Você está na página 1de 13

Junguiana

v.39-2, p.89-102

O complexo heteropatriarcal: uma con-


tribuição para o estudo da sexualidade na
psicologia analítica a partir da teoria social

Gustavo Pessoa*

Resumo Palavras-chave
Este artigo consiste em uma articulação teó- Complexo,
rica entre a psicologia analítica de C. G. Jung e heteropatriar-
as referências contemporâneas na teoria social cado, sexuali-
dade, gênero.
com o objetivo de aprimorar a escuta clínica de
psicólogos e de outros profissionais que prestem
atendimento à população em relação a questões
de gênero e sexualidade. Por meio desta apro-
ximação, pretendo tecer contribuições teóricas
que possibilitem uma escuta clínica mais efeti-
va que considere os aspectos sociopolíticos dos
conflitos individuais sem prescindir da perspec-
tiva psicológica. ■

* Psicólogo pela Pontifícia Universidade Católica de São Pau-


lo (PUC/SP). Mestre em Psicologia do Desenvolvimento pela
Universidade de São Paulo (USP). Analista Trainee da SBPA.
Mantém consultório particular em São Paulo, SP.
E-mail: gustavompessoa@gmail.com

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 89


Junguiana
v.39-2, p.89-102

O complexo heteropatriarcal: uma contribuição para o estudo da sexualidade


na psicologia analítica a partir da teoria social

A proposta deste artigo é contribuir com o cultural, este último uma ampliação teórica pro-
estudo da sexualidade na psicologia junguiana, posta por Singer e Kimbles (2004)1. A origem dos
partindo de proposições que vem sendo elabo- complexos parece se relacionar à formação e à
radas na teoria social desde os anos 1970. Tal consolidação da experiência individual ou cultu-
articulação entre saberes tem como objetivo so- ral acerca de uma determinada função ou expe-
fisticar a escuta clínica nesta abordagem, nas riência psíquica, de modo que temos complexos
ocasiões em que o analista junguiano se depara maternos, paternos, complexo de inferioridade,
com questões relativas à sexualidade humana. entre outros que versam sobre nosso funciona-
Para avançar sobre o tema, procuro demons- mento particular em relação a experiências co-
trar que, dentro do arcabouço teórico elaborado muns que nos atravessam como humanos.
por C. G. Jung, alguns fenômenos podem ser to- No estudo da sexualidade, a diferenciação
mados por sua dimensão arquetípica e caracteri- entre um fenômeno que expresse um arquétipo
zados como enunciadores de arquétipos. A con- ou um complexo pode se tornar capital, uma vez
ceituação de arquétipo, pela própria definição que a premissa de imutabilidade e eternidade
junguiana, relaciona-se aos potenciais presen- do arquétipo pode lhe conferir um contorno de
tes no inconsciente coletivo inacessíveis à psi- verdade ou essência. Na seara dos desejos, ver-
que individual e de caráter primordial, relativos dade ou essência frequentemente são usadas
às experiências acumuladas no desenvolvimen- como termos que validam uma norma e, portan-
to da espécie humana (JUNG, 2014). Em oposi- to, ditam o que é desejável e indesejável, certo
ção à possibilidade de caracterizar um fenôme- ou errado. Em termos práticos, essa discussão
no como diretamente arquetípico, poderíamos se espalha com diferentes linguagens em nossa
nomeá-lo como enunciador de um complexo. O sociedade e noutros campos do conhecimento
complexo pode ser compreendido como um cen- quando pensamos na sexualidade. Basta que
tro de energia cujo funcionamento independe da pensemos no dilema “nasce-se gay ou se torna
vontade do eu, abastecido por uma dimensão gay?” para que entendamos a importância da
arquetípica e que atua de forma concorrente à discussão a respeito do que fala diretamente so-
consciência. Muitas vezes, o complexo traz pre- bre um arquétipo ou de fenômenos que estariam
juízos ao funcionamento consciente pela falta de mediados por complexos.
elaboração dos conflitos que ele traz ao nosso Ao contrário do funcionamento do complexo,
eu (JUNG, 2015), embora também se apresente o arquétipo é um construto que antecede a for-
como concentração de energia de potencial cria- mação da consciência individual; ele é apriorís-
tivo, o que impulsiona o desenvolvimento da tico e, portanto, não é sensível às mudanças que
personalidade. A ideia de complexo penetrou na temos na história de vida pessoal. O arquétipo
cultura desde sua primeira proposição e temos,
entre os mais frequentemente citados, o comple- 1
Para os autores, o complexo cultural se refere à área da me-
mória histórica coletiva mobilizada por um afeto, comumente
xo de édipo e o complexo de inferioridade, den- marcada por uma experiência traumática e que possui um fun-
tre outros exemplos. do arquetípico. Desta forma, complexos culturais atravessam a
todos nós em certo grau de coletividade. Podemos, no Brasil,
O complexo pode ser particular a uma psique trabalhar com os exemplos da invasão portuguesa e genocídio
individual, no caso do complexo pessoal, ou a indígena subsequente, da escravidão e da ditadura civil-militar
iniciada em 1964 como possibilidades de pensarmos comple-
uma dada coletividade, no caso de um complexo xos culturais que permeiam o inconsciente dos brasileiros.

