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Jason Prado e Paulo Condini
Organizadores

A FORMAÇÃO DO LEITOR
Pontos de Vista

Rio de Janeiro
Argus
1999
Projeto Gráfico: Eduardo Machado e Renata Vidal
Composição: Argus
Revisão: Paulo Corga

Copyright 1999 ARGUS

Todos os direitos de reprodução, divulgação e tradução são reservados.


Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida por fotocópia, microfilme
ou qualquer outro processo. As opiniões expressas nos artigos assinados são
de inteira responsabilidade dos autores, não expressando, necessariamente a
opinião dos editores.

PRADO, Jason (Org.); CONDINI, Paulo (Org.). A formação


do leitor : pontos de vista, Rio de Janeiro : Argus, 1999.
320 p.

LEITOR; LEITURA; CONHECIMENTO; COMUNICAÇÃO;


CULTURA

ISBN n° 85.87456-0106 CDD 028.1


P882 f

Edição
1999

Todos os direitos reservados pela


ARGUS PARTICIPAÇÕES COMERCIAIS LTDA

Rua Santo Cristo, 148/150


22220-300 — RIO DE JANEIRO — RJ
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CONTRA CAPA
Criado especialmente para o 12º COLE pelo Leia Brasil,
Programa de Leitura da Petrobras, A FORMAÇÃO DO LEITOR,
PONTOS DE VISTA reúne as reflexões de trinta personalidades,
entre elas os Ministro de Estado da Cultura e o da Educação, que
têm dedicado seus melhores esforços, além de outras atividades
intelectuais, à questão da leitura, em todas as suas instâncias.
Sua publicação, portanto representa importante contribuição para
todos os interessados nesta área, quer pela conhecida experiência
de seus participantes, quer pela diversidade de visões do
problema, o que por si só, a justifica, que abre caminho para a
percepção de que a leitura e a formação do leitor não são questões
oriundas de uma única vertente, mas frutos de inúmeros fatores
que as determinam.
Para os professores
e bibliotecários,
em cujas mãos repousa
a enorme responsabilidade
de contagiar nossas crianças
com o amor aos livros.
Sumário

Apresentação
Affonso Romano de Sant’Anna
Arnaldo Niskier
Bartolomeu Campos Queirós
Carlos Jacchieri
Edmir Perrotti
Eliana Yunes
Elizabeth D’angelo Serra
Elza Lucia Dufrayer de Medeiros
Ezequiel Theodoro da Silva
Fanny Abramovich
Francisco Weffort
Guiomar de Grammont
Guiomar Namo de Mello
Iara Glória Areias Prado
Jason Prado
Joel Rufino dos Santos
Jorge Werthein
Luiz Percival Leme Britto
Maria Alice Barroso
Maria Thereza Fraga Rocco
Ottaviano De Fiore
Paulo Condini
Paulo Renato Souza
Pedro Bandeira
Regina Zilberman
Rui de Oliveira
Ruth Rocha
Sônia Rodrigues
Tânia Dauster
Walda de Andrade Antunes
PREFÁCIO À 1a EDIÇÃO

Obra inicial do projeto Cadernos do Leia Brasil — A


Formação do Leitor — Pontos de Vista — foi planejada para ser
lançada em Campinas, por ocasião do 12° COLE, que ocorreu
entre 20 e 23 de julho de 1999, reunindo ensaios de trinta
profissionais que têm dedicado os melhores esforços — entre
outras atividades intelectuais —, à questão da leitura, em todas as
suas instâncias, nos dando suas particulares percepções do que o
leitor e a sua formação significam, bem como os caminhos
possíveis para tornar as ações voltadas a esta atuação cada vez
mais eficientes.
Entretanto, para articular e reunir os textos dessas
personalidades e, mais ainda, para realizar o trabalho editorial
com a qualidade que a obra exigia, foi necessário mais tempo do
que o inicialmente previsto, obrigando-nos a transferir o
lançamento para a data de realização da terceira reunião do
Comitê Estratégico do Leia Brasil, Programa de Leitura da
Petrobras, dia 9 de agosto do corrente.
Acreditamos que, com o lançamento desta obra, estamos
dando o primeiro passo no sentido de cumprir um dos mais
importantes papéis para o qual o Comitê foi criado: o de produzir
textos didático-pedagógicos a serem adotados não só pelo
Programa em suas atividades, como também por todos quantos
estejam interessados em suas práticas, acumulando, com isto, à
função de propagador da produção intelectual já criada, a de um
programa também voltado para a pesquisa e criação do saber.

Os organizadores
[9]
APRESENTAÇÃO

Quando imaginamos essa coletânea de “pontos de vista”


como marco de nossa passagem pelo 12° COLE, estávamos
pensando em oferecer aos pesquisadores da leitura — e aos
brasileiros, de um modo geral — um documento que reunisse a
visão dos nossos mais ilustres contemporâneos ligados ao
chamado “mundo do livro” , no que toca à questão da formação de
leitores dentro da nossa sociedade.
Não nos preocupamos em reproduzir teorias ou informações
acadêmicas, do mesmo modo que não procuramos receitas
prontas de transformação de não-leitores em aficionados
devoradores de livros... Simplesmente procuramos reunir pessoas
cujas vidas estivessem marcadas pelo trabalho com os livros ou
com a educação.
Mobilizamos escritores, editores, dirigentes das mais
renomadas instituições de ensino e pesquisa e os reunimos numa
obra comprometida exclusivamente com o tema: “A Formação do
Leitor: Pontos de Vista.”
O resultado foi uma obra interessante pela multiplicidade de
estilos, pela diversidade de olhares e de abordagens e pela
envergadura de cada autor.
Esse foi o papel que julgamos oportuno para o Leia Brasil, o
Programa de Leitura da Petrobras, neste momento em que
chegamos ao COLE pela terceira vez em oito anos de atividades,
agora com nossas responsabilidades ampliadas pelas múltiplas
ações que desenvolveremos durante o Congresso.
Este livro traz muitas semelhanças com o Leia Brasil.
Uma das mais importantes, no nosso entender, é a reunião e
mobilização de pessoas e entidades em torno da idéia comum de
que, sem leitores de fato, não haverá um estado de direito.
Outra semelhança está na sua própria natureza enquanto
objeto: ele não faz parte de um projeto editorial comercial, mas de
um projeto de democratização da informação — e, neste caso
específico, de saberes constituídos —, visando não somente à
instrumentação das nossas escolas públicas, como também os
cursos de formação de professores. [11]
Por isso “A Formação do Leitor: Pontos de Vista” já
transcende seus propósitos iniciais de distribuição comemorativa
à passagem do Leia Brasil pelo Congresso Brasileiro de Leitura,
tomando caminho certo para os acervos de Secretarias de
Educação, de Universidades e de outras entidades de ensino
comprometidas com livros e sua leitura.
O que une a todos nós, organizadores e autores desta
coletânea, gestores do Leia Brasil, Petrobras, participantes do
COLE, professores, pesquisadores e estudantes, é a certeza de que
livros não existem apenas enquanto objetos, mas essencialmente
como veículos de idéias e de pensamentos compartilhados.
Portanto, leia, Brasil.

Os organizadores
[12]
1 — AFFONSO ROMANO DE
SANT’ANNA
Leitura: das armadilhas do óbvio
ao discurso duplo
Mineiro, poeta, cronista, professor universitário.
Doutor pela Universidade Federal de Minas
Gerais, foi presidente da Biblioteca Nacional de
1990 a 1996, onde criou o Sistema Nacional de
Bibliotecas e o PROLER. Foi Secretário das
Bibliotecas Nacionais Ibero-Americanas e
Presidente do Conselho do Centro Regional para o
Fomento do Livro na América Latina e no Caribe
(CERLALC).

Sinto-me como o menino que tem que fazer uma composição


sobre “Minhas férias”. Nada mais simples. E, no entanto, bastante
arriscado, pois há o perigo de se cair no previsível, na banalidade.
Escrever sobre “leitura” e sobre a “formação do leitor” é algo
que lembra também aqueles filmes com títulos tipo “O crime no
castelo”, “A última vítima”, “Morte no entardecer”. O expectador já
entra sabendo o que vai encontrar.
Quem jamais esperaria encontrar num artigo sobre
“formação do leitor” ou sobre “leitura” alguma palavra contra a
leitura ou uma tese de que não se deve formar o leitor?
Assim, um tema como este deflagra logo uma questão que
chamaria de a armadilha do óbvio. Quem vai escrever sobre esses
temas vai também naturalmente dizer que é importante formar
leitores, vai enfatizar que ler é um prazer, que a leitura
desencadeia processos conscientizadores e produtivos na
comunidade, etc. Portanto, os encontros [13] em tomo deste tema
correm o risco de converterem-se em fervorosas assembléias de
autoconsolação.
Preferiria, como o fiz em outras ocasiões em que tive que
abrir seminários, congressos ou discussões sobre este tema,
encaminhar algumas questões subjacentes, ocultas, reprimidas,
mas que representam uma radiografia, uma análise do terreno
onde pisamos e sobre o qual queremos construir algo.
Portanto, estou discorrendo sobre as armadilhas do óbvio,
que nos afastam do verdadeiro diagnóstico da doença ou do
doente. E para tornar mais explícito o que aqui está latente quero
levantar uma questão básica: a necessidade de se proceder a uma
leitura crítica dos discursos sobre leitura.
Isto é um vasto e intrincado assunto. Tem inúmeras faces e
disfarces, ou, como eu disse antes — armadilhas. Uma coisa seria,
academicamente, selecionar um corpus de textos teóricos sobre a
leitura, analisar propostas de programas de leitura e conferir tudo
isto com a prática. Ou seja: verificar se a esses textos se seguiu
alguma ação pragmática, que tipo de ação foi essa e se ela
desmente a teoria ou que tipo de obstáculos surgiram para sua
realização.
Mas um dos aspectos mais sutis e desnorteantes a respeito
da armadilha do óbvio está na banalidade da própria palavra
“leitura”. Se em vez de “leitura” estivéssemos usando uma palavra
nova, de preferência importada de outra língua, talvez fosse mais
fácil fazer saber do que estamos falando.
Por isto, para espanto de muitos editores, escritores e
professores eu tenho repetido: é preciso que se esclareça que,
quando falo de leitura, não estou falando de leitura, mas sim de
leitura.
Isto, advirto, não é uma charada nem um simples jogo de
palavras. Quem tem ouvidos, ouça, diz o profeta. Ou melhor:
quem sabe ler, que leia.
A segunda razão pela qual o discurso a favor da leitura não
gera a ação concreta e específica que gostaríamos deve-se ao que
chamo de duplo discurso. Depois da armadilha do óbvio essa é a
segunda questão que tem que ser esclarecida e denunciada. [14]
Uma coisa são os pronunciamentos, entrevistas, conversas
da boca para fora, outra coisa é realmente acreditar e levar
adiante projetos conseqüentes. Neste sentido, seria um não acabar
coletar aqui e ali exemplos de práticas que não batem com as
teorias e intenções. Poderia, por exemplo, dizer sumariamente que
durante os seis anos (1991-1996) em que liderei, com uma equipe
fantástica, a questão da promoção da leitura e do livro no país,
colhi exemplos fartos do duplo discurso.
Dos seis ministros da Cultura com quem convivi, um disse
claramente numa reunião dentro do Ministério, para que todos
ouvissem, que “leitura não é um assunto prioritário no meu
ministério, esse é um assunto para o Ministério da Educação”.
Imaginem o meu constrangimento de ter que explicar a um
ministro da Cultura, que era membro da Academia Brasileira de
Letras, que não estava falando de alfabetização e sim de leitura.
Ou melhor, que estava falando de leitura e não de leitura.
Imaginem o constrangimento de ter que lhe explicar o que era um
“analfabeto funcional”; ter que lhe mostrar projetos de
implementação da leitura tanto na França quanto na Colômbia;
ter que lhe explicar o que é “desescolarização da leitura” e, além
disto, como se estivesse cometendo uma falta, mostrar que
estávamos já realizando programas de leitura em hospitais,
quartéis, parques e sindicatos, que tínhamos projetos de trem-
biblioteca no sul do país, de bibliobarcos na Amazônia e no Rio
São Francisco e que as vidas de milhares de pessoas estavam se
modificando por causa disto.
Dos seis ministros da Cultura com quem convivi, só dois
tomaram conhecimento do programa de leitura que
desenvolvíamos em 300 municípios, utilizando 33 mil voluntários.
Um deles, o último, esforçou-se, e conseguiu, desmobilizar o
programa e desfazer a equipe.
Batendo nesta mesma tecla do discurso duplo — onde a
prática não fecha com o que é dito — diria que durante todo esse
tempo, embora tenha encontrado um crítico e um ficcionista que
diziam tolices sobre “contadores de história”, não encontrei um só
prefeito ou governador que me dissesse que as bibliotecas eram
inúteis. No entanto, só encontrei, entre as dezenas desses, apenas
dois que haviam destinado verbas para [15] compra de livros. Os
demais davam a sensação de que pensavam que os livros tinham
pernas e saíam caminhando das editoras para as estantes por
livre e espontânea vontade.
Dito isto, e como prova ainda do duplo discurso, assinale-se
que a Colômbia copiou e implementou um projeto brasileiro de
promoção de leitura que teria a participação da Câmara Brasileira
do Livro e outros órgãos do governo. Isto não tem nada demais.
Pessoas, entidades e países devem se beneficiar com as boas
idéias. Mas o grave é que enquanto o projeto baseado nas
propostas brasileiras era posto em marcha, lá na Colômbia, pela
Fundalectura, aqui o projeto foi sabotado e abandonado por quem
devia viabilizá-lo.
Finalizando, eu diria que nessa passagem de século, o
Brasil, em relação à questão da leitura, tem que batalhar
ferozmente em três frentes ao mesmo tempo:
1) a primeira é mais óbvia e diz respeito ao analfabetismo.
Ainda que algum ministro ou presidente possa pensar assim, esta
questão não diz respeito apenas ao Ministério da Educação. Nos
países onde o analfabetismo foi praticamente erradicado isto
resultou de um projeto sistêmico nacional;
2) a segunda frente de ação diz respeito aos analfabetos
funcionais: os que têm rudimentos de educação, mas não
conseguem decompor o significado dos signos. Na Itália existem
15 milhões de analfabetos funcionais. Na França são 20% dos
franceses. Quem quiser que estime quantos são no Brasil,
qualquer cifra entre 100 e 140 milhões será possível;
3) a terceira frente em que há que batalhar diz respeito ao
analfabetismo tecnológico. As mudanças rápidas transformam o
cidadão, mesmo de nível universitário, num analfabeto diante das
novas máquinas, e a atualização é dispendiosa, competitiva e
urgente.
Enfim, numa sociedade em que se fala tanto de hipertexto —
em que o leitor lê em diversas direções e em profundidade, nosso
país está povoado de hipoleitores — aqueles que estão entre o
analfabetismo e o analfabetismo funcional.
Como sair disto é fácil. Basta desarmar as armadilhas do
óbvio e parar com o discurso duplo. [16]
2 — ARNALDO NISKIER

“Um país se faz com homens e livros.”


Doutor em Educação pela Universidade do Estado
do Rio de Janeiro, foi Presidente dos Conselhos
Estadual, Federal e Nacional de Educação, e
Secretário de Educação e Cultura do Rio de
Janeiro. Autor de mais de cem títulos, ocupa a
cadeira 18 da Academia Brasileira de Letras, e,
desde dezembro de 1997, é seu Presidente.
Membro do Comitê Estratégico do Leia Brasil —
Programa de Leitura da Petrobras.

Mesmo que se trabalhe sobre uma herança comum, como a


que caracteriza a comunidade lusófona, hoje de 200 milhões de
habitantes, não há como avançar adequadamente, na busca do
homem novo, se mantidas as atuais condições de miséria e pouco
apreço pelas questões culturais.
No caso do Brasil, temos obstáculos de expressão à nossa
frente, como a existência de 19 milhões de analfabetos e um
magistério de 1,2 milhão de profissionais em geral desmotivados e
recebendo salários incompatíveis com a dignidade da formação do
leitor brasileiro, em que estamos empenhados.
Enquanto países desenvolvidos exibem o índice de leitura de
10 livros por habitante (média anual), o nosso atraso pode ser
facilmente [17] medido pelo per capita de 2 livros por habitante,
nesse índice computando-se também os livros didáticos
distribuídos gratuitamente pelo Ministério da Educação e do
Desporto. Muito pouco se o objetivo for a valorização do hábito de
leitura entre nós.
Na verdade, não é o hábito de leitura que se busca, pois
hábitos tendem a ser impostos — e a imposição, na educação,
caminha em geral para a rejeição. O que se pretende é a
formulação adequada de um gosto pela leitura, e isso na idade
devida. Sendo mais claro, é muito difícil estabelecer esse gosto a
partir dos 16 ou 17 anos, quando o jovem, em geral, tem o seu
interesse voltado pragmaticamente para o exame de habilitação ao
curso superior, com a configuração que hoje ostente.
O ideal é que a criança, mesmo antes de ler, trave contato
com os livros, manipule-os, aprecie as ilustrações, interprete o que
está vendo à sua maneira. Isso é uma forma inteligente de
despertar-lhe o gosto, que depois se traduzirá pelas primeiras e
definitivas leituras. Pensar que isso possa acontecer em idade
mais avançada apresenta pouca probabilidade de sucesso, embora
casos se registrem.
Numa reunião do Comitê Executivo do Programa “Leia
Brasil”, no Rio, que é uma iniciativa de primeiríssima qualidade,
com apoio da Petrobras, chamei a atenção para uma realidade
incontrastável. O MEC distribui gratuitamente 60 milhões de
livros didáticos para alunos carentes, num determinado ano, mas
não repete a dose no ano seguinte. É o primeiro problema. O
segundo, ainda mais grave, na linha da formação do leitor, é a
discrepância aritmética em relação aos livros paradidáticos. Ou
seja, o mesmo canal que libera os livros didáticos praticamente
desconhece os paradidáticos, que seriam a riqueza com a qual se
manteria o interesse pela leitura, nas classes abastecidas pela
primeira remessa.
Aqui se assinala, para tristeza nossa, a descontinuidade dos
projetos pedagógicos. Vai o livro de Língua Portuguesa, por
exemplo, mas não segue nenhum outro de literatura infanto-
juvenil. Cessados os efeitos da inserção do primeiro, no processo,
não há material para sustentar a motivação estimulada, volta-se
praticamente ao estágio anterior de ignorância, o que configura
enorme e lamentável desperdício. Esta continuidade precisa ser
assegurada. [18]

LÍNGUA PORTUGUESA

Do ponto de vista geopolítico, temos redobrado empenho na


valorização da Língua Portuguesa. É um patrimônio a defender e a
preservar, como se disse na reunião da comunidade dos Países de
Língua Portuguesa, realizada em novembro de 1997, em Lisboa.
Com a convicção de que a aprendizagem é para toda a vida e que a
educação deve ser dada para todos, como recomenda a Unesco,
devemos atentar para o avanço das tecnologias da informação e da
comunicação, lançando iniciativas de largo alcance — e não
limitadas a pequenos centros privilegiados. É exatamente aí que
se recomenda o bom enlace multimídia, aproveitando-se o rádio e
a televisão para o trabalho conjunto com a mídia impressa
representada pelo livro, de valor insubstituível em termos
culturais.
É certo que vivemos com tiragens ridículas e, com isso, o
preço da capa se torna excessivamente caro. Com a crescente
mundialização e em especial com o empenho recente de
alargarmos o nosso campo de atuação para outros continentes,
onde há manifestações concretas de apreço à língua portuguesa,
poder-se-á estabelecer um programa de edição e comercialização
de livros sui generis.
A decisão é política e não se pode conceber o silêncio em
matéria de tamanha relevância, quando ninguém tem mais dúvida
sobre a sua relevância. A formação do leitor não é um fenômeno
para se limitar ao nosso território, mas uma questão que se liga
igualmente a Portugal, Angola, Moçambique (onde perdemos
nítido terreno para o inglês), Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé
e Príncipe, Goa, Macau e Timor-Leste — para só citar esses países.

HORA DA LEITURA

A releitura da Carta de Pero Vaz de Caminha, como fizemos


na Academia Brasileira de Letras, a propósito do lançamento do
programa “Hora da Leitura”, uma iniciativa do Governador
Anthony Garotinho e dos Secretários Hésio Cordeiro, Angelo de
Aquino e Wanderley de Souza, enseja uma série de considerações
no mínimo curiosas. A primeira delas, [19] na apresentação do
ator Luís de Lima, foi o trecho em que há uma referência
emblemática: “É preciso salvar essa gente.” Naquela época, há 500
anos, o Brasil tinha 5 milhões de índios, número que hoje se
reduziu a 325 mil. Foram dizimados pelo branco impiedoso e
voraz.
Nossa lembrança, ao falar na solenidade, foi a valorização da
educação. É a forma adequada de “salvar” um povo, sem
desfigurar as suas raízes. O Governador do Rio de Janeiro, ao
ouvir a argumentação, balançou afirmativamente a cabeça,
concordando com a fala, pois depois confessaria que não tem sido
outra a sua principal preocupação. Deseja terminar o período de
Governo com uma outra feição dada à educação fluminense, hoje
sem cara e sem projeto.
Uma das suas mais felizes iniciativas foi a criação do projeto
“Hora da Leitura”, em parceria com a Academia Brasileira de
Letras, que irá colaborar na escolha dos livros adequados às
respectivas faixas etárias da clientela pública (mais de 1,2 milhão
de estudantes). Diariamente, sob a orientação de professores e
especialistas, serão lidos nas escolas trechos de obras de autores
nacionais, para criar o indispensável gosto pela leitura. O próprio
Governador confessou que adquiriu esse hábito um pouco à força.
Era um aluno inquieto, na cidade de Campos, travesso mesmo, e
lembra sempre que, depois de alguma estripulia, costumava ser
deixado de castigo pela professora Ledinha, de saudosa memória:
“Eu ficava com ódio dela. Hoje, sou-lhe grato por ser amante do
livro, fundamental na minha formação.”
Depois de contar essa passagem, Garotinho aproveitou a
presença de 300 pessoas, no Teatro R. Magalhães Jr., e declamou
um poema de sua autoria em homenagem à mulher, Rosinha. Foi
aplaudido demoradamente, pela inspiração. Logo depois, já na
platéia, foi a vez dele aplaudir o artista Tom da Bahia, que cantou
a música baseada em versos de Castro Alves, intitulada “A
Queimada”, um grito em defesa do meio ambiente. E também os
versos de Machado de Assis, muito bem declamados pelo ator
Othon Bastos, no CD da série “Os Imortais”, além de trechos de
obras de Machado de Assis, entre as quais “Dom Casmurro”, que
será representado no palco da ABL, com um elenco de que faz
parte a atriz Bel Kutner (filha da nossa inesquecível Dina Sfat).
[20]
O que se tira de mais positivo, numa solenidade assim rica e
diversificada, é o cuidado do Governo do Estado do Rio de Janeiro
com a cultura e a educação dos seus filhos. Começa com a leitura
recomendada por especialistas na matéria, chegando logo em
seguida, como ouvimos promessa, a programas de redação. Virão
concursos em toda a rede, com estímulos variados, para que,
lendo e escrevendo, nossas crianças e jovens possam enfrentar
com mais chance de êxito o que vem por aí em matéria de
Sociedade da Informação. O Rio mais uma vez pulou na frente.

SEGREDOS DA LÍNGUA PORTUGUESA

Quando se está diante do resultado de um vestibular,


sempre é possível estabelecer inferência. Os 26 mil candidatos da
UFRJ mostraram na prova de redação que aguçaram o senso
crítico e estão aperfeiçoando o trato da Língua Portuguesa em
relação aos exames anteriores.
O tema foi instigante: “Que geração é esta que não lê, e disto
nem se envergonha?” Um aluno escreveu na prova inteira a
palavra leitura. Tirou zero. Em compensação, a redação nota dez
provou a capacidade crítica do seu jovem autor, que citou “o
mundo apressado e impaciente dos nossos dias”. Ele entende,
embora não concorde, que saber das coisas pela TV é mais rápido
e mais cômodo. “O jovem sabe disso, mas não se importa, porque
foi educado, desde a tenra infância, a confiar nessa fonte.”
Sou testemunha da ampliação do interesse, em nosso país,
pelas questões vernaculares. Não só através da experiência
acadêmica, mas ao acompanhar o sucesso da obra 70 Segredos
da Língua Portuguesa, onde o professor Salomão Serebrenick
registrou o anseio de largas camadas da nossa população pelo
conhecimento do idioma, depois de um período bastante
expressivo de desapreço por tudo o que se referisse à norma culta.
Entendo até que a televisão pode ser incriminada nesse
processo, com a valorização do linguajar chulo e pobre,
característico de programas humorísticos ou até mesmo via
novelas de baixo teor cultural. Sem ser puritano, pode-se acusar a
utilização frenética de palavrões através do [21] vídeo como um
modismo exagerado, criando uma dicotomia no espírito das
crianças. Elas são contidas em casa pela educação mais rígida dos
pais, mas têm a sua atenção despertada para a valorização dessas
palavras na TV ou mesmo nas escolas, onde os “professores
moderninhos” incorporam palavras antes proibidas no seu
cotidiano. Isso leva a alguma coisa?
No livro citado, que já se encontra na terceira edição,
Serebrenick mostra o emprego correto do pronome cujo, mostra a
confusão entre infligir, inflingir e infringir, explica a utilização de
haja vista e insiste na grafia correta da palavra tampouco. O livro
é de extrema serventia, pois assinala a diferença entre os verbos
destorcer (tornar direito, desfazer torcedura) e distorcer (mudar o
sentido, desvirtuar). Li a obra com indizível prazer, pois os erros
assinalados são muito comuns até em gente fina, que usa
profissionalmente o verbo, mas não sabe como varia a regência do
verbo assistir, por exemplo.
Crase, vírgula, ponto e vírgula — são elementos
indispensáveis da língua portuguesa, mesmo nessa fase de
unificação em que se vai abandonar o trema e, em certos casos,
também o acento circunflexo. São muitas regras, é verdade, mas
não há como fugir da sua aplicação.
Os jornais estranharam o fato de aparecerem palavras mal
grafadas nos exames vestibulares (horgulho e insentivo). Nossa
convicção é muito clara: escreve-se mal porque se lê pouco, o que
também leva a uma pobreza vocabular mais que evidente. Como é
possível enriquecer a linguagem dos nossos jovens se os índices de
leitura assinalam recordes negativos? O livro é gênero de primeira
necessidade — e por isso mesmo merece o mais completo apoio, a
partir da idéia de formar o hábito de ler. [22]
3 — BARTOLOMEU CAMPOS
QUEIRÓS

O livro é passaporte, é bilhete de partida


Mineiro, graduado em Filosofia com especialidade
em arte-educação pelo Instituto Pedagógico
Nacional de Paris, escritor e poeta premiado
nacional e internacionalmente, conferencista e
autor de publicações sobre educação e leitura.
Membro do Comitê Estratégico do Leia Brasil —
Programa de Leitura da Petrobras.

Desconheço liberdade maior e mais duradoura do que esta


do leitor ceder-se à escrita do outro, inscrevendo-se entre as suas
palavras e os seus silêncios. Texto e leitor ultrapassam a solidão
individual para se enlaçarem pelas interações. Esse abraço a
partir do texto é soma das diferenças, movida pela emoção,
estabelecendo um encontro fraterno e possível entre leitor e
escritor. Cabe ao escritor estirar sua fantasia para, assim, o leitor
projetar seus sonhos.
As palavras são portas e janelas. Se debruçamos e
reparamos, nos inscrevemos na paisagem. Se destrancamos as
portas, o enredo do universo nos visita. Ler é somar-se ao mundo,
é iluminar-se com a claridade do já decifrado. Escrever é dividir-
se.
Cada palavra descortina um horizonte, cada frase anuncia
outra [23] estação. E os olhos, tomando das rédeas, abrem
caminhos, entre linhas, para as viagens do pensamento. O livro é
passaporte, é bilhete de partida.
A leitura guarda espaço para o leitor imaginar sua própria
humanidade e apropriar-se de sua fragilidade, com seus sonhos,
seus devaneios e sua experiência. A leitura acorda no sujeito
dizeres insuspeitados enquanto redimensiona seus
entendimentos.
Há trabalho mais definitivo, há ação mais absoluta do que
essa de aproximar o homem do livro?
Experimento a impossibilidade de trancar os sentidos para
um repouso. O corpo vivo vive em permanente e vários níveis de
leitura. Não há como ausentar-se, definitivamente, deste
enunciado, enquanto somos no mundo. O corpo sabe e duvida. A
dúvida gera criações, enquanto a certeza traça fanatismos.
Reconheço, porém, um momento em que se dá o definitivo
acontecimento: a certeza de que o mundo pessoal é insuficiente.
Há que buscar a si mesmo na experiência do outro e inteirar-se
dela. Tal movimento atenua as fronteiras e a palavra fertiliza o
encontro.
Acredito que ler é configurar uma terceira história,
construída parceiramente a partir do impulso movedor contido na
fragilidade humana, quando dela se toma posse. A fragilidade que
funda o homem é a mesma que o inaugura, mas só a palavra
anuncia.
A iniciação à leitura transcende o ato simples de apresentar
ao sujeito as letras que aí estão já escritas. É mais que preparar o
leitor para a decifração das artimanhas de uma sociedade que
pretende também consumi-lo. É mais do que a incorporação de
um saber frio, astutamente construído.
Fundamental, ao pretender ensinar a leitura, é convocar o
homem para tomar da sua palavra. Ter a palavra é, antes de tudo,
munir-se para fazer-se menos indecifrável. Ler é cuidar-se,
rompendo com as grades do isolamento. Ler é evadir-se com o
outro, sem contudo perder-se nas várias faces da palavra. Ler é
encantar-se com as diferenças. [24]
4 — CARLOS JACCHIERI

A criança é um leitor, por acaso, analfabeto


Nascido na cidade de São Paulo, artista plástico,
escritor. Entre suas obras, estão: O Honlenz e o
Labirinto; Os Deuses não eram Astronautas;
Porominare; O Evangelho segundo Jesus Cristo
das Vinhas da Ira — uma releitura do mito cristão;
A Infância da Arte — uma teoria da ontogênese e
da antropogênese da religião e da arte; Oráculo do
candomblé das lyami.

Desenhar as letras no jeito da mão e da forma, no feitio bem


comportado da bonita caligrafia, ou nos garranchos mal educados
das escrevinhações da gente grande, não foi nada difícil, foi até
muito fácil. Copiar as figuras das coisas representadas na Cartilha
do Tomaz Galhardo, com seus nomes escritos em letras
maiúsculas e minúsculas do A B C, foi canja. Afinal, o artista
infantil imitador e garatujador já nasce feito.
Desenhado a giz no quadro negro, na figura lembrada pelos
olhos ao lado da palavra pato, o patinho na lagoa, o p-a-t-i-n-h-o
soletrado no A B C e o pa-ti-nho silabado no bê-á-bá, eram
maneiras de memorizar desenhando, escrevendo e lendo o que era
o objeto pato do mundo real, e o do imaginado na cabeça da gente.
Afinal, nas cartilhas de alfabetização [25] do meu tempo, a
didática orientada para o conhecimento dos objetos reais, por
meio de suas definições formais, vinha do Pestalozzi.
Não nascemos já, de pronto, com os “olhos” das memórias
gráficas, nem com o polegar opositor já habilitado para pinçar as
ferramentas que vão sendo reclamadas pelos voluntários motores
da manifestação infantil. Isso vai acontecendo naturalmente e,
nesse mesmo compasso, vamos fazendo com que as coisas que
percebemos no mundo de Deus convertam-se em coisas pensadas
na cabeça da gente e, daí, se tornem coisas representáveis em
pinturas, desenhos, sons, palavras etc.
Só muito depois da infância podemos nos dar conta que é
assim, desde sempre, que o bicho gente, já por seus inatos meios
de expressão, se tem feito no escritor e leitor das histórias da
História.
Escritor antes e leitor depois.
Por quê?
Porque enquanto não completamos, em nossas cabeças, o
mundo de representações de nossa própria imaginação,
comparando-o, ponto a ponto, com o mundo da realidade de fato,
que ao nascer já encontramos feita, não podemos, de todo, ler o
mundo da nossa imaginação porque ainda não o terminamos de
“escrever”, e nem mesmo, o da realidade já feita, porque ainda,
ponto a ponto, não terminamos de “lê-lo”.
Cada um de nós, em nossa formação mental, havemos de
reflexionar a condição humana na qual nascemos e de reimaginar
a realidade humana, que nos assiste, já feita. Assim, somente
conseguiremos assimilar uma, no quanto alcançamos reflexioná-
la; e nos adaptarmos à outra, no quanto alcançarmos reimaginá-
la. Eis porque podemos dizer que somos, por natureza,
assimilativos e adaptativos, escritores e leitores natos, por acaso
analfabetos, enquanto também não aprendermos a sê-los no modo
alfabetizado.
Desde o nascimento, a cada instante da nossa vivência,
somos um ente completo e perfeito. As crianças não sabem o que
quer dizer ser criança, nem carecem dessa consciência formal
para desenvolverem-se, pois, nas suas vivências, contam com
naturais aptidões para auto-educarem-se e auto-adestrarem-se,
vencendo, com essa auto-suficiência, suas provisórias limitações
etárias.
Assim, nos meus sete anos, já falante, rabiscador,
barulhento, [26] manipulador senhor e autor do meu egocêntrico
mundo, incluindo os altruísticos tratos afetivos, ora tranqüilos,
ora birrentos, com mãe, pai e irmãos, parentes e afins, amigos e
inimigos, lá fui eu.
Com sete anos, já me imaginando — por conta das histórias
sempre repetidas pelos adultos diante das crianças — santo e
pecador, anjo e diabo em purgatórios e infernos em reino do céu e
da terra; feitiço e feiticeiro em fantasmagóricas correntes brancas
e negras de arrepiantes exorcismos; personagem lendário em
castelos de fabulosos príncipes e princesas, fadas e bruxas, ogros
e gigantes; destemido aventureiro galante e perverso, em
memoráveis façanhas por terra-mar-e-ar, lá fui eu.
Lá fui eu com meus sete longos anos de vivências em lições
de vida e em lições de coisas, mas ainda analfabeto, entrando no
primário de mala e cuia, com a mochila do material escolar e a
lancheira com pão, ovo e banana, para o recreio.
Nas minhas ingênuas imprudências e confusas
perplexidades, próprias da infância, vi festeiros e festejos
deslumbrantes, procissões, carnavais e paradas patrióticas; vi
gente fardada e paisana se matando em barricadas; vi operários e
secretas, grevistas e pelegos, agredindo-se nos portões das
fábricas; vi guardas civis e gente pacata fazendo a cidade; vi
mulheres da vida e vagabundos excomungados pelas boas
famílias; vi pobres e doentes públicos e os de bom coração fazendo
caridade... Mas não tinha explicações para essas realidades. Eu
até supunha que elas estivessem escritas nos jornais, revistas e
livros, mas fora do alcance da minha infantil curiosidade.
Deslumbrado com o novo cenário social que se abria para
mim, no bulício da criançada no primeiro dia de escola, entrei na
sala de aula e me postei perfilado de escoteiro no meu lugar.
Diante da professora — que me pareceu majestosa dando
início à sua aula com a primeira ordem: Crianças! Atenção!
Silêncio! — me senti mudado em gente grande. Me senti um
trabalhador aprendendo uma nova profissão: a de saber ler e
escrever. Me senti um soldado se armando para a conquista da
sabedoria escrita que, a mais daquela que se aprende vivendo,
somente se adquire nos livros.
Anos depois, me dei conta de que não havia ido à escola para
aprender a viver os fatos da vida, mas para me fazer um cidadão
civilizado. [27]
Lá fui eu, criança, curioso em descobrir como é que se
escreve nos livros tudo o que acontece no mundo e daí, com eles,
como é que se aprende a reler o acervo do universo literário que
demandou milênios e milênios para se acumular.
As dimensões do fabuloso e do plausível, do ideal e do real,
não guardam fronteiras bem demarcadas na imaginação infantil.
Quando crianças temos noções inteligentes das verdades relativas
a isto ou àquilo. Mas, aí, preferimos não nos deixar guiar por elas
porque, na verdade, pouco importa ao simbolismo infantil limitar-
se a acanhadas veredas formais; a trilhos de bitolas estreitas.
Afinal de contas, a África do Tarzan, a China do Marco Polo,
as léguas de Júlio Verne, as serras do Peri, da Ceci e do Saci-
Pererê, etc, sem esquecer dos montes Cárpatos com os nevoentos
castelos do Conde Drácula, se encontram de fato nos mapas da
Geografia Física, lhes conferindo imaginosas significações que
favorecem memorizá-las. As aventuras dos cangaceiros do
Lampião, o Navio Negreiro do Castro Alves, e as Reinações do
Narizinho e do pobre Jeca Tatu, com brasileiríssimas lições-de-
vida, entusiasmavam a leitura da História do. Brasil do Rocha
Pombo.
Guardo lembrança de uma escola prestigiando, antes de
tudo mais, a inteligência dos alunos, ensinando-os a não a
deixarem prisioneira de informações provisoriamente objetivas e,
tampouco, soltá-la em deslumbramentos subjetivos: nem tanto ao
mar, nem tanto à terra; lembro de uma escola criadora de leitores
abertos e curiosos para conhecer de tudo um pouco, e melhor se
situarem nos tesouros de suas preferências espirituais. Em suma,
de uma escola formando conscientes leitores sociais, exigentes de
que os textos preservem, entre outros méritos, uma relação
evidente entre as definições verbais e as significações sensíveis.
Bertrand Russell1 falou disso: É verdade que a educação
procura despersonalizar a linguagem, e o faz com certa medida de
êxito. A “chuva” já não é mais esse fenômeno familiar, mas, sim,
“gotas de água que caem das nuvens em direção à terra”, e a
“água” já não é mais o que nos molha, mas, sim, H2O. Quanto ao
hidrogênio e oxigênio, ambos tem definições verbais que precisam
ser apreendidas de cor; não vem ao caso que a pessoa as entenda
ou não. E assim, à medida que a [28] instrução prossegue, o mundo
das palavras vai se tornando cada vez mais separado do mundo
dos sentidos... por fim, tornamo-nos tão exímios manipuladores das
frases que quase não precisamos lembrar que as palavras têm
significados... No entanto, não podemos mais ter a esperança de ser
poetas: se tentarmos ser amantes, veremos que a nossa linguagem
despersonalizada não surtirá muito efeito para gerar as emoções
que desejamos. Sacrificamos a expressão pelo que comunicamos, e
o que podemos comunicar resulta ser abstrato e seco.
A propósito de Russell, contam que, tirando umas férias no
campo, foi abordado por um camponês que lhe pediu um livro
emprestado. Ele gostava de ler, mas não havia livrarias na região.
Bertrand, então, emprestou-lhe os Diálogos de Platão. No final das
férias, ao devolver-lhe a obra, o homem disse que o havia lido três
vezes.
— E o senhor gostou do que leu? — Russell lhe perguntou.
— Gostei muito! Muito mesmo! — O camponês respondeu. —
Esse tal de Platão tem umas idéias muito parecidas com as
minhas!
Superestimar as idéias do filósofo vai muito bem, tanto
quanto subestimar, a priori, por preconceito, as idéias do homem
comum, vai muito mal. Um e o outro, no que de fato são
pensadores, necessariamente, pensam as mesmas verdades da
condição humana. Daí, sabendo disso, e levando-se na devida
conta as diferenças vivenciais de cada um, podemos dizer o
mesmo sobre as idéias que passam pelas cabeças dos adultos e
das crianças. Uma criança esperta não deixa por menos: adulto
sabido, de fato, só pode ser aquele que tenha idéias muito
parecidas com as dela.
Por isso, livros apropriados para crianças, tornando-as,
desde logo, conscientes leitores sociais, hão de ser os de autores
que, antes de outros méritos, não esquecem que ser criança
também quer dizer ter nascido um sábio leitor, por acaso,
provisoriamente, analfabeto.

