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os esforços des-
se aparelho dirigem-se para manter-se, tanto
sujeito com o mundo, através de seu semelhante. A partir
construção de um saber inédito em que se dá a realização-da Na escuta das histéricas, e marcado por essas filiações,
verdade do sujeito, Freud se depara com a necessidade de "estruturar uma psi-
A luz da contribuição lacaniana, examinaremos em Freud cologia que seja uma ciência natural: isto é, representar os
a via CJue nos conduz à divisão entre o saber, articulado pela processos psíquicos como estados quantitativamente determi-
via das representações, nomeadas por Lacan C0l110 cadeia ele nados de partículas materiais especificáveis, dando assim a
siguificantes, e a dimensão da verdade, que se define pela re- esses processos um caráter concreto e inequívoco," (F"EUD,
lação do sujeito com a causa de seu desejo, 1 989[1 895J, p, 395)3
A rigor, ressalta Lace1I1, no Projeto .. , coloca-se a primeira
São vários os textos de Freud em que podemos acompa- contenda com o próprio pathos da realidade com o qual Freud
nhar a dimensão da verdade como aquilo que escapa à repre- lida em sua clínica, Tudo se assenta em termos ela relação do
sentação, fazendo obstáculo ao saber, e de sua contigüidade sujeito com o mundo exterior, ou seja, a ênfase cio Projeto
com o campo do desejo e da pulsão. está colocadajustamente no impacto cio meio sobre o organis-
mo e na relação cio organismo ao meio, Corno a realidade se
Comecemos pelo Projeto para uma psicologia cientifi- constitui para o homem') - é a pergunta fundamental mam ida
ca (1895), Impulsionado pela precária situação financeira e em toda a obra, sendo corrclativa ela questão de como o ho-
pelos seus mestres e conselheiros, Freud se vê forçado a aban- mem se constitui a parti!' da realidade,
clonar suas pesquisas em neurologia e a se dedicar à clínica, Na verdade, na perspectiva de muitos ele seus seguido-
sem contudo abrir mão, num primeiro momento, de suas fili- res, o Projeto", contém em germe toela a teoria que Freucl virá
ações, a saber, Meynert, Fechner e a escola de Helmholtz, a desenvolver, o que justifica que, embora não tendo sido es-
Brucke, Du-Bois Reymcnd. com cujas idéias vai montar o crito para ser publicado, servirá de guia para a questão aqm
esquema de um aparelho formalizado como aparelho neurô- ressal rada.
nico no Projeto", (1895), retomado como aparelho de me-
mória na "Carta 52" (1896), e como aparelho psíquico em A Freud elabora, ent~ um modelo ele aparelho que, para
interpretação dos sonhos (1900), se constituir, exige umr'temporalidacle que inclui a relação cio
2O LCrlTlO realitação, tradução do termo alemão Erfüllung, tem uma preci-
são que merece ser destacada, na medida em que é o termo empregado por ) Paul - Laurent Assoun afirma que Frcud se manteve fiel ao juramento
Freud para estabelecer a relação do desejo com as formações elo incons- fisi calista ilustrado pela prestigiosa trilogia Hclrnholtz-Brückc-Du Bois
CiCIllC, As chamadas [ormaçõcs do inconsciente são uma realização de Reyrnond, cujo programa pode ser reduzido ao reconheci mento ele que ,6
desejo, No dicionário Aurélio do Língua Portuguesa, encontramos as se- existem forças físico-químicas, e de que a única tarda cicnuüca é a ele
guintes acepções para o lermo: tornar real, efetivo, existente; pôr em práti- descobrir o modo específico ou a forma ele ação dessas forças J'ísico-quí-
ca, efetuar: fazer, construir, criar, acumular; perceber como realidade: curn- micas, "única matéria de saber", (Assou», 198/, p, 54), Ele ressalta ainda
prir-sc, efetivar-se; efetuar-se, verificar-se; ocorrer, acontecer. E, apenas que, embora intitulando seu primeiro texto propriamente psicanalítico como
no Brasi I, o lermo ganha a conotação de "alcançar seu objetivo ou ideal", "A Interpretação dos Sonhos" e lendo classificado a psicanálise C0l110 lima
o que dá margem a que se confunda realização com ,I'aI isfação. O que se arte interpretativa, Freucl não se ligou à hermenêuuca, porque a Deu/uni!
