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Thiago Silva Martins

Das impressões mnêmicas freudianas


às letras de Lacan: Realisso
Thiago Silva Martins

Resumo
Trata-se neste trabalho dos elementos psíquicos diferenciais que sinalizam as primeiras modulações
energéticas, intensidades e descargas, constitutivas do isso freudiano. Para tanto, serão utilizados
os conceitos freudianos de impressões mnêmicas, Affekt e pulsão, e do conceito lacaniano de
letra na estruturação do inconsciente.

Palavras-chave: Impressão mnêmica, Letra, Pulsão, Isso, Real, Inconsciente.

Freud ([1895] 1996, p. 351) diz: “Uma Sob essa perspectiva, as excitações
teoria psicológica digna de consideração que se dão no sistema nervoso, oriundas de
precisa fornecer uma explicação para a fontes endógenas e exógenas, ao serem re-
memória”. Para tanto, Freud precisou pro- tidas nos neurônios Ψ, seriam responsáveis
por os termos elementares do psiquismo, pelas primeiras impressões de memória.
ou seja, a matéria-prima do aparelho de Por meio dessa teoria, ao fim do século
memória. Assim, no Projeto, Freud parte XIX, Freud tentava estabelecer a interface
da energia física, tanto somática (origem entre os sistemas biológico e psíquico. Isto
endógena), que nomeia de Qn, quanto da é, como alterações nervosas temporárias,
proveniente do mundo externo, nomeada provocadas por estímulos fisico-químicos
por ele de Q, ambas incidindo, de formas internos e externos, imprimiriam memó-
distintas, no sistema nervoso. rias primitivas permanentes de dor e de
Freud postula, então, a existência de satisfação.
duas classes de neurônios: os neurônios Freud, tateando as impressões ele-
j (fi), que não sofrem alterações com mentares do aparelho psíquico diz a res-
as passagens de Qn, e são permeáveis, peito dos elementos dos quais depende o
destinados à percepção; e os neurônios Ψ que ele denomina facilitação:1
(psi), que por sua vez sofrem alterações
em função de reterem Qn, e, por isso, são [...] a memória de uma experiência (isto
os portadores da memória. é, sua força eficaz contínua) depende de
A respeito dos neurônios Ψ Freud diz: um fator que se pode chamar de magnitu-
de da impressão e da frequência com que
Os dessa última classe podem, depois a mesma impressão se repete. Traduzindo
de cada excitação, ficar num estado di- em teoria: a facilitação depende da Qn
ferente do anterior, e fornecendo assim que passa pelo neurônio no processo
uma possibilidade de representar a memória excitativo e do número de vezes em
(Freud, [1895] 1996, p. 352, grifo nosso). que esse processo se repete. Daí se vê,
1. A respeito das facilitações, Freud diz no Projeto: “[...] a memória está representada pelas diferenças nas facilitações
entre os neurônios Ψ” (Freud, [1895] 1996, p. 352).

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portanto, que Qn é o fator operativo e agulhas, o qual seria, homologamente,


