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Resumo:
Neste artigo, retomamos brevemente a história dos testes de medição de capacidades humanas tendo em
vista evidenciar a ontologia que embasa seu objetivo de justificar desigualdades sociais por supostas
diferenças intelectuais inatas. Mostramos que a burguesia, para a manutenção da sociedade construída
sobre a desigualdade, lança mão de argumentos “válidos”, “científicos”, que justificam tal ordem social.
Os testes de aptidão e de capacidade de outrora, bem como os testes de avaliação em larga escala
hodiernos, se mostram ferramentas imprescindíveis ao projeto hegemônico burguês, arriscamos afirmar
que esse aspecto ontológico demarca tanto os testes psicométricos do passado, quanto os testes de
avaliação em larga escala dos dias atuais.
Palavras-chave: Ontologia, Testes psicométricos e Avaliação em larga escala.
Abstract:
In this article, we resume briefly the history of the measurement tests of human capabilities with the
intention of evidencing the ontology that supports its purpose of justifying social inequalities for alleged
innate intellectual differences. We show that the bourgeoisie, for the maintenance of a society built on
inequality, makes use of arguments “valid”, “scientific”, which justify this social order. Aptitude and
capability tests from other times, as well as the recent evaluation tests on a large scale, they show
themselves like indispensable instruments to the bourgeois hegemonic project, we venture to say that this
ontological aspect demarcates both the psychometric tests of the past, and the evaluation tests on large
scale of today.
Keywords: Ontology, psychometric tests and evaluation on a large scale.
Cria-se uma nova concepção formal, uma concorrência vital levando a uma seleção
jurídica e política de igualdade, de natural e à sobrevivência dos mais aptos afinava-
liberdade e de justiça, mediada pelo papel se com a ideologia da distribuição das funções
do Estado, visando substituir a igualdade sociais ligadas à espontaneidade”. Essa teoria
real. O Estado burguês, neste processo,
representava os interesses burgueses, pois assim
toma a si a tarefa de instruir o povo como
forma de se legitimar no poder. A gênese “as desigualdades sociais não se mostram relativas
da instrução pública está intimamente a uma ordem social criada pelos homens, mas
ligada a este fato. Era preciso tornar a dependem de uma nova ordem transcendental, de
sociedade coesa, difundindo uma natureza biológica, irredutível e determinante”
concepção única de mundo, produzir (BISSERET, 1979, p. 43).
certo tipo de senso comum articulando os A preocupação expressa nos testes de
interesses das camadas subalternas aos inteligência é encontrar um instrumento de
interesses que se organizavam como predição, ou seja, quanto mais os prognósticos
dominantes. contidos nos testes são confirmados mais
comprovam a realidade substancial que “medem”,
No processo de consolidação da burguesia, pois somente aptidões desiguais permitem
reconhecendo a desigualdade e a impossibilidade explicar a diferenciação e a hierarquização dos
de atacá-la, a igualdade se constitui como algo indivíduos e das classes sociais. A recorrência à
cada vez mais abstrato, descolado das relações noção de aptidão permite justificar as
sociais desiguais. Ao indivíduo é delegada a desigualdades de acesso ao ensino e,
responsabilidade pelo seu sucesso ou conseqüentemente, as desigualdades sociais, pois
principalmente pelo seu fracasso. De forma que o na escola é oferecida a todos a oportunidade de
insucesso ou o fracasso na ordem societal desenvolver e provar suas aptidões. Eis aí a
burguesa deriva de atributo individual e não de ontologia dos testes de medição das habilidades
classe. intelectuais.
A burguesia se vê forçada, no bojo desses A ontologia dos testes de mensuração de
acontecimentos e tendo em vista a manutenção da inteligência ou de aptidões se encontra incrustada
sociedade desigual, a encontrar argumentos na ontologia da classe que lança mão de tais
“válidos” que justificassem tal ordem social. mecanismos como forma de garantir sua
Nesse momento, de afirmação hegemônica os manutenção no poder político e econômico. A
testes de aptidão e de capacidade se mostram ideologia das desigualdades naturais tornou-se
como ferramentas imprescindíveis ao projeto pouco a pouco verdade científica emprestando de
hegemônico burguês. Para Noronha (2002, p. 65), forma recorrente, da craniometria, da
antropometria, da biologia, da genética, da
A ênfase nas características individuais
psicologia, da sociologia e da estatística – que se
como elemento definidor do projeto de
democracia liberal vai ter na escola única mostraram por vezes como guias de sua prática
sua condição de realização. No interior científica –, os elementos que lhe permitiriam
desta proposta se articulam alguns fundamentar, com segurança, suas asserções de
pedagogos preocupados em descobrir, a cunho classista.
partir da perspectiva da psicobiologia, as Inferimos que a ontologia dos testes, em que
leis do desenvolvimento natural do a diferenciação escolar por eles proporcionada e
homem, de acordo com os pressupostos pelos mecanismos de avaliação, se constitui numa
do organicismo e do evolucionismo, necessidade do capitalismo. Logo, podemos
inspirados nas descobertas científicas de afirmar que há nos testes, sistemas de avaliação,
Spencer e Darwin.
