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Outras Vozes

Breve selecta de textos sobre o Direito e as suas pressuposições

Direito Processual Civil III


Faculdade de Direito da Universidade do Porto

Ano lectivo de 2022/23

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Textos de

1. Pascal, Pensamentos .............................................................................................. 3


2. John Steinbeck, As Vinhas da Ira .......................................................................... 4
3. Mário Cláudio, Uma Nuvem na Balança ........................................................... 13
4. Javier Marías, “Jueces no humanos” .................................................................. 14
5. Fiódor Dostoievski, O Idiota ............................................................................... 16
6. Vassili Grossman, Vida e Destino ....................................................................... 17

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1. Pascal, Pensamentos

«Onde força não há, direito se perde»

BLAISE PASCAL, Pensamentos, trad. de Miguel Serras Pereira, Relógio de Água,


Lisboa, 2019. Obra póstuma do Autor, que morreu em 1662.

n.º 94

Justiça, força.
É justo que seja seguido o que é justo; é necessário1 que seja seguido quem for o mais
forte.
A justiça sem força é impotente; a força sem a justiça é tirânica.
A justiça sem força é contrariada, porque os maus nunca faltam. A força sem a justiça
é acusada2. É pois preciso juntar a justiça e a força, e para tanto fazer com que o justo seja
forte ou com que o forte seja justo.
A justiça está sujeita a disputa. A força é facilmente reconhecível e não admite
disputa. Assim, não se pôde dar a força à justiça, porque a força contrariou a justiça e disse
que esta era injusta, e disse que era ela que era justa.
E assim não tendo podido fazer com que aquilo que é justo fosse forte, fizemos com
que aquilo que é forte fosse justo.

1 “Necessário” em sentido filosófico opõe-se a possível e designa aquilo que terá que acontecer, sem

alternativa possível.
2 = merece censura.

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2. John Steinbeck, As Vinhas da Ira

Excerto da obra
As Vinhas da Ira
JOHN STEINBECK
Trad. de Virgínia Motta
[Edição Livros do Brasil]

A propósito da despersonalização das relações jurídicas no ápice da modernidade. A


primeira edição da obra é de 1939. O contexto é o da Grande Depressão.

Capítulo V

Os senhores chegavam às terras ou, mais frequentemente, mandavam alguém por


eles. Vinham em carros fechados, e apalpavam a terra ressequida com os dedos, mas algumas
vezes traziam brocas grandes, que perfuravam o solo para o analisar. Os rendeiros, à porta
dos seus pátios, batidos pelo sol, observavam, inquietos, a marcha dos carros através dos
campos. E, por fim, os proprietários entravam nos pátios e, sentados nos seus carros, falavam
para fora das janelas. Os rendeiros paravam ao lado dos carros por um momento e, depois,
punham-se de cócoras a esgravatar a poeira com paus.
Nas portas abertas, as mulheres olhavam para fora e, por detrás delas, as crianças –
crianças de cabelo cor de milho e de olhos muito abertos, com um pé descalço por cima de
outro pé descalço, remexendo os dedos. As mulheres e as crianças observavam os homens a
falar com os senhorios. Mantinham-se silenciosas.
Alguns dos senhorios eram afáveis, porque detestavam o que estavam a fazer; outros
mostravam-se irritados, porque lhes repugnava serem cruéis, e ainda outros eram frios,
porque de há muito tinham descoberto que se não podia ser proprietário de terras sem se ser
frio. Mas todos eles se sentiam apanhados numa teia mais poderosa do que eles próprios.
Alguns odiavam os algarismos que os impeliam, outros tinham medo, e outros adoravam os
algarismos porque lhes serviam de refúgio para não pensarem nem sentirem. Se um banco
ou uma empresa financeira era o dono da terra, o seu delegado dizia: «O Banco – ou a
Companhia – precisa, quer, insiste, exige», como se o Banco ou a Companhia fosse um

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monstro, com ideias e sentimentos, que os tivesse apanhado na rede. Estes não tomavam
responsabilidades em nome dos bancos ou das companhias porque eram homens e escravos,
ao passo que os bancos eram ao mesmo tempo máquinas e patrões. Alguns dos delegados
sentiam-se um tanto orgulhosos de serem escravos de patrões tão frios e tão poderosos. Os
senhorios ou os seus representantes sentavam-se nos carros e explicavam:
– Vocês sabem que a terra é pobre. Vocês já a revolveram bastante tempo, como
Deus sabe.
Os rendeiros, acocorados no chão, acenavam com a cabeça, meditavam e
desenhavam figuras no pó. Sim, eles sabiam, Deus sabia também. Se não fosse a poeira! Se,
ao menos, eles pudessem adubar a terra, não seria tão mau.
Os senhorios continuavam a chegar a brasa à sua sardinha:
– Vocês sabem que a terra está cada vez mais pobre. Vocês sabem o que o algodão
faz à terra: rouba-a, suga-lhe todo o sangue.
Os colonos acenavam com a cabeça, que sabiam, que Deus sabia. Se pudessem
alternar as plantações podiam tornar a insuflar sangue na terra.
Sim, mas é muito tarde. E os senhorios explicavam os actos e os pensamentos do
monstro, que era mais forte do que eles. Um homem pode ter terra de renda, se ela lhe dá
para comer e pagar impostos, assim pode tê-la.
Sim, pode tê-la até que um dia as colheitas falham e ele tem de pedir dinheiro
emprestado ao banco.
– Vocês bem vêem; um banco ou uma companhia não podem viver assim, porque
essas entidades não respiram ar, não comem carne. Respiram lucros; comem os juros sobre
o dinheiro. Se os não obtiverem, morrem do modo por que vocês morrem: sem ar e sem
carne. É uma coisa triste, mas é assim mesmo. Precisamente assim.
Os homens, agachados, erguiam os olhos para compreender. Não seria possível
esperar mais algum tempo? Talvez que o próximo ano seja um bom ano. Sabe Deus se haverá
muito algodão no próximo ano? E, com todas as guerras, sabe Deus o preço a que o algodão
chegará. Não se fazem explosivos de algodão? E uniformes? Arranjem bastantes guerras e o
algodão subirá até ao tecto. No próximo ano, talvez. Olhavam para os senhorios com ar
interrogativo.
– Não podemos estar atidos a isso. O banco – o monstro – tem de recolher sempre
lucros. Não pode esperar. Senão, morre. Não, os juros estão continuamente a subir. Quando
o monstro pára de crescer, morre. Não pode estar sempre no mesmo tamanho.
Dedos finos começavam a tamborilar no peitoril da janela do carro e dedos calosos
apertavam mais os paus que esgaravatavam nervosamente no chão. Às portas das casas
batidas pelo sol, onde moravam os rendeiros, as mulheres suspiravam e mudavam os pés, de
modo que o que tinha estado para baixo estava agora para cima, com os dedos a bulir. Os

