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cio modelo da terrnodinârnica, sustenta que

os esforços des-
se aparelho dirigem-se para manter-se, tanto
sujeito com o mundo, através de seu semelhante. A partir

construção de um saber inédito em que se dá a realização-da Na escuta das histéricas, e marcado por essas filiações,
verdade do sujeito, Freud se depara com a necessidade de "estruturar uma psi-
A luz da contribuição lacaniana, examinaremos em Freud cologia que seja uma ciência natural: isto é, representar os
a via CJue nos conduz à divisão entre o saber, articulado pela processos psíquicos como estados quantitativamente determi-
via das representações, nomeadas por Lacan C0l110 cadeia ele nados de partículas materiais especificáveis, dando assim a
siguificantes, e a dimensão da verdade, que se define pela re- esses processos um caráter concreto e inequívoco," (F"EUD,
lação do sujeito com a causa de seu desejo, 1 989[1 895J, p, 395)3
A rigor, ressalta Lace1I1, no Projeto .. , coloca-se a primeira
São vários os textos de Freud em que podemos acompa- contenda com o próprio pathos da realidade com o qual Freud
nhar a dimensão da verdade como aquilo que escapa à repre- lida em sua clínica, Tudo se assenta em termos ela relação do
sentação, fazendo obstáculo ao saber, e de sua contigüidade sujeito com o mundo exterior, ou seja, a ênfase cio Projeto
com o campo do desejo e da pulsão. está colocadajustamente no impacto cio meio sobre o organis-
mo e na relação cio organismo ao meio, Corno a realidade se
Comecemos pelo Projeto para uma psicologia cientifi- constitui para o homem') - é a pergunta fundamental mam ida
ca (1895), Impulsionado pela precária situação financeira e em toda a obra, sendo corrclativa ela questão de como o ho-
pelos seus mestres e conselheiros, Freud se vê forçado a aban- mem se constitui a parti!' da realidade,
clonar suas pesquisas em neurologia e a se dedicar à clínica, Na verdade, na perspectiva de muitos ele seus seguido-
sem contudo abrir mão, num primeiro momento, de suas fili- res, o Projeto", contém em germe toela a teoria que Freucl virá
ações, a saber, Meynert, Fechner e a escola de Helmholtz, a desenvolver, o que justifica que, embora não tendo sido es-
Brucke, Du-Bois Reymcnd. com cujas idéias vai montar o crito para ser publicado, servirá de guia para a questão aqm
esquema de um aparelho formalizado como aparelho neurô- ressal rada.
nico no Projeto", (1895), retomado como aparelho de me-
mória na "Carta 52" (1896), e como aparelho psíquico em A Freud elabora, ent~ um modelo ele aparelho que, para
interpretação dos sonhos (1900), se constituir, exige umr'temporalidacle que inclui a relação cio
2O LCrlTlO realitação, tradução do termo alemão Erfüllung, tem uma preci-
são que merece ser destacada, na medida em que é o termo empregado por ) Paul - Laurent Assoun afirma que Frcud se manteve fiel ao juramento
Freud para estabelecer a relação do desejo com as formações elo incons- fisi calista ilustrado pela prestigiosa trilogia Hclrnholtz-Brückc-Du Bois
CiCIllC, As chamadas [ormaçõcs do inconsciente são uma realização de Reyrnond, cujo programa pode ser reduzido ao reconheci mento ele que ,6
desejo, No dicionário Aurélio do Língua Portuguesa, encontramos as se- existem forças físico-químicas, e de que a única tarda cicnuüca é a ele
guintes acepções para o lermo: tornar real, efetivo, existente; pôr em práti- descobrir o modo específico ou a forma ele ação dessas forças J'ísico-quí-
ca, efetuar: fazer, construir, criar, acumular; perceber como realidade: curn- micas, "única matéria de saber", (Assou», 198/, p, 54), Ele ressalta ainda
prir-sc, efetivar-se; efetuar-se, verificar-se; ocorrer, acontecer. E, apenas que, embora intitulando seu primeiro texto propriamente psicanalítico como
no Brasi I, o lermo ganha a conotação de "alcançar seu objetivo ou ideal", "A Interpretação dos Sonhos" e lendo classificado a psicanálise C0l110 lima
o que dá margem a que se confunda realização com ,I'aI isfação. O que se arte interpretativa, Freucl não se ligou à hermenêuuca, porque a Deu/uni!
quer ressaltar é que tanto no que se refere ao clesejo quanto fi verdade, freudiana é "um procedi mente intelectual que explica de modo uuerprctati \10
trata-se de realização no sentido de "tornar ex istenie", "veri ficável", "per- ou interpreta Iornecendo a cansa ". e, por conseguinte, liga-se às Ciências
cebido como real idade", 46 Naturais e não às Ciências elo Espírito 47(op. cit. p.49l,
quanto possí-
vel, longe de estímulos e, para tal, sua estrutura acompanha
o plano de um aparelho reflexo, de "maneira que qualquer
excitação sensorial a chocar-se com ele poderia ser pronta- se encontra a criança, pela via do grito, que inicialmente não
mente clescarregaela ao longo ele uma via motora" (FREUD, contém apelo algum, é pura descarga de energia. Freud ressal-
1969[ 1895J, p. 602). ta que essa alteração interna, o grito, vai adquirir a imporran-
tíssima função secundária da comunicação e que o desamparo
Porém, o que se constata é que "as exigências da vida" inicial do ser humano (HiLfLosigkeit) "é a fonte primordial ele
tNot des Lebens) interferem com essa função simples e que é a todos os motivos morais" (FREUD, 1969[1895], p. 422).
essa exigência que o aparelho deve seu impulso a novos de-
senvolvimentos, desenvolvimentos estes que incluem o que O fato de a pessoa prestativa, o semelhante, desempe-
e
v irá a se constituir como conheci mente 'saber.' Essa exigên- nhar a ação específica no mundo externo para o desamparado
cia interna, que confronta o aparelho primeiramente sob a tem como conseqüência a inserção do infante na estrutura de
forma das principais necessidades somáticas, segue uma pri- linguagem, uma vez que essa ação é desenvolvida segundo
meira via que conduz a uma alteração interna, ou seja, a uma uma interpretação que o semelhante dá ao grito.
expressão ele emoção - o grito -, que, em si, não pode produ- Este grito, que provoca no adulto uma resposta, é o que
zi!' alívio, uma vez que não elimina o estímulo enclógeno a dará origem à comunicação, uma vez que supõe uma estrutura
ser recebido. Aqui se anuncia a primeira distinção a ser feita simbólica preexistente, na qual ele será inserido, quando toma-
entre a estirnulação sensorial externa, contingente, momen- do como uma demanda. A presença do semelhante, introduz as
tânea, e o que virá a ser formulado como a pulsão, cuja ca- necessidades "naturais" no circuito simbólico; a apresentação
racterística é de ser uma estimulação endógena e constante, do objeto de satisfação se acompanha de uma significação que
uma Konstant Kraft. o outro lhe confere, a partir de um universo de linguagem.
Freud se refere à totalidade desse processo como sendo
Essa esti mulação interna só pode ser abolida por meio de uma vivência de satisfação iBefriedigungserlebnis) "que tem
u ma i ntervenção que suspenda temporariamente a descarga de as conseqüências mais decisivas para o desenvolvimento das
energia no interior do corpo, uma intervenção que requer uma funções individuais" (Idem). Ele introduz nesse momento a
alteração do mundo externo (fornecimento de víveres, aproxi- noção de desejo, com uma radical idade inédita, que o distin-
mação elo objeto sexual) que, como ação específica, só pode gue de tudo o que é da ordem de uma necessidade biológica. O
ser consegu ida através de determinadas vias motoras. Como o desejo surge ligado a uma origem mítica, na qual um objeto
ser humano é incapaz de desenvolver essa ação específica, em trazido pela ação do semelhante apazigua uma tensão ele ne-
função de seu precário desenvolvimento neurológico ao nascer, cessidade, a urgência da vida, implicando uma vivência de
essa é efetuada por meio de assistência alheia, quando uma satisfação. Essa vivência súbita, essa impressão forte com o
pessoa experiente é atraída para o estado de urgência em que primeiro objeto, deixa um primeiro traço de memória que será
investido, re-evocado para "encenar a situação de satisfação".
48 Nessa passagem, são utilizados dois termos: Erfahrung e Er-
lebnis - aquilo que se costuma chamar ele experiência de S{/-
tisfação é, na realidade, a experiência de uma vivência de
49
lada 8S pressas, que produz efeitos imediatos." (BENJAMIN, 1989).

