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Este artigo será trabalhado a partir da pesquisa de doutorado defendida pela autora sobre o tema, na
FAE/UFMG, em 2010.
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Autora da tese de doutorado: “O mal-estar do professor em face da criança considerada problema: um
estudo de psicanálise aplicada à educação”. FAE/UFMG, 2010.
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Professora da Pós-graduação da FAE/UFMG, orientadora da referida tese da qual se originou o presente
artigo.
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O NIPSE (Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa em Psicanálise e Educação), da FAE/UFMG, tem
utilizado esse instrumento de pesquisa-intervenção desde 2005.
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“O homem fala, pois, mas porque o símbolo o fez homem”, nos adverte Lacan
(1953, p. 278). Nosso objeto de estudo faz parte de um contexto discursivo do mundo
contemporâneo, em que a absorção de paradigmas generalizadores rompe com as
peculiaridades subjetivas que o simbólico privilegia. É freqüente, na educação, se
enquadrar um aluno como “problema” ou considerar um professor “incapacitado”
dentro de um sistema educativo questionável em si. Para a psicanálise, porém, o rótulo
congela as representações em exigência própria à sua formatação. Os lugares conferidos
ao aluno e ao educador como “problema” embalsamam o sujeito e o petrificam. Nessa
direção, os professores se vêem prisioneiros da linguagem, quando atormentados se
inquietam diante do “ineducável” das “crianças impossíveis”. Por estarmos lidando com
a teia discursiva da palavra, que também engenha sintomas, será este o instrumento
privilegiado para desembaraçar essa trama.
É importante lembrar os dizeres de Laurent (2004) referindo-se ao alcance da
palavra que a Conversação introduz. Alerta-nos para a relação ética com a transferência:
não se trata de concordar com o gozo do “blá-blá-blá”, mas de se estar atento ao
momento de abrir as comportas da fala e também de fechá-las. No detalhe da
Conversação, o sujeito do inconsciente daria sua entrada, podendo emergir na poética
dos caminhos e descaminhos da fala: os equívocos, os lapsos, os erros, os tropeços, as
contradições e mesmo os silêncios. O mal-estar expresso pelos professores em forma de
queixa é acolhido, para que possa se abrigar e ser tratado pela palavra.
Preciosas construções de Lacan (1953) esclarecem acerca da função e do campo
da linguagem, pois, “quer se pretenda agente de cura, de formação ou de sondagem, a
psicanálise dispõe de apenas um meio: a fala do paciente. A evidência desse fato não se
justifica que se o negligencie”, adverte (p. 248). Destaca ainda que há um apelo do
sujeito para além do vazio do seu dito: já que não há fala sem resposta, toda fala pede
uma resposta. A arte do analista, segundo o texto de Lacan (1953), e aqui estendemos
suas premissas ao trabalho das Conversações com professores, deve-se constituir em
suspender as certezas do sujeito para que, na escansão, possa ele mesmo buscar a
solução e outros destinos para o que os faz sofrer no exercício da função de educar.
Merecem também destaque, a nosso ver, as formulações lacanianas ao referir-se à
função simbolizadora da fala, na estrutura da comunicação pela linguagem. A
comunicação, para Lacan (1953), tem uma função transformadora, já que estabelece
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Qual o tempo das Conversações? Estaria ele ligado a uma lógica diante do Outro,
no manejo da transferência, que conduziria seu movimento, tal como Lacan (1945)
introduziu? Recorremos ao texto de Lacan (1945) para fazer a leitura do tempo e do
movimento das Conversações. O tempo lacaniano se modula em um movimento lógico
diante de um problema a ser resolvido: o instante de olhar, o tempo para compreender e
o momento de concluir. No instante de olhar para o problema uma subjetivação se
modula: o sujeito impessoal recíproco. No tempo para compreender, o sujeito objetiva
em uma ocasião para meditação e reflexão: sujeito indefinido recíproco. No momento de
concluir há uma asserção do sujeito sobre si: asserção subjetiva. Para Lacan (1945), é na
urgência do tempo lógico que o sujeito precipita sua conclusão.
Segundo Lacan (1945), expor uma sucessão cronológica do tempo seria manter
um formalismo e reduzir o discurso a um alinhamento de sinais. Por outro lado “mostrar
que a instância do tempo se apresenta de um modo diferente em cada um desses
momentos é preservar-lhes a hierarquia, revelando neles uma descontinuidade tonal,
essencial para o seu valor” (p. 204).
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A elaboração dos tempos das Conversações se deu a partir da intervenção em uma escola, em parceria
com a psicanalista e pesquisadora Maria Rachel Botrel, no ano de 2009.
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O conceito de identificação é central nos estudos da psicanálise, tanto em Freud como em Lacan.
Aparece em Freud desde o princípio de suas teorizações, o capítulo VII de seu texto “A psicologia das
massas e análise do Eu” (1921). Nesse artigo, analisa as identificações como processo por meio do qual o
sujeito se constitui e se transforma, assimilando ou se apropriando de traços dos seres humanos que o
cercam, em momentos - chave de sua estruturação psíquica. Em 1925 Freud determina a saída do
complexo de Édipo para a menina e o menino como duas maneiras distintas de identificação. Em 1933,
diz estar na base das identificações o supereu como herança da autoridade dos pais.
