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Os Lusíadas, de Luís de Camões – Canto I, est. 19-41

› O Consílio dos Deuses


Estância 19: Plano da Viagem de Vasco da Gama à Índia
característica da
19 Já no largo Oceano1 navegavam, Na estrofe 19, o epopeia (género
personagens
(est. 19):
narrador é Luís de épico): a narração
As inquietas ondas apartando; Camões - narrador ocorre "in media res",
Vasco da
Gama e seus
Os ventos brandamente respiravam, heterodiegético. ou seja, a narração
homens.
inicia quando a viagem
Das naus as velas côncavas inchando; já vai a meio (a armada
Da branca escuma os mares se mostravam portuguesa estava no
Oceano Índico, no
Cobertos, onde as proas vão cortando canal de Moçambique.
As marítimas águas consagradas,
Que do gado de Próteu são cortadas,
Episódio: Plano Mitológico
20 Quando os Deuses no Olimpo luminoso, Júpiter simboliza a razão e o Os deuses na epopeia camoniana
não são procurados apenas para
Convocatória Onde o governo está da humana gente, equilíbrio entre a força e
determinação dos portugueses embelezar o texto, eles
Se ajuntam em consílio glorioso, e as dificuldades oferecidas correspondem à uma parte
fundamental no desenvolvimento
Sobre as cousas futuras do Oriente. pelos elementos naturais.
da ação.
Pisando o cristalino Céu fermoso,
Vem pela Via Láctea juntamente,
Convocados, da parte do Tonante,
Pelo neto gentil do velho Atlante.

21 Deixam dos Sete Céus o regimento,


Chegada dos Que do poder mais alto lhe foi dado, Ida dos deuses, convocados por
deuses no Olimpo Júpiter através de Mercúrio,
Alto Poder, que só co pensamento para ajuntarem-se em concílio -
Governa o Céu, a Terra e o Mar irado. tinham como objetivo discutir e
decidir o futuro dos portugueses
Ali se acharam juntos, num momento, no Oriente.
Os que habitam o Arcturo congelado
E os que o Austro2 tem e as partes onde
A Aurora nasce e o claro Sol3 se esconde.

22 Estava o Padre4 ali, sublime e dino,


-Caracterização física de Júpiter: gesto alto, severo e
Descrição de Que vibra os feros raios de Vulcano5, soberano, com uma coroa e cetro rutilantes (símbolos
Júpiter, do Olimpo
e dos deuses
Num assento de estrelas cristalino, do poder), corpo humano.
Com gesto alto, severo e soberano;
-Caracterização psicológica: alto, severo, soberano -
Do rosto respirava um ar divino, zangado e sublime.
Que divino tornara um corpo humano;
Com hũa coroa e cetro rutilante,
De outra pedra mais clara que diamante.

1
Índico
2
vento do Sul
3
o Nascente e o Poente
4
Júpiter
5
deus do fogo

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23 Em luzentes assentos, marchetados6


Os deuses se organizavam no Olimpo de
De ouro e de perlas, mais abaixo estavam forma hierárquica, os mais importantes,
Os outros Deuses, todos assentados, antigos e honrados, sentavam próximos
Como a Razão e a Ordem concertavam7 de Júpiter, e os menos importantes e
mais jovens, mais afastados.
(Precedem os antigos, mais honrados,
Mais abaixo os menores se assentavam);
Quando Júpiter alto, assi dizendo,
Cum tom de voz começa, grave e horrendo:

24 "Eternos moradores do luzente, Júpiter posiciona-se favorável aos portugueses,


querendo os ajudar a encontrar um porto seguro
Discurso de Estelífero Polo8 e claro Assento:
na costa africana onde eles pudessem
Júpiter Se do grande valor da forte gente descansar antes de seguir viagem.
De Luso não perdeis o pensamento,
Deveis de ter sabido claramente
Como é dos Fados9 grandes certo intento
Que por ela se esqueçam os humanos
De Assírios, Persas, Gregos e Romanos.

25 Já lhe foi (bem o vistes) concedido,


Cum poder tão singelo e tão pequeno,
Tomar ao Mouro forte e guarnecido
Toda a terra que rega o Tejo ameno;
Pois contra o Castelhano tão temido
Sempre alcançou favor do Céu sereno.
Assi que sempre, enfim, com fama e glória,
Teve os troféus pendentes da vitória.