50
satisfação". É porque houve uma vi vência de satisfação que, pela o
sed irnentação de seus traços, fixa-se uma experiência. O desejo b
seria, então, essa moção (Regung) que visa a reinvestir os tra- j
ços deixados pelo objeto. A conseqüente alucinação da pre- e
sença do objeto, que daí decorre, a evocação da cena de t
satisfação, seria sua realização (PORTUGAL, 2000). o
s
A partir da concepção dessa experiência com o seme-
d
lhante surge o sujeito da psicanálise, sujeito do desejo, que se
a
marca por uma perda. Desse modo, Freud define o desejo em
n
termos estritamente psicanalíticos, na medida em que afirma
e
que o objeto a que ele visa não se encontra lá, mas somente os
c
traços de memória da experiência com a "Coisa", das Ding,
e
Tudo passa então a girar em torno da possibilidadede reen-
s
contrar no mundo real objetos que possam trazer satisfação.
s
Porém, esse objeto primeiro e mítico não pode jamais ser en-
i
contrado; é um objeto que, por sua natureza, se perde e que
d
deixa em seu rastro apenas suas coordenadas de prazer, crité-
a
rio segundo o qual o aparelho vai utilizar para se relacionar
d
com a realidade.
e
Quando surge pela segunda vez a tensão de necessidade, o ,
sujeito tenta re-encontrar o primeiro objeto através de sua ima- d
gem mnêrnica, suas coordenadas de prazer, alucinando sua pre- e
sença. Da experiência da vivência de satisfação resta apenas um s
traço, que, impossível de ser incluído na rernernoração do su- n
Jeito, e frustrante com relação à satisfação da tensão, vai exi- a
gir, logicamente, uma série de substituições possíveis. Os t
u
4 Aqui cabe recorrer à explicação de uma nota encontrada no livro de Walter
r
Benjarnim, onde se afirma que o termo Erfalirung é comumenteentendido
no alemão como experiência, "conhecimento obtido através de urna expe- a
riência que se acumula, que se prolonga, que se desdobra, como numa li
viagem; o sujeito integrado numa comunidade dispõe ele critérios que lhe
z
permitem ir sedimentanelo as coisas com o tempo". O termo Erlebnis se
refere "à experiência vivida, evento assistido pela consciência. É a vivência
a
do indivíduo privado, isolado, é a impressão forte, que precisa ser assirni- d
51
a pela ação da lingua-
gem introduzida pelo semelhante, serão utilizados como subs-
titutos para o objeto do desejo. Os traços de memória deixados
por estes objetos se constituirão numa série de representações
substitutivas que serão organizadas segundo a lógica do Prin-
cípio de Prazer.

A lembrança da representação ligada ao desejo não deixa


de ser catexizada e os objetos percebidos e buscados como subs-
titutos do objeto perdido serão sempre reconhecidos ou não. Se
suas características coincidirem com a imagem do objeto, terá
início um processo de descarga motora; caso contrário, surgirá
o interesse e a atividade do pensamento, como modo de reen-
contrar o objeto, ainda que seja por meio de uma ação psíquica.
Para Freud, essa experiência originária (e mítica), determina a
constituição do sujeito e o leva a buscar o reencontro do que foi
perdido, segundo uma lógica da identidade (identidade ele per-
cepção e/ou identidade de pensamento).

Aqui encontramos o primeiro esboço do que queremos


destacar. Nesse momento originário e mítico, já se introduz o
que podemos ler como sendo a divisão constitutiva do sujeito.
Por um lado, algo do corpo, da vida que urge, exigindo uma
satisfação e, por outro, a impossibilidade desta satisfação ple-
na e completa, na medida em que aos objetos do mundo faltará
sempre um atributo que devolva essa satisfação total.

