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ANAIS – XII Colóquio de História e Imagens

ISSN 2447 -6676


ANAIS - XII COLÓQUIO DE HISTÓRIA E IMAGENS
IMAGENS DECOLONIAIS

ANAIS

Corpo Editorial/ Organizadores


Heloisa Selma Fernandes Capel
Anna Paula Teixeira Daher
Fernando Martins dos Santos

Realização
GEHIM – Grupo de Estudos de História e Imagens/CNPq/UFG
Grupo de Pesquisa História Indígena e História Ambiental: interculturalidade críti-
ca e decolonialidade/CNPq/UFG

Parcerias/Participação
LUPPA/UEG
GETESPP/IFG
UPM – Universidade Presbiteriana Mackenzie/SP
UFTM – Universidade Federal do Triângulo Mineiro/MG
UFU – Universidade Federal de Uberlândia/MG

Apoio
PPGH – Programa de Pós-Graduação em História/UFG
Comissão Organizadora
Heloisa Selma Fernandes Capel
Elias Nazareno
Geraldo Witeze Jr.
Anna Paula Teixeira Daher
Fernando Martins dos Santos

Projeto Gráfico
Debora Taiane

ISSN
2447-6676

Periodicidade: Anual

Idiomas: Português/ Inglês/ Francês/ Italiano/ Espanhol

Ano: 2022

Universidade Federal de Goiás


Campus II – Samambaia
Faculdade de História
Caixa Postal 131 - CEP 74001-970

Revisão de responsabilidade dos próprios autores


TEXTOS COMPLETOS
ANAIS – XII Colóquio de História e Imagens

ISSN 2447 -6676

SUMÁRIO

Ana Carollina Paschual Gomes (UFTM)


Cinema e Imagens: Percepções sobre o racismo norte-americano em ‘Olhos
que Condenam’ (2019).
..................................................................................................................06

Ana Rita Vidica (UFG), Guilherme Talarico (UEG) e Rafael de Almeida (UEG)
Foto na rua: um retrato dos fotógrafos ambulantes de Goiânia - GO.
..................................................................................................................16

André Fernandes Zanoni (UPM)


Queer em transformação: perspectiva decolonial e produção acadêmica brasi-
leira.
..................................................................................................................30

Anna Paula Teixeira Daher (UFG)


Euclides da Cunha e a construção de identidades colonializadas.
..................................................................................................................43

Augusto Vespucci (PPGH/UFG)


A concepção de Natureza nas gravuras de Johannes Stradanus: um olhar atra-
vés da Interculturalidade Crítica.
..................................................................................................................53

Bárbara Aparecida Costa Falleiros (UFTM)


Articulações entre Elifas Andreato e Tom Zé: um estudo do álbum “Estudando
o Pagode” (2005)
..................................................................................................................72

Denize Maria dos Santos Freitas (UEG)


Preservando patrimônios por trás e através dos panos: memória e preservação
das vestes da Procissão do Fogaréu na Cidade de Goiás.
..................................................................................................................84

Divina Luciane Fedrigo (UEG)


A arte dos Carapinas: A visibilidade da fabricação dos carros bois como patri-
mônio vivo dos goianos.
.................................................................................................................101

Eliézer Cardoso de Oliveira (UEG)


Memorial em homenagem às vítimas do incêndio no Centro de Internação Pro-
visória de Menores Infratores em Goiânia.
.................................................................................................................113
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Fernando Martins dos Santos (UFG)


Preconceito e injustiça na sociedade colonial: o caso da escrava de Veiga Valle.
.................................................................................................................125

Gabriela Chaves (UFTM)


A obra fotografica de Vivian Maier a partir dos sentidos construídos no proces-
so de recepção e circulação.
.................................................................................................................137

Gabriela Oliveira Guiraldelli (UFTM)


Teresinha Soares e a Mulher Crucificada (1966): corpo, gênero e sexualidade na
construção da narrativa histórica da Ditadura Militar brasileira.
.................................................................................................................153

Haroldo Nélio Peres Campelo Filho (UFG)


Vivências dos Mitos no Espaço Cultural Vila Esperança/Escola Pluricultural Odé
Kayodê.
.................................................................................................................163

Jacqueline Siqueira Vigário (UFG)


Humanismo, dignidade e aculturação na estética de Nazareno Confaloni.
.................................................................................................................175

Janaína Ferreira Fernandes (IFG)


É índio que chama? Performances visuais na Escola Indígena Maria Venância.
.................................................................................................................184

Junior Sebastião Castanheira Rodrigues (UFTM)


A burguesia nacional e a classe média brasileira na encenação de O Rei da Vela
pelo Teatro Oficina (2017).
.................................................................................................................198

Ludimila Stival Cardoso (Centro Universitário de Goiás) e Sélvia Carneiro de Lima


(IFG)
A caneta como flecha e os dedos como grito: autorepresentação étnica na lite-
ratura indígena contemporânea no Brasil.
.................................................................................................................212

Maria Imaculada Correia de Miranda (UFG)


Imagens de diálogos interculturais presentes na UFG e UFT.
.................................................................................................................227

Mauro Alves Pires (UFG)


Imagens do preconceito e discriminação social: o caso da defesa do novo na
Escola de Aprendizes Artífices de Goiás (1930-1935).
.................................................................................................................224
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Miguel Lúcio dos Reis (UFU)


Continuidades descontínuas: imagens sobreviventes em A Redenção de Cam
(1895).
.................................................................................................................270

Nayara Crístian Moraes (UFG)


Figuras do feminino na voz de Ely Camargo.
.................................................................................................................288

Robson Nunes da Silva (UFG)


A Revolução Zapatista e Villista de ontem e de hoje (1994-2008): redenção e re-
paração na perspectiva fílmica de Francesco Taboada Tabone.
.................................................................................................................302

Tiago Varges Silva (UFG)


Imagens decoloniais: arte funerária nos cemitérios amapaenses.
.................................................................................................................316

Victor Hugo Basílio Nunes (UFG)


Encantaria maranhense: o Terecô de Codó-MA e o campo religioso afro-brasi-
leiro.
.................................................................................................................328

Vinícius Machado Papini Pinheiro (UFTM)


Teatro de rua e linguagem popular: a estética da montagem de “Romeu e Julie-
ta” do Grupo Galpão (1992).
.................................................................................................................344
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CINEMA E IMAGENS: PERCEPÇÕES SOBRE O RACISMO


NORTE-AMERICANO EM “OLHOS QUE CONDENAM” (2019)

Ana Carollina Paschual Gomes1

A minissérie, “Olhos que Condenam”, produção de um caso real que ocor-


reu em 1989, teve sua estreia em maio de 2019 na plataforma de streaming Ne-
tflix. Ao longo de seus quatro episódios, acompanhamos a história de um dos
casos mais emblemáticos de racismo na recente história norte-americana que
envolve a condenação e a prisão de cinco jovens negros do bairro do Harlem sob
a falsa acusação de estupro de uma mulher no Central Park. A série vai se desen-
volvendo sobre a história que revela um dos maiores erros do sistema judiciário
norte-americano. A narrativa começa exatamente na noite de 19 de abril de 1989,
quando os cinco jovens protagonistas — Antron (Caleel Harris), Yusef (Ethan He-
risse), Raymond (Marquis Rodriguez), Kevin (Asante Blackk) e Korey Wise (Jharrel
Jerome) — participavam de uma “arruaça”2 no Central Park com outros ado-
lescentes. Na mesma noite, Patricia Meili (Alexandra Templer) foi estuprada no
local. Os cinco jovens estavam no meio de um grupo de adolescentes presentes
no parque (composto por vinte e cinco jovens negros e latinos), e quando parte
do grupo passa a cometer delitos como, por exemplo, bater em ciclistas no par-
que e apedrejarem um homem em situação de rua; a polícia foi acionada e parte
do grupo detido e encaminhado para a delegacia. Horas mais tarde, Patricia é
encontrada desacordada, brutalmente espancada e estuprada em uma das tri-

1 Graduanda em História (Licenciatura) pela UFTM. Este texto é fruto das discussões realiza-
das no interior do Projeto de Iniciação Científica “Entre os olhos que veem e os que condenam: um
estudo histórico sobre o racismo norte americano ressignificado nas plataformas de streaming.
‘Olhos que Condenam’ (DuVernay: 2019)”, financiado pelo CNPq/UFTM e sob a orientação do Prof.
Dr. Rodrigo de Freitas Costa.

2 Termo utilizado na série durante o depoimento de um dos adolescentes negros que acaba
por deixar a polícia confusa sobre seu significado por não conhecer o termo.

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lhas do parque e os adolescentes, que aguardavam os pais ou responsáveis para


serem liberados, passaram automaticamente a serem suspeitos do crime contra
a corredora.

Na delegacia, vemos como a promotora a promotora Linda Fairstein (Fe-


licity Huffman) passa por cima da lei e vai contra a ausência de indícios e pro-
vas para criar a narrativa que lhe convém: de que os jovens — mesmo sem se
conhecerem — praticaram juntos o abuso sexual. Para compor sua narrativa, a
promotora escolhe aleatoriamente quatro jovens do grupo, fazendo com que os
agentes os pressionem, que na época tinham menos de 16 anos, até obterem
uma confissão, sem a presença dos pais ou de advogados. Fica a cargo de Korey,
o único com 16 anos completos — o que nos Estados Unidos quer dizer que um
adolescente já pode responder criminalmente por crimes hediondos –, unificar
essa narrativa. Para que fosse possível compreender a construção e os desdobra-
mentos da produção, o trailer da série foi exibido para compor o debate sobre a
construção das cenas, chamando a atenção para o uso de cores, planos de câ-
mera, iluminação e sons.

Quando falamos sobre planos e ângulos cinematográficos, é preciso des-


tacar que a noção de enquadramento é, provavelmente, a mais importante
linguagem cinematográfica. Enquadrar é decidir o que faz parte da produção
em cada momento de sua realização; é, também, determinar o modo como o
telespectador perceberá o mundo que está sendo criado pela série. Já as co-
res são fundamentais para transmitir diferentes sensações para o espectador,
conseguindo, inclusive, acentuar uma sensação ou emoção que pretende ser
transmitida. Também é capaz de demonstrar o clima de uma cena e até mesmo
o estado emocional de uma personagem. Entretanto, o uso das cores tem seus
dois lados da moeda: nem sempre uma cor transmite só sensações positivas ou
só negativas, elas dependem, fundamentalmente, do contexto escolhido para
serem usadas e também do apoio de outras cores presentes na cena. Nas cenas
dos interrogatórios presentes na série, por exemplo, as cenas têm como cor pre-
dominante o azul, uma cor fria, que aponta para sentimentos mais introspecti-
vos, como tristeza, solidão, depressão e passividade.

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A iluminação, se a princípio, servia apenas para iluminar, dar perspectiva e


melhorar a imagem, ao longo do tempo, se transformou e encontrou outros sen-
tidos mais profundos para aperfeiçoar suas técnicas. A iluminação também faz
parte das peças que compõe a manipulação das sensações e narrativa, uma vez
que uma de suas funções mais básicas é permitir que vejamos ou não certa área
durante as cenas. Por exemplo, o contraste de sombras e luz é capaz de guiar
o olhar do espectador no quadro. Por fim, mas não menos importante, temos
o som. Imagem e som são dois elementos indissociáveis na experiência audio-
visual, contudo, enquanto a imagem sempre chama a atenção do espectador,
é comum que o som muitas vezes não seja notado pelo público em seu papel
capital no que tange a construção das sensações em que o próprio espectador
vivencia em frente a uma tela. Alternar determinados sons durante uma cena
altera também as sensações de quem assiste e, as vezes, a falta de som duran-
te uma cena chama ainda mais atenção do que a presença dele. Há uma cena
no segundo episódio de “Olhos que Condenam”, após o veredito do julgamento
onde os adolescentes são declarados culpados, que podemos ver a imponência
do som ao dar o tom para as cenas que passam em uma sequência sem diálogo.

E falar sobre a produção da série é falar sobre a própria diretora, Ava DuVer-
nay, uma mulher negra, roteirista, diretora, produtora e amplamente conhecida
da área do cinema pela produção de histórias de pessoas negras e pelo engaja-
mento nas causas sociais da população negra. Conhecida por seu trabalho em
diversos longas, foi a primeira mulher negra a ganhar o prêmio de Melhor Dire-
ção no Festival Sundance de Cinema pelo filme “Middle of Nowhere” (2012) e,
poucos anos mais tarde, também se tornou a primeira diretora negra a ser indi-
cada para um Globo de Ouro e para o Oscar de Melhor Filme, por seu trabalho
em “Selma: Uma luta pela Igualdade” (2014). Ava é ativista do movimento negro
nos Estados Unidos e tal ativismo é perceptível não apenas nas obras que pro-
duz mas também na maneira como se posiciona sobre determinados assuntos,
como, por exemplo, em 2016, quando DuVernay e o ator David Oyelowo (que in-
terpretou Martin Luther King Jr. no filme “Selma”), ajudaram a estimular a cam-
panha #OscarsSoWhite3 (#OscarTãoBranco, em tradução livre) que exige maior

3 #OscarsSoWhite (#OscarsTãoBrancos, em inglês) foi uma polêmica campanha que surgiu

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diversidade em Hollywood.

Outro destaque em sua lista de projetos é “A 13ª Emenda” (2016), uma par-
ceria também com o canal de streaming Netflix, indicado a Melhor Documen-
tário de Longa Metragem no Oscar de 2017. No longa, vemos como o sistema
carcerário dos Estados Unidos está intimamente ligado as consequências da
escravidão na história estadunidense, perpassando os estágios da construção
histórica do preconceito e aponta, cirurgicamente, como a formulação racista
contribuiu para a associação dos negros ao mundo do crime, e, como conse-
quência, o chancelamento da prisão desta parte da população através de um
processo de encarceramento em massa. O nome do filme traz como referência
a 13ª Emenda da Constituição norte-americana, por meio da qual ninguém pode
ser submetido à escravidão ou ao trabalho forçado, exceto como punição de um
crime, embasando a tese de engorda dos presídios através do racismo estrutural
perpetuado na história a partir do enquadramento criminal.

Para fomentar a discussão sobre como a série levanta debates atuais sobre
o racismo norte-americano ao produzir um caso que ocorreu há mais de trin-
ta anos atrás, duas cenas do segundo episódio foram selecionadas. Na primeira
cena vemos Delores Wise (Niecy Nash) indo até uma pequena mercearia com
seu filho recém-nascido no colo comprar um maço de cigarros, na TV do local ela
escuta a reportagem onde uma jornalista diz que um bilionário do ramo imobili-
ário, Donald Trump, se pronunciou sobre o caso. Quando a câmera deixa de focar
Delores e o foco passa a ser a televisão, temos a visão do próprio Donald Trump
em uma entrevista dada por ele durante os acontecimentos de 1989, onde ele
afirma que odeia os adolescentes por terem espancado e estuprado a corredora.
A repórter segue a matéria e anuncia que Trump pagou 80 mil dólares para es-
tampar as quatro capas dos principais jornais pedindo a volta da pena de morte.
Delores é uma mulher negra, sua filha mais velha é uma mulher transexual que
ela não aceita como mulher e, repetidamente, a trata no pronome e pelo nome
masculino; os pais de seus três filhos (Marci, Korey e seu bebê de colo) não fazem
parte da vida familiar; Korey é o tempo todo retratado na mídia como, nas pala-

em 2016 pelas redes sociais pedindo mais diversidade na premiação de Hollywood, a Academia
anunciou mudanças para melhorar a representatividade de seus membros.

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vras usadas por jornais da época, “um animal que precisa ser enjaulado e morto”,
e ela, que está desempregada e vende drogas para sustentar a família, no ápice
da desigualdade social, escuta pela TV que alguém está pagando uma fortuna
para que seu filho seja morto.

Na segunda cena vemos Sharom Salaam, mãe de Yusef Salaam, na casa


de sua amiga. Enquanto elas estão no sofá, na televisão, novamente, há outra
entrevista de Donald Trump no ar. O trecho em questão é uma entrevista que
Donald deu ao canal CNN em 1989, onde o mesmo diz que “se estivesse come-
çando hoje, adoraria ser um negro instruído” pois realmente acredita que eles
têm “uma grande vantagem”. Os dois recortes reais das entrevistas, quando co-
locados em cena, não são apenas para dar embasamento ao caso e a narrati-
va da série. “Olhos que Condenam” foi lançada em 2019, durante o mandato de
Donald Trump como presidente dos Estados Unidos (2017-2021), os recortes tra-
zem à tona falas racistas de Trump e seu posicionamento no que diz respeito à
população negra. E além, faz com que a população perceba que esses dois mo-
mentos não os únicos em que Donald deu sua opinião sobre o caso, dias após o
lançamento da série, enquanto falava com repórteres em frente à Casa Branca,
Trump, ao ser questionado por um dos repórteres se iria se desculpar por suas
declarações, se recusou a reconhecer a inocência dos homens, declarando que:

Você tem pessoas em ambos os lados disso. Eles admitiram sua culpa. Se você
olhar para Linda Fairsten e se você olhar para alguns dos promotores, eles
acham que a cidade nunca deveria ter resolvido esse caso. Então, vamos deixar
por isso mesmo (SILVA, 2019).

Ao traçar uma linha do tempo, é possível ver com clareza como o sistema
jurídico foi rápido em sua condenação, mas não tão rápido para reparar o erro
cometido contra os cinco adolescentes:

• 1989 – Uma corredora branca é brutalmente espancada e estuprada no


Central Park, os adolescentes presentes no local automaticamente se tor-
nam principais suspeitos e, posteriormente, autores do crime.

• 1990 – Após passarem por mais de 14 horas de interrogatório ininterrupto


e desacompanhados, os cinco adolescentes criam confissões onde incri-

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minam a si próprio e aos demais. Estas confissões são utilizadas posterior-


mente nos julgamentos sendo, inclusive, a única prova apresentada ao júri.
Linda Fairstein e Elizabeth Lederer, promotoras que os acusavam, ao per-
ceberem as inconstâncias nas fitas, decidem dividir os acusados fazendo
com que houvessem dois julgamentos para o mesmo caso. Os cinco são
julgados e condenados pela agressão e estupro de Trisha Meili e passam
entre seis e treze anos na prisão.

• 2002 – Matias Reyes já havia sido condenado por uma série de estupros,
agressões brutais e assassinato, todos ocorridos no final dos anos 80 em
Nova York. Em 2001 ele confessa ser o real autor e assume ter cometido
o crime sozinho, dizendo aos investigadores: “Eu sei que é difícil para as
pessoas entenderem, depois de 12 anos, por que uma pessoa realmente se
apresentaria para assumir a responsabilidade por um crime. No começo eu
estava com medo, mas no final do dia achei que era definitivamente a coisa
certa a fazer”4 .

• 2002 – Após a análise de provas, onde foi comprovado que o DNA de Reyes
era compatível com o DNA do sêmen encontrado na meia da corredora,
junto com sua confissão que continham detalhes que não fora divulgado
nos noticiários e jornais, o tribunal de Nova York renunciou as condenações
e o estado retirou todas as acusações de Korey Wise, Yusef Salaam, Ray-
mond Santana Jr, Kevin Richardson e Antron McCray.

• 2003 – Os cinco homens processam a cidade de Nova York por acusações


maliciosas, discriminação racial e sofrimento emocional. O valor pedido era
de US$250 milhões pela atuação da polícia e da justiça que os levou à de-
tenção e, posteriormente, à condenação.

• 2004 – Patricia Meili, a “corredora do Central Park”, como ficou conhecida,


revela seu nome para o mundo ao escrever o livro “I Am The Central Park
Jogger” (Eu sou a corredora do Central Park, em tradução livre), contando
como sobreviveu ao crime.

4 HAYRAN, Handreza. Matias Reyes / O que aconteceu ao homem que realmente cometeu o
estupro no ‘Central Park Five’. Foco e Fama, 2022. Disponível em: https://focoefama.com/crimes-e-
-escandalos/matias-reyes/. Acesso em: 10 de maio de 2022.

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• 2012 – Sarah Burns, ao ter contato com o caso enquanto fazia estágio para
o seu curso de estudos americanos em Yale, procurou os cinco homens e
relatou a história deles no livro “The Central Park Five”. Em seguida, une-se
ao pai e ao marido para produzir o documentário de mesmo nome. Lança-
do em Cannes em 2012, o documentário foi a primeira produção cinemato-
gráfica do caso. Kevin Richardson, após a exibição do filme se emocionou
ao dizer que “A Sarah nos deu voz. Somos humanos, temos filhos, temos
coração”, já Yusef se pronunciou dizendo que “Até então, nossas vidas fo-
ram contadas pelo tribunal, pela imprensa e pelo Donald Trump [...] Ainda
estamos brincando de correr atrás do tempo perdido”5.

• 2014 – A cidade se recusou a resolver os processos por mais de uma déca-


da, porque seus advogados acreditavam que a cidade poderia ganhar um
processo judicial. Após uma mudança na administração, o novo governante
de Nova York, o democrata Bill de Blasio, passou a defender um acordo para
fechar o fato que passou de caso para ser lembrado sobre a violência que
assolava a cidade no final dos anos 80 a um símbolo da discriminação racial
por parte das autoridades; a cidade os indenizou em US$ 41 milhões.

• 2016 – Havia também outra ação por danos adicionais que foi resolvida em
2016 por US$ 3,9 milhões.

• 2019 – Lançamento da série “Olhos que Condenam”, dirigida pela diretora


Ava DuVernay através da plataforma de streaming Netflix.

Traçando essa linha do tempo e chegando em 2019, trinta anos


não é tanto tempo assim para algo que continua corriqueiro. Ava
DuVernay não produziu esse caso apenas por sua notoriedade, a
série é um posicionamento da diretora não só contra o governo
Trump, mas, também, um posicionamento político em relação
aos negros norte-americanos. A construção das duas cenas des-
tacadas e supracitadas demonstram que ela está utilizando fatos

5 MENAI, Tania. A redenção dos cinco. Folha de São Paulo, 2013. Disponível em: https://piaui.

folha.uol.com.br/materia/a-redencao-dos-cinco/. Acesso em: 10 de maio de 2022.

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históricos para se posicionar politicamente em 2019 e, desta for-


ma, chamar a atenção para um debate antigo nos Estados Uni-
dos: o debate do racismo, o debate da justiça que não é tão justa,
nem tão cega e, na grande maioria das vezes, condena ao olhar.

Durante uma entrevista dada a Trevor Noah6 no programa The Dailly Show7,
DuVernay descreveu sua produção como:

O primeiro episódio do filme é sobre interrogatórios - sem comida, sem descan-


so - agressões. O segundo foca-se nos tribunais. Defesa, acusação, procurado-
res... E fianças. Mostrando que neste país existe uma justiça para ricos. Podemos
pagar e sair ou não pagar e ser preso. O terceiro é sobre como continuamos a
encarcerar menores neste país. O quarto é pós-condenação, a maneira como
tratamos as pessoas condenadas. Quando terminar perceberemos como fun-
ciona este sistema, que todos pagamos. (SANTOS, 2019)

As imagens construídas na série, com todos os seus elementos, são ima-


gens engajadas na luta contra o racismo estadunidense no século XXI. São ima-
gens que colocam o espectador na situação de posicionamento político porque
a todo momento é escancarado para quem assiste que são jovens negros sendo
coagidos no interrogatório e em seus depoimentos, sendo oprimidos por um sis-
tema prisional e jurídico que foram construídos para dizimar a população negra.
Todas as imagens apresentadas ao longo de quatro episódios são pensadas para
potencializar no espectador a discussão racial do ponto de vista daqueles que
sofrem com a condenação.

6 Trevor Noah é um comediante, apresentador, locutor e ator sul-africano. É o atual apresen-


tador do programa The Daily Show, tendo sucedido a Jon Stewart em 2015.

7 The Daily Show é um programa estadunidense de notícias que satiriza sobretudo a política
norte-americana. O programa começou em 1996 e era originalmente apresentado por Craig Kill-
born. Jon Stewart, que substituiu Killborn em 1999, apresentou o programa até agosto de 2015.

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Referências Bibliográficas:

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ed. São Paulo: Boitempo, 2018.

ALMEIDA, S. O que é racismo estrutural. 1ª ed. São Paulo: Pólen livros, 2019.

CHARTIER, Roger. A Beira da Falésia: entre incertezas e inquietudes. 1 ed. Rio


Grande do Sul: Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2002.

DAVIS, A. Estarão as prisões obsoletas? 5ª ed. São Paulo: Bertrand Brasil, 2018.

_____. A Democracia da abolição – para além do império, das prisões e da tor-


tura. 4ª ed. São Paulo: Difel, 2019.

FERRO, Marc. Filme: uma contra-análise da sociedade? In: LE GOFF, J.; NORA,
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HAYRAN, Handreza. Matias Reyes. O que aconteceu ao homem que realmente


cometeu o estupro no ‘Central Park Five’. In Foco e Fama, 2022. Disponível em:
https://focoefama.com/crimes-e-escandalos/matias-reyes/. Acesso em: 10 de
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KARNAL, L. et al. História dos Estados Unidos: das origens ao século XXI. 1ª ed.
São Paulo: Contexto, 2007.

LE GOFF, J.; NORA, P. (Org.). História: novos objetos. Trad.: Terezinha Marinho.
Rio de Janeiro: F. Alves, 1976

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NICHOLS, Bill. Introdução ao Documentário. 2ª ed. São Paulo: Papirus Editora,


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RAMOS, Alcides Freire. Canibalismo dos Fracos: Cinema e História do Brasil. 1ª


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RAMOS, Fernão Pessoa. Mas afinal... O que é mesmo documentário? 1ª ed. São
Paulo: SENAC, 2008.

_____. Teoria Contemporânea do cinema. 1ª ed. São Paulo: SENAC, 2005.

ROSENSTONE, Robert A. História nos filmes, os filmes na história. 2ª ed. São

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SOARES, M. FERREIRA J. A História vai ao Cinema. 1ª ed. São Paulo: Record, 2001.

SANTOS, Lina. 30 anos depois, esta série volta a fazer justiça pelos Cinco de
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-park-11015202.html. Acesso em: 10 de maio de 2022.

SILVA, Rafaela F. da. Trump nega desculpas aos cinco de Central Park, e diretora
de Olhos que Condenam responde. In TecMundo, 2019. Disponível em: https://
www.tecmundo.com.br/minha-serie/160348-trump-nega-desculpa-aos-cinco-
-de-central-park-e-diretora-de-olhos-que-condenam-responde.htm. Acesso
em: 10 de jun. de 2022.

Filmes:

A 13ª emenda. Direção: Ava DuVernay. Produção de Kandoo Films. Estados Uni-
dos: Netflix, 2016. Plataforma de streaming.

América: A História dos Estados Unidos. Direção: Andrew Chater, Clare Bea-
van, Jenny Ash, Marion Milne, Nick Green, Renny Bartlett. Produção de Nutopia.
Estados Unidos: The History Channel, 2010.

Olhos que Condenam. Direção: Ava DuVernay. Produção de Participant Media,


LLC, Harbo Studios e Tribeca Productions. Estados Unidos: Netflix, 2019. Plata-
forma de streaming.

Os Cinco do Central Park. Direção: Ken Burns, David McMahon. Estados Uni-
dos, 2012.

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FOTO NA RUA: UM RETRATO DOS FOTÓGRAFOS


AMBULANTES DE GOIÂNIA-GO1

Ana Rita Vidica 2


Guilherme Talarico3
Rafael de Almeida4

Introdução

Os fotógrafos ambulantes ou “lambe-lambes” ou “fotógrafos ambulantes”


ou “fotógrafos de jardim” são profissionais cujo local de trabalho é o espaço ur-
bano. As ruas das cidades, praças e parques são o cenário do seu trabalho. Nes-
tes locais, eles instalam suas “barraquinhas” ou “cabines”, contendo seus equipa-
mentos de trabalho, câmeras fotográficas, vestimentas (casacos, paletós) para
que os fotografados possam utilizar, espelho e mostruário de fotografias.

Estes fotógrafos não têm nomes conhecidos. Eles são populares e apren-
deram o ofício na prática, sem um estudo formal da fotografia. Passam a fazer
parte do cotidiano das cidades possibilitando que pessoas sem condições de
pagar uma fotografia de um estúdio fotográfico também tivessem sua imagem
eternizada de forma artesanal. Entretanto, encontram-se em vias de extinção
em decorrência do avanço tecnológico.

A denominação “ambulante” advém do caráter itinerante do fotógrafo que


remonta às suas origens na Europa. Já o nome “fotógrafo de jardim”, menos co-

1 Esse projeto foi contemplado pelo Edital de Ocupação de Museus e Galerias de Arte do
Fundo de Arte e Cultura do Estado de Goiás 2017.

2 Docente do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Faculdade de Comunica-


ção da Universidade Federal de Goiás (FIC/UFG). E-mail: ana_rita_vidica@ufg.br.

3 Docente da Unidade Goianésia da Universidade Estadual de Goiás. E-mail: talarico.gui@


gmail.com.

4 Docente do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Estadual de Goiás. E-mail: ra-


faeldealmeida.ueg@gmail.com.

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nhecido, se relaciona ao fato de se instalar em praças e ter como fundo os jardins


desses locais. A nomenclatura “lambe-lambe” é a mais popular, tendo sido criada
a partir do gesto de lamber a fotografia.

O ato de lamber era utilizado para verificar qual era o lado da emulsão do
material sensível à luz. Embora esta seja a explicação mais usual, o historiador da
fotografia Boris Kossoy (1974, p. 5) coloca que:

a origem do termo lambe-lambe é controvertida. Segundo alguns lambia-se a


placa de vidro para saber qual era o lado da emulsão o que explicaria o nome.
Tal fato, porém, parece pouco viável, pois o simples tato, ou a observação da
chapa em local escuro mostra qual o lado da película sensível. Há quem diga
que se lambia a chapa para fixá-la, porém a origem mais viável parece estar
ligada ainda ao antigo processo da ferrotipia. Este processo envolvia uma cama-
da de asfalto sobre uma chapa de ferro de mais ou menos 1 mm sobre a qual era
aplicada a emulsão. Após a revelação com sulfato de ferro, o fotógrafo lambia a
chapa, fazendo com que a imagem se destacasse do fundo preto asfáltico pela
ação do cloreto de sódio existente na saliva (KOSSOY, 1974, p. 5).

Segundo Moraes (2013) existem outras explicações, mais folclóricas, ligadas


ao ato de lavar as fotografias em baldes. Isso remeteria à língua de um cachorro
lambendo a água. Ou, à crença de que o fotógrafo lambia para secar as fotos.
Percebe-se, aqui em Goiânia, ao andar pelo espaço urbano e conversar com os
fotógrafos lambe-lambe desta cidade, a existência de diferentes versões que, in-
clusive, vão ao encontro destas versões mais folclóricas.

Marcos José de Jesus (52 anos), atuante como fotógrafo desde 2001, acha
que tinha sido dado pelo Fujioka. José Barreto de Novaes (Zezinho, de 71 anos),
fotógrafo desde 1968 pensava, incialmente, que o termo se relacionava a um di-
tado que a mãe dele dizia: “Trabalhar pros outros só faz pra lamber”. Ou seja,
nunca enriquece ou melhora de vida. Para tirar esse complexo, foi procurar saber
o que era. Perguntou para um fotógrafo que fazia postais na rua e também leu
em um livro. Descobriu que o termo vem do fato de lamber a foto para conseguir
retirá-la da intermediária, elemento da câmera lambe-lambe. As crianças viam
fazer essa ação e gritavam: “Olha o lambe-lambe”.

Já, para Carlos Antônio de Moraes (61 anos), que atuou como fotógrafo nas
ruas de 1984 a 2018, o termo lambe-lambe tem duas explicações. Uma diz respei-

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to ao processo de secagem. Como tinha que ser rápido, o fotógrafo lambe-lambe


usava álcool pra acelerar a secagem e quando o vento batia, a chama pegava na
ponta dos dedos do fotógrafo e ele lambia pra diminuir a ardência. Ele acredita
mais nesta explicação. Mas, ouviu sobre outra, que se devia ao fato de o fotógrafo
lamber a foto devido à falta de água no processo da lavagem. Ele não acredita
nessa versão, pois a química era muito forte.

Independente da origem do termo, ele é usado para identificar esses fotó-


grafos que fotografavam e ainda fotografam nas ruas, com a produção voltada
ao retrato, especialmente o de documentação. É na busca desta identificação
que esta pesquisa caminha, na busca dos rastros, dos retratos destes fotógrafos
atuantes em Goiânia para inseri-los na história da fotografia ou construir histó-
rias da fotografia.

Nesse sentido, partimos da metodologia da flânerie, proposta por Benja-


min (1994b). Nos convertemos em flâneurs e andamos pelo espaço urbano sem
um rumo certo, mas em busca do detalhe, daquilo que, normalmente, não se
presta atenção, agindo simultaneamente como o detetive e o trapeiro. Andamos
pelas ruas de Goiânia em busca das narrativas destes fotógrafos5 a fim de com-
preender: como se dá a constituição da fotografia lambe-lambe em Goiânia e a
produção do retrato feita por estes fotógrafos? Para isso, construímos narrativas,
nos convertendo também em narradores, seguindo, também a proposição ben-
jaminiana (BENJAMIN, 1994a, p. 198), já que buscamos as experiências que pas-
sam “de pessoa a pessoa” e os fotógrafos são as fontes que recorremos. A escrita
deste texto tem continuidade com uma destas narrativas, feitas pelo andar nas
ruas, nos retratos e nas histórias destes fotógrafos.

5 Essas narrativas foram criadas a partir da realização de cinco entrevistas, com os fotógra-
fos: José Barreto de Novaes, Carlos Antônio de Moraes, Marcos José de Jesus, Jonas Barreto dos
Santos e Nádia Barbosa, no mês de maio de 2022, em consonância à aprovação no Comitê de Ética
da Universidade Federal de Goiás.

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Narrativa “Câmera lambe-lambe, Cine Teatro Cometa e outras constela-


ções”.

Essa narrativa foi construída a partir do contato com o fotógrafo lambe-lam-


be Carlos Antônio de Moraes. Para isso, seguimos uma das premissas propostas
por Benjamin (1994ª, p. 198), cuja narrativa é construída a partir de um segundo
grupo de narradores, ou seja, aqueles que escutaram “com prazer o homem que
ganhou honestamente sua vida sem sair do seu país”. Convidamos o leitor, nesse
momento, a adentrar os caminhos de Carlos, adentrando uma história da foto-
grafia ainda não contada.

Eu tinha 11 anos quando vi pela primeira vez um fotógrafo. Era um fotógrafo


lambe-lambe. Foi lá na minha cidade, em Macaíba, no Rio Grande do Norte, na
porta do Cine Teatro Cometa. Nunca me esqueci. Era engraçado e curioso ao
mesmo tempo. Um senhor bem vestido com a cabeça enfiada no pano preto.
Fiquei impressionado. Só o corpo de fora e o rosto pra dentro.

Na minha cabeça de menino, imaginava o que ele fazia ali dentro. Será que
tinha um tesouro escondido e ele estava procurando? Ou será que era uma
espécie de detetive que buscava algo perdido ali dentro? Minha imaginação
ia longe. Só depois descobri que ele estava fazendo a revelação da fotografia,
mergulhando o papel na banheira do revelador, esperando a imagem chegar
para colocar no fixador. Quando estava fixado, ele tirava a cabeça pra fora. E, eu,
desviava o olhar, pra ele não ver que eu o estava olhando.

Meu olhar desviava para o varal de fotos, onde ele as secava para depois entre-
gar ao fotografado. Fazia fila pra tirar foto. O povo ía bonito que só e a fotografia
revelava cada expressão, às vezes, nem parecia a mesma pessoa. Uma vez, um
moço ranzinza parou ali, brigou com o fotógrafo, reclamou do preço. Na hora da
foto, fez uma cara serena. Quem passasse pelo varal e visse seu retrato, diria que
era um sujeito bem tranquilo e fácil de lidar.

Eu não era o único a ficar impressionado com tudo que envolvia a produção
destas fotografias. Tinha um amigo que até apelidou este serviço de foto na rua
de “foto tabefe”, pois quando o fotógrafo fazia a exposição à luz para gravar a
imagem do negativo para o papel, tinha que puxar e fechar bem rápido pra não
entrar luz demais e “pá” fazia um barulho.

Às vezes, ainda me perco nestas lembranças de menino, que se confundem


com os meus primeiros passos nas ruas de Goiânia em busca de emprego.
Cheguei aqui em 1984. Fiquei 1 mês e 19 dias desempregado. Me deparei, de
novo, com a fotografia, não mais na porta do Cine Teatro Cometa, mas nas ime-
diações da praça cívica. Me tornaria um fotógrafo lambe-lambe. Não precisava
mais enfiar a cabeça. Não tinha mais pano preto, mas duas mangas em que
colocávamos as mãos. Elas é que adentravam o caixote e funcionavam como a

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mente, que ficava ali dentro e fazia a magia da fotografia acontecer.

Aprendi rápido, em cinco dias, com um moço que tinha banca. O aprendizado
aconteceu na casa dele mesmo. O seu filho, o José Wilson, que me ensinou
como fotografar, cortar o filme, fazer a revelação e depois, do filme revelado,
passar a imagem para o papel.

Me sentia como um mágico. Revelava o filme, secava no calor do álcool, aque-


cido com um foguinho, e depois prensava no papel. Mergulhava o papel “em
branco” na banheira do revelador e, depois de uns 30 ou 40 segundos, a ima-
gem aparecia, bem visível. Rapidamente, tirava da banheira do revelador e le-
vava para o fixador. E, depois de 2 minutos, podia expor novamente à luz. Mer-
gulhava no balde pra tirar os resíduos dos químicos, secava, cortava e podia
entregar ao cliente.

A minha primeira experiência com cliente foi bem desafiadora. A retratada era
uma jovem negra. Na hora de fotografar, me lembrei que pessoas de pele ne-
gra consomem mais luz que uma de pele branca, tanto na hora de fotografar
quanto na hora de fazer a cópia. Ao invés de 8.0, coloquei 5.6. Fiz a foto. Coloquei
as mãos dentro do caixote enquanto pensava nos passos que deveria seguir.
Minhas mãos eram minha mente, que estavam em funcionamento dentro da
lambe-lambe. Elas saíram dali de dentro com a sequencia das oito fotografias.
A moça sorriu em agradecimento. Hoje já deve ter filhos, talvez netos, mas me
lembro do seu rosto jovem de sorriso tímido impresso naquele retrato 3x4cm.

Esse foi o primeiro de muitos retratos que tiraria até meados de 2018. Época de
vestibular, eleição, inicio de ano, fazia um monte. Algumas épocas eram mais
paradas. Mas, no tempo da lambe-lambe, fazia em média 40 cabeças por dia.
Tempos bons aqueles. Com a Polaroid já foi raleando, mas mesmo assim tinha
um bom retorno. Era mais fácil de fotografar, apertava o botão, a foto saía co-
lorida e a revelação era feita pela câmera mesmo. Só tinha que sacudir a foto.
Com o digital, o uso do equipamento ficou mais fácil ainda, mas a dificuldade
veio na minha permanência nas ruas. Consegui ficar até julho de 2018. Resolvi,
então, sair e abrir uma mercearia. O lucro nunca foi o mesmo da foto. Apesar de
ter saído da fotografia, a fotografia nunca saiu de mim. Às vezes sinto o sacolejar
do líquido do revelador e fixador. Eu preparava tudo em casa. Meu banheiro se
transformava em um laboratório. Colocava a luz vermelha, já cortava o papel
fotográfico 18x24cm em quatro partes, que seriam preenchidos no outro dia,
por rostos desconhecidos.

Esses rostos chegavam, por vezes, no cair da tarde, já a noitinha. Usava meus
conhecimentos técnicos pra fazer a fotografia e a pessoa poder colocar no seu
currículo e entregar logo cedo no dia seguinte. Era possível fazer a foto porque
a câmera lambe-lambe ficava no tripé. Mas, tinha um segredo. Ao apertar o bo-
tão de disparo, segurava-o firme e contava “Cachorro 1, Cachorro 2, Cachorro 3 e
ia contando, até chegar a 15 cachorros”. Aí fechava e revelava a fotografia. A foto
preto-e-branco ficava perfeita, sem nenhum sinal de tremido.

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Meu gosto pela fotografia foi tanto que comprei uma câmera Zenit. Câmera de
ferro, pesadíssima, comprei de um fotógrafo que trabalhou no Jaime Câmera.
Acabei fazendo, além das fotos nas ruas, fotografias de reportagem, aniversário,
casamento, batizado, festa junina. Aí não ia de ônibus, tinha uma Belina, que
me levava pra chegar no horário. E, nas horas vagas, lá no centro, usava a câ-
mera como hobbie. Uma vez estava olhando para as árvores em volta da minha
banca de foto e vi um filhote de passarinho sendo alimentado pela mãe. Já até
fotografei o Fernando Henrique Cardoso quando veio à Goiânia fazer passeata
em época de eleição.

As ruas do centro de Goiânia me trouxeram a fotografia, a amizade com os fo-


tógrafos de outras bancas, o contato, mesmo que em cinco minutos, com os
retratados e esses instantes registrados, entre um retrato e outro, pela minha
câmera analógica. Me lembro com saudade, carinho e orgulho de tudo isso que
vivi. Não tem como esquecer, o retrato da minha identidade feito por uma câ-
mera lambe-lambe, em 1986, me lembra todos os dias. E, à noite, até hoje eu
sonho, sonho que estou fazendo foto.

Uma história acessada pelo andar

Construímos essa narrativa e a dos outros fotógrafos pelo andar e por um


novo contato com o real, na perspectiva de Didi-Huberman (2012), em que o real
não está em oposição à imaginação e é aquilo que nos afeta. Fomos afetados
pela fala de Carlos e pelas andanças no espaço urbano, que se deu na busca dos
restos, como flâneurs trapeiros ou flâneurs detetives, tentando encontrar uma
história da fotografia ainda não escrita.

O andar como forma de crítica às ruas como exclusivamente vias de circu-


lação de mercadorias tem origem na figura do flâneur6, presente na obra literá-
ria de Charles Baudelaire, no século XIX. Ele é aquele que age de modo diverso
da velocidade imposta pela mercadoria, vagando pela cidade, observando, de
modo lento e atento, as pessoas, seus comportamentos, sendo um fisionomista
da metrópole moderna.

Conforme Benjamin (2007, p. 479), a proposta da flânerie é “sair, quando


nada nos obriga a fazê-lo e seguir nossa inspiração, como o simples fato de virar à

6 Walter Benjamin na obra “Passagens” e no texto “Charles Baudelaire – um lírico no auge


do capitalismo” (1989) recupera esse personagem para pensá-lo como contraponto à lógica da
mercadoria imposta no sistema capitalista.

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direita ou esquerda já constituísse um ato essencialmente poético”. Nessa pers-


pectiva se constituiu o ato de perambular do flâneur que, segundo Benjamin,
“é abandonado na multidão” (1994b, p. 51) que se embriaga pela ação de vagar
pelas ruas, com seu passo lento e atento, sem um rumo certo, mas percebendo
seus estímulos e os investigando.

Por esse caráter investigativo do flâneur, Benjamin (1994b, p. 217) o associa


a um detetive, ao compor as fisionomias e perseguir o que lhe atrai pelos seus
traços. Benjamin, no entanto, também estabelece uma relação à figura do tra-
peiro (1995, p. 78-79), àquele que recolhia os restos que a sociedade jogo fora.

O flâneur baudeleriano, recuperado por Benjamin, age pelo fenômeno de


colportagem do espaço (BENJAMIN, 2007, p. 463), ou seja, ele anda percebendo
potencialmente tudo o que acontece no espaço como se o espaço piscasse ao
flâneur, na medida que a cidade se abre ao transeunte como uma paisagem
sem limiares em que procura aquilo que a multidão não vê.

Ao procurar aquilo que a multidão não percebe escapa à rede condiciona-


da da razão, podendo revelar o inconsciente da cidade, o que está ali, mas escon-
dido, assim como a fotografia revela o inconsciente óptico e a psicanálise, o pul-
sional (BENJAMIN, 1994a, p. 94). O inconsciente revelado pela fotografia tem um
duplo aspecto: revela imagens com conteúdos objetivos e superiores à intenção
inicial do fotógrafo, mas também conteúdos subjetivos possibilitando que acon-
teça o surgimento de um passado independente da vontade do sujeito que olha.

O flâneur, ao olhar ao seu redor, andando pela cidade, também pode ser
atravessado pelo que está a sua volta e, mesmo perseguindo algo, como um
detetive, podem surgir outras questões, como se a cidade também olhasse para
ele. Esse modo de andar do flâneur, seja pelo vaguear embriagado, à busca da-
quilo que a multidão não vê, a investigação de algo, a coleta dos restos, tudo isso
surge nas andanças que fazemos nas ruas de Goiânia, e percebemos uma his-
tória à contrapelo, em que vozes ainda não ouvidas, passam a ecoar e constituir
histórias da fotografia ainda não contadas, que se constituem das histórias de
vida particulares que se cruzam a uma história nacional, dando complexidade à
ela.

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Cruzamentos entre a História Nacional da Fotografia lambe-lambe e as


histórias contadas pelos fotógrafos lambe-lambe de Goiânia.

A origem dos fotógrafos lambe-lambe remonta ao século XIX, na Europa,


por volta de 1853, após a descoberta do ferrótipo ou chapa seca, que possibilitou,
naquele momento, a instantaneidade da fotografia. A ferrotipia diminuiu os cus-
tos e facilitou o manuseio do procedimento fotográfico, em comparação com a
daguerreotipia e o colódio úmido. Kossoy (1980, p. 39) afirma que era utilizado
“basicamente pelos fotógrafos ambulantes”.

Inicialmente, eles atuavam em feiras e festas populares, uma vez que havia
grande circulação de pessoas. Eles eram, de fato itinerantes, perambulando por
diversos locais. Posteriormente, passam a se fixar em pontos específicos das ci-
dades, mas mantendo a urbe como local de trabalho.

No Brasil, o desenvolvimento da fotografia ambulante se associa ao pro-


cesso de expansão do fotográfico no país. Os primeiros fotógrafos ambulantes
eram imigrantes que chegaram no final do século XIX trazendo suas câmeras de
origem europeia, possibilitando que os serviços fotográficos fossem oferecidos
às classes menos favorecidas que não podiam pagar os altos preços dos sofisti-
cados estúdios, frequentados, em sua maioria, “pela tradicional aristocracia rural
e pela nova burguesia industrial que surgia e se fortalecia no contexto histórico
que caracterizava o início do século XX” (ÁGUEDA, 2008, p. 74).

No século XX, a partir dos anos 1930, na Era Vargas, com a migração interna
suscitada pelas políticas nacionalistas aliadas às reformas sociais e trabalhistas,
as pessoas passam a vir de outras regiões, especialmente, do Nordeste e se ins-
talam em São Paulo, Rio de Janeiro e outros centros à procura de trabalho e no-
vas oportunidades. Alguns destes migrantes se tornam fotógrafos ambulantes,
substituindo gradativamente aqueles originários de outros países. Essa substi-
tuição se deu, também, pelos aprendizes da fotografia em ambiente familiar,
uma vez que algum parente aprendia o ofício e depois passava adiante.

Ao mesmo tempo, estes fotógrafos passam a atuar em diversos lugares do


Brasil, adentrando outros estados, chegando também na região centro-oeste.

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Pelos relatos de alguns dos fotógrafos atuantes desde os primórdios, a fotografia


lambe-lambe tem inicio em Goiânia, no final dos anos 1960. Eles se instalaram
no centro da cidade no parque Mutirama, Lago das Rosas, entorno da praça cí-
vica e avenidas Goiás, Araguaia, Tocantins e rua 4 e em Campinas nas praças A e
Joaquim Lúcio.

A partir dos anos 1980, há uma diminuição das fotografias com cenários e
uma produção mais voltada à fotografia para documentos, feita com a câmera
lambe-lambe para esta última finalidade. Segundo o fotógrafo Carlos, os pionei-
ros da fotografia lambe-lambe em Goiânia foram: Ele (Carlos), Zezinho, Odilon
(falecido), Jorge Vicente (falecido), Guilherme (falecido), Martins (falecido) e Sino-
mar (falecido).

Além das fotos serem feitas nas ruas, o aprendizado também se dava ali ou
no ambiente familiar. Guilherme e Zezinho, irmãos que depois ensinaram o ou-
tro irmão, Odilon, que por sua vez, ensinou ao filho Odiley. Zezinho também ensi-
nou para outros dois primos, Horacinho e Tonho. Zezinho ensinou seu filho Jonas
a fotografar com a polaroid que, depois ensinou o pai a usar a câmera digital.

Estes pioneiros da fotografia lambe-lambe na capital goiana trabalharam


nas suas ruas há mais de 30 anos e utilizaram a câmera-laboratório que, poste-
riormente foi substituída pela câmera Polaroid. Além destes fotógrafos, outros
surgiram, como o Marcos. Ele já começou com as fotografias instantâneas da
câmera Polaroid, que não necessitavam desse processamento químico. E, poste-
riormente, ele e outros como o Jonas, a Nádia, e tantos outros que já fotografam
com as câmeras digitais.

Todos os fotógrafos disseram que a mudança da tecnologia ocasionou a


queda da rentabilidade. Carlos e Zezinho também afirmaram que caiu a quali-
dade. O preto-e-branco, segundo eles, durava bem mais, por causa do processo
de fixação e lavagem. O segredo era deixar fixar por 2 min e lavar bem, para não
amarelar depois. Os dois ainda têm suas fotografias 3x4cm feitas com a câmera
lambe-lambe, a do primeiro está em sua identidade, feita em 1986, e a do segun-
do, pendurada na parede de sua casa. É uma maneira de não esquecer desse

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passado ainda tão presente em suas memórias.

Embora tenha havido essa mudança tecnológica, a nomenclatura “fotógra-


fo lambe-lambe” permanece. O “fotógrafo lambe-lambe” era parte integrante
do panorama dos parques e pontos turísticos nos grandes centros. Mas também
se torna cada vez mais presente, oferecendo um serviço de utilidade pública, no
processo de aprimoramento dos documentos de controle e de benefícios so-
ciais, especialmente, no caso brasileiro, no período pós-1930.

Fotógrafos “ambulantes” ou “lambe-lambe” se tornam também viajantes


para fazer fotos para documentos, sobretudo da recém-criada Carteira de Traba-
lho, pelo interior do país. O ato de pousar para um retrato, mesmo que reduzido
ao formato 3x4, começa a chegar a pessoas que nunca haviam tido uma foto-
grafia pessoal antes. Freitas (2019, p. 14) faz uma boa observação com relação às
mudanças estéticas que a maior procura por fotos para documentos veio a acar-
retar, ocorreu que diminuíram as fotos de recordação no panorama das cidades,
geralmente em formato maior e mais caras. Por outro lado, a grande demanda
fez com que houvesse um crescimento, entre 1950 e 1970, de fotógrafos ambu-
lantes atuando em todo o país.

Em algumas capitais do país, o ofício do fotógrafo ambulante, ou fotógra-


fo lambe-lambe, vem sendo ressignificado com vários levantamentos para pro-
cessos de registro como patrimônio cultural. Aliás, é sintomático também que
a própria institucionalização do patrimonialismo no Brasil também se dá com o
Estado Novo, em 1937. No Rio de Janeiro e em Belo Horizonte, o ofício dos fotó-
grafos lambe-lambes já é reconhecido como patrimônio cultural imaterial, des-
de 2005 e 2014, respectivamente. Nestas capitais a arte está mais relacionada aos
bucólicos pontos turísticos e passeios públicos. Obviamente, existe uma via de
mão dupla no reconhecimento da prática do lambe-lambe como manifestação
cultural. Os registros se basearam numa série de estudos e exposições sobre o
ofício dos lambe-lambes, o que, por sua vez, também desencadeou várias outras
ações de salvaguarda sobre a arte lambe-lambe, inclusive como forma de garan-
tir alguma subsistência financeira para esses profissionais, muito prejudicados
pelas restrições impostas pela pandemia de COVID-19.

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Obviamente, também, esses estudos estão concentrados nos grandes cen-


tros urbanos do país, em que a prática da fotografia de rua é mais antiga e foi
mais difundida. Em São Paulo, por exemplo, o historiador Boris Kossoy (1974)
identificou que havia, na década de 1920, um total de 30 fotógrafos atuantes no
Jardim da Luz, área de passeio público anexo ao mais movimentado terminal de
passageiros da cidade à época, a ainda hoje frenética Estação da Luz. Entre 1915
e 1955, eram 50 fotógrafos atuantes no Parque D. Pedro II, outro passeio público
aberto nas grandes obras de revitalização urbana da capital paulista. Além de
outros 50 fotógrafos espalhados em praças públicas da cidade. Já na década de
1970, haviam apenas 15 lambe-lambes pela cidade, redução que pode ser asso-
ciada à popularização das máquinas fotográficas e pelas cabines automáticas.
Ainda assim, em 1981, a pesquisadora Simoneta Persichetti localizou a existência
de 9 fotógrafos que ainda trabalhavam no Jardim da Luz, reforçando a resistên-
cia do fotógrafo de rua na capital paulista.

Como contraponto aos antigos centros urbanos, como Rio e São Paulo, na
monumental epifania modernista que é Brasília, os fotógrafos lambe-lambes
resistem nostalgicamente na Rodoviária do Plano, atendendo a demanda de
quem precisa “se apresentar bem” nos currículos de trabalho, além de oferecer
outros serviços, como fazer cópias de documentos, plastificação ou consultas
na internet. Antes da era digital, essa dualidade entre o tradicional e o moderno
contrastava com a agitação dos centros urbanos. Um dos itens mais emblemá-
ticos da “modernidade”, a fotografia, era processada artesanalmente pelos fotó-
grafos ambulantes, à vista das pessoas e de modo quase instantâneo.

Em Goiânia, os lambe-lambes se tornaram fixos na região de concentração


das repartições públicas, ao redor da Praça Cívica. Ali também se concentram
os edifícios públicos em estilo art déco tombados como patrimônio cultural. As
bancas de fotografia, que, segundo relatos, existiam desde a década de 1960,
eram montadas e desmontadas todos os dias pelos fotógrafos. Apenas no início
da década de 1980 é que a Prefeitura Municipal começa a emitir autorizações
para a instalação de cabines fixas nas mesmas calçadas em que eles mantinham
seus pontos (FREITAS, 2019, p. 20). O fato é sintomático de políticas públicas que

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desconsideravam a importância da paisagem urbana no conjunto de afirma-


ções da identidade cultural goianiense e goiana. Cabe lembrar que na mesma
época, e na mesma região da Praça Cívica, o Coreto, talvez o mais emblemático
aparelho urbano em estilo art déco da cidade, tenha sido completamente des-
configurado, após uma desastrosa obra de requalificação, para servir justamente
como centro de atendimento ao turista (!).

As cabines de “foto rápido” passaram, então, a fazer parte da paisagem ur-


bana no centro histórico de Goiânia, tombado pelo IPHAN, em 2003. Os olhares
de quem busca a harmonia entre o estilo arquitetônico, que representou “a mo-
dernidade possível” para a capital símbolo da Marcha para o Oeste estadonovista,
vão encontrar os remanescentes de uma atividade que representava também a
vida daquele espaço da cidade.

O objetivo das pessoas que procuravam os serviços dos lambe-lambes


sempre foi “sair bem na foto”, a mesma premissa se mantém hoje nas selfies.
Mas, é sempre bom lembrar, que a foto de então comporia um documento que
acompanharia a pessoa para o resto da vida (ao menos assim se imaginava).
Uma simples foto 3x4 elaborada com o propósito de durar tanto tempo, feita por
um equipamento semiartesanal que possibilitava revelação instantânea. Estabe-
lecida na calçada, a pequena cabine de “foto rápida”, com aspecto de ser frágil
e improvisada, ainda resiste. Persiste fazendo frente às frenéticas atualizações,
não apenas do equipamento fotográfico, mas do próprio uso que se dá para as
reproduções fotográficas.

Hoje em dia, poucos documentos ainda necessitam que se anexe uma foto,
agora os processos são digitais, realizados na própria instituição. Para se manter,
inclusive para manter os pontos abertos e não fechar, como já aconteceu com
muitos que não resistiram às mudanças, os fotógrafos lambe-lambe buscam a
ressignificação dos espaços. Segundo depoimentos dos que permanecem na
região da Praça Cívica, utilizam das bancas para fazer serviço de captação de
clientes para escritórios de advocacia, já que próximo à Secretaria do Trabalho há
maior potencial de processos trabalhistas. Uma espécie de serviço de utilidade
pública, informação e aconselhamento, afinal, os fotógrafos estão ali há décadas

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e conhecem como ninguém os meandros das repartições públicas. Ou mesmo,


agregam à produção fotográfica, serviços como, plastificação, confecção de cha-
ves e xerox.

Considerações Finais

Não se pretende com esta pesquisa esgotar ou criar uma outra história da
fotografia em Goiás, mas abrir essa história e incluir os fotógrafos lambe-lambe e
deixá-la aberta a outras escritas e saberes, que foi sendo construída nas andan-
ças nas ruas de Goiânia e costurada a partir das palavras proferidas pelos cinco
fotógrafos.

Assim, retomamos à pergunta realizada no inicio do texto do modo como


se dá a constituição dos fotógrafos lambe-lambe em Goiânia e a produção dos
seus retratos. Podemos inferir que ela se dá nas ruas, no fazer e no aprendiza-
do prático da fotografia por trabalhadores oriundos de diferentes localidades do
país e de ofícios: do ofício de pedreiro, de mototaxista, atendente de supermer-
cado, cujas histórias se cruzam nas lentes das câmeras fotográficas, ou por de
trás delas.

Essas lentes, da câmera lambe-lambe, da polaroid ou da digital registram


os tipos sociais da cidade de Goiânia, organizando a pose, o enquadramento, a
luz, para que fiquem registradas nas carteiras de identidade, currículos e outros
documentos que constituirão a existência de cada pessoa. Assim como a exis-
tência desses fotógrafos passa a constituir histórias da fotografia, que se revelam
nas ruas e nos retratos.

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Referências Bibliográficas:

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dições: Teoria da História & Historiografia V. 4, N.1, Janeiro-Julho de 2013.

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QUEER EM TRANSFORMAÇÃO: PERSPECTIVA DECOLONIAL


E PRODUÇÃO ACADÊMICA BRASILEIRA

André Fernandes Zanoni1

Pesquisadores latino-americanos têm questionado a potência da Teoria


Queer, apontando para os limites de mais uma teoria cuja as fontes conceituais
remetem a um cânone ocidental. Ao longo da história das ciências, uma fórmula
epistêmica se repete: Autores americanos e europeus produzem ideias preten-
siosamente universais que são exportadas e replicadas nas periferias geopolíti-
cas. Estaria a Teoria Queer fadada a seguir o mesmo caminho?

Uma das pretensões de um pensamento queer é a de questionar aquilo


que se coloca como norma, isto é, anunciar a instabilidade de padrões normati-
vos sobre o corpo, o gênero e a sexualidade. Para realizar tal virada, parte-se na
busca de reapropriar-se do discurso e da produção de conhecimento e um cam-
po de possibilidades é aberto. Nessa reapropriação de disciplinas e saberes sobre
os sexos, o queer subverte as normas de subjetivação vigentes e se rebela contra
a lógica de produção de corpos normativos (PRECIADO, 2011).

Há, entretanto, a necessidade de nos aprofundarmos nas especificidades


e divergências no interior do pensamento queer. Pereira (2012) nos alerta para
um certo perigo em generalizar definições conceituais que podem acabar por
“nublar as diferenças” do que seria justamente a proposta queer de “política da
diferença”.

A utilização de repertório comum de autores, a luta contra a heterossexu-


aliade compulsória, a posição contrária a binarismos fáceis, entre outros, são ca-

1 Mestrando em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Ma-


ckenzie e licenciado em Filosofia pela mesma instituição. E-mail: andrefzanoni@outlook.com

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racterísticas que conferem aura de transgressão e contestação ao pensamento


queer, o que pode sugerir, numa abordagem apressada, uma integração das
posições num todo único e homogêneo. Porém, as divergências no interior do
pensamento queer são grandes e, assim, tratar as posições e teorias de forma
unificada, desconsiderando a especificidade de cada pensamento, retira a força
das propostas e das ideias. Distante do contexto de enunciação e sem atenção
devida à singularidade de cada campus teórico, corremos sempre o risco de nu-
blar a densidade das proposições queer - que necessitam de um movimento
auto reflexivo intenso e contínuo -, o que conduziria à repetição pura e simples
de teorias, sem que haja a resistência das realidades analisadas (PEREIRA, 2012).

O autor incentiva a prática de uma análise teórica que leve em conside-


ração as histórias locais, nos alertando que a leitura de teorias dissociadas das
realidades locais reproduz o ciclo de “repetição (periféricas) de teorias (centrais)”.
Considerando o queer como um movimento contrário a hegemonia de teorias
normativas e a ideia de universalidade, evidencia-se a necessidade de que a pró-
pria Teoria Queer coloque a si mesma em perspectiva.

O intuito deste texto é de acompanhar o caminho conceitual e metodo-


lógico levado a efeito por pesquisadores brasileiros que propõe a condução e
transformação do queer pela e para a realidade local. Aqui nos concentramos
nas contribuições de Larissa Pelúcio, livre docente pela Universidade Estadual
Paulista Júlio de Mesquita Filho, e de Pedro Paulo Gomes Pereira, livre docente
pela Universidade Federal de São Paulo.

A pesquisadora e professora Larissa Pelúcio, especialista em Estudos de Gê-


nero, Sexualidade e Teorias Feministas, tem uma extensa lista de publicações
que se propõem a pensar o queer a partir da realidade brasileira. Nessa pesqui-
sa nos concentramos em duas publicações essenciais para o debate. O artigo
“Subalterno quem, cara pálida? Apontamentos às margens sobre pós-colonialis-
mos, feminismos e estudos queer” publicado no Dossiê Saberes Subalternos, or-
ganizado pela autora para a Revista Contemporânea em 2012. E também o artigo
“Traduções e torções ou o que se quer dizer quando dizemos queer no Brasil?”
publicado em 2014 na Revista Periódicus.

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Também será usada aqui como fonte, parte da pesquisa realizada pelo pro-
fessor Pedro Paulo Gomes Pereira. Dentre suas publicações selecionamos dois
artigos que debatem a possibilidade de um queer brasileiro, “Queer nos trópi-
cos” e “Queer decolonial: quando as teorias viajam”, ambos publicados na Revista
Contemporânea em, respectivamente, 2012 e 2015.

Pelúcio e Pereira descrevem em seus textos um caminho teórico que desa-


fia os saberes canônicos e contribui para a autonomia intelectual das produções
brasileiras. Além do aprendizado conceitual de grande valia, há nos autores um
procedimento metodológico que necessita ser compreendido e propalado.

Na leitura dos textos, fica claro a consistente compreensão e apropriação do


cânone ociental e das críticas a este produzidas, seja por suas próprias margens
(sexuais, de classe), ou por outras margens globais (latina, asiática). Mas os auto-
res, não se restringem a isso. Metodologicamente, fica claro que para os autores
tão importante quanto a discussão de conceitos e filosofias, é a consideração
pelos saberes provindos da cultura de nosso país, não se impedindo de demorar
nas referências às histórias locais e chamando atenção a singularidade da cons-
trução da nossa subjetividade.

Os autores nos colocam em contato com o debate das epistemologias su-


balternas. Com o intuito de pensar sobre a autonomia intelectual da academia
brasileira, procuram dimensionar a influência de pensadores e pensadoras que
desafiaram a produção ocidental de saberes, reunindo conceitos provindo das
mais diversas áreas do globo. Aqui mencionaremos alguns desses conceitos e
pensadores, em especial, aqueles que podem ajudar a entender os desafios do
queer no Brasil.

Pretendemos aqui visualizar as aproximações possíveis entre o pensamen-


to queer e o pensamento decolonial. A questão das chamadas teorias subalter-
nas, tem recebido cada vez mais atenção da academia brasileira. Entretanto, ain-
da há um longo caminho a ser percorrido. Assim, nossa aspiração é apresentar o
debate e verificar as possibilidades de percursos conceituais que levem em con-
siderações as ferramentas queer de desestabilização das binariedades, mas que

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deem primazia a realidade nacional marcada pelas relações de colonialidade.

Limites da autocrítica da modernidade ocidental.

O trabalho de teóricos pós-coloniais, como Edward Said, Frantz Fanon,


Gayatri Spivak e Homi Bhabha tem transformado a visão contemporânea sobre
a relação entre ciência e verdade. O ideal de um conhecimento universal verda-
deiro passa a ser lido como um mito que oculta o lugar epistêmico geopolítico
a partir do qual se é produzido. A epistemologia própria das ciências europeias
baseia-se em um afastamento entre o sujeito enunciador e sua produção filo-
sófica e científica. As teorias críticas do Sul Global denunciam tal afastamento,
por muito tempo visto como necessário para acessar uma suposta objetividade,
como reducionista e desqualificador de saberes não-canônicos.

Anunciar o lugar de fala significa muito em termos epistemológicos, por-


que rompe não só com aquela ciência que esconde seu narrador, como denun-
cia que essa forma de produzir conhecimento é geocêntrica, e se consolidou a
partir da desqualificação de outros sistemas simbólicos e de produção de sabe-
res. (PELÚCIO, 2012, p. 398)

A figura de Michel Foucault, que é sempre presente no debate das ciências


sociais, traz consigo uma ambiguidade. De uma maneira geral, as contribuições
do filósofo frances são necessárias para qualquer discussão sobre a moderni-
dade. Entretanto, Pelúcio (2012) e Pereira (2012) apontam um limite das leituras
foucaultianas.

Foucault se interessa pelo que chama de uma “insurreição dos saberes” ou


ainda, “reviravolta do saber” (FOUCAULT, 2005). Sua proposta de genealogia dos
discursos pode nos fornecer ferramentas conceituais contra cientificismos cen-
tralizadores. Seu conceito de “saberes sujeitados”, apresentado em curso minis-
trado no ano de 1975, nos fala sobre um conjunto de conhecimentos silenciados
pelas relações de poder. Não obstante, na leitura crítica de seu curso, evidencia-
-se seu eurocentrismo que deixa de lado o fato de que “a ‘reviravolta do saber’
na França tem estreita relação com as revoltas coloniais e suas consequências”

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(PELÚCIO, 2012, p. 401).

Pereira (2012) fala sobre o silêncio de Foucault a respeito do colonialismo


em toda sua teoria do biopoder. Teoria na qual, o filósofo francês, procura ex-
plicar a modernidade como um momento histórico no qual a vida biológica e a
vida política encontram-se indissociáveis e o poder passa a se ocupar da admi-
nistração dos corpos e da gestão calculista da vida. Para além do fato de que tal
relação entre poder e vida era restrita a sociedade européia, afinal a expectativa
de vida na América Latina, por exemplo, ainda era extremamente baixa, também
é notável que, ao falar sobre as condições de emergência do biopoder na Europa,
Foucault não a relacione a ação colonial.

O filósofo espanhol Paul Preciado, em seu conhecido “Testo junkie” (2008),


acrescenta as transformações das tecnologias de produção da subjetividade
como centrais as relações do biopoder, ao que ele chama de “regime farmaco-
pornográfico”. (PRECIADO, 2018) Sua preocupação é quebrar o paradigma da
diferença sexual e reformular o entendimento sobre feminilidade, masculinida-
de, heterossexualidade e homossexualidade. Para isso, o autor sustenta que as
sociedades contemporâneas operam por meio de dispositivos de produção de
verdade, ou tecnologias sociais, que asseguram a dominação e a distribuição
assimétrica do poder, estabelecendo hierarquias, privilégios e abjeções ao longo
da história, mas sobretudo a partir da modernidade. Mas, assim como em seu
antecessor, há também em suas formulações um silêncio sobre parte central da
história da contemporaneidade.

A entrada da vida na história no ocidente dá-se sob, e tem como condição,


a própria ação colonial. Lida aqui dos trópicos, a era do biopoder (ou a moderni-
dade ocidental) surgiria ela própria sob o signo da colonização, num dramático
quadro no qual a emergência da vida e a potência de produzir a vida no oci-
dente não são apenas simultâneas aos corpos precários dos trópicos, mas deles
dependentes. A história de Foucault sobre o aparecimento da vida na história e
as formulações de Preciado não parecem, no entanto, abordar mais detidamen-
te essas vinculações entre biopoder e práticas coloniais, perfazendo um silêncio
sistemático sobre uma face fundamental da constituição da modernidade. (PE-

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REIRA, 2012, p. 378)

Tanto Foucault quanto Preciado fazem críticas à modernidade ocidental e


a sua configuração de ciência distanciada do sujeito. Pensadores queer ao re-
dor do globo usam do pensamento de ambos para pensar sobre a construção
dos modelos binários, da heteronormatividade, das tecnologias do corpo, das
possibilidades de ação e práticas políticas subversivas, entre muitas outras con-
tribuições dos autores. O que acadêmicos brasileiros, como Pelúcio e Pereira,
parecem estar apontando é para o perigo da leitura de tais teóricos de maneira
dissociada das realidades locais. Para estabelecer tal alerta, há uma preocupação
em demonstrar que as teorias sociais concebidas na Europa estão diretamente
relacionadas à experiência histórica, social e política do continente e, portanto,
não podem ser aceitas como princípios universais.

Esse silêncio certamente está vinculado ao envolvimento desses autores


com seus contextos socioculturais - esse silêncio sendo atribuído aos limites da
própria imersão nos dilemas da modernidade ocidental. Essa percepção desses
autores, intimamente vinculadas aos seus quadros histórico-sociais, faria com
que a forma de compreender as teorias seja alterada: nessa condição, aparece-
riam como produtos locais, intimamente envolvidos com seus dilemas particula-
res. Os conceitos de biopoder (em suas diversas versões) e de farmacopornopo-
der seriam, não obstante as pretensões universais, teorias ancoradas em histórias
particulares, locais, provinciais. (PEREIRA, 2012)

Quanto mais nós, como pesquisadores, podemos e devemos ler, compre-


ender e apropriar-nos de teorias e ideias formuladas a partir de outras realidades,
mais é necessário afinarmos nosso olhar crítico, aprendendo a identificar e desa-
fiar pretensões universalizantes. Mesmo quando falamos de um pensador como
Preciado, que pensa a partir de uma margem da sociedade ocidental, e que
como homem transsexual luta pelas minorias sexuais e dissidentes de gênero,
percebemos que sua proposta pressupoe uma certa universalização dos modos
de produzir teoria e de agir politicamente típicos do norte global de onde fala.

Pereira aponta que um dos aspectos da dissonância na circulação de ideias

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é a leitura de textos políticos como textos puros, transformando agentes políticos


em sujeitos transcendentais. O autor salienta que, ainda mais significativo que a
leitura, é a questão da aplicação de teorias importadas independentemente das
histórias locais, especialmente quando tais teorias surgem em um apagamento
das próprias realidades de onde vieram, como no silêncio sobre o colonialismo.
Nas palavras do autor:

Há sempre a possibilidade de se aplicar e replicar no Sul aquilo que não só era


próprio de outros contextos, como também se forjou num processo de oblitera-
ção das próprias experiências das histórias locais. (PEREIRA, 2015, p.418)

Pereira seleciona e analisa parte da obra do filósofo italiano Giorgio Agam-


ben, a fim de exemplificar a falta de centralidade das ações coloniais que mar-
cam as teorias europeias e trazem um vazio epistemológico quando importadas
para o sul global. Os conceitos do italiano, assim como os do francês e do espa-
nhol, são bastante presentes em análises queer que tratam da biopolítica e das
vidas precárias. Parte extensa de sua obra se dirige a criação de um vocabulário
conceitual que possibilite a formulação de uma crítica à política ocidental.

Em poucas linhas, Agamben identifica duas figuras centrais que estariam


presentes em toda a história da política ocidental, a saber, o soberano (ou o po-
der soberano) e o homo sacer (ou a vida nua). Ao decidir o limite entre a vida que
merece ser protegida e a vida que pode ser exposta à morte, o soberano politi-
za o fenômeno da vida, possibilitando ou não sua entrada na esfera jurídica. O
homo sacer é a vida marginalizada pelo próprio Estado, cuja morte não constitui
crime. O ponto central de sua teoria está no uso contemporâneo, inclusive por
democracias, do “estado de exceção”, técnica de governo daquilo que não pode
ter forma legal.

Na base da exceção encontra-se sempre uma vontade soberana que tem


poder de decretá-la de forma mais ou menos arbitrária, suspendendo total ou
parcialmente a ordem. A exceção revela sempre o soberano. Ao decretar a exce-
ção o soberano sai das penumbras do direito e mostra-se como aquele que tem
o poder de suspender o direito e impor uma ordem a partir da vontade soberana.
Agamben entende que a tecnologia da exceção não só revela o soberano, mas
também revela o vínculo oculto do poder soberano sobre a vida humana. A von-

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tade soberana não só exerce sua soberania sobre coisas, territórios, riquezas etc.,
mas sobre a vida humana. (ROCHA, 2021)

Agamben argumenta que o estado de exceção se tornou uma das práti-


cas essenciais dos Estados contemporâneos, se apresentando como o paradig-
ma dominante da política contemporânea. No deslocamento de uma medida
provisória e excepcional para uma técnica permanente de governo, ofusca-se a
fronteira entre a vida que merece ser protegida e a vida que pode ser exposta à
morte. As percepções de Agamben sobre os dispositivos políticos de controle da
vida são de grande valia para a produção de críticas a tais dispositivos, tal como
se propõe a Teoria Queer.

Pereira problematiza o que chama de “aplicação de teorias importadas”,


como a de Agamben, alegando que:

Para elucidar como se instalaram os estados de exceção nas Repúblicas e Es-


tados Constitucionais, Agamben analisa a história dos governos, passando pelo
Senado Romano, pela Revolução Francesa, pelas duas grandes guerras mun-
diais, pelos acontecimentos de 11 de setembro e 2001. Essa sofisticada e erudita
análise (e extensa nos períodos históricos) sobre a origem e o desenvolvimento
do pensamento político e legal do Ocidente, no entanto, contrasta com um si-
lêncio profundo sobre a história da colonização. Em toda sua obra, Agamben faz
apenas referências pontuais à colonização, sem se deter em histórias concretas.
Na tentativa de entender a vida política do Ocidente, em nenhum momento
explora os modos pelos quais a própria entidade geopolítica “Ocidente” surge
por meio da dominação dos Outros. (PEREIRA, 2015, p. 420)

A falta de referências ao colonialismo na argumentação de Agamben é ain-


da mais alarmante tendo em vista que seu conjunto teórico é uma produção
recente, feito em um contexto pós-colonial e na presença de uma importante
literatura pós-colonial. Seu trabalho é mais um exemplo de que a crítica produ-
zida no interior da tradição ocidental a respeito de si mesma, de suas origens
e dispositivos, é limitada. Esse limite encontra-se justamente no eurocentrismo
que, circunscrito na lógica de universalização, reduz seu horizonte de percepção
e restringe a sua potência.

É a partir desse entendimento que pesquisadores brasileiros têm insisten-


temente apontado a necessidade de ler e produzir críticas de gênero e sexuali-

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dade atentando-se para a realidade local. As ferramentas conceituais e metodo-


lógicas do pensamento queer estão diretamente ligadas a inversão, modificação
e subversão de ideias; pensado aqui do sul global esse movimento deve ser feito
em combinação com a crítica à colonialidade. Se entendemos que nenhuma
teoria é despida da cultura que a produz, que seu vocabulário já denota uma po-
sição no mundo, que sua descrição está contaminada da visão de uma cultura;
então romper com o eurocentrismo e seus limites implica em questionar a ilusó-
ria distância entre a produção de conhecimento e localidade.

Perspectiva decolonial.

O queer propõe-se como um movimento político-teórico dos corpos e se-


xualidades dissidentes. Entendemos que a oposição à normatividade leva à re-
núncia da ideia de verdade universal e a insurgência de teorias-outras provin-
das dos mais diversos corpos e subjetividades. Entretanto, o alerta de inúmeros
pesquisadores do sul global é de que, apesar do queer abdicar-se de um lugar
de autoridade, ainda vivemos em um contexto de disparidades no universo de
produção de conhecimento, marcado pelo contraste de poder e localidade:

o queer não está fora das diferenças de poder e de prestígio dos itinerários das
teorias. Não obstante sua potência subversiva, a teoria queer não é externa à
colonialidade, nem há como pensá-la isoladamente dos contextos políticos e
de seus itinerários e de sua apropriação, bem como dos processos de tradução
implicados. Ela viaja ao Sul, com os desafios, os perigos e as potencialidades
que as viagens ensejam. (Pereira, 2015, p. 413)

Ao apresentar a problemática, Pereira elucida tais disparidades, e reflete


sobre as viagens de ideias e teorias, seus itinerários e apropriações. O autor nos
sinaliza que no deslocamento da Teoria Queer para o sul global o termo queer se
esvazia de seu poder subversivo que desestabiliza a própria ideia de “Teoria” que
o acompanha. No trajeto, uma das propriedades mais caras ao queer, isto é, sua
capacidade de questionar as autoridades produtoras de conhecimento, se perde.
Para o autor, “aplicar a teoria queer, acatando aqui o que fora formulado alhures,
é uma espécie de escape do campo queer, uma vez que se assume como Teoria
aquilo que brincava (e ridicularizava) com essa pretensão” (PEREIRA, p. 414.)

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O conceito de colonialidade formulado pelo sociólogo peruano Aníbal Qui-


jano (2005) nos ajuda a compreender os motivos pelos quais presenciamos a re-
petição de tal fórmula de importação de teorias. Segundo o autor, ainda perdura
por todo o âmbito cultural, social e científico uma estrutura, que hierarquiza ge-
opoliticamente e controla o conhecimento, forjada na história do colonialismo,
mas que se manteve mesmo após o fim das colônias. Walter Mignolo, outro im-
portante nome do pensamento decolonial latino-americano, explica que:

“Colonialidade” equivale a uma “matriz ou padrão colonial de poder”, o qual ou


a qual é um complexo de relações que se esconde detrás da retórica da mo-
dernidade (o relato da salvação, progresso e felicidade) que justifica a violência
da colonialidade. E descolonialidade é a resposta necessária tanto às falácias
e ficções das promessas de progresso e desenvolvimento que a modernidade
contempla, como à violência da colonialidade. (MIGNOLO, 2017, p.13)

Ao passo que a ideia de colonialismo nos indica um período histórico, a co-


lonialidade aponta para uma lógica de continuidade dos mecanismos coloniais.
A “matriz ou padrão colonial de poder”, que se apresenta em toda classificação
epistêmica e ontológica, transforma diferença cultural em valores hierárquicos e
cria o rebaixamento de populações e raças. As produções de Quijano e Mignolo
nos sugerem que o eurocentrismo e suas pretensões universalistas estão inti-
mamente ligados a diferença colonial e que para nos abrirmos verdadeiramente
a outras experiências, histórias e teorias, é preciso decolonizar, isto é, despren-
der-se da lógica da colonialidade e descartar os mecanismos de hierarquização
europeus.

O pensamento decolonial se aproxima do queer na medida que reivindica


atenção às imagens-outras, pensamentos-outros e teorias-outras:

Como a teoria queer, a crítica decolonial interroga as pretensões teóricas que


generalizam pressupostos e assuntos particulares e eludem as formulações dos
Outros, consideradas como específicas e particulares. (Pereira, 2015, p.415)

Produção acadêmica brasileiro e estudos queer.

É no intuito de pensar outras possibilidades de reflexão científica e ação


política que teórico críticos do Sul Global tem revisado textos das diversas áreas

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das humanidades, passando pela Filosofia, Sociologia e Antropologia, produzi-


dos tanto por autores norte-americanos e europeus, quanto por pensadores asi-
áticos e africanos. A partir da compreensão de que teorias importadas precisam
ser consideradas em seus contextos históricos e sociais, a releitura de tais textos
tem possibilitado a revisão crítica de nossas próprias produções acadêmicas.

O esforço de localizar nossa posição epistêmica numa perspectiva global


não é justificado apenas no sentido de nos capacitarmos criticamente para a lei-
tura e aplicação de teorias produzidas no exterior. Pesquisadores queer brasilei-
ros defendem que nos situarmos no universo de produção de saberes é impor-
tante para fortalecer as ferramentas críticas usadas para pensar nossa realidade.
Pereira e Pelúcio, por exemplo, cada um à sua maneira, demonstram um inte-
resse em compreender as singularidades culturais que marcam as sexualidades
e corporalidades aqui presentes.

