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Mudanças – Psicologia da Saúde, Copyright 2016 pelo Instituto Metodista de
24 (1), Jan.-Jun. 2016 Ensino Superior CGC 44.351.146/0001-57

Relações de poder na cultura pós-moderna


*Maria Emilia Sousa Almeida

Resumo
No presente artigo, o enfoque psicanalítico é dirigido para fora de sua clínica, visando entender certas relações de
poder na cultura pós-moderna. Parte de recortes de situações extra-clínicas cotidianas e de construções verbais
populares acerca do poder nessa cultura. Assim, esse tema é analisado com base no diálogo entre enfoques: a psica-
nálise, a sociologia, a análise semântica e sintática. Prevalece a abordagem psicanalítica, que se consolida com base
em autores proeminentes desse campo do saber. Trabalha- se com algumas facetas do poder sádico: ironia, adulação,
ilusão, vaidade, ambição, sedução, inveja e ódio, de acordo com a abordagem psicanalítica. Adicionam-se a elas, alguns
construtos hipotéticos advindos do método clínico e da clínica da autora: o desejo, suas representações e seus afetos,
bem como sua relação com o sistema representacional. Conclui-se que traumas no desejo do sujeito em sua infância
tendem a se coadunar com os ditames da cultura pós-moderna acerca do poder.
Palavras-chave: relações de poder, cultura pós-moderna, psicanálise

Abstract
In this article, psychoanalytical approach is directed beyond its clinic, in order to understand some power relations
in post-modern culture. It departs on some cutout of extra-clinic daily situations and popular verbal constructions
related to power in this culture. So, this theme is analyzed on the basis of the dialogue among approaches: psycho-
analysis, sociology, semantic and syntactic analysis. Psychoanalytical approach prevails, according prominent authors
in this knowledge field. Some sadist power facets are worked: irony, adulation, illusion, vanity, ambition, seduction,
envy and hate, according to psychoanalytical approach. Some hypothetic constructs, come from clinic method and
author’s clinic, are added to them: desire, its representations and its affects, as well as its relation to representational
system. It concludes that subject´s desire traumas in his childhood tend to be in line with the values and ideals of
post-modern culture related to power
Keywwords: power relations, post-modern culture, psychoanalysis

*Psicanalista, Psicóloga Clínica, Doutora em Psicologia Clínica pela PUC-SP, Professora da Universidade de Taubaté.
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‘Se quiser por à prova o caráter organizações não governamentais, dos desfiles de moda às
de um homem, dê-lhe poder’ instituições religiosas, da família aos grupos de outsiders.
Lincoln Praticamente todas as ocasiões − em que comparecem
dois ou mais sujeitos −, elas revelam sua tessitura. As re-
‘O esforço para unir sabedoria e poder lações de força revelam-se em situações humanas básicas
raramente dá certo e e suas graduações: ser milionário-ser rico-ser pobre; ser
somente por pouco tempo’ lindo-ser bonito-ser feio; ser o primeiro-ser o segundo-ser
Einstein o último, em uma atividade de prestígio na cultura; ser
criador-ser imitador; ter ideias originais-ter ideias comuns;
1-Introdução mandar-obedecer; ensinar-aprender; educar-ser educado,
Neste texto, o approach psicanalítico é dirigido para etc. Os primeiros membros dos referidos binômios e
fora de sua clínica, objetivando entender certas relações trinômios são mais relevantes que os demais quanto ao
de poder na cultura pós-moderna. Baseia-se em recortes lócus de poder na nossa cultura.
de situações extra-clínicas cotidianas e em construções Essas formas de poder – com suas graduações de
verbais populares acerca do poder nessa cultura. Essas valor – imbricam-se aos valores da cultura pós-moderna.
frases põem em destaque a relação das pessoas com os São eles: a força das imagens, a fragmentação das relações
ideais de poder prescritos pela cultura pós-moderna. humanas, a fragilidade dos vínculos afetivos condensados
Assim, esse tema é pensado com base no diálogo en- no ‘amor líquido’, a ênfase no consumo, a superabundân-
tre enfoques. O recurso à psicanálise visa ajuizar seus cia de informações, a escassez de sentidos/significados,
aspectos inconscientes. Nesse caso, o poder é pensado, o apelo às sensações, a substituição da ética pela estética,
em especial, a partir das auto-representações do sujeito, o culto às celebridades, o imediatismo, o hedonismo e o
que compõem seu sistema das representações. O aporte narcisismo (Santos, 1987).
sociológico, por sua vez, permite refletir a respeito da No que tange a isso, Jameson (1997) diz que na cul-
articulação de sua identidade com valores dessa cultura. tura pós-moderna, os indicadores econômicos e o dilúvio
Recorre-se, ainda, à análise sintática e à análise semântica, de informações anulam a reflexão e a interlocução. Essas
de natureza linguística. A relevância do tema sustenta-se formas de poder não produzem a emancipação humana,
no forte influxo da pós-modernidade sobre a identidade mas o esvaziamento do abstrato pelo concreto e o redu-
do sujeito e as relações de poder atuais. zem à invisibilidade. Pereira (2004) afirma que a crise da
Pensar as relações de poder na cultura pós-moderna pós-modernidade é a crise do sujeito. O descentramento
demanda articulá-las, brevemente, a um background cul- do sujeito e a fragmentação do indivíduo geram a crise
tural, que remonta à origem da civilização humana. A das identidades singulares.
própria construção da história das civilizações tende a Freire-Costa (2005) aponta que, com a mudança
se pautar na problemática do poder. Até a relativamente de valores na cultura pós-moderna, a quebra de conti-
recente ‘história das mentalidades’, a história tradicional nuidade entre a base de valores e a da ascensão social
esteve centrada nas grandes civilizações, em suas edifica- faz imperar o interesse pela aquisição e pela posse sobre
ções materiais e culturais, bem como nos grandes feitos o interesse pela doação. Não obstante, a doação é um
dos grandes homens. As grandes civilizações – egípcia, ímpeto em demasia e um excesso de vida criativa, que,
grega, romana, p. ex. – com suas importantes contribui- se guardada, produz grave desequilíbrio psíquico. Na
ções para a astronomia, a arquitetura, a matemática e a pós-modernidade as agências representativas de valores
medicina eram extensamente estudadas por ela (Barros, seculares − família, religião, política e moral − foram
2005). Dessa maneira, a história tradicional tendia se ater destronadas pela economia, pela ciência e pela indústria
ao ‘foco’ dos poderosos, dos ricos, dos vencedores, dos do espetáculo. O valor da vida se liquefez nos sentidos
privilegiados, dos colonizadores europeus, dos fortes, dos reducionistas, provisórios e errantes ditados pelos padrões
homens, dos adultos e dos brancos. A dimensão do poder econômicos e científicos, bem como pela cultura do
incluída nessas categorias de seres humanos e em suas espetáculo.
relações com os outros, desde tempos imemoriais, tem Portanto, as nervuras do tecido da cultura pós-
seus desdobramentos na época em que vivemos. -moderna estão expostas em seus jogos de poder. Estes
A lógica do poder subjaz às mais variadas organiza- garantem a manutenção de seu status quo, mediante o
ções humanas contemporâneas: das empresas privadas às controle do homem que nela vive. Esse controle adquire

