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ESQUECIMENTO, MEMÓRIA E REPETIÇÃO

A idéia de que o homem deva colher testemunho de sua


ligação com o mundo ambiente por meio de um sentimento ,
imediato, desde o infcio dirigido para isso, soa tão esira- .
nho, insere-se tão mal no contexto de nossa Psicologia que
uma derivação psicanalftica, isto é, genética de um tal sen-
timento pode ser tentada. Então se nos coloca como dispo-
nível o seguinte curso de pensamento: normalmente nada
nos é mais assegurado do que o sentimento, de nós mes-
mos, de nosso prôprio eu. Esse eu parece-nos evidente,
unitário, bem separado de tudo o mais. Que essa aparência
é um engano, que o Eu se prolonga internamente, semfron-
teiras nitidas, num ser [Wesen] psíquico inconsciente, que
designamos como Isso (Es), ao qual serve de fachada, isso
nos foi ensinado pela primeira vez pela investigação psica-
nalftica, que ainda nos deve muitas informações sobre o
relacionamento do Eu com o ISSO.l
Essa caracterização do estatuto das hipóteses expli-
cativas, ou derivações, da psicanálise, como explicação
genética, é feita pelo próprio Freud no interior de um con-
texto particularmente significativo para nós. Tratava-se,
para Freud, de enfrentar o desafio representado pelo enig-
ma do fons et origo da necessidade meta física e religiosa
da humanidade. Considerando a interpretação do fenô-
meno religioso como expressão de um "sentimento oce-
ânico" imediato de pertença ao mundo ambiente, Freud
contrasta com ela a derivação psicanalítica de tal senti-

1 Preud, S. Das Llnbehagen in der Kultur. In: Sigmund Freud Studienausgabe,


e Mitscherlich et allii, Frankfurt, Fischer 'Iaschenbuch Verlag, 1982, vol.
IX, p.198.

Nietzsche como psicólogo 101


mento, caracterizando-a como uma teoria que tenta re-
conduzir uma formação psicológica, individ ual ou cole-
para a metapsicologia de Freud quanto para a filosofia
de Nietzsche: a da gênese da consciência moraF"-
1
tiva, à economia dinâmica das pulsões, foco originário Trata-se, então,' de um decisivo apoio à tese inter-
de sua emergência e princípio de sua inteligibilidade. pretativa de acordo com a qual o próprio Freud não con-
Um outro aspecto de suma importância se associa à siderava a dimensão "sociológica" da psicanálise, isto é,
atestação da natureza genética das explicações psicanalí- a derivação psicanalítica dos fenômenos gerais da cultu-
ticas: Freud chama atenção para um efeito de desnaiurali- ra como a filosofia, a arte, a religião e a moralidade ape-
zação peculiar das hipóteses psicanalíticas. Aquilo que nos nas como' apêndices ilustrativos acostados aos resulta-
parece ser mais natural e evidente, isto é, o sentimento <-,_ dos teóricos mais importantes do trabalho da decifração
de nosso próprio eu, acaba por se revelar à investigação ~~~ sicanalítica da significação das formações patológicas.
psicanalítica como um efeito de superfície, uma simples $ A interpretação e a crítica do patrimônio simbólico cul-
fachada, destacada sobre um fundo impessoal [Es], in- ts tural constituem, com efeito, uma dimensão essencial do
consciente, a partir da qual se dá a formação do sistema i.... trabalho psicanalítico de interpretação. É do bom resul-
de subjetividade que consideramos (erroneamente) como '":~ tado desse trabalho que dependerá o esclarecimento, tão
o centro substancial de nossa personalidade, Isso signifi- completo e fecundo quanto possível, das origens da so-
ca que tanto Freud quanto Nietzsche podem ser conside- ciabilidade human~ Seus resultados determinarão, além
W(,))fl rados como pensadores que implodem a noção substan- disso, o destino da psicanálise como candidata a ocupar
,J~ ,,' cial de subjetividade, identificada com a unidade da cons- o lugar central na Weltanschauung científica que, para o
P'-c./2..."'-> ciência: esta, elemento nuclear da meta física da subjeti- ~ Aufklii:rer Freud, deverá substituir a vjsão infantiJ de mulJ.-
(.,W vidade, aparece então como uma ilusão superficial do ~,~ @ forjada pela religiã,?, cujas patológicas fantasias de
sistema psíquico, inteiramente impregnada de historici- ~ r onipotênCia deverao s_~rf.um d1a, subsntutrtãS por uma
'l; átitude adulta de ~ação
dade, atravessada e comandada pela economia e dinâ-
mica inconsciente das pulsões. Seja como unidade sim-
ples da consciência, como res cogitans ou como Vontade,
o
J
~
quanto às possibilidades e
aos limites da ação humana no universo, :e9sto que '~
deus 10 os" não desautoriza a ers ectiva de um contro-
o_~erde seu caráter de dado natural e de unid~ -;.,;
t le técnico-cien ' co parcial, mas efetivo, das potências :p.a-
tárquica da razão o~ão, não mais podendo ser con- ~3 ruraIS e das ener .as sí ui
sIaerado senhor em sua própria casa. $o" ais considerações nos conectam diretamente com o
A especial significação dessa definição, no contexto • alvo estratégico do projeto nietzscheano de genealogia
mencionado, resulta, pois, da constatação de que essa
importante reflexão sobre a natureza da teoria psicanalí- 2 Todas as vezes que, no presente trabalho, empregarmos a expressão
tica não é feita a propósito da clínica, ou mesmo das rela- conedência moral, seu significado estará referido
à instância psíquica de-
ções entre a psicologia e a consciência, mas vinculada à signada em alemão pelo termo Getoissen. As razões desse emprego serão
explicitadas ao longo do texto.
questão que consideramos centralmente decisiva, tanto

102 Oswaldo Giacoia [unior Nietzsche como psicólogo 103


I'

da moral, porquanto aqui também se trata, fundamen- têntico sentido histórico. Derivação genética e genealo-
talmente, de uma derivação genética da consciência mo- gia apresentam-se, portanto, como avatares do sentido
ral. Esse termo constitui a versão luso-brasileira da ex- histórico, a forma científica e tipicamente moderna da
pressão Gewissen (gewízzenique [interno l,no alemão anti- iV~-l-:;.. ~
virtude ou, em termos metafóricos, a "segunda visão"."
. go) que, por seu turno, é tradução do grego syneidésís, ~ Essa preocupação com a gênese da consciência mo-
[ apoiada no termo latino conscientia, isto é, co-ciência, co- ral marca um importante traço comum entre a genealo-
saber. Trata-se do fenômeno psíquico da consciência reli- gia de Nietzsche e a metapsicologia de Freud, na medida
gioso-moral. Na Europa, como se sabe, esse conceito de 1 ~~. em que constitui ambas como derivações genéticas, cuja
consciência moral foi primeiramente desenvolvido entre ~ 0/ tarefa principal consiste em reconduzir formações cultu-
os gregos, com apoio na representação segundo a qual • ~ ~ rais complexas (instâncias psíquicas, práticas e institui-
para todo e qualquer mau comportamento em relação ~ "" ções sociais, sistemas orgânicos) às condições (pré-jhis-
aos deuses ou aos homens há sempre uma testemunha, " }.> tóricas de surgimento, transformação e desenvolvimen-
isto é, um com-scíentia interior. to. Trata-se de identificar as condições de instauração e
O conceito de consciência moral adquiriu então pro- ( deslocamento de sentido de tais formações, por intermé-
fundidade e significação na ética cristã, mormente no seio : ~ ~, ~. dio da decifração de sinais inscritos nos corpos e almas
da filosofia medieval, em que se consolida o matiz de ~ ~ -...J _ dos indivíduos e dos povos. C..9illl2reend . ôme-
significação, aproximando consciência moral de remor- ~ ~ ~ ~ n~gnif.ka/_portanto reconstruir o movimento de sua
sus ou morsus conscientiae: a penosa convicção de ter agi- ~ ~ \.;;;- gênese e a dinâmica de seu desenvolvimento a eia
do mal. Nessa ace ção, a consciência moral está relacio-
nada ao senso moral as próprias açÕes, ao sentimento
provido de uma f~uldade de autojulgamento, à consci-
ência de incondicionãI conformidade ao dever, indican-
do ser justa uma ação que se deseja empreender>. Tanto
r d)
\.:) t~
';, ~

.ç;
hiytórica de sua a12ro12riaçãoem relações sociais de p~-
der que determinam a em.ergência e os deslocamentos
e senti os.
Genealogia da Moral e Metapsicologia apresentam-se,
pois, como interpretações da (pré- )história da q~nsciên-
Freud quanto Nietzsche, já antes dele, não se contenta- 'sia moral. no amplo horizonte da reflexão sobre o devir
ram com ofato da consciência moral; partindo da inquie- í histórico da cultura. Tais interpretações, em seus respectí-
tação acerca do seu sentido, pretenderam decifrá-lo por ~ vos registros teóricos, '!Preendem-na como surgindo si-
meio de derivação genética, na mais clara das indicações multaneamente com a socialização e homjnjzação, ao lon-
de fazer todo empenho possível para elidir tanto o "pe-
cado original dos filósofos" quanto a superficialidade dos
4Níetzsche, F. Zur Geneaiogie der Moral/ In: F. Nietzsche Slimtliche Werke,
"genealogistas ingleses da moral", ou seja, a falta de au- Kritische Studienausgabe, ed. G. Colli/M. Montinari, Berlin/New York/
München: de Gruyter /DTV 1980, vol, VI,2" Dissertação [ll], parágrafo 4
3Cf. Duden. Etymologie. 2. Auflage. Mannheim/Wien/Zilrich, Doravante, em citações dessa mesma obra, os algarismos romanos indi-
Dudenverlag, 1989,p. 241. .. f.. _ ) cam as dissertações e os arábicos os correspondentes capítulos.
Ç&C4~ t)\j&.i.JI\L j)'JS f,L~f!)S ~f€56V'~
104 Oswaldo Giacoiajunior ? ? ?? Nietzsche como psicólogo 105
go ,do processo titânico pelo qual O homem se arranca e têniico problema do homem? .. O fato de que tal problema
se eleva, pela crueldade e pela violência'xacima de·sua 5G.J-/ se encontre resolvido em grande parte tem que parecer tanto
parbáríe primitiva, Ahistória da consciência moral iden- ffltf c;/< "'VJ mais surpreendente a quem saiba apreciar inteiramente a
tifica-se com a hist6ria da repressão, mas também da.(C.i.•..~ ''''6-''/~ c forca que contra ela atua, aforça do esquecimento."
tra~s~gur~çã~ e sublimação dessa barbárie po~Ame~oda : '\(~4~~ A presente citação indica, de saída, os dois termos
espiritualízação e aprofundamento da consciencra de ? '1)J fundamentais da tarefa que se coloca no umbral do pro-
culpa. Na seqüência, pretendemos empreender uma re- . cesso civilizat6rio: oprohlema do homem identifica-se
constituição sumária de tal processo, o que se fará pelo
com a criação de.uma memória,-Â-cillltracorrente da po-
fio condutor das noções que dão título ao presente traba-
~ dITosa força do esquecimento. Esse problema se deixa
lho: esquecimento, memória e repetição. O objetivo da
deslindar a partir da possibilidade de prometer, pois esta
reconstituição consiste em levar a efeito uma compara-
tem como condição de possibilidade justamente a lem-
ção sistemática entre o estatuto e a função que tais no-
brança da palavra empenhada, uma espécie de dilação
ções representam na Genealogia da Moral e na Metapsicolo-
temporal do querer que, escandíndaaa dimensões d~s- )
gia.
sado, resente e futuro arranca o ornem da-Erisão do
De início, cumpre não perder de vista que Freud e instanteé do esqueciri1ei1.to,tornando ossível o rever,
Nietzsche concebem diversamente a formação psíquica
Q ca eu ar, o antecipar uma representação que insere o
da mem6ria, até mesmo como conseqüência do modelo
agir efetivo como efeito na cadeia da vontade, com? se~
teórico distinto que lhes serve de referência fundamen-
resultado futuro. Trata-se aqui, no prometer, dos prImeI-
tal. Entretanto, a criação da faculdade da memória cons-
ros lineamentos do pensar causalmente, distinguindo
titui, para ambos, o limiar inaugural do processo de ho-
entre causal e necessário, criando um vínculo entre uma
minização. Do ponto de vista da Genealogia da Moral, essa
determinação qualquer da vontade (um "eu quero", "eu
questão se coloca como nuclear na Segunda Dissertação.
farei") e a descarga efetiva dessa vontade numa ação. Par.a
Em Freud, ela adquire importância decisiva tanto nos
tanto, toma-se necessário deter a voragem do esqueCI-
escritos onde figuram modelos de funcionamento do
mento.
aparelho psíquico inspirados na neurofísíología, quanto
em textos metapsicol6gicos tardios, nos quais são especi-
ficados mecanismos ligados à formação, conservação e
reativação de traços mnêrnícos inconscientes, herdados
da psicologia dos povos.
5Nietzsche, F Zur Genealogie der Moral/In: F.Nietzsche. Saemtliche Werke.
Criar um animal ao qual seja lícito fazer promessas - Kritische Studienausgabe. Ed. G. Colli M. Montinari, Berlin/New York/
München, de Gruyter/DTV 1980,vol. V,2" Dissertação (IT), pa.=ágrafo 1,
não é precisamente essa mesma tarefa paradoxal que a na- p. 291. Não havendo indicações em contrário, as traduções sao de res-
tureza se propôs com respeito ao homem? Não é este o au- ponsabilidade do próprio autor.