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cães chegavam, farejavam perto dos carros dos senhorios e mijavam sucessivamente em
todos os pneumáticos. E as galinhas agachavam-se na poeira quente e sacudiam as penas
para que a poeira lhes descesse até à pele. Nas pequenas pocilgas, os porcos grunhiam,
pedindo qualquer coisa, remexendo os restos enlodados das lavagens.
Agachados, os homens tornavam a ferrar os olhos no chão.
– Que querem os senhores que a gente faça? Não podemos tirar partilha menor da
colheita; estamos quase a morrer de fome. As crianças andam sempre esfomeadas. Não
temos roupas; só farrapos. Se todos os vizinhos não estivessem na mesma, teríamos vergonha
de ir ao culto.
E, por fim, os senhorios chegaram ao ponto crucial.
– O sistema de arrendamento não pode vigorar mais. Um só homem a guiar um
tractor pode fazer o trabalho de doze ou catorze famílias. Paguem-lhe um salário e ele toma
para si toda a colheita. Temos de fazer isso. É contra a nossa vontade. Mas o monstro exige-
o. Não nos podemos opor a ele.
– Mas vão matar a terra com algodão.
– Bem sabemos. Temos de cultivar algodão depressa, antes que a terra morra. Depois
vendemos a terra. Há centenas de famílias no Este que querem possuir um bocado de terra.
Os rendeiros olharam para os carros, alarmados.
– E, depois, o que vai suceder? Como havemos de comer?
– Vocês têm de deixar a terra. Os arados rasgarão os vossos quintais.
E agora os homens agachados ergueram-se, coléricos.
O avô havia-se apoderado da terra; tivera de matar os índios e de os expulsar. E o pai
nascera ali e matara ervas ruins e cobras. Depois, viera um ano mau e ele tivera de pedir
algum dinheiro emprestado.
– E nós nascemos aqui. Esses que estão ali às portas – os nossos filhos – nasceram
aqui. E o pai teve de pedir dinheiro emprestado. O banco achou-se então dono da terra, e
nós ficámos, mas apenas com uma pequena parte daquilo que colhíamos.
– Nós sabemos isso, tudo isso. Não somos nós, é o banco. Um banco não é um
homem. E um proprietário de cinquenta mil acres também não é como um homem. É um
monstro.
– Decerto – exclamaram os rendeiros –, mas é a nossa terra. Medimo-la e rasgámo-
la. Nela nascemos; fazemo-nos matar nela; morremos nela. Apesar de não ser boa, mesmo
assim é nossa. É isso que faz com que ela seja nossa: termos nascido nela, trabalhado nela,
morrido nela. Isso é que justifica o direito de propriedade e não um papel com algarismos
escritos.

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– Sentimos muito. Mas não somos nós. É o monstro. O banco não é como um
homem.
– Sim, mas o banco só se compõe de homens.
– Não, vocês enganam-se nisso; enganam-se redondamente. O banco é alguma coisa
mais do que homens. Acontece que todos os homens odeiam o que o banco faz, e todavia o
banco fá-lo. O banco é alguma coisa mais do que os homens, acreditem. É o monstro. Os
homens fizeram-no mas não podem controlá-lo.
Os rendeiros bramaram:
– O avô matou índios, o pai matou cobras por causa da terra. Talvez nós possamos
matar os bancos; são piores do que os índios e as cobras. Talvez nós nos disponhamos a
combater para conservar a nossa terra, como fizeram o pai e o avô.
E então chegou a vez de os senhorios ficarem zangados.
– Vocês têm de sair daqui.
– Mas a terra é nossa – vociferavam os rendeiros. – Nós…
– Não é. O banco, o monstro, é o dono. Vocês têm de sair daqui.
– Pegamos nas nossas espingardas, como o avô quando os índios vieram. Que é que
nos poderá acontecer?
– Primeiro vem o xerife e depois a tropa. Serão ladrões se teimarem em ficar; serão
assassinos se matarem para ficar. O monstro não é homem, mas pode arranjar homens par
fazerem o que ele quer.
– Mas, se sairmos daqui, para onde iremos? E como iremos? Estamos sem dinheiro.
– Sentimos muito – disseram os senhorios. – O banco, o dono de cinquenta mil acres,
nada tem com isso. Vocês estão em terra que não é vossa. Talvez que, para lá da divisa, vocês
consigam arranjar trabalho no Outono, na colheita do algodão. Talvez consigam ser
socorridos como indigentes. Porque não vão para o Oeste, para a Califórnia? Há lá muito
trabalho e nunca faz frio. Ali, em qualquer parte, podem estender a mão e apanhar uma
laranja. Ali há sempre uma ou outra plantação onde trabalhar. Porque não hão-de vocês ir?
E os senhorios puseram os carros em movimento e foram-se embora.
Os rendeiros agachavam-se de novo para fazerem garatujas na poeira, para pensarem,
para ponderarem. Os seus rostos queimados estavam sombrios e os olhos batidos de sol
coruscavam. As mulheres saíram cautelosamente das portas das casas para o pé dos homens
e as crianças arrastavam-se atrás das mães, cautelosas, prontas a fugir. Os rapazes mais
crescidos agachavam-se ao lado dos pais, porque isso os fazia homens. Daí a pouco, as
mulheres perguntavam:
– Que é que eles querem?