que a quantidade mais a facilitação que no psiquismo, a energia Qn incidindo de
resultam de Qn são ao mesmo tempo algo forma direta nos neurônios psi e deixando
capaz de substituir Qn (Freud, [1895] atrás de si impressões mnêmicas – traços
1996, p. 353). de tinta no corpo ou, se preferirmos, sinais.
A respeito da incidência direta de
Portanto, as facilitações não seriam os Qn em psi, Freud nos presenteia com um
elementos irredutíveis do psiquismo. Esses, facão afiado, capaz de facilitar a abertura
seriam as impressões mnêmicas relativas de nossa trilha:
aos fatores energéticos (fisico-químicos)
endógenos e exógenos, sugerindo que uma Se é assim, porém, psi está exposto, sem
facilitação se daria pelo agrupamento de proteção, às Qs provenientes dessa dire-
algumas impressões mnêmicas. ção, e nesse fato se assenta a mola mestra
Nada melhor que uma metáfora – do mecanismo psíquico (Freud, [1895]
Freud sabia bem disso – para dar sentido 1996, p. 368) .
a algo enigmático. Portanto, intuindo en-
tender melhor as impressões mnêmicas no Verifica-se aqui que a Qn pode ser o
aparelho de memória freudiano, pensou-se traço teórico de um dos quatro elementos
no processo de tatuar como metáfora alu- da pulsão – facilitado por Freud anos mais
siva. A tatuagem moderna é realizada por tarde em Os instintos e suas vicissitudes –, o
meio de uma máquina repleta de agulhas drang. Segundo Freud ([1915] 1996), por
e movida à energia elétrica. No início do drang compreende-se o “fator motor” da
processo de tatuar, períodos de energia pulsão, sua força.
elétrica aplicados sobre a pele por meio O outro tatuador, exterior ao corpo do
das agulhas embebidas em tinta, imedia- vivente, teria como homólogo o que Freud
tamente se transformarão em excitações denominou no Projeto de nebenmensch
dolorosas, deixando grafados, atrás de si, (“ajuda alheia”), com sua máquina repleta
traços distintos de tinta no corpo. Neste de agulhas – a voz, o seio, o toque, o olhar,
momento do processo ainda não se pode o odor, o leite, a falta, entre outras – pron-
identificar a forma de uma figura, mas tas a marcar, via neurônios fi – e não mais
apenas rabiscos doloridos. Alguns traços de forma direta como o tauador interno,
são reforçados pelo tatuador ao reaplicar fantástico – o corpo psíquico do vivente,
certa quantidade de energia da máquina alterando permanentemente os neurônios
sobre eles, deixando-os mais intensos, com psi do “aparelho neurônico”.
mais tinta. Vale ressaltar que o processo A respeito do complexo do Neben-
de tatuagem envolve excitação, dor, alívio mensch Freud nos fornece um objeto sun-
e cicatrizes. tuoso, uma bússola, para continuarmos o
Permanecendo no trilhamento da desbravar da trilha, ao dizer:
construção metafórica, vamos imaginar,
utilizando uma “loucura sábia”,2 que essa Em consequência, os complexos percep-
máquina de tatuar se encontre tanto tuais3 se dividem em uma parte constante
dentro quanto fora do corpo do vivente. e incompreendida – a coisa – e outra
Imaginemos no interior desse corpo a variável, compreensível – os atributos
presença fantástica do tatuador (aquele ou movimentos da coisa (Freud, [1895]
que tatua a dor) com sua máquina de 1996, p. 439).

3. No Seminário 7, de Lacan, a expressão “complexos


perceptuais” utilizada na ESB é traduzida para “com-
2. Ver Foucault, 2007, p. 36. plexo do Nebenmensch” (Lacan, [1959] 1997, p. 68).

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Nesta passagem do Projeto pode-se foram caracterizados por Freud no Projeto


escandir o que parece ser também um traço sob a especificidade de constância. Veja-
teórico – isto é, as qualidades e os desliza- mos como essas constantes energéticas se
mentos da coisa – de mais um elemento periodicizam tatuando sinais no psiquismo.
da pulsão, o objeckt: Então, vamos condensar as duas obras
de Freud, O Projeto e Os instintos e suas
É o que há de mais variável num instinto e, vicissitudes, na tentativa de ilustrar os ele-
originalmente, não está ligado a ele, só lhe mentos irredutíveis do aparato psíquico;
sendo destinado por ser peculiarmente ade- em outras palavras, as impressões mnêmi-
quado a tornar possível a satisfação (Freud, cas dos elementos da pulsão. Para tanto,
[1915] 1996, p. 128). adotamos a linguagem utilizada por Freud
no Projeto (a física), porém de forma alegó-
Para que seja oportuno à satisfação rica em vez de categórica, apropriando-se
pulsional, o objeckt deve trazer consigo de gráficos de ondas senoidais para repre-
atributos da coisa. Dito de outro modo, o sentar diferentes frequências e períodos
objeckt pode ser um canto, uma jura de de energia, estes essenciais às impressões
amor, um xingamento, um sussurro, tanto psíquicas mais primitivas, as dos elementos
faz, desde que seu timbre, sua altura e sua da pulsão – drang, objekt, quelle, ziel.
amplitude remeta à voz (coisa) da qual se O Gráfico 1 ilustra, através da linha
goza. contínua, o caos pulsional, momento indi-
A Outra parte do complexo Neben- ferenciado da pulsão, o puro drang, ou, se
mensch – constante e incompreendida, das preferirmos, a Qn do Projeto sem nenhuma
Ding –, é o elemento concebido por Freud periodicização da energia.4 Pode-se dizer
no Projeto como exterior ao psiquismo, que esse continuum seria a pura excitação,
portanto, não pertencente ao espaço da denominada por Freud de Reiz (impulso),
representação, “mas que nem por isso uma “[...] impressão que permanece como
deixa de fazer presença embora ausente” pura intensidade não passível de integrar
(Garcia-Roza, 2004a, p. 163). à cadeia significante” (Pimenta, 2007, p.
A este respeito Lacan nos ensina em 60). Essa inscrição é representada aqui
seu seminário A ética da psicanálise, que é pela letra T:
em torno da coisa, tida em todo caso como
o “primeiro exterior”, que se orienta todo
o encaminhamento do sujeito. Segundo
Lacan, Das Ding diz respeito ao Outro abso- T
luto do sujeito, que se trata de reencontrar, Gráfico 1
mas que “[...] reencontramo-lo no máximo fonte: elaboração do autor.

