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PROFESSORES INICIANTES E PROFISSIONALIDADE 221

Professores iniciantes dos cursos de licenciatura: corrosão ou


constituição de novas profissionalidades?

Beginning teachers of degree courses: Corrosion or constitution


to new professionalities

Laurizete Ferragut Passos1


Lisandra Marisa Príncepe1
Nayana Cristina Gomes Teles1
Rodnei Pereira1

Resumo
A investigação aqui relatada está centrada na perspectiva de que a presença de um corpo docente
renovado vem atuando nos cursos de formação de professores e exigindo um olhar mais apurado
para as condições de ingresso e de trabalho, bem como para as práticas e para o apoio institucional
como fatores fundantes da profissionalidade de professores iniciantes. O foco do estudo está direcionado
para a relação entre as condições de trabalho e a constituição da profissionalidade desses formadores
de professores que iniciam sua carreira no ensino superior. Pretende-se, assim, identificar os possíveis
fatores de corrosão e/ou de constituição de novas profissionalidades de professores formadores que
atuam em diferentes cursos de licenciatura de instituições públicas e privadas. Os dados foram coletados
junto a seis professores dessas instituições por meio de entrevistas. Foram identificados fatores de
corrosão da profissionalidade, como a intensificação, precarização e individualização do trabalho, ao
lado de fatores constitutivos da profissionalidade, assentados no compromisso ético, social e cultural
e, especificamente, na busca pela aprendizagem da docência a partir dos conflitos e contradições da
sala de aula.
Palavras-chave: Condições do trabalho docente. Curso de licenciatura. Formador de docentes.
Profissionalização docente.

Abstract
The present investigation focuses on the perspective that the presence of faculty renewal in teacher training
programs demands a closer look at the admission process and work conditions, practices and institutional

1
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Faculdade de Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação: Psicologia da Educação e Formação
de Formadores. R. Ministro de Godóy, 969, 4° andar, sala 4E07, Perdizes, 05015-901, São Paulo, SP, Brasil. Correspondência para/Correspondence to: L.F.
PASSOS. E-mail: <laurizetefer@gmail.com>.

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support as founding factors for the professionalism of pre-service teachers. The study focuses on the direct
relationship between the working conditions and the professional training of professors who have began
their career in higher education. We endeavored, therefore, to identify possible harmful factors and/or the
establishment of new professional aspects of professors who work at different private and public teaching
training programs. Data was collected from six professors from these institutions through interviews. We
identified harmful factors concerning professionalism, such as intensification, precariousness and
individualization of work, along with constitutive factors of professionalism based on ethical, social and
cultural commitments and particularly in pursuit of learning from teaching from conflicts and contradictions
in the classroom.
Keywords: Teacher’s work conditions. Degree course. Teaching professionalization. Beginning teacher trainer.

Introdução Busca-se, na pesquisa atual, ampliar a


compreensão desses aspectos, com foco nos
processos de constituição da profissionalidade
O presente texto constitui-se a partir de docente de professores dos cursos de licencia-
uma pesquisa desenvolvida na disciplina- tura, que estão iniciando sua trajetória no
-projeto ‘Profissionalidade Docente de magistério superior como formadores de pro-
Professores Formadores dos Cursos de fessores da Educação Básica.
Licenciatura em Início de Carreira’, desenvolvida A decisão de investigar esses sujeitos
junto ao Programa de Estudos Pós-Graduados ocorreu após a revisão das pesquisas sobre o
em Educação: Psicologia da Educação, da professor iniciante do ensino superior, realizada
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, no início da investigação. Constatou-se que a
nos anos de 2013 a 2015. A disciplina foi temática, ainda silenciada aqui no Brasil, tem
conduzida pela primeira autora, a partir de sido objeto de preocupação de vários pesqui-
algumas indagações originadas no contexto de sadores internacionais, principalmente os
uma pesquisa anterior, que tomou como foco espanhóis. Ainda é reduzido o número de
o trabalho docente do professor formador pesquisadores brasileiros que se voltam para o
atuante nos cursos de licenciatura (André et al., iniciante desse segmento do ensino.
2012). Nessa investigação, feita com 54 Outro motivo em que esteve assentada
professores de cursos de licenciatura, alguns a decisão é o fenômeno da expansão crescente
dos aspectos analisados referiram-se ao da universidade privada e, na atual conjuntura,
processo de constituição de sua profis- também o crescimento da pública na esfera
sionalidade, aos desafios e estratégias da federal que, com a Reestruturação e Expansão
prática, e às condições de trabalho. Da das Universidades Federais (REUNI), acompa-
diversidade de contextos, bem como da nhou a política de expansão e/ou atendimento
diversidade de disciplinas ministradas pelos a um segmento da população que não tinha
professores, sujeitos da pesquisa, pôde-se acesso ao ensino superior. Com isso, a reno-
evidenciar a necessidade e importância de vação de quadros tem sido significativa e,
condições favoráveis ao trabalho e à formação segundo Cunha (2012), as condições que se
pedagógica desses formadores dos cursos de apresentam nesse processo têm requerido a
licenciatura. mobilização de saberes docentes muito

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especializados para favorecer o sucesso da -mercantil, iniciado em 1997, foi intensificado