1(Bertrand Russell, O conhecimento humano. Vol. 1o, p. 15, Cia. Ed. Nacional,
1958.) [29]
5 — EDMIR PERROTTI

Leitores, ledores e outros afins


(apontamentos sobre a formação ao leitor)
Professor da Escola de Comunicações e Artes da
Universidade de São Paulo, autor de Bordado
Encantado; O Texto Sedutor na Literatura Infantil;
Confinamento Cultural, Infância e Leitura.

Ao tentar elaborar uma súmula que me orientasse na


redação deste trabalho, veio-me à mente um escrito de Sartre
sobre a literatura. Se me lembro bem, a publicação era, na origem,
uma conferência em que o filósofo estabelecia uma distinção entre
“fazedores” de livros e escritores. Fugindo do velho chavão da
inspiração — afinal, quem é inspirado? quem não é? — Sartre
centra seus argumentos no terreno mais palpável das opções
humanas. Segundo ele, as páginas apressadas e superficiais dos
“fazedores” de livros não estariam interessadas em enfrentar a
complexidade e a opacidade dos vínculos que nos ligam ao
mundo. O compromisso e o engajamento com a causa da
existência humana seriam atributos somente de artistas
autênticos, que tomam a linguagem não enquanto instrumento de
decifração rasteira do mundo, [31] mas enquanto fonte de
prospecção e indagação radicais.
As colocações de Sartre apontam para um caminho que me
parece essencial compreender ao se abordar a questão da leitura.
Desse modo, em que pese todos os condicionantes de diferentes
ordens, ler é uma atividade que envolve essencialmente um modo
de relação com a linguagem e as significações. Face a isso, talvez
seja possível estabelecer uma correlação com o autor de As
palavras e dizer: há uma distinção fundamental a ser feita entre
ledores e leitores. Os primeiros seriam sujeitos que se relacionam
apenas mecanicamente com a linguagem, não se preocupando em
atuar efetivamente sobre as significações e recriá-las. O texto é
tábula rasa, exposição sem mistérios das poeiras do mundo. Os
leitores, ao contrário, seriam seres em permanente busca de
sentidos e saberes, já que reconhecem a linguagem como
possibilidade e precariedade, como presença e ausência ao mesmo
tempo, ambigüidade irredutível face aos objetos que nomeia —
“Lutar com palavras é a luta mais vã/ entanto lutamos mal rompe
a manhã”, sintetiza Drummond.
É possível que o leitor pergunte com razão se a distinção
inspirada em Sartre faz sentido, se não peca pelo reducionismo. A
melhor resposta talvez seja sim e não. Sim, porque ao envolver
conceitos, ela tende à redução. Não, porque os conceitos
expressam pontos de vista e valores a respeito de uma realidade e
não são a própria realidade a que se referem. E, no caso, está-se
querendo distinguir uma atitude meramente exterior, ligeira face à
linguagem, de uma atitude empenhada, compromissada, para
usarmos terminologia sartreana.
Está-se tentando distinguir uma atitude reprodutora,
consumista face à linguagem, de atitude criadora e crítica, uma
vez que no mundo contemporâneo tudo tende ao mercado e ao
consumo, inclusive a leitura. Como sabemos, o comércio da
escrita não atua apenas sobre os autores, sobre aqueles que
escrevem, mas sobre todos os envolvidos no seu circuito. Não são,
portanto, apenas os escritores que estão em risco, nas sociedades
de consumo. Os leitores também estão. A lógica de nossas
sociedades tende a conferir atenção especial aos ledores, deixando
margem mínima para os leitores e suas dificuldades. Um só
exemplo: se há cada vez mais livros no mercado, de outro lado, há
cada vez menos condições de exercitarmos leituras reflexivas,
aquelas que exigem forte [32] concentração, que demandam
tempo, anotações, perguntas a outros autores, a outros leitores,
que conduzem a releituras, ao estudo de pequenos trechos, a
embates profundos e intensos entre texto e leitor. Se, como coloca
um autor alemão, é verdade que a leitura extensiva é cada vez
mais praticada em nosso mundo, vale perguntar se o mesmo
ocorre com a leitura intensiva, aquela que nos lança adiante, que
permite o salto, que nos assalta e é medida muito mais pela
qualidade de seus efeitos que pelo número de páginas lidas.
Nesse sentido, ao se atuar no campo da formação de leitores,
acredito que seja preciso a explicitação de uma concepção de
leitura e de leitores que faça distinção entre os conceitos
apontados. Se as concepções sozinhas não alteram a realidade,
ações desorientadas também dificilmente obterão resultados em
campo tão complexo como o da educação e da cultura. Atirar a
esmo pode ser fácil, mas dificilmente nos fará atingir o alvo
desejado.
Entretanto, dadas as condições contemporâneas, e, em
especial, as brasileiras, não acredito que todas as ações tenham o
mesmo valor. E é o que se está dizendo quando se afirma que toda
e qualquer concepção bem como toda e qualquer forma de ação
são válidas. Claro que no abstrato poderão ser. Mas como o que se
deseja é a atuação na ordem histórico-cultural, é a formação de
leitores e não de ledores, torna-se necessário desenvolver práticas
afinadas com princípios implicados na distinção. Na mesma trilha
de Sartre, Paulo Freire mostrou-nos, por exemplo, a diferença
entre promover hábitos de leitura e promover o ato de ler. Mostrou-
nos que a decifração mecânica de sinais é atividade totalmente
diversa da ação voluntária sobre a linguagem implicada no ato de
ler. Hábitos estão ancorados na repetição mecânica de gestos;
atos, na opção, no exercício da possibilidade humana de articular
o agir ao pensar, ao definir, ao escolher.
Desse modo, é fundamental deixar claras as concepções
implicadas nos programas de promoção da leitura em curso no
país. É preciso saber se o objetivo é formar consumidores da
escrita, meros usuários do código verbal, ou seres capazes de
imprimir suas marcas aos textos que lêem, estabelecendo com eles
um diálogo vivo e único cujo horizonte não é apenas a busca de
respostas, mas também a formulação [33] de novas indagações.
Parodiando Eco, é preciso distinguir leitura fechada de leitura
aberta, já que o horizonte dos ledores é o fechamento e o dos
leitores, a abertura.
Antes de continuar é bom explicitar aqui uma questão: o
nosso encaminhamento poderá levar a crer que aquela leitura
descompromissada, gostosa, que fazemos na sala de espera do
dentista, na praia, no ônibus, estaria aqui incluída no rol da
leitura extensiva de ledores. Não é disso que estamos tratando.
Podemos sim ter atos descomprometidos de leitura. Afinal, não
estamos permanentemente nas “barricadas do desejo”. A questão
está em outra parte. Ser ledor quando se é leitor é condição
completamente distinta de ser ledor por falta de opções.
Se a formação de leitores implica necessariamente a
definição e o ajustamento de concepções, implica também a
criação de instituições, gestos, modos de atuação compatíveis com
as opções definidas. Assim, se as grandes festas editoriais como as
feiras de livros são elementos que, devidamente utilizados, podem
colaborar com políticas de formação, não se pode deixar de
considerar que, isoladas, elas se dirigem mais aos ledores que aos
leitores. Da mesma forma, pesquisas ou práticas que se
preocupam apenas com o número de títulos que um aluno lê por
semana, por mês ou por ano. Ora, se a matemática — financeira
ou não — é uma variável que atua sobre a leitura, ela está longe
de indicar o que quer que seja, ao aparecer desvinculada da
problemática da formação de leitores e das implicações de ordem
simbólica envolvidas nos atos lingüísticos.
Nesse sentido, a formação de uma sociedade leitora envolve
não apenas a criação de instituições indispensáveis à sua
constituição (escolas, bibliotecas, editoras, livrarias, entre outras),
como também uma reflexão aprofundada sobre a natureza dessas
instituições, o sentido de suas orientações e de suas práticas.
Tendo em vista os objetivos deste trabalho, destaco neste
ponto um aspecto da questão que me preocupa bastante
atualmente: os espaços de leitura. Sabedor da importância que
eles desempenham na formação de leitores, venho dirigindo meu
trabalho de pesquisa para esse objeto, já que estou certo de que a
apropriação da leitura pelo país demanda uma transformação
radical nas condições institucionais vigentes nesse [34] âmbito
entre nós.
Em primeiro lugar, é preciso lembrar que, na sociedade
brasileira em seu todo, a leitura não é ainda nem hábito nem ato.
Ao contrário, ela é vista como comportamento diferenciador, a que
somente seres privilegiados, bem dotados intelectual, cultural e
economicamente, podem ter acesso. As exceções não fazem senão
confirmar a regra. Em decorrência, o que se reserva às maiorias,
quando muito, é o exercício de reconhecimento de signos para
atividades imediatas ligadas à sobrevivência ou pouco mais que
isso.
Assim, face à falta de intimidade da sociedade, em geral, com
a escrita, não espanta que o espaço familiar não se constitua em
território de introdução das crianças no mundo da cultura
impressa, como ocorre em algumas sociedades em que a leitura é
um instrumento fundamental de mediação das relações
domésticas. Nas casas brasileiras, a televisão com seus apelos de
consumo que continuam reinando absolutos enquanto vivência
simbólica comum. Em decorrência, a criança chega à escola sem
essa experiência única da escrita em situação doméstica e que
serviria para embasar e facilitar extraordinariamente sua
formação de leitor.
Porém, o que faz a escola com essa falta, eis o outro nó do
problema. Ao invés de atuar sobre a ausência, ela passa em geral
a recriminar a família, a responsabilizá-la por ações que quase
nunca tem condições de cumprir. Desse modo, se a criança
apresenta dificuldades para apropriar-se da língua escrita, tal fato
deve-se à falta de estímulos domésticos, à falta de incentivos, à
omissão dos pais na educação dos seus filhos. Ora, seguir tal
caminho não parece levar a grandes resultados, já que a busca de
culpados nunca foi a melhor solução onde cabem ações
pedagógicas. Entendo, pois, que seja necessário deixar de lado as
estratégias de culpabilização e, antes, procurar meios capazes de
incluir as famílias nos projetos pedagógicos, seja por meio de
ações diretas ou indiretas.
Talvez valha a pena um exemplo de inclusão bem sucedida
que adotamos num projeto de pesquisa que coordeno, no
Departamento de Biblioteconomia, da Escola de Comunicações e
Artes, da Universidade de São Paulo. Assim, em 1994, criamos,
em cooperação com a Divisão de Creches, da Coordenação de
Serviço Social da universidade, uma [35] biblioteca-laboratório
numa creche do campus que atende crianças de zero a seis anos:
a Creche Oeste.
A “Oficina de Informação” — esse o nome do serviço criado -
estruturou-se a partir de um conceito de criança enquanto ser
cultural que se constrói em relação. Assim, se as atividades visam
sempre cada criança ou grupo de crianças em sua irredutibilidade
irrestrita, não são todavia dirigidas apenas a elas. Há também
momentos para as rodas de histórias que agrupam pais e filhos,
para as escolhas conjuntas de livros, para o empréstimo domiciliar
(os horários procuram aproveitar o momento em que os pais vêm
buscar os filhos), para ações informais de troca de informações
entre os mediadores da Oficina e os responsáveis pelas crianças.
Discute-se nesses momentos os usos do livro em situações
familiares, comenta-se, orienta-se, colhem-se dados essenciais à
estruturação e ao funcionamento do serviço. Os pais não vão à
creche, portanto, para simplesmente deixar ou buscar os filhos ou
para reuniões pedagógicas. Vão também para viver experiências
culturais, para apropriar-se de instrumentos e participar de
atividades que até o momento de intervenção da Oficina não
faziam parte do repertório da maioria das casas e que pouco a
pouco começaram a fazer.
Criar vínculos com a família parece ser, portanto, um
caminho promissor, afirmativo, ao contrário da culpabilização
paralisante, do estado de lastimação reativo e que não leva senão
a becos sem saída. Claro, tal percurso coloca exigências nem
sempre fáceis de serem cumpridas. Em todo caso, a experiência
da Oficina de Informação da Creche Oeste vem mostrando que,
apesar dessas dificuldades, é recomendável enfrentar desafios e
apostar na invenção. As possibilidades de ganhos são altas.
Assim, acredito que, especialmente em país como o nosso,
em que a cultura do livro e da escrita está ainda distante de ser
uma realidade viva, disseminada por todos os territórios sociais, o
caminho do estreitamento dos vínculos entre os diferentes espaços
de leitura é fundamental: escola, família, biblioteca têm que achar
pontos de contato e articulações indispensáveis à formação de
leitores. Contudo, dado o quadro sociocultural do país, a iniciativa
na maioria das vezes deve caber à escola, já que, como diz Samir
Meserani, ela é a agência privilegiada [36] do escrito em nossa
cultura. Caso existam, o papel poderá caber também às
bibliotecas, como foi o caso relatado da Oficina que, de resto,
encontra-se em uma instituição de educação infantil.
Para exercer tal trabalho, é evidente que a escola terá que
mudar suas concepções, suas relações tradicionais com a leitura e
com a atividade pedagógica em geral. Em primeiro lugar, como já
foi expresso antes, será preciso redefinir orientações teóricas,
objetivos, metodologias. Hoje, se muitas ações já são feitas de
forma consciente e criteriosa por educadores empenhados e
afinados com projetos transformadores, muitas são também
desenvolvidas de formas inconscientes, inconsistentes e
burocráticas, por profissionais desestimulados, sem vontade de
mudar, de inventar, que abdicaram do desejo de se expressar em
suas práticas cotidianas. Se, em boa parte, o desestímulo resulta
de condições aviltantes impostas à educação no país, resulta,
também, da desmobilização pessoal e da ausência de
comprometimento político, educacional e cultural. Em tal
contexto, a profissão se reduz à sua mera e parca função
econômica, e, seu exercício, em tempo de espera da
aposentadoria. Um terror!
Evidentemente, com tais considerações, não desejo deixar de
lado a importância das políticas educacionais enquanto motor
essencial das transformações pedagógicas. Sem isso, as ações
tendem a ser localizadas, pontuais e parciais. Logo, a
democratização da educação e da cultura passa necessariamente
por tal questão. O reconhecimento da importância dessas políticas
e das omissões históricas observadas entre nós nesse aspecto não
pode, contudo, servir para justificar o imobilismo pedagógico.
Adotar tal ponto de vista seria render-se às forças da morte, em
detrimento da crença na força explosiva da criação e da
imaginação. Se está na moda, portanto, reivindicar luxo para
todos, não se pode perder de vista que o luxo não significa
necessariamente invenção, criatividade. Ao contrário, pode
representar o lugar comum, o pasteurizado, a falta de vida
pulsante. Se ter condições favoráveis é ponto facilitador das
transformações, saber conquistá-las e mantê-las é tarefa
estimulante que deve merecer especial atenção dos educadores
comprometidos com a renovação.
Neste momento cabe, mesmo se breve, uma palavra sobre
outro ponto essencial referente à necessidade de preparação dos
mediadores [37] para as novas concepções e práticas. Assim,
acredito que será preciso, em primeiro lugar, que os mediadores
descubram a leitura, experimentem eles próprios a condição de
leitores, já que boa parte, infelizmente, é forçoso admitir, são,
quando muito, ledores. Antes de mais nada, será preciso que se
apropriem do ato de ler e das estratégias pedagógicas ajustadas a
tal perspectiva. Fazer do mediador leitor e, ao mesmo tempo,
profissional competente na área é condição que se impõe a
qualquer programa sério de formação de leitores. Como lembra
Barthes, a leitura não é um conceito abstrato. É antes uma
prática concreta, um jogo, um exercício lingüístico. Desse modo,
sem que se pratique, será difícil o domínio do processo, o
reconhecimento de suas dificuldades, limites e possibilidades pelo
mediador. A estratégia do faça o que eu mando e não faça o que
eu faço não parece ter muitas chances de vingar no campo de que
nos ocupamos.
Se o papel da família e da escola necessita ser revisto, é
preciso, também, que a biblioteca siga novas orientações, a fim de
ser descoberta pelo país, ao mesmo tempo que o descobre. É
incrível que tenhamos chegado ao final do século XX na situação
de penúria em que nos encontramos neste campo. É como se, em
plena era das telecomunicações, estivéssemos usando apenas
sinais de fumaça para entrar em contato com pessoas de nosso
interesse. Assim, por exemplo, uma mãe foi à biblioteca-
laboratório que implantamos numa escola municipal de ensino
fundamental da periferia de São Paulo. Queria ver o que era
aquele objeto estranho de que seu filho tanto falava e que ela não
tinha a noção do que fosse. Queria saber o que era o lugar que
interessava o filho, pois temia que pudesse ser alguma coisa muito
perigosa. Afinal, pensava ela em sua simplicidade e com exatidão,
são tantas ameaças aos jovens que, sem dúvida nenhuma, é
preciso estar atento.
O exemplo da sincera e aflita mãe nos dá a dimensão do
problema que nos atinge, ou seja, da distância existente entre
biblioteca e sociedade no Brasil. Desse modo, se o país não é
capaz ainda de reconhecer a importância fundamental das
bibliotecas, as bibliotecas existentes não são capazes de dialogar
com o país, de se mostrarem e se fazerem essenciais à vida
brasileira.
Com isso, retornamos ao ponto de partida: é preciso não
apenas [38] criar bibliotecas, mas também desenvolver novas
concepções e práticas, articuladas com nossa experiência de
mundo, nossos traços culturais fundamentais, nossos graves
problemas socioculturais: fome, violência, analfabetismo, pobreza,
massificação, discriminações sociais, raciais, entre outras
questões de igual importância e que atingem a maior parte de
nossa população.
Diante de tal contexto, venho trabalhando na ECA/USP, na
coordenação de equipe de pesquisadores brasileiros e
estrangeiros, alunos de graduação e pós-graduação, educadores
de diferentes níveis e procedências, na sistematização do conceito
de Biblioteca Interativa, ou seja, na constituição de uma concepção
de serviço de informação e cultura capaz de atuar na mudança
das relações atuais existentes entre biblioteca e sociedade no
Brasil. É a partir dessas premissas que foram construídos os
espaços laboratoriais a que me referi anteriormente, bem como a
Estação Memória, outro espaço que criamos e desenvolvemos na
Biblioteca Infanto-juvenil Álvaro Guerra, em cooperação com a
Secretaria Municipal de Cultura, da cidade de São Paulo.
A construção desses espaços pautou-se por uma concepção
de biblioteca enquanto espaço transitivo, em relação dialógica com
a sociedade em que se acha inserida. Mas obedeceu a
necessidades de sistematização de procedimentos e ferramentas
de trabalho indispensáveis à consecução de tais ideais. Os
resultados já obtidos indicam que estamos no caminho correto e
que é possível reverter o fosso existente atualmente entre
biblioteca e sociedade no Brasil. As crianças da Oficina, os alunos
que freqüentam a Biblioteca Escolar Interativa, da Escola
Municipal de Ensino Fundamental Prof. Roberto Mange, os
freqüentadores da Estação Memória indicam que há avidez de
conhecimento e de comprometimento com a aprendizagem, a
cultura e a leitura, mesmo em locais com condições socioculturais
difíceis e que à primeira vista não se interessariam por livros,
leitura e outros afins. Há crianças da Escola Roberto Mange que
fogem do recreio (!!!) para ir à “Biblioteca Interativa”, como eles
próprios a chamam. O mesmo já ocorreu várias vezes na creche,
com crianças pequenas de 4, 5, 6 anos.
As novas propostas mostram-se, assim, eficazes e
necessárias aos projetos de formação de leitores. Os pressupostos
interacionistas [39] adotados na configuração dos espaços criados
vêm-se mostrando adequados e capazes de quebrar resistências
nas relações leitura e sociedade. Ao se tornar espaço de expressão,
a biblioteca interativa abre espaço para a efetiva democratização e
não apenas para o acesso à cultura. É nesse aspecto que o
cidadão se distingue do consumidor, o leitor se diferencia do ledor.
Se este tem olhos e ouvidos ávidos, aquele tem, além disso, boca e
um desejo urgente de expressão, já que se posiciona, julga,
compromete-se intensamente com o que lê. Diferentemente do
ledor, o leitor não tem vocação para o consumo sígnico. Seu
horizonte é a expressão, a existência cultural, a reintrodução da
vida nos registros aprisionados no papel. Como diz Michel de
Certeau em sua bela metáfora, o leitor é caçador que efetua
saques em campos alheios, tentando assim acalmar sua fome de
sentidos e significações. A errância é seu destino, já que onde
vislumbra novos sentidos lá está ele pronto para um novo saque.
Nesse sentido, as bibliotecas, assim como os demais espaços
de leitura, devem oferecer-se como campo possível às errâncias e
não enquanto territórios inibidores da livre circulação,
propriedades demarcadas, ferreamente vigiadas por pequenas
autoridades e seu zelo desmedido pelas regras. Jamais tentar,
portanto, aprisionar a leitura, eis regra de ouro para os espaços de
leitura que desejarem desenvolver ações positivas na formação de
leitores. A natureza errante destes, em contraposição à natureza
condicionada dos ledores, somente poderá florescer
completamente se encontrar campos abertos, espaços capazes de
permitir as mais belas cavalgadas, os mais impressionantes saltos
a cavaleiros ávidos e espantados com a riqueza da aventura
humana. [40]
6 — ELIANA YUNES

Vista de um ponto
Eliana Yunes — que concorda com Borges e se
orgulha mais das páginas que leu do que das que
escreveu —, é professora de Letras e aprendeu
que elas são mortas se o homem não as vivifica.
Pesquisadora, criadora do PROLER, professora de
Teoria na PUC-Rio, com atuação em
universidades públicas de vários Estados, tem
extensa bibliografia teórica e metodológica sobre
leitura. É, também, consultora de organismos
internacionais.

O que mais tenho a dizer sobre a formação do leitor, depois


de ter passado quinze anos vivendo e pesquisando o percurso, de
ter proposto uma teoria e uma pedagogia que, ao que parece,
ainda não foi refutada nem revista e ampliada por pares e ímpares
daqui e d’além mar? Uma e outra correm o país e já estão
recolhidas em teses e dissertações, eximindo-me da obrigação de
concluí-las: elas caminham com os próprios interlocutores. Não,
não se trata de presunção ou arrogância. Trata-se de uma
“evidência invisível” como o claro enigma “drummondiano” que só
conhece quem experimenta. E disto podem dar testemunho
milhares de neoleitores que se vêm constituindo no Brasil, com
todo o rigor teórico mas sem efeitos especiais de intelectualismo;
com toda a metodologia preconizada mas sem os malabarismos
das receitas técnicas, que se [41] tornam obsoletas, tão logo
mudem os contextos e os sujeitos.
Mas, no mesmo dia em que recebi a convite de Paulo Condini
para escrever quatro laudas sobre o tema deste livro e que
vacilava em fazê-lo, chegou-me um correio eletrônico de Maria
Angela Campeio de Melo, com uma mensagem destas que, de
tanto gostar, ela distribuía pela Internet, em fragmento.
Ei-lo:
“O paradoxo de nosso tempo na história é que temos
edifícios mais altos, mas pavios mais curtos; auto-estradas mais
largas, mas pontos de vistas mais estreitos; gastamos mais, mas
temos menos; compramos mais, mas desfrutamos menos,
variedade de cardápios, mas menos nutrição. São dias de duas
fontes de renda, mas de mais divórcios; de residências mais belas,
mas lares quebrados.
“São dias de viagens rápidas, fraldas descartáveis,
moralidade também descartável, ficadas de uma só noite, corpos
acima do peso, e pílulas que fazem de tudo: alegrar, aquietar,
matar.
“É um tempo em que há muito na vitrine e nada no estoque;
um tempo em que a tecnologia pode levar-lhe essas palavras e
você pode escolher entre fazer alguma diferença, ou simplesmente
apertar a tecla Del.” (P. Fabro)
A aproximação meramente casual dos papéis na impressora
ofereceu-me a justificativa e o pretexto. Quem me lê deve estar
pensando o que tem este texto a ver com o que me foi pedido dizer,
em exíguas linhas que pareço desperdiçar. Nesta escrita — sem
sofisticações lingüísticas, coloquial quase, com uma economia de
recursos expressivos, feitos de pontuações antitéticas em
estruturas paralelísticas —, que leio? Para além do dito, o
implícito e o subentendido: uma leitura crítica de mundo.
Para escrever essa leitura — porque ela o é, não sendo
necessário lembrar Paulo Freire — grafando-a em um instantâneo
de frases curtas, o autor/leitor (de mundo) deve ter se debruçado
atentamente sobre a vida dos homens neste final de milênio, com
os valores e expectativas de seu repertório pessoal, recolhidos de
um amplo acervo de memórias atuais sobre a condição humana,
em hora de profundas contradições.
Sabendo que na linguagem os discursos tanto flagram a
natureza [42] dada das coisas em seu recorte cultural, quanto
fazem surgir, nos desvãos do consenso e da linearidade, a palavra
inaugural que surpreende outras versões de mundo, podemos
dizer que um leitor se vai constituindo também por ela. Enquanto
pronuncia-se como um pronome /eu/, sujeito conscientizado de
seu lugar histórico e responsável pelas conseqüências de seu
dizer/pensar/fazer, o leitor alcança uma singularidade própria e
comunicável, passível de ter assinatura.
Ela, a singularidade, se dá como expressão de uma
compreensão súbita que não ignora o contexto, os interlocutores e
suas outras motivações; ela propõe sentido para o vácuo que há
entre o mundo e o anseio de plenitude e transparência do homem,
na visão desse leitor — e se oferece como escrita.
Ela, a linguagem, é denúncia de nossa doença, de nossa
falta, e, ao mesmo tempo, nosso remédio e cura, ponte sobre o
vazio. A leitura singular é resposta e recusa à passividade; leitura
é mais que recepção. O leitor que percebe as fraturas de nossas
práticas quer acusá-las na criação, o que nem sempre se dá sem
conflitos. E lá está a palavra que convida a sair da casca, que
provoca, incita o próprio desejo de ser outro e não o mesmo:
“Galos sozinhos não tecem manhãs.”
Recorrer à literatura realiza isto porque não diz, antes pede a
seu leitor que o diga, que se pronuncie, e, tendo “lido”, escreva.
Isto fez Fabro e faço eu: “fisgo pela palavra, a não palavra”; só se é
escritor porque antes se é leitor. Mais ainda, vejo no texto quantas
observações atentas em marcas da língua, aparecem
singularmente articuladas, reunidas para insinuar a dissonância
que, afinal, expressam — faço a leitura da palavra. Nela,
subitamente o novo, a outra coisa, a terceira margem — e nós,
seus leitores, que nos inscrevemos no texto, apertando a tecla
ENTER: pronto, aqui estamos, parceiros das subjetividades com
que construímos o mundo — não apenas porque endossamos,
rejeitamos ou polimos o texto e as idéias. Mas sobretudo porque,
ouvindo nossa voz no comentário, criamos e sabemos então o que
é ser... humano. [43]
7 — ELIZABETH D’ANGELO SERRA

O direito à leitura literária


Pedagoga, assumiu a Secretaria Geral da
Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil em
1989, e desde 1996 é membro da Comissão
Coordenadora do Programa Nacional de Incentivo
à Leitura da Fundação Biblioteca Nacional
(PROLFR).

Os Congressos de Leitura — COLE, promovidos pela


Associação de Leitura do Brasil — ALB, reúnem, de dois em dois
anos, um número cada vez maior de pessoas vindas de todas as
regiões do País que esperam ouvir, falar, conversar, aprender,
trocar experiências e refletir sobre questões de leitura e de escrita.
O crescente interesse pelo tema do congresso, como área de
estudo e como prioridade na ação educativa, traz algo novo com
grande força política, além de aprimoramento profissional,
conferindo aos participantes um papel de vanguarda na educação
e na cultura. Trata-se da conscientização da função social da
leitura e da escrita como resultado de um compromisso com a
melhoria da qualidade de vida da população.
Embora esta conscientização ainda seja muitas vezes afetiva
e [45] emocional, é objetiva quanto à meta a alcançar. Essa
determinação merece ser ressaltada pois seu efeito multiplicador é
fortalecido nesses congressos, ampliando, assim, o potencial
revolucionário da leitura na ação individual de cada professor-
leitor. Sabemos que a transformação de nossa realidade
educacional é muito mais complexa que o desejo de transformar.
Mas é o desejo e a paixão que impulsionam o início de uma
possível mudança.
Entendemos a formação do leitor como um processo
histórico, dinâmico e dialético, de reconhecimento de signos
escritos, pertencentes a uma determinada estrutura lógica, cujos
significados somente se expandem e se multiplicam através de
uma alimentação permanente e variada de textos escritos, e de
entornos e contextos culturais motivadores da leitura, processo
onde, apesar de silenciosa, se trava uma disputa de poderes. A
ausência de bibliotecas públicas modernas no País, com bons
acervos e bibliotecários preparados para atender à necessidade de
leitura e de informação da população, é a expressão dessa disputa
como reflexo da concentração de poder sobre o conhecimento.
Os programas de alfabetização de adultos, por exemplo, para
abrir de fato a eles as portas do mundo da escrita, não deveriam
ficar restritos aos bancos escolares, mas acontecer nas Bibliotecas
Públicas. Somente através delas a emoção de ler pela primeira vez
poderá ser alimentada, da mesma forma como fazem aqueles que
já são leitores porque podem comprar livros ou freqüentar
bibliotecas. Não basta ensinar um adulto a ler. É necessário
garantir-lhe o direito à convivência com livros, revistas e jornais,
para que seja um leitor. As crianças e jovens brasileiros cujas
famílias também não podem formar suas bibliotecas particulares
devem, desde cedo, conviver com a leitura e os livros nas
bibliotecas das escolas para se familiarizarem com o espaço e,
quando adultos, irem ao encontro delas com naturalidade porque
conhecem a importância social dos seus serviços.
Espanta-nos o silêncio sobre a importância social das
Bibliotecas Públicas por parte dos intelectuais. Ao reivindicarem
igualdade de oportunidades na educação ou no acesso à cultura,
raramente falam das funções da Biblioteca Pública para a
democratização permanente do conhecimento. A omissão dos
intelectuais é grave e reflete uma visão [46] elitista e egoísta, pois
parecem esquecer suas próprias histórias de leitura. Sem livros
não é possível ser leitor.
A escola desempenha a função da educação formal, contudo
é a Biblioteca Pública a instituição do conhecimento, que está
aberta aos interesses das pessoas por toda a vida, e é através dela
que a maioria da população tem condições materiais para se
formar leitora. O pré-requisito para escritores, criadores, artistas,
cientistas e mesmo jornalistas para exercerem suas funções é ser
leitor. Também têm que ser leitores os que podem desfrutar
plenamente das artes e das ciências para apreciá-las, estudá-las
ou reinventá-las. Isto é uma forma de poder. A leitura que os une
e forma a base cultural que os qualifica não é a leitura técnica,
mas a literária.
A formação de leitores tem sido, assim, fruto de uma
situação histórica, determinada por condições econômicas,
emocionais e culturais. O poder abstrato da leitura literária
sempre esteve ligado a um poder concreto que é o econômico.
Contraditoriamente, os livros são produtos comerciais, o que os
coloca numa relação de produção que, por sua vez, é o que
possibilita a sua multiplicação e conseqüente deselitização.
A leitura apresentada com uma função social maior do que o
reconhecimento do código escrito é uma conquista recente. Com o
advento da industrialização, nos anos 20, o mercado exigiu uma
mão-de-obra que soubesse reconhecer as letras e os números. A
sofisticação desse mercado passou a exigir, mais recentemente,
trabalhadores com maior capacidade para apreender e absorver
tecnologias complexas que exigem leitura de textos mais longos,
redação de relatórios, manuais e conhecimento de inglês. Outro
aspecto é a mobilidade das classes sociais brasileiras na busca de
melhor posição na pirâmide social, um dos efeitos do processo de
democratização. A escolaridade é considerada, por grupos sociais
mais pobres, como fator decisivo para ampliar as suas chances de
trabalho e, conseqüentemente, facilitadora da ascensão social. E
boa escolaridade é sinônimo de uma boa habilidade de leitura!
Nos últimos anos a escola pública brasileira tem buscado
melhorar as suas condições de trabalho, discutindo o seu papel
social e valorizando a sua função como entrada principal, para a
maioria de crianças e jovens, no mundo da escrita. A compra de
livros de literatura pelo Governo [47] Federal vem crescendo e
ganhando espaço importante nas escolas. A publicação dos
Parâmetros Curriculares Nacionais e dos guias críticos dos Livros
Didáticos, a criação do Programa Nacional Biblioteca na Escola, o
movimento de valorização salarial do professor, a avaliação
nacional da qualidade dos vários níveis de ensino, a introdução de
televisões e computadores no espaço da escola estão colocando,
finalmente, a educação fundamental como prioridade nacional.
O Ministério da Cultura, com os programas “Uma Biblioteca
por Município” e o Programa Nacional de Incentivo à Leitura —
PROLER, que agem de maneira integrada, tem divulgado e
fortalecido a relação entre a leitura e as bibliotecas. Como
resultado, estados e municípios demonstram interesse pelo
assunto através da demanda por bibliotecas, situação inexistente
até 3 anos atrás.
Para formar leitores não basta, portanto, ensinar a ler, como
fez a escola da maioria da população durante muito tempo e que
hoje, por ação da sociedade, dos professores e dos governos,
começa a mudar. Alfabetizar é uma tarefa simples de ser realizada
quando há uma decisão política da sociedade e do governo.
Mas não basta alfabetizar para formar leitores. O Mobral nos
ensinou isso e se o programa Alfabetização Solidária não criar as
condições, para os seus alfabetizados, de acesso permanente ao
livro, o processo de leiturização não ocorrerá por falta de uso da
habilidade adquirida. É o chamado iletrismo. É preciso, portanto,
criar uma estratégia integrada que contemple:
1. oportunidades de contato com os textos de qualidade
através de muitas, muitas bibliotecas, escolares e públicas,
incentivando, com apoio da mídia — televisão, rádio, jornal —, a
população brasileira a freqüentar bibliotecas, como direito do
cidadão, criando espaço para o desenvolvimento de uma cultura
de bibliotecas;
2. valorizar socialmente a leitura e a escrita informando
sobre a sua importância e ampla dimensão social, desvelando a
sua presença em produtos de cultura de massa onde não é
percebida, como na criação das telenovelas ou na atuação de
artistas famosos através da TV, teatro, cinema, música, a fim de
torná-las — a leitura e a escrita — desejáveis e necessárias à vida;
[48]
3. investir maciçamente na formação leitora e escritora dos
professores, principalmente os do ensino fundamental, colocando
o tema da leitura e da escrita como básico na formação do
magistério. É necessário que o professor resgate a sua identidade
como uma identidade leitora.
No Seminário que a Fundação Nacional do Livro Infantil e
Juvenil-FNLIJ organiza e coordena neste 12o COLE, o tema da
formação do leitor se une à reflexão sobre os projetos da sociedade
que nós adultos, queiramos ou não, deixamos registrados através
das leituras dos livros que oferecemos às crianças e jovens. A
partir desse foco propusemos a reflexão sobre três pontos
estruturais na formação do indivíduo — ética, estética e afeto —
que servem de alicerce para os sentimentos de liberdade,
solidariedade e para os processos de criação.
Ao escolhermos o livro de literatura como representação
dessa interferência, entendemos que, como já foi dito, a leitura
literária contribui fortemente para a formação integral da pessoa.
Estabelecendo o livro, a leitura, a escrita e a ilustração como
pontos de contato entre crianças, jovens e adultos, queremos dizer
que formar ou não leitores é responsabilidade de todos os adultos
leitores onde quer que eles estejam ou em que função trabalhem,
numa demonstração prática, e não só teórica, sobre o que é
partilhar bens culturais.
O leitor em potencial é único e, por isso, só pode ser formado
um a um. Não se formam leitores em série. E só um leitor forma
um leitor. Ler no livro o texto literário para o outro, criança, jovem
ou adulto, partilhando a emoção de cada palavra, através da voz e
do movimento, desperta o interesse pela leitura e demonstra afeto
e atenção, explicitando a forte relação entre literatura e emoção,
entre um leitor e outro leitor.
Na última Feira de Livros para crianças e jovens, de
Bolonha, em abril de 99, tivemos a oportunidade de ouvir e
conhecer Daniel Pennac, professor francês e escritor, durante uma
palestra para professores italianos promovida por sua editora, na
Itália, sob o título: o Direito de Ler. Em seu livro Como um romance
Pennac defende uma pedagogia de leitura, através da leitura
partilhada em voz alta.
No entanto, sua principal mensagem para os professores foi
que esquecessem as “mensagens”, não formulassem perguntas
sobre um texto [49] literário dando a oportunidade ao aluno de
perguntar, falar, conversar o que quiser, pois a literatura é
provocadora do pensamento. Disse, também, que o professor deve
controlar-se, reprimir sua ansiedade e acreditar no potencial da
criança e da literatura, dando ouvidos ao pequeno leitor.
Ao terminar a palestra, Pennac leu um texto que criou para
o evento cujo título é o nome do seu novo livro: Excelentíssimas
crianças, não publicado no Brasil, e que transcrevo para vocês
encerrando o nosso “ponto de vista sobre a formação do leitor”.

