Você está na página 1de 183

bOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOO fVO.

O
Ruy Fabiano
M
C
Mestre Gabriel

O Mensageiro de Deus
nTn
PEDRA NOVA
Edições
________________ _ ______________________________
José Gabriel da Costa, o Mestre
Gabriel (1922-1971), foi um líder religioso brasileiro, que exerceu sua missão na
Amazônia na década dos 60 do século passado. Criou, no ermo dos seringais, uma
religião cristã- reencarnacionista, o Centro Espírita Beneficente União do Vegetal
(UDV), presente hoje em todo o território brasileiro e em mais seis nações: Estados
Unidos, Espanha, Portugal, Inglaterra, Austrália e Suíça.
Nela, comunga-se um chá misterioso, de nome Hoasca (ayahuasca), que é a união
de dois vegetais amazônicos, o cipó mariri e a folha chacrona. O efeito psicoativo do
chá, que não causa dependência e é inofensivo à saúde, favorece a percepção dos
mistérios da espiritualidade.
Não se trata de um sincretismo religioso.
A UDV absorve fundamentos judaico- cristãos, mas não se limita a reproduzi-los; a
eles acrescenta revelações, que ampliam os horizontes de compreensão da
realidade espiritual. A comunhão da Hoasca é essencial a esse culto não porque a
doutrina por si só não se sustente, mas porque propicia compreendê-la desde o
sentimento, associando-o à razão.
Crer ou não crer é questão de foro íntimo, que não se impõe. Este livro não tem
propósito doutrinário; apenas expõe a trajetória de um homem singular — um profeta
contemporâneo —, que legou uma obra de teor universal, que, entre outras
preciosidades, revela ao ser humano a dimensão sagrada da Natureza e o caminho
L
%
0000 0-0000000000000000000000000000000 00
Mestre Gabriel, Mensageiro de Deus
Ruy Fabiano
Mestre Gabriel

O Mensageiro de Deus
rTY\
PEDRA NOVA
EdlçAes
Fevereiro 2012
-L.
c
c
c
c
/
c
c
o
c
c
/\
o
/ \ lv
o
VJ
c
c
c
o
o
v_
o
o
Q
o
o
o
A família do Mestre Gabriel e aos Mestres do Conselho da Recordação
O
(
c
o
o
o
c

Agradecimentos
O autor agradece a colaboração de Yuugi Makiuchi, de cujas pesquisas de campo se
serviu para a reconstituição cronológica da trajetória do biografado, à viúva de
Mestre Gabriel, Raimunda Ferreira da Costa (Pequenina), a seu filho Jair Gabriel da
Costa, e às seguintes pessoas, que contribuíram com observações, informações e
supervisão do relato: Raimundo Monteiro de Souza, José Luiz de Oliveira, Francisco
Herculano de Oliveira, Raimundo Carneiro Braga, Ana Maria e Luís Cardoso,
Roberto Evangelista, Jamsson Ferreira de Oliveira, Clóvis Cavalieri de Carvalho,
Edison Saraiva Neves, Edson Lodi, Luís Felipe Belmonte dos Santos, Paulo Afonso
Condé, Flávio Mesquita da Silva, Joaze Bernardino e Carlos Ribeiro.
O
Projeto Gráfico, capa e produção: Luiz Daré
Foto da capa:
Cícero Alexandre Lopes
Ilustrações:
Marcelo Bicalho
Apoio, pesquisa iconográfica e tratamento de imagens: Francisco Herculano de
Oliveira, Yuugi Makiuchi, Luiz Trazzi, Renato Palet e Bento Viana
Revisão:
Cida Taboza
Ficha Catalográfica
F118m Fabiano, Ruy.
Mestre Gabriel, o mensageiro de Deus /
Ruy Fabiano; Ilustração de: Marcelo
Bicalho. - Brasília: UDV, 2012. 232 p. : 11.
color. ; 23 cm
ISBN 978-85-61938-01-7
1. Biografia Mestre Gabriel. 2. Chá
Hoasca. I. Fabiano, Ruy. II. Bicalho,
Marcelo. III. Centro Espírita Beneficente
União do Vegetal - UDV. IV. Título.

CDU (2.ed.)2-78

Pedra Nova Edições Brasília/DF 2012


oo
c Sumário
c
Parte 1 - Da Bahia à Amazônia ........................................... 11
Capítulo I — Os Mensageiros ............................................. 13
Capítulo II — Um Homem Simples...................................... 15
Capítulo III — A Missão do Mestre ...................................... 19
Capítulo IV - O Adeus Solitário ........................................... 21
Capítulo V — Infância Feliz ................................................. 27
Capítulo VI - Em Salvador ................................................... 37
Capítulo VII — O Exército da Borracha ............................... 43
Capítulo VIII - De Brabo a Tuchaua .................................... 49
Capítulo IX — O Casamento com Pequenina ..................... 55
Capítulo X — A Volta ao Seringal ....................................... 57
Capítulo XI — O Sultão das Matas ..................................... 61
Capítulo XII — A Primeira Notícia do Tesouro .................... 65
Capítulo XIII - Caminho Preparatório .................................. 69
Capítulo XIV - O Encontro com o Tesouro .......................... 73
Capítulo XV - Os Mestres de Curiosidade........................... 79
Capítulo XVI - A Criação da União do Vegetal .................... 85
Capítulo XVII — O Mestre Superior .................................... 89
Capítulo XVIII - Confirmação no Astral Superior ................. 91
Parte 2 — A UDV em Porto Velho ...................................... 105
Capítulo XIX - A Chegada ................................................... 107
Capítulo XX — As Primeiras Sessões de Escala ................ 115
Capítulo XXI - Simplicidade e Integração ............................ 123
%
Capítulo XXII - O Arco, o Uniforme e a Música ........ 127
Capítulo XXIII - A prisão do Mestre .......................... 131
Capítulo XXIV — Polícia fecha a UDV; Justiça reabre 137
Capítulo XXV -Velando Enquanto Dorme ................ 139
Capítulo XXVI - Mistérios do Vegetal ....................... 141
Capítulo XXVII - O Chá Hoasca ............................... 145
Capítulo XXVIII - Dons e Mistérios do Mestre .......... 149
Capítulo XXIX — A Palavra do Mestre ..................... 165
Capítulo XXX- Doutrina e Fundamentos .................. 169
Capítulo XXXI — Sincretismo x Revelação .............. 175
Capítulo XXXII - O Mestre é Hospitalizado .............. 179
Capítulo XXXIII - Missão Cumprida .......................... 185
Anexo — Farmacologia Humana da Hoasca ........... 203
Parte 1

Da Bahia à Amazônia
C.
C
v
C
c
c
c
c
c
c
c
O
C
C
c
o
c
o
c
c
c
c
c
c
c
c
/"'N
o
O Mensageiro de Deus

Capítulo I
Os Mensageiros
A história espiritual da humanidade registra, de tempos em tempos, a presença de
personagens que marcam sua trajetória por um mesmo propósito: revelar aspectos
da realidade transcendental, que abrange origem, sentido e destino da existência
humana.
Não importa a época ou a cultura, são portadores de mensagem de teor perene e
universal, que transcende o ambiente em que se apresentam. As Escrituras
Sagradas, no Oriente e no Ocidente, falam de profetas, mestres, gurus e avatares -
Mensageiros de Deus, dedicados a mostrar que o Eterno é real, acessível a quem se
disponha a conhecê-Lo. Ofe- recem-se como guias nesse percurso.
Não buscam lucro, fama ou prestígio — e isso os distingue dos falsos profetas,
que fazem da espiritualidade comércio. Cultivam o desapego material, não
discriminam, nem estigmatizam. Mostram a humanidade como é: uma só, com as
mesmas carências e perplexidades, sem distinções de nacio-
13
%
Mestre Gabriel
nalidade, raça, gênero, classe ou crenças. E se empenham em esclarecê-la pela
palavra e, sobretudo, pela força do exemplo.
O progresso material, por mais admirável, não supre as necessidades vitais do
espírito, sua ânsia por transcender, que marca sua trajetória na Terra. Daí a
importância dos Mensageiros.
Nem todos são percebidos em seu tempo e de uma só vez. A grande maioria só
começa a ter sua missão avaliada - e eventualmente reconhecida — quando já não
mais está fisicamente presente. O que deixam, por intermédio de discípulos, é a
semente de uma obra que o Tempo se encarrega de disseminar e dimensionar.
O que adiante se conta é a história de um desses personagens, Mestre Gabriel,
que exerceu sua missão espiritual na Amazônia brasileira ao longo de uma década:
de 1961 - data em que criou a sociedade religiosa Centro Espírita Beneficente União
do Vegetal (UDV), de fundamentação cristã-reencar- nacionista - a 1971, data em
que faleceu, em Brasília.
É uma saga rica e comovente, marcada pelo sentimento de amor ao próximo —
história de um verdadeiro gabriel (palavra que, em hebraico, significa Mensageiro de
Deus).
14
O Mensageiro de Deus

Capítulo II
Um homem simples
A simplicidade é a marca dos grandes homens. José Gabriel da Costa, o Mestre
Gabriel, era um homem simples - e grande. Sua obra espiritual - a União do Vegetal -
dá testemunho dessa grandeza e simplicidade. Neste livro, fala-se de ambos, até
porque não é possível dissociá-los. De tal forma um está no outro que se pode dizer
que formam uma unidade.
A União do Vegetal tem como objetivo a evolução do ser humano, seu
desenvolvimento integral. Ensina que, pelo aprimoramento das virtudes morais,
intelectuais e espirituais, é possível construir a paz no mundo — e estabelecer a
religação com o Sagrado.
O que este livro evoca é não somente sua trajetória de vida - do interior da Bahia
aos seringais da Amazônia -, mas o conteúdo e os reflexos presentes de sua obra,
em torno da qual se reúnem hoje alguns milhares de adeptos, no Brasil e no exterior
- cerca de 20 mil, ao tempo em que este livro está sendo escrito.
15
Mestre Gabriel
Profundo conhecedor da Natureza, Mestre. Gabriel criou a UDV no coração da
Floresta Amazônica, para onde foi em 1944, aos 22 anos, integrando o Exército da
Borracha, contribuição do Brasil às forças aliadas, na luta contra o nazi- fascismo, na
Segunda Guerra Mundial. Aqueles trabalhadores, esquecidos pela História,
quadruplicaram a produção mundial de borracha, esforço decisivo para o desfecho
vitorioso daquele conflito.
Morreram mais soldados da borracha nos seringais amazônicos — sem amparo
do Estado, expostos a doenças tropicais e a animais ferozes - que soldados da Força
Expedicionária Brasileira (FEB) nas frentes convencionais de combate na Europa.
Foram convocados 57 mil rapazes, todos, como Mestre Gabriel, nordestinos, a
maioria do Ceará (cerca de 30 mil). Dos 25 mil pracinhas da FEB, morreram 465; dos
soldados da borracha, 30 mil.
Nesse ambiente, em meio aos mais diversos tormentos, à margem dos recursos
e benefícios da civilização, José Gabriel da Costa constitui família, torna-se
seringueiro-modelo - um tuchaua —, exibe dons e conhecimentos singulares e
começa a reunir crescente número de discípulos e admiradores.
No final da década dos 50, encontra-se com o chá Hoasca (também conhecido
por ayahuasca, daime ou Vegetal), sacramento da ordem religiosa que cria, e cujas
origens milenares evoca, vinculando-as à tradição monoteísta judaico-cristã, reno-
vando-a e graduando-a, com novas revelações espirituais.
O chá Hoasca, de uso imemorial na Amazônia, é, conforme o atestam pesquisas
como a que anexamos a esta edição1, inofensivo à saúde e favorece a concentração
mental,
1 Ver, em anexo, Farmacologia Flumana da Hoasca, publicada
na revista Psychopharmacology, por Jace Callaway, e em The Journal of Nervous
and Mental Disease, por Charles Grobb.
16
oor
O Mensageiro de Deus
L-
C
chave para a ligação espiritual. Expande a consciência e aguça a percepção. Seu
uso ritualístico, nos termos estabelecidos por Mestre Gabriel, tem se mostrado de
grande valia no trabalho religioso da UDV, poderoso veículo investigativo da
realidade espiritual.
Quem é esse personagem misterioso e fascinante, que, com tão escassa
escolaridade, e em meio tão inóspito, incur- siona pela mais refinada filosofia e
marca, com sua presença, um novo momento no processo de evolução espiritual da
humanidade? E o que este livro, que não tem propósito doutrinário, se dispõe a
examinar, traçando-lhe o perfil biográfico e expondo a obra que deixou.
O
c
c
17
O Mensageiro de Deus

Capítulo III
A Missão do Mestre
« A humanidade não sabe o que é o espírito. Por isso, vive atrapalhada. Eu vim tirar
o povo do atrapalho.” A frase, dita por Mestre Gabriel, resume sua missão espiritual,
para cujo cumprimento e continuidade criou a União do Vegetal: mostrar a realidade
do espírito — sua origem, natureza, destino e objetivo na Terra.
Não é missão inédita: outros Mensageiros a exerceram, em contextos diversos,
ao longo da história humana. E continuarão a exercê-la até a consumação da vida na
Terra. É missão permanente do Poder Superior, desde o Princípio. Alguns tiveram
sua trajetória e mensagem registradas nas Escrituras; outros agiram em contextos
mais estritos, em que prevalecia a cultura oral.
Todos contribuíram, em escala diferenciada, para a continuidade do processo de
evolução espiritual.
Judaísmo, cristianismo, budismo, hinduísmo, islamis- mo, espiritismo - as
religiões em geral — cuidam de religar o ser humano a Deus, nos limites da
revelação que receberam,
Mestre Gabriel
com as eventuais distorções impostas pela imperfeição da conduta humana. Mas a
essência dos seus valores é uma só, já que procedem da mesma Fonte Divina. /
Atendem as necessidades de cada momento da humanidade, preenchendo ciclos
evolutivos, findos os quais nova ação missionária se inicia, sem que as anteriores
sejam revogadas. Há sempre acréscimo, eventual correção de rumos, não
supressão.
E eis aí um aspecto a ser considerado: nenhum desses Mensageiros — nem
mesmo Jesus, o Verbo Divino — revogou ou desautorizou a palavra de qualquer dos
que o antecederam na missão. Jesus, por exemplo, confirmou e disse ter vindo dar
cumprimento à lei de Moisés e à palavra dos profetas.
Cada semente plantada por cada Mensageiro brota para a Eternidade, no Jardim
do Éden Espiritual, como testemunho da Verdade, que é uma só, mas cuja amplitude
e dimensão o ser humano não é capaz de absorver de uma só vez.
Todas as religiões que pregam a existência de um só Deus e a prática do bem
cumprem missão redentora, em prol da evolução espiritual, atendendo os diversos
graus de compreensão da humanidade. Um dia - e desse dia só Deus sabe — todas
as religiões se unificarão num só rebanho, de um só Pastor.
Enquanto isso não ocorre, prevalece a diversidade de linguagens, cultos e
crenças, decorrentes desse panorama desigual. Ciente disso, a União do Vegetal
não vê o ambiente religioso como um mercado competitivo, a ser disputado - e sim
compartilhado.
Apresenta-se como um meio de chegar a Deus, propiciando religação ao
Sagrado, pela prática fiel do bem e constância nos deveres. É, nesses termos, mais
uma árvore que brota no Jardim Divino para prover a humanidade.
20
O Mensageiro de Deus

Capítulo IV
O Adeus Solitário
No dia 22 de setembro de 1971, dois homens de aparência modesta - caboclos do
Norte brasileiro - adentram o movimentado Hospital Distrital de Brasília (hoje Hospital
de Base), único pronto-socorro público disponível na jovem capital do país, fundada
onze anos antes, numa região isolada dos grandes centros urbanos.
O mais velho, exibindo cansaço e debilidade física, apoia-se no ombro do que
aparenta uns dez anos a menos.
No guichê, após enfrentar extensa fila, identificam-se e apresentam documentos
e exames clínicos que recomendam internação imediata do mais velho, José Gabriel
da Costa, ex- -seringueiro, de 49 anos, casado e pai de onze filhos.
Vieram de Manaus, onde José Gabriel, com um tumor no cérebro, esteve
internado no Hospital da Beneficência Portuguesa. Os médicos de lá, sem recursos,
o mandaram para Brasília, onde poderia se submeter a exames mais qualificados
Mestre Gabriel
e a uma cirurgia para extração do tumor fronto-parietal cerebral D, de dimensão
incomum.
Os médicos do Hospital Distrital espantam-se com as proporções do tumor, do
tamanho de um ovo. Não entendem como, em tal situação, o paciente consegue
andar, falar, manter-se lúcido, resistindo a uma dor que avaliam intensa e constante.
José Gabriel, porém, não reclama.
Apenas exibe cansaço e necessidade de repouso. Diz que, antes de ser atendido
em Manaus, fizera tratamento dos pulmões em hospital de Mecejana, Ceará, onde
permaneceu por quatro meses - de novembro de 1970 a março de 1971.
Apresentou melhora, recebeu alta, mas, na sequência, o tumor cerebral se
apresentou, exigindo internação e cirurgia. Resultara, segundo se constatou, de dois
acidentes: uma queda, mais de 20 anos antes, num seringal da Amazônia, em que
bateu a cabeça, formando pequeno coágulo, e de uma capo- tagem de automóvel,
anos depois, em Porto Velho, em que se contundiu no mesmo local, agravando o
dano anterior.
As chances de sobrevivência são remotas. Pode-se tentar uma cirurgia, de alto
risco, para a qual há escassos recursos no Hospital Distrital. Brasília não dispõe
ainda de serviços hospitalares à altura de seu status de capital do país. Quem os
utiliza são as pessoas pobres, por absoluta falta de opções. As classes mais
abastadas buscam os hospitais das duas principais cidades brasileiras, Rio de
Janeiro e São Paulo - mais modernos e com médicos mais experientes.
Não há quartos disponíveis. José Gabriel é encaminhado ao ambulatório,
acomodado num leito, sem qualquer conforto. E lá fica, à espera da consumação de
seu destino, que se daria dois dias depois - 24 de setembro de 1971.
22
O Mensageiro de Deus
Não há tempo nem de iniciar os exames pré-operatórios. Consegue apenas, no
dia seguinte, por iniciativa de um médico, que se compadece de seu estado, ser
transferido para um quarto recém-desocupado. Instantes antes de falecer, senta-se
na cama e pede a uma enfermeira um gravador, que trouxera de Manaus, para
registrar palavras de despedida aos amigos. Não havia gravador.
Seu acompanhante, Rubens Rodrigues, não suspeitando do quadro clínico
terminal do amigo, fora visitar uma filha numa cidade vizinha, deixando-o por alguns
dias, esquecendo-se de lhe entregar o gravador.
Ele então agradece, deita-se e serenamente dá o último suspiro. Eram 18 horas e
10 minutos.
Rubens soube desses detalhes posteriormente pela enfermeira. Sem ter quem
por ele respondesse, o corpo de José Gabriel é então encaminhado, dentro dos
procedimentos burocráticos, à geladeira do necrotério. Rubens só volta ao hospital
no dia 27, para as providências que lhe restam: dar se- pultamento ao amigo e
comunicar o acontecido a conhecidos em duas cidades: Porto Velho, capital do
então Território de Rondônia, e Manaus, capital do estado do Amazonas.
“Mestre Gabriel morreu”, resumia o telegrama, causando comoção entre aquelas
pessoas. José Gabriel, como se veria adiante, era bem mais que um paciente
comum, como sugeria sua modesta aparência de caboclo.
No atestado de óbito, consta sua procedência de Porto Velho e uma equivocada
qualificação profissional de “motorista”, ofício que não exerceu. Foi seringueiro,
técnico de enfermagem, comerciário e comerciante. Mas foi, sobretudo, um líder
espiritual, respeitado e reverenciado, fundador de uma sociedade religiosa
estabelecida então apenas naquelas duas cidades, mas que, ao longo das quatro
décadas seguintes, chegaria gradu-
23

Mestre Gabriel
(
almente a todas as capitais do país e a algumas cidades dos Estados Unidos,
Espanha, Portugal, Inglaterra, Austrália e Suíça.
Criada num seringal, na fronteira entre Brasil e Bolívia, e posteriormente
registrada em Porto Velho, Rondônia, a UDV tem como sacramento, comungado em
seus rituais, um chá, de nome Hoasca, que resulta da decocção de dois vegetais
nativos da Amazônia - o cipó mariri (Banisteriopsis caapi) e a folha chacrona
(psychotria viridis).
Dez anos depois de sua fundação, ocasião em que desencarnava o seu
fundador, a UDV reunia algo em torno de duas centenas de pessoas. Gente simples:
caboclos, seringueiros, trabalhadores braçais, pequenos comerciantes, comerciá-
rios, funcionários públicos modestos.
José Gabriel criara e dirigia aquela sociedade. Estabelecera seus graus
hierárquicos, estrutura, doutrina, ensinos e liturgia. Numa linguagem simples e clara,
transmitia ensinamentos espirituais de grande riqueza poética e filosófica, semeando
paz e concórdia entre seus discípulos. Naquele momento, a UDV possuía apenas
dois locais de culto - um na própria casa do Mestre, em Porto Velho; outro, em
Manaus, numa serralheria, pertencente a um de seus discípulos.
Era, contudo, semente de um caminho espiritual renovado, que, dentro dos
fundamentos do monoteísmo cristão, recoloca ao ser humano a dimensão divina da
Natureza e lhe oferece oportunidade de religação espiritual com o Sagrado.
Em 1986, já contando com mais de cinco mil adeptos - e com núcleos em
dezenas de cidades brasileiras —, a UDV, ao lado de outras sociedades usuárias da
Hoasca, tem seus serviços autorizados pelo governo brasileiro, por meio do
Conselho Federal de Entorpecentes, órgão do Ministério da Justiça, que constata,
após dois anos de investigação, o caráter benéfico e regenerador do uso religioso do
Vegetal.
24
(
L:
C
c
c
c
c
c
o
G
O
o
o
o
o
G
G
G
G
G
G
G
G
C
C
G
C
C
C
C
C
C
O Mensageiro de Deus
Em 22 de julho de 1999, quando celebrava seus 38 anos, a UDV recebe do
Ministério da Justiça o título de entidade de utilidade pública federal, pelos serviços
de beneficência social que presta. O mesmo título hoje ostenta em diversas cidades
e estados do Brasil.
Em 1992 e em 2007, provocado por novos questionamentos em torno do uso
ritualístico da Hoasca, o governo brasileiro volta a examiná-lo. E chega à mesma
conclusão inicial, reiterando, sempre por unanimidade, o direito estritamente religioso
de seu uso.
O mesmo se dá nos Estados Unidos, onde a UDV se fizera presente, por
iniciativa de cidadãos norte-americanos, sob a supervisão da Sede Geral, em
Brasília, desde o início dos anos 90.
O governo norte-americano suspende em 1999 o uso ritualístico da Hoasca no
país, receoso de que seus adeptos — em torno de uma centena de pessoas -
estivessem recorrendo ao argumento religioso como expediente para ocultar o
consumo de uma droga alucinógena, de efeitos perigosos.
Por absoluta falta de conhecimento e de protocolos científicos, era essa a
classificação que algumas autoridades atribuíam ao chá Hoasca. Quem, no entanto,
o conhece não tem dúvidas quanto à impropriedade daquele conceito.
Disso, além de pesquisas científicas publicadas em revistas especializadas, dão
notícia numerosos profissionais de saúde que integram a sociedade religiosa União
do Vegetal e nela mantêm um Departamento Médico-Científico para os
esclarecimentos necessários à irmandade, ao público e às autoridades.
(Um parêntese: bem antes de o Vegetal se tornar objeto de pesquisas científicas,
Mestre Gabriel já assegurara a seus discípulos — e fizera constar dos documentos
da UDV — que o chá “é comprovadamente inofensivo à saúde”. As pesquisas, pois,
apenas confirmaram suas palavras.)
25
Mestre Gabriel
A irmandade da UDV nos Estados Unidos, em defesa de seus direitos
constitucionais, recorreu à Suprema Corte - e esta, após exame minucioso de
pesquisas científicas e com- portamentais, seguidas de sucessivas inquirições a
dirigentes brasileiros e norte-americanos da instituição, a respeito de sua doutrina e
respectivos fundamentos teológicos, reconhece, por unanimidade, tratar-se de “um
exercício sincero de religião” (termo constante do relatório do juiz John Roberts),
garantindo a seus adeptos o direito constitucional de professá-la.
A sentença foi pronunciada em 21 de fevereiro de 2006. A UDV já contava com
mais de 15 mil adeptos e mais de cem templos no Brasil e no exterior. A decisão teve
grande repercussão.
Fazia então 34 anos, 5 meses e 24 dias que o corpo de Mestre Gabriel, distante
de seus discípulos, ali representados por Rubens Rodrigues, no ermo do Planalto
Central do Brasil, descera à sepultura do cemitério Campo da Esperança. Foi no dia
27 de setembro de 1971 - data em que a cristandade celebra a memória dos santos
mártires Cosme e Damião.
O ex-soldado da borracha, baiano que fincara raízes na Amazônia, tinha como
repouso final de seu corpo uma cidade marcada por forte paradoxo: capital política
do país, com tudo o que isso implica, numa época em que essa atividade padece de
profundo descrédito, e simultaneamente detentora de aura mística, cuja construção
fora precedida por profecias, relacionadas a um porvir de renovação, paz e
espiritualidade para a humanidade.
Onze anos depois, em 1982, lá se instala a Sede Geral da UDV. E e de Brasília,
centro territorial do país, que essa Ordem Religiosa vem administrando sua gradual
expansão pelo mundo, seguindo as orientações deixadas por Mestre Gabriel, sob o
símbolo espiritual que legou: Luz, Paz e Amor.
ononnnnnoooonnónnoooonnnnnnnnno^nor
O Mensageiro de Deus
Em 22 de julho de 1999, quando celebrava seus 38 anos, a UDV recebe do
Ministério da Justiça o título de entidade de utilidade pública federal, pelos serviços
de beneficência social que presta. O mesmo título hoje ostenta em diversas cidades
e estados do Brasil.
Em 1992 e em 2007, provocado por novos questionamentos em torno do uso
ritualístico da Hoasca, o governo brasileiro volta a examiná-lo. E chega à mesma
conclusão inicial, reiterando, sempre por unanimidade, o direito estritamente religioso
de seu uso.
O mesmo se dá nos Estados Unidos, onde a UDV se fizera presente, por
iniciativa de cidadãos norte-americanos, sob a supervisão da Sede Geral, em
Brasília, desde o início dos anos 90.
O governo norte-americano suspende em 1999 o uso ritualístico da Hoasca no
país, receoso de que seus adeptos - em torno de uma centena de pessoas -
estivessem recorrendo ao argumento religioso como expediente para ocultar o
consumo de uma droga alucinógena, de efeitos perigosos.
Por absoluta falta de conhecimento e de protocolos científicos, era essa a
classificação que algumas autoridades atribuíam ao chá Hoasca. Quem, no entanto,
o conhece não tem dúvidas quanto à impropriedade daquele conceito.
Disso, além de pesquisas científicas publicadas em revistas especializadas, dão
notícia numerosos profissionais de saúde que integram a sociedade religiosa União
do Vegetal e nela mantêm um Departamento Médico-Científico para os
esclarecimentos necessários à irmandade, ao público e às autoridades.
(Um parêntese: bem antes de o Vegetal se tornar objeto de pesquisas científicas,
Mestre Gabriel jd assegurara a seus discípulos — e fizera constar dos documentos
da UDV - que o chd “é comprovadamente inofensivo à saúde". As pesquisas, pois,
apenas confirmaram suas palavras.)
25
c
G
C
O Mensageiro de Deus

Capítulo V
c
c
c
c
o
c
c
c
c
c
c
c
c
c
c
c
c
c
c
c
Infância Feliz
José Gabriel da Costa nasceu em 10 de fevereiro de 1922, ao meio dia, num
pequeno município do interior da Bahia, Coração de Maria, na Fazenda Pedra Nova.
No instante em que nasceu, o sino da igreja de Nossa Senhora das Dores, num
povoado próximo à fazenda, de nome Retiro, tocou as doze badaladas. Coração de
Maria é vizinha de Feira de Santana, a maior cidade das redondezas. Daí alguns
ainda a mencionarem como distrito, mas tem autonomia administrativa desde 1891 e
é município desde 1942.
A cidade está incrustada na região areno-argilosa do sertão da Bahia - transição
entre Mata Atlântica e Caatinga, conhecida como Tabuleiro do Retiro. A flora antes
da degradação era constituída principalmente por juremas, paus-d’arco (ipês), cajuís
(cajueiros nativos, de castanha miúda e fruto azedo) e sucupiras.
27
v.
Mestre Gabriel
José Gabriel nasceu em família modesta e numerosa, como tantas no interior do
Nordeste brasileiro de então. Sua mãe chamava-se Prima Feliciana de Vasconcelos
da Costa e seu pai Manoel Gabriel da Costa, casal que frequentava os rituais da
Igreja Católica e procurava transmitir aos filhos os valores morais e espirituais do
cristianismo. O pai trabalhava na lavoura e a mãe cuidava dos filhos.
A bisavó de dona Prima Feliciana era índia da tribo dos Palaias, nação Tupi, que
habitava a região de Coração de Maria. Manuel Gabriel da Costa era descendente
de portugueses. Tinha a pele clara, olhos azuis. Ao todo, o casal teve 14 filhos; José
Gabriel foi o oitavo.
A caçula, Albertina, morreu com dois anos. Os demais cresceram e chegaram à
idade adulta. São eles, pela ordem de nascimento: João, Dionísio, Prasília, Pedro,
Romão, Maria, Miúda, José (Mestre Gabriel), Silerina, Alfredo, Antonio, Ma- ximiano
e Hipólito. O mais velho nasceu em 1911; o caçula, em 1932.
Antonio Gabriel, o 11° dos irmãos, falecido em março de 2011, assim descreveu,
em depoimento ao jornalista Edson Lodi, da UDV, ambiente e hábitos domésticos da
família:
“A alimentação era produzida, em grande parte, na fazenda —feijão, batata-doce,
milho, abóbora. As carnes provinham de animais criados ali mesmo — carneiros,
bodes, porcos e galinhas. Aos domingos, o almoço era servido numa esteira, no
chão. Matava-se um carneiro, e todos os filhos, mesmo os casados e algum outro
parente que estivesse por lá, almoçavam juntos.
Na sãla principal, havia uma grande mesa de madeira, onde a família fazia suas
refeições diárias, precedidas por orações feitas por seu patriarca. Havia um pequeno
altar e as paredes
28
O Mensageiro de Deus
eram cobertas por imagens de santos. A base da formação religiosa familiar foi o
catolicismo. ”2
Desde criança, José Gabriel - que a família chamava apenas de José —
apresentava dons que o diferenciavam dos demais irmãos. Um deles era o de
improvisar versos, com grande habilidade, demonstrando domínio surpreendente do
idioma, sobretudo em se tratando de alguém que teve pouca vivência nos bancos
escolares.
Frequentou por apenas 90 dias o primeiro ano do curso primário, que
corresponde hoje ao primeiro ano do Ensino Fundamental. Uma de suas irmãs,
Maria, disse que ele começou a falar já aos seis meses. Com um ano e meio, disse
ela, “José falava bem explicadinho”, brincava e inventava brincadeiras inteligentes.
Aprendeu a ler sozinho. Diferentemente de seus outros irmãos, analfabetos por
toda a infância, já sabia os rudimentos da leitura e da escrita quando foi para a
escola. Como aprendeu, não se sabe.
Seu irmão Alfredo conta que, quando garoto, “José às vezes entrava pelo meio
do mato e sumia por algumas horas”3. Frequentemenre, seu Manoel mandava um
dos filhos procurá- -lo para ver o que estava fazendo.
Alfredo quase sempre o encontrou do mesmo jeito: sentado, escrevendo com um
lápis, num caderno apoiado sobre o joelho. Não sabe o que escrevia, pois ele,
Alfredo, era ainda analfabeto. Sabe que José gostava de ler o catecismo e jornais.
Não havia, na verdade, outra opção de leitura.
2 LODI, Edson - In Estrela da Minha Vida (Pedra Nova Edições, Brasília, 2011)
3 Todos os depoimentos, da família e dos discípulos do Mestre Gabriel, ao
longo deste livro, têm como fonte o Departamento de Memória e Documentação
(DMD) da UDV, Sede Geral, Brasília, pesquisa de campo do jornalista Yuugi
Makiuchi e entrevistas ao autor.
Mestre Gabriel
Era um poeta nato. Bastava que lhe dessem um tema e começava a desfiar rimas
ritmadas, como o fazem alguns poetas e repentistas da Literatura de Cordel do
Nordeste brasileiro.
Chegou a ser apelidado de Canção de Fogo, referência a um personagem do
universo mítico-poético nordestino, reverenciado em lendas saborosas por inúmeros
cantadores de cordel.
Seu irmão Antonio lembra de um desses improvisos. Seu Manoel havia matado
uma novilha preta, secado o couro e feito um chicote, que deixava sempre em cima
da mesa para espantar galinha e cachorro. Certo dia, atacado de asma, e por isso
mesmo mal-humorado, foi acordar os filhos e começou a bater com o chicote no
chão, gritando: “Acorda, gente!”.
José demorou a responder e o pai insistiu, investindo contra ele, que, com grande
agilidade, levantou-se a tempo de escapar do golpe e improvisou:
“O couro da vaca pretalé um couro excelente!acorda quem está dormindo! e
alegra quem está doente”.
O pai tentou manter a aparência sisuda, mas rendeu-se ao bom humor do filho.
José também se distinguia de seus outros irmãos pela desenvoltura com que
conversava, com adultos ou crianças. Quando falava, todos prestavam atenção. E as
pessoas comentavam, admiradas: “José é diferente: é menino, mas já é homem”.
Uma característica importante, que seu irmão Antonio anotou, era a de jamais
mostrar-se raivoso. Estava sempre de bom humor - e era uma pessoa calma e
educada.
Outro dom que impressionava era o da destreza física: cavalgava com extrema
habilidade em cavalos ariscos, sem jamais desequilibrar-se ou perder o domínio da
situação. Pedro Baio, outro de seus irmãos, disse que ele dava saltos mortais
O
o
o
o
o
c\
o
o
30
L
c
c
*9
c
v_
c
c
G
Q
/G
G