106 Oswaldo Giacoia [unior Nietzsche como psicólogo 107


Este não é pensado por Nietzsche como uma força
inercial, mas como uma positiva faculdade ativa, essen-
cial ao "metabolismo" psíquico, como uma
o sentimento de culpa (Schuld), da obrigação essoal...
.,m <..
~
~
J> -.
v-;força de inibi - à ual há ue se atribuir que a uílo n.ue
:/.
teve SUi1 OYl em ... na mais-- a e,o~~ 'nária rela ão
b ...e, ~ (~ foi unicament illido, el'peril11.e.l11iliIo
por nós assimilado soal ue existe na relaçãoe~mpradores e vendedores,
€; s, cr- Q\, ~ú I e!!!nós wm.etre em nossa consciênCÚl,l1oestado de diges- credores e devedores:fõíaqui que pela primeira vez se en-
"""G @L(poder-se-ia denominá-ia assimilação anímica), tão frentou pessoa a pessoa,foi aqui onde, P!I_a12' i a vez as
-g '€ pouco quanto penetra nela todo o multiforme processo com l T!.essoasse mediram entre si. Ainda não se encontrou ne-
que se desenrola nossa nutrição do corpo, a denominada rihum grau tão baixo de civilização no qual não seja posei-
assimilação corporal. Cerrar, de vez em quando, as por- vel observar algo dessa relação.., Cabalmente, é nessas re-
tas ejanelas da consciência; não ser molestado pelo ruido e lações onde se trata de fazer um 'u em uem az
a luta com que nosso mundo subterrâneo de órgãos servi- I promessas; cabalmente será nelas, é licito suspeitá-Ia com
çais desenrola sua colaboraçãoe oposição; um pouco de si- malfcia, onde haverá uma jazida para algo de duro, cruel,
lêncio, um pouco de fábula rasa da consciência, a fim de penoso. O devedor, ara in ndir con 'an a em sua ro-
que de novo haja lugar para o novo, sobretudo para asfun- messa de restituição, ara dar uma garantia da seriedade
ções efuncionários mais nobres, para o governar, o prever, de sua promessa ara im or dentro de si, ara sua consci-
o predeterminar (pois nosso organismo é esiruiurado de encia-;a restitui ão de um dever como uma obriga ão, em-
modo hierá~quico) - este é ~ ben 'cio tiVJl,~ll o disse- ') penha ao credor, em virtude de um contrato e para oJaso
mos, capaculade de esqueclmento, uma uardlã da orla, ) de ue não a e, outra coisa todavia 12oSsui,outra
por assim dizê-lo, uma manienedora da ordem animica, da coisa sobre a qual todavia tem poder, por exemplo, seu cor-
tranqüilidade, da etiqueta, com o que resulta uisioei, em ~ po, ou sua mulher, ou sua liberdade, ou também sua uida?
seguida, que sem a capacidade de esquecimento não pode
haver nenhuma felicidade, nenhuma jovialidade, nenhu- Ao trabalho pré-histórico de autoformação da hu-
ma esperança, nenhum orgulho, nenhum presente".6 manidade, Nietzsche dá o nome de etícidade dos costumes
(Sittlichkeit der Sitie); trata-se do processo de consolida-
Se o autêntico roblema do homem consiste em cri- ção de hábitos, usos e praxes, por meio do qual a huma-
ar no es ue d'!;Q..e.in "v: minídeo uma memória nidade fixa e desenvolve, para si mesma, as formas regu-
da vont ando-o capaz de prometer, compreen- lares do ethos, dos fundamentos daqueles que doravante
de-se, então, que o estágio mais recua o o processo de seriam os seus principais modos de existência, ue aQ
hominização deva coincidir com o foco originário de sur- homem s 'a ossível e lícito res onder or si isto é, que
gimento da promessa, isto é, que deva ser encontrado no se'a ca az de ter-s - 'mesmo sob domínio constitui a
terreno das relações pessoais de direito obrigacional, no base psicológica do I2rimeiro sentimento de liberdade e

«tu« 7Id. Respectivamente li, 8 e 5,

108 Oswaldo Giacoia Junior Nietzsche como psicólogo 109


1
I

_~
ti" da consciência da res onsabilidade' para tanto conduz,
segundo Nietzsche, o sentido oculto e fundamental da-
e meios delicados; talvez não haja, na inteira pré-histôria
do homem, nada mais sinistro e ierrioel que sua mnemo-
"'\{) ~1 quele trabalho autoconfigurador. Por ele, a humanidade técnica.Para que algo permaneça na memória, grava-se-o
"-lI... cria, a partir de si mesma, suas diferentes figuras da cons- afogo; somente o que não cessa de causar dor permanece
ciência moral (Gewissen). na memória - este é um axioma da mais antiga Psicologia
(por desgraça, também da mais prolongada) que existiu
O orgulhoso conhecimento do privilégio extraordi-
sobre a terra... Quando o homem considerou necessário fa-
nário da responsabilidade, a consciência dessa estranha li-
zer para si uma mem6ria, tal coisa jamais se realizou sem
berdade, desse poder sobre si mesmo e sobre o destino, sangue, marunoe, sacrifícios; os eacrificioe e empenhos mais
gravou-se nele até sua mais funda profundidade e se con- espantosos (entre eles os sacrifícios dos primogêniioe), as
verteu em instinto, em instinto dominante - como cha- mutilações mais repugnantes (por exemplo, as castrações),
mara ele esse instinto dominante, supondo que necessite as mais cruéis formas rituais de todos os cultos religiosos
de uma palavra para ele. Mas não há dúvida alguma: esse (e todas as religiões são, em seu derradeirofundo, sistemas
homem soberano o denomina sua consciência moral (Gewis- de crueldade) - tudo isso tem sua origem naquele instinto
sen)8. que soube adivinhar na dor o mais poderoso auxiliar da
- Como, porém, suspender a força do esquecimento, mnemõnicaP
manter presente na memória uma certa causalidade da
\')~ ~ Um dos instrumentos auxiliares privilegiados des-
vontade, precisamente do modo como tem que ser feito
nos casos em que é necessário prometer? Para Nietzsche,
r. i- ~ (sa bárbara mnemotéenícaÍõlíetzsche identifica-o na du-
2 ~ ~ reza da legislação penal primitiva. Os procedimentos do
semelhante tarefa não pode ser cumprida sem o auxílio
de uma rnnemotécnica sui generis, por meio da qual se
~ g "" direito penal constituem, para ele, um poderoso aliado
"I ~ na tarefa de manter presente, na memória, as exigências
desenvolve a própria faculdade da memória e não mera-
:;> C mais elementares do vínculo obrigacional] É no entrecru-
mente uma técnica para inserir preceitos particulares
zamento entre a obligatio de direito pessoal e os rudes
numa memória já desenvolvida."
procedimentos penais primitivos que se configura o cam-
Como imprimir algo nesse entendimento de instante, en- po de surgimento das categorias e conceitos, de cujo apro-
tendimento em parte obtuso, em parte aturdido, nessa vi- fundamento e espiritualização resultarão formas mais re-
vente capacidade de esquecimento, de tal maneira que per- quintadas de sociabilidade e figuras superiores do espí-
maneça presente? .. Pode-se imaginar que esse antiqüfssi- rito, tais como a noção moral de culpa, o sentimento do
mo problema nãofoi resolvido precisamente com respostas dever, a consciência moral. No entanto, seu foco originá-
rio de surgirnento é constituído pelas modalidades serni-
8 Id. lI, 2. bárbaras de satisfação substitutiva, de regimes de equi-
9A esse respeito, cf, Brusotti, M. Die 'Selbstverkleínerung des Menschen in
der Moderne. In: Nielzsche Studien 20, 1992, p. 81-36/ aqui p. 91, nota 16.
10 Nietzsche, F. GM. lI, 3.

110 Oswaldo Giacoia Junior Níetzsche como psicólogo 111

k j~ ---------------------
valências e formas de reparação que a imaginação gros- sempre de um alto grau de humanizaçãa para que a ani-
seira do homem primitivo foi capaz de instituir. É ness.e mal homem comece afazer aquelas distinções, muito mais
terreno que a humanidade adivinhou nOQs!igo, n~cªu- primitivas de intencionado, negligente, casual, impu-
sar dor e . 1 Ir so lmento um modo adequado de com- tável, e seus contrários e a tê-Ias em conta aofixar a pena.
pensação e no re ara ão )2ela quebra da palavra empe- Esse pensamento agora tão corrente e aparentemente na-
a a, e o inadim lemento de uma dívida: tural, tão inevitável que se teve que adiantá-Ia para expli-
car como chegou a aparecer na terra o sentimento de justi-
A equivalência vem dada pelofato de que, em lugar de uma ça, o réu merece a pena porque teria podido agir de
vantagem diretamente equilibrada com o prejufzo (quer outro modo, é defato uma forma alcançada mui tardia-
dizer, em lugar de uma compensação em dinheiro, terras, mente, mais ainda, uma forma refinada do julgar e racioci-
possessões de alguma espécie), concede-se ao credor, como nar humanos ".12
restituição e compensa 110, uma eSp-'éciede sentimento de
bem-estar, o sentiment e111=esta.r-dIJ-homem::lLquemf Como explicar o caráter desconcertante dessa lógi-
lfêlto descarre _~p-Qde.r,~~l1Lqll.llLquer escrúp-.u[o so- ca pré-histórica, dessa modalidade extravagante de com-
bre um inocente, a voluptuosidade de "faire le mal pour pensa~ão que consiste em descobrir uma equivalência
le p aisir de le faire", o deleite causado pela nioieniação ... entre o prejuízo ocasionado pela dívida não remida e a
A compensação consiste, portanto, em uma remissão e em satisfação consistente em infligir sofrimento no devedor?
um direito à crueldude."
Complementarmente, ao mesmo tempo em que ~
eldade ritualizada nos casti os cumpre a função enigmá-
tica e satisfação substitutiva para uma humanidade pré-
histórica, ela serve também como recurso mnemotéc .co
l
q;
;ll..tI <'P
Como equiparar sofrimento e reparação, crueldade e sa-
tisfação? Para decifrar tal enigma dos obscuros primor-
dios da humanidade, Nietzsche deslinda um fio de Ari-
adne de sua meada genealógica, que até aqui tinha sido
mantido imperceptivelmente entrelaçado com aquele li-
gado à pré-história da promessa e da responsabilidade.
p-rivile iado ara dilatar r e vivificar as dimen- Trata-se da reconstituição hipotética da gênese presurní-
~lidades da memória' vel da sociedade e do Estado, que vai oferecer o horizon-
Esses genealogistas da moral que existiram até agora ima- te de inteligibilidade para as aberrações aparentes da
ginaram, ainda que seja apenas de longe, que, por exem- psicologia humana primitiva.
plo, o capital conceito moral de culpa procede do muito Se não se pode encontrar nenhum limiar mais recu-
material conceito ter dívidas? Ou que a pena, enquanto ado de civilização em que não sejam reconhecíveis vestí-
compensação, se desenvolveu completamente à margem gios daquela matriz jurídico-obrígacional do débito e do
de todo pressuposto acerca da liberdade ou falta de liberda- crédito, então isso implica que o primeiro trabalho for-
de da vontade? E isso até o ponto em que antes se necessita mativo que a humanidade exerceu foi um trabalho sobre

