como um componente
curricular dialoga com os discursos de estimulação da fala vistos nos documentos do
século XX analisados. Não podemos deixar de ressaltar também a ausência dessa
disciplina nos anos finais do Ensino Fundamental e no Ensino Médio. Mais uma vez
verificamos, nesse enunciado, discursos oralistas presentes no século anterior em que se
buscava a estimulação precoce da fala, isto é, quando o surdo ainda era bem jovem, para
que pudesse desenvolver seu intelecto a partir da língua oral.
A proposta pedagógica atual é de uma educação bilíngue e, ao justificar a
presença da língua portuguesa, o PPP diz:
Contudo, a relevância da aquisição do Português pelos surdos, em
todas as suas modalidades - como segunda língua - objetiva assegurar
a perspectiva de integração social e desenvolvimento da sua
individualidade e autonomia crítica diante da sociedade e das
informações produzidas, registradas e difundidas em âmbito nacional,
principalmente, através da Língua Portuguesa. (2011, p. 12).
131

A própria necessidade de justificar a presença da língua portuguesa dentro da


proposta pedagógica para surdo já caracteriza uma mudança no entendimento de língua e
de comunicação do público surdo e, ainda, do papel da escola nesse contexto. Porém, mais
uma vez, o ensino da língua portuguesa vem embasado pela necessidade de inserção social,
de inclusão dentro de uma sociedade que majoritariamente usa a língua portuguesa oral.
Não está documentado, mas sendo professor do instituto desde 2014, sei que no
Ensino Médio, a disciplina Libras só entrou na grade em 2016 ainda que a recomendação
do PPP fosse outra. A justificativa é que não havia profissionais surdos em quantidade
suficiente para atuar tanto no colégio como nos cursos oferecidos pelo instituto para a
comunidade externa.
Podemos ver, então que há uma presença muito mais intensa e relevante da língua
de sinais no último documento analisado e isso dialoga com seu contexto de produção em
que as discussões educacionais sobre o público surdo já avançaram ao ponto de incluir a
libras no processo.
No entanto, ainda podemos ver alguns atravessamentos de ideias de valorização
da língua portuguesa em detrimento da libras com a justificativa de inserção social. A ideia
de que o surdo precisa adequar-se linguisticamente à sociedade para desempenhar uma
função útil à sociedade é usado como motivo para adotar uma proposta de educação
bilíngue em que língua portuguesa e libras estariam no mesmo patamar, ainda que não
estejam.

4.3.3 O currículo e a educação de surdos


Como pudemos ver no primeiro capítulo desta tese, as diferentes visões sobre
educação de surdos estão construídas a partir de um diálogo direto com os entendimentos
de língua e de surdo praticados nos determinados contextos. Dessa forma, ao verificar as
percepções de educação de surdos presentes no corpus do nosso trabalho, traremos as
discussões já levantadas sobre o que se entende por ser surdo e por libras ao longo dos
documentos.
Iniciamos, então, este tópico de análise com um enunciado retirado do documento
de 1856 que, ao explicitar o objetivo da existência do instituto diz que é:
Regenerar uma classe inteira de seres desgraçados muito tempo
abandonados, pô-los na posse de uma instrucção impossível de
132

adquirir de qualquer outro modo, por meio de um methodo especial,


restitui-los á sociedade, á sua família, e pô-los em estado de poderem
um dia dirigir seus próprios neocios – tal tem sido o fim da fundação
do estabelecimento. (1856).

