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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ

CENTRO DE HUMANIDADES
CURSO DE GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

WESLEY SOUSA SAMPAIO

NARRATIVAS EM DISPUTA: O REVISIONISMO DE 1964 E A MEMÓRIA DA


COMUNIDADE IMAGINADA BRASILEIRA

FORTALEZA - CEARÁ
2021
WESLEY SOUSA SAMPAIO

NARRATIVAS EM DISPUTA: O REVISIONISMO DE 1964 E A MEMÓRIA DA


COMUNIDADE IMAGINADA BRASILEIRA

Trabalho de conclusão de Curso


apresentado ao Curso de Graduação em
Ciências Sociais do Centro de
Humanidades da Universidade Estadual
do Ceará, como requisito parcial à
obtenção do grau de Bacharel em
Ciências Sociais.

Orientadora: Profª. Dra. Mônica Dias


Martins.

FORTALEZA - CEARÁ
2021
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação
Universidade Estadual do Ceará
Sistema de Bibliotecas

Sampaio, Wesley Sousa.


Narrativas em disputa: o revisionismo de 1964
e a memória da comunidade imaginada brasileira
[recurso eletrônico] / Wesley Sousa Sampaio. -
2021.
100 f.

Trabalho de conclusão de curso (GRADUAÇÃO) -


Universidade Estadual do Ceará, Centro de
Humanidades, Curso de Ciências Sociais, Fortaleza,
2021.
Orientação: Prof.ª Dra. Mônica Dias Martins.
1. Comunidade Imaginada. 2. Memória coletiva.
3. Estado de exceção. 4. Revisionismo. 5.
Ditadura militar. I. Título.
WESLEY SOUSA SAMPAIO

NARRATIVAS EM DISPUTA: O REVISIONISMO DE 1964 E A MEMÓRIA DA


COMUNIDADE IMAGINADA BRASILEIRA

Trabalho de conclusão de Curso


apresentado ao Curso de Graduação em
Ciências Sociais do Centro de
Humanidades da Universidade Estadual
do Ceará, como requisito parcial à
obtenção do grau de Bacharel em
Ciências Sociais.

Aprovado em: 19 de julho de 2021.

BANCA EXAMINADORA

_________________________________________________________
Orientadora: Profª Drª. Mônica Dias Martins (Orientadora)
Centro de Humanidades - CH
Universidade Estadual do Ceará – UECE

________________________________________________________
Profª. Drª. Natália Monzón Montebello
Centro de Humanidades - CH
Universidade Estadual do Ceará – UECE

_________________________________________________________
Prof. Ms. Luís Gustavo Guerreiro Moreira
Universidade Federal do Ceará – UFC
AGRADECIMENTOS

À minha mãe, Ana Alice Freitas de Sousa, por seu esforço e por acreditar no meu
potencial.

À Jamily Fernandes Souza por ser minha inspiração e incentivo. Por me


acompanhar nessa trajetória e por me acolher.

À Prof.ª Dr.ª Mônica Dias Martins por sua generosidade e paciência. Por sua
disposição para ensinar e compartilhar seus conhecimentos.

À toda a equipe do núcleo multidisciplinar de pesquisa do Observatório das


Nacionalidades da Universidade Estadual do Ceará, pelas partilhas e aprendizados.
Por despertar minha imaginação sociológica.
RESUMO

Nosso estudo discute sobre a relação memória/esquecimento e sua função de


promover a coesão social por meio da criação de subjetividades e identidades
coletivas. Esse mecanismo possibilita a formulação de discursos que objetivam
legitimar valores e demandas de grupos sociais e políticos. Apropriando-se da
categoria comunidades imaginadas de Benedict Anderson, interpreta-se que a
nacionalidade é formada visando despertar sentimentos de pertencimento,
fraternidade e simultaneidade entre os sujeitos sociais. Também é utilizado o
conceito de memória coletiva para aprofundar essa discussão e compreender os
impactos causados pelo revisionismo sobre o Golpe de Estado de 1964 proposto
pelas novas direitas brasileiras. Tendo como plano de fundo uma retrospectiva dos
fatos que compõem o evento histórico, se busca delimitar o papel dos militares na
política levando em consideração o conceito de Estado de Exceção. Também é
debatido sobre quem são as novas direitas e qual seu impacto na formação da
imaginação nacional. Para observar esse fenômeno é aplicada uma metodologia
comparativa sobre os documentários Setenta (Emilia Silveira, 2014) e 1964: o Brasil
entre armas e livros (Lucas Ferrugem, 2019), que são usados como instrumentos de
análise para apreender suas divergências narrativas e os respectivos interesses
ideológicos por trás das obras. Desse modo, demonstra-se a funcionalidade de
produções culturais para apreensão e estudo da realidade. Por fim, tem-se por
objetivo alcançar uma compreensão das relações de poder e da subjetivação como
mecanismos de coesão social e legitimação de valores e interesses.

Palavras-chave: Comunidade Imaginada. Memória coletiva. Estado de exceção.


Revisionismo. Ditadura militar.
ABSTRACT

Our study discusses the relation between memory/forgetfulness and its function of
promoting social cohesion through the creation of subjectivities and collective
identities. This mechanism enables the formulation of discourses that aim to
legitimize values and demands of social and political groups. By appropriating
Benedict Anderson's category of imagined communities, it is interpreted that
nationality is formed aiming to arouse feelings of belonging, fraternity, and
simultaneity among social subjects. The concept of collective memory is also used to
deepen this discussion and to understand the impacts caused by the revisionism on
the Coup of 1964 proposed by the new Brazilian right-wingers. Having as
background a retrospective of the facts that make up the historical event, we seek to
delimit the role of the military in politics taking into consideration the concept of the
State of Exception. It also discusses who the new right-wingers are and their impact
on the formation of the national imagination. To observe this phenomenon, a
comparative methodology is applied on the documentaries Setenta (Emilia Silveira,
2014) and 1964: O Brasil entre armas e livros (Lucas Ferrugem, 2019), which are
used as instruments of analysis to apprehend their narrative divergences and the
respective ideological interests behind the works. In this way, the functionality of
cultural productions to apprehend and study reality is demonstrated. Finally, it aims
to achieve an understanding of power relations and subjectivation as mechanisms of
social cohesion and legitimation of values and interests.

Keywords: Imagined Community. Collective memory. State of exception.


Revisionism. Military dictatorship.
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO……………………………………………………………………….9

2 A CONSCIÊNCIA COLETIVA E A NAÇÃO……………………………………..16

2.1 A comunidade imaginada………………………………………………………..17

2.2 A memória coletiva……………………………………………………………….25

2.3 O estado de exceção……………………………………………………………..31

3 AS NARRATIVAS SOBRE 1964………………………………………………….36

3.1 Os militares e a política………………………………………………………….37

3.2 O cinema e o imaginário nacional……………………………………………..48

3.2.1 Os Setenta de Emília Silveira……………………………………………………..51

3.2.2 1964: O Brasil entre armas e livros de Lucas Ferrugem……………………….58

4 O REVISIONISMO………………………………………………………………….69

4.1 As leituras sobre 1964…………………………………………………………...72

4.2 As novas direitas………………………………………………………………….75

4.3 (Re)interpretando 1964…………………………………………………………...79

4.4 Ditadura e estado de exceção…………………………………………………..83

5 CONCLUSÃO……………………………………………………………………….87

REFERÊNCIA……………………………………………………………………....92
9

1 INTRODUÇÃO

Nesta monografia buscamos investigar os processos de formação da


consciência nacional brasileira sobre um evento histórico pertinente para a interação
da sociedade civil com instituições políticas e militares: o golpe de Estado de 31 de
março de 1964. Nossa perspectiva metodológica foi adquirida pela vivência
proporcionada pela iniciação científica, através do projeto Literaturas, nacionalidades
e colonialismo da rede multidisciplinar de pesquisa do Observatório das
Nacionalidades-UECE. Desde 2018, o estudo vem sendo motivado pelo desafio de
vislumbrar a teoria da nação por meio de instrumentos inusitados, explorando
diferentes tipos de interações sociais, culturais e políticas e apreendendo formas
variadas de subjetividade.

O tema deste trabalho foi concebido por meio de um olhar crítico aprimorado
por essa experimentação, observando manifestações culturais para capturar a
relação memória/esquecimento com a constituição de narrativas históricas e seu
efeito na formação de uma consciência coletiva.

No dia 02 de abril de 2019 uma reportagem chamava atenção por afirmar que
um “filme pró-golpe militar” fora exibido devido a um erro nas salas de uma rede de
cinema em cinco cidades do país1. O que mais incomodava na notícia era a data do
seu lançamento, 31 de março de 2019, quando se completava 55 anos do golpe de
1964. A nota de esclarecimento da rede Cinemark emitida no dia 1º de abril,
assegurava que além de ter sido um erro, a empresa não se envolvia com questões
político-partidárias. Essa fala despertou críticas de diferentes vertentes políticas, e
resultou em proposta de boicote à distribuidora de cinema e acusações de censura2.
O objeto dessa discussão foi o documentário da produtora gaúcha Brasil Paralelo3,

1
"Filme pró-golpe militar foi exibido por erro, informa Cinemark". Folha de S. Paulo. Disponível em
<https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2019/04/filme-pro-golpe-militar-foi-exibido-por-erro-informa-ci
nemark.shtml>. Acesso em 01 de março de 2021.
2
"Cinemark exibe filme pró-ditadura, pede desculpas e gera polêmica na internet". Brasil
Econômico. Disponível em
<https://economia.ig.com.br/empresas/2019-04-02/cinemark-exibe-filme-pro-ditadura-pede-desculpas-
e-gera-polemica-na-internet.html>. Acesso em 01 de março de 2021.
3
A Brasil Paralelo (nome fantasia para LHT HIGGS Produções Audiovisuais LTDA), é uma empresa
fundada em Porto Alegre, em 2016. Entre suas produções estão documentários, filmes, séries,
trilogias, cursos e podcasts. A Empresa também é responsável por distribuir, lançar e comercializar
10

intitulado 1964: O Brasil entre armas e livros, que visa apresentar uma narrativa
revisionista dos eventos que levaram ao golpe e dos fatos que marcaram os 21 anos
de governos militares.

Após a polêmica, a produtora lançou o filme gratuitamente em seu site e na


plataforma de compartilhamento de vídeos YouTube. Um documentário de duas
horas sobre a ditadura, que conta com falas importantes para o pensamento de
direita no Brasil, incluindo a figura polêmica de Olavo de Carvalho, reflete aspectos
expressivos da atual conjuntura.

Três anos antes, o país havia enfrentado seu segundo impeachment desde a
redemocratização; Dilma Rousseff foi afastada da presidência e sua queda
representou o fim do ciclo do Partido dos Trabalhadores (PT) no poder executivo4.
Escândalos de corrupção novelizados diariamente por meio do acompanhamento
midiático da operação lava-jato, crescimento de produções culturais de teor
revisionista, manifestações nas redes sociais e protestos de rua como as
emblemáticas jornadas de junho de 2013, são exemplos do cenário que culminou na
derrocada do PT, em particular, e na insatisfação com a política, de modo geral.

Outro fenômeno alarmante foi o avanço de uma onda conservadora junto a


outras facções políticas presentes no espectro da ideologia de direita, como por
exemplo, os grupos liberais ou ultraliberais, que saíram dos fóruns na internet para
as ruas, e delas avançaram para as urnas5. Esse movimento acompanhou e
alavancou a crescente campanha de Jair Bolsonaro, findando na sua eleição para o
cargo de presidente da república em 2018.

O documentário da Brasil Paralelo foi lançado no primeiro ano do governo


Bolsonaro (2019 - 2022), em um cenário propício para difundir outra “versão da
história”. Trata-se de um momento que representa o alvorecer das novas direitas
(ROCHA, 2019). A tomada de poder pelos militares em 1964 tem sido

seus produtos, além de oferecer assinaturas aos membros de sua comunidade. Seus conteúdos são
voltados aos aspectos sociais, políticos e econômicos brasileiros.
4
"Queda de Dilma sela fim da era PT no poder". El País Brasil. Disponível em
<https://brasil.elpais.com/brasil/2016/08/31/politica/1472649402_496679.html>. Acesso em 01 de
março de 2021.
5
"Eles saíram das ruas direto para as câmaras municipais". El País Brasil. Disponível em
<https://brasil.elpais.com/brasil/2016/10/04/politica/1475609311_351060.html>. Acesso em 01 de
março de 2021.
11

constantemente trazida ao debate, seguida da proposta de releitura das memórias e


discursos históricos, além de sugerir a celebração deste acontecimento como marco
de transformações políticas e desenvolvimento nacional. Consequência disso, em
março de 2021, o governo Bolsonaro recebeu autorização da Justiça para celebrar o
“movimento de 1964” como uma data importante para o processo democrático, sob o
discurso de defesa ao pluralismo de ideias6.

Podemos notar a existência de uma disputa pela exposição de


acontecimentos históricos (narrativa) entre grupos ideológicos de esquerda e de
direita. Revisar a literatura sobre o golpe consiste em apreender dimensões da
postura adotada pelas novas direitas e sua atual projeção política e social, como
também o tratamento e espaço delimitado aos militares, considerando o estigma de
duas décadas descritas pela historiografia como de autoritarismo e censura.

Ao delimitar como objeto de estudo o revisionismo dos acontecimentos que


têm início com o golpe civil-militar, acreditamos poder apreender o imaginário da
parcela liberal-conservadora da sociedade contemporânea, contribuindo para futuras
análises de conjuntura e dos possíveis impactos do governo Bolsonaro. Assim, 1964
representa um marco importante para entender, na perspectiva das novas direitas, a
consolidação de valores nacionais, como também a relação da sociedade com as
forças armadas, aparato estatal que detém o monopólio do uso legítimo da violência
(WEBER, 2011). Desse modo, nossa primeira preocupação é delimitar conceitos que
nos ajudem a observar esse fenômeno.

Inicialmente devemos refletir sobre a ideia de nação, que veio se


transformando com o tempo, confundindo-se com outras palavras como pátria ou
país que passaram a ser sinônimos para definir comunidades e/ou coletivos políticos
(DOMINGOS NETO, 2019). Nesse estudo compreendemos que, por mais que
tenhamos o objetivo de estabelecer uma definição, seu significado está atrelado a
formas e tipos de “amor à pátria”, “projeto nacional”, “honra nacional”, “objetivos
nacionais”, etc.

6
"Governo Bolsonaro ganha aval da Justiça para celebrar o golpe de 1964". O Povo. Disponível em
<https://www.opovo.com.br/noticias/politica/2021/03/17/governo-bolsonaro-ganha-aval-da-justica-para
-celebrar-o-golpe-de-1964.html>. Acesso em 18 de março de 2021.
12

Essas paixões, vontades e projetos são mutáveis, suscetíveis à ação da


memória e do esquecimento, que por sua vez, são selecionadas e relativas às
causas sociais e/ou interesses econômicos e políticos de parcelas da população que
manejam os dispositivos de produção e de poder. Domingos Neto (Ibidem, p. 26)
também afirma que a ideia de a nação ser uma comunidade histórica, linguística ou
culturalmente formada é falaciosa. Efetivamente esse processo “criativo” reflete em
legitimar valores e condutas, que são mecanismos de coesão social. São condições
simultâneas que permitem entendê-la como uma comunidade imaginada
(ANDERSON, 2008), elementos que constituem uma consciência maior.

Na sequência, discutimos a categoria de memória coletiva


(HALBWACHS,1990), que possibilita o entendimento da seletividade das narrativas
históricas e a atribuição de valores a determinados fatos, conforme esclarece Olga
Simon (2003, p. 14):

Memória é a capacidade humana de reter fatos e experiências do passado e


retransmiti-los às novas gerações através de diferentes suportes empíricos
(voz, música, imagem, textos etc.). Existe uma memória individual que é
aquela guardada por um indivíduo e se refere às suas próprias vivências e
experiências, mas que contém também aspectos da memória do grupo social
onde ele se formou, isto é, no qual esse indivíduo foi socializado.

Há também aquilo que denominamos de memória coletiva, que é aquela


formada pelos fatos e aspectos julgados relevantes pelos grupos dominantes
e que são guardados como memória oficial da sociedade mais ampla. (...)

A sua constituição deriva da troca de percepções e lembranças, experiências


individuais que são compartilhadas e coletivizadas. Os sentimentos são transversais
às demandas sociais e são apropriados, somatizados e distribuídos.

Essa ideia, em associação com a perspectiva imaginativa da nação como


comunidade horizontal (ANDERSON, 2008), nos leva a compreensão da categoria
de nacionalidade (nation-ness), constituída pela junção de elementos culturais
identitários que delimita o pertencimento a determinado coletivo nacional. Esse
caráter identitário resulta em promover a simultaneidade entre os sujeitos que são
naturalizados e convertidos a uma consciência coletiva, uma identidade pautada na
simultaneidade e na ritualização do cotidiano. Existe uma hereditariedade que está
13

para além dos fatores consanguíneos, ideológicos e linguísticos. São fatores


subjetivos, interpessoais e psicossociais. Todavia, a realidade dessas comunidades
é (re)imaginada constantemente.

A partir dessas noções nos defrontamos com a seguinte questão: como o


revisionismo sobre o golpe de 1964 pode impactar a comunidade imaginada
brasileira? Nossa história revela inúmeros episódios em que mudanças repentinas
de paradigmas resultaram em novas dinâmicas sociais. Recentemente, uma onda
conservadora implicou na ascensão de novas direitas e de facções militares, que
antes eram historicamente estigmatizadas por sua responsabilidade nos eventos que
culminaram no golpe de 1964. Como consequência, influenciam um discurso oficial
que legitima sua atual posição íntima com o Estado nacional.

Devemos compreender, primeiramente, que essa “versão” dos fatos vem se


popularizando e agora tem um ambiente fértil para se propagar (CARDOSO, 2011)7.
O que pressupõe um ideário nacionalista que rivaliza com as produções literárias
sobre 1964, que enfatizam ações autoritárias durante o regime militar, desde
censuras até crimes como a prática de torturas e assassinatos cometidos por
militares. Neste quesito, o Projeto Brasil Nunca Mais (BNM) é um dos referenciais de
maior destaque. Com a colaboração de Dom Frei Paulo Evaristo Arns, Cardeal
arcebispo de São Paulo, a comissão formada por advogados, jornalistas, religiosos e
militantes políticos coletou e mapeou informações, depoimentos e documentações
que comprovam práticas de repressão mantidas entre a queda de Goulart em abril
de 1964 e março de 1979. Essa conduta repressiva é sustentada por uma Doutrina
de Segurança Nacional (DSN), uma ideologia castrense voltada para a defesa e
manutenção da ordem (ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO, 1985).

No elóquio dos grupos revisionistas há uma influência direta da DSN que


segue o "conceito estratégico de defesa nacional" e combate às "forças internas de
agitação", que no período em questão eram o comunismo ou militância de esquerda,
ideologia enxergada como antinacionalista. Essa condição de emergência legitima

7
Lucileide C. Cardoso (2011) relata celebrações dos militares sobre os episódios ocorridos em 1964,
abordando suas justificativas para o golpe contra uma "revolução comunista" e para a estruturação do
regime militar que durou até 1984-85. Apresenta os materiais de sua pesquisa como “lugar de
memória” afetivo e de respaldo às declarações que atribuem aspectos positivos à conduta adotada
durante este período histórico.
14

condutas excepcionais e a aplicação do Estado de sítio ou Governos de Crise.


Ambas as nomenclaturas se encaixam na análise de Giorgio Agamben (2004) sobre
o estado de exceção. Essa conduta extrajurídica de “defesa” da democracia é a
terceira categoria de análise que usaremos. Através dela pretendemos observar a
conjuntura do regime militar e compreender as divergências quanto à sua definição
como ditadura ou revolução.

Os militares são atores relevantes para a dinâmica social. O choque entre


vontades coletivas e interesses pela gerência do poder (DOMINGOS NETO, 2019)
provoca instabilidades e conflitos entre facções sociais e políticas. Em uma nação
que surgiu no contexto colonial como o Brasil, o papel das Armas se confunde com a
autoridade do governo, despertando conflitos semelhantes no interior da própria
caserna. É o que alimenta a discussão sobre a política dos militares ou a influência
dos mesmos no funcionamento da máquina pública, pois a necessidade de
estabelecer “ordem” delimita tipos específicos de ameaças e meios de combatê-las.

O discurso oficial busca delimitar e estabelecer narrativas quanto a


fenômenos culturais e históricos através de diferentes tipos de literaturas. Isto
determina como se configura o imaginário coletivo. O tempo da memória ultrapassa
o tempo individual e se encontra com a história das sociedades. A memória se
transforma por meio da seletividade do que deve ser lembrado e esquecido. “Tal
postura, inúmeras vezes, é explicativa da valorização e exaltação de algumas
conjunturas e/ou processos históricos e da desqualificação e esquecimento tácito de
outros” (DELGADO, 2010, p. 125).

Aprendemos por meio da teoria de Benedict Anderson (2014) que diferentes


manifestações culturais possibilitam a elaboração de práticas narrativas e analíticas
de fenômenos sociais e políticos. Após expormos a participação dos militares na
política brasileira, iremos explorar dois discursos sobre os eventos de 1964. Vamos
estabelecer uma observação comparativa, através de mídias que utilizam de
recursos audiovisuais, pois acreditamos que, desse modo, temos amplas
possibilidades de investigação. Contudo, por limitações teóricas, não abordaremos
aspectos próprios da arte cinematográfica, mas a sua capacidade de comunicar a
história. A nossa escolha são dois documentários: Setenta (2014) dirigido por Emília
15

Silveira, e o já citado 1964: O Brasil entre armas e livros (2019) da produtora Brasil
Paralelo.

O filme de Emília Silveira (2014) reforça a criminalização da tortura como


política de Estado. Silveira coletou depoimentos de ex-presos políticos que relatam
casos de tortura e maus tratos durante o cárcere antes de serem exilados na década
de 1970. Seu filme dialoga com a perspectiva relatada pela historiografia oficial
pós-redemocratização. Já a produção dirigida por Lucas Ferrugem (2019) apresenta
uma narrativa revisionista. Seu objetivo é cumprir um papel pedagógico mostrando
uma versão alternativa da história, mas que tenta convencer o público de que essa
tese é a única verdade sobre o golpe civil-militar e os 21 anos de regime.

Por fim, visamos compreender como se configura o fenômeno do revisionismo


das novas direitas e seu papel no atual cenário político. Pretendemos apreender o
processo de formação de uma consciência coletiva e como se estabelece o
entrechoque de interesses que resulta em uma disputa de narrativas, que determina
quem tem o direito de determinar o que lembrar e esquecer do passado.
16

2 A CONSCIÊNCIA COLETIVA E A NAÇÃO

Em tempos de mudanças drásticas do cenário político temos em nossas mãos


um conflito de subjetividades sobre o que é " ser brasileiro". Muitos embarcaram na
ousada empreitada de delimitar nossa nacionalidade. Já vimos muitos homens e
mulheres almejarem a ousada empreitada de delimitar esta identidade. Gilberto
Freyre (1900-1987) recorreu ao passado longínquo das senzalas para formular uma
genealogia da vida privada e atribuir, por meio dos costumes e ritualísticas do
cotidiano, uma cara ao brasileiro (FREYRE, 2003). Do mesmo modo vimos a longa
jornada de Darcy Ribeiro (1922-1997) que buscou em uma obra definir "O Povo
Brasileiro" (RIBEIRO, 1995). Também lembramos o empenho de Dante Moreira Leite
(1927-1976), que dedicou parte de seus estudos à formação do "Caráter Nacional
Brasileiro”, desenvolvendo uma tese voltada a entender os processos de
constituição da cultura nacional (LEITE, 2002).