11 Nietzsche, F. GM. II, 8. 12 Id. Il,4.

112 Oswaldo Giacoia [unior Nietzsche como psicólogo 113


si mesma: o trabalho de criação dessa mnemotécnica da refutada aquelafantasia que ofazia começar com um con-
crueldade. Com efeito, somente por meio do emprego de trato.P
meios bárbaros e sangrentos - pela mobilízação da agres-
Na origem da sociedade e do Estado se pode reco-
sividade e da violência, especialmente aquela ritualiza-
nhecer, portanto, o mesmo ingente trabalho formador do
da em práticas cultuais religiosas e procedimentos pe-
homem sobre si mesmo que está em ação na criação da
nais, como os sacrifícios e os castigos - tomou-se possí-
memória. Se aqui se trata de criar a faculdade de prome-
vel fixar na memória incipiente de uma tosca serni-hu-
ter, que deve subsistir como disposição psíquica perma-
manidade os primeiros lineamentos da responsabilida-
nente em credores e devedores, no caso da gênese do
de e da obrigação, isto é, as formas mais elementares de
Estado, a tarefa consiste em organizar uma população
vínculo, de responsabilidade e, portanto, de sociabilida-
errante, até então unicamente arrastada pelo torvelinho
de. Por conseguinte, a genealogia das práticas rudimen-
dos impulsos, nela imprimindo a forma estável da socie-
tares do direito obrigacional, com o inevitável séquito de
dade e da paz. Também essa prometéica tarefa não pode
disposições e faculdades psíquicas nelas implicado - en-
ser levada a cabo senão por meio dos mesmos recursos
tre elas, principalmente a capacidade de avaliar, estimar,
bárbaros cujo emprego torna p~ssível a criação da me-
fixar e medir valores, o reconhecer equivalências, insti-
mória: a crueldade e a violência. E ainda uma vez a agres-
tuir e estabelecer créditos e débitos - coincide com os
sividade ritualizada em penas e castigos que opera a tran-
primórdios da sociedade e do Estado.
sição do animal errante e instintivo para homem cultu-
Ora, para Nietzsche, também a gênese da sociedade
ral, o zoon poliiikim, conformado às regras, usos e costu-
primitiva e do Estado não pode ser reconstituída com base
\' mes da vida em socieda~e. O pre~o d~ssa trav~ssia titâ-
na suposição do modelo explicativo harmonizante, fun-
~. ~ ~ \nica consiste na renúncia aos mais VIgorOSOSImpulsos
dado na racionalidade do contrato. Também aqui - e tal-
~ '_o de sua natureza animal, na repressão brutal e sangrenta
vez principalmente aqui, nos primórdios da espécie - a
~ ~ ~ de selvagens e poderosas correntes de energi~ psíquica.
humanidade não pode se furtar à confissão de sua pu-
~ - f" Com efeito, a existência em com.um sob a camIs~-~e-for-
denda origo?
ça da sociedade e do Estado eXIge, como condição fun-
Empreguei a palavra Estado: já se compreende a que me damental de possibilidade, que dela seja banido definiti-
refiro - a uma horda qualquer de loiros animais de rapi- vamente tudo o que constituía a força e a prosperidade
na, uma raça de conquistadores e de senhores que, orga- do animal-homem: a agressividade, a hostilidade, o ego-
nizados para a guerra e dotados de força de organizar, ísmo natural, o prazer na perseguição e na mudança, a
coloca sem escrúpulo algum suas terrtoeis garras sobre vida errante, selvagem, vagabunda. Tudo isso, no interi-
uma população talvez tremendamente superior em nú- or da vida em sociedade, não geraria senão, novamente,
mero, porém ainda informe, errante. É assim, com efeito,
que se inicia na terra o Estado? Penso que assim fica
13 Id. 11, 17.

114 Oswaldo Giacoia [unior Nietzsche como psicólogo 115


a guerra de todos contra todos, justamente aquilo que, tes com que a organização estatal se protegia contra os ve-
para se constituir como humanidade, a cultura tem que lhos instintos de liberdade - os castigos fazem parte, antes
erradicar. Como, porém, arrancar de sua natureza os de tudo, desses baluartes - acarretaram que todos aqueles
instintos do homem selvagem, livre, errante, se voltassem
mesmos impulsos que a constituem? Como vencer o di-
para trás, contra o homem mesmo. A hostilidade, a cru-
lema de arrancar-se do abismo puxando-se pelos próprios
eldade, o gosto pela perseguição, pelo assalto, pela mudan-
cabelos? ça, pela destruição - tudo isso voltado contra os possuido-
Compelido à vida em comum no interior de rígidas res de tais instintos: essa é a origem da má-consciência.
formas sociais, o "animalesco, velho eu" do homem teve O homem que, por falta de inimigos e resistências exter-
que privar de satisfação natural os seus impulsos mais nas, encerrado à força em uma opressiva estreiteza e regu-
vigorosos, justamente aqueles que constituíam seu pra- laridade dos costumes, dilacerava, perseguia, roia, esprei-
zer animal e sua terribilidade, sem que estes, no entanto, tava, maltratava impacientemente a si mesmo, esse animal
deixassem de fazer sentir suas exigências. Por essa ra- batendo-se eferindo-se contra as barras de sua jaula, e que
zão, não resta outro caminho senão aquele da satisfação se quer amansar, esse animal passando privação e devora-
substitutiva, inevitavelmente degradada e desviada de do pela saudade do deserto, que de si mesmo tinha que fa-
seu fluxo natural. Represados em sua descarga pela via zer uma aventura, uma câmara de suplfcio, uma insegura
da ação dirigida à natureza exterior, contra os outros ho- e perigosa selva, esse parvo, esse nostálgico e desesperado
mens, tais cargas pulsionais invertem o sentido de seu prisioneiro, foi o inventor da má-consciência.!"
curso, voltam-se contra o próprio homem e, em aliança com Adivinham-se; então, os motivos psicológicos que
a imaginação, encontram, na interioridade do eu, o canal subjazem àquela lógica canhestra que instituía equiva-
subterrâneo e interiorizado de satisfação compensatória. lência entre sofrimento e reparação, crueldade e prazer:
Inibida como assujeitamento (Überwiiltígung) do mundo lSe o preço a pagar pela passagem da natureza à cultura
externo, a natureza conformadora e violenta de t' . -
Eulsos retoma ara trás, íntemalíza-s e se.interioríza,
dando origem ao que Nietzsche_denorrtina "o mundo
consiste na renúncia à satisfação de uma hostilidade que
não se deixa erradicar, então as formas mais bizarras de
satisfação substítutiva - ou de sublimação de tais corren-
"
Werior", a alma: tes de energia - estarão inseparavelmente vinculadas aos
Todos os instintos que não se descarregam para fora vol- avatares da cultura humanqj Por essa razão, para remon-
tam-se para dentro - é isso que eu denomino a ínteriori- tar à pré-história da autoconstituição da humanidade, sua
zação do homem; é somente com isso que cresce no homem travessia da natureza selvagem à cultura, Nietzsche se
aquilo que mais tarde se denomina sua alma. O inteiro propõe a reconstruir a série de transposições da matriz
mundo interior, originariamente delgado como algo rete-
sado entre duas peles, separou-se e aumentou, adquiriu pro-
Id. II, 16; in: Nietzsche. Obra Incompleta. Trad. Rubens R Torres Filho.
14
[undeza, largura, altura, na medida em que a descarga do Coleção Os Pensadores, São Paulo: Abril Cultural, 1974,p. 318 s.
homem para fora foi obstruida. Aqueles terríveis baluar-

116 Oswaldo Giacoia Junior Nietzsche como psicólogo 117


obrigacional do débito e do crédito, que ele identificara nente de sua descendência; segundo a lógica imaginária
como sendo o núcleo germinativo do processo civilizató- dessas equivalências, a toda intensificação do sentimen-
rio. Seu propósito consiste em trazer novamente à super- to de poder de uma comunidade corresponde um incre-
fície da consciência as elevações e abismos que escandem mento do sentimento de obrigação para com o ancestral
essa trajetória, suas vertigens e desfalecimentos, suas vir- comum, cuja figura vai pouco a pouco ganhando contor-
tualidades e infortúnios. nos sobrenaturais, até se tornar divina. Ao aumento su-
Dessa longa série de transposições, duas nos inte- perlativo da consciência de poder decorrente da exten-
ressam particularmente: em primeiro lugar/ aquela de são potencialmente universal do domínio por parte de
acordo com a qual as categorias fundamentais da obliga- determinadas comunidades corresponderia, por conse-
tio de direito pessoal são instrumentalizadas para servir guinte, uma espécie de "divindade universal", isto é, uma
de grade de interpretação para as relações que se estabe- forma de monoteísmo, como expressão de um máximo
lecem entre os membros das primitivas comunidades de de intensificação do sentimento de obrigação. Com a he-
estirpe, das aldeias, tribos ou clãs e seus ancestrais pri- rança das" divindades domésticas", do divino ancestral
mordiais. Trata-se aqui daquilo que Nietzsche classifica comum à estirpe e à tribo, a humanidade teria recebido
como uma interpretação religiosa da matriz obrigacío- também, mesmo depois do desaparecimento completo
nal. Por ela, a figura do ancestral comum passa a ser in- - da forma de organização social fundada na comunidade
terpretada como responsável pela doação do mais preci- de sangue, a herança do peso de dívidas não pagas e do
oso dos bens: a vida protegida e a prosperidade assegu- desejo de resgatá-Ias.
rada pela coletividade. Desse valiosíssimo legado se ori-
Reina aqui a convicção de que a estirpe subsiste graças
gina, para as gerações subseqüentes, a consciência de uma
apenas aos sacrificios e às obras dos antepassados - e que é
obrigação, o dever de uma retribuição equivalente. Ora, necessário que isso seja pago com sacriftcios e obras; reco-
a dívida resultante desse legado possuí características nhece-se assim uma dívida (Schuld) que cresce constante-
especialíssimas e, por assim dizer, efeitos permanentes, mente pelo fato de que os antepassados, que sobrevivem
na medida em que seus resultados benfazejos se prolon- como espfritos poderosos, não deixam de conceder à estirpe
gam e incrementam na prosperidade ulterior e no acrés- novas vantagens e nos préstinws devidos à sua força. 15
cimo de poder das comunidades tribais; quanto mais
poderosa e próspera a comunidade de estirpe, tanto mais Esse sentimento de dívida permanente tem como con-
ingente se torna o dever de obediência aos antepassados; teúdo uma obligatio de natureza jurídica, em que credor e
quanto mais poderoso se toma o clã, tanto mais o ances- devedor, embora estreitamente vinculados, se mantêm em
tral se aproxima da divindade. Desse fortalecimento da relação de mútua exterioridade: de tempos em tempos - e
consciência de poder decorre então o sentimento que leva sob condições especialíssimas - impõe-se uma espécie qual-
a perceber os ancestrais como espíritos protetores que
15 Nietzsche, F. GM. Il, 19.
velam pela segurança, bem-estar e prosperidade perma-

