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Resumo: Este artigo tem como objetivo discutir o significado da rejeição do Palavras-chave:
espaço circense, bem como das manifestações lúdicas praticadas em seu Cartago;
interior, para a vida do neófito paleocristão, a partir dos textos de Tertuliano Paleocristianismo;
– em especial o Sobre os espetáculos (De Spectaculis). A fim de justificar Tertuliano;
seu posicionamento, o autor norte-africano associou metaforicamente Circo;
tanto recintos quanto monumentos do circo e dos templos pagãos, o que Ludi Circenses.
levou sua argumentação a identificar o comparecimento àquele local para
assistir às corridas de bigas como uma prática idolátrica. Defendemos que
o objetivo de Tertuliano com essas sanções foi controlar as sociabilidades
dos membros da comunidade proto-ortodoxa de Cartago de modo a
demarcar a identidade desse grupo em contraposição à pagã. Com intuito
de responder nossos questionamentos, analisamos a documentação
primária à luz do exame textual crítico da Análise de Conteúdo por meio
do método proposto por Laurence Bardin.
Abstract: This paper aims to debate the rejection of the circus space, as Keywords:
well as the manifestations of entertainment practiced within it, and its Carthage;
meaning for the Paleochristian neophyte’s life, based on the Tertullian’s Paleochristianism;
scriptures – in particular ‘Of public shows’ (De Spectaculis). In order to Tertullian;
justify his statements, the North African author metaphorically associated Circus;
both venues and monuments in circus and pagan temples, which led his Ludi Circenses.
argumentation to identify attending chariot races as an idolatrous practice.
We argue that Tertullian’s aims with such sanctions were to control the
sociability of Carthage’s proto-orthodox community members, as to mark
the identity of this group in contrast with the identities of pagans. In order
to answer our questions, we have analyzed our primary archives through a
critical textual examination of the Content Analysis, following the method
proposed by Laurence Bardin.
__________________________________
*
Mestre em História Social das Relações Políticas pela Universidade Federal do Espírito Santo e pesquisador do
Laboratório de Estudos sobre o Império Romano (Leir/ES).
E
m Sobre os espetáculos (De Spectaculis), escrita por volta de 202-206, Tertuliano
argumentou quanto às objeções e rejeições aos jogos, qualificando todos os
espetáculos pagãos como antitéticos às crenças e práticas cristãs, especialmente após
o momento decisivo na vida do crente, ou seja, a renúncia da vida pregressa pelo ato do batismo
(signaculum). Para compreender os reveses da comunidade proto-ortodoxa cartaginesa no
século terceiro, assim como o esforço regulador da secta paleocristã africana, selecionamos
este texto uma vez que, nele, Tertuliano foi profícuo em argumentos contrários às corridas,
destinados a alertar os próprios paleocristãos, o que indica que estes compartilhavam as
práticas sociais pagãs e “[...] que os jogos eram apreciados indistintamente, não importando
a crença religiosa” (BUSTAMANTE, 2005, p. 227). Dessa forma, para a composição do texto
de Sobre os Espetáculos, Tertuliano baseou-se em três valores, a partir da exposição de ideias
teológicas contidas na oração de abertura da obra, na forma de exordium, que elucida na
partitio do tratado:1 “as exigências da fé, um bom sistema doutrinal e um estatuto disciplinar”
(Spect. 1.1). As três linhas argumentativas ou três valores eram a fides, a ueritas e a disciplina,
ou seja, a fé, a verdade, expressa por um bom sistema doutrinal, e o estatuto disciplinar (SIDER,
1978, p. 339-342; VAN DER NAT, 1964, p. 129-143). Segundo Sider (1978, p. 339-340), “veremos
que o De Spectaculis é uma exploração, apropriadamente fixada no contexto da experiência
batismal, da natureza e do significado do cristianismo em termos de três cruciais conceitos
de fé, verdade e disciplina”. Assim, à luz desses três valores discutiremos algumas questões
sócio-religiosas dentro do pensamento do cartaginês.
