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Iuri M. Lotman Tradução de textos de Iuri M.

Lotman a
partir da tradução inglesa de Ann
Shukman: Universe of the mind: a semiotic
theory of culture. Introd. De Umberto Eco.
Londres: I. B. Tauris Publishers, 1992, p.
11-35 e 246-280.

Diretor da Faculdade de Letras


Prof. Jacyntho José Lins Brandão

Vice-Diretor
Prof. Wander Emediato de Souza

Comissão Editorial
Eliana Lourenço de Lima Reis
Por uma Elisa Amorim Vieira
teoria Lucia Castello Branco
semiótica Maria Cândida Trindade Costa de Seabra
Maria Inês de Almeida
da cultura
Tradução
Fernanda Mourão

Editoração de texto e formatação


Júnia Kelle

Revisão de provas
Extratos traduzidos Júnia Kelle
por Fernanda Mourão Michel Gannam

Capa e projeto gráfico


Mangá – Ilustração e Design Gráfico

Endereço para correspondência:


FALE/UFMG – Publicações Viva Voz
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Belo Horizonte
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2007
Sumário

Prefácio . 5
As três funções do texto . 13
Autocomunicação: o “Eu” e o “Outro”como
destinatários . 27
Uma alternativa: cultura sem letramento ou
cultura antes da cultura? . 51
O papel dos símbolos tipológicos na história
da cultura (contrato e auto-entrega como
arquétipos culturais) . 64
Referências . 89

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Prefácio 2. a criação de informações novas, isto é, dos textos que
não são absolutamente deduzíveis de acordo com um
O projeto para a criação de um cérebro pensante prenunciado
conjunto de instruções proveniente das informações já
por Goethe continua relevante nos dias de hoje. Na verdade,
existentes, mas que (em algum grau), de alguma forma, não
a cada novo avanço da ciência, esse projeto vem sendo
são antecipadamente apresentadas;
fortalecido, ainda que em termos diferentes. Porém, uma
3. memória, isto é, a capacidade de reter e reproduzir
barreira bastante real permanece em nosso caminho, isto é, a
informações (textos).
barreira do cérebro pensante que tentamos criar
O estudo do sistema de semiótica criado pela
artificialmente. Lembrei-me de uma anedota em memória do
escritor russo Andrei Bely. Seu pai, N. V. Bugaev, professor humanidade através de sua história cultural tem nos
de matemática e presidente da Sociedade Moscovita de conduzido a uma descoberta inesperada de que essas funções
Matemática, presidiu uma reunião onde foi lido um trabalho são também características de objetos semióticos. Nos textos
sobre a inteligência dos animais. planejados para comunicar, a primeira função predomina,
enquanto em textos artísticos, a função principal é a
Meu pai, que presidia a reunião, interrompeu o leitor para perguntar
se ele sabia o que era inteligência; o leitor não sabia. Então meu pai capacidade de gerar novas informações. Estabeleceu-se que a
começou a perguntar aos participantes frente a tamanha agitação: função mínima da estrutura semiótica consiste não somente
“Você sabe? Você?” Ninguém sabia. Então meu pai afirmou: “Já que
na linguagem artificialmente isolada ou no texto naquela
ninguém sabe o que é inteligência, não podemos discutir sobre a
inteligência dos animais. Declaro essa reunião concluída.” língua, mas também num par paralelo de linguagens
mutuamente intraduzíveis que são, no entanto, conectadas
Esse incidente ocorreu no início deste século, mas a
por um “mecanismo” que é a tradução. Uma estrutura dupla
situação foi radicalmente mudada. Evidentemente, a razão é como essa é o núcleo mínimo para a geração de novas
que a atividade intelectual é considerada como qualidade mensagens e também a unidade mínima de um objeto
única do homem, embora algo que é observado isoladamente
semiótico como a cultura. Dessa forma, cultura é (como um
e não é comparado com qualquer outra coisa não pode ser
mínimo) uma estrutura semiótica binária e que, ao mesmo
objeto da ciência. Nossa tarefa é, como foi mencionado,
tempo, funciona como uma unidade indissolúvel.
encontrar uma série de “objetos pensantes” para compará-los
Acompanhando essas linhas de pensamento, somos levados
e deduzir a característica invariante da inteligência. O ao conceito da semiosfera e convencidos da importância do
conceito “inteligência” possui diversos aspectos e não me estudo da semiótica da cultura.
sinto realmente competente para formular uma definição
Além disso, não podemos definir objetos semióticos
completa sobre ele. No entanto, a tarefa torna-se praticável
desse tipo como “estruturas pensantes”, já que eles cumprem
se nos restringirmos ao seu aspecto semiótico.
a função de inteligência formulada que mencionamos acima.
Se definirmos a inteligência por esse ponto de vista,
Não nos interessa o fato de que o funcionamento deles requer
podemos reduzi-la às seguintes funções: um interlocutor inteligente e a necessidade de recursos de um
1. a transmissão de informações disponíveis (isto é, dos texto não o requer. Mesmo se uma inteligência humana
textos);
absolutamente normal for completamente isolada da origem

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dos textos externos e de qualquer diálogo, ainda continua objetivo de obter o produto final (ou acelerar um processo
uma máquina normal, apesar de ainda não ter sido colocada químico), o resultado final tem que estar já presente em
em movimento. Ela não pode ser ligada por si mesma. Para alguma quantidade no início da reação. Por outro lado, essa
que uma inteligência funcione, é necessário que haja uma questão fornece um paralelo de um problema até agora
outra inteligência. Vygotsky foi o primeiro a salientar: “Toda insolúvel do “início” da cultura e do “início” da vida. O biólogo
função mais importante é dividida entre duas pessoas, é um V. L. Vernadsky recusou-se a responder a tais questões,
processo psicológico mútuo.” A inteligência é sempre um declarando que é mais produtivo estudar as inter-relações das
interlocutor. estruturas que são binárias, assimétricas e ao mesmo tempo
Para nossa surpresa, observações sobre a assimetria unitárias. Essa é a direção que deveremos adotar.
bipolar do mecanismo semiótico têm sido comparadas através De acordo com as três funções dos objetos semióticos
de pesquisas dentro da assimetria do largo hemisfério esboçadas acima, este estudo é dividido em três partes.1 A
cerebral. A descoberta de mecanismos no aparelho do Parte Um considera o mecanismo da geração significativa
pensamento individual, que são funcionalmente isomórficos como resultado da reação da tensão mútua entre uma coisa
ao mecanismo semiótico da cultura, tem se tornado um vasto reciprocamente intraduzível e ao mesmo tempo linguagens
campo acessível ao estudo científico futuro. A questão da interprojetadas de forma mútua, como o convencional
sobreposição entre semiótica da filologia e neurofisiologia tem (discreto, verbal) e o icônico (contínuo, espacial). Isso
surpreendido algumas pessoas, mas foi entusiasticamente corresponde ao ato mínimo da elaboração de uma nova
sustentada pelo lingüista Roman Jakobson, que denominou mensagem. A Parte Dois é dedicada à semiosfera, que
aqueles que são hostis a essa aproximação de proponentes à sincroniza o espaço semiótico que preenche as margens da
“lingüística sem cérebro”. Na União Soviética, esses cultura, sem a qual os sistemas semióticos separados não
problemas têm sido ativamente perseguidos no laboratório podem funcionar ou se formar. O conceito central da Parte
neurofisiológico do recentemente falecido L. Ya Valonov (e Um é o texto, e da Parte Dois, a cultura. A Parte Três é
seus colegas V. L. Deglin, T. V. Chernigovskaya, N. N. dedicada às questões da memória, diacronia profunda e à
Nicolaenko e outros), e a partir do aspecto semiótico de V. V. história como mecanismo da atividade intelectual: centraliza-
Ivanov. se na semiótica da história.
No entanto, essa questão nos direciona ainda mais ao A união dessas três partes é feita para demonstrar o
problema científico geral, que é o da relação de simetria e funcionamento do universo semiótico ou do mundo
assimetria, uma questão que, na época, interessou Louis intelectual, no qual a humanidade e a sociedade humana são
Pasteur. envolvidas e que está em constante interação com o mundo
A idéia de que estruturas semióticas de “pensamento” intelectual distinto dos seres humanos.
necessitam de um impulso inicial de outra estrutura pensante,
e os mecanismos texto-gerativos necessitam de um texto
exterior para ajustá-los, lembra-nos, por um lado, que, nas 1
Neste trabalho não foram publicados textos das três partes citadas pelo autor, já que se trata de uma
assim chamadas reações auto-catalíticas, reações que têm o seleção de trechos a partir de sua obra Universe of the mind: a semiotic theory of culture.Tradução
inglesa de Ann Shukman e introdução. de Umberto Eco. Londres: I. B. Tauris Publishers, 1992. [N.E.]

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conhecimento cujo objeto é a esfera da comunicação
Pré-Saussure
semiótica: “É portanto possível conceituá-la como uma ciência
Durante as últimas décadas, a semiótica e o estruturalismo na que estuda o papel dos signos como parte da vida social. Ela
União Soviética como no Ocidente têm passado por épocas fornecia parte da psicologia social e, conseqüentemente, da
completas de teste. É claro que as experiências foram psicologia geral. Podemos chamá-la de semiologia.” A noção
diferentes. Na União Soviética, essas disciplinas tiveram que da linguagem como um dos sistemas semióticos poderia,
suportar um período de perseguições e ataques ideológicos, segundo Saussure, ser encontrada na base de todas as
que foram seguidos por uma conspiração de silêncio ou semi- ciências sociais:
reconhecimento abatido de parte da ciência oficial.
Dessa forma, fácil seria não pensar somente sobre os problemas
No oeste, essas disciplinas passaram pelo teste do uso. lingüísticos. Ao considerarmos os rituais, costumes, etc. como signos,
Elas se tornaram uma paixão, tornando-se, em conseqüência, será possível, supomos, observá-los sob nova perspectiva. A
necessidade deles será sentida quando os considerarmos como
proibidas perante a ciência. Mas nem perseguição nem uso. fenômeno semiológico e os explicarmos nos termos das leis da
Ambos, que parecem ser tão cruciais aos olhos da visão semiologia.
pública, têm efeito determinado no destino das idéias
No segundo aspecto, a semiótica é um método relevante
científicas. O fator decisivo é certamente a profundidade das
da filologia para várias disciplinas, que é definido não pela
idéias atuais que apresentam. Para se ter profundidade e
natureza de seu objeto, mas pelos significados de sua análise.
significância nas idéias científicas, é determinada, em primeiro
Deste ponto de vista, tudo é o mesmo objeto científico e deve
lugar, a capacidade de explicar e ordenar fatos que foram
ser estudado a partir dos pontos de vista semiótico e não-
previamente dissipados e não explicados. Isso ocorre devido a
semiótico. A lingüística mesmo produz numerosos exemplos.
sua capacidade de se combinarem com outras idéias
Finalmente, o terceiro aspecto da semiótica pode ser
científicas; e em segundo lugar a capacidade de revelar
melhor definido como uma característica especial da
problemas que necessitam de soluções, especialmente nas
psicologia científica do pesquisador, isto é, a forma como sua
áreas onde opiniões prematuras parecem não ser problema.
percepção cognitiva é composta. Exatamente como um diretor
Essa segunda característica é uma indicação da capacidade de
de filmes olhará o mundo ao seu redor, através de seus dedos
se combinarem com as idéias científicas futuras. Em
que são usados para formar uma estrutura, e “cortar” esse
conseqüência, as idéias que têm vida científica longa são mais
mundo em pedaços separados da totalidade da visão, o
eficientes, pois preservam suas premissas iniciais apesar de
pesquisador da semiótica tem o hábito tanto de transformar o
serem transformações dinâmicas e se envolverem
mundo à sua volta quanto apresentar a estrutura semiótica.
simultaneamente com o mundo que as cerca.
Tudo que o Rei Midas tocava com suas mãos de ouro
Quando falamos em semiótica hoje, no final do século
transformava-se em ouro. Da mesma forma, tudo aquilo a
XX, devemos ter em mente os seus três diferentes aspectos.
que o pesquisador da semiótica volta sua atenção, torna-se,
Em primeiro lugar, semiótica é a disciplina científica esboçada
em suas mãos, produto da semiótica. Esse é o problema do
por Ferdinand de Saussure. Esse é o domínio do

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efeito causado ao se descrever um objeto da maneira que 1. Em meio à massa desigual de fatos envolvida na língua, ela
destaca-se como uma entidade bem definida. É a parte social da
discutiremos abaixo. língua, externa ao indivíduo que é enfraquecida ao mesmo tempo que
Juntos, esses três aspectos compõem o domínio da é criada e modificada por ele mesmo. Existe somente em virtude de
um tipo de contrato acertado entre os membros de uma comunidade.
semiótica.
2. Um sistema de linguagem, como distinto da fala, é um objeto que
Se examinarmos o curso posterior da semiótica desde os deve ser estudado de forma independente. Línguas mortas não são
últimos cinqüenta anos, quando agradecemos largamente os mais faladas, mas podemos perfeitamente nos familiarizarmos bem
com suas estruturas lingüísticas. Uma ciência que estuda estrutura
esforços de Roman Jakobson e também a direção geral no
lingüística não é capaz somente de dispensar outros elementos da
pensamento científico que fizeram com que a semiótica linguagem [neste caso: fàla! Yu M. J.], mas isso é possível apenas se
começasse a atrair a atenção científica difundida, podemos os outros elementos forem mantidos separadamente.

resumir suas direções principais pelas palavras “continuidade” Não menos fundamental foi a segunda das oposições
e “dominação”. Ambas referem-se ao legado do formalismo acima mencionada. Para a sincronia, o fundamental é o que
russo e aos trabalhos de Bakhtin e Propp. Mas, acima de tudo, observamos como característica natural e a sincronia é a
eles falaram a respeito do legado de Saussure com quem barreira da relação que compõe a essência da linguagem. A
trabalhavam, mesmo após Jakobson os ter criticado e os sincronia é homeostática, enquanto a diacronia é composta de
contrastado com as idéias de C. S. Peirce, o que permanece uma série de infrações internas e externas em reação contra
em vigor como a pedra fundamental da semiótica. a qual a sincronia restabelece sua integridade: “A linguagem é
No aspecto que estamos considerando, as seguintes um sistema cujas partes podem e devem ser estudadas em
sua mutualidade sincrônica.”
idéias de Saussure são importantes:
As mudanças nunca tomam parte do sistema completo,
1.a oposição língua [langue] e fala [parole] (ou código e
mas somente em um ou outro de seus elementos. Elas só
texto);
podem ser estudadas fora do sistema. Na perspectiva
2. a oposição sincronia e diacronia.
diacrônica, uma está lidando com o fenômeno que não tem
Para Saussure, ambas as oposições eram fundamentais. conecção com o sistema lingüístico, ainda que os sistemas
Língua, para ele é: sejam afetados por elas. A linguagem é oposta a tudo que é
um sistema gramatical potencialmente existente em qualquer cérebro, acidental, instável e extra-sistemático. As línguas são
ou mais exatamente nos cérebros de um grupo de indivíduos, pois a mecanismos que continuam em funcionamento, apesar dos
língua nunca é completa em somente um indivíduo, mas só existe
danos causados a elas.
perfeitamente em coletividade.
Pela distinção entre a língua por si mesma e a fala, distinguimos ao Essas idéias não podem ser rejeitadas pela semiótica
mesmo tempo: 1. o que é social vindo do que é individual; 2. o que é moderna. Rejeitá-las significaria derrubar suas bases. Mas, a
essencial vindo daquilo que é subordinado ou mais ou menos partir desse fato, podemos observar quão profundas são as
acidental.
transformações que até as proposições fundamentais e todo o
Partindo dessas premissas, Saussure formulou sua elenco da memória têm suportado na segunda metade do
principal proposição sobre a linguagem, ambas no ato da fala século XX.
e na ciência da lingüística:

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como um tipo de pacote do qual é extraído o objeto de
As três funções do texto
interesse.
No sistema saussuriano de conceito que, por muito tempo, Para o receptor de uma mensagem, a seqüência a seguir
tem determinado o curso do pensamento semiótico, há uma parece mais lógica:
clara preferência pelo estudo da linguagem que pela fala, e pensamento (conteúdo da mensagem) pensamento (conteúdo da mensagem)
maior pelo código que pelo texto. A fala e sua hipóstase
articulada e delimitada, o texto, é de interesse para o
o mecanismo de decodificação o mecanismo de decodificação
lingüista apenas como matéria-prima, como uma da linguagem da mensagem
manifestação da estrutura lingüística. Tudo aquilo que é
relevante na fala (ou no texto) é determinado na linguagem
o texto
(ou código). Os elementos que ocorrem em um texto sem
qualquer correspondência com o código não podem ser
Deveríamos, é claro, estar atentos aos conselhos de
condutores de significados. Isso é o que Saussure quer dizer
Benveniste. Ele mostrou que, devido ao fato de
quando fala: “O lingüista deve adotar o estudo da estrutura
desconhecermos as operações lingüísticas, nós as
lingüística como seu interesse principal, e referir todas as
executamos, e devido ao fato de “podermos dizer tudo aquilo
outras manifestações da linguagem a essa estrutura.” Adotar
a estrutura lingüística como uma norma significa determiná-la que desejamos”, há uma firme convicção de que
como o ponto de referência científico para a definição do que os processos de pensamento e fala são duas atividades totalmente
é e o que não é essencial na atividade da linguagem. diferentes que são combinados somente para os propósitos práticos da
comunicação, mas cada um deles têm seu próprio campo e suas
Naturalmente, tudo aquilo que não possuir correspondência próprias possibilidades independentes. E, além disso, a linguagem
na linguagem (código) quando a mensagem é decodificada é oferece os propósitos e as formas para o que usualmente chamamos
“removido”. Após o momento em que o metal da estrutura da de “expressões de nossos pensamentos”.
linguagem é separado do minério da fala, resta somente o Além disso:
refugo. Isso era o que Saussure tinha em mente quando
Naturalmente, a linguagem, quando manifesta-se na fala, está
disse: “a ciência da linguagem pode agir sem a análise da
habituada a expressar “o que queremos dizer”. Porém, o fenômeno
fala”. que chamamos “o que queremos dizer”, ou “o que tínhamos em
Porém, por trás dessa posição científica, encontra-se um mente”, ou “nossa idéia”, ou o que quer que seja, esse fenômeno é o
conteúdo do pensamento: é muito difícil defini-lo como uma essência
complexo inteiro de hipóteses, idéias quase não científicas
independente sem o uso de “temos como intenção” ou “estrutura
sobre a função da linguagem. Enquanto o lingüista teórico psicológica”, etc. Esse conteúdo somente adquire forma quando é
está interessado na estrutura lingüística extraída do texto, o expresso, e só desse modo. Isso é formulado pela linguagem e dentro
da linguagem.
receptor diário de informações está preocupado com o
conteúdo da mensagem. Em ambos os casos, o texto é Podemos, no entanto, imaginar um sentido que continua
tratado como algo valioso, não em si mesmo, mas meramente invariante, embora grande parte do texto seja transformado.
Podemos imaginar esse sentido como uma mensagem pré-