90 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.89-102

nos fala sobre uma predisposição inata à forma- tanto da identidade2 como da sexualidade. A
ção de certas imagens na psique e ao cumpri- intenção dessa perspectiva é cessar a visão da
mento de algumas funções na vida, como a fun- heterossexualidade como um dado apriorístico.
ção materna, por exemplo (JUNG, 2014). O que Em vez disso, podemos pensar a heterossexua-
se transforma no decorrer da vida é a expressão lidade como o complexo que se forma na psique
arquetípica que ocorre por imagens, pela arte, humana a partir de nossos desafios em elaborar
pelos sonhos e pelos complexos individuais e um fenômeno muito mais amplo em sua origem,
culturais. Desta forma, argumentar que concei- a própria sexualidade. Talvez esta possa mais
tos que habitam as discussões sobre sexualida- facilmente se encaixar na categoria de arquéti-
de sejam diretamente arquetípicos pode trazer po. Também resta importante notar que, como
o verniz do essencialismo sobre temas como filho do capitalismo, o complexo heteropatriar-
a homossexualidade e a heterossexualidade, cal abarca os conflitos que emergem entre os
o que não se conforma com os debates con- impulsos sexuais e o sistema socioeconômico
temporâneos na teoria social a respeito destas que erigimos, indisposto por natureza a abarcar
questões. Além disso, dificultam a ênfase sobre múltiplas possibilidades que não sejam padroni-
os conflitos que vivenciamos, uma vez que a si- záveis e comercializáveis em larga escala.
tuação conflituosa ocorre na interação humana A escolha do termo complexo heteropatriar-
aqui e agora. O arquétipo, por psicoide e não cal toma emprestada a noção de Preciado (2017)
humano, não é em si mesmo o palco dos confli- de que a vivência das opressões e conflitos
tos. Por isso, optei por trabalhar com o conceito relacionados à sexualidade não se refere ape-
de complexo, trazendo a noção de experiência e nas à problemática do desejo entre os opostos
construção histórica como fundamentais para a homem-mulher; antes, hierarquiza o homem
elaboração da psique humana. branco heterossexual e suas associações este-
Precisamos superar certa visão monolítica reotípicas como superiores às questões da hete-
do par hetero-homossexualidade que o enxer- rossexualidade da mulher. Além disso, ressalta
ga como características identitárias aplicadas as relações de poder construídas numa lógica
aos sujeitos, possivelmente estanques ao lon- patriarcal que privilegiam a heterossexualidade
go da vida, de ordem arquetípica. Uma pers- do homem. Para estes fins, torna-se mais preciso
pectiva que me parece mais interessante é a trabalharmos com a ideia mais ampla de hetero-
visão desta problemática como pertinente a patriarcalidade. A crítica à heterossexualidade
um complexo cultural, denunciador de confli- neste texto, portanto, deve sempre ser compre-
tos que nos atravessam a todos na exploração endida como crítica à heteropatriarcalidade.
do fenômeno da sexualidade como foi viven- Proponho, quando nos debruçamos sobre a
ciado ao longo dos séculos, formando a noção categoria mais clássica a respeito da sexualida-
coletiva de como deveríamos, supostamente, de, isto é, o par hetero-homossexualidade, lar-
vivenciá-lo e compreendê-lo. gamente criticado por Foucault (2020), que es-
Uma vantagem de tratar o fenômeno da he-
terossexualidade como complexo em vez de ar- 2
A palavra identidade surge aqui para diferenciar as mo-
quétipo reside no alinhamento com as propostas dalidades de dissidência da norma heteropatriarcal. A vi-
sibilidade dada às sexualidades dissidentes, quais sejam, a
contemporâneas da teoria social e da história identificação dos corpos com o desejo orientado para outros
corpos, no caso das homossexualidades e bissexualidades,
que fundamentam essa proposta. A partir des- expandiu-se para enxergarmos as identidades dissidentes
tas contribuições, paramos de tratar a heteros- atreladas à sexualidade, como é o caso de pessoas que se
identificam como travestis. Neste caso, não se tratam apenas
sexualidade como uma predisposição essencial de sexualidades orientadas pelo desejo em direção ao outro,
do ser humano, em vez disso tomando-a como mas inclui a relação da psique consigo própria, o que nos
leva a usar o termo identidade ou identidade de gênero jun-
uma dentre muitas possibilidades de expressão tamente ao termo sexualidade.

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 91


Junguiana
v.39-2, p.89-102

tejamos tratando de um complexo em vez de um permitem a construção da sociedade capitalista