aprendizagem dos estudantes. em 2007, com a abertura de capital de empresas
A preocupação com a presença desse educacionais ao mercado de ações: com o
corpo docente renovado nos cursos de aumento de capital, adquiriram outras
formação de professores passou a ser o núcleo instituições menores e vão formando grandes
central da pesquisa e, para este texto, serão grupos empresariais no Brasil. O estudo traz em
analisados os contextos e as condições de detalhes o rápido e grandioso crescimento do
trabalho como fatores que incidem sobre a número de alunos dos maiores grupos privados
constituição da profissionalidade docente de do país, que parecem não contemplar as
professores iniciantes que atuam em diferentes preocupações do autor com o acesso, a
cursos de licenciatura, em instituições públicas permanência e o sucesso no ensino superior.
e privadas. Para ele: “A expansão da ES, para ser democrá-
Considerando essa finalidade, na primeira tica e não se tornar mera massificação, deve
parte do texto são tecidas considerações apoiar-se em pelo menos dois componentes:
referentes ao atual contexto do ensino superior igualdade de condições de acesso, de escolha
e, em seguida, apresenta-se a contribuição da de cursos e carreiras a cursar, e de permanência
literatura sobre o professor iniciante, condições com sucesso até a titulação” (Sguissardi, 2015,
de trabalho e profissionalidade docente. Por fim, p.881).
serão discutidos os dados que possibilitaram Apoiado em estudo de Almeida et al.
problematizar a questão central e, para finalizar,
(2012), Sguissardi (2015) destaca o fenômeno
as considerações acerca dos principais
por eles denominado de 'exclusão dos
achados.
incluídos' e justificado pela análise da realidade:
grande parte dos alunos tem acesso hoje ao
Ensino superior: da expansão e interio- ensino superior, mas encontra dificuldades para
rização nele permanecer. A pesquisa indica, ainda, que
as escolhas dos cursos representam mais um
A nova configuração do Ensino Superior
ajuste e que são voltadas a cursos que não
vem demarcada pelo processo de expansão
apresentam risco de exclusão.
ocorrido a partir dos anos de 1990. Dados dessa
expansão são apresentados pelo estudo Também no segmento federal, a política
diagnóstico realizado por Sguissardi (2015) para de expansão do ensino superior sofre mudanças
o Conselho Nacional de Educação e intitulado e redirecionamentos a partir de 2003. Ela é
‘Política de expansão da (e acesso à) educação fortalecida no período de 2008-2012 com o
superior no Brasil, de 2002 a 2012’, que põe em Programa de Apoio a Planos de REUNI do
cheque se o que ela revela é um movimento de Ministério da Educação do Brasil e com
democratização ou de massificação mercantil. incentivos ao setor privado, como o Programa
O pesquisador justifica que o processo de Universidade para todos e o Fundo de
expansão que está em curso no país não se Financiamento Estudantil. A política de
explica por si mesmo, mas no contexto do ajuste expansão do segmento federal foi concretizada
neoliberal e da mundialização do capital. com a criação de novas universidades ou com
Os dados trazidos nesse estudo revelam a abertura de novos campi no interior. Essa
que o fortalecimento do polo privado- política, segundo Carvalho (2014, p.222), “[...]

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tinha por objetivo reduzir as distâncias 34% em tempo parcial e 24% em tempo integral.
geográficas e as desigualdades da educação Já a relação professor-aluno no mesmo período
superior em termos regionais”. Carvalho, ao era de 13 alunos por professor na pública e de
destacar que foi no segmento federal que essa 33 nas privadas.
preocupação social com a redistribuição Dados relativos aos cursos de licen-
geográfica ocorreu, dá indicativos de que o ciatura que formam os professores para a escola
processo de expansão não esteve assentado básica também indicam crescimento,
nas mesmas bases da iniciativa privada. Car- conforme aponta Gatti (2010, p.1360):
valho alerta para a necessidade de oferecer
condições de permanência aos alunos prove- Observando o crescimento relativo dos
nientes das camadas sociais mais pobres. cursos de formação de professores, entre
2001 e 2006, verifica-se que a oferta de cursos
Os dados trazidos por Sguissardi (2015) de Pedagogia, destinados à formação de
são reveladores da expansão, embora o autor professores polivalentes, praticamente
questione o aspecto da igualdade de condições dobrou (94%). As demais licenciaturas
quando se trata de pensar esse processo do tiveram um aumento menor nessa oferta,
ponto de vista da democratização. O número cerca de 52%. Porém, o crescimento
proporcional de matrículas ficou bem
de instituições de ensino superior cresceu
aquém: aumento de 37% nos cursos de
116,0% de 1999 a 2010 – 44,8% nas públicas, e
Pedagogia e 40% nas demais licenciaturas.
132,0% nas privadas. Já o total de matrículas no As universidades respondem por 63%
mesmo período teve um aumento de 130,0% – desses cursos e, quanto ao número de
75,7% nas instituições públicas, e 159,0% nas matriculados, a maior parte está nas
privadas. instituições privadas: 64% das matrículas
em Pedagogia e 54% das matrículas nas
Para fins deste texto, os dados revelam
demais licenciaturas.
as diferenças entre as instituições públicas e as
privadas, tanto na distribuição dos docentes Os dados aqui trazidos mostram o
por grau de formação e regime de trabalho, cenário em que se forja a profissionalidade do
quanto na relação professor-aluno. Em 2003, os professor iniciante dos cursos de licenciatura, e
docentes com mestrado eram 39,0% nas essa realidade impõe um olhar também para
instituições privadas e 27,0% nas públicas; em aspectos internos da sua formação. É a partir
2012, eram 45,7% nas privadas e 29,0% nas desse cenário que uma síntese do conceito será
públicas. Já os docentes com doutorado eram, apresentada, relacionando-a com as condições
no mesmo ano, 11,5% nas provadas e 39,7% de trabalho e a entrada dos docentes
nas públicas; em 2012, eram 17,9% nas privadas universitários na carreira.
e 51,0% nas públicas.
O regime de trabalho demarca a distância A Profissionalidade docente: do conceito e
entre as instituições. Enquanto 1% dos das condições para o fazer docente
professores das universidades federais no ano
de 2012 eram horistas, 8% em jornada de tempo A formação profissional do professor é
parcial e 91% em tempo integral, nas construída por experiências diversificadas que
instituições privadas o regime de trabalho dos compõem e fundamentam a prática
docentes estava assim distribuído: 41% horistas, pedagógica. Construir-se professor requer,