A memória e o esquecimento estão associados à operação de formação das


nações. Narrativas históricas são formuladas para justificar ações e condutas que
colaboram para imaginar uma sociedade.

Observamos atualmente, uma proposta das camadas liberais e


conservadoras (geralmente associadas aos movimentos ideológicos de direita), de
revisar os registros e as narrativas sobre acontecimentos passados, visando
legitimar a perspectiva difundida por estes grupos do que seria a identidade
nacional. Um dos fenômenos que nos ajuda a entender ou pelo menos vislumbrar,
mesmo que brevemente, a proposta de revisionismo, é a celebração dos eventos de
1964, positivando a atuação dos golpistas e os vinte anos de ditadura. Isto se dá
pela busca de fortalecer esse discurso e contrapô-lo ao da “esquerda” que
criminaliza a conduta dos governos militares.

Para entender esta disputa pela história, iremos fixar nossa atenção sobre os
eventos de 1964 na nação brasileira e como estes são lembrados na
contemporaneidade. Porque é importante dominar a narrativa sobre 1964? Quais os
impactos de uma ou de outra perspectiva para a compreensão da história? Como
isso pode influenciar na construção de uma consciência coletiva?
17

Para nos aproximar de questões como essas, acreditamos ser necessário


conceituar os termos que falamos. Iniciaremos por conceituar nação. Com apoio no
pensamento de Benedict Anderson (2008), definimos a nação como comunidade
imaginada, o que ajuda a perceber todo o leque de valores e sentimentos que
compõem uma nacionalidade. A memória é elemento fundamental nesse processo,
o que nos leva ao conceito de memória coletiva de Maurice Halbwachs (1990), e o
modo como podemos relacioná-lo às narrativas históricas. O período estudado
(1964-1985) é marcado pela formação de um estado de exceção, o que nos leva a
recorrer às ideias desenvolvidas por Giorgio Agamben (2004).

2.1 A comunidade imaginada

Como definir o que é uma nação? Existe uma verdadeira mitologia que
compõe o significado do termo e sua aplicação no campo teórico e na prática
política. Em sua trajetória histórica ele adquire diferentes significados e recebe
atributos correspondentes ao contexto do seu locutor ou no qual é apreendido. Não
há um consenso que apresente um conceito definitivo e universal. Segundo Otto
Bauer, apesar de sua necessidade certa e, até mesmo no inflamar de conflitos
nacionalistas no correr da história, não nos deparamos como uma teoria satisfatória
sobre o que é nação; apenas constatamos o romantismo que a envolve, os afetos
que alimentam as ideologias nacionais em todo o mundo e a emoção que nutre os
sujeitos que a constituem (BAUER, 2000).

No Dicionário de Política (BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO, 1998), o


verbete “nação” a delimita como um grupo de indivíduos relacionados por laços tidos
como naturais que fundamentam a organização do poder na estrutura do Estado
nacional (ROSSOLILLO, 1998, p. 796). A ideia de “laços” naturais considera a
existência de elementos e traços socialmente difundidos e compartilhados pelos
sujeitos que compõem este coletivo. Portanto, em diferentes contextos o termo está
associado a comunidades políticas, étnicas, culturais etc., das quais se exige
fidelidade a fatores estruturais, simbólicos e de conjuntura, considerados marcos da
formação destas comunidades. Por fim, um conjunto de laços socialmente
18

construídos que pretendem unir a população e garantir a soberania do


Estado-nação.

Ainda no mesmo verbete se discute a natureza desses "laços naturais" que


servem para delimitar agrupamentos nacionais e garantir a homogeneidade no seio
de suas fronteiras identitárias, diferenciando deste modo uma nacionalidade da
outra. A unidade nacional é sustentada por toda sorte de subjetividades coletivas e
individuais que delimitam os sujeitos que a compõem e determinam o conjunto de
valores, ideários e narrativas que indicam os mártires que formam a comunidade.
Essa comunhão é ilusória, pois, o objetivo da nação é criar o sentimento de
fidelidade ao Estado.

Benedict Anderson (2008) contribuiu com o modo de pensarmos o que é a


nação, apresenta o conceito de comunidade imaginada8 para definir um coletivo
político territorial, histórico e culturalmente delimitado. Essa imaginação deve
sobrepor-se inicialmente às relações hierárquicas, analisando a sua estrutura com
base na ideia de uma comunidade horizontal. O compartilhamento de signos e
significados dos sujeitos comprometidos com a formação da identidade nacional
constitui um meio de atribuir antiguidade e continuidade ao sistema de crenças que
legitima o Estado consolidado. O estudioso justifica que "ela é imaginada porque
mesmo os membros da mais minúscula das nações jamais conhecerão, encontrarão
ou nem sequer ouvirão falar da maioria de seus companheiros, embora todos
tenham em mente a imagem viva da comunhão entre eles.” (ANDERSON, 2008,
p.32).

Anderson ressalta que no coletivo nacional se sobressai a noção de laços


afetivos, históricos e culturais socialmente compartilhados. Ao englobar todos estes
fatores, a comunidade imaginada exige a delimitação de um conceito próprio para
explicar a condição de um sujeito nacional. O autor apresenta o conceito de

8
Comunidades Imaginadas foi originalmente publicado em 1983, sofrendo revisões do próprio autor
em 1991, recebendo adesões e correções como a inclusão do capítulo Senso, mapa e museu.
19

nation-ness9 ou nacionalidade que define o sentimento de pertencimento a um


coletivo imaginário.

Segundo o linguista e historiador, este sentimento está relacionado às


narrativas que são históricas e materialmente compostas. Na sua dimensão material,
observa-se a interação de fatores econômicos, técnico-científicos e ideológicos.
Pois, nas sociedades ocidentais, este fenômeno ocorreu por meio do
desenvolvimento tecnológico dos meios de transporte e comunicação abrangendo
seus resultados quanto à dinâmica econômica.

Já em sua dimensão histórica, a noção de antiguidade do imaginário de nação


se faz possível por intermédio do declínio de três sistemas culturais: A língua
sagrada própria das comunidades religiosas, o ideário divinatório dos monarcas dos
antigos reinos dinásticos e a concepção de simultaneidade do tempo. Estes
processos teriam impulsionado a alteração das concepções religiosas, devido: a) a
vernaculização, o capitalismo editorial e a reforma protestante que invalidaram o
juízo de que uma determinada língua pudesse oferecer o conhecimento de uma
verdade absoluta e ontológica; b) o ideário de coletividade religioso e a identidade
universal proposta pela instituição religiosa foram modificados pela manifestação de
sentimentos identitários nacionalistas, descentralizando o poder e conduzindo ao
fortalecimento de uma classe que deslegitima o poder dinástico; c) por fim, a
concepção cosmológica de narrativa das sociedades é convertida em uma
apreciação histórica.

Todos estes movimentos colaboram para alteração da percepção de tempo,


devido à nova dinâmica das relações de produção, dos laços que unificam os
coletivos nacionais e do surgimento de um Estado nacional. Foi estabelecida uma
medição da história que segue uma trajetória linear, alterando o conhecimento dos
fatos e eventos do passado. As nações instituem suas próprias histórias e elegem os
seus marcos de origem como sociedades coesas. Estruturam-se como
consequência da busca por um novo modo de vincular fraternidade, poder e tempo.
9
Na edição de 2008 do livro Comunidades Imaginadas pela editora Companhia das Letras, este
termo é traduzido do inglês para o português como “condição nacional” (ANDERSON, 2008, p.28).
Esta condição própria de sujeitos membros de comunidades nacionais possui como sinônimos termos
como nacionalidade e identidade nacional, podendo também ser explicado através da definição de
nacionalismo e ideologia nacional (LEVI, 1998. P. 800). Neste estudo optamos pelo uso de
nacionalidade.
20

As nacionalidades são identidades constantemente alimentadas por essas


mitologias que conduzem a passados longínquos. Contudo, as lembranças
evocadas e ritualizadas em meio às tradições dos grupos que compõem a sociedade
nacional, remetem a fatos mais antigos ou que não necessariamente seguem a
ordem cronológica traçada pelos historiadores, que informa o recorte de tempo no
qual as primeiras nações se formaram. O que nos leva a pensar que muitas destas
tradições podem ser “inventadas” (HOBSBAWM, 1997).

Estão postos os paradoxos que todo estudioso da nação irá se deparar: em


primeiro lugar, a nação como representação do modelo político, cultural e ideológico
do Estado contemporâneo e da sociedade moderna, em contraponto à narrativa
nacionalista de sua antiguidade; em segundo lugar, a pretensa homogeneidade da
nação como conceito sociocultural e a particularidade das manifestações concretas,
o modo como cada nação ritualiza a condição de nacionalidade é sui generis; em
terceiro, o poder político dos movimentos nacionalistas e sua pobreza e incoerência
filosófica, ou seja, a ausência de uma episteme concisa sobre o fenômeno nacional
(ANDERSON, 2008).

Para Benedict Anderson, a origem da concepção que temos de nação é


relacionada ao "novo mundo" e à fertilidade da imaginação anticolonial para pensar
o sentimento de pertencimento nacional. Os movimentos de libertação ocorridos
nestes territórios "além-mar" são o cenário perfeito para alimentar um imaginário
nacional, que conecta todos os colonizados de uma ponta a outra das Américas,
formando uma herança, uma história e uma descendência que compartilhassem,
fortalecendo as dimensões culturais, sociais e políticas das lutas de independência.
O autor busca ressaltar a simultaneidade das manifestações culturais e a
representatividade do sentimento nacional.

Além de fatores materiais e objetivos como a interação do sistema capitalista


e seus impactos na dinâmica territorial, tecnológica e comercial, ou da grande
variedade de vernáculos, Anderson traz exemplos que enfatizam as particularidades
dos processos constitutivos das comunidades nacionais. Porém, essas
particularidades não são simples essências nas quais se esgotam as possibilidades
de formação dos movimentos nacionais. Muito menos uma nação é uma mera
21

consolidação do Estado burguês pós-revoluções do “velho mundo”10. A proposta de


Benedict Anderson consiste em demonstrar como a nação é pensada cultural e
historicamente e que existem inúmeras possibilidades de construção de uma
comunidade imaginada.

Sua metodologia narrativa e comparativa demonstra a finitude da nação ao


ilustrar suas fronteiras simbólicas e físicas. As comparações evidenciam os
paroxismos citados anteriormente, pois, podemos observar a variação dos
processos de consolidação dos Estados nacionais, as diferentes dinâmicas
econômicas, os diferentes tipos de governos e a variabilidade de manifestações
culturais. Ao contrário do que se prega sobre paradigmas universais para se
consolidar um Estado-nação, é possível perceber que existem transformações e a
“reimaginação” das comunidades.

Mesmo que Anderson tenha focado em apresentar a dinâmica dos estados


coloniais tardios e o uso de aparelhos de poder para disciplinar as massas e garantir
o controle da metrópole, temos em mãos mecanismos importantes para o estudo da
formação da nacionalidade e da sua respectiva memória. Para ele, as políticas e
ideologias coloniais buscam criar narrativas que se sobrepõem à história da
população dominada, meio pelo qual se busca legitimar a dominação. Ele cita o
contexto colonial, por este ser o melhor exemplo para evidenciar os mecanismos de
formação de identidades nacionais. As identidades se estruturam de diversas
maneiras e respondem diretamente a dispositivos que são instaurados pelas
relações de poder. Segundo o autor, para isso é feito o uso de três instituições que
se adaptam e ampliam suas funções. Estas instituições são os censos, mapas e
museus, que possibilitam delimitar os aspectos da aparência e natureza dos
governados, a geografia e os limites físicos (todavia, imaginados) do território e a
legitimidade do seu passado (ANDERSON, 2008, p. 227). O objetivo destes
mecanismos é estabelecer uma perspectiva totalizante dos sujeitos que compõem a
comunidade nacional.

10
Com “Revoluções do ‘velho mundo’” me refiro às revoluções ocorridas na Europa e que consistem
em transformações drásticas na cultura, economia e política. Estas são a Revolução Francesa
(1789-1799) e a Revolução Industrial que data dos séculos XVIII e XIX.
22

Aos membros das comunidades nacionais, por meio dos censos são
atribuídos substantivos que os definem quanto a fatores étnicos, religiosos,
linguísticos, econômicos, etc. É posto em prática um sistema classificatório que visa
coordenar e controlar a população de um determinado território. Nota-se uma ação
simultânea entre os censos e mapas, imaginando limites físicos que delimitam “até
onde se é” de uma ou outra nacionalidade, e “quem” se é, ou deixa-se de ser dentro
dos limites da nação.

Os mapas ilustram as fronteiras físicas, e com o seu aperfeiçoamento


rompem com a ideia cosmológica de representação gráfica do mundo. Ao se
tornarem horizontais, a grafia vertical que trazia os planos terrenos e espirituais dos
mapas cosmográficos é deixada de lado e este recurso passa a cumprir com
finalidades políticas, demonstrando a ruptura anteriormente citada sobre a
percepção universal de tempo e espaço. Tem-se uma nova noção de realidade
espacial, modificando a linguagem política. Os países ganham novas formas como a
imaginação de linhas contínuas demarcadas nas representações gráficas da
geografia, delimitando fronteiras e preenchendo-as com a demografia coletada pela
aplicação do censo e pela legalidade do Estado dotado do direito de aplicá-lo. Sua
funcionalidade também consiste na configuração de uma imagem da nação, uma
representação visual da legitimidade do Estado-nação ali ilustrado, um contexto
político tingindo a geografia, e possibilitando o processo de imaginação para os
movimentos nacionalistas.

Essas imagens são complementadas pelo papel dos museus. A possibilidade


de voltar os olhos ao passado e estudá-lo é um forte mecanismo político. O passado
pode nos dizer sobre quem somos no momento em que vivemos. Facilmente
moldável para usos de dominação, a história relata em monumentos, relíquias e
registros escritos os marcos narrativos, os eventos que compõem a dinâmica dos
tempos presentes. Possui a capacidade de estabelecer ou possibilitar a imaginação
de narrativas históricas, estabelecer datas, eleger heróis e assim, alimentar a
ideologia nacionalista e fertilizar o campo das tradições inventadas (HOBSBAWM,
1997).
23

Para o pensador Ernest Renan (1997), o "esquecimento" é essencial para a


formação de uma nação. A composição de uma narrativa que atribui elementos de
antiguidade a um coletivo político nacional, passa pelo crivo da seleção de fatos,
datas, nomes e eventos que podem ser postos à prova pela ação da História nos
processos de investigação, classificação e registro destes elementos. O rigor dos
estudos de um historiador pode trazer "à luz" atos de extrema violência ocultados
durante a origem e formação dos agrupamentos políticos. Atos de genocídio, a
exclusão de práticas culturais e tradições, ou apropriação ou criação de novas, são
condutas recorrentes na procura de legitimar modelos de governo.

Benedict Anderson ironiza que todas as profundas mudanças na consciência,


entendamos isso como os processos revolucionários observados nos períodos
históricos que modificaram as estruturas sociais, políticas e ideológicas, “pela sua
própria natureza, trazem consigo amnésias típicas” (ANDERSON, 2008, p. 278).
Estes esquecimentos são vitais para a formulação de narrativas. Os registros e
evidências documentais demonstram a continuidade aparente de sucessivos
acontecimentos e também a enfática “perda de memória” das comunidades
nacionais.

Essa perda proposital de algumas lembranças tem por objetivo a formação da


nacionalidade, por intermédio da seletividade do que merece ser lembrado. A
secularidade leva à necessidade de formulação identitária e de narrativas que
atribuam substantivos a estes sujeitos nacionais. Os episódios que compõem a
biografia de uma nação são repletos de paixões e mártires, vidas que são tiradas ou
doadas pelo bem da “mãe-terra” e que serão lembradas ou esquecidas de acordo
com os interesses de quem detém o poder de estabelecer a narrativa (hegemônica)
dominante.

Buscando se consolidar, as comunidades nacionais evocam emblemas que


despertam sentimentos nacionalistas e manifestam a simultaneidade proposta pelo
patriotismo. São despertadas solidariedades particulares à comunidade, levando
pessoas completamente desconhecidas a reproduzir os mesmos versos, os mesmos
movimentos ou contar as mesmas histórias que remetem a um passado “longínquo”,
mas que consistem em uma "hereditariedade" que os conecta no presente momento,
24

que os conduz a vivenciar este presente em prol de um futuro também


compartilhado.

O que observamos é um forte apego à imaginação, que implica em uma


íntima relação entre a morte e a formação do Estado-nação. Por morte podemos
entender a disposição para matar em busca da manutenção de ideários e interesses
coletivos, como também o fato de que “as nações inspiram amor, e amiúde um amor
de profundo auto sacrifício” (ANDERSON, 2008, p. 199-200). Este amor será
observado de diversas maneiras como é exemplificado a seguir

Podemos decifrar um pouco da natureza desse amor político nas formas com
que as línguas descrevem o seu objeto, seja em termos de progenitura
(motherland, Vaterland, pátria) ou de lar (Heimat ou tanah air [“terra e água”,
expressão dos indonésios para o seu arquipélago natal]). Os dois
vocabulários designam algo ao qual se está naturalmente ligado. (Ibidem, p.
201).

Gopal Balakrishnan (2000), diz que a sociedade moderna não é uma "jaula de
ferro" weberiana. Por mais que a complexificação das relações humanas seja nítida,
ao contrário de um "desencantamento do mundo", as nações possibilitaram o
reencantamento a partir da constituição de uma "divindade cívica". O
reconhecimento do poder imanente dos corpos sociais possibilita o estímulo de
artefatos simbólicos próprios do Estado secular. O "culto aos ancestrais" moderno é
a divinização do túmulo do soldado desconhecido. Estes novos "santos
martirizados", são arquétipos da mitologia da origem nacional, despertam a conexão
entre os sujeitos através do elemento semiótico do romantismo intrínseco que
alimenta o amor à pátria ou à terra-mãe. Esse martírio é o que possibilita os atos
violentos citados por Renan.

2.2 A memória coletiva

A memória de um fato, para Maurice Halbwachs (1990), necessita do


constante exercício da lembrança. Os dados devem tornar-se comuns pela
reciprocidade do compartilhamento. Devem habitar os espíritos dos sujeitos que
25

compõem determinada sociedade fazendo, portanto, parte deste coletivo. Deste


modo, a lembrança recebe o atributo de reconhecimento e a possibilidade de
reconstrução. Esta reconstrução viabiliza despertar e atribuir sensações e
sentimentos mesmo com o decorrer do tempo, pois, o contato com outros sujeitos
dotados da mesma lembrança, em uma ritualística de recuperação desse fato
passado, desperta percepções e reações sobre estes elementos.

Como guardar todas as percepções de determinado fato a ser lembrado?


Dentro de uma mesma sociedade existirão coletivos que apreenderam determinados
aspectos de uma lembrança sendo responsáveis por mantê-la viva. Contudo, muito
se perde. Para a composição de uma memória coesa de determinado fato, exige-se
a interação dessas lembranças e o apoio de uma em outra. A interação, seja entre
sujeitos em uma pequena escala ou entre coletivos (instituições) em uma escala de
sociedade, é vital para a formação da memória de um fato que abarque mais de um
interlocutor. Porém, mesmo em nossos devaneios pessoais, segundo o autor, existe
um fator importante para que uma mera percepção se torne uma lembrança e para
que esta esteja "viva": a lembrança dos sentimentos, afetos, sensações e
impressões que temos do fato, objeto, sujeito, ambiente, paisagem, ou qualquer
sorte de elementos e noções que formam a memória.

Só é possível compor uma lembrança por intermédio da interação com outros


sujeitos? Uma lembrança só se configura se for fruto do recordar proporcionado pelo
"outro"? De acordo com perspectiva de Halbwachs, que compartilha da visão do
holismo metodológico durkheimiano, mesmo na solidão o sujeito ainda é um
indivíduo socialmente formado e componente da sociedade. As lembranças são,
portanto, compostas de fatos sociais, sendo deste modo, socialmente formadas e
compartilhadas. Entretanto, o pensador diferente de Durkheim, aplica a hipótese de
haver uma "intuição sensível", que se configura como um estado de consciência
puramente individual (HALBWACHS, 1990, p. 37).

Para o pensador, a lembrança se dá pela sensação ou sentimento do que é


lembrado, e ocorre pela associação que estabelecemos com nossos “semelhantes”
de qualquer coletivo, como por exemplo, o familiar. O que captura nosso
pensamento e nos leva a questões neste trabalho, são os elementos que compõem
26

as lembranças socialmente comungadas. Ao entender a nação como uma


comunidade, reconhecemos o compartilhamento de noções, percepções,
sentimentos, etc. por aqueles que a compõem, uma torrente de reciprocidades.
Deste modo, identidades são formadas e ideários são compartilhados por estes
sujeitos em meio às suas interações e relações produtivas e/ou sociais.

As percepções de um indivíduo podem passar a ser de todos no momento


que há o reconhecimento deste sujeito como semelhante, quando lhe é atribuído
identidade, humanidade ou a riqueza de substantivos que o torna um “igual”, e
então, suas impressões são registradas e transmitidas, integrando-o ao todo.
Nossas memórias socialmente formadas derivam das apreensões compartilhadas.
Deste modo, só podemos apreender por completo a lembrança de outro grupo ao
interagir intimamente com ele. Mesmo que tenhamos acesso a suas lembranças, as
percepções são compreendidas pelo reconhecimento do outro como seu igual.
Portanto, não podemos exigir que um sujeito reconheça a “dor” de outro, se ambos
não têm uma gama de elementos socialmente formados e compartilhados que os
una. Uma memória pode ser coletiva quando, por exemplo, dois sujeitos são
compatriotas e dividem sentimentos sobre os fatos, tradições, elementos, rituais,
práticas, etc. que estão associados a “ontologia” de seu povo e a biografia de sua
nação. Estes sentimentos tendem a ser semelhantes, possuem a mesma natureza,
pois são constituídos por fatores que despertam sensações similares naqueles que
compartilham uma mesma identidade.

A memória se delimita dentro do espaço e do tempo por meio do que vemos,


ouvimos e falamos em um determinado episódio de nossas vidas. Isto possibilita que
nossas memórias não se confundam com as dos outros, pois, imprimimos
substantivos que buscamos resgatar pessoalmente neste recorte. Mesmo assim, a
memória individual possui a possibilidade de confundir-se com o recordar coletivo,
pois, muitas vezes, utiliza deste para se completar, e por internalizar narrativas,
embaralha-as com traços da própria subjetividade.

A memória coletiva por sua vez pode se envolver com os processos


individuais, porém, respeita a própria dinâmica se apropriando e assimilando as
memórias individuais atribuindo-lhes elementos da consciência coletiva. As
27

memórias coletivas também funcionam por meio da internalização de narrativas,


mas com limites diferentes, devido ao fato de não podermos nos apegar a
atribuições simplesmente subjetivas, pois, essas narrativas coletivas não
necessariamente foram vivenciadas por todos. Vejamos o conveniente exemplo
dado pelo próprio autor

(...) Durante o curso de minha vida, o grupo nacional de que fazia parte foi o
teatro de um certo número de acontecimentos, dos quais digo que me lembro,
mas que não conheci a não ser pelos jornais ou pelos depoimentos daqueles
que deles participaram diretamente. Eles ocupam um lugar na memória da
nação. Porém eu mesmo não os assisti. Quando eu os evoco, sou obrigado a
confiar inteiramente na memória dos outros, que não vem aqui completar ou
fortalecer a minha, mas que é a única fonte daquilo que eu quero repetir.
Muitas vezes não o conheço melhor, nem de outro modo, do que os
acontecimentos antigos que ocorreram antes de meu nascimento. Carrego
comigo uma bagagem de lembranças históricas, que posso ampliar pela
conversação ou pela leitura. Mas é uma memória emprestada e que não é
minha (...). (HALBWACHS, 1990, p.54).

