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neamente, do vocabulário da filosofia e do concei- e produtiva, e de outro, o heterogêneo, lugar de


to freudiano de realidade psíquica*, para designar irrupção do impossível de simbolizar. Com a
uma realidade fenomênica que é imanente à repre- ajuda deste último termo, ele especificou a no-
sentação e impossível de simbolizar. ção de parte maldita, central em sua elaboração.
Utilizado no contexto de uma tópica*, o concei- Depois, entre 1935 e 1936, época em que, junto
to de real é inseparável dos outros dois compo-
com Lacan, acompanhou o seminário de Ale-
nentes desta, o imaginário* e o simbólico*, e forma
xandre Kojève (1902-1968) sobre A fenomeno-
com eles uma estrutura. Designa a realidade pró-
logia do espírito, de Hegel, Bataille inventou o
pria da psicose* (delírio, alucinação), na medida
em que é composto dos significantes* foracluídos
termo heterologia, extraído do adjetivo heteró-
(rejeitados) do simbólico.
logo, que serve para designar, em anatomopa-
tologia, os tecidos mórbidos. A heterologia era,
A partir da década de 1920, após a revolução para ele, a ciência do irrecuperável, que tem por
introduzida na ciência pela teoria da relativi- objeto o “improdutivo” por excelência: os res-
dade de Albert Einstein (1879-1955), a clássica tos, os excrementos, a sujeira. Numa palavra, a
oposição entre o real dado e o real construído existência “outra”, expulsa de todas as normas:
transformou-se, e a palavra real passou a ser loucura*, delírio etc.
correntemente empregada pelos filósofos como Foi combinando a ciência do real, a hetero-
sinônima de um absoluto ontológico, um ser- logia e a noção freudiana de realidade psíquica
em-si que escaparia à percepção. E foi nas teses que Lacan construiu sua categoria do real. Esta
de Émile Meyerson (1859-1933) sobre a ciên- fez sua primeira aparição em 1953, ainda sem
cia do real que Jacques Lacan buscou sua pri- ser conceituada, numa conferência intitulada
meira reflexão sobre o assunto. Em A dedução “O Simbólico, o Imaginário e o Real”. Depois
relativista, livro publicado em 1925 e ao qual disso, Lacan adquiriu o hábito de escrever as
Lacan se refere desde 1936 em “Para-além do três palavras com maiúsculas.
princípio de realidade”, Meyerson sustentara, Entre 1953 e 1960, no contexto de sua reto-
com efeito, a existência de uma semelhança mada estrutural da obra freudiana, Lacan confe-
entre os objetos criados pela ciência e aqueles riu a esse real um estatuto muito próximo do
cuja existência era postulada pela percepção. que lhe atribuíra Bataille. Na categoria do sim-
Entretanto, foi muito mais diretamente de bólico alinhou toda a reformulação buscada no
seu amigo Georges Bataille (1897-1962), e sem sistema saussuriano e levi-straussiano; na cate-
jamais confessá-lo, que Lacan tomou empres- goria do imaginário situou todos os fenômenos
tada a noção de real, a partir da qual, incluindo ligados à construção do eu: antecipação, capta-
a idéia (freudiana) de realidade psíquica, forjou ção e ilusão; e no real, por fim, colocou a
um conceito do qual viria a fazer um dos três realidade psíquica, isto é, o desejo inconsciente
componentes de sua tópica e de sua concepção e as fantasias* que lhe estão ligadas, bem como
estrutural de um inconsciente* determinado pe- um “resto”: uma realidade desejante, inaces-
la linguagem. sível a qualquer pensamento subjetivo.
Bataille descobriu a obra de Freud, interes- A idéia de uma ciência do real apareceu
sando-se sobretudo por Mais-além do princípio claramente na leitura que Lacan fez do sonho
de prazer*, Psicologia das massas e análise do da “injeção de Irma*”, por ocasião de seu semi-
eu* e Totem e tabu*, isto é, pela pulsão de nário sobre o eu, no ano de 1954-1955. Comen-
morte* e pela questão do sagrado, da identifi- tando esse sonho, ele assemelhou a boca de
cação* das massas com o líder e da origem das Irma a uma assustadora cabeça de Medusa e,
sociedades e das religiões. Daí a publicação, em em seguida, sublinhou que o real está na origem
1933, de um texto intitulado “A estrutura psi- e na fonte de uma dúvida fundadora necessária
cológica do fascismo”, ao mesmo tempo consa- à ciência. Na origem de uma descoberta, disse
grado à ascensão do nazismo* e à análise das ele em síntese, não existe um sujeito, e sim uma
sociedades humanas e suas instituições. Ba- dúvida, já que toda descoberta é a expressão de
taille distinguiu dois pólos estruturais: de um um encaminhamento em que o erro se mistura
lado, o homogêneo, ou campo da sociedade útil com a verdade. Essa dúvida fundadora é, para

Dicionário de Psicanálise (PSI)


1ª revisão – 06.05.98
2ª revisão – 31.07.98
3ª revisão – 15.09.98
4ª revisão – 23.09.98 – Letra R
Produção: Textos & Formas
Para: Ed. Zahar
646 realidade psíquica