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desde a formação inicial, a constante reflexão ferenciam a prática docente e são validados
sobre o que se faz, como se faz e como se pelos professores. O professor interage e
deveria fazer. Esse movimento de construir e ressignifica esses aspectos, já que eles
reconstruir a prática pedagógica resulta no constituem situações que alicerçam a prática
processo de aprimoramento que norteará a pedagógica.
formação profissional. É nessa direção que o Para Contreras (2002), a profissionalidade
conceito de profissionalidade deve ser se refere às qualidades da prática profissional
problematizado. Na perspectiva de Sacristán dos professores em função das exigências do
(1995), a constituição da profissionalidade trabalho educativo. Nessa perspectiva, (Con-
docente é entendida como: treras, p.74) falar de profissionalidade significa
“[...] não só descrever o desempenho do
[...] a afirmação do que é específico na ação
trabalho de ensinar, mas também expressar
docente, isto é, o conjunto de comporta-
mentos, conhecimentos, destrezas, valores e pretensões que se deseja alcançar e
atitudes e valores que constituem a desenvolver nesta profissão”.
especificidade de ser professor. A discussão Com base nos autores citados, entende-
sobre a profissionalidade do professor é
-se o conceito de profissionalidade docente
parte integrante do debate sobre os fins e
como o conjunto de conhecimentos,
as práticas do sistema escolar, remetendo
para o tipo de desempenho e de habilidades e atitudes que compõem a
conhecimentos específicos da profissão competência do professor. São aspectos que
professor (Sacristán, 1995, p.65). integram a subjetividade profissional, pois se
desenvolvem no fazer cotidiano da atividade
Popkewitz (1986) declara existirem três
docente. É um ‘saber fazer’ construído indivi-
fatores que contribuem para a prática
dualmente, a partir de referenciais externos que,
pedagógica do professor, isto é, fatores que
porém, se tornam próprios e únicos. São
constituem o fazer docente: o contexto
instrumentos construídos pelo próprio
propriamente pedagógico, o contexto
professor para deles se utilizar na profissão,
profissional dos professores e o contexto
tornando-se um saber pessoal. Esse saber não
sociocultural. O primeiro está representado pela
se refere somente à prática, mas também à
efetiva prática da docência e é constituído
maneira de postar-se diante da profissão e
pelas experiências adquiridas no fazer
entendê-la na interação e contribuição social,
pedagógico diário ou de rotina. O segundo
ética e política.
refere-se ao contexto da classe docente, ou seja,
ao fazer individual que se torna coletivo e é Todos os atributos concernentes ao
pinçado para o campo individual. Em outras termo profissionalidade destacados pelos
palavras, a classe de professores legitima autores referenciados reforçam a definição
determinadas ações que constituem o trazida por Roldão (2007), contribuindo para o
específico de ser professor. O terceiro aspecto é entendimento da afirmação referente àquilo
representado pelo contexto sociocultural, ou que é específico na ação docente, a qual deve
seja, pelos conteúdos e valores eleitos pela ser contextualizada, conforme afirma Sacristán
própria cultura e legitimados pela sociedade (1995), de acordo com o momento histórico
como acervo fundamental para a formação dos concreto e a realidade social que o conhe-
estudantes. Esses conteúdos e valores re- cimento escolar pretende legitimar.

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Diante do exposto, pode-se entender da dicotomia entre o pensado e o vivido por


esse conceito como um processo dinâmico e eles, no que se refere ao perfil dos alunos que
contínuo que envolve as dimensões afetivas, encontrará, à complexidade da prática pedagó-
sociais e cognitivas do professor e é desen- gica e, especialmente, à cultura institucional
volvido ao longo da vida, da formação e do instalada.
exercício profissional. Para desvendar tão
complexo termo, é preciso analisar as carac-
As condições de trabalho na constituição
terísticas/atributos próprios da profissiona-
da profissionalidade docente
lidade, a partir de uma leitura cuidadosa da
atividade concreta dos professores em seus A atenção voltada para as políticas de
contextos de trabalho, pois são vários os fatores expansão e para os processos de constituição
que repercutem na constituição da profissiona- da profissionalidade docente de quem está
lidade docente. iniciando a carreira no ensino superior remete à
Nessa direção, Lessard (2006, p.224) preocupação com um ponto nevrálgico desses
reafirma a preocupação com os contextos de processos - as condições de trabalho. Oliveira e
trabalho, ao indicar uma nova entrada para Assunção (2010, p.25) definem que essas
pesquisas em relação à formação dos profes- condições se referem “[...] a um conjunto que
sores, que “não é a dos saberes ou das tarefas, inclui relações, as quais dizem respeito ao
mas a do sujeito confrontado com situações processo de trabalho e às condições de
profissionais complexas e parcialmente inde- emprego (formas de contratação, remuneração,
terminadas”. carreira e estabilidade)”.
E o que isso tem a ver com esse estudo Ao tratar das mudanças de contextos,
que privilegia o professor formador iniciante como já anunciado anteriormente, a questão
que atua nos cursos de licenciatura? As do trabalho docente acompanha as modi-
situações profissionais complexas e parcial- ficações pelas quais vem passando a educação
mente indeterminadas, como aponta Lessard, superior. Maués (2015, p.226) defende que “Há
afetam a todos os professores, o que não uma relação entre essas mudanças e o tipo de
permite fechar os olhos para aquele que forma trabalho que o docente vem sendo impelido a
os professores da Educação Básica no período desenvolver”. Destaca o processo de ensino
de iniciação profissional. como eixo-base do trabalho docente, embora
Os problemas enfrentados por aqueles minimizado nesse segmento, e a exigência de
que estão no início da carreira no ensino pesquisas e publicação dos seus resultados,
superior têm sido objeto de preocupação de orientações de alunos, seminários, elaboração
vários pesquisadores (Bozu, 2010; Cunha, 2011; de relatórios, pareceres, atividades de extensão
Fondón; Madero; Sarmiento, 2010; Isaia; Bolzan; e prestação de serviços, dentre outros. A
Macial, 2011; Lima, 2013; Ruiz, 2009) e o pesquisadora, ao se reportar à realidade da
argumento para Ruiz (2009) é de que nesse universidade pública, chama a atenção para a
processo de inserção profissional, o professor lógica atual de vinculação desse nível de ensino
iniciante se encontra em um período repleto ao mercado, na medida em que o jovem pro-
de dúvidas, incertezas e inseguranças. Esse fessor passa a ser um empreendedor, “[…] al-
docente passa por choque de realidade diante guém que pode buscar recursos externos para