Trata-se de uma memória que pertence à comunhão que forma a comunidade. A


narrativa histórica está para a sociedade como a memória está para o indivíduo,
cumpre o papel de uma memória coletiva formada de relatos ou toda sorte de
manifestações sociais, artísticas, culturais, ideológicas, individuais ou coletivas
dadas de empréstimo ou assimiladas, compondo uma espécie de “rede neural” do
organismo que é a comunidade, seja, sociedade civil, instituições de todo e qualquer
teor, ou como o exemplo que citamos uma comunidade nacional. Halbwachs
continua

(...) No pensamento nacional, esses acontecimentos deixaram um traço,


profundo, não somente porque as instituições foram modificadas, mas porque
a tradição nelas subsiste muito viva em tal ou qual região do grupo, partido
político, província, classe profissional ou mesmo em tal ou qual família; e em
certos homens que delas conheceram pessoalmente as testemunhas (...).
(Idem).

São os símbolos, os rituais, a cultura, as produções artísticas, as celebrações,


os documentos oficiais, registros produzidos em uma linguagem compartilhada, etc.
todos os elementos que desenvolvem uma memória histórica na qual nossas
28

biografias são sustentadas, tanto individualmente como coletivamente, pois a história


é importante para compreender e delimitar substantivos que serão atribuídos à
formação de identidades. Uma identidade depende da memória para designar o
processo de constituição do sujeito, e agrupamento dos traços que formam sua
personalidade, amores, medos e demais sentimentos. Deste modo temos as nações
e suas respectivas nacionalidades, historicamente constituídas, institucionalizadas,
com seus respectivos mártires, heróis e fundadores, amores, romances, paixões
diversas, motivos para matar e/ou morrer. A memória coletiva está além de um
amontoado de datas, pois corresponde ao trajeto de fatos e eventos socialmente
compartilhados.

Halbwachs diz que a história contemporânea é um reflexo do que hoje é tido


como “memórias de uma sociedade anterior”. O que foi vivido no passado são
registros alheios ao sujeito contemporâneo, porém, a história que se faz no presente
está viva e fresca na sua memória. Portanto, se desejamos compreender o passado,
recorremos a aqueles que o viveram e, na sua ausência, aos registros deixados.

Deste modo, cabe a nós no tempo presente registrarmos o que se vivencia.


Isto nos conecta no trajeto da história e imprime signos e significados sobre eventos
diversos de acordo com o que os locutores do passado enunciam. Devemos
entender como história tudo aquilo que distingue um período de outro e ter em
mente que os livros e narrativas são quadros esquemáticos e incompletos
(HALBWACHS, 1990, P.60).

É no exercício de colocar-se na posição de ser social e componente de um


coletivo que podemos atribuir substantivos aos quadros e às imagens de eventos
não vivenciados. É no imbuir de significados e percepções que construímos
memórias históricas e coletivas, até mesmo nacionais. São lembranças exteriores,
que em seu âmago possuem as percepções de outros, pois estamos encerrados em
nós mesmos em uma primeira instância. "Como explicar então que comunique com
os outros, e harmonize seus pensamentos com os demais?" (Ibidem, 1990, p. 61).

É, para Halbwachs, necessário a existência de um meio artificial (imaginado)


exterior ao sujeito à sua consciência individual que configure as dimensões de
tempo e espaço em um âmbito coletivo. É necessária a reunião de pessoalidades
29

para configuração de algo maior, exterior, anterior e coletivo. Contudo, isto forma-se
de lembranças ou pensamentos individuais. Só o exercício do pensar autônomo,
traça o pensar coletivo e torna possível "imaginar" a comunidade, atribuir-lhe
símbolos e significados, dando-lhe substância e consequentemente uma memória
comungada. Em suas dimensões físicas, as comunidades estabelecem limites e
determinam mecanismos que os legitimam, nos quais se pode pensar o coletivo.
Falamos sobre o que Anderson nos apresentou como censos, mapas e museus
(ANDERSON, 2008).

Dentro destes limites são estabelecidas lembranças coerentes e lógicas sobre


as transformações eventuais e consequentes por meio das dimensões do tempo e
do espaço. Em decorrência podemos observar a conduta de estabelecer marcos
históricos e mitos de origem. Por exemplo, para imaginarmos o Brasil como
comunidade, remetemos a mais de 500 anos com a chegada dos portugueses
nestas terras. O que se passou antes não diz respeito a ideia de Brasil, mas se trata
de memória histórica de outros povos. A memória do "povo brasileiro" começa com
seu nascimento como fruto das percepções dos "adultos" do "velho mundo", até que
podendo andar com suas próprias pernas, passa a registrar sua própria história se
apoiando em sua memória.

O passado não se encontra presente apenas nas retratações da história, mas


imprime em nossa existência em diferentes quadros. Os museus vivos da sociedade
em suas ritualísticas cotidianas estão em nossas casas, em nossas vivências, nas
dinâmicas da coexistência diária. Notamos esta memória expressa nos costumes,
nas faces e na fala. As diferentes expressões artísticas também nos possibilitam o
deslumbre do passado, mantendo vivos os amores nas hipérboles românticas da
literatura ou outras linguagens artísticas como a arquitetura. Esse sentimento
associado a escrita ou a silhueta das cidades possibilita a simultaneidade através da
criação de símbolos e disciplinas. Há um saudosismo e a constituição de condutas
que se pautam nas consequências de acontecimentos de outras épocas.

Todavia, o sociólogo traz-nos a seguinte questão

(...) Temos frequentemente repetido: a lembrança é em larga medida uma


reconstrução do passado com a ajuda de dados emprestados do presente, e
além disso, preparada por outras reconstruções feitas em épocas anteriores e
30

de onde a imagem de outrora manifestou-se já bem alterada (...).


(HALBWACHS, 1990, p. 71).

Então, como atribuir a autenticidade ou proximidade com o real a uma lembrança?

A história e a memória coletiva, apesar de sua correlação e do apoio que uma


tem na outra, não são idênticas. A história, segundo Halbwachs, é a compilação de
fatos e eventos vivenciados pelos homens e que ocuparam notório espaço na sua
memória. Sua funcionalidade é apartar-se das ritualísticas e tradições, como
também realizar o registro e a classificação dos objetivos de acontecimentos
passados.

O que é perpetuado na história cumpre um papel político e organizacional,


pois, ao contrário da lembrança pessoal, os fatos são registrados e podem ser
selecionados para compor uma historiografia específica. O registro escrito não
consiste necessariamente na ritualização da memória, mas passa nesse momento a
compor uma narrativa sobre a sucessão de acontecimentos.

A documentação dos fatos é o que resta após a total perda dos sujeitos que
os vivenciaram. A experiência e suas percepções são extraídas e não podem mais
ser compartilhadas integralmente, ainda são lembradas, mas não dotadas
necessariamente de sentimento.

A memória coletiva possui um aspecto que foge à história: a popularidade e a


possibilidade de ritualização. A história possibilita entender eventos passados e suas
consequências na atualidade, mas não é responsável por imprimir sentimento. Essa
impressão cabe aos sujeitos que dão de empréstimo suas lembranças, contendo
toda sorte de sensações e sensibilidade sobre os fatos. A legitimidade de uma
memória coletiva está na institucionalidade da ritualização da lembrança na
comunhão do grupo. Estamos falando do uso político da história, que se estabelece
pela seleção de eventos registrados e a formação de uma narrativa oficial. Essa
narrativa é o que transforma os fatos históricos em memória coletiva e devolve a
subjetividade e a possibilidade de manifestação cultural.

A memória é algo que pode ser mudado, passando por transformações e


pode ser fonte de conflito e disputa pelos grupos que compõem a sociedade ou no
caso de nosso estudo, a comunidade nacional. Enquanto os grupos que
31

presenciaram os eventos lembrados se mantêm ativos no debate político, estes são


dotados do privilégio de compor tradições sobre suas apreensões e imprimir suas
percepções podendo moldar como a história irá retratar os fatos do passado.

Enquanto a memória é seletiva, a história (de acordo com Halbwachs)


consiste na coleta e classificação de fatos e dados de maneira objetiva, sem
necessariamente fazer juízos de valor e estipular relevância de um fato em
comparação a outro. Todos os fatos registrados são de igual apreço para a formação
do panorama histórico de um determinado período, limitando-se a apresentar
quadros gerais dotados de símbolos ou justificativas. Contudo, o uso da história para
a criação de uma memória nacional, por exemplo, passa pelo exercício da
lembrança e esquecimento estabelecendo narrativas que cumprem com o objetivo
de legitimar conjunturas políticas, sociais e culturais no tempo presente.

2.3 O estado de exceção

As circunstâncias que delimitam o regime político estabelecido pelo grupo


que assumiu o poder em 1964 e justificam sua conduta, fazem parte das
argumentações que serão mostradas no próximo capítulo. Observa-se um conjunto
de medidas autoritárias e de censuras diversas aplicadas pelo governo militar, sem
necessariamente citar os casos de perseguição política, prisões, torturas e
assassinatos.

Temos um modelo de Estado que se estabeleceu por vias autoritárias em um


cenário de conflito interno e ameaça de guerra civil; contudo, foi fundamentado em
um discurso de defesa da democracia. Aos olhos daqueles que advogam em seu
favor, 1964 foi palco de uma “revolução” civil-militar necessária para combater uma
ameaça que apesar de sua origem externa, apresentava risco interno à comunidade
nacional: o comunismo. Para combater seu avanço e controlar os focos insurgentes
uma série de medidas atribuíam poderes ao chefe de Estado, consequentemente
prejudicando direitos e liberdades individuais dos cidadãos.
32

Porém, argumentava-se que eram medidas necessárias e temporárias.


Constituiu-se um governo fundamentado nos atos institucionais (AI’s), com
características totalitárias correspondentes a uma conduta justificada por uma
“situação de necessidade” para a tomada de atos excepcionais.

A excepcionalidade é parte fundamental do que é constituído em situações


como essa e não se reserva ao cenário político brasileiro, muito menos a um
determinado recorte histórico. O fenômeno jurídico observado recebe diversas
nomenclaturas e diferentes configurações em diferentes contextos. Dentre seus
muitos nomes, todos previstos em constituições, podemos citar Estado de sítio, lei
marcial, Estado de emergência, Estado de guerra, decretos de urgência, estado de
necessidade interna, etc. Neste estudo trabalharemos com a terminologia de estado
de exceção na conceituação de Agamben (2004). Segundo o autor

Se, como se sugeriu, a terminologia é o momento propriamente poético do


pensamento, então as escolhas terminológicas nunca podem ser neutras.
Nesse sentido, a escolha da expressão “estado de exceção” implica uma
tomada de posição quanto à natureza do fenômeno que se propõe a estudar
e quanto à lógica mais adequada à sua compreensão. (...) O estado de
exceção não é um direito especial (como o direito da guerra), mas, enquanto
suspensão da própria ordem jurídica, define seu patamar ou seu
conceito-limite. (AGAMBEN, 2004, p. 15).

Para Giorgio Agamben, o estado de exceção se delimita na indeterminação


entre o exercício da democracia e o totalitarismo. É um conceito da biopolítica que
consiste na representação dos sujeitos sociais, políticos e jurídicos por meio da
suspensão temporária dos fatores institucionais que os configuram, visando a
segurança do Estado burocrático e democrático. Segundo o pensador, em uma
perspectiva histórica observa-se a utilização do Estado de sítio ainda no século XIX
na França Napoleônica em situações de guerra, sendo declarado em caso de efetiva
(ou não efetiva) ação inimiga em determinada parte do território nacional. Em
sequência nota-se a ampliação de sua ação, sendo voltada também a situações de
risco interno. Dentro da perspectiva do Estado moderno, sua origem está associada
a situações extraordinárias de insurgência que determinam a suspensão da
constituição ou de direitos e a ampliação da autoridade militar.
33

Uma ideia relacionada à delimitação deste fenômeno é imputar total ação


jurídica ao executivo e desse modo, garantir o exercício dos “plenos poderes”. Seria
nesta perspectiva a volta a um “estado de natureza”, onde não há distinção entre o
legislativo, o judiciário e o executivo. Apesar de se pretender uma salvaguarda da
constituição democrática, o paradigma de governo proposto (quando prolongado)
estaria associado à liquidação da democracia, podendo se mostrar como prática
duradoura de governo.

Isto abre espaço para pensar a composição dos cenários ditatoriais. Agamben
nos apresenta a linha tênue entre o que pode ser chamado de ditadura
constitucional que visa por meio de qualquer medida necessária restabelecer a
ordem, e a ditadura inconstitucional, definida pela derrubada da constituinte. Mas
quais os processos que diferenciam uma modalidade e outra? Devem-se considerar
as medidas excepcionais aplicadas em resposta às irregularidades que levam à
tomada do poder. Como citamos no exemplo do golpe de 1964, pairava o discurso
de que para garantir a ordem os militares revolucionários reivindicaram o executivo
com o intuito de em pouco tempo, devolver o governo aos civis através de eleições.
Contudo, alterações foram feitas à legislação eleitoral em um primeiro momento por
meio de instrumentos normativos excepcionais, instituindo eleições indiretas para
governador e presidente (GOMES; MATOS, 2017, 1772). Mais alterações foram
feitas, instituídas pelos AI’s, sendo o AI-5 (1968-1978) considerado o marco da
ditadura militar.

Com a elaboração do Ato Institucional n.º 5, que suspende direitos


individuais e políticos e, uma vez mais, impede o funcionamento do
Congresso Nacional, houve uma modificação da forma como o estado de
sítio poderia ser decretado, estendendo ainda mais a discricionariedade do
Presidente da República. Já com a Emenda Constitucional n.º 11 de 1978,
aprovada depois da revogação do AI n.º 5, criou-se nova modalidade de
instrumento de exceção, o estado de emergência (medida mais tênue que o
estado de sítio), o qual seria decretado pelo Presidente da República
quando fossem exigidas providências imediatas, em caso de guerra, ou
“para impedir ou repelir as atividades subversivas”. (GOMES; MATOS,
2017, p. 1775).
34

Giorgio Agamben (2004) cita Rossiter e seu estudo sobre ditadura, contudo,
ressalta que mesmo apresentando 11 critérios que distinguem ditaduras
constitucionais de ditaduras inconstitucionais, o pensador em momento algum pode
estabelecer uma distinção substancial entre ambas. A excepcionalidade mostra-se
como regra no que tange a soberania do Estado nacional e sua essência
democrática. Paradoxalmente, para defender o livre exercício da democracia,
justifica-se o uso de aparatos antidemocráticos, legitimando paradigmas totalitários.
O que divide opiniões nos estudos sobre o assunto.

Como delimitar constitucionalmente algo que foge à norma? “O problema do


estado de exceção apresenta analogias evidentes com o direito de resistência.
Discutiu-se muito, em especial nas assembleias constituintes, sobre a oportunidade
de se inserir o direito de resistência no texto da constituição (...)”. (AGAMBEN, 2004,
P. 23). Porém, em sua obra o autor apresenta diferentes modos que as constituições
de diversos países e períodos históricos demonstravam amparo ao estado de
exceção, sempre garantindo a perda de direitos e o exercício dos plenos poderes.

Agamben traz um debate presente na tradição jurídica sobre a essência do


estado de exceção. Existem vertentes que buscam defini-lo como elemento
integrante do direito, pois, partem da premissa de que existe uma necessidade
autônoma para sua projeção, o que constitui a salvaguarda da excepcionalidade
como fenômeno correspondente à norma. Ter garantida em constituição a quebra do
sistema político como um mecanismo de defesa do Estado democrático, é entendida
como uma conduta legítima e necessária.

Em contrapartida, existem aqueles que apreendem como fator subjetivo


dotado de forças extrajurídicas que compõem a necessidade que fundamenta o
estado de exceção e suas consequências futuras são entendidas como frutos de
eventualidades. Em resumo, sua aplicação é controversa e pode ser analisada com
um dispositivo antidemocrático, pois, é configurado como uma imposição autoritária
que torna o Estado refém de interesses pessoais de déspotas ou colegiados.

O debate consiste na definição do que se caracteriza como “extrajurídico”.


Este se estabelece como a fuga da norma em circunstâncias extraordinárias visando
o combate a “corpos estranhos” nocivos ao funcionamento ordenado, a livre
35

execução do estado burocrático e preservação da condição do sujeito social, político


e jurídico.

Sobre as origens do estado de exceção, Agamben relembra o processo de


transformação do Estado de sítio decretado na constituinte de 8 de julho de 1791 na
França pós-revolução. Há um resgate deste princípio de suspensão da constituição
introduzido em 22 de frimário do ano VIII, atribuindo ao soberano a possibilidade de
regulamentar através de decretos para garantir a segurança do Estado. Com a
queda da monarquia em 1848 “introduziu-se, pois, um artigo estabelecendo que uma
lei definiria as ocasiões, as formas e os efeitos do estado de sítio” (AGAMBEN,
2004, P. 25). Os exemplos citados por Agamben recorrentemente trazem passagens
que frisam a “necessidade” e a “segurança” como argumentação para a garantia do
estado de sítio ou suas diferentes morfologias.

O estado de exceção é uma busca por incluir na ordem jurídica e política a


exceção derivada do “ato de necessidade” e que flerta com o lícito e o ilícito. Busca
justificar transgressões a lógica do direito por meio da excepcionalidade do fato,
como por exemplo, foi observado no Brasil com o AI-5 que consolidou a ditadura,
paralisando os movimentos sociais e combatendo a oposição afastando os civis do
governo, praticando uma ilegalidade extraordinária (GOMES; MATOS, 2017, p.
1775-1776).
36

3 AS NARRATIVAS SOBRE 1964

Se nos imaginarmos com uma lente de aumento em nossas mãos e


observarmos o mundo através dela, à distância e em um determinado período
histórico, veremos uma imagem macro que abrange diversos países e movimentos
políticos e sociais. Se lançarmos nosso olhar sobre o início da segunda metade do
século XX podemos notar a bipolarização ideológica entre Estados Unidos e União
Soviética logo após a Segunda Grande Guerra. Se fizermos o exercício de
aproximar a lente, será possível vislumbrar fenômenos específicos, e ao deslocá-la
apreendemos passo a passo as disputas na Europa, ou as insurgências
nacionalistas e o pensamento anticolonial na África e na Ásia. Nas Américas,
notamos o avanço dos Estados Unidos e o temor da influência soviética em Cuba.
Ainda no “Novo Mundo”, se aproximarmos cada vez mais nosso instrumento, mais
detalhes são apreendidos e cada nação pode ser analisada pausadamente.

Utilizamos esta alegoria para dizer que, ao nos debruçarmos sobre um


fenômeno histórico, político, social, etc. não devemos desconsiderar o contexto em
que ocorre ou ocorreu. Suas motivações ou consequências correspondem a
conjunturas específicas vivenciadas por seus atores, e consolidam-se através de
estruturas e elementos próprios das sociedades.

De modo a entender o que 1964 significou para o Brasil, precisamos


considerar esta data como a representação de um longo período histórico, possível
de ser analisado a partir de fenômenos políticos, econômicos e sociais, que levaram
ao golpe de 31 de março e se estenderam até 1985. Considerando que o período foi
marcado pela ampla atuação de facções militares e sua direta intervenção na política
nacional, vale utilizarmos como meio para narrar este recorte da história, a relação
das forças armadas com a política no transcorrer da trajetória da instituição.
37

3.1 Os militares e a política

Desde o período colonial o Brasil viu despontar de norte a sul movimentos


populares e insurgentes. Contudo, do mesmo modo se notou a constante resposta
das autoridades dominantes sempre associada à participação dos militares na
repressão e preservação da ordem vigente. À Guarda Nacional, criada em 1831,
“competia a repressão a opositores internos”, enquanto ao exército cabia a defesa
do território às agressões externas (ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO, 1985, p. 54).

Muitos estudiosos que investigaram o desenvolvimento da instituição


castrense no Brasil reconhecem que sua participação na vida política e nas
questões internas se tornou mais frequente após a Guerra do Paraguai (1864-1870).
A “caserna” adquiriu neste momento um caráter progressista ao rivalizar com a
Guarda Nacional que representava os interesses das elites retrógradas.

Mas o desempenho de determinados papéis progressistas neste período não


retira do Exército seu caráter de força repressiva, que se fazia presente
desde os primeiros momentos. Fica evidente a coexistência de dois impulsos
aparentemente antagônicos: o Exército era um instrumento rebelde,
progressista frente às oligarquias monarquistas e, ao mesmo tempo,
repressivo, impiedoso frente às camadas mais pobres, que se levantavam em
descontentamento na luta contra o poder central. (ARQUIDIOCESE DE SÃO
PAULO, 1985, p. 54).

Devemos salientar que o processo de politização das Forças Armadas, com


ênfase no Exército, consistiu em uma operação tanto interna de disputa de
interesses e hierarquias, quanto externa de relação da instituição com as demandas
políticas, sociais e econômicas da sociedade civil frente aos desejos do Império.
Suas manifestações públicas resultaram na formação do Clube Militar11, em 1888,
com a apresentação do manifesto abolicionista (CUNHA, 2018, p. 22). Todavia, sua
maior projeção foi com a derrubada do Império e a proclamação da República
(1889), evento no qual teve participação direta e tomou para si a responsabilidade
da presidência por meio das figuras de Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto.
11
“O Clube Militar é uma associação recreativa aberta aos oficiais das três armas, com
predominância de oficiais do exército, da ativa ou reformados. (...) O presidente e a diretoria do clube
são eleitos pelo voto direto dos membros e o resultado das eleições tem o caráter revelador da
mentalidade dos oficiais em determinado momento; (...)”. (SILVA, 2018, P. 80).
38

Este antagonismo se fazia presente não apenas na relação com a sociedade


civil, mas se revelou no interior da instituição. A república representou para a história
das forças armadas o fortalecimento da crescente disputa de facções
político-militares e o conflito de hierarquias no interior dos quartéis, a exemplo da
rivalidade de paradigmas disciplinares. É possível observar movimentadas
polarizações neste período e o crescente confronto às hierarquias pelo direito do
posicionamento político (CUNHA, 2018, p. 23). Deste modo entendemos que as
Forças Armadas não se constituíram como um bloco homogêneo de pensamento e
produção intelectual e política. Desde a República Velha nota-se influências
ideológicas tanto à esquerda quanto à direita, contudo, a disciplina, a hierarquia e o
contínuo desenvolvimento do sentimento anticomunista, impediram diálogos entre as
partes (Ibidem, p. 24).

Durante o século XX, foram observadas manifestações a favor da liberdade


dos oficiais atuarem como sujeitos políticos e atores nacionais. Demandas
corporativas, políticas e ideológicas eram contempladas em meio a diferentes
patentes, sendo mais populares entre os jovens12. Revoltas como a da Chibata, em
novembro de 1910, foram vistas como indisciplina e uma ameaça à organização das
Forças Armadas. Isto será associado a deficiências na profissionalização dos
oficiais, precariedade das condições operacionais e negligência às demandas
corporativas de integrantes (principalmente de baixa patente). Como reação foram
tomadas ações visando afastar a Escola Militar de influências civis e de movimentos
entendidos como subversivos. Contudo, nos anos seguintes podemos citar a Revolta
dos Sargentos em 1915 e 1916, e o tenentismo que marcou os anos de 1920 como
manifestações ainda recorrentes.