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validade a partir da luta intrapsíquica do sujeito entre uso equivocado do poder pode deflagrar uma gama de
ser normal e ser louco, ser incluído e ser excluído, ser superior emoções nos outros, mormente as mais destrutivas. Nessa
e ser inferior; por vezes, sob a égide de seu desejo de ser trama, ele se distancia de si mesmo e de seu encontro
absolutamente o melhor. Assim, a ordem social é mantida com o outro, bem como perde contato com a realidade e
mediante o poder de uns sobre os outros, para que todos com o prazer proporcionado pela materialidade, em sua
se enquadrem na mesmice da vida adulta. Faz parte da dimensão mais delicada e mais sutil.
domesticação cultural que sequestra o élan das pessoas, Logo, o poder imbrica-se a vários temas da refle-
iniciada em sua infância e alastrada em sua vida adulta. xão extra-muros em psicanálise. No que se refere a isso,
A loucura − no senso comum − confunde-se com o que Herrmann (2005) propõe uma clínica extensa, uma clínica
é inusitado e fora do esperado para a idade, o cargo e a do mundo para além da clínica psicanalítica padrão. Essa
circunstância social; enfim, com tudo aquilo que subver- extensão da clínica decorre de mudanças na psicanálise,
te a ordem social. Passadas as peraltices da infância e o inclusive daquelas ligadas à sua propalada crise. Trata-
empuxo hormonal do desejo na adolescência, a ordem -se de um trabalho extraclínico com recortes do mundo
social neurótica pode se fazer presente na vida adulta. psíquico articulado às condições sociais. A clínica extensa
Pode produzir adultos subjugados por um falso eu, que generaliza-se para as condições concretas vividas pelo
fazem do poder sobre o outro e da ostentação dos sím- homem, pois seu mundo psíquico estende-se para o real
bolos de poder, as válvulas de escape de uma vida interior criado por ele.
insípida e pobre.
Antípoda da insipidez da vida interior, o poder fas- 2- O poder no cotidiano
cina, inebria e imbrica o sujeito a seu objeto de desejo: Para se pensar as relações de poder que vigoram na
humano ou material-simbólico. Sujeito e objeto humano: cultura pós-moderna, apresentam-se extratos de situações
dois polos de atração, que se conjugam nas relações de do cotidiano e de discursos coloquiais entre as pessoas.
força da cultura pós-moderna. Esses recortes sinalizam conflitos entre os sexos, as
Fascínio do poder: vivência da ordem da ‘magia’ das classes econômicas, as gerações e os colegas de trabalho.
fantasias onipotentes, nas quais o sujeito sente-se especial, Após certo show, os músicos ficam com as fãs. Se-
brindado com um predicado divino, senhor de um atribu- gundo um deles: ‘...aí, a mina já era, até desossar, rachar ao
to raro e digno de veneração. O poderoso pode viver sob meio. A mulherada dá porque quer, eu só como. A carne é fraca’.
as fantasias de merecer gozar, de imediato, tudo o que Em contrapartida, certa fã do vocalista diz: ‘vou fisgá-lo’.
deseja, bem como de ser soberano sobre seus pares, de Essa relação de poder e de sexo entre o ídolo e
ser especial, distante da plebe e de ser melhor que todos. sua fã tende a ser marcada pela exclusão de amor. É
Outras extensões de seu poder − roupas inacessíveis à provável que ela o idealize, superinvestindo-o de poder
grande maioria das pessoas, carrões com design arrojado e de encanto. Além disso, ao transar com esse homem
e potência superior, casas portentosas, joias raras, viagens famoso, ela desfrutaria de certo prestígio junto às demais
a lugares exóticos e caros, gastos exorbitantes − também fãs – principalmente se conseguir fisgá-lo numa relação
podem distinguí-lo dos demais. Por meio desses objetos, duradoura. Fisgar significa despertar seu interesse, fazê-lo
ele tornar-se-ia parte da seleta casta de ‘sobre-humanos’ se apaixonar e, quem sabe, agarrá-lo com fisga/arpão. No
e de ‘eleitos’. cantor, imperaria o uso das garotas que ‘dão’, sem maior
No fascínio exercido pelo poderoso, o objeto huma- atenção a sua auto-estima, ao desconforto do lugar, ao
no pode tornar-se mero coadjuvante na satisfação de seu testemunho público do poder masculino e da submissão
desejo, ser usufruído em série e ser rapidamente descar- dela a ele. Essa menina vira mina: forma sincopada que
tado. Esse objeto de seu desejo deve deter certa dose de sugere intimidade e fonte de riquezas. A conquista da
fascínio: ter uma beleza ímpar, por exemplo. Contudo, mulher enriquece a vaidade masculina e aumenta seu
seu poder deve subordinar-se ao do poderoso. Porquan- prestígio, ao mostrar-se macho para outros machos. Não
to, a ilusão de poder do poderoso − sua importância obstante, o fascínio do corpo feminino sobre ele faria
social, seus símbolos de status e seu domínio do objeto com que a força da ‘carne’ feminina – que enfraqueceria
− faz com que seu discernimento sobre as relações seja o poder masculino – gere nele a força bruta do ‘até desos-
descurado. Seu narcisismo primitivo – com suas facetas sar’. Desossar, quiçá, seja a tentativa do homem de chegar
destrutivas advindas do ódio – tende a se desdobrar em à medula de seu fascínio pela mulher. Assim, ‘rachar ao
suas relações de força sobre objetos humanos. Assim, seu meio’ − alusão à anatomia sexual feminina – por parte do