quer ressaltar é que tanto no que se refere ao clesejo quanto fi verdade, freudiana é "um procedi mente intelectual que explica de modo uuerprctati \10
trata-se de realização no sentido de "tornar ex istenie", "veri ficável", "per- ou interpreta Iornecendo a cansa ". e, por conseguinte, liga-se às Ciências
cebido como real idade", 46 Naturais e não às Ciências elo Espírito 47(op. cit. p.49l,
quanto possí-
vel, longe de estímulos e, para tal, sua estrutura acompanha
o plano de um aparelho reflexo, de "maneira que qualquer
excitação sensorial a chocar-se com ele poderia ser pronta- se encontra a criança, pela via do grito, que inicialmente não
mente clescarregaela ao longo ele uma via motora" (FREUD, contém apelo algum, é pura descarga de energia. Freud ressal-
1969[ 1895J, p. 602). ta que essa alteração interna, o grito, vai adquirir a imporran-
tíssima função secundária da comunicação e que o desamparo
Porém, o que se constata é que "as exigências da vida" inicial do ser humano (HiLfLosigkeit) "é a fonte primordial ele
tNot des Lebens) interferem com essa função simples e que é a todos os motivos morais" (FREUD, 1969[1895], p. 422).
essa exigência que o aparelho deve seu impulso a novos de-
senvolvimentos, desenvolvimentos estes que incluem o que O fato de a pessoa prestativa, o semelhante, desempe-
e
v irá a se constituir como conheci mente 'saber.' Essa exigên- nhar a ação específica no mundo externo para o desamparado
cia interna, que confronta o aparelho primeiramente sob a tem como conseqüência a inserção do infante na estrutura de
forma das principais necessidades somáticas, segue uma pri- linguagem, uma vez que essa ação é desenvolvida segundo
meira via que conduz a uma alteração interna, ou seja, a uma uma interpretação que o semelhante dá ao grito.
expressão ele emoção - o grito -, que, em si, não pode produ- Este grito, que provoca no adulto uma resposta, é o que
zi!' alívio, uma vez que não elimina o estímulo enclógeno a dará origem à comunicação, uma vez que supõe uma estrutura
ser recebido. Aqui se anuncia a primeira distinção a ser feita simbólica preexistente, na qual ele será inserido, quando toma-
entre a estirnulação sensorial externa, contingente, momen- do como uma demanda. A presença do semelhante, introduz as
tânea, e o que virá a ser formulado como a pulsão, cuja ca- necessidades "naturais" no circuito simbólico; a apresentação
racterística é de ser uma estimulação endógena e constante, do objeto de satisfação se acompanha de uma significação que
uma Konstant Kraft. o outro lhe confere, a partir de um universo de linguagem.
Freud se refere à totalidade desse processo como sendo
Essa esti mulação interna só pode ser abolida por meio de uma vivência de satisfação iBefriedigungserlebnis) "que tem
u ma i ntervenção que suspenda temporariamente a descarga de as conseqüências mais decisivas para o desenvolvimento das
energia no interior do corpo, uma intervenção que requer uma funções individuais" (Idem). Ele introduz nesse momento a
alteração do mundo externo (fornecimento de víveres, aproxi- noção de desejo, com uma radical idade inédita, que o distin-
mação elo objeto sexual) que, como ação específica, só pode gue de tudo o que é da ordem de uma necessidade biológica. O
ser consegu ida através de determinadas vias motoras. Como o desejo surge ligado a uma origem mítica, na qual um objeto
ser humano é incapaz de desenvolver essa ação específica, em trazido pela ação do semelhante apazigua uma tensão ele ne-
função de seu precário desenvolvimento neurológico ao nascer, cessidade, a urgência da vida, implicando uma vivência de
essa é efetuada por meio de assistência alheia, quando uma satisfação. Essa vivência súbita, essa impressão forte com o
pessoa experiente é atraída para o estado de urgência em que primeiro objeto, deixa um primeiro traço de memória que será
investido, re-evocado para "encenar a situação de satisfação".
48 Nessa passagem, são utilizados dois termos: Erfahrung e Er-
lebnis - aquilo que se costuma chamar ele experiência de S{/-
tisfação é, na realidade, a experiência de uma vivência de
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lada 8S pressas, que produz efeitos imediatos." (BENJAMIN, 1989).
50
satisfação". É porque houve uma vi vência de satisfação que, pela o
sed irnentação de seus traços, fixa-se uma experiência. O desejo b
seria, então, essa moção (Regung) que visa a reinvestir os tra- j
ços deixados pelo objeto. A conseqüente alucinação da pre- e
sença do objeto, que daí decorre, a evocação da cena de t
satisfação, seria sua realização (PORTUGAL, 2000). o
s
A partir da concepção dessa experiência com o seme-
d
lhante surge o sujeito da psicanálise, sujeito do desejo, que se
a
marca por uma perda. Desse modo, Freud define o desejo em
n
termos estritamente psicanalíticos, na medida em que afirma
e
que o objeto a que ele visa não se encontra lá, mas somente os
c
traços de memória da experiência com a "Coisa", das Ding,
e
Tudo passa então a girar em torno da possibilidadede reen-
s
contrar no mundo real objetos que possam trazer satisfação.