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E os homens olhavam para elas um instante, com uma sombra de dor nos olhos.
– Temos de sair daqui. Um tractor e um capataz. Como nas fábricas.
– Para onde vamos? – perguntavam as mulheres.
– Não sabemos. Não sabemos.
E as mulheres iam-se embora, muito de mansinho, para dentro das casas, levando as
crianças à sua frente. Sabiam que um homem assim aflito e embaraçado até é capaz de se
zangar com as pessoas que ama. Deixavam os homens sozinhos, a pensar e a desenhar na
poeira.
Passado um bocado, o rendeiro ia dar uma vista de olhos à bomba posta ali há dez
anos, com um manípulo em forma de pescoço de ganso e flores de ferro na boca, a um cepo
onde centenas de galinhas tinham sido mortas, a um arado de mão pousado no telheiro e a
uma grade suspensa por cima dele, nas vigas.
As crianças arrebanhavam-se junto das mães, nas casas.
– Que vamos fazer, mãe? Para onde vamos?
As mulheres diziam:
– Não sabemos ainda. Vão brincar. Mas não se aproximem do vosso pai. É capaz de
vos bater se vocês se chegarem para o pé dele.
E as mulheres continuavam a trabalhar, mas sem perderem de vista os homens
agachados na poeira – perplexos e pensativos.

Os tractores calcaram as estradas e invadiram os campos, como se fossem grandes


répteis de ferro que se moviam como insectos e que tinham a força incrível dos insectos.
Rastejavam pelo chão, cavando sulcos, rolando sobre eles e levantando-os. Tractores Diesel,
vibrando quando parados, trovejando quando se moviam, baixando depois para uma zoada
monótona. Monstros de nariz chato, erguendo a poeira e enterrando o focinho nela,
marchando a direito pelas terras, cruzando as terras através de cercas, de portais, dentro e
fora de barrancos, em linhas rectas. Não corriam pelo solo, mas por estradas que eles
próprios cavavam. Não faziam caso de colinas, nem de barrancos, de correntes de água, de
valados ou de casas.
O homem que se sentava no assento de ferro não parecia um homem; enluvado, de
óculos, com uma máscara de borracha empoleirada sobre o nariz e a boca, era uma parte do
monstro, um autómato no assento. O estrondo dos cilindros reboava pelos campos fora, em
comunhão com o ar e com a terra, e, assim, o ar e a terra ecoavam numa só vibração. O
condutor não o podia controlar – ia através dos campos, cortando por uma dúzia de quintas
e voltando horizontalmente. Um puxão nas alavancas podia desviar o monstro, mas as mãos
do condutor eram impotentes para isso, porque o monstro que construíra o tractor, o

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monstro que expedira o tractor, tinham-se de qualquer modo introduzido nas mãos do
condutor, no seu cérebro e nos seus músculos; tinham-no torcido e açamado – torcido o
espírito, açamado a fala, torcido a sua percepção e açamado o seu protesto. Ele não podia
ver a terra tal qual era, não podia sentir o cheiro que ela exalava; os seus pés não calcavam os
torrões nem sentiam o calor nem a força do solo. Sentava-se num assento de ferro e calcava
pedais de ferro. Ele não podia estimular, fustigar, amaldiçoar ou incitar a extensão do seu
poder, e, por causa disso, não se podia estimular, fustigar, amaldiçoar ou incitar a si mesmo.
Não conhecia nem possuía a terra, e nem nela confiava nem por ela implorava. Se uma
semente lançada não germinasse, eis uma coisa que nada lhe dizia. Se uma tenra planta
brutalizada secasse, urrada pela estiagem ou afogada numa avalanche de chuva, tanto caso
fazia disso o condutor como a sua máquina.
Ele nutria pela terra a mesma indiferença que o banco tinha por ela. Podia admirar o
tractor – a sua estrutura mecânica, a plenitude da sua força, o rugido dos seus cilindros de
detonação; mas o tractor não era seu. Atrás do tractor rolavam os discos, brilhantes, cortando
a terra com as lâminas – não era lavragem mas cirurgia, repuxava a terra para a direita, quando
a segunda fila de discos cortava e repuxava para a esquerda – lâminas brilhantes e aguçadas,
polidas pela terra dilacerada. E, impelidas atrás dos discos, as grades penteavam com dentes
de ferros os pequenos torrões, quebrando-os e deixando a terra lisa. Por detrás das grades,
os semeadores compridos – doze ganchos recurvos de ferro saídos da fundição – ligados por
engrenagens, movendo-se metodicamente, movendo-se sem paixão. O condutor sentava-se
no seu assento de ferro e sentia-se orgulhoso das linhas rectas que ele não traçara, do tractor
que ele não possuía nem amava e do poder que ele não podia controlar. E, quando aquela
plantação crescia e era colhida, nenhum homem havia esmagado um torrão quente nem
peneirado a terra por entre as pontas dos dedos. Nenhum homem tinha tocado a semente
ou sentido alegria com a maturação. Os homens comiam o que não tinham cultivado – não
tinham ligação com o pão. A terra gerava debaixo do ferro e debaixo de ferro gradualmente
morria, porque não era amada nem odiada; não recebia bênçãos nem maldições.

Ao meio-dia, o condutor do tractor parava, às vezes perto da casa de um redeiro e


abria a bolsa onde trazia a merenda: sanduíches embrulhadas em papel encerado, pão branco,
conservas, queijo, um bocado de empada marcada como uma peça de máquina. Comia sem
apetite. Os rendeiros, que se não tinham ainda mudado, vinham observá-lo, olhando
curiosamente, enquanto ele tirava os óculos e a máscara de borracha, que lhe deixavam
círculos brancos à volta do nariz e da boca. O escape do tractor baforava, porque o
combustível é tão barato que é mais prático deixar o motor a trabalhar do que aquecer o
Diesel para nova empreitada.
Crianças curiosas apinhavam-se perto, crianças esfarrapadas, que comiam massa de
farinha frita, a observarem. Observavam esfomeadamente o desembrulhar das sanduíches e
os seus narizes, aguçados pela fome, aspiravam o cheiro da conserva, do queijo e da empada.
Não falavam para o condutor. Observavam a mão dele ao levar o alimento à boca. Não o