c
c
c
o
C
c
c
c
c
c
c
O Mensageiro de Deus
para frente e para trás tantas vezes quantas lhe pedissem ou quisesse.
Era também um capoeirista de grande habilidade, um dos melhores, em plena
terra da capoeira. Em Salvador, anos depois, exibiría seu talento a outros bambas, e
ficaria conhecido nas rodas de capoeira como Zé Bahia.
Ao irmão Alfredo, mais novo, fazia constantemente um desafio: que tentasse
acertá-lo com um pedaço de pau. O irmão, temendo feri-lo, relutava, mas ele o
encorajava. Mesmo investindo com determinação, Alfredo jamais conseguiu atingi-lo.
Sua agilidade, contou ele, era a de um felino.
Havia ainda os dons misteriosos.
Sua irmã Maria conta que certa vez José estava com outros meninos no quintal,
quando, subitamente, interrompeu a brincadeira e mandou que todos fossem para
dentro de casa: “Depressa, vamos, entrem!”. Ninguém entendeu a brusca mudança
de tom, mas todos obedeceram. Assim que entraram, surgiu do nada um cão feroz,
que investiu contra a porta. Como ele o pressentiu?
Ninguém sabe. José era diferente.
Mas a infância dele foi como a dos meninos pobres do interior do Nordeste do
Brasil. Não havia fartura material, mas havia uma natureza exuberante em torno da
modesta casa da família.
Ali, ao pé de um cajueiro, que continua lá, o menino José brincou muitas vezes.
Hoje, onde ele nasceu, há um Núcleo da UDV — o Núcleo Coração de Maria — e,
ali, à sombra daquele mesmo cajueiro, já se fizeram algumas sessões religiosas. No
local onde havia a casa da família, foi construído o Templo.
A família vivia da agricultura. O pai, desde cedo, ensinou os filhos a trabalhar.
Aos dezoito anos, cada qual recebia
31
Mestre Gabriel
um pedaço de terra para cultivar e auxiliar na alimentação. Dois dias por semana
trabalhava-se para o chefe da família.
Antes, porém, da maioridade, cada filho já tinha sob sua responsabilidade um
pedaço de terra, chamado “tarefa”. Começava-se a trabalhar assim que clareava o
dia. Esse sistema era distribuído de acordo com a idade: os mais novos trabalhavam
menos.
Quando atrasavam a conclusão da tarefa, eram auxiliados pelos mais velhos. Por
ser rápido na enxada, José Gabriel terminava habitualmente antes e ajudava os mais
novos para que tivessem mais tempo para brincar.
Desde cedo, mostrou-se reverente a Deus e aos mistérios da espiritualidade.
Cantava no coro da igreja e, segundo sua mãe, não perdia uma ladainha ou festa da
paróquia, sobretudo as novenas de maio, o mês de Maria.
Gostava também da folia de Reis, que celebra a visita dos Reis Magos ao Menino
Jesus. Era afinado e, por isso, chamado a cantar nas festas religiosas. Cantava com
gosto os benditos - entre eles, os que celebram São Cosme e São Damião, santos
de devoção da mãe, cujas imagens ocupavam lugar de destaque na sala principal da
casa. José compartilhava dessa devoção.
Todo dia 27 de setembro, aniversário dos santos gêmeos, havia celebração na
família e na vizinhança. Dia festivo, marcado por orações e cânticos. É Antonio
Gabriel quem recorda a Edson Lodi:
— A primeira oração era o Pai Nosso, depois o terço e, ao final, o bendito de São
Cosme e São Damião. José e tia Rosa, irmã de dona Prima, ficavam ajoelhados. Ela
cantava e José acompanhava. As pessoas, ao ouvir o bendito, entravam na casa e
ajoelhavam-se ao pé do altar, benziam-se e beijavam a imagem dos santos.
32
O Mensageiro de Deus
José foi batizado na igreja de Retiro. Tia Rosa, criada como irmã de José, era
conhecida na região pelos seus dons de rezadeira. E dizia: “José é a corda do meu
coração”. Ela o acompanhava nos cânticos das festas religiosas.
Um dia, José Gabriel, no ritual católico da confissão, disse alguma coisa no
ouvido do padre Orlando, um italiano que ensinava catecismo. O padre arregalou os
olhos de espanto. Depois, procurou dona Prima e disse: “Aquele menino seu é
qualquer coisa, é bem diferente”. E perguntou: “Onde é que ele esteve?” E ela: “Ele
não sai de casa”. E o padre, sem revelar o que dele ouviu: “E, aquele menino tem
qualquer coisa”.
História semelhante deu-se na escola. O professor, primo e xará do pai de José
Gabriel, foi a seu Manoel dizer: “Procure outra escola para botar o José, porque eu
não tenho mais nada pra ensinar a ele. Porque hoje foi ele quem me ensinou. Fui dar
uma lição a ele e ele me deu outra. Portanto, não tenho mais o que ensinar a ele.”
Como não havia outra escola na região, ele encerrou ali sua vida colegial. Mas
padre Orlando estava certo: aquele menino realmente tinha “qualquer coisa”.
Tanto assim que, um dia, aos 14 anos, fez um parto, salvando mãe e criança. Foi
com Joana, mulher de seu irmão mais velho, João. Naquele tempo - como acontece
ainda hoje no interior do Brasil, sobretudo nas regiões mais afastadas do Norte e
Nordeste —, os partos não eram feitos por médicos, nem muito menos em hospitais.
Nascia-se em casa, por meio das parteiras. E as parteiras que atendiam Joana
haviam feito de tudo para que a criança nascesse, mas sem sucesso. A criança,
como se dizia, estava atravessada — e não saía. A mãe estava sofrendo muito e
temia- -se que não sobrevivesse — nem ela, nem a criança.
Mestre Gabriel
José Gabriel, naquele momento, voltava, em companhia do irmão Antonio, de
uma das tarefas do dia-a-dia, a de recolher o gado. E ouviu algumas mulheres,
debaixo do pé de cajueiro, comentando: “Joana vai morrer, não tem jeito não”.
Ele então intervém com energia: “Joana não morre não!”.
Dito isso, deu a volta na casa e entrou às pressas por uma porta lateral. Foi ao
quarto, mandou que todos saíssem e trancou a porta. Era um menino de apenas 14
anos, mas ninguém questionou sua ordem. Seu tom de voz impunha respeito.
Passaram-se poucos minutos, destrancou a porta e mandou entrar as parteiras.
A criança nascera, saudável. Era uma menina, batizada depois com o nome de
Dócia e apelidada de Nêga. A mãe sobrevivera — e passava bem. O que lá
aconteceu ninguém ficou sabendo, mas a aura de talento daquele adolescente, que
já se manifestara em diversos outros momentos, continuava a impressionar.
Um ano antes, por exemplo, fora trabalhar no comércio de um certo João
Mamona, em Coração de Maria. Trabalhou por cerca de seis meses, e depois voltou
à roça da família. Desse curto período, ficaram na memória de diversas pessoas da
cidade dois acontecimentos.
Num deles, José Gabriel tirou o patrão de uma dificuldade. A balança do
armazém quebrara. Não havia nas redondezas nenhum técnico para consertá-la. Em
situações como aquela, a única saída era mandá-la para Feira de Santana, o que
significava alguns dias sem aquele instrumento, indispensável às vendas.
Hoje, nos supermercados, os alimentos já vêm embalados e pesados. Naquela
época, não: tudo era pesado e embalado na hora: arroz, feijão, farinha, carne etc.
Não ter balança significava interromper as vendas ou torná-las problemáticas.
34
ÜGOOÜQÜGOGÜQÜOOG
L
O Mensageiro de Deus
c
G
r
G
C
c
\
O
o
G
O
Estava o patrão lastimando a situação, quando José Gabriel, sem dizer nada,
começou a desmontar a balança. O patrão reclamou, imaginando que ele não
saberia remontá-la e acabaria piorando as coisas, pois, desmontada, podería perder
peças. José tranquilizou-o: “Sei o que estou fazendo”.
Em poucos instantes, consertou a balança, para admiração geral das pessoas. O
acontecimento mereceu um comentário de João Mamona a seu Manoel: “Vou te
dizer uma coisa: aquele seu menino está mal aproveitado”. O tempo mostraria que o
patrão estava certo. Ele intuira a grandeza daquele menino, que, em outro episódio,
na mesma época, recordado por outro irmão, João, voltaria a surpreender. Certo dia,
em frente ao mesmo armazém, um homem amarrou seu cavalo. Ao voltar, constatou
que havia sumido.
Sobressaltado, pediu auxílio. José, que estava na venda, lendo, acalmou-o,
assegurando-lhe: “Pode ficar tranquilo que dentro de pouco tempo o cavalo volta,
pode esperar”.
E continuou sua leitura. Dentro de poucos minutos, o cavalo reapareceu, a
galope, ensopado de suor e parou docilmente perante o dono. Todos ficaram
admirados, sem saber como José pudera ter previsto aquilo.
35
O Mensageiro de Deus

Capítulo VI
Em Salvador
Um dia, efetivamente, aquela cidadezinha ficou pequena para ele. Tinha 20 anos
quando decidiu mudar-se para a capital do estado, Salvador, onde já se havia
estabelecido, com pequeno comércio, o irmão Dionísio. Colocou sua melhor roupa —
um terno branco de linho —, montou no burrinho da família e partiu. Seu irmão
Alfredo o acompanhou, com a missão de trazer o burro de volta.
José só precisava do animal até chegar em Feira de Santana, a 37 quilômetros
de Coração de Maria. Lá, pegaria um ônibus para Salvador. E assim foi, em pleno
ano da graça de 1942.
Também aí, fez como a maioria dos rapazes do interior do Brasil naquela época:
migrou em busca de oportunidades na cidade grande. Ainda hoje é assim.
Do que fez em Salvador, sabe-se pouco. Mesmo em relação ao tempo que lá
ficou — ao que tudo indica, um ano e meio -, há controvérsias. Ninguém anotou as
datas e cada
Mestre Gabriel
qual as menciona de acordo com suas lembranças. Daí alguns desencontros.
Importa, porém, menos a precisão das datas e mais as vivências especiais que
teve na capital da Bahia.
Com Dionísio, dividiu pensão e trabalho no mercado, uma barraca de frutas e
cereais. Trabalhou ainda como motor- neiro de bonde e chegou a se submeter a um
teste no Corpo de Bombeiros. O essencial é que, conforme contou, tempos depois, a
um de seus mais diletos discípulos, Raimundo Monteiro de Souza, já estava ciente
da missão espiritual a que, na sequência, daria início, na Amazônia. Por isso, não
podia se prender a compromissos que o impedissem de cumprir o destino que
traçara.
Estar ciente de uma missão espiritual não significa tê-la desde o início por
completo na memória. O espírito em missão, ao encarnar, submete-se às limitações
da matéria, o que o leva a recordá-la gradualmente, e a estudar o modo como a
executará. Assim se deu com Mestre Gabriel.
Dentro disso, uma vivência importante em Salvador, segundo seu irmão Antonio,
foi a que lhe proporcionou contato com terreiros de umbanda e candomblé e centros
espíritas kardecistas.
Não há detalhes quanto a isso, mas Antonio diz que, em Salvador, José Gabriel
“conheceu muitas religiões, conheceu os terreiros, procurando a realidade”. Ou por
outra, procurando um meio de trazer o povo para a realidade. Ele lembra das
palavras do irmão, anos depois, em Manaus, quando já havia criado a UDV:
“Já passei por diversas religiões, procurando um jeito de auxiliar a humanidade,
tirar a maldade do coração das pessoas — e não encontrei. Só fui encontrar esse
jeito no Vegetal.”
38
O Mensageiro de Deus
Em Salvador, põe em cena uma entidade espiritual, até hoje reverenciada nos
terreiros de todo o Brasil: o Sultão das Matas, “conhecedor de todos os segredos da
floresta e do Reino Vegetal”.
Jair, filho de Mestre Gabriel, conta que o pai posteriormente lhe explicou que
Sultão das Matas fora criado por ele para dar início à missão de atender as pessoas,
esclarecê-las a respeito da vida e da espiritualidade. Mas não era um outro espírito:
era o próprio Mestre Gabriel.
Sultão das Matas lia no íntimo das pessoas. Entendia seus sofrimentos e
fraquezas e as orientava na prática do bem. Os que seguiam seus conselhos e
ensinamentos voltavam, reconhecidos aos benefícios recebidos.
Segundo Jair, Mestre Gabriel contou à família que Sultão das Matas surgiu no
terreiro de um famoso babalorixá baiano, Joãozinho da Goméia, que frequentava.
Um dia, entrou no salão cantando:
Eu tava na mata virgem quando mandaram me chamar, eu me chamo Sultão das
Matas, aqui neste caçuá, na minha pisada só tem caboclo no rasto de um vem a
trilha do outro ei, ei samambaia
Sultão das Matas é guerreiro de todos os orixás pisei na folha seca vi fazer chuá
chuá Sultão das Matas ele é rei, rei de todos os orixás no rasto de um vem a trilha do
outro ei ei, samambaia.
Após o ritual, o babalorixá chamou José Gabriel e lhe perguntou quem era, já que
nunca ouvira falar em Sultão das Matas. José Gabriel explicou que sultão havia
muitos, mas Sultão das Matas era somente aquele, entidade que conhecia todos os
segredos do Reino Vegetal, e que ele, seu “cavalo”
39
Mestre Gabriel
(nome dado nos ritos afros ao médium que incorpora a entidade espiritual), não
precisou passar pelos rituais de sete dias, que incluía tomar banho de sangue em
quarto escuro para ser pai de terreiro.
O mesmo Sultão das Matas, que ali iniciava seus trabalhos, reaparecería anos
depois em terreiros da Amazônia — em Porto Velho e nos seringais —, quando José
Gabriel ainda não se havia encontrado com o Vegetal. Isso, porém, contaremos
adiante.
Voltemos a Salvador - e vamos deixar registrado que todas essas vivências
tiveram grande importância na trajetória de José Gabriel, pois o conduziram ao
cumprimento da missão espiritual de criar a União do Vegetal. Fazem parte da
travessia até que se apresente publicamente como Mestre Gabriel.
Hilton Pereira Pinho, que se tornaria um importante discípulo da UDV e o primeiro
a pesquisar a vida de seu fundador, afirmou, em depoimento escrito, que José
Gabriel foi considerado, nos terreiros de Salvador, “o melhor babalaô jovem da
época”.
Tinha apenas 20 anos, mas já era o Mestre vendo um meio de chegar no coração
das pessoas. Obstáculos não lhe faltaram. Um deles: a ação de forças malignas — a
realidade do Mal na Terra -, querendo barrar-lhe a missão.
Por pelo menos duas vezes, viu-se diante da violência gratuita de personagens
que não conhecia e a quem nenhum mal fizera, tendo que se valer de suas
habilidades de capoeiris- ta para escapar.
Num delés, diante do Mercado Modelo, movimentado centro comercial de
Salvador, escapou da agressão de um soldado. Seu irmão Alfredo conta que José
estava sentado fazendo uma refeição, quando o agressor, sorrateiramente, veio por
trás com um punhal.
40
%
O Mensageiro de Deus
Não se sabe como, José o pressentiu e, antes que o ataque se consumasse,
esgueirou-se para debaixo da mesa. Para se defender, desferiu golpes de capoeira,
deixando o soldado desacordado.
No outro, enfrentou um policial, que o abordou quando comia uma fruta diante do
mercado do irmão. Sem mais nem menos, pediu-lhe, chamando-o pelo apelido:
- Zé Bahia, paga uma fruta pra mim?
- Pode pegar.
O policial pegou a fruta, descascou-a e jogou-a na cara de José, que protestou:
- Mas o que é isto: tu me pede uma fruta, eu te dou e tu vem jogar na minha
cara?
O policial respondeu:
- Eu jogo é tudo!
E investiu contra José, que, hábil na capoeira, desven- cilhou-se com um “balão”,
pegou o agressor pelo pescoço e o lançou ao solo, metros adiante. O soldado bateu
com a cabeça no meio fio, derramando sangue. Apareceram naquele momento seis
policiais, dando voz de prisão a José.
Sem outro recurso, vê-se obrigado a lançar mão de misteriosa habilidade, que o
preserva de um embate físico altamente desvantajoso: pega um lenço, faz que vai
limpar os lábios do policial ferido e, em vez disso, balança-o com rapidez diante de
um dos soldados, como um toureiro diante do touro.
O efeito é imediato: o policial fica desnorteado. Repete o gesto com o lenço
diante dos outros cinco, com o mesmo efeito, deixando-os brigando entre si,
esquecidos do que ali faziam.
Ao relatar, anos mais tarde, a seu irmão Antonio esse acontecimento, Mestre
Gabriel explicou que tinha o dever de
se defender e dar cumprimento à sua missão espiritual. “Não vim à Terra para ser
morto por ninguém. Vim cumprir uma missão”.
Era pacífico e cordial, mas tinha o duplo dever de se defender, como homem e
como Mensageiro.

^OOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOnoonor
O Mensageiro de Deus

Capítulo VII
O Exército da Borracha
Estamos no início de 1944. O Brasil entra na Segunda Guerra Mundial ao lado de
uma frente de países democráticos (os “Aliados”), contra três países adeptos do
nazismo e do fascismo: Alemanha, Itália e Japão. Os jovens na idade de José
Gabriel, então com 22 anos, são convocados a servir, sendo-lhes dadas duas
opções: ir para a frente de batalha, na Europa, ou para a Amazônia como soldado da
borracha. Gabriel optou pela Amazônia.
Segue então no navio “Pará”, do Lloyd Brasileiro, para Belém, sem ter tempo
sequer de ir a Coração de Maria despedir-se da família. Ainda em 1943, mandara-lhe
uma carta, dizendo que só voltaria a revê-la num prazo não inferior a 25 anos, como
efetivamente veio a ocorrer. Só a reencontrou 28 anos depois, no início de 1971, ano
em que viria a falecer, em setembro. Mas disso falaremos adiante.
Falemos da Guerra. Depois de ter diversos navios torpedeados por submarinos
alemães em sua costa, o Brasil adere ao conflito. Mais importante que o envio de
soldados, engajou-se
43
Mestre Gabriel
no esforço econômico dos países Aliados, aceitando o desafio de quadruplicar sua
produção de borracha (hevea brasiliensis), essencial para o desfecho positivo do
conflito no ano seguinte. Foi sua grande contribuição na vitória aliada em 1945.
Os seringais da Amazônia estavam em decadência desde o início do século, em
decorrência de um caso de biopirataria ocorrido no século anterior, em 1876, quando
o inglês Henry Wickham contrabandeou 70 mil sementes da borracha - que só existia
in natura naquela região — para o Reino Unido.
Lá, pesquisas bem sucedidas adaptaram seu cultivo à Malásia, que começou a
produzi-la em quantidade significativa já na primeira década do século XX, impondo
ao Brasil danos sociais e econômicos expressivos. A borracha tornara-se
valorizadíssima desde que o americano Charles Goodyear, em 1839, descobrira o
processo químico de vulcanizá-la a quente, misturando-a ao enxofre, abrindo-lhe
amplo leque de utilização industrial, tornando-a matéria-prima estratégica.
Após a biopirataria, os ingleses, que eram os grandes investidores no setor,
abandonaram gradualmente os seringais da Amazônia, que, a partir de 1912,
entraram em decadência.
A guerra, no entanto, alterou provisoriamente esse quadro. Forças militares
japonesas ocuparam os seringais ingleses da Malásia, fazendo com que o consumo
mundial de borracha voltasse a depender do Brasil — que, mesmo com a
decadência dos seus seringais, produzia 18 mil toneladas anuais.
O esforço de guerra exigia a produção de um mínimo de 45 mil toneladas anuais,
marca acertada entre os governos do Brasil e dos Estados Unidos, largamente
ultrapassada, registrando-se uma média acima de 70 mil toneladas anuais naquele
período.
Tal circunstância reanimou os donos de seringais, que, no entanto, em momento
algum, cuidaram de investir na
44
or
<o
o
O Mensageiro de Deus-
c
c
c
o
c
o
melhoria das condições de trabalho dos seringueiros, que, em regra, era escravo.
Trabalhava-se para comer. Mas os ganhos eram insuficientes para prover a
subsistência do trabalhador — quanto mais de sua família. Disso resultava
endividamento com o patrão, que em pouco tempo se tornava “proprietário” de seu
funcionário.
O governo federal promoveu o recrutamento, mas se omitiu na administração e
supervisão daquele trabalho. Muitos morreram à míngua, sem assistência, nem do
governo, nem do patrão. O governo dos Estados Unidos pagava cem dólares por
trabalhador mandado para os seringais, mas o dinheiro não chegava a seu destino:
diluía-se na burocracia estatal.
O governo brasileiro criou para gerir essa empreitada o Serviço Especial de
Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia (SEMTA). E, em meio a grande ação
publicitária no Nordeste, começou o recrutamento de voluntários, atraídos pela
promessa de prosperidade.
O presidente Getúlio Vargas, num discurso, chegou a prometer ao seringueiro
mais produtivo - chamado de tu- chaua - um prêmio de 35 mil cruzeiros, cerca de 50
mil reais (ou 31 mil dólares) em valores de maio de 2011. Esse prêmio jamais foi
pago - e jamais voltou a ser mencionado. Mas a produção brasileira de borracha
superou a marca estabelecida e garantiu a subsistência das tropas aliadas.
A esses trabalhadores, chamou-se “soldados da borracha”. O trabalho que os
aguardava era duro, cruel mesmo. Sem assistência médica ou material, iriam ainda
enfrentar animais selvagens e doenças tropicais diversas. Nos seringais, morria-se
de malária, febre amarela, hepatite e onça - entre outras coisas.
Iludidos com o apelo à fortuna, aqueles jovens não faziam ideia do que os
aguardava. Uma vez contratados, re
45
C
c
Mestre Gabriel

cebiam o kit básico: calça de mescla azul, blusa branca de morim, chapéu de palha,
um par de alpercatas, caneca de folha-de-flandres, um prato fundo, um talher e uma
rede. Salário: meio dólar por dia.
Os portos onde os navios atracavam assemelhavam- -se aos antigos mercados
de escravos. Os donos de seringais ou seus capatazes lá estavam para escolher os
trabalhadores, examinando-os como a mercadorias, observando saúde dentária,
fundo dos olhos e musculatura. Chegavam exaustos. As viagens do Nordeste para a
Amazônia duravam dois ou três meses, sob forte calor, precaríssima higiene a bordo,
sem qualquer conforto ou entretenimento.
Os navios estavam sempre superlotados, o que, somado à falta de manutenção,
ensejava frequentes naufrágios. Os botes salva-vidas eram pouco mais que
jangadas rústicas, insuficientes para atender a todos ou para garantir qualquer
segurança.
No porão, infecto e sem ventilação, iam os rapazes solteiros; na parte de cima,
“área nobre”, mas em condições assépticas assemelhadas, viajavam as famílias.
Não era permitido aos que estavam no porão, entre os quais José Gabriel, subir ao
convés. Havia guardas nas escadas de acesso para impedi-lo, se preciso mediante o
uso de força.
Como se não bastasse, havia ainda o risco de ataque por parte de submarinos
alemães. Depois de tudo isso, a chegada ao mercado de escravos - isto é, ao cais,
onde os empregadores os aguardavam.
Do cais ao seringal, já começavam a se endividar. O patrão anotava cada
despesa: comida, roupa, arma, material de trabalho e remédio. No barracão onde se
vendiam essas mercadorias, o preço era pelo menos o dobro do cobrado nas
cidades.
46
O Mensageiro de Deus
Como não tinham dinheiro, pagavam com a produção de borracha, cuja cotação
era em geral baixíssima. Desse jeito, jamais conseguiam colocar a conta em dia.
Quando a guerra acabou, os seringais da Malásia foram liberados e os soldados da
borracha abandonados à própria sorte. Os sobreviventes não receberam nada do
que o governo lhes havia prometido, nem mesmo o bilhete de volta à cidade de
origem.
Como muitos estavam endividados com os patrões, não tiveram alternativa senão
a de continuar cortando seringa. Tornaram-se reféns da dívida. Somente em 1988,
43 anos após o fim da Segunda Guerra Mundial, o governo brasileiro decidiu
conceder aos sobreviventes do Exército da Borracha (que já eram bem poucos) a
pensão vitalícia de dois salários mínimos.
47

Capítulo VIII
De brabo a tuchaua
José Gabriel, então com 22 anos, foi um soldado da borracha. Chegou a ser um
tuchaua, distinção que o tornou respeitado por colegas e patrão e conhecido nos
demais seringais.
Mas antes de a obter, penou como brabo (designação dos que iam sem qualquer
experiência para os seringais), tornou-se um manso (assim chamados os que se
adaptavam ao ofício), chegando a tuchaua, façanha de poucos.
O primeiro seringal em que trabalhou chamava-se Boa Vista, no rio Paquara,
fronteira com a Bolívia. Lá, o mandaram, em companhia de outro rapaz, cortar trilhas
na floresta que levassem às seringas. Havia na região índios canibais, que
demarcavam suas terras com troncos e galhos, fechando ostensivamente as trilhas.
Gabriel recomendou ao companheiro que não mexesse naquelas demarcações,
mas o colega não lhe deu ouvidos e retirou os galhos e os troncos. Resultado: foram
detidos pelos índios e levados à aldeia. Gabriel foi amarrado provisoriamen-
49
Mestre Gabriel
te em uma árvore, enquanto seu colega foi morto e devorado pelos índios.
Durante a noite, conseguiu fugir e chegar até o barracão — posto central do
seringal —, avisando o gerente do acontecido. Lá, conheceu Mário, um rapaz de sua
idade, de quem se fez amigo.
Em meio às agruras do trabalho, selaram um “pacto de eterna amizade”.
Compartilhavam desconforto e insegurança, evocando a saudade da família e dos
amigos.
A certa altura, Mário contraiu beribéri, doença que provoca alterações nervosas,
cerebrais e cardíacas, gerando, entre outros sintomas, confusão mental, laringite e
visão dupla. Resultado: já não podia trabalhar. Em alguns seringais, isso equivalia a
uma sentença de morte — não pela doença em si, mas pelo fato de o enfermo já não
produzir, devendo ser eliminado por medida de economia.
Mário era noteiro, espécie de escrivão, que registrava a produção nas
colocações. Coube a Gabriel, que sabia escrever - coisa rara nos seringais —,
substituí-lo. Mas chegou-lhe aos ouvidos que os capangas do seringal iam executar
Mário. Decidiu então, fiel ao pacto de amizade, levá-lo para longe, floresta adentro,
na tentativa de salvá-lo dos tiros e da doença. Ao tempo em que o punha longe dos
capangas, procuraria ervas medicinais que o curassem.
Providenciou um jamaxim - espécie de mochila de esto- pa, muito usada pelos
índios, para transportar objetos ou pessoas, como uma cadeira improvisada,
amarrada com cipós — e nela acomodou Mário. Pegou no depósito espingarda e
cartuchos e, numa noite de luar, adentrou a floresta. Caminhou por quinze dias, mas
o amigo não resistiu: morreu, restando a Gabriel sepultá-lo, cavando uma sepultura a
partir de um buraco de tatu canastra.
50
%
O Mensageiro de Deus
Só e já sem suprimentos, sobreviveu comendo frutas e brotos de planta.
Sessenta dias depois, deparou-se pela primeira vez com uma caça, uma anta.
Matou-a, tirou-lhe o fígado, providenciou um fogo com folhas secas e, quando se
alimentava, ouviu o ruído de um motor. Percebeu que estava próximo a um rio.
Aproximou-se, viu uma embarcação — e acenou-lhe.
A embarcação aproximou-se e lhe perguntaram o que tinha acontecido. Disse
que havia se perdido. Levaram-no então para Fortaleza do Abunã. Lá, uma
desagradável surpresa: encontrou-se com o patrão, Otávio dos Reis, que o sabia
fugitivo, juntamente com Mário, o que era considerado imperdoável. De imediato, o
patrão nada lhe fez, e ele ficou trabalhando na cidade, conferindo a produção de
borracha que vinha dos seringais.
Sabia, porém, que a vingança não tardaria - e não tardou. Um dia, quando
contava a produção de borracha dentro de um batelão, na beira do rio, notou uma
pessoa em cima do barranco, apontando-lhe um rifle 44. Ato contínuo, mergulhou,
enquanto o pistoleiro disparava seguidamente, sem acertá-lo.
O rio estava na corredeira de uma cachoeira, o que fez com que o pistoleiro o
julgasse morto — ou pelos tiros ou pela queda, ou por ambos. Tal, porém, não se
deu. Gabriel desceu cachoeira abaixo, mas conseguiu nadar até a beira do rio,
salvando-se.
Voltou para o local do trabalho e ouviu o capanga informar ao patrão que o havia
matado. Mudou-se então para Presidente Marques, onde passava uma ferrovia.
Pegou o trem e foi para Porto Velho, onde iniciaria outra etapa de sua epo- peia
amazônica.
Antes disso, ainda na floresta e na condição de brabo, sofreria um acidente. Ao
atravessar um rio, escorregou no limo
51
Mestre Gabriel
do tronco que servia de ponte e bateu com a cabeça numa pedra. Esses troncos que
servem de ponte são improvisados pelos seringueiros, para permitir a travessia dos
rios. Com as chuvas, forma-se o limo, que ocasiona acidentes como aquele.
Gabriel foi socorrido pelos companheiros, que, limitando-se a providências
tópicas, não avaliaram a gravidade da contusão, que marcaria o início de sua vida na
floresta — e seria a semente da enfermidade que o levaria a concluir sua missão em
1971. Assim eram os seringais: um território minado.
Em 1947 - três anos após o embarque para a Amazônia -, Gabriel, segundo seu
irmão Alfredo, escreveu à família informando que, dos 17 conhecidos que
embarcaram com ele em Salvador, apenas um havia sobrevivido. O destino trágico
de Mário não era exceção — era a regra.
Desde o início, Gabriel tinha o pensamento na sua missão espiritual, conforme
contou, naquela ocasião, a pelo menos duas pessoas: a seu amigo José Rodrigues
Sobrinho, que o conheceu no cais de Belém - e anos depois seria seu discípulo —, e
à sua futura esposa, Raimunda Ferreira da Costa, conhecida como Pequenina, que
seria sua principal auxiliar no cumprimento da missão.
Dizia estar em busca de “um tesouro”, que ambos - José Rodrigues e Pequenina
— não percebiam de que natureza fosse. Pequenina confessa que, em meio a tantas
dificuldades, imaginava um tesouro material, como adiante veremos. Mas, antes de
chegar a esse ponto da história, ainda há muito o que contar.
Resumidamente, a etapa inicial da aventura amazônica foi esta: desembarcou
em Belém, reembarcou para Manaus - e de lá, em outro navio, o “Rio Mar”, foi para
Porto Velho, Rondônia, de onde partiu para a floresta. Até 1946, trabalhou em dois
seringais - o já citado Boa Vista e o Triunfo — e for
52
O Mensageiro de Deus
neceu lenha para a construção da Estrada de Ferro Madeira- -Mamoré.
Nessa função, conheceu alguém, de quem já falamos, Fiilton Pereira Pinho.
Funcionário da administração da estrada de ferro, Hilton comprava a lenha que José
Gabriel cortava na floresta. Nascia ali uma amizade que o tempo consolidaria.
No período inicial na floresta, Gabriel viveu numerosas provações, que o
transformaram de brabo em tuchaua. Depois, voltou para Porto Velho. Lá, precisou
internar-se no hospital público São José, para tratamento de uma ferida na perna, e
acabou sendo contratado como técnico de enfermagem.
Foi seu primeiro trabalho na cidade, para a qual voltaria por mais três vezes,
entre as idas e vindas aos seringais e consolidação de sua missão espiritual, com a
organização da UDV.
53
O Mensageiro de Deus

Capítulo IX
O casamento com Pequenina
Porto Velho de então era cidade precária, em que predominavam os tapiris
(choupanas), carente dos mais elementares equipamentos urbanos. Quando chovia
— e as chuvas são frequentes como contraponto ao calor amazônico —, as ruas
viravam um lamaçal. E ali que José Gabriel conhece Pequenina e inicia nova etapa
de sua vida. E é ela quem recorda aquele momento:
- Fui levar uma irmã, que adoeceu, ao hospital São José. O enfermeiro que lá
estava — e que era ele — me atendeu bem. Dentro daquele atendimento, surgiu
assim uma amizade entre nós.
- Fui pra casa e, no outro dia, levei a menina de novo e ele me perguntou onde eu
morava. Depois, pediu a meus pais pra frequentar nossa casa. Isso aconteceu em
1946. Em 1947, nos casamos, em 10 de maio, em Jaci-Paraná, uma vila do Território
Federal do Guaporé.
A precariedade estrutural da região decorria de sua recente ocupação. O
Território do Guaporé fora criado pouco
55
%
Mestre Gabriel
antes, em 1943, por decreto do presidente Getúlio Vargas, unindo parte dos estados
do Amazonas e de Mato Grosso. Era ainda terra de ninguém.
O casal fica em Porto Velho até 1950, quando já tinha dois filhos - Getúlio, que
nascera em 1948, e Jair, recém-nascido. Em 1948, Gabriel engajou-se na campanha
eleitoral, a primeira para governador do Território do Guaporé. Dois grupos políticos
disputavam o poder: um, ligado ao marechal Cândido Mariano Rondon; outro ligado
ao deputado Aluizio Pinheiro Ferreira.
Gabriel apoiou o grupo de Rondon, cujo trabalho em prol da causa indígena e
integração da região Norte sensibilizara todo o país - e o faria posteriormente patrono
do Território do Guaporé, rebatizado de Rondônia em sua homenagem.
Mas Aluizio venceu e, ao assumir, no ano seguinte, passou a perseguir
politicamente os que não o haviam apoiado. Diante disso, não restou alternativa a
José Gabriel senão deixar Porto Velho, seu emprego de enfermeiro, vender o que
tinha e voltar aos seringais.
E possível que a decisão não tenha sido apenas em função disso. Afinal, é nessa
ocasião que fala a Pequenina do tal “tesouro” em cuja busca estava empenhado -
tesouro que, como sabemos, estava na floresta. Ela inicialmente reagiu:
- Eu disse: “Não, o que é isso? Eu não nasci em seringal, em mato, não quero
criar meus filhos sem saber ler e escrever”. Ele disse: “É porque eu vou atrás de um
tesouro”. Mas eu era uma pessoa de cabeça cheia de muitas coisas e achei que era
uma riqueza material que ele ia achar, e que a gente ia enricar, ter uma vida de rosa.
Então, quando ele disse que ia, eu disse: “Então vamos”.
E foram.
56
C
O Mensageiro de Deus