É possível ver aqui uma ideia de integração social dos surdos que, segundo o
documento, estavam abandonados por muito tempo. Não apenas incluí-los na sociedade,
mas se busca regenerar toda a classe, isto é, a educação de surdos é entendida como quase
humanizadora, caminho capaz de incluir esse público nos meios de circulação social, seja
laboral, seja familiar. Desde essa época, podemos ver alguns sentidos de formação cidadã
para os alunos, conceito que está presente em correntes educacionais nos dias de hoje.
Vale notar que o texto fala em um ―methodo especial‖, porém não o detalha nesse
documento. Temos a grade curricular para analisar e vemos que há uma lista de disciplinas
principais como o ensino de ―escripta e leitura‖ e ―elementos da língua nacional –
Grammatica‖. Chamamos essas disciplinas de principais, pois aparecem primeiro e estão
listadas em destaque no documento organizadas em duas colunas.
Em seguida, estão os componentes profissionalizantes e, por último, as disciplinas
que seriam específicas do público surdo, isto é, ―lições de pronuncia, de articulação e de
leitura‖. Entendemos que esse adendo final à grade curricular é que dá o caráter de especial
mencionado no texto. No entanto, esse método está além de colocado como um anexo do
currículo principal e não integrado a ele, serviria apenas para alunos em que ―se reconhecer
aptidão para semelhantes exercícios‖.
Assim como os próprios surdos são vistos como indivíduos à parte da sociedade e
que precisam ser integrados e a língua de sinais não é sequer mencionada, as propostas de
educação de surdos também estabelecem uma divisão entre o que seria o padrão e poderia
servir para qualquer escola e o que seria proposto especialmente aos alunos do instituto em
virtude da sua surdez.
Esse caráter de educação complementar que trataria das questões específicas da
surdez no currículo escolar se mantém na década de 1930 nos documentos analisados. No
documento de 1934, é dado o nome de ―pedagogia emendativa‖ esta que suplementa o
ensino primário com as disciplinas disponíveis em escolas regulares. Objetiva-se com essa
pedagogia emendativa: ―suprir falhas decorrentes da anormalidade, buscando adaptar o
educando ao nível social dos normais‖ (p. 6).
133

Portanto, entende-se que a escola, em diálogo com os enunciados do século


anterior, busca integração social, porém essa busca é sempre no intuito de deslocar o surdo
às condições sociais apresentadas pelos ditos ―normais‖, isto é, os ouvintes. Subjaz a esses
enunciados a ideia de que a escola irá, de alguma maneira, moldar o aluno para a vida em
sociedade, uma sociedade a qual se entende como ideal a partir do currículo apresentado e
praticado.
Essa pedagogia emendativa proposta pelo instituto consistia em um adendo
curricular relacionado à linguagem, dividindo-se em dois tópicos: ―curso de linguagem
escrita‖ e ―curso de linguagem oral‖. Com isso, é possível entender que essa adaptação do
surdo às condições sociais normais se restringe a uma questão linguística. A proposta
educativa do instituto se diferencia do resto das escolas regulares a partir de cursos de
linguagem escrita e oral. A aprendizagem da língua é vista, portanto, dissociada do
trabalho feito com os outros componentes curriculares e o objetivo do seu ensino não está
vinculado à constituição do sujeito ou de sua dimensão cultura, senão com fatores
utilitaristas em sociedade e de normalização dos indivíduos.
No documento curricular de 1962 temos as descrições dos conteúdos e temas a
serem trabalhados em casa série escolar do 1º grau, que era a oferta do instituto nesse
momento. Vemos, logo no início, um esclarecimento de que o material é uma ―adaptação
do programa primário das escolas públicas do Estado da Guanabara‖ (p. 2). A partir da
referenciação do currículo de surdos no currículo das escolas regulares do estado, é
possível, mais uma vez, entender a ideia de educação de surdos sendo construída a partir
da educação dos ouvintes.
Ao avançar na análise do documento vemos que, após listar os conteúdos
curriculares comuns trazidos da experiência do Estado da Guanabara em escolas regulares,
há uma seção para todos os anos descritos chamada ―Práticas educativas especializadas‖.
No ainda chamado 1º grau essa seção se divide em ―fala‖, leitura da fala‖ e ―educação
auditiva‖. Já nos anos referentes ao 2º grau, a parte da linguagem, a única com referência à
surdez do aluno, se dividiam entre ―Em fala e leitura da fala‖, ―Em leitura e escrita‖ e ―Em
composição‖.
Todos os esforços dessas seções estão em estimular o aluno a falar em língua
portuguesa, ouvir em língua portuguesa, escrever e ler também em língua portuguesa. Não
há menção alguma à língua de sinais, seja nesse apartado de práticas educativas
134