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homem, visaria cindir o fascínio da mulher. Pode revelar a prestar cuidados ao outro e ser fraco a precisar de cui-
a ideia masculina de um poder destrutivo e dividido: dados. Assim, projeta nela a dependência dele/bebê com
impotência de ele ser inteiro junto à mulher: diferente relação a ela/adulto que cuida dele. As representações
dele, mas não inferior a ele. Neste contexto, a mulher mentais de ser forte e ser fraco se confundem com as idades
‘daria’ sua honra e seu valor no mercado sexual, pois seu cronológicas, que evocam vários níveis de poder e de
usuário a desvaloriza quanto maior for seu número de autonomia: ser bebê, ser adulto e ser velho. Ademais, o idoso
seus parceiros sexuais, sua feiúra e sua idade. que sabe tudo deixa de aprender coisas novas e destitui o
Uma entrevista na televisão ocorre em um cenário valor do saber da jovem profissional. Ser velho de guerra é
rural. A mãe está ladeada pelos dois filhos acima dos ter perdido a força no jogo de poder ‘quem pode mais, quem
quarenta anos, que se sentam junto a ela num banco. pode menos’. No jogo superior-inferior, o idoso desperdiça o
A matriarca afirma sorrindo: ‘O serviço aqui é duro e eu encanto do cuidado e da cooperação biunívocos entre
precisava de uma nora’.O repórter pergunta: ‘Mas, não é pra pessoas. Por sua vez, a profissional tenta cuidar do outro,
fazer eles felizes?’ Sem um titubeio perceptível, que denun- mas não consegue cuidar de si mesma.
cie qualquer constrangimento, ela diz: ‘É, mas também é Numa empresa, certo profissional belicoso está
pra me ajudá’. Sorrindo, um dos filhos responde: ‘Duas insatisfeito com seu prestígio, a despeito de seu cargo
cascavel na mesma toca num dá certo’. A seguir, todos sorriem. de chefia. Em certa reunião, ele elogia a excelência de
A comunicação paradoxal entre as várias modalida- outros chefes/colegas do mesmo nível hierárquico e,
des de informação é interessante. No plano manifesto da referindo-se ao diretor-geral, brinca: ‘vamos ouvir o que
relação, a proximidade espacial dos corpos, a suavidade ele diz, ele sabe o que fala’. Apesar de esse chefe bajular
das vozes e o sorriso conjunto parecem escamotear a o diretor-geral e seus colegas, fala mal deles para seus
raiva e a indiferenciação entre suas identidades – plano subordinados. Ademais, é bastante crítico e agressivo
latente. No nível facial da mensagem, prevalece o sorriso com esses funcionários hierarquicamente inferiores a
e a candura dos rostos. No nível verbal, o tom suave das ele. Contudo, quando um deles quer homenageá-lo, tal
vozes contrasta com seu conteúdo agressivo − a fala chefe afirma que é o melhor de todos os profissionais
da mãe sobre a função da nora e a de seu filho sobre da empresa, que fez cursos no exterior e que é pouco
ela(s). Ser ajudada pela nora, quiçá, esconda seu desejo reconhecido pelos demais. Seu funcionário/subordinado
de submetê-la ao trabalho duro. Assim, seu filho equa- diz para seus colegas que a vaidade do chefe é fácil de
ciona mãe-esposa-cascavel. Sem plural, cascavel remete manipular, pois ele nem percebeu sua ironia quanto à
à sua linguagem campesina e à amálgama entre a mãe, a suposta homenagem.
esposa e o réptil: perigosos, amedrontadores e próximos Nas relações de poder, revela-se bastante comum a
a ele. Geraria seu medo de ser dominado pela esposa bajulação e a subserviência do sujeito aos superiores, cer-
e de prováveis brigas entre elas. Na trama familiar, a ta contemporização com colegas do mesmo nível hierár-
cascavel e a toca parecem ocupar o lugar da mãe-mulher quico e a crítica e a desvalorização de seus subordinados.
acolhedora e da casa aconchegante, conjugando a mulher No horizonte do poder, o eu ‘grandioso’ e a arro-
dominadora ao homem esquivo. A aparente mudança do gância acabam tendo seu preço. Certo empresário bilio-
padrão homem sádico-mulher masoquista, presente em nário favorece seu sequestro, ao afirmar para si mesmo:
nossa cultura, mantém seu cerne: poder sádico de um ‘quem vai se atrever a mexer comigo’? Não obstante sua
sobre o outro. arrogância, seus sequestradores o colocam num buraco
Num asilo, uma assistente social de trinta anos tra- no chão e submetem-no a estímulos atormentadores: luz
balha com idosos pobres, abandonados pela família. Uma intensa o tempo todo e músicas sertanejas sobre morte.
frase magistral de um idoso ilustra o âmago do conflito Sozinho e desamparado, é ‘tomado’ por raiva de si mes-
entre eles: ‘imagine, alguém de fraldas tentando cuidar e ensinar mo. Desvaloriza-se. A seguir, pensa: eles são profissionais,
coisa nova pra quem é velho de guerra’. Todavia, o clamor fui amador. Após sua família pagar um valor polpudo por
interior da própria assistente social é: ‘cuidem de mim, não sua libertação, consegue sair do cativeiro.
consigo fazer isso prá mim mesma’. Uma frase lapidar sobre o poder entre os sexos é:
Ao que parece, no conflito psíquico/guerra interna ‘Homens procuram mulheres perdidas’. No senso comum, seu
do idoso entre seu desejo de ser cuidado por ela e sua sentido conotativo impera sobre sua análise semântica.
ideia de ser fraco ao ser cuidado, ele diminui a idade e a Tão somente esta permite superar o jogo de palavras, que
capacidade da profissional. Ele parece equacionar ser forte aponta inicialmente para a ideia de pares: homens-mu-