Excelentíssimas crianças
Se eu fosse vocês, a primeira coisa que pediria à professora
ao entrar na sala de aula, pela manhã, seria:
“Professora, leia uma história para nós.”
Não existe melhor maneira de começar um dia de trabalho!
E no final do dia, quando a noite chega, meu pedido ao adulto
mais próximo seria:
“Por favor, conte uma história para mim.”
Não existe melhor maneira para escorregar nos “lençóis da
noite.”
Mais tarde, quando vocês já forem grandes, lerão para outras
crianças aquelas mesmas histórias.
Desde que o mundo é mundo e que as crianças crescem,
todas estas histórias escritas e lidas têm um nome muito bonito:
literatura.

Bibliografia;
— LAJOLO, Marisa & ZILBERMAN, Regina. A formação da
leitura no Brasil. São Paulo: Ática, 1996.
— LEITE, Paulo Moreira & DE MARI, Juliana. Andando para
cima. Revista Veja. São Paulo: Abril (1.602), 68-71, jun. 1999 [50]
8 — ELZA LUCIA DUFRAYER
DE MEDEIROS

Não tenho um caminho novo.


O que tenho de novo é o jeito de caminhar.
Thiago de Mello
Carioca, professora, assistente social e pedagoga.
Membro da Equipe pedagógica do Programa Leia
Brasil desde março de 1995, atualmente
coordena a Assessoria Pedagógica dos seis
estados em que o programa se faz presente.

Contos, poesias, músicas, reportagens, retratos, “causos”,


receitas, ilustrações, pinturas, esculturas, histórias contadas,
romances, novelas, programas de TV, filmes de curta e longa
metragem, desenhos animados, quadrinhos, livros de imagem,
propagandas... Oferecer numa reunião descontraída um banquete
de leituras, sem “pré-conceito”, sem o estigma de “boa” ou “má”
literatura...
Para isso, incentivar a procura de um lugar agradável onde
todos se sintam à vontade — longe dos ritos pedagógicos — um
lugar onde não se fale em planejar, avaliar, objetivar, etc. De
preferência, um local onde os encontros não sejam habituais: a
biblioteca, o refeitório, um canto do pátio ou embaixo de uma
árvore no quintal.
Que esses encontros aconteçam de quinze em quinze dias,
uma [51] vez por mês, aos sábados, no horário complementar. Não
importa. O importante é que sejam sistemáticos, que estabeleçam
uma rotina prazerosa e não se tornem um evento, um tapa-buraco
nas reuniões pedagógicas ou um espaço de reflexão no início de
qualquer atividade.
Que haja um tempo no qual a leitura seja compartilhada, no
qual se possa refletir, discutir, estar contra ou a favor, comentar,
dar e trocar opinião, descobrir e revelar talentos não aflorados ou
desconhecidos por falta de oportunidade. Que possibilite o
conhecimento entre os participantes, quase sempre estranhos,
apesar do convívio de longos anos, e que permita que eles se
identifiquem e se emocionem com as leituras partilhadas com os
colegas.
O suporte técnico e metodológico desses encontros vem
através de oficinas sistemáticas de leitura realizadas por
especialistas, cuja área de excelência deve estar de acordo com
uma temática previamente estabelecida, fio condutor do trabalho e
estímulo à criação de um repertório de leitura.
Contos de fada, viagens e utopias, mitos e monstros, espaços
maravilhosos, viagens interiores, monstruosidades, modelo
feminino, o herói, imagens, os diferentes modos de ver e ler o
mundo foram algumas dessas temáticas, lidas e compartilhadas
com toda uma gama de memórias, vivências, conhecimento do
mundo, experiências, inquietações, evidenciando o trabalho com o
indivíduo ali presente, esperando que essas vivências despertem
no profissional uma nova postura frente às práticas utilizadas no
trabalho com a leitura.
Estas estratégias vêm sendo oferecidas e estimuladas pelo
Leia Brasil ao longo dos seus oito anos de existência, enquanto
programa de leitura, e dos quais participo há cinco anos como
membro da equipe pedagógica. Os relatos referem-se ao trabalho
dirigido aos profissionais de ensino das escolas públicas por ele
atendidas e que constituem a força do programa e o ponto de
partida para a formação do aluno leitor.
Estimulamos, também, o uso e a leitura de diferentes
linguagens através da itinerância de exposições, vídeos educativos
e atividades especiais.
Existem resistências à promoção da leitura. Elas se mostram
nas célebres desculpas, como falta de pessoal disponível para o
trabalho, [52] falta de tempo para ler e na real falta de dinheiro
para comprar livro. A essas situações, respondemos não só com a
presença do caminhão-biblioteca e seu acervo de livros de
literatura, mas também com o tempo conquistado para a leitura
compartilhada.
As respostas à ação do Leia Brasil são muitas: bibliotecas
sendo abertas, salas de leitura inauguradas ou reativadas,
bibliotecas repletas de alunos na hora do recreio, alunos “matando
aula” na biblioteca, hora do chá literário, promoção de café da
manhã da leitura, criação de clubes de trocas de livros, reuniões
para leitura nos finais de semana, grupos formados para realizar
visitas a museus e exposições e para assistir a peças teatrais,
organização de grupos de contadores de histórias, saraus de
poesias, surgimento de escritores e poetas.
O trabalho é de conquista e sensibilização. Ele necessita de
tempo e da crença das instituições de ensino de que o exercício
pleno da leitura contribui para a formação de indivíduos capazes
de realizar uma análise crítica do seu cotidiano, levando-os a uma
participação social mais coerente com a consciência dos seus
direitos e deveres.

Como Fernando Sabino temos


A certeza
de que estamos sempre
começando,
a certeza
de que é preciso continuar,
e a certeza
de que podemos ser interrompidos
antes de continuarmos.

E também, como nos ensina Fernando Sabino, pretendemos


Fazer da interrupção
um caminho novo,
da queda um passo de dança,
do medo uma escada,
do sonho uma ponte,
da procura um encontro. [53]
9 — EZEQUIEL THEODORO DA SILVA

A formação do leitor no Brasil:


o novo/velho desafio
Formado em Língua e Literatura Inglesa pela
PUCSP, Doutor em Psicologia da Educação e
Professor-Adjunto pela UNICAMP. Foi fundador
da Associação de Leitura do Brasil /ALB e
Secretário Municipal de Educação de Campinas.
Membro do Comitê Estratégico do Leia Brasil —
Programa de Leitura da Petrobras.

Ainda que as diferentes motivações para as práticas de


leitura estejam vinculadas a condições super e infra-estruturais
de uma sociedade, não há como negar que a escola, enquanto
instituição encarregada pela formação educacional das novas
gerações, exerce um papel de máxima importância no processo de
preparação de leitores. Nestes termos, pode ser afirmado que a um
ensino de qualidade, atendendo a critérios de excelência, segue-se
a formação de leitores maduros, com competência suficiente para
caminhar livremente pelos múltiplos quadrantes do mundo da
escrita.
No Brasil, a leitura vai mal porque a escola está muito mal,
vivendo carências ambientais e pedagógicas há bastante tempo.
Tais carências, por sinal já reveladas e amplamente conhecidas,
não vêm sendo [55] enfrentadas com o devido grau de seriedade e
responsabilidade pelos governos; o resultado no agora é um
cenário desolador, cuja transformação depende de volumosos
investimentos no sentido de recuperar o “tempo perdido”. Sabe-se,
por exemplo, que a biblioteca escolar é uma estrutura
imprescindível para a produção da leitura e formação do leitor;
entretanto, a sua viabilização concreta sempre fica para depois,
fazendo com que o “provisório” ou, pior, o “inexistente” seja
reproduzido ao longo dos anos. As boas intenções e as grandes
metas, visíveis em todas as políticas de leitura de início de
governo, terminam em pizza e aumentam o tamanho do desafio na
corrente da história.
A contradição maior é esta: o ensino brasileiro é livresco
dentro de uma escola sem livros.1 De fato, a pedagogia que orienta
o trabalho docente nas escolas tem no livro didático o seu
sustentáculo maior, senão exclusivo. A voz e a autoridade do
professor são sublimadas em decorrência de uma tradição que
estabelece a escolha e a adoção de pacotes impressos ou
audiovisuais a partir da mecânica do simples repasse de
informações. Nestes termos, a convivência prazerosa e produtiva
com uma diversidade de obras é, na maior parte das vezes,
substituída por um esquema redutor de leitura e, por isso mesmo,
destruidor das possíveis vontades ou curiosidades dos leitores
durante a fase da escolarização.
No que se refere ao condutor do processo de ensino, o
professor, fala-se em baixa quantidade de leitura. E poderia ser de
outra maneira? A corrosão da dignidade desse profissional,
revelada principalmente por salários vergonhosos, vem
acontecendo no país desde o início da década de 70. A
sobrevivência dos abnegados do magistério depende de múltiplos
empregos e/ou várias funções concomitantes. Não lhes sobra
tempo e muito menos energia para ler. Não há dinheiro para
aquisições freqüentes de livros. Não existem programas regulares
de atualização via leitura e estudo de obras escritas. Dessa forma,
ou seja, imerso num oceano de condições adversas, o professor —
esse espectro do “espelho quebrado” — raramente pode dar o seu
testemunho de leitura aos múltiplos grupos de alunos que tem
pela frente. Daí a improvisação, a fragmentação, a rarefação do
ensino da leitura na escola, o que engendra práticas de leitura em
moldes mecanicistas e, no mais das vezes, sem nenhuma
significação para os estudantes. [56]
Quando um desafio social permanece no tempo e se
esclerosa por falta de ações superadoras, ele aumenta em volume
e em potência, tornando a necessidade de base ainda maior. A
“crise da leitura” no seio da sociedade brasileira assinala um
quadro de necessidades diversificadas, que vem se repetindo e se
avolumando há bastante tempo.
As políticas de enfrentamento, visando a minimização e/ou
superação das necessidades da leitura no âmbito das escolas,
revelaram-se, até aqui, totalmente inócuas porque operaram
apenas no nível do discurso, porque foram descontínuas e/ou
porque não receberam verbas suficientes para a sua
implementação. Dessa forma, as velhas tradições relacionadas ao
encaminhamento pedagógico no contexto escolar continuam
inabaladas, configurando um círculo vicioso de difícil combate. O
provisório se eterniza;2 o inexistente se cristaliza ao longo dos
anos.
No quadro das velhas — e perniciosas — tradições deve ser
também colocada a esfera da indústria editorial, de onde nascem
os livros didáticos, privilegiando muito mais os critérios
mercadológicos ou comerciais do que as demandas culturais reais
do mundo educacional. Boa parte das editoras brasileiras fatura
em cima das desgraças escolares, entre elas a ignorância e as
opressões vividas pelos professores. Os sofisticados aparatos para
o jogo contínuo do marketing, os lobbies para pressionar a
aquisição anual de livros pelas agências governamentais, as
manobras exercidas em direção ao livro didático “descartável”, a
“disneylândia pedagógica”, etc... — tudo isso revela uma ação
vesga ou caolha, ainda que extremamente lucrativa, frente a uma
escola com baixa qualidade de ensino. Se os livros didáticos (por si
só) resolvessem as complexas relações do ensino-aprendizagem, o
Brasil teria, sem dúvida, o melhor sistema educacional do mundo.
Triste panorama de contrastes: indústria editorial viçosa dentro de
um terreno escolar bombardeado!
Tão bombardeado, tão carregado de necessidades que se
torna difícil, neste momento, saber por onde começar os projetos e
programas de transformação. Por exemplo, se é verdadeira a
afirmação de que a formação do leitor depende da escolarização do
indivíduo, cabe pensar nos altos contingentes populacionais que
nem sequer chegam às portas da escola, permanecendo na
escuridão do analfabetismo da palavra [57] escrita. Cabe pensar
nos altos índices de evasão e repetência escolar, levando os jovens
a abandonarem a escola. Se é verdadeiro o pressuposto de que a
formação do leitor depende de uma convivência constante com
uma diversidade de obras, cabe pensar na ausência de infra-
estrutura (biblioteca, bibliotecário, sistema regular para o
abastecimento de livros, etc.) nas escolas. Se é verdadeiro o fato de
que a formação do leitor depende de professores-leitores, cabe
pensar na débil dignidade salarial desses profissionais. Cabe
pensar também os aspectos de sua formação e atualização
profissional. E ainda cabe saber quando, afinal, o Ministério da
Educação e o Ministério da Cultura, juntos e unidos, vão começar
um diálogo concreto para traçar diretrizes e estratégias a longo
prazo para contemplar criticamente essa amplitude de problemas.
A leitura vai mal porque a escola está indo muito mal... e a
sociedade está pior ainda: desemprego, dependência,
criminalidade crescente, corrupção, miséria e fome. Nestes
termos, a promoção da leitura, com infra-estrutura coerente, e a
formação de leitores, com pedagogias adequadas, são apenas
grãos de areia dentro de um vasto deserto que aumenta em
expansão a cada ano que passa. O redemoinho da esperança de
alguns continua a varrer esse deserto, porém apenas deslocando a
areia, sem alterações significativas ou duradouras do árido
cenário.
O sofrimento maior, para aqueles que refletem sobre as
práticas de leitura no território nacional, é ter que gritar nesse
deserto. Continuamente. Dolorosamente. E ter consciência, por
exemplo, de que “Pensar a leitura como formação implica pensá-
la como uma atividade que tem a ver com a subjetividade do leitor:
não somente com aquilo que o leitor sabe mas também com aquilo
que ele é. Trata-se de pensar a leitura como algo que nos forma
(ou nos deforma ou nos transforma), como algo que nos constitui
ou nos põe em questão frente àquilo que somos (...) como algo que
tem a ver com aquilo que nos faz ser o que somos.” 3

NOTAS
(1) A expressão “O livro é livresco, mas sem livros” é de João
[58] Wanderley Geraldi, servindo como título do prefácio do meu
livro Elementos de Pedagogia da Leitura (SP: Martins Fontes,
1988, p. IX-XIII). Ele assim a caracteriza: “Sem livros, pratica-se no
Brasil um ensino livresco. (...) o ensino livresco é autoritário,
mistificador da palavra escrita, a que se atribui uma só leitura,
obedecendo cegamente aos referenciais dos autores e reproduzindo
mecanicamente as idéias capitadas nos textos tomados como fins
em si mesmos. A ausência do livro é compensada pelas máquinas
de xerox, pelos mimeógrafos, pelas apostilas e pelos livros
didáticos. Produtos de consumo rápido, disponíveis, descartáveis;
nunca o livro por inteiro porque seria trabalho estudá-lo para extrair
dele o que se busca: não há busca, engolem-se informações pré-
fixadas como conteúdos; não se degustam conquistas, as sopas
pré-silábicas das respostas a repetir não exigem o trabalho de
cortar, mastigar, degustar — a papa está pronta”.

(2) A questão relacionada aos aspectos provisórios (não-


permanentes) para a promoção da leitura nas escolas foi
amplamente discutida por Edson Gabriel Garcia, no livro
Biblioteca Escolar. Estrutura e Funcionamento. Pelo fim do
provisório eterno (RJ: Paulinas, 1991). Luis Augusto Milanesi,
através de vários estudos, também revela as nossas carências de
infra-estrutura para a promoção da leitura em sociedade,
incluindo a escola.

(3) cf. Jorge LARROSA, La Experiência de La Lectura.


Studios sobre Literatura y Formación. Barcelona: Editora
Laertes, 1996, p. 16. [59]
10 — FANNY ABRAMOVICH
Escritora e educadora, formada em Pedagogia
pela USP. Como escritora lançou mais de 40
livros dirigidos a professores, adolescentes e
crianças. Foi crítica de produção cultural para
crianças no Jornal da Tarde. Folha de São Paulo.
Rede Globo, publicando mais de 500 artigos.
Membro do Comitê Estratégico do Leia Brasil —
Programa de Leitura da Petrobras.

A iniciação com as maravilhanças de uma história acontece,


em geral, adentrando pelos ouvidos da criancinha. É a voz da
mãe, do avô, do tio visitante, da primeira professora que chama
sussurrante para a gostosura de se embalar na lindura dum conto
de fadas, num episódio da Bíblia ou na magia duma lenda, dum
poema brincante, na aventura de outra criança parecida com ela...
Se a história for acalentadamente contada o encantamento
envolve abraçante e o gostinho de quero mais e mais... permanece
marcante e marcado.
Mais tarde, é o momento de olhar as histórias seguindo
apenas os desenhos ainda tão distantes do indecifrável texto
escrito. Olhos num vaivém contínuo fissurados nas ilustrações
mágicas, poéticas, desafiantes para decodificar os enigmas
escritos debaixo ou do lado... [61]
Muitas e muitas vezes, estes desenhos são feios, pesados,
sem graça, apertados e socados nas páginas, e a vontade
imperiosa é abandonar rápida e definitivamente aquela feiúra
pouco imaginativa... Mas se atraentes e convidativos chamam pra
gostosura de se debruçar nas histórias visuais e formar
verbalmente a narrativa . Saborear cada página, cada traço, cada
cor, cada detalhe... Ou se tiverem texto que alguém conte, leia
devagarinho e a criança retorna sozinha de novo e de novo, até se
assegurar que conhece aquela coceirenta e divertida historieta. E
até finge que lê!
Chega um momento em que a criança adentra pelas
histórias lidas por ela mesma! Independência exibida. Vitória
absoluta, outra bússola para caminhar pelo mundo! Momentos de
descoberta surpreendente, de mergulho em águas desconhecidas,
de curiosidade em saber como se resolverão as acontecências
anunciadas, de arrepios com a tristezura ou a beleza, de puro
deleite... Ou se a história for fraca, boba, requentada, arrastada,
vive os sentimentos de profunda chateação, de irritação, de
canseira desistente, de decepção com o prometido e não sucedido.
Um pouquinho depois, a parada nas estantes das bibliotecas
da Escola, de casa ou de outras casas onde se lê com alegre
desfrute, da Igreja, do Centro Comunitário, do Caminhão do Leia
Brasil, de onde for... A olhadela nas estantes prometendo
maravilhanças aventurosas ou garantindo o tédio. As dúvidas
diante das possibilidades — pequenas ou grandes — de escolha
dos aparentemente promissores... Com qual livro ficar? Com qual
autor passar as próximas horas, dias, semanas??? Em que gênero
mergulhar??? O que parece mais cutucante, mais
irresistivelmente diferente??? Separações provisórias, perguntas,
pedidos de opiniões de quem já leu, volteios... e escolha. Que pode
ser deleitosa ou provocar um baita dum arrependimento ao virar
páginas e páginas de pura bobeira, de lições ensinantes, de
sermões implicantes, de total falta de humor, sem mistérios
assustadores, sem belezas suspirantes... E ter que esperar o outro
dia de voltar na biblioteca pra escolher melhor escolhido... E ficar
na torcida para encontrar a gostosura, a febricitação, a nova
resposta pra pergunta engasgada, a gargalhada ou a lágrima que
uma história bem escrita traz... E aí se embalar no bem-bom!
Mais tarde, a descoberta das livrarias, dos sebos com
tesouros [62] empoeirados, das feiras de trocas... E ficar horas
fuçando, mexendo, mudando de idéia, separando, fazendo contas
se a grana dá pra tudo aquilo, reagrupando, hesitando até
conseguir escolher o que quer mesmo ler naquele dia, naquela
semana, naquele mês... Pode ser tão bom como ir numa loja de
brinquedos, de videogames, numa papelaria transada, numa
lanchonete apetitosa... Desfrutantemente saboroso! Questão de
quem leva pra passear — parente ou professor — também pensar
em livrarias.
Importante é escolher o lugar pra se ficar com o livro trazido.
Esparramado no chão, deitado na cama, encostado nas
almofadas, apertado na cadeira, balançando na rede. Cada leitor
sabe onde é mais gostoso, mais sossegado, mais abraçante se
largar com as suas páginas cobiçadas ou tratar de ser rápido para
engolir as infinitas páginas obrigadas... e dar uma paradinha pra
pensar no acontecente, na belezura duma frase, na vontade de
copiar uma lindeza no caderno, na decepção com o jeito como
tudo terminou, na brabeza de ter que agüentar aquela chatura
sem fim, em se perguntar se a professora leu mesmo aquele livro
antes de avisar — e sem discussão — que aquela seria a história
daquele bimestre...
O melhor do ler é que é um jogo que se faz sozinho, no
tempo da própria curiosidade, intervalando quando quer, relendo
sem pressa o mais mexente ou incompreensível, voltando atrás,
recomeçando desde o comecinho, pulando parágrafos, copiando
outros, desistindo na metade, prendendo a respiração até chegar
na última linha da última página, adiando prum outro momento,
emprestando pra alguém pra poder trocar as impressões do
provocantemente vivido, passando adiante como presente, relendo
inteirinho.
Leitura é embriaguez, volúpia, fissuração, mergulho vital e
empurrante, queixo caído com o inesperado, surpresa da
descoberta de um jeito de ser que nem sabia que podia se ter,
emoção escorregando pelos poros, suspiros com a poetura... Sem
nenhuma cobrança que não as próprias. Sem fichas pra
responder, sem prova pra checar se cada detalhe desimportante
foi atentamente observado, sem mês determinado para ficar
acompanhado daquele volume e não de outro muito mais cobiçado
e desejado. [63]
Leitura é paixão, é entrega, tem que ser feita com tesão, com
ímpeto, com garra. De quem lê e de quem indica. Com trocas
saboreadas e não com perguntas fechadas e sem espaço pra
opinião própria, pensada, sentida, vivida. Senão, é só pura
obrigação. E aí, como tudo o mais na vida, não vale a pena.
Mesmo. [64]
11 — FRANCISCO WEFFORT

Governo, cultura, leitura e identidade


Francisco Weffort é sociólogo e professor da
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da
Universidade de São Paulo. Foi professor
convidado da Universidade de Stanford, nos
Estados Unidos. Atualmente é o Ministro da
Cultura.

A questão da formação do leitor, bem como dos programas


de leitura em desenvolvimento e os ainda a serem criados — da
perspectiva deste Ministério —, só poderão ser examinados como
parte integrante das políticas públicas voltadas para o setor
cultural, como um todo, tendo em vista as nossas estratégias para
o setor.
Desta forma, como decorrência da determinação do
presidente Fernando Henrique Cardoso no sentido de fortalecer
amplamente todas as atividades culturais, podemos perceber, em
primeiro lugar, um substancial aumento de recursos do Ministério
da Cultura de 1995 a 1998. Ao crescimento do orçamento se deve
somar a extraordinária colaboração, também por determinação
presidencial, das empresas públicas, especialmente as dos
Ministérios da Fazenda, das [65] Comunicações e de Minas e
Energia.
O crescimento, como decorrência do proposto, foi um traço
dominante da cultura brasileira, nos anos 1995-1998. É certo que
embora também tenham sofrido pesados desgastes em inícios dos
anos 90, a difusão do livro e da leitura, o patrimônio, as artes
cênicas, os museus, a construção de novos espaços culturais, o
apoio à cultura popular e ao folclore, nunca foram obrigados a
uma parada tão drástica quanto a do cinema.
Não se pode, porém, deixar de assinalar que as áreas
culturais mencionadas passaram, a partir de 1995, por uma
notável aceleração de ritmo e uma extraordinária ampliação de
escala. É evidente que a administração da cultura tem ainda um
bom pedaço de estrada a caminhar. Mas a caminhada, daqui para
diante, só se fará com êxito por quem for capaz de reconhecer o
quanto se caminhou até aqui. Os anos 1995-1998 foram, neste
sentido, decisivos.
Nos mais diversos setores de atividades, pudemos criar
programas outros sem prejuízo da ampliação dos já existentes.
Um exemplo de programa novo é o das bolsas de estudo, para o
aprimoramento da formação de artistas, no país ou no exterior, já
definido em lei desde 1991, mas que só agora tornou-se realidade.
Até 1995, o Ministério da Cultura não tivera condições de oferecer
nenhuma bolsa, mas em 1997 e 1998 concedeu 86. A estes
programas se junta o de intercâmbio, analisado por Eric
Nepomuceno, que inclui dezenas de visitas de escritores e artistas
ao exterior e centenas de projetos de apoio para apresentações de
grupos brasileiros na América Latina, Estados Unidos e Europa. É
ainda digno de nota o programa das bandas de música, criado em
1976, e que se ampliou consideravelmente nos últimos anos.
Seguindo tradição firmada desde há algum tempo, a da
difusão da leitura, ampliamos o Proler, programa da Fundação
Biblioteca Nacional, e estendemos a outras capitais do país o
Paixão de Ler, inspirado no Fureur de Lire, de origem francesa, e já
aplicado, com êxito, na cidade do Rio de Janeiro. Recém-criado, o
programa Uma Biblioteca em Cada Município atendeu a cerca de
315 municípios de 1996 a 1998.
Um ponto a merecer maior atenção é o da concentração dos
recursos do mecenato, captados nos termos da Lei Federal da
Cultura, na [66] região Sudeste do país, com peso maior no eixo
Rio-São Paulo. Um dos principais objetivos destes recursos tem
sido o de favorecer programas como Leia Brasil, da Petrobras, cuja
eficiência é cada vez mais evidente, tal o número de solicitação de
sua ampliação nos vários estados do país.
É verdade que a tendência à concentração de recursos no
eixo Rio-São Paulo ainda permanece, não obstante os esforços
para ampliar os benefícios para outras regiões, contrariando uma
visível propensão da cultura brasileira a uma diversidade que se
expande para todo o país.
Parte essencial do nosso desenvolvimento, a cultura não
poderia deixar de expressar alguns dos nossos desequilíbrios
sociais e econômicos. Temos, por exemplo, uma grande indústria
do livro e, contudo, um precário sistema de distribuição através de
livrarias. Além disso, temos um livro que, nas livrarias, é ainda
muito caro. Não se pretende dizer que as coisas estejam paradas,
mas ainda falta muito para que se possa falar de um relativo
equilíbrio entre produção, distribuição e preços no setor.
Típico dos nossos desequilíbrios é que o Brasil das grandes
cidades cria novas demandas culturais num ritmo muito mais
rápido do que o da ampliação das nossas pequenas estruturas de
produção e, sobretudo, de distribuição. Em todo caso, nem tudo
são problemas, pois algumas soluções também se apresentam. E a
distribuição de livros, acompanhando a venda de jornais e revistas
do Rio e de São Paulo, mostra que temos na área uma
extraordinária demanda potencial. O Brasil é, de fato, um imenso
mercado para os produtos da cultura, e temos que passar a
enfrentar, na escala necessária, a questão importante de descobrir
os meios de chegar a ele. Assim como, na área do livro, surgiram
as megalivrarias.

Difusão cultural

Num pais de dimensões continentais, os programas de


difusão terão que vir a ocupar um lugar mais relevante, talvez
prioritário, no futuro próximo. Muito se tem feito através do
Proler, programa da Biblioteca Nacional, e das edições e projetos
de circulação de música e de artes cênicas da Funarte, bem como
através da Casa Rui Barbosa, por [67] meio de suas edições e
vínculos com os museus-casas, e da Fundação Palmares, no
campo da tradição afro-brasileira. Muito se tem feito também
através de filmes e vídeos, produzidos pela Funarte e pela
Secretaria do Audiovisual, os quais buscam registrar e difundir
conhecimentos sobre nossos artistas, festas e tradições.
Caminhamos nestes anos, além dos livros, vídeos, filmes, música
e artes cênicas, também na circulação de exposições de artes
plásticas, quase sempre a partir de iniciativas localizadas no eixo
Rio-São Paulo.
A valorização da diversidade cultural diz respeito tanto ao
reconhecimento das faces da nossa identidade quanto à critica
das nossas desigualdades sociais e regionais. Já observou o
presidente Fernando Henrique Cardoso, falando da economia, que
se já não somos um país subdesenvolvido, continuamos a ser um
pais socialmente injusto. Algo de semelhante se pode dizer da
cultura, generosamente diversa e abrangente, contrastando com
uma estrutura social muitas vezes desigual e excludente. Nestas
circunstâncias, a capacidade da nossa cultura, fundamentalmente
a leitura, de incluir a todos, qualquer que seja a sua origem,
região ou condição social, é um trunfo decisivo do processo de
consolidação, entre nós, de uma cidadania democrática.
Muitos brasileiros se reconhecem como brasileiros — e,
neste sentido, iguais no plano da cultura —, antes que se
pudessem reconhecer como iguais no plano da cidadania política.
É que nós nos formamos como uma comunidade cultural antes de
sermos uma democracia política. Deste modo, a difusão cultural,
além dos caminhos que abre ao reconhecimento da nossa
identidade como nação, vale também para reforçar os caminhos
do nosso processo de democratização.
Assim como não pode ser vista à parte da democratização
política, a leitura, verdadeiro passaporte para a fruição cultural,
não pode ser vista também à parte do nosso desenvolvimento
econômico. No governo Fernando Henrique Cardoso, os recursos
que o Estado lhe tem dedicado, como de resto a toda a cultura,
têm que ser entendidos menos como gasto e mais como
investimento. Somados os recursos públicos das esferas federal,
estadual e municipal, eles são apenas uma pequena parcela —
cerca de 10% — dos recursos globais do setor, estimados em cerca
de 8 bilhões de reais em 1998. Estes recursos públicos são
contudo [68] essenciais porque atuam como fermento para fazer o
bolo crescer.
A finalidade da leitura, neste sentido, como de resto o da
cultura, não é o mercado, mas a formação plena da identidade das
pessoas e o enriquecimento da sensibilidade humana. Ela vale em
si mesma. Eis um princípio nunca esquecido no governo Fernando
Henrique. E isso quer dizer, entre outras coisas, que o acesso
pleno à leitura é, como à educação, um dever do Estado. Há que
reconhecer, apesar disso e talvez por isso mesmo, que nós somos
um amplo mercado consumidor de cultura, e que a cultura que
necessitarmos e que não pudermos produzir nós teremos que
importar. O cinema é o exemplo mais evidente disso. Outro
exemplo é o do turismo, que, em boa parte, se apóia em razões
culturais, e que leva quantidades de dinheiro brasileiro para o
exterior.
Como disse Fernando Henrique Cardoso, estamos em uma
época de afirmação da nossa auto-estima como nação. Afirmação
diante de nós mesmos e diante do mundo. Não temos por que
temer o mundo moderno, cada vez mais globalizado, com as suas
fronteiras sempre mais abertas. Também nós vamos caminhando
na rota da modernização, parte que somos de um povo dotado de
enorme vitalidade cultural e que vai conquistando, passo a passo,
os sentidos da sua identidade. [69]
12 — GUIOMAR DE GRAMMONT
Escritora, professora de Filosofia no Instituto de
Filosofia Artes e Cultura da Universidade Federal
de Ouro Preto. Publicou o livro Corpo e Sangue
pela Editora DesEscritos em Belo
Horizonte/MG,199I. Prêmio Casa de las Americas
em 1993 com o livro de contos O fruto de Vosso
Ventre, publicado em Cuba. Atualmente cursa
doutorado na USP.

A pensar a fundo na questão, eu diria que ler devia ser


proibido. Afinal de contas, ler faz muito mal às pessoas : acorda os
homens para realidades impossíveis, tornando-os incapazes de
suportar o mundo insosso e ordinário em que vivem. A leitura
induz à loucura, desloca o homem do humilde lugar que lhe fora
destinado no corpo social. Não me deixam mentir os exemplos de
Don Quixote e Madamme Bovary. O primeiro, coitado, de tanto ler
aventuras de cavalheiros que jamais existiram, meteu-se pelo
mundo afora, a crer-se capaz de reformar o mundo, quilha de
ossos que mal sustinha a si e ao pobre Rocinante. Quanto à pobre
Emma Bovary, tornou-se esposa inútil para fofocas e bordados,
perdendo-se em delírios sobre bailes e amores cortesãos.
Ler realmente não faz bem. A criança que lê pode se tornar
um [71] adulto perigoso, inconformado com os problemas do
mundo, induzido a crer que tudo pode ser de outra forma. Afinal
de contas, a leitura desenvolve um poder incontrolável. Liberta o
homem excessivamente. Sem a leitura, ele morreria feliz,
ignorante dos grilhões que o encerram. Sem a leitura, ainda,
estaria mais afeito à realidade quotidiana, se dedicaria ao trabalho
com afinco, sem procurar enriquecê-lo com cabriolas da
imaginação.
Sem ler, o homem jamais saberia a extensão do prazer. Não
experimentaria nunca o sumo Bem de Aristóteles : o conhecer.
Mas pra que conhecer se, na maior parte dos casos, o que
necessita é apenas executar ordens? Se o que deve, enfim, é fazer
o que dele esperam e nada mais?
Ler pode provocar o inesperado. Pode fazer com que o
homem crie atalhos para caminhos que devem necessariamente
ser longos. Ler pode gerar a invenção. Pode estimular a
imaginação de forma a levar o ser humano além do que lhe é
devido.
Além disso, os livros estimulam o sonho, a imaginação, a
fantasia. Nos transportam a paraísos misteriosos, nos fazem
enxergar unicórnios azuis e palácios de cristal. Nos fazem
acreditar que a vida é mais do que um punhado de pó em
movimento. Que há algo a descobrir. Há horizontes para além das
montanhas, há estrelas por trás das nuvens. Estrelas jamais
percebidas.
É preciso desconfiar desse pendor para o absurdo que nos
impede de aceitar nossas realidades cruas.
Não, não dêem mais livros às escolas. Pais, não leiam para
os seus filhos, podem levá-los a desenvolver esse gosto pela
aventura e pela descoberta que fez do homem um animal
diferente. Antes estivesse ainda a passear de quatro patas, sem
noção de progresso e civilização, mas tampouco sem conhecer
guerras, destruição, violência. Professores, não contem histórias,
podem estimular uma curiosidade indesejável em seres que a vida
destinou para a repetição e para o trabalho duro.
Ler pode ser um problema, pode gerar seres humanos
conscientes demais dos seus direitos políticos, em um mundo
administrado, onde ser livre não passa de uma ficção sem
nenhuma verossimilhança. Seria impossível controlar e organizar
a sociedade se todos os seres humanos [72] soubessem o que
desejam. Se todos se pusessem a articular bem suas demandas, a
fincar sua posição no mundo, a fazer dos discursos os
instrumentos de conquista da sua liberdade.
O mundo já vai por um bom caminho. Cada vez mais as
pessoas lêem por razões utilitárias: para compreender formulários,
contratos, bulas de remédio, projetos, manuais, etc. Observem as
filas, um dos pequenos cancros da civilização contemporânea.
Bastaria um livro para que todos se vissem magicamente
transportados para outras dimensões, menos incômodas. É esse o
tapete mágico, o pó de pirlimpimpim, a máquina do tempo. Para o
homem que lê, não há fronteiras, não há correntes, prisões
tampouco. O que pode ser mais subversivo do que a leitura ?
É preciso compreender que ler para se enriquecer
culturalmente ou para se divertir deve ser um privilégio concedido
apenas a alguns, Jamais àqueles que desenvolvem trabalhos
práticos ou manuais. Seja em filas, em metrôs, ou no silêncio da
alcova... Ler deve ser coisa rara, não pra qualquer um. Afinal de
contas, a leitura é um poder e o poder é para poucos. Para
obedecer, não é preciso enxergar, o silêncio é a linguagem da
submissão. Para executar ordens, a palavra é inútil.
Além disso, a leitura promove a comunicação de dores,
alegrias, tantos outros sentimentos. A leitura é obscena. Expõe o
íntimo, torna coletivo o individual e público, o secreto, o próprio. A
leitura ameaça os indivíduos, porque os faz identificar sua história
a outras histórias. Torna-os capazes de compreender e aceitar o
mundo do Outro. Sim, a leitura devia ser proibida.
Ler pode tornar o homem perigosamente humano. [73]
13 — GUIOMAR NAMO DE MELLO

A escola do futuro: uma ponte de


significados sobre a estrada da informação
Guiomar Namo de Mello é Pedagoga, com
Especialização em Orientação Educacional,
Mestra em Psicologia da Educação, Doutora em
Educação e Pós-Doutorado em Sistemas
Comparados de Educação. Atualmente é Membro
do Conselho Nacional de Educação e Diretora
Executiva da Fundação Victor Civita.