especializadas, como também em qualquer outro momento das propostas educativas do


instituto. No 1º ano do 1º grau objetiva-se ―despertar e fortalecer o desejo de falar, ler a
fala...‖ (p. 6). Para tal, como prática educativa especializada propõe-se o ―início ou
continuação da demutização‖ do aluno. Esses objetivos seguem durante todo o currículo
escolar e vão se desenvolvendo como, por exemplo, no 4º ano um dos objetivos torna-se
―cultivar a voz e a dicção (através de exercícios de respirações surda e sonora, vocalização,
impostação, intensidade, duração, acentuação, ritmo, modulação, etc.)‖ (p. 10).
Vemos, portanto, a escola a serviço da oralização dos alunos surdos. O
entendimento de educação de surdos segue inalterado já que, para além das disciplinas já
estabelecidas nos currículos regulares das escolas de ouvintes, são acrescidas apenas
propostas de normalização do aluno, de inserção dos indivíduos surdos através da
identificação com sua capacidade de se comunicar em língua portuguesa, seja falando,
escrevendo, lendo ou ouvindo.
A educação de surdos atrelada à sociabilização dos alunos ao pretendido padrão
por uma ideal de sociedade segue sendo os objetivos do Instituto Nacional de Educação de
Surdo no documento analisado referente ao ano de 1979. A divisão pedagógica do
instituto, de acordo com o documento buscará ―estratégias favoráveis para o educando
lograr bom rendimento escolar e poder levar uma vida tão próxima das situações normais
da sociedade em que vive, pelo processo educativo‖. (p. 5).
Mais uma vez, vemos um diálogo com ideias de educação e normalização do
sujeito surdo apesar da contradição vista na frase que diz que: ―o processo
ensino/aprendizagem do DA, tanto quanto possível, deverá desenvolver-se com base na
vivência do aluno.‖ (p. 9). Porém, logo em seguida, na página seguinte, quando começa a
falar da seção de ensino e suas práticas, diz-se que nas aulas:
deverá promover desenvolvimento físico, intelectual, emocional e
social do DA pré-escolar, através de técnicas especializadas,
campanhas para diagnósticos preventivo e educação imediata com o
uso de prótese auditiva, em termo de recuperação de audição residual
e reeducação. (p. 10)

Na verdade, a vivência do aluno na qual a educação deve basear-se, de acordo


com os enunciados citados, não contempla sua experiência linguística já que esta sofre
interferências imediatamente do ingresso do indivíduo surdo no ambiente escolar. Dessa
forma, questionamos que experiência está sendo preservada, respeitada ou aproveitada se a
135

linguística, constitutiva do sujeito, é moldada a fim de atender objetivos de integração


social. Vemos que há discursos conflitantes nesses enunciados que são atravessados por
ideias de respeitar e aproveitar a experiência do aluno contra a ideia de intervir na sua
condição linguística.
Mais uma vez, vemos a ideia de educação de surdos em diálogo estreito com um
discurso clínico clássico do que é ser surdo. A escola, dentro de suas propostas
pedagógicas, serve à ideia de normalização dos educandos, geralmente em nome da
integração social.
Como vimos nas seções de análises anteriores a essa, o documento de 2011 já está
inserido em um contexto de transformações mais profundas no entendimento sobre surdo,
educação de surdos e a posição da libras em todo esse contexto. Os diálogos com discursos
presentes sobre a importância de se respeitar e promover a relação do surdo com sua língua
são evidentes.
Ao enumerar os objetivos do Projeto Político Pedagógico elaborado fala-se em:
―Orientar o trabalho para a formação de sujeitos plenos, capazes de interagir de forma
consciente e crítica, nos diversos espaços sociais (família, associações, trabalho, espaços
culturais, etc.)‖. (p. 11). Mais uma vez vemos a relação entre escola e formação para a
interação social, presente ao longo de todos os outros documentos analisados. No entanto,
não há uma relação, nesse enunciado, entre a interação e a normalização. Atrela-se a
interação à conscientização e à criticidade dos educandos em oposição à relação de
interação e à língua na qual a interação é feita. Dessa forma, ainda que encontremos
paralelo no objetivo de integração social dentre os documentos analisados, vemos diálogos
outros na sustentação dos discursos que atravessam esses enunciados.
Mais adiante, após citar diretamente o reconhecimento da libras como língua da
comunidade surda pela Lei 10.436 (BRASIL, 2002), há uma relação entre a integração
social e a língua:
Contudo, a relevância da aquisição do Português pelos surdos, em todas
as suas modalidades - como segunda língua - objetiva assegurar a
perspectiva de integração social e desenvolvimento da sua
individualidade e autonomia crítica diante da sociedade e das
informações produzidas, registradas e difundidas em âmbito nacional,
principalmente, através da Língua Portuguesa. (p. 12)