Pelúcio (2012) nos fala sobre a multiplicidade de corpos e cores que formam
nossa população nacional e sobre como a colonização, que também é epistemo-
lógica, nos impede de refletirmos sobre nossas diferenças e suas implicações.
Muitas vezes, só nos damos conta das marcas da colonialidade quando saímos
de nosso país e, como imigrantes, ocupamos um lugar de “outro”. Como a autora
aponta, “ser o ‘outro’ é condição relacional e contextual” (PELÚCIO, 2012, p. 398).

Os autores parecem estar interessados também na reflexão sobre saberes e


sistemas simbólicos que se encontram fora da lógica científica, mas que podem
ser de grande valia para compreensão da subjetividade local e da organização
social.

Sam Bourcier, importante pensador queer francês, participou de uma mesa


de debate no ano de 2015 no I Seminário Queer em São Paulo. Na sua fala, mos-
trando-se atento aos debates pós-coloniais, Bourcier argumenta que as políticas
queer não são apenas uma questão de gênero. Desde a sua conceitualização à
sua prática, as políticas queer são também caminhos de luta antirracista e antim-
perialista, de interpelar os dispositívos da biopolítica que classifica e hierarquiza
os corpos. .O autor reafirma que o queer, de fato, são muitos e são traduzidos de

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forma muito diferente de acordo com contextos diferentes.

A fala de Bourcier nos mostra que os debates sobre colonialidade produ-


zidos aqui no sul global tem, aos poucos, penetrado os círculos internacionais.
Paul Preciado participou de uma mesa com Caetano Veloso na FLIP (Festa Lite-
rária Internacional de Paraty) em 2021. No mesmo ano, Judith Butler conversou
com Linn da Quebrada e Jup do Bairro no programa Transmissão do Canal Bra-
sil. Na parte final do artigo já mencionado, a pesquisadora Larissa Pelúcio narra
dois encontros que teve com outros pesquisadores latino-americanos nos quais
ouviu que o universo acadêmico brasilerio estava sendo reconhecido por produ-
zir pesquisas na área de gênero e sexualidade (PELÚCIO, 2012).

Creio que estamos demonstrando com nossa produção que as fronteiras


traçadas entre Norte e Sul são mais porosas e penetráveis do que nos fizeram
crer. Os Centros sempre tiveram suas periferias, e as periferias, por sua vez, sem-
pre tiveram seus centros. Foram as ideias dessas periferias centrais aquelas que
nos impressionaram. (PELÚCIO, 2012, p. 412)

Na mesma mesa do seminário, antes de Bourcier, na fala de Berenice Ben-


to, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, se explicita a im-
portância da posição anticolonialista para pensar o queer. A autora afirma que
as categorias analíticas e políticas de sexualidade, gênero e raça têm pouco va-
lor explicativo se consideradas fora de contextos mais amplos e complexos, nos
apontando para a impossibilidade de análises essencialistas naturalizantes e
universais e nos alertando que o parentesco entre o universalismo científico e o
pensamento colonial é profundo.

Nos parece então que os esforços de pesquisadores brasileiros de ler o que-


er a partir de perspectivas decoloniais são bastante justificáveis e já começam a
surtir efeito no universo acadêmico global.

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EUCLIDES DA CUNHA E A CONSTRUÇÃO DE


IDENTIDADES COLONIALIZADAS

Anna Paula Teixeira Daher 1

Recentemente defendi minha tese de doutorado no PPGH/UFG e nela trato


da mitificação do Euclides da Cunha a partir das circunstâncias de sua morte.
Isso envolveu, entre outros exercícios, a compreensão do lugar do Euclides no
cânone e nas instituições que, até hoje, alimentam o seu mito, como a Acade-
mia Brasileira de Letras, o Instituto Histórico Geográfico e o Grêmio Euclides da
Cunha.

Euclides da Cunha e Os Sertões se confundem, a ponto de parecer impos-


sível falar do autor sem a sua principal obra, que alcançou prestígio entre os in-
telectuais e sucesso entre a população de modo geral desde a sua publicação
em 1902. Essa recepção da obra por nomes de peso para a compreensão (e cons-
trução) do lugar do intelectual no Brasil é arrematada pela afirmação de Regina
Abreu quando refletiu que a obra de Euclides se tornou um símbolo nacional,
por si só um lugar de memória, o mesmo efeito de um bem tombado pelo patri-
mônio histórico – um monumento. O estudioso da obra de Cunha, Berthold Zilly,
é eficaz em seu resumo acerca do livro e do seu autor (e do seu lugar na memória
nacional):

Os Sertões pode ser compreendido como lugar de memória (Pierre Nora) e


como livro fundador (Doris Sommer). Nenhum outro autor brasileiro capitali-
zou uma admiração tão profunda, emotiva e mesmo reverencial por parte da
crítica literária especializada, dos especialistas em geografia, história e ciências
sociais, e dos leitores em geral, inclusive fora do Brasil. A influência no roman-
ce com temática interiorana, de Guimarães Rosa por exemplo, assim como no

1 Doutora em História pela UFG. Membro do Grupo de Estudos em História e Imagem


(GEHIM/UFG), do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisas em História e Literatura da UFG (LIHLIT/
UFG) e da Rede de Pesquisa e da Rede Internacional de Pesquisa em História e Culturas Contem-
porâneas.

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pensamento social brasileiro praticamente não pode ser sobreestimada, tendo


produzido também efeitos sobre a política de desenvolvimento nos âmbitos
regional e nacional. (ZILLY, s/d)

Euclides vai a Canudos e descobre um novo Brasil, apresenta esse mundo


ao país civilizado e, com a sua “obra vingadora” ocupa seu lugar no cânone e na
lista de grande construtor da memória nacional, da identidade nacional. Mas,
que identidade é essa? Que cânone2 é esse? É importante fazer a ressalva de
que a formação do cânone não está necessariamente ligada aos estilos literários,
está ligada à política e às escolhas feitas por um grupo considerado apto para tal.
Capaz de determinar quais as leituras vão construir as percepções de identidade,
memória e formação do Brasil. Vem justamente dessas dinâmicas o esforço de
muitos autores e pensadores para ampliar a leitura para além das obras consi-
deradas clássicas. Harold Bloom (1994), autor da mais tradicional obra acerva da
formação do cânone chama isso de “escola do ressentimento” – ele condena o

2 Segundo o e-dicionário de termos literários de Carlos Ceia, cânone deriva da palavra grega
kanon (espécie de vara com funções de instrumento de medida; cujo significado evoluiu para o
de padrão ou modelo a aplicar como norma). O termo é inicialmente utilizado no séc. IV para no-
minar uma lista de Livros Sagrados (homologados pela igreja como transmissores da palavra de
Deus), tornando o cânone bíblico inalterável, distinguindo-se neste aspecto do outro referente do
cânone teológico, o conjunto de Santos Padres a que a Igreja Católica periodicamente acrescenta
novos indivíduos através de um processo chamado canonização (e aqui o que importa é a ideia
de que “canônica” é uma seleção materializada em lista de textos e/ou indivíduos adotados como
lei por uma comunidade e que lhe permitem a produção e reprodução de valores, (normalmente
ditos universais) e a imposição de critérios de medida que lhe possibilitem, num movimento de
inclusão/exclusão, distinguir o legítimo do marginal, do heterodoxo, do herético ou do proibido.
Neste sentido, torna-se claro que um cânone veicula o discurso normativo e dominante num de-
terminado contexto, teológico ou outro, e é isso que subjaze a expressões como “o cânone aristo-
télico”, “cânones da crítica”, etc. Acompanhando o processo de secularização da cultura, a partir do
Renascimento, o conceito e o termo vieram progressivamente a ser aplicados ao domínio da lite-
ratura, muitas vezes sob a forma de expressões como “os clássicos” ou “as obras-primas”. É possível
fazer remontar o estabelecimento do cânone literário enquanto instituição social à escolarização
da literatura moderna, que ocorre durante o século XIX, primeiro à margem das universidades,
onde se privilegiava o estudo dos clássicos da Antiguidade canonizados por séculos de imitação
e comentário, depois, já no início do século XX, na própria academia, onde se concretizava através
de listas de textos a serem lidos e interpretados pelos alunos. Com a generalização da escolarida-
de obrigatória nas sociedades ocidentais, a escola passou a funcionar como o fator determinante
de fixação e transmissão de cânones. Mais recentemente, porém, o conceito de cânone adquiriu
visibilidade crítica no seio dos estudos literários organizados como disciplina e acedeu, de forma
espetacular, à condição de problema central, não só do campo de conhecimentos, como tam-
bém da estrutura institucional que o suporta. Tal fenômeno, que fez do cânone simultaneamente
um termo técnico e uma fonte de disputa, tem origens diversas, se bem que inter-relacionadas,
entre as quais: a desvalorização da grande literatura como componente do capital cultural das
sociedades pós-modernas (obrigada a competir com outros saberes e produtos culturais), a nova
reivindicação de representatividade cultural por parte de estratos sociais discriminados (mulheres,
minorias étnicas) e a sua repercussão no meio académico, a ascensão de modelos funcionalistas e
relativistas do conhecimento na filosofia e outras áreas do saber. Verbete de João Ferreira Duarte,
2009, disponível em https://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/canone/. Acesso em 20 jul 2021.

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esforço de leitura e apreciação do mundo a partir de aspectos sociais e políticos


(pautas como o feminismo, o colonialismo, por exemplo) em detrimento da es-
sência da literatura.

Com efeito, a publicação de Os Sertões alça Euclides a um lugar especial


na história intelectual do Brasil. Florestan Fernandes (1997, p. 35) a nomina como
obra que “possui valor de verdadeiro marco” por dividir o “desenvolvimento te-
órico-social da sociologia no Brasil”. Antônio Cândido também cimenta o lugar
de Euclides no Olimpo da intelligentsia3 nacional ao apontar que “Os Sertões
assinalam um fim e um começo: o fim do imperialismo literário, o começo da
análise científica aplicada aos aspectos mais importantes da sociedade brasilei-
ra” (CANDIDO, 2000, p.122). Celso Furtado (2001) pondera que embora Euclides
há muito se afigure anacrônico e o seu cientificismo positivista esteja superado,
a força do drama de Canudos faz com que Euclides seja lido, relido, discutido pu-
blicado, ainda que na ocasião da publicação do famoso livro, não só era comum
a visita ao assunto do sertão.

Cunha, como os intelectuais de seu tempo, tinha uma leitura europeia, uma
abordagem europeia de visão de mundo, ainda que o positivismo, para ficar ape-
nas em uma corrente de pensamento que o influenciou, quando aportado no
Brasil tenha desenvolvido características um tanto peculiares. Essa intelectuali-
dade brasileira, que nos anos finais do séc. XIX e o início do séc. XX então se orga-
nizava, o fazia com a ideia de uma missão civilizatória, no papel de defensora dos
interesses da sociedade, indo de encontro aos conceitos de intelectual desen-
volvidos por Mannheim (o intelectual como mediador de conflitos sociais) e por
Gramsci (o intelectual como organizador da cultura), como lembra Miceli (2001).
O percurso intelectual de Euclides da Cunha dialoga com essas premissas, se
considerarmos que ele é alçado ao cânone304 por discutir Canudos (no papel
de intelectual mediador de conflitos) e por jogar uma nova luz na forma como se
discutia a identidade do país, olhando para os homens do sertão, ampliando a

3 O termo, de origem latina, foi famosamente empregado para determinar um grupo distin-
to de pessoas na Rússia da segunda metade do séc. XIX e que não se encaixavam nas distinções
sociais então existentes. Desde então, por extensão, é utilizado para determinar um grupo de inte-
lectuais de um país (KIMBALL, s/d), um grupo bem educado da sociedade, que defende os interes-
ses da pátria e do povo a partir da razão e do conhecimento (VIEIRA, 2008).

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forma de ver a nação (no papel de organizador da cultura); ainda que pesquisa-
dores como Martins (1987), que chama a literatura de Euclides de “vigorosa”, res-
salvem que os protestos apresentados por ele e por outros escritores do quilate
de Lima Barreto não se tornam projetos de transformação social, permanecendo
no campo da condenação moral.

De fato, na história do Brasil pontuaram apropriações das mais diversas ide-


ologias de modo a atenderem aos anseios das elites que, ao tempo em que ad-
vogavam mudanças, precisavam manter a estrutura que as mantinha de pé, e
no topo:

Se é certo que a nossa história intelectual tem sido, em grande parte, um varia-
do tecido das vicissitudes da importação transoceânica de idéias, não menos
certo é que os dados dessa importação aqui se conformam ou deformam em
face das circunstâncias próprias ao ambiente, que é complexo e rico de contras-
tes. E é para isso que é preciso atender e atentar, pois talvez aí resida a nossa
originalidade. (COSTA, 1953, p. 98)

O pensamento de Cunha é construído numa lógica europeia e, sendo as-


sim, as fundações para a sua visão de Brasil, mesmo que ela seja uma crítica à
monarquia e a forma como ela trata o homem do sertão em Canudos, mesmo
que ela aponte o massacre que ali ocorreu, esse é um esforço a partir de um sis-
tema colonializado. Observa-se que Euclides preocupa-se em fazer a crítica da
nascente República, e , para tal, faz uma oposição a monarquia que ele considera
nacional, do Brasil, não há uma maior busca de influência do modo de coloniza-
ção do Brasil e o seu papel nessas circunstâncias.

Euclides era um amante do Brasil, ele tinha profundo amor por sua terra,
um eco da República ideal que ele não viu acontecer, “aprendeu com outros re-
publicanos idealistas que uma coisa eram os valores, o ideal do republicanismo
como governo virtuoso e dedicação à pátria, outra eram as condições sociais do
país que inviabilizavam a realização de tais valores” (CARVALHO, 2017, p. 139). E é a
ida a Canudos o marco dessa nova visão, dessa compreensão de que a República
até podia existir como valor, como princípio, mas que os representantes que ali
estavam não fariam muito por ela (CARVALHO, 2017, p. 137). E a impressão é tão
perene que a revisão da República é central4 na obra de Euclides da Cunha.

4 Ventura resume bem a posição de Euclides, “Sua revisão da República resultou de uma

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Se buscarmos o entendimento de Mignolo, para quem a atuação de um


intelectual deve unir o vigor crítico e analítico da academia com a militância,
chegando ao que ele chama de “desobediência epistêmica” (MIGNOLO, 2010, p.
17), pode-se dizer que Euclides, de muitas formas, percorreu esse caminho, no
sentido de que foi, ao longo de seus anos de produção, um autor que buscou
apontar novos caminhos e compreender o Brasil. E isso corrobora mais uma afir-
mação de Mignolo (2010), a de que essa base epistemológica moderna5, quan-
do aplicada ao entendimento de intelectuais periféricos, apresenta limitações e
problemas específicos. Ou seja, para pensar o Sul, é preciso aplicar o arcabouço
próprio dos estudos locais e não ideais europeus ocidentais.

Ainda com apoio nos estudos de Mignolo, cabe fazer a ressalva de que aqui
não se discute um ponto que, ainda assim, faz-se importante sublinhar: a discus-
são de que não caberia a Euclides fazer uma crítica do tratamento ao sertanejo
em Canudos ou em qualquer outro lugar, no sentido de que “somente aqueles
e aquelas que sofrem com a violência, com a dominação e com a exploração
moderna/colonial possuem o direito epistêmico de falar sobre as mazelas viven-
ciadas” (CARVALHO, 2020).

Não se está aqui partindo da premissa que o Euclides da Cunha deveria ter
sido um homem decolonial. Talvez seja mais simples o abrigo da sombra do “ho-
mem do seu tempo”, mas é o que ele era: um homem educado em um sistema
militar estruturado a partir de uma lógica europeia, com professores que estu-
daram na Europa ou que, por sua vez, tiveram mestres que ali estudaram. Talvez
não se trate de condenar toda essa produção, ou de argumentar como ela deve-
ria ter sido feita de outra forma, talvez seja mais uma reflexão e uma escolha de,

longa e sofrida reelaboração, em que deixava transparecer certa dose de culpa ou remorso pelo
silêncio cúmplice a que precisou se submeter. Tanto em Os sertões, como nos ensaios ‘A esfinge’
e ‘O marechal de ferro’, em que criticou o autoritarismo político de Floriano, irrompe uma escrita
represada e remoída, que só pôde ser traçada sob a luz fria da reflexão, depois de extintos os fatos
e muitos de seus personagens. Defrontou-se, no calor da hora, com a impossibilidade de erguer a
voz ou de brandir a pena contra os desmandos de um regime político, em que desapareciam os
contornos entre heróis e bandidos, entre civilização e barbárie” (VENTURA, 2003, p. 285).

5 Neste sentido, Mignolo, ao refletir o conceito de modernidade, lembra que “conseqüência


é que o capitalismo, como a modernidade, aparece como um fenômeno europeu e não planetário,
do qual todo o mundo é partícipe, mas com distintas posições de poder. Isto é, a colonialidade do
poder é o eixo que organizou e continua organizando a diferença colonial, a periferia como nature-
za” (MIGNOLO, 2015).

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hoje, construir um novo arcabouço de conhecimento que permita ler e enxergar


a produção do período de maneira menos europeizada:

... desde o final dos anos de 1980, a razão ocidental vem sendo colocada em
xeque pelas chamadas teorias insurgentes, uma tendência que tem sido defi-
nida como desobediência epistêmica e que converge em um movimento mais
amplo denominado giro decolonial. (THOBIAS, 2021, p. 1).

Parece importante refletir como essa estrutura que até hoje sustenta Eucli-
des (e essa reflexão não pretende apontar que ele não mereça ter o seu lugar no
cânone, apenas que ele é, também, mas um tijolo em uma estrutura eminente-
mente colonial), entender como a as influências trazidas a nós desde o período
colonial são dominantes até hoje, no ano em que se comemora o bicentenário
de nossa independência. Aqui fica a ressalva de que já existem muitos pesquisa-
dores que discutem e contestam exatamente a formação desse cânone literário
como o conhecemos, criticando a construção que parte da obra do Blom.

Não é inédita a discussão sobre o lugar de Cunha no Cânone, na história,


mas é recente a discussão acerca da foma de ler e pesquisar o seu pensamento
e a sua produção, haja vista que, no que tange ao conhecimento histórico, que
aqui nos interessa, por muito tempo foi exclusivo o auxilio no pensamento euro-
peu – ou ocidental, com subjetividades que em muito diferiam das dos grupos
colonizados, dentre os quais se inclui o Brasil, buscando “[...] significa uma com-
preensão mais crítica dos pressupostos subjacentes, motivações e valores que
motivam as práticas de investigação (DAMÁZIO, 2011, p. 24).

Há décadas Os Sertões é utilizado como instrumento de compreensão da


identidade nacional, instrumento de inserção do sertão na vida daqueles tão
removidos social e geograficamente do interior profundo. Uma das bíblias da
invenção nacional, a obra considerada fundamental para a compreensão da for-
mação histórica do Brasil. E essa percepção vem da crítica contemporânea ao
lançamento do livro. Sílvio Romero, por exemplo, viu Os Sertões como a síntese
da verdadeira gente brasileira, dos homens do sertão (OLIVEIRA, 2002). De outro
lado, o pesquisador Ricardo Oliveira chama atenção para o fato de que:

o livro foi considerado, ao longo desse período, como obra essencialmente na-
cional, a desvelar um Brasil profundo e autêntico. No entanto, poucas vezes se

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questionaram as conflituosas relações entre os conceitos de sertão e nação


existentes no pensamento de Euclides da Cunha (OLIVEIRA, 2002).

Entender o pensamento desses intelectuais que acompanham Euclides no


cânone e nas instituições culturais digamos, clássicas, e ler essa construção a
partir da discussão decolonial, é, como argumenta Thobias (2021) acerca da obra
de Sérgio Buarque de Holanda - e que serve à obra de Cunha nesse caso - que
uma aproximação “com o pensamento decolonial ampliará as linhas de leitura
da obra como texto vital do pensamento social, que traz importantes conceitos
“nativos” e ainda potencialmente produtor de teoria social atual”.

A pena de Cunha traça a narrativa da necessidade de entender o projeto de


civilização próprio do Brasil, e não o europeu, mas em que pese o seu caminho
de monumento da literatura, pedra de toque na construção do nacional, parti-
cularmente ao apontar as diferenças entre os habitantes do litoral e os do ser-
tão, é preciso reconhecer que há dissonâncias entre os ideais de sertão e nação
apresentados por Cunha (OLIVEIRA, 2002) e vozes veementemente dissonantes
como a do escritor Ronaldo Correia de Brito (451 MHZ, 2021), por exemplo. Ele é
enfático ao apontar Euclides da Cunha como deletério para a compreensão do
Brasil, por entender que Os Sertões deformou todo o olhar sobre o nordeste, por
ter sido um livro de encomenda da elite paulista e do jornal O Estado de São
Paulo sobre o que era Canudos e que foi destruidor para a compreensão do que
era o Nordeste e o sertão.

Também é salutar lembrar que a sua obra vai além de Os Sertões, a sua con-
tribuição para o pensamento brasileiro ultrapassa este marco: Cunha em mui-
to favoreceu a inserção da Amazônia na questão da formação nacional, e, mais
que isso, inaugurou um novo modo de perceber a história da região, ao observar
a vivência da população amazonense à margem a história (PINTO, 2012). Neste
ponto, seja no Alto Purus, seja em Canudos, o que é importante destacar é como
Euclides enxergava o fato de que a discussão da identidade e da nacionalidade
no Brasil deveria passar pelas figuras tanto do sertanejo quanto do caboclo15
(FERREIRA, 2019).

Ao trazer o sertanejo como a representação de um Brasil completamente

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perdido para o litoral, Euclides abre caminho para a compreensão de que o país,
diverso de tantas formas, não poderia ter como representante uma única figura,
mas o retrato que pinta do sertanejo, com a clássica frase, “o sertanejo é antes de
tudo um forte”, também traz algumas ideias que hoje caem na classificação de
“deletérias”, como o fato de que trata do desequilíbrio desse grupo em razão da
mistura de várias raças consideradas inferiores, da mesma forma as suas tradi-
ções como o estouro da boiada, o folclore, a convivência com o ritmo da natureza
e a época da seca. Na cobertura jornalística (mais do que na obra literária), é pos-
sível entrever a ideia de que Euclides via Canudos como uma agitação baseada
no fanatismo. Uma identidade se constrói a partir de símbolos que passam por
ritualizações e adquirem liturgias com datas comemorativas, figuras importan-
tes que são reverenciadas, por exemplo.

Nesse sentido, Euclides pensa o Brasil, um Brasil remoto que ele visita, ob-
serva, descobre. Mas o faz com instrumentos que em muito parecem insuficien-
tes para entender o Brasil, a construção da sua identidade e o seu povo.

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A CONCEPÇÃO DE NATUREZA NAS GRAVURAS DE


JOHANNES STRADANUS: UM OLHAR ATRAVÉS DA
INTERCULTURALIDADE CRÍTICA

Augusto Godinho Vespucci 1

Introdução.

Em 1585, o gravurista belga Johannes Stradanus (1523-1605) produziu os


desenhos que seriam publicados em uma série de gravuras intitulada de Nova
Reperta2, a pedido de Francisco de Médici (1541-1587), o Grão-duque de Toscana,
na Itália. A série de gravuras obteve grande sucesso entre os anos de 1585 e 1590
e chegou a ser republicada mais quatro vezes nesse período (MARKEY, 2020, p.
26). A produção representa de forma visual as “novas invenções” da Modernidade
que vão desde itens de uso cotidiano – como o azeite e os óculos – até a invenção
de um novo continente, a América. Johannes Stradanus teve suas obras publica-
das por toda a Europa, mas principalmente na Itália e nos Províncias dos Países
Baixos e obteve relativa fama mesmo em vida (VANUCCI, 2011, p. 5).

Johannes Stradanus passou a maior parte de sua vida adulta em Florença,


primeiramente como aprendiz de pintura de Giorgio Vasari (1511-1574) e, poste-
riormente, como gravurista autônomo da corte dos Médici (Idem, 2011, p. 6). A
maioria de suas obras foi produzida num complexo emaranhado de valores re-
nascentistas compartilhado por diversos artistas e pensadores italianos que, de
certa forma, dialogaram direta e indiretamente com a concepção de Natureza
de Stradanus.

1 Doutorando no Programa de Pós-Graduação em História na Universidade Federal de Goi-


ás – PPGH-UFG.Bolsista FAPEG – Fundação de Amparo à Pesquisa em Goiás. E-mail: augustoves-
pucci1@hotmail.com

2 “Novas invenções”, do latim.

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Os italianos, contudo, não estavam isolados e, por isso, não formaram sua
concepção de mundo de forma independente. Na verdade, o diálogo dos euro-
peus de séculos anteriores com outras culturas, como a árabe, a chinesa e a in-
diana produziu o que Jack Goody chamou de “Renascimentos” - no plural -, mas
que, ao longo do século XVI, foi transformado numa unicidade a partir de uma
perspectiva teleológica, numa invenção exclusivamente europeia e, mais especi-
ficamente, italiana (GOODY, 2011, p. 12).

Com a invasão da América, protagonizada por navegantes italianos – Cris-


tóvão Colombo, genovês e Américo Vespúcio, florentino –, o eixo econômico do
mundo se transladou do Mediterrâneo para o Oceano Atlântico. Nesse momen-
to, a formação da identidade europeia se utiliza das experiências regionais e
contextuais para definir a experiência da humanidade, num sentido totalizante
da História humana, englobando a América (MÜLLER; FERREIRA, 2018, p. 3). As
produções italianas, como as do próprio Stradanus, Vasari ou as de Cesare Ripa
(1560-1622), contribuem para isso de forma extensa, recorrendo ao arsenal de ca-
racterísticas da sociedade italiana e europeia, de forma geral, para determinar a
experiência histórica do mundo. Cesare Ripa, em seu livro “iconologia”, publicado
em 1593, atribui representações visuais de itens consagrados à cultura ociden-
tal como a imprensa, a Arte, a música, etc. e os descreve sempre indicando a
“onipresença” desses itens europeus pelo globo, buscando manter a imagem de
“centro do mundo” sempre atrelada ao Ocidente (RIPA, 2009, p. 70)

A própria palavra “Europa” passa a ser utilizada cada vez mais a partir do
aumento da produção de mapas, demarcando o continente como uma unidade
(HALE, Apud HÖFELE, 2005, p. 8). Segundo o pressuposto de que a experiência
europeia se torna a base para a experiência do Orbe, os ocidentais passaram a
estabelecer critérios de separação entre as sociedades a partir daquilo que pos-
suíam do mundo ocidental ou não, assim como fez Pero Magalhães de Gandavo
(1540-1579) no seu conhecido “Tratado da Terra do Brasil”:

A língua deste gentio toda pela costa é uma: carece de três letras – scilicet, não
se acha nela F, nem L, nem R, cousa digna de espanto, porque assim não têm
Fé, nem Lei, nem Rei; e desta maneira vivem sem Justiça e desordenadamente
(GANDAVO, 2008, p. 66).

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Essa formação de identidade, contudo, não pôde existir sem a criação dos
limites do que era o Ocidente e daquilo que era considerado como “Outro”, não-
-ocidental. Para os europeus, a presença dos ocidentais na expansão dos limites
do mundo “até então conhecido” se torna a base seminal para a concepção do
que é o Ocidente. Aquilo no qual os europeus não tivessem colocado as mãos era
considerado desconhecido, mas passaria a ser “parte do mundo”, caso fosse do-
minado pelos ocidentais. Carlos V (1500-1558), rei da Espanha e Imperador do Sa-
cro Império Romano, ao adotar o lema de sua casa como “Plus Ultra”3, se colocou
como o imperador que superaria os feitos do mitológico herói grego Hércules,
ao “descobrir” que haviam terras além do mar da costa ibérica e que essas terras
seriam dominadas pelo “imperador cristão” (HÖFELE, 2005, p. 6).

A família Médici – comitente de Stradanus -, cujo governo na região da Tos-


cana dependia do apoio de Carlos V, compartilhava da perspectiva do impera-
dor. O artista italiano Giovanni Albicanti produziu, a pedido de Cosmo de Médici,
para o casamento do Grão-duque com Eleonora em 1541, uma imagem de Carlos
V, acima de um arco do triunfo, vestido como um imperador romano, matando
três indígenas. Essa imagem vinha acompanhada de um texto poético que dizia:
“Nossa Era será mais rica e perfeita / Com o Novo Mundo descoberto e domina-
do” (ALBICANTI, Apud MARKEY, 2016, p. 20, tradução nossa). Nesse sentido, ainda
que os europeus tivessem suas diferenças e travassem constantes guerras entre
si, compartilhavam do pensamento de totalização da experiência histórica da
humanidade baseada na expansão dos ocidentais pelo Orbis Terrarum, na me-
dida em que buscavam demarcar uma Era a partir de seus feitos, ignorando ou
ocultando as sociedades outras, como bem apontado pelos estudos do grupo
Modernidade/Colonialidade.

O que discutiremos a seguir, a partir da análise de gravuras de Stradanus,


é que uma das bases fundamentais para a formação da identidade europeia e
da consequente Modernidade se dá pela concepção da Natureza. Natureza essa
que será pensada pelos ocidentais desde o Gênese bíblico e alinhada no Renas-
cimento em prol da dominação do humano perante o mundo.

3 “Vá além”, do latim.

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A concepção da Natureza no Ocidente e as contribuições de Johannes


Stradanus.

Apesar de os italianos se considerarem como portadores do Renascimento


– contexto histórico que os consagraria à Modernidade –, Ernst Cassirer afirma
que houve, até mesmo entre os próprios europeus, uma necessidade de “alinha-
mento” acerca do que era a Natureza para o Ocidente. Até as produções de Ni-
colau de Cusa (1401-1464), teólogo alemão que viveu por muito tempo na Itália,
a perspectiva sobre o mundo e a Natureza estava mais próxima daquela vista no
Gênese do que no pensamento Moderno que viria a se estruturar no século XVI,
mas já apresentava mudanças em relação ao pensamento medieval (CASSIRER,
p. 79, 2001).

No Gênese, a Natureza era uma criação de Deus, feita para ser entregue
ao Homem. Tudo que fora criado deveria ser subjugado em favor da vivência da
Criatura:

E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhan-


ça; e domine sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre o gado,
e sobre toda a terra, e sobre todo réptil que se move sobre a terra. E criou Deus
o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou, macho e a fêmea os criou.
E Deus os abençoou, e Deus lhes disse: Frutificai e multiplicai-vos, e enchei a
terra, e sujeitai-a; e dominai sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e
sobre todo animal que se move sobre a terra. (A BÍBLIA, GÊNESIS 1:26–29, 2015).

Nesse sentido, a Natureza era algo a ser utilizado, mas não criado pela hu-
manidade. O pensamento de Nicolau de Cusa, já num sentido ligeiramente di-
verso, era de que a Natureza emanava a perfeição divina e os humanos, com
seus sentidos, deveriam compreender cada vez mais o mundo afim de conhecer
a totalidade da criação de Deus (CASSIRER, p. 79, 2001). Posteriormente, Giorgio
Vasari acrescenta mais uma camada à concepção de Natureza ao valorizar a Arte
e os artistas de seu tempo. O autor diz em seu livro “Vida dos mais eminentes
pintores, escultores e arquitetos”, publicado pela primeira vez em 1550:

A arte deve sua origem à própria Natureza [...] esta bela criação, o mundo, for-
neceu o primeiro modelo, enquanto o mestre original foi aquela inteligência
divina que não apenas nos tornou superiores aos outros animais, mas como
o próprio Deus, se me atrevo a dizer isto (VASARI, 2009, p. 43, tradução nossa)

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Para Vasari, a Arte renascentista deveria ser baseada no realismo, como


uma das capacidades que a humanidade teria a seu dispor para alcançar os fei-
tos divinos, recriando a Natureza assim como Deus o fizera uma vez na criação
do mundo. Existe, portanto, uma alteração na concepção da Natureza baseada
no avanço tecno-científico do século XVI, na medida em que, nesse momento, a
Natureza não seria mais somente inspiração, mas recriação. A invenção da pin-
tura a base de óleo - por exemplo - creditada pelos ocidentais a Jan Van Eyck
(1390-1441), pintor de origem belga, teria sido um dos principais avanços técnicos
responsáveis por permitir às mãos humanas a possibilidade de recriação da Na-
tureza, já que as tintas feitas com base no azeite demoravam mais a secar em
relação a tinta feita a base de clara de ovo, propiciando aos artistas mais tempo
de pintura e maior sobreposição de tons para imitar a realidade.

Albrecht Dürer, conhecido pintor e gravurista alemão (1471-1528), respon-


sável por difundir o uso das gravuras na Itália, compartilhava dessa perspectiva
quando disse que “Muitos artistas pintam figuras de si mesmos e os grandes
artistas têm o poder de criação como o de Deus. Pois um bom pintor está inter-
namente cheio de figuras” (DÜRER, Apud HALL, 2014, p. 112). Um artista valoriza-
do, nesse momento, era aquele que tinha grande inventividade, ou seja, criava
figuras e imagens a partir de seus pensamentos. Mesmo Vasari elogia Stradanus
– seu aprendiz – nesse sentido ao dizer que “Giovanni della Strada, um flamengo,
que [tem] bom desenho, a melhor fantasia, muita invenção e uma boa maneira
de colorir” (VASARI, 2009, p. 18, tradução nossa). A invenção, portanto, era a capa-
cidade de recriar a Natureza sem depender de pensamentos alheios, responsa-
bilizando apenas o artista por sua obra, numa característica quase divina.

Num sentido semelhante, mas em relação a outro avanço tecno-científico,


Johannes Stradanus descreve, em uma de suas gravuras, o uso da pólvora - arte-
fato de criação humana - como “Trovão e relâmpago feitos pelas mãos”, atribuin-
do à humanidade uma característica que apenas Deus havia sido capaz de criar:
o poder de um raio. Pelo barulho que produziam e a destruição da qual eram
capazes, os canhões que utilizavam pólvora eram constantemente associados
aos relâmpagos no imaginário europeu. O conhecido poeta italiano Francisco

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Petrarca (1304-1374) afirmou: “Não bastava que o céu trovejasse a ira de Deus
imortal, era necessário que o homúnculo [...] trovejasse também da terra: a lou-
cura humana imitou o inimitável raio” (PETRARCA, Apud FRUGONI, 2007, p. 124).

Figura 1: Pulvis Pyrius. Nova Reperta. Johannes Stradanus, ca. 1585, gravura em papel. Fonte: British Museum.

A Natureza, portanto, era “imitável” na medida em que os seres humanos


logravam forças semelhantes ao poder divino, seja na (re) criação ou na destrui-
ção. Na gravura acima, que é a de número 3 da série Nova Reperta, Stradanus
representa, ao mesmo tempo, a criação da pólvora, a produção de canhões e a
utilização final, identificada, no canto superior direito da imagem, pela destrui-
ção das paredes de um castelo pelas pesadas esferas de ferro. A Natureza, nesse
sentido, se aproxima cada vez mais do que Francis Bacon (1561-1626) chamaria,
em menos de trinta anos depois, de “Novum Organum”, feito para ser explorado,
conhecido e que permitia a repetição de um determinado evento a fim de se
chegar à delimitação de um experimento científico, totalmente controlado e or-
ganizado pelas mãos humanas (QUIJANO, Apud MIGNOLO, 2017, p. 4). A criação
da pólvora, assim como a destruição possibilitada pelo seu uso, é representada
como um constructo humano extremamente controlado, com divisão de tarefas
e formas de utilização que se buscam provar eficazes a partir da demonstração
de sua potencialidade final, isso é: o domínio sobre a Natureza.

Bacon, em seu livro “Novum Organum”, publicado já no século XVII, parece

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buscar uma espécie de batalha com a Natureza afim de vencê-la e descobrir


“seus segredos” (BACON, 2000, p. 3). O filósofo britânico propunha a criação de
um “novo método”, que fosse suficientemente capaz de fazer com que os conhe-
cimentos sobre o mundo não só se estabelecessem, mas que eles avançassem
sobre o “desconhecido”:

Mas aqueles dentre os mortais, mais animados e interessados, não no uso pre-
sente das descobertas já feitas, mas em ir mais além; que estejam preocupados,
não com a vitória sobre os adversários por meio de argumentos, mas na vitória
sobre a natureza, pela ação; não em emitir opiniões elegantes e prováveis, mas
em conhecer a verdade de forma clara e manifesta (Idem, 2000, p. 6).

Bacon se propõe a vencer a Natureza. Isso seria alcançado pela criação de


um método que nos permitiria utilizar nossos sentidos e instrumentos científicos
para avançar perante as forças ocultas da Natureza. Essa concepção dialoga com
a de Johannes Stradanus que, por sua vez, considera que a Natureza só pode ser
considerada como vencida quando obedece ao ser humano, por meio da ciência
e da tecnologia. O intelecto humano desvenda, com seus instrumentos, aquilo
que a Natureza parece esconder propositalmente. Isso pode ser percebido pela
forma como é descrita a invenção da bússola por Stradanus, na gravura de nú-
mero 2 da série Nova Reperta: “Aquela pedra relevou a Flávio o seu segredo de
amor pelo polo, mas ele revelou isso para o navegador” (STRADANUS em Nova
Reperta, ca. 1585).

A pedra ímã teria revelado um segredo para Flávio Amalfitanus, o suposto


inventor da bússola. O magnetismo terrestre que faz com que uma agulha apon-
te para o polo é transformado numa “confissão amorosa”, como numa relação de
dominação de um ator ativo - o cientista - sobre um passivo – a Natureza. Além
da revelação de seu “amor secreto”, o homem cientista compartilhou essa des-
coberta com o navegador, facilitando a expansão humana pelo Orbe.

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Figura 2: Lapis Polaris Magnes. Nova Reperta. Johannes Stradanus, ca. 1585, gravura em papel. Fonte: British
Museum.

Na representação visual de Stradanus, Flávio Amalfitanus observa a Natu-


reza pelos instrumentos e não pela Natureza em si. Há, na gravura acima, apenas
elementos que apontam a presença da Natureza - como a janela ao fundo que
mostra embarcações no mar -, mas a sua interpretação acontece dentro de uma
sala, com livros e compassos, além de um globo e rosas dos ventos. O ambiente é
organizado como um laboratório e o conhecimento é obtido de forma silenciosa
e solitária. Os “louros da descoberta”, por assim dizer, são todos de uma pessoa
apenas, pois não há, para Stradanus, divisão dos méritos nessa empreitada. A
Natureza, para Stradanus, é, portanto, aquilo que é passível de domínio, criação,
recriação e destruição a partir do conhecimento de seus “segredos”. A relação
humano/Natureza se alinha à relação Deus/mundo contida no livro do Gênese,
alternando os termos e colocando a humanidade como soberana perante a Na-
tureza, não da forma como Deus havia determinado, mas alcançando a própria
posição divina.

O avanço tecno-científico como base para a formação da Modernidade.

O avanço tecno-científico do século XVI fora pensado pelos ocidentais como


uma empreitada jamais vista na História da humanidade. Johannes Stradanus

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compila dezenove invenções “de seu tempo” numa série de gravuras que apre-
senta as novas técnicas e invenções que facilitavam a melhoravam a vida dos
seres humanos. O que Stradanus esconde, propositalmente ou não, é que várias
das invenções colocadas por ele na Nova Reperta são de tempos e localidades
diferentes. Os óculos, por exemplo, são invenções que eram já comercializadas
de forma ordinária em Veneza por volta do ano 1285, quando os vendedores de
óculos passavam de porta em porta vendendo o produto capaz de “salvar” a vi-
são dos idosos (FRUGONI, 2007, p. 7). A pólvora já teria sido utilizada no Oriente
há séculos e teria sido adaptada no Ocidente – especialmente na Alemanha - já
no século XIII, mantendo uma distância de quase três séculos da publicação das
gravuras de Stradanus. A colocação das invenções num só tempo, por Stradanus,
revela a busca pela “sincronização do tempo” já vista no Ocidente ao longo do
século XVI e que se manterá como necessidade até o século XIX com a formação
do Meridiano de Greenwich, que alinhou o tempo do mundo todo num só horá-
rio (JORDHEIM, 2014, p. 503).

Isso nos indica, portanto, que o gravurista belga considerou os avanços


científicos como formadores de um novo tempo, principalmente aqueles que
consagraram aos humanos a possibilidade de controle da Natureza, seja na cor-
reção dos males naturais da visão humana – no caso dos óculos -, seja na possibi-
lidade de criar “raios com as próprias mãos” - no uso da pólvora.

Na gravura que representa a invenção, ou “descoberta” da Longitude,


Johannes Stradanus afirma que “Por meio do ímã, que sempre desvia um pouco
para os lados, Plancius fez com que fosse possível encontrar portos em qualquer
lugar” (STRADANUS em Nova Reperta, ca. 1585). Isso pressupõe que o conheci-
mento ocidental fora capaz de alterar uma difícil realidade dos navegantes antes
da descoberta do ímã: a falta de orientação em mar aberto.

Nesse sentido, a série de gravuras de Stradanus valoriza, ao mesmo tempo,


os próprios avanços tecnológicos, assim como as conquistas alcançadas pela uti-
lização desses instrumentos. Na gravura da América (figura 3), que é a primeira
imagem da série após o frontispício, o navegante Américo Vespúcio encara uma
indígena sentada numa rede e segura, em uma de suas mãos, um astrolábio –

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instrumento técnico que permite a localização a partir da posição dos astros e


possui uma gravura específica para si na série de gravuras -, e na outra mão, um
estandarte com um crucifixo, ambos símbolos do Ocidente (TATSCH, 2011, p. 171).

Essa associação entre a imagem do europeu que carrega os símbolos dos


avanços científicos só existe quando colocada em contraposição ao símbolo do
que era considerado selvagem, afinal, não existe o civilizado se não há o “incivi-
lizado”. Nessa gravura, a indígena é representada nua, com apenas um cocar e
uma tanga – ambos feitos de penas -, deitada numa rede e acompanhada de ani-
mais, um remo encostado em uma árvore, além de uma cena de canibalismo ao
fundo, na qual três indígenas assariam uma perna numa fogueira. Vespúcio en-
cara a indígena como se estivesse destinado a dominá-la, já que a mulher parece
ter acordado de um longo sono e logo se inclina na direção de um desconhecido
navegador. A inscrição abaixo da imagem diz que “Américo descobre a América.
Desde então estará sempre desperta”, indicando que o sono da América de até
então seria encerrado pelo contato com o Ocidente (SCHREFFLER, 2005, p. 301).

Figura 3: América. Nova Reperta ca. 1585, Johannes Stradanus. Gravura em papel.Fonte: British Museum.

Vespúcio é acompanhado por navios no canto esquerdo da imagem e veste


uma armadura por baixo de seu manto. Se considerarmos que a formação da
Modernidade não seria possível sem a invenção da América, como nos apontou

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Castro-Gómez (2005, p. 46), essa gravura representa a busca pela participação


italiana na conquista da América assim como o pontapé inicial de um novo tem-
po – a Modernidade -, marcado pela capacidade do ser humano em alcançar
grandes feitos pelo auxílio e utilização dos instrumentos científicos. Como diz o
estudioso latino americano Walter Mignolo: “A América não era uma entidade
existente para ser descoberta. Foi inventada, mapeada, apropriada e explorada
sob a bandeira da missão cristã” (MIGNOLO, 2017, p. 4). A invenção da América,
para Stradanus, é consequência do conhecimento da Natureza, já que muitos
dos seus “segredos”, como o continente “desconhecido” foram revelados em seu
tempo com o auxílio dos instrumentos criados pelos humanos.

Um pensador italiano, chamado Girolamo Cardano (1550-1600), em sua obra


“De vitta própria Liber”, publicada apenas em 1663, décadas após a sua morte,
aponta que seu tempo era uma espécie de pináculo da humanidade, principal-
mente devido ao alcance das capacidades divinas:

Em meio a prodígios naturais, o mais importante e mais raro é que eu nasci


nesse século, no qual toda a Terra foi feita conhecida, enquanto os Antigos mal
conheciam um terço dela [...] o que é mais incrível é que a artilharia, o tiro de
raio dos mortais, é muito mais perigoso do que o dos deuses. Nem eu omitirei
o grande compasso, que guia pelos vastos oceanos do exterior e das regiões
desconhecidas. Deixe-me finalizar e adicionar a invenção da imprensa, feita por
mãos humanas e inventada pela ingenuidade humana, que faz milagres divi-
nos (CARDAMO, 1930, p. 34-35, tradução nossa)

O conhecimento da Terra e da Natureza, nesse aspecto, é base fundamen-


tal para o estabelecimento de critérios de superioridade de uma Era por outra,
ou de uma sociedade, por outras. O “Novum organum” é formado, portanto,
pela capacidade humana em se assemelhar a Deus, primeiro conhecendo os
“segredos” da Natureza e, posteriormente, recriando a Natureza a partir dos ins-
trumentos tecno-científicos, que moldam o mundo a partir do que deseja o ser
humano ocidental.

Breves considerações sobre as gravuras de Stradanus pela ótica da in-


terculturalidade Crítica.

Se buscamos observar as gravuras de Stradanus pela ótica da Interculturali-

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dade Crítica devemos, de antemão, definir o que ela é e como entendemos a sua
importância para o avanço dos estudos que relacionem a Natureza e a humani-
dade. Como apontou Elias Nazareno:

A interculturalidade crítica, entendida como processo social, político e epistê-


mico, pode ser considerada, portanto, como sinônimo da decolonialidade, pois,
mesmo tendo em conta as relações assimétricas estabelecidas pelo coloniza-
dor em termos políticos, sociais e epistêmicos, não há como negar a influência
recíproca exercida por parte daqueles que foram historicamente subalterniza-
dos. Nesse sentido, a decolonialidade instala-se no mesmo momento em que
se instala a colonialidade do poder. (NAZARENO, 2017, p. 46).

Dessa forma, a Interculturalidade Crítica é a busca pela diversidade epistê-


mica, caminhando no sentido contrário ao imposto pela Colonialidade do Poder,
cuja estrutura de dominação estava imersa na Matriz Colonial de Poder da qual
nos falou Walter Mignolo (2017, p. 6). A Matriz Colonial de Poder é a organização
da economia, da autoridade, da epistemologia, do gênero e da sexualidade pelo
colonizador europeu ao se apoderar da América ao longo do século XVI e que
ainda hoje, não se encerrou. A colonialidade é, portanto, toda a junção entre os
modus operandi, vivendi e pensandi do colonizador, que fora implementada nos
territórios colonizados (BANIWA, 2019, p. 59).

Nessa implementação, não somente os povos nativos da América foram


afetados, mas também os próprios europeus – de formas diferentes – na medida
em que os conhecimentos dos ocidentais eram constantemente contrastados
com os conhecimentos indígenas, na busca pela sobreposição daquele por este.
O processo de concepção do que era a Natureza ao longo do século XVI, como já
dito, cumpre papel fundamental na Matriz Colonial de Poder, visto que ela daria
as bases filosóficas e morais para a exploração dos territórios encontrados pelos
colonizadores sem considerar as vivências tradicionais anteriores.

A interpretação da Natureza se baseou, durante a colonização, na separa-


ção entre Natureza e humanidade, pois a partir dessa cisão era possível utilizá-la
como algo externo à própria humanidade, numa relação que considerou o hu-
mano como superior à Natureza ao utilizar-se de instrumentos de conhecimen-
to e controle. Johannes Stradanus contribuiu para a formação dessa perspectiva
ao glorificar as invenções supostamente modernas que garantiam a expansão

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pelo Orbe e o consequente domínio daquilo que fosse ligado à Natureza, como
os próprios ameríndios, pensados quase sempre como parte intrínseca do cená-
rio tropical.

A perspectiva indígena sobre a Natureza não aparta o ser daquele lugar


aonde vive. David Kopenawa disse em seu livro “A queda do céu: palavras de um
xamã Yanomami” que: “No primeiro tempo, os brancos estavam muito longe de
nós. Ainda não tinham trazido o sarampo, a tosse e a malária para nossa floresta.
Nossos ancestrais não adoeciam tanto quanto nós, hoje (KOPENAWA, 2015, p.
224). Nesse trecho, podemos perceber a associação do “nós” com a floresta, pois
o descontentamento de Kopenawa em relação ao sarampo, a tosse e a malária
se dá na contaminação da “nossa floresta” e, consequentemente, da comunida-
de, não havendo, portanto, separação entre os corpos indígenas e o local onde
vivem.

Mesmo que David Kopenawa esteja vivo em nosso século – o que pareceria
um anacronismo ao historiador do século XIX -, sua perspectiva remonta ao pen-
samento passado entre as gerações indígenas há séculos e que permanece vivo
nos dias atuais, com efeito do tempo, claro. Como apontou Federico Navarrete, a
tradição oral ameríndia deve ser compreendida como uma documentação his-
tórica, pois, muitas vezes, as organizações sociais indígenas estão baseadas na
oralidade, perpassada por critérios de verificação e valorização dentro da socie-
dade. A Colonialidade atribuiu às narrativas indígenas ao campo daquilo que é
considerado como mitológico, afastando-as do campo do logos, do pensamento
racional. Nesse sentido, isso é, antes de tudo, uma forma de desvalorização das
tradições indígenas baseada no pensamento ocidental que associa tudo aquilo
que se mistura com a Natureza como primitivo, inferior, pois a Natureza é tratada
pela perspectiva da dominação, não da coexistência e do Bem Viver (NAVARRE-
TE, 1999, p. 232).

A Modernidade/Colonialidade buscou separar cada vez mais a Natureza


do ser humano, pois uma aproximação entre estas duas categorias seria, para o
pensamento ocidental, o rebaixamento de uma pela outra, já que mesmo a pró-
pria História fora pensada como progresso linear, atribuindo a evolução humana

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ao seu afastamento e controle da Natureza. Johannes Stradanus, nesse sentido,


coloca seu tempo como o superior até mesmo em relação aos Antigos de Grécia
e Roma – muito valorizados no Renascimento -, justamente porque os Antigos,
apesar de terem tentado se desvencilhar da Natureza, não possuíam os instru-
mentos para dominá-la como os Modernos chegaram a obter.

[...] la crisis actual es causada por un modelo particular de mundo (una ontolo-
gía), la civilización moderna capitalista de la separación y la desconexión, don-
de humanos y no humanos, mente y cuerpo, individuo y comunidad, razón y
emoción, etc. se ven como entidades separadas y autoconstituidas (ESCOBAR,
2017, p. 68).

Pablo Alarcón Cháires aponta que o projeto de desenvolvimento baseado


apenas no progresso possui uma característica que é tanto sua base, como tam-
bém sua aplicação, já que o: “proyecto de modernidad responde a su intoleran-
cia hacia toda forma premoderna, la cual es calificada de arcaica, obsoleta, primi-
tiva e inútil, que la desprovee de conciencia de especie y de conciencia histórica”
(ALARCON-CHÁIRES, 2019, p. 19). Dessa forma, para além da separação entre Na-
tureza e ser humano, a Modernidade busca separar também aquelas sociedades
cujas organizações se conectam com a Natureza, conotando-as de sociedades
selvagens e atrasadas. Johannes Stradanus coloca, em sua gravura sobre a Amé-
rica (figura 3), a oposição entre o mundo ocidental, cristão, científico, racional,
masculino e o mundo selvagem, canibal, nu, irracional, feminino, de forma que
essa oposição, em verdade, é a busca pela separação daqueles que alcançaram
o poder divino e aqueles que apenas vivem das criações divinas.

Para Stradanus, o conhecimento, cuja a grandeza e a consequência seria


possível definir pelo grau de instrumentalização da Natureza, se produz de for-
ma solitária em praticamente todas as gravuras da Nova Reperta. É possível no-
tar uma perspectiva de criação de conhecimento diversa daquela que têm os
povos originários da América, que buscam o conhecimento pela prática coletiva,
como diz o estudioso Alexandre Herbetta (2019, p. 8). Entretanto, essa separação
entre conhecimento indígena e ocidental é, em grande parte, uma invenção do
colonizador, pois:

Uma vez superada a arrogância, a prepotência e o autoritarismo da ciência oci-


dental, sem dúvida os pontos de convergência entre os conhecimentos tradi-

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cionais e científicos são de verificação simples. Em primeiro lugar, as sociedades


humanas, incluindo as sociedades indígenas, concebem o campo de alcance
do conhecimento ao mesmo tempo limitado e ilimitado. Ilimitado, porque está
em permanente processo de construção, desconstruções, (re)construções, des-
cobertas, invenções, interpretações e crenças dinâmicas. Limitado, porque não
consegue explicar e responder a todas as perguntas humanas. Em segundo
lugar, em todas as sociedades humanas, incluindo as sociedades indígenas, os
conhecimentos são construções humanas, ou seja, resultados de observações,
experimentações (erros e acertos) e vivências de longo prazo. Então, pergun-
tamos: o que diferencia o conhecimento científico de outros conhecimentos,
para além do poderio bélico do guardião ocidental da ciência? (BANIWA, p. 70,
2019).

A diferenciação que notamos em Stradanus é que o conhecimento dito


científico serve a propósitos diferentes dos conhecimentos ameríndios, a saber:
um é instrumento de dominação da Natureza e busca pela semelhança com os
poderes divinos do cristianismo, enquanto o outro busca “O Bem Viver, como um
estado de espírito no mundo cósmico mais do que uma qualidade material ou
social de vida está relacionado às relações equilibradas dos sujeitos humanos e
não humanos que coabitam o cosmo” (Idem, 2019, p. 64). Isso não significa dizer
que os conhecimentos ocidentais não propiciaram facilidades e melhorias na
qualidade de vida dos sujeitos que deles se apoderaram, mas que esses conhe-
cimentos não foram pensados para serem compartilhados em igualdade entre
todos os humanos e a Natureza, pois mesmo em sua gênese está a marca da
individualidade e a separação sujeito/objeto, ou Humano/Natureza.

Em nossa análise, à guisa de considerações finais, pudemos avaliar, a partir


da análise das gravuras da Nova Reperta de Stradanus que a Natureza é vista
como um local a ser dominado pelo conhecimento tecno-científico, enquanto
que, no sentido oposto, os saberes outros da Decolonialidade apontam os co-
nhecimentos como formas de buscarmos o Bem Viver, que é a vida em socieda-
de e harmonia com a Natureza, sem a necessidade de sermos superiores a ela,
pois não somos seus criadores.

Johannes Stradanus, em seu tempo, produziu gravuras que atendessem


aos pedidos da Família Médici, elaborando um arcabouço visual de valorização
da Modernidade na busca pelo engrandecimento do ser humano que atingia os

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poderes de Deus no Gênese, pois alterava, controlava e recriava a Natureza com


suas próprias mãos. Nesse processo de valorização da humanidade – não toda
ela –, aqueles seres que não correspondessem ao que era visto como racional
segundo os parâmetros da sociedade cristã ocidental, eram considerados como
imagens estáticas de um passado já superado pelos europeus. Os ocidentais
buscaram se representar como imagem e semelhança de Deus, inspirando-se
na narrativa judaico-cristã, para, não do barro, mas dos instrumentos técnicos,
moldar a Natureza - principalmente a América e seus habitantes - segundo seus
desejos sem considerar, portanto, os conhecimentos outros e as possibilidades
de conciliação na busca por uma sociedade menos hierárquica e mais diversa.

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ARTICULAÇÕES ENTRE ELIFAS ANDREATO E TOM ZÉ: UM


ESTUDO DO ÁLBUM “ESTUDANDO O PAGODE” (2005)

Bárbara Aparecida Costa Falleiros1

Introdução.

A música é uma expressão artística cotidianamente vivida pelas pessoas,


seja através dos veículos de comunicação como o rádio e a televisão, em locais
públicos como bares, restaurantes, supermercados, como também através da
escolha individual de acessar plataformas digitais, discos ou até mesmo frequen-
tar shows e festivais. Assim, ao ouvir uma música podemos experienciar diversas
sensações, absorvendo conteúdos propostos pelos autores e também atribuindo
sentidos pessoais às obras. Desse modo, a recepção de uma determinada obra
não é controlada por seu autor, visto que somos seres singulares com percep-
ções diversificadas das experiências musicais.

Um álbum musical geralmente é experienciado pelo sensorial auditivo deli-


mitando suas análises as questões musicais, tais como timbres, vibrações, ritmos
e vocalização. Contudo, existem outros elementos que devem ser analisados, tais
como a forma, a performance e também a capa do álbum. Portanto, o presen-
te trabalho tem por intuito analisar a capa do álbum Estudando o Pagode, Na
Opereta SegregaMulher e Amor (2005) do cancionista baiano Tom Zé, que foi
elaborada por um dos maiores capistas da história brasileira, Elifas Andreato.

Segundo a biografia escrita por Pietro Scaramuzzo, Tom Zé, o último tro-
picalista (2020), o trabalho entre o cancionista baiano e o capista paranaense
iniciou em 1984 com a elaboração da capa do disco Nave Maria. A partir dessa

1 Mestranda em História pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade Fe-


deral de Uberlândia (PPGHI/UFU). E-mail: barbarafalleiros98@gmail.com.

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capa, ambos artistas estreitaram os laços e Elifas Andreato ficou encarregado de


elaborar as capas dos álbuns The Hips of Tradition (1992), Jogos de Amar (2001),
Estudando o Pagode (2005), Canções eróticas de ninar (2016) e Sem você não
A (2017). Trabalhos que foram relembrados por Tom Zé em sua rede social Insta-
gram, em uma homenagem a Elifas Andreato no dia de sua morte, 29 de março
de 2022. De acordo com o site do G1 da Globo:

Elifas tinha mais de 40 anos de carreira e ficou conhecido principalmente pelas


362 capas de discos que produziu, principalmente nos anos 70, de artistas como
Chico Buarque de Holanda, Elis Regina, Adoniran Barbosa, Paulinho da Viola,
Martinho da Vila, Toquinho e Vinícius de Moraes. (G1, 29 de mar. de 2022).

Desse modo, as capas dos discos Nervos de Aço (1973) de Paulinho da Viola,
Um pouco de ilusão (1980) de Vinícius de Moraes e Toquinho, Terreiro, Sala e
Salão (1979) de Martinho da Vila e Ópera do Malandro (1980) de Chico Buarque
são alguns dos trabalhos feitos por Elifas Andreato ao longo de sua carreira. A
partir disso, focaremos a análise no álbum Estudando o Pagode, Na Opereta
SegregaMulher e Amor (2005).

“Álbuns de pesquisa”, do Brasil para o Mundo.

Na década de 1970, Tom Zé traça sua singularidade na música brasileira e


inicia a compor obras autointituladas como álbuns de “pesquisa”. O músico sub-
merge nas referências adquiridas no período que estudou na Escola de Música
da Universidade Federal da Bahia - UFBA, do período que trabalhou como dire-
tor de música no Centro Popular de Cultura - CPC associado à União Nacional de
Estudantes - UNE e dos trabalhos desenvolvidos no grupo musical tropicalista.

Assim, nota-se o teor crítico à sociedade brasileira, sobretudo a classe média


do país que apoiou o Golpe Militar de 1964, através de um estilo musical que valo-
riza os ruídos e os elementos externos a vocalização, denominada como música
de vanguarda. Como consequência, o cancionista ficou afastado dos holofotes
da indústria musical brasileira, visto que suas canções não agradavam o gosto da
elite nacional que desfrutava das obras que continham o símbolo da MPB - Mú-
sica Popular Brasileira como um sinal de “bom gosto” (NAPOLITANO, 2002. p. 4.).

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Dessa forma, Tom Zé é associado a imagem dos “malditos” juntamente


com os músicos Luis Melodia, Jards Macalé, Walter Franco e Jorge Mautner que
desenvolviam obras de contracultura fortemente apreciadas por jovens universi-
tários da época. Após a pouca visibilidade dada ao LP Todos os Olhos (1973), Tom
Zé compôs o principal álbum de sua carreira, Estudando o Samba (1976). Esse
LP foi o responsável por afastá-lo dos palcos nacionais e também de inseri-lo nos
palcos mundiais na década de 1990.

Segundo David Byrne2, na década de 1980 ele estava no Brasil para o Festi-
val do Rio onde exibiu seu filme Histórias reais e passou em lojas de discos com
o intuito de conhecer melhor a MPB. Dentre os discos de samba encontra-se
o álbum Estudando o Samba (1976) cuja capa lhe chamou a atenção devido a
presença de arames farpados, em contraste das demais obras de samba que es-
tampavam corpos femininos com roupas de praia ou a feição dos próprios com-
positores.

Só ouvi o disco com o arame farpado na capa ao voltar a Nova York algumas
semanas depois. Coloquei a agulha da vitrola na primeira faixa e minha cabeça
explodiu. O que era aquilo? Aquela música parecia ter mais em comum com a
cena avant-garde de Nova York do que com qualquer disco de MPB ou samba
que ouvira antes. Naquele disco ouvi instrumentos musicais brasileiros próprios
de estilos regionais e populares - cavaquinhos, acordeões e repiques, usados
como se todos os elementos desses gêneros populares fossem descontruídos,
tivessem explodido, e as partes fossem rearranjadas por algum minimalista ra-
dical. (SCARAMUZZO, 2020, p. 18-19).

Desse modo, em 1990 Tom Zé lança o álbum Brasil Classics 4: The best of
Tom Zé sob o recente selo criado por David Byrne, Luaka Bop. Essa obra contém
diversas músicas do álbum de 1976, como Mã, A felicidade, Tô e Vai (Menina,
amanhã de manhã), além de canções dos álbuns Todos os Olhos (1973) e Nave
Maria (1984) selecionadas pelo próprio David Byrne, que na contracapa do disco

2 David Byrne (1952) é um músico escocês que foi vocalista e guitarrista da banda Tal king
Heads e compôs as obras Tal king Heads ’77 (1977); Remai in Light (1980); Sparing in Togues
(1983); Stop Maquina Senes (1984) e Nu (1988) com a banda. Byrne também escreveu e dirigiu o
filme Troe Setores (1986), contribuiu com a trilha sonora do filme O último Imperador (1987) do
qual recebeu um Oscar, além de trabalhar com o diretor Robert Wilson em duas peças teatrais. Em
1988, Byrne fundou a Luka Bope Records e investiu em sua carreira solo com inspiração nos estilos
afro-latinos com o álbum Rei Momo (1989). Após uma turnê no Brasil, David Byrne compra alguns
discos de samba, dentre eles, o de Tom Zé, Estudando o Samba (1976) e convida o músico a gravar
o álbum The Best o Tom Zé (1990).

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escreveu:

A música de Tom Zé é diferente de qualquer outra música brasileira que jamais


ouvi [...]. A popularidade de massa o rejeitou, talvez porque ele temia em impul-
sionar e expandir os limites da música popular de maneiras únicas e inespera-
das. Maneiras que nos surpreeendem e nos deliciam também agora. (SCARA-
MUZZO, 2020, p. 211).

Tal obra alcançou o décimo lugar da revista estadunidense especializada


em indústria musical, a Bilboard. Assim, após consolidação de uma carreira in-
ternacional, Tom Zé retoma o projeto de estudo do gênero musical iniciado em
1976 com o LP Estudando o Samba e compõe o álbum Estudando o Pagode,
Na Opereta SegregaMulher e Amor em 2005.

A Opereta de Tom Zé.

Lançado no Brasil em 2005 pela gravadora Trama e posteriormente, em


2006, nos Estados Unidos pela gravadora Luaka Bop, Estudando o Pagode, Na
Opereta SegregaMulher e Amor dá continuidade ao projeto de pesquisa de Tom
Zé sobre gêneros musicais, tal projeto foi concluído em 2008 com o álbum Es-
tudando a Bossa. Por mais que as capas das obras de 1976, 2005 e 2008 foram
elaboradas por artistas diferentes, elas carregam um símbolo em comum, a pre-
sença das cordas e arames farpados que chamaram a atenção do artista estadu-
nidense David Byrne.

Imagem 1: Capas dos álbuns Estudando o Samba (1976), Estudando o Pagode (2005), Estudando a Bossa
(2008). Acervo: site Tom Zé oficial. Disponível em: <https://tomze.com.br/>. Acesso em: 09 de jun. 2022.

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Sobre o símbolo que conquistou o artista estadunidense a Historiadora


Emília Saraiva Nery faz uma análise da capa do álbum de 1976 em sua tese A
Imprensa Cantada de Tom Zé: Entre o Tropicalismo e uma Linha Evolutiva na
MPB (1964-1999):

A interligação entre fios de arame e cabos de instrumentos elétricos é um apelo


visual para que o ouvinte consumidor saiba que o estudo tomzéniano sobre o
samba utiliza os recursos da música concreta, eletrônica e eletroacústica. A uti-
lização desses recursos é verticalizada na música “Toc” a partir da imprevisibili-
dade do rádio remetente a John Cage em “Paisagem Imaginária n. 2”; dos ruí-
dos, vinculados ao futurismo, e da sobreposição de sons gravados, que lembra
a música concreta. Esta, por sua vez, remete ao sampler Hertzé. E, por último, a
máquina de escrever que havia sido usada por Satie em “Parade”. (NERY, 2014,
p. 142).

Nos álbuns Estudando o Samba e Estudando o Pagode há mais elemen-


tos semelhantes, como a cor branca de fundo e a mesma fonte para os títulos.
Contudo, na capa de 2005 há um diferencial, a presença de um corpo feminino e
o símbolo composto pelas cordas e arame farpados que envolvem essa mulher.
Nesse sentido, Larissa Caldeira Gaspar Padre na dissertação “Estudando Tom Zé:
Crítica musical e o estético-político, analisa as três capas apresentadas acima.
Segundo a autora:

A capa com fundo branco traz ao centro a figura de uma mulher idealizada.
Com uma deusa grega, romana ou uma mulher ideal da sociedade judaicocris-
tã: branca, cabelos pretos arramados com um coque, corpo com silhuetas en-
volventes, nua e de costas, com a cabeça e rosto vistos lateralmente, ela segura
um tecido de seda cor-de-rosa que cai aos seus pés. O título Estudando o Pago-
de, com a palavra pagode escrita em destaque numa tonalidade de rosa, abaixo
com fonte menor, surge o nome de Tom Zé. Mais abaixo se tem o subtítulo “na
opereta segregamulher e amor”, com a palavra segregamulher em negrito. E
como se estivesse mais em primeiro plano na diagramação da capa, destaca-
-se uma cerca de arame farpado, que também aparece nos discos Estudando
o Samba (1976) e Estudando a Bossa (2008). Seguindo a proposta do artista, a
capa parece um cartaz de opereta, folhetim ou novela. Nas capas dos três dis-
cos, o arame farpado diz respeito a segregação do gênero musical. Entretanto,
no disco de 2005, algo chama atenção e gera questionamentos. No centro da
capa e cercada pelo arame aparece uma mulher idealizada, branca e dentro
dos padrões considerados belos. Essa “apresentação” da mulher não condiz
com o biótipo da maioria das mulheres brasileiras, mas sim com um padrão
hegemônico do que seria a mulher ideal para as sociedades judaico-cristã ou
greco-romana. A questão da segregação da mulher está diante de uma pers-
pectiva masculina, a partir das reflexões de um homem de meia idade, casado,

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heteronormativo, branco e socioeconomicamente favorecido. (PADRE, 2018, p.


107).

O presente álbum, tem por intuito discutir sobre o machismo na sociedade


brasileira, e Tom Zé retorna às tradições greco-romanos e judaico-cristãos apon-
tadas pela autora para remontar às tradições machistas impostas em nossa so-
ciedade durante a colonização do país. No entanto, ela se refere a idealização
da figura central, a mulher, como a mera perspectiva de “um homem de meia
idade, casado, heteronormativo, branco e socioeconomicamente favorecido”, e
ao longo de seu trabalho notamos que Padre se alinha às críticas especializadas
em música que apontam e adjetivam essa obra como um álbum machista que
toma o espaço das mulheres e seus locais de fala.

Primeiramente, é necessário ressaltar que essa capa foi elaborada por Elifas
Andreato em diálogo com Tom Zé. De acordo com o texto O Processo Criativo
de Capas de Discos e o Papel da Biografia nesse Contexto: os Casos de Roger
Dean, Andy Warhol, Elifas Andreato e Gringo Cardia, escrito por Valéria Nancí
de Macêdo Santana, Elifas Andreato “é um desses capistas que se pode dizer que
imprime em suas produções o compromisso social de sua dura história de vida.”
(SANTANA, 2017).

Nesse trabalho, Santana analisa as obras dos capistas estrangeiros Roger


Dean e Andy Warhol e dos brasileiros Elifas Andreato e Gringo Cardia a partir de
suas biografias, ou seja, ao longo do trabalho ela aponta elementos históricos
pessoais que interferiram diretamente nas produções das capas dos discos des-
ses artistas. Desse modo, Elifas Andreato teve uma infância muito dura, com um
pai que sofria de alcoolismo precisava ajudar sua mãe, e a autora ressalta que o
principal diferencial deste artista é o “lado humano retratado em suas capas de
discos”.

Através da entrevista que o capista concedeu a professora Roseli Aparecida


Figaro Paulino para a revista da USP - Universidade de São Paulo, Comunicação
e Educação, Elifas Andreato, A consagração de uma arte engajada, a autora
Valéria Nancí de Macêdo Santa conclui que:

Elifas sempre foi um homem preocupado com causas nobres, por isso fazia ca-

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pas cheias de sentimento de humanidade. Ainda jovem, os quadros que pinta-


va já o direcionariam para essas características de arte. Disse ele em entrevista:
“(...) além das pinturas decorativas, pintava uns quadros. Umas coisas terríveis.
Tinham a ver com minha história, eram figuras desesperadas, crianças abando-
nadas, famílias desestruturadas” (SANTANA apud FÍGARO, 2017).

A partir dessas considerações, nota-se que Elifas Andreato está preocupado


em representar o humano através de suas obras. E o álbum Estudando o Pago-
de (2005) trabalha como uma temática extremamente importante da sociedade
brasileira, o machismo estrutural herdado das tradições greco-romanas e judai-
co-cristãs impostas pelos colonizadores europeus no nosso país. Desse modo,
em diálogo com Tom Zé, o capista é capaz de retratar a idealização da mulher na
capa do álbum em discussão.

Assim, o corpo perfeito, de quadris largos, pele branca, e uma postura de


feminilidade e sensibilidade é passada para os espectadores que a recebem de
forma natural, visto que este é um padrão de beleza imposto em nossa socieda-
de. Contudo, somos frutos de uma miscigenação e o corpo exposto não retrata
a mulher brasileira, mas sim a mulher europeia ou até mesmo norte-americana,
presente nos filmes Hollywoodianos. Por isso, ao analisar a capa desse álbum
devemos nos atentar na sexta canção dessa obra.

Pagode-Enredo dos Tempos do Medo é a canção que encerra o primeiro


ato do álbum que é composto pela totalidade de três atos. Nessa canção, Tom Zé
cria um teatro cujos personagens são alguns movimentos culturais da história
brasileira.
Vinícius de Moraes, Baden Powell,
Comissão de frente Antonio Carlos Jobim, Menescal,
Ronaldo Bôscoli, Nara Leão,
Carlos Lira, Miéle e o feminino João.
Ala Coluna Prestes: Doutor, você é bom de colarinho
Mas não fez a bossa-nova sozinho.
Ala Cinema Novo: O que te ilude é Roliúde,
Roliúde-ude,
A Cinderela bugue-ugue,
Bugue-ugue bugue,
Prefiro meu pagode-wood,

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God me sacode,
Te deixo com teu rock-bode.
Ala Semana de 22: Doutor, este teu papo não cola
Você vaiou a bossa-nova n ́O Pato.
A gente, além de não ter escola,
Essa cultura de massa é um saco-de-gato.
Ala Poesia Concreta: Saco-de-gato, saco-de-gato

Saco-de-gato, saco-de-gato.

O desentendimento se torna tal que o planeta explode em desacordo, guerra e


confusão, dando fim a uma era da vida humana. (TOM ZÉ, 2005).

Através de uma prosopopeia, o músico dá vida a esses movimentos cultu-


rais que criticam a Bossa Nova, isso porque segundo Tom Zé, os bossa novistas
escreviam letras extremamente machistas de forma romântica, seduzindo as
mulheres e naturalizando atos machistas. Assim como ele exemplifica em uma
entrevista:

Uma coisa maravilhosa como a bossa-nova nasceu dentro da “República de


Ipanema”. Do ponto de vista da situação da mulher, a “República de Ipanema” é
um gueto machista. Vinícius de Moraes, um poeta que as mulheres amam, era
um poeta machista. Por exemplo, o verso que todo mundo sabe dele imediata-
mente, “que o amor seja eterno enquanto dure”. O verso está dizendo à mulher
assim: “olha, eu te pego esta semana, nós vamos fazer um amor eterno. Para na
outra semana eu te mandar embora e fazer amor eterno com outra moça”. (ri-
sos) É isso exatamente! Então, eu trago as letras deles um pouco para comparar
como é que a próprias mulheres no Brasil se deixaram encantar pela distinção e
a gentileza do grande poeta machista que é Vinícius de Moraes. (TOM ZÉ, 2006).

Dessa forma, ao analisar a capa do álbum Estudando o Pagode, recorro a fi-


gura de Heloisa Eneida Menezes Paes Pinto, mais conhecida como Helô Pinheiro
a musa inspiradora da canção Garota de Ipanema:

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Imagem 2: Helô Pinheiro e Vinícius de Moraes. Acervo: Stravaganza. Disponível em: <https://stravaganzastra-
vaganza.blogspot.com/2012/02/garota-de-ipanema-completa-50-anos.html>. Acesso em: 10 jun 2022.

A musa nacional é uma mulher branca, de cabelos longos pretos, de corpo ma-
gro e quadril largo, muito semelhante à imagem da mulher retratada na capa.
Além disso, a Garota de Ipanema não poderia ser uma mulher preta visto que,
naquela época, o acesso às praias centrais do Rio de Janeiro era de exclusivida-
de da alta sociedade carioca, que colocavam a população preta à margem da
sociedade. (FALLEIROS, 2021, p. 43).

Assim sendo, concluo que a capa feita por Elifas Andreato em diálogo com
Tom Zé seja uma crítica direta a Bossa Nova e a uma tradição machista da socie-
dade brasileira que mesmo de forma velada se faz presente até mesmo nos dias
atuais. Por isso, o elemento iconográfico presente nessa obra é uma parte extre-
mamente importante de análise, isso porque ela denuncia questões que são dis-
cutidas ao longo do álbum, além de evidenciar o problema central do trabalho, a
sexualização do corpo feminino através de tradições machista, greco-romanas e
judaico-cristãs, presentes em nossa sociedade.

Considerações Finais:

Ao tratar de produções iconográficas, sobretudo de capas de discos, Elifas


Andreato é uma das nossas principais referências. Esse artista ficou mundial-
mente reconhecido pelos trabalhos desenvolvidos na década de 1970, sobretudo

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por ser encarregado de produzir as capas dos discos dos maiores nomes da MPB.
Em suas obras, o lado humano é fortemente destacado, seja através da feição
dos próprios músicos ou como no caso do álbum Estudando o Pagode (2005),
do retrato social da idealização e sexualização do corpo feminino na sociedade
brasileira.

Assim sendo, o capista consegue retratar nessa capa a discussão central do


álbum, transformando-a em um folhetim de opereta que serve como norteador
do espetáculo de Tom Zé. Além disso, Elifas Andreato enxerga a crítica que o can-
cionista faz aos bossa novistas, e utiliza a garota de Ipanema como musa inspira-
dora dos padrões estéticos impostos às mulheres brasileiras. Padrões esses que
são constantemente disseminados através da televisão e sobretudo na década
de 1960, através dos filmes Hollywoodianos.

Essa é uma discussão extremamente importante, isso porque mulheres são


constantemente intimadas a buscarem o “corpo perfeito”. Contudo, como ter
um padrão de beleza europeu em um país que é fruto de miscigenação de di-
versas etnias? Por esse motivo, Tom Zé remonta às tradições greco-romanas e
judaicas-cristãs para evidenciar que esse é um padrão de beleza importado, ou
melhor, imposto em nossa sociedade. Que merece um lugar de destaque nas
discussões, visto que tal imposição gera diversos problemas físicos e psicológi-
cos nas mulheres que não estão dentro dele.

É evidente que de 2005 para os dias atuais houve uma mudança nesse “pa-
drão de beleza”. Nota-se que corpos negros começam a conquistar algum des-
taque, contudo, esse destaque é gerado pelo capitalismo que lança produtos de
beleza para determinado tipo de cabelo ou pele. Ainda assim, notamos que o
cabelo crespo e a pele retinta ainda não estão totalmente inclusas, visto que os
comerciais e as propagandas em geral dão espaço para um determinado tipo de
cabelo (cabelos ondulados e cacheados) e que o corpo expostos ainda tendem a
atender o padrão magro, ou então o famoso, “corpo de violão” atribuído às mu-
lheres brasileiras.

No álbum Estudando o Pagode (2005), Tom Zé propõe uma discussão so-

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bre o machismo em nossa sociedade, abordando também a temática do corpo


feminino, no entanto o cancionista não dá aos ouvintes a solução para o proble-
ma. Isso porque não temos uma resolução para o machismo no Brasil, país fruto
de um sistema escravista que durou mais de 300 anos e até hoje não conseguiu
fechar tal ferida e resolver os problemas provenientes do preconceito e do ra-
cismo. Desse modo, Tom Zé se abre ao debate através dessa obra e denuncia
elementos machistas em nossa sociedade que são perpetuados de forma vela-
da, e vistos como símbolo de beleza nacional, como o exemplo dado por ele das
músicas bossa novistas.

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PRESERVANDO PATRIMÔNIOS POR TRÁS E ATRAVÉS DOS


PANOS: MEMÓRIA E PRESERVAÇÃO DAS VESTES DA
PROCISSÃO DO FOGARÉU NA CIDADE DE GOIÁS.

Denize Maria dos Santos Freitas1

1 Introdução.

Se por um lado, enquanto ferramenta que remonta as transformações cul-


turais da cidade e do próprio Estado de Goiás, a imagem dos farricocos e seu apa-
rato indumentário promovem o interesse de moradores locais e visitantes, por
outro, desperta os guardiões da tradição para o problema da preservação. Assim,
puídos, rasgos, manchas e deformidades justificariam o interesse da OVAT em
substituir, no ano de 2021, o guarda-roupa da Procissão do Fogaréu, na tentativa
de preservar o patrimônio imaterial em suas visualidades materiais e imagéticas.

Abrindo-se para a valorização do patrimônio, a renovação das vestes do ato


paralitúrgico, pensada para atender a complexa modalidade da atração, não se
reduz ao mero dado estético, mas desperta para a necessidade de se preservar
um patrimônio pouco investigado, suficientemente capaz de dialogar com a co-
munidade ao ponto de traduzir fatos e acontecimentos, envolvendo a Procissão
do Fogaréu e a própria Cidade de Goiás. Compreender e aceitar que o processo
de renovação do objeto têxtil da referida procissão se abre tanto para a preserva-
ção da alegoria visual da tradição, quanto para a preservação do objeto original
de Goiandira do Couto, suscita e faz pensar “Como e Por quê” as vestes do ato
paralitúrgico contribuíram para que o farricoco se transformasse em emblema,
signo minemônico necessário à memória coletiva.

1 Aluna (em caráter regular) do Mestrado Profissional em Estudos Culturais, Memória e


Patrimônio da Universidade Estadual de Goiás - Campus Cora Coralina. E-mail: demasantos05@
gmail.com.

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Assim, no sentido de constituir uma base sólida de informações para o pro-


gresso da perquirição, o trabalho trouxe informações gerais sobre a Organização
Vilaboense de Artes e Tradições (OVAT), enquanto instrumento de preservação
da história e da memória vilaboense e, mais especificamente, sua contribuição
para a promoção da cultura através do resgate e (re) invenção da Procissão do
Fogaréu. No segundo momento, a intenção foi identificar as tramas envolvendo
a coleção de vestes utilizadas na elaboração da figura folclórica do farricoco. Nes-
sa fase interessava analisar a imagem e o discurso propostos pelos guardiões da
tradição, através da figura e código vestimentário do encapuzado.

Por último, com o propósito de colaborar com a preservação desse docu-


mento da vivência e uma vez que a Organização Vilaboense de Artes e Tradições
ainda não decidiu sobre a destinação do bem e contributo material de Goiandira
do Couto, o trabalho propôs uma discussão sobre a destinação social e pública
do acervo, engendrada na fabricação de mecanismos que inviabilizem os silên-
cios, apagamentos e esquecimentos do objeto.

2. (Re) inventando patrimônios.

Em linhas gerais, a Cidade de Goiás, enquanto berço da cultura goiana e


patrimônio da humanidade, é um espaço que trata da ocupação da região cen-
tro-oeste e da busca por riquezas minerais, mas que também se debruça nas
relações sociais estabelecidas na região, salvaguardando memória, história, acer-
vo arquitetônico e patrimônio imaterial, por meio de um diálogo que recupera
trechos da vida e das tradições de seu povo.

