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da moral, porquanto aqui também se trata, fundamen- têntico sentido histórico. Derivação genética e genealo-
talmente, de uma derivação genética da consciência mo- gia apresentam-se, portanto, como avatares do sentido
ral. Esse termo constitui a versão luso-brasileira da ex- histórico, a forma científica e tipicamente moderna da
pressão Gewissen (gewízzenique [interno l,no alemão anti- iV~-l-:;.. ~
virtude ou, em termos metafóricos, a "segunda visão"."
. go) que, por seu turno, é tradução do grego syneidésís, ~ Essa preocupação com a gênese da consciência mo-
[ apoiada no termo latino conscientia, isto é, co-ciência, co- ral marca um importante traço comum entre a genealo-
saber. Trata-se do fenômeno psíquico da consciência reli- gia de Nietzsche e a metapsicologia de Freud, na medida
gioso-moral. Na Europa, como se sabe, esse conceito de 1 ~~. em que constitui ambas como derivações genéticas, cuja
consciência moral foi primeiramente desenvolvido entre ~ 0/ tarefa principal consiste em reconduzir formações cultu-
os gregos, com apoio na representação segundo a qual • ~ ~ rais complexas (instâncias psíquicas, práticas e institui-
para todo e qualquer mau comportamento em relação ~ "" ções sociais, sistemas orgânicos) às condições (pré-jhis-
aos deuses ou aos homens há sempre uma testemunha, " }.> tóricas de surgimento, transformação e desenvolvimen-
isto é, um com-scíentia interior. to. Trata-se de identificar as condições de instauração e
O conceito de consciência moral adquiriu então pro- ( deslocamento de sentido de tais formações, por intermé-
fundidade e significação na ética cristã, mormente no seio : ~ ~, ~. dio da decifração de sinais inscritos nos corpos e almas
da filosofia medieval, em que se consolida o matiz de ~ ~ -...J _ dos indivíduos e dos povos. C..9illl2reend . ôme-
significação, aproximando consciência moral de remor- ~ ~ ~ ~ n~gnif.ka/_portanto reconstruir o movimento de sua
sus ou morsus conscientiae: a penosa convicção de ter agi- ~ ~ \.;;;- gênese e a dinâmica de seu desenvolvimento a eia
do mal. Nessa ace ção, a consciência moral está relacio-
nada ao senso moral as próprias açÕes, ao sentimento
provido de uma f~uldade de autojulgamento, à consci-
ência de incondicionãI conformidade ao dever, indican-
do ser justa uma ação que se deseja empreender>. Tanto
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hiytórica de sua a12ro12riaçãoem relações sociais de p~-
der que determinam a em.ergência e os deslocamentos
e senti os.
Genealogia da Moral e Metapsicologia apresentam-se,
pois, como interpretações da (pré- )história da q~nsciên-
Freud quanto Nietzsche, já antes dele, não se contenta- 'sia moral. no amplo horizonte da reflexão sobre o devir
ram com ofato da consciência moral; partindo da inquie- í histórico da cultura. Tais interpretações, em seus respectí-
tação acerca do seu sentido, pretenderam decifrá-lo por ~ vos registros teóricos, '!Preendem-na como surgindo si-
meio de derivação genética, na mais clara das indicações multaneamente com a socialização e homjnjzação, ao lon-
de fazer todo empenho possível para elidir tanto o "pe-
cado original dos filósofos" quanto a superficialidade dos
4Níetzsche, F. Zur Geneaiogie der Moral/ In: F. Nietzsche Slimtliche Werke,
"genealogistas ingleses da moral", ou seja, a falta de au- Kritische Studienausgabe, ed. G. Colli/M. Montinari, Berlin/New York/
München: de Gruyter /DTV 1980, vol, VI,2" Dissertação [ll], parágrafo 4
3Cf. Duden. Etymologie. 2. Auflage. Mannheim/Wien/Zilrich, Doravante, em citações dessa mesma obra, os algarismos romanos indi-
Dudenverlag, 1989,p. 241. .. f.. _ ) cam as dissertações e os arábicos os correspondentes capítulos.
Ç&C4~ t)\j&.i.JI\L j)'JS f,L~f!)S ~f€56V'~
104 Oswaldo Giacoiajunior ? ? ?? Nietzsche como psicólogo 105
go ,do processo titânico pelo qual O homem se arranca e têniico problema do homem? .. O fato de que tal problema
se eleva, pela crueldade e pela violência'xacima de·sua 5G.J-/ se encontre resolvido em grande parte tem que parecer tanto
parbáríe primitiva, Ahistória da consciência moral iden- ffltf c;/< "'VJ mais surpreendente a quem saiba apreciar inteiramente a
tifica-se com a hist6ria da repressão, mas também da.(C.i.•..~ ''''6-''/~ c forca que contra ela atua, aforça do esquecimento."