de orientação vocacional e educacional e todo o
caudal de certificações uma intencionalidade, para
Deste modo, a classe detentora do poder
esses mecanismos de seleção e de controle social
lança mão de um sistema de crenças em nome do
com vistas à manutenção da sociedade capitalista.
qual procura justificar as desigualdades sociais,
sistema que reforçará o desenvolvimento das
BREVE HISTÓRICO DOS TESTES:
ciências biológicas, pois, segundo Bisseret (1979,
p. 43), “os trabalhos de Darwin tiveram, nesse
A avaliação é inseparável do ser e do
sentido, enorme repercussão, visto que a idéia de
constituir-se homem do homem, no seu processo
de firmação como ser social, o que significa dizer entremeados, tem muito em comum com
que os homens como sujeitos históricos ao se a aprendizagem programada atual. Desde
constituírem via o trabalho avaliam. Subjacente a seu princípio, na Idade Média, as
todo processo de avaliação, se encontra um universidades européias utilizavam-se de
exames formais para conferir títulos ou
modelo de mundo, um objetivo de vida social, ou
honrarias.
seja, um projeto social a executar ou a refutar, e
isso caracteriza a ontologia do processo
Tais informações são importantes, mas foi
avaliativo. A avaliação como prática social está
no século XIX que se desenvolveram os principais
inscrita e é matizada pelos diversos modos de
processos que culminaram nos testes
produzir e reproduzir a existência social, o que
contemporâneos. As primeiras discussões e
significa dizer que historicamente sofreu
pesquisas organizadas sistematicamente sobre
mudanças de forma e de conteúdo, mas sempre
avaliação via testes foram realizadas no campo da
ligadas a um projeto social.
Psicologia da Educação em sua vertente
Conquanto reconheçamos a dificuldade de se
psicométrica. Os testes e as pesquisas eram
reconstruir o processo histórico de produção de
realizados nos laboratórios de Psicologia
ações avaliativas, importa realçar que o modo
Experimental, período em que a psicologia
capitalista de produzir e reproduzir a existência
começava a atingir status de ciência e as técnicas
humana exige a medição das capacidades
psicométricas e projetivas davam o tom a tais
humanas, sob o pretexto de alocar os homens
pesquisas. Baquero (1979) identifica W. Wundt
tomando por base suas aptidões e habilidades para
(1832-1920), alemão, considerado o pai da
um desempenho ótimo frente às atribuições
Psicologia Experimental, como o primeiro a
sociais deles requeridas. Entretanto, alguns
trabalhar sobre as diferenças individuais. Cita
elementos de sua história foram recuperados tendo
também o inglês Francis Galton (1822-1911) que,
em vista favorecer a compreensão da função da
em 1883, no laboratório antropométrico de
avaliação em nossa sociedade.
Londres, foi considerado um dos marcos desse
A criação e a implantação dos testes de
ramo da psicometria por ter realizado “tanto testes
medição de capacidades humanas não inauguram
reveladores das diferenças dos indivíduos como
a avaliação no seu aspecto social mais amplo. Sua
métodos estatísticos para analisar dados que os
história sugere que acompanham a humanidade
testes lhe proporcionavam” (BAQUERO, 1979, p.
desde há muito tempo. Segundo entendimento de
10). Galton levara em conta a curva de
Sellier (1977), nas lendas acerca da Antiguidade
probabilidades e criara um método para relacionar
evidencia-se em pelo menos dois mitos, o que
variáveis denominadas “índice de correlação”.
viriam a ser os testes mentais. Reporta-se ao
Um dos trabalhos pioneiros da Psicologia
enigma proposto pela Esfinge a Édipo1 e ao
Experimental é reputado ao francês Alfred Binet
labirinto em que Teseu teve que adentrar para
(1857-1911) considerado verdadeiro fundador dos
realizar seus feitos. O autor recorre a esses
testes de inteligência. Segundo Baquero (1979, p.
exemplos para caracterizar essencialmente as
78),
provas ou testes de inteligência.
Anastasi (1977, p. 5) alega que a origem dos Foi ele quem introduziu nos testes já
testes se perde na Antiguidade, citando o sistema usados, elementos que avaliassem as
de exames para o serviço civil em vigor no funções psicológicas complexas e
Império chinês durante três mil anos: superiores. Por sua vez, relacionou os
resultados dos testes com a idade,
Os testes eram utilizados para auferir o surgindo assim a primeira escala de
domínio de habilidades tanto físicas como inteligência. [...] A escala de Binet foi
de inteligência. O método Socrático de revisada pelo norte-americano Terman na
ensino, com ensinamentos e testes Universidade Stanford, em 1916.