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lheres e procurar-perder. Destaca-se, logo, a ruptura da A princípio, seu emissor pode se insurgir contra certas
pretensa parceria entre os substantivos e os verbos. Com formas de dominação/opressão: do pobre pelo rico, do
isso, desvela-se a parceria dúbia entre homens-mulheres, proletário pelo proprietário e da periferia pelo centro
prevalecendo o desencontro entre o sujeito/predador e do poder. Porém, a onipotência do tudo parece apontar
o objeto/presa. Nessa sequência relativa ao caçador e à sua falta de discriminação dos fatores que ele/emissor
sua caça, procurar precede perder. Este infinitivo impessoal precisa reconhecer, para lidar com essa conjuntura com-
dá lugar ao seu particípio passado, de modo que perdidas plexa de poder, dominação e submissão. Todavia, para
ganha uma conotação sexual de mulheres devassas, liber- sair da posição de dominado numa hierarquia de poder,
tinas e sem moral. A mudança nos tempos verbais – do tal emissor torna-se dominador e violentador do outro.
infinitivo para o particípio passado – marca uma ruptura Em situações de poder, ele tende a dominar seus pares,
conotativa na frase, pois perdidas refere-se às perdas mo- por meio de alianças estratégicas e do pavor. Logo, seu
rais das mulheres – não à perda do caminho e, tampouco, domínio onipotente do objeto/outro é obtido com base
às perdas materiais delas. Além disso, a conexão lógica na violência simbólica das ameaças e/ou da violência
entre os verbos (procurar-perder) e os substantivos fica bruta. Todavia, para além de situações que envolvem estar
restrita no nível denotativo. A frase traz uma generaliza- à margem da lei, essa frase tornou-se referência por parte
ção sobre os homens em sua escolha restritiva de uma das pessoas, em geral. Assim sendo, é veiculada pelos
parcela das mulheres. Ainda que a libertinagem delas – à meios de comunicação e pelo discurso popular.
medida que são procuradas por eles – aproxime homens e ‘Cê mandou muito bem’ constitui outra frase utilizada
mulheres, do ponto de vista moral, todavia, a devassidão é na cultura pós-moderna. Por meio dela, uma pessoa, que
atribuída tão-somente a elas. De modo geral, a dubiedade goza de certa autoridade, elogia outra, que se destaca ao
paradoxal da frase revela as diferenças de carga moral realizar uma tarefa ou função. Tradicionalmente, mandar
entre homens e mulheres com relação à sexualidade. significa: determinar e dar ordens a alguém. Atualmente,
Foucault (1984) aponta que o poder, exercido sobre porém, o destaque em uma atividade facultaria à pessoa
a loucura e a sexualidade, produziu o discurso “verda- sobrepujar o outro, pois sua excelência técnica confere-
deiro” da psiquiatria e da sexologia. A repressão sexual -lhe domínio sobre o objeto.
permitiu viabilizar o exercício do poder, conforme as ‘Não tem prá ninguém’ é uma frase usada quando o
imposições da ordem social burguesa. Assim, a estratégia sujeito fica em evidência numa atividade, na qual ele
que produziu a “patologização” do homossexual, gerou, reinaria de forma absoluta. Quando ela é proferida pelo
igualmente, a da mulher, da criança e das minorias, em sujeito da ação, ao que parece, ele se eleva à condição de
geral. Todavia, quando se instaura uma relação de poder, super-poderoso – a ponto de não sobrar qualquer valor
há uma possibilidade de resistência. Faz-se possível modi- para os demais. Todavia, seu sentido popular tem como
ficar a dominação, segundo certas condições e conforme contraponto sua análise sintática. A partir dela, ressalta-se
uma estratégia adequada. que o sujeito da frase é inexistente. Ademais, a ausência do
Outra frase popular interessante quanto a poder é: objeto direto denotaria que tal objeto de poder – supos-
‘Homem que não vinga até os trinta, não vinga mais’. Estabele- tamente conquistado por um sujeito inexistente – é vago
cido, pela cultura popular, um marco etário de avaliação e desconhecido. Paradoxalmente, ainda que esse sujeito/
do sucesso masculino, sobrepujá-lo seria um ato heróico emissor se arvore como poderoso, quiçá, ele não saiba
do sujeito vinculado à ideia cultural sobre o que é ser ho- exatamente os atributos ou as condições que o notabilizam
mem. O verbo vingar significa: vencer, prosperar, chegar como tal, em relação aos demais. Apesar disso, as outras
à maturidade e galgar posições sociais. Porém, o sentido pessoas se tornam ninguém. Este pronome indefinido faz
popular da frase parece apontar a impossibilidade de o de seu objeto de comparação, um outro qualquer, sem
homem se autossuperar, depois desse marco etário. Além individualidade definida: mera testemunha indistinta para
disso, parece incluir a necessidade do homem provar seu o poderoso afirmar seu poder absoluto. Em suma, falta o
valor frente ao outro, em geral, outro homem, mediante sujeito da ação, os atributos − que o valorizariam – são in-
uma ação agressiva. definidos e o objeto humano é indiferenciado dele. Então,
‘Tá tudo dominado’ é uma frase presente na cultura o poder do pretenso poderoso parece ser descarnado, sem
pós-moderna, que pode ser usada por um emissor à humanidade e sem clareza de objetivos. Para o enfoque
margem da lei, que tenta subverter a norma cultural e psicanalítico, a frase designa onipotência do eu, destituída
assumir o controle das situações, em especial, as adversas. da realização efetiva de seu desejo axial.

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Para Mahler (1982), no início da vida psíquica, há homem ao outro de maior poder permitia que ela fosse
uma indiferenciação entre eu-não-eu, entre mãe-bebê, concedida ao pretendente. Atualmente, um irmão pode
entre sujeito e objeto. Posteriormente, ao longo de seu ser instado a vigiar a irmã numa balada, para que ela não
desenvolvimento, a pessoa precisa estabelecer a diferen- fique com muitos homens. As redes de fofocas entre os
ciação sujeito-objeto. amigos – sobre ela – cumprem a mesma função: garantir
o domínio de um sexo sobre o outro: toada arcaica.
3- Pensando o poder em nossa cultura Essa problemática começa na atração sexual en-
pós-moderna tre homem e mulher, dada a força do desejo sexual e
Esses extratos das situações e condições concretas sua posterior contenção sádica. No início da relação, o
vividas pelo homem na cultura pós-moderna permitem corpo voluptuoso exposto pela mulher, a exuberância
aventar hipóteses acerca de sua trama. de suas roupas, a força de sua sexualidade e sua paixão
Poder, dinheiro, sexo, beleza e juventude: mistura por festas, bem como o vigor do homem para o sexo e
altamente explosiva nessa cultura. De antemão, o poder sua ambição são fatores de atração entre os sexos. Por
liga-se a dinheiro – díade articulada a uma tríade também identificação projetiva, a exuberância do próprio desejo
apreciada: sexo, beleza e juventude. Em conjunto, cons- do sujeito/homem é delegada ao seu objeto de desejo,
tituem fascinantes prestidigitadores da mente humana. para, em seguida, ser apoderada e domesticada por meio
Na prestidigitação, o impacto do objeto e a urgência do do controle desse objeto/mulher. Quanto a essa questão,
prazer desejado pelo sujeito – sedimentado no engodo Klein (1982) diz que, na identificação projetiva, o sujeito
de seus sentidos, sensíveis ao objeto − impedem sua introduz partes de seu self no objeto, para apoderar-se de
consciência de desvelar os subterfúgios da cultura pós- seus conteúdos ou controlá-lo.
-moderna. Em sua apologia ao hedonismo, ela encaminha Caudais da relação primitiva do homem com o
o homem para fruí-lo. Porém, sua demanda é enquadrada poder se ramificam na sexualidade atual. Nos povos
dentro das forças capitalistas de produção e consumo de primitivos, os guerreiros comiam os inimigos mais
bens rentáveis, por parte do sujeito. valorosos e ardorosos na luta, para extrair deles seu
Outros predicados humanos são associados ao poder poder. No discurso pós-moderno, o ‘comer’ atribuí-
na atualidade. Sucesso está articulado a ser rico ou emer- do ao homem e o ‘dar’ infligido à mulher – no sexo
gente, ter uma bela mulher ou ter um marido rico, ser – retratam a primitividade oral entrelaçada à genita-
descolado, frequentar points ‘bombados’ e restritos a ‘poucos lidade não elaborada. Sob análise, o comer atribuído
e bons’, usufruir de produtos caros e raros. Sucesso signi- ao homem parece remeter à sua angústia de castração.
fica ainda exercer poder e domínio sobre o outro, fazê-lo Com relação a isso, Freud (1924) diz que angústias da fase
ter inveja de si, destacar-se de forma inigualável, deixar fálica − medo da castração − têm expressão regressiva
isto assente para todos e reinar absoluto sobre os demais. nas angústias da fase oral − medo de ser comido.
Em grau mais tênue e ligado aos segmentos menores No discurso pós-moderno de cunho primitivo, sexo
dessa cultura, o brilho intelectual, os títulos acadêmicos e pode ser equacionado à guerra e ao combate. Eles pare-
o número de livros publicados alçam seu detentor a certo cem garantir o valor do guerreiro sobre sua rival: vitória
patamar de poder. Em vigor em segmentos ainda mais do homem e derrota da mulher. Veja-se a frase: ‘gosto
reduzidos de nossa cultura, o valor do trabalho diligente de mulher dura na queda’. Nessas relações, o controle
rareia. De preferência, o trabalho deve ser repassado a onipotente, o triunfo maníaco e a depreciação da mulher
alguém de ‘menor’ valor. Antes ligado ao valor social e constituem defesas maníacas primitivas do homem, as-
moral do homem, o trabalho diligente e sério – inclusive sociadas à preponderância de seu ódio sobre seu amor..
com martírio e com sacrifício – tem dado lugar à valori- No tocante a esses aspectos, Klein (1982) propõe que o
zação do trabalho rentável e leve. triunfo maníaco sobre o objeto impede o sujeito de sen-
Um importante aspecto infiltrado pelo poder é o tir gratidão e compaixão por ele. O controle onipotente
das interações entre os sexos. A despeito das mudanças do objeto nega seu medo dele. A depreciação do objeto
culturais evidenciadas nos últimos cinquenta anos, as defende o sujeito contra sua inveja dele.
relações escalonadas de poder entre os gêneros podem Por sua vez, a mulher pode se vincular ao homem
ser observadas em algumas situações atuais. No antigo mediante seu masoquismo e sua identificação com a po-
padrão de namoro e casamento, a mulher passava do sição de vítima. Pode, devido a sua identificação com o
poder paterno para o do marido. O pedido formal de um agressor poderoso, ser sádica com o homem, seus filhos,