tra~s~gur~çã~ e sublimação dessa barbárie po~Ame~oda : '\(~4~~ A presente citação indica, de saída, os dois termos
espiritualízação e aprofundamento da consciencra de ? '1)J fundamentais da tarefa que se coloca no umbral do pro-
culpa. Na seqüência, pretendemos empreender uma re- . cesso civilizat6rio: oprohlema do homem identifica-se
constituição sumária de tal processo, o que se fará pelo
com a criação de.uma memória,-Â-cillltracorrente da po-
fio condutor das noções que dão título ao presente traba-
~ dITosa força do esquecimento. Esse problema se deixa
lho: esquecimento, memória e repetição. O objetivo da
deslindar a partir da possibilidade de prometer, pois esta
reconstituição consiste em levar a efeito uma compara-
tem como condição de possibilidade justamente a lem-
ção sistemática entre o estatuto e a função que tais no-
brança da palavra empenhada, uma espécie de dilação
ções representam na Genealogia da Moral e na Metapsicolo-
temporal do querer que, escandíndaaa dimensões d~s- )
gia.
sado, resente e futuro arranca o ornem da-Erisão do
De início, cumpre não perder de vista que Freud e instanteé do esqueciri1ei1.to,tornando ossível o rever,
Nietzsche concebem diversamente a formação psíquica
Q ca eu ar, o antecipar uma representação que insere o
da mem6ria, até mesmo como conseqüência do modelo
agir efetivo como efeito na cadeia da vontade, com? se~
teórico distinto que lhes serve de referência fundamen-
resultado futuro. Trata-se aqui, no prometer, dos prImeI-
tal. Entretanto, a criação da faculdade da memória cons-
ros lineamentos do pensar causalmente, distinguindo
titui, para ambos, o limiar inaugural do processo de ho-
entre causal e necessário, criando um vínculo entre uma
minização. Do ponto de vista da Genealogia da Moral, essa
determinação qualquer da vontade (um "eu quero", "eu
questão se coloca como nuclear na Segunda Dissertação.
farei") e a descarga efetiva dessa vontade numa ação. Par.a
Em Freud, ela adquire importância decisiva tanto nos
tanto, toma-se necessário deter a voragem do esqueCI-
escritos onde figuram modelos de funcionamento do
mento.
aparelho psíquico inspirados na neurofísíología, quanto
em textos metapsicol6gicos tardios, nos quais são especi-
ficados mecanismos ligados à formação, conservação e
reativação de traços mnêrnícos inconscientes, herdados
da psicologia dos povos.
5Nietzsche, F Zur Genealogie der Moral/In: F.Nietzsche. Saemtliche Werke.
Criar um animal ao qual seja lícito fazer promessas - Kritische Studienausgabe. Ed. G. Colli M. Montinari, Berlin/New York/
München, de Gruyter/DTV 1980,vol. V,2" Dissertação (IT), pa.=ágrafo 1,
não é precisamente essa mesma tarefa paradoxal que a na- p. 291. Não havendo indicações em contrário, as traduções sao de res-
tureza se propôs com respeito ao homem? Não é este o au- ponsabilidade do próprio autor.
_~
ti" da consciência da res onsabilidade' para tanto conduz,
segundo Nietzsche, o sentido oculto e fundamental da-
e meios delicados; talvez não haja, na inteira pré-histôria
do homem, nada mais sinistro e ierrioel que sua mnemo-
"'\{) ~1 quele trabalho autoconfigurador. Por ele, a humanidade técnica.Para que algo permaneça na memória, grava-se-o
"-lI... cria, a partir de si mesma, suas diferentes figuras da cons- afogo; somente o que não cessa de causar dor permanece
ciência moral (Gewissen). na memória - este é um axioma da mais antiga Psicologia
(por desgraça, também da mais prolongada) que existiu
O orgulhoso conhecimento do privilégio extraordi-
sobre a terra... Quando o homem considerou necessário fa-
nário da responsabilidade, a consciência dessa estranha li-
zer para si uma mem6ria, tal coisa jamais se realizou sem
berdade, desse poder sobre si mesmo e sobre o destino, sangue, marunoe, sacrifícios; os eacrificioe e empenhos mais
gravou-se nele até sua mais funda profundidade e se con- espantosos (entre eles os sacrifícios dos primogêniioe), as
verteu em instinto, em instinto dominante - como cha- mutilações mais repugnantes (por exemplo, as castrações),
mara ele esse instinto dominante, supondo que necessite as mais cruéis formas rituais de todos os cultos religiosos
de uma palavra para ele. Mas não há dúvida alguma: esse (e todas as religiões são, em seu derradeirofundo, sistemas
homem soberano o denomina sua consciência moral (Gewis- de crueldade) - tudo isso tem sua origem naquele instinto
sen)8. que soube adivinhar na dor o mais poderoso auxiliar da
- Como, porém, suspender a força do esquecimento, mnemõnicaP
manter presente na memória uma certa causalidade da
\')~ ~ Um dos instrumentos auxiliares privilegiados des-
vontade, precisamente do modo como tem que ser feito
nos casos em que é necessário prometer? Para Nietzsche,
r. i- ~ (sa bárbara mnemotéenícaÍõlíetzsche identifica-o na du-
2 ~ ~ reza da legislação penal primitiva. Os procedimentos do
semelhante tarefa não pode ser cumprida sem o auxílio
de uma rnnemotécnica sui generis, por meio da qual se
~ g "" direito penal constituem, para ele, um poderoso aliado
"I ~ na tarefa de manter presente, na memória, as exigências
desenvolve a própria faculdade da memória e não mera-
:;> C mais elementares do vínculo obrigacional] É no entrecru-
mente uma técnica para inserir preceitos particulares
zamento entre a obligatio de direito pessoal e os rudes
numa memória já desenvolvida."