118 Oswaldo Giacoia Junior Nietzsche como psicólogo 119


quer de prodigiosa indenização, de resgate geral e jubileu, sob uma perspectiva religiosa, tornou-se uma dívida para
sob a forma assustadora, por exemplo, dos sacrifícios de com Deus, e a psicologia da má-consciência, isto é em que
sangue. Dado que tal obligatio, pela natureza de seu con- se deixou confluir num único trilho as duas genealogias e
se as moralizou ... Efetivamente, a hermenêutica sacerdo-
teúdo, produz efeitos perduráveis, suas modalidades de
tal teve êxito justamente em reinterpretar de tal maneira
resgate e retribuição adquirem formas complexas e espiri-
o potencial interior agressivo do homem, adormecido em
tualizadas. Ao ancestral somente se pode retribuir adequa-
toda sociedade, como uma dívida para com Deus, que do-
damente com obras e sacrifícios, ou seja, segundo a forma raoante a idéia de uma irresgatabiJidade das dívidas para
do culto sacrificial, da reverência, veneração e, sobretudo, sempre, o pensamento de um castigo eterno infectou a alma
da obediência, sobretudo ao ethos da comunidade, às leis, humana e trouxe em sua companhia um 'delfrio da vonta-
usos e costumes, que correspondem a ordenarnentos ema- de' que simplesmente não tem igual.16
nados da vontade dos antepassados.
Nietzsche identifica também uma modalidade intei- Essa reinterpretação transtorna completamente a na-
ramente distinta de ínterpretação da matriz obrigacional, tureza originariamente jurídica da obligatío, na medida
que introduz uma alteração substancial em sua natureza. em que se caracteriza por sua transformação em senti-
Tra - da moraliza ão das cate orias ·urídicas do débito e mento de culpa permanente, privando-a de sua dimen-
do créd· um movimento complementar da interíorizaç~o são propriamente jurídica, isto é, da exterioridade ine-
das correntes pulsionais agressivas, que descrevemos quan- rente às relações intersubjetivas?
do procuramos reconstituir a genealogia da sociabilidade •
Agora a perspectiva de um resgate definitivo; agora o olhar
e do Estado e, com ela, o ingente processo pré-histórico de deve se deter, rebater contra uma férrea impossibilidade;
estabilização do primitivo ethos humano. Se o sentido ocul- agora aqueles conceitos de culpa e de dever devem retor-
to e fundamental daquele processo consistia na criação do nar para trás. 17
--.l5b. i G-JcJ ''\- indivíduo soberano, dotado do extraordinário privilégio psí-
""-9f1.A L quico da responsabilidade e da consciência moral enten- A mediação entre as duas figuras da consciência
moral é promovida pela transformação da interpretação
~ ri; f ,~1Lo') dida como domínio de si, poder e liberdade, entretanto
esse fruto tardio teve como destino o fenecimento, ficando religiosa da obligatio, pela qual o ancestral primitivo, res-
soterrada aquela fi a orgulhosa da consciência moral, ponsável pela existência e poderio da comunidade, pas-
dominada e ensombrecida por uma sua variante, a má- sara a ser divinizado e cultuado como Deus.
~
~onsciência (schlechtes Gewissen), ou c .Ancia-Gle.cuLpJl Nos tempos mais antigos, a relação credor-devedor foi en-
Sú' f!-.iC;-Q moral. Trata-se aqui da inexorável contingência que pesa tão interpretada ainda uma vez de uma maneira, para
~vL-ff.\ sobre os avatares da epopéia humana? nós, como acredita Nietzsche, grave e notável, como a

nr AI- ?) A autêntica fatalidade tomou corpo então a partir do mo- 16 Gasser, R. Nietzsche und Freud. Berlin/New York, de Gruyter, 1977, p. 442.
mento em que foram imbricados a dívida obrigacional que, 17 Nietzsche, F. GM. n, 21.
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~L-N-JI f:
120 Oswaldo Giacoia [unior Nietzsche como psicólogo 121

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!)..I} Ú>..h o/V c.:/f .-?1tI}-L-
-
II 21J/vi~
relação da geração respectivamente viva com seus ances-
trais. Uma vez que os pôsteros devem certamente sua exis- Uma dívida para com Deus: esse pensamento se con-
tenda aosancestrais, dai pareceu derivar-se a coerciva obri- verte num instrumento de tortura.l? E desse modo que a
gação de resgatar esse débito por meio de sacriflcios e re- vontade de autoflagelação reinterpreta a figura do deve-
verências, sendo que o temor dos ancestrais e a consci- dor: o indivíduo é culpado precisamente por pulsarem
ência do débito para com eles se incrementaoa justamente nele aqueles inextirpáveis instintos do semi-animal sel-
na medida em que o próprio clã sefortalecia: imaginemos vagem, pulsões nas quais agora reconhece as forças da
que essa tosca espécie de lógica tenha chegado até
maldade. Desse modo, essa vontade de se autotorturar
seu final? Então os antepassados das estirpes mais
se aprofunda de tal maneira que se transfigura como sen-
poderosas têm que acabar assumindo necessariamen-
te, graças à fantasia própria do crescente temor, pro-
timento de permanência ad aeternum de uma dívida que
porções gigantescas e desenvolver-se até a obscuri- não se pode resgatar, gerando a conseqüente necessida-
dade de um temor e irrepresentabilidade divinas _ o de de uma eterna expiação: paralelamente ao processo
antepassado acaba necessariamente por ser transfi- supra descrito, passa por uma reinterpretação correlata a
gurado em Deus. Com o lento crescimento dos impérios figura do credor; uma vez que a origem da culpa radica
universais, e com isso também de divindades universais, na própria natureza "maligna" do homem, sua existên-

I abriu-se caminho para o monotefsmo e foi alcançado um


máximo de sentimento de culpa. Inversamente, toda-
cia não pode mais ser vi vendada como o mais precioso
dos bens. Ao contrário, ela deve ser interpretada como
via, os sinais agora claramente oisioeis de um contramovi- castigo e expiação, punição pela impiedade de um crime
mento ateista tinham que conduzir a um considerável de desobediência perpetrado já pelos primitivos ancestrais.
declínio da humana consciência de culpa; a humani- O verdadeiro credor não é mais o pai comum da
dade poderia talvez ... ingressar numa espécie de segun- humanidade, ele passa a ser o outro absoluto da nature-
da inocência. 18
za humana. O Deus credor da dívida é concebido pelo
Da insondável fertilidade desse terreno preparado devedor corno a mais extrema antítese que é capaz de en-
pela transfiguração religiosa do credor jurídico se apro- contrar para seus autênticos e insuprimíveis instintos de ani-
pria o homem torturado pelo ressentimento, como meio mapa, de modo que esses mesmos instintos são ressigni-
de levar seu próprio automartírio até as suas durezas e ficados como
atitudes extremas. Por isso mesmo, a possibilidade _ vis-
uma divida para com Deus (como hostilidade, rebelião, in-
lumbrada por Nietzsche - de uma segunda inocência para surreição contra o Senhor, o Pai, o protetor e começo do
a humanidade acaba condenada a permanecer urna vir- mundo); (o devedor) se tenciona na contradição Deus e
tualidade soterrada, inconscientemente latente, corno demônio e todo não que diz a si mesmo, à natureza e à
uma esperança fenecida. naturalidade, à realidade de seu ser, projeta-o fora de si
18 Casser, R. op. Cit. P. 441-442. 19 Nietzsche, F. GM. ll, 22.
70 Ibid.
122 Oswaldo Ciacoia Iuníor

Nietzsche como psicólogo 123

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como um sim, algo existente, corpôreo, real, como Deus, xo, são a consciência e o reconhecimento permanentes
como santidade de Deus, como Deus juiz, como Deus ver- dessa defasagem entre credor e devedor que se tornam a
dugo, como além, eternidade, tormento sem fim, inferno, forma por excelência de veneração, interiorizada sob a
~ i~comensurabilidade de pena e culpa." figura da torturante má-consciência, que desconstitui o
fb6 tl r~ Também o ancestral humano - outrora objeto de ve- conteúdo jurídico da obligatio contratual.
U f(l./1.DJ..!I. neração - se circunscreve agora no registro da culpa e do Essa intensificação da consciência de culpa - deri-
~ 54%FíG1\.§l débito. Um resgate definitivo se toma humanamente im- vada da internalização da crueldade - abre caminho para
~-::'I~ possível; esse é o terreno psicológico de onde brota como o surgimento de figuras mais sutis da rigidez moral no
Ocidente e prepara o surgimento da noção venerável de
~ I\"SbC-'M planta tardia a fantasia cristã de um sacrifício do próprio
;JJWt !J:vltyl Deus pela humanidade, de um martírio do credor em be- santidade do dever, em que acabam por se fundir, na alma
~s I\.....e./r" nefício do devedor. do próprio devedor, as figuras do antigo credor e deve-
P~ <9~.ave dor. Nesse processo, a consciência moral se transforma,
A&;; f::,r~ Pense-se aqui na causa prima do homem, no começo do então, naquilo que há de "divino" no devedor, ao mes-
gênero humano, no progenitor deste, a quem agora se mal- mo tempo em que a representação do dever, que nela se
diz (Adão, o pecado original, falta de liberdade da von- origina, é venerada como suprema e sagrada:
tade), ou na natureza, de cujo seio surge o homem e na
qual agora se situa o princípio do mal (diabolização da Nessa esfera, isto é, no direito das obrigações, é que tem
natureza), ou da existência em geral, que se torna não seu lugar de nascimento o mundo dos conceitos morais
valiosa em si (alheamento da existência, desejo do nada culpa, consciência moral, dever, santidade do dever
ou de seu oposto, de ser-outro, budismo e similares).22 - seu começo, de igual maneira como o começo de todas as
coisas grandes na terra, esteve salpicado profunda e larga-
Diante do credor onipotente, agora situado no além mente com sangue. E não seria lícito acrescentar que, no
metafísico, o homem, em sua existência terrena, não é fundo, aquele mundo nunca voltou a perder de todo um
mais devedor, em sentido jurídico, ele é culpado, em sen- certo odor de sangue e tortura? (Nem sequer no velho Kant:
tido moral. A consciência de culpa adquire com isso uma o imperativo categ6rico cheira crueldade ...)23
dimensão inteiramente nova: trata-se de um sentimento
Reconstruidos os traços principais da derivação ge-
e consciência de débito permanente, írresgatável, pois que
nealógica da consciência moral, sob as figuras da consci-
a própria existência do devedor se constitui na sua ori-
ência de liberdade e poderio, assim corno da má-consci-
gem. A perpétua consciência dessa inferioridade, inten-
ência, impõe-se agora retomar a comparação com a deri-
sificada como tormento de uma obrigação descumprída,
vação metapsicológica da consciência moral, tal como es-
se toma o aguilhão do morsus conscientíae. Nesse parado-
tabelecida nos textos de Freud sobre a cultura. O objeti-
21 lbid.
22/d. I1,21. 2J Id. I1,6.

