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Universidade de São Paulo - Faculdade de Filosofia Letras e Ciências

Humanas

Gabriel Hernandes dos Santos

Avicena entre a Mística e a Filosofia


Simbolismos ou Alegoria.

São Paulo
2020
INTRODUÇÃO

Avicena é considerado o ponto alto da falsafa pela vastidão de sua obra em temática,
profundidade e sistematização. Descrito como expressão máxima do racionalismo dentro do
mundo islâmico, carrega fortes influencias do pensamento aristotélico no que diz respeito a
busca por uma totalidade do saber articulada de forma coesa e lógica.
Porém na discussão acadêmica sobre suas obras existe um foco de tensão em torno de
alguns de seus trabalhos mais tardios. Certos tratados deste período carregam conceitos e
estruturas lógicas fortemente associadas à tradição de pensamento Sufi. O que se choca com a
imagem racionalizante que se tem de Avicena. Como aponta ​Jules Janssens, no livro
al-Ishārāt wa-l-tanbīhāt (Pointers and Reminders) avicena utiliza noções como “dhawq”
(gosto), “novice”, “knower”, e “will” que são fundamentalmente utilizados para descrever o
processo de ascensão do iniciado no misticismo sufi. 1​
Por serem obras tardias na vida do filósofo, muito se argumentou sobre uma “virada
mística” pela qual ele teria passado no fim da vida. Sugerindo uma adesão de ideias Sufistas e
o afastamento da filosofia. Em contrapartida muitos analisam estas obras também à luz da
razão, considerando estas obras como uma ampliação dos métodos que o autor adotou para
difundir a sua filosofia intrinsecamente racional
Partindo desta contradição, entre a presença destes elementos e a figura
tradicionalmente racionalista que existe sobre Avicena, busco com este trabalho compreender
mais a fundo ambas as análises destes textos tardios e compreender o que levou cada corrente
a fundamentar sua visão sobre o autor.

“MÍSTICO” NOS TEXTOS

No artigo acima citado Janssens faz um rico mapeamento dos elementos sufistas em
al-Ishārāt wa-l-tanbīhāt. Já de princípio a própria organização do livro sugere a interpretação
mística. Se trata de um compilado de pequenos fragmentos que visam “orientar” o leitor ao
conhecimento que se deseja passar​2​. O método é claramente místico em comparação com a
tradicional sistematização rígida que encontramos nos escritos de Avicena.

1
​JANSSENS, Jules. “​Ibn Sīnā. A Philosophical Mysticism or a Philosophy of Mysticism?” In:
Mediterranea International Journal on the Transfer of Knowledge ​· March 2016
2
​Para a análise da obra “pointers and reminders”: Idem.
2
Seguindo no texto o filósofo começa a passar instruções sobre uma “forma correta de
se viver” e consequentemente seu método para obter conhecimento. Em vários momentos ao
retratar este acesso ao saber podemos perceber a descrição de uma forma de êxtase provocado
por este encontro. Chega a se comparar a felicidade causada pelo esclarecimento de alguma
questão a sensação física de doçura no paladar.
Sobre este estado é nítida a aproximação com o êxtase místico do contato com o
divino. Assim paralelo muito forte é construído, pois este estado é descrito pelo filósofo
como o momento em que a Inteligência Ativa - “Divina” - ilumina o intelecto humano e
provoca o conhecimento. Para além da proximidade emotiva de um êxtase, alguns autores
consideram esta iluminação como a presença do contato direto com o divino, sendo assim um
desvio da razão em sua obra.
Em resumo podemos listar nestas aproximações as formais e estéticas, na estruturação
do livro; conceituais, pelo uso de vocabulário místico; e na orientação de práticas, quando o
autor escreve em defesa do privilégio da faculdade intelectual da alma, podendo ser lido
como ascetismo. Cabe agora compreender como cada linha de pensamento aborda estes
elementos.

AVICENA FILÓSOFO

Como exemplos dessa interpretação temos as opiniões de Jules Janssens​3 e Dimitri


Gutas​4 que se complementam de forma recíproca. Considerando que a presença dos
elementos místicos é consenso entre os estudiosos de Avicena, estes dois se voltam para a
forma como estes elementos são usados e nas motivações possíveis de seu uso no intuito de
compreender se significam ou não uma virada no pensamento do filósofo.
Janssens demonstra que por trás dos conceitos místicos persiste a mesma cosmogonia
filosófica, marcadamente racional de Avicena. Assim ele caracteriza estes trabalhos como
uma tentativa de racionalizar os fenômenos que compõe o conhecimento místico.
Por exemplo, analisando a passagem sobre o esclarecimento provocado pelo
iluminação vinda da Inteligência Ativa, o autor mostra como a noção de supressão do
indivíduo pela união com a esfera divina não se faz presente em momento algum. Ele aborda
um fenômeno tipicamente místico - o êxtase provocado pelo contato com o divino - porém o