Capítulo X
A volta ao seringal
O casal faz então a primeira viagem aos seringais, onde permanecería por dois anos,
até 1952. Pequenina descreve a viagem e o que os aguardava: — Nós embarcamos
num lastro (trem de carga para carregar lenha) à meia-noite pra Jaci. Lá, ele
conversou com os seringueiros e pegamos um barco para o seringal Bom Destino,
onde sofremos muito, como brabo.
Ali, José Gabriel padecería outro acidente gravíssimo, que o impediría de cortar
seringa por um ano e dez meses. Pequenina conta:
— Ele tinha programado uma pescaria. E uma arraia deu um traço no pé dele que
foi horrível. Foi preciso passar uma tábua pra puxar o pé. Resultado: passou aquele
período aleijado, de muleta.
A maioria dos ferimentos causados por arraias ocorre nos tornozelos ou nas
panturrilhas. É um peixe inofensivo quando não atacado. Mas, quando
acidentalmente pisado — risco frequente, pois se esconde sob a areia —, assusta-se
e ataca
c
57
Mestre Gabriel
com a cauda. Nela, há um aguilhão, que pode chegar a 20 centímetros, uma espécie
de espinho com os lados serrilhados, como farpas, que oculta uma glândula
venenosa, envolta numa membrana.
Quando o aguilhão fere o corpo da pessoa, a membrana se desfaz, os lados
farpados e serrilhados do espinho inoculam o veneno, a musculatura contrai-se com
força, provocando dor intensa, insuportável, que pode durar muitas horas.
As enzimas provocam a morte de tecidos e células. Se o veneno penetra em uma
área como a do tornozelo, como ocorreu com Gabriel, a ferida geralmente pode ser
tratada: o calor neutraliza o veneno e limita os danos. Mas, se não houver
providência rápida, pode ser necessária a amputação. Se o veneno penetra no
abdômen ou na cavidade torácica, o dano pode ser fatal em razão dos importantes
órgãos localizados ao redor.
Coube a Pequenina, a partir de então, acumular o serviço doméstico e o externo.
Cuidava da casa, cozinhava, pescava e cortava seringa. Gabriel, convalescente,
auxiliava em tarefas domésticas e com as crianças. Não tinha condições físicas de ir
além.
O acidente não apenas o inviabilizara temporariamente como seringueiro, como
pusera em risco a situação da família. A condição da mulher nos seringais era
precária, para dizer o mínimo. Era uma espécie de animal doméstico, sem qualquer
autonomia. Se enviuvasse ou se o marido ficasse incapacitado de trabalhar, como
era o caso, era forçada a servir a outro seringueiro.
Era preciso manter a produção, integrando outro lar. Não podia regressar à casa
dos pais, nem deixar o seringal com os filhos, já que não havia tantas mulheres
disponíveis e não
58
O Mensageiro de Deus
era admissível desperdiçá-las. Pequenina, com 23 anos, viveu essa circunstância.
Diante da notícia de que seu marido estava doente — e, portanto, fora de
combate —, foi procurada em casa por alguns capangas do seringal, que
tencionavam levá-la. Recebeu-os de espingarda em punho, recusando-se a
acompanhá-los.
Eles se intimidaram diante daquela determinação inco- mum, considerando-a
“doida”. Ela lhes disse que fizera um juramento de ter Gabriel como marido para
sempre e que o cumpriría a qualquer custo. Que não duvidassem: ela não serviría a
mais ninguém.
Não duvidaram.
Para manter a subsistência da família e a segurança do lar, substituiu o marido na
coleta do látex, mantendo a produção. Não foi mais molestada. Ponderou, porém, a
Gabriel que era preciso buscar uma colocação melhor, pois aquela, de Três Casas,
era muito isolada. Nessa ocasião, já havia nascido, no seringal Porto Luís, na
colocação Fortaleza, mais uma criança, Jandira.
Mudaram-se para Bom Jardim, no mesmo seringal da empresa Jaci-Paraná.
Nesse período, tiveram o auxílio de um amigo, Luiz Pedro, que anteriormente
ensinara Gabriel a cortar seringa. Por cinco meses, ele auxiliou Pequenina,
ensinando-a a extrair o látex.
Não era fácil o trabalho. As picadas na floresta eram precárias. Era preciso
mantê-las desbastadas senão o mato as engolia em pouco tempo e perdia-se a pista
das seringas. Além da extração, havia os serviços domésticos: lavar roupas,
panelas, pratos, cozinhar, cuidar dos filhos. Gabriel fazia o que podia, mas não podia
muito, o que sobrecarregava Pequenina.
Em um ano e dez meses, ele se restabelece, volta a trabalhar duro no seringal,
fazendo jus ao título que adquire de
tuchaua. Produzia mais que a média, conseguia maiores ganhos e, assim,
recuperava o prejuízo do período de convalescença, mostrando que havia superado
definitivamente aquele acidente.
O tuchaua se redobra, junta dinheiro, paga as dívidas e volta com a família a
Porto Velho. Lá, monta pequeno comércio, prospera e ganha o suficiente para
comprar uma casa modesta. Mas, apesar do bom desempenho comercial, decide
voltar aos seringais no ano seguinte. O tesouro, afinal, ainda não havia sido
encontrado.
O Mensageiro de Deus
Capítulo XI
O Sultão das Matas
Dessa vez, váo para o seringal Orion, na colocação Bernaldo, às margens do rio
Abunã, fronteira com a Bolívia. Gabriel volta a trabalhar em terreiro de umbanda,
manifestando-se novamente como Sultão das Matas. O terreiro, agora, era dele
mesmo e tornou-se procuradíssimo. Pequenina recorda:
- Vinha gente de todos os seringais: Oco do Mundo, São Luiz, Alegria, Santa
Rosa. O gerente do seringal trouxe uma pessoa pra ele cuidar, uma pessoa que
tinha catinga de tudo quanto não prestava. Essa pessoa tinha recebido uma carta e
ficado muda. E ele botou a pessoa dentro de casa pra tratar. No tratamento, tinha os
dias de batuque. A pessoa estava com três meses que não falava. Então, ele fez um
trabalho em que ela acabou falando.
São muitas as histórias do tempo em que José Gabriel atendia o povo como
Sultão das Matas, caminho preparatório de sua missão de criar a UDV. O fascínio e a
confiança que Sultão das Matas infundia às pessoas o tornavam uma espé
61
Mestre Gabriel
cie de oráculo dentro da própria família. Seus conselhos eram buscados por muitos,
mesmo quando os transmitia com rigor e energia.
Pequenina relembra um momento desses, no terreiro do Orion:
— Pedrão era valente, acabava festa, acabava tudo, era um homem que não
acreditava em nada. Ele auxiliava lá pelo barracão. Um dia, disse pro gerente que
vinha acabar com o batuque; disse que ia fazer xixi e furar os tambores. Quando
chegou, os tambores estavam esquentando. Aí o ogã, um policial, de nome Ximenes,
disse que queria ir lá, ter com ele, mas o Sultão das Matas disse que não.
— Quando Pedrão chegou, começou a fazer pipi lá no salão e ia furar os
tambores. Aí, o Sultão disse: “Chama a mãe do terreiro (que era eu), manda botar os
tambores pra dentro e abrir linha”. Os tambores começaram a bater e o camarada
fazendo o pipi dele, rebolando a cintura, faca do lado.
— Aí, o Sultão veio de lá, cantando e dizendo: “Eu vou abrir meu livro-mestre,
meu desengano do mundo”. E, com essa doutrina, chamou o valentão e deu duas
dúzias de bolo com a palmatória na mão dele, chega a mão do homem partiu. E
mandou o homem sentar, num monte de lenha que tinha lá, e só levantar quando ele
mandasse.
— Ficou todo mundo assustado pensando que o homem ia matar o Sultão das
Matas. Mas o homem mandou chamar o Sultão e disse: “Aqui estou entregando meu
revólver e faca pro senhor guardar”. Aí, o Sultão se virou pra mim e disse: “A senhora
pegue um pouco de vinagre e bote a mão dele de molho”. E disse pro homem: “O
senhor sabe que foi doutrinado, disciplinado?”.
— Ele respondeu: “Mais ou menos”. E o Sultão: “Mais ou menos, não! O senhor
deve ter consciência do porquê foi
62
O Mensageiro de Deus
disciplinado. Porque hoje o senhor está aqui num terreiro pequeno, mas, se o senhor
fosse no candomblé e fizesse uma coisa dessas, iria ser pior. Por esse motivo, eu lhe
disciplinei, pro senhor saber entrar e sair em qualquer lugar que chegar.” O valentão
tornou-se batuqueiro do terreiro, frequentador de fé, assíduo e pacífico.
63
O Mensageiro de Deus

Capítulo XII
A primeira notícia do tesouro
Do Orion, por volta de 1956, a família iria para o seringal Porto Luís, duas horas e
meia rio abaixo. Lá, Gabriel teria a primeira notícia do “tesouro”: o chá Hoasca.
Pequenina relembra:
— O Luiz dos índios falou pra mim de um chá: “O pessoal vê isso, vê aquilo; o
cara falou até com o filho depois de morto”. Eu disse: “Onde?” Ele disse: “Lá no
barracão. E o De Rancho”.
Era o noteiro, que ia de 15 em 15 dias às colocações, anotando o que
considerava importante relatar à administração do seringal.
O noteiro confirmou que uma pessoa, por nome Bahia, que trabalhava num
barracão, distribuía o chá. José Gabriel perguntou como fazia para falar com ele. O
noteiro disse que era só ir lá no barracão. Foram. E o noteiro o apresentou ao Bahia,
que olhou desconfiado, desconversou e mudou de as
sunto.
Mestre Gabriel
Depois, chamou o noteiro num canto e foi franco:
— Não vou dar o chá a esse baiano não, porque ele sabe onde as andorinhas
dormem.
E não deu mesmo.
O uso do Vegetal, nos seringais, não obedecia a um rito religioso, nem se
submetia a uma doutrina. Sabia-se que havia sido herdado dos incas, cuja civilização
havia sido destruída pelos colonos espanhóis a partir do século XVI.
Os incas o utilizavam em sua liturgia religiosa, mas do rito original -
fundamentação e doutrina - quase nada ficara. A tradição do chá, dissociada da
origem, havia sido mantida por tribos indígenas e apropriada pelos trabalhadores
migrantes, a maioria nordestinos, recrutados para trabalhar nos seringais, ainda no
século XIX. Mas essa apropriação era aleatória, quase lúdica, uma espécie de
passatempo, a que alguns chamavam de “cinema de índio”.
Os índios, na verdade, o usavam, entre outras coisas, para curas e para se
orientar quanto aos locais mais propícios à caça. Não deixava de ter, nesses termos,
um sentido vagamente religioso.
Já os caboclos o usavam de acordo com os critérios dos que o preparavam e
distribuíam, e que se intitulavam “mestres”, muito embora não transmitissem
conhecimentos, nem espirituais, nem temporais, em suas sessões. Eram curiosos.
Havia duas exceções: os maranhenses Raimundo Irineu Serra (1892-1971),
seringueiro, e o marinheiro Daniel Pereira de Mattos (1888-1958) - este discípulo
daquele.
Raimundo, chamado pelos discípulos de Mestre Irineu, conheceu o chá em
Basiléia, Acre, por meio de duas pessoas que o haviam conhecido por intermédio
dos índios. E criou em 1930, em Rio Branco, numa região denominada Alto San
66
L
O Mensageiro de Deus
to, comunidade de seringueiros, uma Igreja com esse nome, inspirado numa
aparição que disse ter tido da Virgem Maria.
Denominou o chá de Santo Daime e não tinha pretensões expansionistas. Aquele
trabalho, por decisão sua — e, segundo ele, por orientação da Virgem —, estaria
restrito àquela localidade, para auxiliar, como efetivamente ainda auxilia, os que ali
viviam. Tinha formação católica, que mesclara a vivências espíritas e esotéricas, de
que resultou um rito pontuado por hinos e bailados.
Eventualmente, autorizava frequentadores que moravam em outras localidades a
levar o chá para uso pessoal ou mesmo para sessões. Mas não criou filiais. Quem
quisesse segui-lo teria de frequentar o Alto Santo. Depois de sua morte, em 1971, a
família, fiel a sua vontade, manteve o culto naquela localidade, onde ainda
permanece - e é matriz de seitas genericamente denominadas Santo Daime, embora
nenhuma em particular ostente esse nome.
Daniel Pereira, que morava em Rio Branco, recorreu a Irineu em 1936, quando
ficou gravemente enfermo e buscou tratamento com o chá. Curou-se e tornou-se
discípulo do Alto Santo, principal assessor de Mestre Irineu, auxiliando-o a criar os
hinos do ritual. Anos depois, em 1945, Daniel disse ter tido um sonho em que recebia
a missão de criar sua própria seita.
Teve consentimento de mestre Irineu e criou o Centro Espírita Culto de Oração
Casa de Jesus Fonte de Luz, conhecido também como Barquinha. Tanto o Alto
Santo quanto a Barquinha eram iniciativas isoladas, sem ramificações nos seringais
por onde transitava José Gabriel, que com eles não teve qualquer contato, no
período que precedeu a criação da União do Vegetal.
Não há, portanto, vínculo ou influência daqueles ritos com a religião que iria criar.
Tempos depois, Mestre Gabriel
c
c
c
c
67
Mestre Gabriel
faria referências positivas ao trabalho espiritual de Mestre Iri- neu, que não chegou a
conhecer pessoalmente.
Voltemos, porém, a 1956. José Gabriel, depois do insucesso inicial com o Bahia,
chegou em casa e fez uma sessão de candomblé sem bater tambor. Pequenina
conta:
— Ele falou que, se o pessoal que estava lá trouxesse o mariri com a chacrona,
ele preparava, dava e se responsabilizava por todos. Falou dentro da sessão. Mas o
pessoal não trouxe porque não conhecia.
Ainda em 1956, novo retorno a Porto Velho, onde ficam pouco tempo: até 1957,
quando, após vender tudo o que tinham, voltam pela terceira vez aos seringais.
Pequenina resiste mais uma vez, mas Gabriel torna a lhe falar do “tesouro”, que ela
ainda imagina material. Voltam ao mesmo Orion, onde, em junho, nasce o quarto
filho do casal, Carmiro.
68
O Mensageiro de Deus

Capítulo XIII
Caminho Preparatório
Nesse curto período em Porto Velho, Gabriel continua a preparar sua missão,
atendendo o povo como Sultão das Matas. Frequenta o Terreiro de São Benedito, de
propriedade de uma senhora, Ceei Lopes Bittencourt, conhecida como Chica
Macaxeira.
Torna-se ogã e pai de santo, sempre auxiliando as pessoas, conforme lembra
Raimundo Pereira da Paixão, que também frequentava o terreiro e depois se tornaria
seu discípulo. Além dele, reencontrou por lá Hilton Pereira Pinho.
Em casa, atendia e orientava o povo com o jogo de búzios. Na verdade, como
esclarecería mais tarde, servia-se desses meios, dos quais não carecia, para chegar
aos poucos ao coração das pessoas, orientando-as. Preparava o caminho da União
do Vegetal.
É dessa época um caso em que curou uma mulher, de nome Delcina, que,
procedente do Ceará, viajara no mesmo navio que ele. José Gabriel fez amizade
com ela e seu filho, Augusto Queixada - e os visitava ocasionalmente.
Mestre Gabriel
Certo dia, Delcina sentiu-se muito doente, com dores agudas no estômago. Não
conseguia sequer se mexer e chegou a pensar que morrería. Eis que, em meio a seu
padecimento, subitamente chega, sem que ninguém o tivesse informado da situação,
José Gabriel. Vestido de branco, trazia três toalhas no braço - uma verde, outra
bege, outra branca. Delcina, deitada, consegue apenas balbuciar:
- Gabriel, tô doente, em tempo de morrer.
E ele:
- Não vai morrer, não: vai ficar boa.
Pega então a toalha verde e cobre-lhe da cabeça aos pés. A seguir faz o mesmo
com a toalha bege e deixa que ambas ali fiquem por alguns minutos. Delcina
percebe apenas que ele faz movimentos contínuos com as duas mãos por sobre ela,
que começa a sentir sonolência. Ele então retira uma a uma as toalhas e a cobre por
fim com a branca. Ela se mexe, ele pede que fique quieta e lhe diz, depois de retirar
a derradeira toalha:
- Durma. Quando acordar, vai sentir a melhora.
Ela dorme até o dia seguinte, quando constata que já não sente nada. Estava
curada.
Sultão das Matas desfazia até o mito de que santo de casa não faz milagre. Fez.
Certo dia, Jair, com quatro anos, adoeceu. Ficou, segundo Pequenina, “inchado e
com febre”. Ela chegou a pensar que não sobrevivería. Recorreu então ao Sultão das
Matas, sem nem de longe desconfiar que era o próprio pai de Jair.
Acreditava mesmo que ele incorporava outro espírito, tal a transformação que
apresentava. Nos terreiros de Porto Velho, quando “recebia” o Sultão, Gabriel fazia
uma acrobacia que exigia elasticidade física incomum: com as mãos apoiadas no
chão, colocava as duas pernas para trás, dobrava-as e punha os pés no pescoço. A
seguir, andava com desenvoltura, com as
70
L
O Mensageiro de Deus
duas mãos no chão. E dizia que, se alguém dissesse algum dia, em qualquer lugar,
que estava “recebendo” o Sultão, teria que fazer o mesmo. Não há notícia de que
alguém tenha cumprido a exigência.
Sultão examinou Jair, preparou e deu-lhe um chá com ervas medicinais,
prescreveu a alimentação para os dias subsequentes, fez outros procedimentos
misteriosos e, ao final, recomendou que ficasse de resguardo, por sete dias, sem sair
do quarto.
O menino ficou curado, e Pequenina, de tão grata, não tendo como presenteá-lo,
convidou-o para ser padrinho de batismo de Jair. Sultão aceitou e tornou-se padrinho
do próprio filho.
Dali em diante, quando se apresentava em âmbito doméstico ou no terreiro,
tratava Pequenina por comadre e o filho tomava-lhe a benção. E assim foi até que,
anos depois, revelasse à família que ele e Sultão eram um único e mesmo espírito.
Mas essa história fica para depois.
Outra cura lembrada por Jair deu-se com outro filho de Gabriel, Carmiro, quando
moravam no seringal. Ele, ainda menino, apresentou um câncer no céu da boca, que
o impedia de se alimentar. Pequenina recorreu mais uma vez ao Sultão, que lhe
prescreveu uma estranha receita: capturar um rato (bicho difícil de encontrar na
floresta), cortar o pelo em forma de cruz, queimá-lo, mergulhá-lo na água e fervê-lo.
Depois, coar e beber a infusão. Em poucas semanas, Carmiro estava curado - e
nunca mais apresentou o problema.
A vida em Porto Velho transcorre nesse ambiente. Gabriel trabalha no comércio,
atende o povo como Sultão das Matas, frequenta o batuque, mas não se esquece da
missão, cada vez mais nítida em sua memória; do tesouro que ainda não encontrara.
E é em nome dessa busca, cujo sentido Pe-
71
%
quenina ainda não captara, que voltam pela quarta vez aos seringais.

Capítulo XIV
O Encontro com o Tesouro
Instalam-se dessa vez no seringal Guarapari, colocação Capinzal, retomando a
árdua rotina que já conheciam. Lá, falava-se com frequência no chá Hoasca,
chamado indistintamente de. Ayahuasca, yagé, cipó ou, como já foi dito, cinema de
índio.
Havia um seringueiro, que morava perto e distribuía o chá. Era o Chico Lourenço.
José Gabriel quis saber onde o encontrava. Disseram-lhe que em Barro Alto. Mas
não foi preciso ir lá. O próprio Chico Lourenço foi ao barracão (a sede administrativa
do seringal), numa ocasião festiva, em março de 1959, carregando um pandeiro.
José Gabriel abordou-o:
“E você que dá o cipó?” Ele disse: “E, sim”. E começaram a conversar. Chico
Lourenço, na verdade, falou quase o tempo todo, contando vantagem. Disse que era
conhecedor de “tudo quanto há”, que já havia ido ao “fim dos encantos”, que era
mestre e que, quando queria, “abria a terra, botava o cara dentro, fechava e
passeava por cima”. José Gabriel foi ob-
73
O Mensageiro de Deus
A sessão transcorreu como José Gabriel predissera. Jair Gabriel conta:
- Chico Lourenço chegou, distribuiu o Vegetal, cantou, chamou de tudo quanto
era lado, e ninguém teve nada. E ele disse: “O mariri não foi bem preparado; o mariri
tá fraco”. Deu todo tipo de desculpa. E disse: “Aqui perto de sua casa tem um pé de
mariri e eu vou trazer a chacrona e preparar”.
Seria a terceira sessão com Chico Lourenço. Desta vez, porém, ficou acertado
que Chico não traria o Vegetal já preparado, como nas vezes anteriores. Iria
prepará-lo com Gabriel. E assim foi. Chico chamou cerca de vinte pessoas para
participar da sessão.
Enquanto preparavam o chá, Chico exercia o seu ritual, preocupado em que não
se repetisse o fiasco da sessão anterior. Pegou alguns pedaços do cipó e
amarrou-os em formato de cruz, dispondo-as em alguns lugares do local do preparo,
dando significado a cada uma delas: cruz divina, cruz em fonte, cruzeiro etc. Benzeu
também as latas de querosene, onde se cozinhava o chá.
Misturou o mariri e a chacrona aleatoriamente na panela. Gabriel estranhou
aquele processo, que em preparos posteriores iria corrigir, dispondo os vegetais em
camadas uniformes.
Antes de distribuir o Vegetal, Chico repetiu o rito anterior das orações. E benzeu
cada uma das pessoas com a lamparina: “Deus Pai, Deus Filho, Deus Espírito
Santo”.
Iniciada a sessão, a força da burracheira se apresentou com intensidade
incomum, fora do controle de Chico, que dirigia os trabalhos. Gabriel estava
deitado-na rede, tranquilo, observando.
Mas algumas pessoas, entre as quais o menino Jair, com apenas nove anos,
começaram a se assustar. Pequenina, preo-
75
Mestre Gabriel
cupada, rezava o terço; pedia à Virgem Maria que cobrisse a todos com seu manto.
Outra mulher rezava num catecismo. Nada, porém, serenava a burracheira. As
pessoas estavam assombradas com o que viam. Um dos participantes disse ter visto
o diabo, e pediu socorro aos gritos. O único que se mantinha sereno e em silêncio,
na sua rede, era Gabriel.
Mas o cenário em torno era preocupante: gritos, choro, pedidos de socorro. A
certa altura, diante de todo aquele sofrimento, Gabriel chamou o filho e disse:
“Sente-se”.
Jair sentou-se e disse, sem saber como, as seguintes palavras: “Adeus campos,
adeus flores; adeus belas campinas; adeus aurora brilhante, da Natureza Divina”. E
ainda: “Adeus, adeus, adeus; adeus meu pombo azul, adeus”.
Assim, com aquelas palavras, ditas sem consciência de seu significado, a
burracheira começou a abrandar. Gabriel então levantou-se da rede e foi em direção
a Chico Lourenço, e o repreendeu:
“Olha, Chico, isso aqui é uma coisa de Deus, coisa séria. Você não sabe
trabalhar, mistura muita coisa. Quem dá esse chá é responsável pelas pessoas”. E
foi doutrinando, mostrando a responsabilidade espiritual daquele rito, que não podia
ser conduzido sem conhecimento do que é a burracheira, como mera curiosidade.
Enquanto falava, as pessoas se acalmavam e saíam do sofrimento, até que todos
serenaram. Gabriel mostrava mais uma vez domínio no Vegetal. Jair, impressionado,
olhou para o pai e disse:
- O senhor é um Mestre feito por Deus.
Mestre Gabriel — então assim chamado pela primeira vez — disse apenas:
“Sim”.
A importância histórica dessa sessão é que revelou dois aspectos do chá
Hoasca: é temeroso para quem o usa sem ter
76
O Mensageiro de Deus
consciência de seu poder, sujeitando-se e aos demais a riscos; e é possível
dominá-lo por meio da palavra, mantendo equilíbrio e conduzindo a sessão a seu
objetivo: orientar as pessoas e proporcionar-lhes conhecimento da realidade
espiritual — o que, em síntese, levaria o Mestre Gabriel a criar a União do Vegetal.
Os “mestres de curiosidade”, que assim passaram a ser chamados depois que o
Mestre Gabriel iniciou sua missão, não tinham a dimensão da força espiritual com
que lidavam.
Usavam-no como instrumento de poder pessoal. Estabeleciam disputas entre si.
Alguns buscavam seduzir mulheres, obter vantagens, sem qualquer noção de que
estavam diante de um veículo de investigação espiritual, em que as sessões são
oportunidades de aprendizado e de autoconhecimento. Alto Espiritismo.
Foram essas as três sessões de Chico Lourenço com Mestre Gabriel e família. A
partir daí, inicia o trabalho com o chá Hoasca e passa a ser gradualmente
reconhecido — e chamado - pelo título que ostenta na espiritualidade: Mestre
Gabriel.
Já não precisa recorrer a Chico Lourenço para comungar o Vegetal. Passa ele
próprio a prepará-lo. Ainda não criou a UDV, o que só ocorrería dois anos depois,
mas já reúne discípulos e associa o Vegetal a um ritual religioso, a que dará
fundamentação cristã-reencarnacionista — e cujas origens na Terra revela como
anteriores ao próprio judaísmo, ao contar posteriormente a História da Hoasca, da
qual falaremos adiante.
Cuida também de dar segurança física e espiritual ao uso ritualístico do chá,
ensinando como usar a palavra para dominá- -lo. Saber usá-la, respeitando os seus
segredos e mistérios, evita desacertos. Há palavras-chaves, que potencializam ou
minimizam, conforme a necessidade, o princípio ativo do Vegetal — e abrem
caminho para um amplo conhecimento da espiritualidade.
Mestre Gabriel
Usado com respeito e conhecimento, o Vegetal é inofensivo à saúde, benéfico ao
corpo e ao espírito. Fora desse domínio, é conhecido como “chá temeroso”; crona,
segundo Mestre Gabriel, significa temeroso. “E temeroso para quem não respeita”,
advertiu. O uso dissociado desses procedimentos e cuidados, sobretudo associado a
drogas, explica os problemas já registrados por quem o faz por conta própria.
78
e
V
O Mensageiro de Deus

Capítulo XV

Os mestres de curiosidade
Na sequência das mencionadas sessões com Chico Lourenço, já em 1960, deu-se
um acidente com o filho mais velho de Mestre Gabriel, Getúlio, de doze anos. Ele o
ajudava a cortar seringa, quando caiu sobre um toco de árvore, fraturando algumas
costelas. O acidente obrigou o pai a buscar socorro médico em Rio Branco, capital
do Acre, para uma cirurgia.
Antes, segundo Pequenina, Mestre Gabriel teve que providenciar uma transfusão
de sangue, já que o filho tivera forte hemorragia. Não havia médico no seringal e ele
valeu-se de uma técnica de iridologia (não se sabe como a conhecia) para selecionar
dois doadores de tipo sanguíneo compatível.
O médico paulista Glacus de Souza Brito, muitos anos depois, quando trabalhava
no Acre, conversou com um desses doadores, que lhe contou como o Mestre fez
esse exame: olhou nos olhos de Getúlio e depois nos dos que se dispuseram a doar,
constatando assim o tipo sanguíneo. Depois, com
79
Mestre Gabriel
uma seringa pequena, retirou o sangue dos doadores selecionados e o repassou ao
filho.
No hospital, em Rio Branco, constatou-se que o tipo de sangue de Getúlio era “O”
negativo. Mais tarde, os dois seringueiros doadores também foram a um hospital,
confirmando que tinham o mesmo tipo sanguíneo.
Na trajetória até Rio Branco, longa e precária, alternada por caminhadas a pé e
travessias de barco pelo rio Abunã, fariam escala em Plácido de Castro, antigo
seringal, transformado em vila e posteriormente em município. Além de importante
entreposto comercial que atendia os seringais da região, Plácido de Castro era o
foco dos mestres de curiosidade, que distribuíam o Vegetal por conta própria.
Desde as sessões com Chico Lourenço, passaram a ter notícias do talento de
Mestre Gabriel (a quem ainda não reconheciam como Mestre) com a Hoasca.
Ao se despedir de Pequenina, Mestre Gabriel orientou- -a para que, na sua
ausência, não bebesse Vegetal com Chico Lourenço. E partiu para Plácido de
Castro. Lá, à sua chegada, foi procurado por alguns mestres de curiosidade, que o
convidaram para que dirigisse uma sessão. Mas, como teria que seguir viagem cedo
no outro dia, Mestre Gabriel não aceitou.
No dia seguinte, efetivamente, seguiu para Rio Branco, onde permaneceu com o
filho por 40 dias, até que este se restabelecesse e pudesse retornar. Na volta por
Plácido de Castro, encontrou-se novamente com aqueles mestres, que lhe pediram
mais uma vez que dirigisse uma sessão para eles. Mestre Gabriel dessa vez os
atendeu.
Já nessa sessão, ministrou um ritual diferente do então adotado - e bem próximo
ao que viria a implantar posteriormente na União do Vegetal. As sessões se iniciam
por uma
80
L
O Mensageiro de Deus
sequência de cânticos, que são como orações ou mantras, denominados chamadas,
porque chamam a Força Espiritual.
A sequência de abertura da sessão, como Mestre Gabriel a organizou e se
mantém, é composta de cinco chamadas — Sombreia, Estrondou na Barra,
Minguarana, Caiano e Chamada da União -, após as quais os trabalhos se iniciam,
com explanações do Mestre e perguntas dos discípulos acerca de assuntos
espirituais ou relacionados à vida cotidiana, envolvendo condutas, escolhas, valores
morais etc. Um rito interativo, em que os discípulos têm ativa participação.
Algumas dessas chamadas, em ordem aleatória, eram feitas de maneira
incompleta - e não necessariamente na abertura da sessão - pelos mestres de
curiosidade. Já aí o Mestre Gabriel, ao reordená-las e acertá-las, iniciava seu
trabalho espiritual com o Vegetal, que viria a complementar no ano seguinte, ao criar
a UDV.
Antes, porém, havia ainda o que caminhar.
De Plácido de Castro, pegaram uma embarcação até o seringal Sunta, que
cortava caminho até o Guarapari. No trajeto a pé até chegar em casa, colheu mariri e
chacrona, colocando-os num balde. Após a emoção do reencontro com a família,
anunciou que faria, no dia seguinte, um preparo de Vegetal.
Pequenina conta que ainda estava assustada com a lembrança da sessão com
Chico Lourenço, em que ela e Jair passaram grande aperto. Mestre Gabriel
tranquilizou-a, revelando mais uma vez sua condição de “Mestre Espiritual”.
Disse-lhe também que havia finalmente encontrado o tesouro de que lhe falara: o
Vegetal. Ela confessa que ficou decepcionada, chocada mesmo, pois, como já foi
dito, imaginava uma riqueza material.
Realizou pela primeira vez o preparo, a seu modo, distribuindo na panela os dois
vegetais em três camadas — mariri,
81
Mestre Gabriel
chacrona, mariri. Bate o mariri com um pedaço de pau sobre um tronco de árvore,
para macerá-lo antes de colocá-lo na panela.
Já aí estabelece um ritual: segura o cipó com a mão esquerda, rodando-o para
dentro, enquanto o bate com a direita, para simbolicamente trazer para si a Força,
que espiritualmente o mariri representa; a chacrona, a folha, representa a Luz.
Enquanto bate o mariri, traz uma chamada: A Estrela do Oriente, que evoca a
visita dos três Reis Magos ao menino Jesus, “o verdadeiro Deus”, o “Rei dos judeus
e meu”.
As chamadas constituem momento sublime na sessão, em que se pede ao Poder
Superior Luz e Força. São feitas em ambiente de silêncio profundo e concentração
mental, que se prolonga por alguns minutos depois de sua conclusão.
A sessão, dirigida por Mestre Gabriel, transcorre serena, desfazendo perante a
família a impressão ruim deixada pela sessão anterior com Chico Lourenço.
Dessa sessão, participou, além da família - Pequenina, Jair e Getúlio -, um amigo,
Chico Paulino. Nela, houve um acontecimento recordado por Jair e Pequenina.
Getúlio, no trajeto de volta de Rio Branco, havia rompido três pontos da cirurgia. A
certa altura da sessão, Getúlio fez uma chamada numa língua desconhecida. Ao
concluí-la, constatou, surpreso:
- Estou curado da minha doença.
Mestre Gabriel corrigiu:
- Da sua doença, não: da doença que você tinha.
Já aí começava a ensinar o uso adequado das palavras, um dos trabalhos que na
UDV iria sistematizar.
É nessa ocasião que Mestre Gabriel faz uma revelação de grande impacto para a
família: ele próprio, e não um outro espírito, era o Sultão das Matas. Tudo o que
havia sido dito
82
Cl
O Mensageiro de Deus
e feito por aquela entidade, que a família supunha um gênio espiritual de grande
poder, provinha dele mesmo, Gabriel.
Pequenina confessa que teve um choque. Jair também: afinal, perdera um
padrinho. Mas, a partir daí, a admiração e a confiança nele depositadas — inclusive
a confirmação de que era um Mestre da Espiritualidade - aumentaram.
A partir dessa sessão, Mestre Gabriel passou a dirigir as demais de que
participava, inclusive com a presença de Chico Lourenço, que, no entanto, continuou
a distribuir o Vegetal por conta própria nos seringais. Conta-se que Chico custou a se
conformar com o prestígio crescente de Mestre Gabriel, cujo domínio nas sessões
com a Hoasca era alvo de comentários admirados.
Nas sessões que fazia com seus seguidores, Chico reclamava e repetia que era
superior, pois, afinal, fora ele que o iniciara no Vegetal. Não era bem assim. Dera-lhe
efetivamente o primeiro copo, mas não lhe ensinara nada. Ao contrário, dele
recebera alguns ensinamentos importantes, como já contamos.
Em diversas sessões, ao saber que naquele momento o Mestre Gabriel dirigia
outra, Chico mandava-lhe mandingas, tentando atingi-lo. Não teve sucesso, mas, ao
menos em uma, o recado foi recebido.
Conta-se que Mestre Gabriel, a certa altura de uma dessas sessões, tampou
subitamente o vasilhame de Vegetal, e disse: “Por hoje, a sessão está fechada”.
Instantaneamente, todos ficaram sem burracheira. O Mestre explicou o seu gesto
como uma defesa para que não penetrasse na sessão a energia que lhe estava
sendo dirigida pelo pensamento negativo de Chico.
Tempos depois, em Porto Velho, Mestre Gabriel o recebería fraternalmente numa
sessão da UDV, mantendo esse padrão amistoso, como reconhecimento a quem,
afinal de contas, o teria colocado diante do tesouro.
83
Capítulo XVI
A criação da União do Vegetal
Em janeiro de 1961, nasce o sexto filho do casal, Abomi; o quinto, uma menina,
Maria das Graças, nascera um ano antes e sobrevivera por poucos dias. Mudam-se
então para o seringal Sunta, na margem boliviana do rio Abunã, menos isolado e
mais próximo da vila Plácido de Castro. Lá, o Mestre já tinha alguns discípulos.
Sua rotina, porém, não muda, a não ser num aspecto: a ela incorpora o trabalho
com o Vegetal. Quando vai colher o látex, pesquisa na floresta os locais com mariri e
chacrona para preparos e sessões com o chá Hoasca, que continua a realizar com a
família e com os discípulos que arregimentara no seringal.
Um dia, num intervalo da colheita, senta-se para descansar e constata que está
sobre um pé de mariri. Observa com mais atenção e percebe que o cipó,
enroscando-se no tronco da árvore, mescla-se a certa altura a outro cipó, parecido
na forma, mas distinto no conteúdo: o tingui, espécie venenosa do timbó.
Mestre Gabriel
Vê ali uma manifestação simbólica da dualidade espiritual, com o timbó
representando a linha negativa. O joio misturado ao trigo, conforme a clássica
metáfora cristã.
Decide então colher a ambos e prepará-los com a cha- crona, de modo a
neutralizar o efeito letal do tingui, quando eventualmente associado, por engano, ao
mariri ou à chacro- na, numa demonstração da superioridade daquelas plantas no
reino vegetal. Também ali o positivo domina o negativo; a natureza material como
reflexo e projeção da Natureza Espiritual.
Houve, efetivamente, casos posteriores em que o tingui foi colhido por engano e
preparado como se fosse o mariri: não se sentiu a burracheira, mas também
ninguém se intoxi- cou, confirmando a importância do gesto preventivo do Mestre,
dentro do domínio que começava a demonstrar no Reino Vegetal.
Marca então uma colheita e um preparo para uma sessão especial, diferente das
anteriores, destinada a transformar e graduar dali em diante o uso do chá Hoasca. O
sinal estava dado: chegara a hora de criar a União do Vegetal, nome que ainda não
havia mencionado a ninguém, mas que certamente já trazia na memória há algum
tempo, na busca incansável do “tesouro”, marco inaugural de seu trabalho como guia
espiritual, razão de ser de sua missão.
Desde que comungara o chá pela primeira vez, há dois anos, concentrava o
pensamento num meio de lhe dar desti- nação segura e adequada, de veículo de
conhecimento e ligação com o Divino, a serviço do desenvolvimento das virtudes
morais, intelectuais e espirituais do ser humano.
Convoca os que já o acompanhavam — Bacurau (Raimundo Ribeiro das
Chagas), Pernambuco (Manuel Severino
86
ooooooooooooooooooooooooooooooonnonooG
O Mensageiro de Deus
Félix), José Gama e Joaquim (sobrenome desconhecido) — e fixa a data da sessão:
22 de julho de 1961.
No dia da colheita, um dos auxiliares, diante do pé de mariri, percebe a presença
do timbó e adverte: “Isso aqui não é mariri”. Ele manda colhê-lo assim mesmo. De
volta à casa, inicia o preparo.
Enquanto bate o mariri, traz a primeira chamada dentro da União do Vegetal:
Todo Cipó que Existe na Hoasca. A seguir, A Sagrada União, que explica o que a
UDV representa na espiritualidade: “a Força Superior, o Reino Celestial” - a Estrela
Divina Universal. Já aí revela a grandeza daquele momento, seu significado para a
evolução espiritual da humanidade.
Cozinha o chá em latas de querosene, dispondo as plantas em três camadas:
uma com o cipó, outra com a folha e outra novamente com o cipó. Preparado o
Vegetal, bebe-o primeiro sozinho, espera quinze minutos e, às 20 horas, o distribui
aos demais.
Dá então início ao ritual de criação da União do Vegetal, atribuindo àquele
momento solene, no ermo da floresta amazônica, algo mais que o início de uma
sociedade religiosa, que só viria a ser registrada oficialmente em cartório sete anos
depois, em 1968, em Porto Velho. Há, segundo esclareceu, a dimensão institucional
e a espiritual da União do Vegetal.
No plano espiritual, a UDV é uma manifestação da Realeza Divina, destinada a
servir à humanidade, dimensão que ali, no seringal Sunta, naquela sessão inaugural,
testemunhada apenas por 16 pessoas - sua família e alguns discípulos -, se faz
presente, no ritual de religação com o Sagrado, por meio da burracheira, que se
manifesta pelo princípio ativo da Hoasca.
A UDV, com sua doutrina e ensinos, é fonte de revelação dos mistérios da
espiritualidade. Daí sua universalidade.
87
Mestre Gabriel
No plano institucional, a UDV é, naquele momento, o esboço de uma sociedade
religiosa, cuja eficácia passará a depender da conduta dos discípulos e dirigentes; do
zelo que terão pelos princípios e doutrina que a partir de então começam a ser
estabelecidos.
Mantida essa fidelidade, a ligação não se desfará, nem os ilimitados benefícios
que dela podem advir. Dependerá apenas, diz o Mestre, da prática fiel e da
constância nos deveres, chave e síntese do processo evolutivo.
88
L
O Mensageiro de Deus
Félix), José Gama e Joaquim (sobrenome desconhecido) — e fixa a data da sessão:
22 de julho de 1961.
No dia da colheita, um dos auxiliares, diante do pé de mariri, percebe a presença
do timbó e adverte: “Isso aqui não é mariri”. Ele manda colhê-lo assim mesmo. De
volta à casa, inicia o preparo.
Enquanto bate o mariri, traz a primeira chamada dentro da União do Vegetal:
Todo Cipó que Existe na Hoasca. A seguir, A Sagrada União-, que explica o que a
UDV representa na espiritualidade: “a Força Superior, o Reino Celestial” — a Estrela
Divina Universal. Já aí revela a grandeza daquele momento, seu significado para a
evolução espiritual da humanidade.
Cozinha o chá em latas de querosene, dispondo as plantas em três camadas:
uma com o cipó, outra com a folha e outra novamente com o cipó. Preparado o
Vegetal, bebe-o primeiro sozinho, espera quinze minutos e, às 20 horas, o distribui
aos demais.
Dá então início ao ritual de criação da União do Vegetal, atribuindo àquele
momento solene, no ermo da floresta amazônica, algo mais que o início de uma
sociedade religiosa, que só viria a ser registrada oficialmente em cartório sete anos
depois, em 1968, em Porto Velho. Há, segundo esclareceu, a dimensão institucional
e a espiritual da União do Vegetal.
No plano espiritual, a UDV é uma manifestação da Realeza Divina, destinada a
servir à humanidade, dimensão que ali, no seringal Sunta, naquela sessão inaugural,
testemunhada apenas por 16 pessoas - sua família e alguns discípulos -, se faz
presente, no ritual de religação com o Sagrado, por meio da burracheira, que se
manifesta pelo princípio ativo da Hoasca.
A UDV, com sua doutrina e ensinos, é fonte de revelação dos mistérios da
espiritualidade. Daí sua universalidade.
c
87
u
O
o
o
o
o
o
o
o
o
G
G
O
c
o
G
C
G
C
c
c
G
c
c
c
G
C
O Mensageiro de Deus