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textual concebida no texto. Essa é a premissa na qual o bifurcação de uma e mesma personalidade. Para um código,
modelo do “texto-significado” é baseado (veja abaixo). Desse inclui-se não somente um certo conjunto binário de regras
ponto de vista, pressupõe-se que, no caso ideal, o conteúdo para codificar e decodificar uma mensagem, mas também
informacional não muda tanto em qualidade quanto em uma hierarquia multidimensional. Da mesma forma, o fato de
quantidade: o receptor decodifica o texto e recebe a que ambos os participantes de uma comunicação usam a
mensagem inicial. Mais uma vez o texto é considerado como mesma língua nativa (inglês, russo, estoniano, etc.) não
um “pacote técnico” para a mensagem, que é o que interessa garante a identificação do código. Para que isso ocorra, deve
ao receptor. haver também uma experiência lingüística em comum e uma
Por trás desse quadro de funcionamento de um dimensão de memória idêntica. E a isso deve ser adicionado
mecanismo semiótico, encontra-se a crença de que a função um conhecimento da norma, da referência lingüística e das
do mecanismo é a de transferir a mensagem adequadamente. formalidades. Se então um deles considerar as tradições
O sistema funciona bem se a mensagem recebida pelo culturais (a memória semiótica da cultura) e o fator inevitável
destinatário for totalmente idêntica àquela despachada pelo do aspecto individual com o qual essa tradição é revelada a
remetente, e funciona mal se houver diferenças entre os um membro particular de um grupo, obviamente a
textos. Essas diferenças são classificadas como erro e existem coincidência de códigos entre o transmissor e o receptor será,
mecanismos especiais na estrutura (redundância, por na realidade, possível apenas em uma medida bastante
exemplo) para evitá-los. relativa. Inevitavelmente, o resultado é que a identidade do
Existem bons motivos para essa semelhança: ela aponta receptor e do texto autêntico é relativa. Desse ponto de vista,
exclusivamente para a função essencial das estruturas parece realmente que a linguagem natural cumpre sua função
semióticas. Mas devemos admitir que, se adotarmos essa inadequadamente. E a linguagem poética pior ainda.
função como única, ou mesmo como função básica, então No entanto, é evidente que, para uma garantia total da
estaremos nos defrontando com um número amplo de adequação entre o receptor e a mensagem recebida, deve
paradoxos. haver uma linguagem artificial (simplificada) e comunicadores
Se adotarmos a adequação da transferência da simplificados artificialmente: estes terão uma capacidade de
mensagem como o critério básico na avaliação da eficiência memória estritamente limitada e toda bagagem cultural será
dos sistemas semióticos, teremos que admitir que todas as removida da personalidade semiótica. O mecanismo criado
estruturas lingüísticas que ocorrem naturalmente são dessa forma será capaz de servir somente a uma quantidade
inadequadamente construídas. Para uma mensagem limitada de funções semióticas. O universalismo inerente à
razoavelmente complexa ser recebida com identificação linguagem natural é, a princípio, estranho a ela.
absoluta, são necessárias condições que, em situações de Deveríamos, então, supor que esse modelo superficial é
ocorrência natural, são praticamente inobteníveis: um modelo do que a linguagem poderia ser, um ideal do qual
destinatário e remetente devem possuir códigos equivalentes, é distinguido somente pelas imperfeições que são o resultado
ou seja: serem, de fato e semioticamente falando, uma natural das atividades irracionais da natureza? Modelos
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artificiais de linguagem, não a linguagem em si mas uma de comprova o fato de que no lugar de uma correspondência
suas funções — a habilidade de transmitir adequadamente precisa do texto T1 há, nesse caso, uma certa distância.
uma mensagem; porque as estruturas semióticas, quando Qualquer um dos textos t1, t2, t3 ... tn que preencha essa
alcançam essa função de atingir a perfeição, perdem a distância, pode ser uma interpretação possível do texto de
capacidade de servir a outras funções que são inerentes à origem. No lugar de uma correspondência precisa, existe uma
elas no estado natural. das possíveis interpretações. No lugar de uma transformação
Então, quais são essas funções? simétrica, existe uma transformação assimétrica. No lugar da
Antes de mais nada, temos a função criativa. Todo igualdade entre os elementos que compõem o T1 e o T2, existe
sistema que satisfaz a extensão completa das possibilidades uma equivalência convencional entre eles. Na tradução de
semióticas não apenas transmite somente mensagens feitas, uma poesia em francês para a língua russa, a tradução de
mas também serve como um gerador de novas mensagens. cada verso de doze sílabas do francês para os versos iâmbicos
Mas o que é isso que estamos chamando de “novas sílabo-tônicos russos é uma convenção, o resultado de uma
mensagens”? Em primeiro lugar, vamos chegar a um acordo tradução aceitável. Contudo, em princípio é possível traduzir
sobre o que estamos denominando. Não denominamos “novas verso silábico francês para verso silábico russo. O tradutor é
mensagens” aquelas recebidas como resultado de simples forçado a fazer uma escolha. Há uma indeterminância maior
transformações, isto é: mensagens que são frutos de quando, por exemplo, um romance é transformado em um
transformações simétricas daquilo que é enviado (um texto filme.
emitido e obtido através de uma transformação contrária). Se Devemos denominar o texto que é produzido nesses
a tradução do texto T1 da língua L1 para a língua L2 induz ao exemplos como um novo texto, e o ato de tradução que o cria
aparecimento do texto T2, de tal forma que a operação de uma como um ato criativo.
tradução contrária resulte no texto de origem T1, então não Podemos representar a transmissão adequada de um
consideramos o texto T2 como novo em relação ao texto T1. texto usando linguagem artificial através do seguinte
Assim, desse ponto de vista, a solução correta dos problemas diagrama:
matemáticos não cria novos textos. Podemos lembrar a
observação de Wittgenstein de que, dentro da lógica, nada de T1 C T2
novo pode ser dito.
O pólo oposto às linguagens artificiais são aqueles
sistemas semióticos nos quais a função criativa é mais sólida. Nesse caso, o transmissor e o receptor compartilham do
É óbvio que se o mais vulgar dos poemas é traduzido para mesmo código C.
outra língua (ou seja, para uma língua com outro sistema O diagrama de representação da tradução artística
poético), a operação de uma tradução contrária não produzirá demonstra que o transmissor e o receptor usam códigos
o texto de origem. O próprio fato de o poema poder ser diferentes: C1 e C2 que se sobrepõem, mas não são idênticos.
traduzido por diferentes tradutores em diversos estilos Uma tradução inversa resultará não no texto de origem, mas

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em um terceiro texto T3. Igualmente, o fecho para o processo Já que, neste caso, o significado não é somente um resíduo
atual da circulação das mensagens é o caso onde o emissor invariante, preservado durante o método de operações
enfrenta não somente um código, mas um espaço múltiplo de transformacionais, mas é também o que é alterado, podemos
códigos C1, C2, C3 ... Cn, e cada um deles é um complexo de afirmar que há um acréscimo de significados no processo de
construções hierárquicas capazes de gerar um conjunto de tais transformações.
E há um outro ponto. Quando usamos linguagens
textos em grau equivalente que corresponda ao código do
artificiais (ou linguagens naturais e poéticas como linguagens
emissor. O relacionamento assimétrico e a constante
artificiais, por exemplo, se transmitimos o conteúdo de um
necessidade de escolha fazem da tradução, nesse caso, um
romance de Tolstoy através de uma pequena anotação do
ato de produção de novas informações e exemplificam a
enredo), estamos isolando o significado da linguagem.
função criativa tanto da linguagem quanto do texto.
Durante as operações complexas da significação gerativa, a
Particularmente indicativa é a situação onde a diferença
linguagem é inseparável do contexto que ela expressa. Nesse
entre os códigos não é simples, mas mutuamente
último exemplo, preocupamo-nos não apenas com a
intraduzíveis (por exemplo, na tradução de um texto verbal
mensagem em uma língua, mas também com uma mensagem
em um texto icônico). A tradução é feita com a ajuda de um
relativa à língua, uma mensagem na qual o interesse é
sistema convencional de equivalências aceitas naquela cultura
alterado para sua língua. Esse é o “ajuste para o código” que
em particular. Assim, por exemplo, quando se transmite um
Roman Jakobson considerou como sendo a característica
texto verbal por meio de um ilustrativo (por exemplo, a
fundamental do texto literário.
narração de um tema evangélico), o espaço do tema irá se
Nesse caso, muitos fenômenos são paradoxalmente
sobrepor nos códigos, enquanto o espaço da linguagem e do
invertidos. Assim, por exemplo, quando salientamos a
estilo será apenas correlacionado convencionalmente dentro
fidelidade da mensagem, o fato de a linguagem anteceder a
dos limites de uma tradução particular. A combinação de
mensagem escrita em si, e ser acessível a ambos os
tradutibilidade-intradutibilidade (cada uma em diferentes
participantes no ato da comunicação parece tão natural que
graus) é o que determina a função criativa.
não é especialmente notado, mesmo nos casos complexos em
que o receptor primeiramente percebe algumas indicações
C1
T2 como em que códigos a mensagem está, para depois proceder
a “leitura”. Quando os heróis do romance de Julio Verne, The
C2
T2... Children of Captain Grant, tiraram os três fragmentos de um
T1
documento encontrados em uma garrafa, eles primeiro
Cn T2n verificaram que um dos fragmentos era escrito em inglês,
outro em alemão e o terceiro em francês, e só então
começaram a trabalhar na reconstrução do sentido do
documento dilacerado. Em outro caso, a ordem poderia ser

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oposta: primeiro o documento é adquirido e só depois sua linguagem artística. As outras linguagens são dispostas em
linguagem é reconstruída. Essa ordem é absolutamente pontos paralelos ao eixo, próximas a um ou outro pólo. No
normal quando conseguimos um fragmento de uma cultura entanto, devemos ter em mente que os pólos desse eixo são
que está distante da nossa. Isso não acontece somente com uma abstração irrealizável nas atuais línguas, assim como é
textos verbais em línguas desconhecidas, mas também com impossível a existência de uma linguagem artificial sem
relíquias de arte e cultura materiais separadas de seus alguma sinonímia elementar e outros elementos “poéticos”.
contextos e cujas funções e significados devem ser Assim, línguas com uma tendência perceptível rumo ao
reconstruídos pelos arqueólogos. Na história da arte, isso é poetismo “puro” devem possuir tendências metalinguais.
particularmente comum uma vez que todo trabalho inovador Devemos também ter em mente que o ponto do texto
de arte é sui generis um trabalho em linguagem desconhecida no eixo acima mencionado é um ponto móvel. O leitor deve
pelo público e que deve ser reconstruída e controlada pelos avaliar a correlação “poética” e “informacional” do texto de
seus destinatários. Um destinatário é capaz desse tipo de forma diferente da apresentada pelo autor. Quando Aseev
“auto-instrução” porque, em primeiro lugar, em qualquer escreveu:
linguagem individualizada, embora extrema, nem tudo é Ya zapretil by “prodazhu ovsa i sena”…
individual: inevitavelmente, existem níveis comuns para Ved’ eto pakhnet ubiistvom ottsa i syna
[Eu deveria proibir “a venda de aveia e feno”...
ambos os participantes do ato da comunicação e que servem
’Você percebe que cheira a assassinato de pai e filho]
como base para a reconstrução. Em segundo lugar, o que é
“individual” e novo inevitavelmente origina de alguma e quando em Pilnyak o camponês vem para a cidade e lê:
“Kommutatory, akkumulyatory” [comutadores, acumuladores]
tradição a memória do que é atualizado no texto. E,
como “Komu tatory, a komu lyatory” [alguns conseguem
finalmente, em terceiro lugar, a linguagem da arte é
tadores, outros ladores], então é óbvio que o texto, que em
inevitavelmente heterogênea, mesmo que esteja longe de ser
ambos os casos, é um anúncio, no primeiro exemplo é escrito
removida do pólo da metalinguagem e da linguagem artificial,
como um texto poético, e, no segundo, como se fosse um
ela deve, paradoxalmente, incluir elementos de auto- provérbio. Nas linhas de Aseev, o aspecto fonético está sendo
reflexividade, ou seja, estruturas metalingüísticas. A erroneamente realçado e, na de Pilnyak, os aspectos
experiência da vanguarda européia proporciona provas sintagmáticos estão sendo decodificados de acordo com as
convincentes de que a linguagem artística é a mais leis da construção de provérbios.
individualista, o ponto mais importante sobre a reflexão A possibilidade da escolha de qualquer uma das opiniões
autoral na linguagem e na estrutura incluída nela. O texto, para ser o ponto de referência na aproximação de um deles à
deliberadamente, transforma-se em uma lição de linguagem. linguagem tem conseqüências importantes. Na primeira
Assim, o espectro dos textos que preenchem o espaço opinião, o ponto de vista informacional (uso do
da cultura pode ser representado como se esses textos "informacional” no sentido restrito) representa a linguagem
estivessem dispostos paralelamente a um eixo, com um dos como uma máquina para a transmissão de mensagens
pólos formado pelas linguagens artificiais e o outro pela invariantes, e a linguagem poética é, então, considerada
21 22
como trivial e, geralmente falando, um ângulo anormal desse sensibilidade pelo lado estético do sistema semiótico. Isso
sistema. De acordo com essa semelhança, a linguagem explica a intensidade de sua desaprovação quando atacou a
poética é vista meramente como uma linguagem natural com posição central de Saussure, o princípio de arbitrariedade da
um revestimento de restrições e, conseqüentemente, uma conexão entre significante e significado no signo. (Veja
capacidade informacional significativamente reduzida. Roman Jakobson, Quest for he Essence of Language). De fato,
A outra opinião, no entanto, também é possível e tem a linguagem do texto artístico adquire características
sido demonstrada freqüentemente na lingüística. De acordo secundárias do iconismo, que esclarece o problema da
com essa visão, a função criativa é uma qualidade universal “intradutibilidade” da linguagem poética. No referido artigo,
da linguagem e a linguagem poética é considerada como a Jakobson faz uma análise extraordinária e sutil das
manifestação mais típica da linguagem como tal. Desse ponto características do iconismo inerentes na linguagem de uso
de vista, isso é exatamente o oposto dos modelos semióticos diário, isto é, a presença do potencial artístico na linguagem
que, por conseguinte, são considerados como um ângulo em si. No início da década de 60, o Acadêmico Kolmogorov
trivial do espaço lingüístico. comprovou que não se pode escrever poesias em linguagem
A história da “discussão” entre aqueles dois talentosos artificial, e Roman Jakobson comprovou convincentemente o
lingüistas, Saussure e Jakobson, a esse respeito, é de iconismo potencial e, conseqüentemente, o aspecto artístico
interesse particular. Saussure observou claramente a primeira das linguagens naturais, confirmando dessa forma a idéia de
função como o princípio essencial da linguagem. Daí, a Potebnya de que a esfera completa da linguagem pertence à
precisão de suas oposições, sua ênfase na significância arte.
universal do princípio da arbitrariedade na relação de A terceira função da linguagem é a função da memória.
significado e significante, e assim por diante. Por trás de O texto é não somente o gerador de novos significados, mas
Saussure, podemos perceber a cultura do século XIX com sua também um condensador da memória cultural. Um texto tem
crença na ciência positivista, sua convicção de que o a capacidade de preservar a memória de seus contextos
conhecimento é um benefício e a ignorância uma desgraça prévios. Sem essa função, não poderia existir a ciência da
absoluta, seus anseios à literariedade universal, aos romances história, já que a cultura das épocas precedentes (e falando
de Zola e dos Gouncourts. Jakobson foi sempre um homem de de forma mais ampla, sua reprodução da vida) é,
cultura de vanguarda, e seu primeiro trabalho, The Latest inevitavelmente, transmitida a nós em fragmentos. Se um
Russian Poetry. First Sketch (1921) foi, por assim dizer, o texto permanece na consciência daquele que o percebe
prólogo brilhante de toda sua carreira escolar. A linguagem de somente como ele mesmo, então o passado nos seria
Khlebnikov, a linguagem dos Futuristas Russos, não foi uma apresentado como um mosaico de fragmentos desconexos.
anomalia para Jakobson, mas a realização mais consistente Mas, para quem o percebe, um texto é sempre uma
da estrutura da linguagem e um dos mais importantes metonímia de um significado integral reconstruído, um sinal
incentivos para suas pesquisas fonológicas posteriores. De discreto de uma essência não discreta. A soma dos contextos,
sua experiência no estudo da linguagem poética, resultou sua na qual um dado texto adquire interpretação e à qual está de
23 24
certa forma incorporado, pode ser chamada memória do memória de todos aqueles eventos históricos que ocorreram
texto. Esse espaço-significado criado pelo texto ao redor de si fora do texto, mas com os quais o texto de Shakespeare pode
mesmo faz parte da relação com a memória cultural evocar associações. Podemos ter esquecido o que
(tradição) formada anteriormente na consciência da Shakespeare e seus espectadores conheciam, mas não
audiência. Como resultado, o texto adquire vida semiótica. podemos esquecer o que temos aprendido desde a época
Toda cultura é constantemente bombardeada por textos deles. E é isso que fornece ao texto novos significados.
casuais isolados que caem em cima dela como uma chuva de
meteoritos. O que temos em mente não são os textos
incluídos em uma tradição duradoura que tem influência na
cultura, mas invasões isoladas e desruptoras. Esses textos
podem ser resíduos de outras civilizações descobertas por
acaso, textos trazidos por acaso de culturas remotas no
tempo ou espaço. A menos que os textos tivessem sua
própria memória e fossem capazes de criar uma aura
semântica particular ao redor de si mesmos, todas essas
invasões poderiam persistir como um conjunto de peças de
museu separadas do processo cultural principal. Mas, de fato,
esses são fatores importantes no estímulo da dinâmica
cultural. Para um texto, ao contrário de um grão de trigo que
contém dentro de si o programa de seu desenvolvimento
futuro, nada é determinado definitivamente sem permitir
mudanças. O interior, assim como a determinância ainda não
finalizada de suas estruturas, fornecem um reservatório de
dinamismo quando influenciados pelos contatos com novos
contextos.
Existe outro aspecto para essa questão. É de se esperar
que um texto que sobrevive através dos séculos se torne
obsoleto e perca as informações contidas nele. Contudo, os
textos que preservam sua atividade cultural demonstram uma
capacidade de acumular informações, ou seja, uma
capacidade de memória. Nos dias atuais, Hamlet não é
somente uma peça de Shakespeare, mas é também a
memória de todas as suas interpretações e, mais, é também a
25 26
de cultura em um nível mais abstrato, podemos então
Autocomunicação: o “Eu”e
identificar dois tipos de canais de comunicação, dos quais um
o“Outro”como destinatários
pode ser descrito pelo modelo clássico do qual temos falado.
Uma das premissas da culturologia moderna é que existe um Para isso, devemos primeiro identificar duas direções
elo orgânico entre cultura e comunicação. Uma conseqüência possíveis na transmissão da mensagem. A situação mais
disto é que os modelos e termos tirados da teoria da típica é a direção “eu-ele”, onde o “eu” é o sujeito da
comunicação estão sendo transferidos para a cultura. comunicação, o possuidor da informação, enquanto “ele” é o
Aplicando o modelo básico de Roman Jakobson, consideramos objeto, o destinatário. Neste exemplo, supõe-se que antes do
possível estabelecer uma relação entre os sistemas da teoria ato de comunicação existia uma mensagem conhecida por
da comunicação e um amplo leque de problemas no estudo da “mim” e desconhecida por “ele”.
linguagem, da arte e, de uma maneira mais geral, da cultura. A predominância de comunicações deste tipo na cultura
O conhecido modelo de Jakobson se apresenta da seguinte
em que estamos costumava ofuscar a outra direção da
forma:
contexto
transmissão da informação, uma direção que podemos
descrever sistematicamente como a direção “eu-eu”. O caso
mensagem
do sujeito transmitindo uma mensagem para si mesmo, isto
emissor.............................destinatário
é, para uma pessoa que já a conhece, parece paradoxal. No
canal
entanto, isso ocorre com muita freqüência e tem um papel
código importante no sistema geral da cultura.
Esse modelo único para situações comunicativas deu Quando falamos em comunicar uma mensagem pelo
uma contribuição significativa para as ciências semióticas e sistema “eu-eu” nós não estamos pensando principalmente
muito trabalho de pesquisa tem sido feito a partir dele. naqueles casos em que o texto cumpre uma função
Contudo, a aplicação automática de noções preconcebidas ao mnemônica. Quando isso acontece, o “eu” outro, perceptivo,
campo da cultura acarreta algumas dificuldades. Entre elas, é funcionalmente equivalente a um terceiro indivíduo. A
destaca-se a seguinte: no mecanismo cultural, a comunicação diferença vem do fato de que enquanto no sistema “eu-ele” a
é executada por pelo menos dois canais construídos de forma informação é transferida no espaço, no sistema “eu-eu” ela é
diferente. transferida no tempo.
Mais tarde, neste estudo, consideraremos como, em um O que nos interessa é o caso onde a transferência da
único mecanismo cultural, devem estar presentes tanto o informação de “eu” para “eu” não está associada com um
canal pictórico quanto o verbal, que podemos tratar como dois deslocamento no tempo, mas preenche uma outra função
canais construídos diferentemente para a transmissão da cultural, não-mnemônica. A comunicação de uma informação
informação. Contudo, ambos os canais podem ser descritos já conhecida para si mesmo efetua-se em todos os casos onde
usando-se o modelo de Jakobson, e nesse aspecto eles são a qualidade da mensagem é aumentada. Quando, por
idênticos. Mas, se tomarmos a tarefa de construir um modelo exemplo, um jovem poeta lê seu poema impresso, a
27 28
mensagem permanece textualmente a mesma do texto elementos de sua estrutura e assim adquire traços de uma
manuscrito. No entanto, sendo traduzido para outro sistema nova mensagem.
de signos gráficos que possuem outro grau de autoridade na O diagrama para este tipo de comunicação é o que se
cultura em questão, aquele poema adquire um valor segue:
suplementar. Casos análogos são aqueles onde a veracidade
ou a falsidade de uma mensagem dependem se a mensagem contexto mudança de contexto

