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SOBRE A NATUREZA DO CORPO – MERLEAU-PONTY EM

DIÁLOGO COM A TRADIÇÃO FILOSÓFICO-CIENTÍFICA-


Joaldo da Conceição Alves (Pes./Esp./Prof. da Rede Pública)

INTRODUÇÃO

A nossa pretensão é elucidar, por meio da obra A Natureza (2000), da qual


Merleau-Ponty inscreve o corpo como base do conhecimento do mundo. Em outras
palavras, esclarecer a leitura merleau-pontiana acerca da natureza do corpo - o corpo-
carne como ponte entre a cultura humana e a natureza. Consequentemente, mostra-se
também como o filósofo supera a dicotomia cartesiana, sujeito-objeto, pela
intersubjetividade, ou melhor, intercorporeidade em fecundo diálogo com as tradições
filosófico-científica-.
Por uma questão de método e pelo seu objeto de estudo, Merleau-Ponty não reduz
o corpo a um único aspecto. Entende que ele possui várias camadas, dimensões. Por isso
a necessidade da verticalidade do estudo em detrimento da perspectiva horizontal
advinda da fenomenologia e adotada em outras obras. Logo, abordar o corpo só é
possível através de uma arqueologia, em suas palavras, “arquitetônica”. O que isso quer
dizer? O estudo do entrelaçamento humanidade-animalidade, da inerência vital e
racional que nos liga ao mundo, natureza, aos outros e a nós mesmos (Merleau-Ponty,
2000, p.336). Esta arqueologia, o filósofo também usa este termo para se referir a
“arqueologia do corpo humano” (Merleau-Ponty, 2000, p.426), é necessária para sua
ontologia, pois ela vai escavar as camadas, sedimentos para chegar ao ser bruto, pré-
objetivo, pré-reflexivo. Alargando um pouco mais esta arqueologia, aproximando do
conceito foucaultiano, não é forçoso defender que o filósofo faz o itinerário discursivo
filosófico-científico em torno do conceito de natureza. Este percurso tem o objetivo de
mapear os pontos decisivos que foram tomados como verdadeiros na tradição da
filosofia e das ciências.
Introduzido o modo operante, o caminho e a problemática merleaupontyana aqui
em vista, parte-se agora para o livro A Natureza. Primeiro faço a explicitação do diálogo
com a tradição filosófica, depois com as ciências e por último a da natureza do corpo
humano, o corpo próprio, o corpo-carne, ser-selvagem.
A TRADIÇÃO FILOSÓFICA ACERCA DO CORPO
Um dos principais problemas filosóficos encontrados na tradição, e que continuou
presente na contemporaneidade, é a dicotomia alma-corpo. Os antigos, Platão e
Aristóteles, apesar de suas diferenças sobre o tema, conceberam o corpo como algo que
envolve a alma e a alma como a mais importante deste par. Platão chegou a dizer que o
corpo era a prisão da alma e Aristóteles que a alma era o piloto do corpo (CARDIM,
2009, pp. 24-26). A filosofia da Idade Média estará condicionada pelo pensamento
cristão e este, de acordo com suas premissas, vai professar a salvação da alma em
detrimento do corpo. Na modernidade, temos o mais influente nesse tema, René
Descartes (1596-1650). Pai da filosofia do sujeito ou filosofia da consciência (primado
do sujeito/consciência) e interlocutor privilegiado de Maurice Merleau-Ponty (1908-
1961). Como põe o professor Matheus Hidalgo 1: “Merleau-Ponty procurou
redimensionar o clássico problema da relação da alma com o corpo a partir daquilo que
era considerado incognoscível na VI meditação de Descartes [...] [sua intenção é]
superar, ou de dissolver, o dualismo substancialista [...] res cogitans e res extensa.”
(HIDALGO, 2010, p. 12). O espaço-tempo desta comunicação não nos permite
discorrer sobre todos os interlocutores da obra em questão. Privilegia-se então
Descartes, por razões já mencionadas acima.
A genealogia feita por Merleau-Ponty acerca do termo natureza, parte dos gregos,
onde era entendida como vegetal, passando pelos latinos que a compreendia como algo
que vive e nasce até chegar as concepções científicas clássicas e modernas da natureza.
O filósofo concebe que estes dois sentidos se assemelham, o grego e latino, portanto a
natureza é algo que possui vida, um interior, não é instituída pelo homem, se
autoproduz. Ela é um ser natural com vida, mas sem pensamento (MERLEAU-PONTY,
2000, p. 04). Até aí, não é forçoso afirmar: temos a concepção geral do senso comum
sobre a natureza. Mas não é só isso, temos aí uma divisão bastante fecunda: “a oposição
natural e acidental”. Não custa lembrar: é em torno desta dicotomia,
natural/determinismo e acidental/contingencial que a tradição filosófico-científica
constrói o conhecimento sobre o mundo e sobre o homem.
A natureza como uma ideia de um ser integralmente exterior, puro objeto
separado do homem, não é algo pensado originalmente pelos filósofos modernos, por
1
HIDALGO, Matheus. Gestalt, expressão e temporalidade – considerações sobre a fenomenologia da
percepção, de Maurice Merleau- Ponty. São Carlos: UFSCar, 2010. 163 f. Tese (Doutorado) -
Universidade Federal de São Carlos.
exemplo: René Descartes, Francis Bacon. Merleau-Ponty nos diz que Lucrécio (c. 96-c.