Capítulo XVII
O Mestre Superior
Criada a União do Vegetal, Mestre Gabriel ainda permanece com sua família por
quase quatro anos no seringal Sunta, antes de se mudar em definitivo para Porto
Velho, no final de 1964, dando início à organização e estruturação física da
sociedade religiosa.
Nesse período, passa a frequentar Plácido de Castro, realizando ali com alguma
regularidade sessões da União do Vegetal.
Lá estabelece a primeira distribuição da União do Vegetal, a que dá o nome de
Estrela Divina, que reúne alguns moradores da cidade. Essa distribuição, quando
Mestre Gabriel deixa o Sunta, é desativada. Só bem posteriormente a seu
desencarnamento, com a UDV já organizada em diversos estados, seria reativada, já
como núcleo.
No .Sunta, continua a realizar sessões, atendendo moradores dos seringais.
Forma nessa ocasião os três primeiros mestres na UDV: Pequenina, Bacurau e
Pernambuco.
Quando vai a Plácido de Castro, incumbe Pequenina e Pernambuco de dirigir as
sessões. Bacurau se mudara para
89
Mestre Gabriel
as proximidades do rio Mamo. Depois de sua mudança para Porto Velho,
Pernambuco fica encarregado de atender os discípulos nos seringais e em Plácido
de Castro. É auxiliado por dois outros discípulos que conviveram com Mestre Gabriel
no seringal: José Gama e Edson (sobrenome desconhecido).
A fama do Mestre se espalha na região. E começa a incomodar os mestres de
curiosidade, que veem alguns de seus seguidores abandoná-los, em busca dos
conselhos e orientações do Mestre Gabriel. O ambiente não era de hostilidade, mas
de preocupação. Ouviram falar que o Mestre criara a União do Vegetal, mas
desconheciam o que fosse. E o Mestre, empenhado em esclarecê-los, propôs que
fizessem uma sessão em 6 de janeiro, ano de 1962, Dia de Reis, para que pudessem
avaliar a obra que criara.
No dia marcado, Mestre Gabriel foi a Plácido de Castro para a sessão. Foi só. Lá,
o aguardavam, numa olaria, doze mestres de curiosidade. Mestre Gabriel disse que,
como era uma sessão de mestres, cada qual se serviría do Vegetal por conta
própria.
Um deles disse: “Como o senhor trouxe a ideia dessa sessão, o senhor dirige”. E
assim foi: Mestre Gabriel assumiu a direção da sessão, sem que ninguém
protestasse.
Quando a burracheira se apresentou, um dos presentes disse: “O senhor é o
Mestre Superior”. E ele perguntou:
Por quê?” E ele: “Porque o senhor criou a União do Vegptal”.
Foi o primeiro reconhecimento público do destaque da UDV no ambiente religioso da
Hoasca — e do domínio que, dentro dele, exerce o Mestre Gabriel.
Os mestres de curiosidade não deixaram de seguir distribuindo o chá Hoasca à
sua maneira, alguns de modo ines- crupuloso, como já foi dito. Mas, dali em diante,
passaram a reconhecer no Mestre Gabriel o Mestre Superior no Vegetal.
O
90 . o
nnn
O Mensageiro de Deus

Capítulo XVIII
Confirmação no Astral Superior
c
c
O acontecimento com que Mestre Gabriel concluiu seu circuito nos seringais deu-se
no dia Io de novembro de 1964, celebrado na cristandade como o Dia de Todos os
Santos. Marcou para esse dia um preparo e uma sessão em Plácido de Castro, com
um objetivo especial: confirmar a União do Vegetal no Astral Superior.
O sentido dessa Confirmação, celebrada desde então na União do Vegetal, é
mostrar que a religião que criara procede do Alto. E dádiva divina, oportunidade de
salvação e graduação espiritual, a depender da determinação dos que a conduzem
de não profaná-la, de não desviá-la de sua rota.
Ele já havia dito a Chico Lourenço que o Vegetal “é coisa de Deus” e se destina a
propiciar a religação ao Sagrado. Não é uma diversão, uma curiosidade, como
davam a entender os que o distribuíam aleatoriamente nos seringais.
Já na colheita, o Mestre estabeleceu o diferencial daquela sessão. Determinou
que o chá fosse preparado com água de
91
%
Mestre Gabriel
alguns vegetais. Mandou tirá-la, entre outras, da samaúma, da imbaúba e da taboca.
Na sessão, às 22 horas, dentro da luz da burracheira, tirou o relógio do pulso, deu-o
a Pequenina e disse: “Se em cinco minutos eu não voltar, chame por mim”.
Entrou então numa espécie de transe e, quando transcorreram os cinco minutos,
nem precisou ser chamado. Abriu os olhos e fez a Chamada da Confirmação, cujos
primeiros versos dizem: “Anjo da minha guarda/meu Divino Criador; abra as portas
do Céu/do Astral Superior”. E fez o anúncio: “A União do Vegetal está confirmada no
Astral Superior e plantada na Terra. Não tem mais como ser esquecida”.
Na sequência, uma pessoa na sessão, conhecida por Roxinha, teve uma
miração, visão proporcionada pela Luz da burracheira: uma coroa real, ornada por
uma auréola de luz, conduzida por duas mãos, sobrevoou o salão, em direção ao
Mestre Gabriel, colocando-a sobre sua cabeça. A Coroa do Conhecimento Espiritual.
Pernambuco era um dos presentes à sessão. E também viu — e diz que não foi
só ele — algo de extraordinário:
- O Mestre fez a Chamada da Confirmação e a da Sagrada União. E todos viram
a mesma coisa: aquele clarão que ficou na sessão, de cima a baixo.
João de Prima (primeiro, da direita para a esquerda), irmão mais velho de Mestre
Gabriel, com a família, em Pé de Serra (BA), em foto de 1979. Dócia, sua filha, cujo
parto foi feito por Mestre Gabriel, está à esquerda de João, de vestido branco. / Foto
Yuugi Makiuchi
O
o
o
-y-v
Irmãos de Mestre Gabriel, com a mãe, Dona Prima (sentada), em foto de autor e
data desconhecidos. O primeiro, à esquerda, é Dionísio; o terceiro, João; à direita,
Maria. / Foto autor desconhecido
Igreja de Nossa Senhora das Dores, do povoado de Retiro. No detalhe, o sino, que
bateu as doze badaladas ao meio dia, hora em que o Mestre Gabriel nasceu.
Frequentada pela família, fica a 3 km da fazenda Pedra Nova. / Foto Bento Viana

Fachada de um armazém típico da cidade. Num, o Mestre Gabriel trabalhou aos 13


anos. / Foto Bento Viana
96
Pequenina, em Jaru (Rondônia), em foto de 1987, quando participou de reunião do
Conselho da Recordação dos Ensinos de Mestre Gabriel.
/ Foto Yuugi Makiuchi
c
c
c
c
0
c
Filhos do Mestre Gabriel, em foto sem data, mas provavelmente depois do seu
desencamamento. Da esquerda para a direita, Getulio, Carmiro, Jandira, Salomão (o
menor), Abomir, Jair e Wilson (um amigo dos filhos, que recebeu uma cura do Mestre
e, caso único, associou-se aos seis anos). / Foto Francisco Herculano de Oliveira
97

Mestre Gabriel com seu filho Salomão, examinando folhas de um mariri, em foto
publicada na edição de O Cruzeiro, de 1971, na reportagem “O LSD da Amazônia”, I
Foto Rubens Américo Luz - O Cruzeiro.
Pequenina em visita a Mamu, Bolívia, em 1972, onde havia um pequeno grupo de
discípulos da UDV. A pessoa que a recebe chama-se Nonato, hoje discípulo do
Núcleo Mestre Nesclar, em Buritis (RO). /
Foto Cícero Alexandre Lopes
98

Colheita de seringa, pelas mãos de Pequenina, em foto de 1985, numa viagem de


recordação a um seringal às margens do rio Abunã.
Foto Yuugi Makiuchi
Locomotiva na estrada de ferro Madeira Mamoré, para a qual Mestre Gabriel, ao
chegar à Amazônia, vendia lenha. I Foto Yuugi Makiuchi
C
c.
99

Rio Abunã, divisa de Brasil (à direita) e Bolívia (à esquerda). Do lado boliviano, ficava
o seringal Guarapari, onde Mestre Gabriel e sua família, na colocação Capinzal,
beberam o Vegetal pela primeira vez.
/ Foto Yuugi Makiuchi

Embarcação no rio Abunã (foto de 1985), a mesma que ainda hoje transporta os
moradores dos seringais. I Foto Yuugi Makiuchi
100
Mestre Gabriel (braços abertos) entre seus discípulos, na casa de um deles, Antonio
Domingo Ramos. Da esquerda para a direita: Zé Simão, Mané Belém, Francisco
Herculano de Oliveira, Jair Grabriel da Costa, Francisca, José Luiz de Oliveira,
Salomão, Pequenina, Raimundo Carneiro Braga, (não identificado), Dionéia Braga,
Raimundo Pereira da Paixão e Raimundo Monteiro de Souza (respectivamente, atrás
dos braços direito e esquerdo do Mestre Gabriel, Rosa Ramos, Zé do Óculos,
Napoleão e o anfitrião. / Foto Cícero Alexandre Lopes
*
Mestre Gabriel (braços abertos) entre seus discípulos, na casa de um deles, Antonio
Domingo Ramos. Da esquerda para a direita: Zé Simão, Mané Belém, Francisco
Herculano de Oliveira, Jair Grabriel da Costa, Francisca, José Luiz de Oliveira,
Salomão, Pequenina, Raimundo Carneiro Braga, (não identificado), Dionéia Braga,
Raimundo Pereira da Paixão e Raimundo Monteiro de Souza (respectivamente. atrás
dos
Parte 2

A UDV em Porto Velho


O Mensageiro de Deus

Capítulo XIX
A Chegada
Porto Velho em fins de 1964, quando Mestre Gabriel ali retorna, em caráter definitivo,
pouco difere da cidade que conheceu quando de sua chegada à Amazônia, em 1944.
Capital de um Território Federal que só viria a adquirir status de estado em 1982,
quase duas décadas depois, estava longe de ser um centro urbano efetivo.
Sua fisionomia continuava a de um vilarejo, carente da mais elementar
infraestrutura. Nenhum edifício, raras ruas pavimentadas, quase todas de terra
batida, esburacadas pelas constantes chuvas; casas em sua maioria choupanas,
sem conforto ou saneamento básico; poucos carros, muitos veículos de tração
animal e bicicletas.
Tudo muito precário, tudo por fazer.
Nesse ambiente semirrural, a estrutura estatal - burocracia, Exército, polícia,
bombeiros, hospitais, correios -, mesmo deficiente, sobressaía-se e fornecia os
melhores empregos. Os demais estavam no comércio, construção civil, agricultura e
serviços básicos - bancos, escolas, escritórios de contabili
107
Mestre Gabriel
dade. A imprensa — rádios e jornais - era artesanal; televisão, nem pensar.
A maioria dos habitantes era de migrantes nordestinos e seus descendentes, de
baixa escolaridade, distantes e alheios ao que se passava nos principais centros de
decisão do país, situados ao Sudeste, onde a efervescência política, como reflexo do
embate ideológico da Guerra Fria, provocara, em 1964, uma intervenção militar no
poder civil brasileiro. Em Rondônia, soavam vagos e distantes os ecos daquela
turbulência.
A Amazônia era ainda terra de ninguém. Não estava, como hoje, no centro das
atenções da mídia mundial, nem havia ainda sido alvo da expansão da fronteira
agrícola nacional, que, a partir de meados dos anos 70, em decorrência da
transferência da capital federal para Brasília, no Centro Oeste, mudaria
gradualmente a fisionomia geopolítica do Brasil.
Naquele momento, a região pouco interagia com o restante da federação, imersa
numa realidade particular, em que a demanda básica era mesmo a luta pela
sobrevivência.
Antes de retornar de vez a Porto Velho, Mestre Gabriel, já com oito filhos - mais
dois nasceram nos seringais: José Gabriel da Costa Filho (1962) e Salomão Gabriel
da Costa (1964) -, cuida de manter assistidos seus discípulos nos seringais.
Encarrega Bacurau de distribuir o Vegetal no Rio Mamo; Edson, na Vila Plácido de
Castro; e José Gama, no seringal Sunta. Ficam com a missão de cultivar a semente
que o Mestre lá plantou.
Ruma então para Fortaleza do Abunã, a 260 quilômetros de Porto Velho, em
novembro de 1964, onde deixa provisoriamente a família, e vai de trem para a capital
providenciar moradia e trabalho.
Com as economias amealhadas ao longo de duas décadas de Amazônia, adquire
modesto imóvel na rua Abunã,
108
O Mensageiro de Deus
O
1.215, descrito por Manoel Nogueira da Silva, seu futuro discípulo, como “uma
choupana, de chão de barro, cheia de altos e baixos” - casa de caboclo: dois quartos,
sala, cozinha e banheiro do lado de fora.
Para quem, no entanto, se habituara ao padrão dos seringais, pode-se dizer que
não havia do que se queixar: o desconforto era menor. Pelos seis anos seguintes,
até seu desen- carnamento, em 1971, cumpriría ali a etapa consolidadora de sua
missão.
Adquirida a casa, volta a Fortaleza do Abunã para buscar a família. Vai de trem. A
bordo, encontra Modesto Alves de Souza, que conhecia desde 1946, e que seria um
de seus primeiros discípulos em Porto Velho. Modesto leva consigo, oculta numa
sacola de pano, uma garrafa com o Vegetal, mas dela não lhe dá conhecimento.
O Mestre, porém, sente a presença da Hoasca e a menciona a Modesto, que,
admirado, a confirma - e tem ali, pela primeira vez, uma impressão diferente daquele
homem, com quem não tivera antes a oportunidade de uma conversa mais
prolongada. E é essa impressão que o levará a incluir-se entre seus primeiros
seguidores.
Mestre Gabriel e família instalam-se na rua Abunã em Io de janeiro de 1965. No
terreno da casa, havia um barracão anexo. Nele, um casal morava de aluguel, e ali
permanecería por mais três meses. Mas o local não chegaria a ficar vago: seria
imediatamente ocupado por um hóspede inesperado, um amigo do seringal, de
nome Galego, que lá morou de favor por cerca de oito meses.
Nesse período de quase um ano, Mestre Gabriel é obrigado a buscar locais
alternativos para realizar as sessões.
Hilton Pereira Pinho relembra: “Nós não tínhamos sede para realizar as sessões.
Tínhamos que pedir quintais das pes-
c
109
Mestre Gabriel
soas vizinhas. No Caminho dos Tanques, estrada do aeroporto, conseguimos a
fazenda do senhor MacDonald (conhecido por Max) Rivere, uma sala junto ao curral
para nossas sessões semanais”.
A primeira sessão, em 6 de janeiro — exatamente três anos após ter sido
reconhecido em Plácido de Castro como Mestre Superior no Vegetal —, realiza-se
na sede do Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento Tattwa.
Dela, além da família do Mestre Gabriel, participam, entre cerca de uma dúzia de
convidados, o mesmo Modesto do trem e Hilton. As demais sessões alternam-se
entre aquele mesmo local e a fazenda de Rivere, em que trabalhava outro discípulo,
Waldemar Santos.
Havia ainda um barracão anexo à casa de dona Arlinda, amiga de Hilton, que o
cedeu algumas vezes. Ele conta:
- Nos dias de sessão, era muito interessante, e até engraçado. Uns levavam
bancos na cabeça, outros a mesa, outros jarros com água, latas d’água, cadeiras,
copos. Enfrentamos chuva, sol, até chegar ao local. Isso ocorria duas e até três
vezes por semana, conforme o critério do Mestre.
Nesse contexto itinerante e improvisado, foram chegando os primeiros
seguidores: uns, convidados pelo próprio Mestre; outros, pelos que já participavam;
uns chegavam por curiosidade; outros, atraídos pelos poderes curativos do chá; uns
se tornavam frequentadores assíduos; outros, eventuais; outros não voltavam.
Quando o barracão anexo à sua casa fica liberado, o Mestre passa a realizar ali
as sessões. Cede o espaço à UDV - e, sempre buscando o significado oculto das
palavras, seus mistérios para além do sentido imediato com que são ditas, passa a
chamar o local de “Sede”: “É Sede porque eu cedi”, diz ele.
110
O Mensageiro de Deus
Ao mesmo tempo em que desenvolve os trabalhos da UDV, cuida de providenciar
seu ganha-pão. Instala uma olaria não mecanizada, que, antes de se fixar na rua
Carlos Gomes, funciona provisoriamente em dois outros endereços.
Era um barracão espaçoso, de 30 metros por 30 metros, alto em determinados
lugares, mas com puxadas mais baixas em outros. Numa das laterais, havia uma
varanda; a frente era mais alta, para a entrada dos caminhões. Tudo muito limpo,
com cobertura de palha palmeira, também chamada de palha mansa.
Nela, trabalhavam, além dos filhos, três auxiliares - entre os quais, Pernambuco,
que, na sequência da vinda do Mestre para Porto Velho, resolveu deixar o seringal e
acompanhá- -lo. O trabalho era todo manual: queimava-se o barro, batia-se o tijolo,
moldava-se o formato quadrangular. A clientela era pequena, mas regular.
O resultado financeiro era reduzido, mas suficiente para prover o sustento de sua
família, sem que precisasse recorrer a nenhum auxílio externo. Quanto a isso, foi
sempre inflexível: jamais aceitou dinheiro que não proviesse de seu trabalho.
Certa vez, quando a União já tinha dezenas de sócios, alguns discípulos mais
abonados, com o sincero propósito de auxiliá-lo, tiveram a ideia de lhe oferecer uma
contribuição financeira mensal, que lhe permitisse dedicação exclusiva ao trabalho
religioso.
Recusou em termos categóricos. Disse que o sustento de sua família era seu
dever e de mais ninguém e que, enquanto tivesse saúde, continuaria trabalhando
para cumpri-lo, independentemente da missão que desenvolvia na UDV. Falou de tal
forma que ninguém ousou contraditá-lo.
Tinha, quanto a isso, posicionamento bem claro: dinheiro é um bem decorrente
do trabalho e cada qual deve
111
Mestre Gabriel
buscá-lo por essa via, sem recorrer a outros expedientes. E o que dizia punha em
prática.
Em 1969, por exemplo, teve seu caminhão consertado por um mecânico,
Francisco dos Anjos Feitosa, conhecido por Sidon, que viria a ser seu discípulo. Era
um Ford F 600, do ano de 1961, que adquirira já usado e muito desgastado — e que,
nessas condições, enguiçava com frequência. Sidon tinha uma oficina e situação
financeira estável.
Fora indicado ao Mestre Gabriel por um sócio da UDV, Clemente Bezerra
Guedes, que lhe falara também do trabalho religioso que realizava. Sidon ficou
interessado em participar de uma sessão.
Fez o conserto e, no dia de cobrar, foi à casa do Mestre, com o objetivo também
de pedir para comungar o Vegetal. Ficou impressionado com a modéstia das
instalações e não quis cobrar pelos serviços. É ele quem conta:
- Ele me perguntou quanto era e eu disse que não precisava pagar nada. Ele
não aceitou. Disse que estava satisfeito com o meu trabalho e que era um dever me
pagar.
- Eu insisti, dizendo que não precisava. Ele perguntou por quê. Disse que ele
estava com o carro parado há dias, sem trabalhar e sem ganhar, e que era um
presente meu. Ele recusou: “Não. Se a pessoa trabalhou, empatou o seu tempo, tem
o direito de receber a paga”. Pegou o dinheiro e colocou no bolso da minha camisa:
300 cruzeiros. Tirei o dinheiro e devolvi para ele.
- Ele então chamou o Raimundo Pereira da Paixão, que era o tesoureiro do
Centro, e disse: “Pegue esses trezentos cruzeiros e ponha no cofre da União; é uma
doação do senhor Sidon”.
À noite, Sidon participou da sessão. Na sequência, se associou.
112
O Mensageiro de Deus
Mas voltemos à olaria. Ali, o Mestre realizava os preparos de Vegetal. As sessões
eram na Sede, mas os preparos, que exigiam infraestrutura maior, para instalação de
um fogão e depósito de lenha, aconteciam na olaria. E eram frequentes.
Hoje, fisicamente mais estruturados, os núcleos da UDV realizam preparos em
intervalos maiores, produzindo quantidades que abastecem por meses as sessões
religiosas. Naquele tempo, porém, tudo era mais precário: latas de querosene, em
vez de panelas inoxidáveis de grande porte; latas de conservas servindo de copos;
chão ou rede em vez de cadeiras.
O essencial, porém, ali estava: o mariri, a chacrona e - o bem mais precioso - a
presença e a palavra do Mestre. Na Sede, a organização do templo para as sessões
ajustava-se às mesmas limitações. Raimundo Monteiro de Souza conta o que lá
encontrou, quando chegou, em setembro de 1966, para sua primeira sessão:
- Havia apenas duas mesas pequenas, de um metro e meio cada uma, que o
Mestre juntava, no meio da sala. Sen- tava-se entre as duas, punha um braço sobre
cada uma. Os demais lugares eram preenchidos pela ordem de chegada ou por
indicação dele.
A maioria ficava mesmo no chão, de terra batida. Uns improvisavam tijolos ou
pedaços de lenha como assento; outros forravam o chão com jornal, palha ou pano;
outros simplesmente sentavam-se sobre a terra. Não havia energia elétrica e o salão
era iluminado por lamparinas.
Nesse ambiente, Mestre Gabriel começa a reunir seus discípulos, a
transmitir-lhes, em sessões com o chá Hoasca, valores morais, fundamentos e
ensinos espirituais, e a orientar- -lhes quanto à conduta de vida. Estabelece
gradualmente a estrutura hierárquica da UDV, forma um Quadro de Mestres, ao qual
incumbe a missão de levar adiante sua obra, em lin-

113
Mestre Gabriel
guagem simples, clara e direta, assimilável, como dizia, “pelo caboclo e pelo doutor”.
Simples, mas jamais banal, como veremos adiante. “As coisas de Deus”, disse
ele, “são para todos”. E ainda Raimundo Monteiro quem recorda:
- Minha primeira sessão foi inesquecível. Realizei uma viagem Astral que me
pareceu ter durado menos de um minuto. Vi que estava diante de um homem que
não era qualquer um.
Raimundo Carneiro Braga, que chegara um ano antes, precisou participar de
nove sessões para sentir a burracheira. Já havia bebido antes no Alto Santo, na seita
de Raimundo Irineu, e sentira os efeitos do chá. Mas na UDV foi diferente. Precisou
esperar.
- Mestre Gabriel me disse: “Seu Braga, se o senhor sentiu burracheira antes, é
porque não é sentenciado no Vegetal”. E aí, na nona vez, despertei dentro de uma
luz mais clara que o dia. E achei mais interessante, mais bonito do que quando bebi
lá no Daime. Foi impressionante. Vi a diferença.
114
O Mensageiro de Deus

Capítulo XX
As primeiras Sessões de Escala
No início de 1965, Mestre Gabriel estava empenhado basicamente em receber os
primeiros discípulos, formar uma irmandade e lideranças. Não cuidara ainda de
registrar a UDV. As primeiras sessões transcorriam sem que mencionasse tal
necessidade. Apenas doutrinava e atendia as pessoas.
Mais adiante, porém, com o aumento de adeptos e a regularidade das sessões,
essa necessidade se impôs naturalmente. Quem primeiro a viu foi Hilton. Propôs ao
Mestre que se criasse uma associação e se cobrasse uma mensalidade para fazer
frente às despesas decorrentes da organização e realização das sessões.
Havia o custo de colher os vegetais na floresta, transportá-lo, prepará-lo; e havia
ainda despesas com compra de material para limpeza da Sede e da olaria. Hilton
mencionou essa necessidade por três vezes. Apenas na terceira recebeu
autorização do Mestre.
115
Mestre Gabriel
Redigiu, então, um regimento, com 16 artigos, e associou 16 pessoas, incluindo a
família do Mestre Gabriel. Entre elas, quatro que integrariam o futuro Quadro de
Mestres: ele próprio, Antonio Domingos Ramos, Raimundo Carneiro Braga e
Modesto Alves de Souza. Era uma providência de sentido prático, para distribuir
despesas e responsabilidades. Não havia ainda, por parte dos discípulos, a
consciência de que se iniciava ali um trabalho religioso, de sentido universal, que um
dia chegaria a todos os estados do país e ao exterior, em expansão gradual e
contínua.
Na redação do regimento, Hilton previu, por iniciativa própria: “Existem três
classes de filiados na UDV: Mestres, Conselheiros e Discípulos”. Mestre Gabriel
aprovou e, com base nisso, começou a graduar seus discípulos, acrescentando uma
instância hierárquica: o Corpo Instrutivo. Nele, reuniu os discípulos que
demonstravam maior capacidade e interesse na absorção dos ensinos e doutrina,
expressa também (e sobretudo) na transformação de condutas.
Francisco Herculano de Oliveira lembra que Mestre Gabriel cobrava coerência de
seus discípulos, sendo essa uma condição para ascender aos graus hierárquicos.
Não bastava conhecer a doutrina e os ensinos: era preciso espelhá-los na prática de
vida. “O Mestre praticava o que ensinava”, diz Herculano, que lembra ainda destas
palavras: “Pra quem não quer se ajeitar, a União do Vegetal é o pior lugar que existe.
E também é o melhor pra quem quer seguir direito”.
Os primeiros graduados foram: Hilton, Conselheiro Geral; Raimundo Carneiro
Braga, Io Conselheiro; José Luiz de Oliveira, 2o Conselheiro; e Antonio Domingos
Ramos, 3o Conselheiro.
O Conselho Geral seria extinto em 1968, ficando apenas o Corpo do Conselho
Oriental. Nessa mudança, um ensi
116
O Mensageiro de Deus
no: conselho geral é qualquer conselho; já o conselho oriental tem o objetivo de
orientar positivamente.
No curso das sessões, que têm formato interativo (o discípulo faz perguntas ao
dirigente e tem direito à palavra para manifestar sua compreensão a respeito dos
assuntos), Mestre Gabriel observava as qualidades de cada qual: inteligência,
dedicação, sinceridade, refinamento de hábitos, cuidado com as palavras.
Todo esse conjunto de procedimentos, que ele chamava de “praticados”, indica,
segundo ensinou, o “grau de memória” do discípulo - e é por ele que, na UDV, se dão
as convocações para as instâncias hierárquicas.
No Corpo Instrutivo, o discípulo se qualifica para receber ensinos espirituais
reservados — e assume maior parcela de responsabilidade em relação à
administração da própria instituição, da qual, na qualidade de sócio, é também uma
espécie de coproprietário, o que constitui outra singularidade da religião UDV.
Ao Corpo do Conselho, o Mestre convocava os que considerava mais
experientes, em condições de aconselhar os demais. O conselho, disse ele, pode ser
dado por qualquer um, até por uma criança, mas o dom e a responsabilidade do
Conselho são um talento espiritual. E é por esse talento que se dão as convocações.
Ao Quadro de Mestres, eram convocados os que, além das exigências feitas aos
demais graus, mostrassem capacidade de dirigir corretamente uma sessão,
transmitir com fidelidade e clareza os ensinos, sabendo explicá-los. Um ano depois,
em 1966, estabelecería um critério adicional: contar, dentro da burracheira, a História
da Hoasca, que evoca as origens milenares do chá e da UDV. Dessa história,
falaremos adiante.
117
Mestre Gabriel
Era esse o “concurso para mestres”, ao qual até hoje se submetem os
conselheiros aptos a se credenciar ao lugar. Mestres e conselheiros têm
responsabilidades adicionais: são o espelho dos demais irmãos.
Nove discípulos contaram, tão logo se estabeleceu o concurso, a História da
Hoasca; oito foram aprovados: Wal- demar Santos, Modesto Alves de Souza, Manoel
Nogueira da Silva, Hilton Pereira Pinho, Florêncio Siqueira de Carvalho, Raimundo
Carneiro Braga, Antonio Domingos Ramos e José Luiz de Oliveira.
Eles se somaram a Pequenina, Bacurau e Pernambuco, graduados ainda no
seringal Sunta.
Outros onze receberiam, na sequência, a mesma graduação: Raimundo Pereira
da Paixão, Raimundo Monteiro de Souza, Bartolomeu Pinheiro do Nascimento,
Francisco Adamir de Lima, João Ferreira de Souza (Joanico), Manoel Messias,
Francisco Herculano de Oliveira, Roberto Souto, Francisco dos Anjos Feitosa
(Sidon), Napoleão Victor de Oliveira, Raimundo Nonato Marques e Cícero Alexandre
Lopes. Ao todo, 23.
À medida que aumentava o número de sócios, tornando-se impraticável
acolhê-los a todos no barracão da Sede, o Mestre decidiu criar dois grupos de
frequentadores, passando a realizar duas sessões por semana: uma, às
quartas-feiras; outra, aos sábados.
Na quarta-feira, recebia os novatos e os que ainda não eram do Corpo Instrutivo;
no sábado, as pessoas do Corpo Instrutivo. Os mestres e suas esposas podiam
frequentar as sessões que lhes conviessem. Hoje, as sessões de escala são para
todos os níveis hierárquicos da instituição, e realizam-se nos primeiros e terceiros
sábados de cada mês. As sessões instrutivas a cada dois meses e as da direção —
Corpo do Conselho e
118
O Mensageiro de Deus
Quadro de Mestres — quando necessário. Mas essa organização veio
gradualmente.
Antes disso, o processo de institucionalização prosseguiu em suas diversas
etapas, agregando mais gente para pen- sá-lo e elaborá-lo. Um personagem que
nele exerceria papel importante, na produção das leis, seria José Luiz de Oliveira.
Ele conheceu a UDV bem no início, em junho de 1965, em pleno expediente
profissional. Trabalhava numa empresa de construção civil, de propriedade de seu
irmão, e foi encarregado de buscar um milheiro de tijolos na olaria do seu Gabriel, na
avenida Carlos Gomes.
Foi sozinho, dirigindo o caminhão, porque o motorista da empresa faltou nesse
dia ao serviço. Chegou na olaria no momento em que se realizava um preparo de
Vegetal. Mestre Gabriel, tão logo ouviu o ronco do caminhão, veio para fora, e
perguntou o que o visitante queria. Informado, mandou carregar os tijolos. Mas o
visitante notara algo diferente: latas de querosene fervendo no fogo.
“Aquilo me chamou atenção”, lembra ele. “Não sabia o que era e vi umas cinco ou
seis pessoas sentadas — umas em redes, outras nos tijolos. Eram poucas pessoas.”
Rodeou o local, olhando com grande interesse o que se passava lá. E travou o
seguinte diálogo com o Mestre:
- O que é isso?
- E um chá.
- E pra que serve esse chá?
- E remédio para o espírito. A pessoa que bebe este chá fica mais perto
de Deus e aprende a conhecer mistérios da Natureza que até então nem sonhara
que existissem. Ficar mais perto de Deus é uma coisa maravilhosa para quem quer
conhecer a vida espiritual. E a melhor coisa que existe.
C 119
Mestre Gabriel
José Luiz conta que era discípulo da Rosacruz, onde portava o título de mestre.
Por isso, aquelas palavras lhe tocaram. Disse então:
- É atrás disso que eu ando.
E o Mestre:
- E por isso que o senhor ainda não tinha encontrado. Porque, para
encontrar, é preciso que venha um de lá pra cá e outro daqui pra lá. Quem vai na
mesma direção, indo atrás, pode alcançar se andar mais depressa.
Relembra José Luiz:
- Foi o primeiro ensino que ouvi dele. E me chamou atenção a maneira
como respondeu. Mostrou uma inteligência e eu senti necessidade de conhecer o
chá. Perguntei se podería me dar um copo e ele me falou que, naquele momento,
não, porque eu estava carregando um carro com tijolos e não conhecia o efeito do
chá. Mas disse que, no dia seguinte, havería uma sessão na casa dele e que poderia
me atender.
Dito e feito. No dia seguinte, José Luiz, minutos antes da hora marcada, lá
estava. Mas teve uma surpresa: deparou-se com Hilton, com quem já tivera
desavença no passado e que lhe era de hábito hostil. Teve outra surpresa: Hilton
recebeu-o de braços abertos.
Foi outro sinal de que estava num lugar diferente — e bom. Se um desafeto lhe
abria os braços e o saudava como amigo, alguma coisa nele se transformara - e para
melhor.
José Luiz bebeu o chá e ouviu do Mestre a revelação de que já o acompanhava
de outras encarnações. Sentiu-se bem na Luz da burracheira e decidiu, ali mesmo,
que voltaria outras vezes. E voltou — tantas que acabou se associando e unindo-se
a Hilton na produção do Estatuto e dos Boletins da Consciência.
3
120
L.
O Mensageiro de Deus
Com 15 dias, José Luiz foi convocado ao Corpo Instrutivo. Pouco adiante, foi
chamado a auxiliar na elaboração das leis.
- Eu já tinha sido secretário, tesoureiro, membro de diversas entidades e
diretorias, inclusive da Federação de Desportos de Guaporé. O Hilton era presidente
de sindicato. Nos unimos e, quando se constituiu a primeira diretoria, ele foi o
primeiro presidente e eu o primeiro secretário. Éramos os mais preparados para a
tarefa.
Hilton e José Luiz ponderaram ao Mestre Gabriel que era necessário haver um
Estatuto para a Associação União do Vegetal (era esse o nome original). Ele
autorizou. E o trabalho começou: um dia na casa de José Luiz, outro na de Hilton,
para que as respectivas esposas não imaginassem que estavam na boêmia, que
anteriormente frequentaram.
Consultaram documentos similares e os adaptaram aos objetivos da instituição.
Mestre Gabriel sempre na supervisão: trocava uma palavra, colocava outra, sugeria
abordagens. Mas deixava ambos trabalharem a memória e a criatividade.
O Estatuto, depois de um acontecimento que será contado no capítulo XXIII, seria
registrado em cartório como documento fundador. O Regimento Interno era —
continua sendo - lido em sessão, junto com os Boletins da Consciência. É ao som
dessa leitura que os discípulos aguardam a chegada da burracheira.
Outro que viria se somar à produção de documentos era o já citado Raimundo
Monteiro, professor, responsável pela elaboração de seis dos Boletins da
Consciência, lidos nas sessões de escala.

