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NAS MARGENS
DO GANGES

RABINDRANATH
TAGORE
1
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NAS MARGENS
DO GANGES
Se gostas de ouvir narrações dos tempos passados, então
senta-te nesse degrau e presta atenção ao chapinhar da
água.
Estávamos nas proximidades do mês de Ashwin (Setembro).
A ribeira ia cheia. Da escadaria que descia, somente quatro
degraus estavam fora da água. Na margem da ribeira
cresciam tufos de plantas compactos sob os ramos dos
bosques de mangueiras, onde a corrente formava um ângulo
e deixava a descoberto três grandes montões de tijolo As
barcas de pesca, amarradas aos troncos de babilas,
balouçavam-se indolentemente. Os grandes caniços que
cobriam o banco de areia captavam os primeiros raios de sol
e começavam a florir antes de atingir o seu pleno
desenvolvimento.
Os barcos abriam as suas velas sobre a ribeira cheia de sol. O
sacerdote, com os seus vasos rituais, dispunha-se a tomar o
banho. As mulheres, em grupos, vinham buscar água. Era a
hora em que Kusum tinha o costume de aparecer no alto da
escadaria e tomar banho.
Mas naquela manhã não a vi chegar. Diante do ghât
(escadaria onde se toma banho), Bhudan e Swarno
lamentavam-se. A sua amiga - diziam - tinha sido levada para
casa do marido, uma localidade muito afastada da ribeira, e
que se distinguia por uma população estranha, casas
estranhas e caminhos estranhos.
Entretanto ela quase desapareceu da minha memória. Passou
um ano. As mulheres que vinham tomar banho falavam
novamente de Kusum. Uma tarde, porém, estremeci ao
reconhecer dois pés familiares. Mas ai, eles não traziam anéis
e tinham perdido o seu tilintar musical de outrora!
Kusum estava viúva. Dizia-se que o marido fora chamado a
uma cidade longínqua e que ela apenas o vira uma ou duas
vezes. O correio trouxera-lhe a notícia da sua morte. Viúva
aos oito anos, apagara na fronte o sinal vermelho de casada,
despojara-se dos seus braceletes e voltara para a velha casa
à beira do Ganges. Mas encontrou poucas amigas dos tempos

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de solteira. Bhudan, Swarno e Amala tinham casado e
partido; só Sarat ficara; mas afirmavam que se dispunha a
casar em Dezembro.
Da mesma forma que o Ganges, na estação das chuvas
aumenta gradualmente de volume e transborda, assim
Kusum se aproximava, dia a dia, da plena floração de beleza.
Mas com vestes brancas e sem enfeites, de rosto pensativo e
atitude calma, lançavam-lhe um véu sobre a juventude e
ocultavam-na, como uma bruma, aos olhos dos homens. Dez
anos tinham decorrido sem que ninguém reparasse que
Kusum se desenvolvia.
Nma manhã, há muitos anos e por esta mesma temperatura
de fim de Setembro, um sannyasi (monge) jovem e de pele
clara, chegado não se sabe donde, veio abrigar-se no templo
de Sivá, na minha frente. A notícia da sua chegada em breve
se espalhou por toda a aldeia. Abandonando as bilhas, as
mulheres acorriam ao templo para saudar o santo homem.
A multidão aumentava de dia para dia. A fama do sannyasi
depressa se espalhou entre as mulheres. Ele, ora recitava o
Bhagvat ora comentava o Gita, ou pregava no templo acerca
do tema que escolhiam num livro santo. Uns pediam-lhe
conselhos, outros os seus sortilégios ou a sua ciência de
curar.
Passaram-se meses. Em Abril, na época do eclipse solar, os
banhos do Ganges atraíam uma multidão considerável. Uma
feira se organizou sob as árvores de babla. Entre os
numerosos peregrinos, acorridos para saudar o sannyasi,
vinha um grupo de mulheres da aldeia onde Kusum fora
casada.
Era uma manhã. O sannyasi, sentado num degrau, rezava,
quando, de súbito, entre os peregrinos, uma mulher fazendo
sinal a uma das suas companheiras, murmurava:
- Mas é o esposo de Kusum!
A companheira, afastando um pouco o véu exclamou:
- Palavra, é bem ele! É o filho mais novo dos Chattergi, que
habita na minha aldeia!
Uma terceira, disse por sua vez:
- Ele tem exactamente a mesma testa, o mesmo nariz e os
mesmos olhos.
Enquanto uma outra, sem mesmo olhar para o sannyasi,
agitava a sua bilha na água, suspirando:
- Ai! Ele não é nem será o que foi! Pobre da Kusum!
Uma delas objectou então: «Ele não tinha uma barba tão
grande»; e outra: «Ele não era tão magro»; uma outra ainda:

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«Parecia-me mais alto». E a discussão ficou por aí.
Uma noite de lua cheia, Kusum veio sentar-se perto da água,
no mais alto dos meus degraus.
A sua sombra projectava-se sobre mim.
Estávamos sós junto do ghât. Os grilos cantavam à nossa
volta. O tanger dos gongos e das sinetas do templo tinham
cessado e o murmúrio da água era cada vez mais fraco, para
se perder em breve, como a saudade dum som, nos bosques
indistintos da margem oposta. Um raio da lua brilhava nas
águas escuras do Ganges. Ao montante do rio, sob as sebes e
arbustos, sob o pórtico do templo e sob os bosques das
palmeiras, perfilavam-se sombras de formas fantásticas. Os
morcegos balouçavam-se nos ramos de chatuns. Na
proximidade das habitações, os chacais soltavam uivos
arrepiantes e prolongados.
O sannyasi saiu do templo com o seu passo lento. Desceu
alguns degraus ghât e viu uma mulher só. Ia afastar-se
quando de súbito Kusum ergueu a cabeça; voltou-se. O véu
caiu e a lua iluminou-lhe o rosto.
Um mocho voou por cima da sua cabeça. Ao ouvir o pio da
ave ela estremeceu, ajustou o véu e prosternou-se aos pés do
sannyasi.
O Sannyasi deu-lhe a bênção e perguntou:
- Quem sois?
Ela respondeu:
- O meu nome é Kusum.
Nessa noite não trocaram mais palavra. Kusum voltou para
casa, lentamente, e o sannyasi permaneceu durante longas
horas nos degraus do ghât. Quando, enfim, a lua emigrou do
este para o oeste, o Sannyasi levantou-se e entrou no
templo.
Vi todos os dias Kusum vir prosternar-se aos pés do sannyasi.
Quando ele comentava os livros sagrados, permanecia a um
canto e escutava-o; quando acabava as suas orações da
manhã, ele chamava-a para junto de si e conversava com ela
sobre assuntos religiosos. Kusum não podia compreender
tudo, mas escutava-o com atenção e fazia esforços para o
compreender. Ele dirigia-a e ela obedecia-lhe
escrupulosamente. Kusum ajudava o serviço, sempre pronta
à adoração de Deus, colhendo flores para a oferenda e indo
buscar água ao Ganges para lavar o chão do templo.
O inverno ia terminar. Os ventos eram ainda frios, por vezes;
à noite, a brisa quente da primavera soprava bruscamente do
sul e o céu tornava-se azulado; depois dum longo silêncio

