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Resumo
Trata-se neste trabalho dos elementos psíquicos diferenciais que sinalizam as primeiras modulações
energéticas, intensidades e descargas, constitutivas do isso freudiano. Para tanto, serão utilizados
os conceitos freudianos de impressões mnêmicas, Affekt e pulsão, e do conceito lacaniano de
letra na estruturação do inconsciente.
Freud ([1895] 1996, p. 351) diz: “Uma Sob essa perspectiva, as excitações
teoria psicológica digna de consideração que se dão no sistema nervoso, oriundas de
precisa fornecer uma explicação para a fontes endógenas e exógenas, ao serem re-
memória”. Para tanto, Freud precisou pro- tidas nos neurônios Ψ, seriam responsáveis
por os termos elementares do psiquismo, pelas primeiras impressões de memória.
ou seja, a matéria-prima do aparelho de Por meio dessa teoria, ao fim do século
memória. Assim, no Projeto, Freud parte XIX, Freud tentava estabelecer a interface
da energia física, tanto somática (origem entre os sistemas biológico e psíquico. Isto
endógena), que nomeia de Qn, quanto da é, como alterações nervosas temporárias,
proveniente do mundo externo, nomeada provocadas por estímulos fisico-químicos
por ele de Q, ambas incidindo, de formas internos e externos, imprimiriam memó-
distintas, no sistema nervoso. rias primitivas permanentes de dor e de
Freud postula, então, a existência de satisfação.
duas classes de neurônios: os neurônios Freud, tateando as impressões ele-
j (fi), que não sofrem alterações com mentares do aparelho psíquico diz a res-
as passagens de Qn, e são permeáveis, peito dos elementos dos quais depende o
destinados à percepção; e os neurônios Ψ que ele denomina facilitação:1
(psi), que por sua vez sofrem alterações
em função de reterem Qn, e, por isso, são [...] a memória de uma experiência (isto
os portadores da memória. é, sua força eficaz contínua) depende de
A respeito dos neurônios Ψ Freud diz: um fator que se pode chamar de magnitu-
de da impressão e da frequência com que
Os dessa última classe podem, depois a mesma impressão se repete. Traduzindo
de cada excitação, ficar num estado di- em teoria: a facilitação depende da Qn
ferente do anterior, e fornecendo assim que passa pelo neurônio no processo
uma possibilidade de representar a memória excitativo e do número de vezes em
(Freud, [1895] 1996, p. 352, grifo nosso). que esse processo se repete. Daí se vê,
1. A respeito das facilitações, Freud diz no Projeto: “[...] a memória está representada pelas diferenças nas facilitações
entre os neurônios Ψ” (Freud, [1895] 1996, p. 352).
Freud aponta dois representantes psíqui- Sob essa perspectiva é factível supor
cos da pulsão: a Vorstellung (representante que tais impressões psíquicas seriam o su-
ideativo) e o Affekt (afeto). porte ou a substância material do aparato
A respeito do Affekt diz Freud, em psíquico, portanto unidades distintivas
algumas passagens do texto, “[...] é um irredutíveis do aparelho de memória freu-
estímulo aplicado à mente”, “[...] esses diano, como as letras no sistema linguís-
estímulos são os sinais de um mundo inter- tico, ou seja, é como se nesse momento já
no, a prova de necessidades instintuais”, fosse possível grafar algum fonema.
e ainda, “[...] estímulos que se originam Realizando um paralelo alegórico en-
dentro do organismo e alcançam a mente” tre a linguística e a psicanálise, o fonema
(Freud, [1915] 1996, p. 124-125, 127). seria um período de excitação somática
Assim, Freud denota o aspecto quan- (reiz), enquanto a letra que o sinaliza
titativo do Affekt e sua íntima relação seria um quantum de Affekt grafado no
com o soma, diferenciando-o do aspecto psiquismo. Seria possível, então, que o
qualitativo do afeto, que por sua vez se conceito de Affekt da teoria freudiana fosse
daria no sistema ω,6 nas diversas formas o protótipo da noção de “letra” proposta
de sentimentos: tristeza ou alegria, ódio no ensino lacaniano?
ou amor, paixão, ansiedade. Apoiado inicialmente no estruturalis-
Ao considerar o Affekt como pura mo, Lacan teria utilizado a linguística de
intensidade, a emoção sentida seria a Saussure, subvertendo-a ao inconsciente,
angústia: “[...] a angústia, dentre todos os para metaforizar a teoria freudiana, in-
sinais, é aquele que não engana” (Lacan, tuindo promover sentido aos conceitos
[1963] 2005, p. 178). A angústia como psicanalíticos àqueles que frequentavam
correlata do Affekt parece fazer fronteira seus seminários?
entre o somático e o psíquico, porque dela A respeito da metáfora diz Lacan
se fala com o corpo e só se sabe seu nome, ([1957] 1998, p. 510):
nada mais.