como saudade” (Lacan, [1959] 1997, p. 69).


Retomando-se a metáfora, a sensação O Gráfico 2 demonstra, por meio de
das agulhas penetrando a pele pela pri- uma onda seinodal, a modulação de um
meira vez nunca mais será sentida como quantum de energia impresso no aparelho
tal; ficarão apenas os traços de tinta que de memória, proveniente do “encontro”
a sinalizam para o sujeito, embora ocultos da Qn, de origem interna (soma), com o
na imagem da tatuagem pronta. Nebenmensch, o “primeiro exterior”, o que
A partir disso, depara-se, então, com sinalizará outro elemento da pulsão: o ob-
os elementos que aparentam ser os mais
primitivos do aparato psíquico – a Qn e 4. Ver Pena, B. F.; Martins, T. S. O caos pulsional.
Reverso, Belo Horizonte, ano 38, n. 71, p. 37-46, jun.
das Ding –, responsáveis por constituir a 2016. Publicação semestral do Círculo Psicanalítico de
pulsão. Vale lembrar que ambos os termos Minas Gerais.

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jekt, que representaremos pela letra R. Esse O Gráfico 5 demonstra a impressão


“contato” entre a Qn e o Nebenmensch psíquica de um quantum proveniente
seria responsável por modular a constante da separação entre o Nebenmensch e o
Qn em períodos distintos de Drang, corre- infans, que sinalizará a “falta de objeto”,
latos aos registros dos atributos da coisa. ou, nos apropriando artificialmente da
linguística, o silêncio ou, ainda, aludindo
à matemática, o conjunto vazio, ou, mais
ainda, a “parte constante e incompreen-
R dida da coisa”. Não resta dúvida sobre
Gráfico 2 a importância deste termo, “a falta do
fonte: elaboração do autor. objeto”, visto que Lacan destinou todo
um seminário entre os anos de 1956 e
O Gráfico 3 ilustra, por meio de um outro 1957 tratando-o como noção central na
período de energia na forma de onda, um relação de objeto:
quantum de excitação relativo ao encon-
tro de uma parte do corpo do infans, sob Jamais, em nossa experiência concreta da
efeito do Drang, com o Nebenmensch, o teoria analítica, podemos prescindir da
que imprimirá o outro elemento da pulsão, falta de objeto como noção central. Não
localizando-a, denominado por Freud de é um negativo, mas a própria mola da
Quelle: “Por fonte [Quelle] de um instin- relação do sujeito com o mundo (Lacan,
to entendemos o processo somático que [1956] 1995, p. 35).
ocorre num órgão ou parte do corpo, e cujo
estímulo é representado na vida mental Assim, a “falta de objeto” põe o sujeito
por um instinto” (Freud, [1915] 1996, p. em movimento, procurando reencontrar,
128), que representaremos pela letra I. nas suas relações com o outro, o objeto
faltoso.
Vale observar que, entre 1959 e
1960, Lacan continua a tratar da ques-
I tão concernente à “falta de objeto”,
Gráfico 3 desta vez, abordando o complexo do
fonte: elaboração do autor. Nebenmensch em sua vertente ‘fora-do-
significado’, o das Ding: “elemento que
O Gráfico 4 figura, através de mais uma é, originalmente, isolado pelo sujeito
onda distinta das demais, a descarga em sua experiência do Nebenmensch,
energética promovida pela satisfação como sendo, por sua natureza, estra-
obtida “[...] eliminando-se o estado de nho” (L acan , [1959] 1997, p. 68).
estimulação” (Freud, [1915] 1996, p. Esse elemento ‘fora-do-significado’ é
128), que sinalizará no psiquismo outro estranho ao sujeito no campo simbólico
elemento da pulsão: o Ziel – a finalidade e sem imagem que o delimite no registro
da pulsão –, que segundo Freud é sempre imaginário, embora familiar na lógica
a satisfação, e que representaremos aqui pulsional.
pela letra E. Não há como deixar de mencionar
que Lacan, mais tarde, trabalhará a “falta
de objeto” e das Ding como substratos de
seu conceito de objeto a – objeto causa
E de desejo e objeto condensador de gozo.
Gráfico 4 Sinalizaremos aqui a “falta de objeto” com
fonte: elaboração do autor. a letra B.
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impressões rudimentares constitutivas do


