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Essência e ato

Falar de vocação pode gerar em alguns um certo desconforto, algo que é


mais papo de religiosos do que qualquer outra coisa. Mas não é bem assim.
Sendo bem sincero, eu queria saber de onde vem esse preconceito. Todavia,
irei expor aqui de um jeito que o tema da vocação apareça como uma
necessidade existencial; e um dos melhores meios disso é partir de uma
certeza da qual todo mundo, até os mais relativistas, compartilha: a morte.
A realidade da morte tem efeitos tanto para o indivíduo quanto para os seus
próximos. No primeiro caso, quando a pessoa está perto da morte, o sujeito é
tomado de uma sensação de que irá prestar contas por algo feito ou não feito.
Experiências e mais experiências de indivíduos que quase morreram servem
como prova disso --pessoas que sobreviveram a algum acidente, doença etc.
relatam que perto da morte foram tomadas por perguntas do tipo: quem eu
fui? O que eu fiz da minha vida? O que eu deixei de fazer? E assim por
diante. Já no segundo caso, quando alguém vai falar sobre o(a) falecido(a), se
comenta sobre quem foi o indivíduo como pessoa, o que ele fez para os
outros e se comenta também experiências tidas na presença dele(a). Dos
dois casos se pode tirar algo importante: existe uma ênfase em quem você foi e
o que você fez.
A vida tem um sentido justamente porque ela termina. Se não existisse a
morte, não tem motivo para você chegar a ser alguém. O caixão tem
justamente aquela forma sextavada porque representa os seis dias da criação.
Ou seja, você nasceu, houve um certo número de mudanças que aconteceram
na sua vida durante um período de tempo até parar; até ela tomar uma forma
final. Essa forma final é o que fica, o que é comentado sobre você após a sua
morte: quem foi você e o que você fez em vida. Perceba que a ideia de fazer
algo está ligada a quem você é.
Vocação vem do verbo latino voco, vocare, que quer dizer “chamar”. Quem
faz algo por vocação sente que é chamado a isso por uma espécie de entidade
superior: seja por Deus, pela história, pela humanidade, ou, como diria o Viktor
Frankl, pelo sentido da vida. A vocação tem a ver com uma ação e não com
uma profissão. A profissão serve para suprir necessidades básicas, como:
comida, moradia, lazer etc; mas a vocação não é assim; ela tem a ver com
quem você é. “É a descoberta da nossa verdadeira essência que coincide com
o ato pelo qual ela se realiza”, como diz Louis Lavelle. Imaginemos o seguinte:
o sujeito tem uma inclinação para a caridade, tem como que esse impulso
voluntário para com o sofrimento humano. Ele decide fazer faculdade de
psicologia. Quando ele se forma e vai exercer sua profissão ele tem um quê
diferencial: o paciente chega, conta seus problemas e depois vai embora. Esse
sujeito compra o problema do seu paciente, estuda como resolvê-lo, e até
mesmo, quando vai dormir, sonha com esse problema. Não vai voltar ao
normal até que isso seja resolvido. E quando descobre, corre imediatamente
para falar ao seu paciente a solução. O que é esse desconforto para resolver o
problema do paciente? É justamente a vocação, esse chamado. Esse sujeito
caridoso só vai relaxar depois que aquele sofrimento estiver sanado. O ato
coincide com a essência, não se pode separar; é a manifestação de quem ele é
naquele ato. Se ele estivesse exercendo outro ofício, a sua vocação se
manifestaria também, só que de outra forma. A vocação é essa marca invisível
que se manifesta no momento do ato. É o professor que quando termina a aula
e vai conversar com você ele, no falar natural, continua te ensinando sem
perceber. É aquele indivíduo que sempre foi curioso na infância, sempre teve
esse impulso para saber como as coisas são na realidade. Ele, quando cresce,
busca sozinho entender as grandes questões da vida; tem esse chamado à
vida intelectual. É aquela moça que sempre sonhou em ser mãe; e quando
deixam uma criança com ela, ela tem todos os trejeitos de uma mãe, seja no
cuidado com a criança, ou na forma como dá atenção e fala com ela.
O efeito da vocação não se esgota em você mesmo. Como nos casos
mencionados: a vocação sempre está ligada a um bem; a algo superior que