124 Oswaldo Cíacoia junicr Nietzsche como psicólogo 125


,
,
, I
'

vo central da comparação consiste em sugerir que o tra- oel, criminoso, com o qual tanta coisa teve início: as orga-
tamento psicanalítico desses fenômenos os considera nizações sociais, as restrições éticas e a religião".24
apenas sob a ótica da consciência de culpa e do morsus Como conseqüência da atuação combinada das hi-
conscientiae, razão pela qual poder-se-ia afirmar que Freud póteses genealógicas a que recorre, a derivação freudiana
só reconhece e tematiza a figura negativa e ressentida da fundamenta os prirnórdios da organização social na culpa
consciência moral.
comum (Mitschuld) pelo crime de todos, a religião na cons-
ciência de culpa e no remorso (Schuldbewusstsein und Reue),
AdFreud a eticidade (Sittlichkeit), ou restrições éticas impostas, em
parte, pelo tabu nas necessidades da sociedade, cuja per-
Consideremos, de início, que a gênese da consciên-
manência exigia a instituição da exogamia, e, em parte, na
cia moral examinada em Totem e Tabu tem em vista fe-
expiação exigida pela consciência de culpa". Estão pre-
nômenos psíquicos análogos àqueles considerados por
sentes também aqui, portanto, quase todos os elementos
Nietzsche em Para a Genealogia da Moral. Tanto é assim
de que trata a Segunda Dissertação de Para a Genealogia da
que o objetivo central de Freud é lançar luz sobre as ori-
Moral: a consciência de culpa", a responsabilidade, a me-
gens comuns do totemismo e da exogamia, vale dizer,
I mória e o memorial, o remorso, a eticidade, a violência, a
sobre os primórdios da religião e da eticidade (Síttli-
crueldade, a relação entre esta última e a festa. De análoga
chkeit). E, de maneira semelhante a Nietzsche, Freud I maneira, em ambas. se trata, quanto aos primórdios do
reconstitui tal gênese comum da religião e da sociabili- -II processo de horrúnização, de pudenda origo. .
dade humana de tal maneira a nela fazer intervir tanto I
r Todavia, a despeito de todas essas confluências,
a figura do ancestral divinizado quanto o papel telúrico
e demiúrgico representado pela crueldade, pelo crime e 24 Freud, S. Totem und Tabu. S. Freud: Studienausgabe, ed. A. Mitscherlich
pela violência: et allii, Frankfurt/M. Fischer Taschenbuch Verlag, 1982, vol. IX, p. 426.
25 Cf, Id. p. 426-430, especialmente p. 430.
Um dia os irmãos expulsos se juntaram, mataram e devo- 26 Embora nos textos imediatamente citados, o tenno empregado por Freud
raram o pai, pondo fim, dessa maneira, à horda paterna. seja Schu/dbelUusslsein, pode-se afirmar que, também em 7btem e Tabu, a
Unidos, ousaram e conseguiram aquilo que a cada um de- instância psíquica do Gewíssen (coneciência moral) constitui um dos focos
les isoladamente não seria possioel. (Talvez um progresso centrais da investigação. É certo que textos ulteriores, como, por exemplo,
O Mal-Estar na Civiliza~o tematizam de modo específico as acepções des-
cultural, a posse de uma nova arma, tenha lhes dado o sen- se termo, mas também Totem e Tabu as considera diretamente, em boa me-
timento de superioridade.) O pai tirânico fOi certamente o dida, ao praticamente identificar Gewissen e Schuldbewusstsein: "Se não nos
temido e invejado modelo de cada um dos membros da ir- equivocamos, entllo a compreensão do tabu lança também uma luz sobre a natur~-
mandade. Ao devorá-Ia, realizaram a identificação com ele za e o surgimento da consciência moral (Gewissen). Sem alargamento dos concet-
e cada um se apropriou de uma parte de sua força. A refei- tos, pode-se folar de uma consciência moral do tabu e de uma consciência de culpa
ção totêmica, talvez a primeira festa da humanidade, seria do tabu em seguida a transgressllo do tabu. A cmsciêncla moral do tabu é p.rov~-
ueimente aforma mais antiga sob a qual nos confronta o fenõmeno da consciência
a repetição e o memorial comemorativo desse ato memorâ- moral", (op, cito p. 357 5.)

126 Oswaldo Giacoia ]unior Nietzsche como psicólogo 127


T
, I
Freud transpõe os dois planos de argumentação de Nietzs-
che-o debitôrio direito obrigacional, no qual encontra ainda I como fenômenos particularmente característicos ~as
formações do Über-Ich (superego), cuja origem e relaçoes
lugar também a grave interpretação de uma dívida para I
I com o Eu e o Isso constituem talvez o interesse funda-
com os ancestrais, assim como a psicologia da interioriza-
ção - num único: no complexo de Édipo, d9.!Iual provém o mental da investigação.
sentimento de culpa da humanidade.ITanto o temor ''flfç(/~~ É no interior desse contexto que também Freud, de
dos ancestrais - que com o crescente fortalecimento do 1 ,.J; (.ígÇ(ft.. modo surpreendentemente análogo à deri~ação gene~-
prôprio clã levou a que, segundo Nietzsche, o ancestral lógica nietzscheana, trata de uma dupla orzgem do senti-
fosse por fim transfigurado num Deus e trouxe consigo, mento de culpa:
no monoielsmo, um máximo de sentimento de culpa-
quanto a interiorizaçãa dos instintos agressivos para fins Conhecemos, pois, duas origens do sentimento de culpa,
da calculabilidade sociBllsão para Freud conseqüências de aquela a partir da angústia perante a autoridade e (l pos:e-
um e mesmo acontecimento: do assassinato primordial rior, a partir da angústia perante o supere~o. ~ prtmetra
do próprio ancestral.27 constrange a renunciar às satisfações pulsionais, a outra
compele, além disso, à punição, pois que.não se.p.ode ~~ul-
São bem conhecidos os desdobramentos e aprofun- tar do superego a permanência dos deseios proibidos.
damentos que tais idéias experimentam ao longo da tra-
jetória de consolidação da obra metapsicológica freudia- De acordo com essa explicação, na origem da con~-
na. Em O Mal-Estar na Civilização, Freud retoma a hipóte- ciência moral se encontra, analogamente à genealogla
se do parrícídio originário, desta feita com o propósito nietzscheana da má' consciência, a potência telúrica e
de alcançar uma explicação genética do sentimento de transfiguradora da renúncia à satisfação puls~ona~. Tam-
culpa (Schuldgejühl), da consciência moral (Gewissen) da bém no contexto freudiano, como a renúncia n~o ~em
consciência de culpa (Schuldbewusstsein)28, entendidos como conseqüência a erradicação do impulso reprimido,
permanece, com a exigência da satisfação compensató-
27 Gasser, R. op. cito p. 442--443. ria também a necessidade da punição. Em Freud, a cons-
28 É curioso observar que no capítulo Vil de O Mal-Estar na Civilização
ciê~cia moral, por seu turno, se diferencia en;' P?r um
(op. clt. vol IX, p. 251) figura também o termo 'má consciência' (schlechtes
Gewissen). Para caracterizar o estado em que pouco importa se o ato con- lado, angústia social, que se resolve como renuncia I;'ul-
siderado mau ou proibido foi de fato cometido ou apenas desejado; em sional em conseqüência da angústia perante a autorida-
ambos os casos, o sentimento de angústia pela perda do afeto amoroso de externa; por outro lado, a partir da instituição do. su-
s6 apareceria se a autoridade (no caso os pais) descobrisse a existência
do impulso. Nesse caso, ela se comportaria de modo idêntico em ambos perego, como prolongamento inter~~iza~o da _severI~a-
os casos. Preud, porém, afirma que tal estado não merece propriamente de da autoridade externa, a renúncia a satisfaçao pulsio-
o nome de má consciência, pois "nesse nível, a consciência de culpa é nal se resolve em angústia de consciência (Gewissensan-
manifestamente apenas angústia perante a perda do amor, 'angústia so- gst) e consciência de culpa. Essa renúncia à satisfação,
cial'. Na criança, isso jamais pode ser outra coisa, porém também em
muitos adultos nada mais se modifica aí, a não ser que na posição do pai,
ou de ambos os pais, surge a comunidade humana maior". 29 Id, p. 253-254.

128 Oswaldo Giacoia [unior


Nietzsche como psicólogo 129

h
1 em razão da permanência latente do desejo proibido, pro- ção do superego infantil, na medida em que a agressão
duz um sentimento permanente de culpa, uma espécie vingativa da criança é co-determinada pela medida da
de desvantagem econômica na formação da consciência agressão punitiva que ela espera dos pais; por outro lado,
moral, porque essa angústia constitui uma tensão per- fatores constitucionais inatos e influências do meio co-
manente da consciência de culpa, uma infelicidade inte- atuam na formação do superego e no surgimento da cons-
rior duradoura. ciência moral. É precisamente aqui que Freud faz de novo
Embora de início plausível, tal derivação esbarra, intervir o cruzamento entre ontogênese e filogênese, que
contudo, num paradoxo: a consciência moral se origina caracteriza sua metapsicologia. Quando a criança reage às
como conseqüência da renúncia ao impulso. Esta renún- primeiras renúncias impulsivas com excessiva agressão e
cia cria todas as figuras da consciência moral que, em se- correspondente severidade do superego, ela segue um
guida, passa a exigir ulteriores renúncias à satisfação, de modelo fi1ogenético que se fundamenta na figura terrível do
tal maneira que a renúncia constitui, ao mesmo tempo, pai primitivo, a quem se pode atribuir extremos de agres-
fonte dinâmica da consciência moral e intensificação de são, de modo que o sentimento de culpa da humanidade
sua severidade e intolerância. A solução da questão é di- deriva (stammt) do complexo de Édipo e foi adquirido a
visada por Freud mediante a hipótese provisória, susci- partir do parricídio originário e da instituição violenta da
tada para fins de simplificação da exposição, cuja confir- organização social que substitui a horda paterna.
mação e completo estabelecimento serão realizados na Desse modo, ,dado que a tendência agressiva dirigi-
seqüência do texto. De acordo com essa hipótese, trata- da contra o pai se repetiu nas gerações humanas subse-
se, em todos esses processos, de um tipo específico de qüentes, permaneceu também o primitivo sentimento de
impulso a cuja satisfação se renuncia: a pulsão de agres- culpa, fortalecendo-se de novo continuamente por meio
são (Aggressionstrieb).fCada parcela hostil não satisfeita é de cada agressão reprimida e transposta para o super-
assumida pelo superego, intensificando a agressão deste ego, tomando o sentimento de culpa uma vivência fatal
contra o ego, de modo que a consciência moral tem ori- e inevitável. Todavia, uma vez que a situação de ambiva-
gem na repressão de uma hostilidade inicialmente volta- lência afetiva entre amor e ódio é também constitutiva
da contra a autoridade externa e se fortalece e aprofunda do complexo de Édipo individual e coletivo, não se pode
ulteriormente por meio da inibição de novas moções de minirnizar o papel também do amor no surgimento das
impulso agressivo,:j formações da consciência moral, da mesma maneira como
Para tentar contornar as dificuldades engendradas o sentimento de culpa adquire, a partir dessa perspecti-
pelo descompasso entre a severidade agressiva do super- va, uma nova configuração: o sentimento de culpa con-
ego e o tratamento efetivamente dispensado à criança em siste na expressão psíquica do eterno conflito ambivalente
sua história afetiva, Freud se reporta a dois fatores, cuja entre as duas pulsões fundamentais do homem: Eros e o
atuação independente não pode ser exagerada: por um impulso de morte ou destruição. Esse conflito se incen-
lado, a severidade da educação influindo sobre a forma- deia tão logo o homem é posto em comunidade: em pri-

