Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Resumo
A investigação aqui relatada está centrada na perspectiva de que a presença de um corpo docente
renovado vem atuando nos cursos de formação de professores e exigindo um olhar mais apurado
para as condições de ingresso e de trabalho, bem como para as práticas e para o apoio institucional
como fatores fundantes da profissionalidade de professores iniciantes. O foco do estudo está direcionado
para a relação entre as condições de trabalho e a constituição da profissionalidade desses formadores
de professores que iniciam sua carreira no ensino superior. Pretende-se, assim, identificar os possíveis
fatores de corrosão e/ou de constituição de novas profissionalidades de professores formadores que
atuam em diferentes cursos de licenciatura de instituições públicas e privadas. Os dados foram coletados
junto a seis professores dessas instituições por meio de entrevistas. Foram identificados fatores de
corrosão da profissionalidade, como a intensificação, precarização e individualização do trabalho, ao
lado de fatores constitutivos da profissionalidade, assentados no compromisso ético, social e cultural
e, especificamente, na busca pela aprendizagem da docência a partir dos conflitos e contradições da
sala de aula.
Palavras-chave: Condições do trabalho docente. Curso de licenciatura. Formador de docentes.
Profissionalização docente.
Abstract
The present investigation focuses on the perspective that the presence of faculty renewal in teacher training
programs demands a closer look at the admission process and work conditions, practices and institutional
1
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Faculdade de Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação: Psicologia da Educação e Formação
de Formadores. R. Ministro de Godóy, 969, 4° andar, sala 4E07, Perdizes, 05015-901, São Paulo, SP, Brasil. Correspondência para/Correspondence to: L.F.
PASSOS. E-mail: <laurizetefer@gmail.com>.
support as founding factors for the professionalism of pre-service teachers. The study focuses on the direct
relationship between the working conditions and the professional training of professors who have began
their career in higher education. We endeavored, therefore, to identify possible harmful factors and/or the
establishment of new professional aspects of professors who work at different private and public teaching
training programs. Data was collected from six professors from these institutions through interviews. We
identified harmful factors concerning professionalism, such as intensification, precariousness and
individualization of work, along with constitutive factors of professionalism based on ethical, social and
cultural commitments and particularly in pursuit of learning from teaching from conflicts and contradictions
in the classroom.
Keywords: Teacher’s work conditions. Degree course. Teaching professionalization. Beginning teacher trainer.
tinha por objetivo reduzir as distâncias 34% em tempo parcial e 24% em tempo integral.
geográficas e as desigualdades da educação Já a relação professor-aluno no mesmo período
superior em termos regionais”. Carvalho, ao era de 13 alunos por professor na pública e de
destacar que foi no segmento federal que essa 33 nas privadas.
preocupação social com a redistribuição Dados relativos aos cursos de licen-
geográfica ocorreu, dá indicativos de que o ciatura que formam os professores para a escola
processo de expansão não esteve assentado básica também indicam crescimento,
nas mesmas bases da iniciativa privada. Car- conforme aponta Gatti (2010, p.1360):
valho alerta para a necessidade de oferecer
condições de permanência aos alunos prove- Observando o crescimento relativo dos
nientes das camadas sociais mais pobres. cursos de formação de professores, entre
2001 e 2006, verifica-se que a oferta de cursos
Os dados trazidos por Sguissardi (2015) de Pedagogia, destinados à formação de
são reveladores da expansão, embora o autor professores polivalentes, praticamente
questione o aspecto da igualdade de condições dobrou (94%). As demais licenciaturas
quando se trata de pensar esse processo do tiveram um aumento menor nessa oferta,
ponto de vista da democratização. O número cerca de 52%. Porém, o crescimento
proporcional de matrículas ficou bem
de instituições de ensino superior cresceu
aquém: aumento de 37% nos cursos de
116,0% de 1999 a 2010 – 44,8% nas públicas, e
Pedagogia e 40% nas demais licenciaturas.