26 Deixo, Deuses, atrás a fama antiga,


Que co a gente de Rómulo10 alcançaram,
Quando com Viriato, na inimiga
Guerra Romana, tanto se afamaram.
Também deixo a memória que os obriga
A grande nome, quando alevantaram
Um por seu capitão11, que, peregrino,
Fingiu na cerva espírito divino.

6
esmaltados
7
mandavam
8
céu
9
destino(s)
10
os Romanos
11
estrangeiro (Sertório)

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27 Agora vedes bem que, cometendo


O duvidoso mar num lenho leve,
Por vias nunca usadas, não temendo
De Áfrico e Noto12 a força, a mais se atreve:
Que, havendo tanto já que as partes vendo
Onde o dia é comprido e onde breve,
Inclinam seu propósito e perfia
A ver os berços onde nasce o dia.

28 Prometido lhe está do Fado eterno,


Cuja alta lei não pode ser quebrada,
Síntese dos argumentos de Júpiter:
Que tenham longos tempos o governo -grandioso é o futuro dos portugueses, dado à sua
Do mar que vê do Sol a roxa entrada. bravura e persistência, que iriam realizar feitos tão
Nas águas tem passado o duro inverno; grandiosos que fariam as pessoas se esquecerem dos
heróis da Antiguidade.
A gente vem perdida e trabalhada. -a coragem e valentia dos portugueses, que mesmo
Já parece bem feito que lhe seja com um poder inferior, obtiveram vitória contra os
povos mais temidos (mouros e castelhanos)
Mostrada a nova terra que deseja. -a persistência dos portugueses era imensa, que
mesmo com tantos desafios na viagem, nada os fariam
29 E porque, como vistes, tem passados desistir (o tempo já decorrido, o cansaço, os perigos, os
inimigos...).
Na viagem tão ásperos perigos, -a coragem necessária para navegar em "mares nunca
Tantos climas e céus exprimentados, d'antes navegados".
Tanto furor de ventos inimigos,
Que sejam, determino, agasalhados
Nesta costa Africana como amigos,
13
Fim do Discurso E, tendo guarnecida a lassa frota,
No Concílio, diferindo-se dos demais
Tornarão a seguir sua longa rota." deuses, Baco intervém e mostra-se um
de Júpiter
deus oponente em relação aos
portugueses. Baco havia ouvido aos
30 Estas palavras Júpiter dezia, fados de que algum povo viria superar
a fama antiga que já lá existia. Baco
Intervenção Quando os Deuses, por ordem respondendo, temeu que essa fama fosse sua, já que
de Baco
Na sentença14 um do outro difiria, Baco vem tinha a Índia sojugada, e que esse povo
Razões diversas dando e recebendo. simbolizar a eram os portugueses. Portanto,
resistência motivado pelo receio de perder sua
O padre Baco ali não consentia fama e adoração no Oriente, e que a
oriental ao
No que Júpiter disse, conhecendo domínio mesma fosse esquecida, Baco deseja
impedir que os portugueses cheguem
Que esquecerão seus feitos no Oriente, português.
às Índias.
Se lá passar a Lusitana gente.

12
ventos do Sudoeste e do Sul
13
cansada
14
opinião

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31 Ouvido tinha aos Fados que viria


Hũa gente fortíssima de Espanha,
Pelo mar alto, a qual sujeitaria
Da Índia tudo quanto Dóris banha,
E com novas vitórias venceria
A fama antiga, ou sua ou fosse estranha.
Altamente lhe dói perder a glória
De que Nisa celebra inda a memória.

32 Vê que já teve o Indo sojugado


E nunca lhe tirou Fortuna ou caso
Por vencedor da Índia ser cantado
De quantos bebem a água de Parnaso.
Teme agora que seja sepultado
Seu tão célebre nome em negro vaso
Fim da De água do esquecimento, se lá chegam
intervenção de
Os fortes Portugueses que navegam.
Baco

33 Sustentava contra ele Vénus bela,


Afeiçoada à gente Lusitana,
Por quantas qualidades via nela
Raz Da antiga, tão amada sua, Romana;
ões Vénus simboliza
pela Nos fortes corações, na grande estrela,
a gente
s Que mostraram na terra Tingitana, ocidental,
quai
s E na língua, na qual, quando imagina, Vénus era afeiçoada aos fascinada pela
portugueses: as qualidades expansão.
Vén Com pouca corrupção crê que é a Latina.
us guerreiras e a língua lembravam
é os romanos, povo que a amava.
favo 34 Estas causas moviam Citereia, Por onde os portugueses
passarem, ela será adorada .
ráve E mais, porque das Parcas claro entende
l
aos Que há de ser celebrada a clara Deia,
port Onde a gente belígera se estende.
ugu Assi que, um, pela infâmia que arreceia,
ese
s E o outro, polas honras que pretende,
Debatem, e na perfia permanecem;
A qualquer seus amigos favorecem.