A representação supõe a perda desse objeto primitivo,


das Ding, definido por Freud exatamente como resíduo, corno
aquilo que foi excluído do juízo. O que o juizo e o pensamento
conseguem encontrar são sempre atributos, substitutos da coi-
sa, jamais a coisa em si.

É exatamente a esta impossibilidade de satisfação, im-


possibilidade de reencontro com o objeto, que se deve o pen-
samento e o juízo. A não identidade entre o que é percebido e
o que é buscado promove uma ramificação cada vez maior da
~l
.'i2

rede de traços, ampliando o acervo do pensamento. Os substi-


tutos encontrados para o objeto de satisfação configuram uma
rede de representações, as VorsteLlungen, ou seja, uma rede de
inscrições de traços de memória daquilo que vai sendo perce-
bido (o que Lacan associa à cadeia de significantes, que se
ordena conforme as leis da linguagem e do princípio do pra-
zer). Os traços que se tornam incompatíveis com o sistema
consciente serão recalcados e se transformarão no material com
o qual se constrói o saber inconsciente.

O conhecimento e o saber são tributários da perda do


objeto e se marcam como operações agenciadas pelo desejo,
permitindo-nos a afirmação de que a própria realidade se cons-
titui para o sujeito, em função da buscado objeto de desejo,
como uma realidade desiderativa'.

A atividade desejante do sujeito faz com que todos os


mecanismos psíquicos sejam rodeios, desvios, tentativas de
reencontrar o objeto que, na origem, era o único capaz de apa-
z iguaro estado de desamparo, a Hilflosigkeit, Diante da im-
possibilidade que aí se apresenta, todas as representações,
associações, fantasmas e devaneios seriam tentativas de dar
corpo a das Ding, Assim, das Ding - objeto a, na álgebra laca-
n iana - seria o sentido originário, a verdade, cuja perda irre-
mediável comandaria, então no inconsciente, os jogos
significantes, produzindo fantasmas e sintomas que, seriam
tentativas de dar conta, pela via do saber, desse ponto da ver-
dade. Assim, podemos afirmar comrn B. Baas que

; Encontramos no artigo de Bernard Baas uma leitura dessa concepção


lacaniana, associada à teoria kantiana. O autor situa das Ding como um
i ncondicioriado absoluto, que i rnplica a faculdade de desejar. Esta faculda-
ele de desejar, (/ priori, se aplica aos objetos sensíveis que serão tomaclos
como objetos do desejo. É em relação a esses objetos, então, que a cadeia
substitui iva ou cadeia meronímica do desejo se mobiliza. O que se ressalta
é que, sob a faculdade de desejar, há a Coisa, isto é, a pura falta, ou dito em
termos kantianos, o incondicionaclo absoluto (BAAS, 1991 [1987]).
relação ao campo do saber. O que dele se faz saber é uma

53
se há desejo, se o desejo emprega toelos os desvios do
processo substitutivo de metonímia sign ificantc, não é
em virtude da perda de uma origem qualquer, mas jus-
tamente porque a perda é ela mesma a origem. (BAAS,
1928, p. 147)

o modo que Freud escolhe para dar a conhecer essas


idéias contidas no Projeto ... é o capítulo VII deA interpreto-
ção dos sonhos (1900), agora redigido numa I i nguagem mar-
cadamente psicanalítica, à medida que, no lugar de neurônios,
Freud vai se utilizar da idéia de sistemas, cada qual com suas
próprias leis.

A "experiência de satisfação" é retomada para sustentar.


mais uma vez, a noção de desejo radicalmente ligada perda
à

do primeiro objeto e sua conseqüente indestrutibilidade. Freud


constata que o aparelho se apóia nos restos diurnos (Tagres-
ten.), traços de memória do que é indiferente e contingente,
para representar o desejo corno realizado. A forma de asso-
ciação desses traços obedece às leis do processo primário, a
saber, a condição de figurabilidade (os pensamentos oníricos
são traduzidos para sua materialidade perceptiva, via regres-
são), a condensação e o deslocamento. Ao associar a conden-
sação à operação da metáfora e o deslocamento à operação da
rnetonímia, podemos afirmar com Lacan que o que se decanta
no trabalho dos sonhos, é que este se estrutura como uma lin-
guagem. Se o sonho é uma realização do desejo, ele o é na
medida em que, por meio de uma série de substitutos _. os
objetos das demandas insatisfeitas, articulados em sua dimen-
são significante -, forma-se urna rede de traços que contorna o
ponto de falta do desejo. O desejo se realiza, então, num dcs-
lizamento metonímico, numa cadeia marcada pela falta; ele
jamais será satisfeito porque o objeto a que ele visa não pode
ser encontrado. A montagem dessa cadeia, dessa rede si mból i-
ca, faz com que o desejo tenha uma extraterritorialidade com
S4