Há uma busca aqui por justificar a proposta bilíngue pretendida pelo PPP e,
enquanto a libras foi legitimada através da menção à lei, a língua portuguesa é trazida
136

sustentada pela ideia de que para se informar e interagir na sociedade é preciso saber a
língua oral usada no país. A percepção da libras como uma língua minorizada em
detrimento da majoritária língua oral sustenta o discurso da necessidade de desenvolver
uma proposta pedagógica bilíngue no instituto nesse momento. Com isso, a língua
portuguesa é vista a partir de sua utilidade comunicativa e não a partir de uma lógica de
discurso em que afeta as subjetividades e, por conseguinte, processos de identificação dos
sujeitos que por ela são constituídas.
Dessa forma, temos a libras sendo significada como um sistema linguístico
exterior ao sujeito e útil para comunicação na Lei 10.436 (BRASIL, 2002) de acordo com
nossas análises do capítulo 3 e a língua portuguesa seguindo essa mesma construção do
PPP do INES. O surdo, portanto, segue sem uma língua de identidade, de identificação e
de cultura para que ações que reconheçam e fomentem essas crenças sejam criadas pelos
atores sociais que assim desejarem.
Essa ausência de sentidos que significam uma língua de identidade do surdo
contribuiu para que eles não sejam vistos como sujeitos, não se construam imagens da
comunidade surda como um grupo identitário e, por isso, um grupo com práticas
discursivas que produzem seus próprios enunciados, sua própria cultura, seus próprios
discursos. Baseados nesses enunciados que mencionamos, o surdo é visto como alguém
que usa a língua para se comunicar. Seja a libras, um sistema de regras, seja a língua
portuguesa, a qual possui todo seu reconhecimento, porém totalmente dissociado da
comunidade surda.
Voltando-se mais para a proposta pedagógica e o que se entende por educação de
surdos, afirma-se que:
Torna-se imprescindível destacarmos que as relações estabelecidas entre
essas línguas, por si só não garantem um trabalho pedagógico eficaz. Este
cenário aponta para uma pedagogia própria na educação de surdos, na
qual o uso de representações visuais como estratégias de ensino é
fundamental para a apropriação de significados pelo sujeito surdo - a
Pedagogia Visual2, que tem na língua de sinais seu principal elemento
fundador. Considerando então, as especificidades dos nossos estudantes,
buscamos uma pedagogia que nos permite utilizar as linguagens visuais,
que sem dúvida, possuem características que, viabilizam o acesso ao
conhecimento pelos sujeitos surdos. A utilização da Pedagogia Visual ou
da visualidade no ensino tem por objetivo principal qualificar todo o
processo ensino-aprendizagem, dando mais flexibilidade às ações dos
docentes, garantido desta forma, uma prática mais contextualizada,
sedutora e significativa para o sujeito surdo. (p. 15)
137

Nesse trecho, há o reconhecimento que libras e língua portuguesa não são


suficientes para educar o surdo e traz a ideia da Pedagogia Visual como estratégia de
viabilizar o conhecimento para o público surdo.