aparelho de memória.
Essas impressões corresponderiam às
B primeiras indicações das percepções no
Gráfico 5 extrato Wz: “[...] Wz é o primeiro registro
fonte: elaboração do autor. das percepções; é incapaz de assomar à
consciência” (Freud, [1896] 1996, p. 282).
Em suma, no ponto de encontro míti- Pensemos, então, a partir dessas letras
co entre a Qn do infans e o Nebenmensch se sinalizadoras dos elementos da pulsão,
dão o Drang, Objekt, Quelle e o Ziel da pul- numa das experiências do recém-nasci-
são. E na separação se dá a “falta de objeto”, do. A letra T sinalizaria a impressão, no
o objeto para sempre perdido – das Ding: psiquismo do bebê, da excitação interna
causada pela dor caótica advinda de sua
É por sua natureza que o objeto é perdido fome. A letra R seria o sinal referente à
como tal. Jamais ele será reencontrado. Al- excitação proveniente do mamilo da mãe
guma coisa está aí esperando algo melhor, ou alocado subitamente em sua boca. A letra
esperando algo pior, mas esperando (Lacan, I indicaria a excitação do sugar o leite
[1959] 1997, p. 69). pela boca em contato com seio materno.
Já o sinal E corresponderia ao indicador
Diante disso, parece plausível que as mnêmico referente à descarga da exci-
constantes Qn e das Ding, exteriores ao psi- tação em função da saciação da fome. E,
quismo, são os elementos estruturantes do por último, a letra B seria a impressão, no
isso freudiano, da sede das pulsões. Ilustran- primeiro extrato psíquico desse bebê, da
do a teoria, como se um impulso constante retirada do mamilo de sua boca, ou seja,
de mirar rostos os mais variados visasse sem- a falta do objeto.
pre o gozo promovido outrora pelo olhar da Portanto, por meio de tal experiência
coisa (por exemplo, da mãe), desde então vivida pelo bebê, sinaliza-se, no extrato
permanentemente perdido e procurado. Wz, os primeiros relata de percepções, que
As letras T, R, I, E e B, eleitas acima nada mais são do que sinais diferenciais
para indicar períodos distintos de energia, imediatos correspondentes às excitações
sinalizam os elementos da pulsão, ainda incidentes no psiquismo. Vale mencio-
disjuntos, no psiquismo. A respeito da nar que nesse estágio de estruturação do
pulsão Lacan ([1964] 2008) ensina que aparelho de memória ainda não há o que
seus quatro termos só podem aparecer, Freud nomeia de representantes pulsionais
de início, disjuntos, sem relação entre (Triebreprasentanz) inscritos no psiquismo
si. Pode-se dizer que esses sinais ou estas – até porque os elementos da pulsão ainda
essas letras marcam apenas diferenças de estão disjuntos, ou seja, não se agruparam,
intensidades. Seriam, portanto, períodos significando que a pulsão não está “mon-
de excitação distintos sulcados no extra- tada” –, mas tão somente impressões psí-
to Wahrnehhmungszeichen (Wz),5 isto é, quicas de intensidades e descargas, sinais
diferenciais concomitantes às excitações
5. O extrato Wahrnehhmungszeichen (Wz) é primeiro somáticas (Triebreiz).
extrato do aparelho de memória proposto por Freud na
Carta 52, seguido dos extratos Unbewusstsein (Ub) e Intuindo esclarecer melhor este mo-
Vorbewusstsein (Vb). O extrato Ub, ou seja, a inconsciên- mento inaugural do aparelho de memória
cia, é o segundo registro da memória, correspondente
a lembranças conceituais e sem acesso à consciência. freudiano, quando ainda não existem
Já o extrato Vb, a pré-consciência, “[...] é a terceira representantes pulsionais inscritos no
transcrição, ligada às representações verbais e corres-
pondendo ao nosso ego reconhecido como tal” (Freud,