montagem gramatical que se aproveita de restos, fragmentos p


contingentes, representações, com as quais se monta uma cena, o
a ser tomada como uma escritura - rébus é a expressão freu- nt
diana - em que se pode ler o modo como o sujeito pode amar- o
rar o ponto de furo da estrutura. c
e
Indicando o modo como deve ser lida a arquitetura signi- g
ficante que se constrói em torno do ponto de falta do desejo, o
Freud esbarra num ponto de resistência da estrutura, ressal- d
tando, peja primeira vez, em termos clínicos, a impossibilida- o
de de recuperar todos os elementos que pudessem clarear o d
sentido do sonho. Há uma passagem, mesmo no sonho "mais es
completamente interpretado", que tem de ser deixada obscu- ej
ra, já que nesse ponto existe uma meada de pensamentos oní- o.
A
ricos que não pode ser desemaranhada: """,
s
Esse é o ponto central do sonho, o ponto de onde ele re
mergulha para o desconhecido. Os pensamentos oníri- pr
cos a que somos levados pela interpretação não po- es
dem, pela natureza das coisas, possuir qualquer término e
definido; acham-se obrigados a ramificar-se em todas nt
as direções dentro da intrincada rede de nosso mundo a
do pensamento. É num certo lugar em que essa malha ç
é particularmente fechada que o desejo onírico se de- õ
senvolve, como um cogumelo de seu micélio. (FREUD, es
1900, p. 560)
c
A expressão "umbigo do sonho ", utilizada em 1900, in- o
dica o limite na decifração da metáfora e da metonímia cons- m
truídas pelo trabalho do sonho e impõe o reconhecimento de as
que o sujeito, que se constitui na linguagem, se marca por um q
impossível de dizer. O que não está inscrito, o que "não cessa u
de não se escrever", segundo Lacan, encontra, na arquitetura ai
simbólica, uma borda, uma moldura. O saber que daí advém s
com a i nterpretação é o saber inconsciente, que não se confun- se
de nem com o conhecimento, tarnpouco com a verdade, por- p
que se refere às representações que envelopam, que contornam o o
de ~
realizar o desejo constituem-se na material idade cio inconsci-
.
ente e se estruturam, assim, enquanto saber.
--'
Acompanhando o percurso clínico de Freud, constatamos
como estas idéias tão radicais acerca da estrutura de falta cio
desejo contidas no Projeto ... e em A interpretação dos sonhos
parecem ficar em reserva, na medida em que Freud insiste na
possibilidade de resgatar, pela via da rernernoração, toda a cau-
salidade do sintoma. Se as histéricas sofrem de reminiscência
é porque a lembrança do acontecimento está recalcada e Freud
acredita poder resgatar tanto o traço de memória da cena trau-
mática quanto o afeto ligado a ela.

Nos primeiros anos de sua clínica, Freud parece esque-


cer-se dessa dimensão indestrutível do desejo, fiando-se in-
teiramente na realidade factual como determinante na
patologia da histeria. Nas cartas a Fliess, no período que vai
de maio a agosto de 1897, Freud se mostra às voltas com a
causalidade do sintoma neurótico, fazendo remontar às ce-
nas infantis, às cenas de sedução sofridas pela criança, a cau-
sa da neurose. Dessas cenas infantis a histérica não queria
nada saber, afirma Freud. A clínica girava em torno "da des-
coberta destas cenas", ou seja, tratava-se de resgatar a lem-
brança ligada a essas cenas que, por serem desprazerosas, o
sujeito se recusava a lembrar. Contudo, embora muito con-
victo da realidade das cenas infantis e da veracidade das lem-
branças relacionadas a elas, encontramos um larnpejo de
dúvida quanto a esta veracidade, expresso por Freud em "A
Etiologia da Histeria":

Não ocorrerá que o médico imponha tais cenas a seus


dóceis pacientes, alegando que elas são lembranças,
ou, ainda, que os pacientes digam ao médico coisas
que imaginaram ou que inventaram deliberadamente,
e coisas que ele aceite como verdadeiras? (FREUD,
1969[ 1896], p. 231)

SS
56

Freud vai rebater, logo em seguida, a dúvida quanto à


autenticidade das cenas alegando que estas, quando reprodu-
zidas, acompanham-se de relutância, sofrimento e indigna-
ção, o que não justifica que tivessem sido inventadas. "Por
que garantiriam tão enfaticamente sua descrença em algo que
eles próprios inventaram?" Havia ainda a uniformidade que
elas exibiam em certos detalhes, em vários casos, e não se
poderia supor que essa uniformidade se devesse a um enten-
dimento secreto entre os vários pacientes. Além disso, várias
vezes, eles mencionavam os fatos, sem lhes conferir qual-
quer ênfase, como "detalhes que só podem ser compreen-
didos e apreciados como sutis contornos da realidade, por
alguém que tenha alguma experiência navida". Freud con-
clui: "Não importa que muitas pessoas vivenciemcenas se-
xuais infantis sem se tornarem histéricas, desde que todas as
que se tornam histéricas tenham vivenciado cenas dessa or-
dem" (FREUD, 1969[1896], p. 237).

Sob essa perspectiva, a clínica girava em torno da autori-


dade do analista, que competia com os motivos da doença. Era
o amor ao anal ista, tomado como mestre, que fazia com que as
histéricas entregassem a Freud a confissão de um segredo que
elas (não) detinham. Segredo fantasmático, é o que Freud vai
descobrir mais tarde.

Nos moldes socráticos, essa cena em que o Mestre se


coloca no lugar de agente, interrogando o saber que ele acre-
dita que o outro detém, acaba por produzir no lugar da verdade
um objeto, que escamoteia a estrutura de falta do desejo e
mantém recalcada a divisão do sujeito.
Enfim, é a dimensão do fantasma que fica escondida por
trás daquilo que Freud escuta como confissão de uma cena. O
que a histérica confessa é o modo como ela consegue encobrir
aquilo de que sofre, um vazio de significação, que só a poste-
riori Freud vai poder teorizar.
57

Encontramos na correspondência a Fliess o deslocamen-


to da ênfase na realidade factual dos eventos traumáticos para
a prevalência da realidade psíquica. Correlativo ao abandono
da hipnose, vai-se delineando a importância da fantasia na
determinação dos sintomas e na própria constituição do sujei-
to. Entre a lembrança da cena traumática e a produção do sin-
toma, encontram-se as fantasias, feitas de traços do que foi
ouvido, visto, experimentado, mas não compreendido. São tra-
ços, restos percepti vos, fragmentos de memória, que sofrem
rearranjos, sem que se leve em conta a temporal idade da cons-
ciência ou a fidelidade à realidade, marcando o sujeito numa
outra lógica, a lógica da fantasia; uma outra realidade, a reali-
dade psíquica.