Nas sociedades contemporâneas a informação e o


conhecimento estão se tornando disponíveis a um número cada
vez maior e mais diversificado de pessoas. A internet, rede mundial
de informação que torna o hipertexto acessível a um simples toque
dos dedos, é a expressão tecnologicamente mais avançada de um
processo que há mais de 50 anos vem se instalando na nossa
cultura.
Uma consulta à banca de revistas e jornais, existente em
cada esquina das grandes cidades, mostra que o hipertexto há
muito faz parte do cotidiano urbano. Aí se encontra um mundo às
vezes caótico mas sempre divertido de acesso à informação:
dicionários e jogos instrutivos; obras que vão da jardinagem à
filosofia, passando por esportes, decorações, atualidades políticas
e científicas, saúde, ecologia e outras. [75] Todas a um custo
bastante aproximado...
Acrescente-se a isso o enorme poder informativo e formativo
da televisão e a possibilidade recente de interação entre os
diferentes meios de comunicação, para dimensionar o caminho
aberto pela “auto-estrada” da informação que só tenderá a
ampliar-se e a aumentar o número dos que nela navegam.
O avanço da tecnologia da informação vai propiciar uma
mudança no paradigma da produção e divulgação do
conhecimento. Não é fácil desenhar com precisão o cenário do
futuro, mas uma coisa parece clara: o conhecimento deixará de
ser monopólio das instituições que tradicionalmente têm sido suas
zelosas depositárias. Vale a pena portanto fazer um esforço para
(re)significar o papel do professor e da escola nesse futuro
próximo.
É preciso reconhecer que, para muitas crianças que estão
nascendo neste final de milênio, a escola não será a única e talvez
nem a mais legítima fonte de informações. Conseqüentemente o
papel do professor sofrerá mudanças profundas. A maioria dos
professores ainda opera como guardiã de conhecimentos aos quais
dá acesso segundo um ordenamento pré-definido e de acordo com
metodologias que considera adequadas. No futuro próximo, no
entanto, ele terá que assumir também a função de incorporar e
significar, no contexto do ensino, conhecimentos que vêm de
diferentes fontes externas à escola, quase sempre numa seqüência
e lógica que escaparão a seu controle.
Se quiser que seus alunos gostem de aprender, o professor
não pode continuar isolado em sua disciplina. Além de
especialista em determinada área do conhecimento, ele terá de
desenvolver habilidades para identificar as relações de sua
especialidade com outras áreas de conhecimento.
Essa mudança de papéis vai muito além da mudança na
posição física do professor em sala de aula — na frente ou junto
aos alunos. Ela atinge o núcleo mesmo da missão da escola:
reconhecer que não é possível transmitir conhecimentos com a
mesma velocidade e atratividade da multimídia. E privilegiar a
constituição de um quadro de referência científico, cultural e ético
para selecionar, organizar, dar sentido e levar à prática a
informação e o conhecimento. [76]
Construir sentidos com base na informação e no
conhecimento poderá ser a tarefa mais nobre da escola na
sociedade da informação: se a auto-estrada da informação estará
cada vez mais presente na sociedade, às instituições educativas
caberá construir sobre essa auto-estrada uma ponte de
significados que permita aos alunos navegar sem serem
atropelados pela quantidade e diversidade de informações que já
estão congestionando a nossa visão de mundo.
Que outra coisa propunham mestres como Dewey, Piaget,
Vigotsky ou Freinet, para citar apenas alguns, apesar de suas
diferenças? Esse é, portanto, um sonho antigo dos educadores,
mas até hoje não conseguimos que a educação escolar, como um
todo, vá além da transmissão de conhecimentos. Será que a
tecnologia da informação poderá ser o elemento que faltava?
A resposta a essas perguntas dependerá de enfrentarmos,
entre outros desafios, o de (re)significar os instrumentos do
trabalho pedagógico: currículos, métodos e programas de ensino e
perfis de competência dos professores.
A construção de sentidos na escola terá que ser cada vez
mais interdisciplinar ou mesmo transdisciplinar. O conhecimento
contemporâneo está ultrapassando as fronteiras rígidas do
paradigma científico do século passado. A estrutura do hipertexto
expressa bem essa noção: nele, muitos links podem ser
estabelecidos entre fatos de natureza diferente, conceitos que os
representam e linguagens que dão suporte à representação
conceitual. Projetos de investigação, de produção ou intervenção
real ou simulada na realidade, quase sempre considerados
“extracurriculares”, terão que ser (re)significados como mais do
que nunca “curriculares”.
Para produzirem conhecimentos significativos as situações
de aprendizagem precisam induzir o aluno a referir o aprendido na
escola ao vivido e observado de modo espontâneo. Daí a
necessidade da abertura do currículo para a experiência do aluno
e o conhecimento ao qual ele tem acesso fora do contexto escolar.
Motivar o aluno a aprender requer superar as limitações da
transposição didática: essa é uma regra pedagógica antiga. Mas
daqui em diante essa tarefa terá que levar em conta que a
experiência dos alunos estará cada vez mais carregada de [77]
informações e conhecimentos que não consideram fronteiras
nacionais, culturais ou etárias.
Acessar e adquirir conhecimento pode ser um ato solitário. A
construção de sentidos implica necessariamente na interação pela
qual eles são negociados com o outro: familiares, amigos,
professores ou interlocutores anônimos dos textos e dos meios de
comunicação. Toda negociação de significados envolve valores.
Mas é da educação escolar que a sociedade cobra os valores que
considera positivos para as novas gerações. Por essa razão,
mesmo interativas e formadoras de mentalidades, as tecnologias
da informação e da comunicação não dispensam a educação
escolar. Desta se espera que prepare os alunos a renegociar os
significados veiculados pela mídia por meio da análise crítica.
Os conteúdos de ensino terão que ser (re)significados como
meios e não mais como fins em si mesmos. Deverão visar menos a
memorização e mais as capacidades necessárias ao exercício de
dar sentido ao mundo: analisar, inferir, prever, resolver
problemas, continuar a aprender, adaptar-se às mudanças,
trabalhar em equipe, intervir solidariamente na realidade. Não é
por acaso que tais competências são as que agregam maior valor
ao trabalho e ao exercício da cidadania nas sociedades
contemporâneas: a organização dos processos produtivos e das
práticas sociais também está sendo afetada pela revolução da
informação.
Finalmente é necessário reafirmar a importância da
educação escolar na constituição de significados deliberados. Ela
parte da experiência espontânea para chegar à sistematização e
abstração, que libertam do espontaneísmo. Significados
deliberados identificam o objeto do conhecimento, sabem como se
aprende, atribuem valores à aplicação do saber e estimulam sua
expressão. Só eles têm a universalidade dos significados
socialmente reconhecidos como verdadeiros: as ciências, os
valores da diversidade, igualdade, solidariedade e
responsabilidade e a importância das linguagens que os
expressam.
Esses objetivos — base da identidade ética e não excludente
— são perseguidos pela educação escolar desde que Sócrates
associou a sabedoria à virtude. A incapacidade de alcançá-los
legitimou condenações ferozes da escola e dos educadores. A
tecnologia da informação pode [78] ser uma nova oportunidade de
cumprirmos com êxito a missão que nos legaram os grandes
pedagogos do passado, expressando o anseio social de uma vida
melhor e mais feliz. [79]
14 — IARA GLÓRIA AREIAS PRADO
Para formar leitores na escola
Iara Prado é Licenciada em História pela
Universidade de São Paulo, com Pós-graduação
na área de História Social. Professora
universitária e do Ensino Fundamental, e
Membro Efetivo do Conselho Estadual de
Educação do Estado de São Paulo, Membro
Efetivo do Conselho da Condição Feminina de
São Paulo e Secretária de Educação Fundamental
do Ministério da Educação.

A história escolar vem mostrando que, não apenas no Brasil


mas em diferentes países do mundo, o acesso ao ensino da língua
— alfabetização e estudos posteriores — não tem garantido a
competência dos alunos para utilizar adequadamente a escrita. Há
um enorme contingente de pessoas que tecnicamente aprendeu a
ler e escrever na escola e não consegue fazer uso da linguagem em
situação de leitura e escrita — são os chamados analfabetos
funcionais: pessoas que, em decorrência do tipo de ensino que
tiveram, não se tornaram capazes de compreender o que lêem e de
se comunicar por meio da escrita.
Porém, alguns dados numéricos permitem analisar a
dramática situação brasileira no que se refere ao acesso a livros, a
despeito de todas as estimativas de que os níveis de leitura vêm se
elevando. Segundo a [81] Câmara Brasileira do Livro, o país
consome 2,3 livros per capita ao ano, sendo que 60% dos livros
vendidos são escolares — didáticos e paradidáticos — e que parte
considerável é distribuída gratuitamente pelo governo nas escolas.
E o Ministério da Cultura informa que a maior parte do material
de leitura adquirido espontaneamente no país é comprado em
bancas de jornais e revistas e que as bancas vendem mais livros
do que as livrarias. Informa também que há apenas 4.000
bibliotecas públicas no Brasil, aproximadamente uma para 40.000
habitantes.
E, somando-se a outros tantos, disse o escritor Alberto
Manguei, em entrevista recente a uma revista brasileira: “Ler é
poder.” A leitura dá poder porque é um meio para compreender o
mundo e essa compreensão é uma condição de cidadania— além
do que, lendo, podemos nos tornar, cada vez mais, também
cidadãos da cultura escrita.
Portanto, os desafios que se colocam para a escola — espaço
privilegiado de desenvolvimento da competência para ler e escrever
— não são poucos, pois todas as evidências têm mostrado que
essa competência não depende propriamente do acesso a certas
práticas convencionais de ensino da língua, mas a experiências
significativas de utilização da escrita no contexto escolar, tanto em
situação de leitura como de produção de textos.
O Ministério da Educação, assumindo seu papel de indutor
de políticas, vem produzindo documentos e incentivando projetos
que têm na formação de leitores uma das finalidades principais.
Os Parâmetros Curriculares Nacionais, o Referencial
Curricular Nacional de Educação Infantil, a Proposta Curricular
para a Educação de Jovens e Adultos, os Referenciais para a
Formação de Professores são documentos orientadores da
educação escolar e da formação dos docentes brasileiros, que
assumem a defesa da formação de leitores como uma prioridade e
sugerem possibilidades de trabalho pedagógico para incentivar a
leitura e desenvolver a capacidade dos alunos de fazer uso real da
escrita.
O “Programa Nacional Biblioteca na Escola” — que distribui
livros de literatura, obras de referência e materiais de apoio a
alunos e professores de escolas públicas de ensino fundamental —
e o projeto “Pró-Leitura na Formação do Professor” — que integra
o Programa de [82] Cooperação Educacional Brasil-França e é
resultado da iniciativa conjunta do MEC e da Embaixada da
França — são ações complementares com a mesma finalidade.
A tarefa é, cada vez mais, criar condições favoráveis para o
desenvolvimento de propostas eficazes de formação de verdadeiros
usuários da linguagem, o que pressupõe trabalhar com os
diferentes textos, tanto em situações de produção como de
compreensão. No que se refere à leitura, isso implica um amplo
trabalho não apenas com livros, mas com todos os materiais em
que a palavra escrita é ferramenta para o acesso à informação, ao
entretenimento, à compreensão crítica do mundo...
Principalmente quando os alunos não têm contato
sistemático com bons materiais de leitura e com adultos leitores,
quando não participam de práticas onde ler é indispensável, a
escola deve oferecer materiais de qualidade, modelos de leitores e
práticas de leitura eficazes. Essa pode ser a única oportunidade de
esses alunos interagirem significativamente com textos cuja
finalidade não seja apenas a resolução de pequenos problemas do
cotidiano. É preciso, portanto, oferecer-lhes os textos do mundo:
não se formam bons leitores solicitando aos alunos que leiam
apenas durante as atividades na sala de aula, apenas no livro
didático, apenas porque o professor pede. Sem um trabalho com a
diversidade textual, certamente não é possível formar leitores
competentes, ou seja, pessoas que, por iniciativa própria, são
capazes de selecionar, dentre os textos que circulam socialmente,
aqueles que podem atender às suas necessidades e que são
capazes de utilizar procedimentos adequados para ler.
Hoje se sabe que o desenvolvimento da capacidade de ler
depende, em grande medida, do sentido que a leitura tem para as
pessoas: do ponto de vista de quem lê, a escrita deve responder a
objetivos de realização imediata. É assim que acontece fora da
escola: lemos para solucionar problemas práticos, para nos
informar, para nos divertir, para estudar, para escrever ou revisar
o próprio texto. Certos textos lemos por partes, buscando a
informação necessária, outros exaustivamente e várias vezes,
outros rapidamente, outros vagarosamente. Às vezes controlamos
atentamente a compreensão, voltando atrás para checar nosso
[83] entendimento; outras seguimos adiante sem dificuldade,
entregues apenas ao prazer de ler; outras realizamos um grande
esforço intelectual e, a despeito disso, continuamos lendo sem
parar...
Toda criança, jovem e adulto têm direito a essas experiências
de leitura também na escola. Isso requer um trabalho pedagógico,
criteriosamente planejado, não só com a diversidade de textos,
mas com a diversidade de objetivos e formas de ler.
Para tornar os alunos bons leitores, para desenvolver o gosto
e o compromisso com a leitura, a escola terá de mobilizá-los
internamente, pois esse é um aprendizado que requer esforço.
Precisará fazê-los achar que ler é algo interessante e desafiador,
algo que, conquistado plenamente, dará a eles autonomia e
independência. E terá de oferecer condições favoráveis para as
práticas de leitura — que não se restringem apenas aos recursos
materiais disponíveis, pois, na verdade, todas as evidências têm
revelado que o uso que se faz dos livros e demais materiais
escritos é o aspecto mais determinante para a formação de leitores
de fato. [84]
15 — JASON PRADO

Ingenuidade e inconseqüência
Publicitário, jornalista. Professor Convidado da
cadeira de Promoções e Merchandising da Escola
de Comunicação da UFRJ e Diretor Geral do
Programa Leia Brasil — Programa de Leitura da
Petrobras.

Nos primeiros dias do ano de 1992, levamos à Petrobras um


projeto de bibliotecas sobre rodas que, ao nosso ver, atenderia
com desenvoltura às necessidades de relacionamento institucional
daquela empresa com um público especial, constituído por alunos
e professores das escolas públicas da cidade do Rio de Janeiro.
Por pura ingenuidade nós não dimensionamos o que havia
por trás daquela porta que, timidamente, acabávamos de abrir.
O pretexto — ou justificativa — que adotamos para abrir as
escolas às mensagens corporativas da maior empresa brasileira foi
o de ajudar a formar leitores a partir de uma oferta constante e
sistemática de bons livros de literatura, e ele acabou se
configurando numa necessidade tão veemente da rede de ensino
que, hoje, precisamos encontrar justificativas [85] para não
atender, com o que resultou daquele projeto inicial, as centenas
de milhares de escolas de todo o país.
Desde a primeira visita do caminhão colorido à primeira
escola, deu para perceber, pela euforia das crianças, que, pelo
menos em parte, nós tínhamos acertado: o Leia Brasil tinha um
público.
Também por ingenuidade, naquele trabalho embrionário que
resultava de algumas pesquisas sobre a nossa realidade
educacional, sob a ótica da publicidade e da comunicação social,
que era a nossa pauta, imaginávamos que a dita “oferta” de livros
seria o abre-te-sésamo para uma nação de leitores. Por isso o
batizamos com o subtítulo de bibliotecas volantes, centrando toda
a sua conceituação na idéia de um contêiner de livros ambulantes.
Levou algum tempo até que percebêssemos um vazio que se
instalava nas escolas logo após o impacto da chegada do
caminhão: professores que se afastavam para “matar o tempo”
atualizando papos; alunos das primeiras séries do primeiro grau
desfilando livros densos e enormes pelos pátios; bibliotecárias
escolares torcendo o nariz para o projeto invasor... Era o princípio
do caos.
Foi quando despertamos para o fato de que há outros fatores
de grande importância para a formação de leitores do que a
simples possibilidade do contato com o livro.
Com o apoio do Proler — que acabava de ser criado pela
Fundação Biblioteca Nacional — descobrimos que não basta
oferecer livros. Mais ainda, descobrimos que será difícil encontrar
um aluno que leia sem um professor leitor.
Por pura ingenuidade começamos a trabalhar a leitura nas
escolas pelo viés da sedução.
Utilizamos mais de uma centena de técnicas e artifícios para
seduzir alunos e professores para a leitura, e abrimos ao máximo
o significado do termo, dando-lhe a dimensão do universo: quem
lê, constrói uma nova dimensão de significados. Quem lê, viaja
pelo mundo da fantasia.
Fomos em busca de outras parcerias, oferecendo a fome de
nossos alunos em troca da sede atávica das entidades por público
cativo. Sem custo para as partes. [86]
Com isso enriquecemos nosso arsenal de seduções, exibindo
telas de Debret em Alagoas, índios Karajás em São Paulo,
Portinari na Bahia. Levamos gente para aprender História do
Brasil jogando RPG no Museu Histórico Nacional. Promovemos
visitas guiadas aos mais fantásticos espaços culturais da
atualidade, da Academia Brasileira de Letras ao Paço Imperial.
Levamos artistas inimagináveis para escolas de subúrbio. E fomos
todos viver a Aventura do Teatro1.
Paralelamente, iniciamos um trabalho de valorização do
professor, mexendo com sua auto-estima, e provocamos a
libertação das suas identidades aprisionadas.
Coisas que só se faz por má-fé ou ingenuidade.
E por isso fomos inconseqüentes.
Alguns dos nossos alunos e professores começaram a querer
ler.
Alguns gostaram.
Uns tantos, até, passaram a escrever, a contar histórias, a
declamar poemas, a trabalhar com teatro, artes plásticas...
Em algumas das nossas escolas, toda a comunidade —
educadores, alunos, vizinhos, pais, etc. — se reúne uma vez por
semana, durante mais de uma hora, para conversar sobre suas
leituras de filmes, de livros, de músicas, de reformas de fachadas
de prédios que viram pelo meio das ruas. Em suma, do cotidiano.
Nossa inconseqüência gerou uma enorme pressão sobre a
Petrobras, que a cada ano tem aumentado nosso raio de ação e
ampliado significativamente o alcance de nossas propostas.
Hoje, se você está lendo essas linhas em 1999 e for um dia
útil no calendário escolar, aproximadamente 28 mil alunos
estarão visitando nossas 16 bibliotecas volantes, devolvendo e
emprestando livros. Amanhã, outros tantos. E depois de amanhã
também.
E assim sucessivamente, até que nossos 610 mil
usuários/mês completem um ciclo de visitas. Depois, começa tudo
de novo, até o fim do ano letivo.
Esses números, como todo número numa narrativa, são
relativos.
O que são alguns entre milhões?
Não importa! Não é disso que estamos tratando, e sim do
fato de que, de certa forma, alguns estão se tornando leitores. E
mais: alguns já [87] chegaram ao simbólico estágio da leitura
silenciosa, com vocabulários ampliados, compreendendo textos e
falas complexas.
É possível, portanto, formar leitores. Ou seja: há caminhos
pelos quais se consegue modificar o comportamento de pessoas.
Esse é um dos pressupostos da Comunicação, e é
sintomático que o Leia Brasil tenha nascido como uma proposta
de trabalho de relações públicas. Ele acabou transformando-se
num veículo de massa e, como tal, tem modificado o
comportamento de leitura de um expressivo contingente
populacional.
Seria formidável se outros veículos de massa se envolvessem
nessa questão de formar leitores. Mas isso é muita ingenuidade de
nossa parte. E as conseqüências, então, seriam por demais
imprevisíveis...
Voltando aos nossos recém-chegados leitores. Grande parte
desses alunos e professores nos escrevem textos pungentes sobre
suas descobertas da leitura e na leitura.
De um deles, quando conquistamos o Prêmio Petrobras de
Qualidade pelos resultados do Leia Brasil, recebemos um bilhete
que nos dava conta de nossa ingenuidade e inconseqüência, tal
como a descrevemos agora. Essa pessoa, citando alguém cujo
nome nos escapa, nos disse o seguinte: “Ele não sabia que era
impossível. Por isso, foi lá e fez.”

1. Peça inspirada na obra de Maria Clara Machado. [88]


16 — JOEL RUFINO DOS SANTOS

Como me apaixonei por livros


Escritor, historiador, Professor da Universidade
Federal do Rio de Janeiro — UFRJ. Atualmente é
Superintendente de Cultura do Estado do Rio de
Janeiro, membro do Comitê Científico
Internacional do Programa Rota de Escravo da
UNESCO e Coordenador no Brasil do Programa
das Escolas associadas à UNESCO.

Nasci em Cascadura, tradicional bairro do Rio de Janeiro.


Carroças, recolhiam o lixo, puxadas por pobres burros tristes.
Meu avô, aposentado do DLU (Departamento de Limpeza Urbana,
o dono das carroças) sentava-se na calçada com outro
aposentado, chamado Bahia, e sonhava grandezas. Faria uma
viagem ao Recife, compraria o terreno ao lado, se tornaria sócio do
Botafogo...
Nos colégios em que estudei o primário (hoje 1a a 5a série) e o
ginásio (de 5a a 8a), não havia bibliotecas, nem muito menos sala
de leitura. Além das salas e dos pátios havia, é verdade, uma sala
sempre fechada: o quarto-escuro. Lá, o faltoso ficava uma hora
defronte da sua consciência.
Não foi, portanto, na escola que me apaixonei por livros. [89]
Onde foi?
Minha avó materna era de origem caeté (ou talvez fulniô ou
talvez potiguara, de qualquer jeito indígena). Trabalhou toda vida
de cozinheira, veio para o Rio trazida por um ricaço que não
queria ficar sem suas mães-bentas e cozidos. Era uma contadora
excepcional de histórias, e quando ficou em cadeira-de-rodas, não
podendo mais cozinhar, sentávamos à sua volta para ouvir “O
Soldado Verde”, “O que aconteceu com Malasartes”, “O dia em que
Lampião entrou em Cajazeiras”...
Primeiro, portanto, fui seduzido por histórias.
Minha família era de religião batista. Pai, mãe, irmãos, tios,
avós — todos. Os batistas eram de uma religiosidade singela,
discreta e puritana (portanto, algo hipócrita). Aí pelos oito anos
tive uma comoção ao descobrir que o pai do pastor auxiliar não
usava meias; me pareceu uma pecado sem remissão.
Eu me alfabetizei na Bíblia, depois de aprender a juntar
sílabas numa cartilha qualquer. Quer dizer, o que estava na
cartilha eram signos; no livro sagrado, textos. Textos fabulosos,
fábulas, histórias. Pessoas como minha avó — com sua memória e
seu talento de narrar — haviam escrito aquilo. Podia abrir em
qualquer página e viajar. (A técnica “abrir em qualquer página”, na
minha família, serviu também para dar nome aos filhos. Abria-se e
com o dedo se procurava o primeiro nome. Meus irmãos se
chamam Samuel, Ebenezer, Giré (Sic). Eu seria Isaq, mas minha
avó, na última hora, fez um apelo por Joel.)
Minha mãe esperava que lendo muito a Bíblia eu me
tornasse um bom cristão como ela. Não me tornei. O sagrado, no
meu caso, perdeu para o literário.
Mergulhado desde menino na Palavra de Deus, fui seduzido
pela primeira e abandonei o segundo. Não lembro com alegria esse
fracasso da minha mãe.
Mas devo contar que, naquele tempo, todo ambiente das
igrejas (a minha era a batista de Tomás Coelho) era literário. Se
recitava poesia (a fama dos declamadores, como, por exemplo,
minha irmã, corria a cidade), se montavam peças, toda manhã de
domingo as missionárias (com sotaque do meio-oeste americano)
contavam histórias para crianças, e, enfim, havia sensacionais
concursos de versículos (quem sabia [90] mais?), etc.
Um outro tipo de literatura, antagônica à Bíblia, começou,
porém, a agir sobre mim.
As histórias em quadrinhos, como se sabe, surgiram na
imprensa americana em fins do século passado. Logo chegaram ao
Brasil, mas proliferaram, de fato, após a Segunda Guerra. Surgem
as bancas de jornal, fascinantes, oferecendo “gibis a mancheias” (e
não livros, como queria Rui Barbosa): Capitão Marvel, Flash
Gordon, Brucutu, Ferdinando, Capitão América, Tocha Humana,
Nioba, a Rainha da Selva... Meu preferido era o Príncipe
Submarino, com suas orelhas de peixe.
Minha mãe proibia. Queixava-se das mesmas coisas que
muitos pais de hoje com relação à televisão: estimula a violência, o
sexo precoce, a superficialidade, o banditismo... Essa proibição foi
o segundo fracasso de minha mãe: o gibi ganhou mais um gozo
para mim, o do proibido. Eu sonhava ganhar meu primeiro salário
na vida para arrematar inteira uma banca de gibi.
Estou aqui tentando mostrar como me apaixonei por livros,
especialmente os de ficção. Falei de minha avó, da Bíblia e das
histórias em quadrinhos. Ainda falta uma “causa”, que deixei por
último. Veio na adolescência, quando as outras três já tinham
agido.
Eu entrei no ginásio aos 13 anos. Os donos eram metodistas
(a força do protestantismo na minha formação) e praticavam uma
pedagogia severa e bondosa. No segundo ano começava o latim.
Na primeira aula, professor Matta, rechonchudinho e careca, se
dirigiu ao quadro e escreveu o primeiro parágrafo do De Belo
Galico, só depois de apresentar o autor — general de antes de
Cristo que fundou o império romano, Julius Caesar — começou a
traduzir. Não sei por que comecei a me sentir diante de um
espelho. Numa língua desconhecida, há dois mil anos atrás, do
outro lado do oceano, um general escrevera algo que eu podia ler,
se quisesse. Quem era eu? Um menino pobre, filho de seu
Antônio, apanhador de caranguejo nos mangues de Olinda, e dona
Felícia, favelada de Casa Amarela. Quem era ele? Julius Caesar.
Se eu quisesse aprender latim e estava em mim querer,
Julius Caesar teria escrito o De Belo Galico para mim. Ao
descobrir isso, na aula inaugural do velho professor Matta, senti
uma alegria íntima e feroz. [91]
Perdoei a meu amigo Julius Caesar todos os crimes que mais
tarde estudei na faculdade.
Dos fatores que me tornaram um leitor incurável, este último
é o mais difícil de explicar. É bom, porém, que não se explique
completamente tudo. [92]
17 — JORGE WERTHEIN

A UNESCO e a formação do leitor


Argentino, 57 anos, Ph.D em Educação e
Mestrado em Comunicação pela Universidade de
Stanford. Representante da UNESCO no Brasil.

Para uma Organização das Nações Unidas que há mais de


meio século luta contra o analfabetismo no mundo, escrever sobre
a formação do leitor representa mais um desafio e também uma
oportunidade, no marco de uma política cujo objetivo maior é o de
assegurar a todas as pessoas, sem nenhuma discriminação,
condições para o domínio dos códigos básicos da cidadania, quais
sejam, o domínio da leitura, da escrita e do cálculo.
O mundo, lamentavelmente, entrará no próximo milênio com
aproximadamente 1 bilhão de analfabetos absolutos e 100 milhões
de crianças sem escola. Se a esses números adicionarmos o
grande contingente de analfabetos funcionais, verifica-se logo que
estamos diante de um quadro assustador, pois privar seres
humanos do direito da leitura [93] e da escrita equivale a negar-
lhes o direito à cidadania. Sem dúvida, pois como muito bem
lembrou Antenor Gonçalves, a língua é o grande projeto de
formação de cidadania, por meio do qual o homem toma
conhecimento dos direitos que lhe garantem e protegem a vida,
nas condições de produção de sua vida social e individual. O
domínio da língua, continua Gonçalves, significa o ingresso no
universo dos homens livres, gerando resistência à opressão.1
É devido a isso que a UNESCO atribui prioridade máxima à
erradicação do analfabetismo e à educação permanente para
todos. Não se trata mais de apenas erradicar o analfabetismo —
embora seja esta uma condição politicamente estratégica — mas
de garantir educação continuada para todos e por toda a vida. A
Declaração de Hamburgo Sobre Educação de Adultos, aprovada
em 1997, admitiu que a educação ao longo da vida é mais do que
um direito: é uma das chaves do século XXI. É, ao mesmo tempo,
conseqüência de uma cidadania ativa e uma condição para
participação plena na sociedade.
Observa-se que este novo conceito de educação é de grande
importância no contexto da discussão sobre a formação do leitor.
Por um lado, significa que o processo de alfabetização precisa ser
visto como passo inicial necessário ao início de uma trajetória
longa de ler e de ver o mundo com lentes que vão se ampliando
para melhor decifrar a realidade; por outro, significa que a
formação do leitor necessita aprendizagens que favoreçam o
desenvolvimento da capacidade de análise e de crítica.
Não é mais suficiente somente ler. É preciso mais. É preciso
saber ler. É o saber ler que permite indagar e perguntar. Eis aí o
sentido pedagógico da leitura. Tinha razão George Steiner ao
afirmar que ler corretamente é correr grandes riscos. É tornar
vulnerável nossa identidade, nosso autodomínio. Sem dúvida, é
esse tipo de leitura que permite a iluminação da realidade. Mas
como formar esse leitor? Pode ser que existam vários caminhos,
mas nenhum se iguala ao da escola pública de qualidade, que é o
locus privilegiado para a aquisição dos instrumentos necessários
para uma leitura crítica do mundo. É o locus insubstituível onde
podem e devem ser construídos os alicerces para que cada aluno-
sujeito dê início a uma trajetória de crescente autonomia
intelectual, de [94] forma a garantir permanente aquisição e
domínio de saberes.
Se é verdade que a escola pode desempenhar papel dos mais
relevantes no processo de formação do leitor, é importante
sublinhar que essa potencialidade só se explicitará, plenamente,
na medida em que o projeto pedagógico da escola colocar o ensino
da língua em posição privilegiada, ou seja, o estudo da língua
precisa ser entendido como veículo de inserção lúcida do
estudante no circuito de idéias de seu tempo. O domínio das
idéias e da cultura, que caracteriza o tempo histórico no qual o
estudante se acha inserido, é de grande alcance para ampliar o
significado das diversas leituras que se tornarem necessárias.
Para se ter uma idéia de como pode ser importante a leitura
e, sobretudo, a leitura dos clássicos, reportamo-nos novamente a
George Steiner, que, ao comparar o ensino das ciências com o
ensino das humanidades, afirmou:

“As ciências reformularão nosso meio ambiente e o contexto de


lazer ou subsistência no qual a cultura é viável. Contudo, embora tendo
inesgotável fascinação e constante beleza, as ciência naturais e
matemáticas só raramente são de interesse fundamental. Com isso
quero dizer que acrescentaram pouco a nosso conhecimento ou controle
das possibilidades humanas, que comprovadamente existe mais
compreensão da questão do homem em Homero, Shakespeare, ou
Dostoievski do que em toda a neurologia ou a estatística.”2

Se dermos crédito a essa afirmação, há muito o que ser


reformulado nas escolas de educação básica, no sentido de
renovar o conteúdo e a prática pedagógica para que o aluno
vislumbre um futuro mais cheio de significados. E já que se
debate tanto o Mercosul, quão extraordinário seria se, a essa
altura, autores como Borges, Euclides da Cunha, Garcia Márquez,
e tantos outros de uma notável plêiade de valores literários da
América Latina, fossem lidos e interpretados, não como algo
excepcional, mas como atividade curricular regular das escolas
básicas da região. Certamente, o conhecimento dos problemas e
dos desafios latino-americanos seria percebido por crianças e
jovens que estariam em melhores condições para engendrar o
futuro. [95]
Dessa forma, verifica-se que o melhor caminho para a
formação do leitor é a instauração de uma escola de qualidade
para todos e de todos, sem o que, qualquer remendo que se fizer a
posteriori será sempre insuficiente para que o domínio da palavra
e da escrita seja, de fato, um instrumento de libertação e
dignidade humanas. É certo que, como vimos no início desse
texto, estamos longe desse ideal, face aos grandes déficits do
sistema educacional. No entanto, quando se compara o panorama
atual da educação no mundo, e também no Brasil, com o que
existia há mais de cinqüenta anos (ao tempo em que a UNESCO
foi criada), constata-se que progressos significativos foram
alcançados, tanto em termos de alfabetização, quanto de escola
para todos.
Ainda recentemente, a UNESCO participou, em Brasília, de
seminário de avaliação da Política de Educação para Todos da
década. Segundo os depoimentos e as próprias críticas, ficou
evidente o progresso alcançado. As oportunidades educacionais
estão se universalizando e a luta pela melhor qualidade da oferta
educativa também já se iniciou. Isso significa que há um cenário
de perspectivas concretas que passará a constituir o palco
principal de lutas pela universalização da cidadania, que,
certamente, ocupará o principal espaço da agenda política do
próximo milênio.
É nesse quadro que a UNESCO concebe o desenho de sua
agenda de atuação para o futuro, que terá na educação para todos
e de todos, ao longo da vida, o seu eixo norteador.

1 GONÇALVES, Antenor. O Poder da Palavra. UNESP. Campus de


Marília.
2 STEINER, George. Linguagem e Silêncio. São Paulo, Cia das

Letras, 1988. [96]


18 — LUIZ PERCIVAL LEME BRITTO

Máximas impertinentes
Se o leitor possui alguma riqueza e vida bem acomodada, sairá de si
para ver como é às vezes o outro. Se é pobre, não estará me lendo
porque ler-me é supérfluo para quem tem uma leve fome
permanente. Faço aqui o papel de vossa válvula de escape e da vida
massacrante da média burguesia.
(Rodrigo S. M. — na verdade Clarice Lispector — A Hora da Estrela)

Doutor em Lingüística pelo IEL/UNICAMP,


Mestre em Educação, Presidente da Associação
de Leitura do Brasil desde 1993 e Professor do
Programa de Mestrado em Educação da
Universidade de Sorocaba. Autor de literatura e
publicações sobre leitura e educação.

Quando se fala em formação do leitor, implicita-se muitas


outras coisas de que não se fala diretamente. A mais evidente
delas é a idéia de que nem todo mundo que sabe ler é leitor, isto é,
que ser leitor significa algo mais que simplesmente saber ler, algo
mais que saber enunciar em voz alta ou em silêncio as palavras
escritas em linhas corridas (caso contrário, formar o leitor seria
sinônimo de ensinar a ler). Outra idéia implícita é que deve existir
alguém ou algo que tenha a capacidade e a autoridade de formar o
leitor, isto é, um agente formador; mais ainda, que esse formador
é leitor e sabe como formar leitores. E, a mais forte de todas, a
idéia de que ser leitor é algo positivo, caso contrário não se
justificaria o esforço empreendido em sua formação.
Essas idéias têm estimulado programas de incentivo à
leitura e [97] justificado as mais variadas campanhas de
promoção da leitura; são motivo de livros e preocupação
pedagógica; resultam de/em um perigoso (e apenas aparente)
consenso. Por isso, gostaria de, negando o consenso, pôr em
questão algumas dessas crenças subjacentes ao debate político e
pedagógico em torno da leitura, apresentando essas que eu
chamei de máximas impertinentes.

A leitura não é nem boa nem má, a leitura é a leitura

O que é ser leitor? Trata-se, certamente, de uma categoria


em que se inclui determinado tipo de pessoa, assim como ocorre
com ser consumidor, motorista, passageiro, espectador, usuário,
assinante, pedestre, assegurado, cliente, eleitor. Esses são, por
assim dizer, alguns dos atributos que se incorporam à condição de
ser de cada indivíduo na sociedade contemporânea e que
caracterizam o exercício da cidadania.’ Para cada uma dessas
situações, supõe-se um comportamento, um direito. São situações
em que, de acordo com o conceito de cidadão de Milton Santos,
articulam-se o espaço público e o privado.
O mesmo se passa com ser leitor. Saber ler é uma
necessidade objetiva do sujeito moderno, na medida em que a
leitura está implicada por muitas práticas sociais, e a
impossibilidade de realizá-la impede, em alguma medida, o sujeito
de participar delas. E assim como não faz sentido dizer que
alguém, por ser cliente, eleitor, usuário ou assegurado, torna-se
melhor ou pior, mais ou menos crítico, também não faz sentido
afirmar que o indivíduo é melhor ou pior, mais ou menos crítico,
por ser leitor. Lê-se pelas mais variadas razões diferentes tipos de
textos, em diferentes suportes e em diferentes situações. Não há
nenhum valor ético ou moral associado ao exercício da leitura: ela
se presta a muitas finalidades e é realizada por pessoas de todas
as índoles, de qualquer ideologia.