Inicialmente, defendemos que o Sobre os espetáculos parece ter sido um escrito
parenético,2 inicialmente proferido na forma de discurso, a partir de dúvidas cotidianas
1
Em termos retóricos, a acomodação do exordium e da partitio em um texto fazem parte do domínio da disposição ou
dispositio. Quintiliano (Inst. Orat., 7, 1.1-2) afirmava que por disposição entendíamos a prudente distribuição das ideias e
demais partes do discurso dentro do texto. A disposição desses conteúdos obedecia à intuição do autor e o modo como
este achava melhor conduzir a argumentação ou introduzir determinado assunto. Assim, dentro da dispositio, o exordium
tinha a função de introduzir um discurso, por meio da anunciação do objeto e da finalidade discursiva, de modo a cativar
e persuadir o ethos da audiência, a fim de estabelecer o ânimo do público (Arist., Reth., 3.14; Ad Her., 1.4-11; Cic., De Inv.,
1.15-18; Cic., De Or., 2.78-80; Quint., Inst. Orat., 4.1). Mesmo que comumente a partitio ou diuisio venha após a narratio, ou
declaração de fatos, acreditamos que Tertuliano optou por reafirmar ainda na sentença inicial quais seriam as ideias centrais
de sua discussão. De maneira geral, na partitio se anuncia o esboço e a listagem dos principais pontos argumentativos a
serem utilizados na ordem em que aparecem dispostos (Ad Her., 1.10.17; Cic., De Inv., 1.22-23; Quint., Inst. Orat., 4.5).
2
Tal como Stowers (1986, p. 92), entendemos a parênese ou parenética como um estilo textual no qual o enunciador exorta
alguém a perseguir ou evitar alguma coisa, sempre denotando que se preserve certo modo ou modelo de vida. Assim,
apresenta-se como uma orientação de maneira a influenciar a conduta de um indivíduo ou de um auditório e assegurar seu
convencimento (MALHERBE, 1987, p. 70). Insere-se então no domínio de fronteira entre os gêneros antigos, pois a parênese,
mesmo que associada ao epidítico pela rejeição e condenação de várias práticas, tem função de aconselhamento enfático
tal como pressupõe o gênero deliberativo. Acreditamos nisso uma vez que uma das características fundamentais do gênero
político ou deliberativo era dissuadir ou persuadir sobre algum assunto concernente a uma audiência (Aris., Reth., 1358b),
aspecto muito mais complexo defendido por Quintiliano (Inst. Orat., 4, 8.1-7), do que aquele que Cícero (De Or., 2, 82.334)
restringia ao afirmar todo o objetivo do deliberativo entre a dicotomia de convencimento do que era virtuoso e digno
ou prejudicial e vicioso. Finalmente, a parênese apologética também delibera sobre o futuro, convencendo no presente,
indagando sobre o passado (Quint., Inst. Orat., 4, 8.6). Os escritos parenéticos podem ainda possuir dois sentidos, ou um
daqueles que se preparavam para o batismo, obtendo a sua forma final de tratado a posteriori.
Foi, assim, “um meio privilegiado de comunicação social a nível das massas” (MARQUES,
1979, p. 392). Se concordamos com Antony Corbeill (2007, p. 70) quando ele afirmou que a
retórica possuía, em qualquer época, a utilidade de estabelecer e afirmar os valores éticos e a
ordem social, a motivação do De Spectaculis enquanto parênese de ética social e religiosa se
notabilizou como uma manifestação da retórica com fins de doutrinação e convencimento
da comunidade ainda que sua função primeira ainda fosse apologética, ou seja, de defesa
da fé perante e no contraste com as práticas socioculturais dos inimigos da fé, os gentios
ou pagãos. É, pois por esses objetivos que deve ser vista como não necessariamente factual,
mas verossímil, organizada em si mesma e disposta à reflexão unilateral da ética social que
procedia do púlpito paleocristão (BERGER, 1998, p. 114).