Em 1922 a 1924, o movimento tenentista foi responsável por levantar


bandeiras que representam demandas e debates das classes médias, como
moralidade pública, corrupção, democratização e o voto13. Se destacava por ser
composto por um grupo de oficiais que não foram afetados pela influência da Missão
Militar Francesa, implementada em 1919, com o objetivo de modificar as estruturas
de profissionalização revolucionando o “estilo, os conhecimentos, a capacidade de

12
CUNHA, 2018, P. 26.
13
ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO, 1985, P. 55.
39

ação” das Forças Armadas (CORREIA NETO, 2005). Segundo Maria Cecília Spina
Forjaz

O tenentismo foi, portanto, um grupo militar que ficou imune às influências da


missão; mais do que isso, os revolucionários eram hostis à mentalidade
militar francesa e aos vínculos com a França que implicavam a
obrigatoriedade da aquisição de armamentos nesse país. Uma das cláusulas
do convênio com a França estipulava que o treinamento da missão seria mais
eficaz com a utilização de equipamentos militares franceses e o Brasil passou
um longo período vinculado a essa cláusula. (FORJAZ, 1983, p. 06).

Em 28 de outubro de 1924 se iniciou mais um levante tenentista no Rio


Grande do Sul. Teve origem a marcha rebelde da Coluna Prestes/Miguel Costa
(1924-1927) que apresentava pautas progressistas e se voltava contra as estruturas
oligárquicas da velha República. Estas agitações levaram a movimentação de outros
setores da sociedade, como a velha oligarquia rural e os setores industriais que se
articularam em favor da manutenção de interesses econômicos e políticos,
proporcionando a ascensão de Getúlio Vargas à presidência.

A revolução de 1930 não veio para efetivamente mudar os quadros


conservadores da sociedade. A oligarquia rural abriu espaço para as forças
industriais, contudo, manteve sua influência na vida política e econômica,
financiando o processo de industrialização que se efetivou tardiamente no Brasil. As
medidas extrajurídicas do regime varguista levaram à aglutinação de setores da
esquerda comunista que se projetaram na década de 1920, e políticos nacionalistas
que demonstravam oposição ao financiamento da indústria pelas elites rurais, e a
manutenção dos antigos poderes. A Aliança Nacional Libertadora (ANL), como ficou
conhecida, ganhava espaço tanto na vida civil quanto no interior dos quartéis até ser
proibida por Getúlio Vargas.

No interior da “caserna” se notava uma contínua movimentação em busca de


estabelecer a disciplina e o respeito da hierarquia. Houve a tentativa de “reservar” o
direito do pensamento político ao alto comando, sempre focando nas bases da
formação dos oficiais. A doutrina Góes Monteiro, como ficou conhecida, procurou
reformular o currículo, apresentar critérios de admissão e, por fim, se apoiar na
proximidade de setores da instituição com a formação do Estado Novo de Vargas.
40

Os registros históricos revelam que esta “Política do Exército”14 que visava eliminar
a “política no exército”, não conseguiu se efetivar, sendo documentadas revoltas
constantes e novas formas de conflitos. A proibição da ANL foi seguida pelo levante
de novembro de 1935. Desencadeada pelo Partido Comunista, a tentativa de
insurreição que ficou conhecida por Intentona Comunista, teve como cenário os
quartéis, sendo prontamente sufocada. Outras versões afirmam que a ação
subversiva teria sido incentivada por influências externas vindas de Moscou15.

Comprovadamente influenciado ou não por ações concretas da União


Soviética, o levante de 1935 fortaleceu a conduta de oposição à esquerda e a
doutrina anticomunista das Forças Armadas. O princípio de luta contra o comunismo
que compõe a imaginação da doutrina castrense no Brasil visa celebrar este evento
como um marco da história e do dever basilar da instituição. Do mesmo modo, a
anunciação de uma suposta ameaça externa possibilitou a conduta de centralização
usada como justificativa da excepcionalidade que levou a efetivação do Estado Novo
em 1937.

Segundo Cunha (2018), a iminência da Segunda Guerra dividiu opiniões na


esfera pública e dentro dos quartéis. Afetava diretamente a vida política dos
brasileiros e, portanto, a própria política castrense. Setores das Forças Armadas se
manifestando em favor da redemocratização, apesar da estreita relação de cúpulas
militares com o totalitarismo do Estado Novo, das comemorações festivas de
facções militares por conquistas nazistas e da influência do integralismo16. Estes
setores democráticos obtinham notoriedade ao se apoiarem na pressão popular pela
atuação em território europeu.

O posicionamento do Brasil em favor dos aliados acalmou os ânimos, e a


criação da Força Expedicionária Brasileira (FEB) demonstra inclinação ao desmonte
futuro do regime varguista. Pois, a distensão essencial para a configuração desta
divisão rompia com os princípios que aproximavam as “Armas” de Getúlio Vargas. A
necessidade imediata de atender às demandas da doutrina estadunidense e de

14
CUNHA, 2018, P. 28-29.
15
Ibidem, P. 30.
16
A Ação Integralista Brasileira (AIB) foi um movimento político brasileiro fundado em 1932 por Plínio
Salgado. Seu ideário básico consiste no ultranacionalista, corporativismo, conservadorismo e o
tradicionalismo católico de extrema-direita.
41

obter o contingente de tropas que era preciso levou a cúpula das Forças Armadas a
aceitar a voluntariedade de oficiais comunistas que haviam sido punidos em 1935.
Com o fim da guerra, a FEB foi desmobilizada antes mesmo de retornar ao solo
nacional. Vargas foi deposto e a lei de anistia foi acionada, libertando centenas de
presos políticos e possibilitando o retorno de figuras como Prestes. Teve início um
período democrático que se estendeu de 1945 a 1964.

O período entre 1945 e 1964 é caracterizado por um alto grau de politização


nas Forças Armadas, e, conjuntamente com civis, atuaram pela deposição de
Getúlio Vargas, sem alterar o calendário eleitoral e as eleições realizadas três
meses depois de sua queda. A rigor, não havia condições para um retrocesso
político... (CUNHA, 2018, p. 33).

Getúlio Vargas voltou à política em 1950 concorrendo à presidência por vias


democráticas e com discurso nacionalista. Dotado de uma fala populista, se
dispunha a atender as demandas das camadas trabalhadoras que se mostravam
desgostosas pela postura autoritária da política vigente. Entretanto, seus interesses
não se alinhavam com as elites fortalecidas pelas políticas pró Estados Unidos
mantidas durante o governo de Eurico Gaspar Dutra, que durou de 1946 à entrega
do poder a Vargas em 1951.

O descontentamento levaria a tentativa de tomada do poder por setores do


Exército. Isto para muitos estudiosos é visto como o “embrião” do golpe de Estado
de 1964, pois os setores da sociedade e as facções da direita militar que se
articulavam neste momento eram as mesmas que efetivaram sua ação dez anos
depois. Porém, suas pretensões foram abortadas pelo dramático suicídio de Vargas
no dia 24 de agosto de 1954. O grupo foi forçado a recuar e aguardar, devido à
agitação popular causada pelo fato.

Só voltamos a ter um presidente eleito em janeiro de 1956 com a ascensão de


Juscelino Kubitschek, ainda assim causando inquietação nestes grupos de direita,
que foram barrados momentaneamente por coletivos nacionalistas das próprias
Forças Armadas. “Ainda assim, revoltas da direita militar seriam uma constante no
governo JK” (CUNHA, 2018, p. 38).

Com o fim do mandato de Kubitschek, tivemos a eleição do populista Jânio


Quadros que renunciou meses depois de assumir o poder. João Goulart,
42

considerado o herdeiro do ideário nacionalista getulista, vice de Quadros, assumiu


em uma atmosfera conflituosa, e reavivando o revanchismo da direita militarista
frente a crescente movimentação de lutas populares, sindicalismo e as propostas de
“Reformas de Base”.

Os anos de 1962, 1963 e 1964 foram marcados pelo rápido crescimento das
lutas populares. A aceleração da luta por reformas estruturais ocorreu a partir
do momento em que Goulart conseguiu, por meio de um plebiscito que lhe
deu esmagadora maioria, derrubar o parlamentarismo impingido pelos
militares. Os trabalhadores sindicalizados, em que pese debilidades evidentes
na sua organização de base, tinham desenvolvido uma ampla capacidade de
mobilização, com a incorporação de um número cada vez maior de sindicatos
às lutas pró ‘reformas de base’ propostas por Goulart. (ARQUIDIOCESE DE
SÃO PAULO, 1985, p. 57).

Este cenário que se estende de 1962 a 1964 é marcado por alta inflação,
reajustes salariais, aumento do custo de vida e a formação das ligas camponesas.
De 1963 a 1964 houve mobilização dos militares como a Revolta dos Sargentos em
setembro de 1963. A alta cúpula das Forças Armadas se organizou para pressionar
Goulart e enfraquecer seu governo. A disciplina e a hierarquia foram meios usados
para minar os grupos simpatizantes da proposta política trazida por Jango, impondo
condições corporativas que contraditoriamente pregavam o “apoliticismo” no interior
da caserna. Enquanto que o Clube Militar hospedou conflitos ideológicos diversos,
embates pela diretoria da entidade entre facções defensoras de uma política
conservadora e agrupamentos nacionalistas (CUNHA, 2018, p. 40-41). As respostas
do governo não fizeram frente significativa e possibilitaram o avanço da direita. A
propaganda anticomunista fomentada por partidos políticos, setores da igreja
católica e, principalmente, pela Escola Superior de Guerra deram forma a “marcha
da família, com Deus, pela liberdade”, que se opunha ao governo de Jango.

Tendo como estopim o levante dos marinheiros e fuzileiros navais no sindicato


dos metalúrgicos no Rio de Janeiro, houve a movimentação definitiva das Forças
Armadas em 31 de março. Em 1º de abril de 1964 é anunciado o golpe de Estado
civil militar.

Segundo DELGADO (2010) o pensamento de alguns teóricos como Florestan


Fernandes, Caio Navarro de Toledo e Jacob Gorender convergem ao constatar que
43

as motivações do golpe no geral consistem no descontentamento dos setores


conservadores com a conjuntura proporcionada pelas Reformas de Base.

As análises desses autores mesclam horizontes da longa duração com


motivações conjunturais e enfatizam que os militares e civis que depuseram
João Goulart agiram impulsionados por uma perspectiva preventiva. Isso
porque o projeto de reformas de base, inclusive os da reforma agrária e do
controle da remessa de lucros, ensejou nos setores conservadores o temor
de uma revolução social. Essa convicção e temor de que o Brasil poderia
adotar um modelo distributivo ou até mesmo, de acordo com Florestan
Fernandes, caminhar em direção ao socialismo levou-os a se organizarem
para pôr fim ao governo Jango. (Ibidem, p. 132).

Houve a preocupação em destituir o presidente da república e afastar seus


aliados da vida pública, visando evitar profundas modificações na estrutura
econômica e política. Nestas circunstâncias, o regime que se instaurou apresentava
um discurso de defesa à excepcionalidade como meio contra uma ameaça
estrangeira, que pretendia se infiltrar nas massas, representando uma ameaça
interna e justificando a adoção da DSN (ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO, 1985).

A DSN se dedicava à revisão de conceitos estratégicos de combate à


ameaças externas, visando a coesão social e o uso da coerção para estabelecer a
"defesa nacional" por meio da instituição militar. Essa revisão objetivava voltar a
atenção ao que foi definido como "inimigo interno" ou "forças internas de agitação".
De meados da década de 1960 ao início de 1980, esse inimigo era identificado como
a “ameaça comunista” e os movimentos sociais e de guerrilha. De acordo com o
projeto Brasil Nunca Mais (ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO, 1985), isto facilitaria o
alinhamento com as pretensões das forças imperialistas norte-americanas. (Ibidem,
p. 58).

Em várias passagens do texto existem citações de generais e oficiais sobre a


integração dos “inimigos” na sociedade civil, promovendo discursos subversivos que
ameaçavam a “segurança nacional”, pois o conflito que se fazia naquele momento
era ideológico e exigia a manutenção da segurança interna para fazer frente ao
"terrorismo de esquerda”: “Em outras palavras, ameaçada a "segurança", está
justificado o sacrifício do bem-estar, que por extensão é o sacrifício também da
44

liberdade, das garantias constitucionais, dos direitos da pessoa humana”. (Ibidem,


p.60).

A DSN buscava a continuidade de uma ordem social e era evocada em


resposta à excepcionalidade da insurgência. Sua intenção era combatê-la por
representar uma ameaça à soberania do Estado. Neste momento se apoiou na
constituição do estado de exceção para delimitar seu ideário e a aplicabilidade de
sua conduta. Portanto, a regulamentação de políticas repressivas com o objetivo de
gerar o menor impacto e desgaste político, resultou na perda de direitos e liberdades
políticas. O que se observou na realidade foi o atravessamento da linha tênue entre
a prevenção e a repressão. O uso dos Atos Institucionais possibilitava a aplicação
de “plenos poderes” e legitimava o uso indiscriminado da violência para prevenção
de atos insurgentes e repressão de delitos. Ainda assim, em seu discurso oficial o
regime defendia que não estava instaurando um estado de exceção.

A constituinte de 1967 e as ainda existentes eleições, visavam trazer uma


atmosfera de continuidade do exercício da democracia. Contudo, a constituição
assegurava o estado de sítio e possuía uma cláusula de plenos poderes (GOMES;
MATOS, 2017, p. 1775), além de prevalecer o ideário da DSN. Progressivamente
temos uma passagem do estado de exceção para um paradigma da segurança
como norma do governo que foi institucionalizado.

Nos quartéis foi despertada uma preocupação com a formação dos cadetes
para assegurar a disciplina e a hierarquia. O Coronel da aeronáutica Sued Castro
Lima, em seu artigo A Formação de Oficiais e a Democracia Brasileira (2018),
apresenta relatos (alguns pessoais) sobre como se estabeleceu o aprendizado para
os oficiais a partir dos anos 1960. Constata que o aperfeiçoamento e a boa formação
dos profissionais são preocupações recorrentes, entretanto, a sistematização
hierárquica e o ensino são mecanismo que sujeitam os cadetes à doutrinação
durante seus anos de estudo alinhando-os a condutas e objetivos políticos e
ideológicos da alta cúpula da instituição (LIMA, 2018). O golpe de 1964 ao invés de
estabilizar o cenário político nacional, possibilitou a formação de uma extrema direita
militarizada e o conflito entre as facções no interior das três Armas.
45

O regime tratou de impor uma rigorosa fiscalização sobre o comportamento


dos cadetes, de forma a reprimir qualquer discussão sobre as questões
sociais e políticas, além de manter uma intensiva programação de análises
dos acontecimentos que compunham a chamada guerra revolucionária,
naturalmente sob a exclusiva ótica da liderança militar. Na Aeronáutica, os
cadetes eram reunidos periodicamente para ouvir os boletins do Cisa,
quando tomavam conhecimento dos embates que se travavam contra a
subversão e das apreciações sobre os propósitos dos movimentos de
esquerda. (LIMA, 2018, p. 209).

O Brasil viu um modelo de governo totalitário se instalar sob o nome de


“revolução” e com a promessa de combate a corrupção e redemocratização gradual.
O regime civil-militar se consolidou no decorrer da década sob a ação de medidas
excepcionais, os Atos Institucionais (AI). O AI No. 1 de 09 de abril de 1964 instituiu
as eleições indiretas para Presidente além de dar-lhe poderes para ditar nova
constituição, fechar o congresso, decretar Estado de Sítio, impor à investigação
funcionários públicos, além de

(...) abrir inquéritos e processos para apurar responsabilidades pela prática


de crime contra o Estado ou contra a ordem política e social, suspender
direitos políticos de cidadãos pelo prazo de dez anos e cassar mandatos
legislativos de deputados federais, estaduais ou vereadores. (PRIORI, A., et
al., 2012, p. 200-201).

Como se pode ver os AI 's garantiam a permanência dos militares no poder. O


AI No. 2 instituído em 1965 possibilitou a supressão dos partidos políticos sendo
complementado pelo AI No. 4 do mesmo ano, que determinava novas regras para a
criação de partidos (GOMES; MATOS, 2017). A partir deste momento só foi
permitida a existência de dois partidos, a Aliança Renovadora Nacional (ARENA)
que representava o atual governo e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) que
consistia em uma oposição consentida, mas que pouco se projetava como
contestação do Estado. O AI No. 3 complementava-os tornando as eleições de
governadores dos Estados indiretas.

O AI No. 5 de 13 de dezembro de 1968 decretado durante o governo de Costa


e Silva, ou AI-5 como é popularmente conhecido, vigorou por 10 anos e é entendido
como a concretização da instalação de um governo ditatorial. Era responsável por
46

suspender direitos individuais e políticos e impedir o funcionamento do Congresso


Nacional. Também é conhecido por institucionalizar a censura como salvaguarda aos
“atos subversivos" e criar um instrumento de exceção, o estado de emergência, que
podia ser decretado pelo Presidente como "providências imediatas" contra distúrbios
de origem interna ou externa (Ibidem, p. 1775). O AI-5 também suspendia o Habeas
corpus e instituía de modo desvelado o uso da tortura e a violência física contra
opositores do regime. Esse período que durou de 1969 a 1974 ficou conhecido pela
alcunha de “anos de chumbo”.

Contudo, apesar de todo seu aparato repressivo e das políticas econômicas, a


ditadura encontrava núcleos de resistência. Movimentos sociais e políticos eram
observados dentro de diversos setores da sociedade. A resistência da esquerda se
mostrou bastante presente contracenando em palcos de guerrilha como a Coluna
Guerrilheira liderada pelo Ex-coronel Jefferson Cardim de Alencar Osório, e que
contava com o apoio de Leonel Brizola e outros políticos da região do Rio Grande do
Sul. Também podemos citar a guerrilha do Caparaó de responsabilidade do
Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR) que tinha por objetivo criar um clima
de constante insegurança à ditadura, “pretendiam tomar cidades, destruir linhas de
comunicações, vias de transportes e atacar pelotões do Exército, visando chamar a
atenção do país para o que estava acontecendo” (PRIORI, A., et al., 2012, p. 204).
Ou ainda podemos citar a guerrilha do Araguaia organizada pelo Partido Comunista
do Brasil (PCdoB). Era composta por jovens universitários de classe média, vindos
de áreas urbanas e sem experiência militar, que se propuseram a fazer treinamento
militar, cursos de sobrevivência na selva, de primeiros socorros, além de trabalhar na
roça e vivenciar as problemáticas da população da região do "bico do papagaio" no
Estado do Tocantins. Isto ocorreu devido ao avanço do agronegócio na área,
amplamente financiado pelo capital internacional. Após sete anos na região, em
1973 o exército enviou forças para combater o agrupamento "terrorista" resultando
na morte de 70 militantes e a dispersão da guerrilha.

Nas áreas urbanas se destacaram as atuações de organizações como a Ação


Libertadora Nacional (ALN), liderada por Carlos Marighela, o Partido Comunista
Brasileiro Revolucionário (PCBR), o Movimento Revolucionário 08 de outubro
(MR-8), a Política Operária (Polop) e a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR).
47

Todos estes grupos poderiam facilmente ser taxados como “terroristas”, o que
facilitava dissociá-los da sociedade civil e aplicar os mecanismos de repressão
necessários. Contudo, devido ao constante controle do governo sobre os
movimentos políticos, sociais e sindicais, a sociedade encontrava voz através dos
movimentos estudantis. Estes movimentos causam riscos à ditadura pela dificuldade
de taxá-los como simples condutas subversivas, devido ao crivo crítico da opinião
pública. Estes movimentos de estudantes são observados desde 1965 (PRIORI, A.,
et al., 2012), girando em torno da iniciativa da União Nacional dos Estudantes
(UNE). “A onda de passeatas teve seu auge no dia 26 de junho de 1968, quando
uma passeata reuniu 100 mil pessoas no Rio de Janeiro. No mês de junho
ocorreram outras 16 passeatas em vários Estados do país” (Ibidem, p. 209). Outros
setores mantiveram constantes manifestações como a intelectualidade com
produções musicais e cinematográficas. Os sindicatos voltam a se manifestar nos
anos de 1970 com o enfraquecimento das políticas econômicas e o descontrole da
inflação.

O governo Geisel, em 1974, com seu projeto de distensão "gradual e segura",


apontava para um cenário de redemocratização. Geisel propôs a revogação parcial
da censura e a realização de eleições, possibilitando a projeção parlamentar do
partido de oposição, o MDB.

Deste modo, ao final de 1978, reformas políticas de cunho liberalizante


foram implementadas de acordo com o caráter gradual e seguro da política
de distensão. Um novo presidente, general João Figueiredo, encarregado
de dar continuidade à transição política nos seis anos seguintes, havia sido
eleito estritamente de acordo com a determinação de Geisel de impor o
nome por ele escolhido. (KINZO, 2001, p. 05).

João Figueiredo, o último presidente do regime militar, deu continuidade ao


que foi proposto por seu antecessor. Em 1982, as eleições possibilitaram um avanço
ainda maior avanço dos civis e os novos partidos apresentaram resultados
consideráveis. Pela primeira vez, desde 1965, ocorreram eleições para governador.
Com a eleição indireta de Tancredo Neves e José Sarney, em 1984, e a posse de
Sarney em 1985 devido ao falecimento de seu colega de chapa, a ditadura chegava
ao fim.
48

3.2 O cinema e o imaginário nacional

A literatura tem como matéria prima as emoções, expressa sentimentos e


prende os leitores pelo fascínio. Seu papel vem a ser transpassado por objetivos
políticos e sociais quando apresenta uma natureza crítica, satiriza ou ressalta traços
nacionalistas e/ou tradicionais e, até mesmo, joga com a língua em que é escrita,
brincando com o imaginário e dando contraste para valores e ideários. Também
podemos pressupor isto de outras artes como a arquitetura, a música ou as artes
plásticas. Segundo Manuel Domingos Neto (2012), as obras artísticas integram a
construção de afetos coletivos por conseguirem “traduzir, despertar ou alimentar”
valores e emoções. Conceber uma “comunidade de sentimentos” exige menções ao
passado e aos sofrimentos e glórias compartilhados, “uma comunidade desse tipo é
necessariamente uma abstração, dado que é alimentada por pressupostos
imaginados e promessas de igualdade entre seus membros” (Ibidem, p. 07).

As diferentes formas de arte têm consequências diretas no modo como as


nações se percebem. Algumas obras ganham relevância por seu caráter
pedagógico, histórico e cultural antes mesmo do valor estético que possa apresentar.
O estilo pode ser secundarizado quando uma manifestação artística visa em primeiro
plano comunicar um ideário nacional. As práticas culturais adquirem um teor
documental, e contém objetivos correspondentes a forças nem sempre explícitas.

Benedict Anderson nos mostrou o que é possível fazer com a linguagem


escrita, e abriu um leque de caminhos pelos quais podemos pensar a nação. Sua
categoria de comunidade imaginada não universaliza conceitos, mas oferece a
oportunidade de elaborar meios e aplicá-los sobre outros instrumentos. Assim, este
estudo visa compreender a disputa pelas narrativas de 1964 utilizando como recurso
produções cinematográficas, mas especificamente dois documentários. A escolha
deste tipo de arte se dá por compreendermos que, “com a invenção do cinema,
estava criada uma nova possibilidade para a imaginação" (COUTINHO, 2008, p.
230).