O Affekt, segundo Garcia-Roza, é a Uma palavra por outra, eis a fórmula da
expressão no psiquismo de um quantum metáfora, e, caso seja você um poeta,
de excitação pulsional (Triebreiz): produzirá, para fazer com ela um jogo,
um jato contínuo ou um tecido resplan-
[...] é o afeto que exprime de forma mais decente de metáforas.
direta o compromisso da pulsão com o
corporal [...] o afeto não é considerado Não teria Lacan, através de um jogo
como significante mas como sinal, modo metafórico, criado um grande poema,
de expressão da pulsão bruta não captu- o seu ensino, ao substituir a linguagem
rada e submetida à cadeia significante” utilizada por Freud, pela linguagem estru-
(Garcia-Roza, 2004b, p. 267). turalista – a linguística?
No Seminário 18 Lacan ([1971] 2009)
As diferenças de intensidade, impres- se defende da formulação reducionista
sas no psiquismo como elementos da pul- dos linguistas de que o pivô de seu ensino
são, até então desconectados, indicados consistia no uso metafórico da linguística,
aqui pelas letras T, R, I, E e B, são quantum dizendo:
de Affekt, e não representantes ideativos.
[...] é curioso que os linguistas não vejam
que todo uso da linguagem, seja ele qual
6. O sistema ω foi proposto por Freud na Carta 52, em
for desloca-se na metáfora, que só existe
relação à consciência. linguagem metafórica [...] Toda designa-
ção é metafórica, não pode fazer-se se não são as representações gráficas dos fonemas
por intermédio de outra coisa (Lacan, – os elementos irredutíveis da escrituração
[1971] 2009, p. 43). –, as unidades distintivas que participam
da forma (palavra), mas não têm direta-
Destarte, pode-se pensar que Lacan mente um sentido, ressalta Barthes (2006)
estava inclinado a fazer uso da linguística em seu livro Elementos de semiologia.
para dar o sentido que julgava ser a visada O Dicionário Houaiss da língua por-
da obra freudiana. Assim, a “letra” não se- tuguesa define letra assim: “cada um dos
ria a substituição, a centelha metafórica de sinais gráficos que representam os fonemas
Lacan, do “Affekt” forjado por Freud, para na língua escrita”. Como a letra é um
significar os primeiros sinais no psiquismo? sinal, pode-se pensar que Lacan substitui
Talvez uma tentativa de Lacan de livrar a metaforicamente o “Affekt” pela “letra”
psicanálise de críticas que a vinculassem a para elucidar os elementos irredutíveis
um biologicismo psíquico,7 que por sua vez do psiquismo.
a distanciaria de sua originalidade advinda Outro indício que favorece essa pro-
do conceito fundamental de pulsão. posição é a célebre frase de Lacan: “O
A ‘letra’ lacaniana não poderia ser inconsciente é estruturado como uma
uma maneira de afastar um vinculo vulgar linguagem” – utilizada diversas vezes
e pernicioso, promovido pela negligência ao longo de seu ensino –, indicando a
de alguns, entre corpo pulsional e corpo necessidade da inscrição “material” de
biológico, dando a verdadeira dimensão elementos diferenciais, letras, fundamen-
do inconsciente freudiano como um corpo tais na possibilidade de emergência dos
atravessado pela linguagem? Penso que a significantes-mestres (S1) na estruturação
letra representa, na poesia de Lacan, o do inconsciente.
suporte da ‘linguagem’ pulsional. As letras lacanianas seriam os pri-
A respeito da letra Lacan ([1957] meiros sinais psíquicos, as “memórias”
1998) nos adverte em seu texto A instância primitivas, pulsionais, responsáveis pela
da letra no inconsciente: estruturação inicial do isso. Parece real-
mente um resplandecente tecido metafó-
Mas essa letra, como se há de tomá-la rico urdido por Lacan.
