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Literatura Portuguesa

Prof. Célio Antonio Sardagna

2010
Copyright © UNIASSELVI 2010

Elaboração:
Prof. Célio Antonio Sardagna

Revisão, Diagramação e Produção:


Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI

Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri


UNIASSELVI – Indaial.

869
S244l Sardagna, Célio Antonio.
Literatura Portuguesa/ Célio Antonio Sardagna
Centro Universitário Leonardo da Vinci – Indaial, Grupo
UNIASSELVI, 2010.x ; 266 p.: il

Inclui bibliografia.
ISBN 978-85-7830-350-1

1. Literatura Portuguesa 2. Brasil - Literatura


I.Centro Universitário Leonardo da Vinci II. Núcleo de
Ensino a Distância III. Título

Impresso por:
Apresentação
Como proposta de reflexão, leitura e estudo, apresentamos o caderno
da disciplina de Literatura Portuguesa, objetivando o conhecimento das
principais manifestações literárias portuguesas, tanto da lírica quanto da
prosa, bem como os textos mais representativos, que vão do período medieval
à contemporaneidade.

Num momento inicial (Primeira Unidade), nossa atenção se


concentrará na visão geral acerca da literatura, no estudo das primeiras
manifestações literárias de Portugal (Trovadorismo), com suas cantigas e
novelas, e no Humanismo Português, principalmente o teatro de Gil Vicente.

Na sequência (Segunda Unidade), analisaremos a importância do


Classicismo, do Barroco e do Arcadismo lusitanos, centrando a atenção em
Camões – épico e lírico –, em Padre Vieira e em Bocage, por considerá-los
colunas mestras na composição da literatura portuguesa dentro dos períodos
a que pertencem.

Na última parte (Terceira Unidade), o olhar se volta para os períodos
romântico, realista, moderno e para a contemporaneidade. Num primeiro
momento, nesta unidade, as principais linhas de força se concentram nas
manifestações literárias do século XIX, desenhadas pelo Romantismo,
Realismo e Simbolismo. A parte final desta unidade terá como filão as
manifestações literárias do século XX, ou seja, o período moderno e
contemporâneo da Literatura Portuguesa. Nesta parte, as lentes voltar-se-ão
especialmente às personalidades de Fernando Pessoa e José Saramago.

Na composição deste material, pensando em você, caro/a acadêmico/a


de Ensino a Distância, optamos por uma metodologia que possa facilitar
o autoestudo. Assim, inicialmente, enfocar-se-á historiograficamente e
criticamente cada período literário, a fim de que você possa ter uma melhor
compreensão de cada um dos períodos formativos da Literatura Portuguesa.
Dentro de cada tópico, ainda, analisar-se-ão textos representativos de cada
escola literária, com vistas a que se conheçam os textos literários dos autores
mais expressivos, com os quais é possível trabalhar na sala de aula.

Há que se ressaltar que o estudo da Literatura Portuguesa não pode


se limitar à pura leitura deste caderno. Você deveria, sim, ir além, ou seja,
procurar outras obras e leituras críticas nas bibliotecas, na internet, assistir a
filmes alusivos aos diferentes períodos etc. Enfim, colocamos em você nossas
melhores apostas, confiamos na sua dedicação, cremos que você se valerá
deste material da melhor maneira possível para a sua reflexão. Mãos à obra...

Prof. Célio Antonio Sardagna


III
NOTA

Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto


para você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há
novidades em nosso material.

Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é


o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um
formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura.

O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova
diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também
contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo.

Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente,


apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade
de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador.
 
Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para
apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto
em questão.

Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas
institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa
continuar seus estudos com um material de qualidade.

Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de


Desempenho de Estudantes – ENADE.
 
Bons estudos!

IV
V
VI
Sumário
UNIDADE 1 – LITERATURA PORTUGUESA: ORIGENS E ESCOLAS LITERÁRIAS DO
PERÍODO MEDIEVAL................................................................................................. 1

TÓPICO 1 – A FORMAÇÃO DA LITERATURA PORTUGUESA.................................................. 3


1 INTRODUÇÃO...................................................................................................................................... 3
2 LITERATURA: A ESTÉTICA, A ESCRITURA E A IMAGEM...................................................... 4
3 O MUNDO MEDIEVAL E A PENÍNSULA IBÉRICA.................................................................... 9
LEITURA COMPLEMENTAR................................................................................................................ 13
RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................ 15
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................................. 17

TÓPICO 2 – O PERÍODO MEDIEVAL: A POESIA E A PROSA TROVADORESCA................. 19


1 INTRODUÇÃO...................................................................................................................................... 19
2 AS CANTIGAS ...................................................................................................................................... 19
2.1 CANTIGAS DE GÊNERO LÍRICO................................................................................................. 21
2.2 CANTIGAS DE GÊNERO SATÍRICO............................................................................................ 27
3 AS NOVELAS DE CAVALARIA......................................................................................................... 31
RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................................ 40
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................................. 42

TÓPICO 3 – A PROSA, A POESIA E O TEATRO: A ESTÉTICA DO HUMANISMO


PORTUGUÊS...................................................................................................................... 43
1 INTRODUÇÃO...................................................................................................................................... 43
2 A PROSA: HISTORIOGRAFIA.......................................................................................................... 44
3 A PROSA DIDÁTICA........................................................................................................................... 48
4 LIRISMO: A POESIA MEDIEVAL PORTUGUESA....................................................................... 51
5 TRADIÇÃO DRAMÁTICA: O TEATRO DE GIL VICENTE....................................................... 55
LEITURA COMPLEMENTAR................................................................................................................ 66
RESUMO DO TÓPICO 3........................................................................................................................ 69
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................................. 72

UNIDADE 2 – A PRODUÇÃO LITERÁRIA PORTUGUESA CLÁSSICA, BARROCA E


ÁRCADE.......................................................................................................................... 75

TÓPICO 1 – O PERÍODO LITERÁRIO CLÁSSICO: CAMÕES ÉPICO E CAMÕES LÍRICO....... 77


1 INTRODUÇÃO...................................................................................................................................... 77
2 ASPECTOS GERAIS DO CLASSICISMO....................................................................................... 78
3 A ÉPICA PORTUGUESA: “OS LUSÍADAS”................................................................................... 83
4 A POESIA LÍRICA DE CAMÕES....................................................................................................... 105
5 OS POETAS MENORES DA LÍRICA QUINHENTISTA PORTUGUESA................................ 115
LEITURA COMPLEMENTAR................................................................................................................ 120
RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................ 125
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................................. 127

VII
TÓPICO 2 – UMA ÉPOCA DE DUALISMOS: O BARROCO PORTUGUÊS.............................. 129
1 INTRODUÇÃO...................................................................................................................................... 129
2 ASPECTOS GERAIS DA ESTÉTICA BARROCA........................................................................... 130
RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................................ 140
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................................. 142

TÓPICO 3 – AS LUZES DA RAZÃO: O ARCADISMO................................................................... 145


1 INTRODUÇÃO...................................................................................................................................... 145
2 AS IDEIAS ILUMINISTAS E A ESTÉTICA NEOCLÁSSICA...................................................... 146
3 BOCAGE: A EXPRESSÃO DO LIRISMO PORTUGUÊS.............................................................. 152
RESUMO DO TÓPICO 3........................................................................................................................ 158
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................................. 159

UNIDADE 3 – DO ROMANTISMO À CONTEMPORANEIDADE: A ESTÉTICA E A


PRODUÇÃO LITERÁRIA........................................................................................... 161

TÓPICO 1 – O ESPÍRITO CRIADOR E LIVRE: PERÍODO ROMÂNTICO................................. 163


1 INTRODUÇÃO...................................................................................................................................... 163
2 A ESTÉTICA DA POESIA E DA PROSA ROMÂNTICA.............................................................. 164
LEITURA COMPLEMENTAR................................................................................................................ 177
RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................ 179
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................................. 181

TÓPICO 2 – A REVOLUÇÃO DA MENTALIDADE E O CULTO AO ETÉREO: AS ESCOLAS


REALISTA E SIMBOLISTA............................................................................................. 183
1 INTRODUÇÃO...................................................................................................................................... 183
2 ASPECTOS GERAIS DO REALISMO.............................................................................................. 185
3 ASPECTOS GERAIS DO SIMBOLISMO......................................................................................... 196
RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................................ 204
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................................. 206

TÓPICO 3 – LIBERDADE DE CONCEPÇÃO E EXPRESSÃO E A ATUALIDADE: A ERA


MODERNA E A PRODUÇÃO LITERÁRIA CONTEMPORÂNEA........................ 207
1 INTRODUÇÃO...................................................................................................................................... 207
2 PANORAMA DO MODERNISMO E DA EXPRESSÃO LITERÁRIA CONTEMPORÂNEA........208
3 EXPOENTES DA POESIA E DA PROSA MODERNA E JOSÉ SARAMAGO.......................... 217
4 MANIFESTAÇÕES DA LITERATURA PORTUGUESA ALÉM-PORTUGAL.......................... 239
LEITURA COMPLEMENTAR................................................................................................................ 243
RESUMO DO TÓPICO 3........................................................................................................................ 245
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................................. 247

TÓPICO 4 – A LITERATURA PORTUGUESA E O ENSINO: ALGUMAS IDEIAS................... 249


1 INTRODUÇÃO...................................................................................................................................... 249
2 A LITERTURA PORTUGUESA E O ENSINO: UM COMEÇO.................................................... 249
RESUMO DO TÓPICO 4........................................................................................................................ 256
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................................. 257
REFERÊNCIAS.......................................................................................................................................... 259

VIII
UNIDADE 1

LITERATURA PORTUGUESA: ORIGENS


E ESCOLAS LITERÁRIAS DO PERÍODO
MEDIEVAL

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, o/a acadêmico/a estará apto/a a:

• refletir acerca da literatura, estética literária e suas diferentes manifesta-


ções: escrita, imagem etc.;

• compreender o processo de formação da Literatura Portuguesa;

• refletir acerca das primeiras manifestações literárias portuguesas: cantigas


e novelas;

• analisar as manifestações literárias clássica e barroca portuguesa e com-


preender sua importância e influência na formação dos primeiros perío-
dos literários brasileiros.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em três tópicos. Ao final de cada um deles, você
poderá dispor de atividades que o/a auxiliarão na fixação do conteúdo.

TÓPICO 1 – A FORMAÇÃO DA LITERATURA PORTUGUESA

TÓPICO 2 – O PERÍODO MEDIEVAL: A POESIA E A PROSA


TROVADORESCA

TÓPICO 3 – A PROSA, A POESIA E O TEATRO: A ESTÉTICA DO


HUMANISMO PORTUGUÊS

1
2
UNIDADE 1
TÓPICO 1

A FORMAÇÃO DA LITERATURA PORTUGUESA

“O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
que chega a fingir que é dor
a dor que deveras sente.”
(PESSOA, Fernando. Autopsicografia, 1932.)

1 INTRODUÇÃO
A função da Literatura e suas diferentes concepções foi, desde os tempos
primordiais, objeto de muitas discussões. É sabido, porém, que, nas diferentes
épocas em que ela se manifesta, lhe são atribuídas funções e naturezas diversas,
em consonância com a sua realidade cultural e social.

A literatura é uma forma de manifestação da linguagem. Há autores que


veem a linguagem a partir de uma ótica social, entre os quais poder-se-ia citar
Roland Barthes, que a concebe como a expressão do poder social, ao qual toda
a sociedade está submetida. Diz ele que “[...] esse objeto em que se inscreve o
poder, desde toda eternidade humana, é a linguagem – ou, para ser mais preciso,
sua expressão obrigatória: a língua.” (BARTHES, 1978, p. 2). Isto posto, percebe-
se que Barthes (1978) atribui à linguagem a expressão do pensamento humano,
numa determinada época, ou período histórico.

Porém, no que diz respeito especificamente à literatura, diz o autor em


questão que há maneiras de o ser humano libertar-se da submissão da linguagem,
valendo-se, para isto, da própria língua. O crítico francês revela ainda que “[...]
essa trapaça, salutar, essa esquiva [...], eu a chamo, quanto a mim: literatura.”
(BARTHES, 1978, p. 16).

Diante do exposto, percebe-se que, na ideia de Barthes, a literatura é


retratada como a maneira de se utilizar a linguagem sem a sujeição ao poder,
distante da escravidão das regras. Assim, o autor (escritor literário) tem a
liberdade de escolha e criação das palavras e estruturas, a fim de exprimir
pensamentos, emoções e ideias. Na linguagem literária, as palavras adquirem
novos significados, sabor diferente.

É, pois, caro/a acadêmico/a, com esta visão que, nas próximas seções deste
tópico, passaremos a refletir acerca da literatura e da estética literária, para focar,
ao final, a manifestação literária portuguesa medieval.

3
UNIDADE 1 | LITERATURA PORTUGUESA: ORIGENS E ESCOLAS LITERÁRIAS DO PERÍODO MEDIEVAL

2 LITERATURA: A ESTÉTICA, A ESCRITURA E A IMAGEM


Dentre as muitas manifestações da arte, está a literatura. Em relação
às demais manifestações artísticas, ela apresenta muitas semelhanças e pontos
distintivos. Talvez o elemento a partir do qual ela se distingue das outras artes
seja o modo de expressar, a matéria-prima a partir da qual o artista trabalha. E
aqui, passe-se a palavra a Alceu de Amoroso Lima:

A distinção entre a literatura e demais artes vai operar-se nos seus


elementos intrínsecos, a matéria e a forma do verbo. De que se serve o homem de
letras para realizar seu gênio inventivo? Não é, por natureza, nem do movimento
como o dançarino, nem da linha como o escultor ou o arquiteto, nem do som
como o músico, nem da cor como o pintor. E sim – da palavra. A palavra é, pois,
o elemento material intrínseco do homem de letras para realizar sua natureza e
alcançar seu objetivo artístico.

Por meio das palavras, o ser humano realizou registros de toda ordem:
documentou, efetuou acordos, criou todo tipo de mensagem, catalogou dados
etc. Muitos textos antigos chegaram às posteridades via palavra escrita. Obras
das civilizações passadas perduram até hoje graças à escrita.

Assim, há que se dizer que a literatura é uma das partes essenciais da


cultura das civilizações. E a arte da escrita revela a criatividade e a imaginação
que permeia a cultura dessas civilizações. Conforme você já estudou em outros
cadernos durante o curso, somente utilizar palavras para fazer literatura não é o
suficiente. A palavra adquire função literária na medida em que a intenção daquele
que escreve passa a focalizar a mensagem em si, seja na combinação e seleção das
palavras, seja na estrutura da mensagem. O que se requer é que as palavras sejam
carregadas de significado, permitam a multiplicidade de interpretações, que
encerrem em si o colorido, a sonoridade, que sejam aprazíveis ao leitor-receptor.
Importante, aqui, que se dê voz a Umberto Eco (2003, p. 38): “Ora, é sabido que
as obras literárias, sejam elas clássicas ou modernas, são abertas, ou ambíguas”,
prestando-se, portanto a várias interpretações, o que expõe o leitor a um trabalho
criativo, na medida em que tenta interpretá-las, compreendê-las. Uma vez que
nem tudo está dado no texto de forma fechada, mas que a obra se organiza com
uma ambiguidade fundamental em todos os níveis, isto é, “[...] abre-se numa
potencialidade muito grande de sentidos, necessariamente, provoca um trabalho
por parte do leitor.” (ECO, 2003, p. 38). Por isso, considera-se que, dentro da
questão literária, as palavras vão além do limite de sua significação. Portanto,
elas podem conquistar novos espaços e revelar novas possibilidades de se ver a
realidade.

Assim, caro/a acadêmico/a, você pode observar qual é o caminho que a


literatura percorre. Observe que o artista sente, seleciona e manipula as palavras,
organiza-as de tal modo que produzam um efeito que ultrapasse a sua significação
primeira, avizinhando-as do imaginário.

4
TÓPICO 1 | A FORMAÇÃO DA LITERATURA PORTUGUESA

Não é a toa que se diz que a obra do escritor origina-se da sua imaginação,
ainda que tenha como base elementos da realidade. A partir de sua aguçada
percepção, o autor capta a realidade através de seus sentimentos. Ele consegue
explorar as muitas possibilidades linguísticas e manipulá-las nos mais diversos
níveis, entre os quais o fonético e o semântico.

Com as suas habilidades, o escritor é capaz de criar uma outra realidade,


a dita realidade artística, a qual precisa ser concebida e analisada de modo
diferente, não como se estivéssemos diante de seres dotados de vida, de carne e
de osso. Ela “[...] é caracterizada pela ficção enquanto forma e conteúdo, isto é,
enquanto conceito ou modelo.” (COMPAGNON, 2003, p. 38).

Anteriormente, em outra parte, você pôde perceber, caro/a acadêmico/a,


que a literatura é a arte manifestada via linguagem, a qual procura levar ao
máximo a ambiguidade dos termos. Assim, pode-se entender que a arte literária
não se caracteriza puramente pela transmissão de informações, mas ela “[...]
cria em cada ser aquilo que os sentidos o levam a interpretar. Através da leitura
podemos vivenciar aquilo que lemos e criar dentro de nós a imagem proposta
pelo texto.” (LAJOLO, 1995, p. 28).

Vê-se, assim, que a literatura tanto pode ser percebida sob a ótica do
verídico como pode ser concebida como ficção. As personagens, por sua vez,
tanto poderiam ter existido como poderiam ter sido criadas pelo autor. Enfim,
em literatura tudo é possível. Considere-se, entretanto, que, mesmo na ótica da
ficção, há o fundamento real, no qual o autor se apoiou para criar a ficção. Por isso,
há quem veja a literatura como uma imitação do real, entre os quais Aristóteles.
Ele concebeu a arte literária como mimese, ou seja, imitação. Ela seria, assim, a
arte que imita pela palavra.

E
IMPORTANT

Caro/a acadêmico/a de Letras! Ao estudar literatura é muito importante que


você conheça o que se falou na antiguidade acerca dela. Talvez um dos primeiros a falar
sobre a literatura como arte tenha sido Aristóteles, filósofo grego do quarto século antes de
Cristo. Por isso, sugerimos que você leia a obra “Arte Poética”, na qual ele trata de diferentes
gêneros textuais.

Até aqui, foi possível compreender que a literatura está enraizada na arte
da palavra, e que esta suscita uma multiplicidade de interpretações, considerando-
se, inclusive a etimologia. Literatura origina-se do termo latino littera, que remete
à “arte da escrita”.

5
UNIDADE 1 | LITERATURA PORTUGUESA: ORIGENS E ESCOLAS LITERÁRIAS DO PERÍODO MEDIEVAL

Segundo autores como Eagleton (2001, p. 2), esta arte de escrever se dá


dentro dos moldes da escrita já existentes e que “[...] intensificam a linguagem
comum”, que poderiam sugerir algo diferente da linguagem comum, usual. Se
esta linguagem pudesse ser intensificada, far-se-iam necessários certos recursos
para dizer do que se trata. Assim, a aplicação da linguagem escrita de modo
diferente constitui o que poderia ser chamado de valor estético.

E a literatura lida com a estética por excelência. Conforme já mencionado,


na literatura, a linguagem adquire status artístico. Essa maneira especial de
combinar as palavras, de modo impressionar o leitor e aprazê-lo é que poderia ser
chamada de estética literária. Vale aqui dizer-se que, segundo D’Onofrio (2002,
p. 23), as funções da literatura são “[...] estética – arte da palavra e expressão do
belo –, lúdica – provocar um prazer –, cognitiva – forma de conhecimento de uma
realidade –, catártica – purificação dos sentimentos – e pragmática – pregação de
uma ideologia.”

Dentre as tantas funções das quais está imbuída a arte da literatura, a


questão estética é a que cumpre a função de fazer com que o ato de escrever de
modo literário seja diferente de todos os outros modos. Isto posto, concebe-se
um texto como literário se este busca representar de um modo todo diferente,
artístico, a realidade. No aspecto literário, portanto, há que se considerar a
combinação forma e conteúdo.

NOTA

Caro/a acadêmico/a, sugere-se que você assista aos seguintes filmes e observe
que imbricações eles têm com a Literatura. Observe os aspectos literários ressaltados em
cada um:
“Sociedade dos poetas mortos” e “O carteiro e o poeta”.

No que se refere à questão estética, seja via palavra, seja via imagem, é
importante considerar as palavras de Mikhail Bakhtin (2006, p. 84), no texto “O
todo espacial da personagem e do seu mundo. Teoria do horizonte e do ambiente”.
Para um bom entendimento do que o autor revela neste texto, a seguir, você,
caro/a acadêmico/a, encontra alguns tópicos resumidos. Leia-os nas palavras do
próprio autor e faça as devidas ligações com os aspectos tratados anteriormente
acerca da literatura.

• A forma material, que determina se uma obra é de pintura, poesia ou música,


determina de maneira substancial também a estrutura do objeto estético
correspondente, tornando-o um tanto unilateral e acentuando um ou outro
aspecto seu. Ainda assim, o objeto estético é multifacetado, concreto como

6
TÓPICO 1 | A FORMAÇÃO DA LITERATURA PORTUGUESA

a realidade ético-cognitiva (o mundo vivenciável) que nele se justifica e


se conclui artisticamente, cabendo observar que é na obra verbalizada
(o menos possível na música) que esse mundo artístico é mais concreto e
multifacetado. A criação verbalizada não constrói forma espacial externa,
porquanto não opera com material espacial como a pintura, a escultura, o
desenho: seu material é a palavra (a forma espacial da disposição do texto –
estrofes, capítulos, figuras complexas da poesia escolástica etc. – sumamente
insignificante), material não-espacial pela própria substância (o som na música
é ainda menos espacial); no entanto, o próprio objeto estético, representado
pela palavra, evidentemente não se constitui só de palavras, embora haja nele
muito de puramente verbal, e esse objeto da visão estética possui uma forma
espacial interna artisticamente significativa, representada pelas palavras da
mesma obra (enquanto na pintura essa forma é representada pelas cores,
no desenho pelas linhas, de onde tampouco se conclui que o objeto estético
correspondente seja constituído apenas de linhas ou apenas [de] cores; trata-
se precisamente de criar um objeto concreto de linhas ou cores.

• Outra questão é saber como se realiza essa forma espacial: deve ela
reproduzir-se numa representação puramente visual, nítida e completa, ou
só se realiza o seu equivalente volitivo-emocional, o tom sensorial que lhe
corresponde, o colorido emocional, sendo que a representação visual pode
ser descontínua, fugidia ou até estar ausente, substituída pela palavra? (O
tom volitivo-emocional, embora vinculado à palavra e como que fixado à
sua imagem sonora tonalizante, evidentemente não diz respeito à palavra,
mas ao objeto que esta exprime, mesmo que este não se realize na consciência
como imagem visual; só pelo objeto assimila-se o tom emocional, mesmo
que este se desenvolva junto com o som da palavra.) Um estudo detalhado
da questão assim colocada está fora do alcance deste ensaio; seu lugar é na
estética da criação verbalizada. No nosso caso, bastam algumas indicações
sumaríssimas sobre essa questão. A forma espacial interna nunca se realiza
com toda sua perfeição visual e plenitude (aliás, o mesmo se dá com a forma
temporal com toda a sua perfeição sonora e sua plenitude) nem no campo
das artes plásticas; a plenitude visual e a perfeição só são próprias da forma
material externa da obra, cujas qualidades são como que transferidas para
a forma interna (até as artes plásticas, a imagem visual da forma interna é
consideravelmente subjetiva). A forma visual interna é vivenciada de modo
volitivo-emocional, como se fosse perfeita e acabada, mas essa perfeição e
esse acabamento nunca podem ser uma concepção efetivamente realizada.
É claro que o grau de realização da forma interna da representação visual
é diferente em modalidades diversas de criação verbalizada e em diversas
obras particulares.

• Visto que o artista lida com a existência e o mundo do homem, lida também
com a sua concretude espacial, com suas fronteiras exteriores como elemento
indispensável dessa existência, e, ao transferir essa existência do homem para
o plano estético, deve transferir para esse plano também a imagem externa

7
UNIDADE 1 | LITERATURA PORTUGUESA: ORIGENS E ESCOLAS LITERÁRIAS DO PERÍODO MEDIEVAL

dela nos limites determinados pela espécie do material (cores, sons etc.).
O poeta cria a imagem, a forma espacial da personagem e de seu mundo
com material verbal: por via estética assimila e justifica de dentro o vazio
de sentido e de fora a riqueza factual cognitiva dessa imagem, dando-lhe
significação artística.

• A imagem externa expressa em palavras, representada visualmente (até


certo ponto no romance, por exemplo) ou apenas vivenciada de modo
volitivo-emocional, tem significado de acabamento formal, ou seja, não é só
expressiva, mas também artisticamente impressiva. Aqui se aplicam todas
as teses que expusemos, o retrato verbal se subordina a elas assim como o
retrato pictural. Também aqui, só a posição de distância cria o valor estético
da imagem externa, a forma espacial expressa a relação do autor com a
personagem; ele deve ocupar uma posição firme desta e de seu mundo e
usar todos os elementos transgredientes à imagem externa da personagem.

• A obra de criação verbal é criada de fora para cada personagem, e, quando


a lemos, é de fora e não de dentro que devemos seguir as personagens. Mas
é justamente na criação verbal (e, acima de tudo, na música) que parece
muito sedutora e convincente a interpretação puramente expressiva da
imagem externa (da personagem e do objeto), porquanto a distância do
autor-espectador não tem a precisão espacial como nas artes plásticas (a
substituição das representações visuais pelo equivalente volitivo-emocional
fixado à palavra). Por outro lado, a linguagem como material não é
suficientemente neutra em face da esfera ético-cognitiva, onde é empregada
como autoexpressão e comunicação, ou seja, como recurso expressivo, e nós
transferimos essas habilidades expressivas da linguagem (de traduzir a si
mesmo e designar o objeto) para a percepção das obras de arte verbal.

• O conteúdo (aquele que se insere na personagem, sua vida de dentro) e a


forma não se justificam nem se explicam no plano de uma consciência, mas
tão somente nas fronteiras de duas consciências: nas fronteiras do corpo
realizam-se o encontro e a dádiva artística da forma. Sem essa atribuição de
princípio ao outro como uma dádiva a que ele o justifica e o conclui (com
a justificação estético-imanente), a forma, sem encontrar a fundamentação
interna de dentro do ativismo do autor-contemplador, deve degenerar
fatalmente em algo hedonicamente agradável, simplesmente “bonito” e
imediatamente agradável para mim, assim como eu sinto diretamente frio
ou calor: o autor cria tecnicamente o objeto do prazer, o contemplador se
proporciona passivamente esse prazer.

FONTE: Extraído e adaptado de: BAKHTIN, Mikhail. O todo espacial da personagem e do seu
mundo. Teoria do horizonte e do ambiente. In: ______. Estética da criação verbal. Tradução de
Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 84-90.

8
TÓPICO 1 | A FORMAÇÃO DA LITERATURA PORTUGUESA

Ao lermos alguns tópicos do texto de Bakhtin, percebemos o tratamento


que ele dá à questão literária, seja enquanto palavra ou como imagem. O crítico
russo dedica especial atenção à personagem e à linguagem literária enquanto
artefatos literários que concorrem para deixar em aberto a relação da obra literária
com o mundo, a qual é passível de uma multiplicidade de interpretações, de
acordo com as leituras e de acordo com os leitores das diferentes épocas.

Caro/a acadêmico/a! Agora que tivemos a oportunidade de refletir acerca


da literatura enquanto obra, linguagem, criação, estética e arte, passemos a uma
reflexão acerca do contexto histórico e cultural da Península Ibérica do período
medieval, ressaltando en passant os fatores que possibilitaram o surgimento das
primeiras manifestações literárias. É importante que se destaque que a obra
literária é fruto da inspiração individual do seu criador (artista), mas acima de
tudo ela é um fenômeno social, graças ao seu idioma de criação, aos problemas e
inquietações que ela retrata. Do mesmo modo, a Literatura Portuguesa também
não foge a isto. Por isso, a ligação entre história literária, história política e
história social é importante, evidenciando sempre que esta constitui o cenário
que favoreceu a criação das primeiras manifestações literárias.

3 O MUNDO MEDIEVAL E A PENÍNSULA IBÉRICA

FIGURA 1 – LISBOA, LARGO DE CAMÕES (PRINCÍPIOS DO SÉCULO XX)

FONTE: De Giovanni (2007, p. 17)

Entre os muitos modos de conceber a literatura, está a visão de Antonio


Candido (1997, p. 26) que a define “como um conjunto de textos escritos (muitas
vezes também fixados na oralidade), esteticamente elaborados a partir da linguagem
comum, que dão conta da especificidade cultural de uma comunidade. A comunidade,
a propósito da presente seção, seria a Península Ibérica do período medieval”.

E dentro desta visão, está a literatura portuguesa, a qual se constituiu a partir


de um espaço geográfico uno, ou seja, o território português. Sabe-se, outrossim,
que ela se alargou pelas várias partes do mundo, via aventuras marítimas das

9
UNIDADE 1 | LITERATURA PORTUGUESA: ORIGENS E ESCOLAS LITERÁRIAS DO PERÍODO MEDIEVAL

grandes navegações, as quais resultaram nos descobrimentos ultramarinos, na


ampliação do comércio, na concretização de interesses religiosos com a propagação
do cristianismo, nos séculos XV e XVI. Tudo isto possibilitou que se concretizasse
numa riquíssima tradição literária de viagens e que tivesse como consequência a
expansão do falar português. E a tradição literária lusitana evolui juntamente com a
estética da cultura ocidental, oriunda de uma matriz medieval que tem base latina,
dentro da qual se constitui e se aperfeiçoa a língua literária.

Historicamente, tem-se que a independência de Portugal foi resultado


de uma luta gradativa contra os reinos cristãos da Península Ibérica, região
que compreende os atuais territórios de Portugal e Espanha. Este processo de
independência está ligado à diferenciação das atividades econômicas desta região
e às rivalidades entre os diferentes grupos feudais. Por isso, é importante dizer-
se que “[...] foi o povo quem participou ativamente desse processo, através das
organizações municipais, os conselhos populares. Havia neles maior liberdade e
relações sociais mais avançadas, que levavam a população a lutar para afastar do
país a servidão de outras regiões cristãs.” (ABDALA JÚNIOR; PASCHOALIN, 1985,
p. 9). Após várias lutas, somente em 1143 negociou-se um tratado definitivo de paz,
na chamada Conferência de Zamora. O título de rei a Afonso Henriques só foi dado
pelo papa Alexandre III, em 1179. Portugal tornou-se uma nação autônoma, mas a
luta para concretizar esta independência avançou ainda muitos anos, até o reinado
de D. Afonso III (1248-1279), com a definitiva expulsão dos sarracenos.

NOTA

Para seu maior conhecimento, caro/a acadêmico/a, sobre a Independência de


Portugal, é importante lembrar que, em 1139, depois de uma estrondosa vitória na batalha
de Ourique contra um forte contingente mouro, D. Afonso Henriques afirma-se como rei de
Portugal, e com o apoio dos nobres portugueses, é aclamado como rei soberano. Nascia,
assim, em 1139, o reino de Portugal e sua primeira dinastia e Casa Real: a Borgonha, com o
rei Afonso I de Portugal (ex-D. Afonso Henriques). Só a 5 de outubro de 1143 é reconhecida
a independência de Portugal pelo rei Afonso VII de Leão e Castela, no Tratado de Zamora,
assinando-se a paz definitiva. Desde então, D. Afonso Henriques (Afonso I) procurou
consolidar a independência por si declarada. Fez importantes doações à Igreja e fundou
diversos conventos. Dirigiu-se ao papa Inocêncio II e declarou Portugal tributário da Santa Sé,
tendo reclamado para a nova monarquia a proteção pontifícia. Em 1179, o papa Alexandre III,
através da Bula Manifestis Probatum, confirma e reconhece Portugal como país independente
e soberano protegido pela Igreja.
Na continuação das conquistas, procurou também terreno ao sul, povoado, até então, por
Mouros e, após ver malograda a primeira tentativa de conquistar Lisboa, em 1142, feito que
só conseguiu realizar em 24 de outubro do mesmo ano, após conquistar Santarém, no dia 15
de março, com o auxílio de uma poderosa esquadra com 160 navios e um contingente de 12
a 13 mil cruzados, que se dirigiam para a Terra Santa.
FONTE: Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira. Lisboa; Rio de Janeiro: Editorial
Enciclopédia Limitada, 1978. v. 25. p. 317.

10
TÓPICO 1 | A FORMAÇÃO DA LITERATURA PORTUGUESA

No que concerne à língua, esta tem origem no latim, já que os romanos


chegaram à Península Ibérica em 61 a. C. Esta língua radicou-se na península
até meados do século V, com a invasão dos bárbaros. Por causa das invasões
árabes no século VII, ocorreu a decadência do latim. “O latim reduziu-se a falares
vernáculos e quase desapareceu.” (PINHEIRO, 2007, p. 12).

O norte, região nunca conquistada pelos árabes, serviu de ponto de


organização para prepararem o processo de reconquista do território, a qual
assumiu caráter de Cruzada. Para o enfrentamento, apresentaram-se muitos
cavaleiros cristãos. As lutas estenderam-se por muito tempo, inclusive após
a morte de D. Afonso Henriques. A expulsão total se dá sob D. Sancho, o qual
consolida a primeira dinastia portuguesa, a de Borgonha.

Este fato possibilitou ao povo português a opção de não mais falar árabe,
como também não mais se voltou a falar o latim. A nova língua passou a ser
a mistura de falares da gente humilde, enquanto para a literatura adotou-se o
galaico-português.

NOTA

Usa-se a expressão galaico-português (ou galego-português ou ainda galécio-


português) para caracterizar “esta nova língua falada em Portugal”, composta por uma mescla
de palavras entre uma língua e outra. A origem está em Galiza (Espanha) e Portugal.

As primeiras palavras portuguesas de que se têm conhecimento aparecem


em documentos do século IX e são redigidas em latim bárbaro, que seria o já
futuro português. Não são propriamente textos literários, mas documentos de
utilidade, como partilhas, testamentos, cartas de doação, cartas de quitação,
instrumentos jurídicos de vários tipos.

Quanto às primeiras manifestações literárias portuguesas, estas são


registradas em galego-português e ocorrem entre os séculos XII e XV. Esta foi
a língua com que os rudes guerreiros das cruzadas manifestaram seus anseios
amorosos e as suas aspirações ideais. Foi também esta língua que levou “[...] os
trovadores a revelarem a sua vida interior e o jardim secreto de suas meditações.
Foi também o bordão florido em que se apoiaram os primitivos poetas para o
descobrimento e conquista da própria alma.” (FIGUEIREDO, 1980, p. 35).

Após estar solidificado o território português, como também definida a


língua, já é possível empreender tempo para o povo desenvolver e cultivar a arte.
No nosso caso, a arte literária que, via manifestações poéticas, começa a aparecer

11
UNIDADE 1 | LITERATURA PORTUGUESA: ORIGENS E ESCOLAS LITERÁRIAS DO PERÍODO MEDIEVAL

na corte de D. Sancho. A data que se toma para marcar o início da atividade


literária em Portugal é 1189 (ou 1198), quando o trovador Paio Soares Taveirós
compõe uma cantiga, endereçada a Maria Pais Ribeiro, também chamada “A
Ribeirinha”.

FIGURA 2 – CANTIGA DA RIBEIRINHA OU CANTIGA DA GUARVAIA

FONTE: De Giovanni (2007, p. 20)

Caro/a acadêmico/a, a composição do primeiro texto literário em língua


portuguesa (A “Cantiga da Ribeirinha”, de Paio Soares de Taveirós) marca o
início da primeira escola literária portuguesa, o Trovadorismo. Este assunto será
tratado no próximo tópico.

NOTA

A Cantiga da Ribeirinha, de Paio Soares de Taveirós, é também conhecida como


“cantiga da guarvaia”. Guarvaia significa um vestido luxuoso usado na corte.

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TÓPICO 1 | A FORMAÇÃO DA LITERATURA PORTUGUESA

LEITURA COMPLEMENTAR

A LITERATURA PORTUGUESA

Massaud Moisés

Portugal ocupa especial posição geográfica no mapa da Europa. Reduzido


território de menos de noventa mil quilômetros quadrados, limita-se com a
Galiza ao norte, com a Espanha a leste, e com o Oceano Atlântico ao sul e ao
oeste. Como empurrado contra o mar, toda a sua história, literária ou não, atesta
o sentimento de busca dum caminho que só ele representa e pode representar.
Tal condicionamento geográfico, enriquecido por exclusivas e marcantes
influências étnicas e culturais (árabes, germânicas, francesas, inglesas etc.), havia
de gerar, como gerou, uma literatura com características próprias e permanentes.
A fatalidade de ser a língua portuguesa o seu meio de comunicação ajuda a
completar e explicar o quadro.