Resultante da evocação a um passado vivaz e de progressiva realização e da


lembrança dolorosa sobre as perdas geradas pelo processo mudancista, a (re) in-
venção da Procissão do Fogaréu na Cidade de Goiás fabricou emblemas, signos
e objetos concretos para a formação de um capital cultural, lançando luz àquela
que havia se tornado cidade dos silêncios e decadências cotidianas. Instituídas
na Cidade de Goiás em meados do século XVIII pelo Pe. João Perestrello, as ceri-
mônias da Semana Santa concretizavam o poder da igreja católica e de seus ritu-

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ais e crenças na construção da dinâmica do povo goiano, ao passo que também


criavam mecanismos para a conformação dos corpos no processo de dominação
social, ancoradas na figura emblemática do padre espanhol que, uma vez pauta-
do no equivocado direito de dominação, se fazia notar pelas censuras, acusações
e excomunhões lançadas sobre quem quer que fosse.

Nesse contexto e, tentando superar a opressão por parte do Rev. Perestrello,


cerca de cem homens entre juízes, oficiais e civis teriam se unido para dar fim
aos mandos e desmandos do sacerdote, tertúlia que resultou em sua prisão e
seria reiterada com uma declaração que afirmava que o padre estaria pouco se-
guro de suas faculdades mentais. Resgatado por aliados antes que pudesse ser
encaminhado ao Bispo do Rio de Janeiro, Pe. Perestrello refugiou-se em terras
pirenopolinas, de onde comunicou o ocorrido ao seu superior.

O julgamento sumário resultaria no envio de um comissário juiz e um novo


vigário por sua eminência, o bispo, para a abertura do livro de excomunhões e
condenações; fato que custou a prisão dos dois médicos que atestaram a loucura
do padre e do Ouvidor Manuel Antunes da Fonseca, mentor da rebelião.

Com o fito de se livrarem das punições pelo sacrilégio, os demais partici-


pantes da junta popular se viram obrigados a pagar perto de cem quilos de ouro
à igreja, além de terem sofrido extorsões e vexações diversas, dentre as quais, a
punição para comparecerem vestidos com lã grosseira e um chapéu cônico nas
celebrações da Semana Santa, conforme sugere Bertran (2001):

[...] Para se livrarem os cem condenados da antiga Junta, cada um teve que
pagar 300 oitavas de ouro, 750 gramas per capita, totalizando, entre outros, 83
quilos de ouro, fora os 15 quilos que cobrava o meirinho encarregado da cobran-
ça judicial. Custara perto de 100 quilos de ouro à população o desagravo aos
ataques de loucura e cupidez do padre Dr. Perestrello, além de diversos outros
vexames e extorsões[...] Entre esses vexames pode ter ocorrido a punição de
comparecerem os implicados às festas da Semana Santa vestidos com a esta-
menta de lã grosseira dos pecadores, e o chapéu cônico, o capuz dos condena-
dos. Em vez dos vistosos cavaleiros vestidos de seda com alamares e espadas
de prata a buscar Cristo para a prisão, outros os danados, correndo descalços a
machucarem os pés nas pedras, à luz de archotes. O farricoco (BERTRAN, 2001,
p. 59).

Nesse ponto, impende reconhecer que a figura do farricoco e seu estig-

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ma de penitente advindo do modelo católico, cujo espírito deveria ser purificado


como em um processo de catarse, eliminando tudo o quanto lhes fosse estranho
à essência ou à sua identidade e raízes, teria sido introduzido no século XV nos
Países Baixos. Citando Plínio Correia de Oliveira, Clóvis Brito (2008, p. 25) registra
que desde a Idade Média os Papas e Concílios teriam autorizado e incumbido
irmandades e confrarias de representarem episódios da Paixão de Cristo e que
nessas ocasiões “os fiéis se recobriam de roupas alegóricas das cores da liturgia e
que seria esta a origem das túnicas e chapéus que encobriam o rosto”, não sen-
do o farricoco, portanto, uma criação ou exclusividade vilaboense.

Deste modo, quando se observa a suposta formação da figura do farricoco


junto à Procissão do Fogaréu na Cidade de Goiás, tem-se que a intenção era alijar
a imagem e a identidade dos indivíduos que participavam do ato, de modo que
o descalabro de suas vestes fosse tanto mais instrutivista quanto possível, como
forma de regular uma comunidade em perigo de dispersão. No entanto, expres-
sando um significado próprio, a figura do farricoco que se abre para a presente
discussão está concentrada na dinâmica da (re) invenção da Procissão do Foga-
réu “da e na” Cidade de Goiás, momento em que o encapuzado institui-se como
elemento da memória estável da comunidade, superando as discriminações da
estrutura que, em tempos pretéritos, o acolhia.

Nesse diapasão e, pretendendo garantir que a perpetuação das tradições


e conteúdos culturais se fizessem a partir dos valores próprios da comunidade,
diminuindo, assim, a distância entre passado, presente e futuro, surge, em 1965,
um grupo interessado no resgate das manifestações religiosas e folclóricas lo-
cais. Centrada na ideia do Patrimônio Cultural, a Organização Vilaboense de Ar-
tes e Tradições (OVAT), fundada por intelectuais e artistas, dentre os quais uma
catalana (Goiandira Ayres do Couto, que aos seis anos de idade muda-se de Ca-
talão para a Cidade de Goiás na companhia de seus pais e irmãos), visava pesqui-
sar, valorizar e preservar as principais manifestações culturais da cidade através
de uma construção coletiva do conhecimento, cujas ações deveriam fortalecer a
identidade local e transformar os sujeitos através da memória social.

O trabalho de revitalização das artes e tradições vilaboenses teve início com

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a pesquisa voltada à Semana Santa. Em 1965 deu-se início ao resgate da Semana


dos Passos e Semana das Dores, cujas comemorações contavam com a apre-
sentação de motetes, caracterizados pela cantoria de trechos da bíblia, utilizan-
do-se uma linguagem barroca. Em 1966 foram reintroduzidos à Semana Santa a
encenação do Descendimento de Cristo e a Procissão do Fogaréu, esta última,
descontinuada desde o final do século XIX.

Acrescente-se, aqui, que a criação e concepção do guarda-roupa da Procis-


são do Fogaréu, assim como do Descendimento, ficou sob os cuidados de Goian-
dira Ayres do Couto que, além de artista plástica, era modista na cidade.

Há que se dizer que, na vitrina dos tempos, a (re) invenção da Procissão do


Fogaréu e, em especial, a imagem dos encapuzados, acabou por se tornar um
símbolo vilaboense. Sem que se soubesse, o farricoco se estruturava cotidiana-
mente como relíquia do povo, signo dos processos de partilha cultural, elemento
mesclado à paisagem, cujas cores, assim como o próprio patrimônio imaterial
vilaboense, refazia-se à medida em que as frinchas de luz se propagavam por
todos os cantos, velando e desvelando patrimônios num jogo de luzes e trevas.

Trabalhando com afinco há mais de meio século na difusão de ações que


valorizem o direito de memória e história local, a Organização Vilaboense de Ar-
tes e Tradições, achou-se diante de um entrave para a fruição cultural no ano de
dois mil e vinte, dadas as circunstâncias em que o país se encontrava e que ainda
se encontra, em relação à pandemia do Coronavírus, bem como das orientações
apresentadas pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e pelos governos fe-
deral, estadual e municipal, visando a contenção da disseminação da COVID-19.

Assim sendo, no dia 18 de março de dois mil e vinte, através de nota oficial,
a instituição comunicou a decisão de não promover a Procissão do Fogaréu, bem
como todos os demais trabalhos relativos à preparação e organização de cerimô-
nias, celebrações, manifestações e procissões de sua responsabilidade, decisão
que também foi mantida no ano subsequente. Como forma de manter o distan-
ciamento social, nos anos de dois mil e vinte e dois mil e vinte um, a Organização
Vilaboense de Artes e Tradições (OVAT), juntamente com a Prefeitura Municipal

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de Goiás, Diocese de Goiás, Irmandade do Senhor Bom Jesus dos Passos e a Câ-
mara Municipal de Goiás, disponibilizou de forma pública, através da rede mun-
dial de computadores, uma sequência de vídeos e imagens referentes à Semana
Santa, registrados em anos anteriores na Cidade de Goiás.

Planejando novas maneiras de alcançar a visibilidade necessária, a trama


fabricada pela OVAT durante o período de enfrentamento à pandemia do Co-
ronavírus produziria esforços de proteção e preservação em relação à Procissão
do Fogaréu capazes de reconstruir o seu itinerário por meio de diferentes vie-
ses, dessa vez, através de tecidos, moldes e costuras. Assim, convenções que, an-
tes, impediam as tesouras e agulhas de serem movidas, abririam espaço para as
pences da renovação cultural, por meio do incremento de vestes e toucados, a
fim de corrigir quaisquer desajustes que pudessem impedir a organização de
atualizar-se aos tempos, para manterem-se as tradições.

Trazer à lume um pensamento crítico é essencial para as práticas culturais.


Nessa direção, pontuar os avessos dessa renovação pode contribuir para evitar os
apagamentos e esquecimentos do bem cultural, tendo em vista que, indepen-
dentemente das circunstâncias, as peças elaboradas por Goiandira do Couto se
transformaram em documento histórico e parte integrante do patrimônio; e que
contribuíram para formação de reminiscências individuais e coletivas, ajudando
a construir um sentido para a comunidade vilaboense.

Destarte, na tentativa de proporcionar uma reflexão sobre a relevância do


objeto e da necessidade de sua prudente tutela, visando o impedimento da ca-
ducidade do bem, assim como o descarte de sua utilidade cultural, faz-se neces-
sário discutir sobre a salvaguarda e destinação do acervo de têxteis em processo
de substituição, antes que este seja lançado em uma sepultura comum, onde se
encontram depositadas as antiguidades fadadas ao esquecimento.

3. Costurando histórias e preservando patrimônios.

À guisa de informação, dadas as circunstâncias em que o país se encontra


em relação à pandemia do Coronavírus, bem como as orientações apresentadas

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pela Organização Mundial de Saúde e pelos governos federal, estadual e muni-


cipal, visando a contenção da disseminação da COVID-19, as atividades públicas
da OVAT encontram-se suspensas na Cidade de Goiás desde o dia 18 (dezoito)
de março de (2021) dois mil e vinte, tornando a visitação, eventos e a pesquisa in
loco inviáveis.

Como forma de suprir a falta de acesso ao acervo e aos documentos da


Organização Vilaboense de Artes e Tradições - OVAT, o presente artigo foi funda-
mentado a partir de uma proposta de trabalho analítico, como forma de discutir
a utilidade cultural e a necessidade de preservação do objeto têxtil da Procissão
do Fogaréu - bem e suporte de expressão cultural elaborado por Goiandira do
Couto, em processo de substituição -, reunindo informações através do pensa-
mento de alguns autores.

Iniciando as discussões com considerações gerais sobre a formação da Or-


ganização Vilaboense de Artes e Tradições - OVAT, a pesquisa seguiu rumo às
particularidades da (re)invenção da Procissão do Fogaréu e a formação do acer-
vo que compõe a figura folclórica do farricoco. Ademais, caminhou rumo à dis-
cussão sobre a necessidade de se produzir esforços de proteção e preservação
capazes de salvar o objeto do abandono.

Nessa perspectiva, o estudo visou transformar o tema em uma ferramenta


capaz de levar o indivíduo a refletir sobre a importância de se preservar o patri-
mônio têxtil que testemunha sobre a Procissão do Fogaréu e a própria Cidade de
Goiás, mas também de apresentar a vestimenta como objeto capaz de singrar
os mares da historicidade e atracar a embarcação à terra firme que reconhece a
validade documental e prestigia as coleções têxteis.

Nos meandros da história, a busca por representações de um modelo que


contrariasse a ideia de cidade do atraso geraria esforços de proteção e preserva-
ção do rizoma cultural, além da (re)invenção e a fabricação de tradições que con-
tribuiriam para a aceitação da Cidade de Goiás, nas esferas públicas, como berço
da cultura goiana. Logo, a figura do farricoco tornar-se-ia arranjo simbólico de
uma militância aparente, combatendo o estigma da “Goiás Velho” e garantindo

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sua persistência no tempo, fazendo com que a população se unisse para resgatar
a história da descoberta do ouro e da formação da cidade de Goiás através dos
seus vestígios materiais, mas também assinalando o desejo de terem a sua me-
mória renovada através do patrimônio imaterial.

Ademais, ater-se ao contributo material, entendendo que o patrimônio cul-


tural se reduz à valorização da matéria, sem se atentar para o real sentido e sig-
nificado desses objetos e elementos da pedra e cal, não parece ser o bastante
para alimentar a memória de um povo. Nora (1993) é catedrático em sua reflexão
sobre os lugares de memória. Para ele história e memória fazem oposição uma
à outra:

A memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela
está em permanente evolução, aberta a dialética da lembrança e do esque-
cimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a todos os
usos e manipulações, suscetível de longas latências e de repentinas revitaliza-
ções. A história é a reconstrução sempre problemática e incompleta do que não
existe mais. A memória é um eterno elo vivido no eterno presente; a história,
uma representação do passado (NORA, 1993, p. 9).

Dos fatos que estão colocados, tem-se que o ato de visitar um espaço que
se apresenta apenas como lugar de achados e de releitura histórica não promo-
ve a aproximação dos sujeitos junto ao ambiente, impedindo, portanto, que o
indivíduo se depare com suas memórias, que confronte seus esquecimentos ou
que vá de encontro às suas lembranças.

Nessa direção, Halbwachs (1990, p. 79) lembra que, “geralmente, a nação


está longe demais do indivíduo para que este considere a história de seu país de
outro modo do que como um quadro muito amplo, com o qual sua história pes-
soal não tenha senão muito poucos pontos de contato”, deste modo, o indivíduo
não se apega à história como um todo já que existem fatos de ordem nacional
que oferecem ao homem pontos de referência, mas que a maioria se acha tão
distante, ao ponto de não produzir um sentimento de pertença no indivíduo.

Sublinhe-se, aqui, que o modo como os espaços culturais da Cidade de Goi-


ás foram configurados pelo poder público na década de 1950 - mediante uma
política que consagrava a construção de uma história de expansão territorial e

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formatava uma memória baseada nas relações sociais de uns poucos sujeitos
que ajudaram na expansão da região centro-oeste - fez de espaços físicos ele-
mentos principais das políticas de preservação do patrimônio. Segundo Chuva
(2012), a insistente preocupação com o chamado “Patrimônio da Pedra e Cal” te-
ria ocorrido devido à crescente profissionalização e inserção de arquitetos à fren-
te do campo do patrimônio como especialistas, o que justificaria a predileção em
proteger os bens arquitetônicos relativos ao período colonial:

Essa vertente esteve assentada nas teses sobre as três raças formadoras da so-
ciedade brasileira, graças à noção de civilização material introduzida por Afonso
Arinos de Melo Franco, que percebia no branco português a maior influência,
em razão da maior perenidade dos materiais utilizados nos processos construti-
vos, e na presença do negro africano e do índio autóctone influências de menor
envergadura. Essa perspectiva justificava o predomínio da proteção de bens
materiais, especialmente arquitetônicos, relativos ao período colonial (CHUVA,
2012, p. 154).

De fato, o processo de reconhecimento do patrimônio da pedra e cal e da


consagração de outros elementos da cultura material parece ter sido a grande
preocupação de órgãos como o IPHAN durante o processo de reconhecimento
da Cidade de Goiás como berço da cultura goiana. Hiatos no que tange à pesqui-
sa, documentação e contextualização do patrimônio imaterial representavam
um entrave para a produção dos sentidos.

Interessado em dar feição concreta e desfrutável ao patrimônio cultural vi-


laboense e de conduzir a comunidade em direção às suas verdadeiras expres-
sões culturais, um grupo formado por artistas e intelectuais decide se unir para
resgatar cerimônias, celebrações e procissões por meio de uma leitura orgânica
da memória e da história do município. Contribuindo para o despertar da co-
munidade, a Organização Vilaboense de Artes e Tradições – OVAT – fundada em
1965, cuja natureza e finalidade eram diversas, passou a elaborar as tramas, urdi-
duras e vieses necessários à (re)invenção e à fabricação do patrimônio imaterial
“da e na” Cidade de Goiás.

Não obstante a respeitável função da igreja como veículo de transmissão


de conteúdo, cujos rituais e crenças foram primordiais para a constituição da
identidade de seu povo, na segunda metade da década de 1960, esquadrinhan-

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do histórias, escrituras e memórias, Goiandira Ayres do Couto e Elder Camargo -


membros e fundadores da OVAT - fazem ressurgir a Procissão do Fogaréu e com
ela, o atávico farricoco.

Goiandira do Couto que, além de artista plástica era modista na cidade, foi a
responsável por elaborar a vestimenta que comporia a imagem do encapuzado.
Valendo-se da arte e da moda para promover o seu discurso, a modista, em en-
trevista que compõe o livro “Luzes e Trevas, traz informações sobre a elaboração
do traje dos encapuzados:

Como era modista, já possuía experiência, fiquei responsável por criar e con-
feccionar as roupas. Fiz o cone, experimentava o tamanho, colocava em mim,
olhava. Quando Elder estava aqui eu colocava o capuz nele, experimentava para
ver o tamanho, a abertura para os olhos, a posição dos babados e fui criando. [...]
Consultei aqueles livros históricos, religiosos, para criar os desenhos. A partir daí,
desenhei todas as roupas (BRITO, 2008, p. 206).

Sobre o que se diz acima, cumpre registrar que, na galeria das ferramentas
usadas para a composição da Procissão do Fogaréu, a indumentária do farricoco,
além de expressar o pensamento de sua idealizadora, ao ser fabricada e posta so-
bre o seu primeiro voluntário e, anos depois, em todos os encapuzados - um total
de quarenta farricocos -, traduziria desejos e sentimentos de Goiandira do Couto,
Elder Camargo e demais membros da OVAT, além de cumprir um importante
papel no imaginário de uma comunidade interessada em aceitar o patrimônio
cultural como fato social.

Pollak (1992, p. 207) enfatiza que quando a memória e a identidade estão


suficientemente construídas, instituídas, e amarradas, os questionamentos e os
problemas colocados pelos outros, “não chegam a provocar a necessidade de
se proceder rearrumações, nem no nível da identidade coletiva, nem no nível
da identidade individual”. Depreende-se de tal pensamento que os entraves ge-
rados pelo processo mudancista foram tantos, ao ponto de a comunidade não
mais produzir sentidos de pertença ao seu território. Por outro lado, isso confirma
o fato de que a vida de seus moradores necessitava de mudanças caleidoscópi-
cas. Assim, abolindo a alienação a que estava sujeita, a comunidade pôde se ver
através do retorno e multiplicação dos farricocos, e se concentrar em questões

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como a relevância da “Nova Goiás” na esfera cultural.

Figura 01 – Procissão do Fogaréu, 1966. Fonte: Acervo da OVAT

Com efeito, a presença do caráter atrativo da procissão, bem como das de-
mais ações chamativas da Organização Vilaboense de Artes e Tradições, pôde
ser percebida através do pensamento de um de seus fundadores. Passos (2018),
narrando sobre as ações desenvolvidas para movimentar o turismo local, faz
apontamentos sobre quando a Procissão do Fogaréu teria sido reintroduzida na
cidade de Goiás e de como o ato é conduzido nos dias atuais:

Em 1965, um grupo de jovens vilaboenses, sentindo a necessidade de investir


em mais atrações chamativas para desenvolver o turismo local, criou a OVAT –
Organização Vilaboense de Artes e Tradições – visando levantar, reorganizar e
divulgar as manifestações culturais da cidade [...] Dentre elas, estava a Semana
Santa, que sempre havia sido realizada com certa pompa, ligada à religiosida-
de e à fé popular, para então, em 1966, ser reintroduzida a Procissão do Foga-
réu [...] A procissão forma-se à porta da Igreja de Nossa Senhora da Boa Morte,
aos primeiros minutos da Quinta-Feira Santa, seguindo dali até a igreja de São
Francisco do Rosário, onde acontece a primeira parada. Depois vai até a Igreja
de São Francisco de Paula, fazendo uma segunda parada e retornando ao pon-
to de partida, onde é encerrada. Acompanham-na um coral local, que executa
motetos do século XIX, e também um grupo de rapazes com tambores que
fazem a marcação da caminhada, com toques especiais para o ato. Abrem o
cortejo quarenta farricocos, com formação em quatro alas, munidos de grandes
tochas acesas, andando em passos rápidos. O povo acompanha, atrás do grupo
de tambores, portando tochas menores também acesas (PASSOS, 2018, p. 417).

Pelo exposto, tem-se que, de lá para cá os ideais da retomada cultural se

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alastraram; o movimento deu novos contornos à construção da dinâmica das


identidades, fazendo da Procissão do Fogaréu ato fundamental para a produção
de sentidos.

Nesse ínterim, a Procissão do Fogaréu e a figura do farricoco ajudaram a


projetar a imagem da Cidade de Goiás para todo o Brasil, quiçá para o mundo,
contrabalanceando luzes e trevas para oportunizar a seus moradores prospec-
ções futuras, sem atrasos ou rupturas com o mundo moderno, a fim de que pu-
dessem se desprender das amarras que os extinguia ou definia na sociedade.

3.1. O patrimônio por um fio

Superando a ausência de um mecenato que pudesse proporcionar os re-


cursos financeiros necessários à aquisição de insumos para a elaboração das ves-
tes dos farricocos, o tecido falhete/failete/faillet (nomes pelos quais é conhecido),
usado para a fabricação dos trajes da Procissão do Fogaréu, adquirido graças a
doações de pessoas comuns que se sentiam convidadas à colaboração, estru-
turava o modelo elaborado por Goiandira do Couto, conformando a beleza dos
processos criativos da artista como obra destinada à valorização cultural.

Os Farricocos ou Encapuzados vestem túnicas de várias cores, portanto capu-


zes cônicos com acabamento em babado sobre os ombros, também da mesma
cor, para efeito de beleza cênica. Na cintura, carregam faixas largas na cor bege,
sendo que o encapuzado com vestes na cor branca usa faixa vermelha, diferen-
ciando-se dos outros, pois será ele quem carregará o estandarte representando
o Cristo, por ocasião de sua prisão (PASSOS, 2018, p. 420).

Ainda que modestos em suas formas, conforme se pode abstrair pelo tre-
cho em tela, uma vez contrastados pelas labaredas das tochas, num circuito co-
municativo e formativo, vestes e capuzes cumpriam com o propósito a que se
propunham, dando vida aos farricocos e brilho ao patrimônio imaterial vilaboen-
se.

O discurso bem-orquestrado de seus idealizadores, que apresentava um


farricoco cujo aparato indumentário tornara-se veículo de transmissão de con-
teúdo, fazendo de personagem e suporte têxtil elementos indissociáveis para a

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exposição do patrimonial imaterial “da e na” Cidade de Goiás, somada ao exercí-


cio do ir e vir de moradores e turistas em meio às ruas de pedra, portando tochas
que projetavam fachos de luz sobre a figura do(s) farricoco (s) - o que os tornava
ainda mais evidentes -, constituia-se em locus da construção de saberes, um le-
gado vivo recebido do passado, marco de referência à identidade e elemento a
ser transmitido às gerações futuras.

Pelegrine (2009, p. 23) salienta que “os bens culturais tomados como ‘legado
vivo’ que recebemos do passado, vivemos no presente e transmitimos às gera-
ções futuras, reúnem referenciais identitários, memórias e histórias - são supor-
tes preciosos para a formação do cidadão” Pela citação retro, tem-se que a cone-
xão da população com a figura do farricoco fica ainda mais evidente quando se
observa o alinhamento dos voluntários da comunidade (que se predispunham,
e ainda o fazem, a realizar o percurso da procissão vestindo-se de farricoco), às
aspirações da OVAT. Percebendo que o fio cultural da organização é resistente
à tração, a comunidade se permite entrecruzar com a história da procissão e do
farricoco, a fim de vestir-se para o patrimônio e produzir a renovação das memó-
rias daqueles que com eles tiveram ou tenham vínculo, ao passo que também
cria os meios para formar as reminiscências das gerações recém-chegadas.

Nesse ponto, a relação estabelecida com os farricocos faz pensar que à co-
munidade cabe não apenas o papel de utente, mas de mantenedora do bem
cultural, que luta e se responsabiliza pelo seu futuro. Para tanto, os que estiverem
dispostos a empreender e se envolver nos processos de preservação do patrimô-
nio em si e, em especial, do suporte têxtil e bem cultural original da procissão,
em processo de substituição, transpondo as discriminações que esse objeto so-
fre, devem fazê-lo. Na contramão das discussões envolvendo a validade do bem,
cumpre mostrar a realidade dos têxteis que revestem o farricoco.

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Figura 02 – Vestes da Procissão do Fogaréu – Sacristia da Igreja de N. Sra. do Carmo. Fonte: Acervo de Guilher-
me Antônio de Siqueira.

Embora os trajes, mantidos na sacristia da igreja de Nossa Senhora do Car-


mo em caráter provisório, estejam sempre limpos, sendo lavados logo depois do
seu uso na Quinta-feira Santa, para evitar que o querosene das tochas manche
os tecidos, e que tenham suportado os processos anuais de passadoria por mais
de meio século, como se nota, encontram-se amarrotados, dobrados e ensaca-
dos. Seu acondicionamento, que nada tem a ver com os processos de guarda a
que devem ser submetidos os bens patrimoniais, mesmo os que se encontram
em atividade, revelam a existência de um ambiente desfavorável para os têxteis.

As imagens apresentadas não deixam dúvidas sobre a importância de se


discutir a preservação do acervo de indumentária da Procissão do Fogaréu e de
fabricar mecanismos que inviabilizem os silêncios, apagamentos e esquecimen-
tos do objeto, a começar pelo seu acautelamento para, em seguida, se pensar os
mecanismos de maior envergadura, como o tombamento do bem, que, “é um
instrumento que serve para tutelar os bens imateriais que integram o patrimô-
nio brasileiro” (Soares, 2009, p. 311), caracterizado pelo tombamento do suporte
material do bem imaterial, a fim de que seja reconhecido que o bem é portador
de valor cultural ligado à memória da comunidade local.

Registre-se aqui, rumo à finalização deste escrito que, embora alguns tra-
tem o tema com desdém, é importante salientar que os têxteis e a roupa são

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uma fonte consistente de informações históricas. Realmente, aqueles que ne-


gam a importância das roupas como objeto de estudo necessário e sério não
fazem mais do que salientar essa importância. “A construção de extensas argu-
mentações para negar a validade desse objeto enfatiza, necessariamente, o lugar
de relevo que ele ocupa no universo das preocupações científicas” (MENDONÇA,
2006, p. 18).

Cabe destacar que ao discutir os têxteis da Procissão do Fogaréu não se


pretende conscientizar ou educar a comunidade sobre a necessidade de se pre-
servar o bem, se assim o fosse, desprezar-se-ia o fato de que nem todos têm in-
teresse por esse suporte e patrimônio. De certo modo, isso ajuda a compreender
o fato de a Organização Vilaboense de Artes e Tradições ainda não possuir um
parecer sobre a destinação do bem e contributo material de Goiandira do Couto.

À luz dessas discussões, percebe-se que, ao associar os têxteis da Procis-


são do Fogaréu ao patrimônio cultural e ao discutir sobre a fabricação de meca-
nismos que inviabilizem seus silêncios, apagamentos e esquecimentos, alguns
refutam a ideia de que as vestes e toucados configuram-se no próprio farricoco.

Considerando o patrimônio tal como Clóvis Brito o considera, “um texto


que suportou, ao longo do tempo, seleções, inclusões, exclusões, baseadas em
diretrizes e interesses” (BRITO, 2014, p. 978), o que se pretende é fazer com que
a discussão sobre a preservação do acervo de têxteis da Procissão do Fogaréu
permita uma aproximação com as questões da destruição, mudanças de sensi-
bilidade e ação do tempo, a fim de que sejam estabelecidos critérios para que
este permaneça vivo e se converta em renovação da memória daqueles que por
ele um dia mostraram interesse.

4. Considerações Finais.

A busca por representações de um passado que pudesse alavancar a Cida-


de de Goiás acabou por possibilitar o retorno das tradições envolvendo a Procis-
são do Fogaréu. Por conseguinte, a materialização da (re) invenção, oportuniza-
da pelo suporte têxtil de seus três primeiros portadores, corroborava tanto com

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a ideia de que o futuro de Goiás era o passado ao ponto de não serem encontra-
das justificativas que impedissem a multiplicação do número de encapuzados,
passando de três para dez, depois vinte, até se alcançar o número de quarenta
farricocos; um a um estruturados como produto do tempo.

Após mais de meio século rompendo com a hegemonia da linguagem ver-


bal para despertar a sensibilidade estética e criativa dos indivíduos propiciando
uma leitura das implicações culturais, políticas, econômicas e sociais, captando
as flutuações e mudanças do ar dos tempos e consagrando as tradições, os têx-
teis que ajudaram a dar forma ao atávico farricoco passarão por substituição,
onde as quarenta vestes atuais serão trocadas por sessenta novos trajes.

Restando demonstrado que, ao imporem-se como objetos portadores de


memória e artigo que viabiliza a manifestação do patrimônio imaterial “da e na”
Cidade de Goiás, as vestes e toucados elaborados por Goiandira Ayres do Couto
projetaram os encapuzados e a Cidade de Goiás para o mundo, transformando o
farricoco em símbolo de emancipação e emblema necessário à memória coleti-
va, percebeu-se que, concomitantemente à substituição dos trajes da Procissão
do Fogaréu, faz-se necessário levantar um debate acerca da regulamentação de
atos formais para a sua preservação e prudente tutela.

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A ARTE DOS CARAPINAS – A VISIBILIDADE DA FABRICAÇÃO


DO CARRO BOIS COMO PATRIMÔNIO VIVO DOS GOIANOS.

Divina Luciane Fedrigo1

... O carro de boi lá vai gemendo lá no estradão, suas


grandes rodas fazendo profundas marcas no chão,
vai levantando poeira, poeira vermelha, poeira do meu sertão...
Trecho da música “Poeira” interpretada por Nilton Rabello

Introdução.

A história dos carros de bois remonta há mais de cinco mil anos antes de
Cristo. Provavelmente sua origem se deu desde a idade da Pedra ou no perío-
do Neolítico. Os registros históricos mais coerentes aparecem na China antiga,
Índia, Suméria, Egito antigo e até mesmo em Israel, tendo registro histórico na
própria Torah, ou Antigo Testamento cristão. O trabalho intitulado - O ciclo do
carro de boi no Brasil (2003) - escrito na década de 1940 pelo jurista Bernardino
José de Souza, é citado como recorte bibliográfico na tese recém defendida de
Oliveira (2021) sobre os processos históricos envolvendo o carro de boi. O autor
nos diz que a obra de Souza (2003):

Situa a ampla utilização do carro de bois nas civilizações mais antigas da huma-
nidade. Para ele, o veículo é um dos primeiros meios de transporte e de traba-
lho da história do homem. Seus relatos dão conta do carro como integrante da
cultura egípcia e mesopotâmica, tendo sua importância assimilada à invenção
da roda e ao principiar da domesticação dos animais. Segundo o referido autor,
a primeira reprodução material de um carro de bois que se tem notícia foi feita
pela civilização Harappa, que vivia no vale do Rio Indo, na Índia (OLIVEIRA, 2021,
p. 40).

1 Graduada em Pedagogia pela (UEG). Especialista em Língua Portuguesa, Neuropsicope-


dagoigia e Gestão da Educação Pública. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos
Culturais, Memória e Patrimônio (UEG). Email: divina.fedrigo@seduc.go.gov.br.

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O carro de boi é também diretamente citado na bíblia cristã, ao narrar que


Davi levava a Arca da aliança para Israel em um carro de boi, descrição encon-
trada no livro 2 de Samuel, capítulo 6, verso 3: “E puseram a arca de Deus em um
carro novo e a levaram da casa de Abinadabe, que está em Geba; e Uzá e Aiô,
filhos de Abinadabe, guiavam o carro novo” (Bíblia Sagrada, Antigo Testamento,
2Sm6:3).

Um pouco de história e memória e o bem cultural.

Muitos são os símbolos da cultura brasileira trazidos desde os tempos ofi-


ciais da colonização. De acordo com Souza (2003), o carro de boi foi trazido para
o Brasil especificamente em 1549, juntamente com o Governador geral Tomé
de Sousa que fora incumbido pelo Rei português de construir uma capital bra-
sileira. Inicialmente, os carros de bois eram utilizados no transporte de materiais
para a construção civil, mas logo se tornou o veículo utilizado para quase todos
os afazeres uma vez que as carroças guiadas por muares só chegaram no Brasil
no século seguinte. Para Nogueira (1980), o carro de boi espalhou-se então pelas
terras brasileiras, chegando em Goiás nas primeiras décadas de 1800. E, uma vez
em território goiano, o carro tornou-se tão importante que se efetuavam todas as
medidas volumétricas em “carradas”.

Na época do Brasil Colonial e até a proclamação da República o carro de


bois se destacou por sua funcionalidade. Com o tempo, os motores foram to-
mando seu lugar. Nesse período, Tomé de Souza, trouxe consigo carpinteiros e
carreiros práticos para a cidade de Salvador para implantá-los adequadamente
no Brasil. Estes últimos também eram conhecidos pelo nome pitoresco: canta-
dor, pelo seu “canto” ao tocar os bois. Ele pertence a um tempo em que o próprio
tempo andava devagar, o tempo de viagem era marcado pela marcha dos bois, o
cálculo feito era que um carro de bois andava cerca de quarenta quilômetros por
dia em dez horas de viagens. Aqui no chão goiano cortava o estado afora com
seu canto transportando todo tipo de mercadoria.

Por compor vários cenários no decorrer dos processos históricos o carro de

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bois também se fez presente no período colonial, sendo utilizado como ferra-
menta nos domínios dos europeus sobre os povos do ocidente. É claramente
um objeto que carrega a decolonialidade em seu cerne, sendo instrumento da
nobreza, mas também envolto por escravizados.

Em virtude de um histórico de existência tão ligado ao povo, o carro de


boi foi construindo sua história deixando marcas econômicas, políticas, sociais e
culturais. O carro se consolida enquanto cultura material e imaterial por emanar
através de si, memórias afetivas que remetem sua existência até os dias de hoje.
Por isso, em cada evento, festividade ou cenário que envolva o carro de boi no
qual o coletivo se envolva haverá essa transmissão de experiência de memória
afetiva e tradição. Haverá a presença viva nas técnicas, costumes e simbolismos
do passado com o envolvimento da modernidade atual. A tradição deixada pela
árvore genealógica de cada família, na maioria das vezes, envolve o “pagamento
de uma promessa” que não pode ser quebrada, fixando o valor sentimental e
moral, passando a envolver todos os familiares dos mais velhos aos mais novos.

Atualmente o carro de boi representa uma das tradições com maior visi-
bilidade para os goianos. A tradição e a religiosidade envoltos por este objeto o
tornou Patrimônio Cultural Brasileiro por meio da Romaria de Carros de Bois do
Divino Pai Eterno na cidade de Trindade – GO. Na festa de Trindade, uma vez no
ano, acontece o maior desfile de carros de bois do mundo. Assim como afirma
Barbosa (2004), a presença dos carros de bois nas romarias goianas ao mesmo
tempo em que promove a apresentação simbólica da cultura de uma determi-
nada época, de uma determinada sociedade, demonstrando seu valor cultural
herdado de outras gerações, promove também contradições em tempos de glo-
balização.

Os goianos têm verdadeira paixão por carros de bois, tanto que outros even-
tos além da Festa de Trindade vêm se destacando como os desfiles de Araçu e
Damolândia. Retratar o carro de bois como arte evoca um reconhecido ainda
não adquirido, mas merecido, tendo em vista que além de conservar técnicas
milenares, a utilização do carro de bois também protagonizou inúmeros contex-
tos no decorrer dos tempos.

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O carro de boi é visto como um patrimônio vivo dos goianos mesmo em


tempos globalizados que buscam impor uma hegemonia sociocultural. A repre-
sentatividade deste objeto enaltece a memória e tradição que cerca todo pro-
cesso cultural e identitário não deixando de ser sagrado e vivido intensamente
por cada goiano. A visibilidade da imagem do carro de bois também nos remete
a um objeto de resistência e permanência nos vários processos históricos, econô-
micos, políticos e culturais:

A globalização em curso é, em primeiro lugar, a culminação de um processo


que começou com a constituição da América e do capitalismo colonial/mo-
derno e eurocentrado como um novo padrão de poder mundial. Um dos ei-
xos fundamentais desse padrão de poder é a classificação social da população
mundial de acordo com a idéia de raça, uma construção mental que expressa
a experiência básica da dominação colonial e que desde então permeia as di-
mensões mais importantes do poder mundial, incluindo sua racionalidade es-
pecífica, o eurocentrismo (QUIJANO, 2005, p. 117).

Os proprietários de carros de bois os adquirirem, em sua maioria, por tradi-


ção familiar. Os carreiros são detentores de uma identidade própria que conser-
vam as raízes de seus antepassados como guardiões. Os fabricantes dessa arte
são denominados carapinas e possuem uma técnica rudimentar, apreendida na
prática, transmitida oralmente e também por meio da repetição do ofício. Sua
construção não teve alteração com o tempo, a forma de fabricação é a mesma. O
domínio preciso da arte de fabricar carros de bois utiliza de ferramentas manuais
como: incho, machado, formão, serrote. Um carro de boi demora de quarenta a
sessenta dias para ficar pronto. Na atualidade, com ferramentas mais modernas
e elétricas, já se consegue acelerar esse processo, mas as peças e técnicas manu-
ais ainda são as mesmas.

Tomar o carro de bois como um objeto de arte é a certeza de que no de-


correr do processo histórico e cultural a materialidade exercida por este objeto
sofreu mutação. Em virtude da evolução tecnológica atual, o carro de bois não
atua com a mesma função de transportar mercadorias e pessoas, portanto já
poderia ter caído no desuso. No entanto, em decorrência do valor cultural, inde-
nitário e religioso que este bem material adquiriu se fez resistente e presente em
um contexto adverso ao seu uso real.

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O processo de fabricação desse objeto constitui um saber que lhe rende


ares de arte resistente e o coloca em posição de protagonista num contexto em
que sua existência era apenas de coadjuvante.

O presente artigo evoca a arte do fazer desse bem material pelos carpinas
ou carapinas, nome pelo qual são conhecidos artesãos e carpinteiros que se de-
dicam à atividade de fazer carro de bois. Na busca de fazer um recorte da visibi-
lidade do carro de bois como manifestação cultural do povo goiano utilizamos
três figuras para evidenciar a arte e relevância dada à fabricação do carro de bois
pelos goianos. Como este bem cultural se fez presente no decorrer da evolução
humana e, destaca-se que ele atua também no processo de decolonialidade, se
colocando como protagonista e resistente ao eurocentrismo.

Ainda na busca de entender a questão o carro de bois como um bem cul-


tural, evidenciamos que também dialoga com a interculturalidade, apesar de
estarmos inseridos em um mundo globalizado, encontramos a resistência e per-
manência de diversidade culturais, a preservação dos saberes trazidos pelas no-
vas gerais.

Figura 01 - Fabricação de carro de bois por um carapina de Inhumas – GO. Fonte: Túlio Fernando Mendanha
Oliveira, 2019.

A figura 01 evidencia a fabricação de um carro de bois, por um carapina, em


um galpão situado na zona rural de Inhumas-GO. Percebe-se a modernidade
presente nas ferramentas elétricas, como: furadeira, lixadeira e plaina. É visível a
atenção e concentração ao trabalho que se mostra vir ocorrendo já a vários dias

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em virtude do pó de madeira no chão. O carapina já possui idade avançada e


domínio da técnica. Em relação à peça que está fabricando, ela é chamada de
prancha mesa e compõe o carro de bois; percebe-se que está em um estágio
bem avançado para dar continuidade ao restante das peças.

Dotado de uma estrutura que não possui o diferencial, suas rodas travam
durante as curvas. Quando em movimento, o autêntico carro de boi emite um
som estridente, característico, chamado de canto, lamento ou gemido, que
anuncia sua passagem e faz parte da nossa cultura. A força de tração é fornecida
unicamente por bovinos, dispostos dois a dois – as juntas – cujo número varia
com o peso da carga, natureza do solo e topografia da região. Atrelada ao cabe-
çalho fica a “junta mestra” ou “pé de carro” ou “junta de coice”, a mais importante
de todas, pois, além de abrir marcha, sustenta grande parte do peso do carro. A
que lhe segue é chamada “junta forte” e, as outras, “junta de frente”.

O ofício e a engenharia envolvida na construção de um carro de bois po-


dem até ser rústica, mas não é simples, requer atenção acurada, olhar rigoroso
e mãos de desenhista. As medidas devem ser precisas e milimétricas, um erro
compromete todo o projeto. Ao tomar o carro de bois como arte, damos evidên-
cia a todo conjunto que o compõe.

O tipo da madeira e o tempo correto de manuseá-la faz toda a diferença,


o carro de bois deve ser construído com madeira leve, assim se evita o desgaste
dos animais que já devem resistir ao peso da carga a ser transportada. A madeira
mais utilizada é o bálsamo, mas em virtude da ameaça de extinção, passou a ser
proibido seu corte. Na atualidade, as madeiras mais utilizadas pelos carpinteiros
e carapinas são: o angelim vermelho e o tamboril.

Os animais que se unem para dar tração e fazer com que o carro se movi-
mente são de raças selecionadas como: curralheiro, ou cruzados como os girola-
dos. São raças de animais com maior resistência, acostumados a climas quentes
e terrenos acidentados de difícil acesso. O preparo dos animais para ser puxador
de carro de bois inicia-se com o animal ainda jovem e requer uma doma racional
ou natural, na qual o manejador diminui a zona de fuga dos animais e permite

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o manejo dos bovinos com o mínimo estresse. Também é costume deixar o ani-
mal cangado com outro animal para que ambos se acostumem a andar juntos.
O mais importante é que o treinador crie um laço de afeto, respeito e autoridade
sobre o animal, assim seu tom de voz e sons emitidos serão atendidos e seguidos.

Figura: 02 - Família de fazendeiro viajando em carro de bois. RUGENDAS, Johann Moritz Malerische Paris:
Engelmann, 1835. O original pertence à Biblioteca Nacional. Fonte:http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/
id/227417.

A figura 2 foi pintada por Johann Moritz Rugendas - pintor, desenhista e


gravador alemão. Veio para o Brasil para participar de expedições com o objetivo
de documentar sobre o continente americano e tem um importante trabalho
iconográfico de paisagens e costumes brasileiros do século XIX. Registrava em
seus trabalhos cenas do cotidiano da população brasileira em seus retratos et-
nográficos impunha uma imagem idealizadora de caráter programático. Os cor-
pos de negros e indígenas são representados em estilo clássico, priorizando um
estilo oitocentista, com pinturas e desenhos que trazia traços suavizados e euro-
peizados. O trabalho deste artista foi, por muito tempo, tomado como referência
de imagem nos livros de história do Brasil. Em seus trabalhos, a situação dos
escravizados é amenizada, o trabalho é mostrado como atividade quase lúdica.

É importante para a crítica decolonial trazer a visibilidade deste tipo de


imagem, pois evidencia preconceitos e interpretações da concepção oitocentis-
ta sobre a realidade: excludente, exploradora e escravocrata, além de resgatar o
outro lado da imagem, ou seja, aquilo que não se encontra explícito na iconogra-
fia como nos aponta os autores Bandeira, Aragão e Ribeiro (2004).

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Sabemos que para os teóricos decoloniais a modernidade é inaugurada no


século XV com a colonização da América e não no XVIII com a Revolução Fran-
cesa e a Revolução Industrial, juntamente com a anexação das Índias Ocidentais
e a abertura do circuito de intercâmbio transatlântico, começa o processo de
acumulação capitalista, a secularização da vida social, a centralidade da cultura
europeia e o estabelecimento da chamada “história universal”, assim como afir-
ma Christian León (2019, p. 62) “percebemos que o carro de boi assume um lugar
de destaque, pois mesmo que utilizado de maneira funcional, se fez presente
em contextos decisivos do processo histórico, político, econômico e cultural do
Brasil”.

Apontar o carro de boi na cena como um bem artístico, opõe-se ao que é


aceito pelos padrões eurocêntricos. Mas é o que propomos e ousamos, impor a
arte deste bem imaterial, agregada a toda uma semântica que ele representa.
Portanto, a figura 2 esboça o carro de bois como protagonista transpondo e des-
velando um objeto carregado de expressão, materialismo, resistência e arte, cuja
a trajetória ultrapassou a barreira do tempo colocando também como manifes-
tação de decolonidade:

Desde o século XVIII, especialmente a partir do Iluminismo, foi se construindo


a ideia de que a Europa e os europeus constituiriam um nível mais avançado
numa escala evolutiva unilinear e unidirecional, distinguindo-se a partir desta
concepção a população mundial entre superiores e inferiores, mais ou menos
racionais, mais ou menos primitivos ou civilizados, tradicionais ou modernos
(QUIJANO, 2005, p. 798).

Figura 03 - Chegada de carreiros a cidade de Trindade GO. Fonte: Túlio Fernando Mendanha Oliveira, 2019.

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A presença da condução do carro de bois por uma mulher como nos traz a
figura 03, quebra um conceito de poder utilizado para a propagação da moder-
nidade e do pensamento eurocêntrico, como o gênero, a sexualidade, o conhe-
cimento, as relações políticas, ambientais e econômicas apontadas por Quijano
(2005). Apesar das imposições hegemônicas e crenças de culturas majoritárias,
não se consegue apagar, nem muito menos, anular a cultura e suas (re)significa-
ções. A presença feminina nos evoca o que orienta a interculturalidade, o reco-
nhecimento do direito à diversidade, promovendo a relação dialógica e igualitá-
ria entre os grupos e as pessoas de diferentes culturas.

Percebemos na figura 03 elementos que nos mostram a valorização de um


bem cultural carregado de sentimentos, apontando a necessidade de preserva-
ção, dinâmico por permitir que vários sujeitos possam participar e dialogar com
detentores. Mesmo pertencendo a um passado histórico o carro de bois nos dias
atuais se torna protagonista e ponte de conexão intercultural.

As tradições na arte dos carapinas, construtores deste bem material, preci-


sam ser evidenciadas e valorizadas, pois carregam o poder de uma cultura que
liga gerações e entrelaçam novas culturas, permitindo a junção do novo/velho,
antigo/moderno sem a imposição de um lado ser mais enaltecido que o outro
e produzindo uma interculturalidade arraigado de valores históricos, culturais,
subjetivos, sociais e, por si só, decoloniais.

Com a modernização, o carro de boi tem a sua funcionalidade reduzida na


zona rural, porém, é destaque na cultura de vários municípios. O que se vê é
a presença do carro de bois e o envolvimento dos sujeitos em torno de uma
referência do mundo rural que remete a significados cujas experiências vão se
consolidando na sociabilidade enlaçados em contextos afetivos, místicos, econô-
micos e políticos.

É importante destacar quando nos referimos ao carro de bois como iden-


tidade cultural do povo goiano, que a dualidade presente neste cenário entre:
o passado/futuro, rural/urbano, individual/coletivo, idoso/jovem não se opõe um
ao outro, mas pelo contrário se fundem. Assim, apresentamos o carro de bois

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presente na vida, na história e, sobretudo, na memória coletiva do povo goiano.

Nesse caso, apesar das (re) existências culturais, a exemplo dos carros de
bois, o espaço moderno, cada vez mais, tende a negar a tradição. Contudo, po-
de-se admitir, conforme leitura de Chaveiro (2005, p. 61), que “o que ocorre não
é apenas uma mercantilização da tradição cultural, mas o testemunho de que o
mundo ruidoso gera um sentimento de cansaço, elaborando antinomia como
solução”.

Acional essa relação estabelecida entre a tradição existente em um bem


material tão primitivo como o carro de bois e a presença da juventude partici-
pando e carregando um legado e, ao mesmo tempo, o impregnado com novos
olhares, como se evidência na figura 03, nos remete à necessidade de um diálo-
go com a interculturalidade. Essa compreensão proporciona um caráter trans-
formador que surge na própria comunidade social a que pertence a este bem
cultural, permitindo a existência de outros aspectos sem perder a essência.

Considerações finais.

O carro de boi é um bem cultural que deve ser preservado, pois faz parte
da identidade e memória do povo, é patrimônio material/imaterial e natural do
povo brasileiro. Material porque é um objeto concreto artístico que pode ser to-
cado e sentido; imaterial porque é uma tradição que vem sendo repassada de
geração para geração por meio dos detentores do saber; e natural porque tem
grande importância e valor para uma sociedade.

A visibilidade do carro de bois como espelho de decolonialidade possibilita


dialogar entre a permanência de um objeto de resistência, carregado de diversi-
dade, identidade cultural e saberes que nos permite desatar estruturas coloniais
impregnadas em seus processos históricos; possibilitando um intercâmbio de
conhecimento construído a partir das linguagens, vivências e saberes emanados
da própria comunidade e não carregado de conceitos europeizados.

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MEMORIAL EM HOMENAGEM ÀS VÍTIMAS DO INCÊNDIO


NO CENTRO DE INTERNAÇÃO PROVISÓRIA DE
MENORES INFRATORES EM GOIÂNIA

Eliézer Cardoso de Oliveira1

Introdução.

O tema desta pesquisa é um dos desdobramentos do projeto “Monumen-


tos Macabros no Cerrado: lápides, cruzes de beira de estrada e memoriais”, de-
senvolvido pelo autor e orientandos na Universidade Estadual de Goiás. Até o
momento o projeto resultou nos estudos dos seguintes objetos:

• Monumento em homenagem aos pracinhas, localizado em Anápolis (GO).

• Monumento em homenagem aos romeiros anapolinos mortos num aci-


dente rodoviário na Rodovia Anhanguera, em São Paulo, localizado em uma
das praças de Anápolis.

• O túmulo de Leyde das Neves, uma das vítimas do acidente com o Césio
137, localizado no Cemitério Parque em Goiânia.

• O túmulo de Leandro, cantor sertanejo goiano, localizado no Cemitério


Santana em Goiânia.

• O Mausoléu de Santa Dica, líder religiosa de Goiás, localizado no povoado


de Lagolândia, no município de Pirenópolis, Goiás.

• As cruzes de beira de estradas localizadas em Goiás.

• O monumento em homenagem às vítimas do Regime Militar, localizado

1 Doutor em Sociologia pela UnB. Professor do curso de graduação em História e do Mestra-


do em Territórios e Expressões Culturais no Cerrado, da Universidade Estadual de Goiás – Anápolis.
Email: ezi2006@gmail.com

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em frente ao Bosque dos Britis, em Goiânia.

• O Memorial às vítimas do Incêndio no Centro de Internação provisória de


Menores Infratores em Goiânia.

O estudo desses artefatos materiais revela que, durante séculos, os princi-


pais monumentos públicos visavam louvar as grandes personalidades políticas
(como as estátuas equestres), as vitórias militares (como os arcos de triunfo e os
memoriais de guerra). Contudo, principalmente a partir do século XX, começou
a aparecer um tipo diferente de monumento: aquele destinado a homenagear
as pessoas que foram vítimas de uma tragédia. Esses monumentos catástrofes
podem ser considerados, na perspectiva interpretativa de Oliveira (2008, p. 23)
como uma narrativa sobre o acontecimento trágico: “denomina-se aqui narrati-
va das catástrofes qualquer descrição, análise, representação artística ou literá-
ria, feita na ocasião da catástrofe ou posteriormente a sua ocorrência”.

São vários exemplos de monumentos catástrofes conhecidos mundial-


mente. O Monte Memorial da Bomba Atômica, localizado em Nagasaki, que ho-
menageia as vítimas da explosão da bomba em 1945. O Monumento às vítimas
do Holocausto, localizado em Berlim, que constituiu uma forma de os alemães
prestarem contas do seu passado. O Memorial do 11 de Setembro, em Nova Ior-
que, localizando onde antes ficavam as torres do World Trade Center, que home-
nageia as vítimas do atentado terrorista.

Esses três monumentos constituem a representação de grandes catástro-


fes que mataram milhares de pessoas. No entanto, há tragédias que, apesar
de resultar em um número bem mais reduzido de vítimas, também causaram
grande comoção pública. São aquelas que envolvem a morte de crianças e ado-
lescentes. Desde tempos remotos, o assassinato de crianças choca as sensibili-
dades, basta ver o impacto cultural do relato bíblico do Massacre dos Inocentes,
fato que serviu de inspiração para o famoso quadro do pintor barroco Peter Paul
Rubens.

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Fig. 1 - O Massacre dos Inocentes, Peter Paul Rubens, óleo sobre madeira, 1636-1638, Alte Pinakothek, Muni-
que, Alemanha. Disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:The_Massacre_of_the_Innocents_by_
Rubens_(1638)_-_Alte_Pinakothek_-_Munich_-_Germany_2017.jpg

No mundo moderno, segundo Philipe Ariés (1981), com o advento de uma


sensibilidade burguesa, o conceito de infância passou a ser individualizado e
as crianças e jovens tornaram-se muito valiosos socialmente. Por causa disso, a
morte de crianças em tragédias tornou-se muito mais repugnante e provocou
maior impacto social.

O nazismo tornou-se o paradigma do mal, por que matava indistintamen-


te crianças, jovens e adultos. O escritor norte-americano William Styron (2010)
retratou o seu lado asqueroso no famoso romance “A Escolha de Sofia”, no qual
uma mãe, sobrevivente de Auschwitz, é obrigada, por um oficial nazista, a es-
colher um, dentre os seus dois filhos, que iria sobreviver, sob a pena de os dois
morrerem, caso ela não fizesse a escolha. A experiência macabra demonstra que
o nazismo não pretendia apenas provocar danos físicos, mas também dilacerar
a alma daqueles que sobreviveram.

Infelizmente a morte de crianças em situação trágica não se circunscreve


ao nazismo. Uma das tragédias que provocou mais impacto na memória coletiva
do Brasil foi o incêndio criminoso do Gran Circus Norte-americano, ocorrido em
Niterói, no dia 17 de dezembro de 1961, no qual morreram 503 pessoas, a maioria
crianças. Um ex-funcionário, em represália por ser demitido, foi responsável pelo
incêndio.

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Outra tragédia marcante ocorreu no Rio de Janeiro, no dia 23 de julho de


1993, quando policiais atiraram num grupo de meninos e meninas em situação
de rua, que dormiam na porta da igreja da Candelária, matando oito deles. A
chamada “Chacina da Candelária” chocou o país e, no local da tragédia, foi cons-
truído um memorial no formato de cruz.

Fig. 2 – Memorial da Candelária, Rio de Janeiro Disponível em: http://olerj.camara.leg.br/retratos-da-interven-


cao/a-chacina-da-candelaria-25-anos-depois

Outra tragédia envolvendo crianças que chocou o país ocorreu no dia 7 de


abril de 2011, na Escola Tasso de Silveira, quando o ex-aluno da instituição, Wellin-
gton Menezes, matou 12 crianças e feriu outras dez, num dos maiores massacres
cometido por atirador individual no país. Também nesse caso, foi construído um
memorial em homenagem às vítimas, numa praça ao lado da escola.

Fig. 3 - Memorial às crianças assassinadas na Escola do Realengo. Disponível em: https://globoplay.globo.


com/v/4481731/

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O que ocorreu no Gran Circus, na Candelária e no Realengo causou grande


repugnância por se tratar de tragédias deliberadamente causadas por seres hu-
manos. Contudo, há outros tipos de tragédias que também provocam grande
comoção, mas desgastam menos a confiança no gênero humano. Trata-se dos
acidentes, ou seja, tragédias resultantes de um erro ou de uma improvidência,
na qual a responsabilidade humana é indireta. Diariamente, dezenas de pessoas
morrem por causa de acidentes nos meios de transportes ou no local de traba-
lho, mas essas mortes pulverizadas não constituem uma “catástrofe”, no sentido
individualizado do termo. Os acidentes passam a ser considerados catastróficos
quando provocam a morte de um número razoável de pessoas ou a destruição
de um importante bem patrimonial.

Assim, pode ser considerada uma catástrofe o incêndio ocorrido no Centro


de Treinamento do Flamengo, no dia 8 de fevereiro de 2019, que matou dez garo-
tos e deixou três feridos. Por se tratar de adolescentes com a idade entre 14 e 17
anos e por ocorrer nas dependências de um dos mais importantes clubes espor-
tivos do Brasil, o acidente teve grande repercussão nos meios de comunicação.

Já o incêndio ocorrido, no dia 25 de maio de 2018, na ala A, do Centro de In-


ternação Provisória (CIP), em Goiânia, não teve a mesma repercussão midiática.
O número de garotos mortos foi o mesmo do ocorrido no Centro de Treinamento
do Flamengo – dez –, mas por serem adolescentes estigmatizados por estar num
Centro de Reabilitação, a tragédia não teve uma visibilidade nacional.

Uma notícia no Portal G1- Goiás informou que:

Um incêndio no centro de internação provisória para menores do 7º Batalhão


da Polícia Militar, no Jardim Europa, em Goiânia, deixou pelo menos nove mor-
tos e um ferido nesta sexta-feira (25). Segundo o Corpo de Bombeiros, os ado-
lescentes atearam fogo a um colchão enrolado na grade de um dos alojamen-
tos da Ala A. (Santana, 25 maio 2018).

O adolescente ferido faleceu posteriormente. A reportagem informa que


as instalações do local eram precárias e que, apesar de ter 52 vagas, a instalação
abrigava 84 menores.

O Estado de Goiás, a quem cabia a guarda dos adolescentes, assumiu a

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responsabilidade pela tragédia. Uma notícia publica na página digital da Defen-


soria Pública do Estado de Goiás informa que:

Há um ano, o Estado de Goiás reconheceu sua responsabilidade civil pela morte


de dez adolescentes em incêndio, ocorrido em 25 de maio de 2018, no Centro
de Internação Provisória (CIP). O acordo firmado no dia 27/05 do ano passado,
entre a Defensoria Pública do Estado de Goiás (DPE-GO), advogados e o Estado
garantiu o pagamento de reparação aos núcleos familiares dos adolescentes,
em forma de pensão e danos morais. A Defensoria Pública e as mães aguar-
dam agora o cumprimento de uma das cláusulas do acordo referente à repara-
ção simbólica e coletiva pelo dano moral e coletivo causado. (Pimentel, 25 maio
2020).

Quatro meses após o incêndio, familiares e pessoas da sociedade civil se


reuniram no Centro de Ensino, Pesquisa e Extensão do Adolescente da Universi-
dade Federal de Goiás (CEPAE/UFG) para a inauguração do Memorial 25 de maio.
O painel, criado pelos artistas Mateus Dutra e Ebert Calaça, está localizado na
entrada do muro do CEPAE e “tem como objetivo contribuir para que o fato não
caia no esquecimento” (Universitária, s/d).

Esse memorial foi o objeto de análise principal desta pesquisa, destacando


os aspectos relacionados à simbologia da morte, à monumentalização e à repre-
sentação estética.

A análise do memorial.

A arte é uma das melhores formas de uma determinada sociedade lidar


com as tragédias. Houve várias análises sobre o terremoto que praticamente
destruiu Lisboa em 1755, mas a que mais se destacou – ou ao menos a mais co-
nhecida – foi a do livro Cândido ou Otimismo de Voltaire (OLIVEIRA, 2008, p. 26).
Da mesma forma, a destruição da cidade de Quernica na Guerra Civil Espanhola
ficou imortalizada a partir do quadro homônimo de Pablo Picasso. Nos dois ca-
sos, a obra literária e a pintura contribuíram para que o acontecimento não fosse
esquecido. Portanto, a transformação do trágico em um elemento estético pres-
supõe um tipo de artefato que remete aos seguintes aspectos: a representação
estética da dor, do sofrimento ou da morte; o desejo de perpetuar o aconteci-

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mento na memória e os aspectos simbólicos relacionados à representação da


morte.

O Memorial 25 de Maio, produzido pelos artistas Mateus Dutra e Ebert Ca-


laça, nas dependências do CEPAE possui elementos que o torna um exemplo da
estética da catástrofe. É um monumento que representa a morte, busca dar voz
às vítimas e possui aspectos simbólicos, embora sutis, que fazem referência à
morte trágica dos adolescentes.

Fig. 4 – Memorial 25 de Maio Fonte: https://radio.ufg.br/n/109950-cepea-cria-memorial-em-homenagem-as-vi-


timas-do-incendio-no-centro-de-internacao-provisoria-de-goiania Acesso 19 abr. 2022

Do ponto de vista estético, a representação das catástrofes e tragédias osci-


la entre a utilização das categorias do sublime e do grotesco. Para Oliveira:

As catástrofes produzem uma estética cuja característica é a elevação dos sen-


timentos de respeito, da seriedade e do silêncio; enfim uma estética do subli-
me. No entanto, quase sempre, paralelamente aparece também uma estética
do grotesco, marcada pelo desrespeito, pelos sentimentos baixos e pelo riso.
(OLIVEIRA, 2008, p. 39)

O grotesco é uma estética da deformação com a intenção, quase sempre,


de chocar o espectador. O Memorial foi produzido sobre um muro reforçado
com cerca elétrica e concertina, o que lembra um centro de detenção, local em
que ocorreu a tragédia.

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Fig. 5 – Detalhes do Memorial 25 de Maio: cerca elétrica e concertina

Não se sabe se os artistas deliberadamente escolheram o local com esses


elementos para compor a representação, mas como eles estão lá, o espectador,
seguindo o princípio uma “obra aberta” (Eco, 2015), pode considerá-los relevantes
para a interpretação.

Quanto à representação imagética em si, os artistas compuseram o Memo-


rial com duas grandes figuras do que parece ser rostos humanos. Mas se trata
de imagens pouco realistas, já que uma das figuras possuem vários olhos e no
rosto de uma delas parecem flutuar uma figura de um planeta e a de um núcleo
atômico. Mais relevante, para se pensar a obra como uma representação da ca-
tástrofe é o detalhe de uma boca que parece estar costurada.

Fig. 6 – Detalhes do Material: “boca costurada”

O direito de se expressar livremente é uma das bases da definição jurídica e


filosófica da liberdade. Pensando que os adolescentes estavam privados de sua
liberdade e que eram marginalizados socialmente, difícil não relacionar a boca
costurada com a ideia de benjaminiana do silêncio dos vencidos. Nesse caso, a
boca costurada pode ser interpretada como uma denúncia da situação marginal
dos adolescentes mortos.

Não há elementos explícitos que vincule à representação imagética com


a tragédia e, nesse aspecto, o memorial é bem mais discreto na representação

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do sofrimento do que o construído em homenagem as crianças assassinadas na


escola do Realengo.

Contudo, tomando o título da obra como chave-interpretativa, é inegável


que se trata de uma representação estética do que aconteceu no dia 25 de maio
de 2018. Entre as duas figuras está colocada, com destaque, a frase “Olhai por
nós”.

Fig. 7 – Detalhes do Memorial: “a expressão olhai por nós”

A expressão, com o tempo verbal na terceira pessoa do singular, remete


a simbologia das orações cristãs. No contexto, a frase ajuda compor o memo-
rial como uma espécie de prece às crianças e aos adolescentes que estão sob
a tutela do Estado. Reforçando isso, nas orelhas de uma das figuras, aparecem
duas pequenas cruzes brancas, um símbolo muito associado à morte na cultura
ocidental.

Fig. 8 – Detalhes do Memorial: “a cruz”

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Nesse aspecto, o memorial de Goiânia lembra um pouco a cruz colocada na


Candelária em memória das crianças e jovens assassinadas no local.

O Memorial 25 de Maio, produzido num local com certa visibilidade, tem a


intenção de monumentalizar a tragédia, ou seja, evitar que a mesma seja esque-
cida. No dia da inauguração do memorial, o professor Altair José dos Santos, na
época o coordenador do Cepea, deixou bem claro o caráter memorialístico do
painel:

Com essa iniciativa, pretendemos prestar solidariedade às famílias vítimas do


incêndio do CIP, registrar na memória da cidade essa tragédia e cobrar ações
para que isso não volte a acontecer. Queremos pedir justiça para as dez famílias
que perderam seus filhos sob a tutela do Estado, e que Goiás abandone a cul-
tura da cadeia e da polícia para os adolescentes e desenvolva mais a cultura de
socioeducação, como prevê a lei e o Estatuto da Criança e do Adolescente (In.
Universitária, s/d).

A inauguração do Memorial, no dia 22 de setembro de 2018, contou com a


presença dos familiares dos adolescentes mortos, autoridades ligadas à proteção
dos direitos humanos e de pessoas sensibilizadas com a tragédia. Foi uma es-
pécie de funeral coletivo, no qual a obra estética possibilitou uma reflexão sobre
essa grave tragédia que ocorreu em Goiânia.

As pessoas que passarem na entrada do CEPAE e observarem o memorial


terão a oportunidade de relembrar o que aconteceu e sensibilizar com a situação
das crianças e adolescentes que estão sob a tutela do Estado brasileiro.

Conclusão.

Enfim, a pesquisa permitiu uma análise de uma fonte pouco utilizada nos
estudos históricos – uma obra estética sobre um acontecimento trágico. A pes-
quisa, infelizmente foi desenvolvida em meio outra grande tragédia que assusta
o mundo: a epidemia de Covid, o que torna as reflexões bem atualizadas, já que
provavelmente muitos memoriais sobre os mortos da epidemia devem ser cons-
truídos no país.

O Memorial 25 de Maio, produzido por meio das técnicas do grafite, possui

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a intenção de suscitar a reflexão da sociedade sobre a barbaridade dessa tragé-


dia. Há uma crítica a um modelo de sociedade que permite que adolescentes
sob a guarda do Estado sofram uma morte bárbara como essa. Espera-se que
essas produções estéticas sobre as catástrofes não apenas lembrem aqueles que
não estão entre nós, mas permita também evitar novas tragédias.

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UNIVERSITÁRIA, Rádio. Cepae cria memorial em homenagem às vítimas do


incêndio no Centro de Internação Provisória de Goiânia. Notícia. Disponível em:
https://radio.ufg.br/n/109950-cepea-cria-memorial-em-homenagem-as-vitimas-
-do-incendio-no-centro-de-internacao-provisoria-de-goiania. Acesso em 24
abr. 2022.

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PRECONCEITO E INJUSTIÇA NA SOCIEDADE COLONIAL:


O CASO DA ESCRAVA DE VEIGA VALLE

Fernando Martins dos Santos 1

José Joaquim da Veiga Valle, que teve sua produção feita em momento
posterior ao auge do barroco mineiro. Veiga Valle nasceu em 09 de setembro de
1806 na cidade de Meia Ponte. Ainda não foram encontrados documentos sobre
sua infância. O mais antigo documento sobre Veiga Valle é sua assinatura em
uma ata de reunião para a reforma da Igreja Matriz de Meia Ponte em 1º de abril
de 1832. Depois disso, seu nome passa a ser citado em documentos oficiais e
jornais, o que dificulta fazer um seguro retrospecto biográfico. Santeiro é o ofício
que atualmente é o mais conhecido em sua biografia. Assim como o pai, Veiga
Valle participou de algumas organizações políticas e ocupou várias funções pú-
blicas, religiosas, jurídicas e militares (SANTOS,2018).

Veiga Valle teve inúmeros cargos políticos e uma das primeiras atuações
políticas que se tem notícia de Veiga Valle, foi a participação como membro fun-
dador da Sociedade Defensora da Liberdade e Independência Nacional2, de Meia
Ponte (Pirenópolis), em 22 de janeiro de 1832. Ao participar da Sociedade Defen-
sora, Veiga Valle se juntava às pessoas que influenciariam nas principais tomadas
de decisões da província, pois elas estavam diretamente ligadas ao governo des-

1 Doutorando em História pelo Programa de Pós – Graduação em História da Universidade


Federal de Goiás (PPGH/UFG), estando inserido na linha de pesquisa Fronteiras, Interculturalida-
des e Ensino de História. Bolsista Capes. Email: fernando_martins@discente.ufg.br

2 A primeira Sociedade Defensora da Liberdade e Independência Nacional foi criada em


São Paulo – SP, em 29 de março de 1831, tendo como objetivo contribuir com as autoridades para
manter a ordem pública, no turbulento momento que antecedeu a abdicação de Dom Pedro I (07
de abril de 1831). Logo a notícia da Sociedade se espalhou e outras foram criadas em vilas de São
Paulo. Em 10 de maio de 1831, se baseando na Sociedade paulistana, o Rio de Janeiro – RJ, criou a
sua Sociedade Defensora da Liberdade e Independência Nacional, e por ser a capital do império,
passou a influenciar diretamente todas as outras que foram criadas no Brasil (VIEIRA, 2013).

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de a época da Independência.

Meia Ponte foi elevada à categoria de vila em 1833. Em 30 de novembro


teve sua primeira eleição e os vereadores seriam os sete mais votados. Assim,
na primeira eleição Veiga Valle tentou uma vaga na Câmara Municipal, ficando
com o cargo de suplente (JAYME,1974), e seu pai, Joaquim Pereira Valle, foi o mais
votado e se tornou o primeiro presidente da Câmara Municipal de Meia Ponte.
No entanto, na segunda eleição para a Câmara Municipal, em 1936, Veiga Valle se
elegeu como vereador, tomando posse em 1837 (JAYME, 1974).

Veiga Valle, com 34 anos, mudou-se da cidade de Meia Ponte para a Cida-
de de Goiás, em razão do seu casamento com Joaquina Porfíria Jardim, filha do
então presidente da província, José Rodrigues Jardim. A união nupcial deu-se a
partir do convite, em 1841, de José Rodrigues Jardim para que Veiga Valle douras-
se os altares da Matriz de Sant´anna, na capital. Dois meses depois, se casou com
Joaquina Porfíria Jardim, a terceira filha do presidente da província e se muda
para então capital, onde se tornou deputado provincial e se tornou membro da
Irmandade do Bom Senhor Jesus dos Passos.

Somente no pleito de 1857 que Veiga Valle se elegeu para o biênio 1858/1859.
No pleito seguinte, para o biênio de 1860/1861 ele não foi eleito deputado, não fi-
cando nem entre os suplentes. No próximo pleito, 1862/1863, Veiga Valle conse-
guiu se eleger, o mesmo ocorreu para o biênio de 1864/1865.

A falta de documentação começou a ser superada a partir do biênio


1866/1867, em que Veiga Valle novamente foi eleito como deputado provincial,
com 145 votos. No biênio 1868/1869 e 1870/1871 sua quantidade de votos foi dimi-
nuindo, ficando em uma média de 140 votos. No entanto, depois de oito manda-
tos como deputado provincial, nas eleições para o pleito de 1872/1873, Veiga Valle
não foi eleito. Mesmo mantendo a média de votos, com uma diferença de quatro
votos, sua reeleição não aconteceu.

A última tentativa de eleição de Veiga Valle se deu em 1874, excepcional-


mente naquele ano as eleições ocorreram no início de janeiro. Contudo, no dia 29
de janeiro Veiga Valle veio a falecer, com 68 anos, mesmo assim seus votos foram

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contabilizados e, mais uma vez, ele não seria eleito, obtendo 105 votos.

Ao analisar a documentação se pode observar que atuação de Veiga Valle


como vereador e deputado provincial era muito pífia, suas intervenções eram
inexistentes nas discussões e número de faltas elevados. As comissões que ele
mais participava eram de: Comissão de Estatística, Comissão de Comércio e Co-
missão de Negócios Eclesiásticos.

Toda a obra de Veiga Valle foi voltada para obras sacras. Por isso, ele é cha-
mado por muitos de santeiro. Essa expressão remete ao profissional da época
colonial que só fazia cópias do que via nas igrejas ou em residências particulares,
copiando a prataria, o mobiliário, a escultura e a pintura. Defende-se que Veiga
Valle era mais do que um confeccionador de cópias, pois, por mais que repetisse
atitudes e atributos típicos da arte sacra, ele destacava-se pelo acabamento e
pela policromia de suas criações. Suas obras não se reduzem ao serial, pois ele
conseguiu articular soluções completamente pessoais sem perder o respeito à
iconografia (SALGUEIRO, 1983).

Uma das maiores discussões a respeito de Veiga Valle é sobre a aprendiza-


gem das técnicas de esculturas, já que pouco se sabe sobre sua infância ou ju-
ventude. O que se deve lembrar é que, na cidade de Meia Ponte, existiam várias
igrejas, com altares entalhados e dourados, oratórios, imagens sacras que vieram
de Portugal e Espanha. O que se percebe é que Veiga Valle tinha um ambiente
propício para aprendizado e inspiração. A folclorista Regina Lacerda, ressalta a
importância do ambiente que o artista cresceu e viveu para sua inspiração:

(...) O ambiente em que se criou o artista de certa forma já estava preparado:


seus olhos puderam comtemplar a imagem de Nossa Senhora do Rosário
(dada como pertencente à igreja-matriz de Pirenóplis, desde 1728); aí se vêem
anjos tocando trombetas no retábulo do altar-mor, pinturas no teto, do cama-
rim e do trono, que o teriam impressionado – feitas em 1766 por pelo pintor
Reginaldo Fragoso de Alburqueque. Teria se impressionado o jovem escultor
uma imagem de Nosso Senhor do Bonfim, bela composição barroca trazida da
Bahia nos ombros de 260 escravos, por onde do sargento-mor Antônio José de
Campos – para a igreja construída em Meia-Ponte (entre os anos de 1750-1754)
em honra do mesmo bom Jesus Venerado (LACERDA, 1977, p.70).

Heliana Angotti Salgueiro, em seu livro intitulado A singularidade de Vei-

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ga Valle (1983). Não encontrando nenhum documento que comprove o apren-


dizado do artista, a pesquisadora faz um grande levantamento de inventários
particulares que demostram “quadros de santos”, “estampas diversas de santos”,
“livros de preces e devoções”, e que a criação artística resulta não só do talen-
to, mas do ambiente, da experiência, da formação e das viagens (SALGUEIRO,
1983, p.41). E o ambiente que viveu Veiga Valle, de tantas imagens em igrejas e
particulares, pode lhe ter propiciado um caráter tipológico.

O artista baiano João José Rescala, quando faz seu relatório para o Servi-
ço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), em 1940, afirmou que
Veiga Valle teve como mestre em Meia Ponte, “o Padre Amâncio, superando em
pouco tempo seu mestre”. Contudo, nenhuma comprovação dessa afirmação
foi encontrada, o que leva os principais estudiosos de sua obra a defenderem
duas hipóteses: a de que ele foi um autodidata, defendida principalmente por
Elder Camargo de Passos (1997) e a outra é de que não era um autodidata, já que
sua técnica era bem apurada, com uma boa anatomia e precisão nos entalhes,
defendida por Heliana Angotti Salgueiro (1983). Seja como for, as obras de Veiga
Valle estão intimamente ligadas à arte sacra, pois eram feitas para este fim. A
grande maioria era encomenda de Irmandades ou particulares para algum ritual
católico.

A obra de Veiga Valle é composta por uma variedade de santos, destacan-


do as Madonas, representadas principalmente por Nossa Senhora d´Abadia, da
Conceição, da Guia, do Bom Parto, do Rosário, da Penha, das Mercês, do Rosário,
entre outras. Além das madonas, ele produziu imagens de São Sebastião, Cristo
em Agonia, São Miguel Arcanjo, São José de Botas, São Joaquim e São João do
Deserto (como mostra a imagem abaixo). Outro destaque é a quantidade de es-
culturas de Meninos-Deus, elementos fundamentais da tradição vilaboense de
se construir presépios (SANTOS, 2018).

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Figura 01 - Veiga Valle. Século XIX. São João do Deserto. Escultura em madeira dourada e policromada, 68
cm. Museu de Arte Sacra da Boa Morte, Cidade de Goiás - GO. Foto: Fernando Santos, 2022.

Segundo Salgueiro (1983), a maioria das peças não era inteiriça, pois mãos
e faces eram esculpidas separadamente. Como a maioria da arte sacra brasileira,
também a maioria das obras de Veiga Valle era feita em madeira cedro, uma vez
que existia certa dificuldade de encontrar pedras para se esculpir e havia muita
madeira disponível, o que explica a abundância de madeira nos ornamentos das
igrejas. Mas ele chegou a utilizar outras madeiras como: casca de cajá, maminha
de porca, jatobá e bálsamo, sendo os dois últimos para esculpir outras partes
do corpo por serem mais fáceis de entalhar. A madeira deveria ser cortada no
tempo certo, normalmente na lua minguante, pois sua seiva estaria mais baixa
e com os veios quase fechados, o que dificultaria futuras rachaduras. Depois de
cortadas, eram depositadas em local seco.

No entanto o destaque de suas obras são o esgrafiados, onde os desenhos


são feitos com espécie de estilete, a camada externa da tinta seca, de modo que
a camada interna, o “pão de ouro” brunido, apareça evidenciando os ornamen-
tos. Depois das peças esculpidas e devidamente lixadas, recoberta com finas ca-
madas de gesso para que fossem retiradas todas as possíveis imperfeições da
madeira, era novamente lixada e limpa. Finas camadas com gesso e cola seriam
aplicadas a pincel. Depois de totalmente seco, fazia-se um polimento. Na etapa
da douração da peça, as folhas de ouro ou prata eram fixadas nos mantos ou nas
regiões que teria esgrafiado. Após serem coladas, eram limpas para tirar qual-

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quer resquício de sujeira e, estando completamente seco, se fazia a brunidura3


-processo que fazia as folhas de ouro aderirem mais e servindo como polimento
- dando maior luminosidade ao douramento (SANTOS, 2018). Como se pode ob-
servar na imagem abaixo:

Figura 02 - Veiga Valle. Século XIX. Nossa Senhora da Imaculada Conceição. Escultura em madeira dourada e
policromada, 33 cm. Museu de Arte Sacra da Boa Morte, Cidade de Goiás - GO. Foto: Fernando Santos, 2022.

Veiga Valle, viveu na Cidade de Goiás até sua morte, em 29 de janeiro de


1874. Deste período até os primeiras movimentações para a tranferência da capi-
tal, da Cidade de Goiás para Goiânia, sua obra se tornou praticamente esquecida,
inclusive para os vilaboenses. Situação que começou a mudar com as primeiras
articulações para que se colocasse a Cidade de Goiás como berço da cultura e da
tradição goiana (SANTOS,2018).

Como mostrado anteriormente, uma das grandes dificuldades encontradas


em pesquisas sobre vida e obra de Veiga Valle são documentos. Pois nenhum
documento específico mostra quando ele iniciou, qual foi sua primeira obra e
quem foi o primeiro encomendante. O primeiro documento que faz referência
a sua arte é uma queixa que de roubo promovida por ele, em 24 de fevereiro de
1848.

Na queixa prestada na Cidade de Goiás, Veiga Valle reclama que a escrava

3 Para se fazer a brunidura, passava-se um pouco de gordura sobre as partes para que a
“pedra de ágate”, apropriada para o polimento, pudesse deslizar melhor. (SALGUEIRO, 1983, p. 66)

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Faustina Jovita Coelho Pedrosa roubou um bangué, uma imagem de Nossa Se-
nhora, que foi enviada a ele, para ser encarnada, à mando do vigário da vila de
Pilar, José Joaquim Rodrigues Aranha. Segundo o relato de Veiga Valle, em sua
casa, naquele momento, não tinha cômodo apropriado para guardar o bangué,
sendo assim, o enviou para a chácara de sua sogra. O artista alegou que a escrava
teria usado de recado fraudulento para furtar o bangué, juntamente com mais
dois escravos. Veiga Valle exigiu a prisão da escrava e a devolução do bangué,
antes que fosse vendido. Segundo o documento:

Goyaz _______________________ 1848 _____________________________ Fls. 1

1577 Sumário Crime que mandou proceder o Meretissimo Senhor Sub. Delei-
gado de polícia em Virtude da queija de

Major José Joaqm da Veiga Valle Autor

Faustina Jovita Ré

Anno do nascimento do Nosso Senhor Jesus Christo de mil oito centos e qua-
renta e oito Vigesimo sétimo da Independencia do Imperio nesta Cidade de
Goyaz aos vinte e quatro dias do mes de janeiro do dito anno em Cartorio de-
mim Escrivão adjunto nomeado compareceu ao presente o Sargento Mor José
Joaquim da Veiga Valle com uma petição em aqual vinha junto procuração
ao Tenente José Maria de Sousa Morais e com o Mencionado Despacho junto
no verso da Dita Petição da queixa contra Faustina Jovita em que mandava
que Jurado e Atuado fosse conclusos; e sendo pelo Meretíssimo Senhor Sub

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delegado deferido o juramento do queixoso que se hacha junto ao corpo desta


o que de tudo para constar opresente autuamento. Eu Francisco Xavier Leite
do Amaral Coutinho Sa. Escrivão da Sub delegacia de Pollicia que o subscrevi.