Ler é verbo transitivo

O mito de que ler faz bem, de que torna as pessoas


melhores, parte do princípio de que não importa o que se leia. No
entanto, não se [98] pode negar que a leitura pressupõe
necessariamente o texto, que se este não existe sem aquela, a
recíproca também é verdadeira. Assim, não se pode pensar a
leitura sem pensar os objetos sobre os quais ela incide. Ler um
romance pressupõe, em função dos códigos sociais estabelecidos,
esquemas e finalidades de leitura diferentes de quando se lê um
relatório ou uma receita culinária (sei que se pode escrever um
poema na forma de uma receita, que se pode escrever um relatório
literário, que é tênue a fronteira entre biografia e ficção; mas sei
também das convenções que permitem essas possibilidades).

O leitor de X é leitor de X

Outra das idéias que circula muito nas escolas e em


programas de promoção da leitura é que o importante é ler, não
importa o quê. Por trás dessa idéia, está a crença que uma leitura
puxa outra e que a pessoa começa lendo história em quadrinho e
conforme pega o gosto pela leitura passa a ler coisas melhores.
Nada contra que o sujeito leia o que quer ou precisa, mas não há
como aceitar essa idéia de progressão na formação do leitor. As
TVs educativas continuam mantendo índices de audiências
baixíssimos, apesar da enorme audiência de certos programas
sensacionalistas. Os filmes de autor continuam sendo assistidos
por muito menos gente que os filmes de aventura. O grande
sucesso de jornais populares no Rio de Janeiro não implicou o
aumento de vendas dos jornais tradicionais. De fato, o sujeito vai
ler aquilo que tenha relação com seu modo de vida, com suas
necessidades pessoais e profissionais, com os vínculos culturais e
sociais.
Não é a leitura que conduz o indivíduo a novas formas de
inserção social. É, ao contrário, o tipo de vínculo que ele
estabelece que pode conduzi-lo eventualmente a ler certas coisas
de certo jeito. A leitura, mesmo feita em recolhimento, não é um
comportamento subjetivo, uma questão de hábito ou de postura, é
uma prática inscrita nas relações histórico-sociais.

Ler não é um prazer, ainda que possa ser [99]

A aproximação de leitura e prazer é uma das imagens mais


freqüentes tanto em campanhas de promoção de leitura quanto
em sugestões de métodos de ensino da leitura. Supõe-se que as
pessoas, se encontrarem prazer na leitura, lerão mais e melhor. O
curioso é que este seria o único prazer que precisaria ser
promovido, como se fosse uma espécie de prazer secreto ou como
se as pessoas não soubessem o que lhes dá prazer. É certo que
alguém pode encontrar prazer na leitura, principalmente quando
se associa leitura com entretenimento ou com a experiência
estética. Mas não é certo que haja relação necessária nem vínculo
entre leitura e prazer. Ao contrário, a leitura muitas vezes exige
esforço e concentração intensos, é cansativa, é feita por obrigação
(e também não há nada de errado que seja feita assim), por
motivos profissionais, religiosos, cotidianos ou outros. (Eximo-me
de comentar o eventual prazer do masoquista.)
A leitura de entretenimento é um entretenimento

Se assisto a um show de música, se saio para dançar, se fico


vendo TV, se vou no parque de diversões, se jogo futebol, se faço
um churrasco com amigos ou se leio um livro, isso depende dos
meus gostos, modo de vida e condição financeira. Não há até aí
nenhum parâmetro de avaliação que permita dizer que esta
diversão é melhor que aquela; pode-se, isto sim, lançar mão de
princípios éticos ou sociais para pôr em questão certas diversões
macabras.
Divertir-se é muito bom e não tem por que supor que a
leitura não seja um bom divertimento. Mas, enquanto
divertimento, ela não é diferente de qualquer outra forma de
entretenimento (prazer por prazer, tanto faz ler ou ver). Ela não
forma ou transforma ninguém, não produz nenhuma mudança na
sociedade nem conduz a outros hábitos.
De qualquer modo, não se pode esquecer que, na sociedade
industrial moderna, a indústria do entretenimento é uma das
maiores do mundo, movimentando somas fantásticas de dinheiro.
Nesse sentido, o livro ou revista é uma mercadoria como outra
qualquer, como um brinquedo, um doce ou uma peça de
vestuário, e cabe aos empresários do setor promover seus
produtos. [100]

O leitor que se promove é um estilo de vida

A mulher recostada languidamente em uma poltrona; a


criança estirada no chão diante de um livro, as pernas em
movimento para o ar, as mãos no queixo sustentando o rosto; o
moço sentado numa mesa de um café com um livro aberto sobre a
mesa; o velho com a criança no colo e o livro na mão; o intelectual
diante de enormes fileiras de livros sisudos. São imagens
recorrentes em iconografias de leitura. Imagens de algo que
reconforta, diverte, instrui, instiga a imaginação. Imagens que
reproduzem um modo de ser apropriado. É interessante perceber
os objetos que combinam com ler: se criança, almofada; se
mulher, sofá; se homem, cachimbo e caneta.
Interessantemente, ao lado desse clichê de leitor bem
comportado reside seu antípoda: a imagem do maravilhoso
maldito; o escritor que deixa morrer a amada, mas salva seus
manuscritos do naufrágio; que passa noite em claro debruçado
sobre sua obra, sacrificando a saúde; que experimenta
radicalmente a vida e morre, ainda jovem, de cirrose hepática ou
de overdose; que se suicida num quarto sórdido de Paris.
As duas imagens se sobrepõem para construir o mito da
superioridade do leitor: de um lado o gênio indomável do artista,
de outro a fruição pacífica do burguês radical.

Poder ler é direito de cidadania

Aqui reside a questão central. A escrita e a leitura sempre


foram, e continuam sendo, instrumento fundamental de poder e,
nesse sentido, sempre estiveram, e continuam estando,
articuladas aos processos sociais de produção de conhecimento e
apropriação dos bens econômicos. A própria alfabetização em
massa resulta muito mais das necessidades do sistema do que de
uma democratização social ou de uma mudança de consciência
dos detentores do poder. Portanto, o quê e o quanto um cidadão é
leitor depende, acima de tudo, de sua condição social e da
possibilidade de ter acesso ao escrito, e isto depende das relações
sociais. Não é por acaso que os dados da pesquisa de mídia Abril
(1994), relativos [101] ao perfil do leitor de suas revistas, trazem
números tão insignificantes para o segmento E, exatamente
aquele que tem menor poder de compra, que vive nas piores
condições, que tem mais desempregados (estranha condição de
cidadão essa!). Ou seja: os mais excluídos da leitura são também
os mais excluídos da sociedade, os que não têm hoje emprego,
moradia, atenção à saúde, direito ao lazer.
Promover a leitura só tem sentido enquanto movimento
político de contrapoder, enquanto parte de um programa de
democratização social. Nesse sentido, a questão que se coloca é a
do direito de ler e não a da promoção deste ou daquele
comportamento, ou a valorização de tal ou qual gosto. O que
interessa não é o que um sujeito lê, se gosta mais disso ou
daquilo, se encontra ou não prazer na leitura, mas sim se pode
ler, e ler quanto e o que quiser. [102]
19 — MARIA ALICE BARROSO
Romancista, bibliotecária e Mestre em Ciência da
Informação, foi Diretora-Geral do Instituto
Nacional do Livro e do Arquivo Nacional.
Atualmente desenvolve o projeto — tema de sua
tese de mestrado — sobre a biblioteca pública na
educação do adulto, com acervo especialmente
dedicado ao analfabeto funcional.

Não será demais recordar que nossa geração de


bibliotecários (aquela que surgiu na década de 50), se fosse
interrogada quanto ao real motivo que a teria levado ao estudo da
biblioteconomia, daria como resposta a determinação de
contribuir para a formação do leitor, acima de tudo.
Podia ser até que muitos houvessem enveredado por esse
caminho pela afinidade com aquele que seria o leitor infantil; e
não será difícil compreender que a compreensão do texto torna-se
cada vez mais completa na medida em que esse texto for mais
simples, em que as palavras se complementem sem o esforço
maior do pernosticismo lingüístico.
Assim, os bibliotecários que passaram a centralizar o seu
trabalho naquele leitor em potencial (que muitos também chamam
de analfabeto [103] funcional) descobriram na simplicidade do
texto infantil a indispensável aproximação que se oferece aos que
se iniciam e/ou desenvolvem o seu exercício de alfabetização
trilhando o caminho da educação supletiva.
Há, portanto, uma clara conexão no fato de a biblioteca
pública estar sendo amplamente utilizada não só em cursos de
alfabetização como naqueles destinados aos analfabetos
funcionais.
Como um “centro de informação” é possível reconhecer nos
bibliotecários os educadores (e não, meramente, instrutores):
assim é que a educação do adulto passou a conceituar aqueles
que não tiveram acesso ao estudo em idade própria ou que só
lograram esse acesso de modo insuficiente.
No Brasil, a sugestão de utilizar a biblioteca pública paralela
à escola na complementação da educação do adulto tem a ver com
a aprendizagem da leitura: o material didático deverá ser
apropriado para aquele que vem de ingressar na biblioteca a fim
de adquirir, no mínimo, habilidades de escrita, leitura e operações
numéricas — o que deverá facilitar o seu ingresso no mercado de
trabalho.
Os bibliotecários não são servidores da escolaridade, porém
podem ser considerados como os agentes capazes de transformar
o mundo particular dos leitores. Eles oferecem acesso a um
universo coerente ou a um tipo de poder capaz de estruturar a
incoerência através da linguagem. Na verdade, o bibliotecário
expande o seu papel de contribuir para que o usuário aumente a
habilidade no processo da leitura.
Alguma estatística: O Library Literary Planning Guide
informa que 25 milhões de adultos americanos não sabem ler nem
escrever; outros 35 milhões são funcionalmente analfabetos; 85%
dos jovens que comparecem perante a Corte de Justiça são
analfabetos funcionais; de 4 a 6 dos 8 milhões de desempregados
se ressentem de não terem sido treinados, pelo menos, com
habilidades cotidianas, o que poderia, hoje, dar-lhes oportunidade
num emprego de relativa tecnologia. Cerca de um terço das mães
que recebem auto-alimentação são funcionalmente analfabetas.
Um, em cada três americanos, se reconhece incapacitado de ler
um livro. A população existente nas prisões representa a mais alta
concentração de analfabetos funcionais. (JOHNSON & SOULE,
Illinois, 1986, p.408). [104]
Na verdade, a estatística acima enseja que se indague: em
que se distingue o analfabeto do alfabetizado que não lê?
Cabe, ainda, indagar o que têm feito as bibliotecas públicas
pelos que desejam se alfabetizar?
Definição: O analfabetismo — como quase todo termo na
área da Educação — possui vários significados. As várias
interpretações da palavra, ou seja, aquela que diz respeito ao
analfabetismo do adulto e a que se refere ao analfabetismo
funcional, nem sempre são adequadas ao contexto em que são
usadas.
Analfabeto funcional é aquele que não consegue ler o
formulário do seu próprio emprego nem as instruções que lhe são
passadas por seu superior, tem dificuldade em realizar operações
numéricas ou decodificar as manchetes de jornais.
Há quem indague por que a biblioteca pública?
Vale a pena lembrar FLUSSER (O bibliotecário animador,
1982, p.122) que cita a biblioteca pública como o órgão capaz de
dar a palavra a quem não a tem. Vale enfatizar a transformação
ocorrida na alfabetização de adultos, que era realizada de forma
autoritária (FREIRE, A Importância do ato de ler, 1984, p. 83) e
agora a palavra é uma ato de reconhecimento do mundo, um ato
criador. Ele pontua que a instrução da educação não se limita ao
treinamento técnico a fim de corresponder às necessidades de
uma área. Na verdade, FREIRE não se refere à educação que
domestica e acomoda, mas à educação que liberta pela
conscientização, com a qual o homem opta e decide.
FREIRE inova classificando a biblioteca popular como um
centro disseminador do saber e não como um depósito silencioso
de livros. Em sua obra A importância do ato de ler em três artigos
que se completam (1994, p. 18) esse educador afirma que falar da
educação de adultos e de bibliotecas escolares é falar, entre
muitos outros, do problema da leitura e da escrita. Não da leitura
de palavras e de sua escrita em si próprias, como se lê-las e
escrevê-las não implicasse uma outra leitura, prévia e
concomitante àquela, a leitura da realidade mesma.
Um outro ponto que FREIRE acha interessante sublinhar é
que uma visão crítica de educação, portanto da formação do leitor,
se refere à necessidade que têm os educadores de viver, na
prática, o [105] reconhecimento óbvio de que nenhum deles está
só no mundo.
A biblioteca popular/pública necessita estimular a criação
de horas de trabalho em grupo, realizando verdadeiros seminários
de leitura.
Numa área popular — que possa ser desenvolvida por
bibliotecários, documentalistas, educadores, historiadores —
poderá ser feito o levantamento da área através de entrevistas
gravadas com os mais antigos moradores, o que poderia
representar o testemunho dos momentos fundamentais da sua
história comum.
PAULO FREIRE recomenda que se faça com esse material
folhetos, observando total respeito à linguagem dos entrevistados.
Esse material, desde que coletado em diferentes regiões, deverá
ser intercambiado, constituindo um material didático de
indiscutível valor: nele possivelmente encontraremos o autor
(recém-alfabetizado) que o escreveu, como também através dele
encontraremos o leitor que estará exercitando a sua aprendizagem
de leitura.
Como bem enfatiza o educador PAULO FREIRE, um dos
aspectos positivos de um trabalho como esse é o reconhecimento
do direito que o povo tem de ser sujeito da pesquisa, que poderá
conhecê-lo melhor. E não objeto da pesquisa que os especialistas
fazem em torno dele.
A forma como deve atuar uma biblioteca pública, a
constituição de parte do seu acervo que deverá estar dirigida à
formação dos analfabetos funcionais, as atividades que podem ser
desenvolvidas em seu interior, tudo isso deve estar inserido numa
política cultural: na verdade, a biblioteca pública deve também ser
utilizada na educação do adulto.
Até a Segunda República o problema da educação dos
adultos não se distinguia especialmente dentro da problemática
mais geral da Educação Popular. Em sua tese de mestrado
VANILDA PAIVA (Educação popular e educação de adultos)
esclarece que a educação de adultos começou a ser percebida de
forma independente a partir da experiência do Distrito Federal
(1933-1938), com ANISIO TEIXEIRA, como Secretário da
Educação, e das discussões travadas no Estado Novo, quando o
censo de 1940 indicava a existência de 55% de analfabetos nas
idades de 18 anos e mais. [106]
Devemos admitir no analfabetismo o traço delineador que
sublinha as áreas da injusta distribuição educativa, dividindo a
humanidade. Em certas regiões geográficas é possível reconhecer
a existência do analfabetismo, da desnutrição, da pobreza, da
mortalidade infantil contribuindo para uma péssima qualidade de
vida.
E também devemos estar conscientes de que não será
somente através do combate ao analfabetismo que conseguiremos
vencer a injustiça social.
Vivenciando a véspera do 3o milênio, cremos que deva ficar
bastante claro que a alfabetização não se engloba somente nas
exigências da sociedade ou do governo, na intenção de incorporar
os analfabetos -os analfabetos funcionais — na cultura letrada; o
centro de interesse deve ser a educação do adulto. A alfabetização
pode ser uma das ferramentas disponíveis para a educação do
adulto. [107]
20 — MARIA THEREZA FRAGA ROCCO

Leitor, leitura, escola: uma trama plural


“Não existe texto em si, separado de qualquer
materialidade, fora de um suporte que permita
sua leitura, fora da circunstância em que é lido.”
CAVALLO e CHARTIER1

Professora titular da Faculdade de Educação da


USP e Professora convidada da Universidade de
Paris. É autora dos livros: Literatura/Ensino: Uma
problemática; Crise na Linguagem: A Redação no
Vestibular e Televisão e Persuasão, além de
artigos e ensaios publicados no Brasil e no
exterior.

Reflexões Iniciais
Leitor — texto — leitura, termos fundadores de uma relação
aparentemente imutável, revelam, no entanto, que entre o traçado
da escrita, do texto — mais fixo e menos sujeito a modificações —,
e as leituras que dele se fazem, instaura-se, conforme M. de
CERTEAU, uma nova ordem em que prevalecem “o efêmero, a
pluralidade e a invenção”. E por quê? Porque, segundo o autor,
“nossa sociedade hoje mede a realidade por sua capacidade de
mostrar, de se mostrar e de transformar as comunicações em
viagens do olhar.”2
O leitor agora busca nos textos uma reapropriação de si
mesmo. Nesses textos, a partir da própria experiência prévia de
vida, o leitor, o espectador se tornam plurais. No programa de
atualidades da TV, no texto do livro ou do jornal,
leitores/espectadores enxergam paisagens do [109] próprio
passado que acabam por integrar às visões, às leituras do
presente.
Desse modo, os textos, enquanto espécies de “reservatórios
de formas”, esperam que o leitor lhes dê vida, modificando-os
enquanto objetos de leitura, aos quais são atribuídas “múltiplas
significações”.3
Mas nem sempre as “coisas” foram assim. Pelo menos,
oficialmente. Houve um momento em que se acreditava numa
ordem fixa mais ou menos secreta — inerente à natureza dos
textos — e inacessível aos não iniciados.
O livro, os textos escritos, sacralizados e inatingíveis, só
poderiam ser objeto de estudo dos privilegiados que
transformavam a leitura feita (também legítima, claro!) em um
produto ortodoxo de interpretação única. Assim, textos, livros,
lidos por vozes uníssonas, prendiam-se a um poder social
fortemente elitizado e amplamente propagado.
Foi preciso o tempo passar. Foi preciso questionar a
estaticidade e a rigidez de certas instituições (igreja, escola,
partidos). Foi preciso surgir um Roland Barthes para que se
começasse a mostrar, sem nevoeiros, a relação de reciprocidade,
antes velada, que sempre existiu entre leitor, leitura e texto. Uma
vez desvendada, tornou-se possível, então, enxergar com nitidez a
“pluralidade indefinida das ‘escrituras’ produzidas pelas diversas
leituras”.4
Em nossos dias, esse tipo de poder citado ainda pretende ser
exercido, por exemplo, em vários produtos da mídia e na própria
escola. Na medida em que procuram, por vezes, isolar os textos de
seus leitores e receptores, algumas matrizes tentam inutilmente
deter a posse e estabelecer uma “verdade” única dos textos, seja
por parte dos produtores, seja por parte dos próprios professores.
Inutilmente, sim. Pois como ensina ainda de CERTEAU, “por
trás do cenário teatral dessa nova ortodoxia, se esconde hoje,
como também no passado, a atividade silenciosa, transgressora,
irônica ou poética de leitores (ou espectadores) que sabem
resguardar boa parte da própria privacidade e manter a distância
necessária dos ‘mestres’”.5

Leitura: Gestos, Lugares, Suportes

A leitura — preocupação sempre presente na História — não


se [110] faz por abstrações. Ela se mostra, ao longo do tempo,
como uma atividade que se concretiza pela prática de gestos
diversos, ocorrendo em variados lugares, por meio de diferentes
suportes.
Se no passado o rolo, pesado, exigia uma determinada
postura física do leitor, prendendo-lhe as mãos durante o ato de
ler, a invenção do códice libertou não só as mãos, o corpo e os
movimentos do leitor, mas também os espaços físicos da leitura e,
claro, os próprios textos.
Mudanças nos suportes — do rolo para o livro; do livro para
o jornal; mudanças nos espaços — do interior das bibliotecas para
os vários compartimentos da casa; dos quartos e salas para a
conquista definitiva dos espaços abertos: jardins, cafés, praças
públicas; mudanças de gestos: da posição ereta — leitores
sentados, braços sobre as mesas — para a liberação corporal sem
restrições; deitados em suas camas; estirados sobre a grama;
sentados em bancos de trens, ônibus e metrôs, todas essas
modificações constituem-se em pontos fundamentais para
compreendermos os períodos que marcaram a evolução histórica
desses gestos, lugares e suportes da leitura.
No entanto, em que pese a enorme importância destas
interfaces, a análise exclusiva de gestos, lugares e suportes não
consegue dar conta do estudo da leitura em suas inter-relações
mais finas. É necessário, pois, que ao se realizar tal análise, não
sejam esquecidas outras engrenagens que movimentam e
articulam dimensões também essenciais. E por quê? Porque, para
além dos gestos, lugares e suportes, existem grandes diferenças
entre aqueles que, numa mesma época, lêem os mesmos textos.
Sejam diferenças individuais entre mais letrados e menos letrados,
sejam diferenças entre “mundos” de leitores.
Stanley FISH6 criou uma expressão viva e competente para
explicar diferenças de leituras. Trata-se das “comunidades
interpretativas” que constituem o “mundo” ou os “mundos” dos
leitores. Cada uma de tais comunidades partilha e põe em ação
um mesmo conjunto de interesses, usos e competências ao ler
textos escritos, os quais, por seu turno, circulam em diferentes
suportes que são parte integrante e integradora dos próprios
processos de interpretação e de significação.
Exatamente, o que se entende por suportes? São todos os
materiais, produtos e equipamentos que permitem a um texto
circular. [111] Do papiro ao papel; do rolo ao livro; do volume
pesado aos formatos mais leves, fáceis de serem transportados e
utilizados; das páginas policopiadas às outras, transmitidas
eletronicamente e, talvez, impressas de modo esparso. Isso, sem
falar das diferentes naturezas de textos: verbais, visuais, híbridos,
etc.
Enfim, se são muitas as “comunidades interpretativas”; se
são diferentes os leitores, individualmente, dentro da mesma
“comunidade”, são plurais também os textos, os espaços e os
suportes que permitem sua circulação e apropriação. Sobre essa
dinâmica é que devemos nos debruçar ao pensarmos em um
trabalho sistemático com leitura.

Escola: Espaço formal do trabalho com leitura

A leitura acontece no cotidiano de cada pessoa também de


modo plural. Lê-se informalmente sobre vários assuntos; lê-se
para aumentar o que se sabe sobre o mundo histórico e factual;
lê-se em busca de diversão e descontração; lê-se para obter
informações úteis e satisfazer curiosidades diversas. Lê-se, na
vida, em geral, de forma não organizada, e nem precisa mesmo ser
assim.
Ainda que o trabalho escolar nunca possa divorciar-se ou
distanciar-se do que acontece no dia-a-dia da vida, é na escola,
enquanto instituição formal de educação, que atividades ligadas à
ampliação do universo cultural do indivíduo, ligadas à
aprendizagem sistemática dos diferentes campos do saber, devem
ser concebidas e desenvolvidas de maneira competente.
Pensando-se na questão da leitura, também é na escola que
podem e devem ser exercitadas, organizadamente, as práticas da
leitura comum, cotidiana. Textos que circulam no meio urbano, no
espaço doméstico, devem entrar também na escola, em todos os
níveis de ensino, desde a educação infantil, passando-se pelo
curso fundamental, até chegar-se ao ensino médio, momento em
que esses textos devem tangenciar outros, pré-selecionados, ou
com eles estabelecer intersecções.
Se, tanto na vida quanto na escola, a leitura acontece de
forma multifacetada, cabe, no entanto, à escola, a tarefa de
alargar, por essa leitura, os limites do próprio processo de
produção do conhecimento e [112] de reflexão sobre o que se
produziu. Professores, alunos, textos e leituras devem interagir
todo o tempo de forma organizada e sistemática.
Se, por meio de um projeto de leitura na escola, pode-se
tentar ampliar os limites do conhecimento, tal projeto, em todos os
níveis, terá também que pulverizar equívocos cristalizados pela
aceitação não refletida de pré-conceitos do senso comum, sempre
repetidos à exaustão; mas o projeto deverá proporcionar aos
estudantes, em diferentes níveis, o acesso ao prazer da leitura.
Prazer que resulta de um trabalho intelectual árduo, de um
necessário corpo-a-corpo que se instaura entre o leitor-aluno, sua
experiência prévia de mundo e o texto estético, seu autor e os
outros leitores virtuais ou reais com quem irá partilhar
interpretações e significações recém-inauguradas.
Assim, em qualquer faixa etária e de ensino, o contato com
textos artísticos (visuais, verbais, entre outros) precisa ocorrer, de
forma plena, e com a contínua intermediação do professor. O texto
artístico, como, por exemplo, o literário (ficcional ou poético),
provocará um saudável alargamento das experiências da vida real
de cada um, ampliando também as possibilidades de refinamento
do imaginário pessoal e coletivo. A literatura e as outras
manifestações artísticas em conjunto, quando bem desenvolvidas
pela escola, geram, também fora dela, intercâmbios ilimitados
entre indivíduo — obra de arte — e comunidade; entre lazer,
informatividade e fruição.
A esta altura, surge como essencial a atividade do professor.
De um professor que deve, sim, ser bem formado e mostrar-se
capaz de pensar em um “ambicioso” projeto de leitura para
qualquer faixa etária e nível de escolaridade.
Para tanto, alguns requisitos devem ser exigidos desse
professor a fim de que seu trabalho com leitura tenha êxito.
Que o professor seja, antes de tudo, um leitor. O
professor A que não lê nunca terá a memória povoada pelas
ricas e inesquecíveis imagens fornecidas pelas diferentes
formas dos textos de arte, principalmente pelos textos
literários. Se assim for, se o professor não se revelar um
leitor, ele jamais conseguirá trabalhar com leitura;
Que o professor conheça e avalie criticamente os
conceitos [113] de leitura, a natureza da leitura e que
analise as linhas teórico-metodológicas que procuram dar
conta de um sério trabalho docente, com leitura. Que esse
professor conheça a carpintaria dos diferentes tipos de
textos e saiba avaliá-los em seus suportes, naturezas e inter-
relações, explorando-os interativamente com os estudantes;
Que o professor se posicione com firmeza e segurança
diante de certas práticas diluidoras de análise textual e de
leitura. São práticas muito comuns que, tentando facilitar o
trabalho dos alunos, acabam antes por descaracterizar as
relações sociais fundadoras da leitura na escola; relações
que se constroem e se sustentam com base em leituras
partilhadas, de textos, pelos seus leitores. Essa facilitação
excessiva gera simulacros, impede o contato efetivo do aluno
com os textos de arte e cria um obstáculo perene para que,
na escola, se atinja o real prazer de ler;
Que o professor saiba escolher bons textos e de várias
naturezas. E que, para explorá-los, esse professor crie
exercícios inventivos que levem seus alunos à liberação do
imaginário, ao invés de aprisionar a capacidade de devanear
e sonhar dos estudantes na camisa-de-força tecida pelas
perguntas banais que já pressupõem respostas pré-
fabricadas, e que, além de serem um mal em si, acabam por
estilhaçar a integridade dos bons textos.

Cabe à escola oferecer condições, e ao professor bem


formado realizar um competente trabalho de LEITURA com alunos
de todas as idades e graus de ensino.

Referências
1. CAVALLO, G. e CHARTIER, R., História da leitura no
mundo ocidental, São Paulo, Ática, 1998, v. 1, p. 9.

2. de CERTEAU, M., A invenção do cotidiano, Petrópolis,


Vozes, 1994, p. 47. [114]

3. de CERTEAU, M., id.ib., p. 267.

4. de CERTEAU, M., id.ib., p. 268.

5. de CERTEAU, M., id.ib., p. 268.

6. FISH, S. Is there a text in this class? 9a ed, Massachusetts,


Harvard Univ. Press, 1995. [115]
21 — OTTAVIANO DE FIORE

A formação do leitor, uma tarefa


Ottaviano de Fiori é escritor e editor. Professor de
Ciências Sociais na PUC de São Paulo. Seus
escritos mais recentes tratam do desenvolvimento
das ideologias modernas no Brasil. Atualmente é
Secretário do Livro e da Leitura do Ministério da
Cultura e Presidente do Comitê Estratégico do
Leia Brasil — Programa de Leitura da Petrobras.

Entre os problemas de nossa cultura, a leitura tem um papel


essencial e decisivo para o salto civilizatório que o Brasil vem
realizando. Não há nação desenvolvida que não seja uma nação de
leitores. Desde o operário que precisa ler manuais até o advogado
que precisa decifrar os textos legais, passando pelo estudante nos
exames, o cidadão que enfrenta as urnas, a dona de casa que
enfrenta a educação da família, o executivo que enfrenta sua
papelada, todos os membros de uma sociedade civilizada são
obrigados a utilizar várias formas de leitura e interpretação de
livros, jornais, revistas, relatórios, documentos, textos, resumos,
tabelas, computadores, cartas, cálculos e uma multidão de outras
formas escritas.
É importante perceber que o hábito de leitura de um povo
não pode ser considerado igual à sua alfabetização. Saber ler não
é suficiente [117] para ter-se familiaridade ou convívio
permanente com a leitura. Todos os povos civilizados se
caracterizam por possuírem uma massa crítica de leitores ativos,
isto é, gente que desde a infância adquiriu o hábito de leitura e
que todos os dias manipula com facilidade uma grande
quantidade de informação escrita. E, por detrás desta diversidade
dos tipos e meios de leituras encontra-se sempre o mesmo objeto,
o mais poderoso instrumento do saber jamais inventado pelos
homens: o livro.
Não é, pois, exagero afirmar como Darcy Ribeiro que o livro
foi a maior invenção da História e a base de todas as outras
conquistas da civilização. E não é exagero também afirmar que o
livro no Brasil não vai nada bem — apesar de ter todas as
possibilidades de superar esta deficiência num curto prazo
histórico. Quantos livros os brasileiros lêem por ano? Os
indicadores indiretos são eloqüentes. Nos EUA são produzidos 11
livros per capita/ano, na França 7 e no Brasil 2,4. Mesmo
considerando que boa parte da leitura do Brasil não é feita em
livros mas em jornais e revistas. Ou seja, muitíssimo menos do
que seria necessário para o desenvolvimento do país.
Esta situação é uma ameaça latente e permanente para o
nosso desenvolvimento social, econômico e político. É
fundamental para o futuro da democracia brasileira estabelecer
condições para que da multidão de jovens pobres que habita as
periferias possa emergir uma massa significativa de pessoas
educadas que se integrem nas nossas futuras elites. E para que
isto se realize é essencial que esta massa de jovens tenha
familiaridade com a leitura. Sem isso sua ascensão será frustrada,
nossa democracia continuará a perigo e nossa sociedade
continuará pobre.

Panorama do Livro no Brasil

Em 1990 éramos cerca de 144 milhões e produzimos em


torno de 1,6 livros per capita. Em 1998 somos quase 160 milhões
e estamos produzindo perto de 2,4 livros per capita, o que
significou uma melhoria real — que pode ser atribuída à
estabilização da economia iniciada em 1995. Entretanto, este
número manteve-se o mesmo entre 1996 e 1998. No ano 2000 as
projeções indicam que seremos 165 milhões e, se o [118] consumo
de livros continuar crescendo apenas passivamente, produziremos
cerca de 2,5 livros per capita — isto é, estaremos marcando passo.
A situação é, aliás, pior do que pode parecer: destes 2,4 livros
per capita produzidos nos últimos três anos, apenas 0,7 são livros
não didáticos. Ou seja, o livro didático, que é praticamente
obrigatório e distribuído gratuitamente pelo governo federal,
constitui a imensa maioria dos livros consumidos em nosso país.
Pode-se afirmar que, na prática, o único livro que o povo brasileiro
conhece é o escolar, e que, terminada a escola, ele deixa de ter
qualquer contato com este instrumento fundamental para o
desenvolvimento social, político e econômico da nação e dos
indivíduos.
Duas exceções importantes devem ser registradas. Uma é o
livro religioso, que cresce muito mais que os outros setores devido
à distribuição mais eficiente e penetrante. Outra é o livro infanto-
juvenil, (às vezes classificado incorretamente como paradidático),
que cresceu devido a sua ligação essencial com a escola.
Constatadas estas duas exceções, todo o resto — livros de
referência, literatura, técnicos, profissionais, científicos —
mantém-se dentro dos 0,7% que não crescem com o passar dos
anos e não acompanham o crescimento dos outros setores de
nossa economia. De fato, na última década, a quantidade de livros
per capita no Brasil tem crescido e decrescido em proporção direta
com o aumento ou diminuição das compras de livros escolares
pelo estado. O livro livremente comprado pelos cidadãos é um
mercado que não se desenvolve.

Os fatores da leitura

Estudos globais encomendados pela UNESCO permitiram


identificar quais os fatores críticos no estabelecimento do hábito
de leitura de um povo ou de uma pessoa: ter nascido numa família
de leitores; ter passado a juventude num sistema escolar
preocupado com o estabelecimento do hábito de leitura; o preço do
livro; o acesso ao livro e o valor simbólico que a população lhe
atribui.
Cada um destes fatores, se atacado isoladamente, não
resolverá [119] o problema. O livro pode até ser barato, mas se
não houver pontos de venda ele não será comprado. Ele pode
mesmo ser grátis. Mas se não houver bibliotecas ele continuará
não sendo lido. A escola pode valorizar a leitura, mas se a
sociedade não o fizer, o hábito se extingue na saída da escola. E
assim por diante. Só programas permanentes que ataquem
simultânea e coordenadamente estes cinco fatores poderão
produzir o aumento progressivo do consumo de livros e o desejado
crescimento da massa crítica de leitores.

O livro na família

Nascer numa família de leitores é um acidente biográfico


bastante raro no Brasil, mesmo entre as famílias de alto poder
aquisitivo, o que significa que qualquer política de expansão da
leitura no Brasil passa pelo estímulo à formação de bibliotecas
familiares. Apesar deste ser um ponto sobre o qual é difícil agir,
temos bons motivos para não desanimar. Pesquisas realizadas
pela Editora Abril Cultural no início dos anos 80 com compradores
de coleções de livros e fascículos vendidos em bancas
demonstraram que cerca de 60% deles — pessoas de profissões
modestas como motoristas, garçons e auxiliares de enfermagem —
vêem nestas enciclopédias e coleções, compradas com sacrifício,
uma forma de financiar a ascensão social de seus filhos.

O livro no sistema escolar

Sabidamente a biblioteca escolar é o patinho feio do sistema


educacional. A carreira de bibliotecário escolar sequer existe.
Ninguém sabe de fato o total destas bibliotecas ou espaços de
leitura nem sua situação global do ponto de vista de acervo,
performance e resultados. Apenas as secretarias estaduais de
educação (e nem todas) estão parcialmente informadas a respeito.
Não há também uma política geral de apoio, organização,
treinamento e fomento da biblioteca escolar, instituição
fundamental para o futuro de qualquer país.
Em certas escolas, especialmente as privadas, a situação
pode até ser descrita como boa — mas é quase certo que na
maioria é precária. [120] Pior: de certa forma a obrigatoriedade da
leitura didática age mais como desestímulo à leitura do que como
fomento. Professores militantes da leitura já perceberam que,
depois de terem interessado as crianças na leitura através de
autores inteligentes e divertidos, esta atividade declina
dramaticamente no colegial, e um dos motivos é que nesta fase a
escola passa a obrigar à leitura dos autores exigidos no vestibular.
Dado que o futuro da nação são suas crianças, e que estas,
mesmo sem pertencerem a famílias de leitores, estão concentradas
nas escolas, a questão do estímulo à leitura na escola é o fator
crítico mais importante e mais descuidado na criação de um público
para o livro brasileiro. Criar um bom sistema nacional de
bibliotecas escolares, dotado de bons programas de estímulo à
leitura, à imaginação e à cultura geral, criará um enorme mercado
presente e futuro para o livro com conseqüências gigantescas na
cultura geral, capacitação e empregabilidade de nosso povo.

O preço do livro está ligado ao problema do acesso


ao livro

O livro é caro no Brasil. É caro se comparado aos preços


internacionais e mais caro ainda se avaliado pelo poder de compra
de nosso povo. O motivo fundamental deste preço são nossas
baixas tiragens. Um livro que no exterior é impresso em 30 mil
exemplares, no Brasil não passa de 3 mil.
Os motivos para estas baixas tiragens são: a falta de pontos
de venda, em especial de livrarias, e a falta de bibliotecas que
comprem livros.

Nossas livrarias

Para um país de 160 milhões temos cerca de 22 mil bancas


de jornal e menos de mil livrarias, a maioria em dificuldades. O
problema fundamental não é sequer a falta de clientes porque
basta abrir uma feira de livros para que a venda de livros de certa
cidade sofra uma explosão. Mesmo para o nosso livro tão caro há
uma demanda reprimida que não é atendida. [121]
É necessário, pois, estabelecer uma política nacional de
fomento às livrarias, seguindo a máxima de José Sarney: A livraria
é um serviço público terceirizado. Esta é uma questão delicada,
pouco estudada, mas essencial para o futuro do livro. Uma
proposta importante, surgida na Câmara Setorial do Livro e da
Comunicação Gráfica, é a criação de um programa especial que
permita às 10 mil papelarias do país voltar a vender livros como
elas faziam no passado antes da venda de livros tornar-se para
elas um negócio desimportante e secundário.
A questão do preço do livro é pois um problema que requer
transformações estruturais muito menos ligadas aos fatos da
produção do que aos fatos da distribuição. Ele só será resolvido
progressivamente com a expansão da rede de livrarias e da rede de
bibliotecas públicas e escolares — expansões estas que permitam
aos editores trabalhar com grandes tiragens e economia de escala.

Nossas bibliotecas

Para obter-se um livro é preciso comprá-lo ou emprestá-lo.