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seus empregados e seus colegas de mesma graduação. reduzir suas chances de crescimento. Nesse sujeito sádico
Portanto, quando o padrão de poder − do homem sobre ávido por poder tende a haver uma relação entre duas
a mulher, do adulto sobre a criança e do chefe sobre o hierarquias: uma ligada às posições sociais e outra de
empregado − é invertido, seu veio sádico de opressão valor pessoal. Sua hierarquia de valor pessoal elege uma
entre pares pode ser mantido. Freud (2006) descreve o ou mais características pessoais − valorizadas na cultura
sadismo e o masoquismo como perversões, nas quais a pós-moderna − como sustentáculos de sua identidade.
satisfação liga-se ao sofrimento do outro ou ao próprio. Para uma modelo, sua beleza; para um esportista, sua
A despeito de sua forma evidente de manifestação ser habilidade física e sua explosão muscular; para um inte-
sexual, há situações não sexuais em que eles estão presen- lectual, sua inteligência e sua cultura e para um ricaço,
tes. Mantega (1986) discute a relação entre sexo e poder seu poder econômico, constituem os símbolos que os
nas sociedades autoritárias e a face erótica da dominação. distinguem como senhores da bala na agulha. Assim, se
As relações de dominação se estendem à sexualidade, em sua hegemonia é ameaçada pelo objeto humano, este deve
nossa civilização. ser sobrepujado de forma absoluta por ele. Todavia, essas
O tom maior do desejo do sujeito pelo poder ten- características do poderoso(a) valorizadas na cultura, no
de ao exercício de seu jugo sobre outrem. Na clave do mais das vezes, não lhe permitem superar déficits em seu
domínio e da distinção dos demais, uma escala de poder valor pessoal, de ordem psíquica.
pode reger certas relações triangulares entre dois homens O poder social do poderoso pode escamotear suas
e uma mulher a priori − segundo uma graduação de qua- fantasias paranóides frente ao objeto, seu pavor da retalia-
tro níveis. No primeiro nível, certo homem posiciona-se ção por parte dele e seu rígido esquema mental de ataques
como representante-mor do poder. Ele subjuga outro e defesas contra ele. Elementos de seu eu − onipotência,
homem-detentor menor do poder, bem como uma mulher onisciência, arrogância, inveja, vaidade e ilusão − fazem-
investida de certo poder, por ambos. O segundo homem -no subestimar o valor do objeto e tentar sobrepujá-lo.
na hierarquia de poder e a mulher formariam o segundo Subestimar a capacidade do objeto é algo mais ou menos
e o terceiro níveis da escala, respectivamente. O homem consciente nele, mas inconscientemente ele descuida de
mais poderoso prevalece sobre o homem menos poderoso seu próprio valor. Apesar de ser importante numa hierar-
por deter objetos do desejo que o segundo valoriza e al- quia institucional, pode não saber lidar com um colega
meja: riqueza, propriedades, belas mulheres, carrões e in- tão competente quanto ele ou com um subordinado mais
fluência sobre os demais. Este terceiro nível da hierarquia jovem ou mais capaz. Pode tentar dominá-los e destruí-
do poder – seus objetos de desejo facilmente descartáveis -los. Com relação a isso, Klein (1982) aponta que na po-
– pode ser o mais valioso na escala de valores do pode- sição esquizo-paranóide há uma cisão do eu e do objeto,
roso. O quarto patamar de sua escala pode ser ocupado bem como fantasias, angústias e defesas paranóides contra
por seu irmão, sobre o qual ele quer triunfar a qualquer o objeto, que causa frustração. As fantasias paranóides
custo ou, ainda, por seu filho, quase mero joguete em demandam destruir o objeto.
sua disputa de poder com sua ex-esposa. Trata-se de um O fascínio do poder pode sequestrar a autocrítica
jogo entre aparência e verdade, entre ilusão e realidade, do poderoso e exacerbar sua onisciência e onipotência.
entre o homem e a reificação de seus objetos. Assim, arremete-o a um presente de deslumbramento
A estrutura de poder de natureza sádica tende a se desconectado do futuro, esgarça sua compreensão das
alastrar para as relações de trabalho e a funcionar segun- mudanças da vida e da passagem do tempo. Derrocada
do uma hierarquia de valor. Nessas relações, distinguem- sua ilusão de grandeza e sucesso por diferentes eventos
-se três estratos de poder: o nível hierárquico superior, da realidade, ele pode sucumbir a um estado mental para-
o dos pares de mesmo nível hierárquico e aquele dos lisante de pequenez e de fracasso pessoal. Dentre outras
subordinados. O sujeito movido pelo poder pode ser vicissitudes da vida, o objeto humano não seduzido por
estrategicamente subserviente, hipócrita e adulador com seu poder pode se valer de sua suposta grandeza para
seus superiores, apaziguador da competição e da agres- obter dele o que quiser. Bion (1994) diz que a capacidade
sividade de seus pares hierárquicos − via lisonjas − e de pensar e o processo de aprender com a experiência
tirano para com seus subordinados. O exercício sádico podem ser substituídos pela onipotência e onisciência.
do poder encontra no subalterno, seu principal foco de A arrogância pode tomar o lugar do orgulho saudável,
atuação. Seus pares hierárquicos são considerados em em um ego desastrosamente confuso, não desenvolvido
parte por ele, mas para neutralizar suas capacidades e e frágil.