53 a.C.) já partilha desta concepção da qual “não cessamos de nos explicar”
(MERLEAU-PONTY, 2000, p. 09). Não é por menos que o autor chega a dizer que a
nova concepção de natureza introduzida por Descartes e Newton possibilitou a
revolução científica. Logo não foi a revolução científica que mudou a ideia de natureza
(MERLEAU-PONTY, 2000, p. 10).
O conceito cartesiano apresenta uma natureza infinita semelhante, mas não igual,
a infinitude de Deus. Porém, esta natureza não tem interior, é pura exterioridade, um
“em si” (MERLEAU-PONTY, 2000, p. 12). Descartes retira da natureza a finalidade
concebida pelos antigos, ou melhor, por Aristóteles. Entende que um fim pressupõe uma
desordem, caos. Para ele a natureza é um sistema de leis, causa e efeito que pode ser
totalmente conhecida pelo homem – uma vez que ela é uma substância extensiva
separada do homem. Descartes vê a natureza como o próprio Deus, ser infinito
(MERLEAU-PONTY, 2000, p. 203). Isso é coerente com o seu próprio pensamento,
pois atribuir a infinidade à natureza é dizer que ela é um ser extenso, está em toda parte,
basta à substância pensante, o homem, desvelar clara e distintamente, diz Merleau-
Ponty, “as leis segundo as quais o mundo se conserva estão inscritas em sua estrutura”,
(MERLEAU-PONTY, 2000, p. 205). Ou seja, captar sua essência absoluta e imutável.
Não é difícil ver aí o pensamento mecanicista, o qual Merleau-Ponty se opõe.
Para Merleau-Ponty Descartes vacila, não é claro e até mesmo contraditório
quando descreve sobre a natureza do corpo humano, ou seja, sobre a alma-corpo. Ele
encontra dificuldades em fazer tal união, chegando a dizer que esta mistura, entre alma e
corpo, não pode ser entendida pelo entendimento puro, ou seja, claro e distintamente,
mas apenas pela vivência cotidiana. Isso para os olhos de um Merleau-Ponty
fenomenólogo-existencialista servirá de trampolim para conceber a essência do corpo
em sua existência.
Corpo e sujeito são correlatos da percepção, ou melhor, é o corpo que percebe o
mundo e não um cogito puro, fechado em si, como quis Descartes e toda uma tradição
que se filia a uma filosofia do sujeito. Esse cogito fechado cartesiano está fora do tempo
e da história, além disso é sinônimo, na tradição filosófica, de subjetividade. Sendo tal
que subjetividade foi algo instituído e não descoberto; (CARDIM, 2007, p. 19). A
pretensão de Merleau-Ponty é aterrissar esse sujeito, este cogito, que sobrevoa o mundo
no solo da existência, na nervura da percepção; situar essa “subjetividade” no corpo,
mostrando sua carnalidade, abertura ao mundo. “O que se pretende afastar aqui é,
justamente, a ideia de subjetividade como cogito e a ideia de corpo como objeto”
(CARDIM, 2007, p. 21).
Merleau-Ponty mostra, em sua crítica a Descartes: todo objeto de estudo, para ser
compreendido em sua estrutura ontológica, depende das nossas estruturas perceptivas.
Escreve “o algo perceptivo está sempre no meio de outra coisa, ele sempre faz parte de
um 'campo'" (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 24). A percepção do objeto não é
puramente objetiva e nem puramente subjetiva; o percebido é dependente das estruturas
perceptivas, apesar de não ser criado pela subjetividade, assim como é dependente da
temporalidade e espacialidade.
O itinerário, na obra A Natureza segue passando por Kant, Husserl, entre outros.
Mas o espaço-tempo desta comunicação não nos permite discorrer sobre todos eles.
Diante disso, seguimos a sugestão do professor Matheus Hidalgo citada acima e
relembrada agora nestas palavras: o projeto filosófico merleau-pontiano, acerca do
corpo humano, é um diálogo profundo e fecundo com Descartes, é a ele e com ele,
acima de tudo, que Merleau-Ponty dirige seu pensamento, sua escrita sobre o corpo.
Ao fazer o percurso do conceito de natureza em Descartes, Merleau-Ponty traz
esta natureza, que esteve separada do ser-no-mundo, para a terra. Ou seja, unir o sujeito
e o objeto separados em Descartes para construção de sua ontologia. Esta toma o corpo-
carne-ser-selvagem como princípio. Em outras palavras, superar a divisão entre o ser e o
não-ser. Mas também o itinerário visa, diz o filósofo preencher as lacunas científicas e
encaminhar os equívocos filosóficos sobre tal conceito. Adverte que não está fazendo
uma teoria do conhecimento sobre a natureza e nem uma filosofia da natureza em
sentido restrito (MERLEAU-PONTY, 2000, pp. 327-328). Contudo, acredita-se aqui
que nada impede de retirar das reflexões merleaupontyana bases teórico-conceituais
para tais empresas. É o que venho fazendo com o estudo paralelo em andamento sobre a
contribuição da filosofia da natureza de Merleau-Ponty para Educação Ambiental, ou
seja, trabalhando a noção de corpo-carne como princípio educativo para educação
ambiental. Partiremos agora para o diálogo com as ciências.
A CIÊNCIA MODERNA E A IDEIA DE NATUREZA