Ilmo Snr Subdelegado

Diz Jose Joaqum da Veiga Valle q tendo de apresentar uma queija criminal
contra Faustina Jovitta Coelho Pedroza, vem em vist do disposto no Art. 92 da
Lei de 3 de Abril de 1848, pedir V.S. Licença pa o fazer P. seo Procor, visto de o
Supe de ausentar do Sitio de sua Sogra por motivo de enfermidade d a Fama
, q demandão mudança de Aris, Goyaz

Como requer o assguinado P.a Seja servido

O suplicante . Goyaz 23 assino o mandato

De janeiro de 1848.

José Joaquim da Veiga Valle

-------------------------------------------------------------------------------------------------------

Illmo Sr Subdelegado

Diz Jose Joaqn da Veiga Valle, cazado e estabelecido nesta Cide q, vindo da Va
de Pelar o Vigario Joaqn Roiz Aranha trouxe-lhes em hum Bangue a imagem
de N. S. Padroeira daquela freguesia para ser encarnada pelo suplie e retiran-
do-se deixou debaixo de sua guarda o dt Bangue e mais pertences pa nelle

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talvez voltar a Imagem , e o Suppe p não ter comodo suficiente em sua csa
o mandou guardar na chácara da sua sogra D Angela Ludovica de Almeida
acontece proem q Fasutina Jovitta, invadindo o azillo sagrado da da Ca sua
Sogra, e servindo-se para este fim de hum recado falso, e simulado, mandou
tirar dali e conduzir já a sya Casa od Bangue pelo Escravo do Sarg mor José
Mello Castro de Moraes, de nome Fasutino e pelo Capão Joaqn Marcelino d
Camargo isto no dia 28 do mez de Dezembro p. pas, e q conceguirão q o Escra-
vo João, vigia da chácara na sua Simplicidade não supôs dar lhe um recado,
q dos condutores recebeu porem sendo o suplite obrigado a faser entrega do
Bangue ao de valor áquela deqm recebeo he claro q o supli sofreu hum perfei-
to furto e ela Faustina tem cometido com tal procedimto os Crimes menciona-
dos no artigo 210, 259 e 265 §1º do Cod Penal e p isso vem o supte queixar-se da
Faustina Jovitta, como inscritas suas penas estabelecidas nos supra citados
artgº e como tal delito seja inafiançável requer VS. Não só mandado prisão
contra

indiciada Ré como de Busca do do Bangue pa ser entregue ao suppte antes


q seja Vendido .

Transcrição do que está escrito no lado esquerdo do documento

O próprio queixoso ouvido vinha conclusões, Goyaz 24 de jan de 1848

Transcrição do que está escrito no lado direito do documento

Pa V. S seja servido, tomado ouvir o Juramento e authoado, mas dai q sejam


notificados os dos Escravos pa se prosseguir na formasão do Processo pa Vsa
saudo debaixo de segredo do Jurt° os Mesmos Requeridos e prosseguir nos

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superiores termos da Lei pa desagravo da Lei, e ao exemplo de outros.

Mas a conclusão do inquérito foi que Veiga Valle não poderia ter prestado a
queixa, pois a chácara não era dele e nem o bangué. O verdadeiro dono do ben-
gué enviou uma carta, dizendo que realmente tinha pedido a escrava, Faustina,
para que desse o recado e para que lhe entregasse o bangué, acrescentando
ainda que ela não usou de nenhum meio fraudulento ou violento, sendo assim
não caberia nenhuma pena. O que pode mostrar que Veiga Valle, mesmo sendo
da elite vilaboense, não tinha tanta influência perante seus pares.

Como mostrado Veiga Valle acusa uma escravizada sem nenhum tipo de
prova por ter lhe roubado, tendo a feito pelo óbvio fato dela ser uma escravizada
e, consequentemente, a principal suspeita. Deixando claro a clássica ideia co-
lonial, segundo Aníbal Quijano (2009) “o fato de que as relações de dominação
originadas na experiencia colonial de “europeus” ou “brancos”, como era Veiga
Valle, e índios , negros e mestiços, implicavam profundas relações de poder que
naquele período, por estarem tão estreitamente ligados a formas de exploração
de trabalho, pareciam naturalmente associados entre si e que haviam outros ei-
xos do poder que existiam e atuavam em meios que não eram somente econô-
micos, mas outros como o gênero, a idade, principalmente, a raça e que, conse-
quentemente, a distribuição de poder entre a população de uma sociedade não
provinha exclusivamente das relações em torno do controle do trabalho e nem
se reduzia a ele, como se pode vê na acusação de Veiga Valle à Faustina Jovita.

Para concluir, podemos pensar que o artista Veiga Valle tinha um típico
pensamento colonial e, consequentemente, grande parte dos vilaboenses. Tal
conclusão, podemos pensar pelo lado das obras encomendadas, que eram obras
que de estilos eurocêntricos, neoclássico, rococó e barroco. A escolha do artista,
anos depois de sua morte, como principal representante da identidade vilabo-
ense, é reflexo de tal pensamento. Vivendo em uma época em que prevalecia
a arte acadêmica (neoclássica), Veiga Valle e suas obras são mais conhecidas e
classificadas como barrocas. Apesar disso, Veiga Valle não seguiu apenas um es-
tilo artístico, utilizando os três estilos, o barroco, o rococó e o neoclássico. As ca-
racterísticas barrocas aparecem principalmente na composição dos temas, dos

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gestos e na movimentação dos mantos esvoaçantes. Nota-se muito o neoclássi-


co nos traços que compõem a fisionomia dos rostos, que são mais serenos, con-
templativos e benevolentes, diferenciando-se do barroco, que valoriza o êxtase e
o drama. Além disso, o rococó aparece nitidamente nos ornamentos dos paneja-
mentos, as cores das pinturas são mais claras e luminosas, reforçando o dourado.
Segundo Heliana Angotti-Salgueiro (2011), nas obras de Veiga Valle, existe o que
ela chama de “hibridismo” ou “estilo misto. No rastro de sua escolha e afirmação
como principal artista goiano do século XIX, artistas com estilos não “eurocên-
tricos” ou que não faziam parte dessa elite, foram silenciados. Mas tal discussão,
deve ser mais aprofundada e deixaremos para um próximo momento.

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Referências Bibliográficas:

ANGOTTI-SALGUEIRO. Heliana. Diante das imagens de Veiga Valle: Questões co-


locadas, questões retomadas. In: UNES, Wolney (Org.). VEIGA VALLE: catálogo.
Goiânia, ICBC, 2011.

LACERDA, Regina. Vila Boa – história e folclore. Goiânia: Oriente, 1977.

PASSOS, Elder Camargo de. Veiga Valle – seu ciclo criativo. Goiás, GO: Museu de
Arte Sacra, 1997.

QUIJANO. Aníbal. Colonialidade do poder e classificação social. In: SANTOS, Bo-


aventura Santos; MENEZES, Maria Paula (Org.). Epistemologias do Sul, (CES),
2009.

SALGUEIRO, Heliana Angotti. A singularidade da obra de Veiga Valle. Goiânia:


UCG, 1983.

SANTOS, F.M. Veiga Valle: Da morte do Homem ao Nascimento do Artista


(1874-1983). Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais e Humanidades na área
interdisciplinar Territórios e Expressões Culturais no Cerrado) – Universidade
Estadual de Goiás, Anápolis, 2018.

VIEIRA, Martha Victor. As sociedades políticas goianas: a sociedade de-


fensora de meiaponte e a sociedade conciliadora de goiás (1832-1833). In: XVII
SIMPOSIO DE HISTÓRIA “CONHECIMENTO HISTÓRICO E DIÁLOGO SOCIAL”,
2013.

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A OBRA FOTOGRAFICA DE VIVIAN MAIER A PARTIR


DOS SENTIDOS CONSTRUÍDOS NO PROCESSO
DE RECEPÇÃO E CIRCULAÇÃO

Gabriela da Silva Chaves1

O uso de fontes visuais no trabalho do historiador exige recursos interpreta-


tivos mobilizadas a partir de referenciais teóricos específicos. Ao longo do séc. XX
e início do XXI, a historiografia e as teorias das imagens apresentam alguns dos
recursos, que em constante diálogo entre si, são utilizados para a leitura da fonte
selecionada para este trabalho. Neste trabalho, utilizamos a obra fotográfica de
Vivian Maier, fotógrafa estadunidense com uma vasta produção compreendida
entre os anos de 1950 e 1990, como fonte para a análise do objeto de pesquisa: a
experiência histórica mobilizada nos registros e posteriormente na sua publica-
ção da obra.

A fotografia é compreendida aqui, como uma prática da experiência his-


tórica contemporânea de produção de sentido social sobre o mundo visível. De
acordo com a historiadora Ana Maria Maud, “(...)a análise histórica de fotografias
não deve isolá-las das experiências sociais que as engendraram”. (MAUAD, 2010)
E como experiência sociais, entende-se, o circuito social de produção, circulação,
consumo e agenciamento das fotografias ao longo do tempo.

Está é uma direção norteadora para este trabalho, que se pretende “ir ao
encontro de um conhecimento histórico que valorize as práticas e suas repre-
sentações sociais de sujeitos históricos no tempo.” (MAUAD, 2010). Além disso,
utiliza-se da proposta teórica de Ulpiano Bezerra de Menezes, relacionando a
imagem ao visual, a visão e ao visível. Portanto, estabelecendo um caminho in-

1 Universidade Federal de Uberlândia - PPGHI- UFU. E-mail: gabrielachavesat@gmail.com.

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terpretativo para além de uma leitura sobre os signos construídos na imagem.

Nesta perspectiva, esse artigo tem como finalidade responder os seguintes


questionamentos: Analisando o percurso da imagem de Vivian Maier e sua obra
fotográfica, quem é a fotógrafa apresentada pelos principais nos meios de divul-
gação da obra fotográfica produzido pelo curador John Maloof? Qual a relação
da Biografia da fotógrafa com o circuito que essa imagem percorre? Qual o sen-
tido da experiência histórica representadas nos registros a partir do consumo,
produção e agenciamento das fotografias ao longo do tempo?

Para responder os questionamentos levantados, o texto é pensando para


uma apresentação da fonte em seu primeiro tópico, uma análise da biografia de
Maier Construída por Maloof, e por fim, a representação autobiográfica de Vivian
Maier. O objetivo principal desses questionamentos e a forma como são estrutu-
rados é a análise dos sentidos produzidos na obra fotográfica diante do estatuto
social estabelecido.

Vivian Maier, Biografia e Curadoria.

Vivian Dorothy Maier, nasceu no ano 1926, nos Estados Unidos. Sua família
nesse período era imigrante no país, seu pai de origem austríaca e a mãe de ori-
gem francesa. Após seu nascimento e alguns anos vivendo a infância em Nova
York, seus pais se separam e Maier se muda para a França acompanhada da mãe.
Sua juventude, é, então, marcada pela sua vivência no vale dos alpes franceses,
em um pequeno povoado chamado Saint-Julien-em-champsaur. Além disso, é
nesse período em que começa seu contato com o registro fotográfico através de
uma câmera Kodak Browie.

Logo no início da vida adulta, por volta do ano de 1951, Maier retorna aos
Estados Unidos e inicia uma trajetória que vai acompanhá-la até seus últimos
anos. Na cidade Chicago, ela vai conciliar o trabalho como babá de crianças ou
cuidando de pessoas idosas com inúmeras caminhadas pelas ruas da cidade
fazendo fotografias.

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O ato de registrar cenas e a produção de imagens, não se torna um caminho


profissional provocando a não publicação de suas fotografias. No entanto, ela
produz um número desproporcional para uma pessoa amadora nesse período.
Calcula-se que essa obra fotográfica esteja em torno de 100 mil imagens. Fator
ligado ao desenvolvimento da fotografia analógica no século XX, que passa por
diferentes estágios, e a sua popularização e o desenvolvimentos dos aparelhos
fotográficos podem se tornar aspectos relevantes para que a fotografia saísse do
domínio exclusivo de estúdios fotográficos e chagasse a pessoas como Maier.

É perceptível que existe uma linha tênue entre a categoria profissional e a


amadora. Quando se encara a fotografia de Maier dentro dos parâmetros colo-
cados para o período, analisando todos os aspectos formais da imagem, seus re-
gistros se afastam da categoria amadora. Ainda assim, ao pensar sobre o aspecto
profissional, a questão não se basta na análise fatores técnicos.

A escolha pelo trabalho como babá é apresentada em sua biografia como


uma tentativa de fuga de empregos com uma rotina fixa e rígida, que faria per-
der muito tempo de luz solar. Observa-se que apesar do trabalho que a susten-
tou durante toda a vida, sua dedicação e preocupação era por fazer registros.
Caminhadas pela cidade durante o dia era a sua rotina desejada. As suas obser-
vações sobre os seus arredores demonstram que o quanto era intima pela rua e
pela cidade. A soma dessas observações com a câmera, no domínio das tecnolo-
gias da câmera Rolleiflex, resultou em imagens que se aproximam do cotidiano
das cidades e das pessoas que a constrói.

Todo o material produzido por Vivian Maier, em decorrência de não ter sido
publicado, ficou desconhecido até mesmo entre as pessoas que ela conviveu
durante a vida. Entre essas pessoas, a maioria são ex-patrões ou crianças que
tiveram seus cuidados, o conhecimento pelas fotografias só ocorreu após o ano
de 2009. Ano que também divide data do falecimento de Maier. Todos, inclusive
o público consumidor de fotografias e obras de arte, se deram conta do acervo
de fotografias após o encontro de John Maloof com uma caixa de negativos de
Maier em um leilão de antiguidades.

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No ano de 2007, Maloof atuava como corretor de imóveis na cidade de Chi-


cago e, em paralelo ao emprego, escrevia um livro sobre a história do seu bairro
motivados pela sua atuação como presidente de associação de preservação his-
tórica de Chicago, Northwest Chicago Historical Society. Para seu livro, o escritor
estava em busca de fotográficas antigas do bairro em leilões de antiguidades.
Esses leilões, que tem como principal motivo o esvaziamento de galpões desti-
nados a aluguel para deposito de objetos, foi o cominho que o corretor e escritor
chegar até alguns negativos de Maier.

Os objetos pessoas, negativos, câmeras e até mesmo filmes caseiros, foram


deixados por Maier em um deposito após ir morar em uma casa de repouso devi-
do a um acidente durante sua velhice, onde quebrou uma perna e não pode per-
manecer sozinha. Esse processo ocorreu com o auxílio de dois irmãos que foram
cuidados por Maier quando crianças. Ao longo dos anos de sua velhice, Maier
deixou de pagar o aluguel do deposito e junto a perca de contato das poucas
pessoas que eram próximas, seus objetos foram espalhados por casas de leilões
na cidade de Chicago.

Contudo, John Maloof, se dedicou a uma pesquisa particular sobre as in-


formações sobre a autora dos primeiros negativos que encontrou e com pouco
tempo já tinha reunido inúmeros negativos e objetos pessoas. A reunião desses
artefatos o transformou no principal agente responsável pela construção biográ-
fica e divulgação da obra fotográfica, uma vez que a partir dos artefatos reuni-
dos, ele inicia o trabalha de curadoria do acervo e publicação.

A partir desse trabalho foram publicados foto-livros, a construção de um


site com o acervo oficial da obra com artigos bibliográficos, a produção do docu-
mentário Finding Vivian Maier e diversas exposições das imagens. Atualmente
o trabalho de curadoria em exposições não é exclusivo de Maloof, entretanto, o
acervo das fotografias não é público e continua em seu domínio particular.

A construção biográfica de Vivian Maier por John Maloof.

Enigma, palavra utilizada para se referir a uma situação de difícil compre-

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ensão, é um termo que repetidas vezes e acompanhado por outros sinônimos


é empregado na biografia de Vivian Maier. Por meio de diferentes meios como
audiovisual, foto-livros e um site, a narrativa biográfica elaborada por John Ma-
loof descreve a fotografa como um “fenômeno”, ou como “enigma” “ou ainda
“rodeada por mistérios”.

A narrativa construída em volta de um artista e obra após sua morte não


é um fator inédito para a história. A popularização da obra e da história de Van
Gogh, em uma escala mundial, pode ser um dos principais exemplos que nos faz
recordar algumas dessas biografias. É preciso dizer que esse fator não desclas-
sifica a relevância ou o prestígio dessas obras ou dos seus autores. No entanto,
essa relação é inevitável ao aproximar da biografia de Vivian Maier.

Assim como a obra de Van Gogh adquire um valor póstumo a morte do au-
tor, as fotografias deixadas, em um deposito qualquer, por Maier, vão se transfor-
mar de artefatos para obra de arte após o seu falecimento. As duas histórias têm
em comum um fator determinante para a construção dessas narrativas: o inte-
resse por um artista que foi desprezado em vida e enaltecido depois da morte.

O primeiro texto que vai rememorar a história do pintor holandês, cons-


truindo a narrativa que vai arrancar olhares de todo o mundo é escrito após 40
anos da morte de Van Gogh por, Irving Stone (1934)2. Segundo a análise realizada
pela pesquisadora, Leticia Vidal de Carvalho, a forma como o texto é escrito apro-
xima-se do gênero teatral, e aponta que a estruturado na construção de diálogos
e pensamentos do artista. (CARVALHO, 2017. P.11) Carvalho faz uma análise o so-
bre a construção de uma narrativa que romantiza a história do artista e aponta
sobre a dramaticidade sobre o sofrimento de vida do pintor.

A questão a ser considera para este trabalho, é relacionada a uma estrutu-


ra estilística na construção da biografia de um artista. Ainda segundo a autora,
Giorgio Vasari é considerado como um dos percursores da biografia de artistas.
Os seus textos foram considerados como decisivos na consagração de artistas da
arte moderna. Carvalho releva que o autor utiliza uma linguagem poética, e que

2 O texto considerou a narrativa que Bernard e Van Gogh-Bonger, a partir de correspondên-


cias, relatam. Bernard, melhor amigo do pintor relata detalhes do seu suicídio por meios de cartas
que vai ser considerada a primeira biografia de Van Gogh.

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(...) cada figura de linguagem empregadas nesses textos foram pensados para
que o leitor se sinta conhecedor da obra [ensinamento], sinta prazer ao ler
aquela descrição [deleite] e seja convencido de que aquilo é algo magnífico
[persuasão], assim como é da vontade do autor. (...) (CARVALHO, 2017. p.10)

Considerando a estrutura que John Maloof recorre ao escrever, editar ou di-


rigir, as produções biografias sobre Vivian Maier, percebe-se que poucas mudan-
ças ocorrem na construção das narrativas biográficas de artistas produzidas no
séc. XXI, sobretudo, as biografias de artistas do Séc. XX. O elemento mitológico
produzido ao tratar a obra artísticas nessas configurações permanece, entretan-
to, a linguagem poética se transforma em uma linguagem documentarista.

O público tem o primeiro contato com a obra através de exposições organi-


zadas pelo proprietário do acervo entre os anos de 2009 a 2015, foram realizadas
diversas exposições que tinham como foco a apresentação da fotografa Vivian
Maier, diante da narrativa que explora figura de uma fotógrafa oculta. Posterior-
mente, todo o encontro de Maloof com os artefatos vão ser registrados através
do documentário Finfing Vivian Maier. Atualmente, além desses meios, o acervo
fotográfico foi reunido em formato digital em um site público a partir de uma
seleção pelo curador. Neste sentido, os objetos biográficos são elaborados em
três tipos de linguagem.

Para este trabalho, os horizontes bibliográficos mobilizados pela história da


arte não abrangem todos os questionamentos levantados para as fontes. No en-
tanto, localizamos a partir da estrutura apresentada pela pesquisadora, Letícia
Vital de carvalho, um bom parâmetro para localizar a biografia de Vivian Maier
dentro do próprio meio artístico possibilitando reconhecer uma tendencia es-
tabelecida no desde o século XIX. E não muito distante, é possível perceber o
estilo poética e ficcional se afastar e a estrutura da narrativa se ancorar na noção
de “verdade” contida no documentário, deixando os aspectos ficcionais não tão
aparentes.

A historiadora, Sabrina Loriga, ao recorrer a experiências individuais para


seu trabalho histórico sobre o exército no séc. XIX, inicia uma trajetória que via-
biliza discussões pertinentes sobre o uso deste tipo de fonte para o campo da

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história, os relatos biográficos. Primeiramente é necessário, sobretudo neste tra-


balho, pensar na biografia em termos de gênero literário e no seu limiar entre a
biografia da literatura e a da história. As discussões presentes aqui, são problema-
tizadas a partir da circulação da obra fotografia de Vivian Maier, e neste sentido,
pretende alcançar os sentidos que as imagens produzidas pela fotografa adquire
a partir do seu circuito social de produção, circulação, consumo e agenciamento,
preservando-se da revisão e construção de uma “nova” biografia de Vivian Maier.

Novamente é importante destacar os diferentes usos dos termos presente


neste texto, primeiro é exposto a construção biográfica de Maier realizada pelo
agente John Maloof, compreendida como esse gênero “literário” que se utiliza de
elementos ficcionais. Posteriormente, compreende-se que a análise dessa fonte
percorre o caminho proposto por Ulpiano bezerra de Menezes, para o tratamen-
to de uma visualidade, a construção de biografia da imagem.

Os registros autobiográficos de Vivian Maier

Dentre os 100 mil negativos produzidos pela Estadunidense, Vivian Maier,


boa parte dos registros são de autorretratos. As características estéticas da foto-
grafa, além de se enquadrar no campo da fotografia de rua, apresenta a catego-
ria de autorretratos em inúmeros registros realizados em ambientes internos e
externos. É possível reconhecer nas imagens, além das características físicas, seu
envelhecimento.

As fotografias têm características semelhantes a toda sua produção: são


imagens realizadas a partir de jogos de luzes e sombras, realizando recortes de
cenas externas ou de objetos específicos, como vitrines, espelhos e outras su-
perfícies reflexivas. A pesquisadora Livia Tufvesson, em uma análise sobre os re-
gistros autobiográficos da fotografa, diz que essas imagens “(...)as fotografias de
rua e os autorretratos que faz no espaço público, resultando em imagens de si
que são híbridas dos registros autobiográfico e documental.”. Tufvesson, ainda
nomeia a fotografa como uma Voyese de si mesma entre as diversas pessoas
presentes na rua.

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O autorretrato, uma forma de registro onde o assunto é o próprio artista,


apresenta um material onde tem em si a construção de uma identidade. O sur-
gimento deste tipo de registro é apresentado por Ana Carolina Magalhães Salvi
como uma intervenção iniciada por mulheres, principalmente na pintura. O fato
desse início ser associado a atuação artísticas de mulheres, segundo a autora,
está em decorrência de um contexto em que a figura feminina era designada ao
lar e distante da vida pública. (SALVI, 2020. p.391). Entretanto, a autora nos diz que
em meados do século XX,

(...) As mulheres, que tradicionalmente haviam sido negadas a possibilidade


criativa e permitidas quase unicamente como objeto de desejo masculino, com
corpos narrados por um olhar externo, transformaram o pessoal em político,
buscaram a emancipação e levantaram denúncia das opressões, trazendo a
luta por igualdade para o campo da arte. (SALVI, 2020. p.391)

O que a pesquisadora apresenta dialoga com o que significa o acervo de


fotografias de Vivian Maier e seus autorretratos. Os registros demonstram essa
mistura entre o pessoal e o político e diante disso, esses autorretratos estão di-
retamente relacionados as consequências históricas retiras de toda a obra de
Maier. No autorretrato que inicia nossa análise, sem registro do local e no ano de
1950, Maier utiliza do seu reflexo para compor a narrativa. Vemos na imagem em
primeiro plano, a fotógrafa, registrando o retrato diante de um espelho.

Fonte: Vivian Maier,1950. Autorretrato.

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Logo em segundo plano está a rua, a cidade e as pessoas que circulam nes-
se espaço. Duas mulheres são destacadas e quase centralizadas na imagem, que
cristaliza o momento em que elas colocam sua atenção na vitrine de uma loja
de roupas íntimas. Dois elementos são importantes para a análise, o primeiro é o
lugar em que Maier ocupa, neste ângulo as mulheres registradas não enxergam
a fotógrafa, e o segundo, é o olhar de todos os sujeitos na imagem direcionados
a vitrine.

No registro, o olhar da autora focaliza-se no cotidiano de outras mulheres


na rua. As duas mulheres em segundo plano estão centralizadas na narrativa e
Maier foca na expressão de cada uma diante da vitrine. Além disso, assim como
no primeiro autorretrato, a imponência da cidade sobre o indivíduo está presen-
te diante de uma composição onde as pessoas parecem mergulhadas entre os
grandes prédios. É importante voltarmos para o momento do registro. Caracte-
rizado pelo american way of life, segundo o historiador Sean Purdy, este período
é fundamentado nas exigências de investimento e consumo estabelecidas pelas
escalas gigantescas de produção, ou seja, o momento em que o consumismo
passa a ser um estilo de vida americano, tendo grandes reflexos a sociedade es-
tadunidense.

A imagem dos anos 1950, na memória coletiva, centra-se na prosperidade


econômica e na estabilidade familiar. Nessa visão, todo mundo na época tinha
emprego estável e ampla oportunidade de mobilidade social. A televisão, o cine-
ma e a literatura de grande público destacaram famílias harmoniosas: pai traba-
lhador, mãe dona-de-casa e alguns filhos morando nos crescentes subúrbios em
casas com quintais próprios e suas indefectíveis cercas brancas. (PURDY, 2007.
p.230- 231)

Um desses reflexos é o incentivo ao estilo de vida sistematizado pelo con-


sumismo, além disso o padrão de vida emposto à mulher, confinada ao papel de
mãe e esposa e, os desdobramentos e problemáticas disso, diante da complexi-
dade cultural e étnica estadunidense. Diante desse contexto, analisamos a obra
de Maier tendo em vista que sua história de vida não se encaixa a esse padrão de
vida americano, indo contra aos grandes objetivos, como por exemplo, o de ter

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a casa própria ou uma família nos padrões da época. A representação disso fica
evidente quando ela centraliza na imagem as mulheres que se mostram interes-
sadas pelos objetos na loja e sua imagem fica a margem. Aliás, o consumo está
presente na maior parte dos registros selecionados neste trabalho. O olhar de
Maier para as vitrines de lojas e sua leitura da sociedade e de si mesma através
desse recurso, caracteriza a essência do seu olhar diante da cidade capitalista.

Além da sua solidão, um dos principais elementos no processo de cons-


trução de identidade nos autorretratos, a fotógrafa faz uma leitura da sociedade
onde cada indivíduo está em um lugar determinado pelos fatores sociais do pe-
ríodo, inclusive ela diante da sua solidão nas vitrines. Maier vincula esses fatores
em suas representações, onde em um bom número de suas fotografias de rua a
narrativa evidencia a presença exclusiva de homens brancos integrados a estilo
de vida americano e em outras a presença de outros grupos de homens que não
se integram ao American Dream.

No próximo retrato, Maier se registra diante de uma vitrine de prataria. Seu


reflexo está diante de uma grade. A sensação de prisão é imediata e, uma das
interpretações possíveis diante a conjuntura social e política no período, está li-
gada a visão dessa mulher sobre sua posição social e condições de gênero.

Fonte: Vivian Maier, 1954. Autorretrato

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Na imagem, percebemos um enquadramento em plano fechado, onde


a imagem de Maier está refletida e centralizada em um dos objetos de prata
amostra na vitrine. A imagem é levemente distorcida, porém é possível reconhe-
cer o rosto da fotógrafa. Em primeiro plano, há uma grade que separa Maier dos
objetos e de seu próprio reflexo. A grade também aparece refletida nos objetos
de prata e constrói ao redor da imagem de Maier uma distância entre ela e esses
produtos. As vitrines e os bens de consumos estão colocados na narrativa, de
forma que aprisiona a autora do registro. Podemos compreender essa prisão de
duas formas: a primeira pensando nas questões de gênero que o período nos
apresenta e a segunda em relação a sua crítica à existência do indivíduo na cida-
de a partir do seu consumo.

As fotografias anteriores novamente apresentam Maier entre produtos ex-


postos em vitrines. Na primeira, Maier olha diretamente para seu reflexo e encara
o espelho exposto na vitrine. Além de dois espelhos, com molduras detalhadas,
a vitrine também expõe um candelabro. No fundo da imagem vemos um calen-
dário e vários objetos variados expostos dentro da loja. O nome da loja também
aparece na vitrine, Ant Wholesale.

O registro é do ano de 1953. Na segunda imagem, Maier aparenta entrar


na vitrine e apenas metade do seu corpo aparece na imagem, no entanto ela
constrói a composição fazendo o registro em um espelho que reflete a vitrine.
Seu olhar está direcionado a tela que reflete a imagem que o obturador irá cap-
turar. A vitrine em questão expõe sapatos femininos e a fotógrafa se registra no
canto esquerdo da imagem, oposta aos produtos. Não há registro sobre a data
da fotografia.

Além disso, como nas primeiras imagens analisadas neste capítulo, está
presente nos autorretratos a discussão relacionada as questões de gêneros no
período. Diante de um olhar testemunho da exclusão de minorias, sua existência
é registrada em comunhão com a desigualdade presente nos Estados Unidos.
Os autorretratos apresentam uma realidade das cidades de Nova York e Chicago
no período de 1950 e 1960, no qual é possível reconhecermos a representação
deste espaço diante de seu contexto histórico, onde ao espaço urbano é sinôni-

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mo de produtos e do capital.

A relação entre o “eu” de Maier com a rua está alinhada ao seu anonima-
to em um grande centro da cidade moderna, o “eu” solitário. Assim como em
outras fotografias, os elementos que configuram a cidade moderna capitalista
estadunidense sobressaem os indivíduos inseridos nesse espaço, nesta imagem
compreendemos como Maier enxerga o lugar de cada elemento na represen-
tação da cidade capitalista. Também podemos compreender de acordo com a
análise de Rodriguez, onde diz que,

(...) o reflexo da própria Maier no vidro fotografando-a não faz mais do que enfa-
tizar aquela condição das grandes cidades onde o isolamento das multidões é
tal qual o mesmo através do vidro transparente as pessoas ficam maravilhadas
ao serem vistas. (...) RODRIGUEZ, 2013. P.80, tradução nossa)3

O uso do espelho na fotografia de Vivian Maier, para Costa e Drigo, tem


como expressão os sentidos que ele representa como umas das características
principais na fotografia de filmes do gênero Noir, fazendo uma comparação des-
te estilo fotográfico aos resultados apresentados nos autorretratos de Maier.

Segundo Peixoto (1987), as superfícies espelhadas eram instrumentos ba-


silares do Noir, como um fenômeno social espectatorial, que construiu uma ma-
neira de ver a visão. O Noir trouxe à cena a dramaturgia de olhar, o expiar pelas
vitrines, pelos espelhos, pelas sombras. O enquadramento era realizado por um
olhar investigativo, que é enviesado, permeado de desconfiança e descrença. As
experimentações do outro – jogos de olhares – ocorriam com o olho em comu-
nhão com a máquina, mas são olhares que mostram e escondem, espiam e são
espiados. (COSTA e DRIGO, 2017. p.100.)

As pesquisadoras afirmam ainda que, “neste sentido, torna-se quase im-


possível não construir um jogo de olhares numa fotoretrato, a não ser que o rosto
assuma uma ‘máscara’(...) com o jogo de olhares instaura um campo de embates
entre o eu e o outro.” (COSTA e DRIGO, 2017, p. 97). Esse eu e o outro é uma das
chaves para as interpretações dos retratos de Maier diante da sua visão política

3 (...) el reflejo en el vidrio de la misma Maier fotografiándola no hace más que enfatizar esa
condición de las grandes ciudades donde el aislamiento de las multitudes es tal, que aun a través
de un vidrio transparente la gente se admira de ser vista. (...)

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nesse determinado período.

A solidão de Maier nas ruas, os enquadramentos que a coloca junto a outras


mulheres, confinada em uma sociedade onde há uma transformação de valores,
onde o consumo, representado pelas vitrines e produtos, passam a ser constante
na vida urbana estadunidense no período. Maier não se posiciona como uma
mulher feminista, no entanto, sua forma de ver a sociedade e de se reconhecer
dentro dela, aludindo questões sobre as quais as mulheres nesse momento le-
vantavam dentro de movimentos sociais. Os espaços de privilégios dentro dessa
sociedade, por exemplo, representado nas fotografias de rua, onde a figura mas-
culina branca é retrata em situações confortáveis nos autorretratos, a fotógrafa
se registra diante de um crescente sentimento de solidão e desconforto.

Analisando as leituras dos autorretratos pelas pesquisadoras Márcia Rodri-


gues da Costa e Maria Ogécia Drigo, enxergamos algumas razões para que a
interpretação sobre a história de Maier seja narrada a partir do estigma de mis-
tério e enigmas, o estilo fotográfico percebido na obra e as referências ao Noir
apresentam características visuais, onde o assunto é abordado a partir dos senti-
dos apresentados pelas autoras e principalmente pela curiosidade em relação as
razões pelas quais a fotógrafa se registrou.

Considerações Finais

O fato de Vivian Maier não ter publicado nenhum dos artefatos em vida,
provoca na obra o efeito de um “tesouro resgatado”. Efeito explorado pelo tra-
balho de curadoria e publicação realizado por Maloof, que emprega a fotógrafa
em adjetivos como “enigmática” ou “misteriosa”. Entretanto, a autobiografia de
Maier ultrapassa esses atributos. Os registros demonstram uma mistura entre
o pessoal e o político. Maier, revela o seu rosto além do seu olhar apurado sobre
observações cotidianas. diante disso, esses autorretratos estão diretamente rela-
cionados as consequências históricas retiras de toda a obra de Maier.

Todavia, compreendemos as fotografias de Vivian Maier como parte de um


processo, compartilhado por outros artistas contemporâneos e anteriores a ela,

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onde a representação é construída a partir de um conjunto de fatores históricos,


no qual o contexto político e social do país no período pós-segunda guerra mun-
dial influência diretamente nas escolhas para os recortes.

A análise realizada neste trabalho compreende a fotógrafa Vivian Maier en-


quanto uma intérprete da história dos Estados Unidos. Nas fotografias de rua
e autorretratos, o olhar para a cidade e para cotidiano nas ruas estaduniden-
ses destaca elementos divergentes aos discursos elaborados no período sobre
a cultura estadunidense diante do Amerian way of life. Compreendemos que o
processo de recuperação da obra fotográfica de Maier e a sua divulgação a par-
tir de narrativas voltadas ao estigma de mistério e enigma, afastam a obra de
circunstâncias que possivelmente influenciaram as composições da fotógrafa e
dos sentidos encontrados na análise, onde a obra é compreendida como uma
interpretação política desse período histórico.

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Filmes:

Finding Vivian Maier. Direção: John Maloof, Charlie Siskel. Estados Unidos: Ra-
vine. Pictures, 2013. Cor/Color digital (83 min).

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TERESINHA SOARES E A MULHER CRUCIFICADA (1966):


CORPO, GÊNERO E SEXUALIDADE NA CONSTRUÇÃO
DA NARRATIVA HISTÓRICA DA DITADURA
MILITAR BRASILEIRA.

Gabriela Oliveira Guiraldelli1

A mulher sempre foi catalogada em dois extremos:


sublimada como mulher-santa-mãe ou massacra-
da, mulher-objeto-comida do bicho-homem papão.

Teresinha Soares2

A arte de Teresinha Soares surge como possibilidade de pesquisa a partir do


contato com a imagem de uma de suas obras mais famosas exibidas na expo-
sição Quem tem medo de Teresinha Soares? via perfil de uma das redes sociais
do MASP em 2017. A partir desse momento, nasce a curiosidade não só diante
do uso predominante das cores quentes e das formas orgânicas dos corpos em-
pilhados na obra de técnica mista Morra usando as legítimas alpargatas (Ima-
gem 1), de 1968, da série Vietnã, como também pela abordagem crítica sobre os
usos da guerra do Vietnã na televisão. Diante do panorama global onde os olhos
do mundo acompanhavam os horrores da guerra nos meios de comunicação, o
cenário de repressão e violência extremas da ditadura militar brasileira ocorria
paralelamente.

Nesse sentido, para mim, graduanda do curso de Licenciatura em História


da Universidade Federal do Triângulo Mineiro, localizada em Uberaba, Minas Ge-

1 Graduanda em Licenciatura em História na Universidade Federal do Triângulo Mineiro


(UFTM), sob a orientação do Prof. Dr. Rodrigo de Freitas Costa. E-mail: gabiguiraldelli@gmail.com

2 Acontecências: Crônicas dos anos 60, 70 e 80. Teresinha Soares.

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rais, cidade há cerca de 115 km de distância de Araxá, lugar onde Teresinha Soares
nasceu (em 1927) e viveu parte da infância e juventude, encarei a possibilidade
de analisar as motivações que levaram esse sujeito histórico, originário de uma
cidade interiorana, a transformar questionamentos tão complexos como o dessa
primeira obra que tive contato, em representações artísticas que dialogam com
as vanguardas artísticas, movimentos sociais e acontecimentos que atravessam
os debates sobre sexo, gênero e sexualidade nas décadas de 1960, 70 e 80 — até
quando a artista cessou sua produção definitivamente por questões familiares:
queria se dedicar a educação dos cinco filhos adolescentes e ter um estilo de
vida diferente, mudando-se para o campo, longe da vida social ativa que o meio
artístico lhe exigia.

Imagem 1. Morra usando as legítimas alpargatas, série Vietnã, técnica mista, 116 x 152,8 x 2,5 cm, 1968,
Teresinha Soares.

Para além disso, Teresinha Soares inicia sua carreira com mais de 40 anos,
quando já era casada e mãe, participando de espaços dominados por homens
jovens, tendo enfrentado o machismo inclusive do próprio marido, o advogado e
jornalista Britaldo Soares, condômino dos Diários Associados e membro da elite
mineira, que, apesar de ter patrocinado toda a sua produção artística, impôs con-
dições para que os dois se casassem — antes do casamento, Teresinha trabalhou
como professora primária e bancária, tendo carro e casa próprios — no entan-

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to, o marido pediu que ela passasse esses bens para o nome da irmã, pois não
deveria mais trabalhar, uma vez que tudo que fosse dele, também seria dela3.
Nesse sentido, Teresinha declara por diversas vezes que fez essas concessões por
amor. Como cristã praticante, seu sonho era se casar e ser mãe de muitos filhos,
e ela inclusive se casa virgem “por convicção” (utilizando os termos da mesma).
Porém, quais são os valores por trás dessas concessões? Que tipo de amor nos é
suscitado através dessa mulher-mãe-esposa que participa mas questiona esses
valores cristãos através de sua arte? E por que essas questões são importantes
para pensarmos corpo, gênero e sexualidade na construção da narrativa históri-
ca da ditadura militar brasileira?

Analisando a formação social e cultural de Teresinha Soares em paralelo


com a obra escolhida para esta pesquisa, intitulada (Sem título) Mulher Crucifi-
cada (Imagem 2), de 1966-67, investigaremos alguns indícios para responder tais
questionamentos através dos conceitos em torno da identidade introduzidos
em “A identidade cultural na pós-modernidade”, de Stuart Hall, recolhendo e po-
sicionando os fragmentos de classe, sexualidade, gênero, raça e nacionalidade
presentes nas contradições desse sujeito histórico, e mergulhando num possível
diálogo sobre as noções acerca dos tabus em torno da sexualidade e dos papéis
de gênero nas sociedades modernas através da obra “A transformação da intimi-
dade”, de Anthony Giddens.

Theresinha Corrêa Soares4 nasceu no dia 16 de janeiro de 1927, em Araxá/


MG, foi professora primária, bancária, a primeira vereadora de sua cidade natal e
do estado de Minas Gerais em 1947, com apenas 21 anos, pelo Partido Social De-
mocrático (PSD — 1945-1965), o mesmo de Juscelino Kubitschek, que inclusive
era seu conhecido e lhe ofereceu emprego na Caixa Econômica Federal; quando
morava em Araxá, foi madrinha do Tiro de Guerra e Miss, tendo sido uma figura

3 Teresinha faz tais alegações durante o MASP Conversas, em 22 de julho de 2017, na abertu-
ra da exposição “Quem tem medo de Teresinha Soares?”, mostra que reuniu trabalhos produzidos
entre 1966 a 1973. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=zTPjYQMG95Y

4 Posteriormente Theresinha muda seu nome para Teresinha e passa a usar somente o so-
brenome do marido, conforme ela narra em uma palestra para a Manifestação Internacional de
Performance (MIP), disponível em: https://desarquivo.org/sites/default/files/mip_manifestacao_in-
ternacional_de_performance_0.pdf

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muito ativa na vida social da cidade; levava flores e dançava com os políticos que
visitavam o principal hotel de Araxá, na década de 1940, quando os cassinos ain-
da eram legalizados no Brasil e atraíam diversos turistas. Numa viagem a Belo
Horizonte, durante um footing na Avenida Afonso Pena, um amigo lhe apresen-
tou aquele que seria seu marido, Britaldo Silveira Soares. Em 1956, com 29 anos,
Teresinha se casa com Britaldo e dez meses depois tem sua primeira filha; tendo
mais quatro filhos em seguida e residindo em Belo Horizonte do casamento aos
dias atuais. Britaldo faleceu aos 95 anos, em 2015.

Portanto, Teresinha conscientemente utiliza de seu lugar privilegiado como


mulher branca e burguesa para abordar temáticas pertinentes à condição femi-
nina no interior da ditadura militar brasileira, momento esse, onde os movimen-
tos sociais eclodiram nos Estados Unidos e países europeus trazendo à luz os
debates sobre direitos civis, principalmente diante dos horrores televisionados
sobre a Guerra do Vietnã — na contramão do cenário entre atos institucionais
que atentaram contra a Constituição Federal, legalizando prisões arbitrárias, tor-
turas, assassinatos e censura nos meios de comunicação e nas artes. Nesse perí-
odo, segundo a artista, ela conheceu os principais museus do mundo, eventual-
mente presenciando com entusiasmo as ruas de Nova York, Londres e também
de São Paulo tomadas por jovens manifestantes durante suas viagens5.

Teresinha Soares possui uma formação cristã desde o berço, tendo frequen-
tado o Colégio São Domingos de Araxá/MG e se formado em Letras pela PUC Mi-
nas (Belo Horizonte/MG) aos 47 anos, após se sentir desconfortável preenchendo
documentos escolares dos filhos ao perceber que o marido tinha ensino superior
e ela não. Na infância, morou por alguns anos no Rio de Janeiro com a família,
frequentando o Colégio Sagrado Coração de Maria, antigo Sacré-Coeur de Marie,
e também foi missionária. Entretanto, um dos eixos centrais na produção artísti-
ca da artista vai de encontro com um dos maiores tabus de sua religião: o corpo.
Ela os enfrenta sem medo e é criticada por padres mineiros em críticas redigidas
para jornais, mas sempre as encarou com muito bom humor, aspecto presente

5 Teresinha Soares narra essas experiências em diversas crônicas de viagens publicadas em


jornais mineiros e reunidas no livro Acontecências: Crônicas dos anos 60, 70 e 80, organizado pelo
curador, editor e crítico de arte Rodrigo Moura.

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não só na maneira de lidar com esses pareceres, como em seu modo de produzir
arte durante toda a sua trajetória.

Ela inicia sua carreira artística no teatro, atuando em alguns espetáculos


beneficentes na década de 60. Soares diz em entrevistas que o teatro a desper-
tou para a possibilidade de criar outras versões de si6. A partir desse contato,
frequentou cursos livres de artes oferecidos por universidades (como a UFMG)
e por museus (como o de Arte Moderna do Rio de Janeiro), tendo sido aluna do
jornalista, crítico, historiador e curador mineiro Frederico Morais, que foi de suma
importância para sua carreira considerando a circulação de suas críticas; da ar-
tista, escritora e professora mineira, aluna de Guignard, Maria Helena Andrés, de
Herculano Campos, que também era artista visual mineiro, de Fayga Ostrower,
professora, artista e teórica da arte, na Escola de Belas-Artes da UFMG e do ar-
tista mineiro José Assumpção Souza. Além disso, Teresinha teve a oportunidade
de conhecer artistas contemporâneos a ela através de suas exposições, como
Rubens Gerchman, Anna Maria Maiolino, Maria do Carmo Secco e Ivan Serpa, ar-
tistas enquadrados como vanguardistas no Movimento Nova Objetividade Bra-
sileira7. (RIBEIRO, 2011).

Para compreendermos a relevância da obra (Sem título) Mulher Crucifi-


cada (Imagem 2), primeiramente é necessário entender a série Acontecências,
produzida entre 1966-1967, da qual ela faz parte. O título da série é uma palavra
inventada pela artista, amalgamando acontecimentos com vivências do univer-
so feminino: violência doméstica, prostituição e liberdade sexual. Das oito obras,
as três primeiras seguem os mesmos usos de cores — vermelho, verde, preto e
branco. Entre a quarta e a sexta obra da série, prevalecem o vermelho, branco e
preto, sendo que até aqui, a artista dispõe de tinta a óleo com colagens de frases
retiradas de jornais sobre as telas. Nas duas últimas obras são usados o verde,
rosa, vermelho, preto e branco sobre tela. A presença de formas orgânicas na
representação dos corpos, uma constante em toda a obra visual da artista, de-
6 Tais assuntos também são relatados pela artista na conversa, já citada, cedida ao MASP,
em 2017.

7 Movimento que reuniu diferentes grupos das vanguardas nacionais (neoconcretismo e


nova figuração, por exemplo) em uma exposição em 1967 no MAM/RJ, com propostas diversas, mas
que buscavam, entre seus objetivos em comum, romper o distanciamento entre obra e público.

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marcando seu estilo associado ao Pop Art brasileiro.

Nessa fase inicial, a influência da imprensa fica bastante evidente, ela afir-
ma que seu objetivo era produzir um jornal próprio, com as temáticas de seu
interesse: “Eu retirava frases e juntava uma frase com outra que não tinha nada
a ver para formar um jornalzinho meu — uma Acontecência.” (MOURA; BECHE-
LANY, 2016). Diante de tantas mazelas expostas diariamente nas páginas dos pe-
riódicos, Teresinha refletiu sobre os assuntos que despertavam sua indignação e
a faziam avaliar os problemas em torno do gênero feminino. Quando questiona-
da sobre a construção de sua imagem em relação com sua obra como um todo,
ela explica em entrevista concedida ao MASP para composição de seu catálogo:

Bem, eu nasci numa família mineira conservadora, católica, cheia de preconcei-


tos. Minha mãe nunca chegou perto de mim para falar comigo sobre sexo. Mas
eu era muito curiosa e sempre o ouvido estava atento, desde pequena. Então,
a mulher, a menina-mocinha, ela fica muito curiosa e acaba às vezes sentindo
um pouco de medo com relação à religião, com relação à família, mas eu me
senti uma nova mulher quando fui capaz de me olhar no espelho, de me ver,
de conhecer melhor o meu corpo, saber o que eu sou… Parece esquisito, pode
até parecer uma ideia feia para as pessoas, mas essa foi a minha descoberta do
meu corpo, das minhas zonas erógenas, da vontade de ter prazer mesmo antes
de casar, me masturbando… Há quem não aceite isso, mas a masturbação é
uma coisa natural na vida da mulher. A descoberta do meu corpo me revelou
uma nova mulher, capaz de fazer as coisas que eu queria. E, na relação homem/
mulher, eu sempre fui muito exigente, porque nunca quis receber sêmen sem
ter prazer. Isso para mim foi sempre importante. A educação dos homens é fa-
lha. Eu acho que nós falhamos como mãe, porque o homem é muito objetivo,
ele sente desejo, ele quer logo ter prazer e acabou. Mas não é assim. (MOURA;
BECHELANY, 2016, p. 99).

Desse modo, analisando (Sem título) Mulher Crucificada, a última obra


da série Acontecências vemos ao centro a figura de uma mulher de corpo es-
guio e seios fartos, remontando ao perfil, talvez de uma mulher-mãe crucifica-
da? Ao seu redor, as formas orgânicas que remetem aos vitrais das igrejas, mas
que também apresentam fisionomias, do lado direito uma espécie de máscara,
de traços grossos e sérios, aparentando ter a mão erguida, num movimento de
agressão, enquanto do lado esquerdo, uma boca com dentes de escárnio. Acima
da cruz, do lado direito, a forma de um coração partido em vermelho e rosa, mas
que também corresponde ao formato de um falo. Seria essa mulher a própria

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Teresinha? A mulher de formação cristã que questiona e supera os ensinamen-


tos preconceituosos e repressores e é crucificada pela própria família tradicional
mineira?

Imagem: Sem título (Mulher Crucificada), série Acontecências, óleo sobre tela, 74 x 55 cm, 1966-1967,
Teresinha Soares.

Considerando a relação da memória enquanto decantação do passado,


compreendemos que os objetos históricos de todos os tempos se colidem, num
movimento anacrônico, onde historiador e objeto se encaram e se confundem
para além das temporalidades, noção essencial para Georges Didi-Huberman,
de acordo com o debate feito na obra Diante do tempo: História da Arte e ana-
cronismo das imagens. Nesse sentido, a figura de Jesus Cristo crucificado, tão
cristalizada na memória coletiva ocidental, é relida pela artista dentro dos limi-
tes da própria subjetividade, relativizando os dogmas religiosos, rompendo-os e
provocando o senso crítico acerca da condição do corpo feminino na sociedade.
Talvez esses sejam os aspectos em que esses corpos crucificados dialogam entre
si, diante do rompimento com os tabus estabelecidos e da violência perpetuada
através da dominação dos corpos que se rebelam diante do que é socialmente

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determinado para além de seus desejos.

A identidade cultural do sujeito-histórico Teresinha Soares inserido nos de-


bates modernos sobre as identidades está fragmentada, sendo resultado das
descontinuidades e contradições sociais de seu tempo (HALL, 2020). Inserida e
produzindo arte contestatória num país que retrocedeu em direitos humanos
enquanto presenciava, através de suas viagens culturais, outras possibilidades
de existência e experiência, possibilitando que uma mulher de formação con-
servadora cristã, reinventasse elementos contraditórios entre si, como a noção
religiosa da família tradicional mineira e o libertarismo em prol dos direitos das
mulheres, conforme demonstra em um outro momento, na mesma entrevista
já citada:

(...) Na sociedade, as coisas que aconteciam ao meu lado, que eu via no jornal,
também me chocavam. Mulher que divorciava era considerada puta. Mulher
não podia sair sozinha, não podia entrar em um bar, não podia ter sede na rua,
nem entrar e pedir um copo d’água. Mulher tinha que estar junto com o mari-
do, em uma coleira. Depois, os absurdos do homem. Tratava as mulheres como
bem queria. Tinha as amantes fora de casa, e a mulher não podia falar nada,
tinha que aceitar. Não trabalhava, não tinha dinheiro, não tinha sustento. Tudo
isso era um peso muito grande para a mulher, e depois os assassinatos, as coi-
sas que acontecem até hoje. O fulano jornalista que matou a namorada e de-
pois de 7, 8 anos, ainda não tinha sido preso. O outro que matou a Ângela Diniz
(1944 -1976) foi solto da primeira vez e só na segunda foi preso. Hoje ele está
livre. É impressionante. A gente não pode aceitar isso de maneira nenhuma. Eu
já vi coisas inacreditáveis, mulher com marca de ferro de passar roupa na face.
Não podemos concordar com isso. Eu sou contra a violência. A coisa mais im-
portante do meu trabalho é o amor. O amor é o contrário da violência. (MOURA;
BECHELANY, 2016, p.105)

Contudo, de que amor Teresinha Soares está falando? O amor inspirado


nos valores religiosos do Cristo crucificado? O amor que inclina o sujeito a fazer
sacrifícios e concessões? Pois, hipoteticamente, é sobre esse amor que Teresinha
está nos comunicando e nos provocando a refletir através do lugar em que ocu-
pa. No entanto, a ideia de amor está sendo construída historicamente. Giddens
(1993) demonstra que foi uma série de influências que afetaram as mulheres a
partir do final do século XVIII, ecoando na construção da noção de lar, na relação
entre pais e filhos e na invenção da maternidade, desse modo o amor romântico
está orientado no caráter ativo de busca. De acordo com as novelas românticas

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modernas, as mulheres têm sido retratadas como independentes e corajosas,


capazes de não só despertarem amor de homens indiferentes e até mesmo hos-
tis, como de produzir amor, amansando o coração masculino. Assim:

O caráter intrinsecamente subversivo da ideia do amor romântico foi durante


muito tempo mantido sob controle pela associação do amor com o casamento
e com a maternidade; e pela ideia de que o amor verdadeiro, uma vez encon-
trado, é para sempre. Quando o casamento, para a maioria da população, efe-
tivamente era para sempre, a congruência estrutural entre o amor romântico
e a parceria sexual estava bem delineada. O resultado pode, com frequência,
ter sido anos de infelicidade, dada a conexão frágil entre o amor como uma
fórmula para o casamento e as exigências para progredir posteriormente. Mas
um casamento eficaz, ainda que não particularmente compensador, podia ser
sustentado por uma divisão de trabalho entre os sexos, com o marido domi-
nando o trabalho remunerado e a mulher, o trabalho doméstico. Podemos ver
nesse aspecto como o confinamento da sexualidade feminina ao casamento
era importante como símbolo da mulher “respeitável’’. Isso ao mesmo tempo
permitia aos homens conservar distância do reino florescente da intimidade e
mantinha a situação do casamento como objetivo primário das mulheres. (GI-
DDENS, 1993, p. 58).

Embora Teresinha esteja inserida num meio conservador se posicionando


de maneira progressista, é evidente como, enquanto mulher, mãe, esposa e ar-
tista, necessitou fazer acordos com o marido que possuía ampla influência, visto
que era um dos condôminos dos Diários Associados, fundado por Assis Chateau-
briand. Para conseguir adentrar espaços de seu interesse, ela demonstra, confor-
me apontado por Hall (2020), as contradições e instabilidades presentes na iden-
tidade em crise de um mesmo sujeito, entranhado no processo de globalização
do final do século XX. De tal maneira, esses papéis dialogam e geram contradi-
ções entre si, demarcando um lugar privilegiado, dada sua classe e cor, para ala-
vancar tais debates sobre sexo e pápeis de gênero sem censura, mas com críticas
ferozes de religiosos e da society mineira. Essa é a mulher condenada à cruz por
requerer espaços igualitários, sem violência doméstica e com liberdade sexual.

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Referências Bibliográficas:

PEDROSA, Adriano.; MOURA, Rodrigo. (Orgs.). Quem tem medo de Teresinha


Soares? 1 ed. São Paulo: Museu de Arte de São Paulo, 2017.

ROLLA, Marco Paulo; HILL, Marcos. (Orgs.). MIP – Manifestação Internacional de


Performance. Belo Horizonte : Centro de Experimentação e Informação de Arte,
2005. Disponível em: https://desarquivo.org/sites/default/files/mip_manifesta-
cao_internacional_de_performance_0.pdf . Acesso 6 jun 2022.

SOARES, Teresinha. Acontecências: Crônicas dos anos 60, 70 e 80. 1 ed. Rio de
Janeiro: Cobogó, 2017.

HALL, Stuart. Identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A,


2004.

GIDDENS, Anthony. A transformação da intimidade: Sexualidade, amor e ero-


tismo nas sociedades modernas. São Paulo: UNESP, 1993.

DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante do tempo: história da arte e anacronismo


das imagens. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015.

RIBEIRO, Marília Andrés. (Org.). Teresinha Soares – Depoimento. Belo Horizon-


te, Editora C/Arte, 2011.

CORNISH, Patricia Branco. Artistas mulheres na ditadura brasileira: os casos


de Wanda Pimentel e Teresinha Soares. São Paulo: Biblioteca Lourival Gomes
Machado do Museu de Arte Contemporânea da USP/SP, 2018. Disponível em:
www.teses.usp.br/teses/disponiveis/93/93131/tde-12122018-120942/publico/2018_
PatriciaBrancoCornish_VCorr.pdf . Acesso: 6 jun 2022.

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VIVÊNCIAS DOS MITOS NO ESPAÇO CULTURAL VILA


ESPERANÇA/ESCOLA PLURICULTURAL ODÉ KAYODÊ.

Haroldo Nélio Peres Campelo Filho1

Ancestralmente, os Mitos possuem um caráter iniciático, apresentando ele-


mentos culturais e de cosmovisão que colaboram na construção de identida-
des individuais e coletivas do grupo ao qual pertencem originalmente. Possuem
simbologias, poesia, metáforas e modelos exemplares para repensarmos nossa
própria existência. Neste trabalho trato do uso dos Mitos na educação, especifi-
camente dos Mitos africanos iorubás dentro do processo educativo e cultural da
Escola Pluricultural Odé Kayodê no Espaço Cultural Vila Esperança na cidade de
Goiás (GO). Na Vila Esperança o trabalho com as identidades brasileiras é funda-
mental. Sob este enfoque, a ancestralidade africana e a ancestralidade indígena
constituem o aspecto principal no processo educativo.

Vivenciar os Mitos significa procurar nas origens ancestrais respostas para


o tempo atual, compreendendo que a vida humana é composta por ciclos e um
retorno constante às gerações passadas. O que a História apresenta atualmente
também já ocorreu diversas vezes, de outras maneiras, com diferentes pessoas,
em diferentes contextos, espaços e culturas. Saber como os seres míticos lidaram
com tais situações próprias da vida em sociedade nos possibilita enfrentar me-
lhor aquilo que se reapresenta, tomando nossas próprias decisões, que podem
ser semelhantes ou contrárias, de acordo com o sucesso ou o fracasso obtido por
nossos ancestrais em suas experiências vividas em tempos longínquos.

Os Mitos, transmitidos oralmente, podem ser iniciáticos na medida em que

1 haroldocampelo@hotmail.com Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em História


da Universidade Federal de Goiás, orientado pelo professor Dr. Elias Nazareno eliasna@ufg.br.

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nos abrem possibilidades de conhecimento ao adentrarmos nas culturas. Carre-


gam em si história, memória, ética, filosofia e uma série de elementos que cola-
boram para a constituição de identidades individuais e coletivas. Iniciar-se nas
culturas originais, indígenas e africanas é apropriar-se de nós mesmos enquanto
brasileiros.

O Mito se apresenta dentro da proposta educativa e cultural do Espaço Cul-


tural Vila Esperança e de sua Escola Pluricultural Odé Kayodê, localizada na pe-
riferia da cidade de Goiás, no estado de Goiás. Desde 1989 a Associação Espaço
Cultural Vila Esperança desenvolve atividades educativas e eventos com temas
que envolvem a questão indígena, africana e afrodescendente, educação am-
biental e ecologia humana. A Escola Pluricultural Odé Kayodê atende crianças
da primeira fase do ensino fundamental na cidade de Goiás. A ideia começou a
tomar forma em 1995 através da colaboração oferecida a três escolas públicas.
Naquela ocasião a Vila Esperança ofertou, gratuitamente, seu espaço e ativida-
des lúdicas, artísticas e culturais interligadas ao currículo escolar por meio do
planejamento feito com as professoras. Há dezenove anos a Odé Kayodê2 atua
como Escola independente, comunitária, reconhecida legalmente pelo Ministé-
rio da Educação.

A escolha do Espaço Cultural Vila Esperança e Escola Pluricultural Odé


Kayodê como campo de pesquisa para este estudo foi definida pela importante
presença dos Mitos neste espaço como ferramenta educativa e cultural. A pluri-
culturalidade da proposta da Vila Esperança tem como matrizes fundamentais
as culturas indígenas e africanas, sendo suas referências principais o tronco Tu-
pi-Guarani e os Iorubá. Se destaca também o Congo-Angola como importante
referencial de inúmeras manifestações culturais brasileiras.

Na cidade colonial de Goiás Velho, que ainda hoje vive sob o peso da cons-
trução histórica de uma identidade branca, coronelista e que enaltece o “herói”
Anhanguera, o trabalho da Vila Esperança busca a descolonização dos saberes, a

2 O nome Odé Kayodê é uma homenagem a Maria Stella de Azevedo Santos, Mãe Stella de
Oxóssi, Odé Kayodê, (Salvador, 2 de maio de 1925 - Santo Antônio de Jesus, 27 de dezembro de 2018)
quinta Iyalorixá do Ilê Axé Opó Afonjá em Salvador, Bahia, e inciadora de Robson Max, Odé Ofalomi,
fundador do Espaço Cultural Vila Esperança.

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conquista da autoestima, o reconhecimento e a valorização das origens indíge-


nas e africanas do Brasil.

Na Vila Esperança permanece uma forte marcação dos elementos das cul-
turas indígenas, africanas e afro-brasileiras com ações de valorização da arte e
estética por meio dos estudos dos discursos e das imagens que se apresentam
em elementos e nas construções de todo o espaço. Elementos Míticos compõem
a visualidade da Vila Esperança, presente em máscaras, esculturas, grafismos
pintados nas paredes e nos caminhos, na própria circularidade e simbologia de
cada construção.

Praça do Tempo. Fonte: acervo da Vila Esperança3

A Praça do Tempo é um espaço aberto carregado de alusões aos Mitos io-


rubanos. As imagens no chão representam uma complexidade enorme de co-
nhecimentos, símbolos e Mitos. Ali está representada a jornada humana, o ciclo
existencial dos planos material e espiritual, entre diversos outros conceitos da
concepção iorubá de mundo. Na roda central da pintura estão representados os
16 odus maiores, os Ojú Odù, do corpus literário de Ifá, composto por narrativas
históricas e míticas, base fundamental de todos os Mitos iorubás que chegaram
ao Brasil por meio da diáspora africana.

3 As fotos do acervo do Espaço Cultural Vila Esperança estão disponíveis na internet no site
da instituição: < https://www.vilaesperanca.org>. Acesso em 14 de junho de 2022.

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Segundo Adriana Rebouças, educadora da Odé Kayodê, o “Espaço Cultural


Vila Esperança carrega em sua filosofia o tripé da educação, da cultura e da arte.
Quem entra nesse espaço percebe que toda a sua estrutura física faz relação e é
carregada de símbolos das culturas africanas e indígenas”. E complementa:

Acredita-se que é por meio dos sentidos que se constrói aprendizagens signi-
ficativas. Tem-se as vivências culturais como a engrenagem de uma educação
pautada nas relações étnico-raciais. São atividades cotidianas que visam con-
tribuir para a educação patrimonial em Goiás. Propaga valores herdados pelo
povo brasileiro dos ancestrais africanos através do toque, da dança, da comida e
dos diversos saberes, os quais proporcionam o encontro das pessoas, devolven-
do-as a si mesmas, e as legitimando em sua própria identidade. É também um
mecanismo de instrumentalização contra o racismo, vivenciando se conhece
[...] (CAMPELO, 2017, p. 42).

No Espaço Cultural Vila Esperança os Mitos precedem atividades e estudos


que colaboram com o sentido de coletividade e de identidade. Para Hall (2007),
o conceito de identidade é “estratégico e posicional” e as identidades não são
unificadas, sendo construídas e reconstruídas na relação entre os indivíduos, em
sua similaridade e na diferença. Segundo Stuart Hall:

As identidades parecem invocar uma origem que residiria em um passado


histórico com o qual elas continuariam a manter uma certa correspondência.
Elas têm a ver, entretanto, com a questão da utilização dos recursos da história,
da linguagem e da cultura para a produção não daquilo que nós somos, mas
daquilo no qual nos tornamos. Têm a ver não tanto com as questões “quem
nós somos” ou “de onde nós viemos”, mas muito mais com as questões “quem
nós podemos nos tornar”, “como nós temos sido representados” e “como essa
representação afeta a forma como nós podemos representar a nós próprios”
(HALL, 2007, p. 108).

As identidades também são construídas nos discursos e nas relações de


poder e sabemos muito bem em que posição as culturas africanas e indígenas
foram postas no processo de constituição do Brasil. Em Goiás, cidade colonial,
coronelista e interiorana, as marcas da negritude sofreram diversas tentativas
de apagamento com o processo de afirmação cultural das tradições familiares,
brancas e patriarcais vilaboenses.

Munanga (2005) fala em três aspectos de identidade: identidade legitima-


dora, usada pelos dominantes a fim de legitimar de forma racional os seus direi-

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tos como dominadores; identidade de resistência, construída pelos atores sociais


para resistir à imposição dos dominantes; e identidade-projeto que é além do
resistir, utilizando a cultura com intuito de construir uma nova identidade rede-
finindo sua posição e propondo a transformação do conjunto da estrutura social.

As ações do Espaço Cultural Vila Esperança, fundamentadas nas identida-


des culturais de origens indígenas e afrodescendentes, compõem um projeto de
pertencimento, de identificação do próprio patrimônio material e imaterial, de
reconhecimento e valorização das culturas originárias.

Vivenciar os Mitos, culturas e aspectos de identidades afrodescendentes e


indígenas sugere a afirmação de um papel de não subalternidade na medida
em que recorremos à mitologia na educação para fortalecer traços de identida-
des coerentes com as origens brasileiras que vão além das europeias. “O contato
com a Ética e a Estética africanas necessariamente induz sentimento de orgulho
e pertença étnica e racial nos afrodescendentes e nos brasileiros em geral” (RI-
BEIRO, 1998).

O Mito, neste processo, traz consigo história, cultura, ética e estética an-
cestrais para fortalecer nas identidades de cada um os traços fortes que possi-
bilitam o respeito, a valorização e o empoderamento. Para Ribeiro “a identidade
e a cidadania, não apenas dos afro-descendentes, mas de todos os brasileiros,
constroem-se a partir de importantes elementos de cosmovisões africanas” (RI-
BEIRO, 1996). Segundo a autora:

Há um forte liame entre ancestralidade africana e construção das identidades


individuais nos países de expressiva diáspora africana, ainda que essa diáspo-
ra tenha sido forçada por circunstâncias históricas. A ancestralidade africana
determina significativamente a constituição da identidade nacional brasileira,
apesar da negação desse fato, imposta pela ideologia do branqueamento que
determina como modelo identificatório para o desenvolvimento das identida-
des individuais o europeu. No entanto, como o que vive clama por expressar-se,
a força vital da alma africana, presente no grupo brasileiro, contida por tanto
tempo e através de tantos recursos e estratégias do poder branco, terminará
por romper a espessa casca em torno dela construída (RIBEIRO, 1996, p. 255).

A noção de tempo, tanto para africanos quanto para indígenas, é concebi-


da de uma maneira diferente da linearidade proposta pela colonialidade euro-

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centrada. Nas culturas ancestrais o tempo não se prende ao passado, presente e


futuro. É um tempo além do tempo. E o passado é reatualizado constantemente
por meio dos ritos e dos Mitos.

Segundo Mignolo (CANDAU, 2012), as ciências, entre elas a história, criaram


uma ideia de progresso em que a Europa aparece como superior. Compreende-
mos, portanto, que existe uma linha temporal em que os povos não-europeus es-
tariam em um período anterior ao presente. Trata-se de uma escala de evolução
em que o topo é a Europa Moderna e a cultura é definida a partir do pensamento
europeu.

A colonialidade permanece presente ainda hoje, mesmo após o colonia-


lismo. Ela continua atual nos livros didáticos, na cultura pop, na maneira de se
contar a História oficial e nas escolhas de quais histórias se quer contar. Está pre-
sente nas construções das identidades e na imposição de padrões, estabelecen-
do como superiores os pensamentos hegemônicos, em que de um lado existem
as ciências, a História e os conhecimentos alternativos, como filosofia e teologia
e, do outro, subalternizados, estão as crenças, a magia, a idolatria, os Mitos, os
conhecimentos populares, separados por uma linha abissal como apontado por
Santos (2010).

Orientados pelo conceito de colonialidade do saber, percebemos que a pro-


dução de conhecimento não-europeu tem sido negligenciada. A sabedoria de
indígenas e africanos é vista como primitiva e irracional. Para Quijano (2010), a
colonialidade faz parte da constituição do padrão mundial do poder capitalista.
A autoridade, o sexo e a subjetividade estão sob a primazia da modernidade num
formato Estado Nação/família burguesa/racionalidade moderna em que preva-
lece a identidade europeia branca, mesmo num país como o Brasil, altamente
plural em termos étnicos e culturais.

Catherine Walsh, tendo como referência os movimentos sociais indígenas


equatorianos e afro-equatorianos, afirma que decolonialidade implica em visibi-
lizar as lutas contra a colonialidade a partir das pessoas, das suas práticas sociais,
epistêmicas e políticas (CANDAU, 2012). Para Walsh, interculturalidade significa

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um processo constante de aprendizagem entre culturas com respeito, simetria e


igualdade. É um conceito que questiona a colonialidade do poder, do saber e do
ser. A interculturalidade, segundo Candau (2012), reconhece o direito à diferença
e à luta contra as discriminações. Valoriza as diferenças e o diálogo igualitário,
numa relação democrática entre os grupos.

No Espaço Cultural Vila Esperança o Mito é instrumento de valorização dos


saberes indígenas e afrobrasileiros. Está presente nas atividades do Ojó Odé, tar-
de de estudos e vivências das culturas africanas e afrobrasileiras e no Porance
Poranga, estudos e vivências das culturas indígenas, sendo o condutor central
das vivências e apresentando elementos necessários para as oficinas que são
realizadas nas tardes culturais. Segundo Babá King, “a narrativa remete o ouvinte
ao universo onde o mito se constitui” (SALAMI, 1997), e completa: “De fato, para os
africanos de modo geral e para os iorubás em particular, o mito é uma narrativa
sagrada ligada à memória de sua ancestralidade e, consequentemente, aos fun-
damentos da identidade individual e grupal”.

Segundo Hall (2011), a identidade, na concepção sociológica, “costura (ou,


para usar uma metáfora médica, “sutura”) o sujeito à estrutura. Estabiliza tanto
os sujeitos quanto os mundos culturais que habitam”. Stuart Hall é referencial
básico para a compreensão da identidade ou identidades (muitas delas confli-
tantes) do sujeito; na concepção de identidade como “produção”; e para com-
preender as identidades culturais como pontos de identificação nos discursos
de cultura e história, tendo o passado sendo construído por meio da “memória,
fantasia, narrativa e mito” (HALL, 1996).

Quando tratamos de cultura afrocentrada enfrentamos o racismo. Para


Grosfoguel (2019), na colonialidade o racismo é estruturante das configurações
sociais e das relações de dominação. Segundo ele:

O racismo é um princípio constitutivo que organiza, a partir de dentro, todas as


relações de dominação da modernidade, desde a divisão internacional do traba-
lho até as hierarquias epistêmicas, sexuais, de gênero, religiosas, pedagógicas,
médicas, junto com as identidades e subjetividades, de tal maneira que divide
tudo entre as formas e os seres superiores (civilizados, hiper-humanizados, etc.,
acima da linha do humano) e outras formas e seres inferiores (selvagens, bár-
baros, desumanizados, etc., abaixo da linha do humano). (GROSFOGUEL, 2019).

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Neste país em que ainda vivemos a ideia de uma democracia racial, que
temos um racismo institucionalizado, a promoção de ações para a superação do
racismo é fundamental.

É preciso superar o racismo na educação com a certeza de que a “inser-


ção política e pedagógica da questão racial nas escolas significa muito mais do
que ler livros e manuais informativos. Representa alterar os valores, a dinâmica,
a lógica, o tempo, o espaço, o ritmo e a estrutura das escolas” (GOMES, 2008). É
fundamental identificar, analisar e divulgar as práticas capazes de alterar a lógi-
ca escolar, práticas pautas na circularidade, na coletividade, ressignificadoras do
tempo e dos espaços, valorizando a oralidade e a ancestralidade.

A presença do Mito na Vila Esperança representa uma dessas práticas cria-


tivas e transformadoras. É contado prioritariamente em roda, no Quilombo4, reu-
nindo crianças, jovens e adultos. O reconhecimento do poder dos Mitos é, na Vila
Esperança, uma ação de valorização dos saberes ancestrais, de reconhecimento
da importância histórica e cultural das origens africanas da população brasileira.
Quando as pessoas se reúnem no Quilombo, em roda, para ouvir o Mito, o tempo
e o espaço se tornam outros, mais amplos do que as paredes e cadeiras das es-
colas podem proporcionar.

O ano de 2020 foi de adaptações, incertezas e de realizações mais limitadas


das variadas ofertas culturais que a Vila Esperança proporciona. Neste contexto,
o Mito, que é contado olho-no-olho, presencial, em roda, ficou mais tímido, mais
adormecido, num tempo em que ele se tornou ainda mais necessário.

No entanto, por um pedido das crianças e educadores, o ano de 2021 iniciou-


-se com o Mito dos Ibejis que enganam a morte, sendo contado diretamente do
Quilombo da Vila Esperança, como em uma tarde de Ojó Odé. Porém, desta vez
as crianças assistiram de casa, ouvindo o Mito contado pelo Tio Robson5 (Babá

4 O Quilombo é uma das primeiras construções da Vila Esperança. Trata-se de um salão em


formato circular que faz referência às aldeias africanas, bem como aos locais de resistência dos
africanos e seus descendentes no contexto da escravidão no Brasil. É um dos principais espaços na
Vila Esperança para realização de eventos coletivos como palestras, oficinas e o Ojó Odé.

5 Robson Max é mestre em Antropologia, Babalorixá e presidente fundador do Espaço Cul-


tural Vila Esperança. Há trinta anos ele é a referência na Vila Esperança da contação e dos estudos
relacionados às mitologias, em especial as africanas e principalmente iorubás.

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Fatoki) por meio de uma gravação disponível no canal Rádio da Vila Esperança6
no YouTube. A experiência de assistir todos juntos, cada um em sua casa, ao Mito
filmado repetiu-se por mais alguns meses e, em junho daquele ano, ocorreu a
primeira experiência de um “Ojó Odé on-line”7, em que todos se reuniram por
chamada de vídeo na plataforma Google Meet e assistiram ao vivo o Mito conta-
do por Robson Max diretamente do Quilombo.

Neste encontro on-line as crianças puderam fazer perguntas relacionadas


ao Mito e conversaram um pouco sobre a relação daquela história com suas pró-
prias vidas. Das reflexões surgiram questionamentos e afirmações muito perspi-
cazes, como a de uma criança negra de oito anos que perguntou/afirmou: “En-
tão quer dizer que os Mitos vão formando os nossos caminhos?”. Tal conclusão
surgiu como reflexão de uma resposta anterior dada por Robson em que ele
afirmava não ter um Mito do qual gostasse mais, pois, cada um fala de uma parte
da vida que é formada de muitos trabalhos, muitas escolhas e muitas pessoas.
Segundo ele, cada situação tem um Mito que ensina, dizendo como fazer ou não
fazer, se quem fez teve sucesso ou não e através destas situações e das reações
dos outros podemos refletir na nossa própria vida.

Percebemos como a contação do Mito na modalidade videochamada é


mais atrativa, mais viva do que na modalidade gravada e assistida posteriormen-
te. A recepção dos espectadores influenciou diretamente no ritmo da contação
do Mito, mesmo que por meio de pequenas telas naquele mosaico de crianças
na janela do computador.

Os Mitos também estão presentes na escola nas rodas de início do dia, nos
livros da biblioteca, em filmes no Cine Vila. São recontados por meio de radiocon-
tos na Rádio da Vila, na materialidade de jogos como o Mancala e diversos outros
ambientes e ações proporcionadas pela Vila Esperança.

6 A Rádio da Vila surgiu em 2006 no Espaço Cultural Vila Esperança como forma de propor-
cionar espaço e instrumentos de veiculação da comunicação para valorização da expressão das
crianças e adolescentes. O conteúdo produzido pelas crianças é utilizado internamente na Escola
Pluricultural Odé Kayodê e veiculado diariamente na rádio comunitária Vila Boa 87,9 FM. Por um
desejo das próprias crianças, em 2018 foi criado no YouTube o canal Rádio da Vila Esperança.

7 Assista ao vídeo do Ojó Odé on-line contendo o Mito “Como a Fome foi Vencida” e a parti-
cipação das crianças no link https://youtu.be/SOUwfsiksDo.

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Para realizar uma pesquisa na e com a Vila Esperança faz-se necessário


fundamentalmente ter esperança, como preconizou Paulo Freire. É encontrar
o significado de cada coisa, pois tudo o que é feito neste espaço é carregado de
símbolo, sentido e significado. Como nas palavras de Esteva trazidas por Walsh e
por Escobar: “La esperanza no es la certeza de que algo pasará, sino de que algo
tiene sentido, pase lo que pase” (ESTEVA in ESCOBAR, 2017). Para Haber (2011) a
esperança é “menos una cuestión de ideales que un hueco que se nos forma en
la carne, un vacío que no podemos llenar ni subjetivamente ni en nuestras rela-
ciones objetivas; la esperanza es un vacío que nos lleva a transformarnos subjeti-
va y objetivamente en lo que somos como ser y como mundo”.

Finalizo com algumas certezas, porém, com mais perguntas e pontos de


reflexão do que com respostas prontas e acabadas. Penso que fui “iniciado” no
caminho da busca por metodologias e práticas outras, dando os primeiros pas-
sos para construir um trabalho de reflexão e autocritica coletivo, decolonial e que
tenha sentido, significado e esperança.

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ESCOBAR, A. Desde abajo, por la izquierda, y con la tierra. La diferencia de Abya


Yala/Afro/Latino/América. In WALSH, C. Pedagogías decoloniales: Prácticas
insurgentes de resistir, (re)existir y (re)vivir. TOMO II. Ediciones Abya-Yala, Serie
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HUMANISMO, DIGNIDADE E ACULTURAÇÃO NA


ESTÉTICA DE NAZARENO CONFALONI

Jacqueline Siqueira Vigário 1

Como aconteceu na província, fez parte da formação


deles algum atraso de gosto, misturado ao interesse
ativo pela novidade (...) Talvez daí tenha ficado neles
uma certa disposição dupla para a ousadia das ino-
vações e fidelidade (embora transformada) ao pas-
sado literário.

Drummond Prosador” – Antônio Cândido

Na história das artes plásticas do Centro-Oeste brasileiro, Frei Nazareno


Confaloni2 (1917-1977) é considerado como um dos pioneiros da arte moderna.
Em sua obra, a temática social teria sido a inspiração que, entretanto, não o des-
vinculou de sua vocação religiosa dominicana. Desde que conheceu Primo Con-
ti (1900-1988)3, seu estilo “ousado” teria enriquecido e assimilado o movimento

1 Doutora em História pelo PPGH/UFG. Membro do Grupo de Estudos em História e Ima-


gens (GEHIM/CNPQ/UFG) e da Rede Internacional de Pesquisa em História e Culturas do Mundo
Contemporâneo (Universidade Presbiteriana Mackenzie - UPM).

2 Giuseppe Nazareno Confaloni nasceu em Grotti di Castro, centro da Itália, em 23 de Janeiro


de 1917. Aos 10 anos de idade foi admitido na Escola do Convento Dominicano de San Marco, em
Florença. Aos 23 anos de idade ingressou na Academia de Belas Artes de Florença e, além disso,
frequentou aulas no Instituto Beato Angélico de Pintura de Milão, na Escola de Arte de Brera, tam-
bém de Milão e a Escola de Pintura Al’Michelângelo em Roma, com Felipe Carena Baccio, Maria
Bacci e Primo Conti - um dos membros do movimento futurista. Suas habilidades garantiram par-
ticipações e prêmios em salões e exposições de pinturas. Confaloni chegou ao Brasil no ano de
1950, a convite de Dom Cândido Bento Maria Penso (1895-1959) bispo dominicano suíço da Prelazia
da antiga capital de Goiás, a Cidade de Goiás, para pintar os afrescos da Igreja Nossa Senhora do
Rosário dos Pretos, mas seus feitos não se resumem às pinturas de afrescos. Em Goiás, do contato
com Luís Augusto Curado (1919-1996) e Henning Gustav Ritter (1904-1979), surgiu a ideia de abrir
uma escola. Confaloni mudou-se para Goiânia em 1952 e, um ano depois nascia a Escola Goiana de
Belas Artes (EGBA), primeira instituição escolar de ensino superior especializada no ensino artístico
em Goiás.

3 Primo Conti (1900-1988), foi titular de pintura da Academia, escritor, compositor, poeta e

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cultural da época, o noveccento italiano4. Mesmo tendo como trabalho princi-


pal pinturas sacras, Confaloni aprendeu rapidamente os fundamentos da arte
moderna, em um diálogo constante com movimentos que eclodiram durante
o começo do século XX. Sabe-se que no campo da arte sacra os modernistas
representaram um mundo secular em sua arte, tornando as representações de
madonas e santos humanizados e Frei Confaloni não ficou alheio às transforma-
ções artísticas ocorridas no Brasil e no mundo. Um breve percurso por suas obras
desde que chegou ao Brasil permite observar que o Frei artista sinaliza em suas
incursões pelo moderno um diálogo profundo com o contexto sociocultural lati-
no-americano, sobretudo no que se refere à visão progressista voltada para ideia
da Teologia da Libertação5.