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35 Qual Austro fero ou Bóreas15, na espessura,


De silvestre arvoredo abastecida,
Rompendo os ramos vão da mata escura,
Com ímpito e braveza desmedida,
Brama toda a montanha, o som murmura,
Rompem-se as folhas, ferve a serra erguida:
Tal andava o tumulto, levantado
Entre os Deuses, no Olimpo consagrado.

36 Mas Marte, que da Deusa sustentava


De Entre todos as partes em porfia,
scr
içã Ou porque o amor antigo o obrigava,
-Caracterização física: forte escudo
o Ou porque a gente forte o merecia, ao colo, viseira do elmo de diamante
da De antre os Deuses em pé se levantava (símbolos do poder).
fig
ura (Merencório16 no gesto parecia),
-Caracterização psicológica:
O forte escudo, ao colo pendurado, zangado, medonho, irado.
de
Ma Deitando pera trás, medonho e irado,
rte
e 37 A viseira do elmo de diamante Marte mostra-se como deus
raz adjuvante, ao apoiar o discurso
õe Alevantando um pouco, mui seguro, de Vénus. Motivações de
s Por dar seu parecer se pôs diante Marte: o amor antigo o
de obrigava (Vénus), ou os
po
De Júpiter, armado, forte e duro; lusitanos o mereciam.
sici E, dando hũa pancada penetrante,
on Co conto do bastão, no sólio puro,
am
ent O Céu tremeu, e Apolo, de torvado,
o Um pouco a luz perdeu, como infiado;

38 E disse assi: "Ó Padre, a cujo império


Com sentimentos de determinação,
Tudo aquilo obedece que criaste;
revolta e gravidade, Marte intervém
Discurso de Se esta gente que busca outro Hemisfério, no Concílio como deus adjuvante.
Marte Cuja valia e obras tanto amaste, Menciona como razões: o mérito
dos portugueses, a inveja de Baco
Não queres que padeçam vitupério, perante o merecimento e o desejo
Como há já tanto tempo que ordenaste, dos céus para com os portugueses,
Não ouças mais, pois és juiz direito, e faz um apelo ao caráter de Júpiter
para não voltar atrás na coisa
Razões de quem parece que é suspeito. começada.

15
Vento Sul e Vento Norte e Nordeste
16
aborrecido

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39 Que, se aqui a razão se não mostrasse


Vencida do temor demasiado,
Bem fora que aqui Baco os sustentasse,
Pois que de Luso vem, seu tão privado17;
Mas esta tenção sua agora passe,
Porque enfim vem de estâmago danado18,
Que nunca tirará alheia enveja
O bem que outrem merece e o Céu deseja.

40 E tu, Padre de grande fortaleza,


Da determinação que tens tomada
Fim do
Não tornes por detrás, pois é fraqueza
discurso Desistir-se da cousa começada.
de Marte Mercúrio, pois excede em ligeireza
Ao vento leve e à seta bem talhada,
Lhe vá mostrar a terra, onde se informe
Da Índia, e onde a gente se reforme19."

41 Como isto disse, o Padre poderoso,


Este episódio pode ser considerado como uma metáfora das
A cabeça inclinando, consentiu dificuldades enfrentadas pelos portugueses na viagem.
No que disse Mavorte valeroso,
E néctar sobre todos esparziu.
Pelo caminho Lácteo glorioso, O episódio encerra com o desfecho do concílio - néctar é
Logo cada um dos Deuses se partiu, distribuído aos deuses, despedidas acontecem.
Fazendo seus reais acatamentos20,
Pera os determinados apousentos.

CAMÕES, Luís de – Os Lusíadas. 12.ª ed. Porto: Porto Editora, 2012. 978-972-0-04956-8. pp. 9-15.

17
íntimo
18
coração malévolo
19
se recomponha
20
reverências

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