Diante da angústia geográfica, o escritor português opta pela fuga ou pelo


apego à terra de origem, matriz de todas as inquietudes e confidente de todas as
dores, centro de inspiração e nutridora de sonhos e esperanças. A fuga dá-se pelo
mar, o descobrimento, fonte de riqueza algumas vezes, de males incríveis e de
emoção quase sempre; ou, transcendendo a estreiteza do solo físico, para o plano
mítico, à procura de visualizar numa dimensão universal e perene a inquietação
particular e egocêntrica.

Assim, a Literatura Portuguesa oscila entre posições externas, com


certeza porque uma compensa a outra. Ao lirismo da raiz, por vezes carregado de
pieguice e morbidez, corresponde um sentimento hipercrítico, exagerado, pronto
a agredir, a ofender, a mostrar no “outro” a chaga ou a fraqueza. A sátira, não raro
levando ao desbocamento e ao destempero pessoal, dialoga com o culto fetichista
da sensação, do sentimento, exacerbado por atitudes de confessionalismo
adolescente. Uma atitude esconde a outra, a tal ponto que na base íntima de todo
satírico ou erótico se percebe logo o sentimental, o hipersensível, que defende
suas tibiezas com o verniz do procedimento contrário. E vice-versa.

Vem daí que seja uma literatura rica de poetas: aquela ambivalência
constitui o suporte do “fingimento poético”, na expressão feliz, e hoje tornada
lugar-comum, de Fernando Pessoa. A poesia é o melhor que oferece a Literatura
Portuguesa, dividida entre o apelo metafísico, que significa a vivência e a expressão
de problemas fundamentais e perenes (a relação conflitiva com o divino, o ser e o
não-ser, a condição humana, os valores eróticos etc.) e a atração amorosa da terra
(representada por temas populares, folclóricos), ou um sentimento superficial,
feito da confissão de estados da alma provocados pelos embates afetivos
primários, tendo por fulcro o eterno “eu-te-gosto-você-me-gosta”, de que fala

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UNIDADE 1 | LITERATURA PORTUGUESA: ORIGENS E ESCOLAS LITERÁRIAS DO PERÍODO MEDIEVAL

Carlos Drummond de Andrade. Não obstante essa derradeira tendência constitua


polo permanente, a Literatura Portuguesa ocupa lugar de relevo no mapa literário
europeu, graças a alguns poetas vocacionados para a contemplação metafísica,
como Camões, Bocage, Antero, Fernando Pessoa, entre outros.

Literatura pobre em teatro, eis outra afirmação indiscutível. Decorrência


natural do arraigado lirismo egocêntrico e sentimental, a dramaturgia portuguesa
só poucas vezes alcançou sair do nível mediano ou razoável. Tirante Gil Vicente,
Garret (sobretudo o de Frei Luís de Sousa) e alguma coisa de Antônio José da
Silva e Bernardo Santareno, tudo o mais vive no esquecimento. O grande surto
teatral operado nos dias que correm, embora prometedor e já realizador de peças
notáveis, é ainda muito recente para permitir afirmar que a atividade cênica de
Portugal conhece uma época de reviravolta e mudança radical.

[...] Assim sendo, compreende-se que este panorama histórico da atividade


literária de Portugal esteja dividido nos seus fundamentais momentos evolutivos.
No tocante às datas empregadas para os delimitar, constituem somente pontos
de referência, pois nunca se sabe com precisão quando começa ou termina um
processo histórico: funcionam, na verdade, como indício de que alguma coisa de
novo está acontecendo, sem caracterizar a morte definitiva do padrão velho até
aí em voga.

[...] A data que se tem utilizado para marcar o início da atividade literária
em Portugal é a de 1189 (ou 1198), quando o trovador Paio Soares de Taveirós
compõe uma cantiga (celebrizada como “cantiga da garvaia”, vocábulo este
que designava um luxuoso vestido de Corte), endereçada a Maria Pais Ribeiro,
também chamada A Ribeirinha, favorita de D. Sancho I.

A cantiga, oscilando entre ser de amor e de escárnio, revela tal


complexidade na estrutura da arte de poetar. Decerto houve, antes dessa cantiga,
considerável atividade lírica, infelizmente desaparecida: no geral, os trovadores
memorizavam as composições que interpretavam, fossem suas ou alheias, e só
em alguns casos as transcreviam em cadernos de notas, que podiam extraviar-se,
perder-se ou ser descartados.

Por isso, toda uma anterior produção poética – cujo volume e cujos
limites jamais poderão ser fixados – desapareceu por completo. Em vista de tal
circunstância, compreende-se que se tome a cantiga de Paio Soares de Taveirós
como o marco inicial da Literatura Portuguesa, pois trata-se do primeiro documento
literário que se conhece em vernáculo, o que de forma alguma significa negar a
existência duma intensa atividade poética antes de 1198.

FONTE: Adaptado de: MOISÉS, Massaud. Introdução. A Literatura Portuguesa. São Paulo:
Cultrix, 2008. p. 17-22.

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RESUMO DO TÓPICO 1

Caro/a acadêmico/a, no presente tópico, você teve oportunidade de


estudar aspectos importantes relacionados à Literatura Portuguesa, os quais
revemos, resumidamente, a seguir:

• Nas diferentes épocas em que a Literatura se manifesta, são atribuídas funções


e naturezas diversas a ela, em consonância com a sua realidade cultural e social.

• A literatura é uma forma de manifestação da linguagem. Há autores que veem


a linguagem numa ótica puramente social, entre os quais citamos Roland
Barthes, que a concebe como a expressão do poder social, ao qual toda a
sociedade está submetida.

• Na linguagem literária, as palavras adquirem novos significados, sabor


diferente. O elemento a partir do qual a literatura se distingue das outras artes
é o modo de expressar, a matéria-prima a partir da qual o artista trabalha.

• A literatura é uma das partes essenciais da cultura das civilizações. E a arte


da escrita revela a criatividade e a imaginação que permeiam a cultura dessas
civilizações.

• A palavra adquire função literária na medida em que a intenção daquele que


escreve passa a focalizar a mensagem em si, seja na combinação e seleção das
palavras, seja na estrutura da mensagem. Por meio das palavras, o ser humano
realizou registros de toda ordem: documentou, efetuou acordos, criou todo
tipo de mensagem, catalogou dados etc.

• O artista sente, seleciona e manipula as palavras, organiza-as de tal modo que


produzam um efeito que ultrapasse a sua significação primeira, avizinhando-
as do imaginário.

• A obra do escritor origina-se da sua imaginação, ainda que tenha como base
elementos da realidade. A partir de sua aguçada percepção, o autor capta
a realidade através de seus sentimentos. Ele consegue explorar as muitas
possibilidades linguísticas e manipulá-las nos mais diversos níveis, entre os
quais o fonético e o semântico.

• O escritor é capaz de criar uma outra realidade, a dita realidade artística, a qual
precisa ser concebida e analisada de modo diferente, não como se estivéssemos
diante de seres dotados de vida, de carne e de osso.

15
• A literatura tanto pode ser percebida sob a ótica do verídico como pode ser
concebida como ficção. Por sua vez, as personagens tanto poderiam ter existido
como poderiam ter sido criadas pelo autor. Enfim, em literatura tudo é possível.

• A literatura é vista também como uma imitação do real, como Aristóteles. Ele
concebeu a arte literária como mimese, ou seja, imitação. Ela seria, assim, a
arte que imita pela palavra. Ela está enraizada na arte da palavra e suscita uma
multiplicidade de interpretações, considerando-se, inclusive, a etimologia.
Literatura origina-se do termo latino littera, que remete à “arte da escrita”.

• A literatura lida com a estética por excelência. O autor (de literatura) tem o
cuidado de selecionar e combinar as palavras, colocando em evidência o
lado palpável, material dos signos. Ao selecionar e combinar de um modo
todo particular e especial os termos, o autor procura obter alguns elementos
fundamentais no que diz respeito à linguagem, entre os quais o ritmo, a
sonoridade, o belo, o inusitado das imagens.

• A maneira especial de combinar as palavras, de modo a impressionar o autor e


aprazê-lo é que poderia ser chamada de estética literária. A questão estética é a
que cumpre a função de fazer com que o ato de escrever de modo literário seja
diferente de todos os outros modos.

• A obra literária é fruto da inspiração individual do seu criador (artista), mas


acima de tudo ela é um fenômeno social, graças ao seu idioma de criação, aos
problemas e inquietações que ela retrata.

• A história da literatura lusitana evolui juntamente com a estética da cultura


ocidental, oriunda de uma matriz medieval que tem base latina, dentro da qual
se constitui e se aperfeiçoa a língua literária.

• A nova língua (português) passou a ser a mistura de falares da gente humilde,


enquanto para a literatura se adotou o galaico-português.

• As primeiras palavras portuguesas de que se tem conhecimento aparecem em


documentos do século IX e são redigidas em latim bárbaro, que seria o já futuro
português.

• A data que se toma para marcar o início da atividade literária em Portugal é


1189 (ou 1198), quando o trovador Paio Soares Taveirós compõe uma cantiga,
endereçada a Maria Pais Ribeiro, também chamada “A Ribeirinha”.

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AUTOATIVIDADE

Caro/a acadêmico/a, para que você possa melhor fixar o conteúdo deste
tópico, apresentamos, a seguir, uma atividade. Procure resolvê-la com base no
que você estudou.

1 Releia o texto de Mikhail Bakhtin. Nele você pode observar as diferentes


maneiras de o artista representar esteticamente as imagens, os objetos,
ambiente, personagens. Assim, comente como o artista que lida com a
palavra (escritor) representa esteticamente os objetos.

2 No primeiro capítulo deste tópico são apresentadas muitas definições de


Literatura. Caro/a acadêmico/a, utilize a internet ou livros e pesquise outra
definição de Literatura. Em seguida, transcreva-a e socialize-a com os demais
acadêmicos no próximo encontro.

3 Conforme apresentado na terceira seção, a língua portuguesa foi levada, via


navegações e descobrimentos, às diferentes partes do mundo. Pesquise os
diferentes locais em que, no mundo, é falada a língua portuguesa.

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UNIDADE 1
TÓPICO 2

O PERÍODO MEDIEVAL: A POESIA E A PROSA


TROVADORESCA

“A, senhor, ide rogar mia senhor,


Por Deus que haja mercee de mi.”
(D. Dinis)

1 INTRODUÇÃO
Como um país realmente autônomo, Portugal surge na primeira metade
do século XII. É nesse período que aparecem as primeiras manifestações da
Literatura Portuguesa, através da poesia. Na verdade, são manifestações orais,
quem sabe até sem provas concretas sobre a sua origem. No entanto, toma-se
o ano de 1189 (ou 1198) como a data provável do aparecimento do primeiro
documento literário. Trata-se da já citada cantiga de amor escrita por Paio Soares
de Taveirós, em galego-português, conhecida como Cantiga da Ribeirinha (ou da
Guarvaia). É dirigida a Maria Pais Ribeiro (a Ribeirinha). De acordo com o que
observa Fujyama (1970, p. 11), “poder-se-ia até crer na existência de uma tradição
lírica, oral, até de longa data, haja vista perceber-se na cantiga uma composição já
bastante avançada e complexa”.

O início da literatura portuguesa traz a marca do lirismo trovadoresco,


antecedendo a prosa, para a qual o processo evolutivo será mais lento. Veem-se,
assim, dois períodos marcando o surgimento da literatura portuguesa: o primeiro,
lírico, que cultivou a poesia lírica (cantigas), e o segundo, a prosa, trazendo as
novelas de cavalaria, originárias das canções de gesta, que eram composições
poéticas em forma de canções que narravam feitos heróicos.

A seguir, caro/a acadêmico/a, você terá oportunidade de estudar


separadamente cada um destes períodos e, ao mesmo tempo, apreciar alguns
textos representativos de ambas as épocas.

2 AS CANTIGAS
O primeiro período da literatura portuguesa, marcado pelo florescimento
das chamadas cantigas, recebe o nome de Trovadorismo, por serem estas cantigas
poemas criados com o objetivo de que fossem cantados, acompanhados por
instrumentos musicais, entre os quais a flauta, a viola, o alaúde além de outros
utilizados na época. Os autores de tais cantigas eram conhecidos por trovadores,
enquanto aos que as apresentavam de maneira cantada chamavam-se jograis.

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UNIDADE 1 | LITERATURA PORTUGUESA: ORIGENS E ESCOLAS LITERÁRIAS DO PERÍODO MEDIEVAL

NOTA

O Dicionário Houaiss trata como jogral o artista medieval que cantava e recitava
poesia. A partir do século X, os jograis começaram, juntamente com os menestréis, a divulgar
a poesia trovadoresca, cantando-a acompanhados de música.

Há quem atribua a origem deste tipo de poesia ao movimento das cruzadas,


já que os fiéis cruzados encontravam-se em Lisboa, que era a área portuária mais
próxima para embarcar com destino a Jerusalém. Junto com todo este movimento
de chegada e partida dos cruzados, havia os jograis, os quais introduziram a nova
moda literária em Portugal. Conforme explica Massaud Moisés (2008, p. 24), em
Portugal, esta modalidade poética encontrou terreno fértil, haja vista já haver ali
uma “[...] espécie de poesia popular de velha tradição. A íntima fusão de ambas
as correntes (a provençal e a popular) explicaria o caráter próprio assumido pelo
trovadorismo”.

Poder-se-ia até imaginar que um papel fundamental era desempenhado
pelos jograis, já que estes eram como que os atuais artistas ambulantes, que
animavam festas, romarias, feiras, torneios, valendo-se para isto das melodias
e canções. Eles levavam, assim, “[...] de cidade em cidade, de castelo em castelo
essa nova forma de arte, que fez do amor e da saudade a fonte de uma expressão
poética que adquiriu diferentes formas ao longo do tempo.” (TUFANO, 1990, p.
111).

Considerando-se as condições em que foram compostas, geralmente uma
tradição oral ou, se escritas, provisoriamente anotadas, principalmente por não
haver intenção de registrá-las, muitas das cantigas foram perdidas. Mas, há que
se considerar a existência de documentos que trazem coletâneas de cantigas de
diferentes tipos e autores variados – são os chamados cancioneiros. Pela sua
importância, no que concerne ao conhecimento do Trovadorismo português, são
relevantes os seguintes cancioneiros:

• Cancioneiro da Ajuda: sua composição parece datar do século XIII, no reinado


de Afonso III. Contém 310 cantigas, a maior parte delas de amor.

• Cancioneiro da Biblioteca Nacional: conhecido também pelo nome dos dois


italianos que o possuíram – Cancioneiro Collocci-Brancuti –, contém 1.647
cantigas, de todos os tipos, cujos autores datam dos reinados de Afonso III e D.
Dinis. Trata-se de uma cópia italiana do século XVI.

• Cancioneiro da Vaticana: também constitui uma cópia italiana do século XVI e


contém uma coletânea de 1.205 cantigas, dos mais diversos tipos: amor, amigo,
escárnio e maldizer. Foi localizado em 1840, na Biblioteca do Vaticano.

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TÓPICO 2 | O PERÍODO MEDIEVAL: A POESIA E A PROSA TROVADORESCA

No seu conjunto, as cantigas são distribuídas em dois gêneros maiores e


subdivididas em quatro modalidades, conforme segue:

1) Gênero lírico: cantigas de amor e cantigas de amigo.


2) Gênero satírico: cantigas de escárnio e cantigas de maldizer.

FIGURA 3 – D. DINIS (1279-1325)

FONTE: De Giovanni, 2007, p. 23

2.1 CANTIGAS DE GÊNERO LÍRICO


Este grupo compreende as cantigas de amigo e as de amor. “As cantigas
de amigo compreendem uma manifestação poética cujas raízes estão nas próprias
manifestações populares da Península Ibérica.” (TUFANO, 1981, p. 9). Portanto,
surgiram do próprio sentimento popular. Caracterizam-se pela expressão
do sentimento feminino, apesar de terem autoria masculina. São vivências,
principalmente amorosas. Nelas, na maior parte das vezes, aparece o termo
amigo, no primeiro verso da cantiga. O poeta assume o papel do eu lírico feminino,
fazendo esta “mulher”, via tal estratagema, confidências à pessoa amada.

Deste modo, observa-se na letra destas cantigas o sofrimento do eu lírico


por causa da ausência do “amigo” (namorado, pessoa amada), o que é confessado
à mãe, às irmãs, às amigas, ou ainda à natureza de um modo geral – campo, mar,
rio, fonte, árvore, flores. No que concerne à ausência do amado, poderia tratar-se
da sua partida para alguma batalha, a espera pelo seu regresso.

Outras vezes, as cantigas de amigo revelam estados de ânimo mais


diversificados, como a alegria pela chegada do amigo, a ansiedade pelo seu
regresso, o desejo de vingança, ciúmes. Já no que diz respeito às personagens
que tomam parte na estrutura da cantiga, temos: a amiga, que constitui a própria
voz poética. Poderia ser vista como ingênua, narcisista, com um comportamento

21
UNIDADE 1 | LITERATURA PORTUGUESA: ORIGENS E ESCOLAS LITERÁRIAS DO PERÍODO MEDIEVAL

esquivo ou vingativo, a mãe, a qual representa a norma social do caráter proibitivo,


as confidentes, representadas pela figura da mãe, ou uma amiga, a irmã, noivas,
a natureza (flores, ondas, mar), o amigo, representando o namorado, geralmente
ausente.

Com o objetivo de estimular o conhecimento deste tipo de cantiga, caro/a


acadêmico/a, passemos à leitura de uma dentre as muitas cantigas de amigo,
seguida de alguns comentários:

Ai flores
(D. Dinis)

Ai flores, ai flores do verde pino,


Se sabedes novas do meu amigo!
Ai Deus, e u é?

Ai flores, ai flores do verde ramo,


Se sabedes novas do meu amado!
Ai Deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amigo,


Aquel que mentiu do que pôs comigo!
Ai Deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amado,


Aquel que mentiu do que mi há jurado!
Ai Deus, e u é?
Vós me preguntades polo voss’amado?
E eu bem vos digo que é san’e vivo:
Ai Deus, e u é?

Vós me preguntades polo voss’amado?


E eu bem vos digo que é viv’e sano:
Ai Deus, e u é?

E eu bem vos digo que é san’e vivo,


E seerá vosc’ant’o prazo saído:
Ai Deus, e u é?

E eu bem vos digo que é viv’e sano


E seerá vosc’ant’ o prazo passado:
Ai Deus, e u é?

FONTE: BRAGA (2005 p. 186)

22
TÓPICO 2 | O PERÍODO MEDIEVAL: A POESIA E A PROSA TROVADORESCA

Efetuada a leitura da cantiga de amigo, seria de bom alvitre que


se observassem no texto alguns aspectos importantes, como a estrutura
paralelística, a qual pode ser comprovada já a partir dos dois primeiros versos
das duas primeiras estrofes – “Ai flores, ai flores”/“Se sabedes novas”. No final
destes versos, alternam-se as expressões, aparecendo – “verde pino”/“verde
ramo” e “meu amigo”/“meu amado”. As demais estrofes também apresentam
paralelismos. Faça você mesmo, acadêmico/a, esta análise.

No final de cada uma das quatro estrofes, repete-se a expressão “Ai Deus,
e u é?”, a qual poderia ser considerada refrão, como ocorre também nas músicas
atuais.

NOTA

Caro/a acadêmico/a, no que concerne às cantigas de amigo, estas apresentam


uma estrutura um tanto formalizada e com certa rigidez, no que diz respeito às repetições.
Veja-se, por exemplo:
1) Paralelismo: repetição da mesma ideia em duas estrofes sucessivas, nas quais só mudam
as palavras finais.
2) Leixa-pren: repetição dos segundos versos de um par de estrofes como primeiros versos
do par seguinte.
3) Refrão: verso ou versos repetidos ao final de cada estrofe.

A seu turno, as cantigas de amor exprimem um sentimento masculino


e são ambientadas em palácios. Sua origem é provençal e mostram um homem
apaixonado, na condição de vassalagem, ou seja, apaixonado por uma dama de
classe social superior. Eis por que, nestas cantigas, o tratamento dado pelo eu
lírico masculino à dama é “senhor” (senhora). Estes homens (eu lírico) vivem
uma paixão insatisfeita, pois não são correspondidos pelas mulheres amadas,
o que ocasiona sofrimento amoroso. Diante disto, por vezes, estes homens se
colocam em situação de serventia.

NOTA

Caro/a acadêmico/a, quando falamos em origem provençal, fazemos referência


à região da Provença, sul da França, ou seja, alguém que é natural ou habitante desta região,
bem como àquilo que é originário desta região.

23
UNIDADE 1 | LITERATURA PORTUGUESA: ORIGENS E ESCOLAS LITERÁRIAS DO PERÍODO MEDIEVAL

A mulher cantada pelos trovadores nas cantigas de amor é idealizada,


é alguém dotada de perfeição, não possuidora de defeitos, é colocada acima de
todas as coisas. A mulher amada é alguém inacessível, que parece não atender aos
seus apelos, principalmente porque é superior (nobre), enquanto ele (o homem
que ama), um fidalgo, um decaído. Na caracterização das cantigas, importante
que se faça eco às palavras de Massaud Moisés: “Os apelos do trovador a colocam
no alto (a mulher), num plano de espiritualidade, de idealidade ou contemplação
platônica, mas que se entranham no mais fundo dos sentidos.” (2008, p. 25). Vê-
se, assim, que o poeta sofre; seu sofrimento é pior que a morte, e o amor é sua
única razão de viver.

Atente-se, a seguir, aos dois exemplos de cantigas de amor:

1) Cantiga da Ribeirinha
(Paio Soares de Taveirós)

No mundo non me sei parelha


mentre me for como me vai,
cá já moiro por vós-e ai!
mia senhor branca e vermelha,
queredes que vos retraia
quando vos eu vi em saia!
Mau dia me levantei,
que vos entom no vi fea!

E, mia senhor, dês aquel di’, ai!


Me foi a mi mui mal,
e vós, filha de Don Paai
Moniz, e bem vos semelha
d’aver eu por vós guarvaia,
pois eu, mia senhor, d’alfaia
nunca de vós houve nem ei
valia d’ua correa.

FONTE: Braga (2005, p. 182)

24
TÓPICO 2 | O PERÍODO MEDIEVAL: A POESIA E A PROSA TROVADORESCA

NOTA

Veja-se como ficaria a tradução, para o português moderno, da “Cantiga da


Ribeirinha”, efetuada pelo professor Stélio Furlan, da UFSC – Universidade Federal de Santa
Catarina:

No mundo ninguém se assemelha a mim


enquanto a minha continuar como vai,
porque morro por vós, e ai!
Minha senhora de pele alva e faces rosadas,
quereis que vos retrate (que me afaste)
quando vos vi em manto! (na intimidade)
Maldito dia! Me levantei
que não vos vi feia!

E, minha senhora, desde aquele dia, ai!


Tudo me foi muito mal,
e vós, filha de Don Pai
Moniz, e bem vos parece
de ter eu por vós guarvaia,
pois eu, minha senhora, como mimo
nunca de vós recebe
algo, mesmo sem valor.

2) Tão grave dia


(D. Afonso Sanches)

Tam grave dia que vos conhoci


por quanto mal me vem por vós, senhor!
Ca ma vem coita, nunca vi mayor,
sem outro bem, por vós, senhor, des i
por este mal que mh’a mim por vós vem,
como se fosse bem, vem-me por em
gran mal a quem nunca o mereci.

Ca, mia senhor, porque vos eu servi,


sempre digo que sode’la milhor
do mund’e trobo polo vosso amor,
que me fazedes gram bem e assy
veedd’ora mha senhor do bom sen,
este bem tal se cumpre em mi rrem,
senon, se valedes vós mays per y.

25
UNIDADE 1 | LITERATURA PORTUGUESA: ORIGENS E ESCOLAS LITERÁRIAS DO PERÍODO MEDIEVAL

Mais eu, senhor, em mal dia naci,


del que non tem, nem é conhecedor
do vosso bem, a que non fez valor
Deus de lho dar, que lhy fezo bem y,
per, senhor, assy me venha bem,
deste gram bem, que El por bem non tem,
muy pouco Del seria grand’a mi.

Poys, mha senhor, razon é, quand’alguen


serv’e non pede, já que rem lhi den;
eu servi sempr’e nunca vos pedi.

FONTE: Braga (2005, p. 183)

Nesta cantiga, importante observar a presença de um tipo de


comportamento comedido por parte do eu lírico, caracterizado pela obediência
à senhora, o desejo de servi-la, o que serviria para retratar o amor cortês,
característica importante da poesia trovadoresca. Vê-se clara a presença do eu
lírico que confessa seu amor pela mulher amada, assumindo que ela é superior
a ele, afirmando que nada quer, a não ser viver o seu próprio sentimento, sem
interesse. Porém, fica sentido porque ela não corresponde aos seus amores.

NOTA

Em vários momentos, caro/a acadêmico/a, durante o nosso estudo das cantigas


até aqui, citamos os trovadores. Ao que parece, na lírica medieval, o trovador era o artista de
origem nobre do sul da França que, geralmente acompanhado de instrumentos musicais,
como o alaúde ou a cistre, compunha e entoava cantigas. Já nos nossos dias trovador é
entendido como aquele que divulga, cantando ou declamando, poemas próprios ou alheios
(a referência é feita a qualquer poeta).

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TÓPICO 2 | O PERÍODO MEDIEVAL: A POESIA E A PROSA TROVADORESCA

FIGURA 4 – MULHER MEDIEVAL

FONTE: Duby; Perrot (1990, p. 26)

2.2 CANTIGAS DE GÊNERO SATÍRICO


No que se refere às cantigas de gênero satírico, nestas o eu lírico tem o
objetivo de criticar o outro, procurando ridicularizar essa pessoa de forma sutil
ou grosseira. Há, dentro desse gênero, dois tipos de cantigas: as de escárnio e as
de maldizer. As cantigas de escárnio encerram um tipo de ironia que é realizada
por meio do sarcasmo, valendo-se de uma linguagem de sentido ambíguo, velada,
mas sem deixar de lado certo humor. O objetivo sempre é satirizar alguém ou
então comentar jocosamente alguma situação.

NOTA

Ao falarmos em jocoso, amigo/a acadêmico/a, segundo o Dicionário Houaiss,


fazemos referência àquilo que provoca o riso, que é engraçado, divertido, cômico.

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UNIDADE 1 | LITERATURA PORTUGUESA: ORIGENS E ESCOLAS LITERÁRIAS DO PERÍODO MEDIEVAL

De um modo geral, poder-se-ia até pensar o escárnio como uma zombaria,


uma forma de menosprezo, de desdém. Ao escarnecer, o trovador jamais
revela o nome do destinatário da crítica (sátira) e não utiliza também palavrões
exagerados. Veja-se, a seguir, um exemplo de cantiga em que a pessoa satirizada
não é nomeada:

Cantiga de escárnio
(João Garcia de Guilhade)

Ai, dona fea! Fostes-vos queixar


Que vos nunca louv’em meu trobar;
Mais ora quero fazer um cantar
Em que vos loarei toda via
e vedes como vos quero loar:
dona fea, velha e sandia!

Ai dona fea! Se Deus me perdon!


E pois havedes tan gran coraçon
Que vos eu loe em esta razon,
Vos quero já loar toda via;
E vedes qual será a loaçon:
Dona fea, velha e sandia!

Dona fea, nunca vos eu loei


Em meu trobar, pero muito trobei;
Mais ora já um bom cantar farei
Em que vos loarei toda via;
E direi-vos como vos loarei:
Dona fea, velha e sandia!

FONTE: Braga (2005, p. 191)

Já as cantigas de maldizer satirizam de modo mais agressivo, de


modo direto, mais desvelado. Mais do que isto, o cunho destas cantigas é até
difamatório, ocorrendo, inclusive, uma intenção de vituperar, com o uso de
palavrões e xingamentos. Dito de outro modo, as cantigas de maldizer seriam
como uma espécie de praga proferida contra alguém em específico para provocar
maledicência e injúria.

Ao efetuar uma sátira com uma cantiga, neste caso com a de maldizer, isto
se dava de modo direto, ocorrendo citação explícita dos nomes das pessoas em
questão. Estas cantigas valiam-se, entre muitos, de temas como o amor interesseiro
ou ilícito, o adultério, temas da política. Os assuntos tratados nestas cantigas, na
época, despertavam grandes comentários por parte do público e possivelmente
também entre os trovadores.

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TÓPICO 2 | O PERÍODO MEDIEVAL: A POESIA E A PROSA TROVADORESCA

Tais sátiras atingiam a vida social e a política da época, valendo-se de um


tom de irreverência e vasta riqueza, haja vista seu considerável vocabulário, em
muitos casos, o uso de trocadilhos, o que conferia certa riqueza em termos de
recursos poéticos, e, de um modo geral, havia a fuga às normas rígidas adotadas
nas cantigas de amor.

Caro/a acadêmico/a, veja a seguir um exemplo de cantiga de maldizer.


Procure você mesmo/a analisar o modo de elaboração, o assunto tratado, o nome
da pessoa satirizada, o uso de certos “palavrões”, tipo de crítica efetuado pelo
autor-trovador Afonso Eanes do Coton. Coloque-se no lugar dos cidadãos da
época. Será que você, vivendo na época deste autor, seria uma pessoa que gostaria
de tê-lo como inimigo?

Bem me cuidei

Bem me cuidei eu, Maria Garcia,


em outro dia, quando vos fodi,
que me non partiss’eu de vós assi
como me parti já, mão vazia,
vel por serviço muito que vos fiz;
que me non deste, como x’omen diz,
sequer um soldo que ceass’um dia.

Mais desta seerei eu escarmentado


de nunca foder já outra tal molher,
se m’ant’algo na mão non poser,
ca non ei porque foda endoado;
sabedes como: ide-o fazer
com quen teverdes vistid’e calçado.

Ca me non vistides nem me calçades


nem ar sel’eu enovosso casal,
nen avedes sobre min non pagades;
ante mui bem e mais vos en direi:
nulho medo, grad’a Deus, e a El-Rei,
non ei de força que me vós façades.

E, mia dona, quen pregunta non erra;


e vós, por Deus, mandade preguntar
polos naturaes deste logar
se foderan nunca em paz nen em guerra,
ergo se foi por alg’ou por amor.
Id’adubar vossa prol, ai senhor,
c’avedes, grad’a Deus, renda na terra.

FONTE: Braga (2005, p. 191)

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UNIDADE 1 | LITERATURA PORTUGUESA: ORIGENS E ESCOLAS LITERÁRIAS DO PERÍODO MEDIEVAL

NOTA

Caro/a acadêmico/a, para seu melhor entendimento da cantiga, eis um


pequeno glossário para uma melhor elucidação da cantiga:
vel: em troca de; como x’omen diz: como se diz; ceass’: suficiente; seerei: sairei; se m’ant’algo:
antes me algo; ca: pois; ei: hei, há; endoado: de graça; teverdes: tiverdes; vistid’e: vestido;
nem ar: novamente: eno: na; vosso casal: vossa casa; nen avedes: tendes; nulho: nenhum;
grad’a: graças; ergo: salvo.

Como você teve a oportunidade de perceber, a cantiga revela um trovador


(ou o autor da poesia) que se lamenta com a mulher – Maria Garcia – pelo fato de
lhe ter prestado serviços prazerosos (sexuais) e, no caso dela, nada lhe ofereceu
como retorno (pagamento, troca), seja dinheiro, seja roupa. Por esse motivo, ele
diz que não repetirá tal favor. Diz ainda que ela, sob nenhuma hipótese poderia
obrigá-lo a tal ação. E mais, afirma que não existe força que o obrigue a prestar-
lhe tal obséquio. O homem revela à mulher (Maria Garcia) que nenhum homem
se presta a isso gratuitamente, salvo quando se trata de amor.

Retornando ao argumento central deste capítulo, poder-se-ia dizer


que, de um modo geral, as cantigas de cunho satírico (de escárnio e maldizer)
apresentam, acima de tudo, um interesse histórico, principalmente por tratar-se
de textos que conseguem documentar a vida social da época, notadamente da
corte. Tais textos trazem à tona as reações dos cidadãos frente a certos fatos da
vida política, desnudam detalhes da vida íntima das classes aristocráticas, dos
próprios trovadores e dos jograis, enfim, fazem chegar aos nossos dias “fofocas”
e desvelam vícios considerados muitas vezes ocultos da sociedade portuguesa
medieval.

Após os estudos que você teve oportunidade de efetuar acerca das


cantigas de escárnio e maldizer, é muito oportuno que se dê voz ao crítico de
literatura Massaud Moisés (2008), o qual nos oferece algumas palavras valiosas
acerca deste tipo de cantigas:

Essas duas formas de cantiga satírica, não raro escritas pelos próprios
trovadores que compunham a poesia lírico-amorosa, expressavam, como é fácil
de depreender, o modo de sentir e de viver peculiares de ambientes dissolutos, e
acabaram por ser canções de vida boêmia e marginal, que encontrava nos meios
frascários e tabernários o seu lugar ideal. A linguagem em que eram vazadas
admitia, por isso, expressões licenciosas ou de baixo calão: poesia “maldita”,
descambando para a pornografia ou o mau gosto, possui escasso valor estético,
mas em contrapartida documenta os meios populares do tempo, na sua linguagem
e nos seus costumes, com uma flagrância de reportagem viva.

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TÓPICO 2 | O PERÍODO MEDIEVAL: A POESIA E A PROSA TROVADORESCA

“Visto constituir um tipo de poesia cultivado notadamente por jograis


de má vida, era natural que propiciasse e estimulasse o acompanhamento
de soldadeiras (= mulheres a soldo), cantadeiras e bailadeiras, cuja vida atirada e
dissoluta fazia coro com as chulices presentes nos versos das canções.” (MOISÉS,
2008, p. 28).

Isto posto, há que se ressaltar que, com o transcorrer do tempo, a sociedade


e a economia portuguesas se desenvolveram, modificando-se consequentemente.
Atrelada a estas mudanças, veio também a transformação da arte, da literatura.
Transitava, assim, a Península Ibérica, de uma estrutura tipicamente feudal para
um sistema econômico mercantil, com a consequente valorização da vida cortês
(principalmente no reinado de D. Dinis – 1279-1325), a criação das primeiras
universidades, a sustentação do espírito guerreiro e aventureiro do tempo das
lutas pela Reconquista, a grande influência que o clero exercia: todo este conjunto
de situações fomenta e cria as condições ideais para que se desenvolva, dentro da
literatura portuguesa, a prosa, entre os séculos XII e XIV.

A prosa medieval portuguesa se manifesta primeiramente através das
chamadas novelas de cavalaria, as quais têm sua origem na França e derivam das
canções de gesta – poemas da Idade Média, cantados em linguagem popular e
que retratavam os feitos heroicos dos guerreiros. Dentro da literatura portuguesa,
têm grande destaque enquanto obras de ficção escritas em prosa.

As Novelas de Cavalaria marcam a segunda etapa da literatura portuguesa


do período medieval, as quais, caro/a acadêmico/a, você terá o prazer de estudar
na seção a seguir.

3 AS NOVELAS DE CAVALARIA
O desenvolvimento da vida cortesã e do amor cortesão na Europa,
principalmente na França e na Inglaterra, a partir do século XII, impulsionou a
difusão das novelas de cavalaria. Estas têm sua origem nas canções de gesta, a
saber, poemas que tratam de aventuras de guerreiros. Transformados em prosa,
foram traduzidos para diferentes línguas e rapidamente ganharam popularidade
em toda a Europa, chegando também a Portugal.

A tradição europeia da cavalaria estava em franca decadência e obteve
nestas narrativas a sua compensação, já que estas novelas tratavam justamente
de aventuras de cavaleiros andantes. Neste ponto, a respeito destas narrativas,
poder-se-ia afirmar que se trata de uma “[...] novela a serviço do movimento
renovador do espírito da cavalaria andante, nela o herói também está a serviço,
não do senhor feudal, mas de sua salvação sobrenatural: uma brisa de teologismo
varre a narrativa de ponta a ponta” (MOISÉS, 2008, p. 37). Ou seja, estas narrativas
trazem em si traços de misticismo, de um desejo claro do herói pela busca de
perfeição, pelo alcance de um ideal utópico de vida.