é falada claramente em alta voz ou insinuada, se é falada ou mensagem 1 mensagem 2


escrita, manuscrita ou impressa, etc. Eu ....................................................................... Eu’
Mas a comunicação “eu-eu” acontece em inúmeros
Código 1 Código 2
outros exemplos. Estes incluem casos onde uma pessoa se
dirige a si mesma, por exemplo em anotações de diários, O sistema “eu-ele” nos permite apenas transmitir uma
feitas não para se lembrar de certas coisas mas para elucidar quantidade constante de informação, ao passo que o sistema
o estado interior do escritor, algo que não seja possível fazer “eu-eu” transforma a informação qualitativamente, o que leva
sem as anotações. Endereçar-se a si mesmo em textos, a uma reestruturação do próprio “eu” real. No primeiro
discursos, reflexões — este é um fato não apenas de sistema, o emissor transmite uma mensagem para uma outra
psicologia, mas também de história da cultura. pessoa, o destinatário, mas permanece o mesmo ao longo do
No que se segue, tentaremos demonstrar que o lugar da ato. No segundo sistema, enquanto se comunica consigo
mesmo, o emissor reconstrói internamente sua essência,
autocomunicação no sistema da cultura é muito mais
desde que a essência de uma personalidade possa ser
significativo do que se supõe comumente.
pensada como um conjunto individual de códigos
Mas como acontece esta estranha situação, em que uma
significantes, e este conjunto se transforme durante o ato de
mensagem transmitida através do sistema “eu-eu” não é
comunicação.
totalmente redundante e adquire mesmo alguma nova A transmissão de uma mensagem pelo canal “eu-eu”
informação suplementar? não é um processo que se encerra em si mesmo, já que é
No sistema “eu-ele” os elementos estruturais do modelo causado pela intrusão de códigos suplementares vindos de
são variáveis (o emissor poderia ser trocado pelo fora, e por estímulos internos que alteram a situação
destinatário), enquanto o código e a mensagem são contextual.
invariáveis. A mensagem e a informação contida no código Um típico exemplo disto é o efeito de sons ritmados (o
são constantes, enquanto o portador pode variar. tamborilar de rodas ou de música ritmada) sobre um
No sistema “eu-eu” o portador da informação monólogo interior. Existem numerosos textos literários que
permanece o mesmo, mas a mensagem é reformulada e atribuem uma fantasia selvagem e vívida para o ritmo da
adquire um novo significado durante o processo de marcha de um cavalo (“The Forest King” de Goethe, muitos
comunicação. Esse é o resultado de se introduzir um outro poemas no “Lyrical Intermezzo” de Heine), para o balanço de
código suplementar: a mensagem original é recodificada nos um barco (“Dream at Sea” de Tyutchev) ou para os ritmos de
29 30
uma estrada de ferro (a música “Journey Song” de Glinka outro (“Pensamento atrás de pensamento, onda atrás de
para os versos de Kukol’nik). onda”, “Existe música nas ondas do mar”).
A este respeito, analisemos “Dream at Sea” [sonho no O texto é evidentemente baseado em uma experiência
Mar] de Tyutchev. real, a lembrança de uma tempestade que durou quatro dias
em setembro de 1833, quando Tyutchev viajava pelo mar
1. Mar e tempestade, ambos balançavam nosso barco;
2. Sonolento, entreguei-me totalmente ao capricho das ondas.
Adriático. Nosso interesse no poema se refere às suas
3. Havia dois infinitos em mim, evidências sobre a auto-observação psicológica do autor
4. E eles começaram a brincar obstinadamente comigo. (certamente não se pode negar a legitimidade dessa
5. À minha volta as rochas soavam como címbalos,
6. Os ventos respondiam e as ondas cantavam. abordagem, entre outras, para um texto).
7. Ensudercido eu jazia no caos de sons, O texto distingue dois componentes no estado interior
8. Mas meu sonho se elevou sobre o caos de sons.
da mente do autor: o sonho mudo e o barulho ritmado da
9. Dolorosamente brilhante, magicamente mudo,
10. Flutuava luminosamente pela escuridão sonora. tempestade. O último componente é marcado pela intrusão
11. Nos raios do relâmpago difuso revelou seu mundo inesperada de versos anapésticos no texto anfibráquico
12. A terra cresceu verde, e o ar brilhante,
(versos 4, 5, 7, 18).
13. Jardins–labirintos, palácios, colunas,
14. E as multidões silenciosas formigavam.
15. Reconheci muitas faces que não conhecia. 4. I mnói svoevól’no igráli oné,
5. Vkrug menya kak kimvály, zvucháli skalý,
16. Vi animais maravilhosos, pássaros misteriosos,
17. Como Deus, andei sobre as alturas da criação, 7. Ya v kháose zvúkóv lezhál oglushén,
18. E sob meus pés o mundo imóvel radiante. 18. I mir podo mnóyu nedvízhnyi siyál.
19. Mas através dos meus sonhos, como os gritos de um mago,
20. Ouvi o trovão do redemoinho do mar, Os versos que falam do barulho da tempestade, e os dois
21. E no domínio do silêncio de visões e sonhos
versos simétricos iniciados com “mas”, que retratam a
22.Irrompeu a espuma das ondas ruidosas.2
intrusão do sonho no barulho da tempestade ou do barulho da
No momento, não estamos interessados nas idéias tempestade no sonho, são anapésticos. O verso que trata do
importantes para Tyutchev, sobre a justaposição ou contraste tema filosófico do “abismo dual” (os “dois infinitos”), um tema
entre a vida interior de uma pessoa, de um lado, e o mar, de encontrado em outros poemas de Tyutchev, é marcado como
o único verso datílico do poema (verso 2).
O barulho da tempestade contra o pano de fundo do
mundo sem som do sonho (“magicamente mudo”, as
2
Both the sea and the storm rocked our boat;/Drowsy I gave myself over entirely to the whim of the multidões “silenciosas”) é claramente enfatizado por uma
waves./There were two infinities in me;/ And they began wilfully to play with me./Around me the rocks
sounded like cymbals./The winds answered and waves sang./Deafened I lay in the chaos of sounds,/But abundância de traços fonéticos. Mas são precisamente esses
my dream rose up over the chaos of sound./Painfully brigth, magically dumb,/It wafted lightly over the
sounding dark./ In the rays of sheet lightning in unfolded its world/The earth grew green, and air grew sons ritmados e ensurdecedores que compõem o pano de
bright,/Labyrinth-gardens, palaces, columns,/ And the multitudes of the silent crowd swarmed./I
recognized many faces I had not known./I saw marvellous beasts, mysterious birdes,/Like God, I trod
fundo rítmico que serve para liberar o vôo do poeta e seus
over the heigthts of creation,/And the world immobile under my feet was radiant./But through all my
dreams, like the howl of a wizard,/I heard the thunder of the sea’s whrilpool,/And into the silent domain
vívidos pensamentos.
of visions and dreams/Burst in the foam of the roaring waves.

31 32
Tomando outro exemplo (do capítulo 8 de Eugene Nesse exemplo temos três códigos externos, formadores
Onegin): de ritmo: o texto impresso, o bruxulcar do fogo e a melodia
“entoada”. Muito tipicamente, o livro que Onegin está lendo
XXXVI
1. O que aconteceu? Embora seus olhos lessem,
não fornece uma mensagem: o herói o lê, contudo, sem
2. seus pensamentos estavam em um ponto distante: perceber seu conteúdo (XXXVI, versos 1-2); o livro serve para
3. desejos e sonhos e pesares brotando estimular o fluxo de seus pensamentos. E ele o faz não pelo
4. e fervilhando em sua alma mais íntima
5. Entre os versos do texto, como impresso, seu conteúdo, mas pelo seu automatismo mecânico da leitura.
6. os olhos da sua mente focalizavam o insinuado Onegin “lê sem ler”, assim como ele olha o fogo sem enxergá-
7. Sentido de outros versos; intensa
lo, e cantarola sem saber o que está fazendo. Nenhuma
8. era sua absorção nos sentidos
9. Lendas e tradições místicas, destas séries rítmicas, percebidas através de diferentes
10. extraídas de um passado vago, afetuoso, órgãos do sentido, tem qualquer relação semântica direta com
11. sonhos de arremesso inconseqüente,
o “jogo do azar” da sua imaginação. Mas ele precisa destes
12. rumores e ameaças e premonições,
13. histórias longas e cheias de vida do país das maravilhas, ritmos de maneira que, com seus “olhos da mente”, ele possa
14. ou cartas nas mãos de uma jovem. 3 ler “outros versos”. A intrusão do ritmo externo organiza e
XXXVII
estimula o monólogo interior.
1. Então, gradualmente sob uma sensação, Um terceiro exemplo é o monge budista japonês
2. e um pensamento, um entorpecimento sonolento se move; contemplando um “jardim de pedras”. Este jardim é uma área
3. diante de seus olhos, a imaginação
4. apresenta seu jogo de azar, e dá as cartas. 4 de pedregulhos relativamente pequena, onde as pedras estão
colocadas de acordo com um ritmo matemático elaborado. A
XXXVIII
contemplação de um modelo elaborado de pedras e
9. Quem poderia melhor ter olhado o poeta,
10. no recanto em que se assentara sozinho pedregulhos tem intenção de evocar um clima propício à
11. à ladeira fulgurante, e entoando introspecção.
12. Idol mio ou Benedetta,

13. deixando cair nas chamas, distraído
14. um chinelo, ou uma revista? 5 Essas várias séries rítmicas, variando de repetições musicais a
ornamentações repetidas, são construídas de acordo com
princípios sintagmáticos claramente expressos, mas não têm
sentido semântico próprio: podemos tratá-las como códigos
3
What happened? Though his eyes were reading,/his thoughts were on a distant goal:/desires and externos cujo efeito é reestruturar a comunicação verbal.
dreams and griefs were breeding/and swarming in his inmost soul/Between the lines of text as
printed,/his mind’s eye focused on the hinted/purport of other lines; intense/was his absorption in their
Contudo, para o sistema funcionar, deve existir um confronto
sense./Legends, and mystical traditions,/drawn form a dim, warm-hearted past,/dreams of e uma interação entre dois princípios diferentes: uma
inconsequential cast,/rumours and threats and premonitions,/long, lively tales from wonderland,/or
letters in a young girl’s hand. mensagem em alguma linguagem semântica e a intrusão de
4
Then gradually upon sensation,/and thought, a sleepy numbness steals;/before his eyes, um código suplementar, puramente sintagmático. Apenas
imagination/brings out its faro pack, and deals.
5
Who could have looked the poet better,/as in the nook he’d sit alone/by blazing fireplace, and
quando estes princípios são combinados pode existir o
intone/Idol mio ou Benedetta,/and on the flames let fall unseen/a slipper, or a magazine?

33 34
sistema comunicativo que nós denominamos linguagem “eu- A tendência de as palavras se tornarem reduzidas na
eu”. linguagem “eu-eu” deve ser vista nas abreviações de notas
Por isso, estabelecemos a existência de um canal que usamos para nós mesmos. Na análise final, as palavras
especial de autocomunicação. Aliás, essa questão já foi nessas notas se tornam índices que podem ser decifrados
pesquisada: Vygotsky apontou a existência de uma linguagem apenas se soubermos o que foi escrito. Comparam-se as
especial, voltada para a função comunicativa, que ele descrições do Acadêmico Krachkovsy da antiga tradição
descreveu como “discurso interno”. Ele mostrou seus traços escrita do Alcorão: “Scripto defectiv. A ausência não apenas
estruturais: de vogais curtas, mas também de longas, e de sinais
A diferença essencial entre discurso interno e externo é a ausência de diacríticos. Apenas pode ser lido quando o texto é conhecido
verbalização. de cor.” Um vívido exemplo deste tipo de comunicação se
O discurso interno é mudo, sem voz. Este é o seu principal traço
diferenciador. Mas a evolução do discurso egocêntrico tende a um encontra na famosa cena de Anna Karenina quando Levin
aumento gradual dessa característica... O fato de que essa declara seu amor por Kitty; a cena é ainda mais interessante
característica se desenvolve gradualmente, de que o discurso
porque reproduz a proposta de Tolstoy à sua noiva Sofya
egocêntrico pode ser distinguido pela sua função e estrutura antes da
verbalização, demonstra apenas o que tomamos como base de nossa Andreevna Bers:
hipótese sobre discurso interior, ou seja, que o discurso interior se
desenvolve não pelo enfraquecimento externo de seu aspecto fônico, “Aqui”, ele disse, e escreveu as letras iniciais: q, v, m, d, q, n, p, s –
passando do discurso para o murmúrio e do murmúrio para o discurso a, s, n, o, e? estas letras significavam: “Quando você me disse que
silencioso, mas pela sua demarcação funcional e estrutural a partir do não podia ser – aquilo significava nunca, ou então?”...
discurso externo; pois ele se move do discurso externo para o discurso “Eu sei o que é”, ela disse, corando.
egocêntrico, e do discurso egocêntrico para o discurso interior. “O que é esta palavra?” ele perguntou, apontando o n que significava
nunca.
Tentemos descrever algumas das características do “Isso quer dizer nunca”, ela disse.
sistema autocomunicativo.
O primeiro traço que o distingue do sistema “eu-ele” é a Em todos esses exemplos estamos preocupados como
redução das palavras nesta linguagem: elas tendem a se casos onde o leitor entende o texto apenas porque ele o
tornar signos de palavras, índices de signos. No caderno de conhece previamente (no livro de Tolstoy, Kitty e Levin já
prisão de Kyukhelbeker há uma passagem notável sobre esse são, emocionalmente, um único ser; a fusão do remetente e
tópico: do destinatário ocorre diante de nossos olhos).
As palavras-índice formadas como resultado desta
Observei algo estranho, algo que psicólogos e fisiologistas achariam
curioso: tenho sonhado não com objetos, ou eventos, mas com alguns redução têm uma tendência a iso-ritmicalidade. É uma
tipos de abreviações estranhas relacionadas a eles, como hieróglifos característica da sintaxe desse tipo de recurso que não forma
em relação a uma pintura, ou páginas de um livro em relação ao
próprio livro. Pergunto-me se isso não é o resultado de existirem tão
sentenças completas, mas tende a ser uma cadeia não-
poucos objetos à minha volta, ou tão poucos eventos acontecendo finalizada de repetições rítmicas.
comigo? A maioria dos exemplos que apresentamos aqui não são
exemplos puros de comunicação “eu-eu”, mas soluções de