1. Não existiria perda espiritual ou sob a consciência do cristão pelo que se ouvia
ou se via no mundo comum (1.3), com a condição de que se mantivesse o temor a
deus (deum metu) e se lhes prestassem as honras devidas (1.3);
Tertuliano apenas esboçou a sua resposta, a crítica acima enunciada, deixando claras
as inconstâncias e as contrariedades do argumento, especificamente no que concernia às
texto escrito para uma exortação moral, ou um discurso tendo como base os sermões dos padres da Igreja com ênfase no
modelo comportamental o qual o auditório é, explícita ou implicitamente, incentivado a imitar (STOWERS, 1986, p. 95). De
maneira geral, podemos afirmar que se apresenta como um texto relativamente breve de claro caráter pedagógico, vestido
de uma retórica perlocutória, ou seja, que pretende exercer um efeito sobre um interlocutor, com conteúdo de manifestação
moralista que elenca regras de conduta ou advertências éticas sem perseguir necessariamente uma progressão lógica
(BERGER, 1998, p. 37-42; 51-2; 114; 130-7; 254).
exigências da fé, ao bom sistema doutrinal e ao estatuto disciplinar (1.1), pois os fiéis e
disciplinados como mandava o bom raciocínio e juízo, seriam sábios e rejeitariam o prazer
mundano (1.6; 2.3).
2. Deus não se ofenderia com o prazer que o homem tem, nem seria crime algum
gozar dele (1.3), desde que se respeitasse a condição do primeiro argumento, ou
seja, que o temor e as honras devidas fossem obedecidas;
4. Não existiu nenhuma restrição direta nas Escrituras proibindo a ida aos espetáculos
(3.1-2; 14.1-2; 20.1);
Esta foi a mais importante crítica aos jogos, porque foi reiterada ao longo de todo o
tratado de modo extenso e repetitivo, razão pela qual, para nós, foi difícil sintetizar todo o
pensamento do autor. A primeira e mais incisiva resposta a essa crítica se baseou na leitura
metafórica do Sl., 1.1, que condenava a ida aos espetáculos, pois estes eram vistos como
“conselho dos ímpios e pecadores” e “roda dos zombadores” (3.3-8). Sobre as sociabilidades
mantidas pelo cristão com aqueles que dizia detestar, ou seja, os pagãos, Tertuliano afirmava
que já bastava estar no mesmo lugar que os ímpios, uma vez que melhor seria que nem juntos
estivessem no mesmo planeta (15.7-8). Assim, propunha que a comunidade se separasse
dos pagãos nas coisas do mundo, porque o mundo mesmo era de Deus, mas as coisas que
estavam no mundo eram do diabo (15.8). A ida aos espetáculos seria uma atualização daquilo
tudo que foi condenado por Deus, uma vez que “condenada é, por Deus, toda a casta de
idolatria, também esta o está, a que consagra aos deuses as coisas da terra” (9.6). Tertuliano
deixou, assim, claro que o circo, bem como todos os outros espetáculos públicos, advinham
3
Tertuliano demonstra especial apreço pelo Livro de Enoque (8:1-2; 96:9-12; 105:23) (De cultu, 1.3.1-3; 2.10.3; Spect. 2.9;
15.8), mesmo tendo ciência de que a inspiração desse livro era contestada desde a constituição tradicional do texto
massorético da biblioteca canônica judaica, Tanakh (De cultu, 1.3.1-3; TOV, 1992; WÜRTHWEIN, 1995). Elizabeth Clare
Prophet (2002, p. 70) defendeu que foi o rabino Simeon ben Yohai (aprox. 120-170) que contestou a canonicidade dessa
obra. Fato que levou os judeus a não elencarem o Primeiro livro de Enoque entre as obras do Tanakh ou cânone judaico
que, de acordo com a tradição, consiste de vinte e quatro livros, que se agrupam em três conjuntos: a lei ou a instrução,
denominada Torá, também chamada de pentateuco ou Chumash; os profetas ou o conjunto chamado Neviim; e os
escritos ou o conjunto chamado Ketuvim (TOV, 1992, p. 15).
da idolatria pura, pois eram associados a várias divindades e superstições sacras ou fúnebres
(5.2-8; 6.2-3), se apresentando assim como verdadeiros templos pagãos. Essa afirmação foi
constante por todo o texto, o que pode ser atestado com base na Análise de Conteúdo de
vários trechos da obra, o que nos levou a propor o seguinte complexo categorial (Quadro 1).