132,0% nas privadas. Já o total de matrículas no As universidades respondem por 63%
mesmo período teve um aumento de 130,0% – desses cursos e, quanto ao número de
75,7% nas instituições públicas, e 159,0% nas matriculados, a maior parte está nas
privadas. instituições privadas: 64% das matrículas
em Pedagogia e 54% das matrículas nas
Para fins deste texto, os dados revelam
demais licenciaturas.
as diferenças entre as instituições públicas e as
privadas, tanto na distribuição dos docentes Os dados aqui trazidos mostram o
por grau de formação e regime de trabalho, cenário em que se forja a profissionalidade do
quanto na relação professor-aluno. Em 2003, os professor iniciante dos cursos de licenciatura, e
docentes com mestrado eram 39,0% nas essa realidade impõe um olhar também para
instituições privadas e 27,0% nas públicas; em aspectos internos da sua formação. É a partir
2012, eram 45,7% nas privadas e 29,0% nas desse cenário que uma síntese do conceito será
públicas. Já os docentes com doutorado eram, apresentada, relacionando-a com as condições
no mesmo ano, 11,5% nas provadas e 39,7% de trabalho e a entrada dos docentes
nas públicas; em 2012, eram 17,9% nas privadas universitários na carreira.
e 51,0% nas públicas.
O regime de trabalho demarca a distância A Profissionalidade docente: do conceito e
entre as instituições. Enquanto 1% dos das condições para o fazer docente
professores das universidades federais no ano
de 2012 eram horistas, 8% em jornada de tempo A formação profissional do professor é
parcial e 91% em tempo integral, nas construída por experiências diversificadas que
instituições privadas o regime de trabalho dos compõem e fundamentam a prática
docentes estava assim distribuído: 41% horistas, pedagógica. Construir-se professor requer,
desde a formação inicial, a constante reflexão ferenciam a prática docente e são validados
sobre o que se faz, como se faz e como se pelos professores. O professor interage e
deveria fazer. Esse movimento de construir e ressignifica esses aspectos, já que eles
reconstruir a prática pedagógica resulta no constituem situações que alicerçam a prática
processo de aprimoramento que norteará a pedagógica.
formação profissional. É nessa direção que o Para Contreras (2002), a profissionalidade
conceito de profissionalidade deve ser se refere às qualidades da prática profissional
problematizado. Na perspectiva de Sacristán dos professores em função das exigências do
(1995), a constituição da profissionalidade trabalho educativo. Nessa perspectiva, (Con-
docente é entendida como: treras, p.74) falar de profissionalidade significa
“[...] não só descrever o desempenho do
[...] a afirmação do que é específico na ação
trabalho de ensinar, mas também expressar
docente, isto é, o conjunto de comporta-
mentos, conhecimentos, destrezas, valores e pretensões que se deseja alcançar e
atitudes e valores que constituem a desenvolver nesta profissão”.
especificidade de ser professor. A discussão Com base nos autores citados, entende-
sobre a profissionalidade do professor é
-se o conceito de profissionalidade docente
parte integrante do debate sobre os fins e
como o conjunto de conhecimentos,
as práticas do sistema escolar, remetendo
para o tipo de desempenho e de habilidades e atitudes que compõem a
conhecimentos específicos da profissão competência do professor. São aspectos que
professor (Sacristán, 1995, p.65). integram a subjetividade profissional, pois se
desenvolvem no fazer cotidiano da atividade
Popkewitz (1986) declara existirem três
docente. É um ‘saber fazer’ construído indivi-
fatores que contribuem para a prática
dualmente, a partir de referenciais externos que,
pedagógica do professor, isto é, fatores que
porém, se tornam próprios e únicos. São
constituem o fazer docente: o contexto
instrumentos construídos pelo próprio
propriamente pedagógico, o contexto
professor para deles se utilizar na profissão,
profissional dos professores e o contexto
tornando-se um saber pessoal. Esse saber não
sociocultural. O primeiro está representado pela
se refere somente à prática, mas também à
efetiva prática da docência e é constituído
maneira de postar-se diante da profissão e
pelas experiências adquiridas no fazer
entendê-la na interação e contribuição social,
pedagógico diário ou de rotina. O segundo
ética e política.
refere-se ao contexto da classe docente, ou seja,
ao fazer individual que se torna coletivo e é Todos os atributos concernentes ao
pinçado para o campo individual. Em outras termo profissionalidade destacados pelos
palavras, a classe de professores legitima autores referenciados reforçam a definição
determinadas ações que constituem o trazida por Roldão (2007), contribuindo para o
específico de ser professor. O terceiro aspecto é entendimento da afirmação referente àquilo
representado pelo contexto sociocultural, ou que é específico na ação docente, a qual deve
seja, pelos conteúdos e valores eleitos pela ser contextualizada, conforme afirma Sacristán
própria cultura e legitimados pela sociedade (1995), de acordo com o momento histórico
como acervo fundamental para a formação dos concreto e a realidade social que o conhe-
estudantes. Esses conteúdos e valores re- cimento escolar pretende legitimar.