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UNIDADE 1 | LITERATURA PORTUGUESA: ORIGENS E ESCOLAS LITERÁRIAS DO PERÍODO MEDIEVAL

Nas narrativas destes cavaleiros, os heróis (cavaleiros) são sempre valentes,


cuja vida é posta em constante perigo, o que destaca a coragem e o destemor destes
valentes jovens heróis. Estes se colocam a serviço de belas damas e envolvem-se
em aventuras amorosas, o que excita ainda mais os leitores medievais.

Estas aventuras amorosas perigosas destes destemidos guerreiros


caracterizam o amor cortesão (ou fino amor). Este tipo de amor desenvolve-se
geralmente fora do casamento, um amor que geralmente não se efetiva no plano
real, pois é um amor virtual, adúltero. O cavaleiro geralmente se coloca diante
da mulher como se estivesse diante de seu rei ou seu senhor, numa situação de
vassalagem amorosa. Não raro, tal amor revela uma mulher que se encontra num
patamar superior e inacessível, e um homem em situação de serventia (vassalo),
como nas cantigas de amor.

Essa ideologia de amor cortesão mantém-se viva até fins do século


XV, para ser retomado “[...] por uma forma absolutamente nova, o romance”
(LUKÁCS, 2000, p. 39). O romance romântico tenta reaver nas suas narrativas o
modelo cortesão, via mulher idealizada, amor platônico, sofrimento, final feliz.

NOTA

Caro/a acadêmico/a! A propósito dos cavaleiros e suas aventuras, você poderia


assistir a filmes como Excalibur, As Brumas de Avalon, Lancelot, entre os muitos que existem.
Observe como são retratados os cavaleiros, as mulheres, as aventuras amorosas nas aventuras
dos cavaleiros andantes.

Para retomar o assunto que constitui o filão deste capítulo, muitas


personagens citadas nas novelas de cavalaria tornaram-se famosas, e entre estas
citem-se Lancelot, Tristão, Isolda, Galaaz. Em todos eles, observa-se a presença
de um guerreiro concebido pela Igreja: herói casto, fiel, dedicado, escolhido para
uma peregrinação mística, em luta por Deus e por sua dama.

Ainda dentro do assunto das novelas, em vista de uma questão didática,


convencionou-se dividi-las em ciclos, como é demonstrado no quadro que segue:

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TÓPICO 2 | O PERÍODO MEDIEVAL: A POESIA E A PROSA TROVADORESCA

QUADRO 1 – DIVISÃO DA NOVELA EM CICLOS

CICLO ÉPOCA CARACTERÍSTICAS OBRAS

Carolíngio Império de As novelas tratam das batalhas Canção de Rolando,


Carlos Magno entre os muçulmanos e os saxões, Crônica de Turpin e
as aventuras de Carlos Magno e Maynete.
Os Doze Pares de França.
Clássico Império de Abordam temas retomados Romance de Tebas,
Alexandre da antiguidade greco-romana Romance de Troia,
Magno (Troia, vida de Alexandre, Romance de Eneias.
aventuras de Eneias.
Bretão ou Século XII Exaltação religiosa, lirismo, José de Arimateia,
arturiano sentimentalismo, devoção História de Merlim,
amorosa. A Demanda do
Santo Graal.
FONTE: O autor

Caro/a acadêmico/a, com o intuito de instigar o espírito da leitura,


oferecemos, a seguir, o resumo comentado de uma das novelas do Ciclo Clássico,
Romance de Troia. Leia-o para sentir-se impelido/a à leitura de mais textos destas
novelas.

ROMANCE DE TROIA

O Romance de Troia, que se compõe de mais ou menos trinta mil versos,


remonta ao ano de 1160, cuja autoria pertenceria, segundo alguns pesquisadores,
ao trovador Benoît de Sainte-Maure. O poema presta uma homenagem à obra de
Homero, nomeadamente, à Ilíada e à Odisseia, dois poemas épicos da Antiguidade
clássica grega, cujos temas heroicos fazem parte da origem desta obra.

E aqui poderia ser lembrada a intertextualidade, que se caracteriza por


relações que um texto mantém com outros textos que o precedem. Neste caso, o
Romance de Troia é antecedido pela Ilíada e pela Odisseia, o que permite dizer
que existe uma relação intertextual entre ambos.

Retornando ao assunto do romance, o termo roman, na França, designava,


nessa época, uma narração em verso e, mais tarde, em prosa escrita, em romance
ou romanço, e contava as aventuras fabulosas ou os amores de heróis imaginários
ou idealizados. Ao contrário das canções de gesta, que eram para ser cantadas, os
romances eram para ser lidos, em voz alta, perante um grupo de pessoas.

O Romance de Troia é um dos primeiros romances medievais, escritos


no reino de Leonor de Aquitânia, que se debruça sobre as lendas e os mitos da
Antiguidade. O Romance de Troia distingue-se pela narrativa de índole política

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UNIDADE 1 | LITERATURA PORTUGUESA: ORIGENS E ESCOLAS LITERÁRIAS DO PERÍODO MEDIEVAL

e pela importância e desenvolvimento dados ao amor cortês, e incide sobre a


inevitável destruição que provocam as forças irracionais da Fortuna e do Amor,
os deuses que simbolizam o destino e o amor.

Esta obra relata a queda de Troia desde a sua origem, a partir dos erros
do rei Laomedon, ao ser incorreto para com Hércules e Jasão, até a destruição
final da cidade. Inclui as quatro histórias de amor: Jasão e Medeia, Páris e Helena,
Troilos e Briseida (que inspirou vários escritores, como Boccaccio e Shakespeare)
e Aquiles e Polixena. A história de amor de Aquiles por Polixena conta a paixão
irracional do grego pela troiana, que aquele conheceu na altura do resgate do
corpo do troiano Heitor. Aquiles, que tinha vingado a morte do amigo Pátroclo,
com a morte de Heitor, recusava-se a devolver o corpo do troiano à família.
Numa comitiva troiana para resgatar o corpo de Heitor, encontrava-se Polixena,
uma das filhas de Príamo, por quem Aquiles se apaixonou. Querendo casar
com a jovem, Aquiles prometeu enganar os gregos e aliar-se aos troianos com a
finalidade de obter o consentimento de Príamo. Numa emboscada, Aquiles foi
morto por Páris, irmão de Polixena, e os troianos recuperaram o corpo de Heitor.
Exigiram, então, que os gregos resgatassem o corpo de Aquiles. Esta é uma das
versões da morte de Aquiles que surgiu, tardiamente, em relação à Ilíada. Outras
acrescentaram que, antes da partida dos gregos, Polixena foi sacrificada sobre o
túmulo de Aquiles, em memória do herói.

O Romance de Troia revela o interesse que os governantes medievais


tinham pela mítica cidade que acreditavam ter existido e que estaria na origem
do Império Romano. As Cruzadas contribuíram também para este renovado
interesse sobre a Antiguidade Clássica e para a criação de histórias de amor,
paixão, ambição, guerra e política que tinham lugar no Oriente. Estes romances,
inspirados na cultura e nos ideais cortesãos, ressuscitaram as lendas clássicas,
acrescentando-lhes pormenores, análises e comentários relativamente aos
personagens e feitos.

FONTE: Adaptado de: Romance de Troia. In: Infopédia. Porto: Porto Editora, 2003.
Disponível em: <www.infopedia.pt/$romance-de-troia>. Acesso em: 20 out. 2010.

Em síntese, no que se refere às novelas mais conhecidas, temos as lendas


do Rei Artur e os Cavaleiros da Távola Redonda. O rei Artur tenta congregar sob
seu comando cristãos e celtas, ao redor de uma mesa redonda – Távola Redonda
– sem lugar principal (por isso redonda), a exemplo da mesa de Santa Ceia de
Jesus Cristo, revelando a igualdade entre seus membros. Os cavaleiros principais
seriam doze – como os apóstolos – e o mestre deles, Rei Artur, no papel de
Cristo, representando o que é bom, santo e belo. O reino do Rei Artur, Camelot,
cujo governo estava sob o comandado de uma figura masculina, opunha-se a
Avalon, geralmente um lugar desconhecido, além do mar, sempre encoberto
pelas brumas, sob o governo de mulheres iniciadas nos mistérios da mente, que
podiam prever o futuro. O acesso a este misterioso lugar era exclusividade das
sacerdotisas celtas e do Mago Merlim.

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TÓPICO 2 | O PERÍODO MEDIEVAL: A POESIA E A PROSA TROVADORESCA

FIGURA 5 – OS CAVALEIROS DA TÁVOLA REDONDA

FONTE: De Giovanni (2007, p. 25)

Já a narrativa da Demanda do Santo Graal faz menção à lenda de José de


Arimateia e como ele recolheu o sangue que Cristo verteu no momento de sua
crucificação. Conta a história que o cavaleiro Percival vislumbra o cálice sagrado
em que José de Arimateia depositara o sangue que escorreu do corpo de Jesus
quando estava agonizando na cruz. Este cálice seria também o mesmo com que o
Messias bebera na sua última ceia.

José de Arimateia, mais tarde, foi preso e libertado. Após muitas idas e
vindas em viagens, instalou-se na Inglaterra e escondeu o cálice (Santo Graal)
na floresta de Corberic. Os cavaleiros que estão à procura do Santo Graal são ao
todo 150, mas somente o cavaleiro Galaaz consegue encontrá-lo, pois era virgem e
puro de coração (ele nunca “conhecera” intimamente uma mulher). Assim, pode-
se perceber que, na Demanda do Santo Graal, o amor é pecaminoso, enquanto na
lírica o amor é caminho para a felicidade. Tem-se, assim, uma inversão de valores.
A procura pelo cálice sagrado, aos poucos, tornou-se o centro da imaginação
cavaleiresca.

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UNIDADE 1 | LITERATURA PORTUGUESA: ORIGENS E ESCOLAS LITERÁRIAS DO PERÍODO MEDIEVAL

FIGURA 6 – VERSÃO CRISTÃ DO SANTO GRAAL CATEDRAL DE VALÊNCIA

FONTE: De Giovanni (2007, p. 27)

Um dos primeiros textos em prosa conhecidos em Portugal é a novela de


cavalaria Amadis de Gaula, a qual oferece o paradigma do verdadeiro cavaleiro,
ou seja, o tímido herói apaixonado pela donzela, no caso Oriana. Diferentemente
das demais narrativas acerca do Rei Artur, em Amadis de Gaula, o leitor não
se vê diante de um amor adúltero, mas, sim, um amor entre solteiros (tanto
Amadis quanto Oriana eram livres). Portanto, não mais o amor se encontra no
plano idealístico, platônico, mas sai deste plano para passar à esfera do físico.
Assim, poder-se-ia dizer que em Amadis de Gaula está o prenúncio do homem
renascentista e suas inquietações. Amadis é um herói valente, viril, mas, por outro
lado, doente de amor por Oriana. A propósito do par de namorados em questão,
faça-se eco ao comentário de Massaud Moisés (2008, p. 62):

O cavaleiro humaniza-se, desce à realidade cotidiana, a ponto de [...]


casar-se sacramentalmente, embora em segredo, para oficializar a
antiga relação amorosa com Oriana. Nascem daí os conflitos que agitam
Amadis, não os padronizados pela tradição, mas os dum ser humano
complexo, denso psicologicamente: o homem medieval começava a
ceder vez ao homem concebido segundo os valores renascentistas,
que então entravam a predominar. Amadis anuncia o herói moderno,
de largo curso e influência no século XV e XVI, servindo de elo entre
um mundo que mergulhava no ocaso, a Idade Média, e o outro que
despontava, a Renascença.

Neste comentário, Moisés esclarece que, embora seja uma novela medieval,
no seu texto encontram-se muitas marcas humanistas, o que faz a crítica acreditar
num período de transição dos conceitos medievais para um período renascentista.
Muitos críticos também afirmam que Amadis de Gaula foi a novela de cavalaria
de maior expressão e importância escrita na Península Ibérica, embora nunca se
tenha encontrado o verdadeiro autor e o texto original em português.

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TÓPICO 2 | O PERÍODO MEDIEVAL: A POESIA E A PROSA TROVADORESCA

No texto de Amadis de Gaula, são abordados temas como fidelidade


à mulher amada, o desejo físico em flagrante oposição ao platonismo, o
sentimentalismo e a timidez do herói, o amor cortês palaciano, as lutas e o ideal
guerreiro, o sensualismo evidente, o desejo carnal masculino e o desejo carnal
feminino – presente em Oriana.

Por fim, tanto Amadis como outros personagens homens representam


o ideal cavaleiresco e continuamente envolvem-se em aventuras, na defesa
de um reino, de uma mulher, uma causa e apresentam ao mesmo tempo um
comportamento cavalheiresco, haja vista adotarem uma conduta de gentis-
homens em suas conquistas amorosas. É a aventura e a emoção andando de mãos
dadas.

Caro/a acadêmico/a, aproveite para ler um trecho da novela Amadis de


Gaula, apresentado a seguir:

COMBATES DE AMADIS E SALVAÇÃO DE ORIANA

Quando o outro cavaleiro viu tal destruição em seus companheiros,


começou de fugir quanto mais podia. Amadis, que ia em pós ele, ouviu gritar
a sua senhora; e, tornando prestes, viu Arcalaus já montado, tomando Oriana
pelo braço, pô-la em frente a si e fugiu a todo galope. Sem detença, correu
em sua perseguição, alcanço-o na larga campina e alçou a espada para o
ferir. Sofreu-se, porém, de lhe dar grande golpe, porque a espada era tal que,
matando-o a ele, mataria sua senhora. Descarregou-lho por cima das espáduas,
sem grande força; mas ainda lhe derribou um pedaço de loriga e um pouco de
couro dos lombos.

Então, Arcalaus, para melhor fugir, deixou cair por terra Oriana, com
temor da morte.

Amadis gritou-lhe:

– Arcalaus! Vem cá, e verás se estou morto como disseste!

Mas ele não quis ouvir e lançou fora o escudo. Amadis alcançou-o e
deu-lhe de longe uma espadeirada na cinta, que lhe cortou a loriga e a carne e
foi tocar na ilharga do cavalo. O animal amedrontado começou a correr de tal
forma, que em pouco tempo se alongou a perder de vista.

Amadis, ainda que muito o desamasse e desejasse matar, não foi mais
adiante para não perder a sua senhora, e voltou para onde ela estava. Desceu
do cavalo, foi-se por de joelhos diante dela, beijou-lhe as mãos e disse:

– Agora, faça Deus de mim o que quiser, que nunca, senhora, cuidei
tornar a ver-vos!

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UNIDADE 1 | LITERATURA PORTUGUESA: ORIGENS E ESCOLAS LITERÁRIAS DO PERÍODO MEDIEVAL

Oriana estava tão sobressaltada que não lhe podia falar; e abraçou-se
com ele, com medo que tinha dos cavaleiros mortos, que jaziam a seus pés. A
donzela de Dinamarca foi tomar o cavalo de Amadis; vendo por terra a espada
de Arcalaus, pegou nela e trouxe-lhe dizendo:

– Vede, senhor, que formosa espada!

Amadis atentou nela e viu que era aquela com que o tinham deitado ao
mar, e que Arcalaus lhe furtara, ao encantá-lo.

Estando assim, como ouvis, sentado junto de sua senhora, que não
tinha ânimo para se levantar, chegou Gandalim, que andara toda a noite, e com
que sentiram grande prazer. Também ele o sentiu, vendo o bom fim daquelas
coisas.

FONTE: BARROS, João de. Amadis de Gaula. Tradução de Rodrigues Lapa. Lisboa: Gráfica
Lisbonense, 1941. p. 36-37.

Após se tratar, na presente seção, das novelas de cavalaria, efetuar-se-


ão comentários (em algumas linhas somente, em virtude da escassez de espaço
e tempo) acerca de três destas narrativas, e poder-se-ia dizer, consideradas
principais, à guisa de conclusão, que elas foram grandes influenciadoras do
romantismo português e brasileiro. Temas a exemplo do amor cortês, do
cavalheirismo, do amor platônico, da pureza, da nobreza de caráter, da virtude,
da lealdade, da religiosidade, do endeusamento da figura feminina são marcantes
dentro do romantismo.

E aqui valeria a pena trazer à baila o crítico Massaud Moisés (2008, p. 37),
o qual, referindo-se às novelas de cavalaria, não hesita em classificá-las como
de “[...] alto vigor narrativo e de elevada intenção” no que concerne a mostrar a
imagem mística da idade medieval. Continua ainda o citado crítico classificando
estas narrativas como sendo “[...] o maior monumento literário que a época
nos legou no campo da ficção: exprime um utópico ideal de vida numa forma
artisticamente elaborada, a ponto de alcançar um raro grau de perfeição estética
na prosa do tempo”.

Então, caro/a acadêmico/a, você certamente se deparará com estes temas


ao estudar a estética do romantismo, na terceira unidade. Finaliza-se, assim, o
segundo tópico. No próximo, tratar-se-á da poesia, do teatro e da prosa humanista.

38
TÓPICO 2 | O PERÍODO MEDIEVAL: A POESIA E A PROSA TROVADORESCA

NOTA

Caro/a acadêmico/a, a título de melhor fixar o conteúdo das novelas de


cavalaria, propomos que você assista ao filme “Excalibur” (1981). Direção de John Boormann.
Com Nigel Terry, Helen Mirren, Nicol Williamson. Procure observar o enredo e perceber
como é feita a referência às Novelas de Cavalaria.

39
RESUMO DO TÓPICO 2

Caro/a acadêmico/a, no presente tópico, você teve oportunidade de


estudar aspectos importantes relacionados à Literatura Portuguesa, os quais
revemos, resumidamente, a seguir:

• O início da literatura portuguesa traz a marca do lirismo trovadoresco.

• Dois períodos marcam o surgimento da literatura portuguesa: o primeiro,


lírico, que cultivou a poesia lírica (cantigas), e o segundo, a prosa, trazendo as
novelas de cavalaria, originárias das canções de gesta.

• O primeiro período da literatura portuguesa, marcado pelo florescimento das


chamadas cantigas, recebe o nome de Trovadorismo, por serem estas cantigas
poemas criados com o objetivo de que fossem cantados. Há quem atribua a
origem deste tipo de poesia ao movimento das cruzadas, já que os fiéis se
encontravam em Lisboa, que era a área portuária mais próxima para embarcar
com destino a Jerusalém.

• Um papel fundamental era desempenhado pelos jograis, já que estes eram


como que os atuais artistas ambulantes, que animavam festas, romarias, feiras,
torneios, valendo-se, para isto, das melodias e canções. Por não haver intenção
de registrá-las, muitas das cantigas foram perdidas.

• As cantigas de amigo caracterizam-se pela expressão do sentimento feminino,


apesar de terem autoria masculina. O poeta assume o papel do eu lírico
feminino, fazendo, via tal estratagema, esta “mulher” confidências à pessoa
amada.

• As cantigas de amor exprimem um sentimento masculino e são ambientadas


em palácios. Sua origem é provençal e mostram um homem apaixonado, na
condição de vassalagem, ou seja, apaixonado por uma dama de condição social
superior. A mulher amada é alguém inacessível, que parece não atender aos
seus apelos, principalmente porque é superior (nobre), enquanto ele (o homem
que ama) um fidalgo, um decaído.

• Nas cantigas de gênero satírico, o eu lírico tem o objetivo de criticar o outro,


procurando ridicularizar essa pessoa de forma sutil ou grosseira.

• As cantigas de escárnio encerram um tipo de ironia que é realizada por meio


do sarcasmo, valendo-se de uma linguagem de sentido ambíguo, velada, mas
sem deixar de lado certo humor. O objetivo sempre é satirizar alguém ou então
comentar jocosamente alguma situação.

40
• As cantigas de maldizer satirizam de modo mais agressivo, de modo direto,
“mais descobertamente”. Mais do que isto, o cunho destas cantigas é até
difamatório, ocorrendo, inclusive, uma intenção difamatória, com o uso de
palavrões e xingamentos.

• As cantigas satíricas valiam-se de temas como o amor interesseiro ou ilícito, o


adultério, temas da política.

• As cantigas de cunho satírico (de escárnio e maldizer) apresentam, acima


de tudo, um interesse histórico, principalmente por se tratar de textos que
conseguem documentar a vida social da época, notadamente da corte.

• Estas narrativas trazem em si traços de misticismo, de um desejo claro do herói


pela busca de perfeição, pelo alcance de um ideal utópico de vida. Os heróis
(cavaleiros) colocam-se a serviço de belas damas e envolvem-se em aventuras
amorosas, o que excita ainda mais os leitores medievais.

• O cavaleiro geralmente se coloca diante da mulher como se estivesse diante de


seu rei ou seu senhor, numa situação de vassalagem amorosa.

• O romance romântico tenta reaver nas suas narrativas o modelo cortesão, via
mulher idealizada, amor platônico, sofrimento, final feliz.

• Amadis de Gaula foi a novela de cavalaria de maior expressão e importância


escrita na Península Ibérica, embora nunca se tenha encontrado o verdadeiro
autor e o texto original em português. Nesta novela, poder-se-ia dizer que está
o prenúncio do homem renascentista e suas inquietações.

41
AUTOATIVIDADE

Caro/a acadêmico/a, para que você possa melhor fixar o conteúdo


deste tópico, apresentamos, a seguir, uma atividade. Procure resolvê-la com
base no que você estudou.

1 Considere a cantiga apresentada, já transcrita em português moderno.


Leia-a e, em seguida, responda algumas questões que são apresentadas:

Com esta saudade, amigo, por Deus, amigo, abrandai


que me faz triste e coitada, a minha pena e meu mal;
já não vivo; e bem vos digo: eu vos suplico: morai,
que seja a vossa morada, amigo, onde me possais
amigo, onde me possais falar, e onde me vejais.
falar, e onde me vejais.
- Senhora, eu irei morar
Não posso, onde não vos vejo, Onde quiserdes mandar.
viver, bem o podeis crer;
e é tão grande o meu desejo (Don Dinis)
que peço: vinde viver,
amigo, onde me possais
falar, e onde me vejais.
Nasci num dia fatal:

a) Identifique o sentimento que a mulher expressa através desta cantiga.

b) Nas palavras da cantiga, tente descobrir o motivo deste sentimento.

c) Conforme é possível observar nas diferentes estrofes da cantiga, o sofrimento


aumenta gradativamente. Isto considerado, explique a diferença existente
no emprego dos seguintes verbos: dizer (“e bem vos digo”), pedir (“que
peço”) e suplicar (“eu vos suplico”).

d) Procure valer-se da parte teórica do texto para explicar as características das


cantigas de amigo que estão presentes neste texto.

2 Releia o texto “Combates de Amadis e salvação de Oriana”, no final da


terceira seção, e responda às seguintes questões:

a) Comente as semelhanças que poderiam ser observadas entre o relacionamento


cavaleiro/senhora (mostradas nesse texto) e o relacionamento trovador/
senhora, das cantigas de amor.

b) Retire do texto a passagem (ou as palavras) que demonstram que estas


narrativas (novelas) eram lidas em voz alta.

42
UNIDADE 1
TÓPICO 3

A PROSA, A POESIA E O TEATRO: A ESTÉTICA DO


HUMANISMO PORTUGUÊS

“Toda a glória de viver das gentes é


ter dinheiro, e quem muito quiser ter
cumpre-lhe de ser primeiro o mais
ruim que puder.”
(VICENTE, Gil. Auto da feira. 1527)

1 INTRODUÇÃO
Em Portugal, os séculos XIII, XIV e XV constituem um período de
renovação cultural, graças à introdução de uma nova estética literária – o
Humanismo. Este período é muito propício ao desenvolvimento da prosa, haja
vista o trabalho dos cronistas, notadamente Fernão Lopes, nomeado para o cargo
de cronista-mor da Torre do Tombo, em 1434. Ele é considerado o precursor da
crônica histórica lusitana. No que concerne ainda ao período humanista, tem-se
como uma manifestação de grande valor o teatro popular, tendo como expoente
Gil Vicente. Já a poesia, após haver conhecido um período de decadência nos
anos de 1400, começa a desenvolver-se novamente, no ambiente dos palácios,
influenciada por Dante Alighieri e Petrarca.

Em suma, esse novo período literário assinala a passagem de um país


(Portugal) marcado por valores estritamente medievais para uma nação que
traz a marca da realidade mercantil, com a ascensão dos ideais burgueses – a
economia feudal (de subsistência) é calcada pelas atividades comerciais. Além
disso, o pensamento do primeiro período medieval, que tinha como coluna
mestra a figura de Deus (teocentrismo), dá lugar a uma nova maneira de pensar,
em que a figura do homem passa a ser o centro – antropocentrismo.

Com este pensamento, que criou o ambiente propício para o surgimento de


uma nova estética literária, marcada por “uma onda de realismo, de terrenalismo,
de apego à natureza física” (MOISÉS, 2008, p. 42), passar-se-á, a seguir, a tratar
especificamente de cada uma das três manifestações literárias marcantes do
período humanista português.

43
UNIDADE 1 | LITERATURA PORTUGUESA: ORIGENS E ESCOLAS LITERÁRIAS DO PERÍODO MEDIEVAL

2 A PROSA: HISTORIOGRAFIA
Considerando-se, para início de conversa, a história de Portugal, sabe-se
que, no ano de 1418, Fernão Lopes, um dos secretários da corte real, foi designado
guarda-mor da Torre do Tombo. Este era um cargo importante e merecedor de
grande confiança, haja vista a função que lhe estava reservada – chefe dos arquivos
do Estado. E é justamente com este guarda-mor que se dá o início das crônicas
históricas de Portugal, sendo este também o nome mais expressivo da prosa da
época. Em suma, esse autor é também o criador da historiografia nacional na sua
forma cronística, isto é, a biografia de uma grande personagem ou o relato de um
grande sucesso.

NOTA

Caro/a acadêmico/a, para efeito de conhecimento, explicamos o significado de


GUARDA-MOR e CRONISTA-MOR. Guarda-mor é o posto mais alto assumido por alguém no cargo
da guarda real. Seria o mesmo que chefe do corpo da guarda do reino. Mor é o mesmo que maior.
Cronista-mor é o historiador principal, ou seja, o que tem delegação régia (do rei) para escrever a
crônica ou a história de um reino.

Por causa da probidade de suas narrativas, do seu cuidado na escolha


do material a ser escrito, da sua ordenação, a preocupação com a clareza e
composição estrutural da obra, entre outras qualidades, Fernão Lopes foi
denominado “pai da história portuguesa” e também de “historiador superior a
seu século”. Num comentário, expressa-se Douglas Tufano (1981, p. 32) acerca
do guarda-mor lusitano afirmando: ”[...] muito cauteloso ao confrontar textos,
ao interpretar episódios, ao apreciar fatos, Fernão Lopes nos deixou uma lição de
ponderação diante da história que até hoje continua válida”. Sua sensibilidade,
inteligência e habilidade em concatenar fatos, dados e versões diferentes de um
mesmo episódio possibilitaram a construção de uma obra irretocável quer do
ponto de vista histórico quer literário.

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TÓPICO 3 | A PROSA, A POESIA E O TEATRO: A ESTÉTICA DO HUMANISMO PORTUGUÊS

FIGURA 7 – FERNÃO LOPES (1378-1459)

FONTE: De Giovanni (2007, p. 30)

O cronista em questão conseguiu criar a história de Portugal tomando


como base documentos, deixando de lado testemunhos duvidosos ou frágeis,
mantendo viva a chama da arte e não permitindo que prevalecesse seu ponto de
vista pessoal acerca dos fatos. Suas crônicas colocavam em cena principalmente a
nobreza, os feitos bélicos da nação lusitana. Fernão Lopes traz à baila ainda o povo,
a nação como um todo, “[...] como um organismo vivo que gesta a história de seu
país. O toque literário está nos detalhes, na constituição dos tipos psicológicos,
na focalização dos dramas e dos amores, nas batalhas internas travadas pelos
indivíduos e, sobretudo, no domínio da arte de contar histórias, mantendo o leitor
interessado e atento.” (OLIVEIRA, 2000, p. 29). Por isso, poder-se-ia dizer com
segurança que Fernão Lopes procura passar uma ideia até moderna da história,
pois, para ele, a história de uma nação não era alicerçada puramente nas façanhas
dos monarcas e cavaleiros, mas, ao contrário, também nos movimentos populares
e nas forças econômicas.

Em vista disto, o cronista-mor já apresentado, ao escrever suas crônicas de


valor histórico, buscava reconstruir o clima, o contexto tratado. Ele não dedicava
atenção somente ao ambiente da corte, mas também às aldeias, não somente aos
combates dos exércitos, mas também às revoltas que se passavam nas ruas, não
somente às alegrias das vitórias, mas também ao sofrimento das cidades sitiadas,
não somente às festas, mas também às dores. Vê-se, assim, que, no trabalho de
Fernão Lopes, prevalecia “[...] o seu interesse pelo lado humano dos fatos que
determinavam a história [...], não poupando, inclusive, críticas a reis e nobres.”
(TUFANO, 1990, p. 131).

Neste sentido, a visão de Fernão Lopes foi mais abrangente, diferentemente,


talvez, da visão de outros cronistas medievais, a qual tendia à imparcialidade
e à fragmentação. Ao contrário, ele apresenta de modo visual o panorama da
sociedade lusitana, expondo a vida palaciana e suas contradições e vícios (ele que
bem a conheceu intimamente), o movimento dos trabalhadores nas aldeias, as

45
UNIDADE 1 | LITERATURA PORTUGUESA: ORIGENS E ESCOLAS LITERÁRIAS DO PERÍODO MEDIEVAL

festas urbanas, a decadência da aristocracia, entre outros aspectos que podem ser
observados nas suas narrativas.

Por adotar um modo diferente de elaborar as crônicas historiográficas,


é justo que se concorde com Abdala Júnior e Paschoalin (1985, p. 23), quando
estes dizem, acerca de Fernão Lopes, que “[...] a essa visão de conjunto associa-
se a visão de que o povo é agente das mudanças históricas. Não há a ideia da
história factual feita por heróis individualizados. Nas crônicas não há o cavaleiro
de aventuras monárquicas”.

Por causa de toda a sua genialidade na organização dos textos, do seu


espírito crítico, da sua visão investigativa, da sua criatividade na maneira de
narrar, do valor historiográfico das suas crônicas, mereceu destaque dentro
da literatura portuguesa da Idade Média, fazendo-o, seguramente, o melhor
prosador lusitano medieval.

A título de conhecimento, caro/a acadêmico/a, aproveite para ler um


excerto de uma crônica de Fernão Lopes, o qual você já teve oportunidade de
conhecer.

RETRATO DE D. PEDRO
Fernão Lopes

Este Rei D. Pedro era muito gago, e foi sempre grande caçador e
monteiro, em sendo infante e depois que foi rei, trazendo grande casa de
caçadores e moços de monte, e de aves, e cães, de todas as maneiras que para
tais jogos eram pertencentes.

Ele era muito viandeiro, sem ser comedor mais que outro homem;
que suas salas eram de praça em todos os lugares por onde andava, fartas de
vianda, em grande abastança.

Ele foi grande criador de fidalgos de linhagem, porque naquele tempo


não se costumava ser “vassalo”, senão filho, e neto, ou bisneto de fidalgo de
linhagem; e por usança haviam então a quantia que ora chamam maravedis,
dar-se no berço, logo que o filho do fidalgo nascia, e a outro nenhum não.

Este Rei acrescentou muito nas quantias dos fidalgos, depois da morte
de el-Rei seu padre; cá, não embargando que el-Rei D. Afonso fosse comprido
de ardimento e muitas bondades, tachavam-no, porém, de ser escasso, e em
dar mui ledo; e tanto, que muitas vezes dizia que lhe afrouxassem a cinta, que
então usavam não mui apertada, para que se lhe alargasse o corpo, para mais
espaçosamente poder dar, dizendo que o dia que o rei não dava, não devia ser
havido por rei.

46
TÓPICO 3 | A PROSA, A POESIA E O TEATRO: A ESTÉTICA DO HUMANISMO PORTUGUÊS

Era ainda de bom desembargo aos que lhe requeriam bem e mercê; e tal
ordenança tinha nisto, que nenhum era detido em sua casa por cousa que lhe
requeresse.

Amava muito fazer justiça com direito. E, assim como quem faz
correição, andava pelo Reino; e, visitada uma parte, não lhe esquecia de ir ver
a outra; em guisa que poucas vezes acabava um mês em cada lugar de estada.

Foi muito mantenedor de suas leis, grande executor das sentenças


julgadas; e trabalhava quanto podia das gentes não serem gastadas por azo de
demandas e prolongados pleitos.

E se a escritura afirma que, por o Rei não fazer justiça, vêm as tempestades
e tribulações sobre o povo; não se pode assim dizer deste; pois não achamos,
enquanto reinou, que a nenhum perdoasse morte de alguma pessoa, nem que
a merecesse por outra guisa, nem lha mandasse em tal pena por que pudesse
escapar a vida.

A toda gente era galardoador dos serviços que lhe fizessem, e não
somente dos que faziam a ele, mas dos que haviam feito a seu padre; e
nunca tolheu a nenhuma cousa que lhe seu padre desse, mas mantinha-a e
acrescentava nela.

Este Rei não quis casar depois da morte de D. Inês, em sendo infante,
nem depois que reinou, lhe prouve receber mulher; mas houve amigas com
que dormiu, e de nenhuma houve filhos, salvo de uma dona, natural da Galiza,
que chamaram Dona Teresa, que pariu dele um filho que houve nome D. João,
que foi mestre de Avis em Portugal, e depois rei, como adiante ouvireis. O qual
nasceu em Lisboa, onze dias do mês de abril, às três horas depois do meio-dia,
no primeiro ano do seu reinado. E mandou-o el-Rei criar, enquanto foi pequeno,
a Lourenço Martins da Praça, um dos honrados cidadãos dessa cidade, que
morava junto com a igreja catedral, onde chamam a Praça dos Canos; e depois
o deu, que o criasse, a D. Nuno Freire de Andrade, Mestre da Cavalaria da
Ordem de Cristo.

FONTE: SPINA, Segismundo. Presença da Literatura Portuguesa – Era Medieval. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1991. p. 98-100.

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UNIDADE 1 | LITERATURA PORTUGUESA: ORIGENS E ESCOLAS LITERÁRIAS DO PERÍODO MEDIEVAL

NOTA

Caro/a acadêmico/a, importante que se apresente um pequeno glossário para


que você possa compreender melhor o texto de Fernão Lopes. Procure efetuar uma segunda
leitura da crônica, substituindo as palavras do original pelo sinônimo aqui colocado. Acredita-
se que isso permita que você tenha um melhor entendimento do texto.
Monteiro: caçador de monte; grande casa: grande quantidade; pertencentes: próprios;
viandeiro: apreciador de carnes; salas: banquetes; de praça: franqueados a todos; criador:
protetor; maravedis: remuneração dada pelos reis aos fidalgos que os serviam; não
embargado: não obstante; comprido de ardimento: bem dotado de coragem, de intrepidez;
apertamento de grandeza: mesquinhez; de bom desembargo: rápido, expedito no despacho;
correição: visita do corregedor à comarca para emendar os danos e fazer justiça; trabalhava-
se: esforçava-se; gastadas: prejudicadas; por azo: por causa; Escritura: Bíblia; tolheu: tirou,
confiscou.

Sabe-se que o exercício da função de cronista da Torre do Tombo, Fernão


Lopes o exerceu até 1454 e, entre as muitas obras que lhe são atribuídas, três
merecem destaque: Crônica d’El-Rei D. Pedro, Crônica d’El-Rei D. Fernando e
Crônica d’El-Rei D. João I. Apesar de considerado “[...] um extraordinário cronista,
iniciador da historiografia portuguesa a sério e um notável escritor (MOISÉS,
2008, p. 46), já com idade um tanto avançada, além de debilitado, Fernão Lopes
é substituído por Gomes Eanes de Zurara, o qual figura entre os cronistas que
legaram escritos que contribuíram para compor a historiografia lusitana. Sua obra
mais expressiva é a Crônica da Tomada de Ceuta, Crônica dos Feitos da Guiné,
Crônica de D. Pedro de Meneses e Crônica de D. Duarte de Meneses. Merecem
reconhecimento também Vasco Fernandes de Lucena, do qual nenhuma obra se
conhece, talvez porque deixa o cargo sem nada escrever, Rui de Pina, que deixou
muitas crônicas, merecendo destaque a Crônica de D. Duarte, Crônica de D.
Afonso e a Crônica de D. João II.

Apesar de terem desempenhado a mesma função de Lopes, nenhum


outro cronista conseguiu atingir a genialidade do primeiro cronista-mor. Por isso,
a obra destes é considerada de menor importância em termos literários, inclusive
por apresentar pouca expressividade em termos de renovação.