* Continua.
* Continua.
* Conclusão.
A pompa, tanto a do circo quanto a do anfiteatro (12.6), poderia ser definida como uma
“[...] procissão em que desfilavam uma série de esculturas, uma chusma de imagens, carros e
carrões sagrados, literias, sedes, coroas e despojos [...] as púrpuras, os fachos, as fitas, as coroas e
por final os discursos e editos e papas rituais comidas na véspera, tudo isso se não faz sem culto
do diabo e colaboração dos demônios” (7.2; 12.6) (WASZINK, 1947, p. 13-41). Sendo assim, “com
ostentação ou parcimônia, não importa: todo e qualquer cortejo do circo ofende a Deus” (7.5).
Essa pompa para o neófito recém-converso era ainda mais perigosa, uma vez que “convencidos
ficamos que por nenhum lado nos fica bem lá ir, nós que por duas [conversão e batismo] vezes
renunciámos aos ídolos” (13.1). Discutiremos mais à frente sobre a profunda relação entre a
pompa espetacular e o batismo. Finalmente, a última admoestação que poderia ser lida como
uma resposta à quarta crítica diz respeito ao engano diabólico, pois “o diabo, o veneno mortal
que cozinha mistura-lhe aparência de coisas agradáveis e aceites a Deus” (27.4).
Esta pode ser interpretada como uma crítica menos enfática, pois Tertuliano
desaprovava radicalmente a comparação entre a divindade e a humanidade, opostas e
incomparáveis por suas características inerentes. Utilizando então do mesmo argumento
da onisciência da divindade, o africano alegou que “[...] por isso mesmo é que é bom que
lá não vamos, para não sermos vistos por Quem vê tudo” (20.3). Assim, mesmo que Deus
visse tudo, do mesmo jeito que ele não se sujaria ao ver a cloaca maxima, ou seja, o sistema
de encanamento romano, também assim seria com toda a sorte de idolatria, adultério,
fraudes, assassinatos e espetáculos (20.2-3). No entanto, Tertuliano não dispensou maior
atenção a esse assunto, mesmo que os comparativos que empregasse sejam elucidativos
para nós, pois a simples ida aos espetáculos se equiparava na retórica desse paleocristão
ao homicídio ou à infidelidade. Os espectadores assim foram qualificados como criminosos
(7.5) que se afastavam de Deus, pois eram iguais aos que ofereciam sacrifícios ou prestavam
adoração no Capitólio, em Roma, ou no templo de Serápis, em Alexandria (8.9). Eram, além
disso, vaidosos e fúteis, pois “[...] todos pensam na mesma coisa ao dirigirem-se para os
espetáculos públicos, verem e serem vistos” (25.3).
6. “Não podemos viver sem distrações, nós que até devemos sentir prazer na
morte?” (28.5).