psiquismo, faz-se necessário retomar o
[1896] 1996, p. 282). texto Os instintos e suas vicissitudes no qual
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Freud aponta dois representantes psíqui- Sob essa perspectiva é factível supor
cos da pulsão: a Vorstellung (representante que tais impressões psíquicas seriam o su-
ideativo) e o Affekt (afeto). porte ou a substância material do aparato
A respeito do Affekt diz Freud, em psíquico, portanto unidades distintivas
algumas passagens do texto, “[...] é um irredutíveis do aparelho de memória freu-
estímulo aplicado à mente”, “[...] esses diano, como as letras no sistema linguís-
estímulos são os sinais de um mundo inter- tico, ou seja, é como se nesse momento já
no, a prova de necessidades instintuais”, fosse possível grafar algum fonema.
e ainda, “[...] estímulos que se originam Realizando um paralelo alegórico en-
dentro do organismo e alcançam a mente” tre a linguística e a psicanálise, o fonema
(Freud, [1915] 1996, p. 124-125, 127). seria um período de excitação somática
Assim, Freud denota o aspecto quan- (reiz), enquanto a letra que o sinaliza
titativo do Affekt e sua íntima relação seria um quantum de Affekt grafado no
com o soma, diferenciando-o do aspecto psiquismo. Seria possível, então, que o
qualitativo do afeto, que por sua vez se conceito de Affekt da teoria freudiana fosse
daria no sistema ω,6 nas diversas formas o protótipo da noção de “letra” proposta
de sentimentos: tristeza ou alegria, ódio no ensino lacaniano?
ou amor, paixão, ansiedade. Apoiado inicialmente no estruturalis-
Ao considerar o Affekt como pura mo, Lacan teria utilizado a linguística de
intensidade, a emoção sentida seria a Saussure, subvertendo-a ao inconsciente,
angústia: “[...] a angústia, dentre todos os para metaforizar a teoria freudiana, in-
sinais, é aquele que não engana” (Lacan, tuindo promover sentido aos conceitos
[1963] 2005, p. 178). A angústia como psicanalíticos àqueles que frequentavam
correlata do Affekt parece fazer fronteira seus seminários?
entre o somático e o psíquico, porque dela A respeito da metáfora diz Lacan
se fala com o corpo e só se sabe seu nome, ([1957] 1998, p. 510):
nada mais.
O Affekt, segundo Garcia-Roza, é a Uma palavra por outra, eis a fórmula da
expressão no psiquismo de um quantum metáfora, e, caso seja você um poeta,
de excitação pulsional (Triebreiz): produzirá, para fazer com ela um jogo,
um jato contínuo ou um tecido resplan-
[...] é o afeto que exprime de forma mais decente de metáforas.
direta o compromisso da pulsão com o
corporal [...] o afeto não é considerado Não teria Lacan, através de um jogo
como significante mas como sinal, modo metafórico, criado um grande poema,
de expressão da pulsão bruta não captu- o seu ensino, ao substituir a linguagem
rada e submetida à cadeia significante” utilizada por Freud, pela linguagem estru-
(Garcia-Roza, 2004b, p. 267). turalista – a linguística?
No Seminário 18 Lacan ([1971] 2009)
As diferenças de intensidade, impres- se defende da formulação reducionista
sas no psiquismo como elementos da pul- dos linguistas de que o pivô de seu ensino
são, até então desconectados, indicados consistia no uso metafórico da linguística,
aqui pelas letras T, R, I, E e B, são quantum dizendo:
de Affekt, e não representantes ideativos.
[...] é curioso que os linguistas não vejam
que todo uso da linguagem, seja ele qual
6. O sistema ω foi proposto por Freud na Carta 52, em
for desloca-se na metáfora, que só existe
relação à consciência. linguagem metafórica [...] Toda designa-