procedimentos penais primitivos que se configura o cam-
Como imprimir algo nesse entendimento de instante, en- po de surgimento das categorias e conceitos, de cujo apro-
tendimento em parte obtuso, em parte aturdido, nessa vi- fundamento e espiritualização resultarão formas mais re-
vente capacidade de esquecimento, de tal maneira que per- quintadas de sociabilidade e figuras superiores do espí-
maneça presente? .. Pode-se imaginar que esse antiqüfssi- rito, tais como a noção moral de culpa, o sentimento do
mo problema nãofoi resolvido precisamente com respostas dever, a consciência moral. No entanto, seu foco originá-
rio de surgirnento é constituído pelas modalidades serni-
8 Id. lI, 2. bárbaras de satisfação substitutiva, de regimes de equi-
9A esse respeito, cf, Brusotti, M. Die 'Selbstverkleínerung des Menschen in
der Moderne. In: Nielzsche Studien 20, 1992, p. 81-36/ aqui p. 91, nota 16.
10 Nietzsche, F. GM. lI, 3.
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valências e formas de reparação que a imaginação gros- sempre de um alto grau de humanizaçãa para que a ani-
seira do homem primitivo foi capaz de instituir. É ness.e mal homem comece afazer aquelas distinções, muito mais
terreno que a humanidade adivinhou nOQs!igo, n~cªu- primitivas de intencionado, negligente, casual, impu-
sar dor e . 1 Ir so lmento um modo adequado de com- tável, e seus contrários e a tê-Ias em conta aofixar a pena.
pensação e no re ara ão )2ela quebra da palavra empe- Esse pensamento agora tão corrente e aparentemente na-
a a, e o inadim lemento de uma dívida: tural, tão inevitável que se teve que adiantá-Ia para expli-
car como chegou a aparecer na terra o sentimento de justi-
A equivalência vem dada pelofato de que, em lugar de uma ça, o réu merece a pena porque teria podido agir de
vantagem diretamente equilibrada com o prejufzo (quer outro modo, é defato uma forma alcançada mui tardia-
dizer, em lugar de uma compensação em dinheiro, terras, mente, mais ainda, uma forma refinada do julgar e racioci-
possessões de alguma espécie), concede-se ao credor, como nar humanos ".12
restituição e compensa 110, uma eSp-'éciede sentimento de
bem-estar, o sentiment e111=esta.r-dIJ-homem::lLquemf Como explicar o caráter desconcertante dessa lógi-
lfêlto descarre _~p-Qde.r,~~l1Lqll.llLquer escrúp-.u[o so- ca pré-histórica, dessa modalidade extravagante de com-
bre um inocente, a voluptuosidade de "faire le mal pour pensa~ão que consiste em descobrir uma equivalência
le p aisir de le faire", o deleite causado pela nioieniação ... entre o prejuízo ocasionado pela dívida não remida e a
A compensação consiste, portanto, em uma remissão e em satisfação consistente em infligir sofrimento no devedor?
um direito à crueldude."
Complementarmente, ao mesmo tempo em que ~
eldade ritualizada nos casti os cumpre a função enigmá-
tica e satisfação substitutiva para uma humanidade pré-
histórica, ela serve também como recurso mnemotéc .co
l
q;
;ll..tI <'P
Como equiparar sofrimento e reparação, crueldade e sa-
tisfação? Para decifrar tal enigma dos obscuros primor-
dios da humanidade, Nietzsche deslinda um fio de Ari-
adne de sua meada genealógica, que até aqui tinha sido
mantido imperceptivelmente entrelaçado com aquele li-
gado à pré-história da promessa e da responsabilidade.
p-rivile iado ara dilatar r e vivificar as dimen- Trata-se da reconstituição hipotética da gênese presurní-
~lidades da memória' vel da sociedade e do Estado, que vai oferecer o horizon-
Esses genealogistas da moral que existiram até agora ima- te de inteligibilidade para as aberrações aparentes da
ginaram, ainda que seja apenas de longe, que, por exem- psicologia humana primitiva.
plo, o capital conceito moral de culpa procede do muito Se não se pode encontrar nenhum limiar mais recu-
material conceito ter dívidas? Ou que a pena, enquanto ado de civilização em que não sejam reconhecíveis vestí-
compensação, se desenvolveu completamente à margem gios daquela matriz jurídico-obrígacional do débito e do
de todo pressuposto acerca da liberdade ou falta de liberda- crédito, então isso implica que o primeiro trabalho for-
de da vontade? E isso até o ponto em que antes se necessita mativo que a humanidade exerceu foi um trabalho sobre
nr AI- ?) A autêntica fatalidade tomou corpo então a partir do mo- 16 Gasser, R. Nietzsche und Freud. Berlin/New York, de Gruyter, 1977, p. 442.
mento em que foram imbricados a dívida obrigacional que, 17 Nietzsche, F. GM. n, 21.