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72 *Maria Emilia Sousa Almeida

Por sua vez, o oprimido pelo poderoso pode obter nas contrapartes do poder sádico: ironia, adulação, ilu-
ganhos secundários, com sua posição. Ainda que de modo são, vaidade, ambição, sedução, inveja e ódio. O exame
inconsciente, ele tende fortemente a oprimir um objeto desses termos do senso comum – segundo uma aborda-
menos favorecido que ele. É regido por um modelo de gem psicanalítica contemporânea – desvela suas raízes
vínculo patológico: chefe poderoso, sádico e mau - su- inconscientes, bem como as falhas nas representações
balterno insignificante, masoquista e bonzinho. Com seus do sujeito, por parte de seu sistema das representações.
superiores, ele se posiciona como objeto insignificante Parte das estratégias do oprimido, a ironia é usada
e com seus inferiores, como sujeito poderoso. Deseja quando ele percebe a incongruência entre uma fala pon-
ser superior aos seus pares do mesmo nível hierárquico, tual do opressor e outros aspectos da situação. Dentre
indignando-se quando obtêm melhor classificação que as informações que o oprimido detém sobre o poderoso,
ele, numa prova. algumas se opõem a certa verdade oficiosa que interessa
Segundo Freud (1926), o ganho secundário da do- ao opressor defender. Tão-somente sua versão oficial
ença se refere às vantagens advindas da neurose, visto deve ser proferida diante de outro mais poderoso que o
que possibilita soluções menos conflituosas no tocante opressor, com a conivência do oprimido. Sua percepção
ao conflito entre o superego e o desejo de natureza sobre essa verdade pode ser consciente, mas a conveniência
inconsciente. Com isso, há o alívio da tensão psíquica. lhe dita que ele não deve apontar a contradição do chefe.
Posteriormente, Anna Freud (1936, p.81-82) descreveu Noutras ocasiões que envolvem sua sobrevivência pro-
a identificação com o agressor como ‘uma das mais fissional e financeira, tal informação pode ser manejada
poderosas armas do ego em seus tratos com os objetos pelo oprimido. Na esfera das relações íntimas, o recurso
que provocam angústia’ e um dos ‘modos mais naturais do oprimido à ironia atinge seus decibéis mais altos,
e comuns de comportamento por parte do ego primiti- chegando ao sarcasmo. Nas ditaduras, inúmeras mani-
vo’. Isso pode ocorrer mesmo antes da agressão temida festações artísticas − com teor irônico mais ou menos
acontecer realmente. Frente a uma agressão física ou velado − podem demandar pseudônimos e alegorias da
crítica, perpetrada por uma autoridade, o sujeito inverte parte dos autores, ao serem veiculadas em público.
os papéis ao reproduzir as ações do agressor. A adulação consiste numa forma de prestidigitação
Nesse universo do poder, a imagem e a aparência mental, na qual uma característica física ou psíquica, uma
servem ao propósito de impressionar o objeto. Assim, posição social ou um bem material do poderoso são alça-
pode-se adotar um estilo de vida acima dos próprios dos a um nível especial, como tática do subordinado para
rendimentos, adotar um cinismo oportunista – que in- obter algo daquele. A adulação pode ser conscientemente
clui manipular pessoas – para atingir certos fins, buscar percebida pelo adulado poderoso, que, então, se esmera
um êxito fácil que leve o sujeito à ribalta, tornar-se um em reduzir a dignidade do adulador, a um coeficiente
arrivista inescrupuloso, que, não tem limites éticos para mínimo. Entretanto, ela adquire sua máxima eficiência,
atingir seus fins, fazer propaganda de si sem lastro na no caso de ele não percebê-la, por se acreditar especial e
realidade, entre outras possibilidades no jogo do poder. digno de granjear os objetos de desejo mais inestimáveis.
Fazê-lo crer que será brindado com tais objetos é o cami-
4- Vertentes do sadismo nas relações nho mais direto para o bajulador obter dele, o que deseja.
de poder Um imigrante vaidoso − por seu patrimônio, adquirido à
Para Freud (1905), o sadismo é a expressão do ca- custa de muito trabalho − pode ser adulado pela promessa
ráter ativo da pulsão, enquanto o masoquismo consiste de ganhos vultosos rápidos e, assim, vir a despender uma
em uma continuação do sadismo. No caso, este se volta quantia menor de dinheiro para obtê-los. Dessa maneira,
contra a própria pessoa, que assume o lugar do objeto se- é logrado pelo bajulador. Uma mulher bela pode se de-
xual. Para o masoquismo extremo, colaboram uma ampla liciar ao ser objeto de disputa sexual entre dois homens,
série de fatores (complexo de castração e sentimento de sem perceber que, para eles, a disputa de poder e a vitória
culpa), no que se refere ao exagero e à fixação da atitude de um sobre o outro são mais importantes que ela. Uma
sexual passiva originária. pessoa que se desvaloriza ou que se desespera diante de
Conquanto o sadismo e o masoquismo estejam uma situação − ‘arrastada’ no tempo e que deteriora suas
associados à sexualidade na psicanálise freudiana, am- forças − pode ser arrebatada por formas disfarçadas de
bos constituem componentes essenciais das relações de adulação. Nestas situações, sua eficácia depende do grau
poder vigentes na cultura pós-moderna. Desdobram-se de vaidade do adulado e de sua inconsciência sobre isso.

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Relações de poder na cultura pós-moderna 73