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ção é metafórica, não pode fazer-se se não são as representações gráficas dos fonemas
por intermédio de outra coisa (Lacan, – os elementos irredutíveis da escrituração
[1971] 2009, p. 43). –, as unidades distintivas que participam
da forma (palavra), mas não têm direta-
Destarte, pode-se pensar que Lacan mente um sentido, ressalta Barthes (2006)
estava inclinado a fazer uso da linguística em seu livro Elementos de semiologia.
para dar o sentido que julgava ser a visada O Dicionário Houaiss da língua por-
da obra freudiana. Assim, a “letra” não se- tuguesa define letra assim: “cada um dos
ria a substituição, a centelha metafórica de sinais gráficos que representam os fonemas
Lacan, do “Affekt” forjado por Freud, para na língua escrita”. Como a letra é um
significar os primeiros sinais no psiquismo? sinal, pode-se pensar que Lacan substitui
Talvez uma tentativa de Lacan de livrar a metaforicamente o “Affekt” pela “letra”
psicanálise de críticas que a vinculassem a para elucidar os elementos irredutíveis
um biologicismo psíquico,7 que por sua vez do psiquismo.
a distanciaria de sua originalidade advinda Outro indício que favorece essa pro-
do conceito fundamental de pulsão. posição é a célebre frase de Lacan: “O
A ‘letra’ lacaniana não poderia ser inconsciente é estruturado como uma
uma maneira de afastar um vinculo vulgar linguagem” – utilizada diversas vezes
e pernicioso, promovido pela negligência ao longo de seu ensino –, indicando a
de alguns, entre corpo pulsional e corpo necessidade da inscrição “material” de
biológico, dando a verdadeira dimensão elementos diferenciais, letras, fundamen-
do inconsciente freudiano como um corpo tais na possibilidade de emergência dos
atravessado pela linguagem? Penso que a significantes-mestres (S1) na estruturação
letra representa, na poesia de Lacan, o do inconsciente.
suporte da ‘linguagem’ pulsional. As letras lacanianas seriam os pri-
A respeito da letra Lacan ([1957] meiros sinais psíquicos, as “memórias”
1998) nos adverte em seu texto A instância primitivas, pulsionais, responsáveis pela
da letra no inconsciente: estruturação inicial do isso. Parece real-
mente um resplandecente tecido metafó-
Mas essa letra, como se há de tomá-la rico urdido por Lacan.
aqui? Muito simplesmente, ao pé da É interessante observar ainda que no Se-
letra. Designamos por letra este suporte minário 20 – que, vale lembrar, Lacan ini-
material que o discurso concreto toma cia ensinando sobre o gozo – fala a respeito
emprestado da linguagem (Lacan, [1957] das letras ao retomar seu dito “o incons-
1998, p. 498). ciente estruturado como linguagem”. No
entanto, desta vez, de uma forma mate-
Segundo Saussure (2006) o sistema mática, utilizando a teoria dos conjuntos:
de escrita dito fonético, é tanto silábico
quanto alfabético, baseado nos elementos Vocês veem que, ao conservar ainda esse
irredutíveis da palavra, as letras. As letras como, me apego à ordem do que coloco
quando digo que o inconsciente é estrutu-
rado como uma linguagem. Eu digo como
7. No Seminário 2 Lacan diz a respeito da biologia freu- para não dizer, sempre retorno a isto, que
diana: “A biologia freudiana não tem nada a ver com a o inconsciente é estruturado por uma
biologia. Trata-se de uma manipulação de símbolos no
intuito de resolver questões energéticas, como manifesta linguagem. O inconsciente é estruturado
a referência homeostática, a qual permite caracterizar como os ajuntamentos de que se tratam
como tal não só o ser vivo, mas também o funcionamento
de seus mais importantes aparelhos” (Lacan, [1955]
na teoria dos conjuntos como sendo letras
1985, p. 100). (Lacan, [1972-1973] 2008, p. 53).