130 Oswaldo Giacoia Iunior Nietzsche como psicólogo 131


,.Jp( -') It PItVI> J ~j?O HJ)nf I\i co ~ "-'lM L ~ h'r:'t ~
rfr~ ,-;;j)/?O~A -Ob, ~..0
F,t..up-o BíeLoCri0,&0t::. I'; '1.,/;';~ .f:n/ (o~. O
- s~ . -q~
c:;.. 'Lr ~
QvC':,~ ~(
meiro lugar na comunidade familiar, onde se origina, do 4.- ':J~ periamenio, não de aquisição. A esse respeito, pensamos
complexo de Édipo, a primeira forma da consciência mo- 'l..o ~s no exemplo da seguramente inata simbólica que provém
ral, como sentimento de culpa; em seguida, com o alar- L.'.4~ do tempo do desenvolvimento da linguagem, que éfamili-
garnento da vida em sociedade, verifica-se o prossegui- . ar a toda criança, sem que tivesse recebido alguma instru-
mento e fortalecimento do mesmo conflito originário em ção, e que, em todos os povos, soa igual, apesar da diferen-
formas dependentes do passado, gerando, como conse- ça das ltnguas. O que ainda quiçd nos falte em seguranç~,
qüência, uma intensificação subseqüente do sentimento cotemo-to a partir de outros resultados da investigação PS1-
de culpa, uma tendência à rigidez excessiva do super- canalftica.30
ego, cuja função paradoxal consiste em viabilizar um ca-
Reconstruindo a provável seqüência imemorial in-
nal derivado de satisfação subterrânea da destrutivida-
tercalada entre o animal totêmico e o Deus monoteísta
de.
da religião mosaica, mediada pelo culto dos heróis, Freud
É numa de suas últimas obras, O Homem Moisés e a
recorre a um modelo de derivação hipotética cujos ele-
Religião Monotefsta, que Freud retoma a constelação te-
mentos se assemelham, grande parte, aos procedimen-
mática formada por parricídio, consciência moral, senti-
tos empregados por Níetzsche em sua genealogia da di-
mento e consciência de culpa, sua gênese e desenvolvi-
vindade universal:
mento ao longo do processo civilizatório, desta vez com
a intenção de reconstituir a longa cadeia de acon tecimen- Com a reunião das tribos e povos em unidades maiores,
tos que se interpõe entre a pré-história do suposto parrí- organizam-se também os deuses emfamflias e hierarquias.
cídio originário e os tempos históricos de instituição vi- Com freqüência, um dentre eles é elevado a soberano sobre
toriosa da religião monoteísta. O desenvolvimento desse deuses e homens. Hesitantemente ocorre então o prôximo
hipotético complexo de formações, Freud o apreende sob passo, prestar culto a um único Deus, efinalmente ocorre
o conceito de retorno do recalcaâo. Freud torna o cuidado a decisão de atribuir todo poder a um único Deus e não
de precisar nesse contexto o sentido impróprio de "recal- tolerar nenhum outro ao lado dele. Unicamente com isso
cado". Trata-se de algo foi restabelecida a glória do pai da horda primitiva e pude-
ram ser repetidos os sentimentos vigentes em relaçãoa ele.31
passado, soterrado, superado na vida dos povos, que ousa-
Contudo, embora a religião mosaica não se expres-
mos equiparar com o recalcado na vida animica do indiui-
se senão com sentimentos de admiração, veneração e gra-
duo ... N6s nos valemos provisoriamente aqui do emprego
de analogias. Os processos que aqui estudamos na vida dos tidão em relação ao retorno do grande pai originário e,
povos são semelhantes aos conhecidos por nôe a partir da desse modo, determine para sempre em termos de eflü-
Psicopatologia, porém não inteiramente os mesmos. Nós
nos decidimos finalmente pela hipótese de que os residuos 30 Freud, S. Der Mann Moses und die monotheistische Religion In: Freud, S:
pstquicoe daqueles tempos originãrics se tornaram heran- op. cii., vol. IX, p. 577.
ça, em cada nova geração necessitando apenas de um des- 31 [d, p. 578.

132 Oswaldo Giacoia J unior


vios de rendição a Deus a direção futura da religião do Segundo Freud, essa vertigem do ascetismo moral
pai. Isso não significa, para Freud, que o desenvolvimen- era, no fundo, apenas uma poderosa reação e um disfar-
to dessa figura da religiosidade tenha sido concluída. ce do ódio homicida e não pode jamais, mesmo como
sublimação ética, ocultar inteiramente sua origem a par-
A essência do relacionamento para com o pai pertence a tir do sentimento de culpa e sua função punitiva. Essa
ambioalência; não poderia deixar de ocorrer que, no curso
era, pois, a única via de conciliação oferecida pela reli-
do tempo, também se quisesse estimular aquela hostilidade
que uma vez impeliu os filhos a matar o pai admirado e gião mosaica para o então retomado conteúdo r:cal:a~o
temido. Na moldura na religião de Moisés não havia espa- da tragédia paterna. Porém, urna vez que a ambivalência
ço para a expressão direta desse ódio homicida do pai; s6 afetivo-pulsional é constitutiva do complexo paterno, a
põde vir à tona uma poderosa reaçãoa ele, a consciência de necessidade de compensação psicológica oferece susten-
cul a por causa dessa hostilidade a - :JllisdfucirJde-ter tação para a hipótese freudiana a respeito do possível
ecado contra o pai e não ter ces depecar. Essa consci- destino histórico de Moisés.
ência de eu pa, mantida desperta sem interrupção pelos Pro-
fetas, e que logoformou um conteúdo integrante do siste- Se nos reportamos à questão de como se chegou a que a id~a
ma religioso, tinha ainda uma outra, superficial motiva- monoieista tenha produzido uma impressão dessa espécie
ção, que adequadamente mascarava sua verdadeira prove- justo sobre o povo judeu, então achamos na indi~aç~ de ~ue
niência. As coisas não andavam bem para o povo, as espe- isso teria sido destino, uma resposta só à primeira otsta
ranças depositadas na bondade divina não queriam se rea- surpreendente. Naturalmente, Freud pensa que a grande
lizar, não erafácil agarrar-se à ilusão acima de tudo ama- tragédia da humanidade tenha experimenta~o ~ma te:'-,den-
da, a de que se era o povo eleito de Deus. Pois que não se cial repetição na história judaica e tenha asstm iniensificada
queria renunciar a essa felicidade, então o sentimento de a sensibilidade para a prê-histôría: O destino empurrou
para mais perto do povo judeu o feito memorável e o
culpa pela própria pecaminosidade oferecia uma bem-vin-
crime, o parricídio, ao propiciar a ele repeti-Ia na pes- .
da desculpa para Deus. Não se merecia nada de melhor do
soa de Moisés, uma eminente figura patema.P
que ser castigado por ele, porque não se mantinha os seus
preceitos e, na necessidade de satisfazer esse sentimento de Por conseguinte, o desenvolvimento ulterior da reli-
culpa, que era insaciável e vinha de tantas fontes prcfun- gião paterna, como retomo do recalcado, tem que cond~-
das, era necessário deixar que esses preceitos se tornassem zir necessariamente além das fronteiras do Judaísmo. Aqui,
sempre mais severos, penosos e escrupulosos. Em uma em-
mais uma vez de maneira surpreendentemente análoga,
briaguez de ascetismn moralforum impostas sempre novas
Nietzsche e Freud se aproximam ao reconstituir a gênese
renúncÜls ao im uls so se ram ao en
em doutrina e receito elevaÇ.õestt'c s q~ermaneceram histórico-psicológica dessa superação do Judaísmo na uni-
inaceseioeis a outros 12.0005 anti OS.32 versalização interpretativa do sentimento de culpa.

32 Id, p. 579. 33 Gasser, R. Op. cii., p. 443.

134 Oswaldo Giacoia [unior Nietzsche como psicólogo 135

••
A consciência de culpa daquele tempo desde há muito não mento de verdade de outra maneira que sob o delirante
se limitava mais ao povo judeu; como um embotado mal- disfarce da Boa-Nova: Nós estamos redimidos de toda
estar, como um pressentimento de desgraça, cuja razão nin- eui a desde ue um de nós sacrificou sua v' da.para
guém sabia indicar, ele tinha apanhado todos os povos do nos liberar da eui a... Pecado ori inal e reden -o e
Mediterrdneo. A historiografia de nossos dias fala de um morte sacri 'dal a am as colunasful1damel'ltJJisJia.
envelhecer das antigas culturas; suspeito que ela tenha nova Reli 'ão undada or Paulo ... Depois que a doutri-
apreendido apenas causas ocasionais eauxiliares para aque- na cristã tinha rompido as margens do [udaismo, ela as-
la indisposição dos povos. 34 sumiu partes constitutivas de muitas outras fontes, re-
nunciou a tdguns traços do monoteiemo puro, adaptou-
Impossível não perceber nessa passagem a seme-
se em muitas singularidades ao ritual dos demais povos
lhança com o quadro, esboçado em O Antícristo de Niet-
mediterrãneoe.ê
zsche, como opressivo sentimento de insatisfação e mal-
estar característicos das fases mais agudas de decadên- Tentamos, no curso de nossa reconstituição, explici-
cia das antigas culturas. Tanto é assim que os elementos tar o importante papel desempenhado pela memória, o
descritivos são aproximadamente os mesmos: pressenti- esquecimento e a repetição na gênese do processo civili-
mento de catástrofe, de perempção, esmagador sentimen- zatório, tal corno descrita por Nietzsche e Freud. Seria
to de culpa e imperiosa necessidade de punição, mas tam- necessário, ao lado das semelhanças, destacar também
bém o procedimento característico pelo qual O Anticristo as diferenças de estatuto e função que tais noções adqui-
reconhece o gênio cultural de Paulo: o expediente de uni- rem no interior dos dois distintos modelos teóricos, a
versalização dos sentimentos e doutrinas cristãs, a partir genealogía e a metapsicologia, o que, em grande parte,
de reinterpretações e ajustamentos pelos quais este adapta foi feito pela literatura secundária especializada.
a si e se assenhora dos rituais de outros povos da anti- É certo que Freud e Nietzsche concebem distinta-
güidade tardia: mente a formação psíquica da memória; todavia, a des-
peito das inegáveis diferenças de tratamento e de mode-
A explicação da situação opressiva partiu do Judaísmo. lo teórico=, a instituição ou criação da faculdade da me-
Desccnsideradas todas as aproximações e preparações em
mória se constitui, para ambos, como um dos limiares do
volta dele, foi com efeito um homem judeu, Saulo de Tar-
processo de hominização.
50, que como cidadão romano se chamava Paulo, em cujo
esptrito primeiramente irrompeu o conhecimento: somos Inequívoca é também a importância do terna do es-
tão infelizes porque matamos Deus pai. E é inteira- quecimento para os dois pensadores, especialmente em
mente compreensioel que ele não podia conceber esseJrag-

35 Id, p. 580.
3( lbid.
36 A esse respeito, cf, Brusotti, M. Op. cii., p. 87-88.

136 Oswaldo Giacoia [unior Nietzsche como psicólogo 137


sua relação com o acesso à consciência e à memória. Não hipótese termodinâmica de uma possível morte térmica
se trata apenas de ressaltar ainda uma vez a indiscutida do universc."
relevância dºª-. rocessos de inibição, re res -
mento de conteúdos ue transitam e o"
recalc -1-J' ?>
s
~
O Do ponto de vista desse trabalho, importa, contudo,
examinar um aspecto cuja relevância tem merecido aten-
inst . si uicas, desestabiJizando as fronteiras entre c.~ ção desproporcional por parte da pesquisa especializa-
consciência e inconsciente, racionalidade e impulso, mas, ":t ~ da. Trata-se da compreensão do inteiro desenvolvimento
sobretudo, de trazer à luz o papel decisivo dessa alter- i. do processo de civilização, mais ainda, do processo de
nância entre esquecimento e memória para se compreen- I hominização a partir da atuação conjunta dessas três no-
der a economia e a dinâmica das forças em ação na gêne- I ções, atuação comandada pela emergência da repetição,
se e no desenvolvimento da sociedade e da cultura. A seja de conteúdos psíquicos inconscientes, como no caso
esse respeito caberia fazer menção à tensão entre os tra- I da genealogia freudiana da religião e da moral, seja de
ços mnêmicos da fantasia originária e a pressão exercida . virtualidades culturais soterradas ou mantidas em latên-
em sentido contrário a seu ingresso na consciência, as- da, como no caso da genealogia nietzscheana da cultura
sim como as importantes formações culturais substituti- ocidental. Para esclarecer esse aspecto, torna-se necessá-
vas que Freud daf faz derivar tanto para a psicologia in- rio contrapor a reconstrução freudiana do processo civi-
dividual quanto para a social. Quanto a Nietzsche, bas- lizat6rio, guiada peja categoria de retomo do recalcado,
taria se referir ao combate titânico entre memória da von- tal como a vimos se desenrolar em relação à explicação
tade e força ativa de esquecimento, que está na origem metapsicológica da'religião monoteísta, com a interpre-
das mais rudimentares formas de sociedade. tação nietzscheana das potencialidades implica das no
Quanto ao conceito de retorno, a proximidade entre processo de auto-supressão da moral cristã. A partir des-
eterno retorno e retorno do reca/cado já foi objeto de exame sa contraposição se esclarece, em grande medida, que a
aprofundado na literatura secundária. A esse respeito,
cabe lembrar que, do ponto de vista de sua direção espe-
culativa principal e de sua fundamentação teórica, os dois 37 Toda essa discussão se vincula às posições divergentes na física do
~nceitos exibem divergências capitais: dentre elas, a prín- final do século XIX,especialmente aos trabalhos de Mach, Schrõdinger,
cípal talvez consista na remissão de ambos a teorias ffsi- Poincaré, Boltzmann e outros. Ora, nem a especulação de Nieizsche a respei-
cas contemporâneas, como as da conservação da energia to do eterno retorno do mesmo concorda com o teorema do retorno de Poincaré,
nem o próprio Freud provocou, todavia, uma discussão sobre a morte térmica do
e as proposições fundamentais da termodinâmica. Se, universo. Em seu antagonismo, a disputa jfsica remete, contudo, novamente
para Nietzsche, a doutrina do eterno retorno se liga à para os elementos de sustentação nos pensamentos de Nietzsche e de Freud: de
concepção fisicalista de um retorno permanente das con- um lado, a uma filosofia que conta com a persistente permanência das configura-
ções de força, de outro com uma 'especulação remota' em que osjenõmenoe
figurações de força, a compulsão à repetição freudiana
flsicos iniciais da 'repetição' tornam-se finalmente manifestações de uma uni-
encontraria eventual respaldo, em última instância, na versal vontade de morte. (Gasser, R: Op. cii., p. 397)