reflete nos indivíduos ao seu redor, mesmo que não o percebam. O professor,
por exemplo: pode ter ensinado uma questão existencial que tenha efeitos
positivos nos seus alunos pelo resto da vida; o psicólogo que sofre com o
problema de seu paciente pode acabar uma dor que poderia ter consequências
terríveis. Em suma, a vocação também trava uma batalha contra a
desordem e o sofrimento humano.
Existe um filme maravilhoso chamado It’s a Wonderful Life (traduzido para o
português como: Felicidade Não se Compra) que mostra a vida de George
Bailey. George desde criança tinha uma inclinação para a caridade. E isso fica
visível desde o começo do filme quando ele salva a vida do seu irmão mais
novo em um acidente, mas acaba perdendo a audição de um dos lados de
seus ouvidos. George se mostra decidido desde criança sobre o que quer fazer
na sua vida; porém, no desenrolar do filme, as coisas que ele queria quando
criança acabam não se concretizando por que sempre que ele tem a
oportunidade de dar um passo adiante em seus sonhos... ele acaba tendo que
renunciar em favor de um bem: seja a firma do seu pai que corre o risco de
fechar, seja ter que casar com a Mary, seja negar um bom salário de emprego
oferecido pelo Sr. Potter por saber que não seria benéfico para os cidadãos de
Bedford Falls. A base da vida dele vai se construindo através de cada renúncia
dele em prol de algo maior, mas sem ele perceber. Precisa de uma situação de
desespero (uma dívida gigante que terminaria coma prisão de George) para ele
perceba o sentido da sua vida.
George tenta tirar a própria vida pulando da ponte, mas é impedido por
Clarence (seu anjo da guarda), que se antecipa pulando primeiro, pois sabia
que iria ser salvo por George. Na conversa, George diz que ele valia muito
mais morto do que vivo. Clarence o repreende. Então Clarence tem a brilhante
ideia de mostrar como seria o mundo sem a existência de George Bailey. Ele é
surpreendido logo de primeira ao ver seu Ex-chefe (Mr. Grower) num estado
deplorável: virou um mendigo. Isso aconteceu porque George não existia nessa
realidade. Em vida ele impediu que seu chefe cometesse o erro de colocar uma
substância errada nos seus produtos e acabar matando uma criança. Mas,
como nessa realidade ele não estava lá para impedir, isso, infelizmente,
aconteceu. Ele vê muitos locais que ajudou a construir casas com empréstimos
da sua firma, mas como agora ele não existia, essas áreas ganharam outras
finalidades: o Mr. Potter investiu em casa de jogos, prostíbulos e tudo quanto
mais que cultue uma espécie de vício. George vê a queda da vida de várias
pessoas, que na sua realidade, ele tinha oferecido alguma ajuda. Vê a casa em
que vivia desabitada. Vê famílias desestruturadas. Um parque que ele ajudou a
construir virou um cemitério. Lá ele encontra a lápide do seu irmão, morto aos
nove anos de idade em um acidente: aquele mesmo que George estava lá para
resgatá-lo, no qual perdeu a audição de um ouvido seu. Nessa realidade, sua
esposa, a Mary, virou uma solteirona. Logo, seus filhos nunca existiram. Ele vê
que todos os efeitos de decisões que ele fez influenciaram de uma maneira
positiva a vida daqueles ao seu redor. George implora pela sua vida de volta,
isso lhe é concedido.
Ele sai correndo nas ruas gritando “Merry Christmas” a todos os cidadãos de
Bedford Falls, até as autoridades que iriam prendê-lo. George chega na sua
casa, abraça seus filhos e beija sua esposa. Depois disso ele é surpreendido
com praticamente todos os cidadãos da cidade lhe dando dinheiro, pois a sua
esposa descobriu a sua dívida e espalhou a notícia por toda a cidade. Todos
aqueles que de alguma forma foram ajudados por George Bailey não pensaram
duas vezes e se levantaram para sair em socorro de George. No final, até
aqueles policiais que iam prendê-lo também dão dinheiro a George Bailey.
Eis o efeito de quem se dirigi, mesmo que renunciando suas vontades, para
um bem que, ao fim e ao cabo, acaba refletindo nos outros. É esse bem que
nos chama a agir. George tinha esse chamado para a caridade, ele viveu isto,
não tem como separa a essência dele do ato.

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