3 A PROSA DIDÁTICA
Há que se pensar, no entanto, que não foi somente a crônica histórica que
abrilhantou literariamente o segundo período medieval lusitano. Importantes
contribuições trouxeram também a prosa didática, a qual se constitui
principalmente de textos doutrinários compostos ou traduzidos pela nobreza.

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TÓPICO 3 | A PROSA, A POESIA E O TEATRO: A ESTÉTICA DO HUMANISMO PORTUGUÊS

Este tipo de literatura desenvolveu-se principalmente durante os reinados


de D. João I, D. Duarte e a regência de D. Pedro, períodos estes em que houve
grande preocupação com o desenvolvimento da cultura de um modo geral. Neste
sentido, vale lembrar a preocupação dos príncipes na organização de bibliotecas
e com a escrita, já que muitos destes apresentaram certo interesse pela leitura.

Na prosa doutrinária, muito importante é mencionar-se a predominância


dos temas religiosos e morais sobre os poéticos. E aqui valeria lembrar-se da
encomenda da tradução de muitas obras estrangeiras, principalmente por
iniciativa da nobreza mais culta que governava Portugal neste período. Tal fato
muito contribuiu para o alargamento do horizonte dos idiomas.

Vista sob a ótica da utilidade, este tipo de literatura desenvolveu-se


também durante os reinados de D. João I, D. Duarte e a regência de D. Pedro. E,
ao que parece, um dos objetivos é com o uso da língua, procurando diferenciar a
linguagem coloquial da linguagem tida como culta.

Para um melhor esclarecimento do objetivo deste tipo de literatura, que se


dê voz a Massaud Moisés (2008, p. 47):

Ecoando o surto de humanização da cultura e a consolidação


do absolutismo régio durante o reinado dos Avises, cultiva-se
intensamente, ao longo do século XV, a prosa doutrinal e moralista.
Servindo precipuamente à educação da realeza e da fidalguia, com
o fito de orientá-la no convívio social e no adestramento físico para a
guerra, não estranha que essa prosa pedagógica fosse escrita sobretudo
por monarcas. O culto do esporte, sobretudo o da caça, ocupa o
primeiro lugar nessa pedagogia pragmática. As virtudes morais
também se lembram e se enaltecem, mas sempre visando alcançar o
perfeito equilíbrio entre a saúde do corpo e a do espírito.

No que se refere a obras de destaque deste período, importante mencionar-


se a denominada prosa doutrinária da corte de Avis, cuja relevância maior é para
os seguintes escritos: Livro da montaria (de D. João I, que trata da caça), Ensinança
de bem cavalgar toda sela (de D. Duarte, o qual exalta o prazer do esporte aliado
à disciplina moral), Leal conselheiro (também de autoria de D. Duarte, propõe
princípios e normas de conduta moral à nobreza), Virtuosa benfeitoria (escrito
por D. Pedro, faz recomendações morais aos nobres), Livro de falcoaria (escrito
por Pero Menino, ensina a tratar das doenças dos falcões).

Já no campo da prosa religiosa e mística, há que se destacar obras como o


‘Horto do esposo’, escrita por um monge português que não revela o nome, a qual
apresenta uma série de reflexões em torno de temas religiosos, ao mesmo tempo
que apresenta histórias que demonstram exemplos em torno de determinadas
virtudes que deveriam ser cultivadas. Outra obra de cunho doutrinador é ‘Boosco
deleitoso’, a qual recebe grande influência do autor italiano Petrarca (trazendo
inclusive partes que são tradução direta da obra do autor italiano) e narra a
trajetória da alma na busca pela salvação e seu refúgio final em Deus. Esta obra é
de autoria desconhecida.

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UNIDADE 1 | LITERATURA PORTUGUESA: ORIGENS E ESCOLAS LITERÁRIAS DO PERÍODO MEDIEVAL

A título de conhecimento, apresentamos, na sequência, um excerto de


‘Boosco deleitoso’, cuja obra é oferecida pelo autor desconhecido à rainha Dona
Leonor, esposa de D. João II:

NO HORTO APRAZÍVEL, EM COMPANHIA DAS VIRTUDES

Do homem mesquinho, desterrado e lançado no paraíso terreal e da


bem-aventurança do paraíso espiritual, que é a casa da boa consciência et cetera.

Eu, sendo pecador e mui mesquinho, desterrado do paraíso terreal


das mui doces deleitações polo pecado dos primeiros padres, e lançado em no
vale da mesquinhidade deste mundo, padecia enel muitas coitas e trabalhos
e mínguas e tribulações sem conto. E como quer que fossem grande mal e
agravamento a mi, coitado, as pressas corporais deste segre, muito mais era
grande a minha tribulaçom e mesquindade porque a minha alma era desterrada
do seu paraíso espiritual, que ham as almas santas enesta vida, do qual se
trespassam ao paraíso celestial.

Este paraíso espiritual da alma é a casa da boa consciência, em que


é tanta abundaça de paz, que a abastença obedece e serve à castidade, e a
devoçon se acosta à oração; e ali folga a humildade em no temor de Deus, e a
pureza há folgança em o amor do Senhor Deus. Ali há limpeza do coraçom com
a paz de Jesu Cristo per alegria, e a fé pura folga em na verdade. Ali a justiça
despõe e ordena todas as cousas brandamente, e a temperança as tempera
concordadamente. Ali a sabidoria ensina e a fortaleza a firma e a abstinência
desseca toda sujidade de pecado e a esperança conforta e a humildade e a
paciência reinam. Cá ali é o reino de Deus e o paraíso, u é o ajuntamento das
virtudes; e porém a alma do homem virtuoso é em paraíso espiritual nesta vida
presente.

Deste paraíso mui deleitoso era eu, mesquinho, desterrado, e lançado


em na profundeza do lixo dos pecados, cá em na minha alma não era paz nem
assessego; mais era movida e abalada com os movimentos turvos da carne, e
eu queimado era com as chamas dos acendimentos carnais, e movediço era
a todo odor luxurioso. O meu espírito era derribado e abaixado sob a carne,
sem orvalho de limpeza; a minha carne era fagueira às deleitações carnais e
desobediente aos usos e trabalhos espirituais e ajudador dos meus contrairos.

Afastado era do assossego divinal, movediço às injúrias que me fazerom


e com toda perseguição. Nom havia firmeza da mente em nenhua cousa de
boa andança nem de contraira. Em tal guisa era o meu estado, que me parecia
que jazia em o inferno. Cá já começava de sentir aqui, em esta vida presente,
as penas infernais e todo era de mui grandes trevas, que estavom e andavom
sempre arredor de mi, em guisa que me parecia que sempre estava em lugar
trevoso.

FONTE: SPINA, Segismundo. Presença da Literatura Portuguesa – Era Medieval. Rio de Janeiro:
Editora Bertrand Brasil, 1991. p. 75-76.

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TÓPICO 3 | A PROSA, A POESIA E O TEATRO: A ESTÉTICA DO HUMANISMO PORTUGUÊS

NOTA

Para uma leitura mais proveitosa do texto, observe a seguir o significado de


algumas palavras: pressas: apertos, perigos; segre: mundo profano; abastença: abastança,
fartura; acosta: apoia-se; cá: porque; u: onde; mais: mas.

Ainda no que se refere à prosa didática e religiosa, mesmo que muitos


críticos não a tomem muito em consideração enquanto literatura, há que se
registrar o valor de tais escritos enquanto traduções de obras que são consideradas
verdadeiros patrimônios da época medieval, outras, enquanto inéditas, pela sua
grande importância didática para a história da formação da literatura lusitana,
para o enriquecimento da língua e aquisição de sua expressividade literária.
Por falar-se em literatura, outra manifestação do segundo período medieval, em
Portugal, foi a poesia, a qual adquiriu novas feições, dissociada, agora, da música,
diferentemente do que ocorria com as cantigas. Este assunto, caro/a acadêmico/a,
tratá-lo-emos na seção a seguir.

4 LIRISMO: A POESIA MEDIEVAL PORTUGUESA


O lirismo português passa por um período de decadência após a morte
de D. Dinis. Desenvolve-se mais o comércio, surge uma mentalidade nova, mais
prática, sem clima para o desenvolvimento da poesia. Ao contrário, o interesse
do público era outro: caça, assuntos morais, religiosos, por isso a prosa didática,
estudada anteriormente.

Assim, já no reinado de D. Afonso V, “assiste-se a um novo clima na corte


portuguesa, a qual apresenta maior requinte, uma vida palaciana mais sociável,
maior propensão às atividades espirituais desinteressadas, o que poderia abrir
caminho para uma melhor acolhida às obras poéticas”, conforme expõe Tufano
(1981, p. 49). Desenvolve-se, assim, a Poesia Palaciana, feita por nobres e para a
nobreza, ressaltando seus usos, seus costumes na vida da corte.

Esta poesia é de influência espanhola e se apresenta dissociada da música,


passando a ser declamada, recitada, lida, o que requer técnica e expressão. A
riqueza desta poesia, sua complexidade temática e formal tomam o lugar da
singeleza e da espontaneidade das cantigas trovadorescas. Bem lembra José de
Nicola (2003, p. 64) que “[...] isso ocasiona um maior apuro formal: os textos
apresentam seu próprio ritmo e melodia, obtidos a partir da métrica, da rima,
das sílabas tônicas e átonas”. E aqui é importante ressaltar a influência que esse

51
UNIDADE 1 | LITERATURA PORTUGUESA: ORIGENS E ESCOLAS LITERÁRIAS DO PERÍODO MEDIEVAL

tipo de poesia recebeu – Dante e Petrarca, poetas italianos que desenvolvem


uma poesia mais estilizada. Por isso, o assunto gira em torno da mulher ideal,
a saudade do tempo em que se foi feliz no amor, enfim, constitui-se um lirismo
sentimental, sutil e sofisticado.

Acima de tudo, é nova a forma deste tipo de poesia: geralmente são versos
de sete sílabas (as redondilhas maiores) e de cinco sílabas (redondilhas menores).
Em geral, as poesias desenvolvem um tema colocado no início (mote), ou então se
trava um debate entre dois poetas, em verso, sobre algum tema amoroso.

Essas poesias foram compiladas em 1516, à moda dos espanhóis, no


chamado ‘Cancioneiro Geral’, por um frequentador da corte portuguesa – Garcia
de Resende. Este livro constitui a mais importante fonte para o conhecimento da
poesia nas cortes portuguesas do século XV. As poesias nele contidas datam a
partir de 1450.

FIGURA 8 – CANCIONEIRO GERAL

FONTE: De Giovanni (2007, p. 33)

As poesias contidas no Cancioneiro Geral revelam um novo formalismo


poético, o qual poderia reduzir-se no seguinte esquema:

52
TÓPICO 3 | A PROSA, A POESIA E O TEATRO: A ESTÉTICA DO HUMANISMO PORTUGUÊS

a) poesias com mote glosado:

1) Glosa: em que o mote é repetido textualmente em cada um de seus versos, no


meio e no fim da estrofe.

2) Vilancete: com mote de um a três versos, seguido de volta ou voltas. Volta é


a estrofe em que o mote é aproveitado, sem repetição textual. No vilancete, a
volta tem sete versos, em que os quatro primeiros formam uma quadra, e os
três restantes se ligam pela rima à quadra, e os três restantes se ligam pela rima
à quadra e ao mote.

3) Cantiga: com mote de quatro ou mais versos, seguido de uma volta ou várias.
As voltas têm oito a dez versos.

b) poesias sem mote:

1) Esparsa: composição monostrófica, de oito a dezesseis versos.

2) Trova: composição com duas ou mais estrofes.

NOTA

Para que você possa melhor compreender as explicações acerca dos tipos de
poesias compostas na segunda fase lírica da era medieval portuguesa, caro/a acadêmico/a,
veja o significado de “mote”, “glosa” e “volta”, segundo o Dicionário Houaiss:
Mote: estrofe, anteposta ao início de um poema, utilizada pelos poetas como motivo da obra,
que desenvolve a ideia sugerida pela estrofe.
Glosa: tipo de composição poética que desenvolve um mote, em geral em tantas estrofes
quantos são os versos deste e acabando cada estrofe com um deles.
Volta: cada um dos versos que repetem outros da estrofe inicial ou do mote; glosa poética.

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UNIDADE 1 | LITERATURA PORTUGUESA: ORIGENS E ESCOLAS LITERÁRIAS DO PERÍODO MEDIEVAL

FIGURA 9 – FRANCESCO FIGURA 10 – DANTE


PETRARCA (1304-1374). ALIGHIERI (1265-1321).

FONTE: De Giovanni (2007, FONTE: De Giovanni (2007,


p. 32) p. 34)

Para seu melhor conhecimento da poesia palaciana portuguesa, eis alguns


exemplos. Leia-os com atenção e compare-os às características estudadas:

Trovas à morte de D. Inês de Castro


(Garcia de Resende)

Qual será o coração


tão cru, e sem piedade,
que lhe não cause paixão
ua tam grã crueldade
e morte tão sem razão?
Triste de mim, inocente,
que por ter muito fervente
lealdade, fé, amor,
ao príncipe meu senhor,
me mataram cruamente!

FONTE: Braga (2005, p. 196)

Que de meus olhos


(Rui Gonçalves)

Que de meus olhos partays


em qual quer parte questeys
em eu coraçam fycays
e nele vos converteys
Este é o vosso luguar
Em que mays certa vos vejo,
por que nam quer meu desejo
que vos dy possays mudar.
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TÓPICO 3 | A PROSA, A POESIA E O TEATRO: A ESTÉTICA DO HUMANISMO PORTUGUÊS

E por ysso que partays,


em qual quer parte questeys
em meu coraçam fycays
pois nele vos converteys.

FONTE: Braga (2005, p. 196)

No texto da poesia apresentada, percebe-se o envolvimento íntimo do eu


lírico por meio de sua confissão íntimo-amorosa, em que chega a afirmar que,
mesmo que a pessoa amada se tenha ausentado, ela continuará presente por ter se
transformado no coração do próprio poeta. Vê-se, também no poema a presença
de uma linguagem simples e, em parte, a escrita se aproxima daquela dos dias
atuais.

De um modo geral, a produção poético-lírica deste período da Literatura


de Portugal revela certa delicadeza lírica, uma musicalidade linguística, a riqueza
imagética que se manteve oculta nas cantigas do Trovadorismo. Mais do que isso,
há que se valorizar na nova poesia a formalidade que ela oferece, a se começar
pela métrica, os ricos motivos de inspiração, a sua forma, o seu conteúdo. Acima
de tudo, a sua riqueza está na influência de dois grandes poetas: Dante Alighieri
e Francesco Petrarca.

5 TRADIÇÃO DRAMÁTICA: O TEATRO DE GIL VICENTE


Na transição entre o período medieval europeu e o Renascimento, há a
presença do movimento intelectual, filosófico e artístico chamado Humanismo.
Ele é marcado por ideias como o retorno ao cristianismo mais primitivo, valendo-
se, entre muitos aspectos, como a crítica ao luxo e a fuga do dito “bom caminho”
pela Igreja Romana. Outro ponto ao qual se apegavam os humanistas era a
valorização da cultura clássica greco-romana, via filosofia, literatura e história,
apegando-se, por isso, aos aspectos mais racionais. Por esse motivo, a visão
adotada pelos humanistas estava centrada no homem, colocando-o como o centro
de toda História. Eis por que tem início o antropocentrismo, em contrariedade ao
período anterior, cuja visão era teocêntrica.

Grandes expoentes e disseminadores das ideias humanistas foram os


italianos Francesco Petrarca e Dante Alighieri. Já Portugal tem Gil Vicente como o
grande representante do Humanismo. Esse período, nas terras lusitanas, coincidiu
com o período da grande expansão do reino português, via procura pelo caminho
para as Índias e os consequentes descobrimentos que permitiram o alargamento
do império (século XV).

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UNIDADE 1 | LITERATURA PORTUGUESA: ORIGENS E ESCOLAS LITERÁRIAS DO PERÍODO MEDIEVAL

Acerca da vida de Gil Vicente, pouco se sabe. Há quem diga que ele
poderia ter nascido por volta de 1465, em Guimarães ou talvez em Beira. Sabe-se,
porém, que ele se casou duas vezes e que esses casamentos tiveram como frutos
cinco filhos, dos quais os mais conhecidos são Paula Vicente, que teve fama de
ser uma mulher muito culta, e Luís Vicente, o qual se empenhou em organizar a
primeira compilação das obras de seu pai.

No início do século XVI, ele já começava a fazer-se presente nos ambientes


da corte, participando de competições poéticas que foram documentadas por
Garcia de Resende no Cancioneiro Geral. Sabe-se também que o seu nome começa
a despontar já em 1502, através da encenação do Auto da Visitação ou Monólogo
do Vaqueiro, por ocasião do nascimento do príncipe D. João, futuro rei D. João
III. Ao que se sabe, ele foi muito bem-sucedido nesta apresentação, e que por
isso passou a dedicar-se à dramaturgia, estimulado por pessoas da corte e que
possivelmente o financiavam.

Na corte, dedicou-se ao ofício de dramaturgo e encenador durante o


reinado de D. Manuel e D. João III. Foi nesta época que produziu mais de quarenta
e quatro peças de teatro. Esse teatrólogo procurou manter-se preso às tradições
medievais e fez, antes de tudo, um tipo de teatro de tom didático e moralizante,
cujas raízes estavam fincadas no teocentrismo e nas ideias da salvação da alma.
A respeito desse aspecto, que seja dada a palavra ao estudioso de Literatura
Portuguesa Segismundo Spina (1991, p. 157):

A sua autonomia intelectual, a ortodoxia das suas ideias religiosas e a


coragem expressa no seu teatro de crítica social explicam o parentesco
do seu ideário com o parentesco reformista do tempo; explicam
também o prestígio de que gozou na corte, onde a proteção da Rainha
Velha D. Leonor, viúva de D. João II, e logo a seguir a do próprio rei D.
João III mantiveram o esplendor do teatro vicentino durante 34 anos.

FIGURA 11 – GIL VICENTE

FONTE: De Giovanni (2007, p. 41)

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TÓPICO 3 | A PROSA, A POESIA E O TEATRO: A ESTÉTICA DO HUMANISMO PORTUGUÊS

Há certa dificuldade para se estabelecer uma classificação mais precisa


das peças criadas por Gil Vicente. Ele próprio as dividiu em três grupos: obras de
devoção, farsas e comédias. Na sua compilação, Luís Vicente juntou um quarto
gênero – a tragicomédia. Estudiosos mais contemporâneos preferem considerar
os seguintes tipos: autos de moralidade, autos cavaleirescos e pastoris, farsas,
alegorias de temas profanos. No entanto, há que se pensar que, muitas vezes, na
mesma peça, podem ser encontrados elementos característicos de muitos desses
tipos.

E este tipo de teatro recebeu, realmente, o nome de teatro popular por


causa das suas características consideradas fundamentais – popular nos temas,
popular na linguagem utilizada e popular nos atores. Gil Vicente, poder-se-ia
dizer, explora o que é conhecido pelo povo para compor seu teatro, como bem o
revela Douglas Tufano (1990, p. 148) em um comentário sobre o teatro vicentino:
“Gil Vicente explora o trocadilho, os ditos populares, utiliza-se de falares
regionais, aproveita (como trovador que foi) a beleza da linguagem das cantigas
e a suavidade dos hinos religiosos”.

É prudente acentuar-se que, antes de Gil Vicente, provavelmente não


havia teatro em Portugal. O que havia, segundo se conhece, eram encenações de
caráter religioso, cuja função era puramente catequética, com finalidades morais
e éticas.

NOTA

Caro/a acadêmico/a, é possível que antes de Gil Vicente tenha havido algum
tipo de encenação muito simples em Portugal, a exemplo de outras partes da Europa, mas
não se têm provas documentais concretas disto. Sabe-se, entretanto, da possível existência
de breves representações, de caráter cavaleiresco, religioso, satírico ou burlesco (que provoca
riso, zombaria), as quais foram denominadas momos, arremedilhos e entremezes (o momo
seria o ator mímico ou a cena que ele representa; o arremedilho consistiria numa breve farsa
ou sátira de costumes e o entremez, qualquer representação que servisse de intermezzo, ou
seja, entreato). O documento mais antigo de que se tem conhecimento referente ao assunto
remonta a 1193 e revela o pagamento que o rei D. Sancho I teria efetuado a dois jograis
(Bonamis e Acompaniado) por seus arremedilhos. Afora isso, no Cancioneiro Geral, além de
várias referências a momos e entremezes, encontram-se registros de peças dialogadas muito
parecidas com teatros.

Com o tempo, este tipo de teatro acabou por abandonar o palco das
igrejas, o pátio dos templos religiosos (numa fase posterior) para chegar às feiras,
mercados, aldeias, povoados e inclusive às cortes reais. Grande acolhida este
teatro teve também nos reinos ibéricos de Castela, Leão, Navarra e Aragão. Por
influência castelhana, acabou penetrando também em Portugal, via Gil Vicente,
seguindo o exemplo de Juan de Encina (1468-1529).

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UNIDADE 1 | LITERATURA PORTUGUESA: ORIGENS E ESCOLAS LITERÁRIAS DO PERÍODO MEDIEVAL

NOTA

Juan de Encina (1468-1529), teatrólogo espanhol, de vida aventurosa,


terminando pelo ingresso na vida sacerdotal aos cinquenta anos, escreveu entre os catorze
e os vinte e cinco anos a maior parte de suas obras, especialmente de caráter pastoril e
religioso.

Nas suas composições, Vicente procurou manter certa proximidade às


suas influências medievais, fazendo, antes de tudo, um teatro que trazia a tônica
didático-moralizante. Se, em parte, focalizavam-se as virtudes cristãs como
objetivo a ser perseguido, procurava também não perder de vista a sociedade
lusitana da época, trazendo-a à baila com um tom de humor e senso crítico,
mantendo ali uma visão humanista. Para completar, eis o que diz Massaud
Moisés (2008, p. 58):

[...] o teatro vicentino se mostra lírico ou cômico (ou ainda cômico-


lírico): a predominância de temas ou duma visão medieval das coisas
[...]. Neste tipo de teatro, Gil Vicente realiza-se mais pelo núcleo
ideológico ou sentimental que pelas qualidades propriamente cênicas,
elementares de todo, como é sabido.

Valendo-se de uma simplicidade que lhe era peculiar, Gil Vicente


procurava passar ao público uma visão crítica da sociedade, deixando de lado a
parcialidade: não distinguia classes sociais, colocava em cena nobres e plebeus,
membros da política e cidadãos comuns, pobres e ricos, censurava a hipocrisia de
qualquer que fosse o cidadão, incluindo entre estes os frades que pregavam e não
colocavam em prática as virtudes, denunciava os exploradores das classes mais
populares, colocava à vista de todos as imoralidades das prostitutas, os velhos
sensuais, ridicularizava quem quer que fosse ou o defeito que ele considerava
necessário.

O teatro vicentino, então, constituiu-se num verdadeiro espetáculo


formador de senso crítico das classes sociais lusitanas, não somente com o objetivo
de divertir a sociedade, mas, ao contrário, com o cunho de destacar vícios que
poderiam ser tidos como perniciosos numa sociedade e num tempo, objetivando,
com isto, a recondução ao caminho considerado “do bem”. E para complementar
esta ideia, importantes as palavras de Douglas Tufano (1981, p. 72), ao dizer este
que “[...] o espírito medieval de Gil Vicente não encontra lugar na nova ordem
que se vai construindo. Daí seu ataque ferino a todas as classes sociais, que são
chamadas a uma reconsideração de atitudes e valores”. O seu trabalho, ao que
parece, assenta-se sobre a base da fidelidade aos valores espirituais e à visão
crítica.

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TÓPICO 3 | A PROSA, A POESIA E O TEATRO: A ESTÉTICA DO HUMANISMO PORTUGUÊS

Durante a sua vida, Gil Vicente foi autor de mais de uma quarentena de
peças, as quais, para fins de estudo, podem ser divididas em diferentes fases, a
saber:

I) A primeira fase compreende o período que vai de 1502 a 1508, tempo este que
recebeu grande influência de Juan de Encina, principalmente nos primeiros
tempos. Nesta fase, predominam os assuntos religiosos, tendendo para a lírica.
Destacam-se neste período o Auto da Visitação ou Monólogo do Vaqueiro,
Auto Pastoril Castelhano, Auto de São Martinho, Auto dos Reis Magos.

II) Já a segunda fase transcorre entre os anos de 1508 a 1516, e neste período já
passou a fase da influência castelhana. A preocupação de Vicente está dirigida
aos problemas sociais suscitados pela expansão portuguesa e o relaxamento
dos costumes. Gil Vicente, nesta época, trabalha mais com a crítica social.
Destacam-se peças como Quem tem farelos?, Auto das Fadas, Auto da Índia,
O Velho da Horta, Exortação da Guerra.

III) Por fim, a terceira fase, que se passa entre os anos de 1516 e 1536, é concebida
pelos estudiosos como a época da maturidade do artista Gil Vicente. A sua
produção dramática concebe um tom religioso e define grandes qualidades
artísticas. Aparecem, neste período, obras carregadas com atitudes
moralizantes explícitas, com grande representatividade dentro do teatro de
costumes, a exemplo da Trilogia das Barcas (Auto da Barca do Inferno, Auto
da Barca do Purgatório e Auto da Barca da Glória), Auto das Almas, Farsa de
Inês Pereira, Auto da Feira, Floresta de Enganos, O Juiz da Beira.

A Farsa de Inês Pereira pode ser vista como uma das mais complexas
peças teatrais de Gil Vicente. Esta é uma comédia de costumes e uma marca do
auge do trabalho do autor. A sua apresentação de estreia ocorreu no Convento de
Tomar, para o rei D. João II, em 1523.

NOTA

Farsa significa uma representação popular com intenções de satirizar. Trata-se


de pequena peça cômica popular, de concepção simples e de ação trivial ou burlesca, em
que predominam gracejos, situações ridículas.

Esta farsa caracteriza-se pela ilustração do dito popular “mais quero asno
que me leve que cavalo que me derrube”. Através desta peça, o autor põe em
ato personagens que encarnavam os elementos dessa comparação. O provérbio
faz referência a três personagens da farsa: Asno (Pero Marques), Me (Inês, a
protagonista que deseja se casar) e Cavalo, a figura do escudeiro.

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UNIDADE 1 | LITERATURA PORTUGUESA: ORIGENS E ESCOLAS LITERÁRIAS DO PERÍODO MEDIEVAL

Depois de uma experiência amorosa malsucedida com o primeiro marido


(o Escudeiro), Inês quer casar-se novamente, mas, desta vez, com alguém em
quem possa mandar. Mais do que isso, anseia por uma vingança quanto ao
primeiro casamento. Dizem os versos da peça:

“Andar! Pero Marques seja!


Quero tomar por esposo
Quem se tenha por ditoso
De cada vez que me veja.
Por usar de siso mero
Asno que me leve quero,
E não cavalo folão
Antes lebre que leão;
Antes lavrador que Nero.” (SPINA, 1991, p. 170)

A análise destes versos reporta a uma comparação entre dois personagens


(Pero Marques e o Escudeiro) e suas respectivas atitudes a dois animais (o asno e
o cavalo). Pero Marques apresenta maneiras de agir equiparáveis às de um asno
(estúpido, ativo, persistente, serviçal e deselegante) – comuns estas ao animal
comparado – e o escudeiro é o contrário de um cavalo (mentiroso, desleal,
preguiçoso, cínico e perverso). Em comum, quem sabe, ele tem a elegância e a
nobreza. Acerca disto, comenta Antônio Soares amora que:

Gil Vicente ofendeu injustamente o cavalo, comparando-o a um homem


que não tinha quaisquer virtudes. Aqui o autor falhou, não cumpriu o que
propusera. Para ilustrar ‘o que me derrube’ bastava a escravização de Inês. [...]
preocupou-se demasiadamente com vincar a inferioridade do Escudeiro em
relação a Pero Marques – ou deu lugares à má vontade contra estes parasitas da
corte.

Entre esta comparação existe uma simetria que apresenta certa perfeição,
haja vista a necessidade que o autor sentiu de demonstrar que Pero Marques
e Lianor (comadre casamenteira) eram superiores ao Escudeiro e aos judeus
casamenteiros. Por sua vez, Inês não encontrou nenhuma felicidade no amor,
mas, ao contrário, na vingança, graças à sua desilusão.

Inês despreza a proposta de Pero Marques, que é filho de um rico


camponês. Ele é homem considerado tolo e ingênuo, por isso, Inês prefere casar
com Brás da Mata, escudeiro malvestido e pobretão. No entanto, os sonhos de
Inês logo se desfazem, pois o esposo logo revela sua verdadeira índole, passando
a maltratá-la e explorá-la. Brás da Mata vai embora para a África e lá falece tempos
depois. Inês, após ter aprendido com essa experiência, se dá conta da realidade e
concorda em casar com Pero Marques, seu primeiro admirador. Logo também a
jovem Inês aceita o galanteio de um falso ermitão. A peça chega ao seu fim com
o esposo (cantado por ela como cuco, gamo e cervo, tradicionalmente concebidos
como símbolos do homem traído) levando-a às costas (asno que me carregue) até
a gruta em que vive o ermitão, para um encontro nada ingênuo.

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TÓPICO 3 | A PROSA, A POESIA E O TEATRO: A ESTÉTICA DO HUMANISMO PORTUGUÊS

Quanto aos personagens desta importante peça de Gil Vicente, importante


apresentá-los a seguir, com algumas características:

INÊS PEREIRA: personagem fundamental, que constitui o eixo da peça.


Primeiramente é solteira, preguiçosa, alegre, gosta de se divertir, sem preocupações
com luxo e riquezas. Deseja um homem que lhe possa proporcionar vida alegre.
Aparece mais tarde casada, estranhando as imposições do marido, porém aceita a
obediência e lhe é fiel. Num terceiro momento, vê-se a Inês de Pero Marques, com
um comportamento desumano, desleal, provocado pelo escudeiro. Essa é a Inês
má, que desacredita os homens e o amor.

PERO MARQUES: segundo marido de Inês, comparado ao asno. É um homem


estúpido, ingênuo e honesto. Seu desejo é a felicidade sua e poder espalhá-la à
sua volta. É um personagem cômico, um homem trabalhador e que conseguiu
juntar um pouco de dinheiro com o passar dos anos.

ESCUDEIRO BRÁS DA MATA VALO: é uma figura bastante importante na peça.


É o primeiro marido de Inês, comparado ao cavalo. Ele transforma Inês numa
pessoa vingativa e explora a ingenuidade de Pero.

LIANOR VAZ: é a confidente e ajuda os expectadores a conhecer os sentimentos


e intenções de Inês e de Pero. Ela mostra o enredo da peça.

MÃE: Tenta lutar pela felicidade da filha, que está iludida quanto à sua escolha,
da qual se arrepende. É extremamente compreensiva quanto às opções da filha e
aceita a comemoração das bodas.

JUDEUS CASAMENTEIROS: são pessoas indiferentes aos preceitos morais,


conhecem os defeitos do Escudeiro, não ignoram que Inês seja uma pessoa
preguiçosa, vaidosa e insensata. São inteligentes, seguem seus próprios caprichos
e vingam-se com ironia.

MOÇO (AJUDANTE DO ESCUDEIRO): é um confidente que faz conhecer a vida,


os sentimentos e as intenções do Escudeiro.

ERMITÃO: vive eternamente solitário, dedicado à salvação das almas e ao serviço


a Deus. Representa os falsos religiosos.

Caro/a acadêmico/a, apresentamos alguns dados sobre uma das peças


de Gil Vicente, para que você possa conhecer o conteúdo (em parte) do teatro
português do período medieval. Lembre-se de que o elemento básico para a
composição das peças era vida diária, a vida real das pessoas e a doutrina cristã. O
objetivo era a busca pelo caminho considerado melhor, seja por parte das pessoas
comuns, da corte ou da Igreja. Visto sob esta ótica, Gil Vicente poderia ter sido
considerado reformador da sociedade.

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UNIDADE 1 | LITERATURA PORTUGUESA: ORIGENS E ESCOLAS LITERÁRIAS DO PERÍODO MEDIEVAL

As palavras da estudiosa do teatro vicentino, Carolina Michaelis de


Vasconcelos, muito bem podem resumir o teatrólogo lusitano medieval. Diz esta
crítica que Gil Vicente era mais que um poeta. Ele era também um pensador, um
cristão que vivia sua fé num mundo medieval. Diz ela ainda que “[...] colocado
nos umbrais do tempo moderno, emancipado, e só de leve atingido pelo bafo
humanista do Renascimento com seus gozos intelectuais e aristocráticos, ele
tinha sempre em mente o mundo do além.” (VASCONCELOS, 1949, p. 38). Tinha
grande preocupação com a salvação das almas e com boa maneira de cada um
empregar no dia a dia cada capítulo da vida que é vivido no mundo terreno.
E completa: “Tinha simpatia pelos humildes, ingênuos e perseguidos; antipatia
pelos prevaricadores e devassos.” (VASCONCELOS, 1949, p. 38).

Caro/a acadêmico/a, também para aguçar o seu espírito de leitura e


conhecimento, considerando que você é estudante de Letras, oferecemos a leitura
de um excerto de uma peça de Gil Vicente. Leia-o com carinho e observe as
personagens, as falas, a linguagem da época. Boa leitura!

AUTO DA BARCA DO INFERNO


(Gil Vicente)

Auto de moralidade composto por Gil Vicente por contemplação da


sereníssima e muito católica rainha Lianor, nossa senhora, e representado por
seu mandado ao poderoso príncipe e mui alto rei Manuel, primeiro de Portugal
deste nome.
Começa a declaração e argumento da obra. Primeiramente, no presente
auto, se fegura que, no ponto que acabamos de espirar, chegamos subitamente
a um rio, o qual per força havemos de passar em um de dous batéis que naquele
porto estão, um deles passa pera o paraíso e o outro pera o inferno: os quais
batéis tem cada um seu arrais na proa: o do paraíso um anjo, e o do inferno um
arrais infernal e um companheiro.

O primeiro intrelocutor é um Fidalgo que chega com um Paje, que lhe


leva um rabo mui comprido e üa cadeira de espaldas. E começa o Arrais do
Inferno ante que o Fidalgo venha.

DIABO: À barca, à barca, houlá! Oh, que tempo de partir,


que temos gentil maré! louvores a Berzebu!
- Ora venha o carro a ré! - Ora, sus! que fazes tu?
COMPANHEIRO: Feito, feito! Despeja todo esse leito!
Bem está! COMPANHEIRO: Em boa hora!
Vai tu muitieramá, Feito, feito!
e atesa aquele palanco DIABO: Abaixa aramá esse cu!
e despeja aquele banco, Faze aquela poja lesta
pera a gente que virá. e alija aquela driça.
À barca, à barca, hu-u! COMPANHEIRO: Oh-oh, caça!
Asinha, que se quer ir! Oh-oh, iça, iça!

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TÓPICO 3 | A PROSA, A POESIA E O TEATRO: A ESTÉTICA DO HUMANISMO PORTUGUÊS

DIABO: Oh, que caravela esta! haveis de passar o rio.