arquétipo. A clareza com a qual o autor nos traz ocidental como a conhecemos, fundamentada
o processo histórico que sustenta as transforma- na família nuclear heterossexual. Este modelo
ções que levam à nossa ideia atual de sexualida- produz a exclusão de tudo o que é considerado
de como heterossexualidade instiga a reflexão desviante da norma com a finalidade de permi-
de que estejamos tratando de uma experiência tir a acumulação de poder e riqueza por meio da
localizada, portanto parcial e marcada por es- escalabilidade do padrão heterossexual. Tudo o
pecificidades, o que melhor se inscreve na ideia que desvia do objetivo outrora político e poste-
de complexo. Essa perspectiva é sustentada por riormente fabril do casamento heterossexual é
Katz (1996) quando o autor argumenta que a excluído e destituído de legitimidade, permane-
heterossexualidade é um fenômeno histórico re- cendo às margens da sociedade.
cente e de compreensão mutante a partir de sua Este funcionamento pode parecer estranha-
formulação no século XIX. Ora, se estamos dian- mente familiar aos conhecedores da teoria dos
te de um fenômeno localizado historicamente, complexos de Jung (2015). O autor também pro-
pontuado por transformações, de compreensão põe que a formação de complexos se relaciona
cambiante e marcado por conflitos ao longo de à atitude da consciência de apartar uma dimen-
seu tempo de existência, é mais provável que es- são da psique do restante do eu, produzindo a
tejamos tratando de um fenômeno mediado por exclusão de conteúdos que sejam conflituosos
um complexo, este por sua vez amparado por ou dolorosos para o sujeito e que atuam de ma-
bases arquetípicas, em vez de discutirmos dire- neira autônoma. O benefício da dissociação para
tamente o arquétipo que o fundamenta. A noção a consciência está na possibilidade de se iden-
de complexo como algo de ordem coletiva nos tificar como um eu razoavelmente consistente e
permite dar guarida às teorias construcionistas unificado. Este mesmo eu cuidadosamente de-
na psicologia analítica: muito do que vivemos senvolvido, contudo, permanece sob prejuízo de
psicologicamente se trata de uma construção so- afastar elementos da personalidade por consi-
ciocultural3. Katz (1996) afirma, ele mesmo, que derá-los estranhos ao seu senso de si mesmo.
a heterossexualidade foi uma construção social, Sei bem, na clínica, o quanto do trabalho ana-
isto é, foi mesmo inventada. lítico reside em restabelecer pontes entre um eu
Wittig (1992) traz a reflexão da heterossexu- individual e os conteúdos que foram considera-
alidade como um modo de pensamento e, de dos estrangeiros a suas identidades e são rejei-
forma mais sofisticada, um sistema político que tados pela consciência. Um movimento similar
ordena a vida pública e privada de todos nós. pode ser observado na dinâmica do preconceito
Tanto esta autora quanto Katz (1996) anunciam, como fenômeno social, vista a dificuldade em
em acordo com Foucault (2020), que a heterosse- nos relacionarmos com as sexualidades que
xualidade como a conhecemos serve ao propósi- distam da norma heterossexual. O padrão de
to de estabelecimento de normas e padrões que funcionamento do pensamento heteropatriarcal,
mais uma vez, se assemelha à dinâmica tipica-
3
A perspectiva construcionista trazida por Katz (1996) é cor- mente observada em complexos individuais, o
roborada na obra do autor por diversos outros autores e pes- que leva inevitavelmente à erupção de conteú-
quisadores. No campo feminista radical, temos desde Betty
Friedman em 1963, Kate Millett em 1970 e Gayle Rubin em dos sombrios representados por sexualidades
1975 até o feminismo lésbico de Margaret Small em 1970 e
Monique Wittig em 1975, como veremos adiante. Nos estu- dissidentes da norma.
dos feministas negros, temos de Angela Davis desde os anos É necessário notar que, na psicologia analíti-
1960 a Kimberlé Crenshaw que emerge no fim dos anos 1980
com o conceito de interseccionalidade. Na filosofia, vemos a ca, somos atravessados por ao menos dois fatos
obra de Foucault e a partir da filosofia emerge o campo de históricos relevantes no estudo da sexualidade.
estudos de gênero, cujo expoente maior é Judith Butler e sua
obra seminal Problemas de Gênero, publicada em 1990. O primeiro é a separação entre Freud e Jung ter

92 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.89-102

ocorrido por uma divergência teórica que tan- vessada pelo complexo heteropatriarcal que
ge ao fenômeno da sexualidade, quando Jung atua sobre nossa forma de pensar e enxergar o
(2013a) afirma que a libido não possui funda- mundo. Não haveria qualquer motivo para que
mento exclusivamente sexual, mas tem o caráter o complexo cultural, como conjunto de imagens
mais amplo de energia psíquica, distanciando- coletivas a respeito de experiências históricas
-se da psicanálise do início do século XX. Mes- de difícil elaboração, não afetasse Jung de ma-
mo abrindo esta discordância, o autor enaltece neira semelhante, fazendo-o ignorar ou mesmo
a função da psicanálise em algumas circunstân- consentir com estereótipos e reminiscências do
cias, não tratando mais especificamente das di- trauma sociocultural a respeito da sexualidade
nâmicas de sexo e desejo de forma aprofundada que assola o ocidente. Cabe resgatar o próprio
a partir de seu rompimento com Freud. Este fator autor, quando confessa que, sobre o amor, ele
constitui hipótese relevante do porquê a sexua- não havia mesmo entendido nada (JUNG, 2005).
lidade parece tema pouco explorado na psicolo- Devo explicar o que pretendo ao afirmar que
gia analítica, afinal, para que estudar um motivo existe um pensamento heterossexualizado.
de divergência tão fundamental que, segundo o Para isso, faço um pequeno resgate histórico
próprio Jung (2013a), parece ter sido suficiente- tributário a Katz (1996) sobre o uso das pala-
mente abarcado pela psicanálise? vras hetero e homossexualidade, rememorando
O segundo elemento relevante é autobiográ- o pano de fundo da medicina do século XIX, a
fico: do conhecimento que dispomos, Jung exer- partir da qual se viu nascer também a psica-
ceu sua vida como homem branco heterossexual nálise e posteriormente a psicologia analítica.
com muita desenvoltura, casando-se com uma Segundo o autor, o par hetero-homossexuali-
mulher branca heterossexual e relacionando-se dade é reconhecido pela primeira vez no final
com inúmeras outras (BAIR, 2004). Quando bus- do século XIX, na obra Psychopatia Sexualis, do
cou teorizar sobre o tema do gênero, Jung (2014) psiquiatra alemão Krafft-Ebing.
fez uma contribuição a partir de um pensamento Esta obra tem papel fundamental para o es-
fundamentalmente heterossexualizado. Em pri- tabelecimento da noção de uma sexualidade
meiro lugar, propôs o par anima-animus como normal e desviante dentro do novo padrão ilumi-
um componente psíquico inconsciente contras- nista europeu no qual os fenômenos são obser-
sexual. Afirmou, por dedução, que, como havia vados para que sejam avaliados e, se necessário,
encontrado uma figura feminina que emergiu curados. Neste caso, a cura significa adaptação
a partir de seu inconsciente, haveria, portanto, à sociedade heteropatriarcal e a medicina toma
uma figura masculina equivalente atuando com um papel que anteriormente pertencia à religião.
função similar no inconsciente das mulheres. A partir desta publicação, o tema foi explorado
Essa incursão teórica na psicologia do gêne- majoritariamente por médicos homens, brancos
ro não foi fundamentada por pesquisa direta, e heterossexuais, que omitiram o eixo normativo
como no caso da teoria dos complexos; dados deste par, a heterossexualidade, para concen-
bibliográficos secundários, como na teoria dos trar suas explorações no que era considerado
tipos psicológicos; experiência clínica direta, um desvio, como no caso da homossexualidade,
a partir da qual propôs inúmeros conceitos; ou com vistas à cura-adaptação.
estudo comparativo das mitologias e religiões, O questionamento do pensamento médico
como no caso da teoria arquetípica. Uma hipó- se desenvolve na filosofia e nas ciências so-
tese que paira sobre a formulação dos conceitos ciais, relacionando-se às lutas pelos direitos das
de anima e animus, a qual estranhamente fugiu mulheres a partir dos anos 1960. Rubin (2017)
aos métodos científicos e rigorosos aplicados afirma a existência de um sistema sexo-gênero
por Jung, é a de que ela mesma possa ser atra- como um fenômeno histórico que organiza nos-