O fragmento que se destaca nessa correspondência é o


que está contido na carta de 21 de setembro de 1897 (carta
69), instante em que Freucl confessa não acreditar mais em sua
Neurótica. Baseando-se em sua teoria da neurose, depara-se
com "contínuos desapontamentos" na tentativa de fazer uma
análise chegar a "uma conclusão real". Num tempo ele com-
preender, elabora a idéia de que se toda histérica havia passa-
do por uma cena de sedução, então em todos os casos os pais
tinham que ser apontados como pervertidos. "A perversão te-
ria de ser incomensuravelmente mais freqüente do que a histe-
ria." o que não era o caso. Freud, então, conclui que não se
pode fiar apenas na realidade externa e na percepção. Ele che-
ga assim, à "descoberta comprovada de que, no inconsciente,
não há a indicação da realidade, de modo que não se consegue
distinguir entre a verdade e a imaginação que está sendo cate-
xizada com afeto" (FREUD, 1976[1897], p. 351).
O que se destaca em tudo isso é o caminho pelo qual vai
se delineando para Freud a noção de realidade psíquica, a
realidade fantasmática. Esta realidade fantasmática é a res-
posta do sujeito frente à inundação de estímulos à qual é sub-
metido ao nascer, no momento lógico que Freud denominou
o acesso ao saber e ao gozo sexual, mas que
ele também não
dispõe, já que isso não é da ordem cio saber.
de desamparo primordial, resposta que se monta com os frag- No lugar dessa
mentos, restos perceptivos, com os quais se tece, uma tela,
uma trama significante por onde circula o desejo do sujeito,
58
como já explicitado acima.

Estes efeitos de distorção produzidos pela realidade fan-


tasmática são retomados quando Freud se dedica à relação da
criança com o saber. Partindo da idéia de que não há uma ne-
cessidade inata que levaria espontaneamente a criança ao sa-
ber, Freud postula, em 1907, que é a urgência da vida que
produz o impulso ao saber (Wissendrang). A criança, quando
se vê confrontada à questão-enigma da origem dos bebês, da
sexualidade e da procriação, é levada a empreender um traba-
lho de investigação, de pesquisa, criando "teoüas'\àmaneira
de um teórico, teorias que ecoam num grande número de mi-
tos e lendas.

Essas teorias sexuais, que Freud compara com as solu-


ções qualificadas de geniais que os adultos tentam dar aos pro-
blemas do mundo que ultrapassam o entendimento humano,
denotam uma estrutura nodal entre o desejo e o saber.

A curiosidade das crianças pequenas se manifesta no


prazer incansável que sentem em fazer perguntas; isso
deixa qualquer adulto perplexo até vir a compreender
que todas estas perguntas não passam de meros cir-
cunlóquios que nunca cessam, pois a criança os está
usando em substituição àquela única pergunta quenun-
ca faz: (FREUD, 1969[1910], p. 72; grifo do autor)

o itálico no texto original indica a impossibilidade de se


fazer a pergunta relativa ao desejo e como a curiosidade infan-
til é devedora deste furo no saber.

As respostas do adulto não fazem senão rodear e escavar o


lugar de uma falta. A falta da resposta que ofereceria ao sujeito
mento e o saber se marcam pela dimensão pulsional.

59
falta de saber no outro, as teorias infantis são construídas. Elas
fazem, assim, suplência ao saber que o outro não tem, e desti-
nam-se a conquistar o saber proibido de que os adultos supos-
tamente podem desfrutar.

Essa falta, que marca o lugar do saber que o Outro não


dispõe, a criança faz dela o lugar de um saber proibi-
do, de um saber que os adultos guardam para si. Esse
saber proibido, de que gozariam os adultos, suscita
como tal um desejo de saber sexual, um desejo sexual
de saber que precipita a criança em investigações pes-
soais onde se elaboram as teorias sexuais infantis.
(LEMERE, 1997, p. 14- 15)

o que as investigações sexuais "efetuadas 110 maior se-


gredo" produzem é um saber relativo à pulsão. Freud aponta
para o fato de que "o que existe nelas de correto e de pertinen-
te se explica pelo fato de que têm sua origem nos componen-
tes da pulsão sexual que já estão atuando no organismo da
criança." É por isso que Freud afirma que cada uma dessas
teorias contém "um fragmento de pura verdade", e é porque se
constituem com a gramática das pulsões parciais que "encon-
tramos as mesmas concepções errôneas em todas as crianças"
(FREUD, 1969[1908], p. 218).

Diante da impossibilidade de receber do outro uma in-


formação que a desembarace do incômodo causado pelo acos-
so da pulsão, diante da impossibilidade de saber tudo sobre
um modo de gozo que a satisfaça, a criança passa a construir
suas teorias. São os desmentidos da castração que, censura-
dos, passam a constituir o saber inconsciente, particular ao
sujeito, e que determinam as vicissitudes em relação à aquisi-
ção do conhecimento teórico, ou o que Freud nomeia, no texto
sobre Leonardo da Vinci, de "o impulso à pesquisa" (Wissen-
drang). Em resumo, a tese freudiana é de que a curiosidade
intelectual é derivada da curiosidade sexual e que o pensa-
60

Escutando seus pacientes, Freud constata a existência des-


c
se saber não-sabido. Como o sujei to fala sem saber o que diz, lí
Freud aposta na possibilidade de se resgatar esse saber nas n
associações, nos relatos ele sonhos, nos atos falhos, nos esque- i
cimentos e nos sintomas apresentados pelos pacientes, o que é c
o
lema de toda a primeira parte de sua investigação. Em "Cinco
s,
lições de psicanálise", ele pronuncia: a
e
Esse material associativo que o doente rejeita como
v
insignificante constitui para o psicanalista o minério i
de onde, com simples método interpretativo, há de d
extrair o metal precioso. (FREUD, 1976[1909], p. 32) ê
n
Freud se baseou, nos fenômenos da vida cotidiana - atos c
falhos, esquecimentos, lapsos, chistes e soiülos-fenômenos i
que colocam em evidência a perturbação do discurso cons- a
d
ciente por um outro discurso, fenômenos que evidenciam a
e
existência cios pensamentos inconscientes. Ele se refere à uti- q
lização peculiar que o sujeito tem das propriedades da retó- u
rica, fiando-se inteiramente no saber textual. O desejo se e
faz representar através cios mecanismos de transposição, de t
u
disfarces que a metáfora e a metonímia permitem, mecanis-
d
mos de condensação e deslocamento que constituem o pro- o
cesso primário. n
ã
Embora radicalmente diferente da clínica da hipnose, este o
momento da clínica psicanalítica mantém ainda a crença na p
possibilidade de tudo saber. Freud esperava que pela rememo- o
ração, ou seja, via simbólico, toda a verdade pudesse ser reve- d
e
lada e que todo o inconsciente pudesse se tornar consciente.
s
Se tudo estava inscrito no aparelho, tudo se poderia dizer, e a e
análise chegaria a seu termo. r
r
Dos artigos de ] 912, quando Freud está às voltas em e
organizar teoricamente os "artifícios" que compõem a cena c
analítica, um artigo se destaca - "Recordar, Repetir, Elabo- u
rar". Este é o primeiro artigo em que aparece, em termos p
e
rado ,tt
pela via da memória.