Para comprá-lo é necessária, como vimos, uma vasta rede
nacional de pontos de venda. Para emprestá-lo gratuitamente são
necessárias as bibliotecas públicas.
Uma pesquisa realizada este ano pela Secretaria de Política
Cultural do Ministério da Cultura identificou 3.896 bibliotecas
públicas em todo o país, em sua esmagadora maioria municipais.
Mais de 80% de seu público é formado por estudantes, indicador
indireto da falta de bibliotecas escolares. O acervo da grande
maioria destas bibliotecas não é atualizado há vários anos.
Essencialmente elas não compram livros e sobrevivem com
doações, o que significa que estes acervos crescem ao acaso e sem
uma política racional de compras voltada para as necessidades de
seus freqüentadores específicos, os estudantes. É fundamental
pois que seja criado, para as bibliotecas públicas, um fundo de
compra de acervo, com a participação dos governos federal,
estadual e municipal, da iniciativa privada, da sociedade e de
órgãos internacionais.
Assim, se quisermos utilizar nossa rede de bibliotecas como
um instrumento da batalha pela difusão popular da leitura e da
cultura escrita, [122] abrem-se a nossa frente dois caminhos: a
modernização das bibliotecas públicas e a expansão da rede.

A modernização das bibliotecas existentes

Considerando o grau de subutilização da rede nacional de


bibliotecas, sua modernização permitirá, de imediato, multiplicar
pelo menos por cinco o seu número de usuários. Para isto será
necessário implementar programas de:
1 — Treinamento e mobilização de cerca de 13.000
responsáveis;
2 — Criação de uma política de acervos;
3 — Reequipamento e informatização de toda a rede;
4 — Ampliação de público e implantação de programas de
incentivo à leitura em todas as bibliotecas públicas do país,
coordenados e fomentados pelo PROLER, programa sediado na
Biblioteca Nacional, que já identificou mais de 130 programas de
incentivo à leitura em todo o Brasil.

Expansão da rede de bibliotecas públicas

Mesmo que tenhamos pleno sucesso na revitalização da rede


existente, ainda assim ela é insuficiente para as necessidades do
nosso País. Para atingirmos o nível da Espanha ou da Itália,
precisamos de uma rede com 10 mil ou 15 mil bibliotecas
públicas. O que significa no mínimo triplicar a rede existente,
criando com isto ao menos mais 26 mil empregos. Este objetivo está
longe de ser utópico. O México em 10 anos implantou 5 mil
bibliotecas públicas voltadas em especial para a escola. A
Venezuela e a Colômbia realizaram feitos semelhantes e — em
certos aspectos de qualidade — até mais audaciosos.
Trata-se de um objetivo perfeitamente realizável. Isto foi
demonstrado pelo sucesso do programa Uma Biblioteca em Cada
Município sediado na Secretaria de Política Cultural. Em 1966 o
programa implantou 45 novas bibliotecas. Este número cresceu
para 68 em 1997 e atingiu 212 em 1998. Sendo que, neste último
ano, até julho, o ritmo de implantação superou a taxa de uma
biblioteca por dia, na [123] verdade, 1,7 por dia.

O modelo atual de implantação das novas bibliotecas

O programa Uma Biblioteca em Cada Município está sendo


realizado através de convênios realizados com as prefeituras ou
estados. O Ministério da Cultura não constrói edifícios de
bibliotecas, a não ser no caso das emendas de parlamentares ao
programa. Tanto o prédio — que deve ser próximo à escola ou
num lugar de fácil acesso — quanto a lei de criação da biblioteca,
os funcionários e a linha telefônica constituem contrapartida
obrigatória das prefeituras ou estados.
O programa lhes repassa uma verba de até 40 mil reais,
destinados à compra de cerca de dois mil volumes iniciais, todo o
equipamento, estantes, arquivos, móveis, xerox, vídeo,
computador e o que mais for necessário em cada caso.
Os responsáveis pela nova biblioteca recebem do Ministério
uma carta de recomendação de acervo, que é orientadora e não
obrigatória. Seu compromisso é apenas o de manter um equilíbrio
necessário entre as várias categorias de livros — enciclopédias,
técnicos, infantis, literários, etc. Como resultado da compra pela
própria biblioteca, em alguns estados, como o Maranhão, as
aquisições de livros regionais chegaram a 30%, o que não
aconteceria se as compras fossem centralizadas pelo Ministério.
É importante notar que, apesar deste programa estar sendo
um sucesso e de contar com o apoio geral, as novas bibliotecas
vão precisar de integração, treinamento e renovação de acervo
tanto quanto as velhas, que foram mais ou menos abandonadas a
sua sorte. Isto é, se os programas de apoio e modernização de toda
a rede não forem implementados, em pouco tempo as novas
bibliotecas estarão na situação das velhas.

Outros modelos de biblioteca

Além da biblioteca pública, com sede fixa, existem dois


outros tipos que não podem ser esquecidos: a biblioteca volante e
a mala de livros. [124]
A mala de livros é o que melhor se adapta às regiões muito
pobres ou às de baixa densidade populacional. Sua vantagem é o
pequeno custo associado à mobilização espontânea dos leitores. O
sistema funciona melhor quando coordenado por uma biblioteca
pública. Sua sede pode ser uma casa de família, um
estabelecimento comercial ou uma igreja. Basta um bom armário
com uns cem volumes que são periodicamente substituídos por
um mensageiro da sede central. O armário é controlado pelo
próprio dono da casa que se encarrega dos empréstimos e de seu
controle. O sistema funciona muito bem em várias regiões do país,
inclusive as periferias de Brasília, e merece ser fortalecido como
um serviço extra das bibliotecas públicas. Nas regiões rurais o
carteiro pode tornar-se um personagem importante deste sistema.
A biblioteca volante, também chamada ônibus biblioteca, foi
introduzida no Brasil por Mário de Andrade e ainda funciona em
São Paulo, onde presta bons serviços. Hoje, o modelo mais bem
sucedido do gênero é o Leia Brasil, um empreendimento privado,
financiado pela Petrobras, que, circulando pelas escolas de
municípios sem bibliotecas, atinge mais de 600 mil alunos/mês e
16 mil professores.

O valor simbólico do livro na mente do povo

Este é o último dos fatores críticos listados pela UNESCO


como decisivos na implantação do hábito de leitura de um povo.
Ainda não existe uma pesquisa séria a respeito da imagem e
do prestígio do livro para nosso povo. Ela deverá ser feita para nos
orientar corretamente. Mas não precisamos dela para começar a
trabalhar. Também não havia pesquisa a respeito de nossa rede
nacional de bibliotecas antes de iniciarmos o programa, e ela foi
realizada simultaneamente ao trabalho de implantação das novas
bibliotecas.
As únicas campanhas recentes em favor do Livro e da leitura
foram realizadas pelo MINC e pelo MEC.
Em convênios com os grandes municípios e a Associação
Nacional de Livrarias, o MINC realiza já há três anos, no mês de
Novembro, a campanha Paixão de Ler, que se iniciou em quatro
capitais e já existe em 22. A campanha difere em cada cidade mas
é sempre [125] organizada a partir das bibliotecas públicas e é
dirigida em especial para os professores e estudantes. O MINC
contribui com a divulgação, cartazes e folhetos, alem de um bônus
livro, distribuído pelas bibliotecas, através do qual os professores
podem adquirir o livro que desejarem em qualquer livraria. Já
foram distribuídos mais de 50 mil destes bônus. Este ano o MINC
pretende cobrir todas as capitais do país, em especial suas
periferias.
O MEC, no ano que passou, usando a televisão, realizou a
campanha Ler é Viajar. Entretanto é evidente que estes eventos
meritórios só terão influência sensível nos hábitos da população
se, contando com o apoio da televisão, forem substituídos por
programas permanentes de difusão, propaganda e convencimento.
De todos os trabalhos necessários em favor do livro e da cultura
escrita, este é certamente aquele que menos progrediu e aquele
que ainda pode render muitos frutos — se fugir da mera
publicidade em si mesma e se tornar um instrumento integrado
aos outros programas acima mencionados, testemunhando os
esforços realizados pela nação, sugerindo sua multiplicação,
engajando o povo, as famílias, as escolas, os sindicatos, as igrejas
e as empresas.

Que fazer?

Como vimos, a ampliação contínua do hábito de leitura, a


expansão significativa da indústria editorial e a conseqüente
queda do preço do livro só poderão ser obtidas por um conjunto
simultâneo de medidas diretas e indiretas adotadas pelo estado,
pelas empresas e pela sociedade.
A Câmara Setorial do Livro e da Comunicação Gráfica, onde
foi reunida boa parte da informação acima apresentada,
apresentará em breve alguns resumos de seu trabalho e as
relativas sugestões. Mas desde já podemos ressaltar alguns pontos
fundamentais em torno dos quais deveremos desenvolver
programas específicos de ação. Os mais importantes parecem ser:
a — Estabelecer programas conjuntos com os municípios e
os estados destinados a expandir a rede de livrarias; [126]
b — Programas de ampliação e barateamento da venda de
livros pelo Correio e outros meios que não livrarias;
c — Programas de desenvolvimento das bibliotecas
familiares;
d — Programas de incentivo à leitura na escola básica;
e — Programas de difusão dos livros paradidáticos nas salas
de aula da escola básica;
f — Criação de um programa nacional de bibliotecas
escolares;
g — Modernização, ampliação e treinamento da rede
nacional de bibliotecas públicas;
h — Implantação de programas de incentivo à leitura nas
bibliotecas públicas;
i — Regionalização das feiras de livros;
j — Novo desenho do anteprojeto da Lei da Leitura do Livro e
da Biblioteca;
k — Programa permanente de propaganda da leitura, do
livro e da biblioteca.
Estas sugestões desenvolvidas na Câmara Setorial não
representam tudo o que se pode fazer pela leitura e pelo livro. Mas
se começarmos a trabalhar a sério nestes programas,
coordenando-os num único movimento, certamente estaremos
dando ao nosso povo um poderoso instrumento de acesso ao livro,
à cultura escrita e, portanto, ao progresso social, econômico e
político de nossa nação.
A rigor já sabemos o que fazer, o resto aprenderemos
fazendo. [127]
22 — PAULO CONDINI

Afinal, a formação de que leitor?


Escritor, Diretor da Casa Mário de Andrade-SP,
Assessor Especial para Literatura do Secretário de
Estado da Cultura de São Paulo e Secretário-
Executivo do Comitê Estratégico do Leia Brasil —
Programa de Leitura da Petrobras.

Quando afirmamos que o Brasil não é um país leitor, não


estamos, com certeza, deixando de considerar as milhares de
obras vendidas, todos os meses, nas bancas de jornais e em
clubes de livros; as centenas de milhares de jornais, revistas e
volumes de literatura de cordel; nem as cifras milionárias de livros
didáticos que infestam as estatísticas das diversas associações de
editores.
Certamente, em número absoluto de exemplares, a indústria
editorial do Brasil ostenta respeitável posição na lista dos grandes
produtores de papel impresso, e é sempre este o argumento que
costumam utilizar para minimizar a importância de políticas
públicas de estímulo à leitura que não sejam as de distribuição
maciça de livros, preferencialmente em caráter nacional, o que,
quase sempre, acaba [129] sensibilizando as autoridades
responsáveis, nos vários escalões governamentais.
Números e estatísticas podem ser enganosos.
É conhecida a anedota do nadador que morreu afogado
numa lagoa que tinha a profundidade média de 30 cm.
A quantidade aparentemente imensa de exemplares
publicados, no País, não corresponde nem a dois livros, por
habitante, ao ano...
Quem, por força da profissão, visita remotos recantos do
País, pode dizer das centenas de milhares de obras distribuídas
estragando nas caixas que nunca foram abertas...
Cegueira e teimosia podem ser perigosas.
Que a prática das políticas públicas até hoje adotadas nessa
área não levou a quase nada pode ser comprovado pela
inexistência de um verdadeiro mercado editorial.
Objetivamente, o País carece de distribuidores — mais de
setenta por cento dos livros publicados ao ano são didáticos e sua
distribuição ocorre basicamente entre janeiro e março —; o
diminuto número de livrarias, menos de 1.500 em toda a nação,
tende a diminuir; a ínfima quantidade de bibliotecas,
aproximadamente 3.000 no Brasil inteiro, e todas elas sem verbas
para aquisição e ampliação de acervo, tende agora a aumentar por
força de um programa governamental, o que, esperamos, dê certo;
as tiragens, com raras exceções, caíram progressivamente — em
1981 um livro infantil tinha, em sua primeira edição, tiragens de 3
a 5 mil exemplares. Hoje, variam de 1,5 a 2 mil exemplares —,
para uma população que cresceu mais de 30 milhões de almas no
mesmo período.
Também como efeito perverso deste quadro, as editoras
dificilmente abrem espaço para a literatura, principalmente para
os novos criadores e, especialmente, para os ficcionistas.
Os únicos espaços existentes são para as personalidades
conhecidas da mídia, atores, apresentadores e músicos, cujo
carisma garanta grandes tiragens; ou o das editoras didáticas que,
para fugir à sazonalidade do seu mercado, e poder manter seu
contingente de distribuidores e divulgadores ativos, investem num
tipo de publicação a que denominam paradidática. Como diz o
nome, especializada em obras para leitura em classe, ficcional ou
de divulgação teórico-científica, [130] sempre com o objetivo de
complementar aspectos curriculares não tratados nas obras
didáticas — história, ecologia, geografia, línguas, costumes, etc. —
e sempre a partir de modelos estruturais e temáticos
empiricamente testados em pesquisas com professores e alunos.
Da mesma forma, quando reafirmamos que o Brasil não é
um país leitor, não estamos, com certeza, deixando de considerar
as centenas de milhares de páginas lidas nas escolas de todo o
Brasil pelos nossos jovens e professores. É claro que eles lêem, e
que as escolas, cada uma da sua perspectiva e medida, os
estimulam.
Por certo, para entender o nosso ponto de vista, é
fundamental buscar respostas às perguntas:
Por que eles lêem, e o quê?
E, é evidente que, para dar respostas a estas perguntas,
teremos que aprofundar nosso olhar sobre a escola e o seu real
papel, até chegar à questão primordial:
Que tipo de homem ela pretende formar?
Há muito tempo que, no Brasil, a escola perdeu seu caráter
civilizador. Ainda que renovada em sua ação pedagógica, nosso
ensino cada vez mais está a serviço de preparar os jovens para o
ingresso à universidade, como se todos tivessem essa
oportunidade, e como isto fosse um fim em si mesmo.
Pragmática e superficial, coloca toda a eficiência pedagógica
a serviço do adestramento dos seus jovens, esquecendo, com isto,
a nobre missão de educar: partilhar o saber acumulado, como
forma de ampliar ainda mais os horizontes da humanidade,
provendo a formação necessária a fim de que, seres
biogenicamente equipados para observar, pensar e expressar os
fatos e coisas do tempo e espaço em que vivem, possam
desenvolver-se em sua plenitude, passando da condição de ser
virtual para ser real, ou seja: de um ser de inteligência inata, para
o ser de inteligência cultural, socialmente construída.
É evidente que nossa escola, com raras exceções, favoreça
esse tipo pragmático de leitura, porque ele é fruto de seu
compromisso básico: o de inserir o homem no universo da
Economia de Produção.
Na verdade, quando afirmamos que o Brasil não é um País
leitor, estamos nos referindo a uma outra dimensão da leitura,
fruto de uma [131] outra qualidade de compromisso: o de inserir o
homem também no universo da Antropologia Cultural, abrindo-lhe
as portas para a fruição do patrimônio geral da humanidade; para
a expansão ilimitada do seu espírito e, como conseqüência, para
transformá-lo em um ser civilizador.
Assim foi que todo o saber do Ocidente se criou a partir de
dez algarismos e de trinta e duas letras do alfabeto1.
À soma deste conhecimento, guardada nos livros e noutras
obras do fazer do homem, é o que chamamos nossa herança
cultural, e é o acesso a este tesouro acumulado que nos dá a
verdadeira dimensão de nossa humanidade; que nos diferencia
radicalmente de qualquer outro ser vivo, e que nos propicia a
condição de participar desse processo civilizador.
Em suma, quando asseveramos que o Brasil não é um País
leitor, estamos propondo, com esta afirmação, uma reflexão
corajosa sobre a premente necessidade de mudar a nossa escola;
a real possibilidade de ampliar eficientes programas de leitura já
existentes no País e o dever inadiável de resgatar os que, por
incúria ou equívoco, foram desativados, dando assim o primeiro
passo para a construção do Brasil como uma nova civilização.
1 Este número é relativo ao alfabeto Cirílico, originalmente de 43 letras. [132]
23 — PAULO RENATO SOUZA

Um ponto de vista
Economista pela UFRS. Mestre em Economia pela
Universidade do Chile e Doutor em Economia
pela Universidade de Campinas. Professor Titular
da UNICAMP. Foi técnico do BID em Washington,
Reitor da UNICAMP. Secretário Estadual de
Educação em São Paulo, Diretor da OIT no Chile,
Economista da Cepal. Professor da PUC — São
Paulo, UFRJ, Universidade do Chile e da
Universidade Católica do Chile. Atualmente é
Ministro da Educação.

Quantos de nós não se lembram, às vezes, de frases ou


versos, de contos, poemas ou histórias inteiras lidos ou ouvidos
em nossa juventude ou mesmo na mais tenra infância?
O livro é insubstituível e é evidente a importância da leitura.
Mas nem sempre se pensou assim.
No gymnásion dos gregos não se praticava só a ginástica,
pois os jovens também tomavam contato com os filósofos e suas
idéias, e isso era suficiente para construir um entendimento
cosmológico, indispensável à compreensão do seu tempo. Na Idade
Média, essa cosmovisão vinha por meio das leituras religiosas; no
século XVI, as primeiras gramáticas da língua portuguesa foram
distribuídas para o aprendizado da população, principalmente
para a leitura da Bíblia e temas religiosos. Só mais tarde, [133]
com a chamada filosofia das luzes e a circulação das idéias dos
grandes pensadores modernos, a razão e o conhecimento científico
possibilitaram nova compreensão do mundo. Para isso, o livro e a
leitura foram e continuam se constituindo nos pilares do
conhecimento, apesar de todo o arsenal tecnológico moderno.
A experiência republicana brasileira revela uma permanente
preocupação com o combate ao analfabetismo, com os estudos
pedagógicos e com a formação profissional — na agricultura, no
comércio e na indústria. As políticas para a instrução pública e as
várias tentativas de estruturação de um serviço eram, quase
sempre, descontinuadas. Após meio século de República, os
números não eram nada animadores: uma grande parcela — 55%
da população maior de 18 anos — era composta de analfabetos, e
a oferta de ensino público atendia menos de 50% das crianças em
idade escolar. Esse era o resultado de grande investimento que até
então havia sido feito em favor da educação.
Logo no primeiro governo republicano foi criado o
Pedagogium, inspirado no Museu Pedagógico francês, e, no
segundo, o Instituto Profissional. Mais tarde, surgiram códigos
para o ensino secundário e superior, Institutos e Escolas
Superiores. Em 1909, realizou-se o I Congresso de Instrução, e em
1922, aconteceu a I Conferência Interestadual do Ensino Primário,
sempre com a função governamental da Educação vinculada ao
Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Após a revolução de 30
e a instalação do governo provisório surgiram o Ministério dos
Negócios da Educação e da Saúde Pública, o Conselho Nacional de
Educação, a Reforma Ortográfica da Língua Portuguesa e o
Serviço de Radiodifusão Educativa. No governo constitucional que
se seguiu, surgem o Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos
(INEP), o Instituto Nacional do Livro (INL) e o Instituto Nacional de
Cinema Educativo.
Somente na década dos 50, o já então chamado Ministério
da Educação e Cultura iniciou uma Campanha do Livro Didático
e, a partir de 1955, instituiu o Programa de Edição de Livros
Didáticos. As experiências de co-edições do INL com as editoras e
mesmo a de edição de livros didáticos e literários se
desenvolveram pelos anos 60 e 70, quando surgem o FENAME e a
FAE. Por causa da descontinuidade [134] administrativa
decorrente da mudança de ministros, esses órgãos lançavam
diversos programas que se mantinham por um tempo e logo
desapareciam: as Bibliotecas Móveis, as Salas de Leitura, a
Biblioteca Escolar e a Biblioteca do Professor. No período mais
recente, na década dos 80, foram criados o Pedagogium — Museu
da História da Educação Brasileira e a Fundação Pró-Leitura, que
não permaneceram, e um que se manteve: o Centro de
Informações Bibliográficas (CIBEC), que funciona até hoje,
vinculado ao Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais (INEP), este, criado na década de 30 e transformado
em autarquia, no atual governo, para ser a instituição responsável
pelos censos e levantamentos estatísticos, estudos e pesquisas de
temas educacionais, avaliações e perspectivas da educação em
nosso país.
Nessa retrospectiva, não se vê uma política pública clara e
permanente em favor do livro, da leitura e da formação do leitor. E
isso é indispensável a qualquer jovem do mundo moderno.
A leitura é uma experiência muito ampla que inclui a própria
percepção do mundo e as diferentes formas de compreender os
ambientes. Essa percepção que o homem tem do mundo encontra
no livro a melhor forma de registro, fazendo-nos capazes de
apreender, organizar e construir o conhecimento.
Contudo, podemos ler qualquer manifestação da natureza —
o movimento das estrelas, a marcha das estações, o movimento
das marés ou a fenomenologia das plantas —, assim como os
testemunhos do ser humano — sua simples presença, suas
atividades ou sua produção cultural —, que podem ser
reconhecidos desde os mais remotos documentos arqueológicos
até a mais recente edição de um jornal diário.
Quando olho o céu e concluo “Vai chover”, eu faço uma
leitura dos elementos da natureza, que posso transmitir
oralmente. Entretanto, esse conhecimento só representará um
patrimônio da humanidade quando for registrado de maneira
sistematizada, i.e., no momento em que as nuvens se organizam
de determinadas formas, cores ou volumes e mais, quando o vento
sopra em determinada direção, sob certas condições de força e de
temperatura, sabemos que pode chover. Nesse momento fazemos
a leitura desse conhecimento, podemos registrá-lo e transmiti-lo
por meio de um livro. [135]
Pode-se proceder a uma leitura de todas essas
manifestações, da natureza e do homem, porém, somente através
do registro sistemático, em códigos reconhecíveis, se pode
socializar o conhecimento.
Em nossos dias, muitas novas formas de comunicação são
possíveis, mas todas dependem quase sempre de vários bens
materiais ou tecnológicos — dinheiro, máquinas, energia,
tecnologia — enquanto basta ao leitor ter incorporado o código de
recepção e interpretação dos textos para depender só de si mesmo
para a leitura de um livro.
Se o livro é veículo ou suporte natural dos códigos
lingüísticos, seu objetivo é sempre o leitor. A ele se destinam os
escritos e, portanto, devemos cuidar de sua formação no processo
educativo. O livro didático é a base de todo o processo, o início de
um trabalho com o aluno, com a intenção de desenvolver nele o
gosto pela leitura. Além de ser um elemento básico no processo de
aprendizagem e o domínio da língua, o livro didático é também um
caminho eficaz para se desenvolver no estudante a compreensão
do meio em que vivemos e o gosto pela literatura, desde que tenha
qualidade e o mestre saiba bem utilizá-lo.
Como uma orientação geral sobre a educação fundamental,
nossos estudantes e professores têm hoje à disposição os
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN); o Programa Nacional do
Livro Didático (PNLD) e o Programa Nacional da Biblioteca da
Escola (PNBE), voltados, realmente, ao atendimento da
comunidade escolar no seu sentido mais amplo. Isso está claro
tanto do ponto de vista material e técnico quanto do conceitual, já
que as obras difundem, em seus conteúdos, os valores da
cidadania, promovendo uma formação integral.
A responsabilidade legal do MEC fez com que a compra dos
livros didáticos fosse associada a um rigoroso processo de
avaliação dás obras oferecidas pelas editoras. A maior vida útil
das obras é, também, uma das metas do Programa Nacional do
Livro Didático, cujos decretos de criação e de regulamentação
obrigam à adoção de livros reaproveitáveis e à definição de
critérios específicos para sua reutilização por, pelo menos, três
anos. Podemos, porém, ir mais longe, estendendo, gradativamente,
o aproveitamento do livro. Comprovam isso pesquisas do Fundo
Nacional de Desenvolvimento da Educação e do Ministério da
Ciência e Tecnologia, segundo as quais, os títulos podem ser
utilizados [136] por até cinco anos, como acontece em outros
países.
O mesmo prazo valeria para o projeto educativo da escola.
Os livros passaram por uma avaliação criteriosa dos conteúdos e
metodologias trabalhadas. Eliminamos deles falhas, preconceitos,
insuficiências ou incoerências, sendo selecionados os mais
adequados para a publicação de um Guia, que é distribuído,
anualmente, aos professores. O resultado é uma lista de
qualidade, da qual os próprios professores escolhem os títulos que
querem utilizar em sala de aula.
Para o Ministério da Educação, a leitura é prioridade, e
várias são as iniciativas voltadas para a difusão do livro e o
incentivo à leitura, tanto para os alunos quanto para os
professores. Ampliamos a participação do MEC em diversos
programas, como o PROLER (MEC/MinC/FBN); desenvolvemos
campanhas de incentivo à leitura; criamos programas de
distribuição de livros para as bibliotecas escolares; intensificamos
o intercâmbio e a cooperação internacional. Nesse campo, é
importante citar o “Projeto pró-Leitura”, resultante de um acordo
entre a França e o Brasil, que se dedica à formação do professor e
se desenvolve com sucesso em vários estados brasileiros.
Creio que deva ser essa a estratégia para a atualização dos
acervos das Bibliotecas.
As bibliotecas são de indiscutível importância, de todos os
tipos: bibliotecas escolares, bibliotecas universitárias, bibliotecas
públicas estaduais e municipais, bibliotecas de instituições
públicas, sindicatos e conselhos de diversas categorias
profissionais e de entidades privadas. Tenho notícias de um
razoável desenvolvimento dos acervos e atualização dessas
bibliotecas, nos últimos tempos. Se não se desenvolveram no nível
desejado, pelo menos os atores se envolveram e tomaram
iniciativas.
As parcerias do governo com a iniciativa privada, já
efetivadas, somam mais de uma centena, permitindo o
enriquecimento de acervos como um todo e, às escolas, o acesso a
outros recursos materiais, contribuindo efetivamente para a
melhoria da qualidade do ensino público em nosso país. A
avaliação que faço é extremamente positiva.
Em todos os estados encontramos trabalhos que promovem
a leitura. Existem dezenas de exemplos tocantes, como o dos
professores [137] da cidade de Quixelô, a 400 km de Fortaleza-
Ceará, que, com o projeto A leitura e a escrita no processo de
alfabetização, escolheram os caminhos da leitura e da escrita
como guia para suas práticas pedagógicas nas escolas públicas da
cidade, mudando as relações das crianças com a leitura. A
diretora da Biblioteca Pública Benedito Leite, professora Rosa
Maria Ferreira de Lima, começou a ligar a garotada em literatura
com o Programa Livro na Praça. O trabalho é feito sempre nos
finais de semana, em praças de bairros da periferia, com o apoio
das comunidades, da prefeitura e de empresas privadas.
São pessoas que procuram partilhar a leitura com quem não
desfruta desse privilégio, levando a dimensão social da
apropriação crítica do texto escrito. É como o caso, que apareceu
em um concurso no ano passado, de uma professora aposentada
que vai às ruas da sua pequena cidade ler com as crianças,
motivando-as a buscar, nos livros, um sentido novo para suas
vidas, entre outras tantas experiências originais. Uma vez
conquistada a criança ela terá condições de sair do mundo da
leitura para uma leitura do mundo.
Diferem as formas, as soluções, os locais, mas o objetivo é o
mesmo: qualificar a educação oferecida à maioria de nossas
crianças e jovens, por meio de uma meta comum, que é a leitura
para todos, e assim melhorar as perspectivas do futuro de cada
um.
O importante desses programas que desenvolvem parcerias,
que vão ao encontro dos educadores-leitores, daqueles que estão
fazendo acontecer e despertar o gosto e a necessidade pela leitura
e pela escrita, é que eles agregam, também, pelo mérito dos seus
trabalhos e pela importância do tema, a adesão de vários
parceiros, dando força e representatividade aos movimentos. Além
de editores e livreiros, parceiros “naturais”, são importantes
outros agentes, como serviços sociais, meios de comunicação,
prefeituras, secretarias de educação e de cultura, universidades,
centros de cultura, e de organizações não governamentais. Esse
esforço solidário amplia a ação indireta dos programas de leitura e
os faz crescer tão rápido que ainda não temos condições para
mensurá-lo. [138]
24 — PEDRO BANDEIRA

Esperançando, que é sempre


tempo de esperançar
Professor, ator, publicitário e jornalista até
dedicar-se exclusivamente à criação de Literatura
para crianças e jovens em 1983. Algumas de suas
obras mais conhecidas: A Droga da Obediência, A
marca de uma lágrima, Feiurinha, Descanse em
paz, meu amor, A hora da verdade, Mais respeito,
eu sou criança.

Acredito que ninguém discordará desta afirmativa: nosso


eterno subdesenvolvimento deve-se à nossa ignorância. A riqueza
das nações não mais se baseia na posse de grandes extensões de
terra de boa qualidade para cultivar ou das riquezas do subsolo.
Isso tudo nós temos. O que nos falta é uma população capacitada
a produzir bens utilizando de modo moderno essas riquezas.
O que nos falta é o Conhecimento.
E o Conhecimento está escrito. Mesmo na televisão ou nos
computadores. Nada foi criado até agora que substitua a palavra
escrita como fonte de acesso ao acervo do Conhecimento
acumulado pela Humanidade durante séculos.
Sem dúvida esta é a principal causa do nosso
subdesenvolvimento. [139] Não há plano econômico, por mais
adequado que venha a ser, não há governante, por mais bem-
intencionado que seja, que possa solucionar problemas ligados à
nossa própria incapacidade de agir em favor de nós mesmos. Só
uma ampla e profunda revolução educacional poderá reverter
nosso destino de nação pobre e marginal no contexto do planeta.
Nosso desenvolvimento e nossa felicidade só podem ser
atingidos na medida direta do desenvolvimento de nossa
capacidade de ler, de entender o que está escrito, de “saber como
fazer”, transformando-nos efetivamente em leitores, isto é, em
pessoas que saibam ler criticamente, argumentando, discutindo e
posicionando-nos diante das idéias expostas nos textos. Além
disso, quem lê bem, também entende melhor o que ouve,
protegendo-se de discursos enganosos e aproveitando melhor
discursos positivos.
Para confirmar isso, basta raciocinar sobre um ponto: todos
os países que têm uma elevada taxa de analfabetismo ou de semi-
analfabetismo necessariamente apresentam um baixo consumo de
livros per capita.
E vice-versa: viajando-se, por exemplo, nos confortáveis
trens de países como a Alemanha ou o Japão, sempre
encontraremos praticamente todos os passageiros lendo para
passar o tempo da viagem do modo mais agradável possível. No
Brasil, porém, se estivermos à espera de um avião em qualquer
um dos grandes aeroportos, veremos que praticamente ninguém
estará lendo um livro para preencher o longo tempo de espera
para o embarque. E quem tem dinheiro para viajar de avião
certamente não pode culpar o preço dos livros por sua pouca
ligação com a leitura...
Muitos críticos acusam a televisão por esse nosso descaso
pela leitura. Esquecem-se estes que, antes do advento da televisão
no Brasil, nossa população, mesmo a elite, também não lia.
Diferentemente, países como a Alemanha, o Japão e os Estados
Unidos, os maiores consumidores de livros per capita do mundo,
são ao mesmo tempo possuidores de sistemas de televisão
moderníssimos e com altíssimos índices de audiência.
Nossa juventude não lê? E seus pais? Esses lêem? A verdade
é que nossos jovens não têm o exemplo em casa, e todos sabemos
que a [140] imitação é a base do aprendizado. E não se trata
somente de famílias carentes; mesmo os pais brasileiros de elite,
mesmo muitos médicos e engenheiros lêem muito pouco no Brasil.
Muitos dos professores que criticam os próprios alunos por não
lerem, também não lêem ou lêem muito pouco eles mesmos.
No modo brasileiro, o “ter” é mais importante que o “ser”.
Muitos pais aceitam gastar boas somas de dinheiro para comprar
o tênis da moda para os filhos, mas protestam quando a escola
pede que comprem livros para eles. No modo brasileiro, é mais
importante investir no pé da criança do que em sua cabeça.
Precisamos desesperadamente transformar nossos jovens em
leitores, em bons leitores, antes que eles se tornem adultos iguais
a nós, eternizando nosso destino de pobreza e ignorância. Mas,
como fazer isso? Em que ponto da vida de uma criança deve ser
iniciado o processo educacional?
É claro que em casa. Se um brasileirinho, quando bebê, teve
o privilégio de adormecer no colo da mãe ouvindo acalantos,
certamente não estranhará quando mais tarde for introduzido ao
mundo da Poesia. Se, desde muito pequena, essa criança ouvir
histórias de fadas e contos maravilhosos aconchegada no colo da
mãe, do pai ou da vovó, e se, logo em seguida, puder folhear livros
coloridos, “lendo” as ilustrações mesmo antes da alfabetização
formal, o livro estará para sempre inoculado em suas veias como
portador de sensações, de explicações emocionais, de respostas
para suas dúvidas. Um leitor se faz em casa.
Mas o que fazer se, como já afirmamos, nossas crianças
crescem e vão para a escola sem ter a leitura como exemplo
doméstico?
Acredito que, a exemplo das campanhas de rádio e tevê que
aconselham o aleitamento materno, penso que seriam muito úteis
campanhas do tipo: “Cante com o seu bebê no colo!” e “Conte
histórias para seu filho dormir!” Do mesmo modo como é fácil
fazer os brasileiros consumirem certos produtos simplesmente
mostrando atores e atrizes utilizando esses produtos ao longo de
cenas de novelas, penso que seria ótimo se usássemos esse
recurso para apoiar o livro. O que aconteceria se um protagonista
de novela aparecesse lendo e comentando algum romance com
outro? E se uma de nossas atrizes fosse vista a cantar para [141]
seu bebê, a contar-lhe histórias de fadas, mesmo que fosse de
modo incidental em uma cena de novela?
Bom, mas isto é uma outra história, porque, pelo andar do
carro de bois, a tarefa de formar leitores, no Brasil, cabe quase
que exclusivamente à escola; está nas mãos dos nossos
professores e professoras, profissionais mal treinados, mal pagos,
desmotivados, desrespeitados socialmente. Uma guerra se vence
com bons soldados, não com soldados mal alimentados, mal
treinados e com soldo miserável. Temos de mudar isso já! Temos
de treinar nossos professores, temos de tornar atraente a carreira
do magistério para atrair nossos melhores vestibulandos para ela.
Precisamos de multidões de bons professores, capazes de seduzir
nossas crianças para a leitura.
Falei em seduzir? Pois é isso. Como diz o educador francês
Daniel Pennac, o verbo ler é parente dos verbos sonhar e amar,
pois nenhum dos três suporta o imperativo. Ninguém pode
ordenar que uma pessoa ame ou sonhe; ela sonha ou ama se
quiser. O mesmo acontece com a leitura. Precisamos de
professores que não forcem seus alunos a ler, mas de profissionais
sedutores que demonstrem o prazer, o tesão que é ler uma boa
história.
Contudo, devemos repensar nosso modo de ver a educação.
Provavelmente desde sempre, mas certamente com o reforço da
ditadura militar, abraçamos um conceito de que seria preciso
apressar nosso desenvolvimento educacional, selecionando os
melhores, para criarmos uma elite que pudesse arrastar o Brasil
para a frente. Na mentalidade de nossos educadores e professores,
está o desprezo, a irritação como aluno mais fraco. Nós, os
professores, adoramos dar aula para os bons alunos e
perseguimos os mais fracos, tachando-os de burros, de
preguiçosos, e estamos sempre dispostos a reprová-los,
provocando uma forma cruel de seleção dos mais aptos. E é
comum receber grande respeito social aquele professor duro,
severo, que reprova muito, que pune os mais fracos sem parar.
Agora comparemos esse professor com um médico: um bom
médico é aquele que só se dedica aos pacientes sãos e se irrita
quando aparece alguém doente requerendo seus cuidados? É claro
que não. Quanto mais grave for o estado de saúde do paciente,
maior dedicação ele receberá do corpo médico e das enfermeiras
de um hospital. E isso [142] tudo sem irritação, porque o doente é
o objeto do trabalho da medicina.
Por que com a escola é diferente? Por que expulsamos de
sala, por que punimos, por que expulsamos os alunos fracos?
Temos de imaginar nossas escolas como hospitais que
cuidam de todos os pacientes, menos dos sãos. Isso porque o bom
aluno avança sozinho na escola, pouco precisando de socorro do
professor. São os mais fracos que precisam de nós, de todo o
nosso esforço. O professor que adora reprovar pode ser comparado
ao médico (felizmente hipotético) que adora assinar atestados de
óbito. Tratar somente os sãos, servir somente à elite, como sempre
fizemos e ainda fazemos, selecionar somente os mais aptos e
relegar todo o resto à vala comum tem sido a nossa política
educacional. E isso é fascismo. Só podemos sonhar com
democracia no ensino se nos dedicarmos a todos os alunos,
especialmente aos que mais precisam de nós, os mais fracos. Em
cada escola, deveríamos ter algo como um Centro de Terapia
Intensiva, desde a pré-escola, para que todos os brasileiros
tenham a oportunidade de transformar nosso País.
Senão, não será o caos. Já é o caos.
Vamos sair dele? [143]
25 — REGINA ZILBERMAN
Regina Zilberman, licenciada em Letras pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
doutorou-se era Romanística pela Universidade
de Heidelberg, na Alemanha. É professora da
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
Sul, onde leciona Teoria da Literatura e coordena
o curso de Pós-graduação em Letras. É
pesquisadora do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e
Membro do Comitê Estratégico do Leia Brasil —
Programa de Leitura da Petrobras.