manter a instituição, submetendo-se aos editais segundo André (2005, p.47), tem como foco de
dos órgãos de fomento e às demais exigências atenção “[...] o mundo dos sujeitos, o
necessárias para ter sua solicitação aprovada” significados que atribuem às suas experiências
(Maués, 2015, p.226). Faz referência, ainda, aos cotidianas, sua linguagem, suas produções
critérios avaliativos da Coordenação de culturais e suas formas de interações sociais”.
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, Foram realizadas entrevistas semiestru-
que devem ser aceitos pelo docente, para estar turadas para a coleta de dados junto a seis
apto a concorrer por recursos para suas
docentes do ensino superior com até três anos
pesquisas se quiser garantir sua sobrevivência
de experiência, considerados ‘iniciantes’ na
acadêmica. A autora se apoia em Garcia e
conceituação de Feixas (2002). Os sujeitos 2
Anadon (2009), que justificam essa
foram selecionados independentemente de
intensificação com o número de horas que o
possuírem ou não experiência anterior em outro
docente gasta trabalhando fora do espaço da
segmento de ensino. Desses seis iniciantes,
universidade. Entendem a intensificação como
quatro atuavam em universidades públicas,
“[...] o fenômeno da ampliação das
sendo três em universidades federais, um em
responsabilidades e atribuições do cotidiano
universidade estadual e dois em faculdades
escolar dos professores e considerando o
privadas.
mesmo tempo de trabalho [...]” (p.230).
Somado a esses aspectos, Maués (2015)
lembra que a expansão das matrículas indicadas Características dos sujeitos
no Censo de 2010 não foi acompanhada do
crescimento do número de funções docentes Os professores Mauro e Iara atuam numa
e que as perdas salariais e a existência de planos faculdade privada, localizada na cidade de São
de carreira defasados têm marcado a pre- Paulo, que conta com várias unidades e
carização do trabalho docente. Do mesmo aproximadamente 2 mil alunos, em Cursos de
modo, a precarização acompanha os profes- Licenciatura, Bacharelado e Tecnológicos.
sores das instituições privadas, nas quais se O professor Mauro, de 47 anos, é
observa o número excessivo de aulas e de Graduado em Pedagogia e especialista em
alunos por sala, os baixos salários e a ausência História, Relações Sociais e Cultura. Atua no
de planos de carreira, indicando a dimensão Curso de Licenciatura em História há um ano,
objetiva da precarização. Com base nesses lecionando as disciplinas de Prática de Ensino,
referentes aqui trazidos, buscou-se conhecer os Didática e Metodologia do Ensino de História,
contextos e as condições de trabalho de com uma carga horária de 11 horas semanais
professores iniciantes que atuam nos cursos de pelo regime de Consolidação das Leis
licenciatura. Trabalhistas. Tem experiência na Educação de
Jovens e Adultos. Além do exercício da
Procedimentos Metodológicos docência, mantém atividade remunerada
como consultor em Tecnologia da Informação.
O estudo foi realizado atendendo à A professora Iara tem 48 anos, é Licen-
abordagem qualitativa de pesquisa que, ciada em Pedagogia, e Mestre e Doutora em
2
Os nomes dos sujeitos são fictícios para garantir a não identificação.
É ruim, é ruim. Até pela estrutura do Instituto. A estrutura física é outro problema. Hoje a
Não tem laboratório, eles (os alunos) não têm gente trabalha com a escola de duzentos
aula nenhuma de laboratório [...] o legal é anos atrás. Nós temos cadeiras enfileira-
uma ciência experimental, você tem que ver a dinhas, um na nuca do outro e, para minha
experiência, para depois matematizar o ideia de trabalho na faculdade, é impossível
problema. Nas universidades lá fora é isso que realizar dessa maneira. Então, vira uma
acontece (João, Universidade Federal). educação massificada mesmo, a gente acaba
dando palestra mesmo, pela quantidade de
O professor de Química também aponta pessoas e pela disposição da sala. Muitas
vezes eu não consigo circular no meio das
a necessidade de melhor estrutura de
carteiras para fazer as provocações
laboratórios, mas entende que, nesse
comunicativas que eu gosto (Mauro, Fa-
momento, por estar lecionando disciplinas culdade Privada).
teóricas, não tem percebido esse impacto.