A linguagem do cinema é "heteróclita e multifacetada", pois abrange


dimensões variadas, atuando simultaneamente em campos físicos, fisiológicos e
49

psíquicos. (SANTOS; COSTA; SILVA, 2012). Sua linguagem também pode ser vista
como um meio de comunicação envolvendo um interlocutor e uma mensagem a ser
compreendida. A interação dos sujeitos leva a formação de enunciados e discursos
cumprindo o papel de estabelecer um contato e transmitir informações.

O cinema em suas variações e modelos de reprodução apela para as


sensações dos espectadores e pode cumprir uma função educativa, afiando nossos
sentidos e treinando nossas percepções. O uso de recursos visuais e sonoros,
desperta sensações e projeta memórias.

O cinema, por sua natureza composta de imagens e sons, mais do que


qualquer outra linguagem, pode concorrer para a educação de olhares e de
escutas, prestando-se, particularmente, a uma educação da sensibilidade.
Uma educação do modo humano de sentir todas as coisas. É por esse
motivo, talvez, que a linguagem do cinema tenha essa capacidade de êxtase,
de estesia, de maravilhamento, de beleza, de horror, de medo. (COUTINHO,
2008, p. 229).

É-nos oferecida uma alternativa didática. Seu modo de se expressar


possibilita a fácil compreensão e estimula a capacidade imaginativa. A possibilidade
de um indivíduo ser facilmente "alfabetizado" na "gramática" do cinema, o torna um
recurso viável para a transmissão e assimilação de uma mensagem. Pois ao utilizar
elementos que estão além de uma narrativa escrita, um filme pode imprimir
sensações e sentimentos, despertar interpretações e capturar a percepção dos
espectadores.

Sem a imaginação, o cinema e os filmes não seriam mais do que meras


imagens em sequência. É com imaginação que completamos o que a
montagem esconde, ou seja, os intervalos de significação (Almeida, 1999)17
que compõem a linguagem cinematográfica. É com a imaginação, que se
alimenta da memória, que preenchemos os sentidos que o filme suprime.
Tudo se passa como se o que o filme esquecesse, e nós, os espectadores,
devêssemos lembrar. Por isso o cinema inteligente é uma linguagem que
precisa confiar na inteligência do espectador; exige, podemos dizer,
reciprocidade. A linguagem cinematográfica se aproxima, assim, de uma
educação que não quer explicar tudo, que confia na inteligência do outro –

17
ALMEIDA, Milton José de. Cinema Arte da Memória. Campinas: Autores Associados, 1999.
50

educandos, alunos, orientandos, seja que nome damos a quem se aventura


na arte de aprender com o outro e com as múltiplas linguagens que o homem
construiu e estão já disponíveis e acessíveis em muitos suportes. (Ibidem, p.
231).

O filme possibilita a observação do tempo fora da cronologia habitual do


“tempo cotidiano”. Possibilita o recorte e a expressão de uma época, tanto por
documentar o período abordado, como por demonstrar uma percepção do passado
pela perspectiva do momento em que é produzido. Pode vir a cumprir funções
sociais e/ou políticas e direta ou indiretamente retratar os objetivos de quem passa
uma mensagem. Possibilita o entendimento de um sistema temporal unindo passado
presente e futuro e situando-nos no interior deste sistema.

O filme é um epítome que congrega tempo e espaço, pessoa e persona,


objetos, e só pode acontecer dentro de uma temporalidade cronológica que,
uma vez definida, conserva, para sempre, o presente do filme, o presente
daquela história. (Ibidem, p. 232).

Um filme, para quem o assiste, pode consistir na formação de uma lembrança


além de brincar com as fontes imaginativas dos sujeitos e coletivos sociais. É uma
representação ficcional do real de modo lúdico ou cru e realista. Traz à tona as
paixões e medos, sentimentos individuais e coletivos, fundamentando a lembrança
do mesmo modo.

Por meio deste recurso, procuramos apreender essa gama de sentimentos e


inquietações daqueles que viveram ou puderam acompanhar com íntimo interesse
os eventos que estudamos. Para isso, iremos utilizar duas produções
cinematográficas de cunho documental, que interpretamos como representações de
perspectivas distintas, mas que abordam o período histórico que compõe o recorte
do nosso estudo.

Suas contribuições são imensas e tememos por não utilizar de modo


suficientemente abrangente os depoimentos e as falas dos documentários; todavia,
teremos o rigor de fazer uso adequado e respeitoso a ambas as perspectivas
apresentadas. Nosso objetivo não é determinar quem está certo ou errado, mas
compreender quais elementos diferencia uma narrativa da outra e seus respectivos
objetivos, além de entender como estas duas produções podem colaborar para a
51

formação de uma memória coletiva (HALBWACHS, 1990) e, consequentemente,


para a imaginação nacional sobre o fato.

A primeira obra que discutimos é o documentário Setenta de Emília Silveira


(2015). Acreditamos que representa a perspectiva histórica aproximada à das
camadas democráticas que se articularam para denunciar os crimes cometidos pelo
regime militar. Estas pessoas teriam colaborado para a formação do imaginário que
compreende o período como uma ditadura institucionalizada. Também pode ser
compreendida como uma das obras que retrata o pensamento de “esquerda”
segundo setores conservadores da sociedade.

A segunda obra trazida é o documentário 1964: O Brasil entre armas e livros,


uma produção independente da produtora Brasil Paralelo, dirigido por Lucas
Ferrugem. Este filme despertou nosso interesse sobre o fenômeno do revisionismo.
Composto por falas de historiadores, jornalistas e diversos pensadores identificados
com a direita, apresenta sua perspectiva sobre os eventos, denunciando crimes da
esquerda e sua influência sobre a percepção que se tem atualmente desse período.

3.2.1 Os Setenta de Emília Silveira

A década de 1970 é compreendida pela história como o auge da violência,


perseguições, prisões, mortes, sequestros e torturas que marcam os vinte anos de
regime militar. A cineasta, roteirista e produtora Emília Silveira apresenta em sua
obra áudio visual Setenta de 2014, depoimentos de combatentes de esquerda, ou de
alguns familiares ou amigos. Os “personagens” que protagonizam os relatos são
Jaime Cardoso, Marco Maranhão, Carmela Pezzutti, Chico Mendes, Elinor Brito,
Reinaldo Guarany, Luís Alberto Sanz, René de Carvalho, Affonso Alvarenga, Mara
Curtiss Alvarenga, Jean Marc Van der Weid, Nancy Mangabeira Unger, Bruno
Dauster, Vera Rocha Dauster, Wilson Barbosa, Ismael de Souza, Frei Tito de Alencar
e Maria Auxiliadora Lara Barcelos (Dora).

A proposta é demonstrar os impactos deste fato quarenta anos após. Durante


96 minutos o filme convida o espectador a se envolver com estas trajetórias de vida,
52

as paixões, as dores, a inquietação e toda a carga emocional e o valor histórico que


os depoimentos carregam. Quem são as pessoas que viveram os eventos que tanto
ouvimos falar? O que aconteceu com estes sujeitos no decorrer das décadas? Quais
impactos estes fatos causaram em suas vidas?

O documentário relata um episódio que se iniciou no dia 7 de dezembro de


1970, quando o então diplomata e embaixador da Suíça no Brasil, Giovanni Enrico
Buncher18, foi sequestrado por um comando da Vanguarda Popular Revolucionária
(VPR) no Rio de Janeiro, operação que resultou na morte de um agente de
segurança do embaixador.

Apesar de sua resistência e o árduo trabalho na tentativa de localizar os


sequestradores, o governo decidiu finalmente anunciar em 9 de dezembro ter
recebido comunicados do grupo terrorista, e manifestou disposição a assegurar a
integridade do diplomata. As negociações foram limitadas à exigência de soltura de
70 presos políticos. No dia 21 de dezembro, o governo anunciou o recebimento da
lista de nomes, vetando 13 nomes alegando a impossibilidade de soltura dada a
gravidade das acusações contra estes. Posteriormente outros 7 foram também
vetados. Porém, relata-se que os sequestradores exigiram a soltura de exatamente
70 presos ou o embaixador seria executado. Por fim, o governo aceitou substituir os
20 nomes vetados por outros, e em 13 de janeiro de 1971, os Setenta foram
embarcados em um avião da Varig rumo ao Chile.

A relevância histórica do documentário se amplia ao demonstrar que a


América Latina neste período, foi marcada por forte repressão e pela consolidação
de regimes ditatoriais. Apesar da recepção calorosa do povo chileno para os
“camaradas” brasileiros, que é relatada pelos antigos exilados, em 11 de setembro
de 1973 o governo constitucional de Salvador Allende, eleito em votação livre e
democrática em 1970, é destituído por meio de uma conspiração militar. Após este
golpe e a morte de Allende, durante quase vinte anos o Chile foi administrado por
uma junta militar composta por comandantes do Exército, da Marinha, da

18
Cf. Alzira Alves de ABREU et al (coords.). Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro – Pós-1930. Rio
de Janeiro: CPDOC, 2010. Disponível em:
<http://fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/bucher-giovanni-enrico>. Acesso em: 26
mar. 2020.
53

Aeronáutica e de Carabineiros, sendo o cargo de presidente da república ocupado


pelo comandante do Exército, General Augusto Pinochet Ugarte.

Os Setenta foram novamente vitimados pela perseguição de uma ditadura,


lançados mais uma vez a clandestinidade e ao exílio, fugiram para a Europa. A
escolha do destino se deu devido ao cenário mundial. Apesar das revoluções
assistidas na África com a independência do Senegal e do Congo em 1960, e da
Argélia em 1962, ou da revolução em Cuba deflagrada em 195919, a segunda
metade do século XX foi um período de totalitarismo na América Latina. Em uma
ordem cronológica, e de modo bastante sucinto podemos listar os seguintes
eventos:

● Em maio de 1954 um golpe de Estado liderado por Alfredo Stroessner,


derrubou o governo de Federico Chávez no Paraguai e estabeleceu a
ditadura que se prolongou até 1989;
● A crise dos mísseis em Cuba no ano de 1962 pode ser entendida como a
chegada da Guerra Fria no Novo Mundo, devido a existência de um governo
de esquerda que se relacionava diretamente com Moscou;
● Em 31 de março de 1964 o Brasil protagonizou o golpe civil militar que
destituiu o governo democrático de João Goulart;
● Em novembro também de 1964 a direita conservadora da Bolívia mobilizou o
golpe que entregou o poder ao General René Barriento;
● Em 1965 a força Interamericana do Brasil (Faibras) alocou 1.250 militares
brasileiros em Santo Domingo na República Dominicana, para auxiliar na
intervenção Estadunidense naquele país, alegando o fim da guerra civil e a
promoção de eleições democráticas, portanto, evitar um governo
“comunista”20;
● Em 28 de Junho de 1966 o presidente da Argentina Arturo Umberto Illia foi
derrubado por um golpe que instaurou uma ditadura militar que durou até
1973;

19
EDITOR, O. Linha do tempo da resistência à ditadura militar no Brasil (1960-1985). Estudos
Avançados, v. 28, n. 80, p. 153-184, 1 jan. 2014.
20
GUEDES, Matheus. Em 1965, o Brasil se alinhava aos EUA em intervenção na República
Dominicana. Acervo O Globo: 21 de maio de 2015.
54

● No dia 27 de junho de 1973 com o apoio das Forças Armadas o então


presidente Juan María Bordaberry do Uruguai, fechou o Senado e a Câmara
dos deputados criando um conselho de Estado para substituir as funções
legislativas e instaurar a ditadura civil-militar que durou até 1985.

A América Latina nesta época sofreu sérias consequências com as disputas


de influências que se instalaram no mundo devido ao segundo pós-guerra. O
despertar de golpes e ditaduras civis militares não se resumiu ao Brasil, atingiu
gravemente os países vizinhos.

Contudo, o documentário não gira em torno do sequestro, nem em vislumbrar


com riqueza de detalhes as Américas, mas os relatos dos personagens. São
registrados 18 testemunhos, todos contendo narrativas sobre o período em que
estiveram presos, lembranças de eventos vividos ou presenciados, e alguns relatam
como foram torturados, a exemplo de Marco Maranhão aos 3 minutos e 4 segundos:
“Na minha tortura eu tive três colegas de colégio militar. (...) Eles me ‘botaram’ no
pau-de-arara21, eu sendo torturado no choque elétrico e sendo afogado no sangue
que escorria do meu nariz”. A segurança de suas palavras demonstra convicção e a
inegável certeza de ter sido vítima de tortura.

Os militantes contam suas práticas de resistência, seu nível de envolvimento


com grupos de guerrilha e suas ideologias políticas e sociais. As pautas defendidas
eram a favor da democracia e liberdades pessoais, e consideradas de cunho
subversivo pela doutrina do governo. Um dos entrevistados, Wilson Barbosa, conta
que a época era de grandes embates. Aos 4 minutos e 32 segundos de filme, ele
diz: “estudantes reprimidos, operários reprimidos, militares expulsos... alguém ia
reagir”.

Episódios como o do sequestro mostravam-se frequentes principalmente nos


anos de maior repressão. Os movimentos sociais eram vistos com maus olhos, e do
seu interior foram extraídos alguns dos presos do período. Contudo, grupos de

21
“(...) O pau-de-arara consiste numa barra de ferro que é atravessada entre os punhos amarrados e
a dobra do joelho, sendo o ‘conjunto’ colocado entre duas mesas, ficando o corpo do torturado
pendurado a cerca de 20 ou 30 cm do solo. Este método quase nunca é utilizado isoladamente, seus
‘complementos’ normais são eletrochoques, a palmatória e o afogamento. (...)”. ARQUIDIOCESE DE
SÃO PAULO. Castigo cruel, desumano e degradante. In:______. "Brasil: Nunca Mais". Petrópolis,
Vozes, 1985. P. 32.
55

guerrilha haviam sido criados na tentativa de fazer frente à postura do governo. O


sequestro possuía uma pauta política, de oposição ao paradigma de governo e
estruturas sociais que estavam sendo impostas.

A narrativa do filme deixa claro que seu principal objetivo não é relatar pura e
simplesmente um episódio histórico, mas buscar o reconhecimento de pares,
despertar empatia no espectador e transmitir as sensações, os medos e a angústia
de ser um preso político. É denunciar as injustiças e os crimes cometidos durante a
ditadura e lembrar que o período foi marcado por forte repressão, censura e tortura.

A fala de Jaime Cardoso aos 21 minutos e 46 segundos é representativa de


como o cotidiano era afetado:

Eu conheci um militante, na época do movimento secundarista, que, para


dizer que não era apegado a nada, a nenhuma propriedade, lia os livros
rasgando as folhas. Ele lia a primeira folha, rasgava e “jogava fora”. Ninguém
em sã consciência lê livros rasgando as páginas. Minhas páginas do passado
estão todas “lá”, só que, a gente vai lendo o livro pra frente folheando as
páginas, virando as páginas e de vez em quando a gente tem que ir lá, por ter
referências em relação a história que vai se desenvolvendo, mas a gente não
vive no passado.

A memória é o elemento-chave deste documentário. Para além do simples


registro escrito ou o levantamento de provas, documentos, laudos e depoimentos, os
sentimentos são evocados a partir da fala e do ato de visitar as “páginas do
passado”, lembrando-se das vivências e dos pensamentos. Seus relatos são
íntimos, percepções, sensações e paixões que os motivaram a tomar determinadas
condutas. As dores e marcas da violência são compartilhadas com os espectadores
que captam a nostalgia nos olhares, nos sorrisos, nos semblantes de dor, a
seriedade ao falar de companheiros mortos, a fala emocionada ao lembrar o
cárcere. Todos estes elementos visam como vimos com Halbwachs (1990) despertar
sentimentos individuais, e compartilhá-los objetivando gerar um reconhecimento
entre os sujeitos, uma partilha e uma apropriação de lembranças para por fim,
compor uma memória coletiva sobre o período retratado. Revisitar o período dos
“anos de chumbo” através da perspectiva de quem sofreu sua ação mais radical é
56

um modo de evidenciar a intensidade de sua repressão e as consequências de suas


políticas baseadas na DSN.

O documentário também nos possibilita compreender as dimensões da ação


dessas políticas e seus efeitos sociais. Podemos citar a fala de Mara Curtiss
Alvarenga e Affonso Alvarenga que aos 17 minutos de filme relatam a vida na
clandestinidade assumida após seu envolvimento com os grupos armados. Pais de
seis filhos decidem entrar para a luta armada e com nostalgia e bom humor falam
sobre seus feitos. “Tínhamos vendido nossa casa (...). E dado o dinheiro para a
organização”. O descontentamento com a conjuntura e as medidas tomadas pelas
facções políticas e militares que se projetaram, além da excepcionalidade do modelo
de governo, ocasionaram a proliferação de movimentos e o surgimento de grupos
armados. Muitos brasileiros inquietos viam no uso de armas o meio mais efetivo para
enfrentar o que lhes era imposto naquele momento.

O discurso do governo apresentava os presos como terroristas, militantes e


guerrilheiros. Contudo, boa parte dos depoimentos indica que poucos deles tinham
algum conhecimento efetivo de táticas de guerrilha apesar de seu envolvimento. Não
havia preparo. Segundo relatos de indivíduos que compunham os Setenta, seu
interesse por guerrilha surge após torturas no cativeiro e os treinamentos em
guerrilha são posteriores à sua soltura.

Seus conhecimentos sobre socialismo, comunismo, marxismo ou outras


doutrinas de esquerda eram, em muitos casos, fruto de estudos próprios. Aos 42
minutos e 20 segundos Jean Marc von der Weid relata sobre sua formação como
fuzileiro naval, o que lhe dava preparo melhor que o da maioria dos militantes. Jaime
Cardoso aos 43 minutos e 30 segundos conta que quando exilado foi à Coreia do
Norte com um grupo dos Setenta, e durante seis meses ficaram em treinamento
intensivo na selva para ter meios de partir para a guerrilha rural.

Os relatos revelam como se efetivava a “ameaça comunista” usada como


justificativa para a articulação de facções militares de direita e o desencadeamento
dos eventos de 1964, além das medidas tomadas pelo executivo dali em diante. O
discurso que defende o golpe civil-militar e o estado de exceção como medidas
defensivas contra uma "iminente" ditadura do proletariado, é desafiado por estes
57

depoimentos. O AI-5 é declarado como um recurso repressivo de combate ao


terrorismo e ações criminosas correspondentes a uma cadeia de agentes de países
comunistas infiltrados e treinados para disseminar o caos na sociedade. Todavia, os
protagonistas de Setenta, não negam suas atividades clandestinas em grupos e
partidos de esquerda revolucionária, mas revelam o seu despreparo e o amadorismo
da maioria. A ditadura militar no Brasil se sustentou em medidas excepcionais que
se justificavam em um discurso alarmista e despertava o sentimento de insegurança
na sociedade civil.

Todavia, o documentário apresenta que na década de 1970 os grupos


oposicionistas já estavam bastante desarticulados. Os combatentes eram poucos.
As prisões eram constantes, os jornais impressos estampavam em suas páginas os
rostos de suspeitos. A violência com que estes sujeitos eram tratados deixou
sequelas naqueles que sobreviveram. A esquerda revolucionária foi facilmente
suprimida por falta da organização que era acusada de possuir. Nunca teria sido
uma ameaça real. Novamente citando Jaime Cardoso, agora aos 44 minutos e 40
segundos: “Já nesse período era possível ver os efeitos da repressão. Os
movimentos de guerrilha estavam se deteriorando. Já tínhamos informação de
infiltração da polícia (...) estariam oferecendo dinheiro por cabeça de guerrilheiro que
voltasse ao Brasil”.

Reinaldo Guarany, ex-guerrilheiro da ALN, narra suas vivências, ora com bom
humor, ora com tom nostálgico. Seu semblante se torna abatido e melancólico ao
recordar a morte de alguns militantes no cárcere e, em particular, de sua
companheira Maria Auxiliadora Lara Barcelos, com quem viveu os anos de exílio.
“Dora”, foi uma guerrilheira integrante da Vanguarda Armada Revolucionária
Palmares (VAR-Palmares), suicidou-se em 1976 ainda durante o exílio na Alemanha
Ocidental. Os relatos de “Guarany” deixam clara a falta de coordenação de grupos
como a ALN e a VAR-Palmares para o desenvolvimento efetivo de atos de guerrilha.
“Quem não era suicida em 1969, já via que não daria. Nós já estávamos em uma
descida alucinante”.

Peculiarmente o filme retrata as dores do exílio, o afastamento forçado de sua


“terra natal” e o convívio com as sequelas da tortura. Em alguns momentos relatam
58

sobre o dia a dia de estar fora, longe de suas famílias e de como faziam para manter
uma vida normal sabendo do que acontecia em sua pátria e tendo de conviver com
as consequências das violências sofridas.

Como exemplo dos males causados podemos citar a fala de Frei Oswaldo
sobre a militância de Frei Tito. O cearense Tito de Alencar passou seus últimos
momentos de vida na França. Aos poucos as marcas da tortura se mostravam cada
vez mais profundas. Ele visualizava seus torturadores, não se sentia seguro. Frei
Tito cometeu suicídio em 1974.

A memória coletiva que se busca compor através desse filme consiste no


conjunto de sentimentos dolorosos causados pelas perdas do passado. A fatalidade
que envolve as trajetórias relatadas acrescenta um tom de pesar à nostalgia
despertada pela lembrança. Não se trata de relembrar glórias nem sequer de saudar
heróis, mas pela repetição, imprimir na consciência coletiva os sentimentos, os
objetivos e os erros do passado, e por fim, evidenciar os crimes cometidos, para que
as próximas gerações possam refletir e ponderar antes de voltar a repeti-los.

3.2.2 1964: O Brasil entre armas e livros de Lucas Ferrugem

A obra cinematográfica 1964: O Brasil entre armas e livros é uma tentativa de


apresentação didática desta perspectiva revisionista. Reconhecendo o valor
pedagógico do audiovisual, o site Brasil Paralelo utiliza este recurso para transmitir
seu documentário. Em seu canal oficial no site YouTube, a "Brasil Paralelo”
disponibiliza diversas séries e filmes com fins educativos. Dentre eles, e em fácil
acesso, encontra-se o documentário supracitado. No vídeo disponibilizado antes do
início do documentário, Filipe Valerim, sócio fundador do Site Brasil Paralelo e
referenciado como produtor do documentário afirma ao 1 minuto e 6 segundos que
“suas produções já levaram informações para mais de 20 milhões de brasileiros, que
agora carregam um pouco mais de ‘Brasil’ dentro de si”. Fica clara a pretensão de
estabelecer legitimidade no discurso, autenticidade em suas palavras e veracidade
em suas informações. Existe uma busca por validar o que é dito atribuindo valor
através de suas fontes e seus interlocutores.
59

Esta legitimidade almejada é mostrada segundos antes ao apresentar como


contraponto depoimentos anônimos de professores e alunos de universidades
públicas, que alegam censura e perseguição por núcleos de “esquerda” que atuam
fortemente no interior das instituições acadêmicas. Esses grupos "esquerdistas" são
responsáveis por um processo de doutrinação dentro das universidades e que, ao
invés de haver o ensino de história, existe um processo de produção, reprodução e
divulgação de uma historiografia de esquerda. O filme, portanto, consiste em um
esforço que contou com a ajuda de especialista para o acesso de bibliografias e
documentações do Brasil, Estados Unidos, Polônia, Berlim e República Tcheca, e
visa por meio da fala destes estudiosos estabelecer uma narrativa sobre 1964 que
seria isenta de partidarismos e conceituações ideológicas.