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~L-N-JI f:
120 Oswaldo Giacoia [unior Nietzsche como psicólogo 121
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!)..I} Ú>..h o/V c.:/f .-?1tI}-L-
-
II 21J/vi~
relação da geração respectivamente viva com seus ances-
trais. Uma vez que os pôsteros devem certamente sua exis- Uma dívida para com Deus: esse pensamento se con-
tenda aosancestrais, dai pareceu derivar-se a coerciva obri- verte num instrumento de tortura.l? E desse modo que a
gação de resgatar esse débito por meio de sacriflcios e re- vontade de autoflagelação reinterpreta a figura do deve-
verências, sendo que o temor dos ancestrais e a consci- dor: o indivíduo é culpado precisamente por pulsarem
ência do débito para com eles se incrementaoa justamente nele aqueles inextirpáveis instintos do semi-animal sel-
na medida em que o próprio clã sefortalecia: imaginemos vagem, pulsões nas quais agora reconhece as forças da
que essa tosca espécie de lógica tenha chegado até
maldade. Desse modo, essa vontade de se autotorturar
seu final? Então os antepassados das estirpes mais
se aprofunda de tal maneira que se transfigura como sen-
poderosas têm que acabar assumindo necessariamen-
te, graças à fantasia própria do crescente temor, pro-
timento de permanência ad aeternum de uma dívida que
porções gigantescas e desenvolver-se até a obscuri- não se pode resgatar, gerando a conseqüente necessida-
dade de um temor e irrepresentabilidade divinas _ o de de uma eterna expiação: paralelamente ao processo
antepassado acaba necessariamente por ser transfi- supra descrito, passa por uma reinterpretação correlata a
gurado em Deus. Com o lento crescimento dos impérios figura do credor; uma vez que a origem da culpa radica
universais, e com isso também de divindades universais, na própria natureza "maligna" do homem, sua existên-
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como um sim, algo existente, corpôreo, real, como Deus, xo, são a consciência e o reconhecimento permanentes
como santidade de Deus, como Deus juiz, como Deus ver- dessa defasagem entre credor e devedor que se tornam a
dugo, como além, eternidade, tormento sem fim, inferno, forma por excelência de veneração, interiorizada sob a
~ i~comensurabilidade de pena e culpa." figura da torturante má-consciência, que desconstitui o
fb6 tl r~ Também o ancestral humano - outrora objeto de ve- conteúdo jurídico da obligatio contratual.
U f(l./1.DJ..!I. neração - se circunscreve agora no registro da culpa e do Essa intensificação da consciência de culpa - deri-
~ 54%FíG1\.§l débito. Um resgate definitivo se toma humanamente im- vada da internalização da crueldade - abre caminho para
~-::'I~ possível; esse é o terreno psicológico de onde brota como o surgimento de figuras mais sutis da rigidez moral no
Ocidente e prepara o surgimento da noção venerável de
~ I\"SbC-'M planta tardia a fantasia cristã de um sacrifício do próprio
;JJWt !J:vltyl Deus pela humanidade, de um martírio do credor em be- santidade do dever, em que acabam por se fundir, na alma
~s I\.....e./r" nefício do devedor. do próprio devedor, as figuras do antigo credor e deve-
P~ <9~.ave dor. Nesse processo, a consciência moral se transforma,
A&;; f::,r~ Pense-se aqui na causa prima do homem, no começo do então, naquilo que há de "divino" no devedor, ao mes-
gênero humano, no progenitor deste, a quem agora se mal- mo tempo em que a representação do dever, que nela se
diz (Adão, o pecado original, falta de liberdade da von- origina, é venerada como suprema e sagrada:
tade), ou na natureza, de cujo seio surge o homem e na
qual agora se situa o princípio do mal (diabolização da Nessa esfera, isto é, no direito das obrigações, é que tem
natureza), ou da existência em geral, que se torna não seu lugar de nascimento o mundo dos conceitos morais
valiosa em si (alheamento da existência, desejo do nada culpa, consciência moral, dever, santidade do dever
ou de seu oposto, de ser-outro, budismo e similares).22 - seu começo, de igual maneira como o começo de todas as
coisas grandes na terra, esteve salpicado profunda e larga-
Diante do credor onipotente, agora situado no além mente com sangue. E não seria lícito acrescentar que, no
metafísico, o homem, em sua existência terrena, não é fundo, aquele mundo nunca voltou a perder de todo um
mais devedor, em sentido jurídico, ele é culpado, em sen- certo odor de sangue e tortura? (Nem sequer no velho Kant:
tido moral. A consciência de culpa adquire com isso uma o imperativo categ6rico cheira crueldade ...)23
dimensão inteiramente nova: trata-se de um sentimento
Reconstruidos os traços principais da derivação ge-
e consciência de débito permanente, írresgatável, pois que
nealógica da consciência moral, sob as figuras da consci-
a própria existência do devedor se constitui na sua ori-
ência de liberdade e poderio, assim corno da má-consci-
gem. A perpétua consciência dessa inferioridade, inten-
ência, impõe-se agora retomar a comparação com a deri-
sificada como tormento de uma obrigação descumprída,
vação metapsicológica da consciência moral, tal como es-
se toma o aguilhão do morsus conscientíae. Nesse parado-
tabelecida nos textos de Freud sobre a cultura. O objeti-
21 lbid.
