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au t o rTradução:
a c oBernardo
n v i da da
Maranhão
Resumo
Argumenta-se sobre o inconsciente genuíno diferenciado do inconsciente recalcado em um
percurso pela obra de Freud, desde o Projeto para uma psicologia científica (1895) e a Carta 52
(6 de dezembro de 1896), passando por A interpretação dos sonhos (1900) rumo a O eu e o isso
(1923), até a Nota sobre o bloco mágico (1924) e a Conferência 31: Dissecção da vida psíquica
(1933), para terminar no Esboço de psicanálise (1938).
Palavras-chave
Inconsciente genuíno, Inconsciente recalcado, Aparelho psíquico, Escritura em transcrição e
retranscrição, Modelo topológico da garrafa de Klein.
ser capazes de apagar a marca do estímulo, havia desenhado na Carta 52: sistemas de
para deixar sempre lisa e receptiva a superfí- inscrição e transcrição que, de alguma ma-
cie; conservar em outro sistema aquilo mes- neira, supõem um sistema de escritura.
mo que foi apagado. Nisso consiste a enig-
mática memória como o originário modelo II Os modelos topológicos
do aparelho psíquico freudiano. Memória, e o aparelho psíquico freudiano
aparelho psíquico com escritura em transcri- Tomarei três representações topológicas:
ção e retranscrição: começa seu esboço no • o retângulo;
Projeto e continua na Carta 52. • a bolsa freudiana de O eu e o isso;
Na Carta 52, Freud delineia um aparelho • a garrafa de Klein do último Lacan
psíquico com sistemas diferenciados de ins- (Conferência de Caracas, 1980).
crição e transcrição. Passagens de marcas de
um sistema a outro (ou seu estancamento) II.a O retângulo
dependem do Na figura topológica do retângulo, há dois
extremos, com dois estados intermédios. Tal
[...] rearranjo, segundo novas circunstâncias, é o esquema de Freud na Carta 52. Esquema
uma retranscrição [...] a memória não se faz que articula isso e inconsciente. Ponto de par-
presente de uma só vez, mas se desdobra em tida da dobradiça das duas tópicas de Freud
vários tempos, ela é registrada em diferentes e do último ensino de Lacan, do discurso de
espécies de indicações (Freud, [1896] 1977, Caracas, de 1980.
p. 318).
o que marca como real um ser que recebe o freudiano. Não há ordem, sentido nem tem-
impacto e não conserva rastro nem memória po.
do acontecido. Néstor Braunstein, em seu li- Na Observação sobre o relatório de Daniel
vro Goce, utiliza o termo “impressão” no du- Lagache, Lacan ([1961] 1998) evoca uma
plo sentido de aquilo que impressiona (uma imagem esclarecedora quando compara essa
película sensível) e de aquilo que se imprime desordem sincrônica com o funcionamento
e fica gravado. São impressões assubjetivas, de uma loteria, um grande globo cheio de
acéfalas, matrizes de uma escritura de onde bolinhas nas quais estão inscritas cifras que
um sujeito haverá de advir. em si mesmas não significam nada.
Essas impressões sem memória – que es- Uma desordem de marcas escriturais que
tão no extremo esquerdo do aparato e serão está pronta para adquirir significação uma
recuperadas (ou não) pelas inscrições ulte- vez que se produza o sorteio, uma vez que
riores – supõem um real originário pré-sub- elas vão saindo em uma certa sequência alea-
jetivo anterior à simbolização e remetem ao tória ou arbitrária que as colocará em rela-
conceito freudiano de etwas – “alguma coisa”, ção com uma matriz simbólica preexistente
em O eu e o isso. Trata-se de hieroglifos assis- (atribuição de prêmios) que dotará de sen-
temáticos, cunhagem de marcas na superfí- tido a série de bolinhas sorteadas. O globo
cie de um corpo: aí o gozo do corpo para La- cheio de inscrições aleatórias é o símile do
can. “Aquilo que torna a letra análoga a um “[...] caldeirão cheio de agitação fervilhante”
germe” (Lacan, [1971-1972] 1985). (Freud, [1933] 1977, p. 94) do isso freudia-
Dessas percepções se passa a um sistema no, e Freud acrescenta: “[...] descrevemo-lo
primeiro (I), de signos de percepção (Wahr- como estando aberto, no seu extremo, a in-
nehmungszeichen), que é “o primeiro regis- fluências somáticas e como contendo den-
tro” ou “a primeira transcrição” de tais im- tro de si necessidades pulsionais...” (Freud,
pressões. [1933] 1977, p. 94).
Como se vê, Freud insiste na ideia da es- Em síntese, o primeiro sistema de inscri-
critura. Agora, agrega a noção, capital em ção da Carta 52 é a antecipação do isso da
Lacan, de signos de percepção, Zeichen. A ca- segunda tópica e suas características são as
racterização freudiana desses signos é preci- que permitem distingui-lo do segundo sis-
sa: tema (II), o do inconsciente, que já é uma
tradução transformada em escritura daquela
[...] é praticamente incapaz de assomar à marca primária, sede das pulsões.
consciência e se dispõe conforme as asso- Em 1980, em sua última conferência, a de
ciações por simultaneidade (Freud, [1896] Caracas, dirá Lacan ([1980] 1987):
1977, p. 318).
O saco, ao que parece, é o continente das pul-
Assim, produz-se uma escritura que é sões. Que ideia tão disparatada, esboçar algo
puro signo, carente de significação e carente assim! Só se explica por considerar as pulsões
de ordenação no tempo. Nesse sistema, não como bolinhas, que terão de ser expelidas pe-
há diacronia. Aquilo que Freud chamará, em los orifícios do corpo, uma vez ingeridas.
1923, de o isso, Lacan, a partir de 1972 – no
Seminário 20: Mais, ainda –, denominará Novamente aparecem as bolinhas como
gozo do Outro. pulsões que serão expelidas graças à opera-
Esses signos de percepção não são signifi- ção da língua que permite digeri-las – como
cantes, são – é o próprio Freud da Carta 52 dissemos no início. Digeri-las não todas, é
quem o destaca – signos, marcas anteriores claro: sempre há um plus que não é digerível,
à palavra – de uma maneira ou outra, o isso o mais-de-gozar, segundo Lacan.
Recebido: 10/11/2020
Aprovado: 15/12/2020