Podemos perceber, portanto, a partir de nossas análises deslizamentos de sentido


na significação do surdo e da surdez de uma maneira geral, gradativamente, de uma ideia
quase que exclusiva de surdo como doente, um indivíduo da falta para a ideia de um
sujeito que possui uma língua de identidade e cultura próprias. Esses entendimentos, ao
longo dos componentes curriculares propostos ao longo do tempo, se evidenciam
principalmente nas disciplinas que tratam da abordagem linguística nas diversas etapas
escolares levantadas.
138

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo de todo esse processo de escrita da tese eu, recém-concursado para


atuar como professor no INES (estive mais tempo no INES como doutorando do que
como apenas mestre), transformei de forma significativa minhas maneiras de olhar para
o que é ser surdo, para a relevância da libras nos contextos micro e macro e na questão
da surdez de maneira mais abrangente. As minhas práticas de pesquisa ao longo deste
estudo já me fizeram repensar minhas práticas não apenas em sala de aula como também
dentro do instituto com colegas, alunos, pais de alunos, comunidade escolar em geral.
Arrisco dizer que a transformação é mais profunda e afeta minhas formas de existir em
qualquer contexto em que me coloco. Sinto-me mais atento, que uma luz acendeu para
um determinado campo que, antes, era totalmente escuro para mim. Já atuando no campo
da língua estrangeira, questões sensíveis ao aprendizado de outra língua já me eram
evidente, mas ter contato com uma língua de modalidade espaço-visual, como a libras,
traz novas consciências sobre comunicar-se, expressar-se e do outro em todo esse
processo.
Essas reflexões foram possíveis em virtude da nossa proposta inicial de
investigar sentidos de surdo, libras e educação de surdos em documentos jurídicos e
pedagógicos à luz da trajetória curricular do INES.
Para buscar esses entendimentos, voltamo-nos para a trajetória do indivíduo
surdo na história e vimos que houve processo do que podemos chamar de humanização
dessas pessoas ao longo do tempo. Os surdos, na época dos povos egípcios, há mais de
1.500 anos a.C., foram de seres considerados descartáveis para o convívio social, para a
contribuição da vida cidadã e, com isso, impossíveis de serem educados até sujeitos que,
atualmente, lutam pelo direto de usar língua própria, por espaços em que possa
manifestar suas identidades culturais livremente, pelo estabelecimento e propagação de
escolas especializadas em seus contextos de construção de conhecimento.
Todas essas discussões, a nosso ver, estão atravessadas pelas ideias de
identidade e cultura. Dentro dessa trajetória temporal é possível estabelecer um paralelo
139

com um espectro que em um extremo está o surdo definido pela sua deficiência, aquele
que não pode ouvir e nada mais pode ser dito dele. No outro extremo está o surdo que é
visto por suas múltiplas identidades e que a surdez é um dos elementos que o constitui.
Essa não é uma trajetória linear, gradual e progressiva. Não é porque avançamos
em uma discussão que outras estão superadas, extintas, apagadas dos discursos que
envolvem o surdo e a sua educação. Vimos, dentro das análises realizadas que há
atravessamentos e diálogos, em todos os momentos históricos, com noções sobre surdez
e educação de surdos de diferentes etapas observadas.
Concluímos, então, que muitas das ideias que circulam sobre a surdez nos
enunciados que compuseram nosso corpus dialogavam com duas principais visões: a
clínica clássica e a do surdo como minoria linguística. Por isso, propusemos a discussão
sobre as bases que formam ambas as linhas de pensamento e como elas afetam as
fixações de sentidos que buscamos no trabalho.
A visão clínica clássica apoia-se no discurso médico para definir o surdo, com
isso, as características fisiológicas do indivíduo, que o impossibilitam de ouvir são
priorizadas nesse entendimento. Termos como diagnóstico, deficiente e correção são
comuns em textos que dialogam com essa visão. A surdez é vista a partir da sua falta,
isto é, tendo o ouvinte como ideal normal e o surdo como alguém que precisa de uma
intervenção (na maioria das vezes, médica) para atingir esse normal. Há, inclusive,
categorias de surdos criadas a partir da quantidade de decibéis que os indivíduos
conseguem captar a partir de exames de audiometria.
Por outro lado, apresentamos as discussões a partir da visão dos surdos como
minoria linguística. Tomamos, na verdade, as discussões da glotopolítica e adotamos o
termo língua minorizada para tratar de língua que são, por assim dizer, menores não em
questões numéricas, de quantidade de falantes, mas são subjugadas a outra(s) na relação de
poder e de prestígio estabelecido em um determinado contexto. Portanto, os usuários de
libras, em comparação aos usuários de língua portuguesa, pertencem a uma minoria
linguística e a relação entre língua majoritária e minorizada seria uma relação de
negociação de sentidos constante entre mundos culturais diferentes.
Operamos com a ideia de que a libras é uma língua minorizada visto seu próprio
histórico recente de luta por reconhecimento legal e social. Os movimentos surdos que
cresceram no país principalmente nos anos noventa buscaram o reconhecimento da libras
140