Freud explícita que o ideal da análise foi ganhando con-


tornos ao longo do tempo, advertindo aos "estudiosos" sobre
as "alterações aprofundadas que a técnica psicanalítica sofreu
desde o início", acompanhando logicamente o que a clínica
foi revelando sobre a constituição do sujeito. A princípio, na
fase da catarse de Breuer, tratava-se de reproduzir os proces-
sos psíquicos de cada situação pela via da lembrança e alcan-
çar a ab-reação com o auxílio da hipnose. Já comentamos a
crença de então na realidade do acontecimento traumático.

Em seguida, a ênfase foi dada na tarefa deixada ao ana-


lista de adivinhar, a partir das livres ocorrências do analisan-
do, o que ele falhava em lembrar e de comunicar-lhe este
conteúdo. A ao-reação foi, então, substituída pelo dispêndio
de trabalho que o analisando tinha de empreender para obri-
gar-se a superar a crítica contra as ocorrências, de acordo com
a regra fundamental da psicanálise.

Finalmente, Freud descreve a técnica "atual" em que o


analista não se adianta ao paciente, satisfazendo-se em estu-
dar qualquer coisa na superfície psíquica do analisando, utili-
zando nisso essencialmente a arte da interpretação, a fim de
reconhecer as resistências que ali aparecem para torná-Ias cons-
cientes ao paciente. A meta da análise se resume no preenchi-
mento das falhas da lembrança, o que dinamicamente equivale
à superação das resistências.

Freud se depara com a questão do esquecimento, de um


bloqueio na rememoração das cenas e das vivências. Por um
lado, recolhe das análises o relato dos pacientes: "em verda-
de, sempre o soube, apenas nunca pensei nisso", atribuindo aí
uma importância às lembranças encobridoras, que "represen-
tam os anos esquecidos da infância tão adequadamente quanto
o conteúdo manifesto de um sonho representa os pensamentos
oníricos". Sua aposta é ele que a totalidade do que é essencial

61
trutura de falta do desejo, são os textos
posteriores: "O recalque"
e "O inconsciente" de 1914 e o texto "Além
na infância foi retida nessas lembranças, tratando-se "simples- do princípio do
mente de saber como extraí-lo delas pela análise" (FREUD, prazer" de 1920.
1969[1912], p. 194).
62
Num outro grupo de processos, Freud ressalta a impor-
tância das fantasias, dos atos puramente internos, que devem,
em sua relação com o esquecer e o recordar, ser tratados sepa-
radamente. "Nestes processos", diz o autor, "acontece com ex-
traordinária freqüência ser 'recordado' algo que nunca poderia
ter sido 'esquecido', porque nunca foi, em ocasião alguma,
notado", inscrito em tempo algum (Idem, p. 195). O analisan-
te não se lembra nada do esquecido e do recalcado que age
nele. Esse material é reproduzido não como lembrança, mas
como ato; o sujeito o repete, naturalmente-sem saber o que
repete. Freud, afinal, afirma que a compulsão à repetição é
uma maneira de lembrar, e que, quanto maior a resistência,
tanto mais amplo será substituído o lembrar pelo agir (repe-
tir). O analisando repete ao invés de se lembrar.

Nesse artigo, Freud elabora, a noção de repetição (em


ato) articulada a esse ponto da estrutura que não é da ordem da
rernernoração. Porém, a noção ainda está articulada à ação da
resistência como alguma coisa a ser vencida, e portanto man-
tém-se, apesar das evidências da repetição que surge onde a
inscrição falha, a crença de que toelo o complexo patológico
poderá ser resgatado,

Embora o conceito de repetição esteja presente nesse mo-


mento da teoria, há ainda uma expectativa de que se possa,
venci das as resistências, ter acesso à verdade inconsciente,
como algo que, ainda que seja como uma fantasia, permanece
em reserva esperando para ser identificado.

Os textos de Freud que consideramos operar uma verda-


deira torção, sustentando a dimensão radical da pulsão e da es-
Edição Standard Brasileira das Obras Completas de S. Freud, à página
171, do volume XlV.

63
Freud eleva todas essas evidências que estamos desta-
cando ao nível de um conceito que definitivamente situa o su-
jeito em sua divisão constitutiva. Em 1914, ao definir o recalque
como uma operação que impede que uma representação seja
tomada pela consciência, conclui que esse mecanismo supõe
uma outra operação mais originária, fundante da divisão do
aparelho entre o sistema pré-consciente/consciente e o siste-
ma inconsciente, e se pergunta por tal mecanismo.

Ademais, a observação psicanalítica das neuroses de


transferência leva-nos a concluir que o recalque não é
um mecanismo defensivo que esteja presente desde o
início; que ele só pode surgir quando tiver ocorrido
uma cisão mercante entre a atividade mental conscien-
te e a inconsciente. (FREUD, 1969[ i 9 i 5], p. 170)"

Para responder pela-divisão cio aparelho, Freud concebe


a noção de Recalque Originário tUrverdtiingung) como o
mecanismo que fixa tfixieren] a pulsão em um representante,
por meio cio contra-investimento (Gegenhesetz.llng), ressaltan-
do que este representante da representação jamais terá acesso
à consciência,

Temos então base suficiente para supor que um rec al-


que originário, um primeiro grau de recalcamento,
que consiste em que ao representante psíquico da re-
presentação (Vorstellungsreprdsentanz) da pulsão,
será negada a posse no consciente. Com isso estabele-
ce-se uma fixação,' a partir de então o respectivo re-
presentante continua inalterado, e a pulsão ligada a ela,
(FREUD, 1915)1

, Vamos adotar o termo recalque para substitui o termo reprimir, utilizado


pela Standard Editou. como tradução para o termo alemão verdrangung, e
o termo pu/são, ao invés de instinto, para traduzir o lermo Trieb.