Diz Merleau-Ponty “vamos tentar precisar essa ideia da Natureza pedindo ajuda
às ciências. Mas de que modo o filósofo deve interrogar a ciência?” (MERLEAU-
PPONTY, 2000, p.136).
Deve-se deixar claro de início dois pontos essenciais para entendemos o diálogo
merleau-pontiano com as ciências. Primeiro: Merleau-Ponty qualifica o seu tempo como
moderno, ou melhor, ele diz que tal modernidade se configurou no final do século XIX.
A ciência clássica é toda aquela que se apoia na metafísica cartesiana. No começo do
livro Conversas de 1948, ele dá vários exemplos, das diferenças entre a ciência clássica
e moderna, a saber, alguns: a percepção para os clássicos é algo que se reduz à relação
aparência e realidade (Merleau-Ponty, 2004, p. 05), sendo que não a tem como base do
conhecimento, ao contrário dos modernos. Os modernos consideram suas leis e suas
teorias não como imagem exata, tal como os clássicos, mas sim como esquemas
passíveis de correção (Merleau-Ponty, 2004, p. 05); a ciência clássica faz a separação
entre espaço e tempo, a ciência moderna não.
Acredito que o diálogo travado com as ciências tem como intenção primeira
explicitar as consequências filosóficas dos estudos científicos para suas investigações
em torno do ser-bruto. Como segunda intenção, cabe aqui fazer uma citação, em torno
da relação entre filosofia e ciência vinda também do livro Conversas, um pouquinho
longa, porém extremamente pertinente, a saber:
A ciência foi e continua sendo a área na qual é preciso apreender o que é uma
verificação [...]. Porém, a questão que o pensamento moderno coloca em
relação à ciência não se destina a contestar sua existência ou a fechar-lhe
qualquer domínio. Trata-se de saber se a ciência oferece ou oferecerá uma
representação do mundo que seja completa, que se baste, que se feche de
alguma maneira sobre si mesma, de tal forma que não tenhamos mais
nenhuma questão válida a colocar além dela. Não se trata de negar ou de
limitar a ciência; trata-se de saber se ela tem o direito de negar ou de excluir
como ilusórias todas as pesquisas que não procedem como ela por medições,
comparações e que não sejam concluídas por leis, como as da física clássica
[...] (Merleau-Ponty, 2000, p. 06).