Generalizou-se assim o uso do Quociente
Intelectual, que não é outra coisa senão o
1 quociente entre a Idade Mental (I.M.) e a
O enigma é descrito pelo autor da seguinte forma:
“Qual é o animal que caminha sobre quatro patas de Idade Cronológica (I.C.). Sua fórmula
manhã, sobre duas patas ao meio-dia, sobre três patas à será QI = I.M./I.C..
noite?” (SELLIER, 1977, p. 29) A resposta desse
enigma é o homem.
como pudemos depreender pelas diferentes clássica dos testes e com o surgimento de novas
influências teóricas e metodológicas que se abordagens sobre avaliação educacional. Vianna
fizeram presentes no ideário precursor dos testes (2005) indica que esse movimento ocorreu em
avaliativos no Brasil. Contudo, podemos afirmar contraposição ao modelo avaliativo proposto por
que os novos sistemas de avaliação denominados Tyler. O autor afirma que
de sistemas de nova geração, mesmo que
“circunscritos numa tendência internacional de É importante destacar, nesse momento, o
intensificação e fortalecimento de mecanismos de aparecimento de uma instituição atuante
controle da qualidade da educação por meio da até os dias fluentes e que, mais tarde,
avaliação de desempenho escolar” (SOUSA, serviria de modelo para a criação de
outros órgãos semelhantes – o
1997), se desenvolveram principalmente nos
Educational Testing Service (ETS) –
Estados Unidos da América. Durante as duas (1947), por inspiração de vários
primeiras décadas do século XX, com Edward educadores, entre os quais se destacaram
Thorndike, os testes de medidas educacionais, E. F. Lindquist e Ralph W. Tyler. O ETS,
enfatizando a importância na medida e a partir de sua criação, passaria a ter
quantificação do comportamento humano, influencia decisiva no desenvolvimento
ganham projeção desembocando no de testes (padronizados) e em amplos
desenvolvimento de testes padronizados para programas de avaliação, como o National
mensurar aptidões e habilidades dos estudantes. Assessment of Educational Progress
Segundo Vianna (2005 p. 146), (NAEP) e o International Assessment of
Educational Progress (IAEP) (VIANNA,
2005, p. 149).
O grande passo na evolução da avaliação
educacional foi dado por E. L. Thorndike,
nos princípios do século XX, ao Esses acontecimentos incidiram na educação
desenvolver toda uma fundamentação que se praticava e nas formas de otimização de
teórica sobre a possibilidade de medir seu alcance em prol de um melhor
mudanças nos seres humanos, escrevendo desenvolvimento econômico e social. Ressalte-se
importante livro – Mental and Social que na década de 60 do século XX, compondo o
Measurement (1904), editado pela ethos avaliativo, se fortalece o emprego do termo
Universidade de Colúmbia, na qual era accountability que acompanhará as discussões
professor. A partir desse momento, todo acerca das avaliações de larga escala, servindo
um aparato tecnológico é desenvolvido
como respaldo ao discurso em prol da “educação
para a medida de capacidades humanas e
a avaliação; em conseqüência, passa a ter compensatória” das desigualdades sociais, como
o significado de medida, concepção que evidencia Vianna (2005 p. 150) na passagem que
ainda prevalece em amplos setores segue:
educacionais, inclusive fora dos Estados
Unidos, como no Brasil. O contexto político, inicialmente
decorrente da administração John
Considerando os acontecimentos políticos e Kennedy e, a seguir, após 1963, da gestão
econômicos, que de certa forma refletiram no Lyndon Johnson, em que houve uma
grande preocupação com os reflexos das
movimento avaliativo norte-americano, somos
desigualdades sociais na diferenciação
remetidos aos problemas advindos da Segunda das oportunidades educacionais, passa a
Guerra Mundial (1939-1945). Os problemas determinar um grande esforço a fim de
econômicos da retomada da produção no pós- criar novas condições na área
guerra demandavam rigoroso controle de educacional, surgindo, por influência de
eficiência. Vianna (2005) assinala que, apesar da Robert Kennedy, o conceito de
crise socioeconômica do período que se estende responsabilidade em educação
desde meados da década de 1940 até fins da (accountability), a fim de evitar possíveis
década de 1960, importantes transformações desperdícios dos recursos financeiros
ocorreram na educação americana, como o concedidos a programas curriculares e a
suas avaliações, na área da educação
aumento da preocupação com os testes de
compensatória. A avaliação, nesse novo
mensura de habilidades e conhecimentos. Esse quadro, deixou de ser apenas um trabalho
período coincide com o desenvolvimento da teoria teórico de alguns educadores,
transpor o escrutínio da eficiência, que essa deva MONARCHA, Carlos. Lourenço Filho: outros aspectos,
ser constantemente avaliada e rotulada pelos seus mesma obra. Campinas: Mercado de Letras, 1987.
resultados. _____. Lourenço Filho e a organização da psicologia
Para tanto, muitos aspectos que interferem aplicada a educação: (São Paulo 1922 – 1933). Brasília:
no aprendizado por parte dos estudantes, são INEP/MEC, 2001.
desconsiderados, recebendo atenção maior o
NAGEL. Avaliação, sociedade e escola: Fundamentos
rendimento dos alunos em testes ou provas que para reflexão. Curitiba, PR. Secretaria de Estado da
intentam mensurar seus conhecimentos. Educação, 1996.