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Relatório de leitura: “Da Relação com o Saber: elementos para uma teoria”,

Bernard Charlot

Introdução
Charlot é movido pela questão do fracasso escolar, o porquê de tantos
alunos, principalmente das classes populares, terem suas dificuldades atribuídas a
esse fenômeno. Para o autor, o “fracasso escolar” precisa ser analisado a partir da
relação com o saber e a escola, sendo importante certo rigor conceitual e teórico.
Esse tema geralmente vem apresentado em conjunto com questões relacionadas à
origem social e às deficiências socioculturais, mas Charlot afirma que o “fracasso
escolar” deve ser entendido como objeto sociomediático e que para estudá-lo faz-se
necessária a construção de um objeto de pesquisa. Teremos, também, a relação
com o saber apresentada como objeto de pesquisa e a explicitação do conceito de
relação com o saber e suas definições.

Capítulo 1 – “O fracasso escolar”: um objeto de pesquisa inencontrável


Os objetos sociomediáticos relacionam-se às práticas que explicam as
experiências. O “fracasso escolar” não pode ser negado, mas não se configura um
fato. Expressa a reprovação, a não-aquisição de conhecimentos, em alguns casos, a
ineficácia do trabalho docente, a desigualdade social, e são objetos que não podem
ser negados, pois existem.
Contudo, o pesquisador, na sua função de questionar a realidade que lhe é
evidenciada, desconstrói, reconstrói, descreve, aproxima-se e distancia-se dos
objetos e fenômenos e, quando possível, retoma os fundamentos, conceitua e
teoriza sobre o objeto de pesquisa. É o que ele chama de “duplo movimento de
imersão no objeto e distanciamento teórico” (p. 15 e 16) na construção do objeto de
pesquisa.
Para Charlot, “é o conjunto desses fenômenos, observáveis, comprovados,
que a opinião, a mídia, os docentes agrupam sob o nome de ‘fracasso escolar’” (p.
16). O que existe são as situações decorrentes deste fenômeno: alunos fracassados
e história de fracasso, que podem ser agrupadas como situações de ausência de
algo, de diferença de posição entre os alunos.
Charlot chama a atenção para os aspectos empíricos do “fracasso escolar”, a
experiência vivida pelo aluno nessa situação, esta sim, podendo constituir-se em
objeto de pesquisa, a marca da diferença e da falta. As experiências escolares dos
alunos podem ser analisadas a partir da diferença na relação com o saber e a
escola. Deste modo, são diferenciadas duas maneiras de se analisar o “fracasso
escolar”: uma, pela diferença de posições, da sociologia da reprodução e outra,
adotada por Charlot, sobre a relação com o saber.

Capítulo 2 – Serão a reprodução, a origem social e as deficiências “a causa do


fracasso escolar”?
Charlot diferencia a chamada “sociologia da diferença”, parte da sociologia da
reprodução, como a que considera o “fracasso” escolar decorrente da origem social
ou deficiência, com o objetivo de explicá-lo ou às suas causas, a exemplo de
Bourdieu. Nesse caso, a posição ocupada pelo estudante é equivalente à posição
social de seus pais, há a reprodução das diferenças em uma situação na qual o
capital cultural e o habitus das famílias influenciam a posição ocupada na escola.
Para compreender a posição da família leva-se em conta a categoria
socioprofissional do pai (mesmo sendo a mãe aquela que mais acompanha o filho
em sua escolaridade) e suas práticas religiosas e políticas, o que podemos chamar
de práticas educativas familiares e que podem ainda diferir de filho para filho devido
às suas singularidades. Apesar da reprodução em herdeiros na transmissão do
capital cultural, Bourdieu entende que, para a posição escolar, é necessário trabalho,
atividade e práticas para apropriação de um saber, mais preponderantes do que o
próprio capital. Não se pode, contudo relacionar diretamente fracasso escolar à
origem social como um critério estatístico. Pode-se dizer que o fracasso escolar tem
relação com a desigualdade social, porém, mas não que o primeiro é causado pelo
segundo.

“Afirmar que a origem social é a causa do fracasso escolar é cometer dois


erros. Por um lado, significa passar de variáveis construídas pelo
pesquisador (as posições) para realidades empíricas (designadas como
origem ou fracasso escolar). Por outro lado, é interpretar um vínculo,
também construído (a correlação) em termos de causa efetiva, de ação
empírica” (p. 25).

Na concepção da sociologia da reprodução há também o conceito de


“deficiência sociocultural” que Charlot entende como construção teórica para
compreender o fracasso na aprendizagem dos alunos pertencentes às classes
populares. Quanto à deficiência, há três teorias: teoria da privação – deficiência
como falta, teoria do conflito cultural – deficiência como desvantagem proveniente da
família e teoria da deficiência institucional – deficiência como desvantagem gerada
pela instituição escolar, sendo que as duas últimas dialogam com relações e a
primeira só considera o que falta no aluno.
No entanto, o fato de que crianças de meios populares podem ter sucesso
escolar, põe em cheque tanto a teoria da deficiência como a da origem social.
Alguns professores explicam que isso ocorre por causa do “dom”. Há culpabilização
de docentes ou instituições, mas não são justificativas com comprovação científica.
A teoria da deficiência faz uma leitura “negativa” da realidade ao compreendê-la
somente enquanto “falta”. A proposta de Charlot de relação com o saber implica na
leitura “positiva” pautada na interpretação da realidade, com postura epistemológica
e metodológica, onde o indivíduo é visto como sujeito apesar de sua condição de
dominado.

Capítulo 6 – A relação com o saber: conceitos e definições


“Um ser vivo não está situado em um ambiente: está em relação com um
meio” (p. 78). Partindo desse princípio, Charlot compreende a relação com o saber
como relação do indivíduo com si próprio, com o outro e com o mundo enquanto
conjunto de significados e espaço de atividade em um determinado tempo. É uma
relação simbólica, ativa e temporal. A partir dos símbolos, o indivíduo estabelece
suas relações e apropria-se do mundo, transformando-o. A relação com o saber
compreende essa atividade humana e suas dimensões: relação com o mundo,
relação consigo e relação com o outro.
A relação com o saber mantém-se a partir do desejo de aprender, que move a
atividade e inclui representações de coisas além do próprio saber. “Nascer é
ingressar em um mundo onde se é obrigado a aprender” (p. 84). Essa necessidade
de aprender envolve relações com o saber de duas maneiras: relação com o saber
enquanto relação social e relação com o saber como relação de saber. A relação de
saber situa-se no âmbito do aprender, relação social pautada nas diferenças de
saber.

Conclusão
O fracasso escolar não existe como fato, mas situações e fenômenos de
fracasso escolar e o caminho apontado por Charlot para sua análise é o da relação
com o saber. Deste modo, várias disciplinas podem oferecer contribuições para este
estudo: a psicologia, a sociologia, a filosofia, as ciências da educação, dentre outras,
com seus objetos e métodos e seus questionamentos.

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