Se observarmos com um pouco mais de atenção, em suas obras conver-


gem elementos que estão no âmago do cristianismo. Dentre eles, o sagrado hu-
manizado e o humano sacralizado como elemento constitutivo das discussões
sociais empreendidas em sua época. Isso fica claro ao tomar como exemplo as
representações de suas madonas, (figura 1 e 2), ambas datadas do ano de 1970.
A temática social também se apresenta nas Madonas negras; são pinturas que
tem influência de personagens local. a mãe amorosa ampara o filho nos braços.
As crianças estão com a cabeça levemente inclinada no ombro da mãe, algumas
de lado e, em sentido oposto a ela, em todas a criança parece entregar-se com
confiança ao colo da mãe. Há um sentimento de apatia da parte das crianças.

um dos líderes do Movimento Futurista do começo do século XX. Do encontro com Giacomo Balla
em Roma e Fellipo Thomaso Marinetti.

4 O novecento italiano, pregava o retorno a uma figuração próxima do primeiro renascimen-


to e, simultaneamente, as paisagens metafísicas de Giorgio de Chirico. O retorno à ordem iniciou-
-se nos primeiros anos de 1910.

5 No Documento do Sínodo de Puebla, no capítulo I - Conteúdo de Evangelização que trata


dos desígnios de Deus sobre a realidade da América Latina, estão contidos elementos culturais
os quais foram trazidos para fazer uma leitura cultural dos afrescos pintados pelo artista na Igreja
Nossa Senhora das Graças, na cidade de Araraquara-SP, como parte do capítulo IV da minha tese
intitulada: Diante da Sacralidade Humana: Produção e Apropriações do Moderno em Nazareno
Confaloni (1917-1977).

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N. Confaloni. Madona, 1970. N. Confaloni. Madona, 1970.

Quanto às roupas, em todas as pinturas, as Madonas se apresentam vesti-


das simples, como mulheres humildes. Vale ressaltar o brilho da cor branca das
vestes da Madona e da Criança, detalhes que revelam um pintor esforçado em
representar um retrato essencial que, com poucos traços e linhas e, apenas o
destaque para as cores da paleta consegue jogar com a forma e o desenho sim-
ples, destacando a posição do corpo (Figuras 1 e 2). O principal efeito expressivo
de Confaloni esteve na habilidade artística em provocar uma terna humanida-
de nas figuras de suas pinturas, cujos gestos são cuidadosamente trabalhados.
Confaloni trouxe para sua cena pictórica sacra uma Maria humanizada, com de-
talhes do halo sobre as cabeças, algumas de mãos calosas e gigantes, que de-
notam a grandeza de sua humanidade histórica como a mãe que acolhe o filho
com gestos de proteção. É um gesto de doação, mas aparenta também um ges-
to de entrega ao filho.

Mas, qual seria de fato o caráter de historicidade dessas imagens? Qual a


mensagem que Confaloni quis passar com representação de madonas negras?
Olhar para historicidade das imagens e o Goiás, o Brasil, o que ele quis repre-
sentar nelas. Interessante pensar também, como a linguagem moderna apre-
senta e manifesta um olhar alienante europeu que acaba impondo categorias

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europeias pré-concebidas sobre o continente latino-americano. O processo de


inculturação vai muito no campo da crítica da cultura ocidental que subordina,
se apresenta como absolutas. Entretanto, Confaloni se afasta do modelo acadê-
mico clássico para imprimir a marca singular do humano enfatizado por meio
de figuras serenas, utilizando o mínimo possível de traços em algumas. O artista
não se aprisionou a um gênero, pois trabalhava intensamente em seu ateliê to-
dos os dias, e gostava muito de fazer experimentações6.

Das aventuras experimentais em seu ateliê, a partir do final da década de


1960 começaram a surgir suas Madonas negras, pobres, singelas, algumas de
feições quase infantis, são Marias do povo. A partir de um simples risco, ao in-
vés do olho, ele criava sentimento, trabalhava na tela a ideia do aconchego com
crianças no colo materno, o amor da mãe pelo filho, os que se apresentam fe-
lizes no colo materno. Segundo Saída Cunha, ele foi tirando partido do que via
por perto, na época tinha aberto uma creche junto ao Convento São Domingos,
e ele provavelmente tenha se deparado com essas mães. Em seu depoimento,
Saída aponta alguns aspectos da pintura do frei e sobre esse tema. A estética
de Confaloni é tocada pela simplicidade, apresenta o cotidiano, a vida simples
da povo Latino-Americano. Embora o artista seja imbuído de sua fé católica, ele
apresenta em seu repertório artístico uma linguagem visual que extrapola ele-
mentos específicos religiosos, pois, o artista toca em questões profundamente
humanas buscando um caráter desde o ponto de vista antropológico com ele-
mentos culturais da cultura local goiana. Também, pode-se afirmar que a esté-
tica Confaloniana dialoga com pensamento decolonial. Sabe-se que os estudos
de decolonialidade surgiu em grande parte como demanda histórica, política e
econômica que existe no mundo colonizado mais especificamente na América
Latina, mas também, África, Ásia, parte da Europa (leste europeu) com os imi-
grantes, mulheres, ciganos, comunidade LGBTQIA+. A discussão é um processo
de resistência que busca mostrar que existe outros processos, outras epistemo-
logias que podem ser utilizadas para se pensar determinadas culturas. Grande
parte da discussão relacionada a questão da decolonialidade vinculada a pro-

6 Segundo nos contou Saída Cunha, ele pegava meias, pedaços de trapos velhos e daquilo
saía uma técnica nova trabalhada na pintura.

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cessos de resistência e insurgência contra o processo avassalador de modelos e


matrizes de conhecimento, organização política e social que tenta mostrar como
os únicos possíveis. Nos últimos anos assistimos ao nascimento de uma corrente
historiográfica associada aos estudos culturais que tomam como objeto de pes-
quisa os estudos pós-coloniais. No mundo acadêmico tem tomado corpo signi-
ficativo e tem causado certo desconforto no mundo ocidental porque questiona
as bases do padrão do conhecimento dito universal.

Para esses teóricos a modernidade é tocada de forma tangenciada sob uma


lógica autoritária e progressista desrespeitando as singularidades de cada lugar.
A proposta de estudos pós-coloniais tem caráter transversal em um diálogo pro-
fícuo com a antropologia, psicanálise, teoria literária, filosofia, história e política.
O termo pós-colonial surgiu entre teóricos pesquisadores que pertencem a an-
tigas colônias inglesas, entre os quais se destacam o indiano Homi Bhabha, o
Jamaicano Stuart Hall e na América latina, o argentino Enrique Dussel, posterior-
mente espalhando para ex-colônias francesas e, recentemente portuguesas e
espanholas. A perspectiva de Dussel ultrapassa os estudos pós-coloniais. Defen-
de uma “filosofia da liberação” na qual o discurso Decolonial é professado. Para
ele, a modernidade não tocou igualmente todas as sociedades fora da Europa e,
por esse motivo, é preciso reivindicar um pensamento próprio, uma epistemolo-
gia vinda de sociedades antes consideradas subalternas, mas que possuem uma
epistemologia singular e única.

Em face à condição periférica ao mundo capitalista e, ao lento desenvolvi-


mento institucional e cultural, esses teóricos da modernidade avançaram em re-
lação à forma passiva de influência vinda de correntes historiográficas francesas
e americanas, com a construção de uma historiografia com identidade própria
que tem sido relevante.

A decolonialidade não é um movimento contra ciência, mas busca por


meio de princípios, o diálogo entre diferentes formas de saber. Isso no nosso
entendimento gera relação de complementariedade que complementa diferen-
tes formas de ser e existir no mundo. Trazer essas ideias para o campo da arte
é fazer com que essas outras possibilidades sejam visibilizadas e não rotuladas

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como sabedoria popular que não pode ser levada em consideração em termos
científicos.

Grande parte desse conhecimento acaba considerando essas formas de


saber como formas inferiores àqueles matrizes padrões na constituição do que
entendemos como conhecimento. O Conhecimento silenciado é parte constitu-
tiva do conhecimento cientifico. Não há um saber universal que não seja conco-
mitante com o saber local.

Nesse sentido, a estética apresentada pelo artista italiano Nazareno Con-


faloni, surge como uma alternativa para pensar politicamente o continente La-
tino-Americano, sobretudo, em um momento de efervescência de mudanças a
partir dos eventos do Concílio do Vaticano II ocorridos no começo da década de
1960.

A montagem da visualidade de Confaloni dialoga com o imaginário de mo-


dernidade construído para Goiás, levando-se em consideração a cultura local e
artística do período. Seu modernismo afirma o lugar, o vivido, o visto e os hábitos
cotidianos. Suas imagens são representativas no que diz respeito à moderniza-
ção do espaço, oscilam entre o rural e o urbano, o novo e o velho, Brasil e Euro-
pa, são pensamento e concepções tematizadas em uma solução que teria sido
dada historicamente aos problemas de uma cultura colonizada e dependente,
de um processo de modernização tardio e conservador, da importação de ideias
do colonizador europeu, e num segundo momento da invasão do Bandeirante
desbravando o sertão goiano7, e se contrapõe a paisagem do Goiás sertão do
século XVIII.

A proposta de uma linguagem moderna, com temáticas que ressaltavam


o popular, o regional, o tradicional, embebidas de valores históricos e simbólicos,

7 Sobre o conceito de Sertão, o historiador Nars Chaul, (1997, p.19) explica em seu livro que as
sociedades goianas pós-mineração, viveu o esgotamento de uma forma de produção e sua substi-
tuição por outra atividade econômica, no caso, a pecuária. Apesar das imagens construídas pelos
viajantes de um lugar decadente, para o historiador, tal substituição não implicou em decadência,
uma vez que não há comprovação do período de apogeu do ouro e valoração do quinto. Nars Chaul
explica ainda que os europeus não entenderam a realidade do sertão em suas complexidades, e
parece terem enxergado apenas a paisagem vazia sem entender suas especificidades no tempo.
o historiador vai buscar nas reflexões de Custódia Selma Sena sobre a representação do Sertão
como um lugar singular e plural, passado sempre presente.

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com traços que caracterizavam a identidade brasileira, indicam a preocupação


e a necessidade dos artistas em perseguir uma estética com forte apelo social e
local.

A preocupação social é um marco importante para quem busca um enten-


dimento do processo historiográfico no campo das artes no Brasil e na América
Latina na história recente. Como se sabe, o artista que quisesse fazer arte nacio-
nal, não poderia desprezar elementos figurativos que representasse os trabalha-
dores, os tipos roceiros, as cenas da vida dos esquecidos da sociedade, além de
questões étnicas, em função de questionamentos que envolviam não só a pró-
pria discussão da função social da arte na sociedade moderna capitalista, aqui
no caso inclui a produção, mas também o papel do artista como instrumento de
opinião pública, comprometido com uma arte que provocasse transformações
na estrutura social.

A melancolia do artista não parece destrutiva, ao contrário, ela se conforma


nos direitos humanos e na dignidade da natureza humana em sua historicidade
com o esforço do trabalho, e aponta para uma denúncia social das lutas doloro-
sas da exploração do trabalho árduo que contém ao fundo uma esperança no
tempo. Para além de um acontecimento de modernidade, sua obra comunica
questões gerais de seu tempo. Sua linguagem é ao mesmo tempo geral e atua
em uma dinâmica local e histórica. Na visão do pintor há um sentido de espe-
rança.

Certa vez, de passagem pelo Rio de Janeiro, o crítico goiano José Godoy
Garcia (1918-2001)8 teve a oportunidade de entrevistar o artista Candido Portina-
ri, que em um dado momento, assinalou a importância da obra do Frei, enfati-
zando o desenvolvimento da trajetória crítica do artista como pintor social. Em
entrevista, Portinari enviou seu recado aos goianos e artistas e criadores de arte:

[...] um abraço fraternal e tanto a nós como a Frei Nazareno Confaloni a quem
Portinari citou nominalmente as cálidas palavras de confiança no sentido de
que nos venham nascer verdadeiras obras fundidas com as tradições populares

8 José Godoy Garcia foi Escritor, poeta, crítico de arte. Participou ativamente como um dos
líderes do Grupo modernista Geração 45, que romperam com a literatura romântica tradicional na
década de 1940.

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do povo goiano e fiéis aos mais altos e angustiosos problemas de nossa coleti-
vidade.9 (GODOY, Garcia José. Jornal OIó, Abril, 1957)

Como se vê, o Frei tinha uma preocupação e um compromisso constante


com a realidade e a cultura local. Influenciado pelo universo rural e urbano com
formas e expressões próprias do local, sua pintura é resultado da apropriação de
elementos da cultura indígena e negra que compõem o passado colonial vivido
em Goiás.

Confaloni via a arte como uma necessidade dos brasileiros, no sentido de


se redescobrirem. Suas figuras humanas vão sendo desenhadas e descritas em
um contexto que a função social da arte para o público que a recebe, ainda era
a grande preocupação dos artistas daquele período. O efeito dessa realidade in-
terpretada, logo faria de Confaloni um artista reconhecido pelos leitores e críticos
de sua obra como um pintor social. Seu legado é uma obra social que integra o
pessoal.

9 GODOY, Garcia José. Jornal OIó, Abril, 1957.

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Entrevista:

Entrevista concedida por Saida Cunha em 20 de Janeiro de 2017.

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É ÍNDIO QUE CHAMA? PERFORMANCES VISUAIS NA


ESCOLA INDÍGENA MARIA VENÂNCIA

Janaína Ferreira Fernandes1

Introdução

Entre agosto de 2017 e junho de 2018, realizei pesquisa de campo para dou-
toramento junto ao povo indígena Tremembé de Almofala, com quem já realiza-
va pesquisa desde 2011. Na ocasião, tive a sorte de ter a companhia da fotógrafa
documental e fotojornalista Naiara Demarco, que realizou um extenso trabalho
de registro do cotidiano da vida Tremembé e cujas fotos auxiliaram-me na ela-
boração da minha tese, defendida em 2020, intitulada “Liberdade, Terra e União
na Almofala dos Tremembé: um díptico etnográfico-ficcional” (Fernandes 2020).
Durante o processo de sua elaboração, muitas questões relacionadas à escrita e
à linguagem etnográfica - e científica num sentido mais amplo - permearam os
processos metodológicos e narrativos pelos quais passei. Uma dessas questões
foram as possibilidades ofertadas pelo uso da câmera fotográfica como modo
de registro e criação em campo. Alguns ensaios fotográficos decorrentes desse
trabalho foram apresentados e expostos em eventos e instituições. O objetivo do
presente trabalho é fazer alguns apontamentos antropológicos de um desses
ensaios. Intitulado “É índio que chama?”, foi exposto no 3. Congresso Internacio-
nal dos Povos Indígenas da América Latina - CIPIAL, realizado em Brasília, em
julho de 2019.

Assim, inicialmente, farei uma contextualização histórica e pontuarei a situ-


ação etnográfica do povo Tremembé de Almofala. Serão abordadas citações do

1 Doutora em Antropologia Social, pela Universidade de Brasília; Professora do Instituto


Federal de Goiás, campus Formosa; Coordenadora da Especialização Educação para Cidadania;
Membro do Grupo de Estudo em Ambiente e Sociedade. E-mail: jffernandes@gmail.com

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referido povo durante o período colonial, a fim de demonstrar os modos pelos


quais aquela população resistiu aos processos colonizatórios e etnocidas, com
contato estreito com a sociedade nacional. Para tanto, será necessária uma re-
flexão acerca da categoria índios do Nordeste, presente na literatura etnográfica
nacional, bem como os reflexos dessa categorização para o entendimento Tre-
membé da própria categoria índio.

Após, serão expostos o modo de elaboração do ensaio e as circunstâncias


nos quais ele foi produzido. É importante frisar, de antemão, que o ensaio foi
solicitado por um grupo de estudantes da Escola Maria Venâncio para registro
pessoal, sob a alegação de que queriam ser fotografados vestidos de índio. Tal as-
pecto parece ser crucial para o entendimento de uma série de questões relacio-
nadas à indianidade e sua relação com a noção de performaticidade, conforme
veremos na segunda parte deste artigo.

Por fim, espera-se realizar uma análise crítica em relação à categorização


da indianidade perante o Estado, demonstrando de que forma a imposição de
distinções culturais marcadas reflete numa acentuada simplificação das vivên-
cias indígenas e na compreensão plena de sua historicidade.

A Terra Indígena de Almofala e os Tremembé.

Os Tremembé de Almofala são um povo indígena que vive no litoral oeste


cearense, no município de Itarema. São geralmente enquadrados, dentro da et-
nologia indígena nacional, como índios do Nordeste conforme designação pro-
posta por João Pacheco de Oliveira (2004). Porém, antes de chegar a esta cate-
goria, é importante frisar que um dos primeiros estudos que apontam algum
tipo de preocupação em enquadrar os povos indígenas da região Nordeste do
Brasil do ponto de vista de uma divisão analiticamente produtiva foi ensaiada
por Galvão (1979). Ao circunscrever as populações indígenas brasileiras em áreas
culturais, de acordo com determinadas características materiais e ambientais e
com os interesses antropológicos que suscitavam, verificou que os povos indí-
genas do Nordeste apresentavam certa revelia aos pressupostos sobre os quais

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se fundavam seu projeto de categorização. Galvão atribui suas dificuldades aos


“efeitos da aculturação à sociedade nacional, diversidade de línguas e de origem
[fazendo com que se tivesse] certa dúvida em incluir todos esses grupos em uma
única área” (Galvão 1979 225). Isso porque os pressupostos de Galvão estavam
basicamente alicerçados em um esquema teórico no qual as diferenças e se-
melhanças culturais eram o principal pressuposto analítico, no sentido de que
os tipos de organização social, os sistemas de parentesco, de ritos, bem como
os graus tecnológicos dessas sociedades eram, em grande medida, os baluartes
taxionômicos da Antropologia realizada pelo autor.

Entretanto, com as críticas ao culturalismo propostas por Roberto Cardoso


de Oliveira (1996) e Fredrik Barth (2000) tornaram possível repensar os grupos
indígenas do Nordeste enquanto uma unidade cultural para torná-los uma uni-
dade econômica. Cardoso de Oliveira fala então a respeito das zonas fisiográfi-
cas como unidades de investigação, ou seja, como “unidades geo-econômicas
homogêneas, isto é, constituídas à base de critérios fisiográficos e econômicos”
(Cardoso de Oliveira 1978 99). Tal proposta, ao ser contraposta àquela de Galvão,
nos dá outra perspectiva dos estudos sobre os povos indígenas no Brasil, sobre-
tudo aqueles habitantes da região Nordeste. Isso porque agora estamos diante
de uma proposta de análise dos objetos de pesquisa a partir de uma aproxima-
ção que leva em conta, prioritariamente, os aspectos econômicos e ambientais,
muito antes de quaisquer similitudes culturais.

Em um texto publicado pela primeira vez em 1992, Dantas, Sampaio e Car-


valho (2009) pretendem chamar a atenção para alguns elementos presentes na
história dos povos indígenas do Nordeste e que os fazem “constituir, mediante
um prolongado contato com frentes de expansão determinadas, em uma unida-
de histórica e etnológica tornada possível sob o indelével signo da marginalida-
de” (Dantas et Al, 2009, 431) suas próprias formas de indianidade. Tais elementos
são, basicamente, a relação com a caatinga e a associação às frentes pastoris
e ao padrão missionário dos séculos XVII e XVIII. Note-se que a diferença entre
os textos de Galvão e o texto de Dantas et al encontra-se em uma mudança de
pressupostos e referenciais do que seja o ponto de partida para a análise antro-

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pológica. Vale a pena repetirmos: enquanto o primeiro preocupa-se com uma


construção do conhecimento que leve em conta as diferenças culturais entre
os povos indígenas, Dantas et al elaboram seu trabalho a partir da percepção da
construção identitária em correlação com os movimentos de colonização, ocu-
pação não tradicional da terra e contato interétnico.

Tal designação costuma apontar não apenas para uma definição geográfi-
ca, mas principalmente para o tipo de relação historicamente constituída entre
indígenas e o Estado nacional. Sendo desde os primeiros séculos da colonização,
um povo extremamente exposto ao contato e às frentes de colonização, os Tre-
membé são citados em vários documentos oficiais e de cronistas. O historiador
John Hemming (2007), por seu turno, fala dos Tremembé nos seguintes termos:

As tribos do interior do Maranhão eram conhecidas dos colonos sob a designa-


ção de índios ‘corsos’, com o significado de ‘andantes’ ou ‘dados à pilhagem’. An-
davam nus e deslocavam-se sempre, dormindo debaixo de galhos de árvores.
Atacavam rapidamente e em seguida desapareciam, além do que colocavam
sentinelas em árvores altas para espionar a movimentação dos portugueses (...).
Um grupo de índios corsos, os tremembé, vivia no litoral entre o Maranhão e o
Ceará. Como um dos últimos grupos de índios a sobreviver na costa atlântica,
eles se viam terrivelmente expostos. Sua presença era considerada uma amea-
ça à comunicação entre as duas capitanias e à navegação costeira. (HEMMING,
2007, p. 531)

Já desde o período do governo de Mem de Sá (1558-1572), tomou-se a deci-


são política de que os índios deveriam ser aldeados, de modo a abandonar a vida
de caçadores-coletores e iniciar um processo de sedentarização, garantido pela
agricultura e criação de animais, apreendidas por meio das missões ou redu-
ções, como ficaram conhecidos os aldeamentos. Tais estabelecimentos fixaram-
-se nas mais variadas regiões do Brasil, inclusive no Ceará. Elas eram abastecidas
pelos índios descidos por meio de expedições predatórias. Foi o tempo do início
da escravização dos povos indígenas e da utilização daquela força de trabalho
pelos colonos, sendo os índios cedidos pelos missionários a quem os procurasse
necessitando de trabalhadores e eram pagos a preços vis. O objetivo das missões
era, sem mais, formar um exército de reserva de mão-de-obra barata e transfor-
mar guerreiros indígenas por vezes hostis às ações brutais dos colonizadores em
súditos da Coroa Real.

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Os registros mais densos sobre Almofala referem-se ao século XIX, quando,


de acordo com Carneiro da Cunha, “a questão indígena deixou de ser essen-
cialmente uma questão de mão de obra para se tornar uma questão de terras”
(Carneiro da Cunha 2012 56). Até 1850, pelo menos no Ceará, perdurou o regime
dos diretórios, a despeito de sua extinção em 1759. Durante o Império, o principal
documento indigenista foi o Regulamento das Missões, numa tentativa de enca-
rar os aldeamentos como modelos de transição dos indígenas para a completa
assimilação, aguardando ansiosamente o Estado o incremento substancial da
mão de obra para alavancar o desenvolvimento econômico no interior do país.

Entretanto, desde a chamada Lei de Terras, de 1850, ficou patente um novo


direcionamento para o enfrentamento da questão indígena no Brasil. O terri-
tório brasileiro já havia se consolidado e a preocupação governamental deixou
de ser apenas a de ocupá-lo, mas de torná-lo produtivo. Foi preciso, então, definir
as propriedades e instaurar um regime de compra e venda de terras.

A síntese da situação atual de Almofala foi brilhantemente exposta por Car-


neiro da Cunha, quando descreve a política de terras indígenas no Brasil no sé-
culo XIX:

O processo de espoliação torna-se, quando visto na diacronia, transparente:


começa-se por concentrar em aldeamentos as chamadas “hordas selvagens”,
liberando-se vastas áreas, sobre as quais seus títulos eram incontestes, e tro-
cando-as por limitadas terras de aldeias; ao mesmo tempo, encoraja-se o esta-
belecimento de estranhos em sua vizinhança; concedem-se terras inalienáveis
às aldeias, mas aforam-se áreas dentro delas para o seu sustento; deportam-
-se aldeias e concentram-se grupos distintos; a seguir, extinguem-se aldeias a
pretexto de que os índios se achem “confundidos com a massa da população”;
ignora-se o dispositivo de lei que atribui aos índios a propriedade da terra das
aldeias extintas e concedem-se-lhes apenas lotes dentro delas; revertem-se as
áreas restantes ao Império e depois às províncias, que as repassam aos muni-
cípios para que as vendam aos foreiros ou as utilizem para a criação de novos
centros de população. Cada passo é uma pequena burla, e o produto final, re-
sultante desses passos mesquinhos, é uma expropriação total (CARNEIRO DA
CUNHA, 2012, p. 81-82).

Nesse contexto, a história da terra de Almofala, apesar de estar umbilical-


mente ligada aos processos colonizatórios e contra colonizadores dos Tremem-
bé, sendo seus limites e fronteiras frutos deles, também enquadra-se dentro

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desse processo de espoliação ao qual se refere Carneiro da Cunha.

Gostaria de, neste ponto, chamar a atenção para os equívocos encontrados


entre a produção antropológica e a atuação do Estado no que se refere aos po-
vos indígenas no Brasil. Se, de um lado, como vimos, temos uma reorganização
teórica para se pensar no contato interétnico que deslocou o foco de interesse
da cultura para a organização econômica, ambiental e identitária; por outro lado,
temos uma atuação estatal secularmente constituída com o intuito de inserir
as populações indígenas na sociedade envolvente, cultural, econômica, política
e socialmente, num processo muito próximo do que Galvão (1979) chamou de
aculturação.

Tais equívocos são fundamentais para se compreender a situação dos Tre-


membé hoje e explica bastante a aproximação do Estado e de outras institui-
ções não indígenas aos Tremembé - e podemos dizer os chamados índios do
Nordeste de um modo geral. Já que, durante muitos séculos, sua identidade
foi sistematicamente negada em um profundo processo de etnocídio (Clastres
2004), pautado por políticas sistematicamente organizadas para transformá-los
em mão-de-obra nacional, impedindo-lhes a experiência na terra - a de índios
corsos, como disse Hemming -, a constatação de que não havia mais índios no
Ceará, conforme relatório de meados do século XIX, foi o ponto de maior suces-
so de uma noção de aculturação que pretendia homogeneizar cultural, política,
econômica e socialmente toda a diversidade de vidas e histórias presentes no
Brasil indígena.

Entretanto, as respostas indígenas em relação a esse processo colonizatório


homogeneizador não podem ser deixadas de lado. A partir da ideia de contra-
-colonização de Antonio Bispo dos Santos (2015), ou seja, todos os processos de
insurgência e resistência contra os processos colonizatórios, é possível entender
várias das dinâmicas de sobrevivência dos Tremembé, seja em relação aos regio-
nais que co-habitam Almofala, em relação a empresas e grandes proprietários
de terras que exercem pressões em seu território ou, ainda, em relação ao pró-
prio Estado, sob a forma de Secretarias de Educação e Saúde, Funai, Funasa etc.

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Um exemplo etnográfico interessante sobre este aspecto é uma frase, re-


correntemente repetida entre as lideranças e inscrita nos muros da Escola In-
dígena Tremembé de Passagem Rasa, cuja autoria é imputada a seu Marciano,
liderança Tremembé já falecida: “antes, para sobreviver, nós tínhamos que nos
calar; hoje, para sobreviver, a gente precisa falar”. A frase é muito reiterada em
encontros e eventos políticos do povo Tremembé. A ideia de falar provém justa-
mente de identificar-se como indígena e fazer-se reconhecido como tal. Nesse
sentido, falar para sobreviver é falar sobre sua própria indianidade.

Para os Tremembé, um dos aspectos mais latentes dessa indianidade a ser


falada e a ser reconhecida encontra respaldo na prática e no conhecimento do
Torém, dança ritual que ora é entendida como brincadeira, ora como ritual sa-
grado dos antigos. Desde o surgimento das escolas indígenas Tremembé e nos
momentos iniciais de sua formação, o conhecimento acerca do Torém - os pas-
sos, as cantigas e as histórias - são considerados de extrema relevância para se
construir uma escola diferenciada.

Por outro lado, o tempo da fala e do reconhecimento contrapõe-se ao tem-


po do calar-se, do silenciamento, fazendo referência a processos violentos na re-
gião, envolvendo principalmente demandas e reivindicações de terra2. Na déca-
da de 60, chegou a haver um conflito armado que gerou a morte de três pessoas
da mesma família da aldeia Passagem Rasa, na Terra Indígena de Almofala. Além
disso, no convívio com os regionais, ser índio sempre esteve ligada a uma ideia de
selvageria, brutalidade, muitas vezes levada aos índios de modo extremamente
pejorativo, o que fazia com que muitos repudiassem a ideia de dizerem-se índios.

Foi somente a partir da década de 1970, e principalmente após a promul-


gação da Constituição de 1988, que a organização política Tremembé voltou a se
fortalecer e a reivindicar, frente ao Estado, a identidade indígena, buscando por
direitos específicos como a demarcação da terra, educação e saúde diferencia-
das. Foi dessa época também a consagração do primeiro cacique, Vicente Viana,

2 Não entrarei em detalhes acerca das pressões territoriais vividas pelo povo Tremembé de
Almofala. Mas é importante frisar que há desde pequenos posseiros até grandes empresas mono-
cultoras que chegaram a tomar ⅓ de seu território. Além disso, há construções de rodovias, pro-
cessos de urbanização, pesca industrial e energia eólica, todos envolvendo diferentes maneiras de
espoliação da terra.

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como representante dos Tremembé, e também da criação da Associação Indí-


gena Tremembé de Almofala - CITA. Foi esse o momento de maior interlocução
entre os Tremembé enquanto indígenas e o Estado, momento em que puderam
colocar-se de maneira positiva, enquanto sujeitos de direitos.

É interessante notar que a identificação, pelo outro, dos indígenas estava


baseada em uma série de pressuposições acerca do entendimento, pelo imagi-
nário do Estado, do que é um povo indígena. E é por esse sentido que o Torém,
uma manifestação cultural historicamente cunhada como “brincadeira dos ín-
dios velhos” passou a ser reiteradamente performatizada, ensinada, reproduzido
nas escolas indígenas, em eventos fora e dentro de Almofala. Nesse sentido, o
torém ganhou novos significados, englobando uma dimensão política reivindi-
catória que até então não possuía. E é nesse sentido também que gostaria de
propor a análise das fotos do ensaio “é índio que chama?”

O ensaio.

O nome do ensaio, pensado a partir de uma linguagem usual a época nas


redes sociais, quando se queria colocar ênfase em alguma característica típica
de algo, traduz parte do contexto no qual um grupo de estudantes do ensino
médio da escola indígena Maria Venâncio solicitou que a fotógrafa fizesse um
ensaio com eles vestidos de índio. Num domingo previamente marcado, todos
se encontraram na escola. Haviam levado cocares, colares, braceletes e mais uma
série de adereços que mantinham em casa especialmente para momentos em
que fosse preciso dar ênfase a sua indianidade. Como não possuíam jenipapo,
uma das alunas levou lápis de olho de cor preta. Essa mesma aluna, chamada Ve-
nância, optou por não participar das fotos com a mesma indumentária que seus
colegas por questões religiosas. Sendo frequentadora de uma igreja evangélica
local, considerava inadequado o uso de biquinis de palha para realizar as fotos.

Fomos caminhando até a praia e, já no caminho, os estudantes começaram


a fazer poses, espontaneamente, com os arcos e flechas que haviam levado. O
resultado é o ensaio que se segue.

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Fotos: Naiara Demarco (2018)

Gostaria de chamar a atenção para o caráter performatizador presente nas


fotografias, além da utilização da paisagem local, especialmente a praia. Aliás,
ser o ensaio realizado na praia foi um dos pedidos dos estudantes, já que o povo
Tremembé tem uma ligação histórica, econômica e espiritual com a praia e os
seres que a habitam, tangíveis e intangíveis. Porém, é a ideia de vestir-se de ín-
dio e performartizar uma indianidade me pareceu ser instigante para pensar os
processos de espoliação sofridos historicamente pelo povo Tremembé - e pelos
povos indígenas do Brasil, especialmente do Nordeste -, e sua relação com o Es-
tado.

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Desde a consolidação da ideia de fronteiras étnicas, proposta por Barth, e


de fricção interétnica, proposta de Roberto Cardoso de Oliveira, o pensamen-
to antropológico vem pensando a identidade - sobretudo a identidade étnica
- apartada da noção de cultura, desvencilhando-se do velho termo aculturação,
que inclusive estava no cerne do Serviço de Proteção ao Índio e Localização de
Trabalhadores Nacionais - SPILTN, criado em 1909. As políticas estatais relaciona-
das aos povos indígenas no Brasil estiveram, portanto, sempre relacionando-os
a um imaginário de desenvolvimento nacional que passava ao largo dos modos
de vida indígenas e de suas relações com a terra. E de fato essa imposição não
parece ter mudado muito quando da mudança de SPI para a FUNAI, na década
de 1960, em pleno regime militar. A ideia de tutelagem, ao longo do século XX,
marcou profundamente a visão dos povos indígenas como incapazes de exercer
efetivamente autonomia sobre suas vidas e suas terras.

Aparentemente, foi apenas com a reabertura política que o enfrentamento


às questões indígenas passaram a abordar questões de mais interesse para os
povos indígenas propriamente ditos, como a noção de terra tradicionalmente
ocupada, além de considerar o direito à demarcação de suas terras como direito
originário, ou seja, anterior à criação do estado nacional. A organização de movi-
mentos indígenas nacionalmente articulados foi essencial nesse processo. É in-
teressante notar que tal articulação sempre precisou estar ligada a uma série de
imaginários e interesses da sociedade nacional para que tivesse força política em
alguns segmentos. Além da correlação realizada entre os movimentos ambien-
talistas, os movimentos indígenas tiveram que debruçar-se sobre a noção de tra-
dicionalidade, muitas vezes tendo que acionar elementos culturais distintivos de
sua indianidade, encarando a racialização a partir de discursos de mestiçagem
ou voltando-se para os marcos definidores de seus modos de vida como provas
incontestes de seus direitos enquanto povos originários.

No nordeste indígena não foi diferente. Aliás, naquele contexto, esse proces-
so foi muito mais intenso, já que as frentes de colonização, a proximidade com
os regionais, a imposição política, econômica e cultural do processo colonizatório
estava muito mais avançada. Além disso, a invisibilidade e o silenciamento da-

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queles povos fizeram com que, com sua reorganização política e a reivindicação
de direitos indígenas, fosse preciso que, primeiramente, aqueles povos precisas-
sem afirmar sua identidade, provando serem índios. E a prova seria realizada es-
pecialmente pela cultura material, visível e palpável aos olhos do espectador.

Em Almofala, os regionais costumam fazer críticas aos Tremembé dizendo


que eles não eram mais índios, já que andavam vestidos, usavam tecnologias do
mundo dos brancos, possuíam casas e outros bens de consumo que, na visão de-
les, os desqualificavam em sua indianidade. Assim, foi justamente por isso que,
quando da criação das escolas indígenas, para além do fortalecimento da histó-
ria e da identidade Tremembé, houve uma grande valorização do Torém como
investimento étnico. Sendo um marcador explícito da diferenciação identitária,
o Torém é dançado no início de todas as aulas, suas cantigas são ensinadas aos
alunos, as festas escolares têm necessariamente o torém como momento de
destaque.

No caso do ensaio de que estamos tratando aqui, os marcadores da india-


nidade trazidos pelos estudantes, escolhidos por eles, inclusive, são objetos per-
formáticos, e não cotidianos da vivência indígena. Estar vestidos de índios é, pois,
uma indumentária para o outro, uma performatização de uma categoria exóge-
na, impositiva e intrinsecamente etnocida. Porém, não deixa de ter o caráter de
uma invenção, no sentido dado por Roy Wagner (2012). Isso significa que a apro-
priação dos marcadores distintivos é um tipo de relação que os estudantes esta-
beleceram com o mundo de fora de Almofala, dando destaque para uma ideia
levemente irônica de que: “se ser índio é ter marcadores materiais distintivos,
damos a vocês essa performaticidade”. O ensaio acaba sendo, assim, uma crítica
ao imaginário nacional acerca da indianidade, ironizando o desconhecimento
acerca da vida indígena e do real entendimento do que seja um povo indígena.

Considerações finais.

Clastres (2004) ponderou acerca da ideia de etnocídio - como o extermínio


sistemático das culturas e modos de vida de um povo. As implicações do etno-

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cídio são previsíveis: a exclusão de modelos existência contra colonizadores pela


imersão de populações em um sociedade de classes regida pelo Estado. Neste
artigo, procurei explorar as premissas do etnocídio, cujo principal baluarte é o
processo colonizatório.

A ideia de domínio sobre terras e pessoas moveu - e ainda continua a mo-


ver - os princípios do Estado enquanto arregimentador de vidas e de modos de
existência. A performatização de etnicidade, justamente com uma série de ele-
mentos que figuram no imaginário nacional enquanto indígenas, aponta para
um tipo de resistência contra colonizatória demonstrativa das lutas pela sobrevi-
vência historicamente movidas no Brasil.

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A BURGUESIA NACIONAL E A CLASSE MÉDIA


BRASILEIRA NA ENCENAÇÃO DE O REI DA VELA
PELO TEATRO OFICINA (2017)

Junior Sebastião Castanheira Rodrigues1

Introdução.

O presente trabalho estrutura-se na discussão sobre os desdobramentos


sociopolíticos vivenciados no Brasil entre os anos de 2003 a 2017 no plano federal
- marcados por governos de centro-esquerda, pelas jornadas de junho, o impe-
achment da presidente Dilma Rousseff e a crescente criminalização dos movi-
mentos sociais. Através de diversos registros fotográficos, audiovisuais e escritos
da encenação de O Rei da Vela no ano de 2017, será realizada análise das formas
pelas quais o diretor José Celso Martinez Correa e demais integrantes do Teatro
Oficina se apropriaram do texto dramático de Oswald de Andrade na represen-
tação da burguesia e classe média brasileiras.

Enredo da encenação de O Rei da Vela.

Em 21 de outubro de 2017 entrava em cartaz na cidade de São Paulo a peça


O Rei da vela2 pelo Teatro Oficina3, que encena o Brasil a partir do prisma cul-

1 Graduando em História pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro, campus Uberaba.


Email: jr041289@gmail.com. Este texto é fruto das discussões realizadas no interior do Projeto de
Iniciação Científica “A encenação de ‘O Rei da Vela’ pelo Teatro Oficina (2017): percepções sobre a
burguesia”, sem bolsa e sob a orientação do Prof. Dr. Rodrigo de Freitas Costa.

2 A peça teatral O Rei da Vela foi escrita por Oswald de Andrade no ano de 1933 e publicada
pela primeira vez em 1937.

3 Fundado em 1958, o Teatro Oficina é uma das mais antigas Companhias Teatrais do Brasil.
É gerido pela Associação Teatro Oficina Uzyna Uzona, sob a liderança do diretor José Celso Marti-
nez Correa.

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tural, social e político. Sob a direção de José Celso Martinez Correa, a peça tem
encenação centrada na burguesia nacional e segmentos médios do país. Realiza
um profundo diálogo com o cenário brasileiro, estremecido desde o evento co-
nhecido como Jornadas de Junho4, no ano de 2013, cujos desdobramentos de-
saguaram em profunda crise das instituições públicas, especialmente na esfera
federal, com o impeachment da presidente Dilma Rousseff.

O enredo de O Rei da Vela gira em torno do casamento dos protagonistas


Abelardo I (Renato Borghi) e Heloísa de Lesbos (Sylvia Prado). O primeiro é um
rico empresário oriundo das camadas inferiores, possui escritório de usura e fá-
brica de velas, segmento em que é considerado rei - duas atividades questioná-
veis, tendo em vista que sua ascensão financeira ocorre a partir do empréstimo
a juros abusivos, o que levou diversos clientes à falência. O sucesso na comercia-
lização de velas é impulsionado por uma grande crise econômica - referência a
crise de 1929 -, a ponto de diversas famílias não conseguirem pagar pelo forneci-
mento de energia elétrica, sendo obrigadas a regridirem ao uso de velas.

Por sua vez, Heloísa de Lesbos é filha do fazendeiro decadente Coronel Ber-
larmino e Dona Cesarina (Regina França), que apoiam a união de sua descen-
dente enquanto investimento para salvação financeira e moral da família, que
está à beira da miséria. Seu sobrenome é referência à orientação sexual homoa-
fetiva, especificamente ao termo lésbica, empregado no teaser da personagem
gravado pelo Teatro Oficina, no qual a mesma apresenta-se como “lésbica, futu-
rista, sapatona convicta”5.

Abelardo I almeja casar-se com Heloísa para adquirir status social e ingres-
sar no restrito círculo da elite brasileira, haja vista sua origem humilde. Possui
estilo grotesco, completa falta de empatia pela situação de penúria de seus
clientes e autoconsciência de sua postura imoral. Contudo, apesar do constante
deboche, suas falas são eloquentes, e apresentam um panorama geral das rela-

4 A delimitação dos vários protestos ocorridos neste período e seus possíveis desdobramen-
tos tem desafiado diversos cientistas políticos, inclusive quanto à sua denominação, conforme
abordagem de André Singer no artigo “Brasil, junho de 2013: classes e ideologias cruzadas”, dispo-
nível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-33002013000300003.

5 https://www.youtube.com/watch?v=xjngMeKnfB4

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ções sociais no Brasil.

Trata-se de paródia do clássico romance entre Heloísa e Abelardo, confor-


me sintetiza Sábato Magaldi:

Um crítico ou leitor ingênuo não enxergará em O Rei da Vela o intuito de


fazer tábua rasa do passado, sob qualquer prisma. O romantismo congênito do
mundo, superior aos limites históricos de uma simples escola artística, erigiu em
mito eterno o encontro amoroso de Abelardo e Heloísa, casal trágico do século
XII. Pois bem, Oswald, conhecendo o procedimento vanguardista de Alfred Jarry,
que em Ubu Rei, obra seminal do experimentalismo contemporâneo, lançado
em 1896, fez a paródia Macbeth e Lady Macbeth, subtrai toda a paixão de Abelar-
do e Heloísa, proclamando que seu matrimônio é um negócio. (ANDRADE, 1999,
p. 7)

Todos os personagens são construídos como anti-heróis, com representa-


ção caricata. O sócio de Abelardo I, Abelardo II (Túlio Starling), se autodeclara o
primeiro socialista do teatro brasileiro, contudo, deseja tomar o lugar de Abelardo
I – uma provocação ao campo progressista, que na visão de Oswald de Andrade,
responsável pela argumento da peça, tal segmento político seria composto por
diversas figuras contraditórias, inclusive militantes com postura reacionária, que
na prática lutam pela continuidade do status quo, o que é enfatizado na adoção
de nomenclatura idêntica pelos sócios.

Abelardo I mantém intimidade sexual com a sogra, Dona Cesarina, e com a


irmã desta, Dona Poloca (Zé Celso), que sempre reforça ser virgem. Na encena-
ção de 2017 Dona Poloca é uma mulher trans, adaptação realizada em referênica
a luta lbtqia+ no Brasil, cuja articulação contra a homofobia e inclusão social tem
resultado em maior participação deste grupo no debate político6, com impor-
tantes conquistas ao longo dos últimos anos7.

6 Nas últimas décadas diversos movimentos têm encampado a luta pelo fim da homofobia
no brasil, como a Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Intersexos (ABGLT),
fundada em 1995. É responsável por coordenar as demandas LGBTQI+ em âmbito nacional a partir
de diversas ações. Sítio eletrônico da ABGLT: https://www.abglt.org/

7 Em 2013 o Conselho Nacional de Justiça editou a Resolução nº 175, que regulamentou o


casamento entre pessoas do mesmo sexo, dois anos após o Supremo Tribunal Federal reconhecer
tal direito na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4277 e Arguição de Descumprimento de

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Heloísa de Lesbos tem três irmãos: Joana (Camila Mota), conhecida como
João dos divãs, Totó Fruta-do-Conde (Túlio Starling) e Perdigoto (Roderick Hi-
meros). Os dois primeiros possuem construção cênica voltada à provocação do
público mais conservador, em função do diálogo com a homossexualidade, um
tema que sempre reverbera nos debates sobre liberdade sexual, e são alvo cons-
tante de repressão, inclusive quando novas conquistas são institucionalizadas8.

Perdigoto é alcoólatra, apresenta comportamento reacionário. Coordena


criação de milícia rural para combater ascensão de grupos políticos ligados às
demandas dos trabalhadores por meio do financiamento econômico de seu
cunhado, Abelardo I, o que coloca em primeiro plano o antiesquerdismo9 pro-
pagado no país, em voga quando da encenação dirigida por Zé Celso no ano de
2017, corporificada sobretudo na figura do Partido dos Trabalhadores.

Temáticas apresentadas na encenação do Teatro Oficina.

A montagem realizada em 2017 coloca em cena diversas questões de cunho


sociopolítico, em diálogo com um contexto já marcado pela ascensão de grupos
da extrema-direita, responsáveis pela disseminação de notícias falsas e desprezo
pela democracia. Também aborda o desmonte das instituições públicas, que nos
últimos três anos têm sofrido com diversos cortes de recursos financeiros, espe-
cialmente na saúde e na educação.

Um primeiro ponto a ser levantado é o aprofundamento da intolerânica


a movimentos sociais e suas lideranças, marcado por diversos acontecimentos
Preceito Fundamental nº 132. Posteriormente, no ano de 2019, o STF também decidiu na Ação Di-
reta de Inconstitucionalidade por Omissão nº 26 que condutas homofóbicas ou transfóbicas serão
enquadradas na Lei Federal 7.716/89, que tipifica os crimes oriundos de preconceito de raça ou cor,
até que o Congresso Nacional edite Lei específica.

8 Neste sentido, vale lembrar a postura intolerante do Partido Social Cristão ao ingressar
com Mandado de Segurança para questionar a Resolução 175 do Conselho Nacional de Justiça,
conforme noticiado pelo Portal Consultor Jurídico: https://www.conjur.com.br/2013-mai-21/psc-stf-
-resolucao-cnj-casamento-homoafetivo.

9 Inúmeros pesquisadores discutiram a postura antiesquerdista, especialmente no contexto


das redes sociais, como Marcelo Alves dos Santos Junior, em sua dissertação de mestrado -Vai pra
Cuba!!! A Rede Antipetista na eleição de 2014 -, na qual investigou páginas críticas ao PT e à esquer-
da em geral com grande engajamento, como Movimento Brasil Livre, Vem Pra Rua e Revoltados
Online.

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emblemáticos, como o assassinato de Marielle Franco, vereadora no Rio de Ja-


neiro pelo Partido Socialismo e Liberdade, ocorrido no dia 14 de março de 2018. A
principal linha de investigação tem como suspeita possível ação da milícia10, or-
ganização paramilitar com profunda influência e enraizameno no cotidiano dos
fluminenses. Este acontecimento foi incorporado pelo Teatro Oficina na tempo-
rada de O Rei da Vela na capital fluminense, que foi denominada “Intervenção
cultural do rei da vela no Rio de Marielle11.

O tema da educação é explorado por meio do intelectual Pinote (Ricardo


Bittencourt), um escritor de biografias, de carreira inexpressiva, cujo trabalho
consiste em construir relatos grandiloquentes sobre figuras burguesas. O intuito
é discutir a relação dos intelectuais com o poder, assim como a precarização dos
segmentos educacional e artístico, que enfrentam processo de deslegitimação
em virtude do desmantelamento das políticas públicas direcionadas ao campo
cultural nos últimos anos12.

Tal precarização é tratada como fundamental por Abelardo I:

Aberlardo - I Não pratica a literatura de fricção?

Pinote - No Brasil isso não dá nada!

Aberlardo I - Sim, a de fricção é que rende. É preciso ser assim, meu amigo. Ima-
gine se vocês que escrevem fossem independentes! Seria o dilúvio! A subversão
total. O dinheiro só é útil nas mãos dos que não têm talento. Vocês escritores,
artistas, precisam ser mantidos pela sociedade na mais dura e permanente mi-
séria! Para servirem como bons lacaios, obedientes e prestimosos. É a vossa fun-
ção social! (ANDRADE, 1999, p. 43)

A encenação também aponta para o caráter servil da elite brasileira, ten-


do em vista que Abelardo I serve ao personagem O Americano (Élcio Nogueira),
dono de todas as riquezas brasileiras, e de inúmeros privilégios, como o direito
de pernada com Heloísa – mais uma menção à Idade Média, em que o senhor

10 https://www.bbc.com/portuguese/brasil-56378215.

11 https://www.jb.com.br/cultura/noticias/2018/03/29/ze-celso-traz-o-rei-da-vela-para-o-rio.
html

12 O momento de ataque a cultura é enfatizado por Zé Celso em entrevista ao portal GZH:


https://gauchazh.clicrbs.com.br/cultura-e-lazer/espetaculos/noticia/2018/10/a-cultura-e-mae-da-e-
ducacao-diz-jose-celso-martinez-correa-cjnoregj7086701pilricz299.html.

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feudal tinha direito à primeira noite com a noiva de uma camponês –, status que
o eleva ao posto de supervilão. Nas palavras de Haroldo de Campos: “É este su-
pervilão quem provavelmente exercerá sobre a duvidosa virgindade de Heloísa
o jus primae noctis, o “direito de pernada”, como o exprime Abelardo, que é pois
vilão e vítima”. (ANDRADE, 1999, p. 29)

O Americano representa o imperialismo estadunidense, apresentado na


peça como dono de todas as riquezas brasileiras. É também responsável por sub-
jugar diversas nações ao seu próprio interesse, além de reforçar o servilismo da
burguesia nacional, uma vez que Aberlardo I atua como feitor do capital estran-
geiro, a quem o destino está umbilicalmente ligado. Porém, o personagem tem
consciência do seu papel, e se mostra resoluto, mesmo quando está à beira da
morte, após ser enganado por seu sócio, Abelardo II.

A burguesia nacional e a classe média em cena.

A encenação retrata a ambiguidade dos segmentos médios da sociedade


brasileira, especialmente nas últimas duas décadas, por sua relação estreita com
agremiações partidárias oriundas dos mais diferentes espectros políticos. No pe-
ríodo analisado neste trabalho - entre 2003-2016 - diversos expoentes do empre-
sariado brasileiro apoiaram a candidatura de Lula quando este foi candidato a
presidente da república no ano de 2002 pelo Partido dos Trabalhadores13.

Contudo, em 2016, a grande maioria da burguesia e da classe média bra-


sileiras apoiou de forma maciça o impeachment de Dilma Rousseff, e deram
sustentação política a seu vice, Michel Temer14. Dessa forma, um dos grandes
desafios da presente pesqusia consiste na compreensão de tais setores da socie-
dade terem embarcado em projeto político tão diverso daquele sustentado por
governos de centro-esquerda.

13 Embora o apoio deste segmento nunca tenha sido unânime foi expressivo na eleição de
2002, conforme matéria da revista Exame: https://exame.com/economia/quem-sao-e-o-que-que-
rem-os-empresarios-que-apoiam-lula-m0064120/.

14 Neste período a Federação da Indústria do Estado de São Paulo figura como grande ca-
talizadora da articulação empresarial pelo impeachment da então presidente Dilma Rousseff: ht-
tps://brasil.elpais.com/brasil/2016/03/18/politica/1458258396_570381.html.

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Uma pista importante está na fala de Abelardo I, em vídeo disponibilizado


no canal do Teatro Oficina na plataforma digital YouTube, a seguir transcrita:

Você sabe... há um momento em que a burguesia abandona a sua velha másca-


ra liberal, e se declara cansada de carregar sobre os ombros, os ideais de justiça
da humanidade, as conquistas da civilização e outras besteiras! E se organiza
como classe. Policialmente! Esse momento já soou no mundo e implanta-se
pouco a pouco nos países onde o proletariado é acovardado e dividido. (Teatro
Oficina Uzyna Uzona TV Uzina, 2017)15

Desnudando o (falso) moralismo da Extrema Direita.

Outra temática explorada pelo Teatro Oficina é a moralidade. O compor-


tamento imoral dos personagens em O Rei da Vela - com falas de duplo senti-
do e emprego de palavrões - tem o intuito de provocar setores conservadores
e reacionários. Tais segmentos se destacam por serem historicamente contra a
liberdade sexual, a exemplo de diversas lideranças protestantes, que nas últimas
décadas tem exercido influência midiática e política, com extensa representação
no Congresso Nacional.

É de suma importância analisar algumas das principais figuras envolvidas


na guinada reacionária adotada no país ao longo dos últimos anos. Para além
do grande empresariado, merece destaque a forte presença das entidades reli-
giosas neopentecostais na base de sustentação do governo federal16. Avaliar os
termos desta fidelidade é um dos eixos centrais da presente pesquisa, tendo em
vista que o projeto político em vigor teve forte adesão neste seguimento, confor-
me sintetiza Samuel Valério:

Conservadorismo social e religioso foi apontado como um fator legitimador


do Bolsonaro que encontrou eco nas pautas de pentecostais e católicos, como o
combate à corrupção, ao aborto e as reivindicações dos LGBTs, dando-lhe apoio

15 https://www.youtube.com/watch?v=46W-CViWzuA&t=104s

16 O apoio dos evangélicos, embora tenha oscilado negativamente nos últimos meses, per-
manece forte, mesmo diante da recente queda de popularidade experimentada pelo governo fe-
deral, como aponta reportagem no site da Revista Exame. Disponível em: https://exame.com/brasil/
exame-ideia-bolsonaro-perde-apoio-entre-evangelicos-sua-base-mais-fiel/.Acesso em: 15 de julho
de 2021.

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pessoal e institucional, algo sem precedentes na história eleitoral brasileira, pelo


menos nas proporções das últimas eleições presidenciais. (VALÉRIO, 2020, p. 116)

O Rei da Vela possibilita discussão aprofundada sobre o papel das igrejas


evangélicas no cenário brasileiro, algo ainda incipiente na historiografia brasi-
leira, e que, evidentemente não pode ser generalizado. Contudo, precisamos
analisar o apoio maciço da grande maioria das igrejas evangélicas a figuras re-
acionárias, ainda profundo, mesmo após uma política desastrosa no combate a
pandemia do novo coronavírus.

Alianças político partidárias no Plano Federal

No campo político há crítica contundente aos partidos de orientação libe-


ral, como o Partido da Social Democracia Brasileira, inclusive com referência ao
candidato a presidente por tal agremiação no ano de 2014 - chamado de “Aécio
Never” na encenação de 2017. Zé Celso e demais atores do Teatro Oficina des-
tacam a postura contraditória de nossa burguesia, especialmente pelo apoio a
governos de tendência autoritária.

Contudo, este mesmo segmento é também responsável por construir alian-


ça com partidos progressistas, amplamente apoiadas pelos governos de centro-
-esquerda nas últimas décadas, e explorado tematicamente na encenação de O
Rei da Vela. Analisar tais questões contribuirá para a compreensão de rupturas
e permanências por parte do segmento burguês e da classe média brasileiras.

No campo progressista é operada avaliação negativa a setores de esquer-


da, personificada na figura de Abelardo II, cuja autoafirmação provocativa de
que seria o primeiro socialista do teatro brasileiro questiona postura contraditó-
ria presente no referido campo. A formação de coalizões fisiológicas resulta em
descrédito para parcela expressiva do eleitorado, o qual termina por equiparar
forças políticas antagônicas.

Dentre inúmeros exemplos pode-se apontar a política de alianças dos go-


vernos de centro-esquerda no Brasil entre os anos de 2003 a 2016, compostos por

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uma base heterogênea, formada por partidos de centro-esquerda - a exemplo


do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) - e agremiações do centro-liberal, como
o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), que ocupou a vice-presidência da
república. Tal fisiologismo restou escancarado no processo de impeachment da
presidente Dilma Rousseff, quando a grande maioria do MDB votou a favor do
seu afastamento17.

Imagem 1: Posse da presidente Dilma Rousseff e do vice-presidente Michel Temer. Acervo: Grupo Uol.

Estrutura da encenação de O Rei da Vela

Estes temas são explorados por meio de encenação dividida em quatro atos.
Os três primeiros atos seguem a estruturação de Oswald de Andrade, quando da
publicação da obra, em 1937. O 1º ato se passa no escritório de usura de Abelardo
I. É encenado em estilo circense, caracterizado na vestimenta de domador utili-
zada por Abelardo II, e a presença de uma jaula, com clientes inadimplentes. Há
forte presença da técnica do distanciamento, conforme estruturada por Brecht,
a exemplo da cena em que Abelardo I, após enforcar um cliente mau pagador, se
dirige à platéia e diz que aquela cena é o suficente para identificá-lo.

17 A bancada do partido, à época com 66 deputados, teve 59 votos favoráveis e apenas sete
contra, conforme levantamento da EBC: https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2016-04/
impeachment-de-dilma-saiba-como-votou-cada-um-dos-partidos-na-camara

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Imagem 2: Encenação do primeiro ato de O Rei da Vela pelo Teatro Oficina (2017). Acervo: Veja SP.

No 2º ato, a burguesia está em momento de lazer e liberdade sexual no


Rio de Janeiro. Zé Celso emprega o teatro de revista ao estilo chanchada, com
o objetivo de retratar as entranhas da política nacional, especialmente o falso
moralismo. O cenário e Aberlardo I estão caracterizados com as cores verde e
amarelo, em referência ao ufanismo do segmento burguês, tão em voga em ma-
nifestações dos segmentos médios e empresariais brasileiros nos últimos anos.

Por sua vez, no 3º ato Aberlardo I é enganado por Abelardo II, que fica com
toda fortuna de seu antigo sócio. Diante de tamanha humilhação Abelardo I co-
mete suicídio. O ponto central é mostrar como morre um burguês, e sua substi-
tuição por outro da mesma classe, no papel de perpetuar a submissão ao capital
estrangeiro, uma vez que o personagem O Americano permanece tendo o direi-
to de pernada sobre Heloísa.

O 4º ato é um manifesto pelo Parque do Bixiga, na cidade de São Paulo,


onde está localizada a sede do Teatro Oficina, cujo terreno ao lado da Compa-
nhia é alvo de disputa entre o diretor Zé Celso e o empresário e apresentador
de TV Silvio Santos, proprietário do imóvel. O comunicador deseja implementar
empreendimentos imobiliários, ao passo que o diretor e moradores do bairro
desejam a desapropriação do espaço para a criação de uma parque público18. No
18 Há mais de quarenta anos José Celso Martinez Correa encabeça luta pelo tombamento de
todo o terreno onde está situado o Teatro Oficina. Na década de 1980 o terreno foi adquirido pelo
Grupo Silvio Santos, mas após grande mobilização a sede do teatro foi tombada pelo Conselho de

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manifesto:

Imagem 3: Cena do 4 ato. Acervo: Maria Carolina Maia.

A encenação de O Rei da Vela no ano de 2017 visa, além de discutir a crise


político-institucional vivenciada pelo país, celebrar os 50 anos da sua primeira
apresentação, também realizada pelo Teatro Oficina, em 1967. Sua estreia naque-
le ano foi considerada sucesso de público e crítica, sendo responsável por elevar o
grupo ao patamar de uma das melhores e mais inovadoras companhias teatrais
do país. A escolha pela obra de Oswald de Andrade demarcou a consolidação de
um estilo peculiar, referência de rebeldia, sob a liderança do diretor Zé Celso.

Por sua vez, a partir da encenação de O Rei da Vela no ano de 2017, empre-
gada na presente pesquisa como fonte histórica, vamos investigar por meio de
seus elementos temáticos e estéticos a postura da burguesia brasileira, confor-
me levantado nos tópicos anteriores. Compreender a relação da elite com o go-
verno federal, o papel desempenhado pelos segmentos médios da sociedade e
o política de alianças operada pelo centro-esquerda é fundamental para superar
reptições autoritárias na história brasileira recente.

Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico - Condephaat - órgão estadual.


Em 2010 também foi tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN.
Atualmente o Teatro Oficina almeja garantir a desapropriação do terreno para a construção de um
parque público, enquanto o Grupo Silvio Santos deseja construir duas torres residenciais.

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A CANETA COMO FLECHA E OS DEDOS COMO GRITO:


AUTOREPRESENTAÇÃO ÉTNICA NA LITERATURA
INDÍGENA CONTEMPORÂNEA NO BRASIL.

Ludimila Stival Cardoso1


Sélvia Carneiro de Lima2

Chega de matar minhas cantigas e calar minha voz.


Não se seca a raiz de quem tem sementes
Espalhadas pela terra pra brotar.

Eliane Potiguara3

1. Elementos Introdutórios.

Desde o período inicial de contato entre povos nativos e europeus nas Amé-
ricas produziu-se um encontro conflituoso. Por parte dos europeus ocorreram
reiteradas tentativas de silenciamentos e diversas outras violências, desenvolvi-
das em contexto de colonialidade. Já os nativos se propuseram como uma reali-
dade correlata, processos de resistência decolonial.

Nessa perspectiva ao tratarmos de temáticas relacionadas às relações que


se estabeleceram entre indígenas e europeus incorporamos ao debate tanto a

1 Doutora em História pela UFG. Professora do Centro Universitário de Goiás e componente


do grupo de pesquisa “História indígena e História ambiental: interculturalidade crítica e decolo-
nialidade”, coordenado pelo professor Dr. Elias Nazareno. E-mail: luluscmo.lsc@gmail.com.

2 Doutora e mestre em Geografia pela UFG, professora do Instituto Federal de Goiás - Inhu-
mas) e componente do grupo de pesquisa “História indígena e História ambiental: interculturalida-
de crítica e decolonialidade”, coordenado pelo professor Dr. Elias Nazareno. E-mail: selvialima685@
gmail.com.

3 Extraído do poema Oração pela libertação dos povos indígenas. Disponível em: https://
www.xapuri.info/sagrado-indigena/oracao-pela-libertacao-dos-povos-indigenas/ Acesso em: 30 de
abr. de 2021.

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potência de responder questões para o mundo quanto a visibilização de situa-


ções vergonhosas do modo com que o Estado-nação brasileiro e os demais que
compõem Abya Ayla4 foram construídos sobre os territórios dos Outros.

Tratamos, portanto, da maneira como o sistema de extermínio, denomina-


do por Maldonado-Torres (2008, p. 5) de “paradigma de guerra”. Walsh (2017, p.
20), com base no autor, denomina-o de sistema “guerra-muerte”, o qual tem im-
petrado diversas formas de violência, desde o início da invasão europeia, nesse
lado de cá do Atlântico, contra os povos originários, seus territórios, saberes, lín-
guas e cultura.

O extermínio dos grupos indígenas, tem representado, entre outras possibi-


lidades, a queima de corpos-bibliotecas-milenares. Portadores de conhecimen-
tos e saberes diversos, que abrangem (fazendo uma contextualização com os
conhecimentos disciplinares da Ciência moderna) os campos da ecologia, bio-
logia, geografia, história, política, economia, saúde, enfim, do manejo e uso dos
solos, hidrografia, fauna e flora, e, sinteticamente, do bem-estar coletivo, no que
tange as mais diversas formas de segurança necessárias para a reprodução da
vida, como a alimentar, a cultural e a física.

Os indígenas que viveram e nasceram sob essa nova realidade da domina-


ção europeia, tanto de seus territórios quanto de seus corpos e de suas línguas,
empreenderam resiliência tal, revelada nas mais variadas formas de resistências
aos mais de 500 anos de domínio e constituição de um Estado-nação sobre or-
ganizações que já existiam nesse lado de cá.

Dinâmica que no caso do uso das línguas poderíamos chamar de coloniza-


ção linguística, iniciada ainda com a chegada da Companhia de Jesus e a intro-
dução de trabalho de catequese dos jesuítas, sobretudo a partir de 1549, quando
introduziram sua metodologia pedagógica e a proposta de um bilinguismo de

4 Abya Yala tem sido utilizada pelos povos originários como um contraponto à denomina-
ção América dada pelo colonizador para esse continente. Utilizaremos no texto essa designação
como um ato político de visibilizar esse topônimo e a referência cultural a que ele se refere. Na
língua do povo Kuna, essa terminologia tem o significado de Terra madura, Terra Viva ou Terra em
florescimento. Ele foi utilizado pela primeira vez no início do século XVI e consagrado no final do
século XVIII e início do século XIX, pelas elites crioulas, no sentido de afirmação no processo de
independência. Fonte: https://iela.ufsc.br/povos-origin%C3%A1rios/abya-yala . Acesso em: 01 de out.
de 2020.

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transição, que, na prática, significava a apropriação das línguas indígenas, a tra-


dução da Bíblia para as mesmas e o posterior abandono destas em nome do
uso do português. Como parte dessa realidade, temos como exemplo, em 1755, o
Diretório dos Índios, legislação instituída pelo Marquês de Pombal, primeiro-mi-
nistro português à época.

Segundo esse documento, ficava estabelecida a proibição do uso de qual-


quer língua a exceção do português na colônia lusitana das Américas. Como
resultado teríamos, o que Boaventura de Sousa Santos (2010) chamou de epis-
temicídio, já que, como defende Frantz Fanon (2008), carregar uma língua sig-
nifica deter conhecimentos, saberes, realidades ontológicas e cosmológicas que
somente podem ser acessadas e compreendidas com o uso de determinadas
línguas.

O epistemicídio e o linguicídio desenvolvidos desde esses primeiros conta-


tos apresenta como um capítulo a parte, que vale mencionar na discussão em
voga, o caso da literatura indianista da primeira fase do romantismo, em autores
como Jose de Alencar e Gonçalves Dias. No contexto da segunda metade do
século XIX, portanto, o indígena é apresentado, explica Silva (2012), como um ser
cavalheiresco, heroico e símbolo da nacionalidade. Mas essa incorporação ocor-
reu de forma subalternizada, em que o nativo entrou como “fronteira viva”, de-
fendendo terras “nacionais” que não os pertenciam e tutelado pelo Estado.

Assim a literatura indianista serve de instrumento até os anos 1930 (ROCHA,


2003) à necessidade de construção de um mito original que garantisse a exis-
tência da Nação. Por isso, para Silva (2012), o indianismo seria uma variação “de
um processo civilizador mais amplo de subordinação e potencial aniquilação da
diversidade indígena do continente” (p. 18). Cabe, contudo, uma ressalva, embora
seja:

[u]ma postura que obedece à lógica de colonialidade do poder, que provocaria


a destruição da autenticidade em nome do estereótipo de “índio” vindo da co-
lônia [...] não consegue apagar as identidades indígenas que continuam existin-
do (CARDOSO, 2015, p. 127).

As identidades indígenas não apenas continuam existindo, mas como de-

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fendemos, elaboram processos de resistência decolonial, que tem na apropria-


ção do português, língua do dominador, uma de suas possibilidades.

2. Literatura indígena como resistência decolonial.

As violências perpetradas pela colonialidade frente aos povos nativos, pro-


duziram como seu complemento propostas de resistência decolonial. Uma re-
ação que nasce da interioridade desse sistema que nasce moderno e colonial
(MIGNOLO, 2005). Para Mignolo (2005) e Quijano (2005) se configura nesse pro-
cesso práticas de resistência que funcionam desde o interior das violências, não
havendo mais exterioridades, mas um exterior que é interior.

Por isso, para Mignolo (2005), o imaginário desse sistema-mundo moderno


e colonial constrói-se desde seu próprio “interior”, o que significa dizer que mes-
mo ao falarmos e considerarmos a exterioridade, esta se reelabora em um “fora”,
mas que passa a configurar o imaginário ocidental, em uma situação de exterior
visto desde o interior da diferença.

Um processo que, ao estabelecer o vazio da diversidade, dificulta, segundo


Cusicanqui (2015), o entendimento intercultural, já que poderia levar à perspec-
tiva da “mesmidade”, reafirmada pela condição colonial não-humana desse Ou-
tro. Nessa clave, ele acaba sendo apagado ou levado à não-contemporaneidade
– relegado ao passado – assimilado a essa lógica linear capitalista, que integra a
todos em algo similar a uma mescla ou mestiçagem em que não mais se reco-
nhecem as singularidades.

Exemplares, nesse sentido, são os saberes, os conhecimentos milenares,


dos povos nativos de Pindorama, que foram “esculpidos” pela historiografia eu-
rocêntrica e divulgados nos materiais impressos distribuídos nas escolas. Veja-
-se o exemplo das imagens dos indígenas que são veiculadas na maior parte
dos livros didáticos: povos sem história e adjetivados como culturas inferiores, ao
serem denominados como primitivos, atrasados, inibidores do “progresso” e da
modernização da nação. E ainda a imagem que os vincula ao passado, conotan-
do a ideia de atraso e a exotização de seus corpos.

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Essas realidades, no entanto, suscitam diversas formas de (re)existir dos


“de baixo”, utilizando expressão de pesquisadores vinculados a posturas decolo-
nias, como Catherine Walsh (2007, 2008), Arturo Escobar (2005), Walter Mignolo
(2008, 2011), Aníbal Quijano (2005, 2010). Esses “de baixo” criam estratégias de re-
sistências movendo-se por meio de táticas anticoloniais, e, desse modo, fazendo
fissuras (WALSH, 2007) nos “muros” gerados pela Europa e pelo movimento do
capital por meio das grandes instituições corporativas e financeiras, e com gran-
de destaque do agronegócio para converter tudo e todos na categoria recurso.

Fissuras que são abertas nas marcas coloniais de dominação e no avan-


ço do capitalismo global por esses sujeitos, que subvertem os conhecimentos
trazidos pelo dominador. Essa subversão traduz-se, para Walsh (2007), em um
“posicionamento crítico fronteiriço” ou pensamento de fronteira que, segundo
Mignolo (2011), seria imprescindível a mudanças significativas desse pensamen-
to linear global, caminhando a uma epistemologia “que saia dos lugares e corpos
deixados fora da linha, uma linha abissal que não permite a coexistência do Ou-
tro, negando-lhe a contemporaneidade” (STIVAL, 2015, p. 58).

Mas aqui cabe uma ressalva: esse pensamento fronteiriço pode ser cons-
truído a partir das próprias interioridades da dominação, a partir da apropria-
ção e distorção dos saberes indígenas e afrodescendentes. Por isso, é necessário,
como defende Mignolo (2011), efetivar essas epistemologias, sob o risco de que,
ao subverter os conhecimentos do dominador a partir de sua própria linguagem,
produzirmos um discurso aculturado que reforce a não-humanidade do Outro
ao invés de questioná-la.

Por isso, ao tratarmos da apropriação do português pelo indígena brasileiro,


não nos atemos à continuidade contemporânea da colonização linguística ou à
proibição do uso de suas línguas nativas. Ao contrário, a palavra e a escrita apa-
recem como movimentos de resistência mais contemporâneos, como lócus de
autoafirmação étnica, de denúncia de espoliações, de divulgações de culturas,
narrativas, canções.

Configura-se, pois, uma situação de disputa epistêmica e prática que rea-

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firma a materialidade desses povos. Esse “mundo do meio” (CUSICANQUI, 2015)


revela sua potencialidade de resistência decolonial e desobediência epistêmica.
Elementos que tornam possível a esses povos também re-existir, ainda que na
interioridade da própria estrutura capitalista colonial.

Cabe, pois, uma pergunta já realizada em outros textos: é possível re-existir


utilizando a linguagem colonial? Em outras palavras: a potencialidade de re-exis-
tir pode ser visualizada, ainda que de forma limitada, na apropriação que grupos
indígenas brasileiros possam fazer da língua portuguesa para disseminação de
seus saberes, escritos e literaturas? Ou seja: a escrita indígena produzida a partir
do português pode ser um instrumento de luta política na criação de espaços de
divulgação de suas culturas e de suas visões de mundo, em uma clara postura de
desobediência e resistência epistêmica?

Para responder a essa pergunta trazemos os escritores indígenas, entre


eles Daniel Munduruku que assim entende a escritura de autoria indígenas, ain-
da que produzida na língua do dominador:

Nossa literatura está intrinsecamente ligada à nossa compreensão cosmoló-


gica. Ela não é redutível a conceitos ou definições capazes de fazer descrições
sobre possibilidades de se encaixar aqui ou ali. Ela é um modo de se posicionar
em um mundo em constante mutação. (MUNDURUKU, 2012, p. 11)

Isso revelaria um repertório de significativas textualidades e processos que


registrem vivências, universos míticos, transmissão de saberes e representação
de materialidades que compõem as culturalidades expressas e passadas há ge-
rações pela oralidade. Contudo, cabe relembrar como tratado no início desse
texto, que ainda que contemporaneamente os indígenas tenham reivindicado
espaços de fala e disputas desde a exterioridade de suas cosmologias, houve
um processo de inferiorização dos conhecimentos e formas de vida outras que a
não-europeia.

Os conhecimentos europeus foram hierarquizados como universais e legí-


timos, e os demais conhecimentos foram classificados como fábulas, mitos, len-
das, fadados a ilustrarem alguns poucos livros de literatura infantil, ou discutidos
como folclore popular.

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Este modelo de pensamento, que legitimou estratégias de dominação, foi


dando à Abya Ayla um legado de genocídios, etnocídios, linguicídios e episte-
micídios como nunca houve antes desse momento histórico. Foi na margem de
cá, portanto, que se inaugurou a trama de articular e subjugar todo o globo à
Europa. Deu-se, portanto, o “mau encontro” (BOÉTIE, 2017), e com ele um
novo idioma, crenças e interesses desceram na orla. Vieram palavras, objetos e
interesses antagônicos aos modos de organização social, territorial e cultural es-
tabelecidos aqui até aquele momento.

Na supremacia da dominação que culminou com a subordinação de cor-


pos, territórios e riquezas, o universo linguístico foi capturado com esses corpos
de onde se originavam. O corpo apropriado como território, onde se exerceu di-
versas formas de poder, legitimadas por vários níveis de violência, dentre elas, a
epistêmica.

Essa forma de violência – epistêmica – ocorreu pelo combate à diversida-


de das línguas indígenas e, ao mesmo tempo, pela obrigatoriedade de uso da
língua portuguesa. Os povos encontrados foram, portanto, subjugados assim
como suas línguas e os elementos que os constituem. Uma língua estranha foi
adotada, tornando-se quase majoritária sobre a diversidade linguística existente.
Prevaleceu a lógica da uniformidade.

Essa fala estranha, essa nova língua que desembarcou na costa, trouxe con-
sigo um modelo civilizacional. Assumi-la implicava, também engolir (mesmo a
seco) a cultura que lhe é siamesa. Nas palavras de Fanon (2008, p.33): “Falar é
estar em condições de empregar uma certa sintaxe, possuir a morfologia de tal
ou qual língua, mas é sobretudo assumir uma cultura, suportar o peso de uma
civilização”.

A língua como fator de dominação foi muito importante na disputa entre


terras pelas Coroas espanhola e portuguesa. Um dos requisitos para legitimar de
qual domínio seria o território em disputa foi o uso da língua, fator marcante que
determinou a proibição das línguas indígenas e subsequente coerção de seu
uso. A língua marcava domínio. A palavra do dominador estabelecia a extensão

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do controle territorial. Portanto, língua e domínio; palavra e controle.

A língua, além de delimitar um território político e simbólico, poderia tam-


bém ser utilizada na possibilidade de articulação contra o opressor. Era, nesse
sentido, um poder que “necessitava”, pela ótica da dominação europeia, de cas-
tramento. Anos de silenciamentos foram impostos aos indígenas como estraté-
gia de dominação.

A dominação e o “castramento” compõem uma dinâmica de disputa, de


enfrentamento e re-existência. A linguagem é um espaço de controle, domínio
e de luta. A prática do silenciamento e da aparente aceitação da mordaça. É o
silêncio da murta (CASTRO, 2002), em que os indígenas parecem, aceitar o domí-
nio, integram-se à sociedade capitalista colonial, mas constroem em sua interio-
ridade a resistência decolonial.

Assim, aparentemente os indígenas se integram a essa sociedade, assimi-


lam o português, são catequisados e/ou civilizados, mas utilizam a linguagem
como ferramenta de luta e continuidade das culturas e os silêncios historica-
mente construídos pelo epistemicídio e o linguicídio, pela resistência decolonial,
foram sendo questionados. Nesse sentido, explica Graúna (2013):

As bocas passaram a abrir-se sozinhas; as vozes amarelas e negras falavam ain-


da do nosso humanismo, mas para censurar a nossa desumanidade. Escutá-
vamos sem desagrado essas corteses manifestações de amargura. De início
houve um espanto orgulhoso: Quê! Eles falam por eles mesmos! Vejam só o
que fizemos deles! Não duvidávamos que aceitassem o nosso ideal porquanto
nos acusavam de não sermos fiéis a ele; por esta vez a Europa acreditou em
sua missão: havia helenizado os asiáticos e criado esta espécie nova: os negros
greco-latinos. Ajuntávamos, só para nós, astutos; deixemos que se esgoelem,
isso os alivia; cão que ladra não morde. (SARTRE, 1968, p. 4 apud FANON, 1968)

“Essas bocas” começaram a se abrir, emergindo como sujeitos que se apro-


priam dos cânones hegemônicos, como a literatura, ressignificando esses ele-
mentos em prol de suas lutas. Argumento reforçado pela indígena e escritora
Eliane Potiguara (2004), para a qual, o sentido dessa escritura é “soltar os gritos
presos na garganta”. Sentido similar confere à literatura de autoria indígena, Da-
niel Munduruku:

E foi ouvindo as histórias que meu avô contava que percebi o que os povos tra-

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dicionais podiam oferecer à cidade. […] E isso me dá um álibi para usar as narra-
tivas míticas para falar às pessoas com a mesma paixão com que o velho falava
comigo. Acho que foi assim que surgiu em mim o interesse de narrar histórias
para ajudar as pessoas a olharem para dentro de si mesmas, compreenderem
sua própria história e aceitá-la amorosamente. (MUNDURUKU, 2009, p. 14-16)

A literatura de autoria funciona, seguindo Munduruku (2009), como forma


de compreender as diversas cosmologias a partir dos sujeitos que as compõem.
Esses sujeitos, por meio das narrativas olham “para dentro de si”, tornam-se su-
jeitos estão presentes nessa realidade de conflito e disputas que representa a
construção de narrativas de sua própria história, de seus povos e das relações
que se estabelecem nos diferentes territórios indígenas.

A língua imposta pelo dominador é tomada de maneira subversiva, dei-


xando ver uma situação de conflito inerente a formações sociais fundadas no
tripé colonialidade-modernidade-racismo, apresentando uma narrativa diversa
da composta pela história eurocentrada. E, dessa forma, a literatura indígena
se configura em um ato de resistência e político, reafirmando sua importância,
como a percebe Edson Kayapó:

Daí a importância que tem a literatura indígena e dos escritores indígenas em


ação, desmontando preconceitos históricos arraigados na mentalidade nacio-
nal. Tal literatura é uma maneira de revisar a história nacional e afirmar a diver-
sidade dos nossos povos. Nós, escritores indígenas, estamos dotados de uma
missão que numa perspectiva espiritual nos autoriza a sermos porta-vozes dos
nossos antepassados. Nesse sentido, a nossa missão está muito além de rever a
opressora história oficial brasileira. Buscamos contar “outras histórias” para afir-
mar que estamos aqui, que não fomos exterminados, que a nossa população
vem aumentando significativamente e que continuaremos ressignificando o
nosso jeito de ser. (KAYAPÓ, 2012, p. 30).

Teríamos, nesse contexto, algo próximo ao que Boaventura de Sousa Santos


(2010) chama de “pensamento alternativo de alternativas”, já que a literatura de
autoria indígena não produz tão somente contra-narrativas ou contra-imagens,
mas muda os termos da conversa, foge à lógica binária e produz imagens deco-
loniais de suas culturas, nações, ritos e rituais, compondo uma escritura, pensa-
mento e imagens pós-abissais, ligadas também ao que Sílvia Cusicanqui (2015)
entende por consciência fronteiriça a partir da utopia chixi, ou seja um “mundo
do meio”, uma zona de contato que nos possibilitaria viver concomitantemente

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dentro e fora da estrutura hegemônica.

“Esse mundo do meio”, como já argumentado, foge a uma negociação mul-


ticultural, porquanto, explica Cusicanqui (2015), significaria uma situação de re-
construção e reelaboração encampadas pelos próprios seres historicamente su-
balternizados, compondo a partir do encontro com suas diferentes cosmologias
um “mundo que ainda não existe”, mas que parte da exterioridade interna e da
noção de incompletude e complementariedade de todas as epistemologias.