138 Oswaldo Ciacoia [unior Nietzsche como psicólogo 139

11
concepção global de história, presente em Para a Genealo- ca no conflito edípico originário. Ora, com a instituição e
gia da Moral e nos textos sobre a cultura de Freüd, obede- a consolidação do monoteísmo, nos termos em que este
ce a um modelo em cujo núcleo se coloca a categoria de atinge sua culminância ética com o decálogo mosaico, não
retomo, como centro articulador do atuar conjunto de se completa e encerra o destino do subsolo pulsional e
memória e esquecimento. afetivo da religiosidade no interior da cultura. Com efei-
Tal contraposição pode ser levada a efeito de manei- to, na medida em que, na Antigüidade tardia, à absoluta
ra mais simples e plástica se nos orientarmos pela inter- soberania histórica do Deus único corresponde inevita-
pretação psicológico-histórica de determinados tipos, cuja velmente uma exacerbação desmedida e universalizada
atuação tanto Nietzsche como Freud consideram 'epo- do sentimento de culpa, acompanhado da correspondente
cais' para a cultura no Ocidente. Tomemos, de início, o necessidade de punição, essa tensão opressiva propicia
caso da reconstrução freudiana da ascensão e triunfo da as condições psicológicas que preparam e fortalecem um
religião monoteísta. Seu ponto de partida cronológico é, novo retorno do recalcado. No interior dessas coordena-
como se sabe, detenninado pela instituição simultânea das é que o triunfo global do Cristianismo, como religião
da primitiva religião totêmica e pela instauração das res- universal, se torna, para Freud, compreensível.
trições éticas (Sittlichkeit) exogâmicas subqüentes ao par- Por um lado, a doutrina fundamental do Cristianis-
rícídío original. Como resultado da longa e complexa sé- mo oferece um canal de escoamento às correntes afetivas
rie, acima indicada, de transformações históricas, psico- que se expressam no sentimento de culpa, na medida em
lógicas, sociopolfticas e do imaginário religioso, a exalta- que se institui como religião a partir da tácita confissão do
da glorificação do Deus-Pai que, conjuntamente com o assassinato de Deus-Pai. Com efeito, segundo a interpre-
aprofundamento e a intensificação do sentimento de cul- tação de Freud, uma das pilastras do Cristianismo con-
pa, caracterizam a religião mosaica, corresponde à expres- siste justamente no reconhecimento da razão originária
são ético-religiosa da ambivalência afetiva inerente ao daquele embotado mal-estar que oprimia a consciência
complexo de Edipo. dos antigos povos do Mediterrâneo: sofremos porque
Na medida em que a figura histórica de Moisés, em matamos Deus-Pai; por conseguinte, merecemos o sofri-
virtude de atributos personaIíssimos e de circunstâncias mento como punição. Todavia, como conseqüência da
ligadas ao contexto histórico, imanta e desencadeia o ex- pressão do recalque, essa confissão não pode ser pronun-
plosivo conflito pulsional tornado latente por força do ciada senão sob os deslocamentos e desfigurações pró-
recaI que, seu destino se cumpre ao realizar-se o retorno prios aos processos psicopatológicos. Dessa maneira, uma
do recalcado. Desse modo, o assassinato de Moisés pelo outra viga mestra da doutrina cristã não pode deixar de
povo eleito corresponde a mais do que uma hipótese oci- consistir na transfiguração imaginária da tragédia primor-
osa, na medida em que sua plausibilidade, como realida- dial nos dramas da expiação, da redenção e da reconcili-
de histórica possível, encontra plena atestação psicológi- ação.

140 Oswaldo Giacoia junior Nietzsche corno psicólogo 141


Dessa maneira, recolhendo, no interior de sua pró- manidade, que configura uma ilusão atenuante do sen-
pria interpretação, as tradições messiânicas do Judaísmo timento de culpa, o que constitui uma das razões prin-
e os anseios de reconciliação de outros povos, o Cristia- cipais de sua eficácia histórico-mundial. Não por acaso,
nismo oferece ainda um derivativo para a satisfação oblí- ainda segundo Freud, esse tour de force do gênio políti-
qua dos afetos amorosos imbricados no complexo de co-religioso, em que culmina e agoniza a decadência do
Edipo da humanidade, na medida em que, segundo seu mundo antigo e se inicia o alvorecer dos modernos ru-
mito fundador, um dos irmãos se oferece em sacriftcio como mos da civilização ocidental, é obra de Paulo, um judeu
vftima expiatôria. Desse modo, a partir de uma reinterpre- de Tarso. Sua escrupulosa defesa do monoteísmo mo-
tação tipicamente cristã do sacrifício vicário, o imaginá- saico e sua pertença arraigada ao ethos judaico o colo-
rio cristão satisfaz o desejo de reconciliação com o Pai cam em contato especialmente privilegiado com as fon-
temido e admirado, na mesma simbólica com que con- tes tradicionais e as raízes psicológicas em que um povo
fessa o assassinato primordial, já que a morte expiatória viveu historicamente, e ritua lizou em culto religioso na-
do filho não pode significar outra coisa que a reparação cional, uma experiência imorredoura de retorno do re-
ritualmente simbolizada de um parricídio. Assim, a re- calcado.
denção reconciliatória de todos os irmãos com o Pai é Poder-se-ia dizer que, nesse sentido, unicamente
obtida a partir da morte de um dos irmãos. aquele cujo destino o coloca na condição de filho espiri-
Contudo, uma vez que a ambitalência das correntes tual de Moisés é cap'az de adivinhar inconscientemente a
pulsionais é incontornável no complexo edípico, da com- fatalidade do sentimento de culpa, de intuir em imagens
binação das doutrinas cristãs fundamentais resulta, para distorcidas e nebulosas a constelação imaginária de uma
Freud, a confissão cifrada não apenas da ascensão dos fantasia reconciliatória em que aquele sentimento encon-
impulsos positivos em relação ao Pai, mas também das tra apaziguamento e expiação. Por essas mesmas razões,
vigorosas correntes hostis contra ele dirigidas. Se, por um Paulo está então em condições de imantar uma nova re-
lado, a redenção é obtida com base no sacrifício expiató- crudescência do retorno do recalcado. Com ele, o Judaís-
rio do Filho, por outro lado, a morte ritualizada é tam- mo se sublima, se abisma na profundidade interior da
bém a morte do Filho que, no e pelo sacrifício, ocupa o consciência moral, se despe de toda positividade e exte-
lugar que era do Pai na tragédia original, substituindo rioridade estatutária, se espiritualiza e expande, superan-
então a religião paterna pela religião fraterna. Tal substi- do o particularismo da religião judaica, ao torná-la efeti-
tuição consiste, pois, numa nova e fatal eliminação do vamente universal. Porém, sua interpretação cultural-

t
Pai pelos irmãos, cuja hostilidade de novo triunfa sobre mente seminal da tra édia vivi no com lexo de Édi o
sua intolerável onipotência, €> orresponde também a uma nova fi ra' te sifi a do
Com isso, a religião cristã apresenta-se, para Freud, en en o e cul a e d e'o d íção. Esta, por sua
como a sintomatologia de uma neurose obsessiva da hu- vez, tem sua contrapartida numa moralidade rígida, in-

142 Oswaldo Giacoia ]unior Nietzsche como psicólogo 143


transigente e hostil, cuja exacerbada exigência de renún- tre ambos, a partir das respectivas interpretações de de-
cia pulsional é incompatível com a realidade econômica terminadas figuras-tipo. Como Freud, já anteriormente,
e dinâmica da vida afetiva. Nietzsche interpretara Paulo de Tarso como o criador do
Esta é, pois, a fonte originária do mal-estar na civili- Cristianismo. E o foi precisamente a partir das mesmas
zação, que oprime o homem moderno sob os efeitos da intuições psicológicas do gênio fundador de religiões que
moralidade cristã, tomada universal; mal-estar cujo de- acompanhamos acima na descrição de Freud: sua inter-
senlace não se pode prognosticar com certeza absoluta, pretação do sentimento de culpa, a propagação da nos-
mas que oferece o risco da repetição dos efeitos incontro- talgia messiânica judaica para além das fronteiras parti-
láveis de um novo retorno do recalcado. culares do Judaísmo, a incorporação de elementos ético-
Chegados a este ponto, podemos extrair um resulta- religiosos estranhos à sua própria experiência fundamen-
do geral que confirma nossa hipótese acima avançada de tal do mundo e avaliação da existência, a absolutamente
uma certa unilateralidade da derivação meta psicológica inigualável capacidade de sublimação religiosa dos im-
freudiana do sentimento de culpa e da consciência moral: pulsos hostis, eduIcorados em doutrina do amor, da re-
conciliação e da salvação eterna. É sobretudo sob essa
Se quisermos extrair numa proposição um resumo provi- ótica que se deve entender o dístico polêmico de Nietzs-
sôrio das respectivas considerações, não podemos deixar de
che: a [udéia triunfou sobre Roma, determinando os no-
constatar - a despeito das análogas teorias da interioriza-
ção, a despeito de reflexões semelhantes sobre a relação en- vos horizontes da cultura ocidental, destilando a seiva
tre renúncia pulsional e 111Oral-um interesse de conheci- ético-religiosa que dá substância e força às "idéias mo-
mento inteiramente divergente: se a Freud interessa uma dernas".
história fundamental do humano sentimento de culpa que, Essa experiência cultural, como vimos, implica o re-
para além de toda sorte de ramificações, traz à luz, no mo- calcamento, o fenecimento de um outro gênero de desti-
noteísmo judaico, seu ápice sutil e com isso justamente a namento histórico para o Ocidente, que todavia não foi
atestação de sua permanência, Nietzsche persegue a rami- completamente destruido, mas permanece latente como
ficação mesma, ou seja, uma proveniência diferente de bem alternativa epocal real ou possível. Trata-se do "tipo ho-
e mal e uma diferente proveniência de culpa e má-consci- mem" caracterizado por Nietzsche como indivíduo sobe-
ência, para constituir em problema a existência de morais rano, cuja consciência moral não se abisma na negativi-
dominantes e tornar a judaica transvaloraç1lo dos valores dade da culpa, mas na positividade da inocência, da cons-
objeto da critica.38 ciência de poder e liberdade. Esse indivíduo soberano,
A despeito dessa divergência global, pode-se, con- senhor de seus impulsos como de seus prós e contras,
tudo, empreender mais uma elucidativa comparação en- capaz de se dar a si próprio uma legislação auto-outor-
gada; esse indivíduo cuja moralidade não aspira à uni-
versalidade prescritiva de uma moral anônima e impes-
38 Gasser, R. Op. cit., p. 444-445. . soal, refratário à identidade uniforme do "rebanho autõ-

