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“Está aqui...

Kyra engoliu em seco. Não era a voz da tal da Prim dessa vez. Era a voz dele,
agora mais forte que um sussurro.

“O que está fazendo... Kyra?”

“Ignore ele, Kyra. Você está indo bem, continue.”

“Kyra!” a voz dele ecou em sua cabeça como uma trombeta.

-- Calem a boca!

Na mesma hora, Kyra teve vontade de estapear a própria cara. Alguns dos Hansel
a olharam, surpresos. Uma dupla de Gretel que estavam em pé, franziram o cenho. Kyra
se apressou em disfarçar uma tosse seca. Puxou mais o capuz sobre a cabeça, mais sobre
o olho amarelo. Ao perceber o erro, cobriu o olho verde. Aqui era o contrário. Todos
tinhas os olhos amarelos. Se não tivesse em situação tão tensa como aquela, Kyra teria
rido: não importava o lugar, a heterocromia de seus olhos sempre chamaria a atenção.

“Você deveria ter arrumado um jeito de disfarçar seus olhos” censurou Prim,
dentro de seus pensamentos.

“Vá a merda.” Respondeu Kyra, aborrecida.

“Só estou tentando lhe ajudar”

“Ah, como você está ajudando! Quem foi mesmo que me arrastou para essa
encrenca??”

“Você mesma. E sua vontade de ter respostas.”

Kyra conteve a vontade de estalar a língua. Prim estava certa. Ninguém a havia
obrigado a dar um fim naquela Gretel craquelada e roubar sua identificação e uniforme
para entrar no metrô em direção a Redoma. A irritante da Prim havia desaprovado o
método violento, mas o que ela queria? Que Kyra disparasse um sinalizador sobre sua
cabeça e exibisse seus olhos auriverdes e sua pele malhada na frente de um exército de
biophilins? “Aqui, seus otários! Sou mais aberração genética que vocês!”

“Você não é uma aberração, Kyra.”

“ Que gentil. Saia da porra da minha cabeça!”


“Pelo menos, eu não acho que seja uma aberração. Não somos aberrações.”

“Fale por você.” Kyra levantou um pouco mais a gola do casaco “Dá para calar a
boca um pouco, pelo menos, até seu sair de dentro dessa lata refrigerada? Não preciso
que mais desses clones idiotas me achem esquisita”

Kyra abraçou o próprio corpo. Agora entendia porque o casaco fazia parte da farda
dos Classe C, aquele metrô era mais gelado que uma geladeira. Isso ao levar em conta
que qualquer geladeira no Subúrbio não era muito potente. O frio artificial fazia um
constrste absurdo com o calor do lado de fora, o único que até então Kyra chamava de
“casa”, na falta de palavra de melhor. Pois as duas pessoas que foram o seu lar estão
mortas e enterradas.

Desejou ter pego as luvas da Gretel também. Aquele ar gelado estava começando
a congelar seus dedos. Resistiu a vontade de esfregar as mãos, pois os demais passageiros
pareciam não se importar com o frio. Pelo contrário, suas carrancas pareciam bem mais
tranquilas, bem diferentes das expressões duras de quando patrulhavam as ruas
escaldantes do subúbio e descarregavam seus tases em algum pobre diabo.

Prim continuava cutucando sua mente, mas Kyra se esforçou para bloqueá-la. Ele
também. Aquela presença, como fosse alguém que a observava de longe, estava muito
mais marcante. Tratou de respirar fundo e tratou de se concentrar em outra coisa, como
novos cheiros, muito diferente do carvão e disel queimado que estava tão acostumada.
Deveriam colocar alguma espécie de aromatizador nos vagões, pois um aroma floral
impreguinava o ambiente.

“Lavanda” informou Prim “É uma flor. Tem propriedades calmantes. Deixa os


biophilins mais tranquilos.”

“Grata pela informação.”

“Nunca consigo entender se está sendo sarcástica ou não. Você deveria sentir mais
o aroma de lavanda, Kyra. Talvez a acalme.”

“Mais uma vez: vá a merda, garota. Quando essa bosta vai parar?”

“Falta mais alguns minutos. Assim que sair da estação, terá alguém esperando por
você.”

“Ah, adoro uma recepção. Espero ser alguém amigável”


Kyra pode sentir um suspiro de dentro dos seus pensamentos. Por debaixo da gola,
chegou a dar um sorriso maliocioso. Havia consigo irritar Prim um pouco, para variar.

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