Ambos alegaram que a infraestrutura deficitária Chama atenção a observação de Iara em
em relação aos laboratórios e ao funcio- relação à sala de professores, considerada por
namento da internet tem prejudicado suas ela como mero 'lugar de passagem', e não de
pesquisas. acolhimento, na medida em que reduz o espaço
para o processo de socialização profissional.
A professora Sofia, de Universidade
Como formadora do curso de Letras e de Pe-
Federal da região Sudeste, também destaca as
dagogia, enfatiza o descaso com a biblioteca:
dificuldades que tem enfrentado em relação às
precárias condições: Então, vou falar de infraestrutura: eu acho
que a infraestrutura é ruim, é precária. Na sala
Então eu não tenho um computador, por dos professores você tem poucos compu-
exemplo, se eu precisar ir à universidade para tadores que é dividido [sic] entre vários, enfim,
fazer meus trabalhos, minha pesquisa e usar não é um lugar de aconchego, de acolhi-
um computador, não tenho um espaço mento, é um lugar de passagem, o que deveria
organizado para isso. Tem uma sala com ser bem diferente, um conceito diferente de um
computador, mas muitos não acessam a espaço de educação. As bibliotecas têm um
Internet, aí as salas onde tem aula é difícil o sistema que não dá condição de manuseio
acesso à Internet, eu acho um pouco dos livros pelos alunos, da circulação nas
problemático aqui na universidade em prateleiras e o acervo também, é um acervo
relação à estrutura (Sofia, Universidade reduzido. A forma como está disponível, o
Federal). próprio sistema da biblioteca é compro-
dedicar ao ensino, na maior parte da sua carga muitos períodos e isso é uma coisa que
horária, têm a sensação de que “atuam em uma prejudica, por mais que você seja um
profissional brilhante, você precisa ter tempo
linha de produção”. Seus depoimentos
de preparar a aula, de pensar sobre isso, de
revelaram uma modificação muito significativa
pesquisar. Então ser remunerado para ter
nas expectativas que tinham sobre a docência, uma dedicação exclusiva é algo que vem
no curto período em que estão desem- para contribuir. [...] muitas coisas acabam
penhando o seu trabalho. Como exemplo, a sendo feitas em casa, porque não tem uma
professora Iara declara que: “[...] esse coração sala de trabalho, os prédios são um pouco
aberto, essa coisa da qualidade, não que a gente precários, têm problemas de segurança em
relação a incêndios. Essa própria estrutura
deixe de fazer com qualidade e tal, mas a gente
ainda prejudica a permanência dos
passa a ser mecânico no que faz também”. A professores lá. Os professores fazem reuniões
mecanização do trabalho é, para os dois na universidade e os trabalhos em casa (Sofia,
professores da rede privada, uma forte marca Universidade Federal).
da docência: "[...] até porque o nosso trabalho é
Já na rede privada, as relações de trabalho
muito operário, aquele dia você vai lá, dá duas
terminam por provocar instabilidade e
marretadas, bate o seu cartão e vai embora"
insegurança, além do sentimento de ameaça
(Mauro, Faculdade Privada).
de não ter disciplinas para ministrar, como se
pode constatar no depoimento a seguir:
Regime de trabalho e remuneração
O meu contrato de trabalho é Pessoa Jurídica,
Outro fator de distinção entre a docência prestadora de serviços. Então hoje minha
na universidade pública e na universidade situação profissional é essa. [...] Eu acho que
privada pode ser observada em relação ao ela não é confortável, porque eu acho que tem
contrato de trabalho. O contrato de dedicação uma questão de pertença, né? Você não
exclusiva na universidade pública evidencia pertence, não está. Tem algumas coisas do
condições de trabalho diferentes das dos ponto de vista das conquistas do tra-
balhador, que são importantes e te dão
professore da rede privada. O estudo de
algumas garantias[...] então você está sempre
Sguissardi (2015) mostrou que, em 2012, 91% muito vulnerável. E outra coisa que eu acho
dos professores das universidades federais muito terrível também na profissão é o
possuíam regime integral de trabalho, enquanto contrato parcial, você tem uma mudança a
nas privadas apenas 24% eram contratados cada semestre, você não tem uma condição
nesse regime. Ainda que haja problemas na de atribuição de aulas de 20 horas e o restante
infraestrutura da universidade, como se destaca de pesquisa e outras atividades, você não tem
isso. Cada semestre é uma coisa, cada semestre
no relato da entrevistada Sofia, o contrato de
é uma expectativa para o docente se vai ter
dedicação exclusiva é um fator importante para
disciplina, se não vai. [...] Acho que a sensação
ela: é essa: de ameaça e inconstância o tempo
Uma coisa que é interessante, no caso do todo (Iara, Faculdade Privada).