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manter a instituição, submetendo-se aos editais segundo André (2005, p.47), tem como foco de
dos órgãos de fomento e às demais exigências atenção “[...] o mundo dos sujeitos, o
necessárias para ter sua solicitação aprovada” significados que atribuem às suas experiências
(Maués, 2015, p.226). Faz referência, ainda, aos cotidianas, sua linguagem, suas produções
critérios avaliativos da Coordenação de culturais e suas formas de interações sociais”.
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, Foram realizadas entrevistas semiestru-
que devem ser aceitos pelo docente, para estar turadas para a coleta de dados junto a seis
apto a concorrer por recursos para suas
docentes do ensino superior com até três anos
pesquisas se quiser garantir sua sobrevivência
de experiência, considerados ‘iniciantes’ na
acadêmica. A autora se apoia em Garcia e
conceituação de Feixas (2002). Os sujeitos 2
Anadon (2009), que justificam essa
foram selecionados independentemente de
intensificação com o número de horas que o
possuírem ou não experiência anterior em outro
docente gasta trabalhando fora do espaço da
segmento de ensino. Desses seis iniciantes,
universidade. Entendem a intensificação como
quatro atuavam em universidades públicas,
“[...] o fenômeno da ampliação das
sendo três em universidades federais, um em
responsabilidades e atribuições do cotidiano
universidade estadual e dois em faculdades
escolar dos professores e considerando o
privadas.
mesmo tempo de trabalho [...]” (p.230).
Somado a esses aspectos, Maués (2015)
lembra que a expansão das matrículas indicadas Características dos sujeitos
no Censo de 2010 não foi acompanhada do
crescimento do número de funções docentes Os professores Mauro e Iara atuam numa
e que as perdas salariais e a existência de planos faculdade privada, localizada na cidade de São
de carreira defasados têm marcado a pre- Paulo, que conta com várias unidades e
carização do trabalho docente. Do mesmo aproximadamente 2 mil alunos, em Cursos de
modo, a precarização acompanha os profes- Licenciatura, Bacharelado e Tecnológicos.
sores das instituições privadas, nas quais se O professor Mauro, de 47 anos, é
observa o número excessivo de aulas e de Graduado em Pedagogia e especialista em
alunos por sala, os baixos salários e a ausência História, Relações Sociais e Cultura. Atua no
de planos de carreira, indicando a dimensão Curso de Licenciatura em História há um ano,
objetiva da precarização. Com base nesses lecionando as disciplinas de Prática de Ensino,
referentes aqui trazidos, buscou-se conhecer os Didática e Metodologia do Ensino de História,
contextos e as condições de trabalho de com uma carga horária de 11 horas semanais
professores iniciantes que atuam nos cursos de pelo regime de Consolidação das Leis
licenciatura. Trabalhistas. Tem experiência na Educação de
Jovens e Adultos. Além do exercício da
Procedimentos Metodológicos docência, mantém atividade remunerada
como consultor em Tecnologia da Informação.
O estudo foi realizado atendendo à A professora Iara tem 48 anos, é Licen-
abordagem qualitativa de pesquisa que, ciada em Pedagogia, e Mestre e Doutora em
2
Os nomes dos sujeitos são fictícios para garantir a não identificação.

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Educação. Atua em cursos de Pedagogia e em Física, com Mestrado e Doutorado na área.


Letras há três anos nas disciplinas de Psicologia Não possui experiência docente em nenhum
da Educação e Prática de Ensino, perfazendo segmento de ensino e escolheu a carreira do
uma carga horária de 26 horas-aula. Também magistério por desejar trabalhar com pesquisa
desenvolve vinte horas de atividades de e por gostar de estudar. Trabalha com disciplinas
coordenação na instituição. Anteriormente ao específicas da Física.
ingresso na docência, atuou como gestora no Sérgio, docente da mesma universidade
ensino superior. Seu regime de contratação é pública federal, tem 30 anos e atua há menos
como Pessoa Jurídica. Ambos os professores de um ano na instituição. Possui bacharelado
realizaram seus estudos de Graduação e Pós- em Química e Mestrado e Doutorado na área.
-Graduação em instituições privadas de ensino. Nunca atuou como docente e escolheu essa
Os professores Fátima, Sofia, João e universidade para poder dar continuidade a sua
Sérgio são concursados, com regime de carreira de pesquisador. Também ministra aulas
dedicação exclusiva. A primeira atua numa de conteúdos específicos da área de Química.
universidade estadual, e os demais numa Há alguns pontos comuns na trajetória
universidade federal. desses dois iniciantes, Sérgio e João. Ambos
A professora Fátima tem 36 anos, é concluíram a graduação e em seguida, sem
Graduada em Ciências Sociais, e Mestre e interrupção, cursaram Mestrado e Doutorado.
Doutora em Sociologia. Atua há três anos na Dedicaram-se à pesquisa aplicada em suas
mesma instituição em que realizou sua dissertações e teses e pretendem continuar
formação, uma universidade pública estadual. trabalhando com esse tipo de pesquisa. Nunca
Leciona a disciplina Introdução aos estudos da cursaram disciplinas pedagógicas durante a
educação, com enfoque sociológico, em cursos Pós-Graduação e não possuem experiência
de licenciatura. Em sala de aula desenvolve como docente.
apenas seis horas/aula, sendo as demais Uma vez que o objetivo do estudo era
direcionadas à pesquisa e extensão. Sua compreender os significados atribuídos às
experiência profissional anterior deu-se na condições de trabalho e a maneira como elas
consultoria em políticas públicas de trabalho e incidem sobre a constituição da profissiona-
emprego. lidade dos professores de cursos de licenciatura,
Sofia é docente em uma universidade os depoimentos extraídos decorreram de
pública federal da região Sudeste há seis meses. leituras das entrevistas e da seleção de temas e
Tem 35 anos, é formada em Magistério, gra- aspectos voltados para o objetivo da
duada em Matemática, e Mestre, Doutora e investigação.
Pós-Doutora em Educação. Tem experiência de
treze anos na docência do ensino fundamental, A infraestrutura como condição para um
nos anos iniciais e, também, como formadora trabalho qualificado
de professores. Atuou como professora
substituta na mesma instituição em que se Um dos aspectos destacados com força
formou. pelos iniciantes se refere às condições de
João, de 35 anos, também é docente infraestrutura das instituições. É importante
numa universidade pública federal no norte do acrescentar que, independentemente das
país e nela atua há dois anos. Possui licenciatura diferentes formas e justificativas em relação à