aqui? Muito simplesmente, ao pé da É interessante observar ainda que no Se-
letra. Designamos por letra este suporte minário 20 – que, vale lembrar, Lacan ini-
material que o discurso concreto toma cia ensinando sobre o gozo – fala a respeito
emprestado da linguagem (Lacan, [1957] das letras ao retomar seu dito “o incons-
1998, p. 498). ciente estruturado como linguagem”. No
entanto, desta vez, de uma forma mate-
Segundo Saussure (2006) o sistema mática, utilizando a teoria dos conjuntos:
de escrita dito fonético, é tanto silábico
quanto alfabético, baseado nos elementos Vocês veem que, ao conservar ainda esse
irredutíveis da palavra, as letras. As letras como, me apego à ordem do que coloco
quando digo que o inconsciente é estrutu-
rado como uma linguagem. Eu digo como
7. No Seminário 2 Lacan diz a respeito da biologia freu- para não dizer, sempre retorno a isto, que
diana: “A biologia freudiana não tem nada a ver com a o inconsciente é estruturado por uma
biologia. Trata-se de uma manipulação de símbolos no
intuito de resolver questões energéticas, como manifesta linguagem. O inconsciente é estruturado
a referência homeostática, a qual permite caracterizar como os ajuntamentos de que se tratam
como tal não só o ser vivo, mas também o funcionamento
de seus mais importantes aparelhos” (Lacan, [1955]
na teoria dos conjuntos como sendo letras
1985, p. 100). (Lacan, [1972-1973] 2008, p. 53).
Uma vez que para nós se trata de tomar a Descrevemo-lo como estando aberto, em
linguagem como aquilo que funciona em seu extremo a influências somáticas e
suplência, por ausência da única parte do como contendo dentro de si necessidades
real que não pode vir a se formar em ser, instintuais que nele encontram expressão
isto é, a relação sexual – qual é o suporte psíquica (Freud, [1933] 1996, p. 78).
que podemos encontrar ao não lermos
senão letras? (Lacan, [1972-1973] 2008, Esses termos da pulsão ao se asso-
p. 54). ciarem, através da lei de simultaneidade
proposta por Freud – que rege o extrato
Diante desse dito de Lacan, parece psíquico mais primitivo do isso –, formam
ficar evidente que as letras são os primei- as pulsões parciais (oral, escópica, evoca-
ros sinais naquilo que se conceitua como tiva, etc.), que compõem o corpo pulsional
substância gozante: do infans.
Quanto ao real de Lacan – interpreta-
[...] a substância do corpo, com a condi- do aqui como metáfora do isso freudiano –,
ção que ela se defina apenas como aquilo sua estruturação rudimentar se dá através
de que se goza. Propriedade do corpo do surgimento das letras de gozo. Essas
vivo, sem dúvida, mas nós não sabemos letras, envolvidas pela alíngua constituirão
o que é estar vivo, senão apenas isto, que os significantes Um, representantes da
um corpo, isso se goza (Lacan, [1972- substância gozante.
1973] 2008, p. 29). Portanto, parece plausível supor que
esse extrato topológico do aparelho de
Aproximando mais uma vez a letra memória, o realisso,8 é o lugar onde a lógica
lacaniana enquanto metáfora do Affekt vigente é pulsional, isto é, de tensões e des-
freudiano, pensamos que a substância cargas, de gozo, ou, se assim podemos dizer,
gozante é composta de letras, assim como uma lógica de intensidades: “Catexias
o Affekt compõe o corpo pulsional. instintuais que procuram a descarga – isto,
Nasio é contundente ao abordar o em nossa opinião, é tudo o que existe no
tema do gozo corporal que permeia o real id” (Freud, [1933] 1996, p. 79).
da relação sexual – a qual Lacan diz ser
possível vislumbrar apenas através de si- 8. Neologismo forjado pelo autor deste artigo para con-
nais –, dizendo: “Numa palavra, o gozo é, jugar o isso freudiano ao real lacaniano.
LACAN, J. A instância da letra no inconsciente SAUSSURE, F. Curso de linguística geral. São Paulo:
ou a razão desde Freud (1957). In: ______. Escri- Cultrix, 2006.
tos. Tradução de Vera Ribeiro. Revisão técnica de
Antonio Quinet e Angelina Harari. Preparação Recebido em: 15/02/2017
de texto de André Telles. Rio de Janeiro: Zahar, Aprovado em: 10/04/2017
1998. p. 496-533. (Campo Freudiano no Brasil).