3. Considerações Finais.

Esse texto apresentou a perspectiva de algumas pesquisas realizadas no


âmbito de teses de doutoramento, bem como é fruto de outros artigos cientí-
ficos e não visa esgotar o assunto, mas levantar e problematizar caminhos ado-
tados pelos povos indígenas brasileiros como alternativas de re-existência, de
composição de um “mundo do meio”, em que seja possível a partir do encon-
tro dessas literaturas e imagens decoloniais elaboradas, atuar como dizia Fanon
(2008, p. 34): “Todo povo colonizado — isto é, todo povo no seio do qual nasceu
um complexo de inferioridade devido ao sepultamento de sua originalidade cul-
tural — toma posição diante da linguagem da nação civilizadora, (...)”.

A argumentação desenvolvida ao longo desse texto parte do pressuposto


de que se elaboraram diferentes caminhos e posições “diante da linguagem ci-
vilizadora” e entre os caminhos e resistências possíveis entendemos que do lado
de cá da linha abissal tem-se realizado a tentativa de subversão do verbo (LIMA,
2016) e a insurgência contra seu poder dominador. Reconhecemos, contudo, que
esta é apenas uma possibilidade entre outras, já todas as cosmologias e realida-
des são incompletas, imperfeitas e, ao mesmo tempo, complementares.

Isso porque o indígena, ao usar a língua do colonizador, não corrobora com


uma estrutura que o domina, mas reutiliza essa língua, apropria-se de sua lógica,
de seus valores e princípios para questioná-los. Nesse sentido, a literatura indí-
gena vive a condição de exterioridade pelo interior da diferença. Assim, a língua
que o dominou é usada por ele para visibilizar a si mesmo e a violência empre-

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endida. Elementos que se tornam presentes em diferentes produções literárias


indígenas, como o livro “A queda do céu”, de Davi Kopenawa e Bruce Albert.

Em um dos trechos dessa obra, quando Davi Kopenawa vai à cidade de


Nova York, se depara com a realidade humana dessa cidade, nos apresenta uma
descrição da vida urbana capitalista que é, na verdade, um questionamento e a
apresentação de suas contradições. Dizem os autores (2015):

Lá as pessoas trabalham em estado de fantasma e não param de engolir os


ventos das fumaças das fábricas e das máquinas. Elas entram no nariz, na boca
e nos olhos; colam nos cabelos de todos. Assim seu peito fica enegrecido. Por
isso os brancos ficam doentes com tanta frequência, apesar de todos os seus
remédios. Mesmo que os remédios abram seu peito, barriga e olhos, nada re-
solve. O esperma dos pais cuja carne está impregnada dessa fumaça de epide-
mia adoece e, por isso, seus filhos nascem com defeitos. É a fumaça do metal
que causa tudo isso. Na cidade nunca é possível ouvir com clareza as palavras
que nos são dirigidas. As pessoas precisam ficar coladas uma na outra para
poderem se ouvir. O zumbido das máquinas e dos motores atrapalha todos os
outros sons; a algazarra das rádios e televisões confunde todas as outras vozes.
É por causa de toda essa barulheira na qual eles se apresentam durante o dia
que os brancos estão sempre preocupados. Seu coração bate depressa demais,
seu pensamento fica emaranhado de tonturas e seus olhos estão sempre em
alerta. Acho que esse ruido contínuo impede seus pensamentos de se juntarem
um ao outro. Acabam lá parados, espalhados a seus pés, e é assim que se fica
bobo (p. 436 – 437).

A composição dessa imagem degradante do homem branco apresentada


por meio da descrição da viagem de Davi Kopenawa a Nova York perpassa todo
capítulo vinte dessa obra. Em outro trecho ele se diz assustado em perceber que
os chamados “pobres” são rejeitados pelos demais, mas não apenas rejeitados,
segundo ele, os “brancos” devem pensar acerca dessa população: “Moram em
nossa terra, mas são outra gente. Que vivam longe de nós, catando sua comida
no chão, como cães! Nós, enquanto isso, vamos aumentar nossos bens e nossas
armas, sozinhos!” (p. 431).

Essas descrições, assim como pensam Daniel Munduruku e Eliane Potigua-


ra entre outros autores indígenas, apresentam um uso da palavra e da escrita
como ferramenta de questionamento, denúncia e resistência. E a palavra escrita
embora secundária na cosmologia indígena se coloca como meio de luta políti-
ca, disputa e confronto de mundos possíveis.

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Um confronto que ocorre porque se reconhece que esse encontro de mun-


dos parte do pressuposto que ambos são incompletos e, por isso, complemen-
tares, como nos evidenciam as literaturas de autoria indígena. Complementari-
dade que se traduz também na co-presença da colonialidade representada pela
língua do dominador, mas reapropriada pelos sujeitos indígenas que foram his-
toricamente subalternizados, já que como diz Eliane Potiguara na epígrafe desse
texto “Não se seca a raiz de quem tem sementes [...] [e]spalhadas pela terra pra
brotar”. Assim, colonialidade e resistência e/ou re-existência decolonial são par-
tes complementares de uma mesma dinâmica de luta vivida pelos povos indíge-
nas brasileiros.

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ISSN 2447 -6676

IMAGENS DE DIÁLOGOS INTERCULTURAIS


PRESENTES NA UFG E UFT

Maria Imaculada Correia de Miranda1

Considerações iniciais.

Este artigo resulta de estudos relativos à pesquisa de doutorado em an-


damento nomeada “Confrontos entre autonomia e expansão universitária: uma
perspectiva comparativa dos debates sobre o Reuni no Centro-Oeste (UFG, UFT
e UFMT – 2006-2013)”, orientada pela Prof.ª Dra. Heloísa Selma Fernandes Capel,
vinculada ao Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal
de Goiás. Embora a pesquisa proponha um estudo comparado entre a UFG, UFT
e UFMT, neste texto utilizaremos somente imagens do acervo da UFG e UFT. De
acordo com descrição institucional2:

A UFG é uma instituição de ensino, pesquisa e extensão, que objetiva produ-


zir, sistematizar e socializar conhecimentos e saberes, formando profissionais e
cidadãos comprometidos com a transformação e o desenvolvimento da socie-
dade. Ao longo dos seus 59 anos de história, a UFG diversificou e ampliou sua
atuação e hoje possui 102 cursos de graduação presenciais e 22 mil estudantes,
distribuídos em duas regionais, Goiás e Goiânia. Na capital, a UFG conta com
o Campus Aparecida de Goiânia, o Campus Colemar Natal e Silva (Praça Uni-
versitária) e o Campus Samambaia. Na Regional Goiás, a UFG oferece 7 cursos
divididos em duas Unidades Acadêmicas Especiais. Além da graduação, a UFG
oferece 78 cursos de pós-graduação stricto sensu entre mestrados, doutorados
e mestrados profissionais, com mais de 4.200 alunos. (UFG, 2022).

Por sua vez, a UFT foi instituída em 23 de outubro de 2000 pela Lei n° 10.032

1 Discente do PPGH/UFG (Doutorado), orientada pela Prof.ª Heloísa Selma Fernandes Capel,
pesquisa: “Confrontos entre autonomia e expansão universitária: uma perspectiva comparativa
dos debates sobre o Reuni no Centro-Oeste (UFG, UFT e UFMT – 2006-2013)”. E-mail: imaculada@
ufg.br

2 Disponível em: <https://www.ufg.br/p/26910-apresentacao-ufg>. Acesso em 31 maio 2022.

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a partir da transferência dos cursos e da infraestrutura da Universidade do To-


cantins (Unitins), mantida pelo Estado do Tocantins. O processo de criação e im-
plantação da UFT significou um marco para o povo tocantinense, especialmente
porque a instituição cresceu consideravelmente, tendo passado de cerca de 8
mil alunos e 25 cursos de graduação, em 2003, para mais de 20 mil alunos, em
57 cursos de graduação e 30 programas de pós-graduação nos seus primeiros 13
anos de existência3.

Assim, inicialmente, o artigo pretende discorrer sobre concepções gerais do


Reuni para, em seguida, a partir de imagens que compõem o acervo do Reuni
na UFG e UFT, refletir sobre interculturalidade e diálogos interculturais presentes
nestas instituições, bem como sobre a contribuição das imagens nesta narrativa
institucional.

Programa Reuni: concepções gerais.

É notório que o crescimento expressivo ocorrido nos últimos anos, tanto


na UFG quanto a UFT, tem relação com a adesão dessas instituições ao Progra-
ma Reuni. O Reuni foi instituído pelo Decreto nº 6.096, de 24 de abril de 2007,
como parte das ações que integraram o Plano de Desenvolvimento da Educação
(PDE)4 , uma das ações do PAC. Seu objetivo principal foi o de ampliar o acesso
e a permanência na educação superior por meio de uma série de medidas para
retomar o crescimento da educação superior pública, criando condições para
que as IFES promovessem a expansão física, acadêmica e pedagógica da rede
federal de educação superior (BRASIL, 2007).

O Reuni foi elaborado centrado em dois eixos: o da expansão, expresso em


metas quantitativas, e o da reestruturação, metas qualitativas, e apresentava

3 Fonte: < https://ww2.uft.edu.br/index.php/acessoainformacao/institucional/historia>. Aces-


so em 31 maio 2022.

4 O Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE) foi lançado em 24 de abril de 2007, du-


rante o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), na gestão do então ministro da Edu-
cação Fernando Haddad (PT). Disponível em: <https://www.todospelaeducacao.org.br/conteudo/
saiba-o-que-e-e-como-funciona-o-plano-de-desenvolvimento-da-educacao/>. Acesso em 31 maio
2022.

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duas metas globais, a saber: elevar para 90% a taxa de conclusão média dos cur-
sos de graduação presenciais e para 18/1 a relação de alunos de graduação em
cursos presenciais por professor, ao final de cinco anos, a contar do início de cada
plano (Brasil, 2007, Art. 1°, § 1º). As seis dimensões do Reuni contemplavam aspec-
tos específicos do Programa, a saber: 1) Ampliação da Oferta de Educação Supe-
rior Pública, 2) Reestruturação Acadêmico-Curricular, 3) Renovação Pedagógica
da Educação Superior, 4) Mobilidade Intra e Inter-Institucional, 5) Compromisso
Social da Instituição e 6) Suporte da pós-graduação ao desenvolvimento e aper-
feiçoamento qualitativo dos cursos de graduação. (BRASIL, 2007).

O processo de adesão e implementação do Programa Reuni nas universi-


dades federais brasileiras foi permeado por um intenso momento de debates
nestas instituições, sendo marcado principalmente pelas vozes contrárias ao que
estava sendo proposto pelo Governo Federal. Assim, palavras como resistência,
emancipação, autonomia, democracia, rupturas, inclusão, acesso, novas episte-
mologias, renovação curricular e pedagógica e afins, marcaram as vozes das co-
munidades acadêmicas das universidades federais que se manifestaram quan-
do se discutiu sobre a adesão ao Reuni nestas instituições.

Os termos ora destacados encontram eco nas dimensões do Reuni que


davam forma ao eixo qualitativo do Programa, especialmente na terceira e quin-
ta dimensão, que tratam da Renovação Pedagógica da Educação Superior e do
Compromisso Social da Instituição, tendo em vista que percebemos que em am-
bas a ideia de transformação dos espaços de construção do saber (inclusive o
saber universitário), tem sido chamada a ser revisitada e reelaborada, posto que
aparentemente não é mais possível avançar ignorando a pluralidade de povos e
ideias existentes na humanidade, bem como os múltiplos mundos por nós ha-
bitados.

As dimensões do Reuni, uma vez voltadas para o eixo qualitativo do progra-


ma (reestruturação), propuseram ações que tinham por intuito promover mu-
danças estruturais em diferentes áreas das universidades federais. Embora sob
uma perspectiva geral haja a percepção de que o eixo da expansão (quantitativo)
proposto pelo Reuni foi melhor desenvolvido do que o da reestruturação (quali-

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tativo), algumas dimensões qualitativas do Programa também foram alcançadas


em medida satisfatória (ainda que distante do ideal proposto). Dessa maneira, as
mudanças originadas a partir do processo de expansão universitária via Reuni,
ainda que tênues, possibilitaram a promoção de ações voltadas para intercul-
turalidade nas universidades federais e, consequentemente, colaboraram para
ampliar os diálogos interculturais nos espaços universitários públicos.

Reformas educacionais e interculturalidade.

Políticas educacionais são resultados de decisões tomadas pelo Poder Pú-


blico em relação à educação, isto é, pelo Estado, sendo que a descontinuidade
dessas políticas tem sido a tônica do Estado Brasileiro, que apesar de garantir o
direito à Educação via constituição, por outro lado, materializa suas políticas por
meio de debates reduzidos e direcionados, tradicionalmente marcados pela es-
cassez dos recursos financeiros destinados à educação.

Por sua vez, a legislação educacional é o instrumento técnico da política


educacional, que garante a homogeneização ideológica na educação e a cen-
tralização administrativa. No caso do Brasil essas políticas têm se materializado
por meio de uma sequência interminável de reformas, que tempos após inicia-
das necessitam de outra intervenção política, outras legislações e, consequen-
temente, outro recomeço e uma nova esperança de solucionar problemas que
tem se perpetuado historicamente.

Desse modo, pensar as reformas educacionais e as suas propostas, inclusi-


ve no que se refere às inovações curriculares e práticas pedagógicas resultante
delas, tem sido um dos inúmeros desafios não alcançados ou não superados, na
medida em que tais reformas foram norteadas por sucessos parciais, ameaçadas
por fracassos iminentes. O Reuni5, embora não tenha sido pensado como uma
reforma universitária em sua concepção, não poderia fugir desse cenário.

A inovação das matrizes curriculares e das práticas pedagógicas do ensino

5 Na historiografia vigente o Reuni figura como mais uma reforma universitária no rol das
outras tantas.

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superior público era parte das metas do Reuni, de modo a contribuir para que
houvesse uma reestruturação no ensino superior público de modo a torná-lo ca-
paz de atender as demandas da sociedade do século XXI. É fato que a expansão
universitária via Reuni atendeu muito bem em determinados pontos das suas
propostas originárias, bem como foi insuficiente em outros aspectos, especial-
mente aos relacionados as seis dimensões do Programa (eixo qualitativo).

Apesar disso, aparentemente houve um fortalecimento da interculturali-


dade nas universidades federais brasileiras promovida a partir da expansão uni-
versitária via Reuni, uma vez que o eixo quantitativo do Programa (que abordou
prioritariamente o acesso ao ensino superior público) foi bem-sucedido. Conse-
quentemente, a partir da pluralidade do acesso, outras formas de interações pas-
sam a existir nos espaços universitários, dentre eles os diálogos interculturais.
Para Arruda:

um verdadeiro diálogo intercultural só pode acontecer se os interlocutores tive-


rem autonomia para se posicionar e se seus dizeres forem levados em conside-
ração no diálogo em andamento. Só haverá um diálogo intercultural se houver
efetivamente uma troca, uma abertura para a compreensão do que o outro
diz, propiciando uma reflexão conjunta e a procura de um consenso sobre a
questão em pauta que leve à aceitação e mesmo à adoção de práticas sociais
diferenciadas. (ARRUDA, 2012, p. 161).

Logo, pensar políticas/reformas educacionais sob a ótica de outras formu-


lações, que dialoguem com pluralidade, construção do saber e emancipação so-
cial, certamente exige também a inserção de outros pensadores nesses debates,
capazes de propor novas práticas e outras epistemologias, de visualizar e valori-
zar outros saberes e modos de construí-los, ou seja, pensadores críticos e libertá-
rios quanto ao sistema que aí está.

Nessa direção temos pesquisadores que veem colaborando com diferentes


reflexões sobre Modernidade, Colonialidade e Decolonialidade, tais como o filó-
sofo argentino Enrique Dussel, o sociólogo peruano Aníbal Quijano, o semiólogo
e teórico cultural argentino-norte americano Walter Mignolo, o sociólogo porto-
-riquenho Ramón Grosfoguel, a linguista norte-americana radicada no Equador
Catherine Walsh, o filósofo porto-riquenho Nelson Maldonado-Torres, o antropó-
logo colombiano Arturo Escobar, dentre outros.

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De acordo com CAMPOS e SOUZA (2015), esse grupo vem buscando des-
construir o padrão eurocêntrico do poder/saber enraizado nas análises e inter-
pretações das problemáticas da realidade latino-americana nos mais variados
campos, inclusive no campo da educação. As principais categorias de análise
dos decoloniais se constituem em conceitos e noções sobre o mito de fundação
da modernidade, a colonialidade, o racismo epistêmico, a diferença colonial, a
transmodernidade, a pedagogia decolonial e a interculturalidade crítica. (ESCO-
BAR, 2003). Na visão de Walsh:

a interculturalidade crítica se trata de uma construção de/e a partir das pessoas


que sofreram uma experiência histórica de submissão e subalternização. Para
essa autora, falar de interculturalidade significa pensar uma proposta e um
projeto político que também poderia expandir-se e abarcar uma aliança com
pessoas que também buscam construir alternativas à globalização neoliberal
e à racionalidade ocidental, e que lutam tanto pela transformação social como
pela criação de condições de poder, saber e ser muito diferentes. Pensada desta
maneira, a interculturalidade crítica não é um processo ou projeto étnico, nem
um projeto da diferença em si. (...), é um projeto de existência, de vida. (WALSH,
2009).

Nesse sentido, partindo de um olhar para a historiografia do Reuni na UFG


e UFT, buscando observar vivências de interculturalidade, bem como também
pensar sobre os horizontes que se estendem para além das imagens que com-
põem o acervo visual do processo de expansão universitária nestas instituições,
encontramos eco em questões que nos são propostas por Didi-Huberman que
defende a ideia de que não é inútil se perguntar de que exatamente uma ima-
gem é imagem, quais são os aspectos que aí se tornam visíveis, as evidências
que apareceram, as representações que primeiro se impõem (2015, p. 206). Nes-
sa mesma direção esse autor argumenta que as imagens nunca dão tudo a ver;
elas conseguem mostrar a ausência a partir do nem tudo a ver que elas nos pro-
põem constantemente (2012, p. 160).

Assim, para esse autor, embora as imagens tenham poder, elas também
possuem limites. No entanto, na concepção dele, a utilização de imagens nos
possibilita uma ponte de diálogo com o real, na medida em que as imagens são
parte de outras evidências e registros que compõem a narrativa do que se pro-
pôs falar por meio delas. No contexto da UFG e UFT, o ato que tornou possível as

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imagens ora reveladas foi, de modo específico, a adesão e a implementação do


Reuni em ambas as instituições. Todavia, a narrativa iconográfica contida neste
texto, embora legítima, não contempla todas as faces do processo.

Vivências interculturais na UFG e UFT.

Entendemos que para pensar as imagens de diálogos interculturais/Reuni


precisamos também do aporte de elementos outros. Nesse caso é necessário
que voltemos nosso olhar para a vasta documentação interna que compõem a
história tanto da UFG quanto da UFT, desde atas, normativas de conselhos supe-
riores, jornais e afins.

Nessa direção, pensar imagens relacionadas ao Reuni e a diálogos intercul-


turais na UFG e UFT demanda que nosso olhar se volte também para toda his-
toriografia relacionada tanto ao Reuni como sobre pautas decoloniais e a partir
de autores que abordam as políticas educacionais sob a perspectiva dos impac-
tos do neoliberalismo na Educação Superior, somada às legislações que versam
sobre o tema e outros documentos e relatórios oficiais pertinentes ao assunto,
disponibilizados pelo governo federal e organismos representativos da área da
educação, dentre outros.

Logo, nosso olhar se volta para as imagens de diálogos interculturais ocor-


ridos na UFG e UFT entendendo que essas imagens não são, por si só, elemen-
tos substantivos que mostram o real sobre interculturalidade nestas instituições.
Por outro lado, olhamos para essas imagens com o entendimento de não pode-
mos deixar de considerar o poder que elas possuem na construção da narrativa
institucional sobre diálogos interculturais ocorridos a partir do Reuni, tanto na
UFG quanto na UFT.

A UFT tem sua sede situada no campus de Palmas, capital do Tocantins,


tendo sua estrutura dividida em mais cinco campi, esses localizados nas seguin-
tes cidades: Arraias, Gurupi, Miracema, Porto Nacional, Araguaína e Tocantinópo-
lis – sendo que estes dois últimos campi neste momento estão fase de transição,

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tendo em vista a criação da Universidade Federal do Norte do Tocantins6. No ano


de 2019 o campus de Tocantinópolis (esse dividido em duas unidades: Centro e
Babaçu) contava com um total de 33 estudantes autodeclarados indígenas re-
gularmente matriculados nos quatro cursos oferecidos: Pedagogia, Ciências So-
ciais, Educação do Campo e Educação Física. Esses discentes são provenientes
de diversas etnias como por exemplo: Krikati, Guajajara, Xerente e Apinajé sendo
que os Apinajés estão presentes na UFT de Tocantinópolis desde a implantação
da Universidade.

O I Encontro das Culturas Indígenas na UFT7 ocorrido em outubro de 2019


no campus de Tocantinópolis da UFT teve como premissa mostrar um pouco
da cultura Apinayé para a comunidade acadêmica, de modo que a programa-
ção teve início na Unidade Babaçu, com a corrida de tora, seguido de cantoria
e corrida da flecha. Por sua vez, na unidade do centro, ocorreu a mesa redonda
nomeada “Educação Escolar Indígena: do ensino básico ao ensino superior” que
teve a intenção de debater não somente sobre ensino indígenas, mas também
refletir sobre os meios pelos quais são acolhidas as diferenças existentes entre
não indígenas e indígenas, além de como se dá a presença deles ao longo do
processo de formação universitária.

A Figura 1, nomeada “I Encontro das Culturas Indígenas na UFT – Mesa Re-


donda”, compõe o acervo visual da UFT. Ela mostra um espaço interno, aparente-
mente um auditório com paredes e teto de cor branca, revelando um ambiente
claro e iluminado a partir de luzes que partem do teto. A fotografia mostra um
grupo composto de sete pessoas (seis homens e uma mulher), sendo quatro
delas indígenas. As sete pessoas estão sentadas em cadeiras simples, em linha,
uma ao lado da outra, sendo que nas extremidades tanto do lado direito quanto
do lado esquerdo estão servidores da UFT, dois homens brancos, certamente

6 Aos 09 de julho de 2019, foi publicada no Diário Oficial da União a Lei 13.856, de 2019, que
cria a Universidade Federal do Norte do Tocantins (UFNT), com sede no município de Araguaína
(TO), por desmembramento do campus da Universidade Federal do Tocantins (UFT). Fonte: < ht-
tps://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2019/07/09/sancionada-criacao-da-universidade-fede-
ral-do-norte-do-tocantins>. Acesso aos 07 maio 2022.

7 Fonte: <https://ww2.uft.edu.br/index.php/ultimas-noticias/26321-i-encontro-das-culturas-
-indigenas-na-uft-ocorre-em-30-de-outubro-em-tocantinopolis>. Acesso em 06 de maio de 2022.

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professores da instituição. Das extremidades para o centro temos os indígenas


(alunos da instituição), sendo que da esquerda para direita temos uma mulher
indígena que foi retratada com um microfone em punho. Ao lado dela, em linha
estão quatro homens indígenas com expressões compenetradas e graves, dois
deles com braços cruzados, como se em defensiva perante o público que apa-
rentemente os assistem. Ao fundo do salão temos uma espécie e painel com um
tecido de cor marrom estampado em azul com fotografias expostas nele. Por
sua vez, na frente e rodapé da imagem vemos elementos da cultura indígena
compondo a decoração do ambiente, tais como cestos e esteiras.

Figura 1 – I Encontro das Culturas Indígenas na UFT – Mesa Redonda, ocorrido em 30 de outubro de 2019, no
Campus da UFT em Tocantinopólis-TO, Unidade Centro. (Fonte: acervo UFT)

A figura 1 transmite a ideia de um encontro intercultural em que os indí-


genas parecem deter o protagonismo, tanto pela quantidade deles na atividade
retratada, quanto pelo poder de fala concedida, assim como pela posição de cen-
tralidade que eles ocupam na distribuição das cadeiras. Por sua vez, os homens
brancos (professores da UFT) retratados na imagem, situados em posições que
podem parecer secundárias, aparentam estar mais à vontade no ambiente do
que os indígenas ali presentes.

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Figura 2 - I Encontro das Culturas Indígenas na UFT – Roda de Cantoria-1, ocorrido em 30 de outubro de 2019,
no Campus da UFT em Tocantinopólis-TO, Unidade Babaçu. (Fonte: acervo UFT)

A Figura 2, nomeada “I Encontro das Culturas Indígenas na UFT – Roda de


Cantoria 1” é parte do acervo visual da UFT. Ela retrata um espaço externo, apa-
rentemente um pátio, com luminosidade do dia. Ao fundo, no canto esquerdo
superior temos uma área verde, sendo que ao fundo dela aparece um pedaço do
céu levemente nublado. Por sua vez, no canto direito superior da imagem vemos
o pedaço de uma parede bege, aparentemente parte de um prédio, da qual apa-
rece parcialmente vidraças contornados de branco e uma placa nomeada “Bi-
blioteca”. No plano frontal e central da fotografia temos uma espécie de “cordão”
humano formado por seis indígenas vestidos/adornados com adereços das suas
próprias culturas, sendo que no centro dessa corrente humana (e da imagem)
temos duas garotas, aparentemente adolescentes, ambas vestidas de camisetas
brancas que dão a parecer ser uniformes de escolas secundárias. Todas as pes-
soas retratadas na Figura 1 estão sorrindo de modo expansivo, sendo que alguns
estão buscando contato visual com o parceiro com quem está de braços dados,
dando a impressão de um momento de interação, troca e felicidade.

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Figura 3 - I Encontro das Culturas Indígenas na UFT – Roda de Cantoria-1, ocorrido em 30 de outubro de 2019,
no Campus da UFT em Tocantinopólis-TO, Unidade Babaçu. (Fonte: acervo UFT)

A Figura 3, nomeada “I Encontro das Culturas Indígenas na UFT – Roda de


Cantoria 2” compõe o acervo visual da UFT. Ela retrata um espaço externo, apa-
rentemente um pátio de chão batido, terra vermelha, com luminosidade do dia.
Ao fundo, no canto esquerdo superior vemos parte de um prédio de cor verde
com vidraças espelhadas. Por sua vez, no canto direito superior da foto temos
uma área verde em que vemos vários coqueiros, provavelmente os pés de ba-
baçus que dão nome a essa unidade do campus de Tocantinopólis-TO. Na parte
central e frontal da imagem há diversas pessoas em formação aparentemente
circular, sendo alguns brancos e outros indígenas (esses caracterizados com suas
vestes e pinturas tradicionais). Tanto a posição dos corpos quanto as expressões
das pessoas na imagem dão a ideia de que estão em movimento, como se fosse
uma dança, assim como os rostos exibem sorrisos e dão a impressão de que o
grupo se sente à vontade na atividade que praticam juntos.

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Figura 4 - Estudantes de Licenciatura Intercultural Indígena da UFG encontram-se com o reitor da instituição
em 21/08/2014, no Núcleo Takinahaky de Formação Superior Indígena da UFG, Goiânia-GO. (Fonte: Ascom/
UFG)

A Figura 4, nomeada “Estudantes de Licenciatura Intercultural Indígena do


Núcleo Takinahaky de Formação Superior Indígena da UFG8, Goiânia-GO” integra
o acervo visual da Ascom/UFG. Essa imagem mostra um encontro dos estudan-
tes do Núcleo Takinahaky com o então Reitor da Instituição, Professor Edward
Madureira Brasil, ocorrido em 21/08/2014.

A fotografia retrata uma parte externa das dependências do Núcleo Taki-


nahaky, sob a luminosidade do que aparenta ser um dia claro. Ao fundo e na
parte superior da imagem vemos partes de construções de concreto, enquanto
do lado esquerdo/superior vemos uma construção circular com teto de palha
semelhante a cobertura de uma oca indígena. Na parte frontal e em primei-
ro plano da Figura 4 vemos o miniauditório do Núcleo Takinahaky construído a
céu aberto, feito de tijolos claros dispostos em degraus largos e piso rebaixado.
Distribuídos ao longo dos degraus estão quatro fileiras de alunos em formação
lado a lado, sendo que no centro da primeira fileira temos o Reitor da UFG, então

8 O Núcleo Takinahaky de Formação Superior de Professores Indígenas é vinculado a Fa-


culdade de Letras/UFG e surgiu a partir da Resolução CONSUNI/UFG nº 11/2006, que criou o curso
de Licenciatura Intercultural, na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás, para for-
mação e habilitação de professores indígenas no âmbito da Região do Araguaia-Tocantins (UFG/
CONSUNI, 2006, p. 1).

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ladeado por alunos indígenas tanto pela esquerda quanto pela direita. Embora
seja uma fotografia panorâmica, é possível ver retrata um encontro de pessoas
de diferentes origens com predominância para presença indígena, ali unidos por
um laço comum, no caso a educação intercultural, essa caracterizada inclusive
pelas características físicas do cenário retratado.

Figura 5 - Professores indígenas recebem diploma em cerimônia intercultural ocorrida em 14/09/2018, no


Núcleo Takinahaky de Formação Superior Indígena da UFG, Goiânia-GO. (Fonte: Ascom/UFG)

A Figura 5, nomeada “Professores indígenas recebem diploma em cerimô-


nia intercultural no Núcleo Takinahaky da UFG, Goiânia-GO” é parte do acervo vi-
sual da Ascom/UFG. A imagem mostra um ambiente interno com luminosidade
artificial e período aparentemente noturno. Vemos uma edificação que mostra
ser circular em tons terra com madeira e palha, bem como motivos geométricos
que aparecem no chão do lugar, mostrado no lado esquerdo da figura. No plano
secundário do lado direito da imagem vemos um aluno indígena vestido com
roupas tradicionais de formatura em um aperto de mãos com um membro da
mesa diretiva, no caso uma mulher que o cumprimenta no ato da entrega do
diploma de graduação. De modo circular, da esquerda para direita temos outras
e diversas pessoas dispostas no ambiente, sendo que essa formação culmina na
figura central e em plano primário da imagem, que retrata a imagem de uma
estudante indígena, formanda da Licenciatura Intercultural Indígena do Núcleo

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Takinahaky de Formação Superior Indígena da UFG, Goiânia-GO. Ela se apresen-


ta com roupas tradicionais de formatura de graduação e exibe nas mãos o diplo-
ma obtido, ao mesmo tempo em que estampa um sorriso expansivo.

Essa imagem expressa uma ideia de realização e empoderamento de uma


forma ampla, quando vemos nela além de uma indígena, vemos também o pro-
tagonismo de uma mulher indígena, a quem foi oportunizado cursar uma gra-
duação e, a partir disso, ter a possibilidade de exercer a docência junto a sua
comunidade de origem, contribuindo assim para valorizar e preservar a cultura e
os valores da etnia a qual pertence.

Considerações finais.

Pensar sobre diálogos interculturais nas universidades públicas a partir do


Reuni nos ajudar a refletir também sobre as crises históricas vivenciadas por es-
tas instituições frente aos desafios impostos pelo mundo contemporâneo, o que
demanda caminhos e propostas que resultem em mudanças que permitam que
universidade pública que seja de fato emancipatória e democrática, tanto no
acesso quanto nas suas práticas pedagógicas e acadêmicas.

Assim, entendemos que pensar as vivências oportunizadas nas universida-


des públicas a partir do processo de expansão universitária sob a luz do pen-
samento decolonial nos parece sobremaneira importante na medida em que
entendemos que sem a luta por mudanças defendidas pelos pesquisadores de-
coloniais, estaremos, de certa maneira, para sempre presos em um patamar de
via única (e excludente) que, frente a passagem do tempo claramente não con-
templa a pluralidade dos mundos que habitamos, logo, não alcança a contento
a diversidade que representa todos os povos.

Quanto as imagens dos diálogos interculturais contidas neste texto, todas


elas originadas do acervo visual da UFG e UFT, ainda que venham a revelar um
cenário de vivências interculturais presentes nas nestas instituições, se coloca-
das em diálogo com os documentos e as dimensões do Reuni mostrarão seus
limites de representação. Ou seja, perceber que tais imagens são resultado de

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uma construção nos alerta para o fato de elas não podem ser um espelho do
real. A partir disso poderíamos então pensar que tais imagens são inúteis? Não,
de modo algum, pelo contrário. Na verdade, como demonstra Didi-Huberman,
compreendemos que as imagens mostram muito, especialmente sobre suas
condições de produção, que permitem aberturas de diálogos com outros docu-
mentos, dentre outros. Contudo tais imagens não devem ser pensadas de forma
isolada, elas precisam ser contrapostas a documentos outros, tendo em vista que
elas apresentam grande potencial de diálogo, apesar de suas limitações na re-
presentação do real.

Quanto as práticas e vivências interculturais que entendemos ser necessá-


rias nos espaços de ensino, desde a base ao ensino superior, pensamos que elas
só serão de fato possíveis por meio de mudanças nas propostas pedagógicas
vigentes, ampliando assim as abordagens epistemológicas ora validadas e impo-
sitivas, de modo que, além de resultar em uma formação educacional realmente
emancipatória, colabore também para gerar sujeitos que sejam senhores das
suas culturas, vivências, destinos.

Logo, entendemos que a expansão de vagas no ensino superior com suas


proposições de somar para a construção de uma sociedade mais justa e iguali-
tária, precisa, além de aumentar o acesso às vagas, ser também capaz de ultra-
passar o lugar comum que se espera de uma formação superior acadêmica. Ou
seja, para que concepções como democracia, autonomia e emancipação social
possam superar as práticas de subalternização vigentes, tais saberes precisam
se materializar em forma de autonomia nas práticas tanto das IFES, quanto dos
indivíduos vinculados a elas.

Nesse sentido, são necessárias políticas educacionais que resultem em pro-


postas pedagógicas que permitam a inserção de outras epistemologias e trocas
de outros saberes. Destarte, pensar sob o viés da interculturalidade crítica como
ferramenta pedagógica, certamente contribuirá com os debates educacionais
em curso, de modo a somar no processo de democratização do ensino almejado
pelo Reuni.

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ISSN 2447 -6676

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IMAGENS DO PRECONCEITO E DISCRIMINAÇÃO SOCIAL:


O CASO DA DEFESA DO NOVO NA ESCOLA DE
APRENDIZES ARTÍFICES DE GOIÁS.

Mauro Alves Pires1

Como o preconceito e a discriminação tornaram-se parte das imagens ins-


tituintes que legitimam a educação profissional em Goiás na primeira metade
do século XX? Percorreremos essa indagação com foco na constituição do ima-
ginário institucional da modernidade sobre a educação profissional pública. É
importante lembrar que os ideários da modernidade interpretam o passado, pla-
nejam o futuro e, neste caso, se legitimam em políticas específicas no campo
educacional. Nosso chão será o imaginário instituinte, que produz representa-
ções e práticas marcadas pela racionalidade e disciplinarização em corpos, na
moldagem do edifício escolar, no mobiliário, nas práticas cotidianas, sendo ele
também um criador de imagens. Tais imagens também são reforçadas por ri-
tos, por simbologias, linguagens e pelas práticas institucionais. Os documentos
aqui estudados são testemunhos da criação da Escola de Aprendizes Artífices na
cidade de Goiás (1909), até o período de sua transferência durante a mudança da
capital para Goiânia, com a criação da Escola Técnica de Goiânia (1942).

As Escolas de Aprendizes Artífices, no Brasil e também em Goiás, foram


criadas em 1909, por uma lei assinada pelo então presidente da República, Nilo
Peçanha. A análise de documentos referentes a Escola de Aprendizes e Artífices
de Goiás, nesse período, leva-nos a crer que houve um apagamento da atuação
dessa escola durante sua fase de existência na citada cidade. A almejada mo-
dernidade buscada, principalmente a partir do fim da década de 1930, ignorou

1 Doutorando no Programa de Pós-Graduação em História da UFG.

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seu papel e manteve um silêncio sobre sua presença naquele espaço. Busca-
mos subsidio no quadro da renovação teórico-metodológica da história cultural
e como dissemos, nos trabalhos de autores que procuram problematizar o social
com ênfase no imaginário instituinte para tentar compreender esse processo.

O imaginário, em um certo sentido, é mesmo o real, o substitui, sendo mais


real que o real, visto que as ações humanas se guiam por ele. Tal perspectiva
acompanha o pensamento de autores como Cornélius Castoriadis (1986), dentre
outros, que nos chamam a atenção para a impossibilidade de compreendermos
o mundo das relações humanas fora do imaginário que perpassa tanto a lingua-
gem quanto as instituições. Para o autor o imaginário não pode prescindir do
símbolo, mas este também depende da capacidade imaginária do ser para se
constituir.

Castoriadis além de conceituar imaginário, aprofunda o seu sentido ao defi-


nir o imaginário instituinte (CASTORIADIS, 1999). Para o autor, além da dimensão
histórica, o imaginário é a capacidade humana para representação do mundo,
algo de natureza ontológica, própria do humano. O homem cria ou recria o real
com sua interpretação, formando uma espécie de energia criadora de base. Essa
é uma condição herdada e que é a fonte de todo simbólico, conceituado como
imaginário radical. Já a energia criadora, que é elemento constituído pela histó-
ria e pelas condições sociais, o autor dá o nome de imaginário efetivo, instituinte.
O autor explica os termos imaginação, imaginário e imaginário radical como:

A retomada do termo imaginação se impõe em virtude das duas conotações


da palavra: a conexão com imagem, no sentido mais geral (não simplesmente
“visual”) do termo, isto é, com a forma; e sua conexão com a ideia de invenção,
de criação. Utilizo o termo radical, primeiramente para opor meu objeto à “ima-
ginação segunda”, a única que realmente se fala, imaginação somente repro-
dutiva e/ou combinatória; em seguida, para sublinhar a ideia de que essa imagi-
nação vem antes da distinção ente o “real”e o “imaginário”, ou “fictício”. Dizendo
de forma brutal: é porque há imaginação radical e imaginário instituinte que há
para nós “realidade, e esta realidade (CASTORIADIS, 1999, p. 242).

O autor explica que as duas considerações se aplicam ao imaginário social


instituinte, pois ele é radical, por que cria ex-nihilo, sendo ele próprio criação, ou
seja sem as amarras da mensuração, dos limites. Não cria “imagens” no sentido

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habitual (ainda que as crie, também: marcos totêmicos, bandeiras, brasões), po-
rém formas, que podem ser compreendidas como imagens no sentido geral (ex.
imagem acústica de uma palavra) e que são ao mesmo tempo e solidariamente,
significações e instituições. O termo imaginário para o autor não é um adjetivo
que denota qualidade, mas um substantivo que se refere a uma substância. Em
outras palavras, o real antes de ser real é criado pelo imaginário.

Assim a realidade se constitui de uma criação imaginária que dá sentido a


vida humana como um todo. Por isso, é impossível uma ação consciente do ser
sem que se possa proceder uma constante crítica do real. Como consequência a
imaginação é a criação radical do ser humano. Nela existe um lugar para o aca-
so, para as causalidades, fazendo com que os acontecimentos não obedeçam
a uma racionalidade, embora a imaginação atue sobre os legados do passado.
Mesmo a razão é subjugada a força imensa da imaginação. Podemos concluir,
com fundamento em Castoriadis, que que o imaginário radical é a possibilidade
da permanente produção do novo.

Castoriadis considera que existe uma crise nas sociedades contemporâne-


as e que essa crise é decorrente de uma crise identificatória, ao mesmo tempo
em que é por ela agravada. O autor assim explica, o processo identificatório é
peculiar a cada sociedade historicamente instituída, e a própria identificação se
dá como momentos da totalidade do social, que só faz sentido dentro dessa to-
talidade.

As significações imaginárias exercem funções importantes: estruturam as


representações do mundo em geral; designam as finalidades da ação, o que se
deve e o que não se deve fazer em uma sociedade; estabelecem os tipos de afe-
tos característicos de uma sociedade. Estas três dimensões – representações, fi-
nalidade e afetos – permeiam as instituições sociais, o que faz com que todas as
sociedades possuam uma representação imaginária de si mesmas e produzam
um discurso sobre si mesmas. Com essa explicação, Castoriadis(1999) admite a
crise identificatória e pergunta: “onde está o sentido do vivido como imortal pelos
homens e mulheres contemporâneos?” Para o autor esse sentido não está em
nenhuma parte, existe sim “a escalada da insignificância”, e um “conformismo

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generalizado”, diante da profunda crise das “significações imaginárias sociais”


que até aqui vinham fornecendo sentido à sociedade e identidade aos indivídu-
os. Consequentemente o o imaginário exerce papel fundamental na identidade
de um grupo social.

Pela força do imaginário, podemos dizer que todas as formas de apreensão


do real, independente do meio, são contornadas pela função simbólica. Nessas
apreensões não há neutralidade, pois, o simbólico não é o espelho do real, assim
os significados estão permeados pela individualidade, engendrada no ambiente
cultural. Acabamos de dizer que a cultura é ao mesmo tempo limite e horizonte,
pois os materiais simbólicos com os quais construímos novas representações en-
contram-se empilhados nos depósitos dos simbolismos do passado.

A Invenção da Escola Republicana e o Imaginário da Racionalidade


Científica.

A instituição escolar tem se constituído em espaço privilegiado para execu-


tar o projeto de educação das sociedades, ela não é única e as escolas não são
as mesmas, elas sofrem as mudanças, no tempo e no espaço, cada momento
histórico tem sua própria instituição escolar, da mesma forma que cada escola
marca a sua individualidade. Quando nos referimos a escola como instituição, é
importante salientar que embora instituir, segundo o Dicionário Houaiss (2001),
significa dar forma, educar, instruir, fundar, cada unidade dessa ampla institui-
ção humana, vai formar um instituto próprio. Tentando ampliar essa compreen-
são e contribuirmos com a história das instituições escolares a partir da narrativa
sobre uma determinada escola, nos aproximamos de Werle, que assim entende
a história da instituição escolar:

A história das instituições escolares é uma tentativa de formular uma represen-


tação da instituição no que se refere a atitudes e condutas que foram sendo
constantemente elaboradas e rearticuladas por meio de seus membros – in-
divíduos e grupos – diante de estímulos e pressões externas, e quanto ao seu
grau de integração e formas de funcionamento(WERLE, 2004, P.15)

No que tange a individualidade de cada escola, Magalhães (1996) entende


que é preciso:

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Compreender e explicar a existência histórica de uma instituição educativa é,


sem deixar de integrá-la na realidade mais ampla que é o sistema educativo,
contextualizá-la, implicando-a no quadro de evolução de uma comunidade e
de uma região, é por fim sistematizar e (re)escrever-lhe o itinerário de vida na
sua multidimensionalidade, conferindo um sentido histórico (MAGALHÃES,
1996, p. 2).

Pelo caráter histórico e cultural da instituição escolar, torna-se importante


que a história busque, além de seus aspectos gerais, o seu aspecto individual,
tentando extraí-lo do imaginário criado em torno das representações sobre a es-
cola e a educação. Entendemos com isso que a educação escolar é uma prática
cultural e que a escolarização é “[...] a produção de representações sociais que
têm na escola o locus fundamental de articulação e divulgação de seus sentidos
e significados” (FARIA FILHO, 2004, p. 3), assim a escola não está isolada de sua
comunidade ou do seu tempo e nem da sociedade em geral. Compreendê-la,
significa, também, conhecer sua singularidade e a comunidade em seu em tor-
no. Esse processo de afirmação da escola, perante outras instituições é visto por
Faria Filho (2003), como um lento processo de afirmação da instituição escolar,
que teve no diálogo o fator preponderante para sua inserção cultural (p. 136).

A Desconstrução da Imagem da Instituição Escolar Imperial.

Na contramão do que afirma FARIA FILHO (2003), a República quando che-


ga ao poder, em 1889, elabora um discurso sobre a escola que nega o diálogo
com o passado. Na verdade, naquele momento, buscava construir um novo ima-
ginário em torno da educação escolar desqualificando a escola Imperial. Com
ele, o governo republicano buscava alimentar uma nova representação de es-
cola, seu propósito era o de fazer a população esquecer a experiência anterior-
mente vivida, “este era o sentido da invenção republicana”. A intenção era criar
um aspecto de modernidade para as suas propostas. Tentando assim apagar
os sentidos políticos e sociais da escola que fora gestada no período imperial.
O pretenso atraso do Império era difundido nos discursos republicanos sobre a
educação, segundo Schueler & Magaldi (2009):

A memória da escola primária e da ação republicana em prol da educação es-

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colar foi edificada por cima dos escombros de antigas casas de escola, de “pa-
lácios escolares”, de debates, leis, reformas, projetos, iniciativas e políticas de
institucionalização da escola nos tempos do Império. Zombando do passado, as
escolas imperiais foram lidas, nos anos finais do século XIX, sob o signo do atra-
so, da precariedade, da sujeira, da escassez e do “mofo” (SCHUELER & MAGALDI,
2009, p. 35, grifo das autoras).

As autoras entendem que esse discurso desprezava o passado imperial e


suas escolas, sobre as quais fazia-se uma leitura tendenciosa, relacionando-as a
um modelo de sociedade que precisava ser superado, assim desqualificava suas
instituições, vistas como sinônimo de “atraso”, de “precariedade”, como espaços
sujos, próprios da pobreza e do “mofo”. Eram tomadas como anacrónicas tan-
to quanto suas práticas pedagógicas, fundadas na memorização dos saberes,
criticando tudo nela, como por exemplo, as práticas de decorar a tabuada, das
provas orais e da ocupação do espaço.

Assim procurava-se diminuir aquela instituição com divulgação de símbo-


los e imagens que reforçassem o discurso republicano sobre o passado imperial.
A fotografia a seguir (Imagem - 1), captada no dia da proclamação da República,
representa um instante da história dos alunos da escola normal de São Paulo. O
destaque do fotografo é para o grupo de pessoas, mas nela identifica-se perfei-
tamente a arquitetura da antiga escola, ela é representativa do período imperial
brasileiro. Em toda a extensão da fachada foram construídas porta-janelas dota-
das de conversadeiras, espécie de pequena sacada que avança para a rua, enfei-
tadas com gradil de madeira em forma de balaústre.

Imagem 1 – Escola Normal de São Paulo, fotografia de 15 de novembro de 1889. Fonte: http://www.crmarioco-
vas.sp.gov.br/pdf/neh/1825-1896/1846_Escola_Normal.pdf, em 27/05/2022, as 19:30 horas.

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No instantâneo, o fotografo buscou retratar um grupo sem destacar ne-


nhum membro, individualmente, o prédio é uma espécie de cenário. Não é pos-
sível perceber mulheres nesta imagem, se elas estão presentes nessa escola,
deve ser em pequeno número, quase insignificante, por outro lado a quantidade
de homens é significativamente dominante.

Sobre esse aspecto, Tanuri(1994) afirma, “havia um flagrante desinteresse


pela formação feminina”, nessa escola. Isso fica evidenciado na lei de instrução
primária, de 1846, que estabelecia um currículo para as escolas primárias femini-
nas, que não incluía conteúdos que figuravam no currículo destinado aos alunos
do sexo masculino, isso ficava evidente no Decreto 7.247, de 19/4/1879:

Art. 1º - As matérias que compõem a instrução primária são: leitura, escrita,


aritmética até proporções, noções de geometria prática, gramática e religião.
Art. 2º - Nas escolas para o sexo feminino as mesmas matérias, excetuando a
geometria e reduzida a aritmética às quatro operações sobre inteiros. Em subs-
tituição da geometria, prendas domésticas. (TANURI. 1979, p.16)

Uma outra leitura sobre a presença feminina na Escola Normal de São Pau-
lo, e essa talvez explique melhor a ausência de mulheres na fotografia, é trazi-
da por Monarca (1999), segundo o autor a legislação autorizava o presidente da
Província a organizar uma seção de ensino destinada às moças, de forma que o
mesmo professor pudesse lecionar, em períodos diferentes, às classes de um e
de outro sexo. Como não sabemos em que horário foi colhida a imagem, pode
ser que tenha sido em um momento no qual não havia não havia mulheres no
prédio. É importante abordarmos a coeducação, vez que a escola que buscamos
conhecer, atendeu somente aos meninos, durante toda sua existência e mesmo
após sua transformação em Escola Técnica de Goiânia essa representação que
diferencia os gêneros permaneceu.

Quanto à imagem 2, retratando o prédio construído pelo governo republi-


cano para abrigar a mesma escola vista na Imagem 1, era a arquitetura o tema
central, a intenção do fotografo foi buscar a monumentalidade, não existem
pessoas na fotografia, a edificação é o tema central. Essa escolha de tema esta
referenciada na representação de arquitetura monumental adotada pela repú-
blica, na construção de prédios escolares. Para os republicanos era um edifício

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“majestoso” e “belo”, que materializava e dava visibilidade aos novos símbolos


político-culturais da República, é uma metáfora de grandeza.

O prédio exibe o estilo neocolonial, essa era uma busca de estética nacio-
nalista a “constituição do valor de brasilidade pela retomada de valores arquite-
tônicos coloniais” (CORREA, 2014, p. 6), linhas retilíneas, com poucos ornamentos
na fachada, uma construção que transmite solidez e longevidade à República. As
construções escolares republicanas funcionavam como expressões edificadoras
do imaginário político, traduzem a imagem de “templos do saber” - como eram
vistos os grupos escolares por ocasião de sua concepção, nos primeiros anos de
governo republicano. É o período da emergência dos grupos escolares, identifi-
cados como “templos de civilização” (SOUZA, 1998); ou como “palácios” que vão
se contrapor aos “pardieiros” (FARIA FILHO, 2000).

Imagem 2 - Edifício da Escola Normal da Praça, inaugurado em 1894. Fonte: http://m.acervo.estadao.com.br/


noticias/lugares,casa-caetano-de-campos,11770,0.html

Sobretudo no último quartel do século XIX, foi-se, paulatinamente, reforçando


a representação de que a construção de prédios específicos para a escola era
imprescindível a uma ação eficaz junto às crianças, indicando, assim, o êxito da-
queles que defendiam a superioridade e a especificidade da educação escolar
diante das outras estruturas sociais de formação e socialização como a família,
a igreja e, mesmo, os grupos de convívio. Tal representação era articulada na
confluência de diversos fatores, dentre os quais queremos destacar os de or-
dem político-cultural, pedagógica, científica e administrativa. (FARIA FILHO e
VIDAL, 2000, p. 23).

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Os autores, além de reconhecerem a circulação de novos sentidos para a


educação escolar, no período aqui discutido, também reconhecem a primazia
atribuída a essa modalidade de formação em relação as outras instâncias forma-
tivas. Por traz da construção desse(s) novo(s) sentido(s) encontram-se argumen-
tos, tanto administrativos, quanto pedagógicos, ambos pautados na racionali-
dade científica moderna e exacerbados no momento da institucionalização da
escola primária nos moldes propostos pelo nascente governo. Se nesse modelo
de escola identificamos uma das faces de um projeto de pretensa moderniza-
ção da sociedade ou civilização das massas, é na racionalidade científica que
se encontra o arcabouço teórico que subsidiou o discurso instaurador da repre-
sentação acerca da primazia da educação escolar. Essas novas representações
apontavam para a superação dos valores mobilizados no período de governo
monarquista.

Pereira(1996), entende que são momentos em que busca-se instaurar no-


vas representações sociais em torno do poder instituído, visto que estas, como
também nos mostra Jodelet (2010), concorrem para “a construção de uma rea-
lidade comum a um grupo social.” ( p. 22). Além do que foi citado, outro autor,
Pereira(1996) entende que no início da República no Brasil “As identidades na-
cional e regionais são todas impregnadas por uma visão positivista, anticlerical
e de elogio à técnica, de onde é possível se retirar a ideia de modernidade da
sociedade.” (PEREIRA, 1996, p. 52).

Reforçando essas ideias em Souza (1998), podemos perceber a importância


que a escola passou a desempenhar no imaginário coletivo. Era um momento
em que circulavam representações acerca da excelência alcançada pela escola,
segundo o discurso republicanos, à escola torna-se um instrumento político fun-
damental para a afirmação da cidadania.

Extrair todo o sentido da escola graduada como templo de civilização requer


um olhar atento para as múltiplas dimensões da pedagogia política implemen-
tada pelo Estado republicano. A democratização do ensino, a construção da na-
cionalidade, a formação do cidadão, a educação moral fundada na perspectiva
política e social, bem como a estatização da escola e a renovação pedagógica
são faces de um mesmo processo político e cultural [...] (SOUZA, 1998, p. 284).

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Em Souza (1996) temos uma medida da consolidação e circulação dessas


representações, a autora aponta para o fato de que os exames sistemáticos aos
quais os alunos passaram a ser avaliado após a criação dos grupos escolares,
tornaram-se um acontecimento que mobilizava os moradores de uma cidade. O
acontecimento mobilizava políticos, autoridades municipais, todos eles compa-
reciam aos locais de exame para prestigiar os “melhores alunos”. Na cidade de
Jaboticabal o jornal “O Atalaya” publicou um artigo sobre a aplicação de exames
no Grupo Escolar “Coronel Vaz”, daquela cidade, retirado de Souza (1998), apre-
sentamos esse trecho:

As numerosas pessoas que ali têm ido assistir aos exames e as que têm tomado
partes nestes, arguindo as crianças nos trâmites do programa oficial, são unâni-
mes em confessar a maravilhosas impressão que receberam do adiantamento
dos alunos e em proclamar o elevado nível em que se acha aquele importante
estabelecimento e seus efeitos incontestavelmente benéficos para a infância
jaboticabalense, que ali colhe a garantia da geração futura da sociedade. [...]
Devemos, entretanto, dizer com franqueza, que achamos um tanto demasia-
dos o rigor dos exames. Com efeito isso vê-se perfeitamente no grande número
de reprovações, atestando que os que obtiveram promoção foi por sobejante
merecimento. (SOUZA, 1998, p. 245).

O novo espaço escolar trazia uma proposta pedagógica original para o país,
além de inaugurar um novo modelo para os prédios escolares, para as práticas
pedagógicas e até para os mobiliários. Foi o momento da adoção do uso da car-
teira individual como elemento fundamental na ordenação disciplinar praticada
na escola republicana. Esse novo mobiliário, juntamente com o prédio escolar e
a escola graduada, permitem uma nova organização para o magistério. É nesse
momento que o mobiliário se torna parte efetiva da organização do espaço e do
modo de viver a escola, essas escolas tornam-se conhecidas como Grupos Esco-
lares.

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Imagem 3 – Carteira escolar usada em sala de aulas da Escola de Aprendizes Artífices na Cidade de Goiás.
Fotógrafo: Desconhecido. Ano: aproximadamente 1930. Fonte: Acervo IFG.

Os Grupos Escolares e a Escola de Aprendizes Artífices.

É provável que a inauguração do prédio da antiga Escola de Aprendizes


Artífices, em 1910, na cidade de Goiás, origem do atual Instituto Federal de Edu-
cação de Goiás2, atendia a mesma racionalidade que permeou a criação dos Gru-
pos Escolares no início da República. Pois o discurso que justificava a criação
desta escola, era o de “civilizar as massas”, isto está claro no texto do Decreto nº
7.566/1909. Pretendia-se com a criação dessas escolas, conter os filhos das classes
pobres, considerados como portadores de uma conduta irracional. As intenções
do governo Republicano, com a criação das dezenove Escolas de Aprendizes Ar-
tífices, ficavam claras neste e em outros documentos oficiais que abordavam o
tema. Pretendia-se, ao mesmo tempo disciplinar os filhos da classe operária, vis-
tos como potencialmente perigosos a ordem social e também prepará-los para
o exercício de uma profissão. A vinculação da criação das Escolas de Aprendizes
Artífices a mesma racionalidade que orientou a criação dos Grupos Escolares,
fica bem marcada tanto no discurso oficial, quanto nos documentos que orien-
taram as políticas de criação dessa instituição.

2 Os Institutos Federais formam a atual rede federal de educação profissional.

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No texto do decreto que criou as Escolas de Aprendizes, está clara a preocu-


pação com uma proposta pedagógica em consonância com modelo de escola
republicana, o presidente Nilo Peçanha, segundo Manfredi (2002), […] instaurou
uma rede de 19 escolas de aprendizes artífices, dando início a rede federal, que
culminou nas escolas técnicas e, posteriormente, nos Cefets. (p. 85). A autora en-
tende uma racionalização científica, que está explicita, Manfredi (2002) refere-
-se a esse aspecto em:

A concepção de Educação profissional para o trabalho assalariado e para o


emprego, como veremos, vai se tornando hegemônica, pois a organização do
ensino profissional e os métodos de ensino, antes exclusivamente empíricos e
espontâneos das práticas artesanais de aprendizagem, foram adquirindo uma
racionalidade técnica, em função do predomínio da “organização científica (ca-
pitalista) de trabalho” (MANFREDI, 2002, pg. 94).

O texto da lei de criação dessa instituição escolar, inicia, deixando bem mar-
cado que se trata de um ato abrangente do chefe de Estado, assim “O Presidente
da República dos Estados Unidos do Brazil, em execução da lei n. 1.606, de 29 de
dezembro de 1906: [...]”. A medida estendia-se a todo centro urbano importante
do país, naquele momento. Queluz (2000) cita o Decreto 7.566 de 19/12/1909:

O decreto de criação dialogava com o contexto sócio-econômico descrito, con-


siderando: Que o aumento da população das cidades exige que se facilite às
classes proletárias os meios de vencer as dificuldades, sempre crescentes da
luta pela existência; que para isso se torna necessário, não só habilitar os filhos
dos desfavorecidos da sorte com o indispensável preparo técnico e intelectual,
como fazê-los adquirir hábitos de trabalho profícuo, que os afastará da ociosi-
dade, escola do vício e do crime; que é um dos primeiros deveres do governo
da República formar cidadãos úteis à nação (Decreto n° 7566 apud QUELUZ,
2000, p. 29).

Essas possibilidades formativas presentes na concepção das Escolas de


Aprendizes Artífices, retiradas da mesma fonte de onde beberam os idealiza-
dores da escola graduada é apontada também por Cunha (2005), “A finalidade
dessas escolas era a formação de operários e contramestres, mediante ensino
prático e conhecimentos técnicos necessários aos menores que pretendessem
aprender um ofício [...]” ( p. 63), foram fundamentais para a sua consolidação. Na
proposta das Escolas de Aprendizes Artífices, além de formar crianças e adoles-
centes, futuros cidadãos republicanos, para o trabalho por meio do aprendizado

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de ofícios e do curso de desenho, oferecia também o curso primário, finalidade


que as relaciona diretamente com os grupos escolares:

Cada estado da Federação recebeu uma dessas escolas, salvo o Rio Grande do
Sul. Em Porto Alegre já funcionava o Instituto Técnico Profissional da Escola de
Engenharia de Porto Alegre, mais tarde denominado Instituto Parobé. O Decre-
to n.7.763 de 23 de dezembro de 1909 dizia que “uma vez que em um estado da
República exista um estabelecimento do tipo dos de que trata o presente de-
creto (escolas de aprendizes artífices), custeado ou subvencionado pelo respec-
tivo estado, o Governo Federal poderá deixar de instalar aí a escola de aprendi-
zes artífices, auxiliando o estabelecimento estadual com urna subvenção igual
a cota destinada a instalação e custeio de cada escola. (CUNHA, 2005, p. 67).

Sobre essa modalidade de ensino oferecido pelas Escolas de Aprendizes


e Artífices, Kunze (2006), esclarece que a instituição também passou a ser vista
como ferramenta para o combate ao analfabetismo. A escola passaria a atender
uma parcela da população com idade que variava entre dez e treze anos. Enten-
dia-se que as crianças nessa faixa etária já concorriam para aumentar os índices
de analfabetismo. Mesma finalidade também atribuída aos grupos escolares, in-
clusive no estado de Goiás.

Como o analfabetismo era muito alto em todo o Brasil, segundo Ribeiro


(2003) “em 1920, 65% da população de quinze anos e mais era analfabeta” (p.
81), inferimos que no estado de Goiás também era alto o número de pessoas
analfabetas. Pois seria muito difícil para o estado apresentar índices menores, de
analfabetismo, que o restante do país. Esse índice permaneceu muito alto até a
segunda metade do século XX, é de supor que uma parte muito grande da po-
pulação não teve acesso a escola em geral e também à Escola de Aprendizes Ar-
tífices. Sobre a alta taxa de analfabetismo no Estado, Araújo (2022), traz um dado
da revista “A Informação Goiana”, no volume 1, nº 4, de 15 de novembro de 1917, o
periódico publica em artigo assinado por Victor de Carvalho Ramos, apontando
que “Goiás se destaca como o Estado com o maior índice de analfabetismo do
país”. Embora a informação não seja precisa e nem se fundamenta em dados
comprovados, ela evidencia uma representação sobre o analfabetismo em Goiás
no início do século XX. A Imagem 4, a seguir nos aponta algumas novas leituras
sobre esse tema.

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Ela é um instantâneo da atuação da Escola de Aprendizes Artífices de


Goiás, como instituição profissional e seu possível papel na redução do anal-
fabetismo, para Bretas (1991) essa escola não era o que a população esperava
dela. Uma das razões apontada é o seu espaço físico muito acanhado, o pré-
dio não atendia ao modelo pretendido pelo governo republicano. No entan-
to o autor aponta para o fato de que era crescente o número de alunos aten-
dido pela escola nesse período. “De uma matrícula de 33 alunos em 1910,
e de 75 em 1913, subiu a 157 em 1930 e 219 em 1933” (BRETAS, 1991, p. 534).

Imagem 4 - Professores, alunos, diretor e servidores administrativos da primeira turma da Escola de Aprendi-
zes Artífices na Cidade de Goiás. Fotógrafo: Não identificado. Ano: aproximadamente 1910. Fonte: Acervo IFG.

Para Bretas (1991) A Escola de Aprendizes Artífices de Goiás apresentava


muitas deficiências que eram acentuadas, principalmente, com a falta de ins-
talações adequadas. No entanto, paradoxalmente, o autor aponta para o fato de
que era crescente o número de alunos atendido pela escola nesse período (BRE-
TAS, 1991, p. 534).

Somando-se ao que apresenta Bretas (1991) sobre a Escola de Aprendizes


Artífices de Goiás, é interessante observar a representação sobre a instrução pú-
blica em geral, presente no já citado artigo publicado na revista A Informação
Goyana. No artigo, o autor, de forma explícita, critica o modo como a educação
vinha sendo tratada pelo poder público. Afirma que os ensinos, tanto secundário

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quanto superior, estavam longe de cumprir seus objetivos e que o ensino primá-
rio sob a responsabilidade exclusiva de estados, era um erro, visto que, no caso
do estado de Goiás, esse não tinha recursos para desenvolvê-lo. E, para piorar
a situação, os políticos viviam “[...] absorvidos criminosamente pela politicagem
desenfreada [...]” (A INFORMAÇÃO GOYANA, 1917). Destaca ainda, que a difusão
sobre o ensino primário vinha se fazendo, essencialmente com o auxílio da inicia-
tiva privada e pelos municípios. Para exemplificar o papel desempenhado pela
iniciativa privada cita os vários municípios onde havia bons colégios religiosos
em funcionamento. Por fim, o artigo faz referência às verbas votadas pelo Con-
gresso para a manutenção do ensino público, destacando que eram irrisórias e
insignificantes, mas o intrigante é que manteve um silêncio revelador, sobre a
Escola de Aprendizes Artífices de Goiás. Fonte: A Informação Goyana, nº 4, de 15
de novembro de 1917(in: Araujo, 2022).

É tão significativo, esse silêncio, que no mesmo texto da revista “A Infoma-


ção Goyana” (in: Araujo, 2022), publicado em 1917, edição de novembro, na pági-
na 72, o autor Victor de Carvalho Ramos, ao criticar a oferta do ensino primário
em Goiás, elenca as escolas primárias existentes e, embora a Escola de Aprendi-
zes Artífices de Goiás à época, ofertasse essa modalidade de ensino, associado as
práticas profissionalizantes, sequer é citada pelo escritor. Ramos (1917) destaca
com ênfase o ensino particular e mantem, um silêncio absoluto em torno do
ensino profissionalizante. Esse silêncio permeia a existência da Escola de Apren-
dizes e Artífices em toda literatura sobre educação em Goiás, no período.

O esquecimento ao qual foi relegada a Escola de Aprendizes Artífices de


Goiás e a existência de seus alunos torna-se revelador quando levantamos o nú-
mero deles, “100 alunos” matriculados na escola em 1922, a fonte desse dado é o
relatório de 1923, encaminhado pelo Diretor da Escola de Aprendizes Artífices de
Goiás Leão Di Ramos Caiado, dirigido ao Ministério da Industria e Comercio. Nos
parece que o fato desses “aprendizes” serem invisíveis, e o ensino profissional ter
pouca repercussão como modalidade educacional na Cidade de Goiás, a ponto
dos historiadores da educação no Estado não se atentarem para a sua existên-
cia, foi consequência das disputas políticas locais. Essa escola tornava-se alvo de

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críticas de setores políticos, que disputavam seu controle, comprometendo sua


imagem aos olhos de certos setores da população. Havia também, é o que nos
parece, um preconceito forte em torno das práticas educacionais dos professo-
res e das crianças, na escola.

No seu relatório ao governo central, referente ao período de 1930 a 1933,


Pedro Ludovico afirma que a “Escola de Aprendizes Artífices descêra, no con-
senso público, á mais agúda desmoralização”. (TEIXEIRA, 1930-1933, p. 15). Nessa
manifestação revela uma espécie de preconceito para com o estabelecimento
de ensino, pois, em seu Relatório, que retrata sua administração entre os anos de
1930 a 1933, afirma mais diretamente o seguinte:

Releva relembrar que a Escola de Aprendizes Artífices de Goiaz aproveitou ex-


traordinariamente a mudança de regime ensejada pela Revolução de 30. Trans-
formada em prostíbulo, até aquela época, pelo próprio diretor, como ficou far-
tamente provado em inquérito administrativo, a escola de Aprendizes Artífices
descêra, no consenso público, a mais aguda desmoralização. Foi desde de logo
substituído o diretor. (TEIXEIRA, 1930-1933, p. 15).

Cabe relembrar que essa escola atendia a população pobre da cidade de


Goias, no ato de sua criação o presidente Nilo Peçanha deixa claro que rede fe-
deral de Escolas de Aprendizes Artífices teria como finalidade atender aos “des-
validos da fortuna”, oferecendo-lhes um ofício “profícuo” para evitar que esses
meninos se tornassem criminosos no futuro. Passa-se a impressão de que havia
um imaginário em torno da pobreza, difundindo que, aos meninos pobres só
restava o crime e às meninas pobres só esperava a vida de prostitutas.

As afirmações de Pedro Ludovico vão de encontro a um outro relatório, já


citado, elaborado no ano de 1923, pelo então diretor da escola, esse reflete um
controle administrativo rigoroso do funcionamento da escola. No relatório, assi-
nado pelo diretor Leão Di Ramos Caiado, dirigido ao Diretor Geral de Industria e
Comercio, o gestor demonstra zelo e cuidado para com os assuntos da Escola.
No seu texto, redigido com respeito estrito as normas vigentes da língua portu-
guesa, estão elencados os gastos, as receitas e a produção de utensílios realizada
pelos educandos da instituição no ano de 1922, bem como o número de alunos
frequentantes e seus desempenhos escolares.

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O relatório ainda traz informações completas sobre o quadro de servidores


administrativos e sobre os docentes. O dirigente demonstra conhecimento so-
bre os detalhes do desempenho profissional de todos os seus auxiliares e sobre
o perfil dos alunos. Sobre esses, há referências ao número de egressos em cada
curso, ao quantitativo de alunos que desistiram da conclusão e aos motivos que
os levaram a desistência. Nos fac símiles a seguir, apresentamos partes do docu-
mento que referenciou essas observações.

Imagem 5 - Fac. Símile da capa do Relatório endereçado ao Ministério da Industria e comercio pelo Diretor da
EAAGO em 1923.

No mesmo relatório anual ao Ministério da Agricultura, Industria e Comer-


cio o diretor da Escola de Aprendizes Artífices de Goiás em 1923, Leão Di Ramos
Caiado faz severas críticas às condições precárias das instalações físicas do pré-
dio que abrigava a escola. Nas palavras do Diretor as instalações estavam “[...]
em desencontro as regras de hygyene escolar.” (RELATÒRIO, 1923). No mesmo

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documento o dirigente solicita a cessão de um outro espaço físico à Escola, ou


autorização para proceder reformas no prédio que “Em alguns de seus compar-
timentos, além de pouca luz, são acanhadíssimos, isto é, não dispõem de área
necessária a salão de ensino.” (RELATÒRIO, 1923). Pelo exposto nos documentos a
pretendida reforma jamais foi executada. A solicitação, nos parece, permaneceu
ignorada, pois não há registro nem da mudança de prédio e nem de reforma,
pois a EAAGO permaneceu no mesmo prédio até sua mudança para Goiânia, já
transformada por lei em Liceu Industrial. Nem mesmo o argumento do diretor
informando a frequência de 100 alunos, no ano anterior, o que não era pouco
para uma cidade pequena e com um alto número de analfabetos àquela época,
comoveu o governo do país.

Imagem 6 - Prédio ocupado pela Escola de Aprendizes Artífices na Cidade de Goiás, de 1910 até 1942. Fotó-
grafo: Desconhecido. Ano: aproximadamente 1930. Fonte: Acervo IFG

Outro documento que nos dá, também, uma clara indicação da pouca visi-
bilidade da Escola de Aprendizes Artífices para a população da Cidade de Goiás
é um recorte de jornal. O jornal “Cidade de Goyaz” em sua edição de 17 de setem-
bro de 1939, faz uma crítica ressentida ao fato de que a formatura de uma turma
de alunos da Escola de Aprendizes Artífices de Goiás passou despercebida da
população local. Para o redator a formatura de “[...] alta significação e relevantís-
sima importância, deveria ter tido, ao contrário do que se deu, marcante reper-

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cussão nos meios educacionais da cidade.” (Cidade de Goyaz, 17/09/1939).

Imagem 7 - Fac símile de pagina do jornal “Cidade de Goyaz”

Apesar da Escola de Aprendizes Artífices de Goiás ter se mantido no centro


das disputas políticas da cidade. Podemos inferir que a relação de parte do se-
guimento populacional de Goiás, com alguma influência sobre o destino coleti-
vo, não demonstrava qualquer apego a Escola de Aprendizes Artífices de Goiás.
O que mencionamos é corroborado com o fato de que, quando se discutiu a
transferência da escola para cidade de Goiânia, recém fundada, não houve re-
gistro de qualquer manifestação contraria por parte dos habitantes da Cidade
de Goiás, não houve reação da população a mudança. Apesar de ter sido esse
o único caso de fechamento completo de uma das Escolas de Aprendizes Artí-
fices, em todo o Brasil, pois todas as demais permaneceram nas cidades onde
foram criadas. É importante ainda, salientar que todas as Escolas de Aprendizes
Artífices, foram transformadas por lei, em Liceus Industriais e logo a seguir, antes

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que esses se efetivassem na prática, em Escolas Industrias ou Escolas Técnicas


Federais. Citamos trecho de documento que transforma a Escola de Aprendizes
Artífices do Mato Grosso em Liceu Industrial e salientamos que referencias a do-
cumentos semelhantes são encontradas em todos os IFs, sucessores das Escola
de Aprendizes Artífices, exceto no IFG.

Em 1930, a EAAMT vinculou-se ao Ministério da Educação e Saúde Pública e,


em 13 de janeiro de 1937, através da Lei nº 378, as Escolas de Aprendizes Artífi-
ces receberam a denominação de Liceus Industriais. No entanto, somente em
cinco de setembro de 1941, via Circular nº 1.971, a EAAMT assumiu oficialmente a
denominação de Liceu Industrial de Mato Grosso (LIMT). (IFMT, 2014, site).

A trajetória da antiga Escola Aprendizes Artífices de Goiás pode ser dividida


em dois períodos, numa sequência cronológica. O primeiro, que se inicia com
a instalação da escola, em 1910, vai até a intervenção no governo de Goiás, com
Pedro Ludovico Teixeira. O segundo período abarca sua trajetória desde o início
da gestão do interventor até 1942, com a transferência para Goiânia. Após a inau-
guração do prédio da escola técnica de Goiânia em 1942, a Escola de Aprendizes
Artífices desaparece do cenário educacional em Goiás, pois não restou quase
nada de sua história, até o prédio que ocupou, hoje é um lugar sem destaque
na cidade do presente. Isso deve-se principalmente ao fato de que nem prédio
próprio a escola ocupou ao longo de sua trajetória na cidade de Goiás, assim não
pode deixa-lo como um legado de sua presença. É importante mencionar que
houve até a tentativa de demolição do edifício, na década de 1970. Sua descarac-
terização foi total, ao contrário de escolas de outras unidades da federação que,
mesmo sob outra denominação, continuaram funcionando em seus antigos
prédios. Embora, todas tenham mudado sua denominação e área de atuação,
mas seus antigos espaços físicos foram respeitados, mesmo que, em muitos
casos, como locais de preservação da memória da escola.

Nos documentos apresentados é possível perceber que no interior das ins-


tituições estão refletidos os preconceitos construídos culturalmente e formam
um conjunto de representações, que consolidam as imagens que uma socie-
dade faz de si. Essas representações são consolidadas pelos grupos sociais, por
meio das conversas, das opiniões, das crenças que veiculam e elaboram os sím-
bolos e as imagens difundidas nas relações sociais. Dessa forma, os preconcei-

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tos são representações que vão sendo naturalizadas, consideradas verdadeiras,


embora sejam apenas representações. Mas segundo Castoriadis (1999) são elas
o arcabouço do imaginário radical, que constitui os símbolos com os quais nos
identificamos e chamamos realidade. Muitos dos preconceitos decorrem desse
processo e dos equívocos que esses podem gerar.

Esse todo controla o imaginário e consolida as imagens que uma sociedade


faz de si. Esse imaginário estabelece padrões sociais e valores simbólicos a serem
preservados pela sociedade e quem não se encaixar nesses padrões, são consi-
derados como exemplos de normalidade, vistos sob uma ótica de estranhamen-
to e desprestígio, sendo, muitas vezes, negado-lhes o direito de viver a própria
identidade. É dessa forma que as diferenças existentes entre as pessoas não são
vistas como algo positivo que resultaria numa relação dialógica, múltipla, ao con-
trário disso, a diferença causa um desconforto que impede que se reconheçam
no outro as qualidades inerentes àquelas diferenças.

O preconceito é um sentimento de repulsa pelo diferente, parte de uma


opinião formada sem reflexão, é um conceito antecipado que se forma acerca
de uma determinada pessoa, categoria, grupo e até mesmo um objeto, que, na
maioria das vezes, se manifestam de acordo com o comportamento da socie-
dade, da história e da cultura em terno. As manifestações de desigualdade não
possuem uma origem natural, mas surgiram de uma construção social sem base
objetiva, decorrente de representações culturais, de imagens simbólicas que
englobam crenças, valores, arcabouço de representações dos grupos na busca
manter uma determinada ordem social.

Na Imagem 8, é possível identificar duas situações claras, no mínimo, que


refletem o preconceito. A primeira, refere-se ao espaço em que a fotografia foi
colhida: um ambiente de oficina, local em que as pessoas que ocupam cargos
hierárquicos superiores não se sentem à vontade, a segunda é que existe uma
diferença de posições entre as pessoas retratadas, um dos retratados era o dire-
tor da Escola Técnica de Goiânia, em 1942, logo após a transferência dos alunos e
professores da antiga Escola de Aprendizes e Artífices para Goiânia, já sob outra
denominação, ele veste-se com terno e gravata. Percebe-se pela postura e ves-

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timenta o seu grau hierárquico superior.

Regularmente, desde a criação da escola de Aprendizes Artífices de Goiás


esse cargo foi ocupado por homens, brancos e nascidos de famílias ricas. Por ou-
tro lado, podemos ver o mestre de marcenaria, um homem em vestes informais,
negro e em uma atitude subalterna. Desde a criação das Escolas de Aprendizes
os cargos de mestres e contramestre nas oficinas foram destinados as pessoas
pobres e só nesses espaços e nos espaços da sala de aulas, como alunos, eram
encontradas pessoas negras. Na Imagem – 4, retratando a primeira turma da
referida escola, temos um outro retrato desse preconceito. É possível, nessa ima-
gem, perceber a predominância de pessoas brancas, de homens brancos e só
percebemos meninos negros sentados ao chão, são os primeiros alunos da esco-
la e prováveis futuros mestres e contramestres das oficinas.

Imagem 8 - Oficina de Marcenaria da Escola Técnica de Goiânia após 1942. Fotógrafo: Desconhecido. Ano:
aproximadamente 1942. Fonte: Acervo IFG

As diferenças na educação ocorreram vinculadas às condições sociais das


pessoas. Na cidade de Goiás, como em todo o Brasil, as marcas da escravidão ain-
da estavam muito presentes, o trabalho era destinado as pessoas pobres e pre-
ferencialmente negras. Eram os brancos, nem todos, que formavam, então, uma
classe rica e poderosa, com o domínio sobre as terras, as instituições e à política.
Eram essas pessoas ricas e brancas, que tinham poder sobre as instituições e

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pessoas que trabalhavam, muito delas ex escravizados. A educação que os filhos


dos poderosos recebia era distinta daquela destinada as pessoas pobres. Nesse
sentido, Brandão diz:

Quando o fruto do trabalho acumula os bens que dividem o trabalho, a socieda-


de inventa a posse e o poder que separa os homens entre categorias de sujeitos
socialmente desiguais. A educação aparece como propriedade, como sistema e
como escola. O saber transforma-se em instrumento político de poder. (BRAN-
DÃO, 1994, p. 102).

É com as palavras de Brandão e relembrando os termos pejorativos, “prostí-


bulo, “desmoralização”, que Pedro Ludovico(1930-1933), usou para referir-se a Es-
cola de Aprendizes e Artífices na cidade de Goiás , que apontamos algumas mar-
cas do preconceito que permeou a existência dessa escola, na cidade de Goiás.
Espaço onde se formaram alunos “pobres” e “desvalidos”, segundo o presidente
Nilo Peçanha, usada pelos grupos políticos nas disputas pelo poder e totalmente
a mercê de seus objetivos, pessoais ou de grupos.

Imagem 9 - Painel comemorativo aos 100 anos de criação das Escolas de Aprendizes Artífices na Cidade de
Goiás e da Rede Federal de Educação. Fotógrafo: Mauro Alves Pires. Ano: 2022

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Em Brandão também concluímos que os fins da educação deixaram de es-


tar implícitos nos interesses gerais da comunidade, desaparecendo os interesses
comuns e substituídos pelos interesses distintos. Assim, o processo educativo
que, que deveria ser único, ficou dividido pela desigualdade econômica, social e
política, tornando-se instrumento de poder entre alguns membros da comuni-
dade. Por fim, deixamos a Imagem 8, como linha do tempo, que reflete a trajetó-
ria da Escola de Aprendizes Artífices até o presente.

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CONTINUIDADES DESCONTÍNUAS: IMAGENS


SOBREVIVENTES EM A REDENÇÃO DE CAM (1895)

Miguel Lúcio dos Reis1

Lançada em 1895 no Rio de Janeiro, A Redenção de Cam é uma pintura


do artista e professor galego naturalizado brasileiro, Modesto Brocos (1852-1936).
Marcada por diferenças e contrastes, a tela parece estranhamente articular cor e
idade, gênero e raça, religião e ciência, ou ainda, passado e futuro. Produzido no
contexto da abolição da escravatura e dos primeiros anos republicanos, o quadro
apresenta uma cena familiar onde a progressão racial ganha atenção em con-
tato com o seu próprio título. Cam, personagem bíblico protagonista do enredo,
recebe uma maldição de Noé, seu pai, para que junto com sua descendência se
tornem servos de seus irmãos por toda a eternidade. Como mola colonizadora,
o mito foi apropriado de diferentes formas para justificar a exploração do conti-
nente africano e a escravização das populações negras e indígenas, essas vistas
como herdeiras camitas.

1 Mestre em História Social pela Universidade Federal de Uberlândia. O presente estudo é


parte da dissertação intitulada “Louvor ao embranquecimento? Uma análise da pintura A Reden-
ção de Cam (1895) por suas historicidades” e foi produzida com apoio da FAPEMIG. E-mail: miguel.
reis.13@outlook.com

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Figura 1: Modesto Brocos. A Redenção de Cam (1895). Óleo sobre tela. 199 cm x 166 cm. Rio de Janeiro: Museu
Nacional de Belas Artes. Fonte: LOTIERZO, 2017, p. 24.