22/d. I1,21. 2J Id. I1,6.
vo central da comparação consiste em sugerir que o tra- oel, criminoso, com o qual tanta coisa teve início: as orga-
tamento psicanalítico desses fenômenos os considera nizações sociais, as restrições éticas e a religião".24
apenas sob a ótica da consciência de culpa e do morsus Como conseqüência da atuação combinada das hi-
conscientiae, razão pela qual poder-se-ia afirmar que Freud póteses genealógicas a que recorre, a derivação freudiana
só reconhece e tematiza a figura negativa e ressentida da fundamenta os prirnórdios da organização social na culpa
consciência moral.
comum (Mitschuld) pelo crime de todos, a religião na cons-
ciência de culpa e no remorso (Schuldbewusstsein und Reue),
AdFreud a eticidade (Sittlichkeit), ou restrições éticas impostas, em
parte, pelo tabu nas necessidades da sociedade, cuja per-
Consideremos, de início, que a gênese da consciên-
manência exigia a instituição da exogamia, e, em parte, na
cia moral examinada em Totem e Tabu tem em vista fe-
expiação exigida pela consciência de culpa". Estão pre-
nômenos psíquicos análogos àqueles considerados por
sentes também aqui, portanto, quase todos os elementos
Nietzsche em Para a Genealogia da Moral. Tanto é assim
de que trata a Segunda Dissertação de Para a Genealogia da
que o objetivo central de Freud é lançar luz sobre as ori-
Moral: a consciência de culpa", a responsabilidade, a me-
gens comuns do totemismo e da exogamia, vale dizer,
I mória e o memorial, o remorso, a eticidade, a violência, a
sobre os primórdios da religião e da eticidade (Síttli-
crueldade, a relação entre esta última e a festa. De análoga
chkeit). E, de maneira semelhante a Nietzsche, Freud I maneira, em ambas. se trata, quanto aos primórdios do
reconstitui tal gênese comum da religião e da sociabili- -II processo de horrúnização, de pudenda origo. .
dade humana de tal maneira a nela fazer intervir tanto I
r Todavia, a despeito de todas essas confluências,
a figura do ancestral divinizado quanto o papel telúrico
e demiúrgico representado pela crueldade, pelo crime e 24 Freud, S. Totem und Tabu. S. Freud: Studienausgabe, ed. A. Mitscherlich
pela violência: et allii, Frankfurt/M. Fischer Taschenbuch Verlag, 1982, vol. IX, p. 426.
25 Cf, Id. p. 426-430, especialmente p. 430.
Um dia os irmãos expulsos se juntaram, mataram e devo- 26 Embora nos textos imediatamente citados, o tenno empregado por Freud
raram o pai, pondo fim, dessa maneira, à horda paterna. seja Schu/dbelUusslsein, pode-se afirmar que, também em 7btem e Tabu, a
Unidos, ousaram e conseguiram aquilo que a cada um de- instância psíquica do Gewíssen (coneciência moral) constitui um dos focos
les isoladamente não seria possioel. (Talvez um progresso centrais da investigação. É certo que textos ulteriores, como, por exemplo,
O Mal-Estar na Civiliza~o tematizam de modo específico as acepções des-
cultural, a posse de uma nova arma, tenha lhes dado o sen- se termo, mas também Totem e Tabu as considera diretamente, em boa me-
timento de superioridade.) O pai tirânico fOi certamente o dida, ao praticamente identificar Gewissen e Schuldbewusstsein: "Se não nos
temido e invejado modelo de cada um dos membros da ir- equivocamos, entllo a compreensão do tabu lança também uma luz sobre a natur~-
mandade. Ao devorá-Ia, realizaram a identificação com ele za e o surgimento da consciência moral (Gewissen). Sem alargamento dos concet-
e cada um se apropriou de uma parte de sua força. A refei- tos, pode-se folar de uma consciência moral do tabu e de uma consciência de culpa
ção totêmica, talvez a primeira festa da humanidade, seria do tabu em seguida a transgressllo do tabu. A cmsciêncla moral do tabu é p.rov~-
ueimente aforma mais antiga sob a qual nos confronta o fenõmeno da consciência
a repetição e o memorial comemorativo desse ato memorâ- moral", (op, cito p. 357 5.)