Diante disso, em vista da proposta desta comunicação, o papel do filósofo é


“eliminar as falsas concepções da natureza”, diz Merleau-Ponty (Merleau-Ponty, 2000,
p.137) que a tradição filosófica e científica ainda opera.
Para ultrapassar a ontologia cartesiana, pensamento científico clássico, Merleau-
Ponty, na obra em questão, vai buscar na física quântica, na biologia e na psicanálise,
aquilo que é pré-científico, pois não cabe ao filósofo “arbitrar” sobre os fatos, mas sim
buscar apoio a partir das ciências para ir mais longe – nos dizeres do nosso filósofo: “o
filósofo deve ver nas costas do físico o que este não vê por si mesmo” (Merleau-Ponty,
2000, p. 139).
O pensamento físico clássico teve que ser reformulado, observa o filósofo, para
melhor explicar o comportamento da luz, a dualidade onda-partícula: ora corpuscular,
ora onda. Algo inconcebível, até mesmo para a lógica clássica, era conceber algo sendo
uma coisa e outra ao mesmo tempo. Foram os testes fotoelétrons retomados por Einstein
decisivos para constatar que a posição do observador interfere nos resultados científicos.
Logo, de acordo com Merleau-Ponty, a concepção objetivista da ciência clássica foi
abalada, pois os objetos já não possuem uma existência individual, sempre positiva e
mensurável. Portanto, já não é possível defender uma realidade “em si”. Defende o
filósofo: o objeto da física não escapa da facticidade que o corpo humano, assim como a
natureza em geral está submetida (Merleau-Ponty, 2000, p. 150).
Reitera-se: o espaço-tempo desta comunicação não nos permite discorrer
demoradamente sobre as duas disciplinas privilegiadas por Merleau-Ponty, a física e a
biologia, sem mencionar as contribuições psicanalistas analisadas na obra em questão.
Por isso, ao expor a natureza do corpo, a seguir, explicita-se o diálogo com a biologia e
com a psicanálise, de forma breve, mas fecunda.