7 Livre tradução de Ana Maria Portugal, para o trecho que corrcsponde, na


re ao encontro do sujeito com a linguagem, na
medida em que
esse encontro é sempre faltoso.
Nesse momento, Freud define, sem nomear, a Ligação
(Bindung) como a operação mais primitiva do aparelho, con- 64
dição para que o aparelho possa ser assim nomeado, porque
deixa de ser apenas um condutor de energia e se institui como
um sistema ele representações que, desnaturalizando o instinto
e inscrevendo a pulsão no campo da linguagem, responde pela
constituição do sujeito e por sua divisão.

O que se destaca no Recalque Originário é o corte consti-


tuti vo da di visão do sujeito. Este é um mecanismo que fixa a
pulsão a um primeiro representante, que, insuficiente para fazer
o contorno simbólico da pulsão, lança o sujeito na cadeia das
representações. É porque o mecanismo do recalque originário é
falho, fixando a pulsão, sem conseguir representar .o sujeito,
que toda a cadeia é convocada. A própria cadeiade representa-
ções implica a permanência de um lugar vazio, impossível de
ser representado, já que essa cadeia comporta um limite.

O mecanismo de contra-investimento (Gegenbesetzung)


empregado por Freucl para descrever o Recalque Originário me-
rece ser destacado, por indicar o movimento de contenção da
energi a em seu caminho desgovernado para a descarga. No Pro-
jeto ... , o termo se associa à expressão investimento colateral,
indicando o caminho da pulsão encontrando barreiras de con-
lato em várias direções e sendo forçado a ir se ligando à rede de
traços mnêrnicos, transformando-se de energia livre em energia
ligada. O termo Gegenbesetzung faz referência a um investi-
mento que fixa a energia aos representantes, na medida em que
estes funcionam como um "contrarnuro", um anteparo, algo que
contém, fazendo a amarração da pulsão ao campo da lingua-
gem. É do muro da linguagem que se trata, portanto.

Em função do limite da cadeia de representações ou de


significantes, a noção de trauma é referida ao impacto da pul-
são sobre o psíquico; ou como Lacan o situa, o trauma se refe-
psíquico para representar adequadamente a pulsão, ou seja, a

65
Quando o aparelho fixa a energia a uma representação, a
divisão se instala. O campo em que o sujeito se constitui, ou o
conjunto dos elementos e das representações com os quais se
constitui é falho; falta um elemento nessa cadeia. Contudo, é
com estes elementos presentes que se elabora o saber incons-
ciente, que será apurado na escu ta das formações inconscien-
tes. Por outro lado, resta dessa mesma operação de linguagem
um campo de pura dispersão de energia, campo que Lacan
nomeou de Real.

Lacan reconhece no Recalque Originário a ação da cas-


tração. Ela é a lei, a interdição imposta pela linguagem, que
produz a mediação do sujeito ao campo do Outro. O Recai-
que Originário introduz o sujeito na linguagem, único modo
de sua constituição, mas ao preço de uma perda, de uma par-
te de si mesmo, o sujeito está irremediavelmente apartado.
Com esses elementos de linguagem, o sujeito cifra o indizí-
vel como saber, mas na realidade esse saber será sempre mar-
cado por uma falta.

O sujeito se constitui 110 campo do Outro, diz Lacan. Ele


se constitui na medida mesma de sua alienação aos significan-
tes que lhe chegam, o marcam e o consti tuern. Sua verdade é a
verdade da castração, imposta pelo Recalque Originário; sua
verdade é que ele se constitui a partir de um ponto que, por
estrutura, resiste ao saber. Assim, podemos tomar o originário
como "esse nó do impossível que escreve a falha do saber"
(VIDAL, s.d., p. 142).

Nos textos de 1914, Freud descreve as leis que regem o


inconsciente sempre pelo que ele ignora - ele ignora o tempo,
a dúvida, a contradição, a realidade, indicando uma outra lógi-
ca, a do saber inconsciente. Entretanto, com todo o esforço de
Freud, o que vai se delineando é que o conceito do inconscien-
te e de suas leis não recobre tudo o que se refere à Pu lsão O
que acompanhamos na elaboração freudiana é a inaptidão do
dá a conhecer por seu caráter de uma
compulsão à repetição.

disjunção que permanece entre a pulsão e seus derivados re-


66
presentativos. Isso se evidencia, por exemplo, na discussão
sobre a dupla inscrição, que atravessa o texto "O inconscien-
te" e que vai desembocar na distinção entre as representações-
coisa, organizadas com a estrutura da linguagem - metáfora e
metonímia - no Inconsciente, e as representações-palavra, em
que se verifica a linguagem como função, no sistema Cons-
ciente. O que acaba se demonstrando é que nenhum modo de
representação é suficiente para recobrir o real que está implí-
cito no conceito da pulsão.

A pulsão, em sua exigência incessante, promove o traba-


lho significante do inconsciente e, ao mesmo tempo, aponta
para o limite do que aí se constitui corno.saberÉ esse limite
que vem franquear a noção de pulsão de morte, um conceito
que, obtido da cornpulsão à repetição, abrange o conjunto dos
fatores que fazem obstáculo aos remanejamentos inconscien-
tes da metáfora e da metonímia, regidos pelo Princípio do Pra-
zer. O conceito de pulsão de morte é indicativo de uma zona
silenciosa que faz limite às possibilidades infinitas da reme-
moração e, por conseguinte, aponta para um limite na dimen-
são clínica da interpretação, solicitando uma outra operação, a
"construção" em análise.

Em 1920, Freud coloca em suspensão tudo o que elabo-


rou, até então, em termos da dominância do Princípio do Pra-
zer, sustentando a divisão entre aquilo que se constitui como
saber e a zona silenciosa da pulsão.