144 Oswaldo Giacoia Junior Nietzsche como psicólogo 145


nomo", cuja alma "tem reverência por si mesma"; este Mas também nos começos da consolidação do Cris-
além-do-homem moderno, encarnação de um novo ato tianismo histórico, sob a forma da oposição entre a "teo-
grandioso na "tragédia da alma" corresponde a urna vir- logia rabínica de Paulo", seu efetivo fundador, e o autên-
tualidade inscrita nos destinos da própria moralidade tico Evangelho de Jesus de Nazaré. Em seguida, esse re-
cristã ocidental. torno possível ocorre com a extraordinária tentativa de
Com efeito, em sua epopéia de autoconstituição na auto-superação, para Nietzsche, historicamente possível,
história, a humanidade vivenciou imorredouras experi- do Catolicismo romano pelos ideais pagãos do Renasci-
ências desse tipo de retorno do recalcado. Em primeiro lu- mento, inviabilizado pela eficaz repressão fundamenta-
gar, no interior do próprio mundo helênico, naquilo que lista da reforma protestante. E mais uma vez aqui o bor-
nele havia de genuíno e vigoroso: a tragédia ática e os dão que introduz a explosiva temática é aquele do es-
deuses homéricos: quecimento e da recordação.
Que em si a concepção dos deuses não tem que conduzir Aqui é necessário tocar em uma recordação ainda cem ve-
necessariamente a essa depravação da fantasia, cuja re- zes mais penosa para alemães. Os alemães privaram a Eu-
presentação não nos era ltcuo dispensar por um instante, ropa da última grande colheita de civilização que houve
que háformas mais nobres de se servir daficção poética para a Europa - a do Renascimento. Entende-se afinal,
dos deuses do que para essa autocrucificação e auio-enui- quer-se entender, o que foi o Renascimenio? A transva-
lecimento fÚJ homem nos quais foram mestres os últimos loração dos 'Valores cristãos, o ensaio empreendido com
milênios da Europa - isso é coisa que, por sorte, ainda se todos os meios, com todos os instintos, com todo gênio, de
pode inferir de todo olhar dirigido aos deuses gregos, a levar os valores opostos, os valores nobres, à vitória ...
esses reflexos de homens mais nobres e mais senhores de Até agora houve apenas essa grande guerra, até agora não
si, nos quais O animal se sentia dívinizado no homem e houve nenhum questionamento mais decisivo que o do
não se devorava a si mesmo, não se enfurecia contra si Renascimento - minha questão é sua questão: - também,
mesmo! Durante um largulssimo tempo, esses gregos se nunca houve uma forma mais fundamental, mais direta,
serviram de seus deuses cabalmente para manter afasta- mais rigorosamente desencadeada em toda a frente e em
da de si a má consciência, para permanecer satisfeitos pleno centro, de assalto! Tomar de assalto a posição decisi-
com sua liberdade de alma: quer dizer, em um sentido va, a própria sede do cristianismo, aqui levar os valores
inverso ao uso que o Cristianismo fez de Deus. Nisso che- nobres ao trono, quer dizer, infiltrã-Ios nos instintos, nas
garam muito longe aquelas magnificas cabeças infantis, mais profundas necessidades e apetites daqueles que nele
valentes como leães".39 estavam assentados ... Vejo diante de mim uma possibili-
dade, de um perfeito feitiço e colorido extraterreno: - pa-
rece-me que ela resplandece com todos os arrepios de refi-
nada beleza, que nela está em obra uma arte tão dioina, tão
diabolicamente divina, que em vão se rebuscam milênios
39 Nietzsche, F. GM. II,22.

146 Oswaldo Giacoia Junior Nietzsche como psicólogo 147


em busca de uma segunda possibilidade semelhan te: vejo definitivo do conflito afetivo reca1cado com o complexo
um espetáculo tão rico de sentido, tão maravilhosamente de Édipo, tampouco para Nietzsche a sucessão de "em
paradoxal ao mesmo tempo, que todas as divindades do vão", que marca indelevelmente a intervenção dos ale-
Olimpo teriam ensejo para uma imortal gargalhada - Cé- mães na história espiritual da Europa, aniquila definiti-
sar B6rgia como Papa ... Entendem-me? ... Pois bem, isso vamente as possibilidades suscitadas pela experiência do
teria sido uma vitória, pela qual, eu, hoje, clamo sozinho: Renascimento. No mundo contemporâneo, com o apro-
- com isso, o cristianismo estaria abolido! ... E o que acon- fundamento e a máxima intensificação do niilismo euro-
teceu? Um .monge alemão, Lutero, veio para Roma. Esse peu, portanto, a partir da experiência histórica da perda
monge, trazendo no corpo todos os instintos vingativos de de sentido e vigência por parte dos supremos valores cris-
um padre malogrado, revoltou-se em Roma contra o Re-
tãos, abrem-se novamente horizontes para urna repeti-
nascimento ... Em vez de, com a mais profunda gratidão,
ção ímpar desse resgate de uma virtualidade cultural que
entender o descomunal que havia acontecido, a superação
do cristianismo em sua sede - entendeu seu ódio tirar des- corresponderia a um ultrapassamento dos mais sagra-
se espetáculo somente seu alimento. Um homem religioso dos ideais vividos até o presente. Também nessa confron- I

tação, portanto, de análoga maneira como fora necessá- ,I


só pensa em si - Lutero viu a corrupção do Papado, en-
quanto era precisamente o contrário que se podia pegar com rio um Paulo de Tarso para suprimir a religião mosaica
as mãos: a velha corrupção, o pecatum originale, o cristia- por meio de uma transvaloração de seu conteúdo ético-
nismo, não estava mais sentado na cadeira do Papa! Mas religioso fundamental, assim também é necessário que
sim a vida! Mas sim o triunfo da vida! Mas sim o grande seja um alemão autêntico, em quem se torna carne e gê-
Sim a todas as altas, belas, temerárias coisas!... E Lutero nio toda profundidade e fatalidade do atávico "pessimis-
restabeleceu a Igreja: tomou-a de assalto ... O Renasci- mo alemão", aquele cuja tarefa epocal consistirá em rea-
mento - um acontecimento sem sentido, um grande em lizar uma transvaloração do conteúdo axiológico da Re-
vão! - Ah esses alemães, o que eles já nos custaram! Em forma luterana e, com ela, do "Espírito do Cristianismo".
vão - isso foi sempre obra dos alemães - a Reforma; Leib-
niz; Kani e a assim chamada filosofia alemã; as guerras de Não me foi perguntado, deveria me ter sido perguntado, o
liberdade; o Reich - cada vez um em vão para algo que já que precisamente em minha boca, na boca do primeiro imo-
estava aí, para algo irrecuperável.i.w ralista, significa o nome Zaratustra ... Zaratustra foi o pri-
meiro a ver na luta entre o bem e o mal a verdadeira roda
Do mesmo modo como, para Freud, nem a religião motriz na engrenagem das coisas - a transposição da mo-
de Moísés, nem a religião de Paulo representam o final ral para o metaftsico, como força, causa, fim em si, é obra

40 Nietzsche, F. O Anticristo, Par. 61; In: Obra Incompleta Trad. Rubens R.


F. Ecce Homo. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo; Com-
41 Nietzsche,

Torres Filho Col. Os Pensadores São Paulo; Abril Cultural, 1974, p. 368. panhia das Letras, 1995, p.ll0-1l1.

148 Oswaldo Giacoia [unior Nietzsche como psicólogo 149


sua. Mas essa questão já seria no fundo a resposta. Zara- mo,como moral, temainda de ir aofundo - estamos no
tustra criou este mais fatal dos erros, a moral: em conse- Limiar desse acontecimento:"
qüência, deve ser também o primeiro a reconhecê-lo.Com-
preendem-me? .. A auto-superação da moral pela veraci- A partir dessas coordenadas, se compreende melhor
dade, a auto-superação do moralista em seu contrário - o significado daquela enigmática noção de "niilismo eu-
em mim -, isto significa em minha boca o nome Zaraius- ropeu", tão freqüentemente retomada nos derradeiros
tra:" escritos de Níetzsche.
Trata-se, também aqui, da mesma experiência de
Com efeito, ao realizar-se de maneira integral e sem
retorno, recalque, esquecimento e repetição, porém des-
resíduos, a intransigente veracidade cristã traz à luz sua ta vez tematizada a propósito da reconstituíção do senti-
criação mais sublime e depurada: a honestidade intelectu- do fundamental da religião e da moralidade hinduísta
al, essa virtude par excelence da consciência moral moder- na índia, relacionando-a com o devir histórico da metafí-
na. Esse escrúpulo da consciência científica, por seu turno sica ocidental. Esse modelo oferece uma linha e um hori-
- ao retomar o gesto de Paulo de Tarso em relação à reli- zonte de inteligibilidade tanto para o apogeu como para
gião mosaica e à sua moralidade correspondente, ao repe- o ocaso do mundo moderno. Uma vez que as virtualida-
tir a obstinada intransigência de Lutero em face da 'cor-
rupção' da Igreja romana -, não se permite mais nenhuma
condescendência em relação a toda forma de improbida-
42 Nietzsche, F.Para a Cenealogia da Moral, 2"Dissertação, par. 2:7; In: Obra
de intelectual, inclusive aquela que se expressa como hi- lncompleta.op, cii., p. 331-332.Convém apontar aqui para uma coincidên-
pocrisia presente em variantes modernas de "tartufferie" cia de inesgotável significação nessa rede de analogias que estarnos con-
moral, nas escatologías religiosas sobrevividas ou nas uto- siderando. Para Freud, Paulo de Tarso é o gênio religioso na interpreta-
pias pacificadoras de um redentor final da história. ção do sentimento de culpa precisamente porque, por meio dela, penetra
na mais abissal profundeza da experiência judaica do retomo do
O que, perguntado em todo rigor, triunfou propriamente recalcado, com isso ultrapassando, no mesmo movimento, os limites do
particularismo judaico: "somente uma parte do povo acolheu a nova doutrina.
sobre o Deus cristão? ... A resposta está em minha A Gaia Aqueles que a isso se recusaram chamam-se ainda hoje judeus. Por essa sl!fH!ra-
Ciência, aforismo 357:A própria rnoralidade cristã, o ção, eles estão ainda mais agudamente apartados dos outros do que antes dISSO.
conceito de veracidade, tomado cada vez mais rigo- Da nova sociedade religiosa, que além de jUdeus acolheu egípcios, gregos, euios,
rosamente, o refinamento de confessores da consci- romanos efinalmente germanos, tiveram que ouvir a censura de que eles assas-
ência cristã, traduzido e sublimado em consciência sinaram Deus. Essa censura soaria, sem abreviaçilo: Vocêsnão querem admi-
tir que vocês assassinaram Deus, enquanto nós o admitimos e fomos pu-
científica, em asseio intelectual a qualquer preço... é
rificados dessa culpa. Compreende-se então facilmente quanta verdade se en-
por esse rigor, se é que é por alguma coisa, que so- contra por detrás dessa censura." (O Homem Moisés e a Religião Monotefsta,
mos justamente bons europeus e herdeiros da mais op. cii., p. 581) Em Nietzsche, por sua vez, aquele em cuja obra se consu-
longa e mais corajosa auto-superação da Europa... ma integralmente o ideal de veracidade cristã, o consumador de sua ca-
Dessa forma, o cristianismo, como dogma, foi aofundo tástrofe, não pode deixar de ser, por isso mesmo, como o anti-Paulo, tam-
por sua prôpria moral; dessa forma também, o cristianie- bém o não mais cristão, o Anticristo.

150 Oswaldo Giacoia [unior Nietzsche como psicólogo 151


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des inerentes aos experimentos cujos resultados deter-


minam os destinos de uma cultura não desaparecem, mas
submergem em espessas camadas de esquecimento e
sempre de novo podem irromper à tona, vencendo o re-
calque, é que se torna possível ainda, por mais tênue e
fugaz que seja a esperança, anelar pelas virtudes criado-
ras de um "niilismo ativo", no momento em que um novo
budismo, o budismo europeu, se torna, para Nietzsche,
experiência histórica irrecusávei no mundo moderno.

BIBLIOGRAFIA
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1977.
FRWO, S. Werke. Studienausgabe. &I. Alexander MitscherUch et allii, Frank-
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