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 93


Junguiana
v.39-2, p.89-102

sas relações. Para Butler (2003), o gênero é uma será vista, no capitalismo industrial dos séculos
performance intimamente relacionada com a cul- XVIII e XIX, como perfeita unidade para produção
tura e, como tal, possui um caráter socialmente de pessoas que atuarão de forma escalável na
construído e mutável. Rubin (2017) não concebe produção das fábricas surgidas com a revolução
o sexo separadamente do gênero, uma vez que industrial. É interessante notar a convergência
ambos são categorias destinadas à organização entre as demandas por trabalhadores, a con-
social dos nossos desejos e possibilidades. Ber- solidação do conceito de casamento por amor
ry (2014) caminha em perspectiva semelhante romântico e da identidade sexual alinhada à
no seminal O Dogma de Gênero, dentro da psi- função reprodutiva. Esta conjunção de fatores
cologia analítica, anunciando a fixidez de gênero parece propiciar a validação de que o sexo e a
como uma estratégia (hetero)patriarcal de orde- sexualidade possam ser exercidos de forma sen-
nação e controle, tal como fazem as autoras das sual, isto é, os atos sexuais podem nesta época
teorias sociais. A identidade sexual nasce no ser concretizados e o amor toma forma material
seio das discussões de gênero e não deve ser em vez do ideal abstrato vivido em épocas ante-
confundida com os atos sexuais. É interessante riores (KATZ, 1996).
notar que o conceito de fluidez de sexo e gênero O par complementar que produzirá filhos,
é um avanço proposto por mulheres e pessoas compreendido então como homem e mulher,
LGBTs, brancas e negras, em contrapartida à te- se articula no pensamento de forma diferente
orização rígida de divisões e categorias anterior- às modalidades anteriores de interpretação. A
mente propostas por homens brancos heteros- ideia de complementaridade também não pare-
sexuais na medicina. ce se sustentar na mítica grega, fonte de estudo
Analisando a ideia de heterossexualidade cara à psicologia analítica. A maioria dos mo-
anterior aos séculos XIX e XX, Katz (1996), ar- tivos arquetípicos encarnados em personagens
gumenta existir grave anacronismo na fantasia não se relaciona a um par fixo homem-mulher,
de que existia homossexualidade como identi- embora possamos observá-lo com suas carac-
dade na Grécia Antiga. O autor demonstra que terísticas específicas no par Zeus-Hera e no par
o desejo pelo mesmo sexo ou pelo sexo oposto Eros-Psique, os quais parecem fundamentar a
era vivido como atos em vez de compreendido ideia de casamento como instituição e união
como aspecto da personalidade individual. A por amor, respectivamente. Entretanto, com
própria noção de indivíduo não existia à época. mais frequência, observamos mitemas de per-
A nomeação de uma pessoa como heterosse- sonagens individuais dotados de fenomenolo-
xual ou homossexual, segundo o autor, ocorre gia própria, como o nascimento de Dioniso, os
nos manuais de medicina e chega aos Estados trabalhos de Hércules, os julgamentos de Ate-
Unidos apenas em 1892. A própria formulação na, entre outros exemplos.
de heterossexualidade passa por mudanças O complexo heteropatriarcal como propo-
até se estabelecer como norma contra a qual se nho se aproxima, teoricamente, ao dinamismo
colocam as demais sexualidades a partir do sé- patriarcal de consciência (NEUMANN, 1990). Tal
culo XX. A ideia dos homossexuais gregos pode funcionamento atua como estruturador de uma
ser considerada mais uma fantasia trazida pelo discriminação binária dos elementos que viven-
complexo heteropatriarcal. ciamos. O sexo e o gênero, nesta compreensão,
A emergência das identidades sexuais é um se dividem em dois e permanecem nessa dua-
fenômeno do século XX no continuum histórico lidade rígida, jamais se elaborando em três ou
que vai tornando prevalente a fantasia do amor mais categorias, fixando-se numa etapa da cons-
romântico e sensual entre indivíduos comple- ciência que traz desafios à própria individuação.
mentares que formarão uma família. A família Ao se distanciar da profusão dos desejos e não