35 36
compromisso que têm acontecido como resultado da [“o”-sobre] tende a elidir com o nome, dois grupos são
deformação de um texto-linguístico normal sob a influência formados [“usl” e “osm”], e estes grupos, dado o paralelismo
das leis desse tipo de comunicação. Aí, devemos distinguir fonológico entre “u” e “o” por um lado, e entre “l” e “m”, por
dois tipos de autocomunicação: as que possuem uma função outro, revelam uma organização não apenas rítmica, mas
mnemônica e as que não possuem. também fonológica. Na segunda linha, a necessidade
Um exemplo do primeiro tipo é a conhecida nota de conspiratória de abreviar os sobrenomes a apenas uma letra
Pushkin, escrita para o texto manuscrito do poema “Under the produz um outro ritmo interno, e todas as outras palavras são
blue sky of your native land”: reduzidas ao mesmo grau. Seria bizarro e monstruoso supor
que Pushkin construiu deliberadamente esta nota trágica com
Usl o s.m, 25
U o s. R.P. M. K. B: 24
a intenção de dar a ela uma organização rítmica e fonológica
– definitivamente este não é o ponto: as leis imanentes e
Isto tem sido representado como: “Uslyshal o smerti Riznich inconscientes ativantes da autocomunicação revelam traços
25 iyulya 1826 g.” “Uslyshal o smerti Ryleeva, Pestelya, estruturais geralmente observados em textos poéticos.
Murav’eva, Kakhovskogo, Bestuzheva 24 iyulya 1826 g.” Essas características se tornam ainda mais claras no
[Ciente da morte de Bestuzhev, a 24 de julho de 1826]. próximo exemplo, que não possui função mnemônica nem
Essa nota tem claramente uma função mnemônica, conspiratória, e é um exemplo de autocomunicação em sua
embora não devamos esquecer outro fator: em vista das forma mais pura. Nós temos em mente as anotações
conecções incomuns entre significado e significante no inconscientes que Pushkin fez em processo de pensamento,
sistema “eu-eu”, ela se presta à criptografia, já que é provavelmente sem perceber.
construída com a fórmula: “Deixe aqueles que entendem Em 9 de maio de 1928, Pushkin escreveu o poema
entenderem.” Quando um texto é encifrado, ele é, como “Alas! The tongue of garrulous love”, dedicado a Anna
regra, traduzido do sistema “eu-ele” para o sistema “eu-eu” Alekseevna Olenina, com quem esperava se casar. Lá
(os membros de um grupo que usam uma cifra são neste encontramos a seguinte anotação:
exemplo vistos como um único “eu”, e em relação a eles, as etternna eninelo
pessoas das quais o texto deve ser dissimulado formam uma eninelo ettenna

terceira pessoa composta). No texto de Pushkin é verdade e, próximo, a nota:


que existe uma ação, obviamente inconsciente, que não é
“Olenina
para ser explicada nem pela função mnemônica, nem pela Annette”
natureza secreta da nota: na primeira linha as palavras estão
Acima de “Annette”, Pushkin escreveu “Pouchkine”. Não é
abreviadas a um grupo de várias letras, enquanto na segunda
difícil restabelecer a linha de pensamento de Pushkin: ele
linha as palavras estão abreviadas a uma única letra. Os
estava pensando em Annette Olenina como sua noiva e
índices tendem em direção a uma igualdade na extensão e em
esposa (a nota “Pouchkine”). O texto é um anagrama (lido da
direção ao ritmo. Na primeira linha, desde que a preposição
37 38
direita para a esquerda) do nome e sobrenome de Annette, desses textos. Quanto mais a organização sintática for
em quem ele estava pensando em francês. acentuada, mais livre e associativa serão nossas conecções
O mecanismo desta nota é interessante. Primeiro, o semânticas. Então o texto “eu-eu” tende a aumentar os
nome, lido de trás para frente, se torna um índice significados individuais e a assumir a função de organizar as
convencional. A repetição então estabelece um ritmo, associações desordenadas que se acumulam na consciência
individual. Ele reorganiza a personalidade envolvida na
enquanto a transposição é uma destruição rítmica do ritmo. A
autocomunicação.
natureza de tipo verso desta construção é óbvia.
Assim, o texto carrega um triplo valor semântico: o

valor principal geral linguístico-semântico; o valor semântico
O mecanismo de transmissão da informação pelo canal “eu-
secundário, que surge da reorganização sintagmática do texto
eu” pode ser encarado como se segue: uma mensagem em
e da justaposição com os valores principais; e, em terceiro
uma língua natural é introduzida, seguida por um código
lugar, valores que surgem da introdução de associações
suplementar, de organização puramente formal. Este código
extra-textuais na mensagem, estendendo-se do mais geral ao
suplementar tem uma construção sintagmática e ou é
totalmente desprovido de valor semântico ou tende a sê-lo. extremamente pessoal.
Surge a tensão entre a mensagem original e o código Deve ficar claro que o mecanismo que temos
secundário, e o efeito desta tensão é a tendência de apresentado serve também para descrever os processos que
interpretar os elementos semânticos do texto como se eles se situam no cerne da criação poética.
estivessem incluídos na construção sintagmática suplementar Mas o princípio poético é uma coisa, e textos poéticos
e tivessem adquirido, por meio desta interação, sentidos reais são outra. Identificar os últimos com mensagens “eu-eu”
novos, relacionais. Apesar de o código secundário visar a seria simplista. Um texto poético verdadeiro é transmitido
liberação de elementos significantes primários dos seus através de dois canais simultaneamente (são exceções:
valores semânticos normais, isto não acontece. Os valores textos experimentais, glossolalia, canções infantis sem
semânticos normais permanecem, mas sentidos secundários sentido, zaum’, assim como textos em línguas que a audiência
são impostos a eles, os quais são o resultado do efeito de
não entende). Um texto poético oscila entre os sentidos
várias séries rítmicas sobre os elementos significantes. Mas
transmitidos pelo canal “eu-ele” e os formados no processo de
esta não é a única coisa que transforma o sentido do texto. O
autocomunicação. E o texto é percebido como “verso” ou
crescimento das conecções sintagmáticas dentro da
“prosa” de acordo com a sua proximidade com cada fim do
mensagem abafa as conecções semânticas principais, e a um
certo nível de percepção, o texto pode se comportar como eixo ou do tipo de transmissão.
uma complexa mensagem a-semântica. Mas textos a- A orientação de um texto em direção a uma mensagem
semânticos com um alto grau de organização sintagmática lingüística principal ou em direção a uma complexa
tendem a se tornar organizadores de nossas associações. reconstrução de sentidos e aumento de informação não
Sentidos associativos são imputados a eles. Se, por exemplo, significa por si só que o texto vai funcionar como poesia ou
olharmos o desenho de um papel de parede, ou ouvirmos prosa; isso depende também de como o texto está
uma música abstrata, atribuiremos sentido aos elementos
39 40
relacionado com os modelos culturais desses conceitos em um papel de texto e código, oscilando entre os dois pólos ou
dado período. sendo os dois ao mesmo tempo.
Nossa conclusão é que a comunicação humana pode ser Devemos diferenciar dois aspectos dessa questão: as
construída através de dois modelos. No primeiro exemplo, características do texto que permitem a ele ser interpretado
estamos lidando com uma informação previamente dada, como código, e a maneira que o texto funciona para que seja
transmitida de uma pessoa para outra com um código que corretamente usado.
permanece constante durante o ato de comunicação. No Os sinais de que devemos tratar um texto não como
segundo exemplo, lidamos com um aumento na informação, uma mensagem comum, mas como um modelo de códigos,
sua transformação, reformulação, e com a introdução não de são as séries rítmicas, repetições, organizações
novas mensagens, mas de novos códigos, e nesse caso o suplementares do texto, ou seja, tudo o que é bastante
emissor e o destinatário estão contidos na mesma pessoa. No supérfluo do ponto de vista da comunicação “eu-ele”. O ritmo
processo dessa autocomunicação, a pessoa real é regenerada não é um nível estrutural em línguas naturais. Note-se que
e esse processo é conectado com uma grande variedade de enquanto a função poética da fonologia, da gramática e da
funções culturais, que se estendem do sentido de existência sintaxe tem analogias nos correspondentes níveis não-
individual, que em alguns tipos de cultura é essencial, à auto- literários do texto, tal analogia não existe para a métrica.
descoberta e à auto-psicoterapia. Os sistemas rítmico-métricos têm sua origem não no
Diferentes tipos de estruturas formais podem funcionar sistema “eu-ele”, mas no sistema “eu-eu”. O princípio
como tais códigos. Quanto mais sua organização é a- amplamente usado da repetição no nível fonológico e também
semântica, melhor elas desempenham seu papel. Estruturas outros níveis da língua natural é uma invasão da
desse tipo incluem objetos espaciais como modelos ou autocomunicação em uma esfera da linguagem que é
padrões arquitetônicos que são feitos para ser observados, ou estranha a ela.
objetos temporais como a música. Funcionalmente falando, um texto é usado como código
A questão dos textos verbais é mais complicada. Já que e não como mensagem quando ele não acrescenta nada à
na função autocomunicativa pode ser mascarada e se parecer informação que já temos, mas quando ela transforma o auto-
com outros tipos de comunicação (por exemplo, uma oração entendimento da pessoa que criou o texto e quando ela
pode ser pensada como uma mensagem para uma força transfere mensagens preexistentes para um novo sistema de
poderosa externa ao invés de uma mensagem para si mesmo; significados. Se a leitora N recebe a mensagem de que uma
uma segunda leitura de um texto familiar pode ser pensado certa mulher chamada Anna Karenina se jogou debaixo de um
como uma comunicação com o autor, etc.), o destinatário que trem por causa de um caso de amor infeliz, e se a leitora, ao
recebe um texto verbal tem que decidir se o texto é um invés de juntar esta informação ao que ela já sabe, chega à
código ou uma mensagem. Isto vai depender amplamente da seguinte conclusão: “Anna Karenina sou eu”, e começa a
inclinação do emissor, já que um mesmo texto pode fazer mudar seu entendimento de si mesma, sua relação com as
pessoas e talvez mesmo o seu comportamento, então ela está
41 42
obviamente usando o livro não como uma mensagem como É bastante característico que a carta de Tatyana para Onegin
qualquer outra, mas como um tipo de código em seu próprio admita duas partes: em seu esqueleto (os dois primeiros
processo de autocomunicação. versos e o último), onde Tatyana escreve como uma jovem
Tatyana de Pushkin lê romances exatamente da doente de amor por um proprietário de terras vizinho, ela
seguinte forma: naturalmente se dirige a ele pelo formal “vy”, mas na parte
central, onde ela se imagina com ele em tramas românticas,
X
1. Vendo a si mesma como criação-
ela usa o íntimo “ty”. Como Pushkin nos adverte, já que o
2. Clarissa, Julie ou Delphina- original da carta foi escrito em francês, onde “vous” é usado
3. por escritores de sua admiração, nos dois casos, a forma de tratamento na parte central da
4. Tatyana, solitária heroína,
5. vagava pela floresta solitária, como um guarda-florestal, carta é exatamente um sinal da natureza de livro, irreal, de
6. procurou em seu livro, aquele texto do perigo, tipo código deste texto.
7. e encontrou seus sonhos, seu fogo secreto,
É interessante que o Romantic Lensky também explique
8. o fruto do seu íntimo desejo;
9. ela suspirou, e em transe, co-optou as pessoas (inclusive ele próprio) para si mesmo
10. a alegria de outro, o seio de outro, identificando-as com textos. Pushkin aqui usa
11. sussurrou de cor uma nota destinada
demonstrativamente os mesmos clichês: spasitel’/khranitel’
12. ao herói que ela tinha adotado.
13. Mas o nosso, o que quer que ele seja, [salvador/guardião] –rasvratitel’/iskusitel’ [sedutor/tentador]:
14. o nosso não era nenhum Gradison — não ele. 6
on myslit: “budu ei spasitel”.
Ne poterplyu, chtob razvratitel”
O texto do livro que Tatyana está lendo se converte em
um modelo para a reinterpretação da realidade. Tatyana não [ele murmura: “Olga é minha por salvação;
tem dúvida que Onegin é um personagem romântico; a única Vou acabar com esse demônio da depravação.”]

coisa que ela não sabe é que papel dar a ele:


Em todos esses exemplos os textos funcionam não como
Kto ty, moi angel li khranitel’, mensagem em uma língua particular (nem para Pushkin, nem
Ili kovarnyi iskusitel’?
para Tatyana ou Lensky), mas como códigos que concentram
... Mas quem é você: informações sobre o tipo real de linguagem.
o anjo guardião da tradição, Nossos exemplos são tomados da literatura, mas seria
ou algum agente vil da perdição
enviado para seduzir?
errado concluir que poesia é comunicação “eu-eu” em sua
forma mais pura. O mesmo exemplo pode ser visto em uma
forma mais consistente, não em arte, mas em textos de fundo
moral ou religioso como em parábolas, em mitos e em
6
Seeing herself as a creation –/Clarissa, Julie, or Delphine –/by writers of her admiration,/Tatyana, provérbios. As repetições acharam seu lugar nos provérbios
lonely heroine,/roamed the still forest like a ranger,/sought in her book, that text of danger,/and found
her dreams, her secret fire,/the full fruit of heart’s desire;/she sighed, and in a trace co-opted/another’s quando ainda não eram percebidas esteticamente, mas
joy, another’s breast,/whispered by heart a note addressed/to the hero that she adopted./But ours,
whatever he might be,/ours was no Grandison – not he.