A vaidade arma-se de um auto-enamoramento ba- outro − visto como rival − ameaça o sujeito e deve ser
seado em um atributo psíquico, físico ou bem material mantido numa posição inferior. E mais, a identificação do
do vaidoso, que demanda a ‘adoração’ dos outros. Ele subalterno ambicioso com o poderoso pode ser eivada de
não reconhece o amor e a admiração genuínos; logo, inveja e ódio. Assim, ele deve ser espoliado daquilo a que
pode conquistar um grupo de adoradores circunstan- o subalterno crê ter direito, sem ter que se esforçar para
ciais. Em situações extremas, o vaidoso obtém do outro obtê-lo. Klein (1974) postula que a inveja é a manifesta-
o oposto do que almeja: repulsa, distância e isolamento. ção de impulsos destrutivos intensos, inatos e precoces,
Porém, relações utilitárias fazem par com sua vaidade e, experimentados pelo bebê com relação ao seio materno.
nessa parceria, todos obtêm algum lucro. Exemplificam A mãe ou a pessoa invejada é vista como possuidora de
a parceria entre o vaidoso e seus supostos adoradores: certo bem desejado/objeto bom, sendo que na inveja
uma entidade filantrópica beneficiada por um político, visa-se tomá-lo ou destruí-lo.
cujo lugar de distinção é reconhecido por seus membros; Na cultura pós-moderna, a sedução detém uma
uma mulher bela unida a um diretor, que pode alçá-la conotação sexual irretorquível. Nela, formas corporais,
à posição de star; um rapaz lindo em torno do qual se roupas, falas e trejeitos faciais do sujeito visam encantar
reúnem outros rapazes, que desfrutam das mulheres que o objeto e enredá-lo. Todavia, a sedução do poder − bas-
sobram de suas conquistas e, ainda, um garoto rico que tante decantada também − implica dominar o outro, ter
dá grandes festas e paga comida e bebida para garotos o que quiser no momento que desejar, ser reconhecido
mais pobres, que o chamam de irmão. como diferenciado da massa humana e desfrutar de re-
De acordo com Hornstein (2000), o narcisismo quintes que deliciam os sentidos. O prazer associado a
patológico se pauta na falta crônica de amor próprio e essas ‘ofertas’ seduz seres humanos em geral, mas a sedu-
não em seu excesso. Essa condição favorece que o su- ção do poder requer um tipo específico de conformação
jeito realize esforços inesgotáveis para substituir o amor psíquica. O poderoso seduzido pelo poder se inebria com
próprio pela admiração externa. Esse déficit narcisista estímulos culturais valorizados. Eles são representados
engendra um ego ameaçado pela desintegração e por uma como fascinantes por seu sistema representacional, mas
sensação de vazio interior. diminuem a capacidade de sua consciência de pensá-los.
A priori, a ambição designaria o desejo de se aprimo- Em oposição ao fascínio do poder, encarar a realidade
rar numa atividade profissional, de adquirir bens materiais pode ser uma tarefa rude para a psique humana, visto que
que proporcionem maior conforto e de alcançar posições inclui a luta pela sobrevivência e o manejo de relações
sociais mais coerentes com suas capacidades. Porém, no agradáveis e desagradáveis. Por vezes, a realidade implica
limite de uma série de apelos atuais do mercado, ela de- que os méritos, as capacidades e o valor do sujeito se su-
marca a aposta desmesurada do eu na materialidade, de bordinem a uma hierarquia de interesses escusos, ditados
modo que sua felicidade passa à dimensão de êxtase sen- por outras pessoas. Frente à dor mental que ela causa, a
sorial infinito. Nesta medida, bens de consumo, produtos solução deve ser mágica, grandiosa, inusitada e surpreen-
tecnológicos de última geração e, inclusive, pessoas pre- dente: inversamente proporcional à realidade. Com isso,
cisam ser avidamente consumidos. Em sua versão como os objetos de sedução adquirem grande realce na vida
avidez, a ambição sempre perde para o boom tecnológico, psíquica e cultural. Permitem uma saída para a crueza
que lança uma quantidade imensa, variada e sempre su- da realidade, oferecida pela sedução do poder: ilusão
perável de produtos, que inebriam os sentidos. Assim, a dos sentidos aliada à negação onipotente da realidade. A
busca de satisfação suprema do desejo − identificada a eficácia da sedução pelo poder está em proporção direta
um novo produto − pode lançar o ambicioso num frenesi ao valor que esses elementos − adulação, ilusão, vaidade,
confusional de insatisfação. Os objetos materiais de seu ambição, sedução − adquirem na economia psíquica do
desejo são substituíveis ao infinito, sem nunca tamparem seduzido e com a falta de discriminação crítica de sua
os vazios de seu eu. Porquanto, o cérebro e os sentidos consciência, que sucumbe a eles. De acordo com Klein
humanos têm limites de acuidade para captar filigranas (1974), a negação onipotente da realidade psíquica é um
cada vez mais sutis de prazer. Consequentemente, pro- mecanismo de defesa utilizado frente ao medo dos perse-
dutos sofisticados que suscitariam níveis de prazer cada guidores internos e externos, podendo ocorrer a negação
vez maiores podem se revelar perfeitos engodos, para da realidade externa.
o sujeito. Além disso, a ambição desmedida, no geral, Por fim, a demanda suprema do poderoso sádico
implica uma abordagem paranóica das relações, pois o de fazer o objeto sofrer sob seu acicate não se coaduna

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74 *Maria Emilia Sousa Almeida

com valores básicos das relações intra e interpsíquicas produzidas as representações, que têm relação com os
construtivas. Seu poder sádico está cindido de amor, conteúdos psíquicos introjetados pela criança, na relação
respeito, admiração e aliança com o objeto. Quiçá pior, com seus pais. Logo, a função desse sistema de repre-
está ausente de poder de autossuperação. Ele precisa ser sentar as vivências mentais do sujeito não se desenvolve
humilde para reconhecer e superar suas limitações, bem de per si. Entrelaça-se aos sistemas representacionais de
como para aprender com o outro – muito mais que mera seus objetos primários e ao seu desejo. A partir disso, há
testemunha de seu eu ‘grandioso’. Portanto, o engodo do sérias consequências na formação desse sistema, visto que
poder sádico sobre o outro recai sobre o próprio sujeito. a criança pode ser designada como inteligente ou imbecil,
Ao se alienar aos imperativos culturais relativos ao poder, flor ou monstro, especial ou insignificante – de forma
ele nega de forma onipotente sua recôndita pequenez. consciente, por seus pais. Essas representações se juntam
Sua onipotência desvela sua impotência e sua avidez por às projeções inconscientes feitas por eles quanto a ela.
sucesso, ocultando vivências traumáticas de fracasso em Desse modo, a força dos traumas tem um impacto
sua infância. Porquanto, a grandeza e o status social busca- desorganizador nesse sistema, atuando sobre os afetos
dos pelo adulto, para serem ostentados para o objeto, no que investem as representações. Dentre os afetos, o
mais das vezes, são defesas contra a potência do desejo ódio detém a propriedade de fixar as representações que
perdida pela criança. Logo, o desejo do poderoso não investe, no estrato consciente do sistema. Fixam-se nele
funciona de forma integrada e eficaz, no sentido de se representações contrárias à consumação do desejo, no
apoiar em seus elementos centrais. Ele está distante da presente e na vida relacional. São elas: ser incompetente,
realidade de uma vida construída por si mesmo, de forma estúpido, indigno, sem méritos próprios, fracassado, dentre outras.
consciente. O sujeito poderoso e o objeto ‘insignificante’ Em seus estratos inconscientes, ficam representações
obedecem a uma configuração fixa de seu desejo e não favoráveis ao exercício pleno do desejo: ser competente,
constroem uma identidade autocentrada em si mesmos. inteligente, digno, com méritos próprios, bem-sucedido, diligente,
Ambos não assumem e não realizam seu desejo em suas por exemplo. Os traumas no desejo do infante atingem
facetas mais essenciais, devido à sua relação equivocada a capacidade representativa do sistema e bloqueiam a
com seu mundo interno. satisfação do desejo do adulto no mundo.
No que tange ao poderoso sádico, os setores de
5- O poder, o desejo, a potência do seu desejo atingidos pelo trauma infantil tendem a ser:
desejo e o sistema representacional sucesso-fracasso; grandeza-pequenez; domínio-submissão,
aparência-essência, superioridade-inferioridade. Suas
O poder – e seus aspectos afetivos – pode ser ar- representações conscientes − em uníssono com os mol-
ticulado à relação do sujeito com seu desejo e o funcio- des ditados pela cultura pós-moderna − escamoteiam
namento de seu sistema das representações. representações inconscientes de suas vivências infantis
O desejo pode configurar-se como uma ampla gama traumáticas. A importância creditada por ele ao poder
de representações e afetos, que virtualmente fomentam alicerça-se no valor exacerbado que ele confere a um
movimentos psíquicos em direção aos seus objetos de reduzido número de representações conscientes de seu
satisfação. Funciona como vetor de orientação desses eu, em detrimento de outras inconscientes e integradoras
movimentos até sua materialização no mundo das rela- do sistema. Este o representa segundo uma grade redu-
ções. A relação construtiva do sujeito com seu desejo se zida de possibilidades de ser – ser poderoso, ser valorizado,
articula a sua formação ‘saudável’ no seio da família e se ser invejado, ser inatingível, ser competitivo, ser ambicioso, ser o
revela em sua efetivação no mundo. A potência de seu melhor. São representações investidas por ódio no estrato
desejo significa que seus potenciais e talentos são usados consciente do sistema, que denunciam suas vivências in-
para satisfazer seu desejo, em seu âmago e no hic et nunc. fantis traumáticas. Seu eu mais recôndito fica circunscrito
Nesse enfoque representacional-afetivo, a potência do às representações inconscientes do trauma – ser insignifi-
desejo se diferencia do desejo de poder sádico. cante, ser desvalorizado, ser desprezado, entre outras. Elas se
O desejo articula-se um operador teórico advindo articulam a outras representações de si: ser arrogante, ser
da clínica da autora. O sistema representacional enquanto ganancioso e ser insensível ao outro. Ademais, encontram-se,
dispositivo psíquico do sujeito é potencialmente capaz de ainda, representações bastante bloqueadas em seu acesso
representar seus impulsos, relações de objeto e estados ao estrato consciente − ser amoroso, ser dedicado, ser parceiro,
mentais. Em seus estratos psíquicos inconscientes são ser persistente, ser competente, bem como ser humilde, ser capaz