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observavam quando mastigava; os seus olhos seguiam a mão que segurava a sanduíche.
Decorrido algum tempo, um rendeiro que não se decidia a deixar aquele sítio aproximou-se,
acocorando-se na sombra, ao lado do tractor.
– Olhe lá, você não é o filho do Joe Davis?
– Pois claro que sou – respondeu o condutor.
– Então por que anda a fazer esse maldito trabalho contra a sua própria gente?
– Três dólares por dia. Estava farto de me consumir para conseguir o jantar. Tenho
mulher e filhos. Precisamos de comer. Três dólares por dia, sem falhar um dia.
– Não há dúvida – disse o rendeiro. – Mas, por causa dos seus três dólares por dia,
ficam quinze ou vinte pessoas sem comer. Perto de uma centena de pessoas tem de sair daqui
e de vaguear pelas estradas por via dos seus três dólares por dia. Acha justo?
– Não quero saber disso. Tenho de pensar nos meus filhos. Três dólares por dia, sem
falhar um único. Os tempos mudaram, amigo. Você não sabe? Não se pode viver da terra, a
não ser que se possuam dois, cinco ou dez mil acres e um tractor. As plantações já não são
para pobretanas como nós. Você não se põe a gemer porque não pode fabricar Fords ou
porque não é a companhia dos telefones. A agricultura, agora, é assim. Não se pode fazer
nada. A gente tem de ver se obtém três dólares por dia nalguma parte. É a única forma.
– Sim, tudo isso é muito estranho – ponderou o rendeiro.
– Mas, se um homem possui uma pequena propriedade, essa propriedade é parte
dele, é semelhante a ele. Se ele possui uma propriedade assim, pode andar sobre ela, tratar
dela e ficar triste quando ela não produz e sentir-se alegre quando a chuva a regra; essa
propriedade é ele, é parte dele, é semelhante a ele. Mesmo que não seja bem sucedido, ele
sente-se grande com a sua propriedade. É isto.
E, parando um pouco, prosseguiu:
– Mas, se um homem adquire uma propriedade que não vê, nem dispõe de tempo
para lhe pôr os dedos, nem lá pode ir para a sentir debaixo dos pés, então a propriedade
sobrepõe-se ao homem. A propriedade é mais forte do que ele. E ele, em vezes de ser grande,
torna-se pequeno. Só as suas possessões são grandes e ele é o servo da sua propriedade. Esta
é que é a verdade.
O condutor devorou o resto da empada e atirou a côdea fora:
– Você não vê que os tempos estão mudados? A pensar assim, você não dá de comer
aos filhos. Veja se consegue ganhar três dólares por dia, para matar a fome aos filhos.
Ninguém lhe passou procuração para se ralar com os filhos dos outros. Trate mas é dos seus.
Daqui a pouco está para aí tudo cheio do que você diz e assim nunca chega a ganhar três
dólares por dia. Os patrões não lhe dão três dólares por dia se se incomodar com outra coisa
que não seja os seus três dólares por dia.

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– Por causa dos seus três dólares há bem umas cem pessoas na estrada. Para onde
havemos de ir?
– Isso faz-me lembrar que é melhor você tratar depressa da mudança. Tenho de
atravessar o pátio da sua casa depois do jantar.
– Você obstruiu o poço esta manhã.
– Bem sei. Tinha de seguir em linha recta. Mas, depois de jantar, vou atravessar o
pátio. Tenho de manter as linhas rectas. E, enfim, eu aviso-o disto por você conhecer o Joe
Davis, lá o meu velho. Tenho ordens para, em toda a parte onde haja uma família que ainda
se não tenha mudado, me chegar para bem perto – assim como que seja por acidente, percebe
você? – e escavacar um bocadito a casa, e, deste modo, meto no bolso uns dois dólares. E o
meu filho mais novo ainda não soube o que eram sapatos.
– Construí-a por minhas mãos. Endireitei pregos velhos para lhe pôr o forro. Liguei
os barrotes às traves com arame de rolo. É minha. Construí-a eu. Se você vem para a
derrubar, eu apareço à janela com uma espingarda. Se você se aproxima muito, mato-o como
a um coelho.
– Mas se não sou eu o culpado! Nada posso fazer. Perco o meu emprego se não
cumpro as ordens. E, olhe: suponhamos que você me mata. Que acontece? Enforcam-no a
você, mas muito antes mesmo de você ser enforcado aparece outro sujeito no tractor e ele
então deitará a casa abaixo. Você não pode matar o verdadeiro responsável.
– Sim, tem razão – assentiu o rendeiro. – Então quem lhe deu ordens? Vou procurá-
lo. É esse tipo que eu devo matar.
– Aí é que você se engana. Esse recebeu ordens do banco. O banco disse-lhe: expulse
essa gente toda, senão perde o seu emprego.
– Sim, mas deve haver um presidente do banco. Deve haver um conselho de
administração. Vou encher a espingarda de balas e entro no banco.
– Mas ouvi dizer que o banco recebeu as ordens do Este – explicou o condutor. – E
essas ordens eram: fazer com que a terra dê lucro o então fechamos-vos a porta.
– Aonde vai então isso parar? Quem devemos alvejar? Não quero morrer de fome
sem matar o homem que me está a tirar o pão.
– Não sei. Talvez que não haja ninguém a alvejar. Talvez que não seja de modo algum
questão de homens. Talvez, como você disse, seja culpa da propriedade. Seja como for, já
lhe disse as ordens que me deram.
– Deixe-me pensar – disse o rendeiro. – Todos nós temos de pensar. Talvez haja
maneira de evitar isto. Não pode ser como o relâmpago e o terramoto. Se os homens fizerem
uma coisa má, haverá, por Deus, alguma coisa que se possa alterar.

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O rendeiro sentara-se à porta da sua casa e o condutor pôs o maquinismo em
movimento. Trilhos a abrirem-se e a encurvarem-se, as grades desterroando e os falos do
semeador perfurando o solo. O tractor cortou através do pátio da casa, e o terreno duro,
pisado pelos pés, tornou-se campo semeado, e o tractor continuou a retalhar; o espaço não
cortado tinha dez pés de largo. E voltou para trás. A guarda de ferro enfiou no ângulo da
casa, derrubou a parede e arrancou a pequena casa dos seus alicerces, de modo que ela caiu
de lado, esmagada como um percevejo. E o condutor tinha óculos e uma máscara de
borracha cobria-lhe o nariz e a boca. O tractor prosseguiu para a frente em linha recta; o ar
e a terra vibraram com o seu fragor. O rendeiro olhava espantado para aquilo, de espingarda
na mão, com a mulher ao lado e os filhos, quietos, atrás. E todos eles ficaram de olhos
pasmados para o tractor.