Seja Carlos Drummond de Andrade nosso “guia de leitura”


que, no poema “Biblioteca Verde”, registra as emoções provocadas
pela posse dos livros pertencentes à Biblioteca Internacional de
Obras Célebres, coleção de prestígio distribuída no Brasil no
começo do século XX.1 Depois de muito insistir com o pai, que não
queria adquirir a Biblioteca, mas que, pressionado (“Compra,
compra, compra”, repete o menino), cede, o poeta recorda o modo
como se apropriou dos livros:

Chega cheirando a papel novo, mata


de pinheiros toda verde. Sou
o mais rico menino destas redondezas.
(Orgulho, não; inveja de mim mesmo.) [145]

Ninguém mais aqui possui a coleção


das Obras Célebres. Tenho de ler tudo.
Antes de ler, que bom passar a mão
no som da percalina, esse cristal
de fluida transparência: verde, verde.
Amanhã começo a ler. Agora não.
Agora quero ver figuras. Todas.
Templo de Tebas. Osiris, Medusa,
Apolo nu, Vênus nua... Nossa
Senhora, tem disso nos livros?
Depressa, as letras. Careço ler tudo.
A mãe se queixa: Não dorme este menino.
O irmão reclama: Apaga a luz, cretino!
Espermacete cai na cama, queima
a perna, o sono. Olha que eu tomo e rasgo
essa Biblioteca antes que eu pegue fogo
na casa. Vai dormir menino, antes que eu perca
a paciência e te dê uma sova. Dorme,
filhinho meu, tão doido, tão fraquinho.
Mas leio, leio. Em filosofias
tropeço e caio, cavalgo de novo
meu verde livro, em cavalarias
me perco, medievo; em contos, poemas
me vejo viver. Como te devoro,
verde pastagem. Ou antes carruagem
de fugir de mim e me trazer de volta
à casa a qualquer hora num fechar
de páginas?
Tudo que sei é ela que me ensina.
O que saberei, o que não saberei nunca,
está na Biblioteca em verde murmúrio
de flauta-percalina eternamente.2

A apropriação do texto se dá de modo praticamente


ritualístico: primeiro, ele apalpa a obra, sentindo-a de modo táctil
e explicitando a natureza carnal do livro. Depois, procura as
figuras, detendo-se nas [146] imagens visuais, para só então
mergulhar nas letras, que o conduzem a universos fantásticos,
distantes no tempo, no espaço e nas idéias, mas próximos dele,
dada a materialidade do livro, para onde o leitor, apaixonado,
sempre retorna.
A experiência de Carlos Drummond de Andrade dá-se no
interior da família e da vida doméstica, testemunhada pelo pai, a
mãe e o irmão, que não participam da viagem imaginária do futuro
poeta. Olavo Bilac experimenta fenômeno similar, mas em cenário
diferente, a escola. A crônica “Júlio Verne” registra a admiração do
escritor e de seus colegas pelo ficcionista francês, cujas obras
eram lidas por todos, conforme um processo de socialização
ausente na situação apresentada pelo poema:
No colégio, todos nós líamos Júlio Verne; os livros passavam
de mão em mão; e, à hora do estudo, no vasto salão de
paredes nuas e tristes, — enquanto o cônego dormia a sesta
na sua vasta poltrona, e enquanto o bedel, que era
charadista, passeava distraidamente entre as carteiras,
combinando enigmas e logogrifos, — nós mergulhávamos
naquele infinito páramo do sonho, e encarnávamo-nos nas
personagens aventureiras que o romancista dispersava,
arrebatados por uma sede insaciável de perigos e de glórias,
pela terra, pelos mares e pelo céu.3
O contexto é outro, mas, em ambos os casos, os leitores
vivenciam encantamento similar, fundado na profunda
identificação com a história narrada:
Oh! os homens e as cousas que vi, as paisagens que
contemplei, os riscos que corri, os amores que tive, os sustos
que curti, os combates em que entrei, os hinos de vitória que
encantei e as lágrimas de derrota que chorei, — viajando com
Júlio Verne, conduzido pela sua mão sobre-humana!
Quase morri de frio no pólo, de fome numa ilha deserta, de
sede na árida solidão do centro da África, de falta de ar no
fundo da terra, de deslumbramento na proximidade da lua!
Atravessei areais amarelos e infinitos, beijei com os olhos
oásis esplêndidos, dormi à sombra das tamareiras da Síria e
à sombra dos pagodes da Índia, contemplei o lençol intérmino
das águas dos grandes rios, cacei tigres e crocodilos na Ásia
e na África, [147] arpoei baleias no mar alto, perdi-me em
florestas virgens, naveguei no fundo do mar entre vegetações
fantásticas e animais imensos, ouvi o estrondo da queda do
Niágara, enjoei com o balanço de um balão no meio do céu
formigante de astros, e quase fui comido vivo pelos Peles-
vermelhas!...
A essa exaltação opõe-se o mundo escolar, a que o leitor
volta quando o livro se encerra:
E, quando os meus olhos pousavam sobre a última linha de
um desses romances, quando eu me via de novo no salão
morrinhento e lúgubre, quando ouvia de novo o ressonar do
cônego e as passadas do bedel charadista, — havia em mim
aquela mesma súbita descarga de força nervosa, aquele
mesmo afrouxamento repentino da vida, aquele mesmo alívio
misturado de tristeza (...).
Era o regresso à triste realidade, à tábua dos logaritmos, à
gramática latina, à palmatória do cônego, às charadas do
bedel. Era o desmoronamento dos mundos, o eclipse dos sóis,
a ruína dos astros: era o pano de boca que descia sobre o
palco da ilusão matando a fantasia e ressuscitando o
sofrimento...
Para experimentar efeito similar, o menino Lima Barreto, tal
como o pequeno Carlos Drummond, conta com a solidariedade do
pai, consumidor dos livros de Júlio Verne:
A minha literatura começou por Jules Verne, cuja obra li toda.
Aos sábados, quando saía do internato, meu pai me dava
uma obra dele, comprando no Daniel Corrazzi, na Rua da
Quitanda. Custavam mil-réis o volume, e os lia, no domingo
todo, com afã e prazer inocente.4
Por sua vez, no que se refere aos efeitos dessa leitura, Lima
Barreto está mais próximo de Olavo Bilac do que jamais sonhou a
estética de ambos:
Fez-me sonhar e desejar saber e deixou-me na alma não sei
que vontade de andar, de correr aventuras, que até hoje não
morreu, no meu sedentarismo forçado na minha cidade natal.
O mar e Jules Verne me enchiam de melancolia e de sonho.
(...) Do que mais gostava, eram aquelas que se passavam em
[148] regiões exóticas, como a Índia, a China, a Austrália;
mas, de todos os livros, o que mais amei e durante muito
tempo fez o ideal da minha vida foram as Vinte mil léguas
submarinas. Sonhei-me um Capitão Nemo, fora da
humanidade, só ligado a ela pelos livros preciosos, notáveis
ou não, que me houvessem impressionado, sem ligação
sentimental alguma no planeta, vivendo no meu sonho, no
mundo estranho que não me compreendia a mágoa, nem ma
debicava, sem luta, sem abdicação, sem atritos, no meio de
maravilhas.
Jorge Amado foi outro viajante do imaginário, valendo-se da
ajuda, por um lado, do britânico Jonathan Swift, autor das
Viagens de Gulliver, por outro, de seu professor, o padre pouco
ortodoxo em matéria de ensino, que lhe pôs nas mãos livros
salvadores:
No colégio dos jesuítas, pela mão herética do padre Cabral,
encontrei nas Viagens de Gulliver os caminhos da
libertação, os livros abriram-me as portas da cadeia. A
heresia do padre Cabral era extremamente limitada, nada
tinha a ver com os dogmas da religião. Herege apenas no que
se referia aos métodos de ensino da língua portuguesa, em
uso naquela época, ainda assim essa pequena rebeldia
revelou-se positiva e criadora.5
Leitura é viagem, mostram os escritores: no sentido literal,
quando as obras se deslocam de um centro urbano para o interior
de Minas Gerais, conforme recorda Drummond; e metafórico,
quando são os leitores que rumam para terras distantes e
universos longínquos. Da rotina cotidiana para o mundo da
fantasia o caminho não é longo, desde que o instrumento — o livro
— esteja ao alcance de seu destinatário; e esse percurso é de mão
dupla, porque o leitor invariavelmente retorna ao lugar de onde
partiu. No meio do caminho tem a escola. Bilac contrapõe a sala
de estudos, de “paredes nuas e tristes”, à paisagem exuberante
que sua imaginação freqüenta por força da linguagem de Júlio
Verne. Jorge Amado não está muito longe dessa apreciação,
porque precisou encontrar um padre “herético” para poder
ultrapassar a “limitada vida do aluno interno”6 a que estava
condenado. Brito Broca, por sua vez, divide-se entre a leitura
apaixonada e os deveres escolares, executados sob o olhar
vigilante do pai. [149]
Broca narra de que modo se tornou admirador de Júlio
Verne: por influência da avó materna, foi levado à leitura dos
romances desse escritor e, como Lima Barreto, empenhou seus
tostões na compra dos volumes que, nesse caso reprisando Carlos
Drummond de Andrade, chegavam com dificuldade à cidade
interiorana onde morava:
Na minha infância e nos primórdios da adolescência, embora
me fosse geralmente controlada pela vigilância paterna a
leitura de romances, tive a meu favor a circunstância de
minha avó os ter lido apaixonadamente na mocidade e a
efusão com que meu pai os lia, sempre que conseguia subtrair
algum tempo a uma vida terrivelmente afanosa. (...) Como eu,
embevecido, manifestasse o desejo de penetrar também
nesses mundos maravilhosos, ela tinha o cuidado de me
observar que os meus domínios seriam outros, os de Júlio
Verne, cujo encanto também experimentara. Falava-me das
Aventuras do Capitão Hateras, de Cinco Semanas em
um Balão, de A Volta ao Mundo em Oitenta Dias. Mas
onde encontrar esses livros? Não era fácil adquiri-los, no
Interior, naquele tempo. Marcou, assim, uma data na minha
vida o dia em que, à força de rigorosa economia, poupando
tostão a tostão, consegui mandar comprar em São Paulo o
primeiro romance de Júlio Verne: Atribulações de um
Chinês na China.7
Mas à sua fome de ler contrapõe-se a necessidade de fazer os
deveres de casa, impostos pela escola. A cena noturna, repartida
entre livros de ficção e temas escolares, retrata a oscilação do
menino entre os dois mundos, agora separados pela figura
paterna:
Relembro o quadro. A noitinha, depois que o comércio fechava,
ei-lo entrar, trazendo para casa os livros de escrituração
mercantil, em que trabalhava até pouco depois das dez. Logo
que ele assumia o posto, eu vinha colocar-me defronte, no
outro canto da mesa, com os meus cadernos, os meus livros
escolares. Nem sempre, porém, me entretinha nessa tarefa;
muitas vezes, dando-a por cumprida naquele dia, trazia, em
lugar dos compêndios, um romance e me entregava com
fruição à leitura. Como as horas passavam depressa! Ao bater
das dez, meu pai [150] fechava os vastos in-fólios de
contabilidade (...). Se eu permanecia na leitura, não dando
mostras de me aprontar, também para deitar-me, ele
intervinha: — “Vamos, basta de leitura, são horas de dormir.”
— “Faltam só algumas páginas — desculpava eu — já estou
no fim...” E como os minutos corressem e o fim não chegasse,
ele advertia, já num tom meio severo: — “Acaba com isso, já
disse, tem muito tempo, amanhã, para ler.” Não havia outro
remédio senão fechar o livro, a mente a fervilhar de imagens e
peripécias. Com que desespero, nessas implacáveis dez
horas, interrompi a leitura de tantos romances que me
empolgaram dos onze aos quinze anos! LA deixava os heróis
às voltas com as situações mais complicadas: Phileas Fog e
Passepartout em apuros; Estácio, arrancando a espada,
pronto a morrer por Inezita.
Raras vezes a escola, seu aparato, como salas de aula, seus
instrumentos, como o livro didático, e sua metodologia, como a
execução do dever de casa, provocam lembranças aprazíveis de
leitura. As atividades pedagógicas provocam tédio, quando não são
vivenciadas como aprisionamento, controle ou obrigação. A leitura
parece ficar do lado de fora, porque os professores não a
incorporam ao universo do ensino.
Quem lê, contudo, quer o lado de fora, para onde se desloca,
comandado pela imaginação. Por isso, talvez seja o caso de se
pensar em transformar o “de dentro” da sala de aula em “de fora”
da leitura. Para obter esse resultado, os escritores oferecem o
receituário que os fez leitores vorazes: contestar as normas, como
sugere Jorge Amado; deixar o livro ao alcance da mão, para ser
apalpado, cheirado, folheado, como desejou Carlos Drummond de
Andrade; nunca, porém, deixar que se rompa o fio da viagem,
onde se equilibram todos, esses andarilhos da literatura brasileira.

1 Sobre a Biblioteca Internacional de Obras Célebres, v.


Saraiva, Arnaldo. Fernando Pessoa: Poeta-Tradutor de Poetas.
Porto: Lello, 1996.
2 Andrade, Carlos Drummond de. Biblioteca Verde. In:___.
[151] Menino Antigo (Boitempo — II). Rio de Janeiro: Sabiá; José
Olympio; Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1983. p. 129 —
130.
3 Bilac, Olavo. Júlio Verne. In:____. Ironia e Piedade. In:____.
Obra Reunida. Organização e Introdução de Alexei Bueno. Rio de
Janeiro: Nova Aguilar, 1996. p. 726 — 729.
4 Barreto, Afonso H. Lima. O Cemitério dos Vivos. São Paulo:
Brasiliense, 1961. p. 88.
5 Amado, Jorge. O Menino Grapiúna. Rio de Janeiro: Record,
1981. p. 101.
6 Id. ibid.
7 Broca, Brito. O ‘Vício Impune’. In.____. Escrita e Vivência.
Campinas: EDUNICAMP, 1993. p. 15. [152]
26 — RUI DE OLIVEIRA

A ilustração e a reprodução da imagem


como formas de conhecimento,
e os mitos do original
Designer e ilustrador. Professor do Curso de
Desenho Industrial da Escola de Belas Artes da
Universidade Federal do Rio de Janeiro e
doutorando da Escola de Comunicações e Artes
da USP. Atualmente, desenvolve no CTE —
Centro de Tecnologia Educacional, o Projeto
Animagem — oficina de cinema e animação.
Membro do Comitê Estratégico do Leia Brasil —
Programa de Leitura da Petrobras.

Lembro que a primeira vez em que vi o “Tríptico Portinari,”


de Hugo Van Der Goes, no Museu Uffizi, em Florença, foi na
década de setenta. Eu ainda era um estudante de arte em
Budapeste. Todo o meu conhecimento anterior deste maravilhoso
retábulo da pintura flamenga do século XV estava restrito aos
livros e às reproduções. O primeiro impacto que senti diante da
obra foi pelo seu gigantismo. Foi também a primeira vez em que
tive a vivência das contradições do que significa o conhecimento
diante do original, com as reproduções da obra que conheci
através de livros. Este conflito se acentuou ainda mais quando
estive em frente de Sandro Botticelli, a quem sempre admirei como
um mestre, principalmente em seu período de juventude. Lembro
que neste caso a impressão foi no sentido inverso, isto é, apesar
de na época já conhecer [153] as características técnicas da
têmpera, achei que as reproduções de “Nascimento de Vênus” e a
“Primavera” estariam mais adequadas no múltiplo do que no
original, guardando logicamente as questões de proporção,
textura, etc. Portanto — ainda que de forma intuitiva — eu estava
diante de uma questão que mais tarde viria a me ocupar em
termos teóricos, quando passei a lecionar no Curso de Desenho
Industrial da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Pensando sobre o significado cultural da arte da ilustração,
principalmente como veículo de conhecimento, e a possibilidade
da imagem impressa ser mais verídica do que o próprio original,
pretendo, através deste pequeno estudo, evocar algumas
contradições e preconceitos contra a imagem reproduzida, no caso
a ilustração, que ainda permanecem de forma velada, mas muitas
vezes explicitamente.
Reportando-me ainda à experiência que tive diante do
mestre flamengo, destaco o painel central representando a
“Adoração dos Pastores”. A magistral organização do espaço e o
jogo simbólico das proporções dos personagens deste verdadeiro
presépio sagrado impressionaram-me profundamente. A fruição
desta obra-prima — a partir do real, da presença humana
insubstituível — fora totalmente reveladora para mim, até mesmo
na descoberta da “Anunciação”, pintada por fora das alas, quase
em forma monocromática.
Descrever e rever mentalmente este tríptico é uma aula
eterna de ilustração. Por exemplo: as mãos de José postas em
oração, e as mãos contritas e espirituais de Maria são um ícone
que me ficou para sempre, e que adoto como referência até hoje
dentro de meus limites, quando represento as mãos em meus
trabalhos.
O processo como foi construída a narração neste quadro de
Van Der Goes é uma fonte inesgotável de descoberta para os
ilustradores, desde as flores nos dois vasos, que simbolizam a
pureza, conseqüentemente Maria até a leveza dos dois anjos que
levitam, contrastando com a imagem rústica e ao mesmo tempo
sublime dos pastores. Estas soluções narrativas e simbólicas
fundamentais na ilustração — o que sempre é bom enfatizar —
são uma arte de contar histórias por imagens, que inevitavelmente
nos conduzem a uma reflexão sobre os limites entre a pintura e a
ilustração. [154]
Diante da “experiência do real”, a que me referi no início
deste estudo, gostaria de me deter unicamente neste ponto: os
momentos em que a leitura da ilustração e da pintura realmente
se polarizam. Estou me referindo à questão do múltiplo, da
reprodução em série, e da transmissão de conhecimento. A
ilustração é sempre uma imagem que foi criada para ser
reproduzida. O seu conhecimento pleno, a sua fruição correta
advêm, portanto, do livro. Existem outras diferenças fundamentais
entre a pintura e a ilustração. Porém, no momento, por suas
inúmeras contradições, nos deteremos apenas nesta última.
Seguindo, pois, a trilha acima descrita, chegamos à
conclusão de que conceitualmente o original da ilustração é o
múltiplo. Isto é, a sua reprodução impressa num livro, por
exemplo. No caso da pintura, ela tem o seu estágio maior de
percepção quando estamos diante do original, ou das condições
ideais para as quais esta pintura foi criada. Porém, neste ponto,
começam as incompatibilidades citadas acima. O que realmente
significa o original? A percepção direta do real é sempre a
condição básica de fruição do fenômeno pictórico? Veremos, no
entanto, que esta condição fundamental nem sempre se realiza.
Isto é, a visão do original nem sempre autentica a experiência do
real.
Se deslocarmos esta discussão em direção à arte do nosso
século, chegaremos no “fundo de um poço sem fundo”, como dizia
Tennessee Williams. Citaria apenas alguns exemplos do
Dadaísmo, que questionou, até os últimos limites, o significado de
peça única e do conceito sacro de original. Neste sentido,
transcrevo dois pensamentos enunciados por Picabia, afirmando
que as verdadeiras obras de arte modernas não são feitas por
artistas, mas por pessoas anônimas e comuns.
Continuando ainda com Francis Picabia, ele chega à
conclusão daquilo que seria conhecido como “ready-mades” ao
afirmar que o cordão umbilical entre o objeto e seu criador havia
se rompido, e que não havia diferença fundamental entre o objeto
feito pelo homem e o objeto feito pela máquina — “a única
intervenção pessoal possível numa obra é a escolha”, concluía. O
urinol que Duchamp chamou de “Fonte”, e tentou expor na
Exposição dos Independentes em Nova Iorque, sob o pseudônimo
de R. Mutt, era certamente igual a milhares de outros encontrados
nas lojas. [155]
Muitos exemplos poderiam ser citados no contexto da arte de
nosso século, sobre esta chamada “experiência única” diante da
obra original. Porém, não é necessário tanto radicalismo para
levantarmos a questão ambígua do original, e sua fruição ideal.
Basta retornarmos ao século XIX, mais precisamente ao
Impressionismo, que encontraremos uma outra face deste
multifacetado rosto. Em outras palavras, por exemplo, os efeitos
de luz solar das pinturas de um Claude Monet ou de um Camille
Pissarro: apreciá-los dentro de uma galeria sob luz artificial, ou
tecnicamente elaborada, pode até ser entendido como uma
inadequação no ato de fruir corretamente a pintura destes
mestres. Melhor seria se as víssemos nas condições em que foram
criadas, ou seja, ao ar livre, o que seria sem dúvida mais
compatível com o ato de criação daqueles artistas. Logo, muito
acima do significado de ser original, o que existe na verdade é um
ritual adequado de cognição da pintura, que até pode ser único.
Muitos outros exemplos poderiam ser citados dentro do
universo da escultura, e a impropriedade de sua correta leitura
em galerias e museus, principalmente com relação à luz. Acho
oportuno — diante de todos os mitos e sacralização do que seja
original — levantarmos esta questão, dirigindo sempre nossa
reflexão para a ilustração, e toda a sorte de incompreensões que
ainda a envolve. Todas estas dúvidas nos conduzem a uma
conclusão: de que nem sempre a obra original é vista de maneira
original, existindo também a possibilidade de que a reprodução,
como já foi dito anteriormente, em termos conceituais, seja mais
verídica do que a própria realidade e originalidade da peça única.
Esta discussão é importante pelo fato de a ilustração sofrer
freqüentemente o estigma de uma linguagem menor, a começar
até pelo seu habitual suporte, o papel, muito mais perecível do
que a tela, e em termos de mercadoria e posse ser um
“investimento” de pouco futuro e rentabilidade.
A ilustração seria uma linguagem dirigida pela
circunstancialidade, e, por este motivo, uma experiência e
conhecimento artístico atrofiados. Este preconceito — que é
tristemente real e revela uma absoluta incompreensão até da
própria história da arte e sua discussão — fugiria totalmente dos
limites físicos deste trabalho. Porém, não podemos deixar ao largo
este tema do “fim servido” da arte, e da circunstância que norteou
grande parte da criação em todas as épocas. [156] Bastaria
apenas citar no universo da música alguém que resplandece como
astro eterno — estou me referindo a Johann Sebastian Bach, que
levou ao extremo sublime seu ofício de músico. Como autêntico
artesão, trabalhava copiosamente, semanalmente, para os cultos
dominicais. Em vida mais conhecido como exímio organista, até
hoje nos causa depressão a leitura de suas humildes cartas
solicitando ajuda e proteção para os nobres de sua época. Sua
magistral música — que era meramente destinada ao momento —
tornou-se erudita e transcendente em nossos tempos. Mesmo
assim, como estigma de música “descartável”, sua obra ficou
esquecida após a sua morte. Apenas em princípio do século XIX
Mendelssohn o “ressuscitou”, e é também no início do nosso
século que as transcrições para orquestra feitas por Leopold
Stokovsky o popularizaram, colocando-o num lugar que sempre
foi seu — um monumento da música.
Este apelo a duas referências musicais, inclusive utilizando
a palavra “transcrição”, é da maior importância quando estamos
estudando a relação entre conhecimento e imagem impressa.
Citarei agora um exemplo, infelizmente pouco conhecido, da
complexa relação entre obra original, reprodução impressa e
conseqüente conhecimento da imagem original através da gravura
reproduzida. Evoco o nome e a obra de um dos pintores que mais
admiro e que tem grandes influências em meu trabalho de
ilustrador. Estou me referindo a Henry Fuseli, nascido em 1721 e
falecido em 1825. Este pintor visionário e profundamente
envolvido com a arte fantástica foi contratado em 1786 pelo
marchand e editor Aldermann Boydell para pintar uma série de
quadros sobre peças de Shakespeare, como por exemplo “Sonho
de uma Noite de Verão”. Estes quadros, após serem exibidos em
sua galeria, na verdade se destinavam a servir de modelo para que
fossem feitas gravuras a partir deles, e conseqüente publicação em
forma de livros, e quem sabe até vendidas separadamente. Este
não é um exemplo isolado; artistas ingleses do porte de Romney e
Reynolds foram também contratados por Boydell.
Voltando às pinturas de Fuseli, elas estão hoje em dia em
galerias como Tate Gallery, Vancouver Art Gallery, etc. Sobre este
tema de arte, ilustração e conhecimento, que é na verdade o
motivo central deste trabalho, voltarei a falar mais adiante. [157]
Retornando ao quarto de espelhos, — este labiríntico
exercício que é a concepção de original — as contradições se
aguçam ainda mais quando constatamos que o conhecimento da
pintura dos grandes mestres se realiza em nossos dias,
basicamente, através da reprodução nos livros de arte. Neste
ponto, existe uma analogia com os exemplos que citei acima das
ilustrações a partir da obra de Fuselli, na verdade “transcrições” e
gravuras para peças de Shakespeare. Esta leitura (a reprodução)
possui um processo próprio e extremamente diversificado de ver e
decodificar a imagem original. Portanto, existem vários “originais”
a partir destas traduções visuais, onde até mesmo um trabalho de
“restauro” é obtido através de métodos modernos, como o laser e a
computação gráfica.
Os critérios para reprodução destas obras realmente não
existem. Não se trata de salvaguardar a aura, o valor cultuai, a
obra única e irreproduzível — Walter Benjamin já dissecou muito
bem esta questão. Porém, retornando ao que poderíamos chamar
de imponderabilidade do conceito de fruição original, é muito
difícil aceitar no túmulo de Lourenço de Médici o modo frontal
como é iluminada a peça escultórica representando o
“pensamento”, criada pelo gênio de Michelangelo. Tendo na parte
inferior o Crepúsculo e a Aurora, esta escultura, em pose de
meditação, foi imaginada para ser vista com os olhos em
penumbra, acentuada mais ainda pelo elmo que lhe encobre a
fronte. Isto certamente lhe conferiria um nível mais simbólico e
introspectivo. Entretanto, não é isto que experimentamos nem na
Capela dos Medicis, tampouco nas inúmeras reproduções da obra.
Esta complexa relação entre a experiência do real e a
dramatização da luz, e conseqüente (ou inconseqüente?)
reprodução em livros e catálogos, pode ser melhor compreendida
quando observamos, neste caso, algumas reproduções da pequena
escultura o Hermafrodita — um protótipo de Policie de 150 AC,
que está na Galeria Borghese, em Roma. O escultor o representou
deitado de bruços, intencionalmente encobrindo o atributo
feminino ou masculino, criando uma indefinição, uma
ambigüidade absolutamente clara para o observador. No entanto,
este mistério é revelado de forma unilateral pela iluminação
capciosa criada principalmente na maioria das reproduções da
obra. A luz é dirigida para a região lombar do personagem. Em
termos bem vulgares, — até porque vulgar é a sua iluminação, —
o [158] foco de luz é dirigido precisamente para a bunda de
Hermafrodita.
Nesta parte final do estudo, gostaria, através de alguns
exemplos, de enunciar que a concreção, divulgação do
pensamento, nas mais diversas disciplinas, teve na imagem
impressa a sua real complementação. Tentando encontrar uma
metáfora para a palavra e a imagem, eu diria que a primeira é a
alma e a segunda, o corpo; portanto, parceiras indissolúveis.
Começando pelo Renascimento, e por uma de suas maiores
figuras que foi Leonardo Da Vinci, seus estudos diversificados em
geologia, zoologia, botânica, anatomia, astronomia, além de seus
projetos em máquinas e engenharia, tudo isto é distribuído em
mais de 5.000 páginas de anotações, repletas de ilustrações. Seu
pensamento era portanto materializado pelas imagens, que
assumiam um alto estágio do pensamento visual, com sua própria
sintaxe, ao mesmo nível de suas especulações escritas.
Expressando ao mesmo tempo a beleza e a informação, estas
imagens prescindem em muitas casos da palavra. As indicações
escritas funcionam às vezes como fato complementar. Deste modo
os pensamentos em imagens feitos por Da Vinci são uma
referência para conceituarmos a arte de ilustrar. Neste caso, elas
não contam histórias, elas narram conhecimento.
Permanecendo ainda no Renascimento, foi através das
gravuras italianas, reproduzindo as obras dos grandes mestres,
que o principal vulto do renascimento alemão teve o primeiro
contato com a arte italiana dos “Quatrocentos.” Estou me
referindo ao genial pintor e gravador alemão Albrecht Durer. Este
fato inclusive é documentado por seus estudos a partir das
gravuras de Andrea Mantegna, como a “Batalha dos Deuses do
Mar.” Durer foi o primeiro grande artista alemão a conhecer a
Itália — ele tinha 23 anos quando esteve em Veneza. Certamente o
contato direto com a arte italiana e o seu conhecimento prévio
através de gravuras fizeram com que Durer — diferente dos outros
artistas alemães que tinham os mestres flamengos como modelo
— tivesse um caminho totalmente diferente, e até mesmo
contestador.
Ainda nesta seqüência da imagem impressa como forma de
pensamento, não posso deixar de citar o exemplo de Petrus Paulus
[159] Rubens. Este magnífico pintor, originário da Antuérpia,
onde nasceu em 1577, teve uma vida exitosa como pintor,
cidadão, embaixador e homem das cortes européias. Rubens foi
também um grande ilustrador, utilizando motivos alegóricos,
símbolos, emblemas e figuras mitológicas nos livros que ilustrava.
Repleto de encomendas, trabalhando com uma equipe de
discípulos e com um profundo sentido de negócios, percebeu que
sua obra única poderia ser vendida e difundida através de cópias
em gravuras. Para tanto, montou um atelier com um grupo de
gravadores que iria “traduzir” para um esquema basicamente
linear, em forma de gravuras, a sua obra pictórica. Criou com isto,
inclusive, um estilo próprio, que certamente tinha a sua
orientação. Este estilo, um “Rubens médio”, para o grande
público, ficou tão famoso quanto o “estilo Goltzius”, ou o “estilo
Callot” — estou me referindo a dois grandes gravadores
aguafortistas do século XVI, que criaram uma verdadeira escola de
reprodução de originais de pintura. O importante é dizer que a
popularidade, e principalmente, a extraordinária influência de
Rubens na arte européia da época se deu através de gravuras da
sua pintura.
Para concluirmos sobre a importância da ilustração, e da
imagem impressa como formação de pensamento, quero citar um
curioso exemplo de influência da gravura. O fato em questão é o
famoso quadro de Eduard Manet que tanta polêmica causou em
1863, quando exposto no Salão dos Recusados, o célebre “Almoço
sobre a Relva”. A tranqüilidade de uma mulher nua e seu
displicente olhar para o observador em plena conversa de dois
vestidos cavalheiros causaram um escândalo no grande público,
tudo isso aliado a uma extraordinária palheta, um jogo de luzes,
uma naturalidade até então nunca representada numa cena ao ar
livre. Todavia, este ícone da pintura francesa do século XIX guarda
incríveis semelhanças com uma antiga gravura do século XVI de
autoria de Marcantonio Raimondi, denominada “O Julgamento de
Páris.” Este não é, em absoluto, um exemplo isolado na história da
arte. Enfatizo, pois, que a imagem é realmente um gênero de
pensamento, uma persuasão fortíssima em nossos dias
globalizados, e a nação que melhor usar suas imagens e ícones
dominará, numa primeira fase, todos os fenômenos culturais do
planeta, e, numa segunda fase, o real domínio econômico das
outras nações. [160]
Logo, o estudo da imagem impressa nos mais diversos
suportes e emitido nos mais diferentes veículos de alta tecnologia
é fundamental para qualquer País que tenha um mínimo de
projeto sério quanto ao seu futuro, como nação, como povo, e,
principalmente, como preservação de seus valores culturais. [161]
27 — RUTH ROCHA

Livros X Computador
Paulista, socióloga, orientadora pedagógica e
editora. Escritora premiada de extensa obra de
literatura infantil e juvenil. Membro do Comitê
Estratégico do Leia Brasil — Programa de Leitura
da Petrobras.

Computador é bom. É. Faz coisas fantásticas!


Mas não faz as coisas que um livro faz.
E depois, livro não enguiça, como disse o Millor Fernandes.
E computador, como disse o Ziraldo, não se leva pra cama.
E não se põe uma violeta dentro dele.
O livro guarda tesouros!
E o computador, não guarda?
Ah, guarda.
Mas acontece que os tesouros que o livro guarda são
complementares com a nossa fantasia. E o processo de leitura
possibilita essa operação maravilhosa que é o encontro de que
está dentro do livro com o que está guardado na nossa cabeça.
[163]
Seja na leitura de ficção, de literatura, seja na leitura de um
ensaio.
Os neurônios funcionam em sintonia com a letra impressa.
Completam, enriquecem, complementam.
Quando se lê, se põe em funcionamento tanto as funções
intelectuais do cérebro, o seu lado esquerdo, como o lado direito,
instintivo, imaginoso, emotivo.
Por isso a leitura preenche todos os nossos desejos, todas as
nossas necessidades.
Além disso a leitura desenvolve a independência do espírito.
Não traz tudo pronto, como o computador. Não é sem motivo que o
livro tem mais de dois mil anos.
Como formar leitores?
Fornecendo livros!
Tenho visto um número enorme de pais que dão aos filhos
brinquedos caríssimos. Com o preço de um videogame pode-se
comprar uma pequena biblioteca. Jamais vi um pai entrar numa
livraria e comprar uma pequena biblioteca para seus filhos.
E, sem livros, dificilmente se aprende a gostar de ler. [164]
28 — SÔNIA RODRIGUES

Das dificuldades da exposição


Doutora em Literatura, escritora, criadora do jogo
Autoria e Companhia — de produção de enredos
coletivos —, consultora de projetos de formação
de platéia para empresas e instituições culturais,
colunista do suplemento feminino do jornal O
Estado de São Paulo e colaboradora do Programa
Leia Brasil.

