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A verdade oculta das ‘empresas de

garagem’ do Vale do Silício

Em tecnologia, a norma é gabar-se de origens humildes Como as da


Apple ou do Google

A armadilha? Que nenhuma é como contam

El País

TOM C. AVENDAÑO

28 NOV 2014 - 14:03 CET

A tecnologia vem do Vale do Silício e o Vale do Silício vem de uma garagem. A


lenda é simples assim; complicado é decidir qual garagem. Há a do número
367 da Addison Avenue, em Palo Alto, onde em 1938 William Hewlett e David
Packard se trancaram para fazer experiências com dispositivos eletrônicos e
onde hoje uma placa diz: “Local de nascimento do Vale do Silício”. Ou a do
número 2066 da Crist Drive, em Los Altos, onde Steve Jobs e Steve Wozniak
construíram o primeiro computador Apple que foi vendido ao público em 1976.
E há ainda a do número 232 da Santa Margarida Avenue, em Menlo Park. Essa
foi alugada em 1998 por dois jovens, Larry Page e Sergei Brin, para
desenvolver uma jovem empresa chamada Google. A garagem continua
surpreendentemente intacta hoje. Com o tapete azul que a então proprietária
da casa, Susan Wojcicki, hoje executiva-chefe do YouTube, instalou para que
os inquilinos se sentissem mais à vontade. A mesa de pingue-pongue onde se
distraíam. Tudo disposto para que o mito pareça real e nada relembre que, na
realidade, o Google foi fundado dois anos antes; já havia arrecadado mais de
um milhão de dólares de vários investidores; e a economia que representava
alugar uma garagem em vez de um escritório era risível. E mais, em janeiro de
1999, depois de apenas cinco meses pisando no tapete azul, os nove
empregados do Google se mudaram para escritórios convencionais. Mas a
garagem está ali, é propriedade da empresa desde 2006, e os lucros que gera
em seu mito institucional são incalculáveis.
Esse é o poder mágico da garagem. Um empresário que o menciona não está
apenas evocando o trabalho duro com o qual Hewlett e Packard ergueram um
império tecnológico a partir de seu escritório improvisado em Palo Alto. E
também não está só relembrando os intrépidos visionários da Apple a quem o
mundo acabou dando razão. Está-se somando a uma longa tradição a que
pertence Walt Disney, que fundou sua empresa na garagem de seu tio Robert
em 1923 e que mais tarde usou dois estacionamentos como estúdios de
animação improvisados. Ou Harold Matson e Eliot Handler, que em 1945
vendiam molduras de madeira para fotos e, com o material que sobrava,
fabricavam brinquedos em sua garagem. Fundiram seus nomes e, sob a marca
Mattel, criaram a Barbie e tornaram-se uma multinacional de primeira
grandeza. Ou Michael Dell com a empresa que leva seu sobrenome. Ou Jim
Casey, da UPS. O mito da garagem transmite uma série de imagens e valores
admiráveis. Empreendedorismo. Geração espontânea de ideias brilhantes.
Trabalho duro. A liberdade de ser seu próprio chefe e desenvolver sua própria
visão. A ingenuidade de pensar que tudo vai dar certo e a humildade de
continuar trabalhando quando dá certo. A garagem não é só um enclave
geográfico. “É um estado mental. É a rejeição do ‘statu quo’. É afirmar: Não
preciso de dezenas de engenheiros com mestrado para fazer frente à
concorrência”, explica Guy Kawasaki, ex-funcionário da Apple e autor de vários
livros sobre empreendedorismo no Vale do Silício. A garagem é um símbolo.
Um aviso do gênero ao qual pertence a origem de cada empresa. É o sonho
americano. E também é mentira.

Steve Jobs na juventude.


Os homens por trás da cortina

No Vale do Silício, a garagem é um estado mental. É a rejeição do 'statu quo'. É afirmar:


'Não preciso de dezenas de engenheiros com mestrado para fazer frente à concorrência'
GUY KAWASAKI, ESCRITOR NO VALE DO SILÍCIO

“É muito romântico e muito individualista”, protesta Dan Heath, jornalista do


Fast Company e co-autor, com seu irmão Chip, de vários livros sobre
estratégias empresariais. “Falam-nos do mito da garagem e visualizamos dois
caras que criam algo brilhante em segredo e depois o mostram a um mundo
mais que receptivo. Quer dizer, dá uma ideia errônea do que é preciso para
vencer. Se quer começar uma empresa, suas tarefas são encontrar trabalho,
aprender como funciona a indústria e fazer contatos. Claro, é muito mais
enfadonho que uma ideia maravilhosa desenvolvida em uma garagem”.