Põe bandeiras, que é festa. FIDALGO: Não há aqui outro
Verga alta! Âncora a pique! navio?
- Ó poderoso dom Anrique, DIABO: Não, senhor, que este
cá vindes vós?... Que cousa é esta?... fretastes,
Vem o Fidalgo e, chegando ao batel e primeiro que expirastes
infernal, diz: me destes logo sinal.
FIDALGO: Esta barca onde vai ora, FIDALGO: Que sinal foi esse tal?
que assi está apercebida? DIABO: Do que vós vos
DIABO: Vai pera a ilha perdida, contentastes.
e há-de partir logo ess'ora. FIDALGO: A estoutra barca me
FIDALGO: Pera lá vai a senhora? vou.
DIABO: Senhor, a vosso serviço. Hou da barca! Para onde is?
FIDALGO: Parece-me isso cortiço... Ah, barqueiros! Não me ouvis?
DIABO: Porque a vedes lá de fora. Respondei-me! Houlá! Hou!...
FIDALGO: Porém, a que terra (Pardeus, aviado estou!
passais? Cant'a isto é já pior...)
DIABO: Pera o inferno, senhor. Oue jericocins, salvanor!
FIDALGO: Terra é bem sem-sabor. Cuidam cá que são eu grou?
DIABO: Quê?... E também cá ANJO: Que quereis?
zombais? FIDALGO: Que me digais,
FIDALGO: E passageiros achais pois parti tão sem aviso,
pera tal habitação? se a barca do Paraíso
DIABO: Vejo-vos eu em feição é esta em que navegais.
pera ir ao nosso cais... ANJO: Esta é; que demandais?
FIDALGO: Parece-te a ti assi!... FIDALGO: Que me leixeis
DIABO: Em que esperas ter embarcar.
guarida? Sou fidalgo de solar,
FIDALGO: Que leixo na outra vida é bem que me recolhais.
quem reze sempre por mi. ANJO: Não se embarca tirania
DIABO: Quem reze sempre por neste batel divinal.
ti?!... FIDALGO: Não sei porque haveis
Hi, hi, hi, hi, hi, hi, hi!... por mal
E tu viveste a teu prazer, que entre a minha senhoria...
cuidando cá guarecer ANJO: Pera vossa fantesia
por que rezam lá por ti?!... mui estreita é esta barca.
Embarca - ou embarcai... FIDALGO: Pera senhor de tal marca
que haveis de ir à derradeira! nom há aqui mais cortesia?
Mandai meter a cadeira, Venha a prancha e atavio!
que assi passou vosso pai. Levai-me desta ribeira!
FIDALGO: Quê? Quê? Quê? Assi ANJO: Não vindes vós de maneira
lhe vai?! pera entrar neste navio.
DIABO: Vai ou vem! Embarcai Essoutro vai mais vazio:
prestes! a cadeira entrará
Segundo lá escolhestes, e o rabo caberá
assi cá vos contentai. e todo vosso senhorio.
Pois que já a morte passastes, Ireis lá mais espaçoso,

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UNIDADE 1 | LITERATURA PORTUGUESA: ORIGENS E ESCOLAS LITERÁRIAS DO PERÍODO MEDIEVAL

vós e vossa senhoria, DIABO: Sabês também o tordião?


cuidando na tirania FRADE: Porque não? Como ora sei!
do pobre povo queixoso. DIABO: Pois entrai! Eu tangerei
E porque, de generoso, e faremos um serão.
desprezastes os pequenos, Essa dama é ela vossa?
achar-vos-eis tanto menos FRADE: Por minha la tenho eu,
quanto mais fostes fumoso. e sempre a tive de meu,
DIABO: À barca, à barca, senhores! DIABO: Fezestes bem, que é fermosa!
Oh! que maré tão de prata! E não vos punham lá grosa
Um ventozinho que mata no vosso convento santo?
e valentes remadores! FRADE: E eles fazem outro tanto!
Diz, cantando: DIABO: Que cousa tão preciosa...
Vós me veniredes a la mano, Entrai, padre reverendo!
a la mano me veniredes. FRADE: Para onde levais gente?
FIDALGO: Ao Inferno, todavia! DIABO: Pera aquele fogo ardente
Inferno há i pera mi? que nom temestes vivendo.
Oh triste! Enquanto vivi FRADE: Juro a Deus que nom t'entendo!
não cuidei que o i havia: E este hábito no me val?
Tive que era fantesia! DIABO: Gentil padre mundanal,
Folgava ser adorado, a Berzebu vos encomendo!
confiei em meu estado FRADE: Corpo de Deus consagrado!
e não vi que me perdia. Pela fé de Jesu Cristo,
Venha essa prancha! Veremos que eu nom posso entender isto!
esta barca de tristura. Eu hei-de ser condenado?!...
DIABO: Embarque vossa doçura, Um padre tão namorado
que cá nos entenderemos... e tanto dado à virtude?
Tomarês um par de remos, Assi Deus me dê saúde,
veremos como remais, que eu estou maravilhado!
e, chegando ao nosso cais, DIABO: Não curês de mais detença.
todos bem vos serviremos. Embarcai e partiremos:
....................................... tomareis um par de ramos.
FRADE: Nom ficou isso n'avença.
Vem um Frade com üa Moça pela DIABO: Pois dada está já a sentença!
mão, e um broquel e üa espada FRADE: Pardeus! Essa seria ela!
na outra, e um casco debaixo do Não vai em tal caravela
capelo; e, ele mesmo fazendo minha senhora Florença.
a baixa, começou de dançar, Como? Por ser namorado
dizendo: e folgar com üa mulher
se há um frade de perder,
FRADE: Tai-rai-rai-ra-rã; ta-ri-ri- com tanto salmo rezado?!...
rã; DIABO: Ora estás bem aviado!
ta-rai-rai-rai-rã; tai-ri-ri-rã: FRADE: Mais estás bem corregido!
tã-tã; ta-ri-rim-rim-rã. Huhá! DIABO: Devoto padre marido,
DIABO: Que é isso, padre?! Que haveis de ser cá pingado...
vai lá?
FRADE: Deo gratias! Som ..........................................
cortesão.

64
TÓPICO 3 | A PROSA, A POESIA E O TEATRO: A ESTÉTICA DO HUMANISMO PORTUGUÊS

Vêm Quatro Cavaleiros cantando, à barca, à barca da vida!


os quais trazem cada um a Cruz E passando per diante da proa do
de Cristo, pelo qual Senhor e batel dos danados assi cantando, com
acrecentamento de Sua santa suas espadas e escudos, disse o Arrais
fé católica morreram em poder da perdição desta maneira:
dos mouros. Absoltos a culpa e DIABO: Cavaleiros, vós passais
pena per privilégio que os que e nom perguntais onde is?
assi morrem têm dos mistérios 1º CAVALEIRO: Vós, Satanás,
da Paixão d'Aquele por Quem presumis?
padecem, outorgados por todos os Atentai com quem falais!
Presi- dentes Sumos Pontífices da 2º CAVALEIRO: Vós que nos
Madre Santa Igreja. E a cantiga que demandais?
assi cantavam, quanto a palavra Siquer conhece-nos bem:
dela, é a seguinte: morremos nas Partes d'Além,
e não queirais saber mais.
CAVALEIROS: À barca, à barca DIABO: Entrai cá! Que cousa é essa?
segura, Eu nom posso entender isto!
barca bem guarnecida, CAVALEIROS: Quem morre por Jesu
à barca, à barca da vida! Cristo não vai em tal barca como essa!
Senhores que trabalhais Tornaram a prosseguir, cantando, seu
pola vida transitória, caminho direito à barca da Glória, e,
memória, por Deus, memória tanto que chegam, diz o Anjo:
deste temeroso cais! ANJO: Ó cavaleiros de Deus,
À barca, à barca, mortais, a vós estou esperando,
Barca bem guarnecida, que morrestes pelejando
à barca, à barca da vida! por Cristo, Senhor dos Céus!
Vigiai-vos, pecadores, Sois livres de todo mal,
que, depois da sepultura, mártires da Santa Igreja,
neste rio está a ventura que quem morre em tal peleja
de prazeres ou dolores! merece paz eternal.
À barca, à barca, senhores,
barca mui nobrecida, E assi embarcam.

FONTE: VICENTE, Gil. Os Autos das Barcas. Porto: Publicações Europa-América, 1973. p. 28-56.

65
UNIDADE 1 | LITERATURA PORTUGUESA: ORIGENS E ESCOLAS LITERÁRIAS DO PERÍODO MEDIEVAL

LEITURA COMPLEMENTAR

GIL VICENTE

Fidelino de Figueiredo

Durante os trinta e quatro anos da sua carreira dramática, Gil Vicente anima
os serões dos Paços da Ribeira, de Lisboa e dos lugares onde pousava a corte nas
suas constantes viagens pelo país, anima-os com a representação dos seus autos
e as surpresas das suas aquisições artísticas, porque o gênero novo, que em 1502
tomara de Juan de Encina, vai ampliando o seu alcance, a sua composição e o seu
interesse emotivo. Através das três fases da sua evolução, o poeta vai definindo
um gênero novo, o auto, antagônico da comédia clássica.

E em que se opunha o auto vicentino ao teatro clássico, tal como os
antigos ensinavam? Essencialmente nestas coisas: enquanto o teatro clássico ia
caminhando para a concentração dos seus efeitos emotivos pela prática rigorosa da
disciplina das unidades de ação, de tempo e de lugar, de limitação do número de
personagens, de eliminação de todos os elementos antidramáticos e de unificação
ou homogeneidade do seu tom, o auto de Gil Vicente caminhava para a ampliação
dos seus temas, para o aumento da população do palco, para uma duração cada
vez maior da ação, não da representação, e para a mais audaciosa justaposição dos
lugares. Os antigos haviam fixado um quadro de motivos cênicos para certo grau
de cômico; Gil Vicente desce até o burlesco mais plebeu e abre o seu proscênio a
todas as classes sociais, dos papas, imperadores e reis aos fidalgos arruinados e
aos borrachos das vilelas, uma vez que sejam tipos reais do seu tempo e do seu
meio. Junta fugas de lirismo ao drama das almas e ao conflito dos interesses, à
hipocrisia e à velhacaria humana; não hesita em adotar convenções e simbologias,
e não se detém no exercício das maiores liberdades. Regressa à origem, a uma
fase que talvez o teatro grego tivesse percorrido com autores desaparecidos, mas
que só vemos recapitulada no moderno teatro russo. É um teatro libérrimo, que
recomeça a sua vida e a sua experiência, alheio à vida já vivida pelos antigos,
parte outra vez ab ovo (desde o princípio), com a consciência orgulhosa de quem
servia um povo exaltado a uma febre heroica e criadora.

Esse teatro vicentino é a coisa maior da dramaturgia primitiva peninsular.


Expressa uma continuidade fiel do espírito da Idade Média, do seu goticismo puro,
desse idealismo ingênuo e transcendente dos painéis dos pintores primitivos, em
que os homens viviam vida dúplice, com um pé na terra e outro no céu, aliando
na sua consciência o mais grosseiro materialismo das preocupações terrenas com
a mais alada fé num além copiado desse terreno cenário, só mundificado das suas
bastardas aderências. Gil Vicente conheceu e desdenhou as importações novas
da poesia italianizante; obstinou-se no emprego dos velhos metros; teimou em
achar dia a dia a sua própria maneira. Da Renascença só tomou o drama social, os
reflexos morais e essa atitude crítica ou erasmista da Pré-Reforma religiosa.

66
TÓPICO 3 | A PROSA, A POESIA E O TEATRO: A ESTÉTICA DO HUMANISMO PORTUGUÊS

A forma dramática nova, o auto, que ele define, perpetua-se em Portugal,


mas sem movimento. Os seus continuadores, Afonso Álvares, Ribeiro Chiado,
Antônio Prestes, Gil Vicente de Almeida (seu neto), Jerônimo Ribeiro, Baltasar
Dias, o próprio Camões, e muitos outros recapitulam os caracteres deste seu
teatro poético peninsular, que era um ponto de partida e tinha um conteúdo a
diferenciar. É na Espanha que o auto há de seguir sua carreira triunfal e conduzir
ao esplendor dramático da língua castelhana com Lope da Veja, Guillén de Castro,
Tirso de Molina, Ruiz de Alarcón, Vélez de Guevara, Calderón de La Barca e
Moreto – triunfo que não foi atingido sem luta áspera com a comédia clássica.

Gil Vicente é um bom exemplo da fecundidade do ponto de vista


comparativo para o estudo das literaturas peninsulares. Aquele caráter beirão
do ambiente de seus autos satíricos, que impressionou Mr. Aubrey Bell, explica-
se facilmente por esse método comparativo: é imitado de Juan de Encina e
corresponde ao caráter “saiaguês” do poeta favorito dos Duques de Alba.

Saiaguês significa, literalmente, o falar típico da comarca de Saiago,


inçado de regionalismos e arcaísmos, obsoletos, fora dos confins da província
de Zamora. Menendez y Pelayo cria que o “saiaguês” fosse uma geringonça
convencional de origem literária. Devia ser uma coisa e outra: autêntica na base
ou no ponto de partida e artificial no superior uso literário. Um fenômeno análogo
ao moderno galego literário: autêntico na sua base oral ou vivo e artificial, inçado
de portuguesismos e neologismos arbitrários, como linguagem literária.

Saiago era uma Beócia castelhana. Os saiagueses, isolados na sua vida


pastoril, eram insociáveis, obstinados nos seus hábitos primitivos, no seu falar
cerrado e nos seus trajes peculiares. Formavam um singular contraste com os
castelhanos de Toledo distante – um ambiente de corte e cultura, que havia de
sugerir ao Cardeal Cisneros a sua Universidade de Alcalá – ou mesmo com a
gente de Salamanca e os familiares dos Duques de Alba, a quem eram destinadas
as peças dramáticas de Encina. [...]

De um lado e do outro daquela Beócia leoneso-portuguesa se diziam


provincianismos análogos, com aqueles desnorteadores “samicas”, “soncas” e
“algorrem”. Portanto, o regionalismo beirão dos autos não sugere que Gil Vicente
fosse natural de Beira, como quer Mr. Aubrey Bell, o primeiro a pô-lo em relevo,
mas documenta que os autos vicentinos foram primitivamente beirões, pelo
idioma e pelo ambiente, como imitação próxima ou fiel das éclogas dramáticas
de Encina, “saiaguesas” pela língua e pelo meio representado.

FONTE: FIGUEIREDO, Fidelino de. História literária de Portugal. Rio de Janeiro: Fundo de
Cultura, 1980. p. 121-123.

Caro/a acadêmico/a, chegamos ao final do nosso terceiro tópico e, à


guisa de conclusão, apresentamos um comentário acerca dos estudos que você
pôde efetuar neste tópico. O tópico final da nossa primeira unidade tratou
mais especificamente da literatura do período humanista lusitano. Este período
literário-cultural faz a transição entre o medievo e a época renascentista, marcado
67
UNIDADE 1 | LITERATURA PORTUGUESA: ORIGENS E ESCOLAS LITERÁRIAS DO PERÍODO MEDIEVAL

que é por um tempo em que as relações sociais passam por muitas mudanças,
principalmente o nascimento da burguesia mercantilista, a qual contribui para
o desenvolvimento do comércio, a laicização da cultura, o desenvolvimento do
pensamento mais racional e a preocupação com os valores humanos. Tudo isto
possibilita que aflorem as ideias antropocentristas, que marcam profundamente
o Humanismo.

E dentro da literatura também o novo pensamento deixa suas marcas,


principalmente a partir dos pensamentos de Dante Alighieri e Francesco Petrarca.
Suas influências na literatura permitem que os escritos passem a retratar um novo
homem, o ambiente passa a ser a corte e entram em cena novas produções, entre
estas a prosa (crônicas que têm como centro os reis e o povo), a poesia palaciana
e o teatro.

Nas crônicas, as atenções se voltaram para os relatos acerca dos reis e


do povo português. A poesia palaciana marca o desvinculamento da poesia
trovadoresca, passando a ser lida ou declamada. A nova poesia reflete a
sensibilidade e o modo de vida da corte. A seu turno, o teatro inicia com Gil
Vicente, e traz como marca a presença de elementos ideológicos que buscam a
inovação e a polêmica com vistas à crítica da sociedade da época.

E uma sociedade mais crítica, mais pensante, mais racional, torna-se mais
criativa, mais inventiva e progride. Com as atenções voltadas ao homem, vieram
os inventos, a ampliação geográfica de muitos territórios, entre eles Portugal,
disseminaram-se muitas e novas teorias, as quais contribuíram para renovar as
ideias. Renovou-se também a literatura, caracterizando assim o surgimento de
um novo tempo – o período clássico. E o estudo deste período será nosso próximo
assunto. Até lá!

68
RESUMO DO TÓPICO 3

Caro/a acadêmico/a, no presente tópico, você teve oportunidade de


estudar aspectos importantes relacionados à Literatura Portuguesa, os quais
revemos, resumidamente, a seguir:

• Durante o período humanista, o teatro popular é uma manifestação de grande


valor, tendo como expoente Gil Vicente. Já a poesia, após haver conhecido um
período de decadência pelos anos de 1400, começa a se desenvolver novamente
no ambiente dos palácios, influenciada por Dante Alighieri e Petrarca.

• O pensamento do primeiro período medieval, que tinha como coluna mestra a


figura de Deus (teocentrismo), dá lugar a uma nova maneira de pensar, em que
a figura do homem passa a ser o centro – antropocentrismo.

• Com o guarda-mor Fernão Lopes se dá o início das crônicas históricas de Portugal,


sendo este também o nome mais expressivo da prosa da época. Em suma, esse
autor é também o criador da historiografia nacional na forma cronística, isto é, a
biografia de uma grande personagem ou o relato de um grande sucesso.

• A sensibilidade, inteligência e habilidade de Fernão Lopes em concatenar fatos,


dados e versões diferentes de um mesmo episódio possibilitaram a construção
de uma obra irretocável, quer do ponto de vista histórico quer literário.

• Fernão Lopes procura passar uma ideia até moderna da história, pois para
ele a história de uma nação não era alicerçada puramente nas façanhas dos
monarcas e cavaleiros, mas, ao contrário, também nos movimentos populares
e nas forças econômicas.

• Ele apresenta de modo visual o panorama da sociedade lusitana, expondo a


vida palaciana e suas contradições e vícios, o movimento dos trabalhadores nas
aldeias, as festas urbanas, a decadência da aristocracia, entre outros aspectos
que podem ser observados nas suas narrativas.

• Apesar de terem desempenhado a mesma função de Lopes, os outros cronistas


não conseguiram atingir a genialidade do primeiro cronista-mor.

• A prosa didática desenvolveu-se principalmente durante os reinados de D.


João I, D. Duarte e a regência de D. Pedro, períodos estes em que houve grande
preocupação com o desenvolvimento da cultura de um modo geral.

69
• No que se refere à prosa didática e religiosa, mesmo que muitos críticos não a
tomem muito em consideração enquanto literatura, há que se registrar o valor
de tais escritos enquanto traduções de obras que são consideradas verdadeiros
patrimônios da época medieval, outras, enquanto inéditas, pela sua grande
importância didática para a história da formação da literatura lusitana, para o
enriquecimento da língua e aquisição de sua expressividade literária.

• A poesia palaciana é de influência espanhola e se apresenta dissociada da


música, passando a ser declamada, recitada, lida, o que requer técnica e
expressão. A riqueza desta poesia, sua complexidade temática e formal tomam
o lugar da singeleza e da espontaneidade das cantigas trovadorescas.

• A forma deste tipo de poesia é nova: geralmente são versos de sete sílabas (as
redondilhas maiores) e de cinco sílabas (redondilhas menores).

• Há que se valorizar na nova poesia a formalidade que ela oferece, a se começar


pela métrica, os ricos motivos de inspiração, a sua forma, o seu conteúdo.
Acima de tudo, a sua riqueza está na influência de dois grandes poetas: Dante
Alighieri e Francesco Petrarca.

• O teatro criado por Gil Vicente recebeu o nome de teatro popular por causa das
suas características consideradas fundamentais – popular nos temas, popular
na linguagem utilizada e popular nos atores. Gil Vicente, poder-se-ia dizer,
explora o que é conhecido pelo povo para compor suas peças.

• Antes de Gil Vicente, provavelmente, não havia teatro em Portugal. O que


havia, segundo se conhece, eram encenações de caráter religioso, cuja função
era puramente catequética, com finalidades morais e éticas.

• Vicente procurou manter certa proximidade às suas influências medievais,


fazendo, antes de tudo, um teatro que trazia a tônica didático-moralizante. Se,
em parte, focalizavam-se as virtudes cristãs como objetivo a ser perseguido,
procurava também não perder de vista a sociedade lusitana da época, trazendo-a
à baila com um tom de humor e senso crítico, mantendo ali uma visão humanista.

• Gil Vicente procurava passar ao público uma visão crítica da sociedade,


deixando de lado a parcialidade: não distinguia classes sociais, colocava em
cena nobres e plebeus, membros da política e cidadãos comuns, pobres e ricos,
censurava a hipocrisia de qualquer que fosse o cidadão, incluindo entre estes
os frades que pregavam e não colocavam em prática as virtudes, denunciava
os exploradores das classes mais populares, colocava à vista de todos as
imoralidades das prostitutas, os velhos sensuais, ridicularizava quem quer que
fosse ou o defeito que ele considerava necessário.

70
• Gil Vicente foi autor de mais de uma quarentena de peças, as quais podem ser
divididas em diferentes fases: a primeira fase compreende o período em que
recebeu grande influência de Juan de Encina. Já na segunda fase a preocupação
de Vicente está dirigida aos problemas sociais. Por fim, na terceira fase, a sua
produção dramática concebe um tom religioso e define grandes qualidades
artísticas.

71
AUTOATIVIDADE

Caro/a acadêmico/a, para que você possa melhor fixar o conteúdo


deste tópico, apresentamos, a seguir, uma atividade. Procure resolvê-la com
base no que você estudou.

1 Leia com atenção a poesia a seguir e procure responder às questões


propostas:

Partem tão tristes


(João Ruiz de Castelo Branco)

Senhora, partem tão tristes


meus olhos por vós, meu bem,
que nunca tão tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.

Tão tristes, tão saudosos,


tão doentes da partida,
tão cansados, tão chorosos,
da morte mais desejosos
cem mil vezes que da vida.
Partem tão tristes os tristes,
tão fora d’espertar bem,
que nunca tão tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.

FONTE: Braga (2005, p. 193)

a) No texto apresentado, notam-se resquícios das cantigas de amor. Identifique-


os.

b) Existe, na poesia, um relacionamento amoroso que revela certo


distanciamento. Explique-o e comprove-o com partes do texto.

c) Comente o tema desta poesia. Em que este tema se assemelha a certo tipo de
cantiga do Trovadorismo?

d) Procure contar as sílabas poéticas da poesia. Qual foi o tipo de verso utilizado
pelo poeta?

72
2 Releia o texto do Auto da Barca do Inferno (no final do quinto item deste
tópico) e, em seguida, responda às questões ora apresentadas:

a) No texto, aparece o Fidalgo, o qual tem esperanças de não ir para o Inferno


depois de morto. Comente o fato no qual ele se baseia para que isto aconteça.

b) De acordo com o Diabo, o Fidalgo já teria fretado seu navio em vida.


Explique esta proposição.

c) Explique o motivo de o anjo se recusar a receber o Fidalgo.

d) Nas reflexões anteriores ao embarque com o Diabo, comente as conclusões


a que chega o Fidalgo.

e) O autor se vale da figura do Frade. Através dele, que crítica é efetuada?

f) Entre as personagens da peça, há a figura dos Cavaleiros. Através deles,


poderia ser valorizado algum aspecto da Idade Média? Explique.

73
74
UNIDADE 2

A PRODUÇÃO LITERÁRIA
PORTUGUESA CLÁSSICA,
BARROCA E ÁRCADE

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, o/a acadêmico/a estará apto/a a:

• refletir acerca das características estéticas das escolas literárias portugue-


sas do Classicismo, do Barroco e do Arcadismo;

• apresentar o momento histórico-social em que ocorreram os movimentos


artístico-literários em estudo;

• conhecer a produção literária épica e lírica do período clássico português;

• discutir acerca da produção camoniana nas duas perspectivas: lírica e épica;

• compreender o porquê da inserção de alguns autores (a exemplo de Ca-


mões, Padre Antônio Vieira e Manoel Maria Barbosa du Bocage) em deter-
minada escola literária;

• analisar alguns textos literários considerados marcantes na formação dos


períodos literários clássico, barroco ou árcade de Portugal, localizando ne-
les características da respectiva escola literária.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em três tópicos. Ao final de cada um deles, o/a
acadêmico/a poderá dispor de atividades que o/a auxiliarão na fixação do
conteúdo.

TÓPICO 1 – O PERÍODO LITERÁRIO CLÁSSICO: CAMÕES ÉPICO E


CAMÕES LÍRICO

TÓPICO 2 – UMA ÉPOCA DE DUALISMOS: O BARROCO PORTUGUÊS

TÓPICO 3 – AS LUZES DA RAZÃO: O ARCADISMO

75
76
UNIDADE 2
TÓPICO 1

O PERÍODO LITERÁRIO CLÁSSICO: CAMÕES ÉPICO E


CAMÕES LÍRICO

"― Ó glória de mandar! Ó vã cobiça


Desta vaidade, a quem chamamos Fama!
Ó fraudulento gosto, que se atiça
C'uma aura popular, que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades neles experimentas!”

(CAMÕES, Luís Vaz de. Os Lusíadas, Canto IV)

1 INTRODUÇÃO
Em meados do século XIV, verifica-se no cenário europeu o fim do
monopólio clerical nas questões culturais. Ao mesmo tempo, muitos filhos da
burguesia passam a frequentar os ambientes universitários, o que lhes permite
o contato com a produção cultural desvinculada das ideias medievais. E dentro
dessa mesma realidade vivida pela Europa, com a decadência do feudalismo e a
ascensão da burguesia, verifica-se a necessidade de uma nova cultura, talvez mais
liberal, mais centralizada no ser humano (antropocêntrica), que se identificasse
com a economia mercantilista.

E isto também chegou às terras de Portugal, com a dinastia de Avis no


poder, vivendo o momento do auge das Grandes Navegações e o sucesso do
comércio. O contexto era propício às novas ideias que vinham da Itália, via
grandes obras dos autores do humanismo italiano – Dante Alighieri, Francesco
Petrarca e Giovanni Boccaccio.

No que concerne à literatura, o Classicismo tem seu início em 1527, com a


volta de Sá de Miranda de uma viagem de estudos pela Itália. Este autor obteve
novos conhecimentos sobre a renovação literária e novas maneiras de compor a
poesia, como o caso da nova forma – o soneto. Dentro desta nova fase literária de
Portugal, tem-se como expressão máxima o autor da épica e da lírica, Luís Vaz de
Camões, do qual, caro/a acadêmico/a, trataremos neste tópico.

77
UNIDADE 2 | A PRODUÇÃO LITERÁRIA PORTUGUESA CLÁSSICA, BARROCA E ÁRCADE

FIGURA 12 – LUÍS VAZ DE CAMÕES

FONTE: Borges (2001, p. 26)

2 ASPECTOS GERAIS DO CLASSICISMO


Na Europa dos séculos XV e XVI, floresceu um movimento que tinha por
intuito a renovação da arte e da cultura, incluindo neste conjunto a literatura.
Para produzir esta renovação, a base era a cultura clássica grega e latina. Este
movimento recebeu o nome de Renascimento. A sua origem parece ter sido na
Itália, mas disseminou-se pela Europa como um todo, marcando a transição entre
a época feudal e o capitalismo burguês.

Diante disto, a Europa (e Portugal) assiste a uma verdadeira revolução


em termos de comércio, cujo impulso principal era a importação das ditas
especiarias do Oriente para serem revendidas na Europa. Isto ocasionou o
nascimento e crescimento de uma nova classe social – a burguesia – composta
principalmente de comerciantes que enriqueceram com os recursos provenientes
das vendas. Atrelado a todo esse novo contexto econômico, há o ressurgimento e
crescimento das cidades, a consolidação da vida nestas cidades (urbanização), a
maior circulação de dinheiro, a necessidade de mais trabalhadores para produzir
alimentos no campo (pois a produção passou a ser maior) e o consequente
surgimento da classe trabalhadora (operariado), já que a servidão do feudalismo
acabou.

A sociedade, então marcada profundamente pelas ideias teocêntricas do


medievalismo, assume uma postura de atenção voltada ao ser humano, ou melhor,
antropocêntrica. Diante disto, se dá a valorização do ser homem, de modo que ele
passa a ser focado nos estudos e exaltado na sua natureza. Com isto, ele começa
a compreender a sua capacidade de realização – inventa, conquista, cria, produz
e é capaz de grandes criações.

78
TÓPICO 1 | O PERÍODO LITERÁRIO CLÁSSICO: CAMÕES ÉPICO E CAMÕES LÍRICO

Portanto, o período renascentista foi um dos grandes contribuidores para a


radical transformação do homem, seja no campo religioso, filosófico, sentimental,
político, enfim, o ser humano passou a conceber o mundo, a realidade, de modo
diferente. No que se refere a esse período novo, o historiador de literatura Teófilo
Braga (2005, p. 381) assim se expressa: “[...] ante sua presença, acaba a Idade
Média imediatamente: e eis que ávida de pensamentos e de conhecimentos, a
sociedade lhe lança, como uma semente fecunda, todas as ideias que constituirão
um dia a ciência e a consciência moderna”. O desenvolvimento das diferentes
áreas de estudo, das experiências científicas propiciou as bases para que se
desenvolvesse a técnica moderna. Muitas conquistas se sucederam e permitiram
que o ser humano dominasse cada vez mais a natureza, a qual se transforma em
objeto de estudo de muitos cientistas.

E nesse avanço cresce também o interesse do homem pelas obras gregas


e latinas, sejam elas voltadas para a filosofia, para os assuntos científicos ou
ainda para a literatura. Os autores ditos clássicos começaram a ser tomados
como modelos, passando, inclusive, a ser influenciadores das obras do período
renascentista. A própria maneira de pensar se nutre da filosofia grega, e as
diferentes artes inspiram-se nas obras clássicas.

Diante disso, no que concerne especificamente à Literatura, pode-se


dizer que, dentro desse período voltado para a retomada dos valores greco-
romanos, acontece a escola literária do Classicismo, ou seja, um período em
que os escritores seguiram de perto os modelos clássicos, tentando imitá-los ou
ao menos adaptá-los à realidade da época. Entre as consequências, poder-se-ia
dizer que estava a existência de uma estrutura formal e o apego às normas de
composição em conformidade com a tradição greco-latina. Já no que diz respeito
ao conteúdo, importante citar o paganismo e o amor platônico. Há que se dizer,
as atividades artísticas e científicas corroboram para a formação de uma cultura
nova, ou também, “[...] todas as atividades resultam na formação de um novo
clima intelectual otimista e confiante na força do ser humano, que se torna agora
o centro do universo” (TUFANO, 1981, p. 95). Diante disto, homem, mundo e
vida passam a ser vistos com os olhos da razão.

No que concerne à sociedade como um todo, nesse período conviveu-se


com dois movimentos de cunho religioso que marcaram o século XVI, ao mesmo
tempo em que repercutiram nas esferas social e cultural: o primeiro seria a
Reforma Protestante, sob a liderança de Martinho Lutero (1483-1546), e o segundo
a Contrarreforma, movimento de reação à reforma protestante, empreendido
pela Igreja Católica Romana.

Embalada por essas questões religiosas que abalaram o poderio da Igreja,


grande parte dos artistas teve subordinada sua fé aos imperativos da razão e,
nesse sentido, houve um grande estímulo à curiosidade intelectual, abrindo
caminhos para investigações conflitantes com base na filosofia, uma vez que se
adotava a liberdade de pensamento e o exame de muitas questões da ciência, sem

79
UNIDADE 2 | A PRODUÇÃO LITERÁRIA PORTUGUESA CLÁSSICA, BARROCA E ÁRCADE

necessitar levar em conta os dogmas da Igreja. Os artistas, entre estes os pintores,


os escultores, os arquitetos e os literatos, tomaram como modelos e inspiração as
obras dos antigos gregos e romanos. Por isso mesmo, caro/a acadêmico/a, dizia-
se que a gloriosa arte antiga estava ressurgindo. E para completar esta ideia, faça-
se eco às palavras de Moisés (2008, p. 67):

[...] o Classicismo consistia, antes de tudo, numa concepção de arte


baseada na imitação ou mimese dos clássicos gregos e latinos,
considerados modelos de suma perfeição estética. Imitar não
significava copiar, mas, sim, a procura de criar obras de arte segundo
as fórmulas, as medidas empregadas pelos antigos.

Os artistas do período clássico retomaram o conceito de mimese (imitação)


de Aristóteles. Entendiam eles que a obra de arte deveria imitar a natureza. Por
isso se diz que o Renascimento voltou-se decididamente para a natureza: imitação
da natureza, imitação da realidade, imitação da vida.

NOTA

A palavra mimese tem origem no grego – mímesis – imitação; ou no latim –


imitatio – que designa a ação ou a faculdade de imitar; cópia, reprodução ou representação
da natureza, o que constitui, na filosofia aristotélica, o fundamento de toda a arte. O conceito
de mimese é parte integrante da filosofia de Platão e da Poética de Aristóteles. Sugiro que
você aprofunde o conceito/ideia de mimese como imitação lendo uma das principais obras
do filósofo grego Aristóteles – “Arte Poética”. Nesta obra, ele trata da literatura como uma
imitação.

De uma maneira geral, dentro do espírito do Classicismo, tem-se a


presença do culto, da prática, da imitação por excelência dos valores artísticos dos
autores da antiguidade clássica grega e romana. Entre estes autores, poder-se ia
citar, entre os gregos, Homero, com suas duas grandes obras – Ilíada e Odisseia,
e entre os latinos, Virgílio, com a Eneida.

NOTA

Caro/a acadêmico/a, há que se dizer que muitos outros autores serviam de


inspiração e poderiam ser imitados. Citem-se, por exemplo, dentre os muitos autores gregos,
Ésquilo, Sófocles, Eurípides (dramaturgos), Aristófanes (cômico), Safo e Anacreonte (poetas
líricos), Heródoto (historiador), entre outros. Entre os latinos, haveria ainda poetas como
Horácio e Catulo, oradores como Cícero, pensadores como Sêneca, comediógrafos como
Plauto e Terêncio.

80
TÓPICO 1 | O PERÍODO LITERÁRIO CLÁSSICO: CAMÕES ÉPICO E CAMÕES LÍRICO

Os escritores e os pensadores do período clássico estudaram e imitaram


os clássicos da antiguidade, voltando à prática de gêneros e formas literárias mais
antigas, entre estas a epopeia, a ode, a elegia, a comédia etc. Por isso, podemos
dizer como a estudiosa portuguesa de literatura, Maria Leonor Carvalhão Buescu
(1992, p. 80), que “o escritor do Classicismo está sempre voltado aos autores
gregos e latinos, os quais ele considera como seus originais, e de quem emanam
boas odes, boas tragédias e excelentes epopeias”. E foi a partir dessa imitação
dos modelos da antiguidade que surgiu a renovação literária chamada de
Classicismo. Tal imitação não consistia em copiar, mas, sim, recriar. A partir da
técnica, a qual pode ser denominada arte, adquirida via estudo dos clássicos, os
escritores renascentistas valiam-se do talento próprio para conceber novas obras.

As ideias classicistas instalaram-se também na Península Ibérica. O


momento histórico em que Portugal vivia também era propício para tal. Nas
terras lusitanas, gradativamente, verificou-se o fim do monopólio clerical no que
concernia à produção cultural. D. João II, cujo reinado durou de 1521 a 1557,
fundou a Universidade de Coimbra e o Colégio das Artes, também na cidade de
Coimbra, no qual se ensinava o latim, o grego, a matemática, a lógica e a filosofia.
Os filhos da classe burguesa passaram a cursar o ensino universitário, colocando-
se, deste modo, em contato com um tipo de cultura desapegado dos conceitos
arcaicos da Idade Média.

Lembre-se de que a nova realidade econômica que se vivia, a qual se criou


graças ao fim do sistema feudal e com o fortalecimento da classe burguesa. Por
causa disto, fazia-se necessária uma nova forma de cultura, mais liberal, centrada
no homem (já que ele era o centro) e identificada com o mercantilismo.

A dinastia de Avis vivia um momento histórico novo, o poder estava


centralizado nas mãos do rei, as Grandes Navegações e o comércio estavam em
alta, por isso, tudo parecia propício aos novos conceitos culturais do Renascimento
veiculados na Itália.

A partir da retomada dos valores greco-latinos pelos escritores classicistas,


resultam as principais características literárias clássicas, dentre as quais podem-
se destacar:

• Busca do homem universal – o mundo, o ser humano e a vida passaram a ser


vistos sob a ótica da razão. O homem do Renascimento passou a entender a
harmonia do universo e suas noções de beleza, bem e verdade, sempre tomando
como base para os seus conceitos o equilíbrio entre a razão e a emoção. Não
se aceitava a "arte pela arte", mas apresentava-se um alto objetivo ético: o
do aperfeiçoamento do homem na contemplação das paixões humanas que
transpareciam através da arte. Aqui reside também a catarse grega.

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UNIDADE 2 | A PRODUÇÃO LITERÁRIA PORTUGUESA CLÁSSICA, BARROCA E ÁRCADE

NOTA

Na Grécia antiga, com as tragédias, havia um momento em que os espectadores,


a partir do que era apresentado no palco, entravam num processo de purificação, por meio
da purgação de suas paixões, já que muitos espetáculos suscitavam sentimentos de terror ou
de piedade, os quais eram vivenciados na contemplação do espetáculo trágico. Este processo
de purgação, de purificação da alma, a partir do conteúdo da obra, recebe o nome de catarse.

• Valores greco-latinos – o homem renascentista adotou a mitologia pagã


como parte das suas obras, recorrendo a personagens mitológicas para pedir
inspiração, simbolizar emoções e exemplificar comportamentos. Entendia-se
que os antigos haviam chegado à perfeição formal, o que era almejado também
pelos artistas do Renascimento, os quais queriam revivê-la.