Lacan, um equivalente do sexo feminino como R.S.I. (Real, Simbólico, Imaginário) ao tríptico
coisa real, impossível de simbolizar. Em segui- em que o real é assimilado a um “resto” impos-
da encontramos seu vestígio na concepção la- sível de transmitir, e que escapa à matematiza-
caniana da sexualidade feminina*: Lacan faz ção.
desta um “suplemento” e lhe atribui um gozo*
• Jacques Lacan, “Para-além do ‘Princípio de reali-
que escapa à racionalidade. dade’” (1936), in Escritos (Paris, 1966), Rio de Janeiro,
Em 1955-1956, no âmbito de sua leitura da Jorge Zahar, 1998, 77-95; “Le Symbolique, l’Imaginaire
história de Daniel Paul Schreber* e de sua et le Réel” (1953), Bulletin de l’Association Freudienne,
concepção de uma clínica da psicose centrada 1, 1982, 4-13; O Seminário, livro 2, O eu na teoria de
Freud e na técnica da psicanálise (1954-1955) (Paris,
na paranóia*, Lacan elaborou dois conceitos: a 1978), Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1985; O Seminário,
foraclusão* e o nome-do-pai*. A primeira foi livro 3, As psicoses (1955-1956) (Paris, 1981), Rio de
definida como o mecanismo específico da psi- Janeiro, Jorge Zahar, 1988, 2ª ed.; O Seminário, livro
cose, diferente do recalque*, e que consiste 4, A relação de objeto e as estruturas freudianas (1956-
1957) (Paris, 1994), Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1995;
numa rejeição primordial de um significante Le Séminaire, livre XXII, R.S.I. (1974-1975), inédito •
fundamental para fora do universo simbólico do Émile Meyerson, La Déduction relativiste, Paris, Payot,
sujeito. Quanto ao segundo, ele é o conceito da 1925 • Georges Bataille, “La Structure psychologique
função paterna, o significante fundamental, jus- du fascisme” (1933-1934), in La Critique sociale,
reimpressão, Paris, La Différence, 1985, 159-65 e 205-
tamente aquele que fica foracluído na psicose. 11; “La Valeur d’usage de D.A.F. de Sade (1) et (2)”, in
A partir dessa nova organização da estrutura Oeuvres complètes II. Écrits posthumes, 1922-1940,
do sujeito, tal como aparece na clínica da psi- Paris, Gallimard, 1970, 57-73; “Dossier ‘Hétérologie’”,
cose, o conceito de real adquiriu uma outra ibid., 167-78 • Jean-Claude Milner, Les Noms indis-
tincts, Paris, Seuil, 1983; A obra clara. Lacan, a ciência,
dimensão. Tornou-se então o lugar da loucura. a filosofia (Paris, 1995), Rio de Janeiro, Jorge Zahar,
Com efeito, se os significantes foracluídos do 1997 • François Roustang, Lacan, de l’équivoque à
simbólico retornam no real, sem serem integra- l’impasse, Paris, Minuit, 1986 • Élisabeth Roudinesco,
dos no inconsciente do sujeito*, isso quer dizer Jacques Lacan. Esboço de uma vida, história de um
sistema de pensamento (Paris, 1993), S. Paulo,
que o real se confunde com um “alhures” do
Companhia das Letras, 1994; “Bataille entre Freud et
sujeito. Fala e se exprime em seu lugar através Lacan: une expérience cachée”, in Denis Hollier (org.),
de gestos, alucinações ou delírios, os quais ele Georges Bataille après tout, Paris, Belin, 1995, 191-
não controla. 212 • Claude Lévesque, Le Proche et le lointain, Mon-
treal, Vlb Éditeur, 1994.
A importância atribuída à psicose como pa-
radigma do psiquismo humano estaria sempre ➢ ESTÁDIO DO ESPELHO; OBJETO (PEQUENO) a;
ligada, em Lacan, à questão da ciência. Aí en- OUTRO; TÉCNICA PSICANALÍTICA.
contramos duas filiações (a ciência do real e a
heterologia) a que ele sempre recorreu (sem
dizê-lo claramente) e às quais acrescentou a realidade psíquica
referência à realidade psíquica. al. psychische Realität; esp. realidad psíquica; fr.
A partir de 1970, o interesse cada vez maior réalité psychique; ing. psychical reality
pela ciência levou Lacan a tentar formalizar sua Termo empregado em psicanálise* para de-
própria visão conceitual: de um lado, uma ma- signar uma forma de existência do sujeito* que
thesis dos discursos (ou matema*), e de outro, se distingue da realidade material, na medida
uma topologia (o nó borromeano*) destinada a em que é dominada pelo império da fantasia* e
substituir a antiga tópica. Essa vontade de cons- do desejo*. Historicamente, a idéia nasceu do
truir uma ciência do real traduziu-se, então, abandono da teoria da sedução* por Sigmund
numa reorganização dos elementos da antiga Freud* e da elaboração de uma concepção do
tópica na qual o lugar determinante foi ocupado aparelho psíquico baseada no primado do in-
não mais pelo simbólico, mas pelo real. Como consciente*.
conseqüência disso, a psicose (forma teorizada Na história da clínica psicanalítica, a noção
da loucura e lugar da simbolização impossível) de realidade psíquica foi objeto de diversas
viu ser-lhe imposta a tarefa de questionar todas reinterpretações (em especial por Melanie
as certezas da ciência. Lacan deu o nome de Klein* e Jacques Lacan*), as quais, na aborda-

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2ª revisão – 31.07.98
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