O filme de Lucas Ferrugem, Filipe Valerim e Henrique Viana possui uma


atmosfera épica, convidando o espectador a se conscientizar da grandeza e
complexidade do período estudado, através do uso de imagens fotográficas de
personalidades e personagens históricos importantes, filmagens antigas, recortes de
jornais ressaltando nomes ou grifando palavras, imagens de documentos, gravações
de áudios ou pronunciamentos de políticos. Todos estes elementos visuais atrelados
a uma trilha sonora em muitos momentos dramática, que transmite o clima de
densidade da compilação de informações que serão lançadas nas próximas duas
horas. Apesar da grande quantidade de informações, a linguagem é bastante
acessível, as falas consistem na compilação de entrevistas com os especialistas e
estudiosos, sendo recortes destas gravações e a organização delas para compor um
roteiro narrativo acompanhado de uma locução responsável por determinar a
passagem de tempo, apresentação dos eventos e explicação do que foi dito pelos
entrevistados. Em suas duas horas e sete minutos de duração, o documentário
explora fatos históricos que decorrem da década de 1920 aos meados dos anos
1980.

O documentário inicia com um panorama geral do mundo, o contexto e fatores


externos que estavam influenciando os movimentos políticos e, em particular, o
cenário de bipolarização, mostrando a Guerra Fria entre Estados Unidos e União
Soviética. Segundo o locutor, a revolução russa implementou uma ditadura que tinha
“Lênin como Deus e Stalin e Trotsky como papas vermelhos”. Esta ditadura teria um
60

plano de dominação mundial, espalhando genocídios e totalitarismo pelo mundo nos


anos que se seguiram. A fala busca criminalizar o comunismo e o regime de
esquerda na União Soviética. Existe uma constante ênfase ao tratar dos pontos
negativos do paradigma do governo Jango, e suas relações internacionais, pois, de
acordo com William Waack aos 9 minutos e 46 segundos de filme, “o comunismo só
existiu na Europa onde o exército vermelho pisou”. Em contraponto, exaltam os
Estados Unidos, sua democracia liberal e seus valores cristãos.

Este panorama é apresentado pela locução intercalada por pontuações dos


entrevistados, como podemos ver nas falas de Percival Puggina aos 4 minutos e 50
segundos, Fernão Mesquita aos 6 minutos e 15 segundos, de Flávio Morgenstern
aos 7 minutos, Hélio Beltrão aos 7 minutos e 40 segundos, Vladimir Petrilák aos 8
minutos e 18 segundos, Rafael Nogueira aos 9 minutos e 15 segundos, o já citado
William Waack aos 9 minutos e 40 segundos, Renor Filho aos 11 minutos e Petr
Blažek aos 11 minutos e 20 segundos. Em menos de 20 minutos de filme temos
nove trechos de entrevistas, o que objetiva expor a variedade de fontes e sujeitos
consultados. A busca por legitimidade é demonstrada por uma tentativa de
fundamentação do que é narrado. Em todos estes momentos cada um destes
sujeitos citados traz contribuições para explicar como se deu o avanço da ideologia
comunista e o fortalecimento da União Soviética. Citações muito pontuais são feitas
aos Estados Unidos e seus aliados.

Aos 12 minutos e 40 segundos o locutor comenta o processo do maoísmo na


China e sua relação com a vertente de pensamento soviética. Relata-se sobre a
vitória dos revolucionários chineses contra os nacionalistas que teriam sido
perseguidos. O paradigma de governo estabelecido apresentava traços totalitários.
Entretanto, nada se fala sobre o imperialismo britânico na China e seus efeitos na
sociedade chinesa anos antes.

A disputa por uma hegemonia motivou a articulação de ambas as potências


com países de todo o globo, apoiando governos ou milícias em favor de golpes de
Estado, e até mesmo financiando guerras. O primeiro conflito citado foi o da Guerra
da Coréia, sendo os Estados Unidos apresentados como “salvadores” da Coreia do
Sul. O documentário exalta o estilo de vida, a cultura, a economia e a política
61

estadunidenses; o “sonho americano” é um modo de legitimar e celebrar a


sociedade ocidental.

As ações norte-americanas são vistas como uma resposta necessária ao


avanço da esquerda e a influência dos Estados Unidos na América Latina é
compreendida como um meio de protegê-la da “ameaça vermelha”. A revolução em
Cuba e sua influência regional são tratadas como o momento inicial da ação de
Moscou nas Américas. A ameaça de um conflito direto entre as duas potências é
agravada pela crise dos mísseis em Cuba e a terceira guerra mundial não eclodiu,
devido ao medo do uso de armamento nuclear. Seguido de uma trilha dramática, o
locutor informa sobre o armamento da União Soviética e as proporções do impacto
que poderia causar pela detonação de suas bombas. Todavia, não se ressaltam as
proporções do poderio bélico dos norte-americanos. Aos 16 minutos e 20 segundos
é dito: “A revolução contra o Ocidente contava com forças ocultas que atuavam nas
sombras. Era a era do serviço secreto. Lenin afirmava que a única moral que os
comunistas reconhecem é aquela que serve aos próprios interesses”.

Segundo o locutor do documentário, a mentira e manipulação da informação


era uma das estratégias de controle da União Soviética. “A desinformação soviética
é a arma secreta mais eficiente contra a sociedade ocidental”. É citada a criação do
Comitê de Segurança do Estado e a organização do serviço secreto soviético, a
KGB, detalhando sua ação através de propagandas e espionagem, além do
recrutamento. Aos 18 minutos a locução afirma que existe uma articulação de forças
no mundo para garantir a difusão do comunismo por meio da ação política, incitando
protestos e guerrilhas. A internacional comunista (KOMINTERN) em 1919 tinha por
objetivo pôr em prática a expansão mundial do comunismo.

Seu estatuto determinava as condições para filiação de partidos comunistas.


A fundação do Partido Comunista do Brasil (PCB), em 1922, é encarada como um
braço de Moscou no Brasil, responsável por estabelecer meios efetivos de influência
e infiltração do comunismo no território nacional. William Waack, aos 21 minutos e
52 segundos argumenta que

Ele (o estatuto) demonstra que o Partido Comunista Brasileiro nunca teve


vida própria. Ele sempre foi uma sessão da "Internacional". E era assim
mesmo que o movimento comunista internacional se entendia nas décadas
62

de 1920 e 1930: como um movimento que instauraria o comunismo no


planeta. Na Argentina, no Chile, no Brasil, na Alemanha, na Itália, na China,
nos Estados Unidos, onde fosse. Todos eles estavam subordinados às
diretrizes rígidas de Moscou.

Luiz Carlos Prestes teria retornado clandestinamente ao Brasil para instaurar


o comunismo, no que ficou conhecido como a Intentona Comunista em 1935.
Fracassada a tentativa, Prestes e seus apoiadores foram detidos. No início do
governo de Gaspar Dutra, o PCB caiu na ilegalidade, mas continuava atuando na
política nacional22, o que possibilitou a continuidade da articulação de Moscou no
território brasileiro mesmo com o fim das relações do Brasil com a União Soviética
ainda no começo do mandato do militar.

Mauro Abranches Kraenski aos 25 minutos e 25 segundos apresenta seus


estudos sobre o Brasil, e relata a riqueza de produções sobre a influência do serviço
secreto norte-americano durante os anos de 1950 e 1960. Porém, segundo ele, não
existem conteúdos que constatem a intervenção da União Soviética. Ao realizar
pesquisas nos arquivos do antigo Serviço Secreto da Tchecoslováquia (StB),
descobriu registros que provam a atuação de seus agentes no exterior, incluindo o
Brasil, estabelecendo influência por meio de espionagem, recrutamento e
intervenção na política interna, como comenta Vladimir Petrilák aos 27 minutos e 10
segundos

Descobrimos que nesses arquivos em Praga, existe um acervo muito rico


sobre o Brasil, e não somente, que descreve uma boa parte da história,
sendo que, essa fonte não tinha sido estudada até hoje no Brasil. Ninguém
sabia sobre ela. E que, até o ano de 1989, eram materiais ultrassecretos, que
a partir do ano de 2006-2007 já podiam ser pesquisados. E trata-se do
período de tempo de 1952 até início do ano de 1971, depois um pouco do
final dos anos 1980 também. Ou seja, um bom pedaço da história do século
XX.

Estes documentos também evidenciam a atuação de serviços secretos de


outros lugares como a Polônia, Cuba, China e a própria União Soviética em solo
nacional.

22
Para maior entendimento dessa tese recomendamos a seguinte bibliografia: CARVALHO, (Gal)
Ferdinando de. Os Sete Matizes do Vermelho. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1977.
63

Alexandre Borges, aos 36 minutos e 12 segundos afirma que a eleição de


Juscelino Kubitschek teria aproximado filhos do varguismo populista e da esquerda.
O projeto de Brasília, segundo o escritor, possui uma arquitetura stalinista, um
“projeto urbanístico de esquerdistas”. O projeto arquitetônico de Brasília estaria
seguindo o modelo “d'A cidade comunista ideal”23.

O tom da narrativa muda no momento seguinte. A música de fundo passa de


uma melodia dramática para uma cômica. Este clima é criado para retratar o
presidente Jânio Quadros, como uma figura digna de chacota. Sua tentativa de
conciliar os lados e fazer uma política populista não é levada a sério. O tom volta a
ser dramático, ao relatar o motivo da sua renúncia.

João Goulart, vice de Jânio, representava para facções militares aproximadas


ao pensamento da direita, um risco à segurança nacional. Mesmo com a resistência
e tentativa de impedimento, “Jango” assumiu a presidência. Políticas econômicas
nesse período ainda eram afetadas pelo processo inflacionário do governo de
Juscelino, o que fortaleceu os movimentos sindicais e as greves, estimuladas pelo
próprio presidente para pressionar o congresso. Neste período, houve os
treinamentos de guerrilheiros em Cuba com auxílio da StB. Mauro Abranches aos 49
minutos declara que em suas pesquisas foram encontrados documentos com os
nomes de 41 brasileiros que foram à Cuba receber este treinamento.

Neste momento o documentário afirma que o PCB sofre uma ruptura,


dividindo-se em uma vertente voltada ao aperfeiçoamento da disputa ideológica em
associação à União Soviética, e em uma vertente insurgente, o Partido Comunista
do Brasil (PCdoB), que visava uma revolução armada e seguia a perspectiva
maoísta. Francisco Julião deputado federal é posto como responsável por
transformar as ligas camponesas no Nordeste em guerrilhas armadas com
treinamento cubano. Guerrilhas já estavam sendo articuladas ainda em 1963. Sobre
isto Vladimir Petrilák comenta

Enquanto isso, por ordem ou pedido da KGB a StB trabalhou, por exemplo,
as ligas camponesas, Francisco Julião. Existia expectativa que pudesse

23
The Ideal Communist City é um livro de autoria de Alexei Gutnov, arquiteto russo. A obra contaria
com um projeto arquitetônico para uma “cidade comunista” idealizada para centralizar o poder político
e afastá-lo da população.
64

surgir uma guerra civil no Brasil. E, para essa casualidade foi organizada uma
operação cujo objetivo era, caso ocorresse essa guerra, que o resultado
dessa guerra fosse canalizado para a esquerda e por esse objetivo foi feito o
contato com Leonel Brizola e ele queria armas, mas os tchecos não
forneceram. Com esse objetivo foi novamente feito contato através de um
brasileiro, um dos generais do exército brasileiro do sul. E foram feitos ainda
alguns contatos com políticos locais, justamente para criar diferentes bases
ou centros através das quais fosse possível ajudar a controlar essa guerra.

As Reformas de base e a tentativa de implementação do Estado de Sítio por


Goulart através de decretos, teriam despertado a insatisfação das camadas
populares. A marcha da família com Deus foi uma resposta da nação brasileira às
tentativas de consolidar o comunismo no país. Propaganda anticomunista era
transmitida diariamente pelos principais veículos de comunicação. O Brasil estava a
favor de 1964 e contra um golpe comunista.

Um golpe parlamentarista retira Goulart do cargo e abre caminho para a


articulação de coletivos civis e militares. O que divide na perspectiva histórica as
nomenclaturas: revolução, segundo os militares, e golpe militar, para as esquerdas.
Entretanto, a nomenclatura historiográfica atualmente mais usada para nomear o
período é “golpe civil-militar"24.

Segundo Olavo de Carvalho à 1 hora e 8 minutos, existe uma versão que


associa os eventos de 1964 às ações da agência de inteligência dos Estados Unidos
(CIA). Esta teoria foi lançada no livro O Golpe Começou em Washington, publicado
em 1965 e recolhido de circulação pela polícia. Esta obra de autoria do jornalista e
escritor Edmar Morel gerou uma forte onda publicitária. Um ex-agente da StB teria
assumido a responsabilidade por propagar essa versão, conforme Vladimir Petrilák

É claro, sobre isso já escreveu Ladislav Bittman, desertor da StB, que no ano
de 1968 fugiu para os Estados Unidos e lá revelou segredos da STB. E nós
encontramos confirmação nos arquivos de Praga. (...) E o objetivo foi
justamente comprometer com base em dados não verdadeiros e falsificados,
a política externa americana. Assim como acusar os Estados Unidos da

24
Podemos acompanhar a utilização dessa nomenclatura em: CUNHA, Paulo Ribeiro da. Militares na
política ou política entre os militares: Uma falsa questão? In: BARBOSA, Jeferson Rodrigues, et al.
(Orgs.). Militares e Política no Brasil. São Paulo: Expressão Popular, 2018.
65

responsabilidade do golpe militar no Brasil no ano de 1964. Tratavam-se de


duas operações: a A. O. Toro e a A. O. Mann.

Os eventos que se sucederam ao golpe de 1964 são descritos da seguinte


forma: O General Castelo Branco foi eleito de modo democrático pelo congresso; O
AI-1 foi um modo de estabelecer cassações aos parlamentares brasileiros
supostamente vinculados ao serviço secreto tcheco; A ala “linha dura” decretou o
AI-2 e o bipartidarismo criando os partidos ARENA e MDB, como também mantendo
a eleição do presidente pelo congresso; havia vitalidade no MDB e presença de
núcleos da esquerda, entretanto, apesar deste cenário que poderia ser projetado
para a democratização, ocorreu um segundo golpe; o prolongamento do mandato do
Castelo Branco foi um meio de possibilitar o AI-3 e o avanço da “linha dura” dos
militares; Castelo Branco institucionalizou o regime por meio do AI-4 convocando a
constituinte, pois não via meios de fazer frente ao avanço de outra facção militar.

O que se segue com o fim do mandato de Castelo Branco é uma ruptura


gradual com os princípios do Estado de Sítio, sendo Costa e Silva eleito e
apresentado como uma figura autoritária. Sua postura é descrita com uma
perspectiva positivista e tecnocrática, sendo responsável pela centralização do
poder. Contudo, o Terrorismo revolucionário e a luta armada são os principais
motivadores das violências que se seguiram, responsabilizados por mergulhar o país
em insegurança. Guerrilhas como a do Araguaia foram acusadas de serem
responsáveis por atos criminosos que acarretaram a resposta severa do governo.

A historiografia oficial é acusada de propagar versões deturpadas, pois os


interesses dos grupos de esquerda não se configuraram no estabelecimento de
liberdades democráticas como é retratado por teóricos e estudiosos do período, mas
seu real objetivo era de instaurar outro tipo de ditadura, a do proletariado.

O documentário ressalta os crimes cometidos pelos grupos de guerrilha


armada. A locução enfatiza que grupos como a ALN eram formados por sujeitos que
protagonizaram a política anos depois. Citam a ex-presidente Dilma Rousseff e sua
participação em grupos responsáveis por atos terroristas durante o regime militar.
Atentados e assassinatos são citados com detalhes, além de enfatizar seus efeitos
sobre a sociedade civil. É dito que estes grupos foram ignorados pela imprensa e
66

pela academia, sendo pouco citados nas narrativas que se seguiram anos depois. O
terrorismo de esquerda gerou o cenário de insegurança que deu condições ao uso
da Tortura contra opositores.

A violência física usada por grupos militares passou a ser uma pauta
recorrente no discurso de oposição ao governo, e que teria sido exagerada para
gerar atritos mais intensos. O AI-5 instaurou a ditadura como resposta a pressão do
terrorismo. Contudo, os interlocutores do documentário questionam o uso da
excepcionalidade para combater a oposição civil. Argumentam que mesmo dadas as
circunstâncias, o seu uso se mostra como um grande equívoco e de teor totalitário.
Houve uma ditadura militar a partir de 1968, e o MDB teria optado pela abstenção da
concorrência à presidência como meio de protesto.

Os especialistas deixam clara a existência das facções militares e como estas


se dividem quanto a opiniões. Enfatizam os desacordos da “linha dura” que estava à
frente da ditadura com outros grupos como os intelectualizados apoiadores do
Castelo Branco. Para amenizar a figura que representou Garrastazu Médici e os
“anos de chumbo” lembram o seu carisma. Médici e o nacional desenvolvimentismo
que marcou as políticas econômicas de seu governo representaram uma Ilusão
keynesiana, temos o Milagre econômico e a falsa ideia de superação da crise
econômica. As propagandas supervalorizavam esse processo, contudo, não
atingiam a juventude brasileira.

O documentário se encaminha para sua conclusão e as informações são


passadas mais rapidamente. Há uma divisão que marca um novo fator a ser
observado e debatido. Os movimentos de maio de 1968 na França e todas as
pautas que defendiam as liberdades pessoais eram uma ameaça às estruturas
vigentes e ao pensamento conservador. Neste momento, o vídeo expõe com maior
clareza o posicionamento político dos estudiosos ao declararem que estes
movimentos usavam os jovens como massa de manobra de uma trama oculta que
visava desestruturar a sociedade. Andrzej Wojtas diz

A ideologia esquerdista tomou conta não somente das mentes pelas quais
estava direcionada, mas também dos intelectuais, clérigos e professores. Não
eram as massas e sim os líderes e professores das nações, aqueles que tem
o governo sobre as almas.
67

O que passa a ser protagonizado é uma disputa pelas subjetividades, a


hegemonia cultural derivada da normalização das condutas. De acordo com os
entrevistados, a hegemonia pregada por Antônio Gramsci (1891-1937) em seus
escritos tornou-se uma doutrina cultural e política, que ganhou espaço nas
universidades e nas mídias, consistindo na formação de uma elite intelectual. Os
festivais culturais, a produção literária e cinematográfica, por exemplo, são meios de
desenvolver e disseminar uma contracultura, e o consumo destes produtos é um
modo de subverter a conjuntura e os paradigmas políticos vigentes. Segundo Olavo
de Carvalho “não havia uma publicação de direita, nada, zero”, e seguindo a
doutrina os “esquerdistas” se instalaram nas instituições e disseminaram seus
conceitos e valores.

No início do Governo Geisel, assistiu-se ao fim da guerrilha no campo militar e


a liberação para a articulação institucional da esquerda. A Teoria da “panela de
pressão” permitiu a formação de uma esquerda que controle os coletivos radicais
possibilitando a institucionalidade da oposição. Ainda relatam que a censura foi mal
aplicada, e era pouco qualificada. Não houve ações efetivas dentro das
universidades. Por outro lado, existiu uma censura moralista que não impediu a
publicação e produção de intelectuais de esquerda, o que colaborou para a
formação de um imaginário nacional que põe os militares como a representação da
direita.

O governo Figueiredo e a anistia representaram o desgaste do regime militar


e o fim gradual da ditadura. A anistia visava apaziguar os ânimos. Ressaltam os
impactos da lei sobre a volta de liderança esquerdistas ao país como Brizola.
Entretanto, não entram em detalhes sobre como isso impactou os crimes cometidos
pela ditadura. Também foi favorecida a atuação legal de movimentos sociais e
sindicais. Este processo possibilita a formação de representações políticas e a
formação do multipartidarismo. Neste cenário ocorre a luta pelas diretas já. Em
1988, a constituinte foi articulada dentro da aparelhagem formada pelos militares
que possibilitaram a manutenção de estruturas já vigentes de favorecimento de
coletivos políticos e econômicos determinados. Todavia, quem se apropriou e se
beneficiou do processo de redemocratização foram lideranças e intelectuais de
esquerda, exclusivamente.
68

As considerações finais são a tentativa de firmar uma versão conservadora


sobre a história contemporânea, delineando o cenário de aparelhamento esquerdista
e sua aproximação com o poder executivo, possibilitando a sua ascensão ideológica
e institucionalização da corrupção, o que culminou com os eventos recentes na
política nacional. Para os entrevistados a impressão que fica é a de incompletude. O
desvio provocado pela ditadura após o AI-5 desconfigurou o propósito democrático,
virtuoso e patriótico que o golpe de 1964 ansiava, além de motivar a esquerda a
assumir uma nova estratégia muito mais efetiva e que se concretizou na injustiça e
em crimes contra a nação brasileira.

O Brasil passou a estar situado “entre armas e livros” quando a esquerda se


fragmentou. As “armas” da parcela “revolucionária” chamaram os militares e
coletivos sociais para um combate imediato. Esse imediatismo desviou a atenção
dos “livros” que a parcela “ideológica” carregava em suas mãos dentro das
universidades, dos sindicatos e movimentos sociais e políticos. Essa cumpriu o
papel de escrever e narrar os fatos, deturpando a história e contaminando o modo
de agir, pensar e sentir das gerações seguintes.
69

4 O REVISIONISMO

O Revisionismo é apresentado, desde o século XIX, como uma proposta anti


ortodoxa, que pode ser datada segundo Traverso (2012), a partir da intenção de
Bernstein25 de revisar as formulações marxianas. Com a transformação da doutrina
marxista em ideologia de Estado, tendo como marco a revolução de outubro de
1917, o revisionismo se ampliou para a crítica à legitimidade de estados e
ideologias. Já com o fim da Segunda Guerra, as críticas e revisões foram voltadas a
experiência fascista na Europa e o pós-colonialismo na África e na Ásia. Deste modo
a prática revisionista ganhou espaço de atuação no campo da historiografia.

A necessidade de entender os fatos que culminaram nas duas grandes


guerras levou ao processo de análise minucioso da história. Do mesmo modo,
estabelecer narrativas que justificassem as atrocidades de uma história tão recente
resultou no reconhecimento de fenômenos sociais, políticos e econômicos.
(TRAVERSO, 2012).

(...) A descoberta de novas fontes, a exploração de arquivos e o


enriquecimento dos testemunhos podem fazer incidir uma nova luz sobre
acontecimentos que se julgava serem perfeitamente conhecidos ou de que
tínhamos um conhecimento errôneo (...). (Ibidem, p. 156).

Portanto, este movimento pode ser entendido na atualidade, através do


objetivo de revisar fatos e levantar documentos e teses sobre eventos históricos
compartilhados por coletivos sociais. O revisionismo afeta ou pelo menos visa atingir
os elementos paradigmáticos, concretos e simbólicos que constituem a memória
coletiva (HALBWACHS, 1990). Desse modo, desde o século passado, podemos
observar esta proposta em diferentes momentos e núcleos no interior das
sociedades.