• Novas medidas e formatos – novas formas de composição foram criadas, entre


as quais o soneto, o verso de dez sílabas poéticas (decassílabo) e a oitava rima,
a qual foi levada a Portugal por Sá de Miranda, após um tempo de estudo na
Itália.

• Consciência da Nação – no Classicismo português, além da consciência do


homem como um ser universal, criou-se um forte sentimento de nacionalismo,
que foi um dos resultados das grandes navegações, que criaram o novo herói –
o povo português, cantado por Camões na sua épica Os Lusíadas.

Em Portugal, as ideias do Classicismo atingiram seu ápice no período


entre 1527 e 1580. O marco do seu início é o ano de 1527, quando se dá o regresso
do escritor Sá de Miranda de uma viagem empreendida pela Itália. Desta viagem,
ele trouxe os ideais de inovação herdados dos poetas italianos, entre estes as
novas formas de composição da poesia, como o soneto, os versos decassílabos e
as posturas amorosas do dolce stil nuovo.

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TÓPICO 1 | O PERÍODO LITERÁRIO CLÁSSICO: CAMÕES ÉPICO E CAMÕES LÍRICO

NOTA

Caro/a acadêmico/a, chamamos de dolce stil nuovo a uma expressão italiana


que quer dizer "doce estilo novo". Trata-se de um movimento da poesia italiana que surgiu
na Toscana por volta da segunda metade do século XIII e o início do século XIV. Este estilo foi
criado por um grupo de poetas florentinos, entre os quais Guido Guinizelli, Dante Alighieri,
Guido Cavalcanti, Lapo Gianni, Gianni Alfani e Cino da Pistoia. Um dos primeiros a utilizar esta
denominação foi Dante Alighieri, na Divina Comédia. Num primeiro momento, caracteriza-
se pela concepção diferente do amor – não mais como uma vassalagem, mas, sim, sob os
princípios da gentileza, como determina a nova sociedade burguesa. Uma segunda ideia diz
respeito à concepção da mulher, vista agora sob a ótica angelical, a qual provoca no homem
o desejo de bondade, de perfeição moral, de gentileza e de elevação espiritual. Uma terceira
ideia trata do estado de espírito do enamorado que, a partir da recordação da beleza e da
imagem angelical da figura feminina, procura encontrar equilíbrio entre o doce encanto do
coração e o receio de ser abandonado ou de se ver privado de tal graciosa figura.

Todas essas novas técnicas adquiriram aperfeiçoamento com o poeta Luís


Vaz de Camões, que, ao que parece, viveu dentro deste espaço de tempo. Ele,
inspirado em Petrarca, criou poemas líricos, além de um poema épico, por meio
do qual ele exalta as conquistas do povo português na descoberta do caminho
marítimo para a Índia, por meio do navegador Vasco da Gama. “Uma das
inspirações para essa epopeia portuguesa foi a Eneida, de Virgílio, ao melhor
estilo renascentista clássico, que não foi copiada, nem imitada, mas, sim, esta lhe
serviu de exemplo, de fonte de inspiração, já que Virgílio era para Camões um
autor encantador” (BORGES, 2001, p. 32). O poeta lírico e épico Camões constitui
o assunto dos itens a seguir.

3 A ÉPICA PORTUGUESA: “OS LUSÍADAS”


Agora que você, caro/a acadêmico/a, conheceu o período clássico
renascentista de Portugal, chegou o momento de entrar em contato com a maior
expressão da literatura clássica lusitana – Luís Vaz de Camões. Particularmente,
nesta seção, tratar-se-á do Camões da épica ou da epopeia.

Acredita-se que você já tenha ouvido falar na epopeia (ou poesia épica).
Caso não esteja lembrado/a, eis uma explicação. Um poema épico, ou epopeia, é
uma forma de poesia que trata de uma série de realizações heroicas sob a forma
de narrativa (poesia narrativa). Os fatos relatados (é comum dizer-se cantados)
podem ser de um indivíduo, de vários e mesmo de toda uma nação. Ainda, os
fatos narrados podem ter base real, lendária ou mitológica. A título de lembrança,
há como modelos de epopeias (ou poemas épicos) as de autoria do grego Homero
– A Ilíada e A Odisseia. Homero viveu por volta do século VIII a.C., na região da
atual Turquia, e na época conhecida por Jônia. Estas duas obras constituem os
mais antigos documentos da literatura helênica que chegaram aos nossos dias.
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UNIDADE 2 | A PRODUÇÃO LITERÁRIA PORTUGUESA CLÁSSICA, BARROCA E ÁRCADE

DICAS

Amigo/a acadêmico/a, você pode ler os poemas épicos de Homero – A Ilíada


e A Odisseia – baixando-os na internet no sítio “dominiopublico” ou assisti-los sob a forma de
filme: filme “Troia” (trata da epopeia A Ilíada) e filme “A Odisseia” (trata da epopeia A Odisseia).

No que diz respeito a Portugal, para relatar a história do povo português


e heroicizá-lo pelos seus feitos nas Grandes Navegações, através do herói
individual Vasco da Gama, o autor português quinhentista Luís Vaz de Camões
criou a epopeia Os Lusíadas. Ela é considerada a mais notável poesia épica da
era moderna, graças à sua grandeza e universalidade. Em Os Lusíadas é contada
a história de Vasco da Gama e dos heróis portugueses que navegaram ao redor
do Cabo da Boa Esperança (África do Sul) e encontraram uma nova rota marítima
para chegar à Índia.

Na sua epopeia, Camões consegue conciliar diferentes visões: a mitologia


pagã e a visão cristã, os sentimentos opostos sobre a guerra e o império, a vontade
de repouso da viagem aventureira e o desejo da aventura, o desfrute do prazer e as
exigências de uma visão heroica. Camões escolheu uma aventura real, realizada
por um povo, para perpetuá-la, ou seja, eternizá-la, através de sua obra o herói,
no caso, o povo português foi o herói representado em Vasco da Gama. Sobre
isto, importante considerar-se a opinião de Quadros (1992, p. 19):

[...] em contraste com as obras que lhe servem de modelo, Os Lusíadas


escolhem um tema histórico, real. Não inventam proezas fantasiosas,
limitam-se (e com que orgulho!) a narrar coisas acontecidas. E, mesmo
assim, aquilo que narram, supera de longe as ficções antigas:

Que por muito e por muito que se afinem,


Nestas fábulas vãs tão bem sonhadas,
A verdade que eu canto, nua e pura,
Vence toda grandíloca escritura! (Canto V)

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TÓPICO 1 | O PERÍODO LITERÁRIO CLÁSSICO: CAMÕES ÉPICO E CAMÕES LÍRICO

FIGURA 13 – D. SEBASTIÃO 

FONTE: De Giovanni (2007, p. 46)

Conforme já comentado anteriormente, Camões se valeu da antiguidade


clássica para a forma adequada: o poema épico, gênero poético narrativo e
pomposo, desenvolvido pelos autores dos tempos clássicos antigos para cantar
a história de todo um povo. A Ilíada e a Odisseia, imputadas ao grego Homero
(século VIII a.C.), narram os eventos da Guerra de Troia, contam as lendas, a
história e as aventuras heroicas do povo helênico na guerra. Já a Eneida, do latino
Virgílio (71 a 19 a.C.), apresenta as aventuras do herói Eneias, após a guerra de
Troia, a história da fundação de Roma e as origens do povo romano.

DICAS

Caro/a acadêmico/a, para melhor poder acompanhar os estudos deste item,


pedimos que você também, como Vasco da Gama, realize uma aventura, enfrente um grande
desafio: faça uma leitura cuidadosa da obra de Camões – Os Lusíadas. Você pode baixá-la no
seu computador, via sítio “dominiopublico”.

Ao elaborar a mais notável obra poética da língua portuguesa, Os


Lusíadas, publicada em 1572, Luís de Camões toma por base a estrutura narrativa
da Odisseia de Homero, como já frisado, assim como versos da Eneida de Virgílio.
Vale-se, para estruturar as estrofes, da oitava rima, criada pelo italiano Ariosto,
que consiste em estrofes de oito versos, rimadas sempre da mesma forma: AB
AB AB CC. A epopeia de Camões é considerada grande não só por causa da sua
extensão, mas também por seu importante valor literário e histórico. E por que
sua extensão? Muitas pessoas ficam perplexas, assustam-se com a extensão da

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UNIDADE 2 | A PRODUÇÃO LITERÁRIA PORTUGUESA CLÁSSICA, BARROCA E ÁRCADE

obra. É composta por dez cantos organizados, contendo em média cento e dez
oitavas, perfazendo um total de oito mil oitocentos e dezesseis (8.816) versos,
todos decassílabos e paroxítonos. Como já vimos, caro/a acadêmico/a, versos
decassílabos são os que se compõem de dez sílabas poéticas e as oitavas são
composições com estrofes de oito versos. Veja-se um exemplo:

Observe a seguir a decomposição de alguns versos do Canto I,


demonstrando o número de sílabas poéticas e as rimas:

QUADRO 2 – DECOMPOSIÇÃO DE PARTE DA PRIMEIRA ESTROFE DE OS LUSÍADAS

FONTE: Azevedo Filho (1991, p. 162)

Observe também um exemplo de uma estrofe quanto à organização das


rimas:

1- Uns vão nas almadias carregadas; (A).


2- Um corta o mar a nado, diligente; (B).
3- Quem se afoga nas ondas encurvadas; (A).
4- Quem bebe o mar e o deita juntamente. (B).
5- Arrombam as miúdas bombardadas. (A).
6- Os pangaios sutis da bruta gente. (B).
7- Desta arte o Português enfim castiga. (C).
8- A vil malícia, pérfida, inimiga. (C).

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TÓPICO 1 | O PERÍODO LITERÁRIO CLÁSSICO: CAMÕES ÉPICO E CAMÕES LÍRICO

Em suma, a maneira de Camões (2008, p. 70) organizar seu poema é


engenhosa, como ele próprio o diz no poema: “Cantando espalharei por toda
parte, se a tanto me ajudar engenho e arte.” Este dizer é prudente que seja
complementado com o comentário de Massaud Moisés: “os seus textos reduzem-
se [...] a exercícios de arte (técnica poética) a que está faltando o engenho
(inspiração, talento). A reunião de ambos resulta bem, mas a arte, sem o engenho,
consiste no trabalho artesanal destituído de inspiração e talento”. E Camões,
certamente, desejava, pelo que diz nos seus versos, contar tanto com a arte quanto
com o engenho.

FIGURA 14 – VASCO DA GAMA

FONTE: De Giovanni (2007, p. 48)

Apresentada a análise da estrutura externa do poema, e sendo Os


Lusíadas um texto renascentista, não poderia deixar de seguir a estética grega, a
qual valorizava, de modo particular, o clímax. Na epopeia camoniana, o clímax
se encontra no início do Canto VII – a chegada à Índia. Mas antes de analisarmos
de maneira mais acurada algumas partes do poema, apresentamos os dados
biográficos do seu autor, Camões.

Luís Vaz de Camões era filho de Simão Vaz de Camões e Ana de Sá e


Macedo. Segundo pesquisas mais antigas, teria nascido em lugar incerto, por
volta de 1525. A sua família era de origem galega, mas há muito tempo radicada
em Portugal. Pertencia à pequena nobreza. É possível que tenha frequentado a
Universidade de Coimbra. Um parente seu, D. Bento de Camões, foi prior do
Mosteiro de Santa Cruz e chanceler da Universidade de Coimbra.

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UNIDADE 2 | A PRODUÇÃO LITERÁRIA PORTUGUESA CLÁSSICA, BARROCA E ÁRCADE

Em Lisboa conviveu com a fidalguia cortesã, tendo em 1550 embarcado


como soldado para Ceuta, no norte de África, onde perdeu um olho em uma luta.
Retornando a Lisboa, levou, durante certo tempo, uma vida desregrada, jogado
à boêmia. No ano de 1552, esteve envolvido em desacatos no transcorrer de uma
procissão do Corpo de Deus, ferindo gravemente um funcionário da corte. Ficou
encarcerado durante certo tempo (alguns meses), mas dispôs-se a partir para a
Índia, lá chegando em setembro de 1553.

Na qualidade de soldado, fez parte das forças de patrulhamento da região


do Mar Vermelho e do Golfo Pérsico. Nos anos de 1555, esteve nas ilhas Molucas
e dois anos depois em Macau, exercendo a função de provedor dos defuntos
e ausentes. Em 1560, regressou a Goa, e ficou preso novamente, desta vez sob
acusações vagas. Ali conheceu o cientista Garcia de Orta para cuja obra escreveu
o seu primeiro poema impresso.

Passados alguns anos, anseia retornar às terras lusitanas, mas, em 1568,


Diogo de Couto encontrou-o retido em Moçambique, passando dificuldades,
pobre e sobrevivendo com a ajuda de amigos. Por volta de 1569 consegue
regressar a Lisboa, e publica Os Lusíadas, em 1572. D. Sebastião, rei de Portugal,
como recompensa pelos serviços prestados na Índia e pela criação da epopeia
nacional, institui-lhe uma pensão anual de 15.000 réis.

Conforme ficou demonstrado, Camões teve uma vida muito atribulada e


viajou bastante, inclusive, e pelo que se sabe, refez a rota de Vasco da Gama na
viagem do descobrimento do caminho marítimo para a Índia. Conta a história que
numa dessas viagens Camões e sua amada Dinamenes naufragam às margens do
rio Mekong, no Camboja. Nessa viagem, o autor épico também trazia consigo um
manuscrito de sua grande obra, Os Lusíadas. Há quem diga que, no momento do
naufrágio, com toda a confusão instalada, Camões não sabia quem salvar, se a
amada ou sua obra-prima. No final do incidente, a amada morre e o manuscrito
permanece intacto, salvo pelo autor graças ao cuidado.

O autor vem a óbito na cidade de Lisboa, a 10 de junho de 1580. Em


vida, além da grande epopeia, publicou três poemas líricos e três autos, a saber:
Anfitriões, Filodemo, El-rei Seleuco. O restante da sua produção poética foi
publicada postumamente, a partir de 1595.

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TÓPICO 1 | O PERÍODO LITERÁRIO CLÁSSICO: CAMÕES ÉPICO E CAMÕES LÍRICO

FIGURA 15 – PRIMEIRA EDIÇÃO DE OS LUSÍADAS – 1572

FONTE: Tufano (1990, p. 186)

Quanto ao seu conteúdo, o poema épico Os Lusíadas mantém uma


divisão em cinco partes, seguindo a regra da antiguidade clássica greco-latina:
proposição, invocação, dedicatória, narração e epílogo. A seguir, apresentamos
para você, caro/a acadêmico/a, um pequeno estudo de cada uma das partes do
poema.

1) PROPOSIÇÃO (Canto I, estrofes 1 a 3): é uma parte inicial que compreende a


síntese da poesia épica. Ali é apresentado o assunto do poema. Camões se vale,
para isto, das três primeiras estrofes do poema. É nesta parte que o poeta faz o
propósito de cantar os feitos heroicos dos soldados, dos nautas lusitanos, bem
como fazer memória aos reis que se empenharam pela expansão das fronteiras
do império lusitano e da fé cristã. Nesta parte, o poeta deixa claras algumas
características dos poemas, entre as quais o seu caráter coletivo, a valorização
do ser humano (antropocentrismo), a sobrevivência do "ideal cruzada", a
elevação da antiguidade clássica, o ideal nacionalista (ufanismo), sintaxe rica e
complexa.

AS armas e os Barões assinalados


Que da ocidental praia Lusitana
Por mares nunca de antes navegados
Passaram ainda além da Taprobana,
Em perigos e guerras esforçados
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram;

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UNIDADE 2 | A PRODUÇÃO LITERÁRIA PORTUGUESA CLÁSSICA, BARROCA E ÁRCADE

E também as memórias gloriosas


Daqueles Reis que foram dilatando
A Fé, o Império, e as terras viciosas
De África e de Ásia andaram devastando,
E aqueles que por obras valerosas
Se vão da lei da Morte libertando,
Cantando espalharei por toda parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte.

Cessem do sábio Grego e do Troiano


As navegações grandes que fizeram;
Cale-se de Alexandro e de Trajano
A fama das vitórias que tiveram;
Que eu canto o peito ilustre Lusitano,
A quem Neptuno e Marte obedeceram.
Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
Que outro valor mais alto se alevanta.

FONTE: CAMÕES, Luis Vaz de. Os Lusíadas. Lisboa: Instituto Camões/Ministério dos Negócios
Estrangeiros, 2000. p. 1.

2) INVOCAÇÃO (Canto I, estrofes 4 e 5): o poeta lusitano, nesta parte, roga


inspiração às Tágides, ninfas do Tejo, importante rio de Portugal. Pede-lhes o
estilo e a eloquência necessários à execução da sua obra. Obviamente, um tema
tão grandioso deveria exigir um estilo elevado, uma eloquência superior, eis
por que havia necessidade de pedir o auxílio das divindades protetoras dos
poetas.

E vós, Tágides minhas, pois criado


Tendes em mi um novo engenho ardente,
Se sempre, em verso humilde, celebrado
Foi de mi vosso rio alegremente,
Dai-me agora um som alto e sublimado,
Um estilo grandíloco e corrente,
Por que de vossas águas Febo ordene
Que não tenham enveja às de Hipocrene.

Dai-me uma fúria grande e sonorosa,


E não de agreste avena ou frauta ruda,
Mas de tuba canora e belicosa,
Que o peito acende e a cor ao gesto muda.
Dai-me igual canto aos feitos da famosa
Gente vossa, que a Marte tanto ajuda;
Que se espalhe e se cante no Universo,
Se tão sublime preço cabe em verso.
(Canto I, 4-5)

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TÓPICO 1 | O PERÍODO LITERÁRIO CLÁSSICO: CAMÕES ÉPICO E CAMÕES LÍRICO

3) DEDICATÓRIA (canto I, estrofes 6 a 18): Camões dedica seu poema épico


a D. Sebastião, rei de Portugal quando se deu a publicação de Os Lusíadas.
D. Sebastião, desde pequeno, era tido como a garantia da independência de
Portugal. Há que se frisar que a dedicatória não era parte da estrutura das
epopeias clássicas. Camões introduziu esta parte para mostrar o caráter superior
da obra e demonstrar a sua dependência de um protetor (o rei) para poder
publicá-la. Além disso, é um modo de demonstrar as proporções alcançadas
pelo império português.

Vós, tenro e novo ramo florescente


De uma árvore, de Cristo mais amada
Que nenhuma nascida no Ocidente,
Cesárea ou Cristianíssima chamada,
Vede-o no vosso escudo, que presente
Vos mostra a vitória já passada,
Na qual vos deu por armas e deixou
As que Ele para si na Cruz tomou;

Vós, poderoso rei, cujo alto império


O Sol, logo em nascendo, vê primeiro;
Vê-o também no meio do Hemisfério,
E quando desce, o deixa derradeiro;
Vós, que esperamos jugo e vitupério
Do torpe Ismaelita cavaleiro,
Do Turco Oriental e do Gentio
Que ainda bebe o licor do santo Rio.
(Canto I, 7-8)

4) NARRAÇÃO (compreende 1.072 estrofes, que vão do Canto I ao Canto X): trata-
se de uma longa narrativa em que o poeta desenvolve o tema apresentando
vários episódios ocorridos durante a viagem. Compreende três principais
acontecimentos: a Viagem de Vasco da Gama às Índias, a narrativa da história
de Portugal e, concomitantemente, o poeta lusitano narra os conflitos entre os
deuses do Olimpo (nome de um monte grego que, segundo a mitologia, seria a
morada dos deuses).

A narrativa começa já no meio da viagem (in edia res), quando já estavam


em pleno Oceano Índico, próximos a Moçambique, ponto em que pararam.
Depois de passarem em vários lugares da África, chegaram a Melinde, e Vasco da
Gama conta os muitos episódios anteriores, e a história de Portugal. Partindo de
Melinde, chegaram por fim ao destino – Calicute, na Índia. Na viagem de retorno,
como recompensa pelos grandes feitos, os heróis portugueses são recebidos por
Tétis e várias ninfas, numa ilha paradisíaca – a Ilha dos Amores. É o famoso
episódio da Ilha dos Amores. Os dois planos, o divino e o humano, encontram-se
no episódio da “Ilha dos Amores” (Cantos IX e X). Vitoriosos na sua empreitada,
os nautas portugueses são recompensados pelas ninfas.

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UNIDADE 2 | A PRODUÇÃO LITERÁRIA PORTUGUESA CLÁSSICA, BARROCA E ÁRCADE

NOTA

In media res: é uma expressão de origem latina, usada por Horácio, que
significa literalmente “no meio dos acontecimentos”. Esta é uma característica mais utilizada
nas epopeias. Na Odisseia e na Ilíada, a narração não ocorre a partir do início temporal da
ação, mas a partir de um ponto médio do seu desenvolvimento. Luís de Camões, em Os
Lusíadas, faz o mesmo, a exemplo dos clássicos: a narração da viagem de Vasco da Gama
começa na estrofe 19, do primeiro canto, com “Já no largo Oceano […]” (I, 19). Com isto, a
ação tornava-se mais dinâmica e mais atraente para o público, no entender da época.

No poema, há muitos episódios interessantes. Alguns deles, porém,


merecem um olhar mais atento. Por isso, dedicaremos a eles alguns comentários
e selecionaremos algumas estrofes para que você, acadêmico/a, possa melhor
conhecê-los.

- CONCÍLIO DOS DEUSES (Canto I, estrofes 20 a 41): os deuses convocam uma


reunião (concílio) para aprovar ou não o sucesso da empreitada do povo português,
representado em Vasco da Gama e os nautas. O veredictum é dado por Júpiter,
que acena positivamente, já que isso (aos portugueses) já está previsto. Mas há a
discordância de Baco, que alega que, se isso for concedido, as conquistas do Oriente
serão esquecidas, ultrapassadas por esse povo. Já a deusa Vênus concebe o povo
português como herdeiro dos romanos, portanto, pode vir a ser celebrada por ele.
Há um tumulto entre os deuses, uns tomando o partido de Vênus, outros o de
Baco, mas o deus Marte se impõe declarando que os portugueses são merecedores
de realizar a façanha, além do que Júpiter tinha, de antemão, concedido o favor.
Por isso, o supremo Deus concorda e encerra a reunião.

Quando os Deuses no Olimpo luminoso,


Onde o governo está da humana gente,
Se ajuntam em consílio glorioso,
Sobre as cousas futuras do Oriente.
Pisando o cristalino Céu fermoso,
Vêm pela Via Láctea juntamente,
Convocados, da parte de Tonante,
Pelo neto gentil do velho Atlante.

Em luzentes assentos, marchetados


De ouro e de perlas, mais abaixo estavam
Os outros Deuses, todos assentados
Como a Razão e a Ordem concertavam
(Precedem os antigos, mais honrados,
Mais abaixo os menores se assentavam);
Quando Júpiter alto, assi dizendo,
Cum tom de voz começa grave e horrendo:

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TÓPICO 1 | O PERÍODO LITERÁRIO CLÁSSICO: CAMÕES ÉPICO E CAMÕES LÍRICO

<<Prometido lhe está do Fado eterno,


Cuja alta lei não pode ser quebrada,
Que tenham longos tempos o governo
Do mar que vê do Sol a roxa entrada.
Nas águas têm passado o duro Inverno;
A gente vem perdida e trabalhada;
Já parece bem feito que lhe seja
Mostrada a nova terra que deseja.

Estas palavras Júpiter dizia,


Quando os Deuses, por ordem respondendo,
Na sentença um do outro diferia,
Razões diversas dando e recebendo.
O Padre Baco ali não consentia
No que Júpiter disse, conhecendo
Que esquecerão seus feitos no Oriente
Se lá passar a Lusitana gente.

Sustentava contra ele Vénus bela,


Afeiçoada à gente Lusitana
Por quantas qualidades via nela
Da antiga, tão amada, sua Romana;
Nos fortes corações, na grande estrela
Que mostraram na terra Tingitana,
E na língua, na qual quando imagina,
Com pouca corrupção crê que é a Latina.

E disse assi: – <<Ó Padre, a cujo império


Tudo aquilo obedece que criaste:
Se esta gente que busca outro Hemisfério,
Cuja valia e obras tanto amaste,
Não queres que padeçam vitupério,
Como há já tanto tempo que ordenaste,
Não ouças mais, pois és juiz direito,
Razões de quem parece que é suspeito.

Como isto disse, o Padre poderoso,


A cabeça inclinando, consentiu
No que disse Mavorte valeroso
E néctar sobre todos esparziu.
Pelo caminho Lácteo glorioso
Logo cada um dos Deuses se partiu,
Fazendo seus reais acatamentos,
Pera os determinados apousentos.

FONTE: CAMÕES, Luis Vaz de. Os Lusíadas. Lisboa: Instituto Camões/Ministério dos Negócios
Estrangeiros, 2000. p. 6.

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UNIDADE 2 | A PRODUÇÃO LITERÁRIA PORTUGUESA CLÁSSICA, BARROCA E ÁRCADE

- EPISÓDIO DE INÊS DE CASTRO (Canto III, estrofes 118 a 135): um dos


grandes momentos da narrativa da epopeia lusitana é o de Inês de Castro.
Dona Inês e Dom Pedro são os amantes cujo amor é proibido pelos poderes.
O pai, D. Afonso IV, tem o propósito de casar o filho, herdeiro do trono, mas
este, por nutrir uma paixão proibida com Inês, recusa-se. D. Pedro já era casado
e possuía um filho legítimo, mas também tinha outros filhos com a amante
Inês. Quando sua esposa morre, o príncipe se vê obrigado a casar novamente,
então declara já ser casado com Inês. O rei e a corte, com medo de que um de
seus filhos bastardos assumisse o trono, na ausência de D. Pedro, mandam
matar Inês. Esta é trazida à presença do rei e implora pela sua vida, só para
poder cuidar dos seus filhos. Comove o velho soberano, mas os conselheiros
e o povo exigem a morte, e assim a frágil e bela apaixonada é assassinada.
Quando fica sabendo do acontecido, D. Pedro ordena que sua amada, mesmo
morta, seja coroada rainha. Daí a conhecidíssima frase do episódio de Inês de
Castro, “aquela que depois de ser morta foi rainha”.

FIGURA 16 – EPISÓDIO DE INÊS DE CASTRO

FONTE: De Giovanni (2007, p. 51)

Passada esta tão próspera vitória,


Tornado Afonso à Lusitana Terra,
A se lograr da paz com tanta glória
Quanta soube ganhar na dura guerra,
O caso triste e dino da memória,
Que do sepulcro os homens desenterra,
Aconteceu da mísera e mesquinha
Que despois de ser morta foi Rainha.

Tu, só tu, puro Amor, com força crua,


Que os corações humanos tanto obriga,
Deste causa à molesta morte sua,
Como se fora pérfida inimiga.
Se dizem, fero Amor, que a sede tua

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TÓPICO 1 | O PERÍODO LITERÁRIO CLÁSSICO: CAMÕES ÉPICO E CAMÕES LÍRICO

Nem com lágrimas tristes se mitiga,


É porque queres, áspero e tirano,
Tuas aras banhar em sangue humano.

Estavas, linda Inês, posta em sossego,


De teus anos colhendo doce fruito,
Naquele engano da alma, ledo e cego,
Que a Fortuna não deixa durar muito,
Nos saudosos campos do Mondego,
De teus fermosos olhos nunca enxuito,
Aos montes insinando e às ervinhas
O nome que no peito escrito tinhas.

Do teu Príncipe ali te respondiam


As lembranças que na alma lhe moravam,
Que sempre ante seus olhos te traziam,
Quando dos teus fermosos se apartavam;
De noite, em doces sonhos que mentiam,
De dia, em pensamentos que voavam;
E quanto, enfim, cuidava e quanto via
Eram tudo memórias de alegria.

De outras belas senhoras e Princesas


Os desejados tálamos enjeita,
Que tudo, enfim, tu, puro amor, desprezas,
Quando um gesto suave te sujeita.
Vendo estas namoradas estranhezas,
O velho pai sesudo, que respeita
O murmurar do povo e a fantasia
Do filho, que casar-se não queria,

Tirar Inês ao mundo determina,


Por lhe tirar o filho que tem preso,
Crendo c’o sangue só da morte ladina
Matar do firme amor o fogo aceso.
Que furor consentiu que a espada fina,
Que pôde sustentar o grande peso
Do furor Mauro, fosse alevantada
Contra hûa fraca dama delicada?

Pera o céu cristalino alevantando,


Com lágrimas, os olhos piedosos
(Os olhos, porque as mãos lhe estava atando
Um dos duros ministros rigorosos);
E despois, nos mininos atentando,
Que tão queridos tinha e tão mimosos,
Cuja orfindade como mãe temia,
Pera o avô cruel assi dizia:
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UNIDADE 2 | A PRODUÇÃO LITERÁRIA PORTUGUESA CLÁSSICA, BARROCA E ÁRCADE

Tais contra Inês os brutos matadores,


No colo de alabastro, que sustinha
As obras com que Amor matou de amores
Aquele que despois a fez Rainha,
As espadas banhando e as brancas flores,
Que ela dos olhos seus regadas tinha,
Se encarniçavam, fervidos e irosos,
No futuro castigo não cuidosos.
(Canto III, estrofes 118 a 135)

- EPISÓDIO DO VELHO DO RESTELO (Canto IV, estrofes 90 a 104): há que se


compreender que o chamado episódio do “Velho do Restelo” não constitui um
fato ou uma personagem histórica de Portugal. Pelo contrário, trata-se de uma
alegoria criada pelo autor Camões, que encerra em si significação simbólica.
Há quem sustente a ideia de que, de uma parte, o velho e suas palavras seriam
aqueles que não viam com bons olhos a ideia de Portugal envolver-se nos
descobrimentos. Sustentavam que criar um império colonial além-mar, no
Oriente, poderia ser uma tentativa frustrada, além de ser demasiadamente
dispendiosa para os cofres do país. Cabia ainda a ideia de que os resultados eram
duvidosos. Esta corrente era da opinião de que o país deveria, sim, expandir-
se, porém valendo-se das conquistas militares no Norte de África. Entre estes,
estava a nobreza. A seu turno, a burguesia queria expansão marítima, pois eles
queriam comércio frutuoso.

Do outro lado, poder-se-ia ver na figura do Velho do Restelo a voz do


bom senso, os que recusam as aventuras duvidosas, considerando ser melhor a
tranquilidade da vida mediana que promessa de riquezas, pois poderiam resultar
em desgraças. Aqui se pode entender uma manifestação do espírito humanista,
favorável à paz e à tranquilidade, em oposição ao espírito aventureiro e guerreiro
medieval.

Nesse sentido, o episódio do “Velho do Restelo”, de certo modo,


constitui-se uma exaltação ao esforço guerreiro e expansionista dos portugueses
e, concomitantemente, apresenta as contradições da sociedade portuguesa da
época. Entre os críticos, isso é opinião corrente, a exemplo de que “[...] o discurso
do Velho do Restelo manifesta a contradição central do poema, a sua estrutura
oscilante e a sua modernidade”. (QUADROS, 1992, p. 37).

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TÓPICO 1 | O PERÍODO LITERÁRIO CLÁSSICO: CAMÕES ÉPICO E CAMÕES LÍRICO

FIGURA 17 – EPISÓDIO DO VELHO DO RESTELO

FONTE: De Giovanni (2007, p. 53)

"Qual vai dizendo: —" Ó filho, a quem eu tinha


Só para refrigério, e doce amparo
Desta cansada já velhice minha,
Que em choro acabará, penoso e amaro,
Por que me deixas, mísera e mesquinha?
Por que de mim te vás, ó filho caro,
A fazer o funéreo enterramento,
Onde sejas de peixes mantimento!"

"Nestas e outras palavras que diziam


De amor e de piedosa humanidade,
Os velhos e os meninos os seguiam,
Em quem menos esforço põe a idade.
Os montes de mais perto respondiam,
Quase movidos de alta piedade;
A branca areia as lágrimas banhavam,
Que em multidão com elas se igualavam.

"Mas um velho d'aspeito venerando,


Que ficava nas praias, entre a gente,
Postos em nós os olhos, meneando
Três vezes a cabeça, descontente,
A voz pesada um pouco alevantando,
Que nós no mar ouvimos claramente,
C'um saber só de experiências feito,
Tais palavras tirou do experto peito:

—"Ó glória de mandar! Ó vã cobiça


Desta vaidade, a quem chamamos Fama!
Ó fraudulento gosto, que se atiça
C'uma aura popular, que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades neles experimentas!

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UNIDADE 2 | A PRODUÇÃO LITERÁRIA PORTUGUESA CLÁSSICA, BARROCA E ÁRCADE

— "Dura inquietação d'alma e da vida,


Fonte de desamparos e adultérios,
Sagaz consumidora conhecida
De fazendas, de reinos e de impérios:
Chamam-te ilustre, chamam-te subida,
Sendo dina de infames vitupérios;
Chamam-te Fama e Glória soberana,
Nomes com quem se o povo néscio engana!

— "Mas ó tu, geração daquele insano,


Cujo pecado e desobediência,
Não somente do reino soberano
Te pôs neste desterro e triste ausência,
Mas inda doutro estado mais que humano
Da quieta e da simples inocência,
Idade d'ouro, tanto te privou,
Que na de ferro e d'armas te deitou:

— "Ó maldito o primeiro que no mundo


Nas ondas velas pôs em seco lenho,
Dino da eterna pena do profundo,
Se é justa a justa lei, que sigo e tenho!
Nunca juízo algum alto e profundo,
Nem cítara sonora, ou vivo engenho,
Te dê por isso fama nem memória,
Mas contigo se acabe o nome e glória.

— "Não cometera o moço miserando


O carro alto do pai, nem o ar vazio
O grande Arquiteto co'o filho, dando
Um, nome ao mar, e o outro, fama ao rio.
Nenhum cometimento alto e nefando,
Por fogo, ferro, água, calma e frio,
Deixa intentado a humana geração.
Mísera sorte, estranha condição!"
(Canto IV, estrofes 90 a 104)

- O GIGANTE ADAMASTOR (Canto V, estrofes 37 a 60): ao chegarem no sul


do continente africano, no conhecido Cabo das Tormentas (atual Cabo da
Boa Esperança), os marinheiros avistam uma nuvem escura, tão carregada
que pôs os corações dos marinheiros em pavor. Vasco da Gama sente-se no
dever de recorrer ao Deus todo poderoso. Este é o aparecimento do gigante
Adamastor, que constitui uma figura mitológica, criação do próprio autor da
epopeia portuguesa. Com isso, Camões desejava representar todos os perigos,
as tempestades, os naufrágios, as perdições de toda sorte que os portugueses
tiveram que enfrentar e vencer durante a viagem. Aliás, durante muitos anos,
vingou a ideia de que o Oceano Atlântico era o mar tenebroso. A crítica também

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TÓPICO 1 | O PERÍODO LITERÁRIO CLÁSSICO: CAMÕES ÉPICO E CAMÕES LÍRICO

concorda de que “[...] o poeta dá livre curso à antiga superstição de que o mar
seria um espaço proibido, no qual o homem não deve aventurar-se, sob pena
de sofrer punições terríveis.” (MOISÉS, 1998, p. 70). Talvez seja por causa disso
que Camões insiste em repetir que os portugueses enfrentam “os mares nunca
de outrem navegados”.

FIGURA 18 – GIGANTE ADAMASTOR

FONTE: De Giovanni (2007, p. 55)

Porém já cinco Sóis eram passados


Que dali nos partíramos, cortando
Os mares nunca de outrem navegados,
Prosperamente os ventos assoprando,
Quando uma noite, estando descuidados
Na cortadora proa vigiando,
Uma nuvem, que os ares escurece,
Sobre nossas cabeças aparece.

Tão temerosa vinha e carregada,


Que pôs nos corações um grande medo;
Bramindo, o negro mar de longe brada,
Como se desse em vão nalgum rochedo.
"Ó Potestade (disse) sublimada:
Que ameaço divino ou que segredo
Este clima e este mar nos apresenta,
Que mor cousa parece que tormenta?"

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UNIDADE 2 | A PRODUÇÃO LITERÁRIA PORTUGUESA CLÁSSICA, BARROCA E ÁRCADE

Não acabava, quando uma figura


Se nos mostra no ar, robusta e válida,
De disforme e grandíssima estatura;
O rosto carregado, a barba esquálida,
Os olhos encovados, e a postura
Medonha e má, e a cor terrena e pálida;
Cheios de terra e crespos os cabelos,
A boca negra, os dentes amarelos.