Outra crítica menos enfática pela pouca importância e espaço dedicado a sua
resposta no texto de Tertuliano. Claramente, foi um questionamento de origem interna pelo
isso o Espírito de Deus pairava sobre elas. Isso nos parece bastante crível, uma vez que
existem várias referências e alusões evangélicas a poços, nascentes, rios ou cisterna (Gn.,
12.10; 42.5; Rt., 1.1; 2 Sm., 21.1), especialmente para um povo que, inicialmente, na Palestina,
sentia ainda mais a necessidade da água para a sobrevivência, uma vez que não havia
grande disponibilidade de água em terreno desértico. Os evangelhos atestam, assim, que
a própria analogia da água viva e transformadora teria advindo de Jesus, em sua conversa
com a Samaritana à beira de um poço (Jo., 4.10). Nessa passagem, a água seria análoga
ao próprio Jesus, que poderia curar males, angústias e salvar a alma (Jo., 4.28). A água
também desempenhava um papel vital nas tradições religiosas de Israel. Vários rituais
judaicos de purificação viam-na como um ingrediente essencial para lidar com a lepra ou
outras enfermidades, seja para a lavagem de utensílios ou do corpo, após a manipulação
de um morto ou após a impureza menstrual feminina, por exemplo (Lv., 15.1-9; Nm., 5.2).4
Finalmente, a água era um bem tão precioso que era usada até como oferta perante e
associada a Jeová (1 Sm., 7.5-6) (BRITO, 2012, p. 1-8). Na Antiguidade, esse tipo de associação
não era uma exceção, uma vez que muitos deuses eram representados como senhores das
águas ou das fontes, por exemplo, “[...] entre os Gregos, as fontes são divindades femininas,
que se veneravam como doadoras da fertilidade, como deusas da salvação, amas divinas e
divindades protetoras do casamento” (HEINZ-MOHR, 1994, p. 167).
Finalmente, Tertuliano afirmou também a essencial necessidade do batismo para a
salvação (Bapt., 20.1-5), tal como o texto sagrado, criando uma patente correspondência
simbólica entre a água e o espírito divino, pois “quem não nascer da água e do Espírito
não pode entrar no Reino de Deus” (Jo., 3.5). No ato da imersão, o fiel professava um
juramento batismal, ato público de profissão de fé e conversão pela rejeição dupla
de toda a pompa circense, ou seja, do templo idolátrico dos espetáuclos (Tert., Spect.,
13.1). Waszink (1947, p. 13-41) e Turcan (p. 117) demonstraram convincentemente que a
pompa expressa no juramento do batismo teve sua origem na pompa circense, de modo
que ela não expressou jamais um sentido direto de cortejo de demônios, significado
esse não foi documentado em nenhum texto antes ou depois de Tertuliano (JIMÉNEZ
SÁNCHEZ, 2001, p. 471).
4
A forma escrita da tradição oral do judaísmo primitivo, o Mishná, devotou uma seção inteira (Miqvaʾoth) da sexta ordem
Tohorot à classificação do diversos tipos de água de acordo com seus usos especiais e as leis de construção e manutenção
de uma mikvá, ou seja, um tanque de imersão ritual. Assim, especialmente a água viva não é uma referência à água em
movimento ou fresca, mas àquela que vem diretamente de Deus, por meio da chuva, de uma nascente ou de um rio. Esta
água não poderia ser transportada, nem erguida por mãos humanas, pois carregaria uma espécie de autoridade divina
(Mishná, Miqvaʾoth, 3-4). Muitos rituais de purificação judaicos, e posteriormente cristãos, deveriam acontecer por meio
dessas águas vivas. Na verdade, esta água era considerada tão potente que apenas uma gota bastava para transformar um
tanque inteiro de água comum em algo que pudesse purificar ritualmente, pois esta água viva tinha o poder de limpar e
purificar (GONDIM; GONDIM, 2012, p. 71-84; LOURENÇO; BERNARDINO, 2013, p. 412-3).
Pela potência espiritual demandada nesse ritual, ele não poderia ser efetuado
por qualquer membro da secta. Sobre essa temática, Tertuliano (Bapt., 17.1) foi bastante
explícito, afirmando que o sumo poder dos batismo caberia ao bispo (episcopus) e que,
depois deles, teriam o direito a administrar o batismo, “[...] os presbíteros ou sacerdotes
e os diáconos, contudo, nunca sem autorização do bispo, em virtude do justo respeito
devido à Igreja, fazendo isso a paz é garantida”. Entendemos que a verdadeira importância
desse sacramento, na teologia de Tertuliano (Bapt., 20.1-5), se afirmou pelo valor intenso
agregado ao batismo, uma vez que o apologista chegou a afirmar que os pecados
cometidos depois da imersão batismal deveriam ser considerados pecados mortais
e imperdoáveis. Em grande medida essa posição se afirma no livro de Ageu 2.10-14,
onde o profeta menor afirma que a impureza é mais contagiosa do que a santidade,
especialmente, mas não tão somente, em perspectiva ritual.