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3. Mário Cláudio, Uma Nuvem na Balança

Um olhar sobre a «Justiça»

MÁRIO CLÁUDIO, Uma Nuvem na Balança, Ed. do Instituto da Conferência –


Conselho Distrital do Porto da Ordem dos Advogados, Porto, 2006, p. 25

Não será então um bronco engenho falante essa Justiça, procedendo pela inexorável
dinâmica das peças que a articulam? “Levante-se o réu”, “Nome e apelido?”, “Profissão”,
“Vem acusado de ter”, etc., etc. É ela o grande útero amorável, a mãe que, retirando a venda,
mira e remira o filho que lhe deitaram nos braços, o beija com extremado desvelo, e se dedica
a lentamente, muito lentamente, o devorar.

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4. Javier Marías, “Jueces no humanos”

«Juízes não humanos»


Um apontamento sobre a escrita jurídica criativa

JAVIER MARÍAS, “Jueces no humanos”, El País Semanal, 8 de febrero de 2015,


disponível em: https://javiermariasblog.wordpress.com/2015/02/08/la-zona-fantasma-8-
de-febrero-de-2015-jueces-no-humanos/

No es que los jueces hayan sido nunca demasiado de fiar. A lo largo de la historia los
ha habido venales, cobardes, fanáticos, por supuesto prevaricadores, por supuesto
desmesurados. Pero la mayoría de los injustos mantenía hasta hace no mucho una apariencia
de cordura. Recurrían a claros sofismas o retorcían las leyes o bien se aferraban a la letra de
éstas, pero al menos se molestaban en urdir artimañas, en dotar a sus resoluciones de
simulacros de racionalidad y ecuanimidad. Recuerdo haber hablado, hace ya más de diez
años, de un caso en que el juez no apreció “ensañamiento” del acusado, que había asestado
setenta puñaladas a su víctima, algo así. El disparate, con todo, buscó una justificación: dado
que la primera herida había sido mortal, no podía haber “ensañamiento” con quien ya era
cadáver y no sufría; como si el asesino hubiera tenido conocimientos médicos y anatómicos
tan precisos y veloces para saber en el acto que las sesenta y nueve veces restantes acuchillaba
a un fiambre.
Pero ahora hay no pocos jueces que no disimulan nada, y a los que no preocupa lo
más mínimo manifestar síntomas de locura o de supina estupidez. Uno se pregunta cómo es
que aprueban los exámenes pertinentes, cómo es que se pone en sus manos los destinos de
la gente, su libertad o su encarcelamiento, su vida o su muerte en los países en que aún existe
la pena capital. Si uno ve series de televisión de abogados (por ejemplo, The Good Wife), a
menudo reza por que lo mostrado en ellas sea sólo producto de la imaginación de los
guionistas y no se corresponda con la realidad judicial americana, sobre todo porque cuanto
es práctica en los Estados Unidos acaba siendo servilmente copiado en Europa, con la
papanatas España a la cabeza.
Hace unas semanas hubo un reportaje de Natalia Junquera sobre los tests a que se
somete a los extranjeros que solicitan nuestra nacionalidad, para calibrar su grado de
“españolidad”. Por lo visto no hay una prueba standard (“¡Todo el mundo se aprendería las
respuestas!”, exclama el Director General de los Registros y del Notariado), así que cada juez
pregunta al interesado lo que le da la gana, cuando éste se presenta ante el Registro Civil. Al
parecer, hay algún juez que, para “pulsar” el grado de integridad del solicitante en nuestra

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sociedad, inquiere “qué personaje televisivo mantuvo una relación con un conocido torero”
o “qué torero es conocido por su muerte trágica” (me imagino que aquí se admitirían como
respuestas válidas los nombres y apodos de todos los diestros fallecidos a lo largo de la
historia, incluidos suicidas). El mismo juez preguntó quién era el Presidente de Navarra, y el
marroquí interrogado lo supo, inverosímilmente. Pero tal hazaña no le bastó (falló en la
cuestión taurina), y hubo de recurrir, con éxito. Otros jueces quieren saber qué pasó en 1934,
o cómo fue la Constitución de 1812, o nombres de escritores españoles del siglo XVI. A un
tal juez Celemín, famoso aunque yo no lo conozca, le pareció insuficiente que un peruano
mencionara el de Lope de Vega, y se lo cargó. Todo esto suena demencial, y encima, en los
exámenes sobre “personajes del corazón”, resulta muy difícil seguirles la pista o incluso
reconocerlos, tanto cambian de aspecto a fuerza de perrerías (hace poco creí estar viendo en
la tele a la actriz de la película Carmina o revienta y después descubrí que era, precisamente,
quien “mantuvo una relación con un conocido torero”).
Pero la epidemia de jueces lunáticos se extiende por todo el globo. Se ha sabido que
los magistrados venezolanos del Tribunal Supremo (o como se llame el equivalente
caraqueño) han fallado 45.000 veces a favor de los Gobiernos de Chávez y Maduro… y
ninguna en contra, en los litigios presentados contra sus directrices y leyes. Empiecen a
contar, una, dos, tres, y así hasta 45.000, no creo que nadie lo pueda resistir, y sin embargo
existe tal contabilidad. Pero quizá es más alarmante (el caso venezolano sólo prueba que esos
jueces reciben órdenes y son peleles gubernamentales, lo habitual en toda dictadura) el
reciente fallo de unos togados argentinos que dictaminaron que una orangutana del zoo era
“persona no humana”, con derecho al habeas corpus (como si hubiera sido arrestada) y a
circular libremente. Que haya articulistas y espontáneos que abracen en seguida la imbecilidad
y reivindiquen la “definición” también para las ballenas, los perros y los delfines, no tiene
nada de particular. Al fin y al cabo ya hubo aquel llamado Proyecto Gran Simio que suscribió
con entusiasmo el PSOE de Zapatero. Pero que unos jueces (individuos en teoría formados,
prudentes y cultos) incurran en semejante contradicción en los términos, francamente, me
lleva a sospechar que son ellos quienes forman parte del peculiar grupo de las “personas no
humanas”. Y a ellos sí, pese a su desvarío, habría que reconocerles el derecho al habeas
corpus, faltaría más. Confío en que la orangutana (ya puestos) sea proclive a concedérselo.
No vería gran diferencia si fuera ella quien vistiera la toga y enarbolara el mazo con el que
dictar sentencias. La capacidad de raciocinio de la una y los otros debe de ser bastante
aproximada

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5. Fiódor Dostoievski, O Idiota

De novo sobre o Direito e a força,


e ainda sobre as pessoas, os tigres e os crocodilos

FIÓDOR DOSTOIEVSKI, O Idiota, trad. de António Pescada da obra de 1868-69,


Relógio d’Água: Lisboa, 2014, pág. 269 (II, X):

– Bem, e então, já acabaste? – dirigiu-se Lizaveta Prokófievna a Evguéni Pávlovitch.