Tão grande era de membros, que bem posso


Certificar-te que este era o segundo
De Rodes estranhíssimo Colosso,
Que um dos sete milagres foi do mundo
Co’ um tom de voz nos fala, horrendo e grosso,
Que pareceu sair do mar profundo.
Arrepiam-se as carnes e o cabelo,
A mim e a todos, só de ouvi-lo e vê-lo.
(Canto V, estrofes 37 a 60)

- A ILHA DOS AMORES (Canto IX e X): estando ainda em Melinde, à hora


de partirem as naus, dois dos nautas portugueses que vendiam mercadorias
em Calicute são mantidos em terra, querendo que a partida fosse atrasada,
podendo, assim, talvez, ser alcançadas e destruídas por alguma esquadra
muçulmana. Em contrapartida, Vasco da Gama também mantém a bordo das
naus portuguesas alguns comerciantes indianos. Assim, o samorim aceita
trocar os prisioneiros portugueses pelos orientais. Ele também manda restituir
as mercadorias que os portugueses tomaram como resgate pelo capitão. Os
nautas, após cumprida sua missão, partem em viagem de retorno a Lisboa.
E a deusa Vênus, como prêmio aos navegadores por todo o sucesso e como
descanso pela empreitada, decide presenteá-los com uma estada numa ilha
paradisíaca. Lá ela reúne as nereidas (ninfas marinhas), feridas por Cupido
com suas flechas para que ardam de amor pelos portugueses. Os nautas ficam
alucinados com tamanho espetáculo, perseguem as ninfas, que se deixam
alcançar e se entregam, entre alaridos de prazer. Este episódio parece ser uma
manifestação de prazer, uma ideia de distanciamento do sexo como pecado.
O autor consegue mostrar um momento de congraçamento entre os humanos
e os deuses. Está aí também o engrandecimento dos navegadores (do povo
português) e sua elevação à esfera da imortalidade.

A ninfa Tétis oferece aos navegantes e às ninfas um banquete. Tétis


aproveita para vaticinar os feitos dos ilustres heróis. Depois do banquete, convida
o capitão (Vasco da Gama) para ir ao cimo do monte para mostrar-lhe a máquina
do mundo, que “[...] vem a ser o ápice e coroamento do poema. Seu significado é
que todo esforço humano deve culminar com a vitória do conhecimento racional.”
(MOISÉS, 1998, p. 101). Por fim, as ninfas despedem-se dos nautas e Tétis prediz
o feliz regresso dos navegantes portugueses à sua pátria.

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TÓPICO 1 | O PERÍODO LITERÁRIO CLÁSSICO: CAMÕES ÉPICO E CAMÕES LÍRICO

FIGURA 19 – AS NINFAS DA ILHA DOS AMORES

FONTE: De Giovanni (2007, p. 57)

De longe a ilha viram, fresca e bela,


Que Vênus pelas ondas lha levava
(Bem como o vento leva branca vela)
Pera onde a forte armada se enxergava;
Que, por que não passassem, sem que nela
Tomassem porto, como desejava,
Pera onde as naus navegam, a movia
A Acidália, que tudo, enfim, podia.

Mas firme a fez e imóbil, como viu


Que era dos nautas vista e demantada,
Qual ficou Delos, tanto que pariu
Latona Febo e a deusa à caça usada.
Pera lá logo a proa o mar abriu,
Onde a costa fazia uma enseada
Curva e quieta, cuja branca areia
Pintou de ruivas conchas Citereia.

Nesta frescura tal desembarcavam


Já das naus os segundos argonautas,
Onde pela floresta se deixavam
Andar as belas deusas, como incautas.
Algumas, doces cítaras tocavam,
Algumas , harpas e sonoras frautas;
Outras co’os arcos de ouro, e fingiam
Seguir os animais que não seguiam.

Já não fugia a bela ninfa tanto,


Por se dar cara ao triste que a seguia,
Como por ir ouvido o doce canto,

101
UNIDADE 2 | A PRODUÇÃO LITERÁRIA PORTUGUESA CLÁSSICA, BARROCA E ÁRCADE

As namoradas mágoas que dizia.


Volvendo o rosto, já sereno e santo,
Toda banhada em riso e alegria,
Cair se deixa aos pés do vencedor,
Que todo se desfaz em puro amor.

Oh! Que famintos beijos na floresta,


E que mimoso choro que soava!
Que afagos tão suaves, que ira honesta,
Que em risinhos alegres se tornava!
O que mais passam na manhã e na sesta,
Que Vênus com prazeres inflamava,
Melhor é exprimentá-lo que julgá-lo;
Mas julgue-o quem não pode exprimentá-lo.

Destarte, enfim, conformes já as fermosas


Ninfas co’os seus amados navegantes,
Os ornam de capelas deleitosas
De louro e de ouro e flores abundantes.
As mãos alvas lhes davam como esposas;
Com palavras formais e estipulantes
Se prometem eterna companhia,
Em vida e morte, de honra e alegria.

Assim cantava a ninfa; e as outras todas,


Com sonoroso aplauso, vozes davam,
Com que festejam as alegres vodas
Que com tanto prazer se celebravam.
“Por mais que da Fortuna andem as rodas
(Numa cônsona voz todas soavam),
Não vos hão-de-faltar, gente famosa,
Honra, valor e fama gloriosa.”

Despois que a corporal necessidade


Se satisfaz do mantimento nobre,
E na harmonia e doce suavidade
Viram os altos feitos que descobre,
Tétis, de graça ornada e gravidade,
Pera que com mais alta glória dobre
As festas deste alegre e claro dia,
Pera o felice Gama assim dizia:

“Faze-te mercê, barão, a Sapiência


Suprema de, co’os olhos corporais,
Veres o que não pode a vã ciência
Dos errados e míseros mortais.
Sigue-me firme e forte, com prudência,

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TÓPICO 1 | O PERÍODO LITERÁRIO CLÁSSICO: CAMÕES ÉPICO E CAMÕES LÍRICO

Por este monte espesso, tu co’os mais”.


Assim lhe diz, e o guia por um mato
Árduo, difícil, duro e humano trato.

Vês aqui a grande máquina do mundo,


Etérea e elemental, que fabricada
Assim foi do Saber, alto e profundo,
Que é sem princípio e meta limitada.
Quem cerca em derredor este rotundo
Globo e sua superfície tão limitada,
É Deus; mas o que é Deus, ninguém o entende,
Que a tanto o engenho humano não se entende.
(Cantos IX e X, estrofes 52 a 90)

5) EPÍLOGO (Canto X, estrofes 145 a 156): a epopeia camoniana conclui com um


epílogo em que o poeta apresenta suas lamentações e críticas à coroa portuguesa
pelas injustiças que esta teria cometido. Além disso, reitera a dedicação da obra
ao rei D. Sebastião. Camões, nesta parte, apresenta um tom mais pessimista, de
descrédito, de crítica aos portugueses que estavam deixando à parte os valores
nacionais. O epílogo de Os Lusíadas está em contraposição ao tom ufanista com
que se desenvolveu a trama. Há, porém, uma característica que a difere em relação
à epopeia clássica. Há que se dizer, outrossim, que neste epílogo do poema de
Camões aparece uma atitude subjetiva do poeta, o qual desabafa acerca dos seus
próprios conflitos íntimos e das privações nos seus últimos dias de vida.

FIGURA 20 – ROTA DE VASCO DA GAMA ATÉ A ÍNDIA

FONTE: Disponível em: <http://www.cki.com.br/Historia/images/Rota_VGama.jpg>. Acesso em:


25 nov. 2010.
103
UNIDADE 2 | A PRODUÇÃO LITERÁRIA PORTUGUESA CLÁSSICA, BARROCA E ÁRCADE

Não mais, Musa, não mais que a Lira tenho


Destemperada e a voz enrouquecida,
E não do canto, mas de ver que venho
Cantar a gente surda e endurecida.
O favor com que mais se acende o engenho
Não no dá a pátria, não, que está metida
No gosto da cobiça e na rudeza
Duma austera, apagada e vil tristeza.

E não se por que influxo do destino


Não tem um ledo orgulho e geral gosto,
Que os ânimos levanta de contino
A ter pêra trabalhos ledo o rosto.
Por isso vós, ó Rei, que por divino
Conselho estais no régio sólio posto,
Olhai que sois (e vede as outras gentes)
Senhor só de vassalos excelentes.

Todos favorecei em seus ofícios,


Segundo têm das vidas o talento:
Tenham religiosos exercícios
De rogarem, por vosso regimento,
Com jejuns, disciplina, pelos vícios
Comuns; toda ambição terão por vento,
Que bom religioso verdadeiro
Glória vã não pretende nem dinheiro.

Para servir-vos, braço às armas feito;


Pera cantar-vos, mente às musas dada;
Só me falece ser a vós aceito,
De quem virtude deve ser prezada.
Se me isto o céu concede, e o vosso peito
Dina empresa tomar de ser cantada,
Como a pressaga mente vaticina,
Olhando a vossa inclinação divina,

Ou fazendo que, mais que a de Medusa,


A vista vossa tema o monte Atlante,
Ou rompendo nos campos de Ampelusa
Os muros de Marrocos e Trudante,
A minha já estimada e leda musa
Fico em que todo o mundo de vós cante
De sorte que Alexandro em v´pos se veja,
Sem à dita de Aquiles ter inveja.
(Canto X, estrofes 145 a 156)

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TÓPICO 1 | O PERÍODO LITERÁRIO CLÁSSICO: CAMÕES ÉPICO E CAMÕES LÍRICO

De um modo geral, o poema épico lusitano – Os Lusíadas – representa


muito mais do que uma simples obra do período classicista português. Essa épica
constitui-se em um monumento da humanidade, pois o seu valor é o mesmo de
um hino a todo o período clássico, é a glorificação do povo português pelos seus
feitos no Oriente, pelas batalhas empreendidas. Camões conseguiu eternizar-se,
eternizar Vasco da Gama e eternizar os portugueses e seus feitos heroicos. “[...] os
homens tomam para si a fama e a glória [...]. Divinizam-se, quer dizer, glorificam-
se.” (QUADROS, 1992, p. 22).

Da magnitude assumida por esta obra máxima do classicismo lusitano,


adveio a grande influência que Os Lusíadas exerceram nos séculos vindouros.
Já se passaram muitos séculos da sua publicação, e esse poema épico ainda
atrai e fascina os leitores e constitui-se inspiração para os novos escritores. Atrai
e inspira porque é um clássico. E sobre os clássicos, para completar, eis o que
diz Ítalo Calvino (1993, p. 23): “[...] os clássicos são livros que exercem uma
influência particular quando se impõem como inesquecíveis e também quando se
ocultam nas dobras da memória, mimetizando-se como inconsciente coletivo ou
individual. Talvez essa atração seja resultado da beleza, da arte, da força que está
contida nos seus versos. Por tudo isso é um clássico.

Caro/a acadêmico/a, nesta seção, vocês tiveram oportunidade de conhecer


o Camões épico. Mas este autor português destacou-se também por uma vasta
obra lírica. A lírica camoniana constitui o nosso próximo assunto.

4 A POESIA LÍRICA DE CAMÕES


Além da grande obra épica, a qual, caro/a acadêmico/a, você acabou de
estudar, Camões notabilizou-se por uma vasta obra lírica. Poder-se-ia arriscar a
dizer que ele é considerado um dos maiores poetas líricos da literatura universal.
Há que se ressaltar, no entanto, que as poesias líricas de Camões só foram reunidas
e publicadas em 1595, portanto, quinze anos depois da sua morte.

Quanto à questão estética do lirismo camoniano, há que se destacar que


ele soube conciliar a tradição medieval com as inovações clássicas. Para isto, ele
recebeu grande influência do poeta humanista italiano Francesco Petrarca. Além
disto, outra influência marcante veio dos autores da antiguidade latina (Ovídio,
Horácio, Virgílio).

Entre os temas da poesia lírica camoniana, há que se destacar:

- O AMOR: este parece ser o tema mais rico tratado pelo poeta. Há momentos
em que ele o trata como uma ideia (neoplatonismo), mas há também ocasiões
em que Camões lhe dá a tônica da carnalidade. Muitas vezes, nas poesias,
esse amor é visto de maneira idealizada, o que leva o poeta a ter que valer-
se de muitos adjetivos para poder descrever a pessoa amada. Por isso, em
muitos momentos, ela é tratada como um ser superior, em outros ela passa

105
UNIDADE 2 | A PRODUÇÃO LITERÁRIA PORTUGUESA CLÁSSICA, BARROCA E ÁRCADE

a ser alguém angelical ou ainda perfeito. Nisto ele se assemelha a Dante e


Petrarca, que tratavam a pessoa amada como um ser angelical: Laura (Petrarca)
e Beatriz (Dante). Camões cantou o sentimento amoroso sob todas as óticas
possíveis, seja como paixão desenfreada, como sofrimento pela indiferença ou
rejeição da pessoa amada, como a beleza da mulher, sua sensualidade, carinho,
delicadeza, sua força. Por causa dos diferentes modos de tratar o amor, talvez,
seus poemas se tornaram universais.

Eu cantarei de amor tão docemente,


por uns termos em si tão concertados,
que dous mil acidentes namorados
faça sentir ao peito que não sente.

Farei que amor a todos avivente,


pintando mil segredos delicados,
brandas iras, suspiros magoados,
temerosa ousadia e pena ausente.

Também, senhora, do desprezo honesto


de vossa vista branda e rigorosa,
contentar-me-ei dizendo a menor parte.

Porém, para cantar de vosso gesto


a composição alta e rigorosa
aqui falta saber, engenho e arte.
(RODRIGUES, 1993, p. 20)

- O DESCONCERTO DO MUNDO: o poeta manifestou-se, por meio deste tema,


acerca das injustiças sociais, as recompensas dadas aos maus cidadãos e as
penalidades infligidas a muitos bons cidadãos, a ambição, o vício de poupar
bens que acabam com a morte, enfim, o conflito existente entre o ser e o dever
ser. O poeta manifesta seu inconformismo com um poema chamado “Ao
desconcerto do mundo”:

Os bons vi sempre passar


no mundo graves tormentos;
e, para mais me espantar,
os maus vi sempre nadar
em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
o bem tão mal ordenado,
fui mau, mas fui castigado.
Assim que, só para mim
anda o mundo concertado.
RODRIGUES, 1993, p. 19)

106
TÓPICO 1 | O PERÍODO LITERÁRIO CLÁSSICO: CAMÕES ÉPICO E CAMÕES LÍRICO

Dentro do gênero lírico, o poeta Camões compôs as mais variadas formas,


entre as quais podem-se destacar:

a) Redondilhas: poemas compostos por versos na medida velha, melhor dizendo,


com cinco sílabas poéticas (redondilha menor) ou então com sete sílabas
poéticas (redondilha maior).

Aquela cativa
que me tem cativo,
porque nela vivo,
já não quer que viva.

Eu nunca vi rosa
em suaves molhos,
que pera meus olhos
fosse mais fermosa.

Nem no ceo estrelas,


nem no campo flores,
me pare(s) cem belas,
como os meus amores.

Rosto singular,
olhos sossegados,
pretos e cansados,
mas não de matar.

FONTE: AZEVEDO FILHO, Leodegário A. de. Introdução à lírica de Camões. Lisboa: Instituto de
Cultura e Língua Portuguesa/Ministério da Educação, 1991. p. 152.

b) Canções: as canções clássicas geralmente versavam em torno do amor, sendo


compostas por versos decassílabos – com dez sílabas poéticas – ou então em
versos de seis sílabas poéticas – o também chamado quebrado.

Tão suave, tão fresca e tão fermosa,


nunca no ceo saiu
a Aurora, no princípio do verão,
às flores dando a graça costumada,

como a fermosa mansa fera,


quando um pensamento vivo me inspirou,
por quem me desconheço.
Bonina pudibunda, ou fresca rosa,
nunca no campo abriu,

107
UNIDADE 2 | A PRODUÇÃO LITERÁRIA PORTUGUESA CLÁSSICA, BARROCA E ÁRCADE

quando os raios do Sol no Touro estão,


de cores diferentes esmaltada,
como esta flor, que, os olhos inclinando,
o sofrimento triste costumou
à pena que padeço.

Ligeira, bela Ninfa, linda, irosa,


não creo que seguiu
Sátiro, cujo brando coração
de amores comovesse fera irada,
que assi fosse fugindo, e desprezando
este tormento, aonde amor mostrou
tão próspero começo.

FONTE: AZEVEDO FILHO, Leodegário A. de. Introdução à lírica de Camões. Lisboa: Instituto de
Cultura e Língua Portuguesa/Ministério da Educação, 1991. p. 115.

c) Elegias: poemas compostos com uma tonalidade triste, melancólica. Veja-se o


exemplo:

Aquela que de amor descomedido


polo fermoso moço se perdeo,
que só por si de amores foi perdido,
depois que a deosa em pedra a converteo
de seu humano gesto verdadeiro,
a última voz só lhe concedeo.

Assi meu mal do próprio ser primeiro


outra cousa nenhũa me consente
que este canto que escrevo derradeiro.

E, se algũa pouca vida, estando ausente,


me deixa Amor, é porque o pensamento
sinta a perda do bem de estar presente.

Se, Senhor, vos espanta o sentimento


que tenho em tanto mal, pera escrevê-lo
furto este breve tempo a meu tormento;

porque quem tem poder pera sofrê-lo,


sem se acabar a vida com o cuidado,
também terá poder pera dezê-lo.

FONTE: AZEVEDO FILHO, Leodegário A. de. Introdução à lírica de Camões. Lisboa: Instituto de
Cultura e Língua Portuguesa/Ministério da Educação, 1991. p. 126.

108
TÓPICO 1 | O PERÍODO LITERÁRIO CLÁSSICO: CAMÕES ÉPICO E CAMÕES LÍRICO

d) Odes: este tipo de poema remonta à Grécia antiga e se constitui um tipo de


poesia criada com o objetivo de ter acompanhamento musical. No entanto, com
o passar dos tempos, ela perdeu essa característica original. Manteve, porém, o
seu caráter elogioso, seu tom alegre e entusiástico.

Fogem as neves frias


dos altos montes, e já reverdecem
as árvores;
as verdes ervas crecem
e o prado ameno de mil cores tecem.
Zéfiro brando aspira;
suas setas Amor afia agora;
Progne triste suspira,
e Filomena chora;
o ceo da fresca terra se namora.

Vai Vénus Citerea


com os coros das Ninfas rodeada:
a linda Pasitea,
com as duas irmãs acompanhada.

Em quanto as oficinas
dos Ciclopas Vulcano está queimando,
vão colhendo boninas
as Ninfas, e cantando;
a terra com o ligeiro pé tocando.
Dece do duro monte
Diana, já cansada da espessura,
buscando a clara fonte,
onde por sorte dura
perdeo Actéon a natural figura.

FONTE: AZEVEDO FILHO, Leodegário A. de. Introdução à lírica de Camões. Lisboa: Instituto de
Cultura e Língua Portuguesa/Ministério da Educação, 1991. p. 120.

e) Oitavas: as oitavas são tipos de poesias que se estruturam em estrofes com oito
versos cada uma.

Como nos vossos ombros tão constantes,


Príncipe ilustre e raro, sustenteis
tantos negócios árduos e importantes,
di(g)nos do largo Império que regeis;
como sempre nas armas rutilantes
vestido, o mar e a terra segureis
do pirata insolente e do tirano
jugo do potentíssimo otomano.

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UNIDADE 2 | A PRODUÇÃO LITERÁRIA PORTUGUESA CLÁSSICA, BARROCA E ÁRCADE

E como, com virtude necessária,


mal entendida do juízo alheo,
à desordem do vulgo temerária,
na santa paz ponhais o duro freo;
se com minha escritura longa e vária
vos ocupasse o tempo, certo creu
que com ridiculosa fantasia
contra o comum proveito pecaria.

FONTE: AZEVEDO FILHO, Leodegário A. de. Introdução à lírica de Camões. Lisboa: Instituto de
Cultura e Língua Portuguesa/Ministério da Educação, 1991. p. 134.

f) Éclogas (ou églogas): trata-se de uma compilação de caráter pastoril e


campestre, de maneira que os pastores dialogam entre si.

A rústica contenda desusada


entre as Musas dos bosques, das areas,
de seus rudos cultores modulada,

a cujo som, atónitas e alheas,


do monte as brancas vacas estiveram,
e do rio as saxátiles lampreas,

desejo de cantar; que, se moveram


os troncos as avenas dos pastores
e os silvestres brutos sospenderam,

não menos o cantar dos pescadores


as ondas amansou do alto pégo
e fesz ouvir os mudos nadadores.

E se, por sustentar-se, o Moço Cego


nos trabalhos agrestes a alma inflama,
o que é mais próprio no ócio, e no sossego,

mais maravilhas dando à voz da Fama,


no mesmo mar undoso e vento frio,
brasas roxas acende a roxa flama.

FONTE: AZEVEDO FILHO, Leodegário A. de. Introdução à lírica de Camões. Lisboa: Instituto de
Cultura e Língua Portuguesa/Ministério da Educação, 1991. p. 139.

g) Sonetos: Camões, na lírica, volta-se muito para a composição chamada soneto,


procurando, inclusive, levá-la à perfeição. Na realidade, o soneto é uma obra
bastante curta e compõe-se de catorze versos, distribuídos em quatro estrofes:
duas de quatro versos (quartetos) e duas de três versos (tercetos). Geralmente,
estes versos são rimados. O soneto admite número restrito de variações quanto à
forma e segue normas rigorosas quanto ao conteúdo e desenvolvimento do tema.

110
TÓPICO 1 | O PERÍODO LITERÁRIO CLÁSSICO: CAMÕES ÉPICO E CAMÕES LÍRICO

Há um tipo de soneto, chamado petrarquiano, que apresenta rimas do


tipo ABBA, ABBA (dentro dos quartetos), as ditas rimas interpoladas ou opostas,
e rimas CDC, DCD nos tercetos, as chamadas rimas intercaladas ou alternadas.
Deve-se, no entanto, considerar que são mais usuais nos tercetos três rimas
alternadas ao melhor modo CDE, CDE. Importante levar-se em conta que esse
tipo de soneto é composto por versos de dez sílabas poéticas, ou decassílabos,
cujo último verso deve concluir a composição, sendo por isso chamado “chave de
ouro”, pois é ele que sintetiza o tema central do poema. 

Há que se lembrar que Camões, nas suas composições líricas, valeu-se da


maneira medieval de escrever, mais tradicional, a chamada medida velha, versos
com cinco sílabas poéticas – as chamadas redondilhas menores – e versos com
sete sílabas poéticas – as conhecidas redondilhas maiores.

1. Amor é um fogo que arde sem se ver;


2. É ferida que dói e não se sente;
3. É um contentamento descontente;
4. É dor que desatina sem doer.
Quartetos
5. É um não querer mais que bem querer;
6. É um andar solitário entre a gente;
7. É nunca contentar-se de contente;
8. É um cuidar que ganha em se perder.

9. É querer estar preso por vontade;


10. É servir a quem vence o vencedor;
11. É ter com quem nos mata lealdade.
Tercetos
12. Mas como causar pode ser favor
13. Nos corações humanos amizade,
14. Se tão contrário a si é o mesmo Amor?
FONTE: MACHADO, Álvaro Manuel. Dicionário de literatura portuguesa. Lisboa: Presença, 1996.
p. 134.

Foi Sá de Miranda, em 1527, quem trouxe da Itália (com o seu já tratado


retorno, após alguns anos de estudo) a denominada medida nova. Esta era
chamada nova pelo fato de recuperar as tendências clássicas: retomava a poesia
greco-latina, reafirmava o uso de regras rígidas para criar as formas.

NOTA

Caro/a acadêmico/a, para você fixar, são medida nova os versos decassílabos,
expressos em sonetos, odes, elegias, canções, éclogas, sextilhas e oitavas. A medida velha
compreende as poesias em que se adotam redondilhas maiores e menores.

111
UNIDADE 2 | A PRODUÇÃO LITERÁRIA PORTUGUESA CLÁSSICA, BARROCA E ÁRCADE

Tanto de meu estado me acho incerto


que em vivo ardor tremendo estou de frio;
sem causa, juntamente choro e rio,
o mundo todo abarco, e nada aperto.

É tudo quanto sinto desconcerto:


dalma um fogo me sai, da vista um rio,
agora espero, agora desconfio,
agora desvario, agora acerto.

Estando em terra, chego ao ceo voando;


em ù’hora acho mil anos, e de jeito
que em mil anos não posso achar ù’hora.

Se me pregunta alguém porque assi ando,


respondo que não sei; porém sospeito
que é só porque vos vi, minha Senhora.

FONTE: AZEVEDO FILHO, Leodegário A. de. Introdução à lírica de Camões. Lisboa: Instituto de
Cultura e Língua Portuguesa/Ministério da Educação, 1991. p. 114.

Um dos grandes sonetos de Camões, e dos mais conhecidos, foi “Alma


minha”, o qual ele teria dedicado à sua amada chinesa, Dinamene, com quem
teria vivido durante a sua estada em Macau. Segundo algumas tradições, ele
teria sido acusado de crimes administrativos, e Camões e a mulher, Dinamene,
teriam sido levados da China à Índia, e ele julgado. No trajeto, por volta de 1560,
o navio naufragou no litoral do Camboja, na desembocadura do rio Mekong.
Neste acontecimento trágico, o poeta lusitano teria perdido a sua amada, a “alma
gentil”, mais tarde relembrada, poeticamente elevada e eternizada com o soneto
especialmente a ela dedicado.

O amor do poeta, neste soneto, é manifestado ao ver a mulher amada


que passou, com a morte, a pertencer a uma dimensão superior, fazendo parte
agora de um universo puro, sincero, verdadeiro, elevado, não mais matéria, mas,
sim, um corpo etéreo, inacessível. Ou nas palavras de Massaud Moisés (2008,
p. 75), esse amor revelado no soneto a Dinamene representa, de um lado “[...] o
sentimento do bem perdido que não mais se alcança e, por isso, mais desejado
e, de outro, a presença da morte, revelando o plano transcendente para onde
emigrou a bem-amada”.

Veja, caro/a acadêmico/a, a seguir a poesia (soneto) de Camões na qual ele


remete a Dinamene:

Alma minha gentil, que te partiste


tão cedo deste corpo descontente,
repousa tu nos ceos eternamente,
e viva eu cá na terra sempre triste.

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TÓPICO 1 | O PERÍODO LITERÁRIO CLÁSSICO: CAMÕES ÉPICO E CAMÕES LÍRICO

Se lá no assento etéreo onde subiste,


memória deste mundo se consente,
não te esqueças daquele amor ardente
que já nos olhos meus tão puro viste.

E se vires que pode merecer-te


algũa cousa a dor que me ficou
da mágoa sem remédio de perder-te,

pede a Deos, que teus anos encurtou,


que tão cedo de cá me leve a ver-te,
quão cedo dos meus olhos te levou.

FONTE: AZEVEDO FILHO, Leodegário A. de. Introdução à lírica de Camões. Lisboa: Instituto de
Cultura e Língua Portuguesa/Ministério da Educação, 1991. p. 112.

De um modo um tanto geral, é possível perceber-se na obra lírica camoniana


a presença dos poetas clássicos como Virgílio, principalmente na maneira de
conceber o meio natural, de nela perceber a capacidade de sentir e vibrar com
o ser humano, de Ovídio, autor da obra Metamorfoses, muito relembrada por
Camões, e Horácio, de quem Camões herdou a questão da preferência por uma
condição mediana em vista da garantia da tranquilidade. Mas é sobretudo de
Petrarca (e dos petrarquistas) que Camões herda as influências para as poesias
de cunho amoroso. E a crítica é incisiva ao dizer que a poética renascentista
era essencialmente imitativa, “[...] empenhada no aperfeiçoamento através da
aprendizagem com os modelos; nada disto era incompatível com a expressão da
originalidade pessoal, nem sequer com o cultivo de uma maneira individual.”
(QUADROS, 1992, p. 44). Deste modo, pode-se perceber que o poeta aproveita a
sugestão do tema e do estilo, ou até parte do texto, para apresentar um conteúdo
poético diferente.

Para Camões, outra fonte de inspiração era a efemeridade das coisas,


tratado dentro do tema do desconcerto do mundo, ou seja, a contrariedade que se
faz presente entre dois mundos: aquele tal como deveria ser e aquele real, como é.
Quem provoca as mudanças é o efeito do tempo. Observe-se como isso é tratado
no soneto camoniano:

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,


muda-se o ser, muda-se a confiança;
todo o mundo é composto de mudança,
tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,


diferentes em tudo da esperança;
do mal ficam as mágoas na lembrança,
e do bem, se algum houve, as saudades.

113
UNIDADE 2 | A PRODUÇÃO LITERÁRIA PORTUGUESA CLÁSSICA, BARROCA E ÁRCADE

O tempo cobre o chão de verde manto,


que já coberto foi de neve fria,
e enfim converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,


outra mudança faz de mor espanto:
que não se muda já como soía.
(RODRIGUES, 1993, p. 31)

Na lírica camoniana, está muito presente a marca de uma visão de que o


mundo é dinâmico. Às mudanças estão sujeitos tanto o homem quanto a natureza
de um modo geral; ambos com seus sentimentos e seus afetos. Tal mudança
constitui a essência de todas as coisas.

Para o ser humano, ao que parece, as mudanças, geralmente, são para


pior, e de nada adianta ser prevenido, haja vista serem elas imprevisíveis. Desde
o filósofo Heráclito, é sabido que tudo é mutável e nada permanece como é, tudo
entra em contradição com o que era antes.

No soneto de Camões, pode-se perceber que o mundo está em constante


guerra de contradições e de mutações. E essas mudanças, para o poeta, implicam
uma degeneração do mundo, um desconcerto do mundo. Se tudo nesse mundo é
mutável, a mudança também é algo instável.

Um outro olhar sobre a lírica camoniana nos leva a perceber os embates


da vida, principalmente o enfrentados no seu país, mas também fora dele, o que
poderia constituir, para a época, uma tendência. O destino (Fado, Fortuna), o
peso das injustiças humanas, as dores do presente em contraste com os prazeres
do passado constituem motivos recorrentes, marcados no fundo por certo
pessimismo, o que nos dá uma imagem “negra” do mundo, e trazendo um espelho
da pequenez do ser humano. Como exemplo, veja a estrofe de uma sextina:

Foge-me, pouco a pouco, a curta vida,


Se por caso é verdade que inda vivo:
Vais-me o breve tempo de ante os olhos;
Choro pelo passado; e, enquanto falo,
Se me passam os dias passo a passo.
Vais-me, enfim, a idade e fica a pena.
(RODRIGUES, 1993, p. 31)

Em matéria lírico-amorosa, Camões, com muita propriedade, soube


honrar a influência petrarquista. Para ele, encarnado na poesia, o amor se
apresenta como uma aspiração perene, muitas vezes como um ideal difícil de
ser atingido, pairando além do real, ou melhor, uma aspiração que se aperfeiçoa
à medida que o objeto amado se imaterializa, se espiritualiza no pensamento.
Enfim, nas suas poesias, cujo denominador comum poderia ser o desabafo, a
confissão, veem-se de modo flagrante as reações do poeta em face do amor e do

114
TÓPICO 1 | O PERÍODO LITERÁRIO CLÁSSICO: CAMÕES ÉPICO E CAMÕES LÍRICO

mundo. Enfim, “[...] Camões confessa, ao longo de sua torturada reflexão, um


pronunciado amor e respeito pelo homem, o que confere a tal espécie de poesia
indiscutível permanência.” (MOISÉS, 2008, p. 77).

Mas, caro/a acadêmico/a, sob a influência de Camões, vieram outros poetas,


dir-se-ia, petrarquizados, pois receberam da poesia camoniana a influência do
poeta italiano Petrarca, e que compuseram o cânone da lírica clássica portuguesa.
Há que se dizer, com importância menor, se comparados ao mestre Camões.
Sobre estes poetas menores, trataremos a seguir.

5 OS POETAS MENORES DA LÍRICA QUINHENTISTA


PORTUGUESA
Dentre os poetas menores, ou seja, aqueles que tiveram menor destaque
dentro da lírica clássica de Portugal, merecem ser mencionados Bernardim
Ribeiro e Cristóvão Falcão.

Pelo pouco que se conhece acerca da produção literária de Bernardim


Ribeiro, sabe-se que ele foi muito influenciado por Sá de Miranda. Aliás, o próprio
Sá de Miranda revela, em sua poesia, o talento precoce para a produção literária
de Ribeiro:

Veislo que a maiores alcança


Em criança,
Em saber i ser lozano.
Ai! de uma vana esperança,
Alfin que queda em la mano?

Era locura pensar


Cosas que aun niño dezia;
Despues cantava i tañia
El caramillo sin par
Sabia mas que...

FONTE: BRAGA, Teófilo. História da Literatura Portuguesa – Renascença. Lisboa: INCM, 2005.
p. 79. v. II.

Por causa do tipo de vida que levava, um tanto doentio, isolado, pela sua
situação pessoal, Bernardim Ribeiro encontrou nos quadros pastoris o meio de
objetivar a intensidade dos sentimentos afetivos, alcançando pela verdade da
emoção a mais surpreendente expressão do seu amor. O autor, depois de 1516,
deu início a esta nova forma lírica, carregada de realismo pastoril, seguindo uma
tradição nacional.

115
UNIDADE 2 | A PRODUÇÃO LITERÁRIA PORTUGUESA CLÁSSICA, BARROCA E ÁRCADE

FIGURA 21 – BERNARDIM RIBEIRO

FONTE: De Giovanni (2007, p. 63)

Pelo seu próprio temperamento afetivo e a situação especial de sua vida,


Bernardim Ribeiro tirou do isolamento da infância, no campo e da sensibilidade
mórbida de uma paixão absoluta todos os elementos da realidade do seu
incomparável lirismo.

Nas suas cinco églogas, a linguagem vernácula, a beleza dos modismos


e as locuções populares dão um maior relevo à expressão apaixonada, pela
harmonia com o quadro bucólico ou o meio campesino em que sofreu o seu triste
amor.

NOTA

Caro/a acadêmico/a, você sabe o que é égloga, ou écloga? É um tipo de poesia


que geralmente toma como tema a vida e os costumes do campo, ou louva os encantos
da vida rural. Quem introduziu em Portugal este tipo de composição poética foram Sá de
Miranda e Bernardim Ribeiro.

Na Égloga II, Bernardim Ribeiro descreve a época em que veio para Lisboa
e o momento do seu encontro com Joana Zagalo, sua prima:

116
TÓPICO 1 | O PERÍODO LITERÁRIO CLÁSSICO: CAMÕES ÉPICO E CAMÕES LÍRICO

Quando as fomes grandes foram,


Que Alemtejo foi perdido,
Da aldeia que chamam Torrão
Foi este pastor fugido;
Levava um pouco de gado,
Que lhe ficou de outro muito
Que lhe morreu de cansado,
Que Alemtejo era enxuto
De água, e mui secco de prado.

Toda a terra foi perdida;


No campo do Tejo só
Achava o gado garida;
Vêr Alemtejo era um dó;
E Jano pera salvar
O gado que lhe ficou,
Foi esta terra buscar.

E se um cuidado levou,
Outro maior foi achar.

FONTE: BRAGA, Teófilo. História da Literatura Portuguesa – Renascença. Lisboa: INCM, 2005.
p. 81. v. II.

“Sabe-se, pelas pesquisas acerca de sua vida, que era uma pessoa de
temperamento muito delicado, de uma sensibilidade quase feminina e sempre
cercado por um halo de permanente melancolia” (SPINA, 1991, p. 204), o que fez
de Bernardim Ribeiro um dos poetas mais emotivos da literatura portuguesa.

Quanto a Cristóvão de Souza Falcão, sabe-se que este, por causa da


semelhança na sua produção literária, é muito confundido com Bernardim
Ribeiro. Falcão adota, em vida, o nome de Crisfal, formado pelas iniciais do nome
e do sobrenome. A produção poética de Falcão é marcada por um forte cunho de
realidade e de humanidade. Ao que parece, pouco tem em si de platonismo e de
petrarquismo.