43 44
possuíam uma função mnemônica ou moralizante mais autocomunicação não vai apenas evitar textos-padrão, mas
importante. vai manifestar uma tendência de transformar estes textos em
A repetição de certos elementos arquitetônicos no textos-padrão para identificar o que é “elevado”, “bom” e
interior de uma igreja nos faz perceber a estrutura não como “verdadeiro” com o que é “estável”, “eterno”, isto é, com o
algo ligado às exigências técnicas de construção, mas, modelo.
digamos, como um modelo do universo ou da personalidade No entanto, distanciar-se de um pólo (e ainda levantar
humana. Exatamente porque o interior de uma igreja é um polêmicas conscientes sobre ele) não significa deixar sua
código e não um texto simplesmente, nós o percebemos não influência estrutural. Por mais que um trabalho de literatura
apenas esteticamente (somente um texto, não as regras de imite uma notícia de jornal, ele preserva um traço típico do
sua construção, pode ser percebido esteticamente), mas texto autocomunicativo – sua qualidade de ser legível muitas
também de um modo religioso, filosófico, teológico ou de vezes. Nós relemos mais naturalmente Guerra e Paz do que
outra maneira não-artística. as fontes históricas usadas por Tolstoy. Ao mesmo tempo, por
A arte não nasce do sistema “eu-ele” nem do sistema mais que um texto artístico verbal se empenhe, por razões de
“eu-eu”. Ela se utiliza dos dois sistemas e oscila no campo da polêmica ou experimentação, em deixar de ser uma
tensão estrutural entre eles. O efeito estético surge quando o mensagem, ele não o consegue, como prova a história da
código é tomado por uma mensagem e a mensagem por arte.
código, isto é, quando um texto é passado de um sistema de Textos poéticos são formados evidentemente a partir de
comunicação para outro enquanto o público permanece uma “troca” de estruturas: texto criado no sistema “eu-ele”
consciente de ambos. funcionam como autocomunicação e vice-versa; textos se
A natureza de textos artísticos como um fenômeno que tornam códigos e códigos mensagens. Seguindo as leis da
oscila entre dois tipos de comunicação não impede o fato de autocomunicação – a divisão do texto em segmentos rítmicos,
certos gêneros serem apresentados de forma que se os a redução das palavras a índices, o enfraquecimento das
percebam mais ou menos como mensagens ou códigos. Um conecções semânticas e a ênfase nas conexões sintagmáticas
poema lírico e um ensaio obviamente não são para ser – o texto poético está em conflito com as leis da língua
relacionados com um ou outro sistema de comunicação da natural. E, contudo, nós o percebemos como o texto em uma
mesma forma. Mas além da orientação do gênero, em certos língua natural, de outra forma ele não poderia existir ou
momentos, por causa de fatores históricos, sociais ou outros, preencher sua função comunicativa. Por outro lado, se a visão
a literatura em geral (e até a arte como um todo) pode ser de que poesia é simplesmente mensagem em uma língua
caracterizada pela sua orientação em relação à natural “levar a melhor”, nós perdemos o senso de sua
autocomunicação. Um bom critério de trabalho para especificidade. A alta capacidade modeladora da poesia está
diagnosticar a orientação geral da literatura com respeito à associada com a sua transformação de mensagem para
mensagem é uma atitude negativa em relação a um texto código. O texto poético é um tipo de pêndulo que oscila entre
padrão. Mas a literatura que é orientada em direção à
45 46
os sistemas “eu-ele” e “eu-eu”. O ritmo surge do nível de conhecimento, “desejando aprender com cada um, sem
sentido, e o sentido é formado do ritmo. arrogância”. Devemos enfatizar que estamos falando de uma
As leis de construção do texto artístico são, em grande orientação, já que, no nível da realidade textual, toda cultura
medida, as leis de construção da cultura como um todo. consiste de ambos os tipos de comunicação. Além do que,
Portanto, a própria cultura pode ser tratada tanto como a esta característica não é específica para a cultura moderna –
soma das mensagens enviadas por vários emissores (para ela pode ser vista em diferentes formas, em diferentes
cada um deles o destinatário é outro “ele”), quanto como uma períodos. Escolhemos a cultura européia dos séculos XVIII e
mensagem transmitida por um “eu” coletivo da humanidade XIX porque esta cultura tem condicionado nossas idéias
para ela mesma. Desse ponto de vista, a cultura humana é científicas normais e especialmente nossa identificação do ato
um vasto exemplo de autocomunicação. de informação com a aquisição e a troca. Contudo, de forma
█ alguma todos os casos conhecidos da história da cultura
A transmissão simultânea ao longo de dois canais de podem ser explicados a partir dessas posições.
comunicação não é somente uma propriedade de textos Observe-se a situação paradoxal em que nos
artísticos, é também uma característica da cultura, se encontramos quando consideramos o estudo do folclore. Nós
tomarmos cultura como uma mensagem única. Podemos sabemos que o folclore tem fornecido a evidência mais firme
então dividir as culturas entre aquelas onde predomina a para os paralelos estruturais com as línguas naturais, e que
mensagem transmitida pelo canal lingüístico geral “eu-eu”, e métodos lingüísticos têm sido aplicados ao folclore com
aquelas orientadas em direção à autocomunicação. grande sucesso. De fato, o pesquisador vai encontrar nesse
Já que a “mensagem 1” pode se constituir de amplas campo um número definido de elementos no sistema e regras
camadas de informação que de fato compõem a especificidade relativamente fáceis para sua combinação. Mas aqui nós
da personalidade, a reestruturação dessas camadas vai devemos mostrar também uma profunda diferença: a língua
resultar na alteração da estrutura da personalidade. Devemos fornece um sistema formal de expressão, mas o campo do
lembrar que se o esquema “eu-ele” implica transmissão de conteúdo permanece, do ponto de vista da linguagem como
informação sem alteração no volume, o esquema “eu-eu” tal, extremamente livre. O folclore, e especialmente formas
trabalha em relação ao aumento de informação (a suas assim como o conto mágico, torna ambas as esferas
“mensagem 2” não invalida a “mensagem 1”). extremamente automatizadas. Mas isto é um paradoxo. Se o
A cultura européia moderna é orientada texto fosse de fato construído desta forma, ele seria
conscientemente com relação à comunicação “eu-ele”. O totalmente redundante. E o mesmo poderia ser dito de outras
consumidor cultural está na posição de um destinatário ideal, formas de arte orientadas canonicamente, no cumprimento e
ele recebe informação de todos os lados. Pedro o Grande não na violação de normas e regras.
formulou claramente esta posição quando disse: “Sou um A resposta está evidentemente no fato de que, se textos
discípulo que exige ser ensinado.” The True Mirror of Youth deste tipo têm um certo valor semântico desde o seu começo
aconselha os jovens a ver a educação como aquisição do (a semântica do conto mágico evidentemente era uma função
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da sua relação com o ritual), esses valores eram conhecido fato de gramáticas que são, a princípio, inaplicáveis
subseqüentemente perdidos e os textos começavam a adquirir aos textos da língua que afirmam descrever).
características de organizações puramente sintagmáticas. As culturas, orientadas para a mensagem, são mais
Enquanto no nível da língua natural eles obviamente têm móveis e dinâmicas. Elas têm uma tendência a aumentar o
valor semântico, no nível da cultura eles tendem à número de textos ad infinitum, e incentivam um rápido
sintagmática pura, isto é, de textos, eles passam a “códigos aumento no conhecimento. A cultura européia do século XIX é
2”. Quando Lévi-Strauss falou da natureza musical do mito, um exemplo clássico disso. O avesso desse tipo de cultura é a
ele tinha em mente a tendência de os mitos se tornarem nítida divisão da sociedade em transmissores e receptores, o
puramente sintagmáticos, textos a-semânticos, não registros aumento de uma tendência psicológica de adquirir verdade na
de eventos particulares, mas esquemas para a organização de forma de informação pré-embrulhada sobre os esforços
mensagens. mentais de outras pessoas, um aumento na passividade social
Para que a cultura exista como um mecanismo daqueles que se encontram na posição de receptores de
organizador da personalidade coletiva com uma memória informação. Obviamente, um leitor de um romance europeu é
comum e uma consciência coletiva, deve estar presente um mais passivo que um ouvinte de um conto de fadas que deve
par de sistemas semióticos com a conseqüente possibilidade transformar a história padrão em um texto de sua própria
de tradução do texto. consciência; um espectador de uma peça de teatro é mais
Os sistemas comunicativos “eu-ele” e “eu-eu” formam passivo que um folião no carnaval. A tendência ao
justamente um par como aquele (a propósito, devemos dizer consumismo mental é um aspecto perigoso da cultura que é
que uma lei aparentemente universal para culturas humanas orientada assimetricamente em direção à aquisição de
é que um dos membros de qualquer par semiótico formador informação a partir do exterior.
de cultura deve ser língua natural, ou incluir língua natural). As culturas orientadas em direção à autocomunicação
Culturas reais como textos artísticos são construídas no são capazes de grande atividade, mas são freqüentemente
princípio de que o pêndulo oscila entre sistemas. Mas existirá muito menos dinâmicas do que a sociedade humana requer.
uma tendência predominante para a cultura de ser orientada A experiência histórica tem mostrado que as culturas
ou em direção à autocomunicação, ou em direção à aquisição mais viáveis são aqueles sistemas onde a luta entre essas
de verdade exterior, na forma de mensagens. Essa tendência estruturas não tem resultado em uma vitória total para uma
vai se evidenciar particularmente bem na imagem delas.
mitologizada que cada cultura cria como seu auto-retrato Mas temos ainda um longo caminho até sermos capazes
ideal. Esse modelo próprio tem uma influência nos textos da de fazer qualquer previsão bem fundamentada sobre as
cultura mas não pode ser identificado com ela, sendo algumas estruturas favoráveis da cultura. Até lá, devemos entender e
vezes uma generalização de princípios estruturais descrever seu mecanismo, ao menos em suas manifestações
dissimulados por trás de contradições textuais, e às vezes o mais típicas.
oposto direto deles (no campo da tipologia cultural há o
49 50
fosse pelo misterioso fenômeno das civilizações pré-incas sul-
Uma alternativa: cultura sem
americanas.
letramento ou cultura antes da cultura?
As evidências que os arqueólogos têm acumulado sobre
Uma tentação de muitas pessoas interessadas na história e na essas civilizações formam um quadro surpreendente. Aí está
tipologia de culturas e civilizações é dizer: “Isso nunca uma série de civilizações que, sucedendo-se por milhares de
aconteceu, portanto, não pode acontecer” ou “Não sei nada anos, ergueram grandes edificações, criaram sistemas de
sobre isso, então deve ser impossível”. Na verdade, isso irrigação, construíram cidades e grandes ídolos de pedra,
significa que a parte cronológica, que podemos estudar graças desenvolveram habilidades em olaria, tecelagem, metalurgia
aos documentos escritos que foram preservados, tão pequena e um complexo sistema de símbolos... e contudo, não
em comparação com o total da história escrita e oral da deixaram qualquer traço de escrita. O paradoxo continua sem
humanidade, é tomada como norma para o processo histórico, explicação. O argumento às vezes apresentado de que seus
e que a cultura desse curto período é o padrão para a cultura
escritos foram destruídos por invasores, primeiro os incas e
humana.
depois os espanhóis, não é convincente. Seus monumentos de
Vejamos um exemplo: toda a cultura conhecida por
pedra, aqueles de seus cemitérios, que não foram saqueados
estudiosos europeus é baseada na escrita. Achamos difícil
e estão ainda em perfeita condição, sua cerâmica e outros
imaginar uma cultura iletrada desenvolvida e mesmo qualquer
produtos certamente teriam deixado algum traço de escrita,
civilização iletrada desenvolvida (e, se conseguirmos, será
se esta houvesse existido. Sabemos, por experiência histórica,
somente evocando imagens familiares de culturas e
que uma destruição a ponto de não deixar nenhum traço está
civilizações que já conhecemos). Há não muito tempo, dois
fora do alcance de qualquer invasor. Portanto, temos de supor
matemáticos bem conhecidos colocaram em evidência a idéia
que eles não tinham escrita.
de que, já que o desenvolvimento global da escrita só se
Sem nos restringirmos a priori a quaisquer noções sobre
tornou possível com a invenção do papel, todo o período “pré-
o que seja ou não possível, tentemos imaginar (já que este é
papel” da história da cultura é uma invenção a posteriori. Não
o único caminho aberto) como teria sido essa civilização, se
nos interessa discutir essa idéia paradoxal, mas percebê-la
de fato ela existiu.
como um exemplo claro da extrapolação de um olhar
Escrever é uma forma de memorizar. Assim como a
preconcebido, aplicado a regiões inexploradas: aquilo que é
mente individual tem seus próprios mecanismos de
familiar é visto como a única coisa possível.
memorização, a mente coletiva, que tem de registrar o que
Civilizações desenvolvidas, com suas sociedades de
existe em comum, cria seus próprios mecanismos. Um desses
classe, divisões de trabalho e altos níveis de serviços públicos
mecanismos é a escrita. Mas será a escrita a única forma de
e de construção e tecnologia irrigacional, são tão obviamente
memorização coletiva, ou mesmo a mais importante? Para
ligadas com a habilidade de escrever que as possibilidades
responder essa pergunta, devemos supor que formas de
alternativas têm sido rejeitadas a priori. Argumentando a
memorização são derivadas do que as pessoas acham que
partir dos muitos dados a nossa disposição, podemos dizer
que o laço entre escrita e civilização é uma lei universal, não
51 52
deve ser lembrado, o que depende da estrutura e orientação posteridade da informação sobre como e em que temporada a
daquela civilização. competição aconteceu. Aí o que precisamos não é de uma
Normalmente, supomos que a memória é para lembrar crônica ou de uma notícia de jornal, mas de um calendário ou
eventos excepcionais (aqueles que a memória coletiva de alguém que registre a ordem estabelecida, e de um ritual
guarda); e por eventos excepcionais entendemos eventos que permita tudo isso ser armazenado na memória coletiva.
únicos ou eventos que ocorrem pela primeira vez, ou ainda A cultura que é orientada não em direção a um aumento
aqueles que não deveriam ter acontecido, inesperados. Esses na quantidade de textos, mas na reprodução repetida de
são os tipos de eventos registrados em crônicas e, hoje em textos estabelecidos de uma vez por todas, requer uma
dia, em jornais. Para o tipo de memória voltada para a memória coletiva com composição diferente. A escrita não é
memorização de ocorrências anômalas ou incomuns, a escrita necessária. Símbolos mnemônicos tomarão seu lugar, assim
é essencial. A cultura com esse tipo de memória multiplica como símbolos naturais (tais como as árvores e pedras
constantemente o número de textos: suas leis são ampliadas notáveis, as estrelas e os corpos celestes) e símbolos criados
com precedentes, seus atos legais registram eventos pelo homem: ídolos, túmulos, construções e rituais nos quais
particulares — vendas, testamentos, acordos — e um juiz tem estes marcos e lugares sagrados são incluídos. A ritualização
de lidar em cada caso com um incidente separado. A e sacralização da memória, que é típica de tais culturas, faz
literatura é também submetida a essa tendência. Esse tipo de os observadores educados em tradições européias
cultura encoraja o desenvolvimento de correspondência identificarem esses marcos com centros de cultos religiosos
privada, memórias e diários, os quais também servem para no sentido em que usamos o termo. Mas, concentrando a
registrar “eventos” e “incidentes”. A mente literata prestará atenção na função sagrada desses lugares, que de fato
atenção às relações de causa e efeito e às ações resultantes: existem, o observador terá uma tendência a não perceber
o que é registrado não é a época do ano para semear, mas suas outras funções, aquelas de regulamentação e controle;
como foi a colheita em um determinado ano. Tudo isso leva a pois é nestes lugares que o símbolo mnemônico (sagrado) do
um aumento da preocupação com o tempo e o começo da rito aparece. No entanto, as atividades associadas com esses
idéia de história. Podemos dizer ainda que a história é um dos centros preservam a memória do coletivo daqueles feitos,
subprodutos do surgimento da escrita. idéias e emoções que correspondem àquele lugar. Portanto,
Mas vamos imaginar um outro tipo possível de memória sem conhecer os rituais e sem levar em conta o vasto número
que vise preservar informação sobre a ordem estabelecida, e de signos do calendário e outros signos (por exemplo, o
não sobre suas violações, sobre suas leis e não sobre comprimento e o ângulo de uma sombra feita por uma árvore
anomalias. Suponhamos, por exemplo, que, quando ou construção, a abundância ou a falta de folhas ou frutos em
assistimos a uma competição esportiva, não estamos uma árvore sagrada em um determinado ano, etc.) nós não
preocupados com quem venceu ou quais circunstâncias podemos identificar quais funções das construções foram
imprevistas estiveram presentes nesse evento, mas que nos preservadas. Devemos, além disso, ter em mente que a
concentramos em algo mais, ou seja, no registro para a cultura escrita é orientada em direção ao passado, ao passo
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que a cultura oral é orientada em direção ao futuro. aquela capaz de entender e interpretar predições
Predições, leituras de sorte e profecias têm uma grande parte corretamente, não hesitando em lhes dar sentido, e aquela
nisso. Os marcos e lugares sagrados não são apenas locais que age abertamente, sem esconder suas intenções. Em
onde os rituais que preservam a memória de leis e normas contraste, uma cultura orientada em direção à capacidade de
são representados, mas também locais de adivinhações e uma pessoa de escolher sua própria estratégia de
predições. Oferendas de sacrifício podem ser vistas como um comportamento requer racionalidade, cuidado, circunspecção
tipo de experimento futurológico, já que elas sempre e discrição, já que cada evento é visto como “acontecendo
envolvem um apelo à divindade, no sentido de se obter pela primeira vez”. Turner cita um exemplo interessante em
assistência ao fazer uma escolha. seu trabalho de adivinhação no meio de pessoas da África
Estaríamos errados se supuséssemos que uma central e, em particular, dentre os Ndembu. A predição é feita
civilização desse tipo sofre de uma “carência de informação”, sacudindo-se uma cesta contendo estatuetas especiais de
baseados no fato de que seus rituais e costumes parecem ritual, e o resultado é lido pelas suas posições. Cada estatueta
fazer com que todas as ações sejam pré-ordenadas pelo tem um certo significado simbólico e qualquer um deles que
destino. Uma sociedade como essa simplesmente não pode apareça por cima tem um significado especial. Turner
existir. Membros de um “coletivo iletrado” constantemente se escreve:
deparam com a necessidade de fazer uma escolha, mas suas A segunda estatueta que devemos considerar é chamada
opções são feitas sem referências à história ou a expectativas Chamutang’a. Ela representa um homem sentado encolhido com o
queixo nas mãos e os cotovelos nos joelhos. Chamutang’a significa
de causa e efeito, mas, como fazem muitos povos iletrados,
uma pessoa irresoluta, variável ... Chamutang’a significa também “o
consultando adivinhos e feiticeiros. Talvez nossa necessidade homem que ninguém sabe como tratar”. Suas reações não são
de consulta (a um médico, um advogado, uma pessoa mais naturais. Caprichosamente, dizem, por vezes presenteia as pessoas, e
por outras age de modo vil. Às vezes, ri exageradamente com os
velha) seja um vestígio dessa tradição. Esse tipo de tradição outros. Outras vezes se fecha em um silêncio sem motivo aparente.
se opõe ao ideal de Kant que dita que a pessoa é capaz de Ninguém pode adivinhar quando ficará nervoso, ou quando não ficará
tomar decisões sobre seus próprios atos e opiniões. Kant com raiva. Os Ndembu gostam de homens que tem comportamento
previsível. Eles louvam a clareza e a consistência, e um homem que
escreveu: não pareça sincero pode bem ser um feiticeiro. O tema de que tudo o
O Iluminismo é a emergência da humanidade de um estado de que é escondido provavelmente deve ser perigoso ou malévolo é mais
imaturidade onde se encontra por sua própria culpa. Imaturidade é a uma vez exemplificado.
inabilidade de se usar a própria razão sem a orientação de outra
pessoa... É tão fácil ser imaturo! Se eu tenho um livro que pensa por
Todos os gestos principais da figura de Chamutang’a
mim, se eu tenho um guia espiritual que age de acordo com a minha lembram aqueles de “O Pensador” de Rodin. O simbolismo do
consciência, e um médico que me prescreve um regime particular, gesto de se segurar o queixo é tão bem conhecido que a
então não tenho nada com o que me preocupar.
estátua de Rodin não precisa de elucidação. Tudo isto é mais
A cultura sem escrita, com sua orientação em direção ao notável pela intenção do escultor de retratar o “primeiro”
presságio, às adivinhações e aos oráculos, faz da escolha de pensador: nem a testa nem a proporção da figura têm os
comportamento algo impessoal. Assim, a pessoa ideal será traços do estereótipo de um intelectual — todo o significado
55 56
está na pose. É interessante lembrar que estes mesmos alguma excluídas de culturas não-letradas como tais, e podem
estereótipos gestuais foram usados por Garrick para criar o servir para complementar a poesia oral de calendários e da
“tipo Hamlet” (apenas com a diferença de que, estando de pé, astronomia.
sua posição torna todo o gesto mais eficaz): O mundo da memória oral é cheio de símbolos. Pode
Em profundo devaneio ele vem para o palco, o queixo apoiado na mão parecer paradoxal que a emergência da escrita, longe de
direita, o cotovelo sustentado pela esquerda, olhos baixos para o lado. complicar a estrutura semiótica da cultura, na verdade a
Então, tirando a mão direita do queixo, mas, se me lembro,
simplificou. Os objetos materiais que representaram os
continuando a suportar o braço com a esquerda, ele pronuncia as
palavras “Ser ou não ser?” símbolos mnemônicos sagrados são encontrados não em
textos verbais, mas em textos rituais. E em relação a esses
A representação de Garrick padronizou os gestos do tipo
textos, eles preservam uma certa liberdade: sua existência
Hamlet por mais de mil anos nos palcos da Europa.
material continua fora do ritual, ou eles podem ser incluídos
O que o Chamutang’a dos Ndembu, “O Pensador” de
em muitos rituais diferentes, o que lhes dá um significado
Rodin e Hamlet têm em comum? Os três são pessoas a ponto
múltiplo. Sua própria existência pressupõe uma massa
de tomarem uma decisão. Mas, para os Ndembu, o estado de
envolvente de contos orais, lendas e canções associadas a
escolher significa rejeitar costumes e um papel estabelecido
eles. O resultado é que os laços sintáticos entre estes
por séculos. A idéia de escolha possui associações semânticas
símbolos podem ser afrouxados em diferentes contextos. O
com a violação da ordem estabelecida, isto é, com a feitiçaria
texto verbal (em particular o texto escrito) é baseado em
(já que os Ndembu atribuem tudo o que não é normal à
vínculos sintáticos. A cultura oral os enfraquece
feitiçaria), ou com características negativas do homem, tais
extremamente. É por isso que a cultura oral pode incluir um
como a duplicidade e a indecisão.
grande número de signos simbólicos de uma ordem inferior,
Mas presságios e predições que prenunciam o futuro
que são como se fossem da margem da escrita, como
têm a função de escolha para a experiência coletiva, deixando
amuletos, signos de propriedade, objetos de cálculo, signos
ao indivíduo a possibilidade de uma ação aberta e decisiva.
de uma “letra” mnemônica, mas reduz extremamente a
Baratynsky escreveu:
possibilidade de ajustá-las às cadeias sintático-gramaticais.
Um lobo corre da floresta para o seu caminho.
Objetos capazes de realizar cálculos aritméticos bastante
Circulando com seus pêlos eriçados.
Ele profetizou vitória e, com ousadia complexos não estão excluídos de tais culturas. Em culturas
Arremessou seus soldados contra o inimigo. deste tipo, muitas vezes existem rápidos desenvolvimentos de
A sociedade fundada no costume e experiência coletiva signos mágicos que são usados em rituais e que usam figuras
inevitavelmente deve ter desenvolvido maneiras poderosas de geométricas mais simples: o círculo, a cruz, linhas paralelas,
vaticínio. Mas isso serve inevitavelmente para estimular a o triângulo, etc., e as cores primárias. Estes signos não
observância da natureza, especialmente das estrelas, e devem ser confundidos com hieróglifos ou letras alfabéticas;
portanto, serve para estimular o conhecimento teórico. já que as últimas tendem a um certo valor semântico e
Algumas formas de geometria descritiva não estão de forma adquirem seu significado apenas na cadeia sintagmática onde
57 58
formam cadeias de signos; ao passo que os primeiros têm um Então, na medida em que se aproximou do campo, viu o bezerro e os
grupos dançando. Moisés teve um acesso de fúria. Ele atirou para
significado não-específico, muitas vezes internamente baixo as tábuas que segurava, estilhaçando-as ao pé da montanha.
contraditório, e adquirem sentidos específicos em relação a Agarrou o bezerro que eles tinham feito e o queimou. (Êxodo 32, 15-
20)
textos orais e rituais dos quais são signos mnemônicos.
Podemos ver a diferença entre eles se compararmos a Sobre esse tópico, existe um material extremamente
sentença (uma cadeia de símbolos lingüísticos) com um interessante em Phaedrus, diálogo de Platão. O trabalho,
ornamento (uma cadeia de símbolos mágico-mnemônicos e devotado a questões da arte da retórica, também se refere a
rituais). problemas de memória. No exato começo do diálogo, Platão
O desenvolvimento de ornamentação e a ausência de conduz Sócrates e Fedro para fora das muralhas da cidade de
inscrições em esculturas e monumentos arquitetônicos Atenas para mostrar aos seus leitores a conexão entre
também são característicos de culturas orais. Um hieróglifo, marcos, túmulos, montanhas e fontes com a memória coletiva
uma palavra escrita ou uma letra são fenômenos no pólo que está encerrada nos mitos:
oposto a um ídolo, túmulo ou marco, e os dois grupos, em um Fedro: Conte-me, Sócrates, não existe uma história de que Boreas
certo sentido, mutuamente excludentes. Os primeiros indicam raptou Oréstias de algum lugar às margens do Ilissos?
Sócrates: Assim dizem.
um significado, enquanto os segundos tornam possível a
Fedro: Foi aqui, você acha? A água é deliciosamente fresca e clara, o
lembrança dele. Os primeiros são um texto ou parte de um lugar exato para meninas brincarem.
texto, e um texto que possui uma natureza puramente Sócrates: Não, foi a um quarto de milha rio abaixo, onde se cruza para
o templo de Agra; um altar a Boreas marca o ponto, acredito.
semiótica; enquanto os últimos estão incluídos em um texto
sincrético de ritual ou estão mnemonicamente conectados Posteriormente, Sócrates de repente sugere a seu
com textos orais que estão atados a lugar e tempo companheiro uma idéia paradoxal sobre o prejuízo que a
particulares. escrita pode trazer para a memória. Uma sociedade baseada
A antítese entre a escrita e a escultura é bem retratada na escrita parece ser, aos olhos de Sócrates, uma sociedade
no episódio bíblico do confronto entre Moisés e Aarão, entre sem memória e anômala, enquanto uma sociedade sem
as tábuas de Moisés, que dariam às pessoas um novo escrita, que é uma sociedade normal, possui uma memória
mecanismo de memória cultural (“um testamento”), e a coletiva bem estabelecida. Sócrates conta a história do divino
unidade sincretista do ídolo de Aarão e da dança ritual; que inventor Teuto, que apresentou a ciência ao rei do Egito:
eram a forma antiga de preservar informação: Mas, a respeito da escrita, Teuto declarou: “Aqui está uma realização,
meu senhor o Rei, que vai aperfeiçoar tanto a sabedoria quanto a
Moisés voltou-se e desceu a montanha com as duas tábuas do
Testemunho em suas mãos. Tábuas inscritas nos dois lados, na frente memória dos egípcios. Descobri a receita certa para a memória e a
e no verso. As tábuas eram o trabalho de Deus, e sua inscrição era a sabedoria.” “Teuto, meu modelo de inventores,” respondeu o rei, “a
descoberta de uma arte não é o melhor juiz do bem ou mal que caberá
escrita de Deus, gravada nelas.
Quando Josué ouviu as pessoas gritando, ele disse a Moisés:“Ouço o àqueles que a praticarem. Assim é neste caso: você, que é o pai da
som de uma batalha no campo!” Mas Moisés respondeu: “Nenhuma escrita, por afeição à sua cria, atribuiu a ela a função oposta à que ela
tem. Aqueles que a adquirirem vão parar de exercitar suas memórias
canção de vitória tem esse som, nenhum lamento de derrota tem esse
som, ouço sim coros de resposta!” e se tornar esquecidos: vão confiar na escrita para trazer coisas à sua