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expansão do setor público e do privado, a Os relatos dos professores da rede


questão da infraestrutura foi abordada pelos privada em relação à infraestrutura foram mais
docentes das duas esferas. João, docente da contundentes. Evidenciam que os espaços da
Universidade Federal, reconhece que o campus instituição são inadequados, que não
é novo, o que tem impacto na aprendizagem favorecem a interação com outros colegas,
dos alunos: faltam materiais de laboratório, que assim como não favorecem um trabalho
ele tem comprado com recursos próprios, no pedagógico diferenciado. Nesse sentido,
intuito de proporcionar aos discentes uma referem-se, especialmente, aos espaços das
melhor compreensão da matéria. Assim ele salas de aula, considerados pequenos para o
relata: número de pessoas que os utilizam:

É ruim, é ruim. Até pela estrutura do Instituto. A estrutura física é outro problema. Hoje a
Não tem laboratório, eles (os alunos) não têm gente trabalha com a escola de duzentos
aula nenhuma de laboratório [...] o legal é anos atrás. Nós temos cadeiras enfileira-
uma ciência experimental, você tem que ver a dinhas, um na nuca do outro e, para minha
experiência, para depois matematizar o ideia de trabalho na faculdade, é impossível
problema. Nas universidades lá fora é isso que realizar dessa maneira. Então, vira uma
acontece (João, Universidade Federal). educação massificada mesmo, a gente acaba
dando palestra mesmo, pela quantidade de
O professor de Química também aponta pessoas e pela disposição da sala. Muitas
vezes eu não consigo circular no meio das
a necessidade de melhor estrutura de
carteiras para fazer as provocações
laboratórios, mas entende que, nesse
comunicativas que eu gosto (Mauro, Fa-
momento, por estar lecionando disciplinas culdade Privada).
teóricas, não tem percebido esse impacto.
Ambos alegaram que a infraestrutura deficitária Chama atenção a observação de Iara em
em relação aos laboratórios e ao funcio- relação à sala de professores, considerada por
namento da internet tem prejudicado suas ela como mero 'lugar de passagem', e não de
pesquisas. acolhimento, na medida em que reduz o espaço
para o processo de socialização profissional.
A professora Sofia, de Universidade
Como formadora do curso de Letras e de Pe-
Federal da região Sudeste, também destaca as
dagogia, enfatiza o descaso com a biblioteca:
dificuldades que tem enfrentado em relação às
precárias condições: Então, vou falar de infraestrutura: eu acho
que a infraestrutura é ruim, é precária. Na sala
Então eu não tenho um computador, por dos professores você tem poucos compu-
exemplo, se eu precisar ir à universidade para tadores que é dividido [sic] entre vários, enfim,
fazer meus trabalhos, minha pesquisa e usar não é um lugar de aconchego, de acolhi-
um computador, não tenho um espaço mento, é um lugar de passagem, o que deveria
organizado para isso. Tem uma sala com ser bem diferente, um conceito diferente de um
computador, mas muitos não acessam a espaço de educação. As bibliotecas têm um
Internet, aí as salas onde tem aula é difícil o sistema que não dá condição de manuseio
acesso à Internet, eu acho um pouco dos livros pelos alunos, da circulação nas
problemático aqui na universidade em prateleiras e o acervo também, é um acervo
relação à estrutura (Sofia, Universidade reduzido. A forma como está disponível, o
Federal). próprio sistema da biblioteca é compro-

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metido, não é um sistema bacana (Iara, de professores de instituições públicas e


Faculdade Privada). privadas, os depoimentos mostraram que tais
Percebe-se, no depoimento dos condições não apenas incidem como
professores Mauro e Iara, uma tensão interferem na maneira como os professores
provocada pela realidade que enfrentam em iniciantes dos cursos de licenciatura constituem
termos da infraestrutura mínima para um sua profissionalidade. Essa interferência é mais
trabalho que se volta para o didático na sala de sentida pelos docentes das instituições
aula. Hypólito (2015), ao discutir a questão do privadas quando se queixam do número de
trabalho docente e da valorização profissional alunos por turma. Fica evidente, no depoimento
como meta do Plano Nacional de Educação da professora Iara, que a organização do
(2014-2024), instiga que se enfrente a questão trabalho pedagógico ficou subjugado à
dos investimentos em educação para melhorar precarização das condições oferecidas. A
a infraestrutura e as condições de trabalho dos dimensão subjetiva do seu trabalho, apontada
docentes. Indica que as políticas públicas mais na intenção de um processo de identificação
conservadoras têm sido míopes ao diagnosticar com o grupo de alunos, vai ficando fragilizada,
que os problemas na educação estão na ou como ela afirma, “anestesiada”:
docência e na má formação dos professores e
não querem enxergar que é preciso um intenso Você entra com uma coisa seletiva, de
investimento para melhorar a infraestrutura das trabalhar com aquele grupo, de trabalhar
escolas, garantindo um padrão mínimo de com a identidade, um trabalho identitário
no sentido de você ter identidade com o
qualidade para prédios, bibliotecas, labora-
grupo e o grupo com você, mas aí você começa
tórios e material pedagógico. a se deparar com salas muito numerosas, são
Já para a professora Fátima, que atua em salas com muita gente. Então, nos primeiros
uma universidade pública estadual, as seis meses que você põe o pé na sala de aula
condições são um pouco melhores: você fala: que bacana, né? A gente vai fazer
um trabalho rico, um trabalho que os alunos
Tem estrutura no laboratório que a gente se sintam, que aprendam, mas é uma coisa
comunica por skype, tem condições mecânica e em virtude da própria condição
estruturais, mesmo que nossos com- docente, a ausência de recursos didáticos, de
putadores morram toda hora, tem instrumentos de trabalho, o próprio número
impressora, tem condições de trabalho. de alunos em sala de aula e acaba que você
Mesmo para a pesquisa tem, por exemplo, vai entra nessa atividade mecânica, ela acaba
que a gente precise, um gravador, câmera sendo mecânica. É uma roda que você gira e
fotográfica, scanner, tem as coisas né? Isso fica meio anestesiado. Aqueles alunos
chega bem próximo do ideal, tem questões acabam sendo aqueles alunos, são alunos,
né? Mas de um modo geral acho que nós são números. É um sentimento de linha de
temos boas condições de trabalho, na sala produção (Iara, Faculdade Privada).
de aula, tem PowerPoint, tem giz, tem lousa
na sala, tem apagador, tem alguém que vai Embora o número elevado de alunos não
abrir pra você, que vai fechar, tem as coisas seja o único fator que conduz à sensação de
importantes (Fátima, Universidade Esta-
que se está em uma “linha de produção”, outros
dual).
fatores, como a ausência de recursos didáticos
Embora não fosse o objetivo desta e de instrumentos de trabalho, são acrescidos
pesquisa comparar as condições de trabalho e expressam a precarização e a intensificação