3
​Idem.
4
D. Gutas, “AVICENNA v. Mysticism,” Encyclopædia Iranica, III/1, pp. 79-83, available online at
http://www.iranicaonline.org/articles/avicenna-v (accessed on 30 December 2012)
3
descreve sem desviar da sua teoria racional sobre o conhecimento. O sábio em êxtase no
máximo se ​espelha ​ao intelecto divino, aprendendo com ele e refletindo sua sabedoria em
suas ações. Mas em discordância clara com a cosmovisão mística na qual o sujeito se torna
um com o divino durante o período de êxtase.
Outra aproximação conflituosa é visível nas práticas orientadas para promover a
iluminação do intelecto. Gutas apresenta, na teoria sobre o hads​5​, a distinção existente entre
as pessoas pela sua capacidade de inteligir o mundo. De acordo com o temperamento da
pessoa ela teria mais ou menos facilidade para acessar o saber, e caso desejasse, esta pessoa
poderia pela “purificação do temperamento” elevar o seu nível de hads.
Aqui vale a explicação sobre esta purificação. O pensamento aviceniano pressupõe
uma hierarquia entre as faculdades humanas. As faculdades mais comuns como a nutrição e o
crescimento, partilhadas com as plantas, são apresentadas como inferiores às faculdades mais
específicas, presentes apenas na alma humana. Sendo assim a faculdade do intelecto a
primeira em importância nesta hierarquia.
A purificação de temperamento seria então um privilégio das faculdades superiores
promovido pelo controle das inferiores. O que sugere um certo ascetismo. Pois estas últimas
coincidem com o que na mística é vinculado aos prazeres do corpo, que devem ser negados
para que o contato com o divino ocorra.
Aqui como no exemplo anterior o paralelo é claro mas a diferença surge nas sutilezas.
Ambos os sistemas de pensamento sugerem um controle das atividades corpóreas em função
do benefício das atividades mentais. Porém Avicena não trabalha com a dicotomia entre
corpo e alma. Este controle se traduz muito mais em um privilégio do mental frente ao
corpóreo, do que na negação do corpo para a libertação da alma. Avicena vê o corpo como
um instrumento da alma, enquanto os místicos o tem como um entrave ao seu
desenvolvimento.
Esta distinção é um claro exemplo do que Janssens apresenta como filosofia do
misticismo. Avicena indiscutivelmente aborda práticas e fenômenos que compõe o sufi.
Porém ignora a máxima de “não racionalizar” e argumenta racionalmente sobre as
motivações das práticas e as interpretações dos fenômenos, sem sair da sua cosmovisão. Com
isso o filósofo não nega o misticismo e sim o engloba como mais uma forma de se acessar a
realidade. Esta que não deixa com isso, de ser racionalizável em essência.

5
Idem
4
A partir disso Dimitri Gutas conclui que a presença destes elementos não se trata
então de uma virada no pensamento de Avicena, e sim em um esforço para traduzir o seu
pensamento em uma nova linguagem. Com isso o filósofo poderia disseminar suas ideias a
um novo público. Pois como já foi apresentado sobre a teoria dos hads, nem todas as pessoas
teriam a mesma facilidade de compreender o mundo por meio das ferramentas racionais
utilizadas - como o silogismo. O potencial da linguagem mística seria então o de levar o
mesmo conhecimento e a ​mesma cosmovisão para pessoas que se identificavam mais com a
abordagem simbólica do misticismo.

AVICENA MÍSTICO

Em contrapartida, autores como Henry Corbin tendem a considerar estes escritos


como uma expressão mística de Avicena. No prefácio de “Avicenna and The Visionary
Recital”​6 o autor sugere que as traduções medievais para o latim podem ter dotado o texto
avicenniano de um racionalismo escolástico que não necessariamente lhes pertence. Hoje as
traduções diretas do árabe dificultam esta interpretação, porém o autor traz outros pontos que
ainda relativizam uma visão puramente racional.
Sua crítica se concentra em dois pontos fundamentais. A análise baseada em uma
concepção rígida e limitada de misticismo e no mito de que uma obra pode ser compreendida
pelo leitor exatamente da forma como a compreende o autor.
Para Corbin a análise racionalista é mais preocupada em negar o caráter místico do
que em compreender estas obras como elas são. Cria-se então uma definição racionalizada de
misticismo quase que pronta para não se encaixar na obra do filósofo. Ele defende que essas
leituras sejam feitas partindo de uma noção mais ampla do que pode ou não ser considerado
místico, pois argumenta que a distinção entre as formas de pensamento islâmico não eram tão
rigidas como se supõe hoje.
Além disso ele argumenta que é necessário separar o que é a obra de Avicena com seu
significado próprio para o filósofo, do que é a obra separada do autor, imersa no conjunto de
sistemas filosóficos dentro do qual a interpretamos hoje. Então argumenta que é impossível
compreender esta obra tal qual é compreendida por seu autor pois seu significado é
intrinsicamente ligado a sua posição no mundo e não pode ser compreendido fora dela. Assim