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Das impressões mnêmicas freudianas às letras de Lacan: Realisso

Ainda Lacan, a respeito dessas letras, no inconsciente e na teoria, um lugar vazio


diz: de significantes” (Nasio, 1993, p. 29).
Aqui se encontra mais um indício que
[...] as letras constituem os ajuntamentos, corrobora a ideia central proposta neste
as letras são, e não designam, esses ajun- trabalho, pois, se o gozo que tange o real
tamentos, elas são tomadas como funcio- da relação sexual é ausente de significante,
nando como esses ajuntamentos mesmos pode-se pensar que esse seria o correlato
(Lacan, [1972-1973] 2008, p. 53). das letras lacanianas.
Após toda esta elucubração, retoman-
Então, ao ser agrupadas, as letras do e alinhavando-se conceitos da obra de
constituem um conjunto – formam Um Freud e do ensino de Lacan, pode-se dizer,
significante, dito de outro modo, uma como num instante de concluir, que o isso
pulsão parcial –, P={T,R,I,E,B}. – caracterizado por Freud como “a sede das
Lacan, nesse mesmo seminário, diz pulsões” se constitui, em seu rudimento,
mais, ainda, sobre a letra: pela emergência dos termos da pulsão:

Uma vez que para nós se trata de tomar a Descrevemo-lo como estando aberto, em
linguagem como aquilo que funciona em seu extremo a influências somáticas e
suplência, por ausência da única parte do como contendo dentro de si necessidades
real que não pode vir a se formar em ser, instintuais que nele encontram expressão
isto é, a relação sexual – qual é o suporte psíquica (Freud, [1933] 1996, p. 78).
que podemos encontrar ao não lermos
senão letras? (Lacan, [1972-1973] 2008, Esses termos da pulsão ao se asso-
p. 54). ciarem, através da lei de simultaneidade
proposta por Freud – que rege o extrato
Diante desse dito de Lacan, parece psíquico mais primitivo do isso –, formam
ficar evidente que as letras são os primei- as pulsões parciais (oral, escópica, evoca-
ros sinais naquilo que se conceitua como tiva, etc.), que compõem o corpo pulsional
substância gozante: do infans.
Quanto ao real de Lacan – interpreta-
[...] a substância do corpo, com a condi- do aqui como metáfora do isso freudiano –,
ção que ela se defina apenas como aquilo sua estruturação rudimentar se dá através
de que se goza. Propriedade do corpo do surgimento das letras de gozo. Essas
vivo, sem dúvida, mas nós não sabemos letras, envolvidas pela alíngua constituirão
o que é estar vivo, senão apenas isto, que os significantes Um, representantes da
um corpo, isso se goza (Lacan, [1972- substância gozante.
1973] 2008, p. 29). Portanto, parece plausível supor que
esse extrato topológico do aparelho de
Aproximando mais uma vez a letra memória, o realisso,8 é o lugar onde a lógica
lacaniana enquanto metáfora do Affekt vigente é pulsional, isto é, de tensões e des-
freudiano, pensamos que a substância cargas, de gozo, ou, se assim podemos dizer,
gozante é composta de letras, assim como uma lógica de intensidades: “Catexias
o Affekt compõe o corpo pulsional. instintuais que procuram a descarga – isto,
Nasio é contundente ao abordar o em nossa opinião, é tudo o que existe no
tema do gozo corporal que permeia o real id” (Freud, [1933] 1996, p. 79).
da relação sexual – a qual Lacan diz ser
possível vislumbrar apenas através de si- 8. Neologismo forjado pelo autor deste artigo para con-
nais –, dizendo: “Numa palavra, o gozo é, jugar o isso freudiano ao real lacaniano.

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Thiago Silva Martins

Enfim, embora sem finalizar, como


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