– Acaba depressa, meu caro, são horas de ele ir dormir. Ou não és capaz? (Estava
horrivelmente enfadada.)
– Gostaria talvez de acrescentar ainda – continuou Evguéni Pávlovitch, sorrindo –
que tudo aquilo que ouvi dos seus camaradas, senhor Teréntiev, e tudo aquilo o que o senhor
expôs agora com indubitável talento, resume-se, em minha opinião, à teoria do triunfo do
direito, antes de tudo e para além de tudo, e talvez mesmo antes de apurar em que consiste
o direito. Estarei enganado?
– Claro que está enganado, eu nem o compreendo…e que mais?
A um canto soaram também murmúrios de descontentamento. O sobrinho de
Lébedev dizia qualquer coisa a meia-voz.
– Quase mais nada – continuou Evguéni Pávlovitch –, apenas queria observar que
daí se pode passar directamente ao direito da força, ou seja, ao direito do punho individual e
de uma vontade individual, como de resto muitas vezes aconteceu no mundo. Proudhon
ficou-se pelo direito da força. Na guerra americana muitos dos mais avançados liberais
declararam-se a favor dos plantadores, no sentido de que os negros são negros, uma raça
inferior à dos brancos, e portanto no direito da força dos brancos.
– E então?
– Quer dizer, portanto, que não nega o direito da força?
– E que mais?
– O senhor é mesmo consequente; eu só queria notar que, do direito da força ao
direito dos tigres e dos crocodilos, e até ao direito de Danílov e de Gorski, vai um passo.
– Não sei; e que mais?
Ippolit mal ouvia Evguéni Pávlovitch, e embora lhe dissesse então e que mais, parecia
fazê-lo mais por um velho hábito nas conversas, do que por atenção ou por curiosidade.
– Nada mais…é tudo.

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6. Vassili Grossman, Vida e Destino

O bem da ideia e a bondade da acção

VASSILI GROSSMAN, Vida e Destino trad. de Nina Guerra e de Filipe Guerra da obra
de 1961 (editada pela primeira vez décadas depois), D. Quixote: Lisboa, 2011, pp. 405-411
(n.º II.16)

[A reflexão tem lugar no quadro da União Soviética em plena 2.ª Guerra Mundial.]

A maioria dos habitantes da terra não se preocupa com a ideia de definir “o bem”.
Em que consiste o bem? O bem para quem? Da parte de quem? Existirá um bem universal,
aplicável a todas as pessoas, a todas as tribos, a todas as situações da vida? Ou será que o
meu bem está no mal para ti, o bem do meu povo está no mal para o teu povo? Será o bem
eterno, imutável, ou o bem de ontem torna-se o mal de hoje, enquanto o mal de ontem se
torna o bem de hoje?
Chega o dia do Juízo Final, e não só os filósofos e os pregadores, mas todas as
pessoas, alfabetizadas e analfabetas, começam a reflectir sobre o bem e o mal.
Será que o homem, durante milénios, evoluiu nos seus conceitos de bem? Existirá de
facto este conceito universal para todas a gente, indiscriminadamente – sejam helenos, sejam
judeus – como achavam os apóstolos do Evangelho? Independentemente de classes, nações,
Estados? Ou talvez um conceito ainda mais amplo, comum também aos animais, árvores,
musgo, aquele conceito mais vasto que Buda e os seus discípulos atribuíram ao bem? Aquele
Buda que, para abranger a vida com o bem e o amor, teve de chegar à sua negação.
Vejo: os conceitos dos líderes filosófico-morais da humanidade, que surgem milénio
após milénio, levam à redução da noção do bem.
Os conceitos cristãos, à distância de cinco séculos dos budistas, reduzem o mundo
dos seres vivos aos quais o bem se aplique. Apenas aos homens, e não a tudo o que é vivo!
O bem dos primeiros cristãos, o bem de todos os homens, foi substituído pelo bem
apenas para os cristãos, enquanto ao lado vivia o bem para os muçulmanos, o bem para os
judeus.
Passaram os séculos, e o bem dos cristãos fragmentou-se em bem dos católicos, dos
protestantes, dos cristãos ortodoxos. E dentro do bem da cristandade ortodoxa surgiu o bem
da crença nova e o da crença velha.

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E, ao lado, há o bem dos ricos e bem dos pobres, ao lado nasci o bem dos amarelos,
dos pretos, dos brancos.
E, sempre de fragmentação em fragmentação, surge o bem dentro de uma seite, de
uma raça, de uma classe, e todos os que estiverem fora do círculo fechado já não são
abrangidos pelo bem.
E os homens viram que muito sangue foi derramado por causa deste pequeno bem
isento de bondade, em nome da lute deste bem contra tudo o que ele, o bem pequeno,
considerava um mal.
E, por vezes, a própria noção deste bem tornava-se o chicote da vida, um mal maior
do que o próprio mal.
Este bem é apenas uma casca, da qual caiu e se perdeu a semente sagrada. Quem vai
devolver às pessoas a semente perdida?
Mas o que é, então, o bem? Dizia-se assim: o bem é um desígnio e uma acção que
leva ao triunfo, à força da humanidade, da família, da nação, do Estado, da classe, da religião.
Aqueles que lutam pelo seu bem particular, tentam conferir-lhe uma aparência de
universal. Por isso dizem: o meu bem coincide com o bem universal, o meu bem não é
necessário apenas para mim, é necessário para todos. Criando o bem particular, sirvo o bem
comum.
Assim, o bem que perdeu o carácter universal, o bem de uma seita, de uma classe, de
uma nação, de um Estado, tenta impregnar-se a si próprio de um carácter falsamente
universal, para justificar a sua luta contra tudo o que considera, para si, o mal.
Mas também Herodes, quando derramou sangue, não foi em prol do mal, mas em
prol do bem dele próprio, Herodes. Uma nova força chegava ao mundo e ameaçava acabar
com ele, com a sua família, com os seus favoritos e amigos, com o seu reino e o seu exército.
Mas não foi o mal que nasceu, foi o cristianismo. Nunca antes a humanidade tinha
ouvido essas palavras. “Não julgueis, para que não sejais julgados. Porque, com o juízo com
que julgardes, sereis julgados, e, com a medida com que tiverdes medido, vos hão-de medir
a vós… Amai os vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem, fazei bem aos que vos
odeiam, e orai pelos que vos maltratam e vos perseguem… Portanto, tudo o que vós quereis
que os homens vos façam, fazei-lho também vós, porque está e a lei e os profetas.”
O que trouxe às pessoas este ensinamento da paz e do amor?
A iconoclastia bizantina, as torturas da inquisição, a luta contra as heresias em França,
Itália, landres, Alemanha, a luta entre o protestantismo e o catolicismo, a perfídia das ordens
monásticas, a luta entre Nikon e Avvakum, a opressão de muitos séculos da ciência e da
liberdade, exterminadores cristãos da população pagã da Tasmânia, facínoras que queimavam
aldeias africanas. Tudo isto custo mais sofrimento do que os crimes dos bandidos e celerados
que praticavam o mal pelo mal…