121
O Mensageiro de Deus

Capítulo XXI
Simplicidade e Integração
Os primeiros discípulos eram a síntese do ambiente social de Porto Velho:
seringueiros, agricultores, mecânicos, pequenos comerciantes, pedreiros,
biscateiros, contadores, funcionários públicos, professores primários. Gente simples.
O próprio Mestre Gabriel encaixava-se nesse perfil: migrante nordestino,
trabalhara entre o comércio e o serviço braçal dos seringais, com breve experiência
como técnico de enfermagem.
Foi com essas pessoas - cujo potencial soube reconhecer e valorizar, para além
das limitações culturais do meio - que criou, estabeleceu os fundamentos e pôs em
cena a sociedade religiosa União do Vegetal, dando-lhe o selo de universalidade.
Com eles, moldou a estrutura e escreveu as leis da UDV: Estatuto, Regimento
Interno e Boletins da Consciência, de vigência permanente, preservados mesmo
depois que a instituição adquiriu forte presença no meio urbano, agregando todas as
classes sociais, inclusive doutores formados em universida-
123
Mestre Gabriel
des de renome, no Brasil e no exterior, que hoje compartilham de sua direção.
O DNA institucional, estabelecido em Porto Velho, mantém-se o mesmo,
reconhecido em sua engenhosa simplicidade, prevendo expansão contínua da
sociedade, sem que se comprometam a qualidade e o formato original de seu
trabalho religioso.
Os núcleos reúnem, em média, de 100 a 150 pessoas. Quando ultrapassam esse
número, desdobram-se em novos núcleos, que, atingido o limite, desdobram-se
também em outros e serão, segundo o Regimento Interno, “tantos quantos se
fizerem necessários”.
Quando Mestre Gabriel faleceu, havia, além da Sede, em Porto Velho, apenas
um núcleo, em Manaus. Hoje, há 157 núcleos — nove no exterior: cinco nos Estados
Unidos, além de Inglaterra, Espanha, Portugal e Suíça, um em cada, e um grupo de
discípulos se organizando na Austrália.
Sob a direção de um Mestre Representante, de um Quadro de Mestres e de um
Corpo do Conselho, os núcleos formam uma grande rede, sinérgica, que se distribui
em regiões administrativas, sob a supervisão de um Mestre Central, que se reporta à
autoridade maior do Mestre Geral Representante, que comanda a instituição desde a
Sede Geral - inicialmente em Porto Velho e, desde 1982, em Brasília.
Os núcleos no exterior, nos mesmos moldes, integram a mesma rede, que, ao
longo do tempo, se ajustou ao processo de expansão, sem, porém, desviar-se de
sua concepção original.
A autoridade maior é o Conselho da Administração Geral, que, além de legislar,
elege a cada três anos o Mestre Geral Representante. Esse Conselho reúne os
Mestres Centrais das regiões administrativas e a Representação Geral, composta
124
u
O Mensageiro de Deus
pelo Mestre Geral Representante e os que o antecederam no cargo; seus auxiliares
imediatos, os Mestres Assistentes Gerais; e os membros do Conselho da
Recordação dos Ensinos do Mestre Gabriel (mestres fundadores do Centro).
A UDV não tem adeptos: tem sócios. Cada associado participa diretamente da
gestão de seu núcleo, podendo ascender aos graus hierárquicos e chegar por essa
via à direção geral da entidade. O critério de ascensão é o desenvolvimento espiritual
do discípulo, a assimilação da doutrina e ensinos, independentemente de títulos
acadêmicos ou posição social.
Nenhum cargo é vitalício e a renovação, pelo voto, obedece a uma periodicidade:
três anos para os Mestres Representantes de núcleos e para o Mestre Geral
Representante, que nomeia os centrais e os assistentes gerais.
Esse organograma se complementou ao longo do tempo, com a expansão da
UDV. Mestre Gabriel, no entanto, estabeleceu suas bases com os seus discípulos,
de modo a que se sentissem coautores da obra, em condições de melhor compre-
endê-la e explicá-la.
Em vez de entregá-la pronta, soube extraí-la da criatividade e inteligência de seus
auxiliares, tornando esse processo um estágio de aprendizado e evolução. Na
espiritualidade, ensinou, “não se entrega nada na bandeja; é preciso vencer as
dificuldades”.
125
O Mensageiro de Deus

Capítulo XXII
O arco, o uniforme e a música
Rituais e símbolos são componentes indissociáveis do trabalho religioso. Expressam
o que está além das palavras, em busca de estabelecer um ambiente que favoreça a
religação com o Divino. O ritual, na UDV, simples e despojado, se estabeleceu
gradualmente.
O arco, o uniforme e a música integram sua liturgia. Mestre Gabriel concebeu-os,
mas a execução coube aos discípulos.
O arco surgiu em 1966. O primeiro foi construído por José Luiz, usando cipó e
revestimento de pano, já com a colocação das estrelas. Mestre Gabriel mandou
inscrever as palavras “Estrela Divina Universal”. E solicitou posteriormente ao sócio
Antonio Cavalcante de Deus, conhecido por Gia, que o aprimorasse, construindo-o
com madeira, já que o original se desgastara.
Adiante, pediu a Raimundo Pereira da Paixão, que, com o auxílio de Pequenina,
o ornamentasse, mantendo o padrão original estabelecido por José Luiz. O arco tem
suas bases fincadas na cabeceira da mesa, de onde a sessão é dirigida,
contornando a figura do mestre dirigente.
127
Mestre Gabriel
A primeira ornamentação, feita por José Luiz, foi coberta de um pano verde, com
duas estrelas grandes: uma representando Salomão, outra o Mestre Gabriel;
Salomão entregando o Conhecimento a Mestre Gabriel, e as estrelas menores
representando os mestres que ele formou. E ali que aparece pela primeira vez a sigla
UDV, desde então usada para designar a instituição.
O arco, que representa a aliança de Deus com os homens, firmada com Noé,
após o Dilúvio, tornou-se parte indissociável do ritual religioso das sessões da União
do Vegetal. Antes, o dirigente da sessão ficava no meio da mesa, entre os discípulos.
Passou a colocar-se na cabeceira, de frente para a irmandade.
Depois, em 1967, veio o uniforme, por iniciativa do Mestre, que escolheu as cores
verde, amarelo, azul e branco para compô-lo: homens e mulheres usam camisa
verde; os homens, calça branca; as mulheres, calça amarelo ouro. Os mestres
representantes, centrais e Geral Representante usam camisa azul. Todos calçam
sapato branco. Inicialmente, apenas o uso da camisa do uniforme era obrigatório.
Depois do desencarnamento do Mestre, regulamentou-se o uso completo, com o
sapato branco.
As cores não foram escolhidas ao acaso, nem por razões estéticas: têm
significado espiritual, esclarecido nos ensinos instrutivos. O objetivo do uniforme é
estabelecer, no âmbito da instituição e de seus rituais, uma ordem, que expresse
uma hierarquia dissociada dos padrões socioeconômicos externos, sem influência de
outros fatores que não os espirituais.
Ali, desaparecem as classes sociais e prevalece o ordenamento litúrgico, o lugar
que cada qual, por sua dedicação e grau espiritual, ocupa na UDV.
128
O Mensageiro de Deus
Já a música, que se tornou elemento fundamental na própria doutrinação
espiritual, foi mencionada desde o início por Mestre Gabriel. Quando José Luiz
chegou, em 1965, já a encontrou no ritual, embora usada esporadicamente. Idem
Raimundo Monteiro.
Mestre Gabriel, inclusive, falara diversas vezes do poder transformador da
música. Certa vez, disse que, “se tivesse um violino, doutrinaria por música”.
Mas foi a partir 1967 que seu uso se sistematizou, adquirindo o formato atual,
ritualístico, nas sessões. Um adven- tício, residente em Manaus, Geraldo Carvalho,
depois de participar em Porto Velho de sua primeira sessão, foi para o hotel em que
estava hospedado.
No quarto, ouviu o som do piano que estava sendo tocado no saguão. A música o
levou a ter mirações e a sentir novamente a força da burracheira.
Ao chegar em Manaus, descreveu o que sentira a seu irmão Florêncio, que, feito
mestre em Porto Velho por Mestre Gabriel, se mudara para Manaus e dirigia o
núcleo de lá. Sugeriu, sem saber que isso esporadicamente já ocorria, que se
ouvisse música no Salão do Vegetal.
Florêncio gostou da ideia, comprou uma eletrola e fez a experiência numa
sessão. A seguir, escreveu para Mestre Gabriel contando o que tinha feito, os efeitos
positivos que observara, mandando-lhe junto uma eletrola e um disco com música
instrumental (Sinfonia das Aves Brasileiras, de John Dalgas Frisch), para que
pudesse avaliar objetivamente a ideia.
Mestre Gabriel, sem mencionar que a ideia não era nova - e era dele -, respondeu
positivamente.
A música, sobretudo as canções populares, selecionadas de acordo com a
mensagem que veiculam, passou a ser instrumento de doutrinação religiosa nas
sessões da UDV.
129
u
O Mensageiro de Deus

Capítulo XXIII
A Prisão do Mestre
No início de outubro de 1967, no final de uma Sessão de Escala, por volta das 23
horas, presentes 38 dos 198 discípulos que então acompanhavam o Mestre,
subitamente Pernambuco se levanta e diz, para espanto geral da irmandade:
- Alguém vai ser preso!
E o Mestre Gabriel emenda:
- E esse alguém sou eu.
Ninguém entendeu nada, mas, passados alguns minutos, adentrou o salão da
sessão o delegado de Trânsito, Anto- nio Nogueira da Silva (que substituía o
delegado titular, do Serviço de Investigações e Capturas - SIC), acompanhado de um
grupo de policiais armados. Foi logo perguntando:
- Quem é o responsável aqui?
E Mestre Gabriel:
- Aqui, todos são responsáveis. E o encarregado sou eu. O delegado olhou a
mesa, apontou para os copos e perguntou, no mesmo tom inquisitorial:
131
Mestre Gabriel
- E o que é isso?
E Mestre Gabriel:
- Copos.
- Mas o que beberam dentro?
- Vegetal.
- E o que é isso?
- É um chá misterioso.
- E o senhor tem autorização para dar esse chá?
- Tenho.
Dias antes, um discípulo da UDV, José Rodrigues Sobrinho — o mesmo que
Mestre Gabriel conhecera em 1944, no cais de Belém - fora preso, preparando o
Vegetal na cidade de Jaru. Mestre Gabriel fora soltá-lo e explicou ao delegado do
SIC o que fazia na UDV, pedindo autorização para continuar sem ser molestado.
O delegado, que tinha boas referências daquele trabalho, que pacificara gente
arruaceira, sentiu confiança nas suas palavras. Mas, temeroso em autorizá-lo,
saiu-se pela tangente:
- Não posso proibir, mas também não posso dar licença.
Diante disso, a conclusão era óbvia: se não estava proibido, estava liberado,
ainda que não licenciado formalmente. O delegado encontrara um modo tácito de
permitir que o trabalho prosseguisse, sem se comprometer. Mestre Gabriel, confiante
nessas palavras, exibiu ao delegado Nogueira, conhecido pelo apelido de Odete, o
Regimento Interno da UDV, ainda não registrado em cartório, e mencionou as
palavras do delegado titular. Mas o delegado de Trânsito estava inflexível:
- Isso aqui (o Regimento) não autoriza nada.
- Mas eu tenho a palavra do delegado.
- Então, o senhor vai ter de me acompanhar e explicar isso ao próprio
delegado.
Mestre Gabriel então ponderou:
132
O Mensageiro de Deus
c
c
- Vou, mas não agora. Eu tenho responsabilidade de dirigir a sessão;
tenho responsabilidade com estas pessoas. Se o senhor quiser esperar, espere, que
ninguém aqui vai fugir.
Falou num tom educado, mas determinado. O delegado observou o
comportamento pacífico dos discípulos, que em nenhum momento demonstraram
agressividade. Tinha levado policiais armados na expectativa de uma reação.
Decidiu então esperar. As sessões começavam às 20 horas e terminavam a zero
hora e 15 minutos (e continua sendo assim). Faltava, pois, uma hora.
Já na chegada, surpreendeu-se ao encontrar dois conhecidos, por quem tinha
grande consideração; o primo José Luiz de Oliveira e o amigo Manoel Emiliano de
Lima, seu colega na Maçonaria. Enquanto esperava, conversou com José Luiz fora
do templo.
- Muito me admira que você e o Emiliano, pessoas sérias, estejam aqui,
usando droga. Eu ia prender todo mundo, más, em consideração a vocês, vou levar
só ele.
- Mas esse chá não é droga. E uma coisa de Deus.
Não teve jeito. Odete ignorou os argumentos. Finda a
sessão, Mestre Gabriel foi levado no jipe da polícia até a delegacia. Os discípulos
foram atrás, seguindo-o.
Ao chegar à delegacia, constataram que o delegado que garantira a Mestre
Gabriel que não proibiría o uso do chá não estava presente. Estava de licença. E o
substituto, que era o próprio Odete, decidiu arbitrariamente colocá-lo no xadrez,
mesmo não dispondo de qualquer documento que atestasse que o chá Hóasca era
uma droga ilícita ou proibida.
Consumava, além dessa, outras ilegalidades: invasão domiciliar após as 23
horas, sem mandado judicial; prisão de um cidadão trabalhador sem culpa formada;
de quebra, interrompera um culto religioso. Nada menos.
c
133
Mestre Gabriel
Os discípulos, do lado de fora da delegacia, embora revoltados, comportavam-se
de maneira ordeira, insistindo em ver o Mestre. Odete mandou que os policiais os
afastassem, ameaçando usar a força. Eles se retiraram, determinados a voltar, na
manhã seguinte, com um mandado de soltura e abrir um processo contra o
delegado.
Não foi preciso. Ainda naquela madrugada, alguns discípulos fizeram contato
com um promotor, Estélio Mota, que, na manhã seguinte, após conversar com o
pessoal da delegacia, conseguiu libertar o Mestre, que passara a noite na cadeia.
Pela manhã, um discípulo seu, Natalício, que era policial, chegou à delegacia.
Quando foi fiscalizar as celas, espantou-se em ver ali o Mestre. Era o último lugar em
que esperava encontrá-lo, sabendo-o um homem de bem, que ensinava os
discípulos a sair da ilusão e dos abismos da vida. Tomou-se de profunda emoção e
chorou. O Mestre confortou-o, evocando o símbolo da União: Luz, Paz e Amor.
Libertado o Mestre, os discípulos, o acompanharam à sua residência. Lá, ainda
revoltados, decidiram se cotizar para abrir processo contra o delegado Nogueira.
Tinham razões de sobra para fazê-lo, ainda que ninguém avaliasse que ganho
efetivo aquilo traria.
Raimundo Monteiro lembra que, quando chegou, encontrou aquele ambiente de
agitação. Ao vê-lo, Mestre Gabriel disse-lhe:
- Professor Raimundo, estamos aqui fazendo uma vaquinha para
processar o delegado. O senhor vai contribuir?
Monteiro não hesitou: tirou do bolso cinco cruzeiros e entregou-os ao Mestre, que
então disse:
- Nós não vamos processar ninguém não: com esse dinheiro, vamos
registrar a União do Vegetal.
134
%
O Mensageiro de Deus
E foi assim que o Mestre se serviu de uma situação concreta - uma truculência
policial, que justificaria plenamente um processo para pôr em prática a doutrina que
pregava nas sessões: o melhor combate ao mal é com Luz, Paz e Amor, o Símbolo
da União.
Além do registro, outra decisão foi tomada: publicar num jornal de grande
circulação na cidade, o Alto Madeira, um texto que relatasse o que se passara. Era
um meio de, simultaneamente, mostrar ao público o trabalho benéfico da UDV e inibir
tentativas futuras de reproduzir aquelas arbitrariedades.
Mestre Gabriel ditou a Hilton as linhas gerais do texto, que se intitulou “Convicção
do Mestre” e foi publicado dias depois, a 6 de outubro daquele ano. O texto faz um
retrospecto da caminhada do Mestre, dos abismos da vida para o cumprimento da
missão — e, após relatar a prisão, expõe, de maneira sintética, alguns fundamentos
morais e espirituais da União do Vegetal. Diz a parte final do texto:
“O Mestre, posto em liberdade, retornou à sua residência, encontrando os
discípulos revoltados, procurando prejudicar o senhor Antonio Nogueira da Silva, por
meio judiciário, alegando invasão domiciliar após as 23 horas. Momento em que
entra a voz do Mestre:
- A União do Vegetal é para destruir o mal com os ensinos que recebemos do
Divino Mestre.
Pergunta o Mestre a seus discípulos: 'Como destruímos o
mal?’
Responderam: ‘Com Luz, Paz e Amor’.
‘Então’, diz o Mestre, ‘se nós ofendermos por qualquer parte, desobedeceremos o
Divino Mestre. O Caminho é este, prestem atenção os que quiserem me acompanhar
na missão. Podemos ser censurados por todos, mas não podemos censurar a
Ninguém; po
135
Mestre Gabriel
demos ter inimigos, mas não podemos ser inimigos de Ninguém; podemos ser
ofendidos por todos, mas não podemos ofender a Ninguém; podemos até ser
julgados por todos, mas não podemos julgar a Ninguém; podemos ser revoltados por
todos, mas não podemos revoltar, nem ser revoltados por Ninguém.
Dizem os discípulos ao Mestre: ‘Queremos a compreensão destas palavras’.
Responde o Mestre: ‘Fiquem com a memória presa, estudando, até chegar os
ensinos de Salomão, na próxima Sessão do Grau. Lembrem-se: o Símbolo da União
é Luz, Paz e Amor’. ” (...)
Nessa explanação, está condensada a doutrina da UDV, o que fez com que
Mestre Gabriel a incluísse entre os documentos lidos no início das Sessões de
Escala.
Ao optar pelo registro - e não pelo processo judicial Mestre Gabriel evitou
desdobramentos e atritos com a polícia e simultaneamente garantiu, nos termos da
lei, o exercício religioso da União, sinalizando aos discípulos o caminho adequado,
em qualquer tempo ou circunstância, para a superação de desconfianças das
autoridades. Olhou para frente, sem rancor ou mágoa.
Desde então, sempre que o uso religioso da Hoasca foi questionado — no Brasil
e no exterior -, a UDV optou por esclarecer, promovendo a realização de pesquisas
que atestassem o que o Mestre fizera constar, desde o início, no Estatuto da
instituição: “O chá Hoasca é comprovadamente inofensivo à saúde”. Nenhuma
pesquisa o desmentiu.
136
O Mensageiro de Deus
Capítulo XXIV
Polícia fecha a UDV; Justiça reabre
Em 1968, nova investida policial contra a UDV. Dessa vez, a ordem partiu de uma
autoridade maior, o Chefe de Polícia, Rodolfo Menezes Ruiz, cargo hoje equivalente
ao de Secretário de Segurança.
Em 22 de fevereiro, ele determinou, sem que nenhum acontecimento objetivo o
justificasse - e transgredindo a própria Constituição, que garantia o direito à liberdade
religiosa -, o fechamento da Associação Beneficente União do Vegetal (nome inicial
da instituição, posteriormente mudado para o definitivo de Centro Espírita
Beneficente União do Vegetal).
Coube a Raimundo Monteiro, que presidia a Associação, reagir. Na condição de
funcionário público, pôs em risco seu emprego acionando o Estado, o que, naquela
oportunidade, em plena ditadura militar, era proibido pelo Estatuto do Servidor
Público.
Antes de fazê-lo, com autorização do Mestre Gabriel, buscou, sem sucesso,
diálogo com o Chefe de Polícia, ao qual
Mestre Gabriel
foi encaminhado pelo próprio governador do Território de Rondônia, coronel João
Carlos Marques Henrique Neto.
Mesmo com esse aval, não conseguiu nem sequer ser ouvido pela autoridade
policial, que o recebeu com visível má vontade.
É ele quem conta:
- Fui, em companhia do Adamir, que integrava o Corpo do Conselho da UDV, ao
gabinete do Chefe de Polícia, que funcionava no andar térreo do Palácio do
Governo. Quando iniciei falar, fomos expulsos do gabinete. Diante disso, e na
condição de Presidente da Associação Beneficente União do Vegetal, constituí um
advogado, o doutor Jerônimo Garcia de Santana (que anos depois governaria o já
estado de Rondônia), e dei entrada em uma ação contra o governo militar, que durou
dois anos, mas em que fomos afinal vitoriosos.
Garantida pela Justiça, a UDV não foi mais molestada no período do Mestre
Gabriel. Mas, enquanto a sentença não foi pronunciada, o Mestre suspendeu as
sessões de adventícios.
138
O Mensageiro de Deus

Capítulo XXV
Velando enquanto dorme
Não foram poucas as vezes, no tempo do Mestre Gabriel, em que a UDV foi alvo da
estranheza por parte dos que não a conheciam. O uso do Vegetal nos rituais, visto
como “entorpecente”, e as sessões, que iam além da meia-noite, estimulavam a
maledicência, causando situações como as descritas na prisão do Mestre.
Outro contratempo levaria Mestre Gabriel a optar, pela segunda e derradeira vez,
por uma resposta pública. O bispo de Rondônia, dom João Batista Costa, em seus
sermões, afirmava que a UDV era “uma religião do Satanás” e o chá Hoasca uma
droga, que alucinava em massa as pessoas. Falava sem conhecimento de causa,
endossando o que lhe transmitiam.
Mestre Gabriel, dada a gravidade e improcedência das acusações e a autoridade
e influência de quem as veiculava, viu a necessidade de responder. Mas não
agrediu, nem polemizou. Optou por um documento, uma carta pública dirigida ao
bispo, intitulada “Velando enquanto dorme”, publicada em 16 de julho de 1971, no
jornal O Guaporé, de Porto Velho.
139
Mestre Gabriel
Nela, menciona algumas qualidades do trabalho espiritual da UDV, mostrando
que observa os ensinamentos de Jesus e cultua a Virgem Maria. Dá também ciência
da eficácia regeneradora das sessões, que em pouco tempo levavam pessoas
viciadas e de maus costumes a se equilibrar e se integrar socialmente.
O texto, redigido por José Luiz, expõe alguns fundamentos morais da UDV, em
contraste com as acusações que lhe fizera o bispo. Começa por mencionar a atitude
indevida dos que a criticam sem conhecê-la: “Enquanto a União do Vegetal dorme,
os inocentes, sem conhecer sua doutrina espiritual e religiosa, falam contra Ela.”
E ainda:
“A União do Vegetal pratica e ensina exatamente o amor a Deus, sobretudo,
extensivo a seus semelhantes. (...) Vive de portas abertas a todos os seus membros
e filiados, tem os braços estendidos para receber aqueles que tiverem o desejo de
conhecê-la. E formada por homens que buscam o Caminho da Consciência, que é o
Supremo Jesus. Luz, Paz e Amor. ”
O bispo seria depois visitado por Raimundo Carneiro Braga, um dos discípulos
mais próximos de Mestre Gabriel, que lhe explicaria com mais detalhes o trabalho
espiritual da UDV. Depois dessa conversa, o bispo não mais criticou a instituição.
140
onon
O Mensageiro de Deus

Capítulo XXVI
Mistérios do Vegetal
c
Giovanni Nunes da Silva, baiano de Jacobina, era garimpeiro e coletor da Fazenda
Pública em sua cidade natal. Certo dia, num bar, teve a pasta que trazia, com
diversos documentos e cheques que arrecadara para o órgão em que trabalhava,
roubada.
Sem encontrar alternativa e temendo ser preso, já que ninguém acreditava que
havia sido roubado, decidiu viajar para a Venezuela, onde residia uma filha. No
avião, que faria escala em Porto Velho, leu uma reportagem, intitulada “Na selva, um
místico vende um sonho”, publicada no jornal O Estado de S. Paulo (edição de
29.08.1968), um dos mais influentes do país.
O “místico” era Mestre Gabriel; o “sonho”, a União do Vegetal. O repórter Alberto
Prado assistira em Porto Velho a uma sessão da UDV, convocada especialmente
pelo Mestre para atendê-lo. No entanto, na reportagem, tratava com ceticismo o
Mestre, o rito e o conteúdo do que dissera. Mesmo assim, Giovanni interessou-se de
tal modo pelo que lera que decidiu mudar seu roteiro.
141
Mestre Gabriel
Desembarcou em Porto Velho, decidido a conhecer o Vegetal. Náo perdeu
tempo: no mesmo dia, procurou Mestre Gabriel, que prontamente o atendeu.
Recebeu-o como se já o esperasse. Disse aos discípulos que “hoje, ele vem dizer,
vem mostrar quem ele é”, o que gerou grande expectativa.
Nessa primeira sessão, porém, ele se limitou a dirigir algumas palavras à
irmandade, sem causar maior impressão. Mas, dias depois, Mestre Gabriel marcou
um preparo de Vegetal na olaria e convidou Giovanni. A certa altura da sessão, o
convidado pediu lápis, papel e licença a Mestre Gabriel para sair e ficar à beira de
um igarapé próximo.
Lá, sentou-se, recostou-se a uma palmeira, e começou a escrever um poema
intitulado “Os Mistérios do Vegetal ”. Escreveu alguns versos, voltou à olaria e os
mostrou ao Mestre, que lhe disse: “Ainda está faltando; pode esperar que vem”.
Giovanni não voltou ao igarapé. Sentou-se num canto do barracão da olaria,
concentrou-se e concluiu o texto, exibindo-o ao Mestre, que, depois de lhe
acrescentar a frase final na derradeira estrofe - “o Homem também é Sagrado” - o
aprovou. “Agora está pronto”, disse, e a seguir pediu a Raimundo Monteiro que o
datilografasse, incluindo-o entre os documentos lidos no início das Sessões de
Escala - mais precisamente, é o texto que hoje conclui a leitura dos documentos.
Nele, há uma síntese reveladora dos personagens que compõem o ambiente
espiritual da pré-diluviana História da Hoasca, origem do rito religioso do Vegetal.
Além de Hoasca, o poema fala de outros personagens envolvidos na estruturação
do trabalho religioso com o chá: Tiua- co (marechal da confiança do Rei Inca, em
cujo reinado tem início a história do Vegetal), Caiano (o primeiro a comungar o chá
Hoasca — e por isso mesmo chamado de “o primeiro hoas- queiro”) e Salomão, o
autor da União dos Mistérios do Vegetal.
142
O Mensageiro de Deus
Cada um deles tem um destaque na espiritualidade, revelado nos ensinos
instrutivos reservados da UDV. Mesmo sem ter tido acesso a esses ensinos,
Giovanni demonstrou conhecê- -los em alguma medida, já que deles fez a essência
de seu poema.
Cada estrofe aborda um desses personagens, com os versos formando um
acróstico (poema em que as primeiras letras de cada verso formam, em sentido
vertical, no final de cada estrofe, um ou mais nomes), revelando a essência divina
dos Mistérios do Vegetal.
Ei-lo:
MISTÉRIOS DO VEGETAL
CHACRONA
Caiano, Mestre dos Mestres Hóspede do Rei Salomão Assistente do Santo Rei
Caiano, que de Deus tem Guarnição Renovando esta Misteriosa Hoasca Ofertaste
do Vegetal a União No meio das nossas firmezas Amor, Paz no Coração.
MAR1RI
Mistérios aqui encontram-se Antes que termine o dia Retenha as sombras da noite
Iremos com alegria Relembrar antepassados Ispíritus que antes dormiam.
143
Mestre Gabriel
HOASCA Hoje já despertado Oh, Arquiteto Universal Amor, Paz, Divino Mestre,
Sustenta na União do Vegetal Coração que Deus nos deu Amor, Paz e Luz que já
floresceu.
TIUACO
Temos obras Divinas Infinitamente Sagradas U Poder Divino é penetrável A mão
humana é indesejável Corrupta é inveja, orgulho e ciúme O Homem também é
Sagrado.
Giovanni mudou-se depois para Manaus, onde frequentou algumas sessões da
UDV. Faleceu na Bahia, em 1977.
144
O Mensageiro de Deus
V
G

Capítulo XXVII
O chá Hoasca
Sacramento espiritual da UDV, o chá Hoasca tem uso imemorial na Amazônia. O
primeiro a prepará-lo, unindo a folha chacrona e o cipó mariri, foi Salomão, rei de
Israel (século IX a.C.), não se sabe exatamente em que local. Especula-se que tenha
sido na própria Amazônia, onde essas plantas são nativas.
Há indícios historiográficos de que Salomão, figura bíblica conhecida como “Rei
da Sabedoria” e cultuado também na Ma- çonaria, visitou diversas vezes um certo
“País de Ophir”, que seria a Amazônia. O primeiro a comungar a Hoasca foi seu
vassalo Caiano, conhecido na UDV como “o primeiro hoasqueiro”.
À parte esse questionamento geográfico, que a UDV considera de pouca
relevância do ponto de vista espiritual, sabe-se que o rito religioso do chá - a União
do Vegetal - foi ministrado por um tempo por Caiano, reverenciado como “Mestre dos
Mestres”.
Com seu desencarnamento, o rito do chá ficou esquecido e só seria restabelecido
mais de um milênio e meio depois,
145
Mestre Gabriel
na região onde hoje é o Peru, dando origem ao Império Inca, por intermédio de um
personagem de nome Iagora, mestre espiritual. Essa parte da história é
desconhecida da historiografia oficial e contada por Mestre Gabriel na História da
Hoasca, ouvida nas Sessões de Escala Anual da UDV.
Depois da morte de Iagora, o rito do chá Hoasca foi novamente esquecido,
embora seu uso mantido pelos descendentes dos incas e pelas tribos indígenas da
Amazônia.
O trabalho religioso de Salomão, Caiano e Iagora, porém, só seria restabelecido
por Mestre Gabriel, que trouxe de volta também o nome União do Vegetal. Por isso,
diz-se que a UDV, nesta etapa de sua história, foi recriada - e não criada — por
Mestre Gabriel.
Ao dizer repetidas vezes que estava em busca de “um tesouro” na floresta,
Mestre Gabriel mencionou estar ciente de sua missão, de restabelecer, em bases
definitivas, o rito da Hoasca, associado a uma doutrina religiosa, cuja fundamentação
exporemos adiante.
O chá é inofensivo à saúde física e mental, conforme o atestam diversas
pesquisas - inclusive a que consta do Anexo deste livro. Além de veículo de
concentração mental (provoca um estado alterado de consciência, que permite
ligação com o plano espiritual), produz limpeza orgânica, que ocasiona
eventualmente vômitos, resultando, porém, ao final, em bem-estar físico e mental,
desde que não associado a drogas e álcool.
Seu uso, nas sessões religiosas da UDV é de grande eficácia no esclarecimento
da realidade espiritual, trabalhando com o sentir e a memória das pessoas,
propiciando que gravem e compreendam os ensinos e as revelações que lhes são
transmitidos.
146
e;
O Mensageiro de Deus
Não basta a razão para perceber a realidade espiritual; o sentimento é essencial.
Unidos, intelecto e coração clareiam a consciência. O Vegetal promove essa
unidade.
Em termos neuroquímicos, a Hoasca afeta neurônios que utilizam serotonina,
mas também, em menor grau, no- radrenalina e dopamina. De que forma a
modificação desses sistemas neurotransmissores aumenta a ativação cerebral e a
imaginação é, segundo o cientista Sidarta Ribeiro, “uma ótima questão científica em
aberto”. E ainda, segundo ele:
- A interpretação do fenômeno depende do ponto de vista. Para os místicos em
busca da transcendência, a Hoasca abre as portas da percepção para espíritos e
mundos extra- corpóreos. Para os materialistas, ela permite acessar, animar e
navegar o vasto oceano do inconsciente, essa coleção absolutamente individual de
memórias adquiridas durante a vida e de todas as suas combinações possíveis.
Psiconauta ácido e cético ou sacerdote divinamente conectado, o fato é que o
bebedor do chá empreende uma travessia corajosa para dentro de si. Para ver além,
fecha os olhos... e vê.
Ensina-se na UDV que o Vegetal, dissociado da doutrina e dos ensinos, não
proporciona conhecimento espiritual. O chá é um veículo; a doutrina e os ensinos, o
roteiro. O Mestre é o Guia.
147

O Mensageiro de Deus

Capítulo XXVIII
Dons e Mistérios do Mestre
Mestre Gabriel, náo só na aparência, mas também na conduta cotidiana, não
ostentava superioridade. Era um caboclo, trabalhador braçal, e se comportava com
simplicidade e
discrição.
Os discípulos mais próximos o descrevem como um homem cordial e sincero,
que, na Luz da burracheira, pela palavra e doutrina, mostrava sua força espiritual.
Mas não apenas: também fora das sessões - e mesmo antes de criar a UDV -,
protagonizou situações em que demonstrou dons misteriosos, como o de se
apresentar em espírito a alguns discípulos e socorrê-los em situações delicadas.
O assim chamado transporte espiritual, fenômeno pelo qual o espírito se desloca
do corpo físico e se apresenta com a mesma aparência em outro lugar, é descrito na
literatura espírita e esotérica como um dom raro e misterioso, mas real.
Mestre Gabriel o exerceu algumas vezes, conforme alguns relatos a seguir. Não
foi o único prodígio que demons
149
Mestre Gabriel
trou, no curso de seu ministério espiritual, sempre com o propósito de auxiliar e
esclarecer seus discípulos.
Cada um deles guarda na memória um ou mais desses momentos singulares em
que — seja nas sessões, seja no convívio pessoal, seja antes de encontrá-lo na UDV
- constataram estar diante de alguém especial, dotado de dons misteriosos.
São testemunhos que, em comum, mostram coerência e unidade narrativa. E
ganham credibilidade na medida em que não oferecem aos que os relatam nenhum
ganho de qualquer outra ordem, que pudesse pôr sob suspeita o seu relato. Por que
inventariam histórias como essas, que poderíam expô-los ao descrédito e lhes
impingir a pecha de fanáticos?
Cada um dos aqui mencionados são pessoas simples e sinceras, chefes de
família, que não auferiram qualquer lucro material com a missão de levar adiante a
obra do Mestre. Continuaram a viver na mesma simplicidade de antes, cada qual no
seu modesto ofício, enfrentando as mesmas dificuldades materiais de antes, na luta
pela sobrevivência. Vamos às his
cidade pernambucana de Limoeiro do Norte, onde nasceu -, Pernambuco foi
caçar rolinha e se perdeu na mata. Viu adiante uma casa e foi pedir água e auxílio.
Era um leprosário e lhe negaram água, sob o argumento de não contaminá-lo.
Indicaram-lhe um riacho próximo.
Encontrou-o e viu que mais à frente havia uma plantação de cacau. Foi até lá e viu
um homem
tórias.

m 1941, quando tinha 18 anos — e morava na


V
150
O Mensageiro de Deus
sentado num galho de árvore. Aproximou-se e pediu auxílio. O desconhecido disse
apenas: “Siga- -me”. Ele o seguiu. A certa altura, avistou ao longe três rolos de
fumaça, indicando que estavam perto de casas com chaminés, pois era comum o
uso de fogão a lenha naquela região.
O desconhecido lhe disse: “Está vendo aquelas três fumacinhas? A do meio é sua
casa”. Dito isso, retirou-se. Pernambuco seguiu a pista e, de fato, chegou em casa.
Vinte e três anos depois, em 1964, quando pela primeira vez bebeu o Vegetal numa
sessão dirigida pelo Mestre Gabriel (já havia bebido antes com Chico Lourenço), no
seringal Sunta, reconheceu- -o como o desconhecido que o auxiliara a sair da mata.
Já o tinha encontrado diversas vezes no seringal, trabalhava inclusive com ele, mas
não se lembrava daquele dia distante, em Limoeiro do Norte. Apenas ali, na
burracheira, lembrou-se e o identificou. Concluída a sessão, aproximou-se para
abordar o assunto. O Mestre se antecipou:
- É bom quando a gente vê uma pessoa e reconhece.
Pernambuco não teve mais dúvidas: era ele mesmo. Mas como era possível, se
naquela época ele ainda morava em Coração de Maria, na Bahia? O enigma só seria
decifrado tempos depois, quando soube que outros discípulos viveram experiências
parecidas, em que o Mestre, fisicamente em outro

Mestre Gabriel
lugar, transportou-se em espírito, apresentando-se
aso semelhante se deu com João Ferreira de
Souza, o mestre Joanico. Ele era policial e, certo dia, em 1962, em serviço diante
de um bordel, teve um acesso de tosse.
Fumava muito e era comum ter aquele tipo de acesso, o que causava grande
preocupação a sua mulher, que lhe fazia inúteis apelos para que deixasse o vício do
cigarro.
Aquela crise de tosse, porém, foi especialmente intensa. Quando se recuperava, viu
um homem de roupa branca, usando um chapéu de massa, se aproximar e dirigir-se
a ele:
- Pare de fumar agora ou só terá três dias de vida. Joanico perguntou-lhe:
- Quem é você?
- Eu sou um espírita e, de onde estou, posso ver toda sua vida. Eu estou em toda
parte.
Falou-lhe ainda dos malefícios do cigarro, impressionando Joanico, que ali mesmo
decidiu que não voltaria a fumar. A conversa foi subitamente interrompida pelo ruído
de uma briga, que obrigou Joanico a retirar-se. Quando voltou, já não encontrou o
desconhecido. Mas guardou o seu conselho e não mais voltou a fumar, o que lhe
valeu os aplausos da esposa, Raimunda.
e agindo.