como língua, opondo-se à ideia de um conjunto de gestos ou mímicas que se pode ver até
hoje em certos contextos. E entendemos que somente depois de reconhecer a libras como
língua que se pode avançar na discussão de políticas públicas voltadas a esse público que
considerem a identidade, cultura e, inclusive a condição minorizada desse idioma em
relação a outras línguas orais-auditivas.
Essas propostas teóricas nos possibilitaram avançar na discussão sobre os
desdobramentos possíveis ao significar a surdez a partir de cada um desses caminhos. A
partir de cada entendimento de mundo, entendimento dos objetos observados, no caso, os
surdos, a libras e a educação de surdos, diferentes tratamentos são dados a eles. Por isso,
avançamos nas análises de documentos jurídicos e pedagógicos, de fora e dentro do
INES, que tratam dos caminhos de agir, pensar e significar as questões que envolvem a
surdez.
Ao analisar os documentos jurídicos selecionados, sendo eles a Lei 10.436 de
2002 e o Decreto 5.626 de 2005, concluímos que há uma caracterização da libras como
língua dissociada de identidade e cultura. A libras é significada como um sistema de
regras externo ao sujeito sobre o qual ele controla e lança mão a qualquer momento que
precisa se comunicar.
Na lei, ao contrário das situações que vimos sobre a língua de sinais em alguns
países a libras não se tornou uma língua oficial ou cooficial, senão foi ―reconhecida como
meio legal de comunicação e expressão‖ (BRASIL, 2002). Entendemos que essa dicotomia
entre meio legal e língua oficial emergem sentidos de desprestígio da libras frente à língua
portuguesa que, na constituição, é descrita como idioma oficial da República Federativa do
Brasil.
Vemos diálogos com o próprio processo histórico de luta das línguas de sinais que,
durante muito tempo eram vistas como um conjunto de gestos limitados. Esse passado não
tão recente da libras contribui para que esta não seja vista como um elemento intrínseco ao
sujeito e sim apenas um meio de comunicação, sem contemplar elementos subjetivos,
culturais, identitários, sociais.
Nessa linha, vimos que o texto da lei busca legitimar a língua de sinais a partir
do reforço da sua ―estrutura‖. Assim, há um diálogo com uma visão estruturalista de
língua que, no início do século XX, com Saussure, buscava, dentre outros aspectos, alçar
a linguística como um campo científico reconhecido.
141