94 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.89-102

se constituir como um sistema de afetos, o com- incluindo a luta contra o que ali se compreendia
plexo heteropatriarcal assume um papel mais como chauvinismo. O entrelaçamento de temas
moral e ético, determinando o que é certo e er- revela a disposição de parte do movimento LGBT
rado em relação a nossos desejos e cumprindo norte-americano da época em reconhecer o cará-
um papel político de organização e ordenação ter político de sua identidade sexual, fundamen-
social. Dessa forma, o complexo atua em sua for- tando a luta pelo reconhecimento dos direitos
mação mais sombria, transformando em estrutu- pertinentes à sexualidade no campo da política.
ra lógica aquilo que inicialmente era uma pulsão Neste sentido, o movimento LGBT da época tem
erótica. Tudo é dois. Todo dois é homem e mu- mais sucesso em articular a dimensão erótica
lher, masculino e feminino. Essa divisão reforça privada à racionalidade da lógica pública, sem
a compreensão da heterossexualidade como fe- prejuízo entre os campos. O manifesto se torna
nômeno de validade universal não questionado, um documento histórico clássico para o mo-
o que se anuncia na sociedade contemporânea vimento LGBT norte-americano e termina com
em exemplos desde as tomadas macho e fêmea uma citação de Marcuse (1999, Prefácio Político,
das lojas de construção até as articulações entre p. xxi): “hoje, a luta por Eros, a luta pela vida, é
mulher, feminino e sensibilidade, por um lado, e a luta política”.
a identificação do homem com masculino e as- O movimento LGBT brasileiro historicamen-
sertividade, por outro. Estas associações refor- te interagiu com outras frentes de lutas políti-
çam um binarismo a serviço da manutenção de cas, participando de inúmeras manifestações
uma ordem social de exclusão do Eros em sua a favor do movimento negro e dos sindicatos
potência arquetípica. A função dessa dinâmica por melhores condições trabalhistas nos anos
opressiva se concentra em normatizar maniaca- 1980 (GREEN, 2018). Formado no final dos anos
mente em vez de possibilitar a vivência erótica. 1970, o movimento LGBT no Brasil buscou par-
Roughgarden (2005) fortalece a hipótese ticipação na cena política brasileira de forma
da existência de um complexo heteropatriar- autônoma, mas também pela via partidária,
cal ao afirmar, como bióloga, que as pesquisas nos anos 1980 se aproximando do Partido dos
no campo das ciências naturais não apontam Trabalhadores. Nota-se, naquele contexto, uma
para o binarismo de sexo-gênero. Ao contrário, enorme rejeição à incorporação das pautas do
a autora lista inúmeras espécies que apresen- movimento, esclarecendo-se desde então a
tam mais de dois sexos-gêneros e outras em LGBTfobia que marca o pensamento brasileiro
que há mudança de sexo-gênero durante a vida de todo o espectro político. Mesmo dentro do
de um animal. Concluo, baseando-me em Rou- movimento LGBT brasileiro, fica posta a dificul-
ghgarden (2005), que a leitura de um sistema dade em promover relações iguais em relação
sexo-gênero dual pode ser vista como uma in- às mulheres lésbicas e às pessoas trans (GRE-
terpretação cultural nossa. O viés exercido pelo EN, 2018), mais uma vez reproduzindo o desa-
complexo cultural da heteropatriarcalidade nos fio do complexo heteropatriarcal hierarquizante
impele a enxergar um par complementar mes- que valoriza o homem branco em detrimento de
mo onde ele não se apresenta. mulheres e pessoas identificadas com outras
Em 1970, a publicação nos Estados Unidos do possibilidades de sexo e gênero.
Gay Manifesto pelo ativista de causas LGBTs Carl A partir das lutas dos anos 1980 e 1990, a
Wittman (1970) sintetiza o movimento que emer- questão gay ganha mais espaço na mídia e na
ge naquela sociedade. O documento, quando foi política. O avanço da luta por direitos e a nova
revisado, urgiu as pessoas para considerar atu- visibilidade privilegia novamente os homens
arem de forma política, como protagonistas de brancos gays, enquanto o Brasil se mantém ano
uma mudança social que incluía outros temas, após ano como o líder mundial em assassina-

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 95


Junguiana
v.39-2, p.89-102

to de pessoas trans, segundo o Grupo Gay da heteropatriarcal: a de que existem apenas dois
Bahia. A exclusão de mulheres e pessoas trans sexos-gêneros e suas possíveis combinações.
não é novidade: após os movimentos em reação A emergência do gay branco como possível pro-
ao massacre de Stonewall de 1969 nos Estados tagonista de algumas circunstâncias numa so-
Unidos, do qual participaram as travestis Mar- ciedade tingida por este complexo não causa
sha P. Johnson, uma mulher trans negra, e Sylvia fissura definitiva em seu funcionamento, já que
Rivera, mulher trans latina, esta última é expulsa a combinação homem-homem não rompe com
por homens gays brancos de um palco em uma o caráter dual necessário para a constituição
parada gay de Nova York, em explícita transfobia da heterossexualidade e do patriarcado. O que
(DUBERMAN, 2018). ocorre, contudo, ao pensarmos que não há um
Uma fantasia comum sustentada pelo com- número pré-estabelecido de sexos e gêneros? E,
plexo heteropatriarcal é esta: a heterossexua- principalmente, se pudermos pensar que este
lidade sempre existiu, ao contrário de outras número não é necessariamente o dois? Mais ain-
expressões da sexualidade. Quanto menos uma da, como podemos pensar que as sexualidades
sexualidade se conforma dentro da heterossexu- e os gêneros podem não ser apenas um ou dois
alidade patriarcal, seja por semelhança ou opo- dentro da mesma pessoa? São estas as primei-
sição a ela, como no caso da homossexualidade ras perguntas que me ocorrem no esforço de
masculina branca, tanto mais esta sexualidade questionar o pensamento heteropatriarcal.
será vista como estranha e recém-descoberta. A consequência dessa reflexão é a insusten-
Como nos mostra Katz (1996), a narrativa hete- tabilidade mesmo do par consciência masculi-
rossexual é a de que ela é e sempre foi a norma. na-figura feminina inconsciente, como propôs
Por ser a norma, portanto o normal, ela prescinde Jung (2014). Tal construto é fruto da fantasia he-
de explicações e tem a qualidade daquilo que é terossexual de dualidade essencial, o que não
eterno e essencial. Todo o resto são fenômenos se comprova quando dialogamos com pessoas
estranhos que emergem em algum momento, trans e outras sexualidades dissidentes da nor-
seja a partir da norma ou como desvio indeseja- ma. Outro precioso ensinamento de meu fazer
do da norma. As sexualidades homoeróticas ou clínico, repetido à exaustão por diversos pro-
trans seriam, portanto, fenômenos derivados (e fessores e confirmado pela própria experiência,
desviantes) da heterossexualidade e posteriores é de que jamais devemos buscar encaixar pes-
a ela, mais recentes, segundo a fantasia. soas nas teorias, conforme a própria obra de
Um exame histórico apurado, contudo, des- Jung nos traz. A função da teoria psicológica, de
mancha no ar tal fantasia sem qualquer dificul- origem empírica como posto pelo próprio Jung
dade. Mesmo em um país com dificuldade em (2015), é poder dar conta dos fenômenos que
manter registros históricos, temos a existência a vida nos apresenta, jamais tentando encaixar
de Xica Manicongo, a primeira travesti identifi- as pessoas em nossas ideias a fim de validar o
cada na terra brasilis, na cidade de Salvador nos que foi pensado.
idos de 1591 (JESUS, 2019). Xica Manicongo era Uma alternativa ao pensamento heterossexu-
uma travesti negra que andava livre pelas ruas al é a contrassexualidade, como nos apresenta
da cidade, até a primeira visita da Inquisição no Preciado (2017). Segundo o autor, este termo é
Brasil, o que a obrigou a usar trajes destinados uma proposta de enxergar o sexo e a sexualida-
aos homens para se salvar de punições contra de incorporando suas construções sociopolíti-
sua vida. cas e de ler o regime heterossexual e suas conse-
A visibilidade das identidades trans e das quências a partir de outro ponto de vista. Um dos
sexualidades subalternizadas nos ajudam a esforços nesta perspectiva é poder questionar a
repensar outra fantasia comum do complexo fácil associação entre a sexualidade e a genitá-