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Relações de poder na cultura pós-moderna 75

de autossuperação. Elas tendem a permanecer inacessíveis pode ser visto como sinal de fraqueza e inferioridade,
nos estratos inconscientes do sistema. bem como amar e ser amado podem ser confundidos
Devido ao fracasso representativo do sistema repre- com interesses financeiros. Nesse estado de coisas, amar
sentacional, na lógica do poder sádico estão as dimensões torna-se atitude do sujeito otário, ingênuo e passível de
psíquicas do ‘além’, do paradoxal ‘além-aquém’ e do ser tripudiado pelo objeto. Não obstante, a observação
‘aquém’. Estas posições se referem às suas possibilidades criteriosa do funcionamento psíquico dispõe sob nova
e suas impossibilidades de tornar-se a si mesmo. Tornar- tela de juízo essas ideias pós-modernas.
-se a si significa superar seus traumas e fazer valer suas A condição humana fatora diferenças e semelhanças
potencialidades para exercer seu desejo – em suas facetas insofismáveis entre as pessoas. A despeito das caracte-
essenciais. A dimensão do ‘além’ denotaria a grandeza a rísticas que distinguem uma pessoa de outra, há limites
que o sujeito almeja, mas que ele pode sabotar. Nessa inerentes à espécie: as suscetibilidades do organismo a
contradição torturante, ele pode se posicionar aquém de agentes internos- externos nocivos e as alterações do
suas possibilidades de ser. Não as reconhece como suas corpo humano, que o encaminham para sua degenera-
e não as aprimora com persistência, dedicação e consis- ção e sua morte. Esta inclemente proximidade entre
tência. Ele pode desejar ir além de seu estado atual, mas os humanos desaparece nas relações de poder, que os
se posiciona inconscientemente ‘aquém’ do que deseja. destituem como seres desejantes e com existência pró-
Resta-lhe manter seu subordinado, sob o mesmo jugo pria. Lidar com o outro nessa dimensão vai muito além
mental que o fixa nesse ‘aquém’. Mantém-se a meio ter- das alianças estratégicas, visando o poder. Nesse caso,
mo de tornar-se grande, sob o paradoxal ‘além-aquém’ duas pessoas aliam-se em torno de um projeto comum,
de seu desejo. Assim, projeta em seu chefe o ‘além’ de geralmente sem definir claramente entre si o que querem
seu desejo e no subalterno, seu ‘aquém’. obter. Na primeira oportunidade, ambas tentam ludibriar
Para suplantar esse estado mental, os breaks da ope- seu aliado circunstancial. Findos os interesses em comum,
ração representativa do sistema precisam ser elaborados. pode ser lhes necessário lutar contra o antigo parceiro e
Há que trabalhar as dimensões do desejo associadas a fazer novas alianças estratégicas com outro objeto, mas
seus focos traumáticos e desinvestir de ódio suas repre- nas mesmas bases estratégicas.
sentações. A dimensão do ‘além’ do desejo remete às O outro como universo de possibilidades e dife-
representações: ser poderoso, ser absolutamente o melhor, ser renças é sempre impactante para o eu. Esse impacto
superior, ser inatingível, ser autoritário, ser arrogante, ser um rei, aumenta para aquele que anela congregar em si o absoluto
ser eleito para ser o melhor. A dimensão do ‘aquém’ reporta da beleza, da criatividade, da inteligência e da riqueza,
a ser insignificante, ser uma nulidade, ser o pior, ser inferior, ser a fim de imperar sobre os demais por todo o tempo. A
vulnerável, ser dominado, ser humilhado, ser simplório, ser vassalo avidez de poder sobre o outro exige anulá-lo como ser
e ser frágil. Elaborá-las permite que outras representações autônomo, com desejo próprio e com dons singulares.
− ser amado, ser capaz de amar, ser bem sucedido, ser vencedor, ser Paradoxalmente, esse esquema mental do sujeito de lidar
protagonista do próprio sucesso, ser realista, ser sutil, ser sábio com o poder o conduz ao seu destino inexorável: sua de-
quanto ao poder, ser potente, ser humilde, ser capaz de boas cadência. A decadência de não ser − o que lhe é possível
alianças − tornem-se conscientes e investidas de amor. ser − é caracterizada pelo desperdício de sua energia em
Sua integração depende do diálogo entre representações projetos para destruir o outro, sem elaborar sua impo-
dos estratos consciente e inconsciente do sistema. Ao tência e sem atuar sobre as condições, que o impedem
integrá-las, o sujeito amplia a anterior redução de suas de ampliar seu espaço no mundo. Delata o vazio de
possibilidades de ser. Em contrapartida, um repertório poder sobre si e suas dificuldades de elaborar seu déficit
amplo de representações permite o intercâmbio cons- de tornar-se a si. Falta-lhe ser inteiro e usar de forma
trutivo e integrado entre seu desejo e sua potência de potente seus talentos, num exercício autossustentado e
realizá-lo, em sua vida de relação no mundo. vigoroso de seu desejo. A busca de poder pelo poder −
para afirmar a si em detrimento do outro − emana do
Considerações finais sujeito sem lastro de identidade em si mesmo e incapaz
Dentre as distorções do mundo atual, impera a de parceria amorosa com o outro.
confusão de valores sob a égide do poder. Emoções e Em sua apresentação saudável e positiva, poder ser
experiências como amor, cuidar e ser cuidado podem o que se é – em potencial – implica realizar seu desejo –
se confundir com sexo, interesse e força. Ser cuidado em seus fundamentos mais recônditos e essenciais – no

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76 *Maria Emilia Sousa Almeida

mundo das relações compartilhadas. No sujeito, o lastro Referências


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Submetido em: 26-2-2016


Aceito em: 19-10-2016

Mudanças – Psicologia da Saúde, 24 (1) 65-76, Jan.-Jun., 2016

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