Essa posição rigorista e radical nos explicou a importância do signaculum, ou
seja, do batismo pelas águas. Importância essa que, por associação, podemos transferir
aos tratados que versavam sobre essa temática. O que confirmou essa visão foi quando
percebermos que Tertuliano, além de atuar como instrutor de catecúmenos, também
se dirigiu, em partes do texto, aos demais cristãos, ou seja, àqueles que já tinham sido
batizados e assentavam-se juntos na comunidade. Essa posição de importância e as
circunstâncias contextuais, como as perseguições, ofereceram a Tertuliano a oportunidade
de elaborar uma teologia e uma disciplina adequadas para a experiência batismal, mas
também diretamente associadas à necessidade da afirmação e delimitação de uma norma
identitária cristã que, acreditamos, em um primeiro momento, era bem mais retórica
do que prática (SIDER, 1978, p. 339). Acreditamos que essa identidade foi baseada na
rejeição aos elementos relacionados à cidade e ao paganismo, incluindo as relações e as
redes de sociabilidade entre cristãos, pagãos e judeus (JONES, 1973, p. 356; EHRMAN;
JACOBS, 2003, p. 56 e ss.; De cultu, 1, 2.4). Essas regras eram prescritas por Tertuliano
para toda a comunidade de crentes, porém, foram impostas mais duramente após o selo
do batismo e fortemente reiteradas aos neófitos, de modo a aumentar o sentimento de
coesão identitária desses indivíduos e o senso de sua igualdade aos demais dentro da
proto-ortodoxia (MEALEY, 2009, p. 154; SCHREMER, 2010, p. 15; REBILLARD, 2012, p. 352;
LEONE, 2013, p. 25 e ss.).
No norte da África, assim como em outros lugares, as pessoas, mesmo se convertendo,
ainda frequentavam os jogos e os espetáculos – do circo, anfiteatro e teatro. Tertuliano
fixou então as regras da vida cristã no De Spectaculis para conservar a pureza dos neófitos.
Mostrou também as origens dos jogos e a que divindades eles eram dedicados. Tratou
da arquitetura, dos rituais e práticas lúdicas, nos fornecendo uma visão do cotidiano da
cidade antiga e das suas interações sociais, bem como da sua multiplicidade, afinal, no
circo, deuses romanos e gregos se situavam ao lado de obeliscos egípcios e de imagens
de divindades autóctones protetoras das colheitas. Tertuliano, por meio desse tratado,
nos permite alcançar a representação cristã dos jogos, suas origens, sua liturgia e seus
instrumentos. Esses elementos clarificam a imagem do cotidiano cartaginês no século III,
inclusive quanto aos conflitos religiosos anteriormente citados. Pela importância associada
entre essas manifestações cotidianas sobre a vida dos cristãos, com ênfase nos espetáculos,
e a partir do que já discutimos, um diagrama pode ser proposto por nós:
5
Não podemos deixar de reiterar que, Tertuliano era definitivamente contrário a qualquer prática de reintegração dos
paleocristãos que apostataram da fé frente às perseguições (lapsi). Em grande parte, porque era contrário ao perdão
posteriormente ao batismo e, muito mais, à prática de um segundo batismo. Essa posição rigorista e radical ficou explícita
em De pudicitia (1.6-9), no qual negou terminantemente o direito de qualquer um perdoar os pecados pós-batismo,
reservando-o apenas aos homens espirituais, como apóstolos ou profetas, e reiterando que alguns pecados gravíssimos,
como a idolatria, apostasia, fornicação ou homicídio, não teriam perdão de ninguém por mais que o bispado da capital
dissesse o contrário. Assim, é bastante possível que tenha rompido com a comunidade cristã, após Calisto, bispo de Roma,
ter concedido a remissão de pecados após o batismo e ordenado a reintegração dos lapsi na proto-ortodoxia (JOHNSON,
2001, p. 100). Sua aproximação com a Nova Profecia, inevitavelmente, não o obrigava mais a ser inquestionável às ordens
bispais, fato este que levou ao aumento das críticas em muitas obras do seu período montanista (ROBERTS, 1924, p. 43).