59 60
lembrança através de signos externos, ao invés de seus próprios do sol e da lua, ventos ou chuvas recorrentes, mudanças
recursos internos. O que você descobriu é uma receita para a
recordação, não para a memória. E quanto à sabedoria, seus periódicas nos níveis das águas dos rios, etc. Esses
discípulos terão a reputação de tê-la, sem que isto seja verdade: eles fenômenos naturais são tomados como signos que lembram
receberão uma quantidade de informação sem a instrução adequada, e
ou predizem. A mudança entre esses dois tipos de memória é
em conseqüência serão vistos como sábios, quando são, na maior
parte, bastante ignorantes. E porque estão cheios do conceito de simbolizada, por um lado, pelo arco-íris que Deus deu a Noé
sabedoria ao invés da sabedoria real, eles se tornarão um fardo para a como um sinal e, por outro, pelas tábuas escritas que ele deu
sociedade.”
a Moisés.
A questão a notar é que o Sócrates de Platão não associa A medicina “popular” e a medicina científica derivam
escrita a progresso cultural, mas à perda do alto nível atingido desses dois tipos de consciência, a não-letrada e a letrada. Na
em uma cultura não-letrada. aurora da era do positivismo eram necessárias a mente
Textos orais que giram em torno de ídolos e marcos são penetrante de Baratynsky e a capacidade de pensamento
associados a um lugar e época particulares: um ídolo funciona independente para ver, na superstição e em predições, não a
— “vem à vida” em um sentido cultural, por assim dizer — em mentira e o barbarismo, mas as relíquias de uma outra
um certo tempo que, no ritual e pelo calendário, é “seu verdade vinda de um outro tipo de cultura:
tempo”, e as lendas locais se tornam ligadas a ele. Superstição! É uma relíquia
Conseqüentemente, a paisagem local é vivenciada de maneira De verdade antiga — o templo caiu
E o descendente não pode distinguir
bastante diferente em culturas letradas e não-letradas. Uma
a linguagem de suas ruínas.
cultura letrada tende a olhar o mundo criado por Deus ou pela
Natureza como um texto, e se empenha em ler a mensagem É interessante que o poeta associe superstição a um templo,
contida nele. Então, o significado a ser encontrado no texto uma construção arquitetônica, e não a uma “lápide com uma
escrito, se sagrado ou científico, é extrapolado do texto para a inscrição em uma língua desconhecida”, como Pushkin fazia
paisagem. Desse ponto de vista, o significado da Natureza é quando se referia a uma palavra incompreensível. A imagem
revelado apenas a uma pessoa “letrada”: essa pessoa procura de Baratynsky vem à mente quando se pensa sobre o
leis na Natureza, não presságios; a crença em presságios é significado perdido das construções arquitetônicas pré-incas
tratada como uma superstição; e o futuro é para ser do Peru antigo.
determinado a partir do passado, e não a partir de leituras da As passagens da Bíblia que citamos apresentam uma
sorte e predições. imagem familiar: culturas letradas e não-letradas são como
Culturas não-letradas têm uma relação diferente com a dois estágios sucessivos, um mais elevado, outro mais baixo.
paisagem. Já que uma paisagem, lugar sagrado ou ídolo está Mas, a partir do fato de que o desenvolvimento histórico
“incluído” no círculo cultural de ritual, sacrifício, leitura da seguiu esse caminho na Eurásia com a qual estamos
sorte, canções e danças, e já que todas essas atividades são familiarizados, temos o direito de concluir que este era o
fixadas a certas datas do ano, os marcos, lugares sagrados e único caminho possível? A existência, por muitos milênios, de
ídolos são associados à posições particulares das estrelas ou culturas não-letradas na América pré-colombiana é uma prova

61 62
convincente de que tais civilizações são viáveis, os altos níveis
O papel dos símbolos tipológicos
culturais atingidos mostram seu potencial cultural. Para a
na história da cultura (contrato e
escrita se tornar necessária, as condições históricas tiveram
auto-entrega como arquétipos culturais)
que ser desestabilizadas, as circunstâncias tiveram que se
tornar imprevisíveis e dinâmicas, tiveram que existir contatos Entre os modelos sócio-culturais mais arcaicos, podemos
freqüentes e prolongados com outros grupos étnicos para que identificar dois que são de particular interesse por suas
a necessidade de traduções semióticas fosse sentida. Existe transformações subseqüentes na história da cultura. Podemos
uma diferença polar entre, por um lado, a região histórica que denominá-los como o modelo mágico e o modelo religioso,
compreende os Bálcãs e o norte da África, o Oriente Próximo sempre tendo em mente que esses termos são convenções
e o Oriente Médio e os mares Negro e Mediterrâneo e, por aproximadas e que não estamos falando de culturas reais,
outro, o altiplano peruano, a região dos Andes e a faixa mas sim de princípios tipológicos. A maior parte das religiões
históricas do mundo combina ambos os elementos, e em
estreita da costa peruana. O primeiro tem sido um “cadinho”
algumas predomina o princípio mágico.
de grupos étnicos, a cena de freqüentes migrações e conflitos
O sistema mágico de relações caracteriza-se por: 1.
semióticos e culturais; enquanto o segundo tem sido por
reciprocidade: os dois agentes envolvidos nessas relações são
muito tempo uma área de isolamento, sem muitos contatos
ativos (o mágico, por exemplo, executa certas ações, em
militares e comerciais com outras culturas; isso tem na
resposta às quais o poder invocado executa outras). Na magia
verdade fornecido condições ideais para uma tradição cultural
não há ações unilaterais, pois se um mágico, por ignorância,
ininterrupta (e quando o isolamento foi quebrado, como regra
executa ações incorretas e conseqüentemente incapazes de
isso significou o desaparecimento total de uma das antigas
invocar o poder em questão e ativá-lo, suas palavras e seus
civilizações peruanas). Então, parece natural que a civilização
gestos não são considerados como ações no sistema da
letrada foi vitoriosa na primeira área e a não-letrada, na
magia; 2. obrigatoriedade: significa que ações corretas
outra.
executadas por uma das partes implicam ações obrigatórias e
perfeitamente previsíveis da outra parte. Inúmeros textos
testemunham o fato de que o mágico força o poder
sobrenatural a aparecer e agir, mesmo a contragosto, embora
o mágico detenha apenas parte desse poder; 3. equivalência:
a relação entre as partes é como uma troca de valores
equivalentes e pode ser comparada com uma troca de signos
convencionais; 4. contratação: as duas partes envolvidas
entabulam um tipo de contrato que pode assumir uma forma
explícita (a conclusão de um acordo, a proferição de um
juramento, a observância de condições, etc.), ou pode ser
implícito. Um contrato, entretanto, implica também a
63 64
possibilidade de ruptura, assim como na troca semiótica religiões nunca existiram sem algum grau de psicologia
7
convencional há o potencial do engano e da desinformação. mágica: por exemplo, apesar de rejeitar a idéia de troca
Daí a possibilidade de que o contrato seja interpretado de equivalente nas relações entre o homem e Deus na Terra,
várias maneiras, cada parte se esforçando por colocar nas várias das religiões do mundo contêm a idéia da recompensa
formulações explícitas do acordo um conteúdo que na vida após a morte decorrente de um sistema estabelecido
corresponda a seus propósitos. de relações obrigatórias (isto é, relações condicionadas de
Um ato religioso, por outro lado, baseia-se não numa modo não ambíguo e por isso justas) entre nossa vida terrena
troca, mas antes num ato incondicional de auto-entrega. Uma e a vida eterna.
parte se entrega à outra sem estabelecer nenhuma condição, Santo Agostinho sustentava um outro ponto de vista:
a não ser a de que a parte receptora seja reconhecida como o acreditava que a salvação ou a condenação final não dependia
8
poder supremo. As relações desse tipo caracterizam-se por: da retidão humana, mas unicamente da vontade de Deus.
1. unilateralidade: são unidirecionais, na medida em que o A religião oficial da Roma pagã nos últimos séculos de
indivíduo que se entrega busca proteção, apesar de não haver sua existência era uma religião mágica; por detrás de sua
garantia de que sua ação será correspondida, e a ausência de fachada pública, havia muitos cultos religiosos secretos. O
resposta não pode ser motivo para romper as relações; 2. daí sacrifício era a base das relações contratuais com os deuses,
advém a ausência de obrigatoriedade na relação: uma parte e o culto oficial do imperador assemelhava-se a um acordo
entrega tudo, mas a outra pode ou não responder, pode legal com o Estado. Em função dos aspectos mágicos listados
recusar um ofertante valoroso e recompensar alguém sem acima, a "religião" dos romanos de modo algum contradizia
valor (até mesmo alguém que não tenha lugar no sistema ou nem seu senso de legalidade, sofisticado e profundamente
que o tenha violado); 3. não há princípio de equivalência: a arraigado, nem a estrutura do Estado, inteiramente baseada
relação impede a psicologia da troca e não admite nenhum na lei. Do ponto de vista dos romanos, o Cristianismo era um
condicionamento ou convenção em seus valores básicos. movimento fundamentalmente anti-Estado, na medida em
Dessa forma, os meios de comunicação não são signos, mas que era uma religião no sentido exato do termo e
símbolos, cuja natureza impede a possibilidade de uma conseqüentemente não levava em conta os sentimentos da
expressão alienada do conteúdo, e daí impedem também a legalidade formal ou dos direitos contratuais legais. E o
possibilidade de engano ou interpretação; 4. abandono desta forma de consciência, para alguém da cultura
conseqüentemente, as relações desse tipo não são como um romana, era uma negação da própria noção de Estado.
contrato, mas como uma doação incondicional. Os cultos pagãos da antiga Rússia eram claramente
É preciso enfatizar que estamos lidando com um modelo xamânicos, isto é, mágicos. O fato de a introdução do
da psicologia cultural desses tipos de relação. Na realidade, as Cristianismo ter coincidido com a ascensão do estado de Kiev
teve várias conseqüências importantes na área de nossas
discussões. A resultante coexistência de duas fés [dvoeverie]
7
REICHLER, Claude. La Diabolie, la Seduction, la Renardie, l'Ecriture. Paris : 1979.
8
proporcionou o desenvolvimento de dois modelos opostos de
Preferimos poder a bondade, porque é possível cultuar, no sentido religioso, os poderes do demônio.

65 66
relações sociais. As relações entre o príncipe e suas tropas propôs ao lobo uma troca justa: o lobo aceitaria desistir do
pessoais, que precisavam ser formalmente esclarecidas, mau caminho e os habitantes de Gubbio deixariam de caçá-lo
tendiam ao princípio contratual. Esse modelo era o que mais e o supririam de alimento. “Você promete?” E o lobo inclinou
adequadamente refletia o sistema feudal emergente, fundado a cabeça, num claro sinal de que concordava.9 O contrato
no paternalismo e na vassalagem, e todo o sistema de estava concluído e ambas as partes o respeitaram até a morte
direitos e deveres mútuos, e de etiqueta, no qual se apoiava a do lobo.
estrutura ideológica da sociedade cavalheiresca. A tradição do Textos como esse não se encontram nem no folclore
paganismo mágico russo tornou-se uma parte orgânica da russo, nem na tradição literária medieval da antiga Rússia:
nova ordem que emergia da síntese européia entre as um contrato só é possível com o demônio ou seus
instituições tribais dos povos bárbaros e a tradição legal equivalentes pagãos (o contrato entre o camponês e o urso).
romana; pois a tradição romana permanecera firmemente Essa idéia, antes de mais nada, empresta um tom emocional
enraizada nas antigas cidades do império onde as a um contrato como esse – falta-lhe a aura de valor cultural.
comunidades faziam prevalecer seus próprios direitos, um No modo de vida da nobreza ocidental, onde as relações com
complexo sistema de relações legais predominava, e havia Deus e os santos podiam ser moldadas no padrão "suserano-
uma abundância de juristas. vassalo" e sujeitadas a um ritual convencional, similar à
Entretanto, no Ocidente, a consciência contratual, iniciação, à nobreza e ao serviço à dama, o contrato e o ritual
originária da magia no passado remoto, existia disfarçada na que o sela, o gestual, o pergaminho e o selo estão envoltos
autoridade da tradição do império romano e ocupava um numa aura de santidade e obtêm autorização das alturas. Na
espaço ao lado da autoridade religiosa; mas na antiga Rússia antiga Rússia, um contrato era encarado como um negócio
ela era sentida como essencialmente pagã. Essa atitude essencialmente humano ("humano" no sentido oposto a
afetava o modo como a sociedade a avaliava. Na tradição "divino"). A introdução da prática de beijar a cruz quando um
ocidental, um contrato como esse era neutro do ponto de contrato tem de ser ratificado é uma evidência de que sem
vista axiológico: podia ser feito com o demônio (veja-se a essa autorização divina, incondicional e não contratual, ele
vida de São Teófilo, que vendeu a alma ao diabo e mais tarde não estaria suficientemente garantido. Em segundo lugar,
a resgatou pelo arrependimento), mas também com os sempre que se fazia um acordo com um poder satânico,
poderes da santidade e da bondade. No Florilégio de São respeitá-lo era considerado pecaminoso, enquanto que violá-
Francisco encontra-se a conhecida história do acordo entre lo significava salvar a alma de alguém. O convencionalismo da
São Francisco e o lobo selvagem de Gubbio. Tendo acusado o comunicação semiótica verbal é um fator importante nos
lobo de comportar-se "como um vilão e o pior dos tratos com essas forças, pois ambas as partes podem usar as
assassinos", não apenas devorando animais, mas também palavras para enganar. A possibilidade de interpretar uma
atacando pessoas feitas à imagem e semelhança de Deus,
São Francisco concluiu: "Irmão Lobo, quero fazer as pazes
9
entre você e eles [as pessoas de Gubbio]." São Francisco PASSERINI, G. L. (Ed.) I fioretti del glorioso messere Santo Francesco e de suoi frati. Florença: 1903.
p. 58-62.

67 68
palavra de diferentes maneiras (a casuística) servia muito Prisioneiro disse: "As mentiras são para o mundo, não para
mais ao desejo de enganar do que ao desejo de atingir o Deus; não se pode mentir para Ele, nem jogar com o sublime"
sentido verdadeiro (veja-se em Dostoevsky, "Um jurista tem (note-se que mentira [solgati] e jogo [igrati] estão
uma consciência corrompida" [Ablakat – prodazhnaya equiparados).
sovest]). Outro exemplo está no episódio do conto folclórico Eis por que o sistema de relações estabelecido na
10
"O Dragão e o Cigano", quando os dois combinam uma sociedade medieval, um sistema de obrigações mútuas entre
competição de assovios: o poder supremo e os senhores feudais, logo veio a ser
O dragão assoviou tão alto que caíram as folhas de todas as árvores. encarado de forma negativa. Daniel o Prisioneiro assegurava a
"Você assovia bem, meu amigo", disse o cigano, "mas eu assovio seu príncipe que seus conselheiros eram servos infiéis e
melhor. Ponha uma venda nos olhos, senão, quando eu assoviar, eles
trariam sofrimento a seu senhor. Ele os contrastava com o
vão pular fora de sua cabeça!" O dragão acreditou nele, amarrou um
pano em volta dos olhos e disse "Agora assovia!" O cigano pegou um ideal de lealdade: ele próprio não se envergonhava de ser
porrete e com ele assoviou na cabeça do dragão. comparado a um cão. O serviço baseado em contrato é mau
O jogo de palavras que expõe o convencionalismo do signo e serviço. Da mesma forma, Pedro o Grande escreveu uma
transforma o acordo num engano era possível quando se carta agressiva ao Príncipe Boris Sheremetev, que era
lidava com o Diabo, um dragão, um urso, mas impensável suspeito de manter uma simpatia secreta pelos antigos
quando se lidava com Deus ou qualquer santo. Daniel o direitos dos nobres, na qual ele diz: "É como um criado que
vendo seu senhor se afogar, não quer salvá-lo sem antes
verificar se está previsto em seu contrato que ele deve tirá-lo
10
Número 149 em: AZADOVSKY, M. K. et al. (Ed.) Narodnye russkie skazki A. N. Afanas'eva [narrativas
da água."11 Compare-se o que Kurbatov escreveu a Pedro:
do folclore russo coletadas por A. N. Afanas'ev]. Moscou: 1936–9; na edição preparada por A. E.
Gruzinsky (1897 e 1913–14) ele é o número 86. Se um contrato foi feito com um poder do demônio, o
"Desejo servi-lo verdadeiramente, meu soberano, e fielmente,
modo usual de sair dele é através do arrependimento (veja-se The Tale of Savva Grudtsyn). Um como sirvo a Deus."12 A comparação entre o soberano e Deus
exemplo mais complexo pode ser encontrado no apócrifo de Adão: em um texto (de acordo com A. N.
Pypin, ele vem de um manuscrito do Antigo Testamento, mas ele não fornece mais detalhes) Adão faz não é acidental, mas, ao contrário, tem raízes profundas. Na
um contrato com o demônio em troca da cura de Eva e de Caim ("E o demônio disse: 'Dê-me uma
lápide com a seguinte inscrição: 'Em vida, pertenci a Deus, mas na morte, a você.' ' " TIKHONRAVOV, Rússia, muito mais do que no Ocidente, a estrutura de poder
N. Pamyati otrechennoi russkoi literatury [Monumentos da literatura russa não-canônica]. vol. I St.
Petersburg: 1863. p. 16.) Entretanto, a melhor versão que se conhece da história, mais típica, centralizado baseava-se no modelo religioso. O modelo
apresenta Adão concluindo o contrato com o demônio, mas o enganando conscientemente. Depois de
ser expulso do Paraíso, Adão arreia um boi e começa a arar a terra: isomórfico está expresso no Householder's Manual [Manual do
E o demônio chegou e disse: "Não vou deixá-lo trabalhar a terra, pois ela é minha, enquanto o céu e o Chefe de Família/Domostroi]: Deus está no universo, o czar,
paraíso pertencem a Deus... Assine uma declaração de que você é meu, e então você pode trabalhar
minha terra." Adão disse: "A quem quer que a terra pertença, eu e meus filhos pertencemos a ele." em seu reino, e o pai, em sua família: aqui se encontram três
O autor explica, então, que Adão logrou o demônio porque sabia que a terra pertencia ao demônio
apenas temporariamente, e que no futuro Cristo iria se encarnar ("o Senhor desceria à Terra e nasceria
graus da auto-entrega incondicional, que, em seus diferentes
de uma virgem") e redimir a Terra e seus habitantes do demônio através de seu sangue. níveis, comparam-se ao sistema religioso de relações. A idéia
(TIKHONRAVOV, p. 4).
Na tradição da Europa Ocidental um contrato é neutro: ele pode ser bom ou mau, enquanto em sua
variante cavalheiresca especificamente, com o culto do signo, cumprir a palavra é questão de honra. Há
numerosas histórias de nobres que empenham sua palavra a Satanás (a lenda de Dom Juan é uma
inversão dessa lenda: embora rompendo todos os preceitos morais e religiosos, ele cumpre a palavra 11
Pis'ma i bumagi Petra Velikogo [Cartas e Escritos de Pedro o Grande], v. III, p. 265.
dada à estátua do Comendador). Na tradição russa um contrato adquire "força" através de um objeto
12
sagrado que garante que ele será cumprido. Um contrato sem essa autoridade do poder não- SOLOV'EV, S. M. Istoriya Rossii s drevneishikh vremen [A História da Rússia desde os Tempos Mais
convencional da fé não tem "força". Assim, uma promessa feita a Satanás deve ser rompida. Antigos], livro IV. St. Petersburg, col. 5.