152
O Mensageiro de Deus
--------------------------------------------------------------------- \
Cinco anos depois, em 1967, Joanico foi levado a uma sessão de adventícios na
UDV. Ao chegar, foi apresentado a Mestre Gabriel, que estava em pé, diante de uma
cadeira, no salão onde se realizaria a sessão. Imediatamente o reconheceu: era o
homem que tinha lhe dito para deixar de fumar. Ao olhar para a cadeira, viu o chapéu
de massa que ele usara naquele dia.
O Mestre confirmou o reencontro e também que, naquela ocasião, estava
fisicamente bem longe, no seringal Sunta, na margem boliviana do rio Mamo.

José Luiz contraíra malária. Já perdera a conta das vezes em que a padecera, com
as consequências conhecidas: febre, mal estar, vômitos. Estava em casa, de cama,
sem saber o que fazer. Não há remédio para malária e os danos que ocasiona
podem ser letais, sobretudo para quem a contrai repetidas vezes. Era o caso.
José Luiz estava assustado, lamentando não ter meios de pedir auxílio a Mestre
Gabriel, que tinha ido à floresta buscar lenha e só voltaria no fim do dia. Eis, porém,
que, por volta das dez da manhã, o Mestre chega à sua casa, já ciente de sua
enfermidade.
E lhe dá a receita de um chá curativo. José Luiz chama sua mulher e pede que lhe
providencie o chá. Quando ela o traz, Mestre Gabriel manda
v ________________________________________ >
153
Mestre Gabriel
( --------------------------------------------------------------------- \
que o beba de uma vez. E, antes de se despedir, lhe diz: “Malária, nesse corpo, você
não terá mais”.
Bebido o chá, dormiu. Acordou, horas depois, já sem febre e disse à mulher: “O chá
do Mestre Gabriel me curou”. E a mulher: “Que chá do Mestre Gabriel?” E ele: “Você
não viu o Mestre Gabriel aqui, mandando fazer o chá?” Ela, porém, não vira, apesar
de ter estado diante dele, e chega a pensar que o marido tivera uma alucinação.
No final do dia, Mestre Gabriel chega de caminhão diante da casa de José Luiz e
pergunta: “Então, está melhor?” José Luiz, depois de constatar que o Mestre passara
o dia na floresta, não soube o que dizer.
E o Mestre, confirmando que estivera na floresta e, simultaneamente, o visitara,
brincou com sua incredulidade: “Parece Tomé...”. José Luiz não voltou a ter malária,
mas também jamais se lembrou da receita do chá — nem ele, nem sua mulher.

Bartolomeu era sargento do Exército. Disciplinado e leal, conquistou a confiança do
comandante da guarnição, a ponto de ter sido destacado para tomar conta do paiol
de munição. Simultaneamente, era discípulo da UDV e mais adiante chegaria ao
Quadro de Mestres. Um dia, informaram ao comandante que o sargento Bartolomeu
frequentava um lugar onde serviam “um chá entorpecente”. O comandante mandou
chamá-lo e questionou-o a respeito. Ele respon-
* _____________________________________________ X
154
O Mensageiro de Deus
(
O
G
G
O
* -------------------------------------------------------------------- v
deu que frequentava, sim, mas que o chá não era entorpecente. O comandante quis
conhecer. Ele disse que não havia problemas. Na quarta-feira, havería sessão para
novatos, na rua Abunã, 1.215. Bartolomeu deu ciência do caso a Mestre Gabriel, que
os esperou. No dia acertado, o comandante chegou com dois subcomandantes, num
jipe do Exército. Mestre Gabriel distribuiu o Vegetal. A certa altura, com duas horas
de sessão, sem sentir a força da burracheira, o comandante virou- -se para os dois
auxiliares e, sem pedir licença ao Mestre, disse:
- Vamos embora.
Levantaram-se os três e foram em direção ao jipe.
Um dos auxiliares ligou o carro, que não pegou. Insistiu algumas vezes e nada.
Constatou que a batería tinha arriado. Pior: o jipe estava atolado na lama e era
preciso mais gente para tirá-lo de lá. Viram, então, que teriam de esperar a
conclusão da sessão para pedir auxílio. Sem outro recurso, voltaram ao salão,
reocuparam seus lugares e esperaram pela conclusão dos trabalhos.
Fechada a sessão, foram pedir ao Mestre Gabriel que destacasse alguns homens
para auxiliá-los. O Mestre disse:
- Pode ir que o carro agora pega.
O comandante ponderou que já tinham tentado de tudo, que só com o auxílio de
mais pessoas seria possível desatolar o jipe e fazê-lo funcionar. O Mestre insistiu
que era só ligar que o carro fímcio-
V, ______________________________________ >
155
Mestre Gabriel
naria e sairia do atoleiro. Se não saísse, ele providenciaria o auxílio.
Os três então voltaram e procederam como o Mestre mandou. O carro pegou na
primeira e saiu sem dificuldades do atoleiro.

O mesmo Bartolomeu viveu outra situação singular, numa sessão. Pediu licença
para falar, mas, antes, quis colocar uma música. Dirigiu-se à mesa onde ficava a
eletrola portátil, colocou o disco, pôs a agulha magnética e nada de sair som. Fez
algumas tentativas, sem sucesso. E dirigiu-se ao Mestre:
- A eletrola não está funcionando.
E o Mestre:
- O senhor pediu licença para falar, não para colocar música.
E Bartolomeu:
- O senhor dá licença de colocar uma música?
E o Mestre:
- Pode colocar.
Bartolomeu repetiu então a operação que fizera momentos antes sem sucesso e o
disco tocou normalmente.
Roberto Souto diz que fez “muitos testes” antes de se convencer dos dons do
Mestre. Ele recorda um deles:
156
%
O Mensageiro de Deus
- Certa vez, levei à casa do Mestre um livro, um atlas geográfico. E o desafiei a
responder o que estava escrito no livro. Ele perguntou se eu queria que ele
respondesse o que estava escrito no livro ou se queria que falasse pela realidade. Eu
disse que queria das duas formas, mas primeiro queria que ele dissesse o que
estava escrito no livro. E ele começou a responder, pergunta por pergunta, tal como
estava no livro. Em determinado momento, resolvi modificar uma das perguntas. E
ele prontamente falou: “Isso aí não está no livro; está na sua cabeça”. E deu a
resposta exata.
Outro teste lembrado por Roberto:
- Uma vez, levei um volante da Loteria Esportiva para marcar os 13 jogos. Mestre
Gabriel foi me dando os resultados um a um, menos o último jogo. Disse que não ia
dar tudo na bandeja. Mas eu não acreditei e não joguei. Pois bem: na segunda-feira,
fui conferir e estava tudo absolutamente certo.

Outro dom que Mestre Gabriel demonstrou diversas vezes foi o de ler pensamentos.
Nas sessões, diversas vezes, o discípulo pensava alguma coisa e o Mestre
prontamente falava dentro daquele assunto.
Raimundo Braga, que naquela época tinha um táxi, frequentemente era chamado
pelo Mestre em pensamento. Jamais deixou de atendê-lo; chegava diante do Mestre
e perguntava: “Chamou?” E o
V,
Mestre Gabreil
f -------------------------------------------------------------------- \
atendia. Mais de um discípulo testemunhou esses chamados. Mestre Gabriel dizia:
“Vou chamar o Braga”. Concentrava-se e, em poucos minutos,
Braga chegava à sua casa.

Sidon conta que, certa vez, estava na floresta, com o Mestre e alguns discípulos,
numa trilha em busca de colher chacrona. Caminharam mais de meia hora, e nada.
Sidon pensou então, sem chegar a dizer nada: “Acho que não é por aqui, não; faz
tanto tempo que a gente anda nessa floresta e não encontra chacrona nenhuma”.
Ato contínuo, o Mestre, que ia na frente, responde:
- É por aqui, sim, Sidon, é por aqui mesmo; nós já estamos chegando.
Andaram mais uns dez minutos e chegaram ao chacronal. Então, o Mestre disse a
Sidon: “Eu não disse que era por aqui?”

O mesmo se deu com Cícero. Estava indo para uma sessão e pensou: “Faz tempo
que o Mestre Gabriel já não me dá a atenção que dava antes. Acho que ele não
gosta mais de mim”. Foi um pensamento que lhe ocorreu de passagem, ao qual não
deu maior atenção. A certa altura da sessão, o Mestre falou:
- Tem discípulo aqui que acha que eu não gosto mais dele. Eu vou explicar bem
direitinho. Quan- ______________________________
158
O Mensageiro de Deus
do eu vejo que o discípulo já está com o comportamento direito, eu não me preocupo
mais com ele; vou me preocupar com outro que náo está direito ainda, vou buscar os
outros que necessitam de cuidado.
Cícero não teve dúvidas de que o Mestre se dirigia a ele.
discípulo tinha, no curso da semana, alguma conduta indevida. Chegava na
sessão e o Mestre ia direto ao assunto: “Tem gente aqui que fez isso ou aquilo (e
dizia o malfeito) e pensa que eu não estou sabendo”.
José Luiz foi certa vez alvo de uma dessas doutrinações. Tinha ido a serviço à
cidade de Feijó, onde passou alguns dias. Lá, conheceu uma moça, filha do
delegado da cidade, e enamorou-se dela. Depois, sentiu, como discípulo da UDV e
chefe de família, uma crise de consciência, encerrou o namoro e voltou a Porto
Velho, sem contar a ninguém o que sucedera.
Na sessão, Mestre Gabriel falou:
- Se alguém vai para Feijó, deixa sua família em outra cidade e começa a namorar a
filha do delegado, o que está fazendo? Perambulando. Porque não é outra coisa: é
perambular mesmo.
José Luiz, que havia escrito um poema para a moça, com o nome de
“Perambulando” - e que

ituações semelhantes ocorriam quando algum


159
Mestre Gabriel
r
depois o refaria, transformando-o numa chamada lembra-se da vergonha que sentiu:
- Quando o Mestre encarava uma pessoa numa falha, era como se a despisse, por
dentro e por fora. A força penetrante do olhar dele fazia com que a gente se sentisse
nu.
Certa vez, querendo entender como o Mestre adivinhava os erros dos discípulos,
perguntou-lhe — e ele respondeu:
- E que, quando vocês decidem desobedecer, pensam logo em mim, no que eu
acharia daquilo. Aí fazem a ligação comigo na mesma hora. Chamou, eu atendo.
aimundo Braga conta que, certa vez, Mestre
Gabriel o levou a um terreiro de macumba. Antes, beberam Vegetal. O Mestre
algumas vezes fez esse tipo de incursão, acompanhado dos discípulos, para mostrar
o que havia de realidade e de ilusão naqueles rituais, dos quais já participara
ativamente.
Chegando diante do terreiro, encontraram a porta fechada. Braga conta que bateu
diversas vezes, sem sucesso. A certa altura, constatou que o Mestre Gabriel já não
estava ali. Procurou-o em volta e não o achou. Voltou a bater na porta, que
finalmente foi aberta.

160
O Mensageiro de Deus
O
o
o
o
o
o
o
---------------------------------------------------------------------
Quando entrou no salão, viu o Mestre lá dentro, já envolvido com as pessoas no
ritual. Como ele entrara, se aquela porta era o único acesso?

Ehá as curas. Manoel Nogueira presenciou, em Porto Velho, uma delas, que levou
três sessões consecutivas para se consumar:
- Chegou perante o Mestre um cidadão que tinha um fogo nas costas, que ardia. Ele
carregava aquele sofrimento há um bocado de tempo, e já tinha andado em terreiro
de macumba, umbanda, quimbanda, em busca de socorro. E não adiantou. Ouviu
falar de Mestre Gabriel e do chá. E foi pra sessão.
- Quando a burracheira estava bem forte, ele começou a falar, falar, falar, ficou
desorientado e caiu no chão. Aí, Mestre Gabriel fez uma chamada que ninguém
conhecia e, quando terminou, o homem se levantou e se sentou no seu lugar.
- Na sessão seguinte, ele voltou. Bebeu o Vegetal e, quando a burracheira cresceu,
ele de novo ficou em pé e começou a falar e caiu de novo no chão. Mestre Gabriel
fez a mesma chamada.
- Quando terminou a chamada, ele se levantou e sentou no seu lugar de novo. Aí,
Mestre Gabriel marcou uma sessão de dia, na olaria. Esse senhor foi à sessão,
amarrou a rede, bebeu o Vegetal. Aí, em determinado momento, começou a tremer
dentro da rede. Tremia tanto que a rede tremia
161
Mestre Gabriel
também. Aí, ele disse assim: “Mestre, que frio é esse, Mestre?”. Mestre Gabriel
disse: “Isso é uma
pra apagar o fogo”. Quando terminou a sessão, ele não estava mais sentindo
quentura nenhuma. Ficou bom mesmo, sadio. E foi embora, pra terra dele, que ele
tinha vindo de outra cidade.
ntre os casos de cura que mais impressiona
ram os discípulos, está o de um rapaz que caiu de um prédio, em Porto Velho,
não se sabe exatamente de que andar. O que se sabe é que estava internado, com
forte hemorragia, desenganado pelos médicos.
José Luiz presenciou quando o pai do rapaz, Avelino Santana, apelidado de Baiano,
em desespero, foi à casa de Mestre Gabriel pedir socorro. Contou-lhe o que se
passara, implorou por auxílio, e ouviu do Mestre:
- Você tem fé em Deus?
Ele respondeu, um pouco hesitante:
- Tenho...
O Mestre então lhe disse:
- Você não tem fé em Deus, Baiano. Mas tenha fé em mim que eu tenho fé em Deus.
Díto isso, saiu em direção ao terreiro na frente da casa, virou-se em direção ao sol e
nele fixou o olhar por alguns minutos, findos os quais, disse:
pedra de gelo que eu coloquei nas suas costas,

162
O Mensageiro de Deus
r
- Baiano, vá cuidar do seu filho, que dessa ele não morre.
Baiano saiu descrente, mostrando que não tinha fé no Mestre. Foi para o hospital e,
diante dos médicos, que naquele momento confrontavam radiografias, ouviu de um
deles:
- Meu amigo, se existe milagre, esse é um. Não tem medicina que possa explicar o
que aconteceu. A hemorragia estancou - e, se estancou, pode haver cura.
O rapaz, de fato, recuperou-se e disse ter tido, durante o coma, um contato espiritual
com Mestre Gabriel, que lhe disse alguma coisa que ele jamais revelou a ninguém -
nem ao pai.
- Eu vou mostrar a vocês que nós podemos beber o Vegetal sem luz material.
Reuniu então alguns mestres no barracão anexo de sua casa, onde realizava as
sessões, mandou apagar
- Ficou tudo tão claro que não havia nem sombra. O chão clarinho, clarinho; não
tinha mesa, não tinha banco para fazer sombra. E Mestre Gabriel
mudava de cor: era azul, verde, a coisa mais bonita do mundo. Olhava pra ele e via
uma coroa toda de luz, cada raio daquela coroa era de cor diferente.


erta vez, à noite, Mestre Gabriel disse:
a vela e serviu o Vegetal. É Cícero quem recorda:
disse assim: “Vejam a mudança de luz”. E aí a luz

163
Mestre Gabriel
Raimundo Monteiro lembra de uma sessão em que olhou para o Mestre Gabriel e viu
outro personagem da espiritualidade em seu lugar. Não diz quem era. Mas lembra-se
das palavras que o Mestre então disse, enchendo de mistério o salão: - Quando eu
estiver falando, prestem atenção de onde eu estou falando e o “Eu” que está falando.
Em outra sessão, o Mestre disse:
- Eu vejo um vaso cheio de sangue. Nenhum dos senhores pode chegar aqui e
apontar: este é o meu, este é o meu, porque o sangue derramado na face da Terra,
todo ele, é meu.
164
O Mensageiro de Deus
Capítulo XXIX
A Palavra do Mestre
Para além das barreiras que o ser humano se impõe - sociais, raciais, nacionais,
culturais e religiosas -, a UDV sustenta um princípio: a humanidade é uma só, filha de
um mesmo Pai Celestial; compartilha, esteja onde estiver, a missão de evoluir
espiritualmente para, cada qual a seu tempo, um dia chegar a Deus.
Nessa trajetória, independentemente de condições materiais e títulos
acadêmicos, enfrenta os mesmos desafios, vive as mesmas perplexidades, faz as
mesmas perguntas, para as quais só encontrará respostas no Caminho da
Espiritualidade.
Com esse objetivo, os Mensageiros de Deus vêm de tempos em tempos à Terra,
graduam o conhecimento espiritual existente, reavivam fundamentos doutrinários por
meio de novas revelações e eventualmente - é o caso do Mestre Gabriel - criam uma
religião, que deixam sob a responsabilidade dos dirigentes que formam.
Estes, pela força da mensagem revelada, multiplicam o rebanho e carregam nos
ombros a responsabilidade de espelhá-
165
Mestre Gabriel
-Ia na sua prática de vida. Nem sempre, porém, isso acontece, o que faz com que
caiam em descrédito e enfraqueçam a obra que devem consolidar. Mestre Gabriel
explicava aos discípulos:
-A União do Vegetal é a Realeza Divina, a Realidade. Mas quem escuta isso
procura a Realidade em cima de quem prega. Sabemos como é o caminho que
Jesus nos ensinou. E por que eu sei explicar e não sei praticar? Quem sabe explicar
tem que saber praticar. Por isso, por não ver a Realidade na prática do pregador, o
povo foi saindo das religiões.
Esse foi sempre um ponto recorrente nas doutrinações do Mestre: prática fiel e
constância nos deveres; coerência entre o que se diz e o que se faz - sobretudo por
parte dos dirigentes religiosos:
- O Caminho de Deus é limpo. Quem mancha o Caminho de Deus já está em
outro caminho.
Os desvios são, a princípio, sutis, imperceptíveis, mas, prosseguindo,
acumulam-se e, sem que a pessoa se dê conta, a empurram para bem distante.
Ensina o Mestre:
- Começa por uma coisinha sem importância, e entra outra sem importância, e
vai jogando o Caminho Reto para o lado. E vão entrando as coisinhas sem
importância. Quando vai se ver, está tudo para o outro lado. A Retidão só se faz
dizer, mas não se reconhece.
Para evitar tal situação, o Mestre sugere um constante exame de consciência, um
exercício permanente de humildade:
- Temos que ter cuidado e jamais pensar que estamos certos. Temos sempre
que ter a desconfiança: “Meu Deus, isso estará certo?”
E adverte:
166
O Mensageiro de Deus
c
- Só em a pessoa dizer que não encontra erro em cima de si já é um grande
erro. Porque eu procuro um meio de não errar; faço todo jeito pra não errar e, foi não
foi, vez em quando estou encontrando erro em cima de mim, por palavras.
Mais uma vez, fala sobre o papel das religiões nesse processo:
- As religiões existem para ensinar o Caminho da Retidão. E por que muitas se
desviaram ? Pela falta de moral; pelas “coisi- nhas sem importância". Pela proteção.
A proteção, ensinou o Mestre, traz a falsidade. Por isso, mais de uma vez, avisou
que “Deus não protege ninguém”. A Guarnição Divina é uma sintonia espiritual, que
se estabelece pela prática do bem. O mero discurso religioso, por mais coerente e
consistente, não tem valor sem a prática, nem leva à santidade. E pela prática fiel do
bem que se dá a evolução. E essa prática não deve esperar retorno imediato, nem
ter como meta provocar a admiração das pessoas:
- O bem é o que a gente faz e não sabe. Quem sabe é quem recebe. Eu vivo
fazendo o bem, mas quem recebe o bem feito por mim é quem sabe. Se eu souber
que fiz o bem é sujeito eu me exaltar. E só posso me exaltar pela humildade. Não
temos o direito de ver a quem fazemos o bem. Quem recebe é quem sabe. O mal
também. Procure fazer sempre o bem, ainda que venha a ser recebido de outra
forma.
O que é o certo e o que é o errado? Essa pergunta tem sido feita, ao longo da
história humana, por pensadores, escritores, filósofos e teólogos. Só que, em vez de
se inspirar nas leis divinas, alguns dirigentes religiosos estão mais empenhados em
apontar o erro alheio. A propósito, disse o Mestre:
- O padre diz que está certo e o pastor está errado. O pastor diz que está certo
e o padre está errado. O padre diz que o ma- cumbeiro está errado e ele está certo.
O macumbeiro diz que está
167
Mestre Gabriel
certo e o padre está errado. E eu digo assim: “Meu Deus, serei eu também um dos
enganados, que não sei se estou certo?”.
E ainda:
- A pessoa pode estar errada pensando que está certa. Tá todo mundo certo:
certo no que quer; certo no erro. Eu quero estar certo para mim, perante Deus.
Esses desvios sistemáticos de comportamento levam a um delito espiritual
gravíssimo: abusar do Poder Divino. É tão sério que o Mestre diz que quem o pratica
não tem a consciência do que faz:
- E muito perigoso (abusar do Poder Divino). Quem o faz não o faz consciente;
não sabe o que é; nem sabe que existe. Se tiver consciência e abusar, se liquida na
mesma hora. Por isso, não faz. O que a gente conhece perfeitamente já está
defendido. Quando se conhecem as coisas ruins, nem épreciso pedir que Deus nos
defenda delas, pois, conhecendo, já se está defendido delas.
Somente com o conhecimento do que é o Espírito, do ambiente dual em que se
dá sua evolução, nas sucessivas encarnações, é possível “sair do atrapalho”. E é
esse esclarecimento que o Mestre transmitiu nos dez anos de sua missão na Terra.
“Só através da ordem e da doutrinação reta, que receberemos eternamente
dentro da União do Vegetal, é que chegaremos à Cientificação”, diz o Boletim da
Consciência Recomendando o Fiel Cumprimento da Lei. Com esse objetivo, o
Mestre organizou a UDV.
168
oo
C
O Mensageiro de Deus
Capítulo XXX
Doutrina e Fundamentos
c
Antes de mais nada, é preciso dizer que os Mensageiros de Deus — e Mestre
Gabriel não é exceção - não se preocupam em rotular a Revelação que trazem.
Simplesmente a revelam e lhe dão o significado e a dimensão que têm para a
humanidade.
A historiografia, ciência humana, é que se encarrega de circunscrever conteúdos
a rótulos. Mestre Gabriel não disse que a UDV é cristã-reencarnacionista. Nós, com
base numa analogia racionalista, é que o dizemos, para nossa melhor compreensão
e busca de contextualização.
Ele simplesmente mencionou personagens - e respectivas obras — relacionados
ao que trazia. Falou de Adão, Noé, Jó, Salomão (“Rei da Ciência”), João Batista,
Jesus (o “Divino Mestre”), Maria (“Senhora Mãe Santíssima”), São Cosmo e São
Damião, Santa Luzia, São Benedito, Iansã, Xangô, Janaína, Hoasca, Tiuaco,
Caiano, Iagora, entre outros. São personagens que, em sua maioria, a teologia,
ciência também humana, não teria como articular: uns porque simplesmente
169
Mestre Gabriel
desconhece; outros porque integram tradições religiosas distintas.
Na espiritualidade, porém, não há essas barreiras. Todos integram, dentro de um
corpo hierárquico, o mesmo âmbito divino, tendo cada qual cumprido, a seu tempo,
missão junto aos homens.
Dizemos que a UDV é uma religião de fundamentação cristã-reencarnacionista
porque afirma a divindade de Jesus e a reencarnação dos espíritos em busca da
santidade.
É um meio de situá-la perante a história espiritual da humanidade, a partir de
seus códigos e referências. Dentro disso, a UDV não apenas reconhece a história de
Jesus, seus milagres e palavra, registrados nas Escrituras, mas afirma que, por meio
da Luz que se apresenta na burracheira, é possível senti-Lo como Realidade. E a
religião do sentir.
Percebe-se a Realidade, sem desconsiderar a razão, pelo sentimento, aguçado
pelo efeito da Força Estranha, que permite enxergar com os olhos da consciência e
gravar o que se aprende na memória.
Jesus é o Messias e trouxe à humanidade a força da Salvação. Confirmou os
profetas que o antecederam — e o fez com atos (os milagres) e com palavras. Sua
pregação graduou a compreensão da humanidade, trazendo a força do perdão e a
justiça com amor, num tempo em que prevalecia o critério da Lei de Talião, do olho
por olho, dente por dente.
Sendo cristã, a UDV incorpora os fundamentos do judaísmo, absorvidos pelo
cristianismo. Quando Jesus veio à Terra, os fundamentos da lei e da doutrina já
estavam postos pelos profetas.
Jesus confirmou os Dez Mandamentos, recebidos por Moisés para eterna
vigência, e os resumiu em um só: “Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo
como a si mesmo”.
170
O Mensageiro de Deus
c
Mestre Gabriel deu destaque a esse mandamento, acrescentando: “Quem amar
ao próximo como a si mesmo será merecedor de receber o símbolo da União: Luz,
Paz e Amor”.
A UDV é uma religião espírita porque ensina o que é o espírito. O ser humano
não é um corpo que tem um espírito, mas um espírito que tem um corpo. O corpo é
provisório, o espírito é permanente, imortal. No corpo cabe um só espírito. Não há,
pois, incorporações de outros espíritos, como se ensina em algumas práticas
espiritualistas. Trabalha-se com a memória. Alto Espiritismo.
A UDV é reencarnacionista porque ensina que o processo evolutivo se dá por
sucessivas vindas do espírito à Terra, até que se purifique. Só encarnado evolui,
desenvolve suas potencialidades - morais, intelectuais e espirituais — e obtém
gradualmente o conhecimento da Realidade. A santidade, se ainda é privilégio de
poucos, é, porém, o destino de todos.
É o conhecimento espiritual que liberta; a fé é a mola propulsora, que a ele
conduz. Conhece-se Deus na Terra e é para isso que aqui estamos. A religião é o
veículo, que mostra o Caminho da Retidão, com seus ensinos e revelações. Nem
tudo o ser humano é capaz de perceber da Realidade. Daí a importância dos
Mensageiros, com as revelações e as correções de rumo que trazem.
E é na sequência do cristianismo que se coloca o trabalho da UDV. Jesus
mostrou o Caminho da Salvação; a UDV auxilia a nele caminhar, para que o
discípulo não se perca em desvios e veredas. É o varejo da Salvação. Se a queda
ocorrer, há como se reerguer e continuar. Ninguém, por pior que tenham sido os
seus atos, está inteiramente perdido, a menos que queira. Há sempre outra chance.
A UDV ensina que o espírito traz em si a dualidade, a presença das duas Forças
espirituais do Universo, a negati
171
Mestre Gabriel
va (ou inferior) e a Positiva (Superior). O processo evolutivo consiste em superar
essa dualidade para chegar à Unidade - a União com a Força Superior, Deus, a
Pureza. Só por essa via se chega à Unidade - à Santidade, razão de ser da presença
do espírito na Terra, ainda que leve muitas encarnações para percebê-lo.
Não há Unificação pela força inferior - conhecida por Satanás -, adversária desse
processo e que exerce obstinada influência para impedi-lo. Investe no poder dos
sentidos, dificultando a sintonia com a energia fina da Divindade.
Cada ato ou palavra emitem freqüência energética, estabelecendo sintonias,
negativas ou positivas, com uma das duas Forças, que são de natureza diversa: não
se misturam, nem se confundem: “Pelo certo não se chega ao errado e pelo errado
não se chega ao certo”, ensina Mestre Gabriel.
É mais fácil obedecer aos instintos, que dão pronta resposta aos estímulos, que
desenvolver as virtudes, que exigem dedicação, sacrifício e renúncia: autodomínio,
que leva ao au- toconhecimento.
A presença do Mal como dado integrante da realidade é um dos ensinos
fundamentais da UDV. Dentro da dualidade, foi concedido ao ser humano, desde a
origem, o livre arbítrio, a liberdade de escolher a qual das Forças servir. Não é
possível servir simultaneamente a ambas; quando se atende a uma, desatende-se à
outra. As duas influem sobre ele - e as opções que faz, no exercício dessa liberdade,
estabelecem o seu merecimento perante a Divindade.
Colhe-se o que se planta, e isso explica a diversidade da condição humana; o
plantio é livre, a colheita obrigatória. Essa, em síntese, é a Justiça Divina, que julga a
todos pelos seus feitos, dando a cada qual o que lhe é devido. “Deus não
172
O Mensageiro de Deus
c
o
protege ninguém”, ensina o Mestre. “Cada qual faça o que é certo para receber o que
é seu.”
Livre arbítrio não é um direito, mas uma condição. Quando a escolha é negativa,
transgride-se o direito — e responde-se por isso. Quanto mais o espírito evolui, nas
sucessivas encarnações, mais se conscientiza da Presença Divina e percebe a
necessidade de segui-La, para seu próprio bem.
A história humana, quer vista em seu conjunto, quer em suas particularidades,
expõe a presença e a ação antagônicas de ambas as Forças, os efeitos da influência
de cada qual. A origem do Mal é revelada num dos ensinos mais reservados da UDV,
a História da Criação. E uma história distinta da registrada na Bíblia e em outros
tratados teológicos, e constitui uma das revelações mais importantes trazidas por
Mestre Gabriel.
O Mal está presente desde a origem, mas a essência humana é Divina. Por isso,
a Unificação só se dá pela Força Positiva. Por mais monstruosa que seja a conduta
de uma pessoa, há nela uma réstia luminosa. O espírito, ao longo de suas
encarnações, limpa-se gradualmente da presença negativa e aumenta sua sintonia
com a Luz. Por isso se diz de um espírito evoluído que é um espírito de Luz: um
espírito Santo — São, curado do desconhecimento (a doença do espírito),
consciente da Realidade.
À medida que se firma no Caminho, reerguendo-se das eventuais fraquezas,
recebe os frutos benéficos da evolução, equilibrando-se, adquirindo harmonia interna
e compreensão cada vez mais clara da realidade. Paz.
Há ensinos complementares que detalham como essas influências se exercem e
como se faz para se defender da presença maléfica: basicamente, a observância às
leis divinas — os Dez Mandamentos de Moisés, o mandamento-síntese de Jesus
173
Mestre Gabriel
e a chave da evolução ensinada por Mestre Gabriel: firmeza no pensamento, limpeza
no coração. Os ensinos da UDV não estão escritos, nem se transmitem fora do
âmbito das sessões religiosas. Quem quiser conhecê-los terá de frequentá-las.
Esses os fundamentos básicos, esclarecidos gradualmente nas sessões de
escala e instrutiva. Incluem revelações que, como já foi dito, vão além do judaísmo e
cristianismo, mas não os exclui: abrange-os, dando seguimento à missão divina de
ampliar o conhecimento humano na Terra.
Não há dogmas. Toda a doutrina está aberta ao exame e à compreensão do
discípulo - e é isso o que se faz nas sessões: o estudo da espiritualidade. Mestre
Gabriel adverte que “não é para aceitar o que digo, mas para examinar e ver que
estou certo”. E “aquele que achar que o Mestre está errado não deve acompanhá-lo”.
Só se deve seguir na União, diz o Mestre, “de livre e espontânea vontade”.
O idioma em que os ensinos mais reservados são transmitidos é o português.
Isso porque, segundo o Mestre, é o que mais “mistérios de palavras” oferece à
compreensão da espiritualidade. Isso faz com que, nos países em que a UDV está
presente, os discípulos do Corpo Instrutivo tenham de conhecer o português, já que
não há tradução desses ensinos. A Sessão de Escala é transmitida no idioma local,
mas a Instrutiva somente em português.
174
O Mensageiro de Deus