6
Para perceber os aspectos de produção e conformação do espaço físico em Tertuliano, utilizamos em grande medida
os argumentos teóricos propostos por Henri Lefebvre (2000). Assim, emergiu uma questão, tal como esse teórico
questionou, será que “podemos dizer que o corpo, pela sua capacidade de ação e as suas várias energias, cria o espaço?
Certamente, mas não no sentido de ocupação, tal como uma ‘fabricação’ da espacialidade; em vez disso, há uma
relação imediata entre o corpo e o espaço. Antes da produção de efeitos no reino dos materiais (ferramentas e objetos),
antes de se produzir um contorno deste reino, e antes de se reproduzir gerando outros corpos, cada corpo é um espaço
vivo e tem seu espaço: produz-se no espaço e também isso produz espaço. Esta é uma relação verdadeiramente
notável: o corpo com as energias ao seu dispor, o corpo vivo, ou produz e cria seu próprio espaço; por outro lado, as leis
do espaço, ou seja, as leis de discriminação no espaço, também governam o corpo vivo e a implantam suas energias.
Este caminho leva também do social para o espírito, um fato que empresta força adicional ao conceito de produção
do espaço. Esta tese é tão persuasiva que parece haver pouca razão para não alargar a sua aplicação – com todas as
precauções devidas, naturalmente – para o espaço social” (LEFEBVRE, 2000, p. 170-171).
Estou mesmo a ouvir-vos dizer: “que perigo se corre se noutros dias que não nos
jogos formos ao circo, que perigo se corre de nos conspurcar qualquer culpa?”
Não há aí determinação nenhuma que proíba ir aqui ou ali. Com efeito não só
podemos ir a estes ajuntamentos no tempo da festança, mas ainda os templos
pode-os um servo de deus trilhar por motivo honesto, está visto, que não tenha
que ver com as funçanatas e destinação de tal logradouro. De resto as praças,
o foro e os balneários e as hospedarias e até nossas casas não estão de forma
alguma isentas de ídolos: satanás e os seis ambos atravancaram o mundo de lés
a lés. Mas, não é pelo facto de estarmos no mundo que nos afastamos de deus,
mas se cairmos em alguma das suas abominações. Por isso, se a fazer sacrifícios
ou a prestar adoração entrar no Capitólio ou no templo de Serápis, afastar-me-ei
de deus, e da mesma forma se me fizer espectador do circo ou do teatro. O lugar
por si não nos contamina, mas é o que lá se faz e quem faz é que contamina os
lugares como temos ditos: a nódoa do que está contaminado é que nos suja (Tert.,
Spect. 8.8-10, grifo nosso).
Considerações finais
Não podemos encerrar esse texto sem discutir uma das categorias mais importantes
na argumentação de Tertuliano, e demais discursos paleocristãos, ou seja, um grupo
retoricamente mais ou menos homogêneo discriminado sob a alcunha de pagãos. Esse
coletivo comportaria a massiva, quando não a totalidade, da audiência participativa
dos diversos cultos que os amplos territórios imperiais abarcavam. Sendo assim, essa
categoria emergiu na oposição discursiva de Tertuliano, que procurava defender toda a
curia Christianorum, ou seja, a nova comunidade de crentes, dos ataques desferidos pelos
pagãos. A sociabilidade com esse grupo era terminantemente proibida, como podemos
perceber pela admoestação da passagem a seguir:
Referências
Documentação textual
Obras de apoio