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É assim o destino, que abala e queima a mente, da mais humana doutrina da
humanidade, a doutrina que não fugiu à regra geral e também se fragmentou nos círculos do
bem particular, pequeno.
A crueldade da vida faz nascer o bem nos grandes corações, estes voltam a repor o
bem na vida, almejando mudá-la à semelhança do bem que vive neles. Mas não são os círculos
da vida que mudam à imagem e semelhança da ideia de bem, mas é a ideia de bem, atolada
no pântano da vida, que se fragmenta, que perde o seu carácter universal, que serve a vida
corrente, sem a esculpir de acordo com o seu modelo maravilhoso mas incorpóreo.
O movimento da vida é sempre percebido pela consciência humana como a luta entre
o bem e o mal, mas não é assim. As pessoas que desejam o bem da humanidade são incapazes
de diminuir o mal da vida.
São necessárias grandes ideais para cavar um nono leito do rio, para remover pedras,
para destruir rochas, cortar florestas, são necessários sonhos sobre o bem universal para que
os grandes rios corram. Se o mar possuísse a capacidade de pensamento, a cada nova
tempestade a ideia e o sonho de felicidade surgiriam nas suas águas e cada onda do mar,
quebrando-se contra a rocha, acharia que estava a perecer em prol do bem das águas
marítimas, e não lhe passaria pela cabeça que fora levantada pela força do vento, da mesma
forma que a força do vento tinha levantado milhares de ondas precedentes a ela e iria levantar
milhares de ondas que viriam depois.
Foram escritos numerosos livros sobre como lutar contra o mal, sobre o que são o
bem e o mal.
Mas a tristeza de tudo isto é incontestável: onde desponta a aurora do bem, que é
eterno e nunca será vencido pelo mal, o mal que também é eterno mas nunca vencerá o bem,
lá morrem crianças e velhos, e o sangue corre. Não só as pessoas, o próprio Deus é incapaz
de diminuir o mal da vida.
“Em Rama se ouviu uma voz, lamentação, choro e grande pranto: Raquel chorando
os seus filhos e não querendo ser consolada, porque já não existem.” E para ela, que perdeu
os seus filhos, é indiferente o que os sábios consideram o bem e que consideram o mal.
Mas talvez a vida seja o mal?
Via a força inabalável da ideia do bem social, que nasceu no meu país. Vi esta força
no período da colectivização total, vi-a no ano de 1937. Vi como, em nome do ideal, tão belo
e humano como o ideal do cristianismo, as pessoas eram exterminadas. Vi aldeias que
morriam de fome, vi crianças camponesas que morriam nas neves da Sibéria, vi comboios
que levavam para a Sibéria centenas de milhares de homens e mulheres de Moscovo,
Leninegrado, de todas as cidades da Rússia, pessoas que foram declaradas inimigas da grande
e luminosa ideia do bem social. Esta ideia era bela e grande, e ela matou implacavelmente
alguns, destruiu a vida dos outros, arrancava as mulheres aos homens, os filhos aos pais.

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Hoje, o grande terror do fascismo alemão ergueu-se sobre o mundo. Gritos e
gemidos dos executados enchem o ar. O céu tornou-se negro, o sol foi toldado pelo fumo
dos fornos crematórios.
Mas também estes crimes inéditos não só em todo o Universo, e nunca vistos pelo
homem na Terra, são perpetrados em nome do bem.
Outrora, quando vivi nas florestas do Norte, imaginei que o bem não residia no
homem nem no mundo predador dos animais e dos insectos, mas no reino taciturno das
árvores.
Mas não! Vi o movimento da floresta, a sua pérfida luta pela terra contra as ervas e
os arbustos. Milhares de milhões de sementes voam, brotam da terra, matando as ervas, os
arbustos amigáveis, milhões de rebentos nascidos espontaneamente entram na batalha uns
contra os outros. E apenas os sobreviventes cria uma jovem floresta fitófila, entram em
aliança entre si, aliança de iguais em força. Os abetos e as faias sofrem no cativeiro escuro
por trás da cortina da floresta fitófila.
Porém, para estas árvores fitófilas também chega a altura da decrepitude, e então, por
trás da sua cortina os abetos pesados irrompem, matam amieiros e bétulas.
Assim a floresta vive numa eterna luta de todos contra todos. Apenas os cegos
imaginam o mundo do bem no reino das árvores e das ervas. Será que a vida é o mal?
O bem não está na Natureza nem na prédica dos doutores da fé e dos profetas, nem
nas doutrinas dos grandes sociólogos e dos líderes dos povos, nem na ética dos filósofos…
São as pessoas simples que trazem nos seus corações o amor pelo vivo, amam a vida e, natural
e espontaneamente, alegram-se com o calor do lar depois do dia do trabalho e não ateiam
fogueiras e incêndios nas praças,
Então, para além do bem grande e terrível, existe uma bondade humana do
quotidiano. É a bondade da velha que ofereceu uma fatia de pão ao prisioneiro de guerra, a
bondade do soldado que deu a beber do seu cantil ao inimigo ferido, é a bondade da
juventude que teve pena da velhice, a bondade do camponês que escondeu no palheiro um
velho judeu. É a bondade dos guardas que, arriscando a sua própria liberdade, não entregam
a carta dos presos aos seus chefes, mas às mães e às mulheres desses presos.
Esta é a bondade particular do homem em relação a outro homem, uma bondade
sem testemunhas, pequena, sem raciocínio. A bondade humana fora do bem religioso e
social.
Veremos, contudo, se reflectirmos: a bondade sem sentido, particular, ocasional é
eterna. Abrange tudo o que é vivo, mesmo um rato, mesmo aquele ramo quebrado que o
transeunte, parando de repente, ajeita para que possa com facilidade aderir de novo ao
tronco.