Capítulo XXXI
O
o
o
o
o()
o
o
o
Sincretismo x Revelação
Teólogos, acadêmicos e cientistas sociais, quando diante de uma nova religião — é
o caso da UDV -, buscam, dentro da tendência humana de rotular e contextualizar,
analogias com credos tradicionais, para definir seus fundamentos.
Quando as encontram, concluem, em geral, que se trata de mero sincretismo,
ajuntamento eclético de princípios colhidos aqui e ali, num arranjo utilitário, quando
não oportunista.
Nesses termos, não teriam relevância espiritual. Seriam frutos de uma conjuntura
sociocultural, frequentemente primitiva, que imporia essa diversidade. E bem
verdade que muitos fundadores de religiões, desprovidos da chama profética, assim
procedem.
Nãò é o caso de Mestre Gabriel, cuja obra religiosa, ainda desconhecida em sua
unidade, consistência e universalidade, está longe de ser, como alguns estudos
acadêmicos sugerem, um sincretismo da doutrina judaico-cristã, associada a ritos
panteísticos e afro-espíritas.
175
Mestre Gabriel
Além da originalidade ritualística - com suas Chamadas, a utilização de música
como instrumento de doutrinação e o trabalho com a burracheira sua doutrina
estabelece distinções consideráveis na abordagem e interpretação de fundamentos
comuns ao judaísmo e ao cristianismo. A UDV não utiliza nenhum livro em seu
trabalho. Seus ensinos são transmitidos oralmente nas sessões.
Nem mesmo a Bíblia, que fundamenta aquelas duas religiões, é utilizada, embora
respeitada por Mestre Gabriel como “um livro sagrado”, ainda que em parte
distorcido pela ação da “mão humana”, em sucessivas traduções e reedições ao
longo dos séculos.
O Mestre afirmou, no entanto, que, “embora a humanidade ainda precise da
Bíblia”, a União do Vegetal a transcende - aí entendido que o que transcende, como
já foi dito, não exclui: abrange e contém. Por essa razão, contou algumas histórias
bíblicas, dando esclarecimentos e pormenores que nelas originalmente não estão.
Contou, entre outras, a História do Dilúvio, de Noé, de Sansão, da Torre de Babel, de
João Batista, de Maria e de Jesus.
O dado fundamental, de que não tratam as ciências sociais, é a Revelação. Os
Mensageiros, quando vêm à Terra, dão continuidade a um trabalho ancestral de
revelar aspectos da Realidade Espiritual. Não trazem toda a Verdade, nem a
reinventam.
Confirmam e acrescentam sempre algo à palavra dos que o precederam; e
corrigem eventuais distorções.
Servem-se da verdade já revelada, que pode estar em diversos cultos, de
maneira fragmentária; dão-lhe unidade e acrescentam-lhe novas revelações. E o
caso da UDV. Sua fundamentação monoteísta está em sintonia com o judaísmo e o
cristianismo, mas vai além.
176
O Mensageiro de Deus
Restabelece, no âmbito do cristianismo, o princípio da reencarnação, dando-lhe
interpretação clara e precisa, e como novidade revela a presença divina em
momento desconhecido da história humana, na já mencionada História da Hoasca,
personagem da espiritualidade que, milhares de anos antes do Dilúvio, deu origem
ao chá que leva seu nome. E é essa história, contada em sua íntegra apenas nas
Sessões de Escala anual da UDV, que revela a longa trajetória desse trabalho
espiritual, restaurado desta vez em caráter definitivo, como afirmou o Mestre Gabriel.
177

O Mensageiro de Deus

Capítulo XXXII
O Mestre é hospitalizado
Em 5 de novembro de 1970, com a saúde fragilizada em função da vida árdua que
levara desde os tempos dos seringais, Mestre Gabriel vai para o Ceará, em busca de
tratamento médico.
Estava com os pulmões debilitados e não havia recursos para tratar-se em Porto
Velho.
Francisco Adamir de Lima, que integrava o Corpo do Conselho da UDV, tinha
família no Ceará e dispôs-se a acompanhá-lo. A viagem teve uma escala em
Manaus, onde se encontrou com alguns de seus discípulos locais. Mas em seguida
foi para Fortaleza, aonde já chegou passando mal. Adamir conta:
- Levei-o ao pronto-socorro. O médico passou-lhe apenas um sedàtivo e disse
que não podia fazer mais nada, que ele tinha de fazer exames, que o caso era
demorado, não podia resolver na hora. No dia seguinte, fomos ao INPS (Previdência
Social) e marcamos a consulta. No outro dia, começaram os exames. Mandaram
fazer uns óculos. Fizemos. Fui ao INPS
179
Mestre Gabriel
e constatei que os outros exames estavam marcados para dali a 15 dias. Na situação
em que ele estava, não podia esperar tanto tempo.
Sem ter a quem apelar, Adamir disse à moça do guichê: “Tá vendo aquele senhor
sentado naquele banco? O nome dele é José Gabriel da Costa, conhecido na vida
espiritual por Mestre Gabriel. Quero lhe pedir por amor a Deus que encontre um
recurso para ele se recuperar aqui; é um ser iluminado”.
Foram palavras ditas dentro de um sentimento de profunda aflição, sem atinar em
como seriam recebidas. Mas, para surpresa de Adamir, a atendente era espírita,
ficou impressionada e tomou providência imediata:
- Eu senti que ela tomou um choque. E escreveu um bilhete para uma amiga que
trabalhava no Hospital de Mece- jana. Pediu que arranjasse uma vaga para aquele
senhor, que não deixasse de fazê-lo, que seria “recompensada um dia no Reino da
Glória”.
Em Mecejana, a moça, que também era espírita, leu a carta e não perdeu tempo:
arranjou uma vaga para o Mestre e prometeu-lhe tratamento especial. Adamir então
despediu-se e voltou para Porto Velho, tranquilo com o encaminhamento que
obtivera.
Mestre Gabriel permaneceu em tratamento por quatro meses. Teve alta em
março de 1971. No período em que lá esteve, manteve constante contato com os
discípulos por carta, administrando a União à distância. Escrevia também com
frequência a Pequenina, com quem tivera mais três filhos desde a volta definitiva dos
seringais, totalizando onze filhos: Carmi- randa (1965), Vicente (1967) e Benvino
(1969). Desses, apenas Benvino sobreviveu. Os dois outros morreram dias depois
do parto. O Mestre, apesar dessas perdas, jamais se queixou.
180

O Mensageiro de Deus
Tinha a dimensão da imortalidade do espírito e dos embates que enfrenta na
sequência das encarnações.
O tom das cartas, no período de convalescença, alterna entre o bom humor e o
zelo na administração da UDV.
Numa carta a Raimundo Paixão, disse que estava sendo muito bem tratado no
hospital e que já o chamavam de “São Gabriel”. Em outra, a Adamir, bem-humorado,
dizia que “agora, deixei de ser espírita e sô papa”, explicando o trocadilho: “meio dia
sopa e à tarde papa; é só o que estou comendo, por isso sopapa .
Recebia também correspondência dos discípulos. Um deles, Antonio Cavalcante
de Deus, o Gia, queixava-se de que, afastado temporariamente da comunhão do
Vegetal, sentia-se abandonado pelos irmãos. O afastamento é uma das medidas
disciplinares estabelecidas na UDV para corrigir eventuais falhas de conduta dos
discípulos. Não significa eliminação da sociedade, mas uma oportunidade para que
reflitam sobre o erro cometido.
Era o caso de Gia.
A recomendação do Mestre, em situações como aquela, era, bem ao contrário,
que os discípulos não abandonassem o irmão e não lhe dessem lições de moral, pois
a punição já era suficiente. Gia queixou-se de que isso não estava acontecendo.
O Mestre então escreve a Raimundo Monteiro e a Adamir lastimando o
tratamento dado ao discípulo. E recomenda que o procurem, pois, com aquele
abandono, ele também sofria, pois os discípulos, punidos ou não, eram “membros do
meu corpo”. E finalizava, recorrendo a uma imagem poética para ilustrar sua dor: “E
aqui termino derramando mais lágrimas em cima da mesa do que letras em cima do
papel”.
O acontecido revela o zelo que Mestre Gabriel tinha por cada um dos discípulos,
do mais humilde (era o caso de Gia)
181
Mestre Gabriel
ao mais graduado, sem fazer qualquer distinção. Todos eram da UDV — e a UDV,
como disse, era seu corpo.
No hospital, havia um conselho comunitário dos enfermos. Mestre Gabriel foi
eleito conselheiro. Médicos, enfermeiros e pacientes gostavam dele e lhe pediam
conselhos. Quando teve alta, fizeram uma festa de despedida em sua homenagem.
Foi em março de 1971. Em 30 de janeiro, havia escrito a Adamir e a Monteiro
anunciando que, na sua chegada, queria ser recebido pelos discípulos no aeroporto,
pois aquela seria a data de sua “ressurreição”.
Há aí uma explicação: quando embarcou para o Ceará, um dos discípulos
comentou em voz baixa, mas não o suficiente para que o Mestre não o ouvisse, que
“esse aí não volta mais”, considerando-o desenganado.
O Mestre depois recebeu, pelo correio, uma fotografia de seu embarque e
comentou, em carta a Adamir, que queria outra foto, “no dia da minha ressurreição,
no mesmo lugar em que foi tirada a do meu enterro”, referindo-se indiretamente à
observação despropositada do discípulo, feita no aeroporto. E anunciou, em outra
carta (e iria repeti-lo, na sessão que celebrou seu retorno a Porto Velho): “Até aqui, já
vivi a minha vida; agora, estou vivendo para vocês”.
Antes de voltar a Porto Velho, vai à Bahia. Fazia 28 anos que não via a família,
nem dela tinha notícias. Vai de ônibus até Feira de Santana. Lá, entra num
restaurante para se alimentar. O restaurante era de seu irmão, Antonio. Não se
reconhecem.
Mas em seguida voltam a se reencontrar, na casa do próprio Antonio. Mestre
Gabriel, ao saber que o restaurante onde estivera era de seu irmão, comenta:
- Depois de 28 anos, a primeira refeição que fiz foi na casa do meu irmão!
182
O Mensageiro de Deus
Vai até Coração de Maria, onde ficara morando apenas o irmão Dionísio. O pai já
falecera e a mãe morava em Pé de Serra, com outros irmãos. Pede que Antonio o
leve a Pé de Serra, onde é recebido em ambiente de grande alegria.
Passam a noite acordados, conversando. A mãe pede que volte a morar com
eles, mas ele explica que criara uma sociedade religiosa em Porto Velho e que tinha
compromissos com aquelas pessoas. Fala da UDV e do chá Hoasca e convida
Antonio a ir a Porto Velho. Nessa ocasião, reencontra a sobrinha cujo parto fizera há
35 anos, Nêga, filha de Joana e de seu irmão João. Tem 15 filhos e alguns netos.
Fica duas semanas na Bahia e diz que é hora de voltar. Reitera o convite a
Antonio, que se mostra interessado, mas não garante nada. Despedem-se com
grande emoção. Mestre Gabriel volta a Fortaleza, de onde embarca de avião para
Porto Velho, com escala em Manaus. Está na reta final do cumprimento de sua
missão.
Chega em Manaus em 25 de março. Participa de uma Sessão de Escala.
Reconduz ao Quadro de Mestres o discípulo Florêncio, que havia iniciado a
distribuição de Vegetal naquela cidade. No dia 27, embarca para Porto Velho.
Lá, é recebido, como havia pedido, pelos discípulos, uniformizados, ao som de
uma banda de música, que, embora convocada pelo governador para saudar uma
autoridade que chegava à cidade — e que viajara no mesmo voo -, acabou
saudando o Mestre, o primeiro a desembarcar, ornamentando sua chegada.
Abraçado pelos discípulos, marcou uma sessão para a noite. Até hoje, na mesma
data, celebra-se aquele momento com uma Sessão de Escala Anual — a Sessão da
Ressurreição do Mestre.
183
DO

Capítulo XXXIII
Missão Cumprida
Nos seis meses que precedem o seu desencarna- mento, Mestre Gabriel deu vários
sinais de que sua missão estava perto de ser concluída. Restabelecido dos pulmões,
surgiu o tumor cerebral, que lhe dava constantes e fortes dores de cabeça.
A família atribui o mal não ao já relatado acidente no seringal, mas a outro, uma
capotagem numa Kombi, que pertencia a Messias, pouco antes de o Mestre
embarcar para o Ceará. Era um carro frágil. O Mestre havia pressentido o acidente e
a necessidade de conduzir o veículo para evitar um dano maior, segundo explicou
depois. Na capotagem, bateu a cabeça no mesmo local em que anteriormente já
havia se contundido. Mas os demais passageiros não sofreram lesões maiores. O
Mestre, porém, estava cada vez mais debilitado.
Já não dirigia as sessões, que acompanhava deitado em uma rede, mas
continuava ativo na administração da UDV.
Nesse período final, publica o artigo Velando Enquanto Dorme (ver capítulo
XXIV), dá uma entrevista à então pres-
185
Mestre Gabriel
tigiosa revista O Cruzeiro (edição de 14.07.71), que chama o chá de “O LSD da
Amazônia”, tratando-o e à UDV como fenômenos excêntricos, o que continuaria a
ocorrer por muitos anos, mesmo com a União organizada em grandes centros
urbanos e no exterior.
Muda, em 10 de agosto, o nome de Associação Beneficente União do Vegetal,
com que a UDV fora registrada em cartório, para o nome definitivo de Centro Espírita
Beneficente União do Vegetal. Escreve ao irmão Antonio Gabriel cobrando-lhe a
visita a Porto Velho. Antonio chega em 2 de setembro, bebe o chá pela primeira vez
e se encanta com a União, associando-se.
Nessa ocasião, Mestre Gabriel anuncia que irá gravar o Rosário de Chamadas-,
uma sequência de sete chamadas, que têm um destaque na liturgia da UDV, ouvidas
em ocasiões especiais.
No dia 4, viaja para Manaus em companhia de Antonio Gabriel, com dois
objetivos: registrar o Núcleo local e buscar assistência médica. No dia 9, outros
discípulos de Porto Velho — Monteiro, Messias, Adamir, José Luiz, Rubens
Rodrigues, que integravam a diretoria do Centro -, o seguem para o rito de registro
do núcleo de Manaus, posteriormente batizado de Caupuri, dando posse à sua
diretoria.
Além de formalizar o núcleo, colocando Florêncio na Representação, Mestre
Gabriel participou de diversas sessões e gravou o anunciado Rosário.
Foram pouco mais de duas semanas, em que conviveu mais de perto com
discípulos com quem tivera pouco contato, como Vicente Marques, Ana e Roberto
Evangelista, José Carvalho e Ozélia.
Roberto, artista plástico, recorda que lhe perguntou a respeito de Atlântida, o
continente desaparecido, de cuja exis-
186
%
OL
ooooo
u
o*
O Mensageiro de Deus
tência a humanidade soube por meio de relato do filósofo grego Platão, há 25
séculos. O tema era matéria de capa de uma publicação que Roberto tinha em mãos,
o Almanaque do Pensamento, de 1971. Mestre Gabriel confirmou-lhe a história,
dizendo que o que ali estava publicado era realidade.
No Núcleo de Manaus, fez uma profecia: “Daqui, a União vem circular o mundo.
Quem viver verá”. José Luiz confessa que, diante da extrema carência material em
que viviam, não acreditou. Mas de lá, efetivamente, saíram os mestres que criaram
os primeiros núcleos da UDV Brasil afora, começando por São Paulo, que formou o
segundo núcleo registrado da UDV, o Samaúma, um ano após o desencarna- mento
do Mestre Gabriel.
Em meio a essa atividade, o Mestre submete-se a sucessivos exames médicos.
Lá, constata-se o tumor cerebral e que não seria possível extirpá-lo ali, já que não
havia recursos técnicos. Recomendam-lhe Brasília, centro urbano mais próximo,
embora também precário, já que a cidade era recém- -fundada.
Ele já sabia do destino que o aguardava, e deu disso ciência a pelo menos dois
discípulos: Florêncio e José Luiz. Florêncio recorda:
- Na ambulância que o levou ao aeroporto, ele me disse que de Brasília não
voltava. Eu disse: “Fique calmo, que o senhor vai voltar; eu tenho certeza”. Ele disse
apenas: “Você não me conhece ainda”.
A José Luiz, fez um pedido: que jamais deixasse a UDV. Foi atendido. Seu irmão
Antonio deveria acompanhá-lo a Brasília, mas a tarefa acabou sendo de Rubens
Rodrigues, que pretendia de lá visitar uma filha em outro estado. O restante está
contado no capítulo IV, O Adeus Solitário.
187
O Mensageiro de Deus
tência a humanidade soube por meio de relato do filósofo grego Platão, há 25
séculos. O tema era matéria de capa de uma publicação que Roberto tinha em mãos,
o Almanaque do Pensamento, de 1971. Mestre Gabriel confirmou-lhe a história,
dizendo que o que ali estava publicado era realidade.
No Núcleo de Manaus, fez uma profecia: “Daqui, a União vem circular o mundo.
Quem viver verá”. José Luiz confessa que, diante da extrema carência material em
que viviam, não acreditou. Mas de lá, efetivamente, saíram os mestres que criaram
os primeiros núcleos da UDV Brasil afora, começando por São Paulo, que formou o
segundo núcleo registrado da UDV, o Samaúma, um ano após o desencarna- mento
do Mestre Gabriel.
Em meio a essa atividade, o Mestre submete-se a sucessivos exames médicos.
Lá, constata-se o tumor cerebral e que não seria possível extirpá-lo ali, já que não
havia recursos técnicos. Recomendam-lhe Brasília, centro urbano mais próximo,
embora também precário, já que a cidade era recém- -fundada.
Ele já sabia do destino que o aguardava, e deu disso ciência a pelo menos dois
discípulos: Florêncio e José Luiz. Florêncio recorda:
- Na ambulância que o levou ao aeroporto, ele me disse que de Brasília não
voltava. Eu disse: “Fique calmo, que o senhor vai voltar; eu tenho certeza”. Ele disse
apenas: “Você não me conhece ainda”.
A José Luiz, fez um pedido: que jamais deixasse a UDV. Foi atendido. Seu irmão
Antonio deveria acompanhá-lo a Brasília, mas a tarefa acabou sendo de Rubens
Rodrigues, que pretendia de lá visitar uma filha em outro estado. O restante está
contado no capítulo IV, O Adeus Solitário.
Mestre Gabriel
Com o desencarnamento do Mestre, o comando ficou temporariamente com o
Mestre Assistente, Roberto Souto. A seguir, elegeu-se para o lugar Raimundo
Monteiro de Souza e, um ano depois, começa por São Paulo uma peregrinação dos
mestres fundadores, levando a UDV a todos os estados brasileiros - e
posteriormente ao exterior, dando fundamento e credibilidade à profecia do Mestre:
“A UDV vem circular o mundo”. E continua circulando, por meio de seus discípulos.
O Mensageiro cumpriu a Missão.

188
O
%
OOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOC
<J
O Mensageiro de Deus
c
O
Galeria dos Mestres Fundadores do Centro
Raimunda Ferreira da Costa Manuel Severino Felix (Pernambuco)

Manoel Nogueira da Silva


Hilton Pereira Pinho
189
Mestre Gabriel
J
D
Galeria dos Mestres Fundadores do Centro

Florêncio Siqueira de Carvalho


O
o
o
o
o
o
o
o
o
o
o
o

Antônio Domingos Ramos

José Luiz de Oliveira


190
O
o
o
J
o
o
o
o
o
o
o
o
;
O
o
o

Raimundo Carneiro Braga


.
O Mensageiro de Deus
Galeria dos Mestres Fundadores do Centro
C
C
C
C
C
C
O
c
o
c
G
O
c
o
o
c
c
G
G
G
G
G
G
G
O
G
Raimundo Pereira da Paixão Raimundo Monteiro de Souza
r A r \

Bartolomeu Pinheiro do Nascimento Napoleão Victor de Oliveira


c
Mestre Gabriel
Galeria dos Mestres Fundadores do Centro
O
O
o
192
OOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOP
O Mensageiro de Deus
Galeria dos Mestres Fundadores do Centro
Roberto Souto Maior Francisco dos Anjos Feitosa (Sidon)

Raimundo Nonato Marques Cícero Alexandre Lopes


O
c
G
193
Mestre Gabriel num Preparo de Vegetal na olaria de sua propriedade, em Porto
Velho, em foto sem data. Observe-se a modéstia das instalações, com latas de
querose em que o Vegetal era preparado e os galões de vidro para envasá-lo. / Foto
Francisco Herculano de Oliveira
O
o

Mestre Gabriel (ao centro, fileira à esquerda) e discípulos, mexendo com uma pá de
madeira o Vegetal nas panelas. I Foto Izídio Gimenes
194
O
O
O
D
Mestre Gabriel durante preparo na olaria. Da esquerda para a direita: Raimundo
Monteiro de Souza, Modesto (de chapéu ao fundo), M. Gabriel e Pernambuco (de
chapéu à direita).
Foto Francisco Herculano de Oliveira

Mestre Gabriel dirigindo uma sessão, no barracão anexo à sua casa, na ruaAbunã,
em Porto Velho, a primeira sede da UDV. I Foto Cícero Alexandre Lopes
Raimundo Carneiro Braga recebendo de Mestre Gabriel (à esquerda) a faixa de
Mestre Assistente. A direita, José Luiz de Oliveira.
Foto Cícero Alexandre Lopes
tORRO RO
196
30000

Momento de concentração mental, em sessão da uuv, em 1971. Mestre Gabriel está


debaixo do arco. O gravador que aparece na foto, sobre a mesa, é do repórter
Joarez Ferreira (à direita, o segundo de cabeça baixa), de O Cruzeiro, que publicaria
a reportagem “O LSD da Amazônia”, na edição de 14 de julho daquele ano.
Aparecem, ainda, na fila da esquerda, Francisco Fíerculano, Raimundo Pereira da
Paixão e Raimundo Monteiro de Souza. / Foto Rubens Américo Luz - O Cruzeiro.
O
A
c
c
o
Sessão de Escala anual, em 22 de julho de 1966, celebrando a criação da UDV.
Nessa ocasião, não havia ainda o arco, na cabeceira. E Mestre Gabriel (de pé, à
direita) dirigia a sessão no centro da mesa, ladeado pelos discípulos. I Foto Izídio
Gimenes
197

Mestre Gabriel e Pequenina, à frente de sua casa, em Porto Velho, após a cerimônia
de casamento de um casal de discípulos.
Foto Francisco Flerculano de Oliveira
Mestre Gabriel entre discípulos: à esquerda, Florêncio Siqueira de Carvalho; à
direita, Raimundo Carneiro Braga; de pé, Raimundo Pereira da Paixão. I Foto Izídio
Gimenes
3
33
198
u
O
Q
O
O
o
o
o
o
o
o
o
c
o
o
o
o
o
o
o
o
o
o
o
o
o
o
o
o
o
o
o
o
c
c
o
o
o
ira
■ftl
foi
er
• n- li -
ecy lar -
va-
0
toa
do
ddo
ima
jdu:
ICO
pós
iora
des
aeia
ire- r o i 1
cio-
nga
irrartlíid k»l . ...
‘‘ MlOUF.l. ORT17»
OHTUSTE
Convicção do Mestre
Quaodo foi prêso em Jaru, José Rodrigues Sob^nho, por estar preparando o
vegetal que chamam pelo nome de Oãsca. o mestre da União do Vegetal, José
Gabriel da Costa, foi chamado pelo senhor Delegado de Policia da Capital para
fornecer alguma explicação sôbre aquele líquido 'A A; «Misterioso». O senhor
delegado não encootrando nenhum crime penal oo Código Civil Bratileiro deu
cobertura a União com as seguintes palavras: Não posao proibir as sessde» de
vocês: mais, também não posao dar licença.
Aconteceu que' na ausência do senhor Delegado e do senhor Diietordo ST.C.,
Delegado do Trânsito, inocentemente lez um ataque na residência do Mestre: que no
momento doutrinava rrhgiosamente Jh discípulos dos 19S. que v-nt lhe
acompanhando. Os discípulos p-r.ieram a cabeça e fiea- jrsm sem direção há lalta de
seu mestre, que loi prêso.
O mestre na piisâ<>, examin^u-se, momento em que alegrou-se. admirando a
bondade de Deus E disse, fui um grande malfeitor, já bebi cachaça, ji andei no baixo
meretrício, já andei armado e mal Intencionado, já deiramei sangue de meus irmãos.
Pensava somente em desordem. Desejava o mal e desconhecia meu grande Deus.
Com tudo isso não cheguei s conhecer prisão. II qe. venho trabalhando pela
perfeição, procurando tirar todos os meus irmãos da ilusão e do abismo em que vivia;
venho chamando a todo* á pedir a Deus como veDho pedindo eternamente.
Oh! Deus do Universo, derramai sóbre mira tudo quanto eu desejar n » coração
aos meus foimigos. K hoje. rae acho preso s-m ler quem possa me acusar sendo
«Fu» acusado pela minha própria consciência, qiue alegria eu sinto pela bondade de
Deus. O mestre, foi Interrompido por om (liscipulo, momento em que meditava,
sendo êste Ura pohcial que derramava lãgrira .s. U mestre entrou em sofrimento,
sem demonstração, confortando-o com o símbolo da I nlâo Lur, Paz e Amor.
O mestre pôslo em liberdade retornou a sua residèa- cla ' ncontrando os
discípulos revoltados procurando prejudicar o senhor Aotonio Nogueira Filho, por
melo Judiciário alegando invasão domiciliar após as 23 horas. Momento que entra a
voz do mealre: A União vegetal é para deatruir o mal, como os ensinos que
recebemos do Divino mestre, pergunta o mestre a seus discípulos: Como destruímos
o mal- Responderam: Com Luz, Paz e Amor.
Então diz o mestre se nos ofendermos p >r qualquer parte, desobedecermos o
Divino Mestre. O caminho 6 èste prestem atenção os qne quizerem me acompenhat
na missão. Podemos ser ceusuraaos por Iodos, mes oão podemos censurar a
ninguém. Podemc» ter inimigos mas uão podemos ceusurar a niugueui. Po lemos ter
iuimigos mas nao pode- I mus ser ioimlgos de uioguéoi Podemos ser oiencidos poc I
todos mas não podemos ofender a ninguém.
Podemos até ser julgaJos por todos, ma« uJo podemos ! Julgar a ninguém-
Podemos ser revoltados por todos e uão podemos revoltar e nem ser revoltados por
ninguém.
Dizem os dicipulos ao mestre: queremos compreensão destas palavras:
responde o mestre! fiquem com a memória jtreaa estudando, até cheqar os euclnos
,de Salomão na próxima sessão do U.rau S.I.C.P.M.R.
slmbdo da União é Luz. Paz e Amo».
■i _ •a •
Fac-símile do texto “Convicção do Mestre”, publicado no jornal Alto Madeira, em
outubro de 1967, logo após a prisão do Mestre.
199
Mestre Gabriel numa foto à frente de sua casa, na rua Abunã. Da esquerda para a
direita, Jandira, Pequenina, Antonio Gabriel, Mestre Gabriel e Antonio Domingos
Ramos. I Foto Francisco Flerculano de Oliveira
O
o

Almoço festivo no salão do Vegetal. As garrafas são de refrigerantes e sucos. Mestre


Gabriel está à esquerda, no fundo, de camisa branca.
Foto Cícero Alexandre Lopes
200

Mestre Gabriel (de chapéu, ao centro) e discípulos, antes de partir para o Ceará em
tratamento médico, em 5 de novembro de 1970.
Foto Cícero Alexandre Lopes

Mestre Gabriel chegando de Fortaleza, em 27 de março de 1971, após tratamento de


saúde, recebido no aeroporto pelos discípulos uniformizados. Essa data passou a
ser celebrada na UDV como a ressurreição do Mestre. / Foto Francisco Flerculano
de Oliveira
201

Mestre Gabriel, numa ambulância, rumo ao aeroporto de Manaus, no dia de sua


viagem para Brasília, de onde não regressaria. Foi sua foto de despedida, em 21 de
setembro de 1971. Da esquerda para a direita: Antônio Gabriel, Mestre Gabriel,
Rubens Rodrigues e Florêncio Siqueira de Carvalho. I Foto autor desconhecido

^|
Pequenina (ao centro), entre os integrantes do Quadro de Mestres da origem. / Foto
Izídio Gimenes
0
33
202
u
O

O
o
o
c
\^y
o
Anexo
Farmacologia humana da Hoasca, planta alucinógena usada em contexto ritual no
Brasil
Autores:
Charles S. Grob, M.D. and Kyle B. Boone, Ph. D. (Department of Psychiatry,
Harbor-UCLA Medicai Center, Box498, 1000 West Caeson Street, Torrance,
Califórnia, USA, 90509. Send reprint requests to Dr. Grob.),
Dennis J. McKenna, Ph.D. (Botanical Dimensions, Occidental, Califórnia, USA)
James C. Callaway, Ph. D., (Department of Phar- macology and Toxicology,
University of Kuopio, Finland)
Glacus S. Brito, M.D. and Edison S. Neves, M.D (Centro de Estudos Médicos. Rua
Caiubi, 1004 - São Paulo-SP, Brasil)
Guilherme Oberlaender, M.D (Departamento de Psiquiatria, Universidade Estadual
do Rio de Janeiro, Brasil),
Oswaldo L. Saide, M.D., Cristiane Tacla, Ph.D., Eliseu Labigalini, M.D, and Cláudio
T. Miranda (Departamento de Psiquiatria, Escola Paulista de Medicina, São
Paulo, Brasil)
Rick J. Strassman, M.D (Department of Psychiatry, University of New México,
Albuquerque, New México)
Os autores agradecem o auxílio da Heffter Research Institute, Botanical Dimensions
e Jeffrey Bronfman.
204
Farmacologia da Hoasca
---------------- _____ >.
Resumo
Uma investigação biomédica em cooperação multinacional dos efeitos da Hoasca
(ayahuasca), uma potente decocção de plantas alucinógenas, foi conduzida na
Amazônia brasileira durante o verão de 1993. Esta comunicação descreve os
achados psicológicos de membros filiados há 15 anos de uma religião sincrética que
utiliza a Hoasca legalmente como sacramento, assim como de 15 indivíduos-controle
sem história anterior de ingestão da Hoasca.
Avaliações administradas a ambos os grupos incluíram entrevistas para
diagnóstico psiquiátrico estruturado, teste de personalidade e avaliação neu-
ropsicológica.
Achados fenomenológicos dos estados alterados de consciência, bem como
entrevistas semiestruturadas e abertas de histórias de vida foram conduzidas com o
primeiro grupo, mas não com o grupo controle. Achados significativos incluíram a
remissão de psicopato- logia após início do uso da Hoasca, sem evidência de
deterioração da personalidade ou cognitiva.
Avaliação global revelou status funcional elevado, atribuído pelos indivíduos ao
uso ritual do seu sacramento psicoativo, Hoasca. Implicações deste fenômeno não
usual e necessidade de investigação futura são discutidas.
J. Nerv Ment Dis 184:86-94, 1996: v __________ 9
Anexo
---------------------------------------------------------------------
Hoasca é uma decocçáo alucinógena de plantas psicoativas potentes, indígenas,
provenientes da Bacia Amazônica, na América do Sul. É conhecida por vários
nomes, incluindo ayahuasca, caapi, yage, mihi, dapa, natema, pinde, daime e
Vegetal.
Hoasca é a tradução para o português de ayahuasca, termo utilizado em todo o
Brasil. Anterior à conquista europeia, dominação e aculturação da América do Sul,
iniciada no século XVI, a Hoasca foi largamente utilizada pelos nativos em rituais
com propósitos mágicos e religiosos, presságios, bruxaria e tratamento de doenças
(Dobkin de Rios, 1972). Apesar das prolongadas e selvagens tentativas dos
conquistadores europeus de reprimir e erradicar a cultura nativa e seus sistemas de
crença (Taussig, 1986), o uso medicinal e sacramental da Hoasca continuou
presente.
O estudo científico da Hoasca começou com o renomado botânico inglês Richard
Spruce, que, de 1849 a 1864, viajou intensamente através da Amazônia brasileira,
vezenuelana e equatoriana, para montar um inventário da variedade de espécies de
plantas lá encontradas (Schultes and Raffauf, 1992).
Spruce fez grande número de descobertas valiosas, incluindo Hevea, os gens da
Seringueira e Cincho- na, da qual o quinino é derivado. Identificou também que uma
das fontes primárias de uma poderosa destilaria de alucinógenos usada por índios
Mazan e Zapa- ro, chamada ayahuasca (“vinho das almas” ou “vinho dos mortos”,
em quechua), e anteriormente descrita pelo equatoriano Manoel Villavicencio (1858),
era
\ _____________________________________________ ,
206
L
c
o
o
G
O
C
c
c
rj
G
C
G
G
G
G / ' VJ
G
G
O
G
G
Farmacologia da Hoasca
/ --------------------------------------------------------------------- s
um comprido cipó, ao qual mais tarde seria dada a designação botânica formal de
Banisteriopsis caa- pi (Spruce, 1908; Ott, 1994). Análises laboratoriais subsequentes
iriam revelar a presença dos alcalóides beta-carbolina, harmina, harmalina e
tetrahydrohar- mina, psicoativos, que quando primeiramente isolados, no começo do
século XX, receberam a exótica denominação de Telepatina.
Conforme identificado pelos primeiros observadores de campo do uso da
Hoasca, outras misturas psicoativas eram frequentemente adicionadas ao cozimento
das preparações do Banisteriopsis caapi, principalmente plantas contendo a
altamente potente e alucinogênica triptamina, incluindo tais plantas in- dutoras de
visões, como a Psychotria viridis ( McKen- na e Towers, 1984).
Através de toda a Bacia Amazônica, o uso da Hoasca permaneceu tão enraizado
na mitologia e filosofia tribal, que investigadores modernos confidencialmente
concluem que seu uso se estende aos primeiros habitantes aborígenes daquela
região (Schultes and Hofmann, 1992). Eles têm documentada a tradição do uso da
Hoasca pelo povo indígena da região como tendo o propósito de libertar a alma do
confi- namento do corpo e facilitar o acesso aos reinos de realidade alternativa,
permitindo assim uma variedade de experiências mágicas, incluindo o acesso à
comunicação com os espíritos ancestrais. Antropólogos que têm realizado estudos
etnográficos dos habitantes nativos da Bacia Amazônica descrevem fenômenos
comumente induzidos pela Hoasca, como visões de
v______________________________________________,
207
%
Anexo
( --------------------------------------------------------------------- v
jaguar, cobras e outros animais predatórios, visões de pessoas distantes, cidades e
paisagens, a sensação de “ver” o entrelaçamento detalhado de acontecimentos
misteriosos recentes e a sensação de contato com o sobrenatural (Harner, 1973).
A Hoasca, como é o caso de outras plantas alucinógenas, tem uma tradição
pré-histórica de uso por povos aborígenes nativos, como sacramentos xamâ- nicos
ou catalizadores (Furst, 1976; Bravo and Grob, 1989). É considerada um grande
“medicamento”, usado tanto no diagnóstico como no tratamento de doenças
(Schultes and Hofmann, 1992). Seu uso é amplamente sancionado pelos costumes
sociais e leis, e, de fato, é a experiência central sobre a qual se apoia a consciência
coletiva e tribal. A utilização de tais plantas alucinógenas potentes como a Hoasca,
tipicamente ocorre dentro de um contexto ritualiza- do, incluindo os ritos tradicionais
de iniciação (Grob and Dobkin de Rios, 1992). Os poderosos efeitos de
hipersugestibilidade, induzidos pela planta alucino- gênica, reforçam sistemas
coletivos de crença, fortificam coesão de grupos e facilitam visões sintônicas e
culturalmente condicionadas, as quais proporcionam revelação, bênçãos, cura e
segurança ontológica (Dobkin de Rios and Grob, 1994).
O uso da Hoasca para propósitos de cura e sustentação religiosa, durante os
séculos de aculturação europeia da Amazônia, emergiu de domínios exclusivamente
tribais da floresta tropical e tem sido incorporado na estruturação da sociedade rural
e urbana contemporânea, particularmente entre a população
V ____________________________________________ >
208
OOOU
Farmacologia da Hoasca
c
c
c
c
c
u
c
---------------------------------------------------------------------
de mestiços indígenas do Peru, Colômbia e Equador. Identificada como um auxílio
valioso em práticas populares de cura, a Hoasca é ritualmente administrada pelos
“ayahuasqueiros” para grupos cuidadosamente selecionados de pacientes (De Rios,
1972).
Aderindo-se integralmente aos modelos xamâni- cos praticados pelos povos
aborígenes, esses curadores do povo empregam similarmente a sacramental
Hoasca com objetivo de diagnóstico e cura, presságios e como um caminho de
acesso aos reinos do sobrenatural.
Durante o século XX, o uso do Hoasca tem crescido dentro do contexto de
movimentos religiosos sincréticos modernos, particularmente no Brasil. Uma destas
“igrejas”, objeto deste estudo, é a União do Vegetal (UDV). A origem da UDV ocorreu
no começo dos anos 50, quando seu fundador, José Gabriel da Costa, um
seringueiro que primeiramente experimentou os efeitos da Hoasca com os índios
nativos da Bolívia4, retornou a Porto Velho, cidade da Amazônia brasileira em rápida
expansão, com suas visões de revelação espiritual e missão pessoal. Reunindo um
grupo de seguidores leais, Mestre Gabriel, como ele veio a ser conhecido, elaborou
uma mitologia e uma estrutura para sua nova religião.
Espalhando-se primeiramente através da Amazônia brasileira, e depois para o
populoso e urbanizado Sul, a UDV cresceu, nas subsequentes quatro décadas, para
atingir o tamanho atual de aproximadamente 7.000 membros espalhados por todo o
Brasil,
4 Informação equivocada, vide Capítulo XIV, O
Encontro com o Tesouro
v_____________________________________________ J
209
Anexo
---------------------------------------------------------------------
com adeptos por todo o espectro sócio-econômico e profissional. Organizados na
linha da anriga paróquia cristã, os núcleos são centros onde a Hoasca sacramental é
consumida em longas cerimônias rituais realizadas duas vezes por mês, dirigidas por
mestres locais, líderes da seita religiosa. Embora não seja a única religião sincrética
brasileira a usar a Hoasca como sacramento ritual (o culto do Santo Daime sendo
maior5 e mais amplamente conhecido), a UDV tem a mais forte estrutura
organizacional, assim como a mais disciplinada irmandade. De todas as igrejas ho-
asqueiras no Brasil, a UDV foi também a mais ativa em convencer o Conselho
Federal de Entorpecentes (Confen) a remover a Hoasca da lista de drogas banidas,
o que foi obtido, em 1987, para uso em contexto cerimonial religioso.
Embora alcançando alguma atenção e notoriedade na literatura norte-americana
e na imprensa popular, notadamente os trabalhos de William Bur- roughs e Allen
Ginsberg (Burroughs and Ginsberg, 1963), o fenômeno psicológico induzido pela
Hoasca tem sido sujeito a estudos virtualmente não rigorosos. Vários viajantes da
Bacia Amazônica têm documentado suas primeiras experiências com a Hoasca
(Weil, 1980), enquanto tanto narrativas antropológicas formais como informais têm
excitado a imaginação do público (Lamb, 1971; Luna and Amaringo, 1991).
5 Outra informação equivocada: a UDV hoje, com
cerca de 20 mil sócios, reúne mais de dois terços dos usuários da Hoasca no Brasil
V ____________________________________________
210
)
)
Farmacologia da Hoasca