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tirar a gente do sério; cortei um doze olhando o recreio hoje”. Uma professora se
expressa: “Chego a ficar rouca: eu berro, eu só falto subir em cima da mesa. Tenho
que ameaçar”. Ou ainda: “Se você não se assentar vou te dar um pescoção que você
vai ficar três dias sem saber o que veio fazer na escola”.
Podemos estabelecer uma sequência a partir das respostas dos professores, que
têm na impotência a sua base:
1º) O aluno é problema – porque “faz parte de uma clientela difícil, de uma
realidade social diferente”.
2º) Esse modo de entender a situação desinstala o professor de seu saber, e,
consequentemente, fica mais difícil ensinar – “Parece que nada está surtindo efeito;
sensação de estar fazendo tudo errado e por isso não aprendem”.
3º) A partir daí, o professor não supõe a essas crianças capacidade de aprender e
inovar – “como mudar essa realidade em quatro horas e meia?; tem que lidar com
muitos imprevistos; tem que trabalhar socialização”.
4º) A consequência é o fracasso na transmissão: “sensação de que não se chega a
lugar algum, “somos desistentes”.
5º) E aí o mal-estar – “angústia de não estar atingindo nada”.
O mal-estar paralisa o professor, e a cadeia se repete, fechada nos pressupostos de
professores impotentes que não sabem ensinar a alunos problema que não aprendem..
É surpreendente, contudo, podermos constatar nas Conversações, como alguns
professores têm desalojado a apatia e a inoperância do seu fazer. Ressaltam ser possível
furar o cerco e deixar fluir as invenções criativas que sustentam uma prática educativa
inovadora e responsável. Causado, o professor posiciona-se como autoridade frente ao
saber, colocando em movimento o desejo de aprender a ensinar. Para além da função de
repassar conhecimentos, nessa condição, o professor abre espaço para que algo do que
deseja ensinar possa agir sobre os alunos. Suporta, a seu modo, os vazios e intervalos na
circunstância de ensino-aprendizagem, por cujas brechas as particularidades da relação
do aluno com o saber podem ingressar.
Atentos ao aspecto não linear e contraditório do que a malha discursiva constrói,
recolhemos do movimento das Conversações, produções inéditas em que o desejo de
ensinar sustenta uma prática que “tira a criança do lugar”, como disse uma professora.
Retirada do lugar de problema, a criança pode encontrar na escola um lugar que lhes
desperte o “desejo de viver”, como nos lembra Freud (1910), oportunizando ao
professor, reconciliar-se com a vivacidade da transmissão.
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Dessas ocasiões, sobressaíram as falas: “Eu acredito numa educação que tira o
menino do lugar dele [...] trabalho com envolvimento, insisto, pego firme, trabalho com
jogos, sou carinhosa quando tem que ser [...] oriento no caso de droga, abuso,
violência: – Sai de perto! [...] trabalho, esquematizo”. Os educadores que assim se
posicionam dizem que as crianças sabem o que vai ser feito e o que os professores
querem. Afirmam também que cobram, exigem e não permitem que as crianças corram
na sala de aula. Dizem: “É preciso ter uma mesma linha de trabalho na escola [...]
dentro da sala eu sou a autoridade! [...] É importante escutar o aluno e o aluno escutar
o educador [...] O aluno não tem direito de desrespeitar o professor e vice-versa [...]
Não bato de frente, mas coloco o menino pra sentar na frente [...] lembro os
combinados, falo de novo; explico que aquilo não deve acontecer dentro e fora da
escola”. Nessa direção, o professor é resistente na defesa de seu desejo de ensinar e dele
não desiste. Vale lembrar que, antes de desistir do aluno o professor desiste do próprio
desejo de busca e inovação. Ao resistir, recolhe os efeitos de seus investimentos: “A
sala está assim, uma surpresa grande para mim!”.
Pudemos localizar respostas dos professores diante das situações difíceis e
trazemos alguns pontos que se destacam quando o professor sustenta esse desejo:
1º - O desejo de ensinar orienta a concepção do professor do que seja educação:
“Eu acredito numa educação que tira o menino do lugar”.
2º - Sua concepção é acompanhada de uma decisão de ensinar que coloca em
movimento o desejo de saber do aluno: “Trabalho, esquematizo. Os alunos sabem o que
vai ser feito, o que eu quero, o que eu cobro, o que eu exijo [...]”. Ou: “Tento valorizar
ao máximo as crianças; é importante escutar o aluno, e o aluno escutar o professor;
trabalho com envolvimento, insisto, pego firme; trabalho com jogos; sou carinhosa
quando tem que ser”.
3º - Os efeitos desse ato: a aprendizagem dos alunos e a capacidade de ensinar do
professor. “Tenho vários alunos que me surpreenderam!”
O circuito do desejo movimenta o ato da transmissão, descola as prévias
suposições, abre passagem para o novo e o singular que protestam a segregação do
sujeito pelo rótulo e generalizações.
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Referências bibliográficas
FREUD, Sigmund (1910). Breves Escritos. Contribuições para uma Discussão acerca
do Suicídio. In: ESBOPC. Rio de Janeiro: Imago, 1970. p.217- 218.
LACAN, Jacques. O tempo lógico e a asserção antecipada (1945). In: Escritos. Rio de
janeiro: Jorge Zahar Ed. 1998. 197- 213.
LAURENT, Eric. CIEN, Instituto del campo freudiano. In: Cuaderno 5. Buenos Aires:
CIEN ; Instituo del campo freudiano; Centro de investigaciones del ICBA, nov. 2004.