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ouvia-se novamente o som das flautas e a música da aldeia.
Os barqueiros deixavam ir os barcos ao sabor da corrente,
paravam de remar e entoavam cânticos a Krishna. Era a
primavera.
Nesta altura, perdi Kusum de vista. Havia alguns dias que ela
deixara de aparecer no templo, no ghât ou diante do
sannyasi.
Ignoro o que se passou então, mas, pouco depois, os dois
encontraram-se de novo, uma noite, nas escadarias.
Com os olhos baixos, Kusum perguntou:
- Senhor, chamou-me?
- Sim, porque não vinhas? Porque esqueceste, há algum
tempo, o serviço de Deus?
Ela ficou silenciosa.
- Diz-me o teu pensamento, sem receio.
Voltando o rosto, ela respondeu:
- Senhor, eu sou uma pecadora, faltei ao meu dever de
adoração.
O sannyasi disse-lhe:
- Kusum, eu sei que a tua alma está perturbada.
Ela estremeceu ligeiramente; depois, cobrindo o rosto com o
Sari, sentou-se no degrau aos pés do sannyasi e começou a
chorar.
Ele recuou um pouco e continuou:
- Diz-me o que tens no coração; eu te mostrarei o caminho
da paz.
Ela respondeu com fé e palavras entrecortadas:
- Se me ordena, falarei. Mas receio que não possa exprimir-
me com clareza. Mestre, certamente adivinhou tudo. Eu
adorei um ser humano como a um Deus, venerei-o, e, ao
render-lhe este culto, o meu coração transbordou de
felicidade. Mas uma noite, eu sonhei que o Senhor da minha
alma estava sentado num jardim, estreitando a minha mão
direita na sua mão esquerda e murmurava palavras de amor.
A cena não parecia de forma alguma estranha. O sonho
desfez-se, mas a sua impressão ficou. No dia seguinte,
quando os meus olhos se levantaram para ele, pareceu-me
diferente. A imagem que me apareceu no sonho continuava a
perseguir-me. Atemorizada tentei fugir para longe, mas a
imagem não saía do meu espírito. Desde então, a minha alma
não conhece a paz, e tudo em mim se tornou sombrio!
Enquanto enxugava as lágrimas ao mesmo tempo que falava,
o Sannyasi martelava convulsivamente, com o pé, o degrau
de pedra.

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Quando ela acabou de contar, o Sannyasi perguntou:
- Diz-me: quem viste no teu sonho?
Com as mãos juntas, ela suplicou:
- Não posso.
Ele insistiu:
- Deves dizer-me tudo.
Ela contorceu as mãos e interrogou:
- Assim o deseja?
- É teu dever! - respondeu o sannyasi.
Então ela exclamou:
- Senhor, fostes vós que eu vi!
E deixando-se cair no degrau, começou a soluçar
profundamente.
Quando sossegou e pôde levantar-se, o Sannyasi disse numa
voz meiga:
- Deixarei este lugar esta mesma noite e não me verás mais.
Sabes que sou um sannyasi e que não pertenço a este
mundo. Deves esquecer-me.
Kusum respondeu em voz baixa:
- Assim farei, Senhor!
O sannyasi murmurou:
- Digo-te adeus...
Sem dizer palavra, Kusum inclinou-se e tocou os pés do
sannyasi com a fronte.
E o santo homem deixou a aldeia.
A lua desaparecera; a noite tornou-se escura. Ouvia-se o
chapinhar da água. O vento soprava furiosamente nas trevas,
como se quisesse varrer as estrelas do céu.

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SOBRE O AUTOR E SUA OBRA

Rabindranath Tagore

Poeta, contista, dramaturgo


e crítico de arte hindu;
nascido em Calcutá. Nasceu
no dia 7 de Maio de 1861.
Ele foi o maior poeta
moderno da Índia e o gênio
mais criativo da renascença
indiana.

Além de poesia, Tagore


escreveu canções (letras e
melodias), contos, novelas,
peças de teatro (em prosa e
verso), ensaios sobre
diversos temas incluindo
críticas literárias, textos
polêmicos, narrativas de
viagens, memórias e histórias infantis: O Jardineiro, O
Carteiro do Rei, e Pássaros Perdidos. Grande parte de sua
obra está escrita em Bengali. Gitanjali (1912), uma tradução
e interpretação de uma obra poética em Bengali do original
de 1910 fez com que Tagore ganhasse o Prêmio Nobel de
Literatura em 1913.

Seu pensamento abriu novos caminhos para a interpretação


do misticismo, procurando atualizar as antigas doutrinas
religiosas nacionais.

Colaborou em revistas americanas, tendo obras publicadas


em francês, inglês e espanhol. Realizou conferências no
Uruguai, Argentina, França, Estados Unidos. Recebeu o título
de "Doutor Honoris Causa e Membro Honoris Causa" de
universidades e associações do Brasil e outros países, e de
Oficial da Legião de Honra da França e da Ordem do Leão
Branco da Tcheco-Eslováquia.

Morreu em 7 de agosto de 1941 na casa onde nasceu, em


Calcutá.

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