6
​ rinceton: Princeton university press. 1960
​CORBIN, Henry. ​Avicenna And the Visionary Recital. P
5
ele aponta que é muito mais produtivo analisar a obra focalizando nos efeitos que ela causa
no leitor pois este é o campo realmente acessível do sistema.
Cabe ressaltar que esta já é uma visão mística de conhecimento pois pressupõe a
incomunicabilidade da verdade descoberta. Compreende que sendo impossível que se escreva
a verdade de forma universalmente compreensível, o máximo que o filósofo pode fazer é
escrever algo que provoque a sensação da verdade, que vai ser inteligida nos próprios termos
do leitor.
Partindo disso ele sugere o uso da “motivação de avicena” como uma chave
interpretativa mais precisa do que a “verdade de avicena” para a análise dos textos. Os
elementos místicos devem ser entendidos então conforme o efeito esperado leitor e não a
partir da sua estrutura lógica - racional ou não - interna.
Este uso baseado no efeito se articula precisamente com a visão mais ampla de
misticismo proposta pelo autor que compreende o fenômeno ocorrido entre o símbolo, o
leitor e o sentimento causado como um fenômeno místico, independente de estar contido ou
não em uma cosmovisão sufista.

CONCLUSÃO
Gutas e Janssens não deixam dúvidas. A estruturação por trás dos conceitos místicos
empregados é indiscutivelmente racional, e não representa um rompimento com o sistema de
pensamento que o filósofo desenvolveu durante sua vida. Ambos os trabalhos provam que
Avicena não mudou de opinião sobre a realidade no fim de sua vida.
Porém o texto de Corbin nos faz questionar se a rotulação - como místico ou filósofo -
é pertinente para compreender o seu pensamento. Com isso ele faz pensar que talvez a rígida
separação entre estas duas formas de pensar seja mais algo do nosso tempo que tentamos
projetar no passado. Ao olhar com mais profundidade para estas escolas de pensamento
podemos ver influências neoplatônicas baseando tratados místicos e simultaneamente
sistemas filosóficos​7​. E também que é comum que autores da falsafa discordem entre si, pois
que embora os consideremos de uma escola única este rótulo também contém múltiplos
pensamentos.
Então penso que a divisão rígida entre áreas de pensamento, tão presente no
conhecimento científico contemporâneo, pode não ser a chave analítica mais produtiva para
interpretar um conhecimento produzido no século XI e fora do ocidente.

7
​AMINRAZAVI, Mehdi, "Mysticism in Arabic and Islamic Philosophy", ​The Stanford Encyclopedia of
Philosophy ​(Summer 2016 Edition), Edward N. Zalta (ed.),
6
O pensamento de Avicena é claramente racional, mas assumir com isso que ele se
enquadra exclusivamente em uma forma de pensar predeterminada e excluir o que diverge
disso simplifica a complexidade da sua obra e o remove de seu tempo. Ele foi um pensador
imerso em sua cultura, interpretando o mundo com todas as ferramentas que encontrava a sua
disposição. Delas priorizou o intelecto, mas da mesma forma que em seu ascetismo, esta
primazia não implica na negação do que sobra. Imaginar então que estes elementos místicos
são um ponto fora da curva na sua obra é supor que esta deveria seguir uma curva criada
muito posteriormente à sua obra.
Me parece melhor então considerar este filósofo como um pequeno ponto de contato
entre dois rótulos interpretativos que criamos para inteligir a complexidade do pensamento
árabe. Pois toda realidade é melhor compreendida quanto mais pontos de vista se tem dela.

7
BIBLIOGRAFIA
- AMINRAZAVI, Mehdi, "Mysticism in Arabic and Islamic Philosophy", ​The Stanford
Encyclopedia of Philosophy ​(Summer 2016 Edition), Edward N. Zalta (ed.),
https://plato.stanford.edu/archives/sum2016/entries/arabic-islamic-mysticism
- FILHO, Miguel Attie. ​Falsafa a Filosofia entre os árabes.​ São Paulo: Palas Athena.
2002.
- CORBIN, Henry. ​Avicenna And the Visionary Recital. ​Princeton: Princeton university
press. 1960
- D. Gutas, “AVICENNA v. Mysticism,” Encyclopædia Iranica, III/1, pp. 79-83,
available online at http://www.iranicaonline.org/articles/avicenna-v (accessed on 30
December 2012)
- JANSSENS, Jules. “​Ibn Sīnā. A Philosophical Mysticism or a Philosophy of
Mysticism?” In: ​Mediterranea International Journal on the Transfer of Knowledge ​·
March 2016

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