69 70
de "servir ao soberano" estava fundamentada na ausência de carneiro e todas as suas roupas polonesas [Polovtsian]
condições entre as partes: de uma parte, espera-se a auto- bordadas.13 Um modelo de comportamento cavalheiresco
entrega total e incondicional, e da outra, o favor. Esse pode ser encontrado na versão russa do poema épico The
conceito de "servir" é derivado da psicologia dos fiadores nas Exploit of Devgeny [a façanha de Devgeny] (traduzido do
terras do príncipe. Assim como o papel dos burocratas, que grego entre os séculos XI e XII): o guerreiro Devgeny decidiu
dependiam pessoalmente do príncipe, se ampliou e se tomar por esposa "a bela filha de Stratigos", cujos
transformou na burocracia de Estado, e, ao mesmo tempo, o pretendentes eram sempre mortos por seu pai e seus irmãos.
papel da tropa remunerada do príncipe se expandiu, o que Quando chegou à corte de Stratigos, ele encontrou a moça
tinha sido a mentalidade da corte do príncipe tornou-se a sozinha, o pai e os irmãos estavam fora. Devgeny poderia
mentalidade da classe servil. Os sentimentos religiosos foram facilmente tê-la raptado, mas ordenou a ela que ficasse em
transferidos para o soberano, e servir ao Estado tornou-se casa e informasse a seu pai sobre o rapto iminente. Stratigos
uma forma religiosa de servir. O mérito passou a ser recusou-se a acreditar nela. Então Devgeny irrompeu pelos
determinado pelo favor: "Se não fosse por seu favor, onde eu portões, entrando até o pátio, e "começou a gritar muito alto,
estaria?" Vasily Gryaznoi, um nobre, membro da oprichnina, chamando Stratigos e seus filhos fortes para saírem e verem
escreveu a Ivan o Terrível. sua irmã sendo raptada" [grifos do autor]. Mesmo assim,
O conflito entre esses dois tipos de psicologia pode ser Stratigos se recusou a acreditar que um guerreiro tivesse
observado em todo o período da Idade Média russa. Enquanto coragem suficiente para desafiá-lo a uma luta. Devgeny,
a psicologia da troca e do contrato cultiva o signo, o ritual e a tendo esperado três horas em vão, raptou sua noiva. O
etiqueta, a mentalidade religiosa do Estado é paradoxalmente sucesso, no entanto, não trouxe alegria a Devgeny, porque
orientada a um só tempo para o simbolismo e a práxis. Mas "senti muita vergonha".14 Finalmente, ele conseguiu sua luta,
isso não deve nos surpreender. derrotou o pai e os irmãos da moça e levou-os como
A cultura cavalheiresca era orientada para o signo. A fim prisioneiros, depois os libertou e mandou sua esposa para
de adquirir valor cultural no sistema, uma coisa devia se casa; então ele voltou novamente para cortejá-la e dessa vez
tornar um signo, isto é, devia ser purificada ao máximo de conquistou sua noiva "com grande honra". A noiva, a luta, o
sua função prática e não-semiótica. Por essa razão, para um casamento, todos esses elementos foram convertidos em
senhor feudal na antiga Rússia, a "honra" estava ligada à signos de honra cavalheiresca e não têm valor em si mesmos,
aquisição de uma boa porção do saque de guerra, ou de mas apenas em termos do significado a eles atribuído. A noiva
grande quantidade de víveres de seu soberano. Entretanto, é valorizada, não em si mesma, mas em função da dificuldade
uma vez obtidos, a lei da honra exigia que esses bens fossem de consegui-la, e não tem valor sem a dificuldade. A luta é
usados de modo a diminuir ao máximo seu valor material, valorizada, não pela vitória enquanto tal, mas porque primeiro
enfatizando dessa forma seu valor semiótico: "Eles começam
a fazer pontes sobre os pântanos e locais lamacentos usando
13
The song of Igor's Campaign, traduzida por Vladimir Nabokov, p. 37.
seus casacos, seus mantos, suas jaquetas de couro de 14
KUZ'MINA, V. D. Devgenievo deyanie [A façanha de Devgeny]. Moscow: 1962. p. 149.

71 72
ela foi vencida de acordo com certas regras, e segundo as tendência ao grau-zero da semioticidade, com a transposição
circunstâncias eram particularmente difíceis. A morte e a do comportamento para a esfera puramente prática.
derrota enquanto tentativas de atingir o impossível são mais Saussure notou a diferença entre o signo convencional e
altamente valorizadas do que a vitória e os ganhos práticos o símbolo não-convencional no pensamento semiótico:
dela resultantes, especialmente se estes foram conquistados Porque é característica dos símbolos o fato de que eles nunca são
através do cálculo, da praticidade ou dos esforços militares de totalmente arbitrários. Não há configurações vazias. Elas apresentam
pelo menos um vestígio da conexão natural entre o sinal e sua
rotina. O efeito era mais altamente valorizado do que a
significação. Por exemplo, nosso símbolo de justiça, a balança,
eficácia. A aventura desesperada de Igor, que com seu dificilmente poderia ser substituído por uma biga.15
pequeno bando tomou a cidade de Tmutarakan, inspira o
Do ponto de vista da consciência simbólica da Rússia
autor de The Lay of Igor's Campaign [a balada da campanha
medieval, o poder é dotado dos traços de santidade e
de Igor] mais do que as ações modestas mas altamente
verdade. Seu valor é absoluto, pois ele é a imagem do poder
efetivas das tropas unidas do príncipe russo em 1183–4. O
celeste e incorpora a verdade eterna. Os rituais que o
cantor de The Song of Roland [a canção de Roland]
envolvem são como os do Paraíso. Diante dele, o indivíduo
compartilha dessas mesmas atitudes.
não é uma parte do contrato, mas uma gota d'água no
O aspecto semiótico do comportamento enfatiza o
oceano. Entregando a ele as demandas individuais, nada se
elemento de jogo: o objetivo de uma ação reside menos em
obtém em troca, exceto o direito à auto-entrega. Após a
seu resultado prático do que no uso correto da linguagem do
batalha de Poltava, Peter Shafirov escreveu de Istambul a
comportamento. Na nobreza da Europa Ocidental, o torneio
Pedro o Grande, defendendo um ataque militar para expulsar
era o equivalente da batalha, enquanto que na Rússia a
Charles XII do território turco: "E mesmo se eles de fato
caçada tinha a função de um torneio na vida de um senhor
descobrirem que os russos estão ao seu encalço, nada
feudal: como uma forma especial de jogo, ela condensava os
acontecerá, a não ser que eu estarei aqui, sofrendo."16
valores semióticos do comportamento militar cavalheiresco.
Diversas outras circunstâncias análogas podem ser citadas. O
Eis por que Vladimir Monomakh listou suas expedições de
ponto chave é que a pessoa de mentalidade "convencional",
caça ao lado de suas façanhas militares, como motivos de
quando diante da obrigação de pagar com a própria vida, via
orgulho equivalentes.
a morte como uma espécie de troca da vida pela glória: "Se
O tipo oposto de comportamento exclui o
um homem é morto no campo de batalha," disse Daniel
convencionalismo: tende a rejeitar o jogo e a relatividade dos
Galitsky a suas tropas, "que assombro isso pode causar?
métodos semióticos e identifica a verdade com uma ausência
Outros morreram inglores em casa, enquanto este morreu
de convencionalismo. O comportamento social não-
convencionalizado pode ser de dois tipos: entre aqueles do
topo da pirâmide social há uma tendência ao simbolismo no 15
SAUSSURE, Ferdinand. Coursein general linguistics, tradução de Roy Harris. p. 68. Na tradução russa
essa observação soa menos categórica [lit. "nunca são inteiramente convencionais" – uslovnyi]. A
comportamento e em todo sistema semiótico, mas entre distinção entre signo e símbolo é questionada por Tzvetan Todorov no seu livro Théories du symbole.
Paris: 1977. p. 9-11ss.
aqueles das camadas inferiores da sociedade há uma 16
SOLOV'EV, op. cit., col. 42.

73 74
gloriosamente."17 Do ponto de vista oposto, em lugar da idéia dos assuntos do Estado (o soberano, entretanto, tinha o
de troca, tem-se a poesia da morte anônima, e a recompensa direito de caçar por prazer). Já no Tale of the Battle on the
é o mergulho do eu no absoluto, do qual não se pode esperar Pyana [história da Batalha no Pyana], a paixão pela caça do
nenhum retorno. Drácula não promete a glória a seus negligente comandante do exército é contrastada com o
soldados, nem associa a morte em batalha à idéia de serviço militar ao Estado. Mais tarde, Ivan escreveu a Vasily
18
recompensa justa; ele apenas espera que eles morram sob Gryaznoi em termos similares, acusando-o de caçar em vez
suas ordens, incondicionalmente: "quem quer que deseje de lutar. Gryaznoi não fez objeção ao fato de ser descrito
dedicar seu pensamento à morte, não o deixem vir lutar ao como um trabalhador (ele tinha escrito para o czar: "O
19
meu lado." Senhor, meu Czar, é como Deus: transforma em grandes as
Porque esse tipo de consciência social estendeu o coisas pequenas"), mas tomou como ofensa esta última
sentido religioso ao Estado, a sociedade, conseqüentemente, reprimenda e escreveu a Ivan dizendo que tinha sido ferido
teve de ceder toda semiose ao czar, que se tornou uma figura em batalha, a serviço de seu soberano, e não caçando.
simbólica, uma espécie de ícone vivo."20 Aos outros membros O século XVIII trouxe mudanças de largo alcance em
da sociedade cabiam as condutas com um valor semiótico todo o sistema cultural russo. Mas esse novo estágio da
zero: tudo o que era pedido a eles era atividade prática (e tal consciência social e da semiótica da cultura foi uma
tipo de atividade continuava a ser muito pouco valorizado. Por transformação do que ocorria antes, não uma ruptura total. A
isso é que Ivan o Terrível referiu-se a seus companheiros mudança mais impressionante na área cultural e no modo de
como trabalhadores [stradniki], rebaixando-os assim ao nível viver foi a mudança na ideologia oficial. O modelo estado-
dos servos do início da sociedade feudal, que não tinham religioso não desapareceu, mas foi transformado de várias
nenhum espaço na semiótica da sociedade.) Dos súditos do formas interessantes: no sistema de valores, o pico e a base
czar esperava-se que realizassem serviços práticos, que mudaram de lugar. As atividades práticas foram elevadas da
tivessem resultados concretos. Se eles se inquietavam com o base para a posição mais elevada na hierarquia de valores. A
aspecto sócio-semiótico de suas vidas e de suas atividades, vida foi des-simbolizada, e os símbolos do passado foram
isso era visto como "indolência", "velhacaria" ou mesmo pisoteados e expostos ao ridículo. Os serviços práticos foram
"traição". Houve uma mudança de atitude significativa no que colocados nos píncaros. A poesia da habilidade, do
diz respeito à caça: tendo sido uma questão de honra, a caça conhecimento utilitário, das ações que não são signos nem
veio a ser vista como um passado vergonhoso, uma distração símbolos, mas valores em si mesmas, contribuiu largamente
para o espírito da reforma de Pedro e para as atividades
científicas de Lomonosov. Osip Mandelshtam considera esse
17
Polnoe sobranie russkikh letopisei. v. II, 2. ed., p. 822. [grifos meus, Yuri Lotman.] espírito como a verdadeira essência do século XVIII:
18
"A morte no campo de batalha é usualmente chamada 'julgamento'."
19
Povest'o Drakule [O conto de Drácula]. Moscow, Leningrad: 1964. p. 127.
20
Porque a autoridade do czar era simbólica e não semiótica, o jogo não era excluído de sua conduta. A
propósito, o elemento do jogo na conduta de Ivan o Terrível era percebido ao mesmo tempo subjetiva e
objetivamente como satânico.

75 76
Sou constantemente atraído por citações do ingênuo e sábio século propagandistas do partido de Pedro, as idéias políticas de
XVIII; e aqui me lembro das linhas da famosa "Epistle on Glass" Puffendorf e Hugo Grotius eram elaboradas através da
[Carta sobre o Gelo], de Lomonosov: tradição russa, apesar de curiosamente refratárias a ela. O
"Pensa impropriamente sobre as coisas, Shuvalov,
poder do czar é visto como uma dádiva divina e justificado
Quem valoriza o Gelo menos do que os Minerais."
Por que esse patos, o elevado patos do utilitarismo, por que essa por referência a São Paulo (Epístola aos Efésios 6,5).
excitação íntima que estimula a meditação poética sobre o destino das Entretanto, ao assumir o poder, o czar entra num contrato
habilidades industriais? Que contraste chocante com a brilhante e implícito que o obriga a governar para o bem de seus súditos.
calorosa indiferença do pensamento científico do século XIX!21
Deixando de ser um símbolo, o czar é como que obrigado a
Lomonosov, escrevendo a Pedro o Grande, destacou que, servir a seus súditos praticamente como estes têm de servi-
apesar de ter "nascido para o cetro, [ele] estendeu suas mãos lo:
para o trabalho". Se toda graduação provém de Deus... esse dito é muito necessário
O ideal do czar-trabalhador devia ser sempre imitado, para nós e agradável para Deus, o próprio alto grau Dele exige que eu
tenha o meu, você o seu e assim por diante, para todo o mundo. Se
de Simeon Polotsky (veja-se seu poema "Fazer" [Delati], no você é czar, deve governar, assegurando que não haja infelicidade
livro The Many-Flowered Garden [o Jardim Repleto de Flores]) entre o povo, que o governo seja justo e que a pátria esteja protegida
ao "Stanzas" [estrofes], de Pushkin. Mas esse sistema contra os inimigos; se você é um senador, esteja atento aos seus
deveres do mesmo modo. Além disso, você deve falar de forma
invertido, apesar de diferir da forma anterior, também é simples, pesar tudo cuidadosamente, como sua vocação requer de
semelhante a ela. O governo de Pedro não foi a incorporação você, e cumprir seu dever com energia.22
de um símbolo, uma vez que ele representou em si mesmo a O sistema nacional de honras e graus que foi introduzido
verdade final e, não tendo mais autoridade do que ele próprio, no século XVIII e que se sustentava no princípio da nobreza
não foi representativo nem a imagem de qualquer outra coisa. incondicional e inata baseada no sangue, era também
Mas como o governo centralizado anterior a Pedro, ele exigia fundado na noção de troca de mérito por signos. Em teoria, o
dos súditos sua fé e sua total fusão com ele. Os súditos se princípio da equivalência deveria ser estritamente observado
nessa troca, mas na prática ele era infringido. Os elaborados
entregavam a ele. Formou-se uma religião secular do
estatutos e o sistema de promoção por graus baseavam-se
governo, e as "atividades práticas" deixaram então de fazer numa sucessão restrita à duração do serviço. Alguém que
parte da experiência empírica extra-semiótica. tivesse sido preterido numa recompensa podia, de acordo
Houve uma mudança radical na importância relativa da com os costumes e as leis da época, chamar a atenção para si
semiótica do contrato na estrutura geral da cultura do e exigir o que lhe era devido, listando seus direitos: isso
período. Tendo sido quase totalmente destruída junto com prova que, na consciência da época, a recompensa não era
toda a herança cultural da antiga Rússia medieval, a noção de um favor extra-legal, mas uma troca de obrigações entre o
contrato encontrou um suporte poderoso na influência cultural governo e seus funcionários, regulamentada e estabelecida
do Ocidente. Nos discursos de Feofan Prokopovich e de outros por lei.

21
MANDEL'SHTAM, Osip. The nineteenth century. In: HARRIS, Jane Gary, ed. The complete critical
22
prose and letters. Ann Arbor, 1979. p. 139. PROKOPOVICH, Feofan. Sochineniya [trabalhos]. Moscow, Leningrad: 1961. p. 98.