De um ponto de vista acadêmico, o exercício de revisar registros históricos


possibilita constituir representações mais verossimilhantes de modelos e estruturas

25
Eduard Bernstein (1850-1932) foi um teórico e político membro do Partido Social-democrata da
Alemanha. É conhecido como o primeiro grande revisionista da teoria marxista, desafinado os
preceitos do materialismo histórico e das bases metafísica e dialética de origem hegeliana. Também é
referenciado como fundador do socialismo evolutivo, um dos principais pensadores da
social-democracia e criador do "revisionismo".
70

sociais, culturais e políticas. Consiste na revisão de documentos e adesão de


registros que colaboram para a ampliação da memória, evitando anacronismos, além
da constituição de terminologias que melhor representem as dimensões de um
determinado evento.

Enzo Traverso, tal quais outros estudiosos da história, entende que o


revisionismo é um termo dotado de plurissignificação e, portanto, bastante
controverso. Todavia, o entendimento que possuímos, tem como marco o fenômeno
negacionista do holocausto judeu na Europa. Os "assassinos da memória", como
foram chamados por Pierre Vidal-Naquet26 (TRAVERSO, 2012, p. 150), não
obtiveram reconhecimento da sua causa, mas instigaram a investigação acadêmica,
aprofundando o conhecimento e ampliando o horizonte metodológico.
Imediatamente, o genocídio judaico tornou-se irrefutável pela descoberta de um
número maior de fontes, detalhes e relatos sobre os processos de extermínio.

Chegamos a uma das discussões quanto ao aspecto político do revisionismo:


A excepcionalidade de atos violentos. Segundo Traverso, ao contrário do que se
pensa atos de genocídio, tortura e crimes contra a humanidade, apesar de serem
narrados como derivados de Estados de Exceção, e muitas vezes, defendidos como
efeitos colaterais, são mais comuns do que se pensa. O Historiador reflete sobre os
crimes cometidos no decorrer do processo de consolidação dos governos
democráticos do século XX, as guerras e os dispositivos de poder na sociedade
ocidental. Atos de violência extrema foram assistidos, definidos na história oficial de
diversos países como “ponto fora da curva” e considerados por revisionistas como
meios para determinados fins.

A memória e o esquecimento, quando se trata de comunidades nacionais,


correspondem a interesses estruturais dos paradigmas políticos, sociais,
econômicos e culturais, resultando na seletividade ou na total exclusão de fatos. O

26
Pierre Emmanuel Vidal-Naquet (1930-2006), foi um historiador e intelectual Francês. De origem
judaica, lutou contra a ocupação nazista na França durante a Segunda Guerra Mundial, e teve os pais
assassinados em Auschwitz depois de serem presos pela Gestapo. Especialista em Grécia Antiga,
Vidal-Naquet também se dedicou em estudar a história judaica, História Contemporânea e a Guerra
da Argélia. Como crítico é reconhecido por se opor ao revisionismo do holocausto, à Guerra do
Vietnã, Guerra do Iraque e à situação dos palestinos na Cisjordânia e em Gaza. Junto a Jean-Marie
Domenach e Michel Foucault, foi responsável por fundar o Groupe d'iformation sur les prisons (GIP)
em 1971, que se preocupava em avaliar as prisões na França.
71

revisionismo não está isento deste propósito. Revisar a historiografia é propor novas
narrativas e deste modo afetar as relações de poder. É imprimir novas sensações à
memória coletiva e transformar a forma como os sujeitos percebem o passado,
vivenciam o presente e projetam o futuro.

A fatalidade desperta processos de empatia e fraternidade, contagia os


sujeitos e estimula a coletivização de memórias. Anderson (2008) ressalta os
vínculos entre a imaginação nacional e a morte. Os mártires imprimem conjuntos de
idealizações valorativas do passado possibilitando a continuidade da lembrança no
fluxo do tempo, penetrando afeição nas gerações e alimentando a chama da
comoção e a solidariedade em um coletivo social.

Um passado é herdado e transmitido pelo exercício constante da memória


através de diferentes sistemas e estruturas culturais que vão desde monumentos,
canções, literaturas, etc. Lembrar-se das dores e das vítimas de uma catástrofe é
uma via bastante efetiva para compor um quadro sobre episódios passados, pois
conforme dizia Habermas (2000) o termo nação possui uma conotação de
comunidade transpassada pelo sentido de descendência, seja ela cultural ou
histórica como pela existência de uma língua compartilhada. Existe uma
respeitabilidade inerente a aquilo que responde diretamente a uma inteligência
emocional própria da comunidade nacional.

A memória proporcionada pelo registro da história cumpre com o papel de ser


um elemento vital para o processo de imaginação e ritualização (celebração
tradicional) do passado e suas glórias ou saudação dos mártires, cumprindo com um
objetivo simbólico e prático de manutenção de estruturas políticas e econômicas.
Portanto, reivindicar o direito de "contar" a história consiste na garantia de obter
meios de assegurar a consolidação de interesses particulares de instituições ou
grupos ideológicos, político-partidários, facções civis, dentre outros tipos de coletivo
sociais.

Como exemplo de um processo de revisão, podemos observar a substituição


do termo "golpe militar" por "golpe civil militar" ao nos referirmos a 1964 no Brasil.
Houve a adição de um elemento ao termo utilizado, atribuindo protagonismo a
72

sujeitos que estão fora da caserna e, portanto, reformulando a perspectiva da


narrativa do período citado.

Quando compreendemos que uma parcela da sociedade civil é responsável


por desencadear os eventos de 1964, amplia-se a responsabilidade pelas
consequências e a análise do próprio fenômeno. Outros fatores devem ser levados
em consideração ao se debruçar em estudos sobre o período e, assim, abarcar com
maior precisão os protagonistas e antagonistas desta trama, quais os fatores que os
articulam, discursos, simbolismos e objetivos. Consequentemente, a difusão destes
“novos” elementos, ou recentemente adicionados, contribuem para a transformação
da memória e, como se pode pressupor, estabelecem, excluem ou transformam as
conexões afetivas que a alimentam.

4.1 As leituras sobre 1964

Ambas as produções audiovisuais aqui analisadas têm por propósito o


desenvolvimento de novas fontes sobre um fato histórico. O debate sobre o golpe de
1964 não acabou, e os conhecimentos continuam se diversificando. Neste caso que
trazemos, as revisões são postas por meio de um paradigma interpretativo
(TRAVERSO, 2012), e contam com a inclusão de fontes que apresentam
perspectivas variadas sobre um mesmo fato histórico.

No caso dos Setenta, essa perspectiva parte da vivência dos interlocutores,


sua interpretação é íntima e visceral. No 1964 o Brasil entre Armas e Livros, a
proposta é de distanciamento e análise conjuntural. Os fatores subjetivos são
camuflados por um suposto rigor científico. Para vigorar, o documentário inicia
deslegitimando a comunidade acadêmica e propondo uma narrativa não
hegemônica. Todavia, a problemática, assim como é argumentado por Traverso
(2012), não está nas fontes usadas por si só, mas nos objetivos políticos intrínsecos.

Ao focar nas lembranças emocionadas de sujeitos perseguidos pelo regime,


Emília Silveira visa estabelecer um panorama negativo sobre a excepcionalidade
dos governos militares em seu documentário Setenta. Projeta no espectador
73

sentimentos e sensações desconfortáveis, o conduz voluntária ou involuntariamente


a expressar sua inquietação com o que ouve e vê, e consequentemente, sobre
quem lhe causa isso. Podemos pensar que, primeiro, o espectador irá se questionar
sobre o porquê de seu incômodo e desenvolver lembranças afetivas e sensoriais;
em seguida, talvez, sentirá cumplicidade com as vítimas e repúdio pelos agressores.

Do mesmo modo, a Brasil Paralelo visa despertar o patriotismo em seus


espectadores alertando-os sobre uma ameaça externa que se instaura em sua
“pátria”. Quando exploram de maneira visual e auditiva as atrocidades da ideologia
comunista, e estabelecem que seus crimes são maiores do que os cometidos pelos
militares, é acionada uma cosmovisão maniqueísta naquele que assiste. Identifica-se
o bem e o mal e se alimenta um sentimento de companheirismo e propósito ao
eleger o inimigo comum. Esse inimigo ganha uma nova face ao final da obra: o
comunismo se infiltrou na sociedade e habita as universidades e a política. Os
"esquerdistas", se apropriaram das instituições de ensino superior e veículos
midiáticos, configurando uma elite intelectual que se ocupou da fecundação de um
imaginário, na construção de teses, símbolos e tradições enviesadas sobre os
eventos do passado e legitimaram a aparelhagem de grupos de esquerda na política
nacional durante o processo de redemocratização. Eles também foram responsáveis
por tornar a memória sobre o regime militar obscura e encoberta pelo panteão de
inverdades e mitos.

Curiosamente os defensores do revisionismo de 1964 alegam que o golpe


civil militar foi uma resposta ao comunismo. Vertentes militaristas denominam os
eventos de “revolução”, enquanto outros grupos com tendências conservadoras e/ou
liberais sustentam a tese da existência de um golpe, mas configurado em um
movimento de contragolpe ao que estava sendo executado por Goulart com as
"reformas de base". Ambas as versões apesar de suas divergências, abrem espaço
para a relativização dos processos de excepcionalidade durante os anos da
ditadura. Ao apresentar uma justificativa e adicioná-la à história, cria-se uma
margem para abrandar as consequências do autoritarismo da época.

Os revisionistas situam as facções civis e militares que perpetraram o golpe


como vítimas de uma ameaça que era simultaneamente interna e externa. Este
74

inimigo sorrateiro e manipulador teria gerado a resposta violenta e autoritária do


regime, a violação de direitos pessoais, além de atrapalhar a ação da parcela civil
que estabelecia uma oposição legal. Os presos políticos, as vítimas de tortura, os
assassinados e desaparecidos da ditadura são lembrados como meros danos
colaterais. A responsabilidade por esses crimes é deslocada. Essa distorção da
realidade leva à banalidade da violência.

Todavia, devemos ressaltar que o negacionismo ainda é uma possibilidade


para aqueles que visam revisar fatos históricos. O movimento que observamos com
a Brasil Paralelo não possui como proposta negar a ocorrência de um regime
ditatorial. Pelo contrário, os entrevistados concordam com sua ocorrência,
entretanto, como foi dito anteriormente, afirma-se que suas proporções foram
menores do que é relatado pelos principais estudos históricos.

Ainda assim, alguns fatos são postos como mitos ou inverdades e na tentativa
de abrandar, nega-se alguns pontos, como nos chamou a atenção a fala trazida à 1
hora e 28 minutos do filme

(...) O exagero fez parte dessa instrumentalização. Algumas pessoas que


constam como desaparecidas, na verdade se auto exilaram ou eram
delatores que ganharam uma nova identidade do governo para não serem
mortas pelos próprios ex-companheiros de guerrilha.

Porém, em continuidade estes mesmos sujeitos questionam se o AI-5


realmente se fazia necessário; diminuem as proporções dos efeitos do golpe, ao
mesmo tempo em que levantam ressalvas para distanciar suas argumentações de
um saudosismo ou apoio à ditadura. Houve mortes e perseguições, e o decreto do
AI-5 apesar de justificável foi desproporcional e totalitário.

Robson Loureiro e Sandra Soares Della Fonte em seu ensaio Revisionismo


histórico e o pós-moderno: indícios de um encontro inusitado, comentam o
revisionismo histórico do holocausto e levantam o seguinte questionamento

No entanto, há de se chamar a atenção para uma outra dimensão do


problema. As indagações principais aqui privilegiadas são: qual impacto teria
se as teses revisionistas fossem aplicadas a outros eventos de genocídio que
marcaram o século XX? Quem garante que não surja, no meio acadêmico
brasileiro, historiadores que iniciem um movimento de negar que, no Brasil,
75

tivemos mais de trezentos anos de escravidão negra, e que os mais de 5


milhões de índios brasileiros foram exterminados, em princípio pelos
colonizadores portugueses e, em seguida, pelos imigrantes alemães e
italianos, como foi o caso no sul do país? (LOUREIRO; FONTE, 2010, p.
90-91).

A proposta de revisionismo histórico julga-se neutra e isenta de ideologismos.


Entretanto, os revisionistas podem estar cumprindo demandas políticas, o que nos
leva ao relativismo proposital ou ao extremo do negacionismo, cumprindo com as
demandas estabelecidas pela facção (política, social) da qual participe
(FERNANDES, 2016). As formulações defendidas pelos interlocutores do
documentário da Brasil Paralelo pertencem a um nicho político e ideológico
delimitado.

A negação parcial da ditadura visa legitimar grupos civis envolvidos com o


golpe de 1964. Estes grupos liberais teriam sido traídos no processo de constituição
do regime, mas não pelas forças armadas em si, apenas por facções da “linha dura”.
A narrativa visa limitar os danos colaterais anteriormente citados, isentando de culpa
determinados grupos e minimizando o efeito dos atos de outros.

Estabelecer uma semiosfera que adjetiva os golpistas como heróis


revolucionários é cumprir com uma agenda política que visa reintegrar estes sujeitos
à vida pública nacional e tornar suas demandas relevantes à discussão da esfera
pública. A direita nacional, inclusive grupos liberais incipientes ou conservadores
como os que mobilizaram a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, em 13 de
março de 1964, são exemplos de coletivos sociais que participaram dos eventos que
culminaram no golpe de 31 de março do mesmo ano. Estes mesmos grupos foram
afetados com a concretização do regime, sendo a partir de 1968 marginalizados
quanto à atuação política, além de estigmatizados por sua conduta.

4.2 As novas direitas

O estigma da direita se fortaleceu após o regime militar. Segundo Camila


Rocha (2018), entre 1980 e 1990, se declarar "de direita" estava diretamente
76

associado ao autoritarismo das décadas passadas. Isto teria resultado na utilização


do termo "Centro" como via de legitimação e integração à esfera pública. Este tabu
só se dissipou décadas a frente, em meio ao auge do lulismo (2006-2010) (ROCHA,
2018, p. 118-119), quando se tornava novamente "seguro" se autoafirmar "de
direita". Isto se deu por mérito de contra-públicos27 digitais em comunidades nas
redes sociais incipientes. Por consequência podemos assistir à crescente
propagação de teses, tal qual a de Olavo de Carvalho sobre a "Hegemonia
gramsciana" perpetrada pela elite intelectual de esquerda e o petismo. Este ponto de
vista de um monopólio dos meios oficiais de difusão do conhecimento e de atuação
política uniu grupos na internet que reconheciam as salas virtuais como espaço de
livre expressão (Ibidem, p. 122).

A perspectiva olavista proliferou ao ponto de estar representada no


documentário da Brasil Paralelo. A ideia de uma revolução comunista que se
consolidou dentro da academia e que vem formando intelectuais de esquerda, tem
seu principal referencial na obra A Nova Era e a Revolução Cultural: Fritjof Capra e
Antonio Gramsci, de autoria do "filósofo" conservador.

(...) A despeito de suas diferenças, o que reunia as pessoas destes diferentes


grupos nas comunidades de Olavo de Carvalho era sobretudo o sentimento
de não se sentir representado em meio a públicos dominantes, os quais eram
percebidos, em consonância com as teses defendidas por Carvalho, como
sendo hegemonizados pela esquerda por conta da estratégia gramsciana
adotada por estas nas últimas décadas (...). (Ibidem, p. 124).

Ativo nas redes sociais e dotado de um vocabulário agressivo ornamentado


com palavrões, Olavo de Carvalho se popularizou como um intelectual marginal à
academia, representando uma corrente de contra-publicidade enquanto ainda
despertava interesse das mídias, propagando suas ideias e conquistando
seguidores em diferentes facções e ideologias.

27
Conceito desenvolvido como resposta à teoria de Jürgen Habermas sobre a formação da esfera
pública. A perspectiva habermasiana, descreve a constituição de um público unificado
correspondente a normativas discursivas estreitas e excludentes que delimitam um campo de debate
democrático. Porém, esta noção desconsidera a ação de públicos alternativos e marginais à
representatividade política, estes passam a ser denominados como Contra-públicos. (ROCHA, 2018,
P. 19).
77

A possibilidade de organização em comunidades e fóruns virtuais, além do


anonimato proporcionado por estes, facilitou a inflamação de opiniões hostis contra
o governo petista, alimentadas no período pelo escândalo de corrupção do
"Mensalão". Camila Rocha (2018) explica que, mesmo com este escândalo em
2005, os petistas ainda reelegeram Lula em 2006 e elegeram Dilma Rousseff em
2010. A fraca oposição institucional (ou praticamente inexistente) contribuía para o
sentimento de inquietação e falta de representatividade. O refúgio viável, tornou-se o
contra-público digital. Esta falta de oposição dentro da máquina pública levaria às
manifestações de 2011, 2012 e às jornadas de junho de 2013.

As mobilizações que tiveram início nas redes sociais ganharam as ruas, se


levantaram contra o declínio econômico, a falta de representatividade e contra a
corrupção que passou a ser televisionada diariamente com o avanço da operação
lava-jato. Todavia, a nova direita só ganhou realmente forma com a reeleição de
Dilma Rousseff em 2014, a hipótese de fraude no sistema eleitoral, e a realização do
primeiro protesto pró-impeachment dias após a votação. A conjuntura possibilitou a
ascensão da militância de direita, a representatividade tão desejada se fazia
finalmente possível e em 2016 as eleições contaram com candidaturas de militantes
a cargos legislativos.

A cena cultural da mesma forma é alcançada com o fim da "direita


envergonhada". O crescente número de publicações de direita ampliou e diversificou
o mercado. Em 2013 o Grupo Editorial Record se destacou e, em pouco tempo O
mínimo que você precisa saber para não ser um idiota, de Olavo de carvalho se
tornou um Best-seller com mais de 120 mil cópias vendidas. A Esquerda Caviar de
Rodrigo Constantino também se destacou na época, ganhando espaço no
imaginário e no vocabulário das novas direitas (Ibidem, p. 173).

A ascensão dos movimentos liberais e libertários, com pautas voltadas ao


campo de políticas econômicas, configurou um primeiro momento da nova direita
como uma direita liberal ou de "hegemonia libertária-liberal". Todavia, o movimento
cultural gerado ampliou os horizontes de debate e possibilitou o crescimento de
pautas variadas. Facções a favor do intervencionismo militar, o fenômeno do
78

“politicamente incorreto”, ou a nova onda conservadora ganharam espaço na esfera


pública.

O conservadorismo reverbera como resposta às conquistas recentes dos


movimentos de defesa dos direitos humanos, feministas, LGBTQIA+ e demais
siglas. A nova direita passa a assumir uma roupagem liberal-conservadora quando
esses grupos reivindicam espaço para debate e, consequentemente, buscam
representatividade.

Pode-se notar que, apesar das diferentes vertentes ideológicas, estes


coletivos compartilham pautas. Esta articulação resultou na Frente Ampla Ultraliberal
e Conservadora, que foi às urnas em 2018 unificando seus interesses na figura
"messiânica" de Jair Messias Bolsonaro, ex-militar e parlamentar ultraconservador.

Esta percepção de que a militância de direita seria inautêntica, manipulada


por elites políticas mais importantes e experientes, ou formada por pessoas
histéricas e paranoicas, possivelmente guarda alguma relação com um
entendimento implícito de que a posse de recursos materiais abundantes
explicaria o sucesso das direitas em se mobilizar parte significativa da
sociedade civil em prol de suas causas. Contudo, ainda que a posse de
recursos financeiros e organizacionais de fato ajude a explicar parcialmente o
êxito de movimentos e mobilizações sociais, diversos outros fatores podem
determinar seus sucesso ou o fracasso: Como a criação de fortes
identidades coletivas; dinâmicas emocionais que surgem a partir das
interações e conflitos entre grupos políticos: mudanças nas estruturas de
oportunidade políticas que criam momentos mais propícios para ação de
determinados grupos; e, nos últimos anos, a habilidade no uso, e a própria
lógica, das mídias sociais; os quais, compreendo que integraram de modo
importante o processo político analisado nesta tese. (Ibidem, p. 194).

O que Camila Rocha demonstra é um recorte menor da realidade. Entende


que a militância de direita não é inautêntica, e que não se trata de massa de
manobra de elites econômicas e políticas para cumprir com seus interesses. Existe
uma subjetividade própria desses grupos, legítima para aqueles que a compartilham.

Seus interesses são postos à prova, e seu espaço dentro do processo


democrático é reivindicado. Manifestações como as que foram observadas por
Rocha, estão presentes na sociedade brasileira e têm ganhado força. A produção de
79

conteúdo é vital para a integração na esfera pública, visando desenvolver debates e


impor interesses e demandas.

4.3 (Re)interpretando 1964

Antes da Brasil Paralelo, há pelo menos quinze anos, já se contava com


ampla produção sobre o regime militar, como nos relata Eurico da Silva Fernandes
(2016). Com a aproximação de datas comemorativas do golpe de 1964 como o
aniversário de quarenta anos em 2004 e o de cinquenta em 2014, livros
historiográficos e artigos jornalísticos foram publicados em enorme quantidade. O
exemplo trazido no artigo de Fernandes e do qual faremos uso é o do historiador
Marco Antônio Villa28.

Sua escrita é fortemente marcada pelo tom de síntese da história geral e é


dono de uma linguagem acessível e bastante didática, além de um sarcasmo por
vezes bastante explícito. Segundo Fernandes, Villa aproveitou os dois momentos
para divulgar suas teses. Em 05 de março de 2009, o historiador publicou pela Folha
de S. Paulo um artigo intitulado "Ditadura à brasileira"29, texto que veio a ser
associado ainda na mesma época ao termo "ditabranda", uma junção de palavras
que define o regime militar como uma "ditadura branda". Em 2014 Villa publicou o
livro Ditadura à brasileira (1964-1985): a democracia golpeada à direita e à
esquerda, no qual concretiza a tese do artigo de cinco anos antes.

No último capítulo do livro, o autor afirma que “dos 21 anos do regime militar,
dez podem ser considerados uma ditadura”, pois, apenas nesse período (no qual
vigorou o Ato Institucional nº 5) “o Executivo teve plenos poderes e os exerceu de
forma ditatorial” (VILLA, 2014, p. 370). Do mesmo modo, os anos 1964 - 1968 não
podem ser considerados como ditadura nem mesmo através do “sentido da
28
Villa, possui graduação, mestrado e doutorado em história pela Universidade de São Paulo (USP),
é Historiador, escritor, comentarista do Jornal da Manhã da Jovem Pan, Colunista na ISTOÉ, Correio
Braziliense e Estado de Minas, além de contar com a publicação de artigos pelos veículos Folha de
S. Paulo, Estadão, O Globo, La Nación dentre outros, vinte livros de própria autoria e mais doze como
coautor.
29
VILLA, Marco Antonio. Ditadura à brasileira. Folha de S. Paulo. Disponível em
<https://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz0503200908.htm>. Acesso em 20 de janeiro de 2021.
80

etimologia política” (Idem), devido ao funcionamento do Congresso Nacional, das


Assembleias Legislativas e das Câmaras dos Vereadores. Estas instituições,
segundo o historiador, não sofreram demais com as cassações, pois ainda se
constituíam como “espaço de discussão política e de crítica ao regime”; os
executivos estaduais ainda contavam com eleições e, nos municípios que não foram
considerados “áreas de segurança nacional”, houve a substituição sistemática dos
prefeitos; no campo midiático, os jornais de oposição denunciaram o regime e as
editoras publicaram livremente, mesmo com a perseguição dos órgãos de
segurança.

Villa enfatiza que o cinema e a música não foram “vítimas fatais” da censura,
contando com o Cinema Novo que se referia ao regime em suas produções, e com
festivais de música que consagraram cantores e compositores; O movimento
estudantil, principalmente a União Nacional dos Estudantes (UNE), foi uma das
bandeiras mais ativas contra os governos Castelo Branco e Costa e Silva; por fim, as
liberdades não foram totalmente comprometidas, apesar dos crimes contra os
direitos humanos.