>
O
o
o
o
o
o
o
o
o
o
o
o
o
o
o
o
o
o
o
o
o
o
o
o
o
o
De fato, o interesse nas tradições exóticas da Amazônia e efeitos da Hoasca
criou uma corrente constante de turistas americanos, frequentemente atraídos por
artigos e propagandas em revistas populares e “New Age” (Krajick, 1992; Ott, 1993).
Considerações sobre possíveis efeitos psicológicos adversos à saúde incorridos em
viajantes estrangeiros, têm também sido ressaltados por uma conhecida autoridade
em antropologia do uso do chá na Amazônia (Dobkin de Rios, 1994). Para confronto
com os testemunhos quanto à melhora do funcionamento psicológico e moral dos
adeptos das igrejas sincréticas da Hoasca no Brasil, um estudo formal explorando os
efeitos de longo uso desta bebida alucinogênica inco- mum parece indicado.
Durante o verão de 1993, um grupo multinacional de pesquisadores biomédicos,
dos Estados Unidos, Finlândia e Brasil encontrou-se em Manaus, capital do
Amazonas, para conduzir um exame dos efeitos bioquímicos e psicológicos da
Hoasca. Anteriormente à realização do estudo, um convite foi feito pela União do
Vegetal para uma investigação da toxicidade do “chá” Hoasca. Dada a longa história
de repressão do seu movimento religioso e do uso sacramental da Hoasca anterior à
sanção governamental em 1987, os líderes da UDV consideraram que conclusões de
um estudo científico, objetivo e isento, poderíam ter um valor de proteção no futuro,
se mudasse a direção política no Brasil.
Consequentemente, após consulta ao grupo de pesquisa norte americana, foi
tomada a decisão de
V. ____________________________________________ >
211
Anexo
---------------------------------------------------------------------
utilizar o núcleo mais antigo fora de Porto Velho, em Manaus, onde uma grande
porcentagem dos membros vinham consumindo a Hoasca nos rituais, regularmente,
por mais de 10 anos. Dadas as exigências e complicada logística colocadas aos
sujeitos neste estudo, a firme e organizada estrutura da UDV e a disciplina de seus
membros provaram ser inestimáveis para o sucesso no cumprimento da meta do
projeto.
A parte I deste documento irá detalhar os resultados da nossa investigação dos
efeitos do chá Hoasca nas funções psicológicas e a parte II, irá discutir nosso exame
dos efeitos da Hoasca na bioquímica humana.
MÉTODOS
Quinze membros da igreja sincrética União do Vegetal, vivendo na cidade de
Manaus, foram selecionados aleatoriamente de um grande grupo de voluntários. O
critério para inclusão no estudo incluiu filiação à UDV por pelo menos dez anos.
Membros da UDV participam nos rituais utilizando a Hoasca como sacramento
psicoativo num mínimo de duas vezes por mês, mas, frequentemente, várias vezes
por semana, porém, sempre num contexto ritual.
Em acréscimo à participação regular no consumo cerimonial da Hoasca, a UDV
requer dos membros completa abstinência de todas as outras substâncias
psicoativas, incluindo o álcool, tabaco, maconha, cocaína e anfetaminas.
______________________________________________ /
212
Farmacologia da Hoasca
f --------------------------------------------------------------------- \
Quinze sujeitos de controle que nunca tinham consumido a Hoasca, foram
também recrutados com o objetivo de compará-los em todos os parâmetros
demográficos. Por causa do tamanho relativamente pequeno da amostra e da
necessidade de limitar o número de variáveis, todos os indivíduos da UDV
submetidos à experimentação e os de controle foram homens. Os examinandos de
controle foram comparados aos outros nos parâmetros de idade, etnicidade, estado
marital e nível de instrução. Embora tenham sido feitas tentativas de controle da
dieta e do consumo de álcool, completa garantia não foi possível.
Por causa das condições difíceis de campo, assim como das limitações de
tempo, não foi possível analisar completamente todos os dados demográficos até o
início do estudo. Naquela época foi notado que os indivíduos de controle tinham
significativamente uma renda anual maior do que os outros examinandos. Num
empenho de explicar esta diferença notamos que o método de recrutamento dos
indivíduos de controle fora pedir a cada um dos examinandos da UDV que levasse
para o estudo, um amigo próximo ou alguém que nunca tivesse participado de uma
sessão da UDV e nem consumido o chá em nenhuma outra circunstância.
Foi notado em retrospecto que vários examinandos pediram aos supervisores em
seus locais de trabalho para serem voluntários para o estudo. Vários parâmetros
foram utilizados para avaliar os níveis no passado e atuais das funções psicológicas.
A ambos os grupos de experimentação foram aplicadas entrevistas
V ____________________________________________
213
Anexo
---------------------------------------------------------------------
estruturadas de diagnóstico psiquiátrico (Composite International Diagnostic
Interview -CIDI), teste de personalidade (Tridemensional Personality Question-
naire-TPQ) e teste neuropsicológico (WHO-UCLA Auditory Verbal Learning Test).
Aos examinandos da UDV, mas não aos de controle, foi pedido para preencher
um questionário (Hallucinogen Rating Scale -HRS), após uma sessão de Hoasca.
Cada um dos examinandos foi entrevistado também num formato semiestruturado,
destinado a verificar suas histórias de vida. Todos os examinandos eram
monolinguísticos de português. Versões em português do Composite Internacional
Diagnostics Interview (CIDI) e do Tridimensional Personality Questionnaire (TPQ)
estavam à disposição do estudo, tendo sido previamente traduzidos e validados em
português pelos criadores dos instrumentos. Versões em português do WHO-UCLA
Auditory Verbal Learning Test e a Hallucinogen Rating Scale foram desenvolvidas
para este estudo por colaboradores brasileiros, que traduziram os instrumentos
primeiramente em português, depois de volta para o inglês e, finalmente, de novo
para o português.
As sessões do CIDI e o WHO-UCLA foram conduzidas por colaboradores
brasileiros, profissionais de saúde mental devidamente instruídos. O TPQ e o HRS
são questionários pessoais. As entrevistas se- miestruturadas da história de vida
foram conduzidas por um psiquiatra de língua inglesa, assistido por um intérprete
fluente em inglês e português. Todas as entrevistas das histórias de vida foram
gravadas em fita.
V ____________________________________________
214
Farmacologia da Hoasca
r
Composite International Diagnostic Interview
O CIDI é uma entrevista-padrão de diagnóstico, abrangente, para avaliação de
desordem mental, de acordo com as definições e critérios do CID-10 e DSM-III-R
(Robbins et al, 1988). O CIDI foi concebido para uso numa variedade de culturas e
ambientes. Embora sua aplicação primária tenha sido feita em estudos
epidemiológicos de desordens mentais, o CIDI tem sido também utilizado com
propósitos clínicos e de pesquisa. No curso de seu desenvolvimento o CIDI foi
submetido a uma variedade de testes em diferentes ambientes, países e culturas
para verificar viabilidade, abrangência de diagnóstico, confiabilidade, inclusive de
procedimento (Witttchen et al, 1989).
Tridimensional Personality Questionnaire
O TPQ é um teste de 100 itens, auto-admi- nistrável, do tipo papel e lápis,
verdadeiro/falso, um instrumento que leva aproximadamente 15 minutos para se
completar (Cloninger, 1987a). O questionário mede as três mais altas dimensões da
personalidade (Novelty Seeking, Harm Avoidance e Reward Dependence), cada uma
das quais medindo quatro dimensões menores (Cloninger, 1987 b).
V.
J
Anexo
/ --------------------------------------------------------------------- \
O domínio da Novelty Seeking mede os espectros da excitabilidade exploratória
versus rigidez estoica (9 itens), impulsividade versus reflexão (8 itens), extravagância
versus reserva (7 itens) e desordem versus regimentaçáo (10 itens). O domínio da
Harm Avoidance mede os espectros de preocupação antecipatória versus otimismo
não inibido (10 itens), medo da incerteza versus confiança (7 itens), timidez com
estranhos versus espírito gregário (7 itens) e fatigabilidade e astenia versus vigor (10
itens). O domínio da Reward Dependence mede os espectros de sentimentalidade
versus insensibilidade ( 5 itens), persistência versus irresolutividade (9 itens), fixação
versus desapego (11 itens) e dependência versus independência (5 itens ). O TPQé
baseado num modelo biossocial unificado de personalidade, integrando conceitos
focalizados em bases neuroanatômicas e neurofisiológicas, de tendências de
comportamento, estilos de aprendizado e interação adaptativa das três dimensões
de personalidade (Cloninger et al, 1991).
WHO-UCLA Auditory Verbal Learning Test
O Auditory Verbal Learning Test é somente uma simples lista-tarefa de
aprendizagem, similar ao Rey Auditory Verbal Learning Test (Rey, 1964), mas que é
apropriado para uso em contextos de cruzamento cultural e é sensível a graus
moderados de disfunção cognitiva. O teste inclui uma lista de itens
y______________________________________________
216
Farmacologia da Hoasca
--------------------------------------------------------------------- .
cuidadosamente selecionados de categorias como: partes do corpo, ferramentas,
objetos de casa e veículos de transporte comum, de modo a ser familiar às várias
culturas (Maj et al, 1993).
Aos examinandos, é lida uma lista de quinze itens numa velocidade de
aproximadamente uma palavra por segundo e a seguir lhes é pedido para repetir a
maior quantidade de palavras que eles possam lembrar. A mesma lista é lida para os
examinandos num total de cinco vezes sucessivas, e em cada ocasião os sujeitos
são solicitados a repetir quantas palavras possam lembrar.
Segue-se um teste de interferência onde são lidas quinze palavras de uma
segunda lista, sendo solicitado aos sujeitos que repitam quantas palavras puderem
lembrar desta mesma lista, após o que lhes é novamente pedido para repetir quantas
palavras conseguirem da lista original. Para o ultimo teste, é lida uma lista de 30
palavras, metade das quais (em ordem aleatória) são da lista original. Então, os
examinandos são solicitados a indicar depois de cada palavra se a reconhecem
como parte da lista original de quinze palavras.
Hallucinogen Rating Scale
O HRS é um questionário de 126 itens originalmente desenvolvidos para avaliar a
extensão dos efeitos induzidos por administração intravenosa de dime-
thyltryptamina sintética (Strassman et al, 1994). Uma escala de zero a quatro é
utilizada para a maioria das
s. ____________________________________________ >
217
Anexo
---------------------------------------------------------------------
questões, como 0, “não mesmo”; 1, “muito pouco”; 2, “moderadamente”; 3, “bastante”
e 4, “extremamente”.
As respostas aos itens são analisadas de acordo com seis agrupamentos
conceitualmente coerentes: cenestesia (enteroceptivo, visceral e cutâneo - efeitos
táteis); afetos (emocional/respostas afetivas); percepção (experiências visuais,
auditivas, gustativas e olfativas); cognição (alterações em processos ou conteúdos
do pensamento); volição (uma mudança na capacidade para interagir consigo
mesmo, com o ambiente ou certos aspectos da experiência) e intensidade (vigor dos
vários aspectos da experiência).
Entrevista da História de Vida
Cada um dos quinze examinandos concordou em se submeter a uma entrevista
de aproximadamente uma hora, conduzida por um psiquiatra (CSG). A entrevista
visava a explorar várias facetas de suas vidas, relacionadas à experiência como
membros da União do Vegetal e sua frequente participação nos rituais, utilizando a
psicoativa Hoasca como sacramento.
As entrevistas foram conduzidas com o auxílio de um tradutor, de maneira
semiestruturada e aberta no final. A cada um dos examinandos foi pedido para
“contar a história de sua vida antes da primeira vez em que bebeu o chá Hoasca...
como primeiro conheceu a UDV e os efeitos do chá Hoasca... como sua vida vem se
desenvolvendo desde o momento em que se tornou membro da UDV.
_____________________________________________
218
Farmacologia da Hoasca
------------------------------------------------------------------
RESULTADOS
Diagnóstico Psiquiátrico
Uma entrevista psiquiátrica estruturada foi conduzida com cada um dos 15
examinandos da UDV e os de controle. A administração da Composite International
Diagnostic Interview (CIDI) identificou que apesar de nenhum dos examinandos da
UDV ter um diagnóstico psiquiátrico atual, diagnósticos por abuso de álcool e
hipocondria foram detectados em dois examinandos de controle.
Entretanto, achado de diagnóstico psiquiátrico no passado (embora não mais
ativo), indicou que, de acordo com os critérios do CID-10 e DSM-III-R, cinco dos
examinandos tinham antecedentes de desordens formais por abuso de álcool, dois
de depressão maior e três de ansiedade fóbica. Por outro lado, entre os 15
examinandos de controle, somente um tinha passado de desordem psiquiátrica por
abuso de álcool, remitida dois anos antes do estudo.
Teste de Personalidade
O Tridimensional Personality Questionnaire (TPQ), medindo os três domínios
(Novelty Seeking, Harm Avoidance e Reward Dependence), foi admi-
v_____________________________________________
219
Anexo

nistrado aos 15 examinandos da UDV e aos 15 exa- minandos de controle.
Medidas e desvios-padrão e resultados comparativos do t-teste são mostrados na
Tabela I. Achados significativos no Novelty Seeking, incluiram os membros da UDV
como tendo maior “rigidez estóica versus excitabilidade exploratória” (p<0.049) e
maior “regimentação versus desordem ” (p<0.0l6).
Uma tendência de diferenciação entre os grupos foi encontrada no espectro de
maior “reflexão versus impulsividade”(p<0.1). Não foi encontrada variação
significativa no espectro de “reserva versus extravagância”(p<0.514). A somatória
dos quatro espectros do Novelty Seeking identificou diferenças altamente
significativas entre os dois grupos (p<0.0054).
Análises do domínio de Harm Avoidance do TPQ também identificaram
diferenças significativas entre os dois grupos. Os examinandos da UDV foram
identificados como tendo significativa maior “confiança versus medo da incerteza”
(p<0.043), com uma tendência a maior “espírito gregário versus timidez com
estranhos” (p<0.067) e maior “otimismo desinibido versus preocupação antecipató-
ria” (p<0.098). A somatória dos quatro espectros do Harm Avoidance mostrou uma
diferença significativa entre os dois grupos (p<0.011).
A análise do Reward Dependence não demonstrou qualquer diferença entre os
dois grupos, nem quanto ao valor total nem quanto ao valor dos sub- domínios.
______________________________________________ y
220
Farmacologia da Hoasca
/ -------------------------------------------------------------------- v
Testes Neuropsicológicos
A todos os 15 examinandos da UDV e os de controle foi administrado o
WHO-UCLA (Auditory Learning Verbal Memory Test). Os examinandos da UDV
apresentaram desempenho significativamente melhor do que os de controle quanto à
capacidade de lembrar as palavras na quinta tentativa (p<0.038). Os examinandos
da UDV tiveram um desempenho melhor que os de controle, embora num grau não
significativo estatisticamente, nos seguintes testes: número de palavras lembradas
(p<0.253), recordação tardia (p<0.248) e recordação de palavras após interferência
(p<0.158). Não ocorreu diferença entre os dois grupos no teste envolvendo o número
de erros falsos/ positivos na tarefa de reconhecimento (p<0.602).
Avaliação Fenomenológica
O Hallucinogen Rating Scale (HRS), foi completado por cada um dos 15
examinandos da UDV na hora seguinte ao término de uma sessão experimental de
Hoasca, onde uma variedade de parâmetros médicos e bioquímicos tinham sido
avaliados.
As análises dos 126 itens do HRS renderam achados colocando a experiência com a
Hoasca discretamente no final do espectro quando contrastada à experiência
V ____________________________________________ >
221
Anexo

altamente potente e de ação curta da dimetiltriptami- na intravenosa.
Ao passo que a experiência intensa da DMT acaba em menos de trinta minutos, a
experiência total da Hoasca dura em média quatro horas. A análise dos dados
revelou que os agrupamentos clínicos do HRS para os examinandos da UDV
estiveram num nível relativamente moderado, quando contrastados com
investigações anteriores dos efeitos da DMT intravenosa (Strassman et al, 1994).
Os agrupamentos de intensidade (1.633 + 0.533), afeto (0.947 ± 0.229), cognição
(0.908 ± 0.494) e volição (1.309 ± 0.429) foram compatíveis com uma experiência de
DMT intravenosa de dosagem entre 0.1 e 0.2 mg/kg, ao passo que o agrupamento
de percepção (0.484 ± 0.501) foi comparável com uma experiência intravenosa de
DMT de 0.1 mg/ kg e o agrupamento de cenestesia (0.367 ± 0.256) foi menor do que
o correspondente à dose mais baixa de DMT intravenosa usada (0.05 mg/kg).
Entrevistas das Histórias de Vida
Todos os 15 examinandos deram informações detalhadas sobre suas histórias
pessoais, com ênfase particular em como o seu envolvimento com a UDV e a
experiência com a Hoasca tiveram impacto no curso de suas vidas.
Suas idades abrangiam na época do estudo de 26 a 48 anos, com uma média de
37 anos de idade.
______________________________________________

3
3
222
O
%
Farmacologia da Hoasca
---------------------------------------------------------------------
Dois deles nasceram dentro da UDV, ao passo que os outros treze tinham entre 10 e
18 anos de filiação formal à UDV, com uma média de 14 anos de filiação.
Três deles eram mestres atuais (líderes de Núcleos), dois deles eram filhos de
mestres antigos e um era cunhado de um mestre antigo.
Muitos dos examinandos referiram uma variedade de comportamentos
disfuncionais anteriores à sua entrada na UDV. Onze examinandos tinham uma
história de uso moderado a severo de álcool, anterior à sua entrada na UDV, com
cinco deles referindo episódios associados com comportamento violento. Dois deles
tinham sido presos por causa de sua violência. Quatro indivíduos também relataram
envolvimento anterior com abuso de drogas, incluindo cocaína e anfetamina. Oito
dos onze examinandos com histórias anteriores de álcool e abuso de outras drogas,
eram viciados em nicotina na época do seu primeiro encontro com a UDV e o ritual
da Hoasca. Auto descrições adicionais anteriores à entrada na seita incluíram
“impulsivo... sem respeito., raivoso... agressivo... opositor... rebelde... irresponsável...
alienado... fracassado”.
Todos os 15 examinandos da UDV referiram que suas experiências com o uso
ritual da Hoasca tiveram um profundo impacto no curso de suas vidas.
Para muitos deles o ponto crítico foi sua primeira experiência sob a influência do chá.
Um tema comum era a crença percebida durante o estado alterado induzido de
consciência que eles estavam num caminho autodestrutivo que os conduziria
inevitavelmen-
\ _____________________________________________ /
223
Anexo
---------------------------------------------------------------------
te à sua própria ruína e mesmo à morte, ao menos que embarcassem numa
mudança radical de sua conduta pessoal e orientação. Alguns exemplos incluíam:
“Eu tive uma visão de mim mesmo num carro indo para uma festa. Teve um terrível
acidente e eu podia ver a mim mesmo morrer”... “Eu estava num parque de
diversões, num carrossel, dando voltas e voltas e voltas sem nunca parar. Eu não
sabia como sair de lá.
Eu estava muito assustado”... “Eu podia ver aonde eu estava indo com a vida que eu
estava levando... Eu podia me ver acabando num hospital, numa prisão, num
cemitério”... “Eu me vi sendo preso e levado à prisão. Eles iam me executar por um
crime terrível que eu tinha cometido”.
Experimentadores também referiram que nas agonias da experiência de
pesadelos visionários eles encontravam o fundador da UDV, Mestre Gabriel, que os
livrava de seus terrores: “Eu vi esses feios, horrorosos animais. Eles me atacaram.
Meu corpo estava desjuntado, diferentes partes de mim estavam jogadas por todo o
chão. Então eu vi o Mestre. Ele me disse o que eu iria precisar para pôr todas as
partes de meu corpo de volta no lugar”... “Eu corri pela floresta horrorizado porque eu
ia morrer... Então eu vi o Mestre.
Ele olhou para mim. Eu fui banhado em sua luz. Eu sabia que estaria tudo bem.”...
“Eu estava numa canoa, fora de controle, descendo o rio. Eu achei que iria morrer.
Mas então eu vi o Mestre Gabriel numa canoa bem na minha frente. Eu sabia que
enquanto eu estivesse com o Mestre, eu estaria a salvo”.
V ____________________________________________
224
4
>
3
3
0
3
O
3
O
O
O
o
o
o
o
o
o
o
o
o
)
3
3
3
3.
3
3
3
3
Farmacologia da Hoasca
( ---------------------------------------------------------------------\
Os examinandos referiram que desde sua entrada na UDV suas vidas passaram
por mudanças profundas. Além da total descontinuidade do abuso de álcool, drogas
e cigarros, os sujeitos enfaticamente afirmaram que sua conduta diária e orientação
para o mundo à sua volta, tinham tido radical reestruturação:
“Eu costumava não ligar para ninguém, mas agora eu sei da responsabilidade.
Cada dia eu trabalho para ser um bom pai, um bom marido, um bom amigo, um bom
trabalhador. Eu tento fazer o que posso para ajudar aos outros... Eu aprendi a ser
mais calmo, mais confiante, a aceitar mais os outros... Eu passei por uma
transformação”.
Os examinandos enfatizaram a importância de “praticar boas ações”, prestar
atenção no que diz e ter respeito pela natureza. Finalmente, referiram experimentar
melhora na memória e na capacidade de concentração, estados de humor positivo
constantes, satisfação nas suas interações do dia a dia e um senso de significado e
coerência em suas vidas.
Os examinandos inequivocamente atribuíram as mudanças positivas em suas
vidas ao seu envolvimento com a UDV e sua participação no cerimonial de ingestão
do chá. Eles viram a Hoasca como um catalizador na sua evolução psicológica e
moral, mas foram precisos em referir, entretanto, que não era somente a Hoasca a
responsável, mas antes o fato de beber o chá no contexto da estrutura ritual da UDV.
Muitos dos examinandos foram na verdade bastante críticos quanto a outros grupos
brasileiros que utili-
V.
Anexo
/ --------------------------------------------------------------------- \
zam a Hoasca de uma forma menos controlada e com menos concentração.
Examinandos descreveram a UDV como um “navio” que lhes permite navegar
seguramente nos frequentes estados turbulentos de consciência induzidos pela
ingestão da Hoasca. A UDV é sua “mãe... família... casa de amigos”, provendo
“orientação e direção” e permitindo a eles andar no “caminho certo”.
Enfatizaram a importância da “união”, das plantas e das pessoas. Sem a
estrutura da UDV, ponderaram os examinandos, as experiências com a Hoasca
podem ser imprevisíveis e levar a um senso exagerado do Eu. Dentro da “casa da
UDV”, entretanto, o estado induzido pela Hoasca é controlado e direcionado no
“caminho da simplicidade e humildade” .
DISCUSSÃO
Como esta investigação foi a primeira tentativa de se estudar o fenômeno da
Hoasca numa perspectiva biomédica, e como o local do estudo era relativamente
primitivo (a Amazônia brasileira), estes resultados precisam ser vistos como
tentativas preliminares.
Porém, os achados apresentados são intrigantes e, a um certo grau, inesperados.
Avaliações de diagnóstico psiquiátrico revelaram que, apesar de uma porcentagem
apreciável de usuários de longo
s. ___________________________________________ /
226
Farmacologia da Hoasca
c
c
c
c
G
C
O
f~)
c
o
o
o
G
O
G
G
G
--------------------------------------------------------------------- ^
tempo da Hoasca terem tido desordens relativas ao álcool, depressivas ou de
ansiedade anteriores à sua iniciação com a Hoasca, todas as desordens tinham
remitido sem recaídas depois de sua entrada na UDV.
Tal mudança foi particularmente notada na área de consumo excessivo de álcool,
onde, além dos cinco examinandos que tiveram diagnósticos anteriores do CIDI
relativos a desordens por abuso de álcool, seis examinandos adicionais referiram
padrões moderados de consumo de álcool, que se aproximavam do status de
diagnóstico psiquiátrico real na entrevista formal estruturada.
Todos estes onze examinandos com envolvimento anterior com álcool
alcançaram a completa abstinência pouco depois de se filiarem à seita da Hoasca.
Além disto, foram bastante enfáticos quanto a transformações radicais no seu
comportamento, atitudes em relação aos outros e visão da vida. Eles estão convictos
de que têm sido capazes de eliminar sua raiva crônica, ressentimento, agressão e
alienação, assim como em adquirir maior autocontrole, responsabilidade para com a
família e comunidade e realização pessoal através da participação nas cerimônias da
Hoasca na UDV.
Embora os efeitos salutares de um forte sistema de suporte em grupo e filiação
religiosa não possam ser minimizados, não é inconcebível que o uso por longo
tempo da Hoasca por si mesmo possa ter tido um efeito terapêutico e positivo direto
no status psiquiátrico e funcional dos indivíduos. Análises bioquímicas anteriores de
preparados da Hoasca indicaram
>, ____________________________________________
227
Anexo

significativa ação inibidora da monoamino-oxidase (Mckenna, 1984), o que pode ser
relevante para esses achados clínicos.
A avaliação de personalidade utilizando o Tridimensional Personality
Questionnaire (TPQ) revelou diferenças significativas entre os examinandos da UDV
e os de controle tanto nos domínios do Novel- ty Seeking como no Harm Avoidance,
mas não no Reward Dependence.
Examinandos da UDV pontuaram significativamente abaixo tanto no Novelty
Seeking como no Harm Avoidance, quando comparados com os de controle.
Indivíduos com relativamente baixas pontuações no Novelty Seeking são descritos
na literatura psiquiátrica como reflexivos, rígidos, leais, estoicos, de temperamento
calmo, frugais, ordeiros e persistentes (Cloninger, 1987b).
Pontuações baixas no Novelty Seeking também são associadas a
comportamentos de alta desejabili- dade social e maturidade emocional (Cloninger et
al ,1991). Indivíduos com pontuações baixas em Harm Avoidance são descritos
como confiantes, descontraídos, otimistas, despreocupados, desinibidos, amigáveis
e enérgicos (Cloninger, 1987b). A associação da baixa pontuação no Novelty
Seeking e Harm Avoidance foi identificada com traços de hipertimia, alegria,
determinação e confiança elevada em si mesmo (Cloninger, 1987b). Como as
dimensões da personalidade medidas no TPQ são tidas como tendências
hereditárias, uma questão pertinente que vem à tona destes resultados é se os
atributos de personalidade
______________________________________________ /
228
)
3
3
3
3
O
O
3
O
O
o
o
o
o
o
o
o
o
o
o
3
o
3
O
o
o
o
Farmacologia da Hoasca
--------------------------------------------------------------------- N
medidos aqui foram influenciados pelo longo tempo de consumo cerimonial da
Hoasca ou se são fatores previsíveis especificamente em indivíduos que venham a
se envolver num processo tal como o da UDV.
Um problema similar aparece com a interpretação dos dados neuropsicológicos.
Embora exami- nandos da UDV tenham tido melhores resultados no teste
neuropsicológico, comparados aos de controle, conforme medidos no WHO-UCLA
Auditory Le- arning Verbal Memory Test, a falta de dados retrospectivos torna
impossível determinar se o chá Hoasca tem proporcionado um efeito cognitivo
benéfico ou não. Embora os examinandos da UDV tenham conversado longamente
sobre como a Hoasca tinha melhorado seus poderes de concentração e memória, a
metodologia atual não foi designada para consolidar definitivamente esta conexão.
Apenas com avaliação comparativa de performances neuropsicológicas anteriores à
primeira experiência com a Hoasca, se poderia obter uma compreensão dos efeitos
de longo tempo de uso do chá sobre o estado cognitivo.
Somente administrando tais medições em pessoas sem experiência anterior com
o chá, e depois seguindo-as durante todo o processo, com avaliações em série à
medida em que viessem a se envolver com a UDV e o ritual de uso da Hoasca,
poderiamos definitivamente precisar se a Hoasca realmente melhora o status
cognitivo. A aproximação metodológica utilizada no estudo atual pretendeu somente
ser prelimi-
V ____________________________________________ 4
229
Anexo
---------------------------------------------------------------------
nar e exploratória, não possuindo a logística necessária que permitiría tal estudo
prospectivo.
A presente análise dos dados é, porém, indicativa de que o consumo por longo
tempo da Hoasca, no contexto cerimonial estruturado da UDV, não parece exercer
um efeito deletério nas funções neuropsico- lógicas.
Este estudo é uma tentativa inicial de aplicar rigorosamente modelos e
instrumentos de pesquisa contemporâneos ao pouco estudado fenômeno do uso
ritualístico da planta alucinógena Hoasca. Embora com uma longa tradição de uso
entre as populações indígenas da Bacia Amazônica, aplicação medicinal
amplamente difundida pelas populações mestiças, e, com o desenvolvimento no
século XX das igrejas sin- créticas no Brasil, pesquisas psiquiátricas e médicas até
agora têm falhado em abordar a questão de quais são os efeitos deste chá psicoativo
incomum. Depoimentos quanto a seus efeitos na melhora e restauração da saúde
precisam ser explorados, assim como alegações de seu potencial deletério.
O estabelecimento de sanção legal dentro do contexto religioso no Brasil torna
um pré-requisito importante e necessário futuras investigações objetivas e
abrangentes. O uso cerimonial da Hoasca, como estudado neste projeto de
pesquisa, é claramente um fenômeno muito diferente da noção convencional do
“abuso de drogas”. De fato, seu aparente impacto sobre os examinandos avaliados
no curso de nossa pesquisa, parece ter sido positivo e terapêutico, tanto nos
depoimentos pessoais como nos testes objetivos.
>. ____________________________________________ J
230
O
O
J
o
o
o
o
o
o
o
o
o
L
O
O
o
o
o
Q
o
o
o
o
o
o
c
o
o
o
c
Farmacologia da Hoasca
---------------------------------------------------------------------
Existe claramente uma necessidade de buscar estudos de seguimento rigorosos
e abrangentes para as explorações preliminares aqui reportadas, não somente para
futura elucidação do fenômeno singular do uso da Hoasca num contexto ritual
altamente estruturado, mas também por causa do crescente interesse e uso da
Hoasca na América do Norte e Europa. Será imperativo delinear cuidadosamente o
potencial para efeitos adversos assim como estabelecer parâmetros ótimos de
segurança dentro dos quais a Hoasca pode ser consumida.
Sob esta luz, cuidadoso estudo da estrutura cerimonial e salvaguarda de tais
grupos poderá facilitar o desenvolvimento de pesquisas futuras. E nossa esperança
que esforços subsequentes para investigar o fenômeno Hoasca irão explorar estes
assuntos, e determinar se nossos achados preliminares podem ser confirmados.
Independentemente destes resultados serem finalmente corroborados,
acreditamos ter demonstrado que este fascinante, embora negligenciado fenômeno,
pode ser rigorosamente estudado, utilizando instrumentos de investigação e
pesquisa.
V ____________________________________________ /
231
oooooooooooooooooooooooooooooooooooooc
para a construção da paz, pondo em relevo uma realidade raramente admitida:
apesar das barreiras sociais, étnicas, culturais e nacionais, a humanidade é uma só.
Tem a mesma origem e o mesmo destino, vivendo as mesmas perplexidades e
anseios.
Mestre Gabriel, o Mensageiro de Deus relata o processo de construção de um
caminho espiritual renovado, que, a partir da floresta amazônica, se expandiu pelo
país e já sensibiliza outros povos, confirmando sua essência de universalidade.
Ruy Fabiano Baptista Rabello, carioca,
58 anos, residente em Brasília, é jornalista há 38 anos e escritor, autor de um ro-
mancè (Profanação, Ed. A Girafa, SP, 2005) e de um livro de contos {Os Arquivos de
Deus, Ed. Novo Século, SP, 2008).

★ O
ríY] .
PEDRA NOVA o
Edições m
...o o

Quem é esse personagem misterioso e fascinante, que, com tão escassa


escolaridade, e em meio tão inóspito, incursiona pela mais refinada filosofia e marca,
com sua presença, um novo momento no processo de evolução espiritual da
humanidade? É o que este livro, que não tem propósito doutrinário, se dispõe a
examinar, traçando-lhe o perfil biográfico e expondo a obra que deixou.
ISBN 978-85-61938-01-7
9 788561 938017
O
O
qff o |
■o
o>
o
o
O' !
o
O!
OI
'O j
oI
o
o;
o
o
o
o
Q
O
o
o
o
o
o
o
o
■ÈL

Você também pode gostar