O CONCEITO DE NATUREZA 1959-1960 - Natureza e Logos: o corpo humano


A proposta de Merleau-Ponty, em relação ao corpo humano, na obra A Natureza,
é mostrar que o corpo-carne se expressa de várias maneiras. Eis a chave da
compreensão da própria natureza do corpo. O corpo humano, ser-selvagem, só pode ser
compreendido quando olhamos para a natureza, não como uma realidade autônoma,
mas como uma condição natural e naturante que se institui em nós. Quando se diz
natural e naturante, quer dizer o entrelaçamento da animalidade e do homem, a relação
entre o visível e o invisível, o interior e o exterior, em uma palavra: ambiguidade.
Ambiguidade que o corpo funda na sua relação entre a natureza e o mundo.
A abordagem filosófica empreendida por Merleau-Ponty mostra que o
pensamento científico objetivista, filosofia do entendimento, reduz o corpo ao aspecto
físico-químico, a uma extensão bem localizada que se deixa apanhar de forma absoluta,
totalizada em todos os seus aspectos. O filósofo chama esta totalização de “olhar de
Deus” (Merleau-Ponty, 2000, p. 332) - um pensamento de sobrevoo que separa o
homem deste mundo, da sua contingência, do seu aspecto espacial e temporal. Este
pensamento reducionista é herdeiro direto do pensamento cartesiano que explica a
relação homem-mundo/homem-natureza de forma mecanicista, através da relação
causa-efeito.
Somente compreendendo que o corpo humano, corpo próprio, não é um mero
objeto entre outros, é possível superar a metafísica cartesiana e estabelecer uma
ontologia do ser bruto. Isto é, antes dos condicionantes cultuais, históricos, científicos e
mesmo filosóficos. Ao radicalizar esta proposta, o filósofo, concebe o corpo como a
carne, ser-selvagem, onde a natureza se inscreve, se institui. Pois é nesta carne, que a
inerência vital e racional, cultura e natureza, encontra seu solo, o fundo pelo qual se
configura a instituição humana e nasce o espírito do homem, em outras palavras: há o
trânsito entre a animalidade e a cultura.
São vários aspectos do corpo descritos pelo filósofo na obra A Natureza: corpo
simbólico, corpo libidinal, esquema corporal, corpo carne, corpo fenomenal. Acredita-se
aqui que todas elas são complementares uma das outras, ou seja, são dimensões do Ser.
Portanto, pelas razões ditas acima, daremos maior destaque ao corpo simbólico e corpo
libidinal, tangenciando as demais.
O corpo simbólico não deve ser confundido com uma representação do mundo,
algo exterior, sem ligação com o corpo. Ele é algo tácito que é animado pelo
mundo/outro, “o mundo passa no corpo e o corpo passa no mundo” diz Merleau-Ponty
(Merleau-Ponty, 2000, p. 341). É da ordem da linguagem, expressividade, movente dos
significantes e significados, possui assinatura, “uma fisionomia moral”, se configura
como sistema semântico em fazimento. Tal como a linguagem, não está totalizado,
carrega em si o germe do novo, da nova significação, tal como o silêncio o corpo
transporta o invisível que é posto na visibilidade por meio da expressão autêntica. Diz o
filósofo “existe um Logos do mundo natural, estético, no qual se apoia o Logos da
linguagem” (Merleau-Ponty, 2000, p. 343).
Aqui cabe dizer que Merleau-Ponty defende, que não é o homem que
primeiramente institui a ordem simbólica, o próprio instinto animal se configura como
função simbólica (Merleau-Ponty, 2000, p. 319). Basta observar a ritualização, o
cerimonial estabelecido no acasalamento, pois aí há um comportamento que se deixa
ver, se quer entendido, há uma expressividade que busca sua comunicação. Diante
disso, defende: “podem-se aproximar esses fatos [as descrições feita em torno do
instinto como função simbólica] dos fenômenos da linguagem humana” (Merleau-
Ponty, 2000, p. 321).
Sendo assim, cabe afastar possíveis mal entendidos sobre esse trânsito entre o
simbólico e a natureza. Recorremos então à tese de doutorado, A Prosa do Dora – uma
leitura da articulação entre natureza e cultura na filosofia de Merleau-Ponty 2 onde a
2
RAMOS, S. de S., A Prosa de Dora: Uma leitura da articulação entre natureza e cultura na filosofia de
Merleau-Ponty. 2009. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humana.
Departamento de Filosofia, Universidade de São Paulo, SP, 2009.
autora, Silvana de Souza Ramos, defende que Merleau-Ponty não transforma tudo em
cultura, não oscila entre a natureza e a cultura (Ramos, 2009, p.211). A estudiosa do
pensador francês nos mostra que a vida humana, “engrenagem imanente à natureza”,
“instituição”, “retoma e desdobra as instituições sedimentadas na natureza e na cultura”
(Ramos, 2009, p.213), fazendo disso a especificidade da ordem humana, ou seja,
fazendo história.
Neste sentido, o filósofo interpela a biologia perguntando: como o ser humano
no seu processo evolutivo formou a consciência? A resposta obtida é que o homem
entrou sem ruído no mundo, sem nenhuma ruptura, toda a sua anatomia, como manda o
pensamento teleológico, já aponta para o fim destinado. (Merleau-Ponty, 2000, p. 425).
O filósofo percebe uma incoerência com a própria definição de homem, herdeira do
aristotelismo, que a ciência adota, a saber: animal + razão. Este equívoco da biologia é
visto por Merleau-Ponty como: “inconscientes do neodarwinismo”; “morfologia
idealista”; “evolucionismo estatístico” (Merleau-Ponty, 2000, p. 426). Como já se disse
aqui, o filósofo não concorda com a visão da biologia que afirma que o aparecimento da
reflexão foi devido à cefalização, cerebralização, para Merleau-Ponty isso remete a uma
filosofia do sujeito. Esta especificidade do corpo humano, se dá pelo interior em uma
separação do corpo e uma substância pensante, tal como Descartes acreditara. Neste
raciocínio não há nenhuma relação com a vida, com o exterior. É isolada a vida da
natureza, do meio ambiente. Logo, em termos merleau-pontianos: não há quiasma; não
há o entrelaçamento entre a animalidade e a cultura, o visível e o invisível. Enfim não
há ineinander. É preciso abandonar essa visão de uma consciência que pilota o corpo,
tal como Aristóteles acreditara: a alma é o piloto do corpo. Assim, a humanidade surge
na intercorporeidade, ou seja, o corpo humano tem sua natureza instituída na relação
com outros corpos, com o mundo.
Corpo libidinal é um eu que deseja outrem, evidentemente este eu não é um eu
interior, é todo o corpo. O desejo, de acordo com o filósofo se configura como a
percepção, ou melhor, em suas palavras “a percepção é um modo de desejo, uma
relação de ser e não de conhecimento” (Merleau-Ponty, 2000, p. 430). Logo, o corpo
libidinal tem como matriz da sua natureza a experiência afetiva. Ela se institui como
história – é sempre retomada. Desta forma, chega-se a natureza do corpo, ser-bruto, ser-
selvagem, corpo-carne, pois o corpo nunca deseja a si mesmo. O corpo libidinal não
está encerrado em uma consciência, substância pensante. Logo, está aberto para o
mundo, ele não é um “em si”, é uma projeção e introjeção do mundo. Tal natureza do
corpo humano se configura em um esquema corporal que se utiliza da temporalidade e
espacialidade para instituir arranjos simbólicos. Por esta via surge o processo de
individuação e separa-se o homem da sua animalidade. Não é forçoso afirmar que a
individuação é a expressão autêntica, a fala falante, isto é, aquela que institui a
autenticidade da vida.