Mesmo os dez anos que são delimitados pela vigência do AI-5 (13 de
dezembro de 1968 a 31 de dezembro de 1978), e aqui defendidos como anos de
ditadura pelo autor, são dignos de ressalvas pela existência de um suposto partido
de oposição e pela ocorrência de eleições. Já os seis anos finais do regime não são
considerados como ditadura. Villa sustenta o argumento baseado na aprovação da
lei de Anistia em 1979. Esse acontecimento possibilitou o reavivamento da política
nacional e o crescimento de movimentos sindicais e de esquerda. Todavia, o que
não é comentado é que a anistia também se aplicou aos militares e que sua
aprovação foi votada com o intuito de apaziguar os conflitos, isentando membros da
caserna e agentes do Estado de crimes contra os direitos humanos.

Ao comparar as ditaduras militares do Cone Sul, destaca como diferencial do


caso brasileiro a alternância na presidência, enquanto os demais governos se
estruturaram atendendo interesses de déspotas. Villa argumenta que o golpe de
1964 contava, inicialmente, com apoio popular. Isso teria gerado uma consciência de
que o regime era temporário, que manteve eleições, transições de cargos e permitiu
81

movimentos de oposição. Citando a fala de Geisel sobre uma “democracia relativa”,


argumenta que os governos militares possuíam uma vida útil, e que a discussão
estava em saber qual o momento mais apropriado para o “retorno aos quartéis”
(VILLA, 2014, p. 375).

A legitimidade das urnas era a pedra de toque do regime. Mesmo que certos
setores das Forças Armadas desprezassem a política - identificada com o
passado “corrupto e subversivo”. A diretriz era sempre vencer as eleições. A
vitória era o combustível para a continuidade dos seus postulados, enquanto
se aguardava o momento adequado de devolver o poder aos civis. (Idem).

Para o autor, a historiografia existente sobre o regime presta um desfavor à


sociedade, ocultando o verdadeiro valor do movimento de oposição legal do MDB e
de grupos da sociedade civil. Essa desvalorização se daria por meio de uma
exaltação da guerrilha armada que objetivava a constituição de uma ditadura do
proletariado. Esta oposição armada despertou a urgência da repressão por parte do
governo, que delegou às Forças Armadas com o auxílio dos Departamentos de
Ordem Política e Social (Deops) o dever de conter a ameaça. A excepcionalidade do
momento levou à perseguição de parlamentares emedebistas que foram
confundidos com os comunistas terroristas. Isto teria interferido na efetiva atuação
da oposição legal. Villa ainda completa afirmando

A armadilha montada pelos revisores do passado – uma espécie de Ministério


da Verdade tupiniquim – fez com que qualquer crítica à luta armada
significasse, automaticamente, apoio às graves violações dos direitos
humanos cometidas pelos órgãos de segurança do regime, tanto civis como
militares. Nada mais falso. A barbárie repressiva não deve – e não pode –
servir como escudo que impeça a análise crítica do passado. (Ibidem, p. 387).

Os parâmetros estabelecidos por Antonio Villa para determinar o que é uma


ditadura, são controversos. Sua postura técnica ao sustentar sua posição, o leva a
negligenciar fatores relevantes para pensar as dimensões de um estado de exceção.
Seu discurso busca justificar a postura do regime militar e lança a responsabilidade
sobre os movimentos de guerrilha.

As práticas negacionistas apropriam-se de elementos semânticos, o que nos


leva à contaminação da linguagem. Tanto o documentário da Brasil Paralelo quanto
82

o livro de Antonio Villa sustentam a narrativa de que o golpe foi uma necessidade e
uma demanda da sociedade civil, com base nos seguintes argumentos:

a. Consideram que as medidas dos militares foram legítimas por visar o


bem-estar da nação;
b. Lançam sobre a esquerda e os movimentos de resistência a responsabilidade
de instalação da ditadura, posto que os seus atos atrapalharam a operação
da sociedade civil, despertando a conduta autoritária após 1968;
c. Determinam que os modelos governamentais estabelecidos não podem ser
definidos integralmente como ditadura.

É bastante relevante apresentar a oposição armada sob uma ótica que a


avalia, apreendendo as consequências de sua atuação. Todavia, delimitar a
repressão como uma consequência do “terrorismo de esquerda”, é operacionalizar a
caserna, e defini-la como mera instituição disciplinar e, isentar os sujeitos que a
compõe de seus atos bárbaros, pois dentro dessa lógica, seus corpos são meros
instrumentos da ordem. Esta narrativa banaliza os crimes do passado,
justificando-os como meras respostas a outros crimes.

Do mesmo modo, defender que a existência de um partido de oposição


“oficial” salvaguardado pelo regime, seja o suficiente para lançar por terra a ideia de
ditadura, é realizar uma análise pouco precisa da conjuntura. São apresentadas
justificativas que deslocam a participação de facções civis da posição de auxiliares
do regime. Como vimos, grupos conservadores e liberais agiram diretamente na
arquitetura do golpe e seus interesses se desalinharam com os interesses dos
militares (ROCHA, 2018).

São criadas determinadas subjetividades coletivas. Os revisionistas de 1964


negam que todo o período do regime militar tenha sido uma "ditadura", e
argumentam que os fatos não se encaixam com a definição do termo. Entretanto, o
raciocínio não é completado. Os revisores não oferecem uma definição etimológica
ou política, usam de um subterfúgio narrativo de entendimento intuitivo dos
espectadores ou leitores.
83

No início do estudo, não tínhamos como foco debater a definição do regime


militar como ditadura ou revolução. Possuímos posicionamento bem delimitado que
vem sendo desenvolvido no trabalho. Todavia, ao aprofundar a bibliografia,
compreendemos ser pertinente o debate sobre o termo usado para se referir a este
evento histórico. A posição dos revisionistas nos leva a buscar os elementos teóricos
que sustentam nossa argumentação e que estão expostos nos primeiros capítulos.
Assim, dedicamos o próximo tópico à reflexão sobre o conceito de “ditadura”.

4.4 Ditadura e estado de exceção

A partir da perspectiva de Agamben (2004), identificamos o regime militar


brasileiro como uma forma de estado de exceção. As medidas excepcionais
promovidas pelos militares, desde o momento do golpe e a instauração do governo
Castelo Branco, devem ser entendidas como práticas de uma DSN, que afetaram o
funcionamento da máquina pública como também a execução da constituição
vigente. Stoppino, no verbete "ditadura" que compõe o Dicionário de Política
(BOBBIO, MATTEUCCI, PASQUINO, 1998), inicia com a revisão histórica do
conceito e sua diferença com a definição moderna do termo.

A Ditadura romana era um órgão extraordinário que poderia ser ativado


conforme processos e dentro de limites constitucionalmente definidos, para
fazer frente a uma situação de emergência. (...) Os poderes do ditador eram
muito amplos: exercia o pleno comando militar; os cônsules eram a ele
subordinados; seus atos não eram submetidos à intercessio dos tribunos;
gozava do jus edicendi e, durante o período no qual exercia o cargo, seus
decretos tinham o valor de lei; e, finalmente, contra suas sentenças penais, o
cidadão não podia apelar. (STOPPINO, 1998, p. 368).

Alguns parágrafos abaixo o autor complementa

A instituição da Ditadura acima descrita é peculiar da República romana, para


a qual constituía quase uma necessidade, considerando o grau muito
marcante de divisão e de limitação do poder que distinguia sua fisionomia
constitucional: pluralidade das assembleias, multiplicidade das magistraturas,
sua organização como um colegiado (com direito de veto), sua breve duração
(ordinariamente um ano). Neste quadro, pode-se afirmar que, para a
84

República romana, a Ditadura era a maneira de suspender temporariamente


a sua ordem constitucional a fim de preservar a integridade e permanência.
(Idem).

Na modernidade o uso da palavra se faz voltado aos regimes


antidemocráticos, todavia, distintos do que se configurou com a ditadura romana. Os
conceitos aproximam-se no que tange a “concentração e o caráter absoluto do
poder”. O que nos leva a considerar também o fator que as distingue: a ditadura
moderna é entendida pela subversão da ordem política vigente. Não segue
predeterminações de ordem constitucional e não apresenta duração, mas
corresponde a conjuntura em que se origina e que a sustenta.

Segundo Stoppino, a ditadura romana é aproximada do que se entende na


política moderna pelo conjunto de medidas excepcionais articuladas pelos Estados
constitucionais como estratégia combativa de condições de emergência, conflitos
internos ou externos que comprometam a funcionalidade e integridade da sociedade
civil. São instrumentos previstos em constituição (portanto, normativos) que
institucionalizam a concentração do poder em um órgão executivo do Estado, a
expansão dos poderes do executivo e a "emancipação do poder dos freios e dos
controles normais" (Ibidem, p. 369). O que o autor nos apresenta é o grupo de
medidas, paradigmas de governo, instrumentos administrativos, etc.

São estes os casos específicos da lei marcial e do estado de sítio, destinados


a superar uma crise repentina e violenta e que comportam um acréscimo
extraordinário dos poderes próprios do executivo. (...) Foi também proposto
associar estas instituições à Ditadura romana, denominando-as
conjuntamente com a etiqueta de "Ditadura constitucional" (ou limitada), e
contrapondo a esta a "Ditadura inconstitucional" (ou ilimitada). (Idem).

Agamben (2004) relaciona a delimitação do fenômeno do estado de exceção


à ampliação dos poderes governamentais através do exercício dos "plenos poderes"
atribuindo ação jurídica ao executivo. O pensador chega a fazer a metáfora de que
ocorre uma volta ao "estado de natureza", no qual não se pode fazer distinção entre
legislativo, judiciário e executivo.

A ideia inicial de garantir a existência de medidas excepcionais como


manobra emergencial e estratégica de defesa da democracia, é um mecanismo que
85

possibilita a construção de paradigmas governamentais que se opõem ao próprio


sistema democrático, e um meio pelo qual se pode atingir um governo ditatorial por
vias oficiais. É neste momento que Agamben se depara com a seguinte
contraposição: de um lado a ditadura constitucional que visa conceber medidas
preventivas focando no restabelecimento da ordem e, de outro, a ditadura
inconstitucional que resulta na derrubada da constituinte.

Giorgio Agamben afirma que entre as duas definições existe uma linha muito
tênue, pois se originam de cenários muito semelhantes, mas a análise aprofundada
possibilita entender suas divergências. Já Stoppino, compreende que estabelecer
essa bivalência é uma proposta muito precipitada e equivocada, pois, as duas
definições não são na realidade tão homogêneas. A história revela que a ditadura
romana se estabeleceu por séculos servindo ao propósito de manutenção da ordem
constitucional. Todavia, o que presenciamos na contemporaneidade, tanto na
Europa como nas Américas, resultou da atuação de governos de crise que atingiram
o extremo oposto, a destruição da ordem instituída.

A Ditadura representa uma ruptura da tradição democrática. Instala-se


utilizando a mobilização política de uma grande parte da sociedade, ao mesmo
tempo em que subjuga com a violência outra parte. E não pode garantir sua
continuidade, de modo ordenado e regular, nem com o processo democrático, de
que é a negação, nem com o princípio hereditário, que contrasta com as condições
políticas objetivas e com sua pretensão de representar os interesses do povo. Daí o
caráter precário das regras de sucessão no poder.

Se considerarmos que a legitimidade dos governos nacionais se estabelece


pela sucessão do poder em uma ordem que vem do protagonismo das massas, por
via da organização de uma suposta comunidade horizontal, a conduta ditatorial
sucede de cima para baixo rompendo com a ordem constitucional. Deste modo
temos a formação ou o estabelecimento de instituições que levam ao despotismo, ou
ao absolutismo, à tirania, à autocracia e/ou ao autoritarismo.

Na contemporaneidade, deve-se ter em mente que ditadura é um conceito


transpassado por inúmeras características e tipologias. Quanto às características,
destacam-se os fatores poder, social e máquina pública:
86

● O poder é considerado no que tange a centralização e o caráter ilimitado e


excepcional do exercício do executivo. São os paradigmas governamentais
antidemocráticos ou não democráticos;
● O social é relevante no que se refere às condições conjunturais, das relações
interpessoais das massas e o princípio da soberania popular. São as
dinâmicas de poder e produção estabelecidas que delimitam as hierarquias e
os papéis sociais. Em um estado de exceção, a sociedade civil é
marginalizada e afastada das decisões vitais para o funcionamento da
comunidade nacional, podendo ser privada de suas liberdades e direitos
pessoais;
● E a máquina pública é observada em relação à precariedade da sua
funcionalidade e articulação dos dispositivos e instituições, além da
desarticulada regulamentação do processo de sucessão do poder. A
excepcionalidade resulta na implantação de medidas, na movimentação de
pessoal e cargos, ou na criação ou exclusão de instituições visando atender
as demandas do poder central. Em uma perspectiva geral, a lógica
democrática é violada.

Dadas essas características, os tipos se ramificam e adquirem proporções


diversas de complexidade, podendo apresentar variações. Stoppino classifica cinco
tipos de ditaduras, de acordo com a natureza do poder, o objetivo perseguido, os
caracteres da elite dominante, a propriedade da ideologia e a base social.

Deste modo, torna-se mais fácil observar criticamente a conjuntura do período


ditatorial no Brasil. Progressivamente, temos uma passagem do estado de exceção
para um paradigma da segurança como norma do governo que foi institucionalizado.
Mesmo que o discurso descrevesse uma conduta “branda”, na prática se estruturava
uma conjuntura repressiva desde 31 de março de 1964.

O fim do governo de Castelo Branco e, posteriormente, o decreto do AI-5


representaram a consolidação de um regime que já vigorava e a intensificação de
uma repressão que já se fazia presente. Portanto, dentro da definição moderna de
Ditadura, podemos afirmar que o Brasil vivenciou uma, desde os primeiros
momentos do golpe de 1964 até o seu fim em 1984-85.
87

5 CONCLUSÃO

Iniciamos esse estudo indagando sobre os possíveis impactos do


revisionismo do golpe civil-militar de 1964 no processo de imaginação nacional.
Constatamos que existe um autoritarismo na política brasileira que se estende desde
anos longínquos e que reverbera em pleno 2021. Tendência que se propaga em vias
de esquerda e direita e que delimita hierarquias na esfera pública.

As manifestações culturais como o audiovisual se constituem dentro de


determinados contextos. Utilizamos apenas as falas dos interlocutores como material
de análise, considerando poucos elementos semióticos das obras, porém, ainda
podemos captar fatores sobre a política e sociedade brasileira pós
redemocratização. Ao falar sobre a ditadura, ambas as produções revelaram
características da nação mais de cinquenta anos após o fatídico dia de 31 de março
de 1964.

As duas produções podem ser entendidas como manifestações estimuladas


pelo debate desencadeado pela organização da Comissão Nacional da Verdade
(CNV). Organizada como resultado da 11ª Conferência Nacional de Direitos
Humanos em dezembro de 2009, e assinada pelo então Presidente Lula, a CNV
teve seu relatório publicado em 2014 durante o governo Dilma (Brasil, Comissão
Nacional da Verdade, 2014).

O documentário Setenta da diretora Emília Silveira foi lançado na


“crista-da-onda”, acompanhando o olhar que se voltava a esclarecer o ensejo dos
casos de violação dos direitos humanos e a perseguição de opositores. Não é por
acaso que a diretora visitou os “sobreviventes”, esmiuçou suas lembranças e
despertou o assunto para a atual sociedade. Seu filme se torna mais marcante por
dialogar com a esfera pública. O tipo de mídia utilizada é convenientemente
escolhido. O vídeo, um recurso artístico e de comunicação amplo e difuso, suportaria
em 2014 uma obra que dialogasse com a pauta proposta pela CNV.

O filme da Brasil Paralelo, por outro lado, é uma produção de natureza


oposta. Torna-se praticamente impossível imaginar a elaboração de algo semelhante
no mesmo ano de 2014. Todavia, o cenário pós-impeachment, a ascensão do
88

liberalismo conservador e a eleição de Bolsonaro em 2018, transformaram a


conjuntura dando respaldo para discursos e narrativas de teor revisionista que
atingiram a esfera pública. Na metade do primeiro semestre de 2019, a Brasil
Paralelo lançou sua produção sem maiores problemas apesar de ser brevemente
barrada por uma rede de distribuição de cinema, e despertar a inquietação de
setores da esquerda. Esse incidente serviu apenas como sustentação para o
argumento da “hegemonia gramsciana”. Ao contrário do que as manchetes dizem,
percebemos que a Brasil Paralelo não é o representante de uma direita militarista
pró-ditadura. Sua tendência é liberal-conservadora e sua produção não tem por
objetivo comemorar o golpe. O marketing na época do lançamento do documentário
visava ser polêmico, algo que atingiu com perfeição.

O verdadeiro objetivo dessa obra é a fuga de um autoritarismo tanto da crítica


de grupos de esquerda como da extrema direita que defende o militarismo, a volta
do AI-5 e o intervencionismo. Contudo, essa nova direita que verbaliza sua versão
dos fatos na produção audiovisual, se mostra como herdeira de uma sociedade civil
que marchou contra o comunismo, que autorizou o golpe, mas que na tentativa de
entrar em acordo com os militares foi enganada com o fim do governo Castelo
Branco sofreu grandes perdas econômicas, que foi estigmatizada por décadas,
desprovida de uma representatividade política pela suposta "hegemonia de
esquerda" após a redemocratização.

Os documentários refletem fatores subjetivos e aspectos de consciências


coletivas. Emília Silveira adentra aspectos psicossomáticos do episódio histórico
abordado. Seu trabalho delimita protagonistas e alimenta a discussão vigente em
2014. A CNV expandiu a perspectiva dos impactos da tortura, e estabelece estas
práticas criminosas como consequências do autoritarismo. Apesar da profundeza
dos relatos e o tom trágico, o documentário Setenta estabelece um recorte muito
específico. A percepção da conjuntura política é comprometida. A narrativa que a
autora elaborou se apoia na historiografia e no pressuposto de que os fatos ali
relatados são de conhecimento dos espectadores. É necessário que o público
compreenda a década de 1970 como os famigerados “Anos de Chumbo”, período
em que vigorou o AI-5 e dos governos de Médici e Geisel. A memória que este filme
proporciona é fundamental para pensar a relação dos brasileiros com o passado.
89

Temos um culto à fatalidade, à celebração da vida dos sobreviventes como meio de


alimentar o fluxo das lembranças.

O documentário da Brasil Paralelo contesta a autenticidade de militantes de


esquerda como mártires. Ao reivindicar a verdade, esta obra relativiza os crimes do
regime, diminui a participação de grupos civis que não estão alinhados com sua
ideologia e busca preservar valores como a família, propriedade privada, livre
comércio e temor a deus. Por mais que o discurso apresentado defenda uma
autenticidade acadêmica, se trata de uma conduta revisionista. Exceto pela
apresentação de uma bibliografia alternativa derivada da descoberta de arquivos do
antigo Serviço de Inteligência Checo, as falas dos interlocutores apresentam
argumentações brandas sobre os fatos abordados pela historiografia. O que temos é
uma revisão histórica, nada além disso.

O fundamento da proposta revisionista que observamos no estudo,


configura-se como a difusão de um anti esquerdismo ferrenho. A análise conjuntural
estabelecida se debruça sobre os mesmos fenômenos e demonstram aspectos
semelhantes quanto aos eventos. Todavia, o que se mostra expressivo é o
deslocamento da culpa para a “esquerda” da trajetória dos fatos. O revisionismo de
1964 diz mais a respeito ao presente do que ao passado. Os conflitos políticos
recentes tornaram o terreno fértil para discussões dessa natureza e a conduta do
atual governo inflama o autoritarismo da política brasileira, algo recorrente em nossa
história como “Republicanos”. Engana-se quem define o autoritarismo político como
mero vício derivado dos anos de ditadura. Como pudemos ver, a relação da caserna
e do parlamento remete à Guerra do Paraguai. A República Velha é proclamada por
meio de um golpe de Estado e a nossa atual está repleta de sequelas do aparato
público dos governos dos generais. O estado de exceção é um dos principais
mecanismos do sistema político e está associado diretamente ao nacionalismo
oficial à brasileira. A ditadura não é um simples Estado de “Exceções”. As
atrocidades cometidas não podem ser simplesmente justificáveis. O que podemos
apreender do pensamento de Agamben é que estes aparelhos políticos e jurídicos,
são dispositivos de poder e são utilizados para desempenhar condutas de efeito
macro e micropolítico. É um salvo-conduto às biopolíticas, ao extermínio e à
higienização social.
90

A realidade está sendo constantemente imaginada e mudada. Os mitos


passam por releituras e as verdades se transmutam em novas, de acordo com as
demandas que se apresentam em determinados recortes de tempo. O cinema,
mesmo quando se volta para o passado, tem a capacidade de capturar aspectos
estéticos, manifestações culturais e objetivos sociais e políticos do momento em que
é produzido. A demanda por revisitar um dos momentos de maior autoritarismo do
nosso país, consiste em um processo de manutenção da memória, e busca por
atingir as novas gerações. É a disputa por quem vai contar a “atual verdade”. A
adaptação para novas mídias é uma tentativa de ampliar as possibilidades e
penetrar nas mentes, reconfigurando a consciência coletiva. A disputa é por quem
sai na frente na corrida por contar a história, aproveitando do momento de crise e
inversão dos valores. Uma nova ética na política e na sociedade despertam a
necessidade de revitalizar os ideários e modificar a esfera pública.

O tão citado autoritarismo é um dispositivo intrínseco à nossa política e que se


reflete nas relações de poder. É um recurso imaginativo, uma definição abstrata,
contudo, fundamental para a modelização da realidade cotidiana. É reflexo da má
distribuição de capitais e da hierarquização da sociedade. Tal qual o patrimonialismo
e populismo, a figura de autoridade é um mecanismo próprio ao fazer política.
Independente da ideologia que alcança o executivo, esta deve se moldar e
responder aos interesses dos “donos do poder”. 1964 é importante por representar
essa relação do brasileiro com a autoridade. A imaginação consiste em delimitar os
injustiçados e censurados. Temos uma mitologia que desperta o medo, ou pelo
menos o receio ao militar. A “ditadura branda” é uma tentativa de defesa, de
deslocamento da culpa e de romantização que revela os supostos “verdadeiros
protagonistas” do romance nacional. Quantas verdades uma nação pode ter? É
válido que, em prol dos próprios interesses, se descredibilize os sacrifícios e as
perdas alheias? A tensão de um debate é fundamental para pensar e exercitar a
democracia, todavia, a excepcionalidade é uma estratégia viável para sua
manutenção?

No fim do nosso estudo nos deparamos com um número de questionamentos


maior do que o inicial. Contudo, podemos concluir que pensar as relações de poder
e os processos de subjetivação são fundamentais para uma análise coerente da
91

conjuntura brasileira. A trajetória histórica da nação é marcada por episódios de


conflito e reviravoltas. A imaginação nacional está em constante transformação e
tem percorrido canais cada vez mais difusos e complexos.

Compreendemos que este estudo é apenas um primeiro movimento para


novas subjetivações. Não se trata de uma análise completa e encerrada em si
mesma, mas de um pontapé para novas literaturas e campos de pesquisa. O
presente é formado por instantes e vivenciado pelo que percebemos do passado, o
futuro pode ser medido e imaginado, mas não sabemos o que nos aguarda, apenas
especulamos baseados no que o passado nos diz.
92

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