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PROFESSORES INICIANTES E PROFISSIONALIDADE 231

do trabalho dos professores que atuam na rede na constituição da profissionalidade docente


privada: na rede pública, o ingresso na carreira pela via
do concurso público é fator distinção entre os
O número de alunos por turma no primeiro
docentes. O concurso público valoriza o
semestre é assustador, né? Nós chegamos a
lidar com 70 numa sala. E 70 criam vários docente: segundo Belhoste (2011, p.383), “[...] o
problemas, o primeiro é de comunicação, de examinado sai necessariamente transformado.
aproximação com o aluno, porque se O veredicto escolar produz nele uma mudança
aproximar de 70 é complicado e até a de estado em relação à qualificação que o
questão do espaço físico, porque quando eu veredicto lhe impõe”.
quero dar uma prova, eu não consigo
impedir que dois alunos façam a prova O ingresso nas instituições públicas se
ombro a ombro, porque o espaço físico é dá sempre por concurso, mesmo para a
escasso. Então, tem todos esses problemas da contratação de professor substituto, cujo
superlotação. Aí vem uma questão de que a número tem aumentado em decorrência da
faculdade se propõe a atender com um preço contenção de despesas a que vêm sendo
baixíssimo e aí para resolver a questão submetidas. No concurso para efetivos, o
econômica, trabalha em larga escala dentro
professor passa por um período de “estágio
de uma sala. Primeiro semestre é assustador
nesse aspecto. E isso intensifica o meu probatório”, ao final do qual sua efetivação será
trabalho, um montante de trabalho fora de confirmada ou não mediante um processo de
sala, correções de provas em volume grande, avaliação, realizada pelos seus pares nos
atendimento ao aluno [...] (Mauro, departamentos (Pimenta; Anastasiou, 2002,
Faculdade Privada). p.119).
A questão da superlotação apontada Já na rede privada, tanto as formas de
pelo professor Mauro como justificativa da ingresso quanto os contratos de trabalho são
questão econômica revela a forma mais visível variados. No caso dos dois participantes da
de entender a questão da mercantilização da pesquisa, apenas o professor Mauro participou
educação superior no Brasil (Sguissardi, 2015). de um processo seletivo na contratação e
Enquanto o elevado número de alunos por sala mantinha contrato regido pela Consolidação
é uma realidade para os dois entrevistados que das Leis de Trabalho, enquanto a outra
atuam no ensino superior privado, bem diversa professora era prestadora de serviços, na
é a situação dos outros quatro que trabalham condição de pessoa jurídica.
em instituições públicas. Sofia e Fátima minis- Infere-se que o concurso público como
tram apenas uma disciplina, lecionando para fator de distinção bem como a possibilidade
uma ou duas turmas e conjugando essas ativi- de dedicação integral incide sobre o
dades de ensino com pesquisa e extensão, ao desenvolvimento profissional dos professores
passo que João e Sérgio trabalham com duas dis- dos cursos de licenciatura, porque o regime de
ciplinas de conteúdo específico de suas áreas. dedicação integral requer do docente as três
funções: ensino, pesquisa e extensão. Já os
O concurso público como fator de distinção docentes que atuam na rede privada dedicam-
-se exclusivamente às funções de ensino.
Além do número de disciplinas que Como se pode observar, os professores
parece indicar uma diferenciação significativa da rede privada que foram contratados para se