Referencia bibliográficas:

CARDIM, L. N. A ambiguidade na Fenomenologia da percepção de Maurice Merleau-


Ponty. Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de Filosofia da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.

____________. Corpo. São Paulo: Globo, 2009. (Coleção Filosofia frente & verso)

DUPOND, P. Vocabulário de Merleau-Ponty. São Paulo, Ed. Martins Fontes, 2010.

HIDALGO, Matheus. Gestalt, expressão e temporalidade – considerações sobre a


fenomenologia da percepção, de Maurice Merleau- Ponty. São Carlos: UFSCar, 2010.
163 f. Tese (Doutorado) - Universidade Federal de São Carlos.

MERLEAU-PONTY, M. A Natureza: curso do Collège de France. 2ª Ed. São Paulo:


Martins Fontes, 2006.

____________________. Fenomenologia da percepção. Tradução C. A. R. de Moura.


4ª. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

___________________. Conversas. Tradução: F. Landa e E. Landa. São Paulo, SP:


Martins Fontes, 2004.

RAMOS, S. de S., A Prosa de Dora: Uma leitura da articulação entre natureza e


cultura na filosofia de Merleau-Ponty. 2009. Tese (Doutorado) – Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humana. Departamento de Filosofia, Universidade de São
Paulo, SP, 2009.

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