h
1 em razão da permanência latente do desejo proibido, pro- ção do superego infantil, na medida em que a agressão
duz um sentimento permanente de culpa, uma espécie vingativa da criança é co-determinada pela medida da
de desvantagem econômica na formação da consciência agressão punitiva que ela espera dos pais; por outro lado,
moral, porque essa angústia constitui uma tensão per- fatores constitucionais inatos e influências do meio co-
manente da consciência de culpa, uma infelicidade inte- atuam na formação do superego e no surgimento da cons-
rior duradoura. ciência moral. É precisamente aqui que Freud faz de novo
Embora de início plausível, tal derivação esbarra, intervir o cruzamento entre ontogênese e filogênese, que
contudo, num paradoxo: a consciência moral se origina caracteriza sua metapsicologia. Quando a criança reage às
como conseqüência da renúncia ao impulso. Esta renún- primeiras renúncias impulsivas com excessiva agressão e
cia cria todas as figuras da consciência moral que, em se- correspondente severidade do superego, ela segue um
guida, passa a exigir ulteriores renúncias à satisfação, de modelo fi1ogenético que se fundamenta na figura terrível do
tal maneira que a renúncia constitui, ao mesmo tempo, pai primitivo, a quem se pode atribuir extremos de agres-
fonte dinâmica da consciência moral e intensificação de são, de modo que o sentimento de culpa da humanidade
sua severidade e intolerância. A solução da questão é di- deriva (stammt) do complexo de Édipo e foi adquirido a
visada por Freud mediante a hipótese provisória, susci- partir do parricídio originário e da instituição violenta da
tada para fins de simplificação da exposição, cuja confir- organização social que substitui a horda paterna.
mação e completo estabelecimento serão realizados na Desse modo, ,dado que a tendência agressiva dirigi-
seqüência do texto. De acordo com essa hipótese, trata- da contra o pai se repetiu nas gerações humanas subse-
se, em todos esses processos, de um tipo específico de qüentes, permaneceu também o primitivo sentimento de
impulso a cuja satisfação se renuncia: a pulsão de agres- culpa, fortalecendo-se de novo continuamente por meio
são (Aggressionstrieb).fCada parcela hostil não satisfeita é de cada agressão reprimida e transposta para o super-
assumida pelo superego, intensificando a agressão deste ego, tomando o sentimento de culpa uma vivência fatal
contra o ego, de modo que a consciência moral tem ori- e inevitável. Todavia, uma vez que a situação de ambiva-
gem na repressão de uma hostilidade inicialmente volta- lência afetiva entre amor e ódio é também constitutiva
da contra a autoridade externa e se fortalece e aprofunda do complexo de Édipo individual e coletivo, não se pode
ulteriormente por meio da inibição de novas moções de minirnizar o papel também do amor no surgimento das
impulso agressivo,:j formações da consciência moral, da mesma maneira como
Para tentar contornar as dificuldades engendradas o sentimento de culpa adquire, a partir dessa perspecti-
pelo descompasso entre a severidade agressiva do super- va, uma nova configuração: o sentimento de culpa con-
ego e o tratamento efetivamente dispensado à criança em siste na expressão psíquica do eterno conflito ambivalente
sua história afetiva, Freud se reporta a dois fatores, cuja entre as duas pulsões fundamentais do homem: Eros e o
atuação independente não pode ser exagerada: por um impulso de morte ou destruição. Esse conflito se incen-
lado, a severidade da educação influindo sobre a forma- deia tão logo o homem é posto em comunidade: em pri-
•
vios de rendição a Deus a direção futura da religião do Segundo Freud, essa vertigem do ascetismo moral
pai. Isso não significa, para Freud, que o desenvolvimen- era, no fundo, apenas uma poderosa reação e um disfar-
to dessa figura da religiosidade tenha sido concluída. ce do ódio homicida e não pode jamais, mesmo como
sublimação ética, ocultar inteiramente sua origem a par-
A essência do relacionamento para com o pai pertence a tir do sentimento de culpa e sua função punitiva. Essa
ambioalência; não poderia deixar de ocorrer que, no curso
era, pois, a única via de conciliação oferecida pela reli-
do tempo, também se quisesse estimular aquela hostilidade
que uma vez impeliu os filhos a matar o pai admirado e gião mosaica para o então retomado conteúdo r:cal:a~o
temido. Na moldura na religião de Moisés não havia espa- da tragédia paterna. Porém, urna vez que a ambivalência
ço para a expressão direta desse ódio homicida do pai; s6 afetivo-pulsional é constitutiva do complexo paterno, a
põde vir à tona uma poderosa reaçãoa ele, a consciência de necessidade de compensação psicológica oferece susten-
cul a por causa dessa hostilidade a - :JllisdfucirJde-ter tação para a hipótese freudiana a respeito do possível
ecado contra o pai e não ter ces depecar. Essa consci- destino histórico de Moisés.