Acontece que no final do século XIX, o pintor Brocos toca nesse emaranha-
do de referências para dialogar uma reversão, ou seja, a redenção das gerações
de Cam a partir de uma possível aproximação da brancura da pele ou da po-
sitivação da miscigenação, questões difundidas e intensamente debatidas pe-
las academias e centros culturais do país naquele contexto. Na tela, o cenário é
simplório, quase rural e ambientado por uma casa de pau a pique, técnica anti-
ga de construção que combina madeira e barro. Em perspectiva vertical, o lado
esquerdo é composto pelos tons de ocre da parede e do chão de terra batida,
tendo ainda uma palmeira verde de porte pequeno que não está plantada dire-
tamente no chão, mas em uma espécie de lata ou vaso; do lado direito, caracte-
rizado pelo interior da residência, é possível avistar com alguma dificuldade, por
conta da pouca iluminação, alguns móveis e um varal com três peças de roupa.
Existe ainda um degrau que divide a porta de entrada do calçamento de pedras
e há exatamente no centro de toda a composição um banco de madeira.

Detalhemos o quadro por suas personagens: da esquerda, vemos uma mu-

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lher negra retinta e de idade avançada com os pés no chão, a avó da família. É
a única pessoa que se mantém de pé na pintura e tem a cabeça, os olhos e as
mãos voltadas para o céu, gesto que possivelmente representa agradecimento
ou benção por graça alcançada. Serena, ela usa um lenço branco com detalhes
azuis e vermelhos que contrasta com a cor de pele do seu rosto, ao mesmo tem-
po que também esconde seus cabelos e suas orelhas. Veste blusa ou camisa azul
celeste, um casaco esverdeado com as mangas puídas e saia longa com algumas
variações de vermelho. A mulher se coloca na frente da palmeira e sua postura
alude às reproduções de santas milagreiras e ícones do catolicismo, ainda mais
se considerarmos que os galhos e folhas da planta conferem um esplendor, ar-
tefato empregado em muitas representações dos protagonistas do cristianismo.

No centro, a filha segura seu neto no colo. A mulher negra de cor mais clare-
ada que a velha senhora, está sentada no banco de madeira e usa camisa branca
estampada de poá e mangas bufantes, saia longa com a tonalidade mais viva
que a peça usada por sua mãe e um xale listrado em tons de azul que recobre
parcialmente o corpo. É possível ver apenas um e uma pequena parte de seu pé,
calçado por sapato fechado e esverdeado. Com expressão tranquila e esboçando
um leve sorriso, a mulher tem os cabelos presos por um coque na parte central
da cabeça. Ela olha para o filho enquanto aponta com o dedo indicador da mão
direita para o ventre da avó do menino. Em resposta, o bebê olha fixamente para
a senhora enquanto acena com a mão direita. O movimento poderia ser trivial
para os nossos olhares, caso a forma com que mãe e filho se posicionam não
dialogasse com os modelos imagéticos da Virgem Maria. Nesse sentido, o ato da
criança ganha um caráter de bendição e reconhecimento. Outro elemento que
colabora para tal leitura, é a laranja segurada por ele na mão esquerda, formato
recorrentemente apresentado nas obras artísticas de Jesus como o domínio do
globo terrestre. Por suas características físicas, o menino tem os cabelos cas-
tanhos, olhos claros, vestimenta branca com detalhes azuis e os pés descalços,
além de ser a figura mais alva da pintura.

Na sequência e relativamente isolado da cena por sua posição corporal, o


patriarca da família está sentado na beira da porta de madeira, ao mesmo tempo

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que volta os olhos para o filho no centro da tela. De cabelos lisos, o homem bran-
co usa camisa de gola padre com uma coloração encardida, calça de alfaiataria
cinza e chinelo estilo mule/alpargata de couro marrom. Confortável, ele cruza
as pernas com o auxílio das duas mãos e admira com certa alegria e orgulho a
pequena criança. O entusiasmo pode ser confirmado pela crítica da época que
qualificou o caipira imigrante de Brocos pela “vaidade do homem, olhando-se
no espelho humano”, consideração do escritor e político Coelho Netto (1864-
1934) em 1895. Outro aspecto relevante da composição é que, sozinho, o pai habi-
ta praticamente todo o canto direito da paisagem, inclusive é o único a pisar no
pavimento, apesar de sua esposa ser estrategicamente pintada na transição do
revestimento para a terra.

Em Retórica dos Pintores (1933), Modesto Brocos escreve que a principal


preocupação de um artista tem de ser apresentar o “argumento ou o assunto”
de sua pintura com novidade e que ela não se assemelhe a nenhuma outra obra
já vista (p. 13). Para o pintor e professor, é dever que uma tela não “traga à memó-
ria” outros quadros e que o autor tenha certo domínio sobre a temática para que
a esboce de maneira original (p. 14). No entanto, produzir algo novo não consisti-
ria, para Brocos, em retratar o inédito, mas perseguir um caráter próprio, produ-
to do esforço imaginativo do artista em se apropriar de determinados assuntos,
manter algum distanciamento daquilo que outrora havia o inspirado e produzir
algo aparentemente diferente, “tanto na disposição como na expressão” (p. 91).

Talvez A Redenção de Cam (1895) “trapaceie” em alguns aspectos com os


preceitos artísticos de seu próprio criador, tendo em vista as ligações com a ima-
gística cristã e o diálogo com mitos religiosos, como Cam. Ainda assim, há de se
considerar que mesmo remetendo ao imaginário construído entorno das repre-
sentações de Maria entronada ou da Sagrada Família, os meios com que Modes-
to Brocos apresenta essas recorrências tornam a pintura, por seu tema e formas,
totalmente originais. Isso significa pensar que a partir dos modelos e referências
difundidas pela arte europeia, base de estudo do pintor, Brocos tenha vislumbra-
do brechas para reconstruir sua madona abrasileirada, hipoteticamente produzi-
da entre as inspirações de grandes mestres da arte ocidental e através da própria

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observação do artista em terras brasileiras.

Nesse sentido, “o objeto iconográfico nos permite entender não a maneira


de sentir ou de pensar de um artista, mas a realidade intelectual que o circunda-
va e sua ação sobre ela, da qual resultou, em sua obra, reflexo desta época” (VEN-
TURA, 2018, p. 09). Da mesma forma, a reflexão visual nos leva a organizar uma
série de pensamentos sobre as escolhas pictóricas ou as intenções (BAXANDALL,
2006) dos artistas em seus contextos, ao mesmo momento que também lança
atenção ao nosso próprio modo de interpretar o tempo. Acontece que aqui, o
tempo não pode ser medido apenas pela cronologia progressiva ou pelos gran-
des acontecimentos bélicos e políticos da história. Ao lidarmos com as imagens,
adentramos em espaços temporais e atemporais que, quase sempre, se lançam
para fora do próprio tempo, quer dizer, de um ambiente da memória social que
fixa determinadas representações e determinados gestos no imaginário coleti-
vo e essas imagens retornam em períodos, sociedades e tempos diferentes, de
maneira circular.

Aponta Malraux (1965) que se tratando das visualidades, uma obra apenas
se concretiza pictoricamente com o reforço de outras imagens e que muitas ve-
zes, uma pintura determinada tenta dialogar ou reconstruir modelos já estabe-
lecidos. Para compreender melhor esse argumento, consideramos necessário
apreender o conceito de iconografia do historiador da arte Panofsky (1991). O ter-
mo parte do anseio em classificar, coletar, enumerar, unir e/ou descrever a partir
e com as imagens, temas e formas análogas. Com base no método iconográfico,
arriscamos traçar pontes históricas e estabelecer possíveis origens de modelos,
repetições e distanciamentos ou ainda, agrupar um conjunto específico de obras
que viabilizem futuras interpretações.

Em geral, a iconografia aborda temáticas e expressões similares nas obras


de arte. Diante do tema, Panofsky (1991, p. 48-49) avalia três unidades impor-
tantes: o “tema primário ou natural”, que diz respeito ao reconhecimento das
formas, seja pela cor, linhas de desenho, materiais ou motivos artísticos; o “tema
secundário ou convencional”, relacionado à ligação de determinadas colorações
e traços em assuntos, personagens ou conceitos; e o “significado intrínseco ou

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conteúdo”, associado aos diferentes valores e distintos usos das imagens por so-
ciedades e momentos históricos divergentes2. O autor exemplifica seu procedi-
mento apoiado na figura de São Bartolomeu, um dos doze apóstolos de Jesus e
recorrentemente representado com uma faca na mão. Para Panofsky (1991), caso
o homem fosse elaborado na posse de qualquer outro objeto, não seria mais Bar-
tolomeu, uma vez que desvincularíamos seus temas da obra.

Da mesma maneira, certas reproduções maternas aludem inevitavelmente


à caracterização das madonas dentro e fora dos escritos bíblicos, em razão de
retornarem aos mesmos elementos pictóricos e caracterizações imagéticas. Ao
longo do tempo, muitas Marias foram produzidas na arte e a partir dos postu-
lados do historiador Louis Réau, Pinto (2014) e Passos (2015), destacam quatro
grupos de iconografia mariana da arte ocidental: a Virgem antes do nascimento
de Jesus, simbolizada na figura de Imaculada Conceição; madona com o menino
no colo, intitulada Maria em Majestade ou Maria em Ternura; as representações
da Virgem Dolorosa, retratada como Virgem Piedosa ou de Pietá; e por último,
Maria Tutora ou da Misericórdia do Rosário, representada pela instrução cristã e
a catequização. Para nós, tocar no conjunto de madonas entronadas, ainda que
pela superfície, é um movimento importante na tentativa de compreender a for-
ça histórica e imagética de pinturas como A Redenção de Cam (1895).

De designação italiana, madona significa Virgem Maria ou mãe de Deus.


De acordo com a bibliografia aqui consultada, diferentemente de outras per-
sonagens bíblicas, Maria adquiriu uma infinidade de nomenclaturas de acordo
com regiões e tempos diferentes. Algumas delas: Santíssima Virgem, Nossa Se-
nhora, Santa Maria, Mãe de Deus ou Jesus, entre outras. É ela quem recebe o
maior destaque feminino do culto católico e, segundo Carvalho (2011), a imagem
é indissociável das devoções no cristianismo, ou seja, a crença na figuração ma-
terna da Virgem perpassa a fixação de sua própria dimensão corpórea, o que a
torna visível para os fiéis e para os observadores das obras de arte, sem contar
que no período medieval a catequização e a educação religiosa foram assidua-
mente transmitidas de forma visual.

2 O “significado intrínseco ou conteúdo” também está relacionado ao método iconológico e


a construção interpretativa de significados.

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As manifestações transcorrem os séculos, ainda que de diversas formas, dando


possibilidades para se buscar desde estatuetas paleolíticas, deusas da antigui-
dade, Virgens paleocristãs nos mosaicos de Ravena, miniaturas e ícones bizanti-
nos, Madonnas renascentistas, as Nossas Senhoras alegóricas propagadas pelo
Barroco, as Virtudes clássicas, e as mulheres enigmáticas, ferozes, mortas e eté-
reas do Simbolismo (ZORDAN, 2017, p. 262).

Ainda que na diversidade, boa parte das representações marianas do oci-


dente foram manifestadas efetivamente nos séculos XII e XIII. Nesse contexto, a
iconografia das madonas ganhou forma e força com a restauração da arquitetu-
ra europeia e o surgimento de novas catedrais (ROQUE, 2017), onde recorrente-
mente Maria se tornava padroeira e ganhava imageticamente os vitrais, pinturas,
esculturas e outras técnicas artísticas que contribuíram para o fortalecimento da
personagem. Outro ponto fundamental para a consolidação do ícone da Virgem
é que enquanto madona, foi e é retratada ao lado de Jesus, o que favoreceu sua
ocupação em muitos espaços e a hierarquização de seu culto, em relação aos
outros santos do catolicismo.

Acontece que nem sempre a iconografia mariana foi recepcionada pela


Igreja com aceitação e desprovida de grandes impasses. Em primeiro momen-
to, ainda no considerado cristianismo velho ou oriental, a imagem de Maria le-
vantou alguns debates diante da impossibilidade de sua santificação, tendo em
vista a insuficiência de milagres, trajetória bíblica esparsa e a falta de relíquias e
objetos pessoais, aspectos importantes para a criação de mártires cristãos. Ape-
sar disso, as discussões encontraram certo consenso na presença mitológica do
próprio corpo da Virgem que teria subido aos céus em carne e alma como trans-
posição para a eternidade (PASSOS, 2015). Ainda assim, a tradição bizantina re-
tratou temáticas relacionadas a vida de Maria desde o século II (ROQUE, 2017),
tendo Roma um papel considerável na difusão e propagação das representações
sagradas da mãe de Cristo.

Mesmo diante de formas análogas e antecessoras, um registro, em específi-


co, destruído em 1453 pelos Turcos na tomada por Constantinopla é, para Roque
(2017), essencial na compreensão do tipo iconográfico das madonas e da conso-
lidação de determinadas indumentárias e posturas. Chamada de Theotókos, do

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grego portadora de Deus, a obra retratava Maria com o menino Jesus no colo.
Enquanto a mão esquerda amparava a criança, a direita apontava para o menino
aludindo a ideia de apresentar o verdadeiro caminho para a salvação. Em res-
posta, Jesus acenava um gesto de benção. Apesar de irrecuperável, seu modelo
serviu como ponte e foi transmitido principalmente pela arte ocidental, ressur-
gindo em muitas obras da posterioridade. Aqui, cabe destacar que a madona de
A Redenção de Cam (1895) se ancora na mesma noção das representações de
Theotókos, inclusive os lados e usos das mãos, a não ser pelo apontamento do
dedo da mãe/Maria que já não parte para a criança, mas encontra no espaço o
ventre da avó.

Figura 2: Théotókos ou A Virgem Basilissa (século VI) [corte]. Ravena: Basílica de São Vital. Fonte: PINTO, 2014,
p. 185.

Outro diálogo com a pintura de Modesto Brocos é que na Espanha, local


de origem do artista, o imaginário mariano tem origens na imagística pagã e
nas culturas pré-cristãs, frequentemente vinculado ao culto da Grande Mãe da
terra ou das Virgens Negras. Depois, em tempos de colonização nos territórios
americanos, Maria foi apoderada como espectro da perfectibilidade feminina e
modelo a ser seguido nas colônias, mesmo sexualmente (PASSOS, 2015). O que,

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mais uma vez, nos leva a pensar na produção da própria pintura de 1895 e na
inserção da mulher negra no centro do debate acerca de genealogia, cidadania
ou futuridade brasileira.

Ao observamos obras de diversos tipos e importância, pensamos por figuras,


esteticamente, por sensações. Sua persistência as torna ícones, suas insistentes
aparições as fazem mito, seus nomes criam temáticas: as figuras parecem es-
truturais, mas há nelas forças que extrapolam as próprias formas. Nas relações
de forças as figuras compõem crenças, valores, apelos, sentimentos e toda uma
teia de significações e delineamentos plásticos que quebram com os significa-
dos morais. Nas figuras da Virgem há signos que envolvem drapeados, dobras,
invaginações, linhas hiperbólicas que mostram mais um diagrama maleável do
que uma estrutura onde variáveis de tempo e espaço com certa facilidade se-
jam referendados (ZORDAN, 2017, p. 256).

Diante disso, a convivência e sobreposição de tempos distintos nos faz re-


fletir sobre a persistência de determinadas formas, representações e da noção
de imagens sobreviventes a partir da iconografia das madonas europeias. Re-
fletindo o tempo e a imagem, Warburg (2015) e posteriormente Didi-Huberman
(2013) desenvolvem o conceito de Nachleben, sobrevida ou vida após a morte,
em tradução livre do alemão. Nele, torna-se possível entender a reformulação de
certas imagens não apenas como cópias ou reproduções, mas de um elemento
de sobrevivência da própria cultura. A sobrevivência das imagens recai na análise
e reflexão crítica de que as visualidades, muitas vezes, estão encharcadas e carre-
gam memórias de um passado- presente.

Podemos aqui falar da iconografia das madonas como um próprio elemen-


to de Nachleben, visto que interligam a sobrevivência de determinados gestos,
indumentárias, olhares e emoções em uma espécie de teia ou rede de imagens.
Dessa forma, correlacionar a pintura A Redenção de Cam (1895) com a imagísti-
ca cristã sobre a figura da Virgem Maria se aponta não pela busca em comprovar
que Modesto Brocos se inspirou ou partiu de obras específicas (mesmo abordan-
do seu amplo conhecimento sobre arte religiosa europeia nos próximos parágra-
fos), mas refletir que a própria imagem é capaz de construir e acessar espaços do
pintor e do observador no inconsciente pessoal, ou seja, no nosso próprio banco
de imagens cerebral e no imaginário coletivo, quer dizer, na apuração da ima-
gem como parte do processo de subjetivação histórica.

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Pensar por Nachleben ou pela sobrevivência das imagens é assimilar os


“pontos de passagem ou parada (cristalizações, formas): de forças que vêm do
passado e prosseguem, na superfície e/ou no subsolo, consciente e/ou incons-
cientemente” (WARBURG, 2015, p. 14). Em outras palavras, é captar um pequeno
sopro de vida nas formas pictóricas e a partir dessas frestas, descortinar épocas,
contextos e culturas antagônicas que de alguma forma se chocam no presen-
te. Por essa perspectiva, imagens conservam uma lembrança ascendente e A
Redenção de Cam (1895), nos “assombra” por reviver, através de seu jogo visual,
algo remoto – uma herança das representações da Santa Maria e seu filho.

Figura 3: Modesto Brocos. A Redenção de Cam (1895) [corte]. Óleo sobre tela. 199 cm x 166 cm. Rio de Janeiro:
Museu Nacional de Belas Artes. Fonte: LOTIERZO, 2017, p. 24.

Figura 4: Giotto di Bondone. Madonna em Majestade com Santos (1310) [corte].Têmpera sobre painel de ma-
deira Florença: Galleria degli Uffizi. Fonte: COELHO, 2015, p. 213.

Apesar de algumas exceções posturais e físicas, a estrutura formal da ico-


nografia das madonas e parte do êxito de sua sobrevida em tempos modernos,
está na relação que a mãe desenvolve com o filho em cena. Entronada, a mulher
é repetidamente caracterizada por uma feição serena enquanto envolve a crian-
ça com o próprio corpo. De acordo com Becker (1999), as cores empregadas nos

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trajes das figuras católicas estão repletas de significados e simbolizações. Por


ele, entendemos que a cor azul, recorrente nas vestimentas de Maria, faz refe-
rência ao vínculo com o divino, significando perseverança, alicerce e fidelidade a
Deus. Segundo Gage (apud LOTIERZO, 2013), a cor era reservada às imagens de
maior veneração pelo cristianismo medieval, tendo em vista que a obtenção de
seu pigmento carecia da extração de metais nobres e preciosos. Na pintura de
Brocos, o antigo manto azul marinho dá vez ao xale listrado com pelo menos três
tonalidades de azuis que revestem os ombros, braços e quadril da mulher.

Da mesma maneira, executado habitualmente recostado e balançando os


pés (ROQUE, 2017), a criança ganha o branco e os tons mais claros nas vestes,
representação da pureza, perfeição e luminosidade (BECKER, 1999). Com alguns
ornatos em renda e fitilho azul, a roupa da criança de A Redenção de Cam (1895)
é predominantemente clara e em alguns pontos, a iluminação resplandece sua
coloração branca. Quem sabe não por acaso, o pequeno Jesus tropicalizado de
Brocos seja tão similar às representações cristãs. O pintor escreveu em seu livro
de 1933 que o personagem principal de um quadro necessariamente tem de ser
o mais luminoso e posicionado ao centro da tela. Para ele, mesmo que os outros
elementos de uma tela não estejam bem pintados ou produzidos, se o protago-
nista estiver enriquecido pelo desenho, “as outras, sem o estar, parecerão termi-
nadas” (BROCOS, 1933, p. 92).

Ainda que a comprovação do contato de Modesto Brocos com a imagística


das madonas cristãs não seja tão necessária, tendo em vista que essas repre-
sentações impregnaram o imaginário ocidental, há de se considerar algumas
passagens importantes em suas obras literárias de 1915 e 1933. Primeiro em A
Questão do Ensino de Bellas Artes (1915), Brocos aponta a importância de Giotto
di Bondone (1267-1337), relevante pintor e arquiteto italiano, para a produção de
pinturas decorativas em igrejas3. Depois, em Retórica dos Pintores (1933), o artis-
ta retorna em Giotto, Sandro Botticelli (1444-1510) e Vittore Carpaccio (1465-1520)
3 Para Brocos (1915), Giotto e outros expoentes da arte renascentista cuidavam de todos os
processos artísticos e arquitetônicos das catedrais, como a pintura das cenas dos padroeiros e ou-
tros detalhes ornamentais. Como exemplo, o pintor cita a Basílica de São Francisco de Assis exe-
cutada por Giotto na Itália. Em outros momentos, o próprio Brocos defendeu o ensino de artes
decorativas na Escola Nacional de Belas Artes e o Frontão da Biblioteca Nacional no Rio de Janeiro
foi idealizado por ele no começo do século XX.

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para apresentar alguns métodos de estímulo artístico.

Segundo Brocos (1933), antes de produzir uma pintura seria preciso investi-
gar obras dos considerados mestres quatrocentistas, afim de incentivar a própria
imaginação. Conta que quando esteve em Roma, conheceu artistas que passa-
vam muitas noites observando revistas ilustradas e outras fontes de imagens até
o esgotamento, posteriormente e carregados de inspiração, eles desapareciam
para a feitura de suas telas. Desses processos, passou a refletir que autores do re-
nascimento, reduto da criação de tantas madonas, tinham o poder de inspirar e
dialogar artisticamente com o público. Daí em diante, cita a necessidade de todo
o pintor criar uma coleção de gravuras e fotografias de tais obras, para recorrer e
ativar a inspiração previamente.

Nesse aspecto, é instigante pressupor que o próprio Brocos poderia ter re-
produções de alguma madona renascentista em sua coleção particular, imagens
que possivelmente tenham o inspirado em 1895. Outro ponto significativo é que
Carpaccio, citado pelo pintor, defendeu uma pintura calculadamente harmonio-
sa, que agradasse os olhos do observador e introduziu detalhes naturalistas nas
tramas religiosas (ACIDINI, 2013), elementos que similarmente comportam A Re-
denção de Cam (1895). Na prática, o pintor italiano transferiu as cenas e ações bí-
blicas para os cenários da vida urbana de seu período, a Veneza do renascimento
europeu. Assim, ao pintar sua Madonna e benção criança (1505), Carpaccio acres-
centou ao fundo muitas torres altas, praças, animais, pontes e construções que
remetem ao período medieval. Inevitável não pensar nas escolhas deixadas por
Brocos no final do século XIX, ao vincular a mesma forma da iconografia mariana
para o chão de terra batida, a parede de pau a pique, a palmeira e os componen-
tes que sustentam um tom caipira e rural ao Rio de Janeiro naquele momento4.

4 O apontamento não é vago se ponderarmos que os artistas do oitocentos olharam e se


inspiraram no período medieval e renascentista, tentando compreender ou produzir o seu próprio
tempo (PESAVENTO, 2002).

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Figura 5: Vittore Carpaccio. Madonna e benção criança (1505). Washington: National Gallery of Art. Fonte: ACI-
DINI, 2013, p. 187.

A intertextualidade produzida por Modesto Brocos em 1895 se apresenta


como uma manipulação de diversos elementos, diferentes usos e intenções bor-
radas. Se olharmos sua apropriação apenas como determinada subversão re-
ligiosa, talvez inflamemos a interpretação e sobrecarreguemos a pintura com
alguma nuance de anacronia; por outro lado, se somente romantizamos a ima-
gem e sua forma, passivamente esconderemos seu contexto e a responsabilida-
de do ofício artístico. De apreciação complexa, A Redenção de Cam (1895) acaba
por se tornar uma obra que arquiva muitas outras, como um espaço de reflexão
histórica. Ainda assim e independente da leitura, o que não se pode negar é que
o modelo mariano permanece vivo na arte, no quadro do pintor espanhol e no
acervo mnemônico do expectador.

Como evidenciou a historiadora Capel, as “imagens não representam, ima-


gens abrem uma série de perspectivas de correlações e possibilidades de leitura
e associações” (2015, p. 353). Assim, o nosso objetivo foi o de apreender a sobrevi-

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vência das visualidades enquanto formas pensantes, das quais podemos refletir
e capturar a sobreposição de camadas de tempo que se movem (passivamente
ou não) em comunhão. A persistência dessa sobrevida, componente inicial do
esforço de Warburg (2015), seu Atlas Mnemosyne5 e o propósito do estudo histó-
rico visual, é também um conhecimento que se lança para o espaço da memória,
uma vez que a obra de arte é possuidora de lembranças e especificidades de
tempo. Nesse sentido, a imagem provoca o atravessamento da própria história
como habitualmente a conhecemos (DIDI-HUBERMAN, 2015), uma conexão do
passado com os nossos possíveis presentes.

Por sua materialidade, o quadro A Redenção de Cam (1895) é capaz de de-


sencadear muitos pensamentos e interpretações, contudo, é importante frisar
que essas leituras nascem da tela, mas especialmente do seu contato com o ob-
servador. Isso também significa pensar que muitas dessas reflexões não podem
ser desassociadas do universo cultural de seu analista, seus meios e a geração
da qual pertence (COLI, 2008). Tal apontamento é necessário para distanciar o
quadro de uma possível representação, revisionismo ou evidência histórica. Em
outras palavras, apesar da pintura produzida por Brocos no final do dezenove
apresentar aspectos da própria realidade, ela é insuficiente para sintetizá-la, ou
seja, a obra não pode ser vista como uma continuidade da devoção às figuras
marianas, nem tampouco, sobre o dito projeto de branqueamento da população
brasileira, uma vez que as imagens não são um reflexo puro da sociedade, são
montagens que podem, inclusive, distorcer o mundo (BURKE, 2004).

Por fim e assim como a historiadora Mauad em seus estudos fotográficos,


compreendemos as obras de arte “como um ato simbólico e as imagens nascem
da necessidade de simbolização” (2014, p. 115). Nesse sentido, o trânsito visual
aqui proposto, nasce como uma tentativa de apontar A Redenção de Cam (1895)
enquanto uma imagem que recicla um modelo pictórico já estabelecido. Ao dia-
logar com as representações iconológicas e iconográficas da Virgem Maria, a tela
5 Em um mundo tão imagético, o mergulho de Aby Warburg entre 1924 e 1929 consistiu
em arquivar imagens de diferentes técnicas, tempos e métodos em pranchas/painéis. O exercício
histórico se orientou a partir de imagens que migravam de uma época para a outra, criando pontes
seculares, padrões recorrentes, aproximações, similaridades e distanciamentos estéticos entre a
Antiguidade Clássica e o Renascimento Italiano. O nome da pesquisa retorna à Mnemósine, deusa
grega representante da lembrança e da memória

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desabrocha uma experiência de rememoração, um movimento análogo capaz


de construir pontes no tempo e se tornar um espaço privilegiado de observa-
ção histórica da nossa própria cultura. Entre tantas histórias e diálogos dentro e
fora de suas molduras, a tela produzida por Modesto Brocos em 1895 provoca do
observador aquilo que apenas a imagem, por suas especificidades, é capaz de
historicizar e dizer.

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FIGURAS DO FEMININO NA VOZ DE ELY CAMARGO

Nayara Crístian Moraes 1

Neste recorte busco resgatar algumas sonoridades interpretadas por Ey


Camargo que nos possibilitam apontar reflexivamente delineações de femini-
lidades, tendo como perspectiva os estudos de gênero e os estudos histórico
culturais amparados por sensibilidades e musicologia histórica.

Ely Camargo, principal agente do trabalho em questão, nasceu na cidade


de Goiás em fevereiro de 1930, mudou-se para Goiânia em 1938, falecera na mes-
ma cidade em novembro de 2014, aos 84 anos de idade. Filha de Élcima Veiga
de Camargo e Joaquim Edson Camargo, e bisneta do conhecido artista escultor
santeiro goiano Veiga Valle. Embora descendesse de família influente, Ely teve
uma vida regada na infância e adolescência, momento em que a família vivia
apenas com o salário de professor do pai. Ely respirava música desde pequena.
Sua experiência em família teve grande influência em suas escolhas.

Busquei na obra da artista, nos discos aos quais tenho acesso no mo-
mento, identificar nos enunciados cantados as imagens construídas em torno
de figuras femininas. Todos os discos tiveram como intérprete e/ou compositora
Ely Camargo. Trata-se de um repertório diversificado, composto por diferentes
gêneros, ritmos e estilos musicais. Embora na escrita da tese de doutorado eu
me atente para o disco e as canções como objetos polissêmicos, formados por
sons, imagens visuais e sonoras, textos escritos e cantados e elementos estéticos
e técnicos variados, privilegiarei neste momento os discursos e representações
que se sobressaem nas letras das músicas, buscando, neste primeiro momento,

1 Historiadora. Doutoranda em história no PPGH-UFG sob orientação da Dra Heloísa Selma


F. Capel. Mestra em História (PPGH-UFG, 2017). Estagiária docente na Faculdade de História da
UFG. Email: ncm.hist@gmail.com

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evidenciar a imagem construída em torno da figura feminina, baseando me nas


temáticas de feminilidade nos estudos de gênero.

Para tal exercício identifiquei 10 músicas dentro da obra acessada, como


referido acima, que delineiam imagens femininas sacras e profanas da mulher.
Tais mulheres aparecem nas paisagens sonoras cantadas, ora como santas, ora
como transgressoras, indignas. São mães, ou não, ora beatificadas, ora sedutoras,
indutoras do pecado ou da santidade.

Para começar, trago duas canções de Ely Camargo que evocam a figura
de Iemanjá (ou Yemanjá). São duas canções compostas por diferentes compo-
sitores, ambas, entretanto, interpretadas por Ely nos seus próprios discos. Trata-
-se das músicas “Mamãe Iemanjá” (disco “Outras Canções da Minha Terra-1967 e
“Minha Terra”-1973) e Yemanjá (disco “Canções da Minha Terra” vol. 4 -1964), cujas
letras podemos observar logo a seguir2:

1. Yemanjá - 1964 (Composição e letra de Paulo Ruschell)

Seus brincos são as conchas que se banham nas praias do mar. Seus dentes são
as pérolas que ninguém inda pôde buscar.

Seus cachos são de ouro, ouro que o sol dá pro mar.

Que bonita as areia do mar, aiai! Que bonita as areias que dormem no fundo
do mar!

Quando eu canto é para salvar Yemanjá, que escolheu para seu leito as areias
do fundo do mar.

Vou cantar pra senhora que ouve meu sarava, vou cantar pra rainha que dorme
no fundo do mar, vou cantar pra areia onde dorme dona Yemanjá, vou contar
pras areias que dormem no fundo do mar.

Seus brincos são as conchas que se banham nas praias do mar. Seus dentes são
as pérolas que ninguém inda pôde buscar.

Seus cachos são de ouro, ouro que o sol dá pro mar.

Que bonita as areias do mar, aiai! Que bonita as areias que dormem no fundo
do mar!

Quando eu canto é para salvar Yemanjá, que escolheu para seu leito as areias

2 As sonoridades podem ser ouvidas em arquivo de áudio que acompanha o artigo. Estão
numeradas de acordo com a marcação feita em cada uma no texto. As datas que aparecem nas
canções se referem ao lançamento dos discos de Ely Camargo que as contêm.

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do fundo do mar.

2. “Mamãe Iemanjá - 1967 (Compositor Guerra Peixe. Com frangmentos de


Pontos de Macumba, recolhidos por Ely Camargo)

Ela é uma moça bonita. Ela é dona de conga. Erê, erê, lerá. Quando vem de Aru-
anda, sarava de umbanda, mamãe Iemanjá.

Aí eivem, vem a nossa rainha. Aí eivem sereia do mar. Erê, erê, lerá. Quando vem
de Aruanda, sarava de umbanda, mamãe Iemanjá.

Aí eivém a senhora das águas. Aí eivem mamãe Iemanjá. Erê, erê, lerá. Quando
vem de Aruanda, sarava de umbanda, mamãe Iemanjá.

Trata-se de duas músicas que reverenciam Iemanjá. A primeira composição


é executada apenas por voz e violão, em ritmo solene, arquitetado mais bran-
damente. Na performance vocal de Ely, a artista ressalta o sentimentalismo da
canção. Diferente da segunda composição, que foi composta no estilo e ritmo
de marcha-baião, por Guerra Peixe, mais animada, orquestrada por diferentes
instrumentos, principalmente o triângulo, instrumentos de percussão e instru-
mentos de sopro. É importante dizer que Ely teve a preocupação de inserir na
performance alguns fragmentos de pontos de macumba, o que confere à sono-
ridade uma autenticidade resguardada aos terreiros.

Ely Camargo não é a primeira, e certamente não a última, artista a interpre-


tar músicas que reverenciam a mãe Iemanjá, orixá feminino também conhecido
como Rainha do Mar em crenças de matriz africana como o candomblé e a um-
banda. Inúmeros artistas cantaram músicas que se referem à Iemanjá, dentre
eles Baden Powell, Maria Bethânia, Dorival Caymmi, Pepeu Gomes, Marisa Mon-
te, Fundo de Quintal e Vanessa da Mata. É importante lembrar que nos cultos de
matriz africana as sonoridades são essenciais e fazem parte dos rituais 3.

Iemanjá, além de guardiã dos mares, é cultuada e conhecida no Brasil, no


3 Alguns trabalhos que abordam as sonoridades nos rituais de umbanda e candomblé:
- ALMEIDA, André Luiz Monteiro de. A música sagrada dos ogãs no terreiro de umbanda
“ogum beira mar e vovó maria conga” da cidade goiana de itaberaí: representações e identidades.
2013. Tese (Mestrado em Música) - Escola de Música e Artes Cênicas, Universidade Federal de Goiás,
Goiânia;
- BAKKE, Rachel Rua Baptista. Tem orixá no samba: Clara Nunes e a presença do candomblé
e da umbanda na música popular brasileira. Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, n. 27, 2007, p. 85-
113;
- IKEDA, Alberto T. O ijexá no Brasil: rítmica dos deuses nos terreiros, nas ruas e palcos da
música popular. Revista USP, São Paulo, n. 111, out.-dez. 2016, p. 21-36.

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discurso popular, por ser dona de poderes ligados à fertilidade. Sueli Carneiro e
Cristiane Abdon Cury (CARNEIRO e CURY, 1993), ao falar sobre o poder feminino
nos cultos aos orixás, trazem avante as relações de gênero dentro dos cultos de
matriz africana. Acreditam que é no mistério da concepção da vida que reside a
associação da mulher ao segredo, ao temor do desconhecido, à natureza selva-
gem, às profundezas das águas e suas turbulências, à terra, ventre fecundo onde
tudo nasce e para onde tudo retorna, e ao fogo sensual que conduz ao encon-
tro”. Segundo elas os orixás femininos cultuados no candomblé como Oxum,
Iemanjá, Nanã, Obá, Ewá e Iansã, representam os aspectos socializados das Iyá
mi e “os aspectos “anti-sociais” das orixás femininas são temíveis por todo povo
de santo. A ira de Oxum pode provocar o desencadeamento dos aspectos con-
trários às suas qualidades. Dessa forma, enquanto provedora de filhos, quando
irada pode trazer a esterilidade e os abortos sucessivos, as enchentes, os males
do amor”. Exemplificam que Iemanjá, representa no seu aspecto perigoso a ira
do mar, a esterilidade e a loucura e que cada orixá representa uma força ou ele-
mento da natureza, “um papel na divisão social e sexual do trabalho, e como
desdobramento disto, a este papel estão associadas características emocionais,
de temperamento, de volição e de ordem sexual” (CARNEIRO e CURY, 1993, p. 23).

A música “Mamãe Iemanjá” faz referência à maternidade no título da can-


ção. No entanto, especificamente acerca de Iemanjá, Carneiro afirma o seguinte:

Se a sociedade patriarcal reduz a sexualidade feminina apenas à procriação,


as deusas africanas são mães e amantes. Iemanjá, mãe dos orixás, enfeitiça os
homens e os atrai ao seu grande ventre (o mar). Ela os devora porque é de tem-
peramento apaixonado e instável, ciumento e possessivo, ela é o mar, calmo e
plácido, violento e destruidor. Ela rejeita os filhos, ela os ama com furor. Ieman-
já, assim como Oxum, é um orixá ligado às águas. No Brasil é associada funda-
mentalmente às águas do mar. Em alguns mitos, é do rompimento dos seus
seios que nascem todos os orixás, daí sua estreita ligação com a fecundidade.
Em outro, ela é violentada por seu filho Orungãn, e deste incesto, nascem os
orixás (CARNEIRO e CURY, 1993, p. 26).

Obviamente, que o mito que a mostra como violentada não é abordada nas
músicas que se referem à Iemanjá, estupro ainda é assunto tabu, para se tratar
em músicas brasileiras de forma questionadora. No entanto, a beleza do orixá é
de fato enaltecida, em acordo com a narrativa acerca das deusas na África. Além

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do poder feminino que emana de Iemanjá, as duas músicas referidas eviden-


ciam a beleza e sedução da deusa das águas.

Ainda de acordo com Carneiro e Cury, é relevante apontar também que


o poder feminino nos cultos se faz presente mesmo diante de Oxalá, um gran-
de genitor masculino, pois a pena vermelha que as mulheres exibem nos ca-
belos representam o sangue menstrual e símbolo da concepção e fertilidade,
portanto, as mulheres participantes dos cultos de matriz africana percebem que
a dominação masculina não se explica pela sua natureza inferior. Tais mulheres
“descobrem”, enfim, que a Virgem Maria e Maria Madalena são forças latentes
em cada uma delas, e que não precisam abdicar de sua sexualidade para atingir
o reino dos céus. As deusas negras são mães dedicadas e amantes apaixonadas
(CARNEIRO e CURY, 1993, p. 35).

E por falar em Virgem Maria e Maria Madalena, observemos os enunciados


discursivos a seguir:

3. Nossa Senhora da Guia - 1978 (Folia de Valdomiro Bariani Ortêncio)

Ô de casa, nobre gente na sua porta chegou

Ô de casa, nobre gente na sua porta chegou

Nossa Senhora da Guia visitando os moradô

Nossa Senhora da Guia visitando os moradô

Quem tem sua esmola dá, filho de nossa senhora. Esta santa, virgem pura, lhe
proteja lá na glória. Esta santa, virgem pura, lhe proteja lá na glória

Esta santa é vossa guia neste mundo sofredô

Lhe promete lá no céu o galardão do senhor

Lhe promete lá no céu o galardão do senhor

4. Incelência- 1983 ( Cantigas de Velório tradicionais)

Uma incelência é da Virgem do Rosário, é do pranto, é do riso é do santo sacrário

Sacrário aberto, senhor saia fora e acompanha essa alma que vai para glória.

Ave Maria cheia de graça, Ave Maria cheia de graça.

Eu plantei um pé de rosa na horta da mãe de Deus. Deu um vento na roseira,


balançou menininho Deus.

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Lá vem as três conchinha, todas três conchinha é minha. Uma chama pastaflor,
a outra chama pastorinha.

Uma incelência da Virgem, Senhora da Solidade. A nossa mãe é bendita e do-


lorosa imaculada.

5. Bendito de Santa Luzia – 1983 ( Canto de rua recolhido por Ely em Juazeiro
do Norte em 1980)
Bendito louvado seja
Pelas dores de Maria
Que Deus já era serva
Senhora Santa Luzia
Santa Luzia era cega
Mas esmola não pidia
Que de Deus já era serva
Senhora Santa Luzia
Tanto pobre penitente
Batendo de porta em porta
Quem não tiver cego na porta
Também não quereis a minha

Santo Padre, de Roma


Pregava e também dizia
Quero te louvá na terra
Senhora de Santa Luzia
Ofereço esse bendito
A senhora de Santa Luzia
Que me livre da cegueira
Senhora Santa Luzia
Ofereço essa esmola
Dada de bom coração
Neste mundo ganhe um prêmio
No outro a salvação
Ofereço essa esmola
Que deste à Santa Luzia
Conserva a luz em seus olhos
Senhora Santa Luzia
Nossa Senhora das Dores
Lhe potreja todo dia
No reino do céu se ache

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Com toda sua família


No lado da mão direita
Nos pés de Virgi Maria

6. Cantiga de Mendiga (Canto recolhido por Ely em Palmeira dos índios-Ala-


goas, em 1973)
Ô moço, me dê uma esmola
Cristão de Nosso Sinhô
A Mãe de Deus do Amparo
É quem nos dá valô
Por caridade, eu lhe peço
Me dê esmola, sinhô

Quando eu cheguei nessa feira


No pino dá meio-dia
Encontrei a feira arrumada
De Toda a mercadoria
Uns pra cima, outros pra baixo
Uns comprava, os outro vendia

O padre véve da missa


São cristão de ajudá,
Eu vivo das minhas esmola
Quando bom cristão me dá

Tô cansada de pidi
A todos meus irimãos
Aqueles que for devoto
Da Virgi da Conceição
Por caridade, eu lhe peço
Me dê uma esmola, irmão

Trata-se claramente de cantos com teor religioso, cristãos católicos. Em to-


dos há uma regularidade discursiva. Todos têm como imagem central santas
reconhecidas dentro do catolicismo brasileiro, figuras femininas sacralizadas.

O primeiro canto é uma folia de reis composta por Bariani Ortêncio, que
ganha vida na voz de Ely Camargo. A composição sonora é em ritmo alegre mo-

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derado, cantado em tom empolgante, mas com reverência. “Nossa Senhora da


Guia” aparece no disco “Canções do Meu Brasil”, lançado em 1978. Nossa Senhora
da Guia é um título atribuído à santa mais famosa do Brasil: a própria Virgem
Maria.

Segundo a historiadora da arte Maria Beatriz de Mello e Souza (2002)4,


na história das religiões os temas relacionados à vida da virgem são conhecidos
como mariologia. As “santas mães”, ancestrais de Cristo, são muito cultuadas no
ocidente. Segundo Mello e Souza, a Virgem Maria e sua mãe, Anna, foram as
santas mais populares no Brasil ao longo dos séculos XVII e XVIII. E é justamente
a maternidade sacralizada a característica mais associada às santas. A santa ga-
nha diferentes nomes no Brasil, ao longo da história. Nos enunciados dos cantos
acima ela é mencionada também como Virgem do Rosário e Senhora da Solida-
de. Suas dores são exaltadas, como se tais dores fossem um sacrifício em prol de
um bem maior.

A historiadora Cristiane de Castro Ramos Abud (ABUD, 2008), reitera, que


a concepção de mulher relacionada ao mal, ao carnal, ao profano no campo re-
ligioso parte da imagem de Eva, mas para que haja salvação para esta mulher o
dever e a alegria da maternidade na dor e aparecem como recurso de absolvição
de pecados. Afinal, o sexo para ato reprodutivo no seio cristão fundamentalista
não é pecado, diferente das relações carnais associadas ao prazer.

Na faixa 4 do Lado B do disco “Cantiga do povo: Água da fonte”, lançado


em 1983, Ely Camargo traz à cena uma senhora que cantava o Bendito de Santa
Luzia em dezembro de 1980, na cidade de Juazeiro do Norte, no Ceará. Ela carre-
gava consigo um oratório com a imagem de Santa Luzia, santa adorada por ser
consagrada como a portadora da luz e protetora dos olhos, a que vendeu tudo
que tinha e deu aos pobres. A senhora contou a Ely que fizera uma promessa de
tirar esmola, carregar a imagem e rezar o bendito de Santa Luzia caso ficasse
curada. Sempre que se colocava uma moeda ela continuava a cantar. Ely Camar-
go gravou seu canto e a ouviu até que pudesse “apreender o sentido e dar cor

4 A historiadora investiga o retrato cultural dos papéis atribuídos à maternidade em: SOUZA,
Maria Beatriz de Mello e. Mãe, mestra e guia: uma análise da iconografia de Santa’Anna. Topoi, Rio
de Janeiro, dez. 2002, p. 232-250.

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àquelas palavras” tão reais para ela. O que era um canto sem sentido e valor para
muitos que ouviam aquela mendiga, se convertia em valor extraordinário para
Ely Camargo (ELY, 2014).

Outra memória evocada pela música recolhida e interpretada por Ely, fai-
xa 5 do lado A do disco, “Cantiga da mendiga”, traz à cena uma cantiga de men-
digos recolhida em Palmeiras dos Índios, Alagoas em 1973, por Ely Camargo.
Tanto o bendito de Santa Luzia quanto a cantiga da mendiga foram transpostas
para o disco com arranjos e timbres elaborados por Ely e parceiros instrumen-
tistas e maestros. Nas palavras da artista a melodia era cantada por mendigos
nas ruas, feiras, mercados, com a finalidade de impressionar, comover e atrair a
atenção das pessoas que passam e receber assim a esmola. A mendiga cantava
melodia conhecida, um Bendito de Juazeiro do Norte, Ceará. Sobre os benditos:
Para o frei Pedro Sinzig os benditos simplesmente são cantos sacros populares,
enquanto que para Luís da Câmara Cascudo, no Dicionário do Folclore Brasileiro
os benditos são cantos religiosos com que são acompanhadas as procissões e,
outrora, as visitas do Santíssimo (POEL, s.d.). Mas esse bendito tinha versos cria-
dos por ela com a finalidade específica de pedir esmola. No Nordeste era muito
comum que Eli encontrasse o mesmo bendito executado por Zabumba, que é
um instrumento de percussão, uma espécie de tambor que tradicionalmente
era feito de madeira com peles esticadas por cordas. Observamos palavras can-
tadas considerando o traço popular. Palavras de um português informal, ditas de
modo simples, costumeiro. Simples, carregado de hábitos e preces cotidianas,
ditas de maneira natural pelos pedintes. Valorizando aquele canto, Ely se propu-
nha a interpretar a obra que ouvia nas ruas. De valor inestimável, seus registros e
interpretação evidenciam tradições, identidades e cultura. O canto da mendiga
evocava imagens de práticas culturais, religiosas, mas também da realidade so-
cial cristalizada em alguns pontos do país.

Todavia, a imagem da mulher construída na obra de Ely Camargo não é


de todo santificada. Algumas vezes ela é, pelo contrário, difamada, profanada
pejorativamente. Trata-se, neste caso, dos discursos em torno da mulher faceira,
mulata sedutora, que enreda, engana e trai, interesseira em sua essência. Veja-
mos os enunciados das canções abaixo:

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7. Mãe Maria (Lundu) - 1964


Mãe Maria te pede favô
Pra num querê mais bem pai João
Mãe Maria te pede favô
Pra num querê mais bem pai João

E te prego na cabeça o orimonho


E te prego na barriga o facão

Óia só Mãe Maria, seu nego ta padecendo


Vai pra roça, vai gemendo

Hum hum, hum hum, hum hum, hum hum

Mãe Maria te pede favô


Pra num querê mais bem pai Vicente
Mãe Maria micê bem sabe
O que é que meu peito sente

Óia só Mãe Maria, seu nego ta padecendo


Vai pra roça, vai gemendo

Hum hum, hum hum, hum hum, hum hum

8. Batuque – 1964 (tradicional-tema 2)

A mulata é bonita, é sim sinhô

A mulata é carinhosa, é sim sinhô

Ela gosta de dinheiro, é sim senhô

Se é por causa de dinhero, dinheiro eu dô

9. Bia-tá-tá, bia-tá-tá – 1967 (Côco alagoano-tradicional)


Esse coco saboroso você come e não me dá
Bia-tá-tá, bia-tá-tá
Desse coco saboroso também quero “isprimentá”
Bia-tá-tá, bia-tá-tá
O que foi que a nêga disse quando avistou a sinhá

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Bia-tá-tá, bia-tá-tá
Esse coco saboroso você come e não me dá

Morena boa, morena boa


Morena você veio da terra das alagôa
A terra é boa, a terra é quente
A terra tem tanta coisa que a gente fica contente

Bia-tá-tá, bia-tá-tá…

Aqui tem sol que eu nunca vi


Morena, a terra tem sururu e sapoti
Aqui é bom, não há melhor
O brasil é muito grande, mas aqui inda é maior

Bia-tá-tá, bia-tá-tá...

10. Morena, Morena – 1967 (Modinha tradicional recolhida em Goiás Velho.


Sem autoria definida)

Morena, Morena, dos olhos brilhantes. Estes teus olhos me põe quebrante. Me
põe quebrante de me olhar assim. Morena, minha morena, têm pena de mim.

Me põe quebrante, de me olhar assim. Morena, minha morena, têm pena de


mim.

Morena, Morena, dos olhos castanhos. Estes teus olhos de grandes tamanhos.
De grandes tamanhos, de me olhar assim. Morena, minha morena, têm pena
de mim. De grandes tamanhos, de me olhar assim, morena, minha morena,
têm pena de mim.

Morena, Morena, dos olhos de prata. Estes teus olhos são que me mata. São que
me mata de me olhar assim, morena minha morena, têm pena de mim. São
que me mata de me olhar assim. Morena, minha morena, têm pena de mim.

Todas as canções trazem como regularidade discursiva a imagem de uma


mulher morena, mulata ou negra. A primeira letra é de um canto lundum, gêne-
ro de música e dança formulado no Brasil pelos negros escravizados. Trata-se de
um canto colonial, que, posteriormente, foi inserido na música brasileira branca
ao longo do século XIX e XX. Até 1780, no entanto, apenas as negras poderiam
dançar o lundum. Era dança conhecida por sua sensualidade. Muitos lundus

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exaltam a sensualidade das negras que o dançavam, entretanto no enunciado


do lundum aqui presente à mulher negra que protagoniza o discurso, é permi-
tido até facão na barriga. Em “Batuque”, outro canto tradicional de autoria des-
conhecida, a mulata é bonita e carinhosa, mas em tom depreciativo ela é vista
como uma mulher interesseira e faceira, de má índole moral. O côco alagoano
“Bia-tá-tá, bia-tá-tá” e a modinha “Morena, Morena”, ressaltam o poder de sedu-
ção da mulher “mulata”. Ela seduz, envolve, é muito bonita, capaz até mesmo de
“pôr quebrante” em um homem.

A historiadora Maria Clementina Pereira Cunha (1998), ao historicizar as


ações de resistência e transgressão de uma mulher negra que se vestia como
homem por volta de 1900 no Brasil, afirma que as mulatas no discurso psiquiátri-
co da época eram descritas como “fêmeas, objeto de fantasia masculina inesca-
pável”. Iaiazinhas brancas, entretanto, seriam “futuras esposas, entes entroniza-
dos e objeto de amor casto ou comedido dos filhos e netos dos velhos senhores
de terras e de escravos”. As mulatas eram associadas não só à sensualidade posi-
tiva, mas também às promiscuidades maléficas, nos arquétipos sexuais do ima-
ginário masculino da época.

Negras e mestiças eram desejadas, mas degradadas, mulheres com as


quais muitos homens brancos não se casariam mesmo se estivessem apaixo-
nados e disponíveis, pois a pobreza, a cor e a condição social as infamavam na
tradição ibérica (VAINFAS, 1989, p.64-65)5.

A imagem acerca do feminino projetadas através das músicas entoadas


por Ely Camargo em sua obra, denotam diversas faces do feminino. Entretanto,
se sobressaem as santificadas. Às mulatas coube um papel secundário, marginal,
interpeladas pelo desejo “objetificante” do eu masculino cristalizado em cantos
populares. Por outro lado, às profanas é permitido seduzir e serem “seduzidas”,

5 Ver também:
- VAINFAS, Ronaldo. “Moralidades brasílicas: deleites e linguagem erótica na sociedade
escravista”. In: NOVAIS, Fernando A.; MELLO E SOUZA, Laura de (orgs). História da vida privada no
Brasil I: cotidiano e vida privada na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997;
- PRIORE, Mary Del. Ao Sul do Corpo: maternidades e mentalidades no Brasil Colônia. 2ª ed.,
São Paulo: UNESP, 2009;
- _____ Histórias íntimas: sexualidade e erotismo na história do Brasil. São Paulo: Planeta do
Brasil, 2011.

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ou assediadas, enquanto que às santas cristãs católicas só foi permitido o sacri-


fício, a piedade. Se diferencia, entretanto, a imagem de Iemanjá, que mesmo co-
nhecida por seu lado maternal, não deixa de exibir-se como dona de beleza, que
exibe riquezas no seu vestir e é adorada pelo poder completo que exerce não só
como divindade, mas também como mulher.

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Referências Bibliográficas:

ABUD, Cristiane de Castro Ramos. Corpos e(m) imagens na história: questões


sobre as mulheres católicas do presente. 2008. Dissertação (Mestrado em Histó-
ria) - Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis

CARNEIRO, Sueli; CURY, Cristiane. O poder feminino no culto aos orixás. In: Mu-
lher Negra. Caderno Geledés, vol. 4, nov. 1993, p.19-35

CUNHA, Maria Clementina Pereira. De historiadoras, brasileiras e escandinavas:


loucuras, folias e relações de gêneros no Brasil (século XIX e início do XX). Tem-
po, Rio de Janeiro, vol. 3, n. 5, 1998, p. 1881-215.

ELY de canto a canto. Direção: Thiago Camargo e Júlio Vann. Produção: Cé-
sar Kiss, Thiago Camargo e Júlio Vann. Roteiro: Thiago Camargo, Júlio Vann e
Paulo GC Miranda. Produção Executiva: César Kiss. Montagem e Edição: Thiago
Camargo, Júlio Vann e Érika Mariano. Captação de Imagens: César Kiss, Júlio
Vann e Érika Mariano. Fotografias e Still: Júlio Vann e Érika Mariano. Som Direto:
Thiago Camargo e Bruno “Bicudo” Ribeiro. Direção de Arte: Ricardo de Podesta.
Pós-Produção e Efeitos Visuais: Rildo Farias. Mixagem e Edição de Som: Thia-
go Camargo. Entrevistados: Elci Camargo Romero, Elvane Camargo Tiemann,
Waldomiro Bariani Ortêncio, Álvaro Catelan, Dama da Conceição, José Mendon-
ça Telles, Maria Dalva Cavalcante. Goiânia: Mandra Filmes, 2014. 1 DVD (65 min),
son., color, 8 mm.

SOUZA, Maria Beatriz de Mello e. Mãe, mestra e guia: uma análise da iconogra-
fia de Santa’Anna. Topoi, Rio de Janeiro, dez. 2002, p. 232-250.

VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos Pecados: moral, sexualidade e Inquisição no


Brasil Colônia. Rio de Janeiro: Campus, 1989.

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A REVOLUÇÃO ZAPATISTA E VILLISTA DE ONTEM E DE HOJE


(1994-2008): REDENÇÃO E REPARAÇÃO NA PERSPECTIVA
FÍLMICA DE FRANCESCO TABOADA TABONE

Robson Nunes da Silva1

No interior da produção historiográfica nas últimas décadas, os estudos cul-


turais encontraram espaços de atuação reinventando e mudando paradigmas;
por meio dessa grande virada da História, o pensamento e a pesquisa histórica
agregaram novas correntes, campos temáticos, fontes e objetos. Assim, o campo
de estudo responsável por aproximar História e Imagens, emergiu com força rei-
vindicando seu lugar no conjunto de saberes já estabelecidos. Foi nesse âmbito
que o Cinema, de ficção e documental, passou a ser entendido e aceito como ob-
jeto de estudo e fonte de pesquisa. Assim, estudos surgiram na segunda metade
do século passado e forneceram as ferramentas necessárias para trabalhar com
a complexa tarefa de tratamento da imagem cinematográfica, suas narrativas,
contextos, suas estéticas, suas representações, usos e abusos do evento ocorrido
ou imaginado. Neste lugar, agora uma realidade, a Revolução Mexicana (1910)
se torna um importante fenômeno de representação imagética, sobretudo no
México, e se apresenta evidenciando suas causas, personagens, fases, resultados,
consequências, experiências e memórias. A Revolução foi amplamente captura-
da pela imagem, com grande contribuição advindo dos trabalhos imagéticos2.

1 Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de


Goiás (UFG) na linha de Pesquisa Fronteira, Interculturalidades e Ensino de História. Correio eletrô-
nico: robsonsilva@discente.ufg.br

2 Ver Muralismo Mexicano: O Muralismo Mexicano “ou Escola Mexicana de Pintura, surgiu
logo após o término do período de luta armada, incentivado por José Vasconcelos durante o pe-
ríodo em que foi Secretário da Educação Pública no governo de Obregón, entre 1920 e 1923. Os
principais representantes dessa linha foram Diego Rivera, David Alfaro Siqueiros e José Clemen-
te Orozco, que pintaram as paredes de edifícios públicos com temas essencialmente históricos”.
(BARBOSA, 2008, p. 88).

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A escolha do filme, neste caso, o filme documental, é fruto das pos-


sibilidades que o gênero pode oferecer como objeto para a pesquisa histórica;
como agente de históra, como representação de experiências contidas no tem-
po passado. Como também pela probabilidade de ser o reflexo da sociedade que
o produziu e que o recebe. Por ser fonte e objeto promissor para compreensão
da representação da experiência, da memória e da narrativa revolucionária, é
que escolhi o documentário para esse estudo. Contudo, o cinema de ficção não
deixará de trazer sua contribuição para o melhor tratamento dos documentários.

O filme, conforme Ferro, pode ser considerado um documento como qual-


quer outro, utilizado pelo historiador que, em seu ofício, questiona a fonte visan-
do atingir os objetivos de uma determinada investigação. Como também, para
esse autor, ao mesmo tempo em que um filme representa em sua narrativa uma
imagem do passado, ele também se mostra um veículo adequado para compre-
ensão da sociedade do presente que o produziu (FERRO, 2010). Nesse mesmo
sentido, Vanoye e Goliot-Lété dizem que “interrogar o filme [...] oferece um con-
junto de representações que remetem direta ou indiretamente à sociedade real
em que se inscreve” (VANOYE; GOLIOT-LÉTÉ, 2008, p. 55). O que significa dizer
que o filme é capaz de exprimir as ideias e os valores de uma sociedade, mesmo
que sua narrativa tenha como fio condutor o tempo pretérito. Por outro lado, vale
acrescentar que o filme também cria, inventa e questiona valores

O documentário ocupa um lugar particular em razão de sua narrativa em


relação direta com a realidade. Mais do que refletir o mundo real, o documentá-
rio cria uma narrativa em nome da verdade. Como na obra de história escrita, o
documentário seleciona os indícios e vestígios do passado e os representa em
uma narrativa, podendo compartilhar muitos aspectos do filme ficcional como,
por exemplo, roteirização, encenação, reconstituição, ensaio e interpretação.
Como historiadores, os cineastas, analisando os indícios do passado, acolhe a ta-
refa de transformar tais vestígios em discurso histórico imagético. Mesmo que o
fio condutor do documentário seja almejar a verdade, seu resultado não deixa de
ser uma narrativa sobre determinado assunto. Por isso, como o filme de ficção, o
documentário está sujeito ao olhar e condução do cineasta, dos estilos estéticos

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de documentação, da geração que o produziu e da que o recebe (ROSENSTONE,


2010).

Nessa trajetória, vale destacar a singularidade da filmografia sobre a revo-


lução nos anos de 1930 e 1940. Os filmes produzidos durante a década de 1930
remete a um momento da história mexicana de destacado vigor nacionalista,
com um pequeno e heterogêneo grupo de cineastas dispostos a representar o
passado insurgente recente sob risco de sofrer censura pelo Estado. A produção
fílmica entre 1931 e 1940 foi ao redor de 250 filmes, e destes uma quinta parte
se concentrou em representar os distintos episódios da história mexicana. E o
período mais representado foi o da revolução, seguido pela história do porfiriato3
e do período colonial (MANTECÓN, 2010). Nessa década, segundo Emilio García
Riera (1997), foram feitos 18 filmes4 em que o passado revolucionário foi eviden-
ciado.

Esses filmes foram produzidos, adaptados e dirigidos por dois grupos de


cineastas. Um, composto pelos veteranos Miguel Contreras Torres e Manuel R.
Ojeda, que em seus filmes apresentaram uma versão positiva da história recen-
te. E para isso, receberam apoio financeiro do governo Cárdenas, ávido para que
sua governança fosse vista como uma espécie de continuidade da revolução.
Para Cárdenas, seu grupo revolucionário se reconhecia com os “vencedores” do
conflito armado. Por outro lado, o grupo mais jovem de cineastas, como Fernan-
do de Fuentes, Chano Urueta, Juan Bustillo Oro e Mauricio Magdaleno, mostra-
ram uma visão crítica do passado revolucionário recente. Nos anos de 1930, sob
o olhar atento do Estado, foi Fernando de Fuentes o destacado cineasta a repre-
sentar a revolução em filmes que se consagraram na indústria cinematográfica

3 “Porfiriato: período de governo de Porfírio Díaz, entre 1876-1911, caracterizado pela centra-
lização política, desenvolvimento econômico com o incremento dos investimentos norte america-
nos e expansão das grandes propriedades”. (BARBOSA, 2008, p.88).

4 Fernando de Fuentes dirigiu El prisionero 13 (1933), El compadre Mendoza (1933) e ¡Vámo-


nos con Pancho Villa! (1935); Miguel Contreras Torres, Revolución (1932) e La golondrina (1938);
Chano Urueta, Enemigos (1933) e Los de abajo (1939); Arcady Boytler, El tesoro de Pancho Villa
(1935) e ¡Así es mi tierra! (1937); Rubén C. Navarro, Corazones en derrota (1933); Roberto O´Quigley,
Cielito lindo (1936); Manuel R. Ojeda, Judas (1936); Alejandro Galindo, Almas rebeldes (1937); Guil-
lermo Hernández Gómez, La Adelita (1937); Juan Orol, El derecho y el deber (1937); Martín de Luce-
nay, La Valentina (1938); Guz Águila e Guillermo Calles, La justicia de Pancho Villa (1938), e Raúl de
Anda, Con los Dorados de Villa (1939).

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nacional. Entre 1933 e 1935, adaptou e filmou El prisionero 13 (1933), El compadre


Mendoza (1933), e ¡Vámonos con Pancho Villa! (1935). “Estes, ao invés da grande
maioria dos filmes sobre o acontecimento, não glorificaram à guerra civil nem a
seus combatentes (cujos líderes costumavam ser homens e raras vezes mulhe-
res)” (MRAZ, 2009, p. 433).

Em 1940, as representações fílmicas da revolução mudaram de direção e


passaram por uma profunda transformação. A partir daí a revolução foi institu-
cionalizada pelo Estado, os governos posteriores buscaram uma homogenei-
dade de identificação revolucionária e uma formação de identidade nacional; o
objetivo foi formar um México unido pela história oficial, desconsiderando a plu-
ralidade e a diversidade cultural do país, para criar uma história, uma memória.
A representação da revolução perde o caráter crítico da década anterior, possi-
bilitando à apropriação e representação desse evento histórico como elemento
construtor de um novo México e de uma nação, agora, unificada pela guerra.
Vários cineastas participaram dessa uniformidade nacionalista e contaram com
o apoio financeiro do Estado. E, assim como a filmografia sobre a revolução no
México de Fernando de Fuentes dominou a geração de 1930, a equipe do cineas-
ta Emilio ‘O índio’ Fernández e o fotógrafo Gabriel Figueroa produziram notáveis
filmes com prestígio internacional sobre o tema nos anos de 1940, sobretudo sob
a ideologia dominante, reconhecido como o cineasta que melhor representou a
revolução na geração de cineastas dos anos de 1940. As celebres produções de
Emilio Fernández sobre a guerra foram Flor silvestre (1943) e Enamorada (1946).

O arrolamento dos trabalhos fílmicos dessas gerações é importante, pois


suas histórias e relatos imagéticos, exibem, pela relação entre o Cinema e a His-
tória, do cineasta como historiador, a forma de apropriação da experiência e da
memória revolucionária pelas narrativas fílmicas. Faz saber, da geração de 1930,
cuja criticidade se volta para as causas, os personagens, os resultados da guerra,
a fase de consolidação da indústria do Cinema na década de 1940 e seu papel,
junto ao Estado, na representação e rememoração em busca da formação de
uma identidade nacional, abandonando o olhar crítico dos anos de 1930. Assim,
fica evidente que o Cinema representou e representa a pluralidade de espaços

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de experiências e os horizontes de expectativas dos grupos sociais distintos en-


volvidos direta ou indiretamente com o levante armado em momentos decisivos
da história mexicana, exceto quando há a censura do Estado.

Seguindo a trilha crítica do mestre Fuentes, o presente estudo parte da


análise dos trabalhos fílmicos do cineasta mexicano Armando Francesco Tabo-
ada Tabone em Los ultimos zapatistas, heores olvidados (2001), Pancho Villa, la
revolución no ha terminado (2007) e 13 Pueblos en defensa del agua, el aire y la
tierra (2008), com o objetivo de perscrutar as revoluções presente na experiên-
cia, na memória e na narrativa de ex-combatentes e herdeiros/as da insurgência
camponesa de 1910 no calor dos eventos políticos, sociais e econômicos na virada
do século, especialmente entre os anos de 1994 e 2008. Esse período, represen-
tou e representa, para os grupos citados acima, de resistência como consequ-
ência direta em resposta à política econômica do Estado mexicano ao aderir ao
Acordo de livre-comércio da América do Norte (NAFTA) em 1994. Nesse contexto,
novos levantes, à sombra do zapatismo e reivindicando reparações históricas às
comunidades indígenas tradicionais, emergiram do México profundo.

Tabone é um cineasta especializado no gênero documentário reconhecido


pela comunidade cinematográfica internacional com diversos prêmios nacio-
nais e internacionais. Além de cineasta, também possui formação em Ciências
da Comunicação e mestrado em Estudos Mesoamericanos pela Universidade
Autônoma do México (UNAM), com a dissertação: Amo ti mo kaua, Movimientos
sociales de raíz indígena en el estado de Morelos (2013). Por essa razão, tem se
destacado, também, como ativista trabalhando em defesa dos direitos linguísti-
cos dos povos indígenas no México.

Seu primeiro longa-metragem documental, Los últimos Zapatistas hero-


es olvidados (2001), reúne testemunhos dos últimos veteranos zapatistas ainda
vivos, e por suas narrativas Tabone conhece e nos mostra um lado inexplorado
do México rural. Esse documentário inclui também o encontro histórico de duas
gerações de zapatistas entre aqueles que lutaram ao lado de Emiliano Zapata
e os integrantes do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN)5. Seu se-

5 Em 1º de janeiro de 1994, no Estado de Chiapas, emergiu do México profundo a insurrei-

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gundo longa-metragem é Pancho Villa, la Revolución no ha terminado (2007).


Filmado em parte nos Estados do Norte do México e no Novo México, nos Esta-
dos Unidos, explora o passado villista pela memória e a oralidade de veteranos
da insurgência que lutaram no norte ao lado do general Pancho Villa, entrevista
filhos de Pancho Villa e descendentes dos envolvidos aos ataques em território
estadunidense em 1916. Entre 2007 e 2008, documentou em 13 Pueblos en de-
fensa del agua el aire y la tierra, a resistência camponesa/indígena no Estado
de Morelos contra o avanço do progresso industrial sobre suas terras. Para as
comunidades tradicionais desse estado, a “modernidade” e o progresso repre-
sentam uma eminente ameaça de poluição direta às águas, terra e o ar. Este
documentário retrata a luta dos povoados em impedir que suas terras, lugar de
existência ancestral pré-hispânica, sejam transformadas em aterros e lixões, afe-
tando territórios sagrados para as comunidades nativas. Aqui é possível conhe-
cer o cineasta ativista. Por isso, observou o crítico de cinema mexicano Jorge
Ayala Blanco, “Francesco Taboada se ha convertido a sus 35 años en “nuestro
máximo documentalista histórico revolucionario” (2011, p. 305). Em 2010, fez uma
homenagem à época de ouro do cinema mexicano no longa Tin Tan, no qual
representa a figura de Germán Valdés “Tin Tan” um ícone da cultura mexicana.
Seu quinto trabalho, Maguey, é um filme que salienta a importância da planta
Maguey6 para as comunidades camponesas e indígenas e sua influência na arte
e na política no México. O filme endossa a preservação das tradições e visões de
mundo que cercam a planta.

Tabone, ocupou grande parte de seu trabalho fílmico na representação


da revolução e seus desdobramentos advindo de lugares e de grupos, como
ex-combatentes e comunidades camponesas-indígenas tradicionais, sobrevi-

ção da organização camponesa-indígena conhecida por Exército Zapatista de Libertação Nacional


(EZLN). O levante da resistência camponesa-indígena do Estado e, após intensos conflitos contra
as forças militares em San Cristóbal de Las Casas, capital do Estado, demonstrou ao público as
causas da sua existência. O levante possui como objetivos dimensionar o EZLN como força política
nova, independente; pelo respeito aos povos indígenas e pelo fim da guerra de extermínio. O prin-
cipal porta-voz do grupo é o Subcomandante Marcos. Fez sua primeira aparição em 1° de janeiro
de 1994 em uma ofensiva militar em municípios do estado mexicano de Chiapas. Como líder da
insurgência zapatista, adotou o nome Marcos em homenagem a um colega que morreu. Em 2014,
mudou de nome para Subcomandante Insurgente Galeano, nome em homenagem a um zapatis-
ta com o mesmo nome assassinado pouco tempo antes.

6 Maguey uma espécie de cacto da família dos agaves, típico da região.

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vendo à sombra da revolução zapatista e villista, ouvindo e representando ex-


periências e narrativas do passado revolucionário bem como demonstrando a
relação de tensão entre os espaços de vivências e o horizonte de expectativas
desses grupos, constantemente ameaçadas pelo esquecimento e pela violência
do Estado. Seu trabalho permite a abertura de uma fenda pela qual é possível
compreender a revolução e, consequentemente, as revoluções mexicanas, cujo
acontecimento, para os grupos representados pela filmografia de Tabone, ainda
se desenrola diante de suas experiências individuais e coletivas em sociedade.
Pela estreita abertura, os três documentários revelam algumas possibilidades de
questionamento. Quais questões históricas são levantadas, e como a revolução
emerge dessa memória, próximo ao centenário da Revolução Mexicana? O que
reclamam os entrevistados sobre os resultados da revolução e da atuação do Es-
tado na constituição da historiografia oficial?

A “trilogia” de Tabone, revelam histórias da revolução mexicana e fornecem


um vislumbre do horizonte de expectativa revolucionária e o espaço de realidade
não conquistada. Seu conteúdo os coloca como fonte e objeto de análise, como
mencionado acima. Em suas imagens outra revolução, ou outras revoluções, a
versão daqueles alinhados à uma tradição histórica comunitária e oral que se
apresenta em conflito com a ideia de progresso histórico propagada pela histo-
riografia oficial. Sugerem que essas histórias ainda esperam para serem ouvidas.
Por isso, para compreender a magnitude do fenômeno histórico zapatista e villis-
ta de antes e de hoje, considerando os três documentários reflexos de histórias
reivindicando seu lugar na memória, e na história, lançaremos olhares coorde-
nados pela Teoria da História pensada pelo filósofo alemão Walter Benjamin e
materializada em sua produção intelectual, sobretudo no texto Teses Sobre do
Conceito da História (BENJAMIN, 2010, p. 222-232).

Para Benjamin a tarefa do historiador consiste em saber ler e escrever uma


outra história, uma espécie de anti-história, uma história a contrapelo, sobre a
qual se impõe a da cultura triunfante. Para este, escrever a história dos vencidos
exige a aquisição de uma memória que não consta nos livros da historiografia
oficial. O historiador não se deve ocupar em dar uma descrição do passado “tal

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como ele ocorreu”, mas fazer emergir as esperanças não realizadas desse passa-
do. Para Benjamin, esse passado espera das gerações presentes, na forma que
ela cintilou no instante de perigo, reparação e redenção. Para ele, para que haja
reparação e redenção, é preciso tratar o Progresso como catástrofe. Uma tem-
pestade que avança em direção ao futuro, cuja força ameaça não apenas o con-
teúdo dado da tradição quanto também aqueles que a recebem (GAGNEBIN,
1982). Somente com o interromper dessa tempestade que será possível, para
Benjamin, conhecer, reparar e redimir.

Aqui acrescento um dos conceitos centrais à filosofia de Walter Benjamin,


a redenção, presente no conjunto da sua obra e, com atenção especial, nas teses
II, III e IV (BENJAMIN, opus citatum, p. 222-224). Para Benjamin, a redenção “pres-
supõe a reparação do abandono e da desolação do passado. A redenção do pas-
sado é simplesmente essa realização e essa reparação, de acordo com a imagem
de felicidade de cada indivíduo e de cada geração” (LÖWY, 2010, p. 48). Entretan-
to, Benjamin acentua que “a rememoração, a contemplação, na consciência, das
injustiças passadas, é insuficiente (...) é preciso, para que a redenção aconteça, a
reparação (...) do sofrimento, da desolação das gerações vencidas, e a realização
dos objetivos pelos quais lutaram e não conseguiram alcançar” (ibidem, p. 53).

Nesse sentido, a narrativa imagética de Tabone, compreendida como repre-


sentação fílmica da memória revolucionária camponesa-indígena, promove um
diálogo com o passado dos insurgentes zapatistas e villistas, destacando suas
irrealizações, sofrimentos e injustiças. Dessa forma, os documentários de Tabone
podem, pela rememoração da tradição dos oprimidos da revolução, promover
a redenção desse passado enquanto rememoração. A reparação que Benjamin
acrescenta fica a cargo da classe oprimida que ele chamou de Messias - usan-
do termos teológicos -, as futuras massas revolucionárias herdeiras da tradição
de 1910. No caráter político, essa redenção e reparação seria a emancipação dos
oprimidos, e o caminho seria a Revolução.

Atuando na representação da memória de ex-combatentes e no legado re-


volucionário de Emiliano Zapata e Francisco (Pancho) Villa, Tabone abre prece-
dentes para conhecer a revolução por aqueles que a fizeram e que cuja causa

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ainda reclama por espaço na memória e por justiça social e econômica no campo
se afastando da narrativa oficial do conflito. Pelos documentários as exigências
históricas camponesas do passado se manifestam ainda pulsante na realidade
camponesa e indígena do presente, como pode ser visto na formação e atuação
do Exército Zapatista de Libertação Nacional e dos 13 pueblos em sua luta para
defender e preservar seus povos, tradições, memórias, terras e nascentes.

Entendemos a relação do narrador e do ouvinte como uma ação dominada


pelo interesse em conservar o que foi narrado (BENJAMIN, 2010). Entre as expe-
riências de guerra vivida ao lado do Generais Emiliano Zapata e Francisco Villa
e os acontecimentos políticos e sociais que sucederam o pós-guerra, sobretudo
durante os governos alinhados ao PRI (Partido Revolucionário Institucional), está
a experiência de homens e mulheres testemunhas oculares e narradores(as) que
rememoram e contam os horrores e as glórias da insurgência, a expectativa po-
lítica e social não concretizada e o sentimento de traição, quando relatam so-
bre o fracasso da revolução imaginada. A memória presente e eternizada pela
narrativa imagética nos documentários, abre caminhos que levam a reflexões
de experiências e narrativas antagônicas: de um lado, a escrita oficial da grande
Revolução de 1910, fruto e objeto daqueles que saíram vencedores do conflito e,
por sua vez, se apropriam desse passado encadeando os eventos em um contí-
nuo de tempo, igualando o que é heterogêneo; de outro a memória ainda viva
daqueles que estiveram diretamente e indiretamente envolvidos com as causas
da luta camponesa e indígena do Norte e do Centro-Sul do país, e que viu seu
espaço de atuação e rememoração ameaçados pelos sucessivos governos aos
longo do século XX. As décadas que seguem os anos de conflito, constitui em um
contexto de afirmação da narrativa histórica oficial e do “apagar” de centelhas
que ainda brilham entre aqueles que se consideram traídos pela Guerra e pelo
“Progresso”. É um contexto de luta.

O cineasta Tabone se comporta aqui como um historiador quando reúne


indícios e sinais de uma ruptura e as organiza em uma narrativa fílmica. Como
historiador munido de suas fontes, atento ao que elas podem dizer, apresenta
um delicado e rico conjunto de experiências revolucionárias zapatistas e villis-

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tas pulsando resistência que se entrelaçam entre lembrar e esquecer, passado e


presente. Nos documentários explora a possibilidade de saber ler, ouvir e narrar
uma outra história, contada por aqueles que a conheceu e fez. Tabone organiza
seus narradores e deles captura suas experiências de guerra ao lado de Zapata e
Villa em Los ultimos zapatistas, heores olvidados (2001) e Pancho Villa, la revolu-
ción no ha terminado (2007). As histórias sobre a revolução e seus protagonistas
são lembradas e representadas por uma sequência descontínua, oferecendo ao
espectador uma visão única sobre a guerra e seus desdobramentos. Em 13 Pue-
blos en defensa del agua, el aire y la tierra (2008), acompanha de perto a luta
pela existência e conservação das tradições, dos territórios e lugares considera-
dos sagrados e invioláveis pelos pueblos e, por isso, mulheres e homens, inspira-
dos e motivados pelo zapatismo, reclamam por sua causa. Em ambos trabalhos,
se percebe que as revoluções não se concluíram e que ainda se revelam atuantes
no presente. O cineasta transmite o que a historiografia oficial dominante não
recorda e não quer recordar. O próprio cineasta é testemunha de um processo
que ainda se desdobra.

O conceito de experiência é um termo central na filosofia benjaminiana,


pois está presente em toda a sua obra. Nos ensaios “Experiência e Pobreza” e
“O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov” (BENJAMIN, 2010),
Benjamin explora o que chama de perda ou declínio da experiência tradicional
na sociedade moderna e o surgimento de outro tipo de experiência e narração.
A experiência aqui citada é a que repousa uma tradição coletiva, na qual essa
tradição é retomada e transformada em cada geração. Para Benjamin, a verda-
deira narração toma por fonte essa experiência, embora ameaçada pelo avanço
do Progresso e desenvolvimento do Capitalismo. Nesse sentido, a experiência
retomada pela memória se apresenta como força que reabre o passado, no aqui,
no agora. E ao estabelecer um elo entre passado submerso e o presente, tem-se
um tempo de agoras, que interrompe a continuidade da história e faz emergir
a descontinuidade. É assim que, a história rememorada e contada nos docu-
mentários, resiste ao desaparecimento, uma possibilidade de ameaça constan-
te advinda da historiografia oficial. Na historiografia oficial, ou seja, dos grupos
dominantes, o tempo histórico é “semelhante a um espaço vazio, uma linha in-

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finita que os acontecimentos vêm preencher” (LÖWY, 2010, p. 62). Nessa lógica,
a historiografia oficial mexicana tem se mostrado compatível com esse modelo.
As narrativas historiográficas dos grupos dominantes “estabelecem as relações
passado, presente e futuro dentro de um encadeamento ou uma sucessão de
eventos, fatos etc.” (NUNES, 2005, p. 32).

A memória e o cinema documental, são imagens, representações cujo olhar


voltado para o tempo, interrompe o contínuo da narrativa histórica tradicional
quando um perigo ameaça sua existência; uma ruptura acontece. Os documen-
tários representam memórias individuais e coletivas e exploram uma constela-
ção de lembranças e experiências ainda em movimento de distintas gerações
desterradas e em fluxo de luta e resistência entre passado rememorado e pre-
sente possível. Como sugere Benjamin a respeito da tarefa do historiador, a nar-
rativa oral, as experiências dos entrevistados e dos novos insurgentes, bem como
a narrativa fílmica de Tabone escolhida aqui para esse tirocínio, consiste em seu
objeto e exige do mesmo saber ler e narrar uma outra história, outras histórias,
histórias a contrapelo, como Benjamin definiu. Assim, as experiências represen-
tadas pelos documentários, ao ancorar suas vivências no passado revolucioná-
rio, colocam em via de redenção as esperanças não realizadas desse passado.
Entretanto, como acentua Benjamin, a rememoração e a representação fílmica
dessas injustiças passadas ainda são insuficientes para conter a continuidade
do tempo histórico linear e contínuo. Essa tarefa, está sob a responsabilidade da
própria classe oprimida. Somente ela será capaz, segundo Benjamin, da repara-
ção social e política do passado.

A reparação de acordo com a imagem de felicidade de cada indivíduo e de


cada geração ocorrerá pela interrupção, segundo Benjamin, e o caminho seria
a revolução. Neste momento, a imagem de felicidade dos revoltosos de 1910 se
encontra com a imagem de felicidade de redenção e reparação de ex-comba-
tentes zapatistas e villistas, de camponeses e camponesas cujas memórias ainda
trazem lembranças das glórias e das derrotas revolucionárias, e das comunida-
des indígenas tradicionais. Está na causa indígena-camponesa a possibilidade
de reparação benjaminiana, uma vez que em Los ultimos zapatistas, heores ol-

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vidados e em 13 Pueblos en defensa del agua, el aire y la tierra, o sentimento


de continuidade revolucionária, ao invocar o zapatismo em Chiapas com o EZLN
e em Morelos com a organização dos 13 pueblos; exigem a ruptura por meio
da revolução. Embora a atuação política dos dois grupos representados pelos
documentários seja distinta, a imagem de redenção e reparação história, políti-
ca e social são semelhantes. E por isso, ancoram suas lutas na rebeldia de seus
antepassados durante a revolução mexicana, exigindo o cumprimento de suas
emergências.