96 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.89-102

lia, o que inscreve fatalmente a identidade sexu- que serão mantidos a uma distância e uma abs-
al novamente no par homo-heterossexual e pri- tração apropriadas, por outro.
vilegia a genitália aparente, ou seja, a anatomia No Brasil dos anos 1980, popularizou-se o
sexual do homem. Conforme nos mostra Laqueur show de transformistas na TV e foi recorde de
(2001), na visão do século XIX os corpos eram vendas numa revista de nudez o corpo de uma
identificados em seu gênero a partir de uma no- das mulheres transexuais mais famosas do país
ção de calor físico: os corpos dos homens eram à época. A distância mediada pela TV e pela re-
mais quentes e os corpos das mulheres mais vista são apropriadas e os corpos dissidentes
frios e, por isso, mulheres possuíam vaginas, as podem ser sexualizados em segredo, mantendo
quais eram uma atrofia do órgão reprodutor de- a estrutura pública da heterossexualidade como
vida a falta de calor. Se as mulheres tivessem o o sistema a ser perseguido, jamais questionan-
nível adequado de calor (como os homens), to- do sua estabilidade.
dos teriam pênis. Muitas vezes, sequer questionamos a dis-
Ao explorar a proposta de Deleuze de homos- tância que adquirimos dos eventos das sexua-
sexualidade molecular, Preciado (2017) nos dá lidades dissidentes e também não percebemos
visão dessa lógica binária que sustenta o pensa- as associações quase inconscientes entre sexo
mento heteropatriarcal: e genitália que se expressam no preconceito co-
tidiano. Quantas vezes não ouvi “mas o que fa-
Tanto a homossexualidade como a he- zem duas lésbicas juntas?” numa ode (não)aci-
terossexualidade são produto de uma dental ao falo proferida por tantas pessoas. Por
arquitetura disciplinadora que ao mes- outro lado, muitos colegas identificados como
mo tempo separa os órgãos masculinos heterossexuais jamais consideraram estranha a
e femininos e os condena a permanecer ausência de flerte entre pessoas do mesmo sexo
unidos. Desse modo, toda relação inter- em bares e restaurantes que não fossem explici-
sexual (isto é, heterossexual), é o cenário tamente identificados como LGBT ou gay friendly
do intercâmbio de signos hermafroditas até muito pouco tempo atrás.
entre almas do mesmo sexo (p. 187). Rich (2010) discorre sobre a heterossexuali-
dade compulsória, criticando o modelo que no-
Aqui, a crítica de Preciado parece residir no meia como heterocentricidade. Neste modelo, a
furor disciplinar da heterossexualidade que as- mulher é inevitavelmente levada até o homem
socia e dissocia a genitália ao mesmo tempo, como uma espécie de força gravitacional, na
obrigando que uma coniunctio ocorra a partir do qual o desejo é naturalizado e o par complemen-
encontro de corpos anatomicamente diferentes tar homem-mulher é uma fatalidade. A autora
dentro de uma perspectiva dual. A igualdade se denuncia os modos de roubar o poder das mu-
revelaria apenas no plano imaterial, no tocante lheres, seja pelo comando do trabalho domés-
às almas, e neste sentido a homossexualidade tico numa perspectiva servil e não remunerada,
e outras dissidências podem ser toleradas. Man- pelo estupro, pelo rapto de seus filhos, por sua
tendo-se o celibato e o segredo, não é problema constituição como objeto material de valor, en-
que alguém confesse impulsos homossexuais tre outros motivos. A existência lésbica, segun-
porque permanecem no nível da ideia. Este as- do Rich (2010), é continuamente apagada com o
pecto do complexo heteropatriarcal subsiste a objetivo de reforçar a heterossexualidade e colo-
partir da hierarquização do que pode ser sexua- car as mulheres numa perspectiva sem saída em
lizado e generificado para ser vivido no cotidia- que precisam se render aos homens e ao supos-
no material, por um lado, e de outros fenômenos to desejo inegável por eles.