trabalho do professor da universidade
Ambos os entrevistados da rede privada
pública, é ganhar pela dedicação exclusiva,
isso eu acho um ganho. Porque a maioria
demonstraram ter consciência das conse-
dos professores que dão aula no Estado e no quências da precarização do próprio trabalho
Município, acabam tendo que dobrar em também no que se refere à remuneração:
[...] porque o professor teve suas horas A superação desse desafio aconteceu de forma
reduzidas, na verdade suprimidas, cortadas, solitária, tendo aprendido ‘na marra’ e por ‘en-
acaba que o professor tem um prejuízo, não
saio e erro’. A imitação dos professores que
tem como! Então, todo esse conceito do
marcaram positivamente sua trajetória
projeto pedagógico, de desenvolvimento, de
formação de mentes inovadoras, reflexivas acadêmica foi sua referência nesse início de
acaba sendo minado pelo próprio reflexo da atuação docente.
decisão de remuneração. Tem efeito, não tem Percebe-se, assim, que a falta de
como (Iara, Faculdade Privada).
formação e de experiência como professor
A baixa remuneração, além de fazer com dificulta o atendimento às exigências da
que a carreira docente seja pouco atrativa, docência. A ausência de espaço e de trocas
deteriora as relações de trabalho, não sistemáticas com um professor ou tutor mais
permitindo que os professores se constituam experiente faz com que as inseguranças do
como um coletivo: professor iniciante não sejam tratadas com o
devido cuidado, ficando a cargo dele próprio
[...] Agora, a remuneração em si não é um
procurar a resolução dos problemas e elaborá-
atrativo mesmo! As condições são ruins, é um
regime tarefeiro, nós ficamos com aulas -los internamente.
pulverizadas, e não dá tempo nem da gente A professora Sofia, também da uni-
criar relações no ambiente de trabalho, é um versidade federal, declara que teve acolhi-
negócio varejista, um supermercado (Mauro,
mento, mas sentiu falta de compartilhar o que
Faculdade Privada).
fazia em sala de aula, nos moldes das reuniões
de trabalho coletivo existentes na escola básica:
Trabalho coletivo e apoio pedagógico Eu tive acolhimento, mas por exemplo:
quando você sai da sala depois de ter dado
Outros aspectos observáveis em ambas uma aula, você não tem com quem discutir,
as redes, no tocante à constituição da o que deu errado, o porque deu errado, só são
profissionalidade do professor iniciante em conversas de corredor que acabam
cursos de licenciatura, dizem respeito à acontecendo. Cada professor tem a sua sala,
inexistência de trabalho pedagógico coletivo e não existe um “Horário de Trabalho Coletivo”
à falta de apoio ao processo de aprendizagem onde todos os professores se reúnem, discutem
sobre um determinado assunto (Sofia,
da docência vivido pelos iniciantes. Com a
Universidade Federal).
ausência de programas de iniciação à docência
ou de formação continuada, o apoio didático é Há um desejo de compartilhar as práticas
buscado junto a colegas ou ainda junto ao e aquilo que deu certo, as dificuldades e
orientador de Doutorado, como declarou o sucessos. Cunha e Zanchet (2010) também
professor de Física da universidade federal. Já o constataram o interesse do professor iniciante
professor de Química, da mesma universidade, em discutir suas práticas e analisam que a falta
conta que seu início na docência foi ‘horrível’. de teorização sobre a dimensão pedagógica ou
Sem experiência anterior na docência, ficava “[...] a ausência de saberes docentes fragiliza-os
muito nervoso e sentia minha voz trêmula, tinha profissionalmente. Nóvoa (2009) argumenta
que segurar minha mão senão ela acabava que complexidade do trabalho educativo
tremendo” (Sérgio, Universidade Pública Federal). reclama o aprofundamento das equipes
de professores que estão iniciando carreira no embora a precarização também tenha afetado
ensino superior no papel de formadores de o trabalho dos professores destas últimas.