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Nos tempos terríveis, quando no meio das loucuras cometidas em nome da glória
dos Estados, das nações e do bem universal, nos tempos em que as pessoas já não parecem
seres humanos, mas se agitam como os ramos das árvores e, à semelhanças das pedras que
arrastam consigo outras pedras, enchem barrancos e fossos, nesta altura de terror e loucura,
a bondade sem sentido, mísera, espalhadas como o elemento rádio pela vida, não
desapareceu.
Um destacamento alemão, de punição, entrou na aldeia. Na véspera, no caminho,
tinham sido mortos dois soldados alemães. À noite levaram as mulheres até à orla da floresta,
mandaram-nas cavar um fosso. Em casa de uma mulher idosa alojaram vários soldados. O
marido dela foi chamado pelo polícia e levado à sede da administração, onde já estavam mais
vinte camponeses. A mulher não dormiu até de manhã: os alemães encontraram na cave um
cesto com ovos e um frasco de mel, aqueceram o fogão, fizeram omeletas, beberam vodca.
Depois o mais velho deles pôs-se a tocar na gaita, os outros batiam os pés e cantavam. Bem
olhavam para a dona de casa, como se não fosse um ser humano, mas uma gata. De manhã,
quando aclarou, começaram a verificar as pistolas-metralhadoras, e um deles, o mais velho,
puxou desajeitadamente o gatilho e meteu uma bala na própria barriga. Nessa altura
chamaram-nos. Com gestos, mandaram a mulher cuidar do ferido. A mulher vê que não
custa nada estrangulá-lo: o homem ora murmura, ora fecha os olhos, chora, estala os lábios.
Depois, de repente, abre os olhos e diz nitidamente: “Matka, água.” “Oh, maldito – disse a
mulher -, estrangulava-te e pronto.” E deu-lhe água. E ele agarrou-se à mão dela, pediu:
senta-me, o sangue não me deixa respirar. Ela soergueu-o, segurando-se ele ao seu pescoço.
Então ouviu-se o tiroteio na aldeia, a mulher começou toda a tremer.
Mais tarde contou como tudo acontecera, mas ninguém compreendeu, ela não
conseguia explicar.
É bondade, a mesma que foi censurada pelo seu absurdo numa fábula sobre o eremita
que aqueceu no seu peito a uma cobra. É a bondade que acaricia a tarântula que morde a
criança. Bondade maluca, nociva, cega!
As pessoas, com muito prazer, seleccionam em fábulas e histórias os exemplos desse
prejuízo que resulta de tal bondade sem sentido. Mas não vale a pena receá-la! Receá-la é a
mesma coisa que ter medo de um peixe de água doce arrastado pelo rio para o oceano
salgado.
O prejuízo que, de vez em quando, é causado à sociedade, à classe, à raça, ao Estado
pela bondade absurda apaga-se à luz que emana de quem a pratica.
É precisamente ela, esta bondade estúpida, que constitui o humano num ser humano,
é ela que distingue o ser humano dos outros seres, é o que de supremo foi conseguido pelo
espírito humano. A vida não é o mal, diz ela.
Esta bondade é tácita, é absurda. É instintiva e cega. Na hora em que o cristianismo
a vestiu com o dogma dos pais da igreja, começou a apagar-se, a semente transformou-se em

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casca. É forte enquanto está muda, inconsciente e absurda, enquanto está dentro das trevas
vivas do coração humano, enquanto não se tornou instrumento e mercadoria dos pregadores,
enquanto da sua pepita ainda não foi forjada uma moeda de santidade. É simples como a
vida. Até a prédica de Jesus a privou de força – a sua força está na mudez do coração humano.
No entanto, ao duvidar do bem humano, duvido também da bondade. Estou a
lamentar a sua impotência! Que proveito ela dá se não é contagiosa?
Pensei: é impotente e bela, é impotente como o orvalho.
Como é possível transformá-la numa força sem a ressequir, sem a perder pelo
caminho, como a igreja a ressequiu e perdeu?
A bondade é forte enquanto é impotente! Mal o homem a quer transformar numa
força, ela perde-se, apaga-se, desbota, desaparece.
Agora contemplo a verdadeira força do mal. O céu está vazio. Na terra há apenas o
homem. Mas com que se apaga o mal? Com gotas de orvalho vivo, a bondade humana? Esta
chama não pode ser apagada nem com toda a água dos mares e das nuvens, nem com a pobre
mão-cheia de orvalho colhido desde os tempos evangélicos até ao dia férreo de hoje…
Assim, ao perder a fé de encontrar o bem em Deus, na Natureza, comecei a perder
fé na bondade.
Quanto mais as trevas do fascismo se abriam aos meus olhos, mais via com clareza:
o humano continua a existir inextinguivelmente em pessoas à beira da argila ensanguentada,
à entrada da câmara de gás.
Foi no inferno que temperei a minha fé. A minha fé saiu do fogo dos fornos dos
crematórios, passou através do betão das câmaras de gás. Vi: não é o homem que é impotente
na luta contra o mal, vi que o poderoso mal é impotente na luta contra o homem. Na
impotência da bondade sem sentido está o segredo da sua imortalidade. É invencível. Quanto
mais estúpida, absurda e desamparada, tanto maior ela é. Perante ela, o mal é impotente! Os
profetas, os doutores da fé, os reformadores, os líderes são impotentes perante ela. Ela –
amor cego e mudo – é o sentido do homem.
A história humana não tem sido uma batalha do bem a tentar vencer o mal. A história
humana é uma batalha do grande mal a tentar triturar a semente do humanismo. Mas, se o
humano não foi morto no homem, mesmo hoje, o mal será incapaz de vencer.

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