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 97


Junguiana
v.39-2, p.89-102

A subordinação da mulher é fetichizada e relações com outras mulheres. A autora retira da


erotizada, em processo semelhante à subalter- psicologia da mulher a inevitabilidade do par ho-
nização dos corpos das pessoas trans e traves- mem-mulher, libertando o desejo feminino para
tis. A inferiorização é um atributo inerente ao outras configurações pensadas a partir da feno-
patriarcado que busca ordenar, discriminar e menologia de um ser próprio, que é construído a
categorizar sem limites, a despeito das necessi- partir de si mesmo e da interação com suas se-
dades, desejos e sentimentos daqueles que são melhantes. A tentativa aqui é superar o mito da
categorizados. Atuando sombriamente, reduz- mulher como costela do homem, uma das narra-
-se uma possibilidade a sexualidade a relações tivas embebidas no complexo heteropatriarcal.
de poder e política polarizadas, denunciando a O continuum lésbico é uma das radicalidades
ação do complexo como sabotador de parte da possíveis para dentro do fenômeno da sexuali-
consciência coletiva. Isto leva à intensificação dade, povoada por muitos seres, entre eles este
de conflitos dentro da vivência de sexos e gêne- que é a mulher do século XX.
ros. Uma das alternativas de resistência aponta- O pensamento junguiano é marcado pela
da por Rich (2010) é o estímulo a relações entre proposição da tensão de opostos. Ao explicar a
mulheres no continuum lésbico, definido como noção de arquétipo em contraposição a instinto,
Jung (2014) recorre às polaridades para explicar
um conjunto – ao longo da vida de cada o funcionamento psíquico que havia descoberto
mulher e através da história – de expe- à época. Entretanto, é no mesmo Jung (2012) em
riências de identificação da mulher, não que é explorado o Axioma de Maria, trazido pela
simplesmente o fato de que uma mulher alquimista Maria Prophetissa no século III. Ao
tivesse alguma vez tido ou consciente- analisar o axioma, o autor propõe que o caminho
mente tivesse desejado uma experiência da individuação implica o desenvolvimento do
sexual genital com outra mulher. Se nós elemento inicial, o um, para o dois e, em seguida,
ampliamos isso a fim de abarcar mui- o desdobramento para o terceiro, até a formação
to mais formas de intensidade primária dinâmica do quarto elemento que retornará ao
entre mulheres, inclusive o compartilha- um transformado. Assim, desenvolvem-se o indi-
mento de uma vida interior mais rica, um víduo e a coletividade, desdobrando-se e elabo-
vínculo contra a tirania masculina, o dar rando a tensão entre opostos até que surja o ter-
e receber de apoio prático e político, se ceiro elemento criativo em direção à totalidade,
nós podemos ouvir isso em associações representada pelo quatérnio. Este, por sua vez,
como uma resistência ao casamento e é um estado provisório que retorna ao elemento
em um comportamento, digamos, “exau- único para o reinício de um novo processo, no ci-
rido”, [...], nós começaremos a compre- clo infindável da individuação. Esse dinamismo
ender a abrangência da história e da psi- do um ao quatro demonstra o caráter mutável da
cologia feminina que permaneceu fora própria polarização no processo de elaboração
de alcance como consequência de defini- psíquica, que não se localiza somente na tensão
ções mais limitadas, na maioria clínicas, entre dois elementos e cujos elementos que se
de lesbianismo (p. 35). tensionam não se mantêm necessariamente os
mesmos ao longo do processo de elaboração.
A suspeita da autora é de que existe um ex- Em outro momento, Jung (2013b) propõe que, em
cluído do olhar sobre a sexualidade quando se resultado da tensão de opostos suportada pelo
trabalha sob a ótica da heterocentricidade. Este tempo adequado, teremos a formação de um
excluído é a própria psicologia da mulher, a qual terceiro que inaugurará um novo caminho para
pode ser observada mais precisamente nas suas o conflito. Novamente, vemos o dois evoluir para

98 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.89-102

o trio de dimensões que indicará uma alternativa de homem-mulher, é interromper a expressão da


para o caminho da individuação. sexualidade em suas múltiplas possibilidades. É
A partir dessas reflexões, que nos livremos a interdição moderna do desejo e das múltiplas
do par complementar como dois termos fixos configurações de relação. Em risco, claro, ficam
que se mantêm ao longo do tempo, como o par a monogamia, as relações de pessoas que se
homem-mulher ou o par homo-heterossexual. complementam e o encaixe perfeito, porque já
Busquemos a superação do pensamento anti- não há mais o que encaixar. Precisamos enfren-
quado: a fixação normativa no par complemen- tar estes medos.
tar e na tensão de opostos, sem considerar o Freud avançou como pôde ao nomear a ho-
dinamismo que leva ao três e ao quatro para o mossexualidade como perversão. Para sua épo-
final retorno ao um e reinício do processo. Em ca, perversão era uma alternativa menos pato-
outras palavras, precisamos, como coletivida- logizante ou passível de punição que sodomia,
de, tornar obsoleta a formulação de que o dois possessão demoníaca ou desvio de caráter,
é a norma. O dois, alternativamente, pode ser outras atribuições das sexualidades dissidentes
visto como um momento no processo de desen- anteriores à formulação freudiana. Jung explici-
volvimento humano. tou o complexo heteropatriarcal justamente ao
O propósito do complexo heteropatriarcal propor uma psicologia profundamente heteros-
é nos manter a todos na fixidez do par comple- sexualizada, estruturada a partir de anima e ani-
mentar, identificado a partir da função repro- mus, imaginada a partir de uma pretensa duali-
dutiva da genitália metaforizada como solução dade que jamais deixou emergir um terceiro na
chave-fechadura para todos os conflitos da hu- própria teoria de gênero que formulou. Em certo
manidade. O caminho para dentro do fenômeno sentido, avançou e possibilitou que entrásse-
da sexualidade implica valorizarmos a possibi- mos na fantasia do par complementar para que
lidade do par complementar como um estado pudéssemos sair dela sem que precisássemos
dinâmico que não se manterá por muito tempo, matá-la. Para escutarmos quem nos procura no
seja dentro ou fora de nós. Desta forma, o de- atendimento psicológico, é necessário que su-
sejo pelo sexo oposto pode se constituir como peremos o dois como verdade última. Lutemos
um evento ou uma ocasionalidade, formando-se pelo 3 e o 4. Lutemos pela morte e renascimento
como identidade naqueles que assim se cons- da sexualidade, pois é de Eros que mais precisa-
truírem, enfim destituído de compulsoriedade. mos, ilustrado por todas as cores que tivermos
Ninguém deveria ter como obrigação existencial para vivenciá-lo. ■
ser dois ou complementar um outro. Permanecer
muito tempo no dois, inscrito sob a psicologia Recebido em: 12/06/2021 Revisão: 01/11/2021