Levando às últimas conseqüências a escuta do que co-


loca em suspensão esta dorninância, Freud elabora o "Além
do princípio do prazer". A preposição jenseits pode ser tra-
duzida como "no outro lado, na outra margem, além de, para
lá de, indicando algo fora do domínio, e necessário para a
demarcação" (YIDAL, s. d. p, 22), Ou seja, há na estrutura do
sujeito algo que insiste para além da representação e que só se
67

O que Freud demonstra ao lançar mão dos fenômenos da trans-


ferência, dos sonhos nas neuroses traumáticas e das brincadei-
ras infantis (o famoso fort-dai, é que o aparelho, diante da
falta de uma inscrição, repete em ato a tentati va de inscrever
aquilo que não se inscreve, o real da pulsão. Aqui se ressalta
com maior radicalidade o que começou a se esboçar no texto
"Recordar repetir, elaborar", a dimensão da resistência como
ponto limite da estrutura de linguagem. A ausência da recor-
dação não se deve a um ato de vontade, mas a uma impossibi-
lidade: nesse ponto da estrutura, não há traço a ser recuperado
pela via da memória.

Logo no primeiro capítulo desse texto de 1920, Freud faz


vacilar a crença que sustentou sua obra desde o início:

Deve-se, contudo, apontar que, estritamente falando,


é incorreto falar na dominância do princípio do prazer
sobre o curso dos processos psíquicos. Se tal dorni-
nância existisse, a imensa maioria ele nossos proces-
sos psíquicos teria de ser acompanhada pelo prazer ou
conduzir a ele, ao passo que a experiência geral con-
tradiz completamente uma conclusão desse tipo.
(FREUD, 1969[1920), p. 20)

O máximo que se pode dizer é que há uma forte tendência


no sentido do prazer, tendência que é contrariada por várias for-
ças ou circunstâncias. Muitos são os processos psíquicos que não
se acompanham de prazer. São estes processos que impõem limi-
tes ao Princípio de prazer que Freud reexamina em seu texto.

O trauma é redefinido como sendo qualquer excitação


provinda de fora do aparelho psíquico que seja suficientemen-
te poderosa para atravessar um escudo protetor. Neste caso, o
princípio de prazer é colocado fora de ação, não havendo como
impedir que o aparelho seja inundado com grandes quantida-
des de estímulo (sempre o problema ela quantidade de energia
e os recursos para lidar com ela.).
68

Surge então um outro problema, o problema de domi-


nar a excitação, as quantidades de estímulo que irrom-
perarn, e de vinculá-Ias no sentido psíquico a fim de
que delas se possa então desvencilhar. (FREUD, 1969
[1920], p. 45)

Ao analisar os sonhos das neuroses traumáticas, em que o


sonhador é levado de volta à cena traumática como uma tentati-
va de dominar retrospectivamente os estímulos, Freud afirma
que "esse, então, pareceria ser o lugar para, pela primeira vez,
admitir uma exceção à proposição de que os sonhos são realiza-
ções de desejos" (FREUD, 1969[1920], p. 48), Estes sonhos for-
necem a possibilidade de reconhecer uma função do aparelho
psíquico que, embora não contradizendo o princípiode prazer,
é independente dele e mais primitivo que ele, parecendo ser
mais primitivo que o intuito de obter prazer e evitar desprazer.
"Se existe um 'além do princípio do prazer', é coerente conce-
ber que houve também uma época anterior em que o intuito dos
sonhos foi a realização de desejos" (FREUD, 1969[1920], p, 49),

Diante dessa constatação, Freud retoma a teoria da pul-


são, definida nesse momento como fonte de excitação interna,
"representante de todas as forças que se originam no interior
do corpo e são transmitidas ao aparelho mental, desde logo o
elemento mais importante e obscuro da pesquisa psicológica"
(FREUD, 1960[1920], p. 51), capaz de ocasionar distúrbios com-
paráveis às neuroses traumáticas, Diante da força da pulsão,
Freud reconhece, mais uma vez, a necessidade lógica de um
princípio primordial, que se impõe ao sujeito, em termos de
estrutura, o Princípio de Ligação,

Se assim é, seria tarefa dos extratos mais elevados do


aparelho mental sujeitar a excitação pulsional que
atinge o processo primário, Um fracasso em efetuar
essa sujeição provocaria um distúrbio análogo a uma
neurose traumática, e somente após haver sido efetu-
ada é que seria possível à dominância do princípio
em que algo da espécie poderia ler acontecido, ou, um

69
do prazer (e de sua modificação, o princípio da reali-
dade) avançar sem obstáculos, Até então, a outra ta-
refa do aparelho mental, a tarefa de dominar ou
sujeitar as excitações, teria precedência, não, na ver-
dade, em oposição ao princípio de prazer, mas inde-
pendentemente dele e, até certo ponto, desprezando-o,
(FREUD, 1969[ 1920], p. 52)

o princípio de prazer só se estabelece após a incidência


do princípio de ligação; o que ele governa é o campo das re-
presentações, ou, no dizer de Lacan, o nível de gravitação das
vorsteliungen (LACAN, 1988[ 1959]),

Freud conclui, então, que a pulsão é uma moção que ten-


de a restaurar um estado anterior de coisas, moção que o ser
vivo foi obrigado a abandonar em função de forças perturba-
doras externas, Se associarmos as forças perturbadoras à inci-
dência da linguagem, necessária à manutenção da vida,
podemos concluir que o que resta dessa ligação ou sujeição ela
qual fala Freud é a pulsão de morte, que retoma em ato na
repetição (Wiederholung) e escapa à rernernoração (Wiederker)
e, portanto, ao domínio do Princípio do Prazer.

Em termos clínicos, essa elaboração de Freud se conclui


no artigo "Construções em análise", de 1937, no qual Freud
compara a situação analítica à escavação de um arqueólogo,
na medida em que para ambos se coloca o direito indiscutível
de reconstruir, por meio de suplernentação e junção elos restos
que sobreviveram, a história,
Freud parte do pressuposto de que a construção deveria
levar a uma recordação que a confirmasse, verificando, no
entanto, que nem sempre isso é possível. Ele constata que suas
construções são confirmadas por recordações "ultraclaras", mas
que se referem a pormenores relati vos ao terna.

[os pacientes] recordam com anormal nitidez os ros-


tos das pessoas envolvidas na construção ou as salas

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