Poucos mitos da garagem resistem a um mínimo de escrutínio. Todos acabam


revelando os fatores clássicos que menciona Heath. Gente bem conectada
com boas amizades, experiência em outras empresas e mais capacidade
organizativa que visão. Hewlett e Packard, por exemplo, conheceram-se como
estudantes em Stanford no ano de 1930, em plena Grande Depressão, quando
montar uma empresa era impensável. Packard trabalhou vários anos na
General Electric, onde aprendeu de tudo. E mais, um de seus amigos ali, John
Cague, terminaria como professor universitário e direcionaria para seu negócio
todos os alunos promissores, o que foi determinante no futuro império Hewlett
Packard (adiante, HP).
Chad Hurley e Steve Chen, criadores do Youtube.

O mito original da Apple também esquece aquela ocasião, em 1967, quando


um menino de 12 anos telefonou para os escritórios da HP. Era Steve Jobs e
queria componentes para construir um contador de frequências. Hewlett ficou
tão impressionado com o menino que lhe ofereceu um emprego de verão em
seu próspero negócio. “O que aprendi ali foi a base do que seria Apple”,
confessou Jobs em uma entrevista em 2003. Assim pôde recomendar seu
sócio, Steve Wozniak, apresentado por um amigo comum, que entrou para a
HP em 1973, enquanto ele continuava sua formação na recém-criada Atari.
Todos esses elementos seriam fundamentais em 1976, quando a Apple foi
fundada. Wozniak percebeu que o computador que tinha em mente não
interessava à HP. Jobs trouxe da Atari o terceiro fundador da empresa, Ronald
Wayne. Naquela altura, já não eram jovens brincando com uma ideia.
“Ninguém quer ouvir a história dos rapazes ricos que se reúnem no Marriott
para idealizar um plano de negócios. Isso não é tão romântico”, escreve Heath.
E não é preciso voltar muitas décadas para encontrar elaborados mitos de
garagem. O do Facebook, por exemplo, é possivelmente o mais sofisticado: um
jovem estudante, Mark Zuckerberg, idealizou um produto em seu dormitório em
Harvard ajudado por amigos e, com poucos intermediários, o mundo deixou-os
ricos. Esta variação não esconde os elementos menos populares, mas os
disfarça. Harvard aparece como um centro rançoso e resistente à mudança,
não como a universidade para onde vão as elites. Os amigos de Zuckerberg
aparecem como estudantes entusiasmados, não jovens ricos com vontade de
investir em algo.

Ninguém quer ouvir a história dos rapazes ricos que se reúnem no Marriott para idealizar
um plano de negócios. Isso não é tão romântico como a ideia dos iluminados se
desenvolvendo do nada
DAN HEATH, ESCRITOR ESPECIALIZADO EM CULTURA EMPRESARIAL

Também se conta que em 2005 dois amigos, Chad Hurley e Steve Chen,
gravaram um terceiro amigo em uma festa e, ao ver quanto era complicado
jogar o material na Internet, decidiram fundar o YouTube. Não se revela que
Hurley tinha sido um dos primeiros empregados no PayPal e até havia
desenhado o seu logo. E que o seu sogro, James Clark, é o fundador do
Netscape Navigator. Ou seja, os criadores do YouTube eram mais de dois e
tinham conexão direta com investidores. Meses depois, Steve Chen confessou
à revista Time que a história da festa tinha sido “enfeitada” para que soasse
melhor.

O mito feito realidade

A garagem que Google alugou durante cinco meses quando já era uma empresa milionária.
A fábula é cada vez mais popular. Em 2005, dois professores da Universidade
da Califórnia fizeram um estudo entre seus alunos: 89% deles podiam citar
alguma empresa criada desse jeito. Somente 48% das empresas são criadas
dessa maneira, mas o estudo estima que as aparições dos mitos de garagem
na imprensa se multiplicaram 250% entre 1980 e 2000. E, como qualquer
mentira contada por vezes suficientes, está se aproximando da realidade.
Quando a Comissão Nacional de Empreendimento, dos EUA, estudou as
raízes das maiores empresas do país no século XX concluiu: “Em 1917, os
empreendedores costumavam ser aqueles aos quais se havia negado o
sucesso por outras vias. Em 1997, empreendem aqueles que podem se
permitir o risco. O valor da experiência prévia parece ter diminuído”. Nenhuma
das empresas estudadas, por certo, tinha sido criada do nada.

Somente 48% das empresas são criadas dessa maneira, mas o estudo estima que as
aparições dos mitos de garagem na imprensa se multiplicaram 250% entre 1980 e 2000

O mito dá cara a dois motores tangenciais, mas inesgotáveis, do capitalismo


atual: o sonho americano, segundo o qual um homem pode chegar ao ponto
mais alto somente trabalhando duro; e o ego da indústria tecnológica,
obcecada pela ideia de invadir o mundo. É o que acontece com os mitos
atraentes demais. “Quanto mais você conta uma história, mais evolui”, explica
Heath. “Os indivíduos vão sendo ressaltados, não as organizações. Os
momentos particulares, não o progresso gradual. Creio que a história do
YouTube se tornará ainda mais triunfal com o tempo. Mais majestosa.”
Contanto que ninguém acredite nela.

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