Já os documentos pedagógicos externos ao INES, analisados os editais do


ENEM desde 2017 quando entrou a possibilidade de prova em libras para candidatos
surdos e o edital do último exame de proficiência em libras, o ProLibras, lançado em
2015.
Foi possível concluir que, no edital do ENEM, há um diálogo claro com a visão
clínica clássica da surdez visto que, para que o candidato tenha acesso à prova em libras
precisa apresentar laudo médico que conste o CID, isto é, classificação internacional da
doença.
É, por tanto, o diagnóstico médico garantirá o acesso linguístico a uma prova
em vídeos com os itens em libras. A legitimação da constituição do que é ser surdo e de
quem tem direito ao acesso à língua de identidade da comunidade surda se dá através de
um documento que só pode ser emitido por um profissional da saúde.
Com isso, questionamos a diferenciação entre surdo e deficiente auditivo
apresentada no texto e verificamos que dialoga com os discursos que veem a surdez como
um caso médico e não como uma minoria linguística.
Supomos que o respaldo do discurso médico que é visto como mais científico e
objetivo através de seus exames e diagnósticos se dá para garantir uma suposta justiça na
cessão de um benefício a um candidato de um exame que garante acesso a universidades
públicas do país. A ideia de que todos devam ter condições iguais na realização do
exame é ponderada a medida que o discurso médico garante que parte dos candidatos
tem uma deficiência, isto é, alguma desvantagem que seria compensada pelo acesso à
prova, além dela em língua portuguesa, em libras.
O Prolibras, proposto pelo Decreto 5.626 de 2005 e com validade de dez anos,
se insere como uma proposta de ação afirmativa para possiblidade a criação dos cursos
de Letras-Libras nas universidades públicas já que não havia professores formados para
atuar nesses espaços educacionais até então.
Vimos uma aproximação da ideia de libras como sistema linguístico e
dissociado, inclusive, da ideia de educação mesmo inserido em um contexto de exame de
proficiência que buscava certificar a capacidade do candidato de ensinar libras.
No edital analisado, verificamos que metade dos pontos não mencionava a
dimensão do ensino. Há uns pontos que tratam apenas questões de descrição linguística e,
142

portanto, abre-se a possibilidade de que sejam abordadas de maneira desconectada do


ensino em si.
Segundo em nossas análises e conclusões, fomos para documentos internos ao
INES e levantamos momentos históricos das grades curriculares oferecidas pelo colégio
do instituto a alunos surdos ao longo do tempo.
Pudemos ver que uma ideia de surdo ligada à força de trabalho e sua formação
direcionada para tal. Às propostas curriculares subjazem também preocupações de
inserção social desse surdo como um cidadão funcional, ou seja, alguém que tenha
atividade produtiva apesar da sua condição de surdo seja qual for a época. No início do
instituto havia componentes curriculares dentro da grade principal dos alunos, mas essas
disciplinas foram influenciadas pelas legislações que regem a educação no país, saindo
da grade regular, porém nunca abandonando o contato com os alunos surdos por
completo. Atualmente, inclusive, há uma divisão comandada pelo departamento de
educação básica do instituto que é responsável por capacitar profissionalmente e
encaminhar surdos para o mercado de trabalho.
Concluímos também, sobre a relação entre o currículo e a libras que há uma
valorização da língua portuguesa em detrimento da libras com a justificativa de inserção
social. A ideia de que o surdo precisa adequar-se linguisticamente à sociedade para
desempenhar uma função útil à sociedade é usado como motivo para adotar uma proposta
de educação bilíngue em que língua portuguesa e libras estariam no mesmo patamar, ainda
que não estejam.
Para a educação de surdo de maneira geral, concluímos a partir das análises feitas
que há um deslocamento gradual nas perspectivas e possibilidades consideradas. Essas
possibilidades estão intrinsecamente ligadas às ideias de libras e de surdo. Conforme libras
vai se deslocando para uma posição de língua de identidade de uma comunidade e o surdo
vai ser significado a partir da sua condição de sujeito, múltiplo, detentor de cultura, a
educação acompanha essa trajetória e começa a ser pensada para esse grupo ao contrário da
adaptação oriunda de algo originalmente pensado para ouvintes.
Nesse movimento está a inclusão dos profissionais surdos no pensar e fazer dessa
pedagogia própria e especializada, que considera uma língua outra, ou seja, outra forma de
existir nesse mundo.
143

Tenho consciência da minha posição de ouvinte escrevendo sobre a surdez, mas


acredito que todos os conceitos que me propus a mobilizar aqui, sempre dentro da minha
grade de sentidos, foram a serviço de uma compreensão mais plural e no intuito de criar
diálogos e pontes para permitir ao surdo protagonizar sua própria história.
144

REFERÊNCIAS

ALVES, N. Ensinar a aprender: o lugar da teoria e da pratica em currículo. In: LIBÂNEO,


J. C.; ALVES, N. (Orgs.). Temas de Pedagogia: diálogos entre didática e currículo. São
Paulo: Cortez; 2011, p. 61-77.

AMORIM, M. Memória do objeto – uma transposição bakhtiniana e algumas questões para


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