ência de eu pa, mantida desperta sem interrupção pelos Pro-
fetas, e que logoformou um conteúdo integrante do siste- Se nos reportamos à questão de como se chegou a que a id~a
ma religioso, tinha ainda uma outra, superficial motiva- monoieista tenha produzido uma impressão dessa espécie
ção, que adequadamente mascarava sua verdadeira prove- justo sobre o povo judeu, então achamos na indi~aç~ de ~ue
niência. As coisas não andavam bem para o povo, as espe- isso teria sido destino, uma resposta só à primeira otsta
ranças depositadas na bondade divina não queriam se rea- surpreendente. Naturalmente, Freud pensa que a grande
lizar, não erafácil agarrar-se à ilusão acima de tudo ama- tragédia da humanidade tenha experimenta~o ~ma te:'-,den-
da, a de que se era o povo eleito de Deus. Pois que não se cial repetição na história judaica e tenha asstm iniensificada
queria renunciar a essa felicidade, então o sentimento de a sensibilidade para a prê-histôría: O destino empurrou
para mais perto do povo judeu o feito memorável e o
culpa pela própria pecaminosidade oferecia uma bem-vin-
crime, o parricídio, ao propiciar a ele repeti-Ia na pes- .
da desculpa para Deus. Não se merecia nada de melhor do
soa de Moisés, uma eminente figura patema.P
que ser castigado por ele, porque não se mantinha os seus
preceitos e, na necessidade de satisfazer esse sentimento de Por conseguinte, o desenvolvimento ulterior da reli-
culpa, que era insaciável e vinha de tantas fontes prcfun- gião paterna, como retomo do recalcado, tem que cond~-
das, era necessário deixar que esses preceitos se tornassem zir necessariamente além das fronteiras do Judaísmo. Aqui,
sempre mais severos, penosos e escrupulosos. Em uma em-
mais uma vez de maneira surpreendentemente análoga,
briaguez de ascetismn moralforum impostas sempre novas
Nietzsche e Freud se aproximam ao reconstituir a gênese
renúncÜls ao im uls so se ram ao en
em doutrina e receito elevaÇ.õestt'c s q~ermaneceram histórico-psicológica dessa superação do Judaísmo na uni-
inaceseioeis a outros 12.0005 anti OS.32 versalização interpretativa do sentimento de culpa.
••
A consciência de culpa daquele tempo desde há muito não mento de verdade de outra maneira que sob o delirante
se limitava mais ao povo judeu; como um embotado mal- disfarce da Boa-Nova: Nós estamos redimidos de toda
estar, como um pressentimento de desgraça, cuja razão nin- eui a desde ue um de nós sacrificou sua v' da.para
guém sabia indicar, ele tinha apanhado todos os povos do nos liberar da eui a... Pecado ori inal e reden -o e
Mediterrdneo. A historiografia de nossos dias fala de um morte sacri 'dal a am as colunasful1damel'ltJJisJia.
envelhecer das antigas culturas; suspeito que ela tenha nova Reli 'ão undada or Paulo ... Depois que a doutri-
apreendido apenas causas ocasionais eauxiliares para aque- na cristã tinha rompido as margens do [udaismo, ela as-
la indisposição dos povos. 34 sumiu partes constitutivas de muitas outras fontes, re-
nunciou a tdguns traços do monoteiemo puro, adaptou-
Impossível não perceber nessa passagem a seme-
se em muitas singularidades ao ritual dos demais povos
lhança com o quadro, esboçado em O Antícristo de Niet-
mediterrãneoe.ê
zsche, como opressivo sentimento de insatisfação e mal-
estar característicos das fases mais agudas de decadên- Tentamos, no curso de nossa reconstituição, explici-
cia das antigas culturas. Tanto é assim que os elementos tar o importante papel desempenhado pela memória, o
descritivos são aproximadamente os mesmos: pressenti- esquecimento e a repetição na gênese do processo civili-
mento de catástrofe, de perempção, esmagador sentimen- zatório, tal corno descrita por Nietzsche e Freud. Seria
to de culpa e imperiosa necessidade de punição, mas tam- necessário, ao lado das semelhanças, destacar também
bém o procedimento característico pelo qual O Anticristo as diferenças de estatuto e função que tais noções adqui-
reconhece o gênio cultural de Paulo: o expediente de uni- rem no interior dos dois distintos modelos teóricos, a
versalização dos sentimentos e doutrinas cristãs, a partir genealogía e a metapsicologia, o que, em grande parte,
de reinterpretações e ajustamentos pelos quais este adapta foi feito pela literatura secundária especializada.
a si e se assenhora dos rituais de outros povos da anti- É certo que Freud e Nietzsche concebem distinta-
güidade tardia: mente a formação psíquica da memória; todavia, a des-
peito das inegáveis diferenças de tratamento e de mode-
A explicação da situação opressiva partiu do Judaísmo. lo teórico=, a instituição ou criação da faculdade da me-
Desccnsideradas todas as aproximações e preparações em
mória se constitui, para ambos, como um dos limiares do
volta dele, foi com efeito um homem judeu, Saulo de Tar-
processo de hominização.