Por que existem mais leitores do que escritores? Por que é


mais fácil aprender a ler do que a escrever? Por que a leitura e a
escrita podem ser usadas automaticamente e, no automático,
mascaram limites de visão e de atuação?
Deve parecer estranho começar a partilhar um ponto de
vista pelas dúvidas e não pelas certezas. Leitora quase que
compulsiva, escritora, doutora em literatura e co-autora de um
jogo educativo de criar histórias em grupo, sempre me intrigou a
dificuldade de contar histórias demonstrada por um grande
número de pessoas.
Durante muito tempo, acreditei que bastava uma boa
iniciação à leitura para que todos pudessem expressar livremente
seu potencial criativo. Transformado em leitor pelo contato com o
produzido pela [165] imaginação alheia, o ser humano seria
sujeito de sua própria obra. As redações, a correspondência, os
relatórios seriam mais coerentes, mais coesos, mais belos. Hoje sei
que isso não é verdade.
A formação do leitor para levá-lo à escrita é um processo
mais complexo. E, talvez, mais misterioso. Não estou aqui me
referindo às pessoas que apresentam um alto potencial de
inteligência para a linguagem, como alguns para a música.
Meu questionamento dirige-se à maioria dos seres saudáveis
com experiências, dores e alegrias comuns à espécie. Com uma
capacidade íntegra de compreender a língua materna e dominar
suas regras.
Por que, mesmo quando são leitores sensíveis, essas pessoas
não se expressam através da escrita? Por que não conseguem
escrever uma história ou mesmo contá-la com clareza de forma a
produzir prazer, terror, riso ou compaixão em outros?
Conheço dezenas de leitores que confessam não conseguir
escrever. Amam o texto literário, porém fazer ficção lhes parece
uma tarefa impossível. Alguns alegam ser esta uma atividade para
eleitos, iluminados, gente dotada de um talento acima do comum.
Outros imaginam os escritores como pessoas que detêm o
privilégio de poder estudar o texto, burilá-lo em condições ideais, e
prometem a si mesmos que um dia, “quando se aposentarem,
ganharem na loteria ou tirarem longas férias”, imitarão. Para os
dois grupos, na maioria das vezes, escrever, mesmo um texto
pragmático, relatório, carta, ofício, é um esforço assombroso.
Fazê-lo com facilidade, um dom.
Depois de seis anos estudando a produção coletiva de texto,
interativa e instantânea dos jogos de representação (RPG),
praticada por jovens, e depois de ter contribuído para a criação de
um jogo, cheguei a um ponto de vista específico que aqui partilho:
escreve o leitor que se mostra. Escreve o leitor que se arrisca à
exposição. O leitor que não teme (em excesso, pelo menos) a
rejeição ou aquele que precisa da companhia, do aplauso, da
apreciação de alguém que o leia.
O escritor é o leitor que escolhe o palco e não a platéia. Ele é
platéia dos outros autores, mas se acha no direito de se expor
também na arena. Talvez não seja nem uma questão de direito e
sim de compulsão. É um leitor que precisa recriar o que leu, viu,
ouviu (como, aliás, todos [166] os leitores o fazem no processo de
produção de sentido). Precisa mais: se arriscar aos aplausos ou às
vaias ao exibir sua recriação.
A formação desse leitor segue passos específicos. É
necessário que se crie um clima de confiança para que os
resultados de leituras sejam partilhados, as primeiras criações
mostradas em público e, principalmente, se demonstre ao leitor,
sempre e sempre, o direito inalienável de recontar histórias.
Óbvio que grandes escritores se formaram em famílias
opressoras, escolas opressoras, regimes políticos idem. Alguns
irão atrás de literatura e de publicar sua literatura mesmo que
canhões busquem impedir. Mas esses fazem parte da minoria dos
resistentes, aqueles que lerão mesmo que tentem colocar uma
venda em seus olhos ou amarrem suas mãos. Para cada um que
tem dentro de si a compulsão de escrever, milhares serão
sufocados pela falta de condições de desenvolverem essa forma de
comunicação humana.
Penso que a maioria das pessoas não acredita ter o direito à
imaginação, ao exercício da beleza a partir de histórias contadas e
recontadas. A não ser no faz de conta infantil, nas brincadeiras de
“casinha” ou de “polícia e ladrão.” Depois desses breves anos, as
pessoas aprendem, na escola e na vida, coisas sérias para passar
de ano, trabalhar, casar, constituir família.
A ficção se torna uma atividade à parte dos “outros”, os
artistas, atores, escritores, roteiristas de cinema ou de telenovelas.
Com sorte, se existir uma iniciação anterior, essas pessoas se
tornarão leitores. Platéia. Escreverão com maior ou menor
dificuldade textos aos quais atribuirão a categoria de realidade. No
trabalho, na correspondência entre amigos ou familiares.
É preciso que se incorpore à formação de leitores o conceito
de invenção do real. O Rio de Janeiro em “Dom Casmurro” era o
Rio “inventado” por Machado de Assis. Da mesma forma, se uma
recém-casada retrata em carta a sua melhor amiga os melindres
da sogra, trata-se de uma sogra inventada também, as cores serão
mais ou menos favoráveis dependendo do relacionamento entre as
duas e a confiança entre a remetente e a destinatária.
A diferença principal, na minha opinião, entre a hipotética
nora e [167] Machado de Assis é que este tinha a certeza de que
alguém perceberia a originalidade do seu Rio de Janeiro e dos
personagens e sentimentos que ali colocava a circular. Se essa
certeza não existia dentro dele, existia pelo menos a necessidade
de encontrar e encantar o leitor. O direito de conquistar um
interlocutor para sua obra. A noção de que seria capaz de recontar
a trajetória de um ciumento, mesmo que Homero ou Shakespeare
tivessem feito isso antes dele.
Acredito que escritores têm, em comum, essa convicção. Têm
algo a dizer e alguém quer ouvir. Ler. Nem que para isso precisem
se expor ao ridículo, às críticas, às concessões. Mesmo que
recorram ao baú das lembranças familiares, à denúncia dos ex-
amores e amigos. À fofoca, portanto. Correndo o risco de imitar,
quem sabe mal, seus autores preferidos.
O resto é talento sim, mas principalmente trabalho. E
maturidade e mais trabalho. E lucidez e mais trabalho. Muito
esforço para seduzir o leitor, sabendo que até chegar a ele existe
uma longa cadeia industrial a ser percorrida.
Isto — a via crucis do escritor — não é objeto dessa minha
reflexão. Quero apenas chamar atenção que é necessário que se
acrescente às atividades voltadas para o projeto de formação de
leitores uma intervenção específica no sentido de ampliar o direito
de recontar. O direito de se expor. A competência do Narciso que
se mostra, não para o espelho, mas para seus pares e diz: “Eu
também sou belo.”
Não basta formar uma sociedade leitora. É preciso que
ousemos mais. É urgente democratizar os segredos da narrativa.
Criar espaços onde leigos, de qualquer idade, se manifestem
livremente como autores. Socializar a idéia de que a leitura e a
escrita como instrumentos de imaginação são um direito. Mais do
que direito ou além dele, são fonte de prazer e arma de combate.
Caminho de redenção e troféu da condição humana.
Qualquer escritor sabe que a imaginação concretizada no
texto tem esses poderes. De Homero a Woody Allen. Só não o
sabem, ainda, os milhões de estudantes que se digladiam com
dissertações onde não conseguem transmitir seus pontos de vista.
Os apaixonados incapazes de colocar no papel o calor dos seus
sentimentos. Os solitários impedidos [168] de estabelecer contato
através da escrita. As vítimas sem possibilidade de defesa ou de
vingança pela palavra.
É indispensável à formação do leitor o exercício da confiante
exposição. Só assim a leitura será um contágio, uma grande
epidemia de autores, cada um no seu território, senhor, rainha,
dono da sua própria palavra. [169]
29 — TÂNIA DAUSTER

Espaços de Sociabilidade:
ouvindo escritores e editores sobre a
formação do leitor e políticas públicas de
leitura no final do século XX
Doutora em Antropologia Social (UFRJ) e Mestre
em Educação (PUC-RJ). Leciona a disciplina de
Antropologia e Educação nos cursos de
graduação e pós-graduação do Departamento de
Educação da PUC-RJ. Coordena o escritório da
UNESCO no Rio de Janeiro. Membro do Comitê
Estratégico do Leia Brasil — Programa de Leitura
da Petrobras.

Este texto emerge de um programa de pesquisa


interinstitucional que vem sendo encaminhado conjuntamente
pelo Departamento de Educação da PUC-Rio e pela Faculdade de
Educação da UFRJ1. Ao longo desta parceria, as seguintes
pesquisas vêm sendo realizadas, desde 1992, sob a coordenação
de Tânia Dauster (PUC-RIO) e Pedro Benjamim Garcia (FAE-
UFRJ):
“Cotidiano, práticas sociais e valores nos setores populares
urbanos,” enfocando alunos de uma escola pública municipal da
Zona Sul do Rio de Janeiro e suas práticas de leitura;
“A formação do leitor — limites e possibilidades da escola” —
, estudando a visão de escritores da chamada literatura infanto-
juvenil, residentes na cidade do Rio de Janeiro; [171]
“Reordenação de linguagens e formação de leitor”, buscando
as percepções de editores de literatura infanto-juvenil que moram
no Rio de Janeiro.
Embora exista uma linha nítida de abordagem temática, que
privilegia o “olhar antropológico”, cada uma dessas pesquisas tem
uma gama específica de questões. Mas, por que falar de um
“programa de pesquisa”?
Sucessivos estudos, oriundos de projetos anteriores sobre a
formação do leitor, vêm configurando continuidades e rupturas em
termos de campos empíricos e de indagações. Apesar disso,
optamos por manter e enriquecer o quadro teórico inicialmente
adotado. Contudo, ao se abordar o universo do livro, percebe-se
que este, como meio de comunicação e difusão dos mais antigos,
ao lado de seu impacto cultural e educativo, comporta também
interesses industriais e econômicos próprios do setor editorial. A
associação destes fatores cria um sistema complexo de parâmetros
aparentemente incompatíveis. Portanto, a investigação do mundo
da editoração e da leitura requer a compreensão das relações
internas entre os diferentes elementos que compõem a “cadeia do
livro”, assim listados em opúsculo da UNESCO: criação literária,
função do editor, impressão, distribuição, práticas leitoras e
construção do significado.

Postura teórico-metodológica

Essa concepção global deveria ser objeto de políticas


nacionais de leitura próprias a cada país, de acordo com as quais
temos construído nossos objetos de investigação.
No enfoque teórico adotado, destacamos o conceito de
cultura, contribuição relevante do campo da Antropologia, fugindo
ao sentido que lhe é dado pelo senso comum e a uma visão
exclusivamente erudita.
Nessa acepção antropológica, cultura significa crenças,
valores, visão de mundo, significados entrelaçados, idéias e
práticas que orientam os indivíduos no seu dia-a-dia (Geertz,
1979), assim como artefatos materiais. Nesta mesma linha,
buscamos entender as diferenças sociais e os modos distintos de
construção da realidade (Velho, 1978), assim [172] como o caráter
relacionai e dinâmico entre as diferentes esferas sociais.
Nosso propósito foi embasado na Antropologia, como
mencionamos, e na História Cultural, tendo em vista compreender
as redes de significado a partir dos pontos de vista do “outro”,
operando com a lógica de suas categorias e conceitos, sem reduzir
nossa argumentação à sistematização destas categorias.
Sabendo que o pesquisador é parte do problema que ele vai
investigar, necessitamos trazer à luz e tentar compreender nossas
idiossincrasias e pré-conceitos, na busca de avançar o
conhecimento da área pesquisada.
Situar o problema na especificidade do social significa
“desnaturalizar” os fenômenos, ou seja, mostrar que fatores como
atitudes, comportamentos, gosto, formação do leitor, relação com
os livros, significado da leitura e fatos similares são socialmente
construídos e nada têm de “naturais”, pois pertencem ao campo
da cultura e das relações nas sociedades. Trabalhando em
contextos simbólicos e comunicacionais, estivemos atentos às
relações sujeito/sujeito e sujeito/ “objeto”, buscando seus
significados, sistemas simbólicos e de classificação, códigos,
práticas, valores, atitudes, idéias e sentimentos, em uma postura
de base antropológica que pressupõe a quebra da visão
dissimuladora da homogeneidade e dos estereótipos.
Nossos caminhos de investigação são marcados pelo
entendimento das diferenças entre posturas simbólicas e as
distintas práticas sociais, o que resulta em significações
específicas e singulares, em cujo horizonte metodológico damos
forma a nossas perguntas. Construímos um referencial
bibliográfico com resumos e análises e textos da literatura
pertinente a nossos problemas. Em princípio, abrangemos o que
vem sendo publicado no Brasil, sob forma de artigos e livros, nas
áreas da Educação, Antropologia e História Cultural.
Esse acervo vem sendo analisado, numa perspectiva de
“estranhamento” e “relativização”, buscando-se lógicas de
representações e ações, assim como padrões de recorrência.
O caminho adotado tem pontos de apoio na pesquisa-diálogo
de Gilberto Velho (1986). De certo modo, fazemos parte do
universo do entrevistado, compartilhamos suas experiências,
tensões, expectativas e [173] ansiedades, e temos, algumas vezes,
gostos, valores e concepções em comum. Reconhecemos como
nossas muitas de suas práticas e, no que tange ao domínio de
livros e leituras, os autores que habitam nosso imaginário e o dos
entrevistados são quase sempre os mesmos. Portanto, trata-se de
uma troca entre sujeitos culturalmente próximos, na qual as
fronteiras entrevistador/entrevistado se diluem.
Queiroz (1998) mostra que a entrevista é, por excelência,
uma situação dialógica e técnica de coleta de dados. Seu exame —
na perspectiva da busca de padrões sociais — representa uma
tentativa de compreensão do social nos indivíduos.
Para situar sociologicamente nossos comentários
posteriores, discutiremos os conteúdos emergentes de escritores e
editores, dois universos sociais investigados nos últimos anos, na
chamada literatura infanto-juvenil2.
Esses escritores se vêem como profissionais, uma vez que
vivem de seu próprio trabalho, têm inúmeros livros publicados e
traduzidos (em países como México, Itália, Alemanha, Estados
Unidos), participam de feiras de livros, tanto no Brasil quanto no
exterior, visitam escolas, são lidos dentro e fora do âmbito escolar,
e são leitores tanto da “grande literatura” quanto de revistas em
quadrinhos.
Quanto aos editores, seus pontos de vista abrangem versões
e perspectivas distintas sobre o universo do livro e a formação do
leitor.
Entre os fatores emergentes nos comentários desses dois
tipos de profissionais, podemos citar:
Referências às ditas crises da leitura por prazer e da
literatura consagrada, ao mesmo tempo em que se constata um
mercado de livros em ascensão, direcionado ao público infanto-
juvenil;
O crescimento desse mercado de livros, associado a vendas
feitas diretamente às escolas;
A necessária redução dos preços dos livros, para atender à
demanda de leitores (embora esta seja uma visão polêmica);
A existência de práticas escolares que afastam os alunos da
leitura;
O espaço da escola como único acesso à leitura e à literatura
consagrada, para a grande maioria da população; [174]
A hipótese do desaparecimento do livro tendo em vista a
difusão do computador e o impacto da imagem na sociedade do
final do século XX.
Após estas breves considerações sobre os universos sociais
investigados, faremos alguns comentários úteis para a elaboração
de políticas públicas de leitura3, embora muitas das questões
levantadas já estejam incluídas no rol de possibilidades previstas
pela administração pública.
Em parte, tal continuidade de propósitos oficiais na área de
políticas públicas de leitura indica que há questões crônicas à
espera de soluções abrangentes, nesta área.

A presença do livro e seus paradoxos

Diz-se que cada vez se lê menos, dado o poder da imagem da


TV e do vídeo. Contudo, nunca se publicou tanto quanto hoje.
Dados quantitativos mostram que o Brasil é um grande mercado
editorial, com significativo contingente de leitores e grande
vitalidade no universo da leitura, como vendas expressivas,
freqüentes feiras de livros, noites de autógrafos, rede de
bibliotecas e grupos de contadores de histórias. Vale lembrar que
nossa Bienal do Livro é a terceira maior do mundo e que este
evento, em 1999, revestiu-se de novo brilho por sua organização
interna, com a presença de autores e especialistas em variados
debates, e com a homenagem prestada à literatura portuguesa,
atraindo imenso público.
Acreditamos, também, conforme temos indicado em outros
textos, que o ato da leitura não se reduz à prática literária e que
tal associação indica uma concepção limitada do conceito de
leitura.
Ao tentar ultrapassar os estereótipos, percebemos uma visão
elitista da leitura e da literatura, que obstrui a vitalidade, o
interesse em torno das diversas práticas e atos de leitura, e dos
leitores. Para Paulo Rangel4, “há uma relação entre o que as
pessoas lêem e o nicho do editor”, o que justifica um leque amplo
e uma diversidade de gostos e ofertas no universo das
publicações. Daí inferirmos que as práticas leitoras e o ofício da
literatura podem ser exercidos de várias formas, o que nos [175]
conduz a uma visão mais complexa e multifacetada dos
fenômenos da criação, da editoração, daquelas práticas leitoras e
dos “leitores” em geral. Isto, entretanto, não nos permite ignorar
ou negar a importância e a qualidade diferencial da literatura
escrita pelos grandes autores, seu significado formativo e seus
efeitos subjetivos.
Podemos, por fim, dizer que a presença do livro é marcante
na cena brasileira, pelo menos no que diz respeito à rede das
grandes capitais.
Contudo, longe de ser tranqüilizador, este quadro revela
paradoxos, entre os quais:
A face da exclusão — considerando-se a população em
termos amplos, são bens escassos: a competência na leitura
silenciosa (que revela familiaridade no ato de ler “enquanto ato de
produção de significado e interpretação” — Chartier, 1990), e a
posse do livro (seja de literatura ou ligado à informação e aos
diversos campos de conhecimento);
O acesso diferencial ao uso e posse do computador — até o
momento, este equipamento não representa a “morte” do livro,
nem da leitura e da escrita, mas apenas um outro suporte para
textos, o que não abala a vitalidade do mercado editorial;
O pequeno número de leitores literários —
comparativamente à população total;
A escassez de bibliotecas públicas e sua concentração nas
áreas privilegiadas das cidades — é importante ressaltar que o
acervo das bibliotecas existentes necessitaria ser constantemente
atualizado, além de ampliado com obras de literatura ficcional e
de referência para a formação dos estudantes5;
O papel da escola — é fundamental na formação do leitor e,
sobretudo, quando se trata do leitor de setores populares, embora
a escola seja vista por muitos como uma “vacina” contra a leitura,
envolvendo constrangimentos à formação desse leitor. Salvo o
risco de generalização indevida, esta visão crítica talvez se deva ao
despreparo de parcela expressiva do professorado, à
obrigatoriedade da adoção de um só livro e ao uso das fichas de
leitura (por alguns consideradas um mal necessário, dada a
precariedade do corpo docente).
Passaremos, a seguir, aos comentários de escritores e
editores, buscando sobretudo as recorrências entre esses dois
universos. [176]

Políticas públicas e estratégias de formação de


leitores

O gosto pela literatura pertence ao domínio da arte. Birman


(1996) comenta que o leitor moderno tem, com o texto, uma
relação de prazer e de revelações imaginárias, na qual “... a leitura
é mais uma forma de aprimoramento da sensibilidade do que de
educação, justamente porque o que está em causa não é apenas o
entendimento, mas principalmente a subjetividade do leitor”.
“O gosto se forma pela opção”, declara Julio Emílio Braz. Já
para Luiz Antonio Aguiar, a formação do leitor se dá na liberdade
de escolha, sem obrigatoriedade. Livro não é material didático e o
professor deve “ir no caminho do interesse da criança”6.
Liberdade, opção e prazer aparecem como valores
relacionados à subjetividade do leitor, mas também devem ser
incorporados à dinâmica das políticas públicas sobre leitura,
dentro e fora da escola. Isto porque é preciso levar em conta a
formação do gosto pela leitura enquanto enriquecimento do
imaginário. Trata-se da lógica da subjetividade, transposta e
traduzida para a lógica da ação e das políticas públicas.
Contudo, parece-nos fundamental trazer o outro lado da
moeda: Jean Hébrard, em comentário no Salão do Livro, em Paris
(1998), recomenda que o discurso em prol da leitura não seja
apenas afetivo, mas contenha um trabalho de leitura, como um de
seus eixos principais. Nesta linha, a escola tem um significativo
papel, no que tange à construção de espaços coletivos de
discussão e debate em torno da leitura e do livro. Isto significa um
esforço intenso de elaboração, construção e negociação do sentido
da própria leitura, a partir do confronto de distintos pontos de
vista. O mesmo autor, em recente palestra na PUC-Rio (1999),
falando de políticas públicas educacionais, apresenta como uma
das vias de entrada para a cultura escrita as práticas do
“aprender a falar”, que fariam da escola o espaço do “ensinar a
falar”.
O professor, enquanto detentor da função de “saber falar a
língua escrita”, seria incentivador de outras maneiras de dar vida
ao ato pessoal da leitura. Neste enfoque, caberia uma
reorganização das sociabilidades da leitura, buscando novas
formas de se falar sobre o que se lê. Ainda segundo Hébrard, este
seria o trabalho da leitura, ou seja, falar da leitura [177] realizada
implica reconhecer a existência do ato de ler. Portanto, dever-se-ia
estimular o diálogo em torno do livro e não “aprisionar” a
literatura, como se ela fora material didático. Neste sentido, é
questionável o uso de encartes, fichas e avaliações. Em relação à
ficha de leitura, ponto muito polêmico, disse Ana Maria Machado:
Já fui muito contra essa ficha (quando ela vem nos livros) e
sei que, hoje, ela é muito criticada. Eu preferia que ela não
existisse, mas reconheço sua importância no Brasil, sobretudo no
caso da professora do interior, sem recursos e despreparada. Para
ela, a ficha dá um mínimo de orientação.7
A escola apresenta uma dupla face na formação do leitor. De
um lado, a obrigatoriedade de leitura de um só livro pode criar
resistências e obstáculos à formação do gosto e do hábito de ler.
Mas pode significar o único acesso a livros, para quem não os tem
em casa.
Nesse propósito, os entrevistados concordam que as políticas
públicas têm que incentivar e apoiar a leitura de livros na escola,
atuando na formação de professores, viabilizando acervos de livros
e favorecendo acesso freqüente a bibliotecas atualizadas.
Assim, Ana Maria Machado sugere que seja garantido, a
cada escola, um acervo de pelo menos 300 livros, de uma lista
básica de aproximadamente 5.000, escolhidos por uma comissão
de especialistas. A autora lembra, também, que traduções bem
feitas são boas leituras e que, portanto, os professores de
português poderiam indicar livros estrangeiros.
Também merecem atenção as campanhas incentivadoras do
hábito de ler, envolvendo distintos estimuladores, como grupos de
contadores de história e outros, além de recursos como programas
televisivos, etc.
Relata Ana Maria uma iniciativa inglesa de leitura em
colégio, acessível a qualquer outro país. Trata-se do “Projeto de
Leitura Silenciosa Contínua”8. Essa autora nos conta a vivência de
sua filha nessa experiência, em 19889:
No primeiro dia, a única coisa que ela trouxe para casa foi
uma pasta com fecho éclair, de plástico transparente, onde estava
escrito USSR. Dentro, havia uma folha mimeografada, com um
cabeçalho que [178] continha data, título do livro, autor e
comentário da família, em quatro colunas. Atrás vinham
informações sobre o Projeto: entre elas, a de que a escola havia
aderido à campanha do USSR, que não era obrigatória. Podem dela
participar escolas públicas ou particulares, mas é basicamente
voltada para as primeiras. A escola se compromete a determinar um
horário semanal para leitura silenciosa. A de minha filha optou por
40 minutos. Outras optam por 30 minutos, uma hora. Neste período,
eles avisam aos pais que não tentem vir ao colégio, porque ninguém
vai poder recebê-los. A leitura silenciosa é para toda a escola: do
porteiro à diretora, todos lêem. A professora não pode ficar
corrigindo caderno, o homem da cantina pára tudo. Não se atende
ao telefone. Este horário deve ser antes do recreio, porque se
alguma criança estiver em um ponto do livro em que não queira
parar, pode continuar durante o recreio. Ao acabar a leitura, todos
voltam a suas obrigações. O professor não pergunta: “O que faz tal
personagem?” Alguém poderá até indagar: “Quantas páginas você
leu?” Mas o aluno só precisa registrar na folha os dados do livro da
biblioteca, levando a fichinha para casa. Aí, irmão, irmã, avô, avó,
pai, etc, devem completar a parte da opinião da família sobre a
leitura da criança: “Ele gostou...”, ou “ele não gostou...”, “que bom
que ele está lendo esse livro...”, ou “nunca ouvi falar nesse autor,”
etc. Alguém da família tem que ter uma opinião sobre aquele livro,
colocando-a na ficha até o dia da próxima leitura, prazo dado pela
escola. Após a terceira semana, se o aluno não trouxer a opinião de
casa, os pais são chamados ao colégio para uma conversa. O
interessante é que a família se envolve nesse projeto. Outro critério
importante na escola inglesa é o sistema de pontos, em que uma
série de atividades, inclusive essa campanha da leitura, torna a
escola prioritária para receber ajuda do governo. Por exemplo, tendo
comprado um determinado número de livros novos para a
biblioteca, a escola conta pontos para o sistema. Se precisa
cimentar novamente o pátio ou colocar uma grade nova, poderá
também utilizar os pontos da campanha. Essa experiência existe há
24 anos e aplica-se apenas à escola primária. Uma avaliação
mostrou que ela conseguiu aumentar a freqüência da leitura entre
os jovens.
Outro ponto recorrente, no discurso de nossos entrevistados,
diz [179] respeito à disseminação de bibliotecas. Idealmente, a
maioria delas deveria ser de estaduais e, portanto,
necessariamente diversificadas, com uma dupla entrada na
escolha de seus acervos: ao mesmo tempo centralizados e
contendo obras de autores locais.
Segundo recomendação da UNESCO, a relação tolerável é de
uma biblioteca para cada 12.000 habitantes. De acordo com
dados veiculados pelo Jornal do Brasil10, há 3.500 bibliotecas
públicas e 22 milhões de brasileiros alfabetizados não têm
biblioteca próxima a suas casas. Para se alcançar o ideal, seria
necessário criar aproximadamente 2.000 unidades.
É claro que mais bibliotecas devem ser criadas e atualizadas,
mas elas têm que funcionar como espaços vivos, nos quais os
bibliotecários, assim como os professores, são preparados para
estimular a formação do leitor.
Do ponto de vista econômico, autores e editores insistem no
barateamento do livro, por meio da redução de impostos sobre a
produção. É reiterada também a publicação de obras de domínio
público, melhor distribuição em bancas de jornais e investimento
em edições de bolso.
Em suma, preços altos e baixas tiragens são considerados
“inimigos” do livro e da formação do leitor.
No que diz respeito ao grande evento da Bienal, pesquisa
recente da empresa de pesquisa Vox Populi conclui que mais de
90% da população brasileira não têm o hábito de ler, o que indica
a importância de se difundir, no país, pequenos eventos, como
feiras e salões de livros, que não deveriam ficar limitados apenas
às grandes capitais.
Para finalizar, volto à tese central da UNESCO (1996):
Desenvolvimento econômico não é variável independente.
Inúmeros projetos de desenvolvimento sócio-econômicos
fracassaram, por não levar este fator em conta. Os fatores
econômico e cultural se interpenetram. Dado o papel constitutivo da
cultura, teremos que pensar o desenvolvimento em termos que
englobem também o crescimento cultural.
Buscando uma síntese, diria que são culturais as políticas
de leitura. Cabe aos responsáveis pelos equipamentos de
educação e cultura promoverem parcerias, criando as teias
articuladoras entre família, escola, [180] bibliotecas, museus,
cinema, teatro e música, enfim, tecendo a rede cultural na qual o
leitor se forma.

Referências Bibliográficas

BIRMAN, Joel. O sujeito na leitura. In: Por uma estilística da


existência. São Paulo: Editora 34, 1996.
CHARTIER, R. A História cultural entre práticas e
representações. Memória e sociedade. Lisboa: Difel, 1990.
_____. A ordem dos livros. Brasília, Editora UNB, 1994.
_____. As práticas da escrita. In: História da vida privada —
da Renascença ao século das luzes, 3. São Paulo: Companhia das
Letras, 1991.
CUÉLLAR, J. P. (org.) Nossas diversidades criadoras.
Relatório da Comissão Mundial de Cultura e Desenvolvimento
(UNESCO). Campinas, SP: Papirus, 1996.
DAUSTER, T. Leituras no Rio de Janeiro. In: Testemunho III.
Antologia em prosa e verso. Rio de Janeiro: Oficina do Livro
Ltda., 1994.
_____. O Cipoal das letras: entre olhares, recortes e
construções da Antropologia e da História, no contexto de uma
pesquisa sobre leitura. Seminário “História da Educação
Brasileira: a ótica dos pesquisadores”. Leitura: teoria e prática,
Campinas, SP, revista da Associação de Leitura do Brasil (ALB),
Fac. de Educação UNICAMP, Ano 15, n. 28, dez. 1996. Série
documental: eventos, INEP-MEC, n. 5, maio/1994, p. 48 — 54.
_____. Jogos de inclusão e exclusão sociais — sobre leitores e
escritores urbanos no final do século XX. Anuário da Educação,
Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro (org. Barbara Freitag), 1997-
1998.
_____.; MATA, M. L. O valor social da Educação e do trabalho
em camadas populares urbanas. Rio de Janeiro: CNPq/OEA,
Departamento de Educação da PUC-Rio, 1990.
_____.; MATA, L.; GARCIA, Pedro, B. Cotidiano, práticas
sociais [181] e valores nos setores populares urbanos — a difusão
diferencial da escrita e da leitura e o significado da imagem entre
os jovens. Rio de Janeiro: CNPq, Departamento de
Educação/PUC-Rio. Projeto (1991), Relatório Final (1994).
GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro:
Zahar Edit., 1979.
QUEIROZ, M.I. Experimentos com histórias de vida (Itália-
Brasil). Org. e introdução de Olga de Moraes von Simson. São
Paulo: Vértice, 1988.
VELHO, G. Observando o familiar. In: A aventura
sociológica. Rio de Janeiro: Zahar Edit., 1978.
_____. Subjetividade e sociedade — uma experiência de
geração. Jorge Zahar Editor. Rio de Janeiro, 1986.

1 Vale esclarecer que as recorrentes pesquisas sobre a


formação do leitor, dentro e fora da escola, têm recebido o apoio
do CNPq, incorporando alunos de iniciação científica, mestrandos
e doutorandos, tanto da PUC-Rio como da UFRJ. Dissertações,
teses e artigos vêm sendo elaborados e estes últimos,
apresentados em seminários, no Brasil e no exterior, pelos
componentes da equipe.
2 Esta classificação corresponde às concepções de alguns
dos escritores. Vale dizer, contudo, que a literatura infanto-juvenil
brasileira é vista como uma das melhores do mundo e comparada
qualitativamente à inglesa.
3 Trata-se de iniciativas públicas e privadas importantes,
como: o programa PROLER, articulado à Biblioteca Nacional; a
campanha “Paixão de Ler”, da Secretaria Municipal de Cultura do
Rio de Janeiro; e o “Leia Brasil”, programa da Petrobras apoiado
pela UNESCO.
4 Em entrevista realizada em 1996, para a pesquisa A
formação do leitor — limites e possibilidades da escola.
5 A Secretaria Municipal de Cultura, na gestão de Helena
Severo, começa a implantar bibliotecas em áreas faveladas, tendo
sido iniciadas essas atividades no contexto de ações do Programa
Favela-Bairro. [182]
6 Em contatos realizados para a pesquisa A formação do
leitor — limites e possibilidades da escola, em 1996.
7 Em entrevista realizada em 1997, para a pesquisa A
formação do leitor — limites e possibilidades da escola.
8 Uninterrupted Sustained Silent Reading (USSR).
9 Em entrevista realizada em 1997, para a mesma pesquisa,
A formação do leitor — limites e possibilidades da escola.
10 (Informe JB, 1997). [183]
30 — WALDA DE ANDRADE
ANTUNES

Leitura e biblioteca
Bibliotecária, Mestra em Planejamento
Bibliotecário. Doutora em Educação, Professora
do CID — Departamento de Ciência da
Informação e Documentação da Universidade de
Brasília, Diretora Técnica da WA-CORBI. Membro
do Comitê Estratégico do Leia Brasil — Programa
de Leitura da Petrobras.

Era da informação. Mais do que isso — era do conhecimento.


A sociedade globalizada, ao tempo em que se defronta com o
encontro de profissões, tendências, demandas, enfrenta mudanças
que chegam a todos os segmentos desta sociedade exigindo dos
indivíduos um maior aporte cultural e educacional. De outra
parte, o país vive um dos momentos mais significativos de sua
história, no qual se vê obrigado a acelerar o processo de
modernização sobre novas bases políticas na busca de
consolidação e fortalecimento da vida democrática.
Enquanto o país enfrenta grandes desafios no concerto
internacional, motivado pelas freqüentes mudanças nas relações,
importantes avanços científicos e tecnológicos, passíveis de
fortalecer o desenvolvimento, criam o risco de gerar maiores
desequilíbrios dentre [185] aqueles que não dispõem de
articulações calcadas no campo cultural e não detêm reais
potencialidades e recursos próprios. As ações governamentais
tendentes à globalização em todos os aspectos precisam se voltar
para a promoção da auto-realização dos indivíduos. Sendo assim,
a elevação do nível cultural e educativo, fundamento essencial
para as transformações esperadas, se assinalam como prioritárias
medidas voltadas para a adoção de diretrizes que garantam a
formação de leitores. Medidas urgentes, ousadas e de impacto
devem constituir planos de ação abrangentes que fortaleçam a
solidariedade nacional e garantam o engajamento de todos os
setores da sociedade. Aponta-se, neste alvo, talvez a única
possibilidade de ampla participação do indivíduo no processo de
formação do seu conhecimento e no esforço maior de participar da
construção de uma sociedade globalizada e igualitária — ser este
indivíduo leitor, freqüentador de bibliotecas, usuário da
informação.
O livro, a leitura e a biblioteca alinham-se como importantes
componentes sociais e, em especial, do sistema educativo.
Somam-se a isto os meios de comunicação e veiculação, de modo
a que o livro seja disponibilizado e atenda as muitas demandas de
leitura de forma que a aprendizagem, o acesso à informação e ao
conhecimento ocorram plenamente. Promoção da leitura tem
nítidas interfaces na luta contra o analfabetismo, cuja eliminação
é condição essencial do desenvolvimento e bem-estar dos povos.
Porém, promover a leitura é tarefa que deve estar respaldada
por medidas que garantam a disseminação do livro, fortalecendo a
todas as instâncias (criação, produção, disseminação) para que
isto aconteça. O campo editorial brasileiro, registrando expressivo
desenvolvimento, especialmente no que se refere à produção de
livros infantis e infanto-juvenis, é capaz de contribuir efetivamente
para o desenvolvimento da leitura. Destaca-se como estrutura
básica-suporte neste contexto o papel de serviços bibliotecários
em suas diversas modalidades, de modo a atingirem as
comunidades, independente de sua situação geográfica. Cabe,
desta forma, a ação de políticas públicas que garantam o
desenvolvimento dos acervos das bibliotecas escolares e públicas
para permitir a estas unidades o verdadeiro cumprimento de sua
missão — formadora de leitores e disseminadora de informações.
[186]
A biblioteca é centro dinâmico de promoção da leitura, de
apoio à aprendizagem, centro de disseminação cultural, de
informação. Especialmente bibliotecas públicas e escolares trazem
em sua missão explícita a participação no desenvolvimento do
indivíduo. Se por um lado a educação deve permitir o pleno
exercício da dúvida, da especulação e da busca da verdade, por
outro podemos dizer que o homem educado não é
necessariamente um homem sábio, mas um homem capaz de
buscar o caminho da sabedoria. Por esta razão, os especialistas
situam a educação como um processo em permanente
desenvolvimento. Ninguém pode ser considerado educado, se não
for capaz de adquirir novos conhecimentos. A ausência de
bibliotecas nas escolas e nas comunidades priva os alunos, os
cidadãos, das oportunidades de leitura, de facilitação da
aprendizagem, de acesso ao conhecimento. Se educação e,
conseqüentemente, a cultura são partes integrantes e
fundamentais da formação dos indivíduos, a leitura do livro, a
disponibilidade ofertada pela biblioteca, são molas propulsoras do
desenvolvimento da individualidade, da independência na busca
da informação. À diversidade de possibilidades que uma biblioteca
oferece pela leitura de muitos autores, pela diversidade de idéias,
soma-se a função de elemento de comunicação, a compreensão da
mensagem, o conteúdo que é lido por parte de quem lê —
condições e insumos importantes que levam o indivíduo a
construir o seu próprio pensamento, a ter as suas idéias. A
liberdade experimentada em uma biblioteca é extremamente
relevante, quer seja biblioteca escolar ou pública — desvencilha-se
de qualquer método que possa resultar em unificador no processo
de ensinar, restrito à previsibilidade de ações.
O desenvolvimento da leitura, na escola, está intimamente
vinculado ao livro. As primeiras atividades de aproximação
estabelecidas ainda na pré-escola têm no livro de literatura o
despertar do interesse na criança. A livre escolha, o
direcionamento ditado pelo interesse, pela curiosidade, pelo
prazer, a caminhada que aí se inicia, vai desde o apego emocional
que cresce na medida em que o livro assume um significado maior
na vida da criança, quer como o veículo que desvenda novos
horizontes, que amplia o seu mundo, que sacia a sua curiosidade,
que oferece as grandes oportunidades de crescer além da dimensão
que a sala-de-aula lhe propicia. (ANTUNES, 1998) [187]
A propósito ABRAMOVICH, F. (1989), escritora brasileira,
expressa o seu pensamento na introdução da obra Leitura
infantil: gostosuras e bobices, quando narra:
...Ah, a volúpia de ler sozinha, de mergulhar no mundo
mágico das letras pretas que remetiam a tantas histórias
fantásticas!!! Como era triste e comovente. O soldadinho de
chumbo, é também triste e dadivosa. A sereiazinha, dois contos de
Andersen... como era deleitoso, delicioso, lagartear... com os livros
de Monteiro Lobato. Era gostosura pura, era maravilhamento total...
E essa volúpia de ler, essa sensação única e totalizante que só a
literatura provoca, esse ir mexendo em tudo e formando meus
critérios, meus gostos, meus autores de cabeceira, relendo os que
me marcaram ou mexeram comigo dum jeito ou de outro, esse
perceber que ler é um ato fluido, ininterrupto, de encantamento e de
necessidade vital, é algo que trago comigo desde muito, muito
pequenina... E foi algo que me tornou essa viciada total em ler que
sou até hoje!...
Ler, para mim, sempre significou abrir todas as comportas pra
entender o mundo através dos olhos dos autores e da vivência das
personagens... ler foi sempre maravilha, gostosura, necessidade
primeira e básica, prazer insubstituível...
A diversidade de livros que uma biblioteca oferece em seu
acervo favorece a habilidade de ler, além de atender às
necessidades naturais de leitura e interesse do leitor. Ainda,
garante o oferecimento de materiais, orienta e cria condições para
que o aluno vivencie experiências enriquecedoras e, através do
livro, não obtenha apenas a informação, mas que este se converta
em forma de lazer, prazer e freqüência nos momentos livres. É
ainda na diversidade que a biblioteca pode oferecer que o aluno
passa a distinguir o que seja uma boa leitura, atrativa,
convidativa, instigante, fortalecendo, desta maneira, o hábito de
ler.
E o que mais se espera: um leitor autônomo, um usuário
que sabe escolher o livro, procurar a informação. Um leitor que
usa a informação, que a amplia, pelo conhecimento.
Ressaltada a importância do papel da biblioteca como
fundamental no contexto de formação do leitor, registra-se, aqui
também, a preocupação expressa por tantos quantos o
reconhecem. A biblioteca, [188] especialmente aquela cuja
clientela identificada é o leitor ou potencial leitor infantil —
bibliotecas infantis, bibliotecas escolares e seções infantis em
bibliotecas públicas não ocupam o espaço que lhes é devido junto
à educação e à cultura.
Ressalte-se ainda o fato de que a descontinuidade está
sempre presente no trabalho da biblioteca na escola: o
responsável pela biblioteca é a primeira.
Além disso, ressalte-se o papel da biblioteca com relação à
oportunidade de manipulação de diferentes materiais impressos e
audiovisuais, tomando contato com outras linguagens,
favorecendo o desenvolvimento de outras formas de comunicação,
expressão e leitura.
A ampliação de visão de mundo soma-se às experiências de
leitura. [189]

Nota da revisora: Páginas em branco: 10, 30, 44, 54, 60, 70, 74, 80,
108, 116, 128, 144, 162, 170, 184

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