s
Porém, esse objeto primeiro e mítico não pode jamais ser en-
i
contrado; é um objeto que, por sua natureza, se perde e que
d
deixa em seu rastro apenas suas coordenadas de prazer, crité-
a
rio segundo o qual o aparelho vai utilizar para se relacionar
d
com a realidade.
e
Quando surge pela segunda vez a tensão de necessidade, o ,
sujeito tenta re-encontrar o primeiro objeto através de sua ima- d
gem mnêrnica, suas coordenadas de prazer, alucinando sua pre- e
sença. Da experiência da vivência de satisfação resta apenas um s
traço, que, impossível de ser incluído na rernernoração do su- n
Jeito, e frustrante com relação à satisfação da tensão, vai exi- a
gir, logicamente, uma série de substituições possíveis. Os t
u
4 Aqui cabe recorrer à explicação de uma nota encontrada no livro de Walter
r
Benjarnim, onde se afirma que o termo Erfalirung é comumenteentendido
no alemão como experiência, "conhecimento obtido através de urna expe- a
riência que se acumula, que se prolonga, que se desdobra, como numa li
viagem; o sujeito integrado numa comunidade dispõe ele critérios que lhe
z
permitem ir sedimentanelo as coisas com o tempo". O termo Erlebnis se
refere "à experiência vivida, evento assistido pela consciência. É a vivência
a
do indivíduo privado, isolado, é a impressão forte, que precisa ser assirni- d
51
a pela ação da lingua-
gem introduzida pelo semelhante, serão utilizados como subs-
titutos para o objeto do desejo. Os traços de memória deixados
por estes objetos se constituirão numa série de representações
substitutivas que serão organizadas segundo a lógica do Prin-
cípio de Prazer.
53
se há desejo, se o desejo emprega toelos os desvios do
processo substitutivo de metonímia sign ificantc, não é
em virtude da perda de uma origem qualquer, mas jus-
tamente porque a perda é ela mesma a origem. (BAAS,
1928, p. 147)
SS
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falta de saber no outro, as teorias infantis são construídas. Elas
fazem, assim, suplência ao saber que o outro não tem, e desti-
nam-se a conquistar o saber proibido de que os adultos supos-
tamente podem desfrutar.
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trutura de falta do desejo, são os textos
posteriores: "O recalque"
e "O inconsciente" de 1914 e o texto "Além
na infância foi retida nessas lembranças, tratando-se "simples- do princípio do
mente de saber como extraí-lo delas pela análise" (FREUD, prazer" de 1920.
1969[1912], p. 194).
62
Num outro grupo de processos, Freud ressalta a impor-
tância das fantasias, dos atos puramente internos, que devem,
em sua relação com o esquecer e o recordar, ser tratados sepa-
radamente. "Nestes processos", diz o autor, "acontece com ex-
traordinária freqüência ser 'recordado' algo que nunca poderia
ter sido 'esquecido', porque nunca foi, em ocasião alguma,
notado", inscrito em tempo algum (Idem, p. 195). O analisan-
te não se lembra nada do esquecido e do recalcado que age
nele. Esse material é reproduzido não como lembrança, mas
como ato; o sujeito o repete, naturalmente-sem saber o que
repete. Freud, afinal, afirma que a compulsão à repetição é
uma maneira de lembrar, e que, quanto maior a resistência,
tanto mais amplo será substituído o lembrar pelo agir (repe-
tir). O analisando repete ao invés de se lembrar.
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Freud eleva todas essas evidências que estamos desta-
cando ao nível de um conceito que definitivamente situa o su-
jeito em sua divisão constitutiva. Em 1914, ao definir o recalque
como uma operação que impede que uma representação seja
tomada pela consciência, conclui que esse mecanismo supõe
uma outra operação mais originária, fundante da divisão do
aparelho entre o sistema pré-consciente/consciente e o siste-
ma inconsciente, e se pergunta por tal mecanismo.
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Quando o aparelho fixa a energia a uma representação, a
divisão se instala. O campo em que o sujeito se constitui, ou o
conjunto dos elementos e das representações com os quais se
constitui é falho; falta um elemento nessa cadeia. Contudo, é
com estes elementos presentes que se elabora o saber incons-
ciente, que será apurado na escu ta das formações inconscien-
tes. Por outro lado, resta dessa mesma operação de linguagem
um campo de pura dispersão de energia, campo que Lacan
nomeou de Real.
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do prazer (e de sua modificação, o princípio da reali-
dade) avançar sem obstáculos, Até então, a outra ta-
refa do aparelho mental, a tarefa de dominar ou
sujeitar as excitações, teria precedência, não, na ver-
dade, em oposição ao princípio de prazer, mas inde-
pendentemente dele e, até certo ponto, desprezando-o,
(FREUD, 1969[ 1920], p. 52)