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dedicar ao ensino, na maior parte da sua carga muitos períodos e isso é uma coisa que
horária, têm a sensação de que “atuam em uma prejudica, por mais que você seja um
profissional brilhante, você precisa ter tempo
linha de produção”. Seus depoimentos
de preparar a aula, de pensar sobre isso, de
revelaram uma modificação muito significativa
pesquisar. Então ser remunerado para ter
nas expectativas que tinham sobre a docência, uma dedicação exclusiva é algo que vem
no curto período em que estão desem- para contribuir. [...] muitas coisas acabam
penhando o seu trabalho. Como exemplo, a sendo feitas em casa, porque não tem uma
professora Iara declara que: “[...] esse coração sala de trabalho, os prédios são um pouco
aberto, essa coisa da qualidade, não que a gente precários, têm problemas de segurança em
relação a incêndios. Essa própria estrutura
deixe de fazer com qualidade e tal, mas a gente
ainda prejudica a permanência dos
passa a ser mecânico no que faz também”. A professores lá. Os professores fazem reuniões
mecanização do trabalho é, para os dois na universidade e os trabalhos em casa (Sofia,
professores da rede privada, uma forte marca Universidade Federal).
da docência: "[...] até porque o nosso trabalho é
Já na rede privada, as relações de trabalho
muito operário, aquele dia você vai lá, dá duas
terminam por provocar instabilidade e
marretadas, bate o seu cartão e vai embora"
insegurança, além do sentimento de ameaça
(Mauro, Faculdade Privada).
de não ter disciplinas para ministrar, como se
pode constatar no depoimento a seguir:
Regime de trabalho e remuneração
O meu contrato de trabalho é Pessoa Jurídica,
Outro fator de distinção entre a docência prestadora de serviços. Então hoje minha
na universidade pública e na universidade situação profissional é essa. [...] Eu acho que
privada pode ser observada em relação ao ela não é confortável, porque eu acho que tem
contrato de trabalho. O contrato de dedicação uma questão de pertença, né? Você não
exclusiva na universidade pública evidencia pertence, não está. Tem algumas coisas do
condições de trabalho diferentes das dos ponto de vista das conquistas do tra-
balhador, que são importantes e te dão
professore da rede privada. O estudo de
algumas garantias[...] então você está sempre
Sguissardi (2015) mostrou que, em 2012, 91% muito vulnerável. E outra coisa que eu acho
dos professores das universidades federais muito terrível também na profissão é o
possuíam regime integral de trabalho, enquanto contrato parcial, você tem uma mudança a
nas privadas apenas 24% eram contratados cada semestre, você não tem uma condição
nesse regime. Ainda que haja problemas na de atribuição de aulas de 20 horas e o restante
infraestrutura da universidade, como se destaca de pesquisa e outras atividades, você não tem
isso. Cada semestre é uma coisa, cada semestre
no relato da entrevistada Sofia, o contrato de
é uma expectativa para o docente se vai ter
dedicação exclusiva é um fator importante para
disciplina, se não vai. [...] Acho que a sensação
ela: é essa: de ameaça e inconstância o tempo
Uma coisa que é interessante, no caso do todo (Iara, Faculdade Privada).
trabalho do professor da universidade
Ambos os entrevistados da rede privada
pública, é ganhar pela dedicação exclusiva,
isso eu acho um ganho. Porque a maioria
demonstraram ter consciência das conse-
dos professores que dão aula no Estado e no quências da precarização do próprio trabalho
Município, acabam tendo que dobrar em também no que se refere à remuneração:

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PROFESSORES INICIANTES E PROFISSIONALIDADE 233

[...] porque o professor teve suas horas A superação desse desafio aconteceu de forma
reduzidas, na verdade suprimidas, cortadas, solitária, tendo aprendido ‘na marra’ e por ‘en-
acaba que o professor tem um prejuízo, não
saio e erro’. A imitação dos professores que
tem como! Então, todo esse conceito do
marcaram positivamente sua trajetória
projeto pedagógico, de desenvolvimento, de
formação de mentes inovadoras, reflexivas acadêmica foi sua referência nesse início de
acaba sendo minado pelo próprio reflexo da atuação docente.
decisão de remuneração. Tem efeito, não tem Percebe-se, assim, que a falta de
como (Iara, Faculdade Privada).
formação e de experiência como professor
A baixa remuneração, além de fazer com dificulta o atendimento às exigências da
que a carreira docente seja pouco atrativa, docência. A ausência de espaço e de trocas
deteriora as relações de trabalho, não sistemáticas com um professor ou tutor mais
permitindo que os professores se constituam experiente faz com que as inseguranças do
como um coletivo: professor iniciante não sejam tratadas com o
devido cuidado, ficando a cargo dele próprio
[...] Agora, a remuneração em si não é um
procurar a resolução dos problemas e elaborá-
atrativo mesmo! As condições são ruins, é um
regime tarefeiro, nós ficamos com aulas -los internamente.
pulverizadas, e não dá tempo nem da gente A professora Sofia, também da uni-
criar relações no ambiente de trabalho, é um versidade federal, declara que teve acolhi-
negócio varejista, um supermercado (Mauro,
mento, mas sentiu falta de compartilhar o que
Faculdade Privada).
fazia em sala de aula, nos moldes das reuniões
de trabalho coletivo existentes na escola básica:
Trabalho coletivo e apoio pedagógico Eu tive acolhimento, mas por exemplo:
quando você sai da sala depois de ter dado
Outros aspectos observáveis em ambas uma aula, você não tem com quem discutir,
as redes, no tocante à constituição da o que deu errado, o porque deu errado, só são
profissionalidade do professor iniciante em conversas de corredor que acabam
cursos de licenciatura, dizem respeito à acontecendo. Cada professor tem a sua sala,
inexistência de trabalho pedagógico coletivo e não existe um “Horário de Trabalho Coletivo”
à falta de apoio ao processo de aprendizagem onde todos os professores se reúnem, discutem
sobre um determinado assunto (Sofia,
da docência vivido pelos iniciantes. Com a
Universidade Federal).
ausência de programas de iniciação à docência
ou de formação continuada, o apoio didático é Há um desejo de compartilhar as práticas
buscado junto a colegas ou ainda junto ao e aquilo que deu certo, as dificuldades e
orientador de Doutorado, como declarou o sucessos. Cunha e Zanchet (2010) também
professor de Física da universidade federal. Já o constataram o interesse do professor iniciante
professor de Química, da mesma universidade, em discutir suas práticas e analisam que a falta
conta que seu início na docência foi ‘horrível’. de teorização sobre a dimensão pedagógica ou
Sem experiência anterior na docência, ficava “[...] a ausência de saberes docentes fragiliza-os
muito nervoso e sentia minha voz trêmula, tinha profissionalmente. Nóvoa (2009) argumenta
que segurar minha mão senão ela acabava que complexidade do trabalho educativo
tremendo” (Sérgio, Universidade Pública Federal). reclama o aprofundamento das equipes

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234 L.F. PASSOS et al.