50, que como cidadão romano se chamava Paulo, em cujo
esptrito primeiramente irrompeu o conhecimento: somos Inequívoca é também a importância do terna do es-
tão infelizes porque matamos Deus pai. E é inteira- quecimento para os dois pensadores, especialmente em
mente compreensioel que ele não podia conceber esseJrag-
35 Id, p. 580.
3( lbid.
36 A esse respeito, cf, Brusotti, M. Op. cii., p. 87-88.
11
concepção global de história, presente em Para a Genealo- ca no conflito edípico originário. Ora, com a instituição e
gia da Moral e nos textos sobre a cultura de Freüd, obede- a consolidação do monoteísmo, nos termos em que este
ce a um modelo em cujo núcleo se coloca a categoria de atinge sua culminância ética com o decálogo mosaico, não
retomo, como centro articulador do atuar conjunto de se completa e encerra o destino do subsolo pulsional e
memória e esquecimento. afetivo da religiosidade no interior da cultura. Com efei-
Tal contraposição pode ser levada a efeito de manei- to, na medida em que, na Antigüidade tardia, à absoluta
ra mais simples e plástica se nos orientarmos pela inter- soberania histórica do Deus único corresponde inevita-
pretação psicológico-histórica de determinados tipos, cuja velmente uma exacerbação desmedida e universalizada
atuação tanto Nietzsche como Freud consideram 'epo- do sentimento de culpa, acompanhado da correspondente
cais' para a cultura no Ocidente. Tomemos, de início, o necessidade de punição, essa tensão opressiva propicia
caso da reconstrução freudiana da ascensão e triunfo da as condições psicológicas que preparam e fortalecem um
religião monoteísta. Seu ponto de partida cronológico é, novo retorno do recalcado. No interior dessas coordena-
como se sabe, detenninado pela instituição simultânea das é que o triunfo global do Cristianismo, como religião
da primitiva religião totêmica e pela instauração das res- universal, se torna, para Freud, compreensível.
trições éticas (Sittlichkeit) exogâmicas subqüentes ao par- Por um lado, a doutrina fundamental do Cristianis-
rícídío original. Como resultado da longa e complexa sé- mo oferece um canal de escoamento às correntes afetivas
rie, acima indicada, de transformações históricas, psico- que se expressam no sentimento de culpa, na medida em
lógicas, sociopolfticas e do imaginário religioso, a exalta- que se institui como religião a partir da tácita confissão do
da glorificação do Deus-Pai que, conjuntamente com o assassinato de Deus-Pai. Com efeito, segundo a interpre-
aprofundamento e a intensificação do sentimento de cul- tação de Freud, uma das pilastras do Cristianismo con-
pa, caracterizam a religião mosaica, corresponde à expres- siste justamente no reconhecimento da razão originária
são ético-religiosa da ambivalência afetiva inerente ao daquele embotado mal-estar que oprimia a consciência
complexo de Edipo. dos antigos povos do Mediterrâneo: sofremos porque
Na medida em que a figura histórica de Moisés, em matamos Deus-Pai; por conseguinte, merecemos o sofri-
virtude de atributos personaIíssimos e de circunstâncias mento como punição. Todavia, como conseqüência da
ligadas ao contexto histórico, imanta e desencadeia o ex- pressão do recalque, essa confissão não pode ser pronun-
plosivo conflito pulsional tornado latente por força do ciada senão sob os deslocamentos e desfigurações pró-
recaI que, seu destino se cumpre ao realizar-se o retorno prios aos processos psicopatológicos. Dessa maneira, uma
do recalcado. Desse modo, o assassinato de Moisés pelo outra viga mestra da doutrina cristã não pode deixar de
povo eleito corresponde a mais do que uma hipótese oci- consistir na transfiguração imaginária da tragédia primor-
osa, na medida em que sua plausibilidade, como realida- dial nos dramas da expiação, da redenção e da reconcili-
de histórica possível, encontra plena atestação psicológi- ação.
t
Pai pelos irmãos, cuja hostilidade de novo triunfa sobre mente seminal da tra édia vivi no com lexo de Édi o
sua intolerável onipotência, €> orresponde também a uma nova fi ra' te sifi a do
Com isso, a religião cristã apresenta-se, para Freud, en en o e cul a e d e'o d íção. Esta, por sua
como a sintomatologia de uma neurose obsessiva da hu- vez, tem sua contrapartida numa moralidade rígida, in-
Torres Filho Col. Os Pensadores São Paulo; Abril Cultural, 1974, p. 368. panhia das Letras, 1995, p.ll0-1l1.
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