77 78
O espírito contratual que permeava a cultura do século sígnico como tal. Convenções, rituais e a arbitrariedade do
XVIII impôs às instituições tradicionais uma reavaliação (ou signo, tudo isso era enfatizado. E a cultura fechada da
mesmo uma redefinição) de atitudes. Embora todos nobreza, que se desenvolvia rapidamente, cultivava a etiqueta
soubessem que a Rússia era uma autocracia e que fazia parte e a teatralização da vida. Estabeleceu-se uma semiótica da
da ideologia oficial e da prática governamental reconhecer honra pessoal, e os duelos se tornaram freqüentes, como um
esse fato (como no uso oficial dos títulos), era considerado
ritual para satisfazer a honra ofendida.
deselegante reconhecê-lo. Em sua "Instrução" [Nakaz],
O culto emergente do dândi teve lugar na associação
Catarina a Grande argumentava que a Rússia era uma
convencional entre o conteúdo e a expressão dos signos em
monarquia, não uma autocracia, isto é, era governada por leis
e não arbitrariamente. Alexandre I enfatizava repetidamente sua base. As pessoas passaram a exigir dicionários para
que a autocracia era uma infeliz necessidade que ele explicar os significados das formas convencionais, em
pessoalmente não aprovava. Para ele, como para Karamzin, a particular a linguagem do amor cortês. O Lexicon of Love
autocracia era um fato, não um ideal. A reavalização foi [léxico do amor] de Drieux du Radier, que foi adaptado para o
especialmente marcante na questão dos direitos da nobreza. costume russo por A. V. Khrapovitsky, foi elaborado nos
Já em 1730, Kantemir, em sua segunda sátira, abordava os moldes de um dicionário normal (a palavra, um exemplo
privilégios da nobreza como um pagamento adiantado numa frase, depois o verbete):
concedido aos nobres pelos méritos de seus pais, que se
dedicaram até a morte ao serviço pessoal ao Estado. Em
Desassossego Estou sofrendo um desassossego mortal.
escritores como Sumarokov, essa idéia se transformou em
Significa: “Estou obedecendo às regras aceitas
uma teoria da troca de serviços pessoais em retribuição às e apresentando um aspecto semelhante ao
honras obtidas pelos méritos dos ancestrais. O nobre que meu ardor.”
deixasse de realizar esses serviços era considerado um
impostor, que recebe e não dá nada em troca: Falar Se uma mulher bonita disser amavelmente:
Você está falando bobagem, isso significa:
O título de nobreza flui em nosso sangue de geração a geração. “Embora eu queira muito um amante, estou
Mas deixe-nos perguntar por que é assim conferida. com medo da sua tendência a ser indiscreto
Se a vida de meu avô foi dedicada à sociedade, (...).” Lembre-se com quem está falando, ou
A ele coube receber o pagamento, a mim, um adiantamento: Eu não entendo isso, e outras expressões como
E eu, ao receber esse adiantamento por mérito de outro, essas têm o mesmo significado.
Não deveria deixar seus feitos nobres terminarem com ele...
Como incentivo, recebi um bom adiantamento,
Tormento Estou sofrendo um tormento intolerável
É certo que eu tenha fartura sem que eu mesmo tenha trabalhado?23 normalmente significa: “Estou fingindo estar
apaixonada, e, como você sempre vai ao
Um processo oposto estava em curso, contra essas
teatro, pensa que as pessoas não estão
condições. Juntamente com as tendências a racionalizar a apaixonadas a menos que sofram um
troca semiótica, a enfocar seu conteúdo, havia um fluxo tormento. Para agradá-lo, eu preciso usar
contrário, um impulso irracional para enfatizar o sistema essas palavras apaixonadas.” 24

24
DU RADIER, Dreux. Lyubovnyi leksikon [Léxico do amor]. Traduzido para o russo a partir do francês
23
SUMAROKOV. Stikhotvoreniya [poesia]. [Leningrad]. 1935. p. 203. [Dictionnaire d’amour. The Hague: 1741.] por A. V. Khrapovitsky. 2. ed. 1779. p. 9, 18, 42.
79 80
A linguagem das pintas precisava dos mesmos cortina sobre ela. Havia mais nessa cultura do que uma série
metatextos para ser compreendida: de caricaturas que se encadeiam a partir de Korsakov, no
Uma pinta de veludo (...) na fronte indica doença, uma pinta de tafetá livro The Negro of Peter the Great [o negro de Pedro o
no lado esquerdo da testa significa orgulho, debaixo de um dos cílios Grande], de Pushkin, a Slyunyai, no Trumf [trunfo], de
inferiores denota lágrimas, sobre o lábio superior, beijo, sobre o
Krylov.
inferior, inclinação, e assim por diante. (...) A chave para esse código,
como a de um ministro [isto é, um embaixador, um diplomata – Yuri Os tensos conflitos sociais do final do século XVIII
Lotman] não é fixa; as palavras são arbritariamente selecionadas e provocaram outras mudanças na estrutura das linguagens da
trocadas, por razões de segurança.25
cultura. O elo íntimo entre o mundo dos signos e a estrutura
Havia a linguagem dos fãs. Os bailes de máscara eram da sociedade desacreditava o signo como tal aos olhos dos
populares, trazendo um elemento de relatividade, mesmo iluministas. Seguindo Voltaire, eles submetiam o que Pushkin
naquilo que pareceria uma oposição natural: os homens chamava de "preconceitos da antiguidade" a uma crítica
vestidos de mulher e as mulheres, de homem.26 Ao mesmo rigorosa, que na prática significava uma revisão do acervo
tempo, para a mentalidade popular o signo imotivado era inteiro das idéias semióticas acumuladas através dos séculos.
identificado com o Demônio. Na literatura moralista o Rousseau, ao expor a falsidade do mundo civilizado concluiu
relativismo da cultura dândi era popularmente associado com que ela é derivada do convencionalismo da ligação conteúdo-
o ateísmo e com o relativismo moral. expressão na linguagem. A oposição que ele propunha entre o
Seria um erro, entretanto, olhar a cultura dândi do mundo, de um lado, e a entonação, a expressão gestual e
século XVIII com os olhos de seus críticos e ver nela apenas facial, de outro, era de fato uma antítese entre o signo
uma feia anomalia social. Porque a consciência da autonomia imotivado e motivado. Mas enquanto lutava pela liberação dos
do signo emergiu das profundezas dessa cultura, que veio a signos, Rousseau baseava seu ideal social no contrato social,
ser um estímulo importante na formação da cultura pessoal isto é, na idéia da troca equivalente de valores entre as
da época do Romantismo. Trediakovsky, em seu livro Voyage pessoas; mas isso é impossível sem os signos convencionais.
to the Island of Love [viagem à ilha do amor] (1730), marca o Ao mesmo tempo que rejeitava a semiótica social, Rousseau
início dessa cultura, e Karamzin, em suas Letters of a Russian queria manter seus resultados.
Traveller [cartas de um viajante russo] (1791-2), cerra a A ideologia maçônica se desenvolveu no pólo oposto. Os
maçons eram contrários à teoria contratual da sociedade;
contra ela, eles defendiam a idéia da auto-entrega a algum
25
Lyubov, Knizhka zolotaya [amor, o livro de ouro], de GL[eb] Gr[omov]. St. Petersburg: 1798. p. 134-
princípio absoluto (sua ordem, ou a humanidade ideal, ou
5. Deus) e a fusão do eu com o absoluto sem pensar em
26
Veja-se a nota de Catarina a Grande [original em francês]:
"Tive uma idéia muito divertida. Precisamos organizar um baile no Hermitage. (...) Vamos pedir às recompensa. Mas, apesar de subjetivamente orientados para
mulheres que venham en deshabillé e sem anquinhas e sem grandes perucas. (...) No salão teremos
quatro saletas de roupas e máscaras de um lado e quatro saletas de roupas e máscaras do outro, um
a Idade Média, eles permaneciam homens do século XVIII.
lado para os homens e o outro para as senhoras. (...) Nas saletas com as roupas de homens poremos
um cartaz dizendo 'Vestiário para senhoras', e nas saletas com as roupas de senhoras, um cartaz
Seus emblemas não eram símbolos medievais, mas uma
dizendo 'Vestiário para cavalheiros'." (Sochineniya imp. Ekateriny II [Trabalhos da Imperatriz Catarina linguagem secreta convencional para os iniciados, a qual, na
III]. St. Petersburg: 1907. v. XII, p. 659.

81 82
escala semiótica, estava mais próxima da linguagem das Rousseau diz que uma vez que os grandes governantes eram
pintas do que do simbolismo medieval. originalmente escolhidos pelos povos para assegurar seu bem-estar,
então, ao criar o contrato com os governantes escolhidos, o povo,
Essas duas tentativas de escapar do convencionalismo
abrindo mão de seus direitos, não podia abrir mão de sua liberdade
lingüístico acabaram por falhar: o século XVIII acabou com natural, uma vez que sem ela não pode haver bem-estar; e, continua
dois extravagantes bailes de máscara, um "romano" na Paris o escritor, se houvesse um povo suficientemente descuidado para abrir
mão de sua liberdade natural, deveria ser considerado louco, e assim o
revolucionária e um cavalheiresco na corte de Paulo I. contrato seria invalidado.28

Essa tradução, no estilo pesado habitual de Shcherbatov, foi
O destino das idéias de Rousseau na Rússia mostra a
feita a partir da conhecida passagem do capítulo 4 (“Sobre a
interação dos princípios contratual e não-contratual na cultura
Escravidão”) do Contrato Social de Rousseau:
russa. As idéias dele exerceram influência na Rússia mais
profundamente e por muito mais tempo do que na França. Os Dizer que um homem se entrega livremente é dizer algo absurdo e
inconcebível; um ato como esse é nulo e é ilegítimo, a partir do
vários paradoxos inerentes às idéias do "cidadão de Genebra",
simples fato de que aquele que o pratica está fora de si. Dizer o
puderam ser amplamente interpretados de acordo com a mesmo de um povo inteiro é supor um povo constituído de loucos; e a
dinâmica interior da cultura russa. No século XVIII, Rousseau loucura não cria o direito.29
significava para o leitor russo o Discurso sobre as Ciências e
Shcherbatov estava tão seguro de que o contrato era a única
as Artes (1750), La Nouvelle Héloise [Júlia ou a Nova Heloísa]
forma de justificar a sociedade civil que ele omitiu
(1761), Emile [Emílio] (1762), mas sobretudo Do Contrato
completamente a oposição importante para Rousseau entre a
Social (1762). A influência do último foi enorme, e as idéias
das origens contratuais da sociedade estavam subjacentes a idéia de troca de direitos entre indivíduo e sociedade, e a idéia
todo pensamento político do último terço do século XVIII. de auto-entrega sem recompensa, a qual do ponto de vista de
Radishchev, que era um seguidor de Helvetius, quando se Rousseau era louca.
volta para questões de Sociologia e Direito, imediatamente se Para a geração dos dezembristas, Rousseau ainda era
torna um rousseauísta. Absolutamente contrário a associado à idéia do contrato social, mas em meados do
Radishchev, o príncipe M. Shcherbatov, um aristocrata século XIX houve uma mudança interessante. Tolstoy, por
racionalista, também faz referência ao Contrato Social. exemplo, cujas idéias eram grandemente influenciadas por
Argumentando contra a Instrução de Catarina a Grande,27 ele Rousseau e que em sua juventude levava um retrato de
escreveu: Rousseau no peito, atrás de uma cruz, recordava, na velhice,
que conhecia todos os trabalhos de Rousseau, inclusive seus
trabalhos musicais, quase de cor. Entretanto, as idéias do
Contrato Social não deixaram nenhum traço em sua mente.

27
A "Instrução" era formalmente a instrução da imperatriz para os representantes da comissão da nova 28
SHCHERBATOV, M. M. Neizdannye sochineniya [trabalhos inéditos]. [Moscow]:1935. p. 23.
constituição (1767), mas de fato era uma declaração, amplamente divulgada, das idéias do Iluminismo
29
sobre a monarquia. Catarina, ao redigir a Instrução, baseou-se amplamente (sua própria expressão era ROUSSEAU, J. J. The social contract and discourses. Tradução de G. D. H. Cole. Revisado e
que ela as "roubou") nas idéias dos iluministas, em particular Montesquieu e Beccaria. comentado por J. H. Brumfitt and John C. Hall. Everyman classics, 1988. p. 186.

83 84
Para Tolstoy, Rousseau era um contestador da civilização e da Um estranho espírito de desonestidade e velhacaria circula em todas
desigualdade, o autor de idéias pedagógicas, o inimigo da as veias do Estado. O roubo através de arma é mais raro entre vocês
porque vocês são tão gentis quanto corajosos; mas o roubo por
falsidade em todas as suas manifestações, o perseverante
velhacaria é freqüente. Compre um diamante e ele terá uma
autor das Confissões. De outro ponto de vista, Dostoevsky era imperfeição; compre um fósforo e ele não terá enxofre. Esse espírito,
um apaixonado por Rousseau, atacando e denunciando-o com que pode ser encontrado em todos os canais da administração, causa
um prejuízo imenso.30
paixão e com uma espécie de respeito ciumento, e o que ele
tinha em mente eram sempre as Confissões. A idéia de Os estrangeiros, quando visitavam a Rússia, tendiam a
contrato era profundamente estranha ao modo de pensar de acusar os mercadores russos de desonestidade e fraude.
Dostoevsky e para ele a "auto-entrega sem recompensa" não Embora paradoxalmente, a causa estava subjacente na
era loucura, mas a norma para o comportamento religioso. atitude dos mercadores em relação ao contrato como tal: a
oportunidade de fraudar um "estrangeiro" (e os contratos
É interessante notar que a geração dos niilistas de
eram pensados como um modo de relacionar-se com
1860–70, que proclamava o materialismo e o ateísmo e
estrangeiros) parecia ser tida como certa. A fraude nesse caso
rejeitava a idéia de auto-entrega à Verdade vinda de Deus,
era como as trapaças no folclore do mercador trapaceiro. A
logo encontrou um outro objeto ao qual se entregar: a idéia
atitude popular com relação aos acordos entre eles próprios
deificada de Povo. Não surpreende que Máximo Gorki se era completamente diferente: a fraude era considerada um
referisse aos escritos dos Narodniks como "a escritura pecado grave, mas aí não era necessário um contrato, em seu
sagrada sobre o camponês". lugar havia confiança. Uma luz fascinante é lançada sobre isso
Por outro lado, no pensamento popular sobre os direitos, pelas memórias de um servo que viveu na primeira metade
as idéias de contrato e troca estavam intimamente ligadas à do século XIX, N. Shipov. Essa extraordinária história de vida
idéia de fraude, uma vez que se concebia uma das partes conta de um servo que se tornou milionário e que pagava a
contratantes como o demônio ou seus substitutos: o mestre, seu senhor, o proprietário de terras Saltykov, uma quantia
um "alemão", a quem sempre se podia fazer um juramento superior a 5.000 rublos por ano para quitar suas obrigações
sem compromisso. Isso explica por que o mercador, no servis.31 Shipov era um homem de energia incansável e
folclore, está sempre colocado no papel de vilão. Mas pode-se muitos dons. Sua história coloca-nos no mundo dos servos
que eram mais ricos do que os proprietários das terras onde
acrescentar a essa percepção as inúmeras reclamações dos
trabalhavam, e que tinham negócios e possuíam fábricas. Mas
estrangeiros contra a desonestidade dos mercadores russos.
Um exemplo pode ser extraído da carta de Joseph de Maitre
ao príncipe Peter Kozlovsky:
30
MAISTRE, Joseph. Lettres et opuscules inédits. Paris: 1851. v. I, p. 335.
31
"Istoriya moei zhizni i moikh stranstvovanii. Rasskaz byvshego krepostnogo krestyanina Nikolaya
Shipova (1802–1862)" [A história de minha vida e viagens. Contada pelo moldador Servo Nikolai
Shipov (1801–1862)”]. In: KARPOV, V. N. Vospominaniya Nikolay Shipova. Istorya moei zhizni [as
memórias de Nikolai Shipov, A história de minha vida]. 1933. p. 391. Para uma comparação, nos
estados de A. P. Vorontsov, que estavam numa posição geográfica semelhante na mesma época, os
camponeses pagavam em média 25–30 rublos por ano (INDOVA, E. I. Krepostnoe khozyaistvo v
nachale XIX veka. Po materialam votchinnogo arkhiva Vorontsovykh [A economia servil no início do
século XIX, a partir dos documentos do Arquivo Estadual de Vorontsovs]. Moscow: 1955. p. 88.

85 86
a propriedade deles é a propriedade das pessoas que não têm Essa objeção parece-me ser a melhor confirmação de
direito à propriedade e que não têm garantias legais de minhas idéias. É claro, a república mercantil, membro da
qualquer espécie. Assim, todas essas operações financeiras Hanseatic League [liga hanseática], onde até mesmo a alta
tão consideráveis eram fundadas na confiança e não na classe feudal era formada pela aristocracia de comerciantes
salvaguarda da lei. Ainda que a qualquer momento o urbanos, tinha uma atitude com relação ao contrato diferente
proprietário da terra pudesse tomar tudo ("Quem sabe? Tudo
do resto da Rússia, e especialmente Vladimir-Suzdal, fora do
podia acontecer com um servo," era a observação melancólica
qual se estendia o reinado de Moscou. É claro que estamos
de Shipov), todos os seus negócios, muitas vezes envolvendo
lidando com tendências tipológicas, que sempre, para usar a
milhares de rublos, eram realizados com base na confiança
expressão de Hegel, "são compreendidas através da não-
pessoal e com tranqüilidade. Certamente havia casos de
fraude e de violação da confiança, mas eram severamente compreensão" e apontam para uma tendência e não para cem
condenados como imorais. por cento dos fatos. Sem alguns elementos do contrato não
█ pode existir sociedade. Mas o que nos interessa é outra coisa:
Para concluir, podemos observar como essa oposição como uma sociedade valoriza uma ou outra categoria? Que
tipológica, que varia de acordo com as condições do meio e da lugar ela atribui a essa categoria, na hierarquia de valores?
época, permanece ainda subjacente numa invariante. Como
resultado disso, para se compreender o conteúdo real dessa
categoria histórico-semiótica (nesse caso a noção de
contrato), é necessário estudá-lo tanto do ponto de vista
tipológico quanto histórico.
Muito recentemente, a oposição proposta por nós entre
contrato e auto-entrega na cultura da antiga Rússia foi
colocada em questão pelo medievalista Ya. S. Lur'e. Escreve
ele:
Se esta observação tem alguma base, restringe-se à Rússia de
Vladimir-Suzdal, a partir da segunda metade do século XIII. A partir
do século XII a organização política de Novgorod, um dos estados mais
importantes na antiga Rússia, caracterizou-se precisamente pelo
princípio do contrato: o contrato, selado em ritual, entre o veche
[assembléia popular] e a administração da cidade, por um lado, e os
príncipes que eram convidados a ir a Novgorod, por outro.32

32
LUR'YE, Ya. S. Russkie sovremenniki Vozrozhdeniya [os contemporâneos russos do Renascimento].
Leningrad: 1988. p. 27.

87 88
SOLOV'EV, S. M. Istoriya Rossii s drevneishikh vremen [The History of Russia
Referências form the Most Ancient Times], livro IV. St. Petersburg, col. 5.
SUMAROKOV. Stikhotvoreniya [Poetry]. [Leningrad] 1935. p. 203.
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REICHLER, Claude. La Diabolie, la Seduction, la Renardie, l'Ecriture. Paris :
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[Moscow]: 1935. p. 23.
Sochineniya imp. Ekateriny II [Works of the Empress Catherine III]. São
Petersburgo: 1907. v. XII, p. 659.
89 90
91 92

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