novos professores. Dessa forma, os dados indicaram que as
Os dados parecem confirmar a hipótese diferentes condições, como as aqui analisadas,
de que a valorização profissional está exercem influência no trabalho do professor e
relacionada com essas condições, bem como afetam sua subjetividade, especialmente em
com a carreira, o salário, a formação e as políticas relação à autoestima e identidade profissional.
que as regulam. A valorização refere-se, Outra distinção se refere à possibilidade
também, aos aspectos internos da profissão e e condições para a realização de pesquisa. Os
que constituem a profissionalidade docente. dois docentes da universidade federal relataram
Como a profissionalidade emerge do próprio que a possibilidade de trabalhar com pesquisa
trabalho do professor, da sua prática, os dados aplicada determinou sua entrada na univer-
trouxeram evidências de que as influências das sidade, sem terem clareza do que representava
condições externas afetam o cotidiano das lecionar no curso de licenciatura. O foco
práticas, contribuindo, assim, para a corrosão somente na pesquisa pode impedir que os
ou constituição da profissionalidade. Essa docentes tomem consciência da sua função
situação, comum a todos os professores do de formadores de futuros professores e de que
ensino superior, preocupa ainda mais no caso pesquisar e ensinar podem se apresentar de
do profissional que forma os professores da forma integrada na prática do formador.
escola básica. Problematizar a ação docente a partir da
O apoio da instituição nessa fase inicial, realidade onde se atua e levantar questões e
especialmente em relação ao conhecimento caminhos metodológicos para a construção de
pedagógico necessário para esse formador, ao conhecimentos relevantes sobre o ensino, pode
acompanhamento de um trabalho que tome a ser um exemplo dessa integração. Para isso, as
realidade da escola básica e suas propostas oportunidades de um trabalho menos isolado
curriculares como objeto central de estudo não e com condições institucionais que valorizem
foram apontados pelos formadores entrevis- projetos comuns dos professores e voltados
tados como sendo preocupação das ins- para as práticas do ensino parecem favorecer a
tituições. Ou seja, a perspectiva de formação e formação profissional do iniciante.
de aprendizagem da docência é assumida Para finalizar, importa indicar que os
individualmente pela maioria dos iniciantes fatores constitutivos da profissionalidade
deste estudo. docente dos formadores iniciantes, tanto das
Constatou-se que há distinções que instituições públicas como das instituições
fazem com que os professores elaborem privadas, indicaram compromisso ético, social
significados diferentes sobre as condições do e cultural com a profissão e, especificamente, a
trabalho docente, bem como passem a exercê- busca pela aprendizagem da docência a partir
-lo de maneiras diferentes, de acordo com as dos conflitos e contradições experimentados
possibilidades concretas oferecidas pelas na prática em sala de aula.
instituições nas quais atuam. No caso dos Tornar visíveis as condições de trabalho
professores da rede privada, as condições a que dos docentes iniciantes de universidades
estão submetidos são piores que as da pública, públicas e privadas e, especialmente, como as
Popkewitz, T. The social contexts of schooling, change and Sacristán, J.G. Consciência e acção sobre a prática como
educacional research. In: Taylor, P.H. (Ed.) Recent libertação profissional dos professores. In: Nóvoa, A. (Org.).
developments in curriculum studies. Windsor: NFER- Profissão professor. Porto: Porto, 1995.
Nelson, 1986.
Sguissardi, V. Educação superior no Brasil: democratização
Roldão, M.C. Função docente: natureza e construção do ou massificação mercantil? Educação & Sociedade, v.36,
conhecimento profissional. Revista Brasileira de Educação, n.133, p.867-889, 2015.
v.12, n.34, p.94-103, 2007.
Ruiz, C.M. El desafio de los profesores principiantes
universitarios ante su formación. In: Garcia, C.M. (Coord.). El
profesorado principiante: inserción a la docência. Sevilha: Recebido em 30/6/2016, reapresentado em 3/10/2016 e
Octaedro, 2009. aprovado em 3/11/2016.