Considerando as ponderações nesse estudo, a presença e a emergência da


revolução mexicana não estão presentes apenas na memória, nas experiências,
nas imagens e na historiografia cristalizadas em 1910. Ela ainda acontece e, para
os grupos evidenciados pelos documentários, ainda não se consolidou e está evi-
dente a crença que apenas pela resistência pacífica ou, caso necessário, o con-
fronto, manterão suas memórias, histórias, experiências, territórios protegidos.
Nessas atuais realidades de resistência, a revolução de 1910 e as lutas de seus
protagonistas são recordados.

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Referências Bibliográficas:

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dad de Guadalajara / Gobierno de Jalisco / Conaculta / Imcine, Guadalajara, 1997.

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bre o conceito de história”. São Paulo, Boitempo, 2010.

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cine: apuntes hacia un análisis historiográfico. In. Cine y Revolución: La Revo-
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VOA, Jorge; FRESSATO, Soleni Biscouto; FEIGELSON, Kristian. Cinematógrafo:
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NUNES, José Walter. Patrimônios subterrâneos em Brasília. São Paulo: Anna-


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ROSENSTONE, Robert A. A história nos filmes, os filmes na história. São Pau-


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VANOYE, Francis & GOLIOT-LÉTÉ, Anne. Ensaio sobre a análise fílmica. Trad.
Maria Appenzeller. Campinas: Papirus, 2008.

Filmografia:

Los ultimos zapatistas, heores olvidados. Direção: Francesco Taboada Tabo-


ne. Produção de Universidad Autónoma del Estado de Mo¬relos, Fondo Estatal
para la Cultura y las Artes de Morelos. Local: México. 2000. 1 DVD (70 min.).

Pancho Villa, la revolución no ha terminado. Direção: Francesco Taboada


Tabone. Produção de Manuel Peñafiel e Francesco Taboada. Local: México. 2006
1 DVD (90 min.).

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13 Pueblos en defensa del agua, el aire y la tierra. Direção: Francesco Tabo-


ada Tabone com a colaboração de Atahualpa Caldera e Fernanda Robinson.
Produção de CRIM, UNAM, GAIA A.C. Local: México. 2008 1 DVD (63 min.).

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IMAGENS DECOLONIAIS: ARTE FUNERÁRIA DOS


CEMITÉRIOS AMAPAENSES

Tiago Varges Silva 1

Introdução.

Os cemitérios amapaenses são formados por uma diversidade de túmulos,


caracterizados por uma arte funerária vernacular bastante diversificada no uso
de materiais como madeira e pedra. Neles predominam elementos da cultura e
da arte tradicional ribeirinha construída por mulheres e homens que, por distin-
tas circunstâncias históricas, se estabeleceram no território amapaense ao longo
dos séculos XIX e XX, e que introduziram nos espaços cemiteriais elementos de
sua arte funerária construindo, assim, uma “nova visualidade” a um território do-
tado de um discurso estético muito peculiar. O presente texto tem por objetivo
apresentar alguns exemplares destes túmulos, a partir de uma reflexão sobre o
conceito de arte funerária (BORGES, 2017) e arte porpular (CANCLINI, 1977).

Com o alargamento das pesquisas, novos contextos culturais e geográficos,


considerados até então como periféricos, como o interior dos estados amazôni-
cos, passaram a ser objetos de análises. Cemitérios quilombolas, rurais, ribeiri-
nhos e cemitérios municipais localizados em zonas urbanas periféricas, passa-
ram a ser estudados como espaços que possuem arte funerária, e que por muito
tempo foi ignorada como elemento artístico ou visto como uma arte marginal,
secundária. A arte funerária “[...] é um tipo de construção repleta de simbolis-
mo facilmente assimilado pelo grande público. A maioria da simbologia adotada
concentra-se nos tipos de adornos utilizados [...] para completar a feitura do tú-
mulo” (BORGES, 2017, p. 244).

1 Doutorando no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goi-


ás. E-mail: tiagovarges@gmail.com.

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Nestes cemitérios do Amapá não encontramos esculturas em mármore,


nem mausoléus suntuosos, - estruturas funerárias características dos cemitérios
munumentais construidos na Europa ao longo dos séculos XIX e XX e conse-
quentemente replicados em diversos países como é o caso do Brasil - , seus tú-
mulos são feitos com materiais populares, de fácil acesso, como a madeira, pedra
local e materiais plásticos. Os túmulos são confeccionados por artesões locais
que se dedicam a construção desses artefatos funerários como uma atividade
familiar. Um túmulo pode ser definido, como: “[...] uma construção erguida, em
memória de alguém, no lugar onde se acha sepultado. A construção pode cobrir
o espaço da sepultura ou delimitá-la podendo ainda conter cabeceira ou lápide
horizontal” (CASTRO, 2017, p. 48).

Dentre as diversas tipologias tumulares que encontramos nos cemitérios


amapaenses, os túmulos castilhos são os mais comuns. São estruturas retangu-
lares, feitas em madeira, que cobre todas extensão das sepulturas, estas geral-
mente colocados a partir do sétimo dia de inumação em caráter provisório, pois
após o período de nove meses a um ano a sepultura está compactada o bastan-
te para erigir uma estrutura de alvenaria. Os castilhos estão presentes em todo
o Amapá, porém, há singularidades significativas de uma região para outra, na
maneira como são construídos. Existem três modelos predominantes de casti-
lhos: o simples, chamado somente de castilho, o gradeado e o trançado, modelos
aos quais vamos analisar no decorrer do texto.

Tomando como ponto de reflexão os castilhos, propomos refletir sobre os


elementos artísticos encontrados nos cemitérios amapaenses. Dessa forma, o in-
teresse consiste em compreender como a arte funerária presente, nas suas mais
diversas expressões, é empregada nos espaços cemiteriais do estado do Amapá
e como essa produção artística de cunho popular, pode contribuir para um me-
lhor entendimento das atitudes desta sociedade perante a morte.

Os cemitérios do Amapá e os seus túmulos castilhos.

Os cemitérios do estado do Amapá podem ser divididos em duas catego-

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rias tipológicas: cemitérios públicos e cemitérios comunitários. O primeiro grupo


é composto pelos cemitérios ribeirinhos e quilombolas e o segundo grupo pelas
necrópoles municipais, que, no caso de Macapá, agregam, também sob a gestão
da prefeitura, os cemitérios israelitas2 com túmulos que datam do final do século
XIX. Estes cemitérios estão presentes em todos os municípios amapaenses:

A palavra cemitério (do grego Koimetérion, de Kiomão, eu durmo e do latim Co-


emeterium) designava, a princípio, o lugar onde se dormia, quarto dormitório,
poética para os peregrinos, foi sobre a influência das ideias cristãs que tomou,
nos primeiros séculos de nossa era, o novo sentido de campo de descanso após
a morte, onde se esperava a ressurreição quando soar hora do Juízo Final. A pa-
lavra cemitério aplica-se, propriamente, a um lugar em que é dada a sepultura
por inumação por enterramento direto no solo. (LOUREIRO, 1977, p. 28).

Os cemitérios ribeirinhos, como os quilombolas, fazem parte dos Cemité-


rios Comunitários. Esses pequenos sítios funerários estão presentes em todos os
municípios do Amapá. São feitos e cuidados pelos integrantes das comunidades.
Essas comunidades são caracterizadas historicamente pela atividade extrativista
ao longo dos rios Amazônicos.

As populações tradicionais não-indígenas na Amazônia caracterizam-se, sobre-


tudo, por suas atividades extrativistas, de origem aquática ou florestal terres-
tre, onde vivem em sua maioria, à beira de igarapés, igapós, lagos e várzeas.
Quando as chuvas enchem os rios e riachos, esses inundam lagos e pântanos,
marcando o período das cheias que, por sua vez, regula a vida dos ribeirinhos
(MENDONÇA et. al., 2007, p. 94-95).

Os cemitérios ribeirinhos estão entre os sítios funerários não indígenas


mais antigos do Amapá. Estão às margens dos rios e são pequenos cemitérios
construídos geralmente em uma elevação, para preservar o campo das cheias
do extenso período chuvoso amazônico. Não há delimitação física do espaço, ou
seja, muros e cercas, o perímetro do cemitério é demarcado pela própria vegeta-

2 No estado do Amapá existem dois cemitérios israelitas, todos em Macapá, e são anexos
aos cemitérios municipais. O primeiro cemitério israelita foi construído no Cemitério Municipal
Nossa Senhora da Conceição, no centro, e, de acordo com Wolff (1983), esta necrópole está entre
os cemitérios sefarditas mais antigos e importantes do Brasil, com sepulturas datadas de final do
século XIX; o segundo está no Cemitério Municipal São José, na Zona Sul. Até o ano de 2020 um
terceiro cemitério israelita estava em fase de construção, anexo ao Cemitério Municipal São Fran-
cisco de Assis, na Zona Norte da cidade, mas em virtude da emergência da Pandemia de Covid-19
que demandou novos espaços para sepultamento, a área foi requisitada pela Prefeitura e pronta-
mente aceita pela Comunidade Judaica do Amapá, visto que os seus dois cemitérios mais antigos
possuem espaços consideráveis.

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ção nativa, pois são construídos em clareiras. Não há portão, a entrada principal
é demarcada pelo cruzeiro fixado de frente para o rio, pois os rios eram as prin-
cipais vias de acesso das comunidades ribeirinhas do Amapá, e em muitos locais
continuam sendo. O trapiche integra a estrutura do cemitério ribeirinho, tem a
função prática de demarcar a frente do cemitério e a ligação com o rio, como
pode ser observado na figura 01.

Estes cemitérios são pequenos, pois serviam apenas à comunidade local.


Cada comunidade ou localidade tem o seu próprio cemitério. É comum o uso
de madeira e pedra como o principal material para construção e ornamentação
dos túmulos e a cruz latina é o principal elemento de adorno destes cemitérios.

Figura 01: Cemitério Ribeirinho Terra Preta, Município de Vitória do Jari-AP. Fonte: Acervo do autor (2021).

Estes cemitérios apresentam uma ampla variedade cultural, característica


histórica da ocupação do território amapaense que, desde a colonização, rece-
beu povos de diversas culturas e religiões, como é caso dos europeus e africanos
que, juntamente com a cultura indígena, foram agentes de um processo de hi-
bridização cultural. Este conceito é definido por García Canclini (1997) como um
sistema de interação de culturas que, combinadas, possibilitam o surgimento
de novas estruturas, práticas e objetos culturais. Compreendemos os cemitérios
como elementos deste processo de hibridização cultural, mas também como
espaço influenciado pelas condições sociais, naturais e materiais do ambiente
amazônico.

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Esses cemitérios possuem uma arte funerária peculiar, gestada a partir do


conhecimento popular, feito com materiais da região, madeira e pedra, confec-
cionados por mulheres e homens sem formação acadêmica, que se valem do
conhecimento empírico, da experiência acumulada ao longo do tempo. Como
define García Canclini (1977, p. 182) “[...] el arte popular el que consome el pueblo
[...] el que produce”. São expressões das suas crenças e dos seus dilemas do coti-
diano.

Compreendemos os cemitérios do Amapá como um dos espaços de me-


mória de grande relevância para a compreensão da História e formação da so-
ciedade amapaense. O cemitério é, por sua vez, um espaço funcional, simbólico
e material, conforme Pierre Nora, é um lugar de memória.

São lugares, com efeito nos três sentidos da palavra, material, simbólico e fun-
cional, simultaneamente, somente material, somente em graus diversos. Mui-
tos lugares de aparência puramente material [...] só é lugar de memória se a
imaginação o investe de uma áurea simbólica [...] só entra na categoria se for
objeto de um ritual [...]. Os três aspectos coexistem sempre. É material por seu
conteúdo demográfico; funcional por hipótese, pois garante, ao mesmo tempo,
a cristalização da lembrança e a sua transmissão; mas simbólica por definição
visto que caracteriza por um acontecimento ou uma experiência vivida por um
pequeno número uma maioria que deles não participou. (NORA, 1993, p. 21-22).

Na cidade de Macapá, capital do estado, há três cemitérios públicos em


atividade, são eles: Cemitério Municipal Nossa Senhora da Conceição, Cemitério
Municipal São José e Cemitério Municipal São Francisco de Assis. O Cemitério
Municipal Nossa Senhora da Conceição, localizado no centro da cidade, foi inau-
gurado oficialmente na década de 1940 e é o primeiro cemitério público do es-
tado, embora haja registro de sepultamento desde o final do século XIX3. Essa
necrópole foi o primeiro espaço público construído e administrado pelo Estado
destinado a inumações no Amapá.

Neste cemitério concentra-se o maior conjunto de túmulos e mausoléus


em mármore do Amapá, com uma característica bastante eclética nos padrões
tumulares, inclusive um pequeno conjunto de túmulos em Art Nouveau e Art
Decó. Essas características fazem deste cemitério o mais tradicional da cidade de

3 Wolff (1983).

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Macapá, por seu pioneirismo e por ter em seus mausoléus, túmulos e sepulturas
muitas das personalidades da história política e da cultura amapaense.

O cemitério revela esteticamente o próprio inconsciente da sociedade através


de uma trama simbólica, estruturada e organizada à volta de certos temas e
mitos unificados por esta tarefa: reforçar, depois do caos, o cosmo dos vivos e
imobilizar o devir, mesmo que se tenha de recorrer ao contraste (ambíguo) da
imortalidade com o curso irreversível do tempo e da vida. (CATROGA, 1999, p. 19)

A maior quantidade de túmulos feitos de madeira na cidade de Macapá é


encontrada no Cemitério Municipal São Francisco de Assis, localizado na Zona
Norte, região periférica da cidade. Foi inaugurado em 1997 e atualmente é o
maior cemitério público do estado do Amapá.

A abundância de madeira torna este material acessível e bastante utilizado


na construção civil da região, igualmente na arquitetura funerária. Contudo, o
uso da madeira, nestes casos, atende muito mais a uma necessidade econômi-
ca do que ao desejo pessoal pelo material, pois embora a preferência seja pela
alvenaria, ornamentada com mármore e porcelanato, as limitações econômicas
tornam a madeira a opção mais acessível, tanto na vida para construção da habi-
tação, quanto na morte para a arquitetura tumular.

As cidades amapaenses possuem uma porcentagem considerável de suas


construções feitas em madeira, pois esse material é mais barato em relação à al-
venaria, e muitas dessas construções são feitas em etapas. No entanto, o objetivo
dos moradores dessas residências é um dia poder construir uma casa em alve-
naria: a madeira é provisória, o “sonho” é ter uma casa em alvenaria, sonho este
que muitos nunca conseguem realizar. Outros vão construindo paulatinamente:
desmancham primeiro a sala – cômodo da frente – e refazem-na em alvenaria;
depois de um tempo, quando as condições financeiras permitem, seguem fa-
zendo os demais cômodos da casa – é recorrente nunca concluir.

As pessoas morrem e essa situação se repete no cemitério: primeiramente


o túmulo em madeira, provisório, como a casa, pois o objetivo é um dia construir
um túmulo em alvenaria. Às vezes, o “sonho” em habitar um recinto em alvenaria
só acontece na morte, para outros seguem o improviso.

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O cemitério, como afirma Cymbalista (2002), reflete a cidade dos vivos, pois
ela é feita pelos vivos e para os vivos, logo, a cidade dos mortos é muito parecida
com a cidade dos vivos: mesmos materiais, técnicas de construção e adorno, in-
clusive alguns problemas são recorrentes também.

Figura 02: Comércio de túmulos pré-moldados no Cemitério Municipal São Francisco de Assis, Macapá-AP.
Finados de 2018. Figura 03: Túmulos castilhos recém-colocados. Cemitério Municipal São Francisco de Assis,
Macapá-AP. Fonte: Acervo do autor (2018).

Em decorrência da fugaz durabilidade da madeira, é comum a substitui-


ção dos túmulos em períodos regulares por túmulos pré-moldados em madeiras
(Figura 02), prontos para serem usados, nas cores azul para homens e rosa para
mulheres. Estes túmulos são chamados popularmente de castilhos. Em determi-
nadas datas, como o Dia de Finados, são retocados pelos familiares ou substituí-
dos por completo. Geralmente são colocados após o sétimo dia da inumação em
caráter provisório (Figura 03), pois a intenção é fazer um túmulo em alvenaria.
Aqueles que não dispõem de recursos financeiros para construir o túmulo de-
finitivo substituem-nos em datas especiais quando a madeira está deteriorada.

Estes túmulos pré-moldados estão presentes em quase todos os cemitérios


do estado, mas em maior quantidade na região sul, com destaque para os muni-
cípios do Laranjal do Jari e Vitória do Jari. Os túmulos apresentam características
bastante interessantes sobre a vida do inumado, elementos culturais e sociais
como, por exemplo, a visão binária de homem e mulher, que identifica o gênero
a partir da cor: azul para masculino e rosa para o feminino. Simbologias religio-

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sas, como a cruz latina para o católico, a Bíblia para o evangélico. A cruz latina é o
elemento simbólico preponderante em todos os cemitérios do Amapá.

Simboliza a paixão de Cristo. Conforme a tradição, representa o local em que


Cristo foi crucificado e é o símbolo da sorte e da esperança. Muito usada em
todos os tipos de túmulo, é atributo de inúmeros santos como Santa Helena,
Santa Úrsula, São Jorge e São João Batista. (BORGES, 2017, p. 414-415)

O castilho simples (Figura 04) é o modelo de túmulo mais comum, está


presente em todos os municípios do estado do Amapá, tanto nas zonas rurais,
quanto nas zonas urbanas. Trata-se de uma estrutura retangular que cobre toda
a extensão da sepultura, com aproximadamente 15 a 30 cm de altura, pode der
usado tanto para adultos quando para crianças. No interior dos túmulos são
plantados pequenos arbustos ou são preenchidos com flores artificiais, terra,
cascalho, areia, pó de serragem colorido, como pode ser observado na figura 04.
As flores artificiais são bastantes utilizadas e são colocadas em datas comemora-
tivas, especialmente no Dia de Finados e Dia das Mães, pois no Dia dos Pais e das
Crianças os cemitérios amapaenses são pouco visitados.

Os castilho simples, em sua maioria, são feitos de tábuas de Virola4, madeira


de baixa durabilidade, quando exposta ao ar livre e, consequentemente de baixo
valor comercial. Cabe aqui ressaltar, que este processo de deterioração é acelera-
do, considerando as características do clima amazônico, predominante quente e
úmido. Entretanto, o uso de uma madeira de pouca durabilidade, para a confec-
ção de castilhos simples, necessariamente, neste caso, não está ligado a questão
econômica, mas sim ao ciclo que este túmulo cumpri, como já mencionado, tra-
ta-se de um túmulo provisório, sua função, a priori, é demarcar e guardar a se-
pultura, até o momento em que as condições do solo permitem a construção de
um túmulo fixo, em alvenaria sobre, a sepultura, em torno de 9 meses a 1 ano. No
entanto, nem sempre, após este ínterim, o túmulo fixo é construído, o que impli-
ca, a sua substituição por novo túmulo castilho simples, gradeado ou trançado.

4 De acordo com Leite et al. (2006), tal planta possui o nome científico de Virola surinamen-
sis, pertence a espécie da família Myristicaceae. Trata-se de uma madeira leve utilizada sobretudo
na indústria de compensados.

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Figura 04: Túmulo castilho simples. Cemitério Municipal São Francisco de Assis, Macapá-AP. Fonte: Acervo do
autor (2021)

Há, ainda, singularidades significativas de uma região para outra, na ma-


neira como os túmulos são construídos. Os castilhos gradeados (Figura 05) são
mais frequentes nos municípios de Laranjal do Jari, Vitória do Jari, Mazagão, Por-
to Grande e Pracuúba; em Macapá, no Cemitério São Francisco de Assis. São ar-
mações em madeira, em formato retangular, que não seguem um padrão, mas
geralmente possuem 180 cm de comprimento por 60 cm de largura e 70 cm de
altura, quando se trata de um túmulo para adultos. A cabeceira é demarcada por
uma pequena cruz, na qual é registrado o nome do inumado, a data de nasci-
mento e de morte, caso seja católico. E, para o evangélico, uma bíblia, na qual são
registradas as mesmas informações.

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Figura 05: Túmulo castilho gradeado Cemitério da Paz, Porto Grande-AP. Fonte: Acervo do autor (2017)

Os castilhos trançados (Figura 06) são encontrados em maior quantidade


nos municípios de Laranjal do Jari e Vitória do Jari. De uma feitura mais elabora-
da, a estrutura retangular tem os seus lados preenchidos por filetes de madeira
delicadamente sobrepostos, formando os trançados. Alguns possuem cobertura
de madeira, zinco ou telha de fibra de amianto em formato plano ou de telhado
de duas águas. Essa prática de cobrir o túmulo está presente em toda região
norte do Brasil, e serve como proteção do túmulo e seus adornos contra a seve-
ridade do clima amazônico, como observa Borges (2005).

Figura 06: Túmulo castilho trançado. Cemitério Municipal Débora Damascena, Laranjal do Jari - AP. Fonte:
Acervo do autor (2017)

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Esses túmulos são produzidos de forma artesanal ao longo de todo o ano,


por carpinteiros e artesãos da região que também empregam esta técnica na
construção de moradias, móveis e pequenas embarcações. Os trançados são uti-
lizados nas construções residenciais com objetivos estéticos e para climatização,
pois permitem uma melhor ventilação dos ambientes. Essa tipologia tumular,
diferente do castilho simples que pode ser confeccionado até mesmo dentro do
cemitério, são feitos por artesões em suas oficinas e sob encomenda específica.

Considerações finais.

Os cemitérios do Amapá não possuem esculturas em mármore, nem mau-


soléus suntuosos, se comparados aos cemitérios monumentais de diversas ci-
dades brasileiras, mas estas necrópoles apresentam o que há de mais singular
em sua arte funerária. Os castilhos, ao primeiro olar, podem se apresentar como
estruturas aparentemente simples, considerando as suas formas, mas este ar-
tefato funerário, ao ser depositado sobre a sepultura, adquire valores simbólicos
importantes, pois trazem em suas formas elementos das atitudes dessa socie-
dade diante da morte e do morrer. Essa relação de cuidado constante com a
sepultura, observado na confecção dos gradeados e trançados coloridos e nas
diversas datas em que tais espaços são visitados e cuidados, revela-se como par-
te importante da cultura e da arte funerária da sociedade amapaense.

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ENCANTARIA MARANHENSE: O TERECÔ DE CODÓ-MA


E O CAMPO RELIGIOSO AFRO-BRASILEIRO

Victor Hugo Basilio Nunes1

1. Codó – A cidade dos encantados.

Esta pesquisa se inscreve nos estudos afro-brasileiros. Em constante pes-


quisa de campo desde 2016 pude perceber que o campo das religiões afro-brasi-
leiras é marcado pela afirmação da pureza da tradição jeje-nagô e pelo paradig-
ma da maior africanidade. Problematizando esta dinâmica acreditamos que o
que compreendemos como uma arena de disputa por prestígio, que tem como
pano de fundo a africanização no campo das religiões afro-brasileiras a partir
das oposições puro/misturado; religião/magia; essencialismo/processual, produz
a hierarquização desses espaços religiosos. Podemos observar essa relação no
exemplo da tradição banto comumente reconhecida como candomblé de an-
gola e outras expressões religiosas mais próximas da mistura com elementos
indígenas como o candomblé de caboclo, toré, catimbó, jurema, sempre coloca-
das em segundo plano frente ao modelo jeje-nagô quando se trata de tradições
religiosas afro-brasileiras seja na literatura especializada ou na cultura do povo
de santo. Percebemos também que estando constantemente em disputa as re-
ligiões afro-brasileiras tem suas fronteiras sempre reconfiguradas como pode-
mos observar no movimento de africanização que vem ocorrendo nas últimas
décadas. Uma das características desse movimento é opor, ao menos publica-
mente, o feitiço à africanização das religiões afro-brasileiras. Contrariando esse
movimento vemos a encantaria maranhense de Codó-MA se inscrever no cam-
po religioso afro-brasileiro como terra de poderosos feiticeiros.

1 Doutorando vinculado ao Programa de Pós-graduação em História da Universidade Fede-


ral de Goiás. E-mail: victorhugobasilio@gmail.com

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A partir dos trabalhos de campo que realizei em Codó entre 2019 e 2021
apresentarei como o terecô, religião afro-brasileira de Codó, se organiza e o que
guarda em comum com outras religiões desse segmento em especial o can-
domblé, a umbanda e a mina. Destaco também suas particularidades, suas
reinterpretações do contato com outras religiões e principalmente suas marcas
originais o que não foi observado em outras tradições religiosas. Outra importan-
te característica do terecô, talvez a principal, não diz respeito propriamente aos
elementos rituais do seu culto mas a forma como a comunidade se organiza e o
papel reservado ao feitiço, sempre negado e usado como parâmetro de diferen-
ciação para atestar a pureza ritual na perspectiva da africanização, o feitiço tem
um papel específico nessa comunidade já que é utilizado para definir o lugar
do terecô no campo religioso afro-brasileiro, fazendo com que Codó ganhasse
notoriedade nacional.

O terecô, nome dado a encantaria de Codó-MA, vem sendo representado


no campo dos estudos sobre as religiões afro-brasileiras desde os anos 1940 e
a partir dos anos 80 Codó se consolida no imaginário nacional como terra de
poderosos feiticeiros. Desta maneira contraria a dinâmica dos grupos religiosos
afro-brasileiros e também o campo de estudo sobre esta temática atribuindo
um novo lugar à magia sempre prensada em oposição à religião a atestado de
descaracterização da tradição nos cultos afro-brasileiros. A construção do tema
para a antropologia e o interesse do grande público demonstram as represen-
tações que se criaram sobre os poderes sobrenaturais daquela região que sem
dúvida é local de forte tradição religiosa afro-brasileira. Discutiremos como Codó
passou a ser representada na mídia oficial como a “capital da macumba”. Discu-
tiremos também como essa representação passou a ser agenciada pela comu-
nidade do terecô.

A cidade Codó está localizada no leste maranhense possui território de


4.361, 344km2 população estimada em 123.116 pessoas salário médio mensal dos
trabalhadores formais [2018] era de 1,8 salários mínimos, pessoal ocupado em
2018 era de 9.758 pessoas, população ocupado 8,0% a região é classificada como
bioma cerrado2. O início do povoamento de Codó ocorre em 1780 através de colo-

2 Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/ma/codo/historico Acessado em: 18/01/2021.

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nizadores portugueses e escravos africanos que passaram a desenvolver a agri-


cultura. No século dezenove a produção de algodão ganha destaque naquela
região, Codó é elevado a condição de cidade em 16 de abril de 1896, se destaca
no processo de industrialização do Maranhão com a instalação da Companhia
Manufatureira e Agrícola em 1892 que funcionou até 1962.

Localmente a região é chamada de Mata de Cocais devido à predominância


da palmeira do coco babaçu. Tem como principais municípios Bacabal, Codó e
Caxias, na região da Mata de Cocais uma religião surgiu, o terecô, essa religião
tem como epicentro do seu surgimento o povoado de Santo Antônio dos Pretos
que pertence ao município de Codó. Uma característica marcante dessa tradição
é o culto aos encantados no qual se destaca os encantados da família de Légua
Boji Bua, que viveram e se encantaram nessa região, outra marca do terecô que
destacaremos nesse artigo é sua intensa sociabilidade. A cidade de Codó pode
ser compreendida como o grande centro difusor do terecô. Uma das caracterís-
ticas do terecô é o forte agenciamento relacionado com o imaginário construído
sobre a cidade e o poder mágico de sua religiosidade. Recentemente se obser-
vou a criação de vários canais na plataforma youtube confirmando essa caracte-
rística do terecô: a sociabilidade entre barracões e o agenciamento no universo
das religiões afro-brasileiras.

Estive em Codó pela primeira vez em julho de 2019, desde então voltei na
festa grande realizada por Mãe Gleice da Tenda Nossa Senhora da Conceição
e Santa Bárbara3, em dezembro de 2019, 2020 e 2021. O barracão de Mãe Glei-
ce está situado no bairro Codó Novo, na periferia da cidade, um bairro muito
populoso. Seu barracão tem um grande número de membros os abatazeiros
(músicos) são coordenados por seu esposo Sr. Romário, os demais membros
são divididos entre os que incorporam (médiuns) e os que cuidam da logística
dos rituais como organizar o salão providenciar chapéus, cachimbos, bebidas e
etc. para os encantados, receber visitantes (diretoria). Observamos que na Tenda
3 A utilização do termo “Tenda” decorre da influência do chamado movimento federativo
da Umbanda, esse movimento pode ser compreendido como a formalização perante o Estado
das casas de cultos afro-brasileiros em federações de Umbanda. Em diferentes contextos o uso
desse termo pode ser compreendido como uma maneira de resistir à repressão policial utilizando
a vinculação à estas federações como estratégias de resistência. Sobre o movimento federativo da
Umbanda ver (NEGRÃO, 1996).

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Nossa Senhora da Conceição e Santa Bárbara estão presentes os elementos que


marcam a tradição no terecô (COSTA EDUARDO, 1966; FERRETTI, 2000; AHLERT,
2013) sendo estes: guna (poste no centro do salão); toque com tambor da mata
no ritmo mata, uso de cabaças sem malha de contas mais próximos de maracás
do que de xequerés; pífano; lovariê na abertura, os médiuns de joelhos no chão
recebem os encantados com muita intensidade; doutrinas (cantos) tradicionais
do terecô; dança rodada; uma grande festa anual; noite da roupa nova; forte pre-
sença da família de Légua. Identificamos os principais elementos que marcam a
tradição no terecô, mas também identificamos elementos da quimbanda como
exus castiços, pombagiras e cigana. Mãe Gleice nasceu e viveu sua infância em
Santo Antônio do Pretos, povoado quilombola onde surgiu o terecô. A mãe de
santo com quem Mãe Gleice toma obrigação4 é Mãe Maria do Santos herdeira do
terreiro de Mãe Antoninha compreendida por (FERRETTI, 2000) como defensora
da tradição no terecô.

Como é comum em muitas pesquisas sobre religiões afro-brasileiras


(AHLERT, 2013; CAPONE, 2018; DANTAS, 1988; FERRETTI, 2000) me aproximei e
construí um vínculo maior com uma tenda de terecô de Codó o que me permi-
tiu, através das festas que acompanhei em 2019, 20 e 21, acessar a intensa rede de
relações entre as tendas de terecô. Desta maneira apresentarei a etnografia das
festas que participei destacando a importância das alianças, relações sociais, da
qual participam encantados e pessoas.

Após minha primeira visita a Codó em julho de 2019 percebi que a melhor
forma de desenvolver uma pesquisa naquela comunidade seria a convivência
com aquelas pessoas, busquei, então, recentes perspectivas antropológicas so-
bre o trabalho de campo. Recentemente, diversas pesquisas em antropologia
abriram o horizonte para o “afetar-se” (FAVRET-SAADA, 2005; GOLDMAN, 2003),
acreditamos ser essa a melhor maneira para conseguir perceber o lugar do fei-
tiço no terecô e a intensa sociabilidade dessa comunidade. A metodologia do
nosso trabalho foi a etnografia, as fontes foram dos diários produzidos a partir

4 No contexto das religiões afro-brasileiras tomar obrigação significa se submeter à autori-


dade de um outro pai ou mãe de santo através de procedimentos ritualísticos no caso do terecô o
principal procedimento ao se tomar obrigação é a lavagem de cabeça.

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do trabalho de campo. Essa aventura, de um historiador de formação, pela et-


nografia foi apoiada nos estudos de (FAVRET-SAADA, 2005) que problematiza as
fronteiras entre observar e participar “observar participando ou participar obser-
vando” (FAVRET-SAADA, 2005, p. 156) propondo a reflexão entre o comportamen-
to ativo ou passivo em trabalho de campo. Em seu trabalho sobre feitiçaria no
Bocage francês a autora problematiza o distanciamento entre o pesquisador e a
comunidade propondo que na divisão entre nós e eles o etnógrafo não acredita
na feitiçaria, “se eu participasse aventura pessoal [...] se eu observasse não acha-
ria nada para observar” (FAVRET-SAADA, 2005, p. 157).

Percebi a necessidade de aceitar “ser afetado”, de entrar na corrente, de


participar ativamente do terecô dançando no salão com os encantados, dormin-
do no quarto interno onde se guardam os assentamentos e as pedras dos encan-
tados, sendo “invadido por uma situação e/ou por seus próprios afetos” (FAVRE-
T-SAADA, 2005, p. 160). Porém mesmo em meio a todas essas experiências era
evidente a necessidade de se organizar um diário de campo para que os dados
levantados embasassem minhas reflexões sobre o terecô, o feitiço e o campo
religioso afro-brasileiro.

Posso afirmar que em trabalho de campo busquei o método etnográfico


baseado em “resgatar um olhar de perto e de dentro” (MAGNANI, 2002, p. 12). O
“ser afetado” que tratamos aqui nos diz da compreensão de que a experiência
de campo é significativa para a interpretação dos eventos, as percepções pro-
vocadas pelo ser afetado conduzem à tensão entre a experiência e a interpreta-
ção. As relações estabelecidas com a comunidade do terecô também passam
a fazer parte da narrativa etnográfica, já que ao entrar na corrente a percepção
que se tem do contato com a encantaria passa a ser bem diferente de um es-
pectador. Essa fronteira entre o entrar e o observar é bastante explorada nesse
trabalho pois acredito que as escolhas que fiz me levaram a interpretar códigos
que seriam possíveis somente ao entrar na corrente. O exercício metodológico
de afetar-se me levou à intensa sociabilidade e comunicação entre encantados e
humanos presente no terecô.

Desta maneira essas reflexões serviram de base para fundamentar o tra-

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balho de campo, a produção dos diários de campo elaborados nas quatro vezes
que estive em Codó entre 2019 e 2021. Ressalto que a escolha das datas para a
realização do trabalho de campo foi orientada pelo calendário das atividades da
Tenda Nossa Senhora da Conceição e Santa Bárbara que me permitiu entrar na
teia de relações da comunidade do terecô.

2. O Terecô de Codó e o campo religioso afro-brasileiro.

A trajetória dos estudos realizados sobre o terecô começa com o antropó-


logo Octávio da Costa Eduardo que esteve, entre 1943 e 1944, em Santo Antônio
dos Pretos povoado situado na zona rural do município de Codó. Em sua obra
(COSTA EDUARDO, 1966) produziu um estudo em comparação entre a área rural,
Santo Antônio dos Pretos, e a área urbana, no caso São Luís, no que se refere às
tradições afro-brasileiras. Em sua obra: “The Negro in Northern Brazil: a Study in
Acculturation” (1966), defende a tese de que os rituais complexos foram desca-
racterizados no meio rural, afirma não ser possível reconhecer divindades africa-
nas no que ele chama de “crenças rurais” e que no lugar de divindades africanas
estão os encantados.

O autor destaca a ausência de iniciação, o uso de bebida alcoólica, a au-


sência de líder, para ele o terecô se caracteriza como um culto rural jêje desca-
racterizado e desintegrado quase que condenado a desaparecer. Afirma que na
comparação da área rural, Santo Antônio dos Pretos, com a área urbana, no caso
São Luís, os rituais complexos foram descaracterizados no meio rural. Passa a
tratar do que chama de “crenças rurais”, afirmando que não se encontram di-
vindades africanas em forma reconhecível, em seu lugar estão os encantados a
possuírem as pessoas em contextos rituais, como podemos observar na citação,
“Rural belief. African deities, in recognizable form, are all but entirely absent in
the religion of the rural Negroes in Maranhão, but it their place are African-like
spirits called encantados, believed to “possess” certain persons during ritualistic
dances.” (COSTA EDUARDO, 1966, p. 57)

Afirma que a admissão a esse grupo não requer cerimónias de iniciação

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e que a presença de bebida alcoólica consumida pelos participantes durante o


ritual retira o caráter sagrado e atua como aspecto desintegrador do grupo. Nos
diz ainda que não há a direção de um líder reconhecido, mas apenas a presença
de dois homens que cuidavam da cerimónia para que ela acontecesse.

Ao destacar o uso de bebida alcoólica com fator de desintegração e a au-


sência de líder compreendemos que em sua análise (COSTA EDUARDO, 1966)
talvez tenha sido levado por analogias equivocadas a não compreender a orga-
nização e o uso da bebida no contexto ritual. Ressaltamos que o que vimos ao
longo do tempo foi uma comunidade que caminhou em uma direção bem dife-
rente da destacada pelo autor, cada vez mais coesa, a tradição de dar e receber
visita, os canais de terecô no youtube mostram a intensa sociabilidade dessa
comunidade ao contrário do que o autor em destaque identificou nos anos 1940.
Contrariando o que afirma o autor, que compreende o terecô como culto rural
jeje descaracterizado e desintegrado condenado ao desaparecimento o que ob-
servamos foi uma comunidade altamente organizada e padronizada com inten-
sa sociabilidade.

Porém em sua obra (COSTA EDUARDO, 1966) apresenta informações im-


portantes, ao tratar dos negros rurais do Maranhão fala da ausência de conflitos
em comparação com o Haiti destacando que existe maior tensão no ambien-
te urbano em comparação com o rural, um ponto é de especial interesse para
nossa pesquisa o autor observa que no Maranhão, no ambiente urbano em São
Luis a população tem mais medo do feitiço do que na área rural, no caso Santo
Antônio dos Pretos, em seguida nos diz da pajelança e práticas curativas como
estratégias de combate a feitiçaria o que o autor chama de “meios de segurança
emocional” (COSTA EDUARDO, 1966, p.125), destaca que esses macanismos se
desenvolveram de forma mais eficiente no meio rural isso mostra que a relação
entre magia e tradição religiosa afro-brasileira não é algo novo em Codó.

O autor conclui afirmando o sucesso da adaptação das comunidades urba-


nas e rurais do Maranhão por terem “preservado muitos padrões africanos, acei-
tado muitos traços da cultura europeia dos senhores, emprestado dos indígenas
e combinado tudo em um novo corpo de costumes” (COSTA EDUARDO, 1966, p.

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124). Porém, realiza analogias que demonstram um olhar distante apressado em


confirmar suas teorias da aculturação. Vemos, por exemplo, o autor relacionar
os encantados aos anjos da Igreja Católica reconhecemos nessa relação uma
confusão por parte do autor, é perceptível a forte presença de imagens católicas
em altares nas tendas de terecô, mas é inconfundível a natureza dos encantados,
principalmente da família Légua Boji, a principal de Codó, somente um olhar su-
perficial faria tal relação. E ao final fala de “uma província cultural de um mundo
único” (COSTA EDUARDO, 1966, p. 127), novamente ele se equivoca ao compreen-
der que aquela comunidade homogeneizava com relação ao modelo jeje-nagô
sendo que o que concluímos foi que a encantaria maranhense de Codó subverte
esse modelo que predomina no campo religioso afro-brasileiro.

Posteriormente (BASTIDE, 1971), baseado nos estudos de (COSTA EDUADO,


1966), abordou o terecô na obra: “As Religiões Africanas no Brasil: Contribuição
a Uma Sociologia das Interpretações de Civilizações” (1971). Para o autor os can-
domblés jeje-nagô são compreendidos como de cultura mais avançada dotados
de pureza ritual, sendo esses os candomblés kêtu da Bahia e a Casa das Minas do
Maranhão. As demais religiões afro-brasileiras estariam mais próximas da magia
o que justificaria a perseguição policial destas. Outro elemento destacado por
(BASTIDE, 1971) em sua análise diz de como o meio rural funcionou como ele-
mento desagregador das tradições religiosas afro-brasileiras, para o autor o sur-
gimento de seitas africanas organizadas estava condicionado ao meio urbano.

Outra antropóloga que escreveu sobre o terecô foi Mundicarmo Ferretti,


ela esteve em Codó nas festas de: Mestre Bita em agosto de 1986, Maria Piauí
e Santo Antônio dos Pretos em junho de 1989. Em 1994 e 1996 esteve em Codó
para assistir rituais realizados na tenda de Mãe Antoninha, em 1997 esteve com
Mãe Antoninha já doente (FERRETTI, 2000). Sua principal obra foi Encantaria de
“Barba Soeira”: Codó, capital da magia negra? (2000).

A tese de (FERRETTI, 2000) consiste em defender a existência do terecô tra-


dicional que tem em Mãe Antoninha sua guardiã. Outra forte característica de
seu trabalho é a tentativa de desqualificar a importância de Mestre Bita do Barão
para a cidade de Codó compreendendo que Mestre Bita contribuiu para a desca-

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racterização do terecô tradicional com a introdução de elementos da umbanda


na encantaria codoense.

A autora repudia toda forma de conexão do terecô com o feitiço e a magia,


porém reconhece que a fama atribuída aos poderes mágicos daquela região está
além do simples dilema de pureza ritual levantado por ela. Apesar de reconhecer
que existe um mercado de trabalhos espirituais em Codó, desconsidera o papel
das atribuições do poder espiritual no agenciamento que a comunidade local
realiza, principalmente, as atividades econômicas relacionadas a trabalhos espi-
rituais que se caracteriza como uma importante atividade econômica da cidade.
Busca fundamentar sua tese na compreensão de que existe um terecô tradicio-
nal e que Mãe Antoninha é sua representante máxima, se apoia na descrição de
(COSTA EDUARDO, 1966) destacando o povoado de Santo Antônio dos Pretos
como marca de tradicionalidade no terecô. Mãe Antoninha faleceu em 1997 e
passou, ainda em vida, seu barracão de terecô, a Tenda Santa Bárbara, para o
comando de Mãe Maria dos Santos. Para (FERRETTI, 2000) a escolha na sucessão
deste importante barracão não foi a melhor para a manutenção do terecô tradi-
cional e novamente ela apresenta Mestre Bita do Barão como articulador da des-
caracterização do terecô. Vejamos como a antropóloga se refere a Mestre Bita e
Mãe Maria dos Santos, duas importantes lideranças religiosas de Codó:

Maria dos Santos gostava de coisas modernas e de roupas luxuosas, com brilho.
Em 6 de janeiro de 1994 iniciou o toque de gravador na mão e usou roupa nylon.
Em 1995, “sonhava” com uma saia de lamê verde. Em dezembro de 1996 colocou
som e venda de bebidas na festa de fim de ano do terreiro e, embora tenha feito
roupa bordada em Richelieu para as tobôssas, usou, na abertura da festa, nylon
trabalhado industrialmente. Gostava também de preparar mesa de doces e
bolo confeitado nas festas de seus guias. O estilo de Maria dos Santos parecia
pautado no do Bita, que parece ter também influenciado Dona Antoninha que,
apesar de mais velha do que ele, dançou muitos anos no seu salão e tinha por
ele grande admiração. Logo após o falecimento de Dona Antoninha, parecia
que aquela influência ia aumentar, pois antes dele ocorrer o Bita já estava sen-
do apresentado como alguém que poderia orientar e acompanhar os passos da
nova mãe de santo e o filho de Maria dos Santos fora preparado por ele. Na festa
do fim de ano de 1996, a Tenda Santa Bárbara não parecia tão empenhada em
desenvolver o “nagô de Codó” quando em acompanhar o movimento umban-
dista que ver crescendo na capital e no interior do Estado do Maranhão e que
ali era liderado pelo Bita. (FERRETTI, 2000, p. 133-134)

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Nesse sentido a afirmação da tradição e negação do agenciamento rela-


cionado ao feitiço e ao poder naquela região se caracterizam como um discurso
político socialmente construído, no qual a antropóloga impõe a sua concepção
sobre o que é tradicional no terecô para desqualificar inclusive a linha sucessória
de um tradicional barracão de terecô. Ressalto que durante convivência que tive
na comunidade do terecô em Codó percebi um profundo respeito de todos por
Mãe Maria dos Santos e a compreensão de que em seu barracão se bate o terecô
tradicional ou como ela gosta de chamar a mata zombana.

Para nos ajudar a pensar de forma ampliada as problemáticas quem en-


volvem a relação entre feitiço e religiões afro-brasileiras tão presentes no imagi-
nário que cerca Codó, recorremos a Yvonne Maggie que em seu livro: “Medo do
feitiço: relações entre magia e poder no Brasil” (1992), nos mostra que “a crença
na magia e na capacidade de produzir malefícios por meios ocultos e sobrena-
turais é bastante generalizada no Brasil desde os tempos coloniais” (MAGGIE,
1992, p. 22). Na obra percebemos que o feitiço passa a ser elemento de acusação
que desqualifica terreiros, enquanto os terreiros vinculados às práticas mágicas
caracterizados como impuros eram mais reprimidos os que eram considerados
“nagôs puros” alcançavam prestígio passando a ser considerados como religião,
sendo menos perseguidos pela polícia. A autora relativiza o feitiço na sociedade
brasileira e problematiza a hierarquia operada pela ideia de feitiço nas religiões
afro-brasileiras.

Pensar a representação de Codó no imaginário nacional como “capital da


macumba” é também pensar o lugar do feitiço na sociedade brasileira. Destaca-
mos a importância de pesquisas como a que apresentamos neste artigo para se
aprofundar estudos sobre as religiões afro-brasileiras problematizando concep-
ções que alimentam teorias como o nagô-centrismo.

Percebemos na história das religiões afro-brasileiras no Maranhão a presen-


ça de múltiplos agenciamentos. Compreendendo como agenciamento a relação
que se estabelece entre o indivíduo e a estrutura, como diálogo entre tradição e
renovação, como espaço de transação e negociação, na qual se estabelece uma
tensão em torno do termo tradicional, destacando o caráter processual. Estas ca-

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racterísticas reforçam a abordagem que proponho, direcionada para uma visão


processual em contraposição a uma visão essencialista. O agenciamento como
nos mostra (HANNERZ, 1997; MATORY, 1998) supõe necessariamente uma traje-
tória que é histórica e determinada por múltiplos fatores e uma origem que é
uma experiência primária, individual, mas que também está traduzida em sabe-
res e narrativas aos quais vem se acoplar. Ao entrar em contato com o universo
do terecô adotei um posicionamento de abordagem que se distancia das oposi-
ções: tradicional/descaracterizado, puro/misturado, entendendo que os binaris-
mos devem ser deixados de lado e que o olhar lançado ao terecô deve ser orien-
tado por uma compreensão processual evitando os essencialismos.

Como nos mostra (OLIVEIRA, 1996) devemos ter em mente que as nações no
contexto das religiões afro-brasileiras se constituem a partir de múltiplos agen-
ciamentos e que estão muito mais ligadas as reconfigurações e identificações
na América do que a sua origem africana. Pode-se argumentar, por esse motivo,
que o repertório de classificações étnicas na América não passa de atribuições,
que terminariam por colocar-se aos mesmos como rótulos. Segundo esta pers-
pectiva é que se problematiza a atribuição dos nomes étnicos aos grupos afri-
canos na América, considerando que os nomes de nação ficaram conhecidos
em tal região ou país, sem se questionar a lógica que presidiu tal processo. To-
davia, diversos elementos nos indicam que os nomes étnicos se transformaram
em formas auto-descritivas introjectadas, individual e socialmente. Destacamos
que a ênfase, ao problematizar a etnicidade na religiosidade afro-maranhense,
não está na permanência das práticas, mas sim nas transformações, reconfigu-
rações, o processual em detrimento do essencialismo. O que interessa a esta
pesquisa não é o que permaneceu, mas sim o que se reconstruiu, a diversidade
e o agenciamento das religiões afro-brasileiras produzindo um contraponto às
ideias de pureza e africanização nas diferentes tradições que formam os cultos
afro-brasileiros.

Vimos que para os antropólogos (COSTA EDUARDO, 1966) e (BASTIDE, 1971)


o terecô é religião afro-brasileira rural, que se caracteriza pela deturpação do
culto jeje daomeano de São Luís marcada pela desagregação. Para (FERRETTI,
2000) o terecô é pensado a partir da tradicionalidade, escolhe a Tenda de Mãe

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Antoninha como modelo dessa tradicionalidade, mas não consegue perceber


como os discursos públicos devem ser analisados com maior profundidade no
contexto das religiões afro-brasileiras. A tentativa da antropóloga de construir a
oposição entre Mãe Antoninha (Terecô tradicional) X Mestre Bita do Barão (feiti-
ço, distante do Terecô tradicional) reforça uma abordagem que hierarquiza tra-
dições e que no campo das religiões afro-brasileiras vem sendo desconstruída
desde (DANTAS, 1988); (MAGGIE, 1992); (CAPONE, 2018). Porém mesmo diante da
ideia de africanização construída em torno da pureza ritual jeje-nagô e do feiti-
ço como algo a ser negado, o trabalho de campo que realizei em Codó mostrou
que a comunidade do terecô agencia sobre o feitiço se estabelecendo no campo
religioso afro-brasileiro. Codó passa a ser conhecida nacionalmente a partir de
Mestre Bita do Barão que, por conta de sua amizade com o ex-presidente José
Sarney, desperta o interesse da mídia nacional que produz matérias sobre a cida-
de, sempre enfatizando o feitiço o os poderes mágicos da terra dos encantados.

3. Assumir publicamente o feitiço.

Até o momento vimos que a pesquisa se inscreve no campo dos estudos


afro-brasileiros e que o campo das religiões afro-brasileiras é marcado pela afir-
mação da pureza da tradição jeje-nagô, pelo paradigma da maior africanidade.
Desta maneira pensamos o próprio campo problematizando a dinâmica que
acreditamos pode ser compreendida como uma arena de disputa por prestígio,
que tem como pano de fundo a africanização do campo religioso afro-brasileiro
e as oposições puro/misturado; religião/magia; essencialismo/processual, estan-
do constantemente em disputa acreditamos que suas fronteiras são sempre re-
configuradas.

Observamos também como o terecô é representado e se inscreve no cam-


po religioso, acadêmico e midiático, destacando quando surgiram as primeiras
referências na literatura antropológica, na mídia, e o agenciamento da comuni-
dade através das mídias sociais. E como nesses diferentes espaços o discurso se
constrói sempre tendo como referência o feitiço e representações de Codó como

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“capital da macumba”.

Veremos agora a organização do terecô como religião afro-brasileira, o que


guarda em comum com outras religiões desse segmento em especial o can-
domblé, a umbanda e a mina. Destacaremos também suas particularidades,
suas reinterpretações do contato com outras religiões e principalmente suas
marcas originais o que não foi observado em outras tradições religiosas. Outra
característica importante, talvez a principal marca do terecô não diz respeito pro-
priamente aos elementos rituais do seu culto mas a forma como a comunidade
se organiza e o papel reservado ao feitiço, sempre negado e usado como parâ-
metro para atestar a pureza ritual na perspectiva da africanidade, o feitiço tem
um papel específico na comunidade do terecô que agencia seu lugar no campo
religioso afro-brasileiro ganhando notoriedade nacional como terra de podero-
sos feiticeiros.

Para pensar o lugar do feitiço na comunidade do terecô destaco o posicio-


namento público assumido por uma importante tenda de terecô daquela cida-
de. Na festa 2020 a Tenda Nossa Senhora da Conceição e Santa Bárbara produziu
uma camiseta comemorativa a mensagem era a seguinte: “Eu sou um filho de
fé, meus orixás me dão a luz... Meu coração tem axé, e se for preciso caminhar no
escuro, eu também tenho quem me conduz.” O terecô apresenta sua feitiçaria
como elemento de valor no mercado dos bens religiosos contrariando a oposi-
ção pelo campo de estudo e pela comunidade das religiões afro-brasileiras que
opõem de maneira antagônica religião e magia.

Nas festas que participei percebi detalhes na organização da comunida-


de do terecô. Com o objetivo de ajudar na compreensão de como o terecô vem
construindo sua estrutura ritual e sua organização social importando elementos
da umbanda, mas atribuindo um novo sentido na perspectiva da encantaria tra-
dicional da mata codoense, destaco que a festa está dividida da seguinte ma-
neira: tarde obrigação (elementos da umbanda) depois toca-se o terecô e vem a
família de Légua. Noite toque da mata terecô (sem elementos da umbanda). Nos
dois últimos dias ocorre a apresentação de outras tendas. O ritmo tocado em
quase todos os momentos é o tambor da mata, mesmo quando se destaca ele-

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mentos da umbanda, alternando com o toque do tambor de mina, caracterizado


por ser mais lendo geralmente é tocado quando há a passagem de uma tenda
para outra na condução do salão como se fosse uma entrada. Compreendi como
sendo os momentos mais importantes da festa: o primeiro dia com a alvorada
no cruzeiro, a lavagem das cabeças, a noite do lovariê e a última noite, noite da
roupa nova. Notadamente as atividades de maior destaque são as que remetem
as marcas tradicionais do terecô, percebi que os elementos da umbanda são tra-
tados como uma obrigação a ser cumprida.

Identifiquei palavras que nos remetem a elementos de procedência afri-


cana no terecô como as palavras, “angasso” e “vodunso” acredito ser essa uma
conexão com elementos jeje do tambor de mina de São Luís. Porém devemos ter
em mente que existem diferentes parâmetros para se identificar elementos afri-
canos nas religiões afro-brasileiras como nos mostra Beatriz Góes Dantas (1989)
o nagô de Laranjeiras, não é o nagô da Bahia.

Partindo, então, do que foi levantado no trabalho de campo que realizei em


Codó entre 2019 e 2021 e das questões levantadas por (DANTAS, 1988; MAGGIE,
1992; CAPONE, 2018) a tese que defendo trata especificamente do lugar do feitiço
no processo de africanização das religiões afro-brasileiras e de como a tradição
de Codó subverte essa ordem ao se inscrever nesse campo religioso ganhando
notoriedade nacional como terra de poderosos feiticeiros. Essas questões corro-
boram a tese de que o papel do feitiço proposto no modelo jeje-nagô entra em
conflito com a constituição do campo religioso afro-brasileiro.

A construção do modelo de pureza jeje-nagô repercutiu em todo o Brasil a


expansão desse modelo passou a orientar o eixo puro/misturado, religião/feitiço,
a busca da origem africana da pureza ritual sugere também a necessidade de
“refazer a identidade do negro brasileiro para considerá-lo sempre um estran-
geiro, um ser vinculado à África.” (DANTAS, 1989, p. 243). É importante ressaltar
que traços culturais evocados para atestar uma origem não necessariamente
correspondem a origem pretendida já que a função das identidades étnicas no
contexto da africanização das religiões afro-brasileiras ganha sentido nas rela-
ções de disputa que organiza o campo religioso.

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Referências Bibliográficas:

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Instituto de Ciências Sociais, Departamento de Antropologia, Programa de Pós-
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BASTIDE, Roger. As Religiões Africanas no Brasil: Contribuição a Uma Socio-


logia das Interpretações de Civilizações. São Paulo: Editora da Universidade de
São Paulo, 1971.

CAPONE, Stefania. A busca da África no candomblé: tradição e poder no Bra-


sil. Rio de Janeiro, Pallas, 2ª ed. 2018.

COSTA EDUARDO, Octavio da. The Negro in Northern Brazil: a Study in Ac-
culturation. Washington: University of Washington Press - Seattle and London,
1966. [1948]

DANTAS, Beatriz Góis. Vovó Nagô e papai branco: usos e abusos da África no
Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1988.

FAVRET-SAADA, Jeanne. 1990. Être Affecté. In Gradhiva: Revue d’Historie et


d’Archives de l’Anthropologie, 8. pp. 3-9. Tradução Paula Siqueira. Cadernos de
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FERRETTI, Mundicarmo Maria Rocha. Encantaria de “Barba Soeira”: Codó, ca-


pital da magia negra? São Luís: Comissão Maranhense de Folclore-CMF, 2000.

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HANNERZ, Ulf. Fluxos, fronteiras, híbridos: palavras-chave da antropologia


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grafia urbana. In Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol 17. n. 49 – São Paulo,
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NEGRÃO, Lísias Nogueira. Entre a cruz e a encruzilhada: a formação do campo


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OLIVEIRA, Maria Inês Côrtes de. Viver e morrer no meio dos seus: nações e co-
munidades africanas na Bahia do século XIX. In Revista da USP, São Paulo (28):
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TEATRO DE RUA E LINGUAGEM POPULAR: A ESTÉTICA


DA MONTAGEM DE ROMEU E JULIETA DO
GRUPO GALPÃO (1992)

Vinicius Machado Papini Pinheiro1

O Grupo Galpão, companhia de teatro de rua de Belo Horizonte, conjunta-


mente com o diretor Gabriel Vilela, foram responsáveis por montar uma adap-
tação da clássica peça “Romeu e Julieta” de William Shakespeare, cuja primeira
versão foi realizada em setembro de 1992, o que distingue essa montagem em
comparação a vasta gama de adaptações realizadas da mesma obra, são por si
só as características inerentes ao próprio grupo.

O Galpão desde sua formação e nas diversas montagens que realizou busca
incorporar em suas performances teatrais, técnicas circenses, improvisação pro-
venientes da commedia dell’arte, mas busca incorporar especialmente, o imagi-
nário cultural regional de Minas Gerais.

Desse modo, essa montagem de Romeu e Julieta se trata de uma adapta-


ção da peça inglesa em uma peça brasileira, a partir das decisões estéticas, de
linguagem, de estilo e culturais próprias do Grupo, que usufruindo das particu-
laridades e das especificidades da companhia teatral e do próprio teatro de rua
para a sua realização, foram capazes de montar um Romeu e Julieta genuina-
mente popular e brasileiro.

Para demonstrar essa faceta da montagem, serão apresentados alguns as-

1 Graduando de Licenciatura em História na Universidade Federal do Triângulo Mineiro


(UFTM). Email: d202021026@uftm.edu.br. Este texto é fruto das das discussões realizadas no in-
terior do Projeto de Iniciação Científica “Romeu e Julieta: uma análise da recepção do espetáculo
de rua do Grupo Galpão (1992) ”, financiado pela FAPEMIG-UFTM e sob a orientação do Prof. Dr.
Rodrigo de Freitas Costa.

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pectos do texto dramático, do figurino, do cenário e das canções que se encon-


tram presentes nela, entretanto, antes de discorrer a respeito destes aspectos
estéticos e de linguagem, se faz necessário para fins de contextualização primei-
ramente apresentar o Grupo Galpão e realizar algumas considerações a respeito
do teatro de rua.

O surgimento do Grupo Galpão se dá nos anos finais da Ditadura Militar, es-


pecificamente no ano de 1982, pelos atores Teuda Bara, Eduardo Moreira, Wanda
Fernandes e Antônio Edson, que participavam de uma oficina teatral em Belo
Horizonte, com continuidade de 10 dias no Festival de Inverno de Diamantina,
realizada pelo grupo alemão Goethe Institut, ministrada por Kurt Bildstein e Ge-
orge Froscher, membros do Teatro Livre de Munique.

O cenário da produção teatral após a abertura política trazia consigo os pro-


blemas que essa classe artística viveu ao longo dos mais de vinte anos de gover-
no militar, conforme o panorama que o crítico Yan Michalski (1994) faz, com a
ausência de investimentos e de políticas públicas para apoiar e fomentar a ati-
vidade, em especial devido a realocação destes recursos em prol da valorização
da produção televisiva, o que consequentemente provocou a sua popularização,
acabou por modificar as perspectivas sobre o consumo das artes cênicas e até
mesmo acerca da carreira de ator, o que acabou por prejudicar e desestimular a
criação e continuidade de grupos teatrais.

A formação do Grupo Galpão nessa época, não é demonstrativo que estas


dificuldades e problemas não os afetaram, mas sim que eles se formaram apesar
disso. A existência do Grupo corrobora para a importância deste coletivo que uti-
lizava do teatro como resistência neste turbulento período de transição.

Em tempos de gritantes mudanças de conjunturas políticas é extrema-


mente valoroso a existência de movimentos artísticos que são engajados politi-
camente, não necessariamente de modo estritamente direto, mas que a partir
de suas produções conscientize e chame para ação tanto os próprios artistas
quanto seu público.

Quanto ao teatro em específico, o público assiste ao espetáculo e pode re-

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fletir sobre o que lhe foi apresentado, criticando e quem sabe até mesmo agindo
a respeito. O teatro, assim como diversas outras modalidades artísticas, sobre
esse aspecto, cumpre uma função de dotar o público de autoconsciência como
agente histórico, capaz de propor questões e participar ativamente na constru-
ção do processo histórico.

O Grupo Galpão, através de suas decisões performáticas e estéticas, tornou-


-se um agente relevante em um processo de formação de uma certa noção sin-
crética de brasilidade, auxiliado pela utilização de aspectos tanto inter quanto
intratextuais na recriação dramática.

A montagem de maior sucesso do Grupo, tanto em popularidade quanto


em crítica, Romeu e Julieta, tem esse sucesso justificado devido ao trabalho rea-
lizado com a mescla de aspectos culturais e de temporalidades, utilizando peças
clássicas como fonte de inspiração e homenageando-as, evidenciando elemen-
tos de representação e temáticas do teatro nacional, no caso do Galpão especi-
ficamente, a presença de uma estética mineira no âmbito de suas produções.

Além disso, entre as evidentes técnicas utilizadas pela companhia de teatro,


está a do circo-teatro, o que pode ser observada em suas duas de suas mais céle-
bres peças, Romeu e Julieta e A rua da amargura, são as que contêm de maneira
bastante clara, estes dois aspectos citados, a estética mineira e circense.

Um dos documentos que demonstram não somente a definição dos com-


ponentes fundadores do Grupo em utilizar o estilo circense como balizador de
suas montagens, mas também o elo da opção por esta forma com o intuito pro-
posto é o intitulado Proposta de trabalho assinado pelos membros do Grupo
Galpão, onde sete objetivos são enumerados:

1. Dar continuidade ao trabalho iniciado em Diamantina;


2. Tentar desenvolver as técnicas aprendidas e ampliá-las, adaptando-as a nos-
sa realidade cultural;
3. Facilitar o acesso à cultura, ao teatro, popularizando-o;
4. Procurar, através do teatro de rua, uma forma mais direta e espontânea de
comunicação com o público;
5. Tentar desenvolver uma estrutura de trabalho na qual exista a possibilidade

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de participação do público no espetáculo, criando assim um constante desafio


e uma constante provocação, tanto da parte dos atores quanto do público;
6. ‘Desinstitucionalizar’ o palco;
7. Buscar novas alternativas de espaço teatral, uma vez que nisso consiste um
dos maiores problemas da nossa realidade cultural regional. (ALVES e NOE,
2006, p. 248).

Eduardo Moreira, um dos fundadores do Galpão, ponderando sobre a tra-


jetória do grupo, rememora que o grupo desde suas origens tem o espírito de
mudança e transformações, ao longo dos anos, eles foram capazes de se adaptar
e atender às exigências históricas e os obstáculos estéticos e artísticos de cada
época, “Levar o teatro para a rua, no Brasil, em 1982, significava uma ruptura com
o ‘status quo’ de uma sociedade cuja expressão artística estava coibida e confi-
nada por dezoito anos de falta de liberdade e perseguições políticas”. (MOREIRA,
2013, p. 117)

Através de sua fala, é possível notar que a decisão do grupo pela prática do
teatro de rua como projeto teatral foi intencional, sobre os pretextos de atender
as formações estéticas e políticas da época causadas pelas mudanças sociais no
país e para dialogar com o público desse período.

Esse público que se diferenciava ao anterior à Ditadura, uma vez que ele
se encontrava acostumado e familiarizado com as dinâmicas de programas te-
levisivos, que estava também marcado pela crise econômica e sucateamento,
além de marcado pela ausência de políticas públicas voltadas para a formação
cultural.

O Grupo Galpão tem o teatro de rua estabelecido em seus trabalhos desde


sua origem, entretanto, eles não se limitaram somente a ele, realizando diversas
apresentações em palcos de teatros, conforme pode ser observado inclusive nas
duas versões do roteiro de Romeu e Julieta, uma em que o narrador se volta para
o público da rua e outra para o público do teatro.

Entre os pesquisadores da área, o teatro de rua possui algumas concepções


díspares, como a de Pavis (2015, p.384) que pontua que o teatro de rua é “o que se
produz em locais exteriores às construções tradicionais: rua, praça, mercado, me-

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trô, universidade, etc”. Enquanto Carreira, (TELLES e CARNEIRO, 2005, p.20-38)


pondera acerca de certas concepções sobre o teatro de rua, entre elas, ele obser-
va, que algumas são limitantes, enquanto outras são muito amplas, “a expressão
teatro de rua tem sido utilizada para definir uma ampla gama de espetáculos
teatrais ao ar livre e, em consequência, o campo da pesquisa se fez muito amplo
e com limites pouco precisos”.

Além disso, no interior dessa própria obra, o autor apresenta elementos ca-
pazes de conceituar o teatro de rua, entre eles se encontram:

a) A existência de múltiplas interferências acidentais próprias da rua que con-


dicionam o tempo teatral impondo um uso específico das linguagens do espe-
táculo;
b) O espaço cênico do teatro de rua é o âmbito urbano ressignificado (...);
c) A existência de um público flutuante (...);
d) O público de rua é, fundamentalmente, um público acidental que presencia
o espetáculo porque se encontra casualmente com o acontecimento teatral (...)
a heterogeneidade do público é um elemento definidor do fenômeno teatral
na rua, pois é esta característica que determina o âmbito social do espetáculo
(...), mas essencialmente se vincula com a necessidade de um contato direto
com um amplo espectro de público que não frequenta as salas teatrais. (TEL-
LES e CARNEIRO, 2005, p. 31-36)

Importante salientar que os objetivos enumerados na Proposta de trabalho


do Grupo Galpão citadas anteriormente se relacionam diretamente com estes
elementos apresentados por Carreira que conceituam o teatro de rua, cabendo
destacar entre estes os mais relevantes quanto aos objetivos da companhia tea-
tral, a ressignificação do espaço público e a reunião de pessoas.

Essa expressão teatral executada pelo Grupo Galpão nas ruas de Belo Hori-
zonte possui, portanto, uma relevância histórica e política consideráveis, o teatro
de rua produzido pelo coletivo demonstra o cumprimento de suas intenções e
objetivos de criação com a comunicação com o público para a formação cidadã
através do teatro com apresentações lúdicas e de caráter transgressor.

No caso de Romeu e Julieta do Grupo Galpão é possível analisar as decisões


estéticas, de linguagem, de estilo e culturais próprias da montagem do grupo,
em especial do usufruto das particularidades e especificidades do teatro de rua

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para a sua realização, cumprindo assim com os objetivos que eles se propõem
desde a sua concepção, com o contato e a provocação de uma reflexão do pú-
blico.

A clássica peça “Romeu e Julieta”, escrita por William Shakespeare em me-


ados do século XVI, habita o imaginário cultural mundial, especialmente por ter
servido, e ainda servir, de inspiração para as mais diversas releituras e adapta-
ções, inclusive em diferentes meios e linguagens, como filmes, musicais, histó-
rias em quadrinhos e até mesmo em rede social.

Certamente, uma considerável parte dessas adaptações almejam seguir o


roteiro da peça do Bardo em sua literalidade, por assim dizer, outra parte busca
fazer uma devida releitura, incorporando em sua adaptação aspectos inovado-
res, culturais, costumes regionais, o contexto da época em que está sendo pro-
duzida, entre outras particularidades.

Uma das ressignificações mais famosas é o musical da Broadway, “West


Side Story”, onde as famílias rivais se tornam gangues rivais e Genova se torna
Nova Iorque, o que permite valorizar o contexto da época da produção, uma vez
que a cidade passava por sérios problemas com confrontos de gangues de dife-
rentes etnias.

Dentre essa vasta seleção de adaptações de “Romeu e Julieta” se encontra,


inclusive com os devidos destaques e reconhecimento, a releitura realizada pelo
Grupo Galpão, usufruindo em especial das particularidades e das especificida-
des do teatro de rua para a sua execução.

O grupo tem a capacidade de incorporar em sua releitura diversas lin-


guagens artísticas, como exemplo a do próprio teatro elisabetano, da época de
Shakespeare, com a do teatro de rua, a circense e a musical, também com inspi-
rações em estilos e épocas como o Renascimento e o Barroco, por fim, mas não
menos importante, a cultura mineira, que insere uma localização e uma familia-
ridade do público brasileiro contemporâneo na peça.

Essa espécie de criatividade e audácia estão assimiladas no cerne do Grupo


Galpão desde sua criação, o objetivo do grupo era quebrar com a previsibilidade

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do que costuma ser apresentado nos palcos.

O grupo pretendia criar uma forma própria e nova de espetáculo, visavam


produzir apresentações acessíveis ao maior número possível de pessoas e que
fossem capazes de causar reflexões críticas nesse público sobre questões cultu-
rais e políticas sob a faceta do humor, na obra sobre a história do Grupo Galpão.

Sobre essas pretensões do Grupo Galpão, os autores Alves e Noé pontuam


“todo desempenho teatral visa a atuar como ponto de partida para reflexão e a
responder metaforicamente a perguntas relativas a nossa origem, ao nosso ser
brasileiro, num painel de crítica a tipos e situações da nossa realidade” (ALVES e
NOÉ, 2006, p.86).

Apesar da forte atuação local, o Grupo Galpão já realizou apresentação em


diversas localidades ao redor do mundo, entre elas em países da América do Sul,
Central, do Norte e na Europa, onde a efetiva consagração do grupo, para além
das diversas premiações recebidas, foi a apresentação em duas oportunidades,
em 2000 e 2012, no Shakespeare’s Globe Theatre em Londres na Inglaterra.

Adentrando agora na apresentação de alguns aspectos do texto dramático,


do figurino, do cenário e das canções que se encontram presentes nela, é im-
portante destacar o movimento antropofágico, apresentado na Semana de Arte
Moderna de 1922, por diversos artistas e intelectuais, entre eles Oswald e Mário
de Andrade, propunha questionar a problemática a respeito de uma identidade
brasileira, em uma época onde as influências culturais estrangeiras, em especial
a europeia e norte-americana, se encontravam amplamente disseminadas na
cultura do país.

As atividades realizadas pela companhia teatral do Galpão se relacionam


diretamente com essa proposta, através da utilização da tradução fiel da peça
shakespeariana realizada por Pennafort, com a realização de modificações e
transformações no texto, o Grupo conseguiu inserir aspectos culturais propria-
mente brasileiros.

Exemplificando, desse modo, como uma obra de arte pode ser adaptada
culturalmente através da inserção de certos elementos e resultando em uma

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nova perspectiva, a montagem de Romeu e Julieta, do Grupo Galpão, apresen-


ta uma perspectiva que a diferencia de outras montagens que utiliza a mesma
peça de Shakespeare como base.

Transportada do século XVI para o XX e XXI, a Romeu e Julieta, do Grupo


Galpão se particulariza das outras montagens baseadas nela, pois ela dialoga o
tradicional com o contemporâneo, esse diálogo é realizado através da tradução
fidedigna de Pennafort e as substituições pontuais pelos textos de Cacá Brandão
com uma estilização que carregam características da escrita de Guimarães Rosa.

Válido destacar, inclusive, outros aspectos estéticos que se encontram nes-


sa montagem, como o teatro circo, a palhaçaria, a commedia dell’arte, o can-
cioneiro popular brasileiro executado pelos atores, a maquiagem, o figurino e o
cenário, definindo assim a montagem como uma deglutição antropofágica da
peça shakespeariana, regurgitada com características brasileiras.

A escrita de Guimarães Rosa foi a principal fonte de inspiração do drama-


turgo Brandão para as adaptações realizadas no texto dramático, em especial
com a inserção dos textos do Narrador, interessante notar inclusive uma parti-
cularidade que relaciona Guimarães Rosa com William Shakespeare, a criação
vocabular.

Assim como Shakespeare fez para a língua inglesa, Guimarães Rosa propor-
cionou a língua portuguesa uma vasta quantidade de palavras e expressões que
muitas vezes eram retiradas do dia a dia da região em que vivia, o norte mineiro,
e outras inventadas por ele mesmo, ambos criaram diversos neologismos, onde,
de certo modo, desrespeitaram as regras gramaticais em função de suas obras
ou para reproduzir a linguagem popular.

Com a intenção de atender a visão proposta pelo diretor Gabriel Vilela,


Brandão analisou o vocabulário rosiano, retirando em Grandes Sertões Veredas a
maior parte das inventividades do autor, procurando reproduzir no texto dramá-
tico essa escrita peculiar de Guimarães Rosa.

Na “Cena 1 – O conflito das duas casas”, há a utilização de neologismos,


como: “insãs”, criado, possivelmente, criar um efeito arcaico ao adjetivo insanas.

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No trecho “o carregume destes secos”, carregume é possivelmente uma agluti-


nação do verbo carrear, no sentido figurado, de acordo com a quinta definição
do Dicionário Michaelis, teria o sentido de “juntar ou acumular coisas”, com o
substantivo masculino gume, cuja segunda definição proveniente do Dicionário
Michaelis, é “terreiro na Casa Grande das Minas onde ficam as árvores que são
objeto de ritos religiosos e um espaço livre em que ocorrem as danças e outras
cerimônias públicas”, o “secos”, adjetivo masculino, na quinta definição do Dicio-
nário Michaelis, “sem vegetação, árido”, se referindo ao sertão.

Há também a ocorrência de palavras não muito habituais, como “tremeluz”,


proveniente do verbo “tremeluzir”, que é “brilhar com luz trêmula”; “vil”, adjetivo
que entre as definições possíveis, se encontra “de pouco valor; que é insignifican-
te”; “estrepitoso”, adjetivo masculino, cuja definição é “que provoca muito ruído”;
“alumiando”, gerúndio de “alumiar”, que significa “iluminar”. Nessa mesma cena,
Brandão cria o neologismo “gã” na frase “Cabe no coração a gã do amor que dá
de comer às alegrias”, possivelmente com o significado de gana.

No âmbito do figurino de Romeu e Julieta, do Grupo Galpão, é possível no-


tar uma união entre o vestuário da Idade Média com o contemporâneo interio-
rano, a figurinista Luciana Buarque expõe o quanto Morro Vermelho, cidade que
foi o local dos primeiros ensaios da montagem de Romeu e Julieta, serviu de
inspiração na confecção das roupas, uma pequena cidade com ruas de terra e
casas brancas no estilo barroco de características mineiras.

As roupas transpõem a dramaturgia idealizada pelo diretor, uma vez que


foram confeccionadas para demonstrar arquétipos, a iconografia de santos que
compõem a batina do Frei Lourenço, são referências às imagens que são coloca-
das nos mastros em cidades do interior mineiro nas celebrações religiosas.

Os trajes do Narrador possuem uma semelhança visual ao utilizado por


Shakespeare em várias representações visuais que são atribuídos a ele e por meio
da inserção de retalhos de tecidos de variadas estampas, compõem o figurino do
personagem com um aspecto artesanal que remete as colchas de retalhos que
decoram diversos ambientes do interior de Minas.

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Os trajes de Romeu e Julieta foram confeccionados com tecidos brancos


e leves, que permitem melhor mobilidade de ambos personagens, o contraste
entre as cores claras deles e as escuras dos demais personagens cumprem a fun-
ção de destoar os personagens trágicos dos cômicos.

As roupas da Ama de Julieta são visivelmente mais simplórias e até mesmo


rústica, evidenciar o papel social que a personagem possui no contexto da peça,
o detalhe que chama a atenção em seu traje são os sacos pendurados em seus
ombros, simulando visualmente seios, remetendo a imagem de aia e ama de
leite de Julieta, explicitando também a comédia que é assimilada a esta perso-
nagem.

Para vasta maioria do público, tanto de leitores quanto espectadores de Ro-


meu e Julieta, a cena mais famosa da peça de Shakespeare é a cena da varanda,
onde os dois personagens apaixonados se encontram e fazem juras de amor.

Costumeiramente, nesta cena, Julieta se encontra em posição mais alta no


cenário, no caso, na varanda, porém, na montagem do Galpão, o diretor resolve
inverter estas posições, colocando Romeu acima de Julieta, ela se encontra den-
tro do carro veraneio, enquanto Romeu escuta suas falas de cima do carro.

O carro veraneio compondo o cenário da montagem do Grupo Galpão é um


elemento muito importante tanto na encenação quanto na estética. A presença
e a utilização do veículo alude ao teatro mambembe, forma de teatro surgido no
século XII na Europa, onde os grupos teatrais se locomoviam para as localidades
em carroças e se apresentavam em cima delas.

Como forma de alusão a isso o Grupo Galpão faz uso do veículo tanto como
elemento que compõe o cenário, como também palco e camarim, a utilização
do automóvel como um elemento central da montagem contribui para conferir
o visual circense, interiorano, mineiro e popular que transcorre por toda a peça.

Como um elemento central, os atores exploram a Veraneio ao máximo,


compondo no corpo da montagem os mais diversos aspectos que o automóvel
oferece, como a buzina, que a Ama utiliza para chamar Julieta, o motor ligado,
as janelas, portas e porta-malas para várias aparições e saídas de cena de perso-

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nagens.

O veículo por si só também possui sua decoração, uma vez que é objeto
central nas apresentações, ele é decorado com decalques de flores coloridas e
franjas douradas, remetendo visualmente a cultura popular mineira, se relacio-
nando com características do Barroco da região.

Outro grande aspecto da montagem do Galpão é a inserção de canções na


peça, estas que são interpretadas pelos próprios atores e contribuem no estímu-
lo de sentimentos e sensações, o estilo das canções que a compõem e são toca-
das durante o seu decorrer são provenientes do cancioneiro popular brasileiro,
cantigas de roda, valsas e serestas.

As canções em Romeu e Julieta, cumprem a função de não ambientar ou


até mesmo estabelecer o tema das cenas, mas também cumprem a função de
ilustrar e até mesmo resumir cenas da peça, sendo assim, a montagem do Grupo
Galpão enfatiza por intermédio da música a conexão e a relação do público com
o espetáculo, não se limitando somente ao texto dramático.

Na “Cena I – Conflito das duas casas”, antes mesmo de se iniciar a encena-


ção prevista no roteiro ou até mesmo recitar alguma palavra dele, o Grupo apre-
senta a cantiga de roda “Você gosta de mim, ô maninha” onde em seus versos
traz o tema do amor proibido, que assim como em uma ciranda, é o tema central
que roda em torno de todos os temas da peça, onde inclusive é prenunciado o
final trágico que virá.

A cantiga de roda, proveniente da tradição cultural popular do país, apre-


senta de um modo não muito evidente, o costume antigo de uma sociedade
fortemente patriarcal que exercia controle sobre os matrimônios, é possível que
incutisse desde a infância como um casal de namorados deveria se portar ante
estas regras sociais, a letra da canção explicita um clima de incerteza que a per-
meia, onde o final pode ser tanto a felicidade da correspondência, quanto a tris-
teza da recusa.

Interessante pensar que quando o Grupo opta por inserir músicas como es-
tas, da cultura popular brasileira, na apresentação da peça shakespeariana surge

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uma certa contradição, uma vez que o que foi utilizado para quebrar com a tra-
dição que a peça carrega, também carrega tradição a sua maneira.

Portanto, para concluir, após as considerações realizadas e alguns dos di-


versos aspectos estéticos que compõem toda a montagem de Romeu e Julieta
do Grupo Galpão é possível perceber que ela tenha sido bem-sucedida tanto em
popularidade quanto em crítica por compreender que Shakespeare era essen-
cialmente um autor popular.

A partir dessa compreensão inovar em sua adaptação para atender ao gos-


to popular do público que iria assistir à encenação, se distanciando das diversas
adaptações que optam por seguir uma erudição e pompa que estes observam
na obra do dramaturgo do inglês, conforme pode ser observado inclusive na de-
claração do ator Eduardo Moreira sobre a apresentação no Globe Theatre em
Londres:

Os ingleses, sempre reverentes a Shakespeare e a sua obra, no começo um pou-


co desconfiados, acabaram por se dobrar às infidelidades e aos atrevimentos
propostos pela montagem. O final era sempre aplaudido delirantemente com
o público nos agradecendo pelo fato de termos resgatado a verdadeira caracte-
rística popular do teatro do bardo. (MOREIRA, 2017, p. 256)

Desse modo o Grupo Galpão buscou retratar elementos do teatro shakes-


peariano e elisabetano, porém compôs com aspectos estéticos e de linguagem
popular, consequentemente traduzindo uma peça inglesa em uma peça brasi-
leira com evidentes características de mineiridade.

A Romeu e Julieta, do Grupo Galpão, é um demonstrativo da Antropofagia


Cultural, ao adaptar o roteiro de Shakespeare, eles foram capazes de se apropriar
dos elementos culturais ingleses com os propriamente nacionais, transforman-
do a montagem em uma montagem genuinamente popular e brasileira.

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