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 99


Junguiana
v.39-2, p.89-102

Abstract
The heteropatriarchal complex: a contribution to the study of sexuality in ana-
lytical psychology based on social theory
This article consists in the articulation of the fields of knowledge closer together, I intend to
analytical psychology of C.G. Jung and the con- propose theoretical contributions that enable a
temporary references in social theory, with the more effective clinical listening that must consid-
aim of improving clinical listening of psycholo- er sociopolitical aspects of individual conflicts,
gists and other professions working with issues not dismissing the psychological perspective. ■
of gender and sexuality. By bringing these two

Keywords: complex, heteropatriarchy, sexuality, gender.

Resumen
El complejo heteropatriarcal: una contribución al estudio de la sexualidad en
psicología analítica basada en la teoría social
Este artículo consiste en una articulación teó- lidad. A través de este enfoque, pretendo reali-
rica entre la psicología analítica de C. G. Jung y zar aportes teóricos que permitan una escucha
los referentes contemporáneos en la teoría social clínica más efectiva que considere los aspectos
con el objetivo de mejorar la escucha clínica de sociopolíticos de los conflictos individuales sin
los psicólogos y otros profesionales que atien- prescindir de la perspectiva psicológica. ■
den a la población en temas de género y sexua-

Palabras-clave: Complejo, heteropatriarcado, sexualidad, género.

100 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.89-102

Referências

BAIR, D. Jung: uma biografia. Rio de Janeiro, RJ: Biblioteca _______. Sobre o amor. São Paulo, SP: Ideias e Letras, 2005.
Azul, 2004.
KATZ, J. N. A invenção da heterossexualidade. Rio de
BERRY, P. Dogma de gênero. In: BERRY, P. (Org.). O corpo Janeiro, RJ: Ediouro, 1996.
sutil de eco: contribuições para uma psicologia arquetípica.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2004. p. 49-68. LAQUEUR, T. Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos
a Freud. Rio de Janeiro, RJ: Relume Dumará, 2001.
BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da
identidade. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira, 2003. MARCUSE, H. Eros e civilização: uma interpretação filosófica
do pensamento de Freud. Rio de Janeiro, RJ: LTC, 2018.
DUBERMAN, M. Has the gay movement failed? Oakland,
CA: University of California, 2018. NEUMANN, E. A história das origens da consciência. São
Paulo, SP: Cultrix, 1990.
FOUCAULT, M. A história da sexualidade vols. I, II e III. São
Paulo, SP: Paz e Terra, 2020. PRECIADO, P. B. Manifesto contrassexual. São Paulo, SP:
N-1, 2017.
GREEN, J. N. Forjando alianças e reconhecendo complexi-
dades: as ideias pioneiras do grupo somos de São Paulo. In: RICH, A. Heterossexualidade compulsória e existência lésbica.
GREEN, J. N. et al. (Eds.). História do movimento LGBT no Revista Bagoas, Natal, v. 4, n. 5, p. 17-44, jan./jun. 2010.
Brasil. São Paulo, SP: Alameda, 2018. p. 63 -78.
ROUGHGARDEN, J. Evolução do gênero e da sexualidade.
JESUS, J. G. Xica Manicongo: a transgeneridade toma a Londrina, PR: Planta, 2005.
palavra. ReDoC: Revista Docência e Cibercultura, Rio de
RUBIN, G. Políticas do sexo. São Paulo, SP: Ubu, 2017.
Janeiro, v. 3, n. 1, p. 250-60, jan./abr. 2019. https://doi.
org/10.12957/redoc.2019.41817 SINGER, T.; KIMBLES, S. The cultural complex: contemporary
jungian perspectives on psyche and society. London:
JUNG, C. G. A natureza da psique. Petrópolis: Vozes,
Routledge, 2004.
2013a. (Obras Completas, vol. 8.).
WITTIG, M. The straight mind and other essays. Boston,
_______. O eu e o inconsciente. Petrópolis, RJ: Vozes,
MA: Beacon, 1992.
2015. (Obras Completas, vol. 7/2.)
WITTMAN, C. A gay manifesto. New York, NY: Red Butterfly,
_______. Os arquétipos e o inconsciente coletivo.
1970. Disponível em: <http://library.gayhomeland.org/0006/
Petrópolis, RJ: Vozes, 2014. (Obras Completas, vol. 9/1.)
EN/A_Gay_Manifesto.htm>. Acesso em: 22 fev. 2021.
_______. Psicologia e alquimia. Petrópolis, RJ: Vozes,
2012. (Obras Completas, vol. 12.).

_______. Símbolos da transformação. Petrópolis: Vozes,


2013b. (Obras Completas, vol. 5.).

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 101

Você também pode gostar