pedagógicas, apontando que os saberes docente e do exercício da própria profis-


construídos de forma coletiva são mais do que sionalidade:
a soma daquilo que se sabe fazer indivi-
É um universo de riqueza e possibilidades tão
dualmente. A falta de apoio pedagógico nesse
grandes e ao mesmo tempo você não tem
início também é sentida pelo professor da condição pra isso. Eu tenho que trabalhar
universidade privada: muito, é uma composição que faz você correr
o tempo todo atrás de novas coisas, contatos
Existem as reuniões semestrais, mas são
novos [...] (Iara, Faculdade Privada).
reuniões pontuais, são mais de caráter
administrativo do que propriamente Eu sou freireano até a medula, então esse fazer
pedagógico, né? Tem uma questão do refletir não é um fazer refletir. É um fazer-refletir
“como” na operação, mas não o trabalho numa dialética, num ciclo, ele pra mim é um
mesmo em si, o trabalho educacional, uma fator de formação. Ele é um fator que faz com
reunião que vá discutir os problemas da que a gente possa realizar duas vezes a mesma
educação, as tendências da educação, as coisa, jamais da mesma maneira, porque na
oportunidades da educação, as situações de segunda já existe a reflexão da primeira
sala de aula, enfim não existe, esse trabalho (Mauro, Faculdade Privada).
inexiste! (Iara, Faculdade Privada).
As condições relatadas pelos professores
No entanto, os professores da univer- impõem uma reflexão: até quando se sentirão
sidade privada, que parecem sentir de forma motivados o suficiente para buscar novas
mais evidente a falta de apoio, se valem de formas de conduzir suas aulas, suas escolhas e
estratégias que confirmam seu compromisso estratégias didáticas que qualifiquem seu
com a docência e com o processo de aprender ensino? Seria esse movimento de ensinar e
a ser professor. A ausência de projetos conduzir o outro a aprender, ou seja, a
institucionais não minimiza esse compromisso, consciência de que são condutores de um
de modo que as iniciativas de buscar ajuda são processo educativo que os faz permanecer na
individuais, como no caso de Mauro, que se carreira apesar das condições?
reuniu várias vezes com uma colega de curso
A ausência de espaços de formação
em sua própria residência:
coletiva e sistemática em um curso de
Então, além de me oferecer material, ela me licenciatura que forma professores para a
atendeu com dúvidas pontuais, porque educação básica, bem como a ausência de
quando eu começo a me apropriar do espaço para a reflexão sobre a prática docente,
conhecimento historiográfico pra discutir na no ingresso na carreira, parecem ainda mais
sala de aula, então realmente eram dúvidas
nocivas ao desenvolvimento de um professor
conceituais que eu tinha e eu vou confirmar
que forma novos professores.
se as linhas eram aquelas que eu estava
entendendo nos livros. E ela, por várias vezes,
me deu confirmações, fez correções. Então eu
posso dizer que ela foi orientadora nesse
Considerações Finais
aspecto (Mauro, Faculdade Privada).
A pergunta trazida no título deste texto
Mauro e Iara demonstram consciência da põe a questão das condições de trabalho como
situação que vivem, ao mesmo tempo que um indicador de peso no processo de
fazem leituras positivas a respeito do trabalho constituição ou corrosão da profissionalidade

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PROFESSORES INICIANTES E PROFISSIONALIDADE 235

de professores que estão iniciando carreira no embora a precarização também tenha afetado
ensino superior no papel de formadores de o trabalho dos professores destas últimas.
novos professores. Dessa forma, os dados indicaram que as
Os dados parecem confirmar a hipótese diferentes condições, como as aqui analisadas,
de que a valorização profissional está exercem influência no trabalho do professor e
relacionada com essas condições, bem como afetam sua subjetividade, especialmente em
com a carreira, o salário, a formação e as políticas relação à autoestima e identidade profissional.
que as regulam. A valorização refere-se, Outra distinção se refere à possibilidade
também, aos aspectos internos da profissão e e condições para a realização de pesquisa. Os
que constituem a profissionalidade docente. dois docentes da universidade federal relataram
Como a profissionalidade emerge do próprio que a possibilidade de trabalhar com pesquisa
trabalho do professor, da sua prática, os dados aplicada determinou sua entrada na univer-
trouxeram evidências de que as influências das sidade, sem terem clareza do que representava
condições externas afetam o cotidiano das lecionar no curso de licenciatura. O foco
práticas, contribuindo, assim, para a corrosão somente na pesquisa pode impedir que os
ou constituição da profissionalidade. Essa docentes tomem consciência da sua função
situação, comum a todos os professores do de formadores de futuros professores e de que
ensino superior, preocupa ainda mais no caso pesquisar e ensinar podem se apresentar de
do profissional que forma os professores da forma integrada na prática do formador.
escola básica. Problematizar a ação docente a partir da
O apoio da instituição nessa fase inicial, realidade onde se atua e levantar questões e
especialmente em relação ao conhecimento caminhos metodológicos para a construção de
pedagógico necessário para esse formador, ao conhecimentos relevantes sobre o ensino, pode
acompanhamento de um trabalho que tome a ser um exemplo dessa integração. Para isso, as
realidade da escola básica e suas propostas oportunidades de um trabalho menos isolado
curriculares como objeto central de estudo não e com condições institucionais que valorizem
foram apontados pelos formadores entrevis- projetos comuns dos professores e voltados
tados como sendo preocupação das ins- para as práticas do ensino parecem favorecer a
tituições. Ou seja, a perspectiva de formação e formação profissional do iniciante.
de aprendizagem da docência é assumida Para finalizar, importa indicar que os
individualmente pela maioria dos iniciantes fatores constitutivos da profissionalidade
deste estudo. docente dos formadores iniciantes, tanto das
Constatou-se que há distinções que instituições públicas como das instituições
fazem com que os professores elaborem privadas, indicaram compromisso ético, social
significados diferentes sobre as condições do e cultural com a profissão e, especificamente, a
trabalho docente, bem como passem a exercê- busca pela aprendizagem da docência a partir
-lo de maneiras diferentes, de acordo com as dos conflitos e contradições experimentados
possibilidades concretas oferecidas pelas na prática em sala de aula.
instituições nas quais atuam. No caso dos Tornar visíveis as condições de trabalho
professores da rede privada, as condições a que dos docentes iniciantes de universidades
estão submetidos são piores que as da pública, públicas e privadas e, especialmente, como as

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236 L.F. PASSOS et al.

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