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UNIDADE 2 | A PRODUÇÃO LITERÁRIA PORTUGUESA CLÁSSICA, BARROCA E ÁRCADE

FIGURA 22 – OBRA DE CRISTÓVÃO DE SOUZA FALCÃO (1893)

FONTE: De Giovanni (2007, p. 64)

A sua mais importante produção literária, a Égloga de Crisfal, é formada


por 900 versos, colocados em um sem-número de estrofes, cada uma com dez
versos. Ao que parece, é a mais extensa e melhor poesia bucólica do cânone da
literatura portuguesa e, quem sabe, da maior parte das literaturas modernas. O
amor cantado por ele em suas produções parece ser da mais alta realidade:

Alli triste, só, saudosa,


Vi entre duas ribeiras,
Uma serrana queixosa,

Carreando umas cordeiras,


Sendo cordeira formosa.
E, como alli tem por uso,
Em uma roca fiando,
Mas, com o que ia cuidando
Caia-se-lhe o fuso
Da mão de quando em quando.

FONTE: BRAGA, Teófilo. História da Literatura Portuguesa – Renascença. Lisboa: INCM, 2005.
p. 166. v. II.

“Teófilo Braga lembra que Cristóvão Falcão era um poeta vibrante, e que
sabia valer-se dos versos de outros poetas para compor os seus desabafos líricos”.
(2005, p, 168).

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TÓPICO 1 | O PERÍODO LITERÁRIO CLÁSSICO: CAMÕES ÉPICO E CAMÕES LÍRICO

NOTA

Caro/a acadêmico/a, sabemos que haveria ainda outros poetas líricos dessa
época, mas, em virtude do espaço de que dispomos, não nos é possível efetuar um estudo
profundo. Deste período (Classicismo), sabe-se que o brilho maior está reservado a Camões,
do qual tratamos em profundidade. E para complementar os estudos deste tópico, oferecemos
uma leitura que pode ajudar você a complementar seus estudos.

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UNIDADE 2 | A PRODUÇÃO LITERÁRIA PORTUGUESA CLÁSSICA, BARROCA E ÁRCADE

LEITURA COMPLEMENTAR

A UTOPIA DO PARAÍSO EM CAMÕES


Carlos D’Alge

Ensina-nos Homero que os deuses se definem por oposição aos homens.


Ao contrário dos humanos, os deuses escapam da velhice e da morte. Todavia
não são eternos, nem estão fora do tempo. Sabe-se de quem cada divindade é
filho ou filha. A imortalidade, sim, está ligada aos deuses que, por oposição aos
humanos mortais, são designados como imortais.

A morte para Homero também não é o fim. Ele participa da crença comum
a várias sociedades primitivas, de que cada homem vivo abriga em si um “duplo”,
isto é, um outro eu. A existência desse outro duplo seria comprovada pelos
sonhos, quando o outro eu parece sair e realizar outras travessias envolvendo
inclusive outros “duplos”. A morte, pois, nada representaria para o homem – a
psyché ou o “duplo” desprender-se-ia pela boca ou ferida do agonizante, descendo
às sombras subterrâneas do Érebo. Deslocada definitivamente do corpo que se
decompõe, a psyché passa a integrar o cortejo de seres que povoam o reino de
Hades. O “duplo” permanece como imagem ou ídolo, mas não tem consciência
própria. Não passa de uma sombra no reino das sombras.

Assim, humanizando os deuses e afastando o medo da morte, as


epopeias de Homero descrevem um universo luminoso no qual os valores da
vida presente são exaltados. A Homero os gregos voltarão sempre, para conceber
novos poemas, para dele tirar exemplos. O Renascimento redescobrirá os textos
épicos, as aventuras de Ulisses serão tomadas como símbolos morais. O Ulisses
que retorna à pátria, exilado durante muitos anos, terá que vencer inúmeros
perigos e tentações. Outros dois exilados, Camões e Dante, terão também que
passar por muitas provações, pois para que a alma humana consiga retornar à
sua essencialidade, terá que desdobrar-se em esforços e enfrentar os perigos à
sua volta.

É a Hesíodo, porém, que devemos o aparecimento do subjetivo na


literatura. Na época mais antiga, o poeta era o simples veículo anônimo das
musas. Já Hesíodo assina a sua obra usando Os Trabalhos e os Dias e a Teogonia
para fazer história pessoal. Na Teogonia, diz que as Musas lhe ensinam um belo
canto. O conteúdo desse belo canto é o relato sobre a origem dos deuses. Haveria
três gerações de deuses: a do Céu, a de Cronos e a de Zeus. Prometeu e Pandora
constituem os dois mitos que servem a Hesíodo para justificar a condição humana.
Uma visão pessimista, sem dúvida, que transparece também no mito das idades
ou das raças em Os Trabalhos e os Dias. As raças compreendem cinco idades.
A primeira, a de ouro, teria vivido sem cuidados e sofrimentos. A segunda, a
de prata, seria constituída por gênios interiores que viveram uma longa infância
de cem anos, mas que ao crescer entregar-se-iam a excessos e se recusariam a
oferecer culto aos deuses. A terceira, a de bronze, seria a dos homens violentos

120
TÓPICO 1 | O PERÍODO LITERÁRIO CLÁSSICO: CAMÕES ÉPICO E CAMÕES LÍRICO

que se dedicariam à guerra, e por isso sucumbiriam nas mãos dos outros. A
quarta, a raça dos heróis que combateriam em Tebas e em Troia. Para eles, Zeus
reservara uma morada na ilha dos Bem-Aventurados, onde viveriam felizes,
distantes dos mortais. Finalmente, a quinta raça, a de ferro, a do próprio Hesíodo,
que viverá um tempo de fadigas, misérias e angústias. A essa raça aguardam dias
tenebrosos. “O pai não mais se assemelhará ao filho, nem o filho ao pai; o hóspede
não será mais caro ao seu hospedeiro, nem o amigo a seu amigo, nem o irmão ao
seu irmão”.

Falamos de deuses e de mitos. Mitos que se tornaram símbolos. O mito de


Prometeu significa a ideia de trabalho: o mito das idades, a ideia da justiça. Isto é,
nenhum ser humano pode negar-se à lei do trabalho, assim como nenhuma raça
pode evitar a justiça.

Segundo Cassirer, os símbolos são modelados pelas necessidades


objetivas do homem. O símbolo não é um aspecto da realidade: é a realidade. No
símbolo, há uma rigorosa identificação entre o sujeito e o objeto: “em vez de uma
‘expressão’ mais ou menos adequada, encontraremos uma relação de identidade,
de completa congruência entre a ‘imagem’ e o ‘objeto’, entre o nome e a coisa”.
Por outro lado, Cassirer, no seu estudo sobre linguagem e mito, torna claro que o
sentimento “puro” expresso pela arte, não é apenas a emoção pessoal do poeta. O
poeta lírico não é apenas o homem que se entrega a manifestações de sentimento.
O poder criador original da linguagem não é somente preservado, mas renovado.
Assim, a poesia não exprime:

[...] nem o miúdo retrato por palavras de deuses e demônios, nem a


verdade lógica das determinações e relações abstratas. [...] O mundo
da poesia mantém-se afastado de ambos, como um mundo de ilusão e
fantasia, mas é exatamente nesta modalidade de ilusão que o reino do
puro sentimento pode encontrar expressão e pode, portanto, atingir a
sua total e concreta atualização.

Retornaremos mais tarde ao problema. Por enquanto, aceitamos a ideia


de que a arte não é mero entretenimento, nem diversão ou ato de representação.
A arte é a revelação de um aspecto genuíno da nossa existência.

Falamos do mito das idades. Para os heróis, que são a quarta raça, estaria
reservada como prêmio a ilha dos Bem-Aventurados. Nela, segundo desígnio
de Zeus, viveriam felizes, distantes dos mortais. Compreendamos os heróis de
Tebas e Troia elevados à categoria de deuses. Portanto, imortais. Identificados
pela mais nobre das virtudes: a areté. Os aristei, isto é, os possuidores da areté,
são uma minoria que se eleva acima da multidão de homens comuns; se são
dotados de virtudes legadas pelos seus antepassados, precisam dar testemunho
das suas qualidades em combates e lutas. Séculos mais tarde, Platão e Aristóteles
proporiam a substituição da aristocracia guerreira e de sangue pela aristocracia
do espírito. Os tempos eram outros.

121
UNIDADE 2 | A PRODUÇÃO LITERÁRIA PORTUGUESA CLÁSSICA, BARROCA E ÁRCADE

Surge, desta maneira, parece-nos, o mito da ilha afortunada, que será


recuperado pelas utopias modernas. Não será a ilha dos Bem-Aventurados, mito
narrado por Hesíodo, o arquétipo das utopias de Thomas Morus, Tommaso
Campanella, Francis Bacon e de Camões.

Northrop Frye, que aplicou a teoria do arquétipo de Jung à crítica


literária, considera a causa formal do poema o seu arquétipo. O poeta é apenas
a causa eficiente do poema, mas o poema, porque tem forma, tem também uma
causa formal que deve ser pesquisada. A causa formal, como dissemos, é o
arquétipo. Deste modo, “[...] a procura de arquétipos constitui-se uma espécie de
antropologia literária, interessada pela forma como a literatura é informada por
categorias pré-literárias tais como o ritual, o mito e o conto popular”. [...]

O mito paradisíaco aparece em todas as culturas. Ele se liga a um estado


cosmogônico quando o mundo se encontrava em equilíbrio perfeito, sem violência,
e à fatalidade escatológica da sua perda, mediante a falta humano-ancestral. A ira
divina justifica-se como a compensação necessária e fatal por se haver permitido
que surgissem as forças do caos. O mundo deverá ser julgado, então, por meios
catastróficos até que se inicie um novo ciclo. É o momento de questionarmos o
mito do paraíso em Camões.

Assim, escolhemos o Canto IX dos Lusíadas, conhecido pelo episódio da


Ilha dos Amores. Tentaremos mostrar que o mito da Ilha Namorada remonta ao
arquétipo da Ilha dos Bem-Aventurados, de que fala Hesíodo, e é coerente com
o utopismo platônico, podendo ainda encontrar pontos de identidade com as
utopias de Marcuse e Campanella, especialmente com o hedonismo do filósofo
inglês. Afinal de contas, Camões já anuncia que após tanta aventura e sofrimento
há um conforto à vista:

“Para prêmio de quanto mal passaram


Buscar-lhes algum deleite, algum descanso
No reino de cristal líquido e manso.” [...]

Há no poema quatro planos estruturais bem deliberados e que se referem


à ação, que é a viagem dos portugueses à Índia. Camões utiliza quatro estâncias
para interligar as partes do seu discurso: no Canto I, serve-se da estância 19 para
introduzir os portugueses em sua navegação e em seguida colocá-los frente ao
mundo dos deuses; no Canto VI, estância 92, vencida esta etapa, apressam-se os
novos argonautas a atingir a sua meta terrestre – a Índia; superada a dificuldade,
coloca-os a estância 16, do Canto IX, ante a sua meta celestial, no retorno à Pátria;
finalmente, no Canto X, estância 144, com a visão da máquina do mundo, que
é o real mundo divino, isto é, católico, voltarão os portugueses à condição de
humanos (pois haviam se transformado em deuses na Ilha Namorada), e esta
única estância os devolverá, incontinenti, ao porto de saída, fechando assim o ciclo
perfeito do poema. [...]

122
TÓPICO 1 | O PERÍODO LITERÁRIO CLÁSSICO: CAMÕES ÉPICO E CAMÕES LÍRICO

E por que não acrescentar a tudo isto a experiência do poeta, cuja viagem
de partida para a Índia foi bastante tormentosa, e cujas peregrinações pela costa
asiática constituíram episódios suficientemente dolorosos? Não caberia, pois,
uma parada, no tempo do retorno, entes de dobrar “A Meta Austrina da Esperança
Boa”, para descansar o coração tão sofrido e reparar tanto dano havido?

O porto de salvação é a Ínsula Divina:

“Depois de procelosa tempestade,


Noturna sombra e sibilante vento,
Traz a manhã serena, claridade
Esperança de porto e salvamento,
Aparta o sol a negra escuridade,
Removendo o temor ao pensamento,
Assi no reino forte aconteceu
Depois que o Rei Fernando faleceu.”

Dissemos porto de salvação. Interregno para a catarse necessária. Os


cansados navegantes, intérpretes de uma gesta de tragédia, de espadas banhadas
do sangue daquela que depois de morta foi rainha, bem mereciam um repouso
divino. Um mergulho no paraíso de que nem criam a existência. Haveria realmente
um Éden na banda do Oriente?

A ilha afortunada ou a Ilha dos Amores, que é a utopia camoniana, será


o ponto decisivo no relacionamento dos deuses e dos humanos. Os deuses que
assumiram uma postura humana no decorrer da ação do poema e se envolveriam
em intrigas e conflitos estão prestes a ceder lugar aos humanos. Na verdade, a
relação entre os deuses e os homens e o seu encontro final na Ilha dos Amores são,
em síntese, a própria estrutura d’ Os Lusíadas. [...]

O ponto culminante de Os Lusíadas estaria na Ilha Namorada. Assim é,


casando-se os marinheiros com as ninfas e Vasco da Gama elevado à honra de
consorte de Tétis, ficção e realidade se encontram, mito e verdade se defrontam,
os deuses são anulados, não servirão para mais nada. Os portugueses, pelos
casamentos havidos na ilha são elevados à imortalidade. Os deuses podem
despedir-se do público, têm pés de barro, esfumaçam-se; tiveram, na verdade,
um notável mérito, o de possibilitar a glorificação dos descobridores da Índia.

O mito que funcionou como mediação simbólica entre o sagrado e


o profano torna-se realidade. Ele não é concebido como algo que se oponha à
realidade. Sendo a própria realidade, esta se expressa através do ritual que
constitui a verdadeira repetição dum fragmento do tempo primordial em que os
deuses agiam e quando tudo era possível.

É esse tempo primordial que serve de arquétipo, no pensamento mítico,


a todos os tempos. O mito da Ilha Afortunada torna-se claro, a ilha é a própria
realidade da gesta portuguesa.

123
UNIDADE 2 | A PRODUÇÃO LITERÁRIA PORTUGUESA CLÁSSICA, BARROCA E ÁRCADE

A utopia é revelada: a Ilha dos Amores, o Paraíso dos afortunados, é uma


grande alegoria. Toda concepção dos deuses serviu a um fim agora explícito: a
divinização do herói. O herói aqui é toda a nação portuguesa, representada pelos
nautas e por Vasco da Gama. Os heróis são de carne e osso, não são lendários nem
fantásticos como os heróis da idade de ouro. É através do mito que eles ingressam
na imortalidade. A Fama vai coroá-los. Essa mesma fama já os ajudara com a
eficácia das flechas de Cupido. A ilha é um merecido prêmio, o meio de os fazer
chegar à glória e à Fama. Pois Fama e Glória poderão libertá-los da lei da morte.

FONTE: D’ALGE, Carlos. A utopia do paraíso em Camões. Convergência Lusíada, Rio de Janeiro,
n. 8, ano V, [s.d.], p.119-143.

124
RESUMO DO TÓPICO 1

Caro/a acadêmico/a, no presente tópico, você teve oportunidade de


estudar aspectos importantes relacionados à Literatura Portuguesa, os quais
revemos, resumidamente, a seguir:

• Com a decadência do feudalismo e a ascensão da burguesia, verifica-se a


necessidade de uma nova cultura, talvez mais liberal, mais centralizada no ser
humano (antropocêntrica) que se identificasse com a economia mercantilista.

• Em Portugal, o Classicismo tem seu início em 1527, com a volta de Sá de


Miranda de uma viagem pela Itália. Este autor obteve novos conhecimentos
sobre a renovação literária e novas maneiras de compor a poesia, como o caso
da nova forma – o soneto.

• Na Europa dos séculos XV e XVI, floresceu o Renascimento, um movimento


que tinha por intuito a renovação da arte e da cultura, incluindo neste conjunto
a literatura. A base era a cultura clássica grega e latina.

• O período renascentista foi um dos grandes contribuidores para a radical


transformação do homem, seja no campo religioso, filosófico, sentimental,
político, enfim, o ser humano passou a conceber o mundo, a realidade, de
modo diferente.

• O Renascimento voltou-se decididamente para a natureza: imitação da


natureza, imitação da realidade, imitação da vida.

• Os autores ditos clássicos começaram a ser tomados como modelos, passando,


inclusive, a ser influenciadores das obras do período renascentista. A própria
maneira de pensar se nutre da filosofia grega e as diferentes artes se inspiram
nas obras clássicas.

• O homem do Renascimento passou a entender a harmonia do universo e


suas noções de beleza, bem e verdade, sempre tomando como base para os
seus conceitos o equilíbrio entre a razão e a emoção. O homem renascentista
adotou a mitologia pagã como parte das suas obras, recorrendo a personagens
mitológicas para pedir inspiração, simbolizar emoções e exemplificar
comportamentos.

• Os escritores do Renascimento criaram novas formas de composição, entre as


quais o soneto, o verso de dez sílabas poéticas (decassílabos) e a oitava rima, as
quais foram levadas a Portugal por Sá de Miranda.

125
• No Classicismo português, além da consciência do homem como um ser
universal, criou-se um forte sentimento de nacionalismo.

• Na sua epopeia, Camões consegue conciliar diferentes visões: a mitologia pagã


e a visão cristã, os sentimentos opostos sobre a guerra e o império, a vontade
de repouso da viagem aventureira e o desejo da aventura, o desfrute do prazer
e as exigências de uma visão heroica.

• Ao elaborar a mais notável obra poética da língua portuguesa, Os Lusíadas,


publicado em 1572, Luís de Camões toma por base a estrutura narrativa da
Odisseia de Homero, assim como versos da Eneida de Virgílio.

• A épica camoniana constitui um monumento da humanidade, pois o seu valor


é o mesmo de um hino a todo o período clássico, é a glorificação do povo
português pelos seus feitos no Oriente, pelas batalhas empreendidas. Camões
conseguiu se eternizar, eternizar Vasco da Gama e eternizar os portugueses e
seus feitos heroicos.

• Camões notabilizou-se também por uma vasta obra lírica. Poder-se-ia arriscar
a dizer que ele é considerado um dos maiores poetas líricos da literatura
universal.

126
AUTOATIVIDADE

Caro/a acadêmico/a, para que você possa melhor fixar o conteúdo


deste tópico, apresentamos, a seguir, uma atividade. Procure resolvê-la com
base no que você estudou.

1 Leia o texto poético de Camões e, em seguida, responda ao que se pede:

Posto o pensamento nele,


porque a tudo o amor obriga,
cantava, mas a cantiga
eram suspiros por ele.
Nisto estava Lianor
o seu desejo enganando,
às amigas perguntando:
- Vistes lá meu amor?

O rosto sobre uma mão,


os olhos no chão pregados,
que, de chorar já cansados,
algum descanso lhe dão.
Desta sorte Lianor
suspende de quando em quando
sua dor e, em si tornando,
mais pesada sente a dor.

Não deita dos olhos água,


que não quer’ que a dor se abrande
amor, porque, em mágoa grande,
seca as lágrimas a mágoa.
Depois que de seu amor
soube, novas perguntando,
de improviso a vi chorando.
Olhai que extremos de dor!
(CAMÕES, 1966, p. 89)

a) Comente o seu entendimento dos versos: “Não deita dos olhos água” e
“não quer’ que a dor se abrande”.
b) Ao ter notícias do seu amor, a personagem da poesia começa a chorar.
A partir deste fato, e no seu entendimento, comente qual aspecto do
comportamento é destacado por Camões na poesia.
c) Se você fosse traçar um paralelo entre esta poesia e as cantigas de amigo,
estudadas na Unidade 1, que semelhanças você detalharia?

127
2 Leia estas estrofes da épica de Camões, referentes ao Episódio do Velho do
Restelo (Canto IV, estrofes 94 e 97). Em seguida, responda às questões:

Mas um velho daspeito venerando,


Que ficava nas praias, entre a gente,
Postos em nós os olhos, meneando
Três vezes a cabeça, descontente,
A voz pesada um pouco alevantando,
Que nós no mar ouvimos claramente,
Cum saber só de experiências feito,
Tais palavras tirou do experto peito.

- A que novos desastres determinas


De levar estes reinos e esta gente?
Que perigos, que mortes lhe destinas
Debaixo dalgum nome preminente?
Que promessas de reinos, e de minas
Douro, que lhe farás tão facilmente?
Que famas lhe prometerás? que histórias?
Que triunfos, que palmas, que vitórias?
(CAMÕES, 1980, p. 118)

a) Observando a primeira estrofe (IV, 94), identifique as qualidades que o


autor atribui ao velho.
b) Considere atentamente a segunda estrofe (IV, 97). Determine qual(quais)
o(s) motivo(s) da expedição marítima.

128
UNIDADE 2 TÓPICO 2
UMA ÉPOCA DE DUALISMOS: O BARROCO PORTUGUÊS

“Aprendamos do céu o estilo da disposição, também o das


palavras. Como hão de ser as palavras? Como as estrelas. As
estrelas são muito distintas e muito claras. Assim há de ser o
estilo da pregação: muito distinto e muito claro.”

(VIEIRA, Padre Antônio. Os Sermões, 1980)

1 INTRODUÇÃO
Caro/a acadêmico/a, iniciamos mais um tópico dos nossos estudos acerca
da Literatura Portuguesa. E o assunto que ora iniciamos é a escola barroca, que,
ao que parece, teve sua gênese durante o século XVI, atrelada ao movimento
espiritual desencadeado pela Contrarreforma. Junto com isso, havia a vontade
de reaproximar o homem e Deus, os aspectos celestiais e os terrenos, o religioso
e o profano, ao mesmo tempo tentando conciliar duas heranças – a medieval e a
renascentista.

Talvez seja por isso que é costume dizer-se que o período denominado
Barroco está marcado, no seu eixo espiritual e ideológico, por dualismos, por
ideias que contrastam entre si, o que coloca o homem entre dois polos: homem
e Deus, pecado e perdão, religiosidade e paganismo, material e espiritual,
antropocentrismo e teocentrismo.

Por isso, a estética do Barroco é marcada por um jogo de oposições, por


irregularidades, pelo rebuscamento e pela assimetria. Não à toa, é costume
dizer-se que o Barroco, por excelência, é a arte dos contrastes, pois o artista está
constantemente tentando conciliar forças polares. O resultado disso é uma obra
de arte com a marca do exagero e da desigualdade, revelando, inclusive, certa
angústia por causa deste conflito.

Dentro da Literatura Portuguesa, grandes personagens marcaram o


Barroco literário, entre estes o jesuíta Padre Antônio Vieira, que será o nosso foco
neste segundo tópico.

129
UNIDADE 2 | A PRODUÇÃO LITERÁRIA PORTUGUESA CLÁSSICA, BARROCA E ÁRCADE

2 ASPECTOS GERAIS DA ESTÉTICA BARROCA


O ano de 1580, dentro da literatura peninsular, é de grande importância,
já que foi marcado pela morte de Camões, ao mesmo tempo em que entra em
decadência o movimento clássico. Nessa mesma época, inicia-se uma crise
política, pois o rei D. Sebastião desaparece durante uma guerra na África.
Sucede-o no poder Felipe II, da Espanha, o qual anexa o reino de Portugal ao
território espanhol.

No que concerne à cultura, a influência agora é espanhola. Nesse período,


surge na Espanha uma geração de escritores, entre os quais Gôngora, Quevedo,
Cervantes, Lope de Vega, Calderón entre outros. A partir das ideias de Gôngora,
começam a difundir-se pela Espanha os ideais barrocos.

A partir de 1640, Portugal inicia a busca pela reconquista de sua posição na


Europa, tentando, para isto, libertar-se do domínio da Espanha. Muitas batalhas
são travadas contra o território espanhol, na defesa da independência e contra
os holandeses, em vista de manter sobre seu poder as colônias ultramarinas do
Brasil e da África.

Esse período traz a marca de muita agitação política, econômica, social


por causa da tentativa do restabelecimento da autonomia econômica, social,
política e cultural. Ao mesmo tempo, nas terras portuguesas, começaram a
circular, de modo clandestino, panfletos que traziam escritos que imprecavam
contra a corrupção política estatal e denunciavam a exploração do povo. Dentre
estes escritos, poder-se-ia citar o que deu origem à obra A Arte de Furtar, de 1652,
cuja autoria é atribuída ao Padre Manuel da Costa.

Há que se considerar também que, nesse intervalo de tempo, a mentalidade


popular ainda trazia as marcas das ideias renascentistas, de modo que a expressão
do pensamento refletia certa ênfase na razão humana e sua visão crítica. De certo
modo, isto até abriu novos horizontes à mentalidade europeia, durante o século
XVI.

Por outro lado, começam a surgir novos modos de ver a realidade,


aparecem movimentos de renovação, que refutam vários setores da sociedade,
de cunho cultural e religioso. Entre estes, um dos mais marcantes e que mexeu
com a sociedade como um todo, está a Reforma Protestante, empreendida
por Lutero, contra certos problemas havidos no seio da Igreja Católica. Mais
tarde, para combater o protestantismo, a Igreja Católica lança o movimento
da Contrarreforma. Esse movimento, a seu turno, buscava também reprimir
tentativas de manifestações religiosas e de cunho cultural que pudessem, de
qualquer forma, opor-se aos dogmas pregados pela Igreja Católica. E para a
difusão do catolicismo, na própria Península Ibérica, nasceu a Companhia de
Jesus (jesuítas), por volta de 1540, por obra do espanhol Inácio de Loyola.

130
TÓPICO 2 | UMA ÉPOCA DE DUALISMOS: O BARROCO PORTUGUÊS

De certo modo, o clima que se instalou na sociedade era de repressão,


de recolhimento, de medo. Quanto a Portugal, neste mesmo século, instala-se
o Tribunal de Inquisição. Começam a surgir julgamentos e condenações, listas
de livros proibidos e as manifestações culturais são coibidas. Assim, importante
frisar-se, esta época parece marcada pela censura e pela volta ao teocentrismo
medieval. Nas palavras de Alfredo Bosi (1984, p. 34), “[...] é na estufa da nobreza e
do clero espanhol, português e romano que se incuba a maneira barroco-jesuítica:
trata-se de um mundo já em defensiva, organicamente preso à Contrarreforma
[...] em luta com as áreas liberais do Protestantismo e do racionalismo”. Por isso,
percebe-se que a tônica do Barroco é dada pelos ideais da reação da Igreja às
ideias reformistas. Em vista disso, há o medo, a crescente quantidade de templos
religiosos construídos, de estátuas de santos e de Jesus, de documentos sacros. As
obras de arte deveriam suscitar compaixão, autopiedade. Deveriam ainda falar
aos fiéis com a maior eficácia possível. Eis o motivo do caráter solene da arte
barroca. Este tipo de arte deveria convencer, conquistar, impor admiração.

FIGURA 23 – IGREJA BARROCA DE SÃO FRANCISCO

FONTE: De Giovanni, 2007, p. 89

O ser humano, de certa forma, se encontra “perdido” dentro deste cenário


dualista, seja dos valores antropocêntricos seja dos teocêntricos, da Reforma ou
da Contrarreforma, espiritualismo e materialismo. Percebe-se, deste modo, um
desequilíbrio, uma desarmonia, o que transparece nas obras de arte (pintura,
escultura, literatura) via exageros. O homem se sente perdido num labirinto
de dúvidas, num constante dilema existencial, restando-lhe como saída o
aproveitamento do momento presente, vivendo-o intensamente, já que a morte

131
UNIDADE 2 | A PRODUÇÃO LITERÁRIA PORTUGUESA CLÁSSICA, BARROCA E ÁRCADE

é certa (carpe diem). No fundo, a estética do Barroco colocou o ser humano diante
de uma encruzilhada em que deveria “[...] conciliar o claro e o escuro, a matéria e
o espírito, a luz e a sombra, visando a anular, pela unificação, a dualidade do ser
humano, dividido entre os apelos do corpo e os da alma.” (MOISÉS, 2008, p. 111).
O dilema está, portanto, centrado na oposição entre vida eterna e vida terrena,
espírito e carne. Dentro do Barroco, parece impossível haver conciliação entre
estas antíteses. Ou se vive sensualmente a vida ou se foge dos gozos humanos e
se alcança a eternidade.

No que concerne à literatura deste período, esta expressa esse novo clima
intelectual e espiritual: à tendência mais racional, opõe-se a atração pelo místico e
irracional; excita-se a percepção dos contrastes entre os apelos do corpo e os desejos
pela espiritualidade. Além disso, manifesta-se um uso excessivo de figuras de
linguagem, o que constitui uma das principais características do movimento literário
barroco. Entre estas figuras, destaquem-se as metáforas (comparações de ordem
subjetiva, em que um termo adquire o sentido de outro), antíteses (oposição entre
diferentes ideias), paradoxos (contrariedade entre ideias, o que leva a um absurdo),
oxímoros (conflito de ideias que leva a um disparate, formado pela oposição
substantivo-adjetivo, advérbio-adjetivo), hipérboles (uso de expressões exageradas)
e hipérbatos (inversão da ordem natural dos termos na composição das orações).

Veja, caro/a acadêmico/a, como exemplo, a poesia de Gregório de Matos:

“Nasce o sol, e não dura mais que um dia,


depois da luz segue a noite escura,
em tristes sombras morre a formosura,
em contínuas tristezas a alegria.
Porém, se acaba o sol, por que nascia?
Se é tão formosa a luz, por que não dura?
Como a beleza assim se transfigura?
Como o gosto da pena assim se fia?”

De outra parte, dentro de arte (e da literatura) do Barroco, o terror que


era manifestado pela Inquisição tentava impor certos limites à manifestação dos
pensamentos, à expressão cultural de um modo geral; além disso, impunha certa
austeridade. E dentro das características do Barroco, nesse sentido, aparece o
Cultismo e o Conceptismo.

O Cultismo (ou Culteranismo ou ainda Gongorismo) tem no poeta


espanhol Luís de Gôngora a sua expressão máxima. Este estilo caracteriza-se
pelo uso de uma linguagem rebuscada, culta e extravagante. Para isto, vale-se de
artifícios vários, entre os quais o jogo de palavras – ludismo verbal, o jogo com as
imagens e o jogo de construções. O objetivo é ocultar sob o trabalho da perfeição na
forma uma temática banal e estéril. Ocorre dentro desta característica o trabalho
com as metáforas e as hipérboles, a adjetivação excessiva, o apelo sensorial. Veja-
se um exemplo de texto que se vale destes artifícios:

132
TÓPICO 2 | UMA ÉPOCA DE DUALISMOS: O BARROCO PORTUGUÊS

“O todo sem parte não é todo;


a parte sem o todo não é parte;
mas se a parte faz o todo, sendo parte,
não se diga que é parte, sendo o todo.

Em todo o sacramento está Deus todo,


e todo assiste inteiro em qualquer parte,
e feito em partes todo em toda a parte,
em qualquer parte sempre fica todo.”
(Gregório de Matos)

Por sua vez, a característica conceptista se manifesta na linguagem que se


vale de jogos de ideias ou conceitos, seguindo um raciocínio lógico, racionalista
e com uma retórica aprimorada. Está presente também a argumentação com
base antitética ou paradoxal, com certa aproximação à dissertação. Este estilo foi
muito cultivado pelo escritor espanhol Francisco Gomez Quevedo y Villegaz,
daí também chamar-se este estilo de quevedismo. Os conceptistas desejavam
pesquisar a essência íntima dos objetos, tentando definir a sua face oculta.
Observe-se um pequeno excerto de texto conceptista:

“Mui grande é o vosso amor e o meu delito;


porém pode ter fim todo o pecar,
e não o vosso amor, que é infinito.
Essa razão me obriga a confiar
que, por mais que pequei, neste conflito
espero em vosso amor de me salvar.”
(Gregório de Matos)

Questionamos, aqui, caro/a acadêmico/a, se existe uma característica que


seja fundamental no Barroco. O que se pode dizer é que todas as características
que tentamos demonstrar nas reflexões até aqui efetuadas têm na dualidade a
sua coluna mestra. No fundo, havia por trás da estética do Barroco as intenções
da Contrarreforma, já que esta se valia do espírito catequizador. Na questão
do lúdico da linguagem cultista, aliada à dialética da linguagem conceptista e
persuasiva, estava o objetivo de ensinar e convencer.

O Barroco português, na sua expressão poética, não teve a mesma


expressão que na prosa. Os poetas, de um modo geral, procuraram seguir o
exemplo camoniano do soneto, valendo-se ora de uma linguagem de cunho mais
conceptista, ora de cunho cultista. Talvez os poetas portugueses não tenham
alçado voos mais altos em virtude da falta de esforço para a inovação. O seu valor
é pequeno e “[...] somente raras composições alcançaram dizer-nos alguma coisa:
tudo o mais pereceu com o tempo que lhe deu causa e razão de ser.” (MOISÉS,
2008, p. 127).

133
UNIDADE 2 | A PRODUÇÃO LITERÁRIA PORTUGUESA CLÁSSICA, BARROCA E ÁRCADE

A maior expressão poética barroca portuguesa deve-se a Gregório


de Matos, inclusive com grande expressão no Barroco brasileiro. Outros que
figuram entre a poesia barroca são Francisco Rodrigues Lobo, Sóror Violante do
Céu, Francisco Manuel de Melo, D. Tomás de Noronha, Jerônimo Baía e Antônio
Barbosa Bacelar.

Quando o Sol nasce e a sombra principia, A vós correndo vou, braços sagrados,
A doce abelha, a borboleta airosa nessa cruz sacrossanta descobertos,que, para
Procura luz ardente e fresca rosa, receber-me, estais abertos,
Que faz a terra céu e a noite dia. e por não castigar-me, estais cravados.

Mas quando à flor se entrega, à luz se fia, A vós, divinos olhos, eclipsados
Uma fica infeliz, outra ditosa de tanto sangue e lágrimas cobertos,
Pois vive a abelha e morre a mariposa pois, para perdoar-me, estais despertos,
Na favorável rosa e chama ímpia. e, por não condenar-me, estais fechados.

Fílis, abelha sou, sou borboleta, A vós, pregados pés, por não deixar-me,
Que com afecto igual, com igual sorte, a vós, sangue vertido, para ungir-me,
Busco em vós melhor luz, flor mais selecta. a vós, cabeça baixa, pra chamar-me.

Mas quando a flor é branda, a chama é forte, A vós, lado patente, quero unir-me,
Néctar acho na flor, na luz cometa; a vós, cravos preciosos, quero atar-me,
A boca me dá vida, os olhos morte. para ficar unido, atado e firme.

AUTOR – JERÔNIMO BAÍA AUTOR – GREGÓRIO DE MATOS


FONTE: SILVEIRA, Francisco Maciel. Literatura FONTE: SILVEIRA, Francisco Maciel. Literatura
Barroca. São Paulo: Global Editora, 1987. p. Barroca. São Paulo: Global Editora, 1987. p.
147. 136.

Já no que se refere à prosa barroca portuguesa, vale dizer que esta


apresentou notável expressão, talvez pela sua maturidade, principalmente
no que concerne ao aspecto formal. A contribuição, para atingir este patamar,
deve-se, em muito, à influência exercida pelo Barroco. Diga-se que, no tocante à
desenvoltura e à fluência, aproxima-se da prosa moderna.

Graças às suas características cultista e conceptista, aos seus variados


recursos expressivos, a prosa barroca seiscentista ganhou uma plasticidade e
elegância extraordinárias e um novo colorido, muito além da prosa medieval
novelística. Além de tudo isto, logicamente, há que se considerar a genialidade,
a expressividade de escritores como Padre Antônio Vieira, a maior expressão da
prosa barroca portuguesa.

134
TÓPICO 2 | UMA ÉPOCA DE DUALISMOS: O BARROCO PORTUGUÊS

FIGURA 24 – PADRE ANTÔNIO VIEIRA

FONTE: Ramalho; Ramos; Carvalho (2010, p. 15)

Acerca da sua produção literária em prosa, é possível classificá-la dentro


do cânone do barroco. Constitui-se de cerca de duzentos sermões, quinhentas
cartas que constituem valiosos documentos históricos que tratam da situação
da Colônia, a Inquisição, os cristãos-novos, a relação entre Portugal e Holanda,
entre outros fatos históricos da época. Sustenta-se que a parte mais valiosa de
sua obra esteja nos sermões que, em linguagem simples e sem torneios de estilo,
revelam um grande domínio da língua, criatividade, sensibilidade, humanidade
e convicções.

Antônio Vieira é natural de Lisboa, e já em 1614 mudou-se com a família


para o Brasil, instalando-se na Bahia. Estreou no púlpito com um sermão proferido
em 1633, ainda na Bahia, antes de ser ordenado sacerdote, um ano. A partir de
1641, retorna novamente a Lisboa, para ser nomeado Pregador Real e Tribuno
da Restauração (lembre-se, caro/a acadêmico/a, de que a Restauração da Coroa
portuguesa começa por volta de 1640, com D. João IV). Nos anos de 1646 e 1647,
Padre Vieira ficou encarregado de missões secretas na França e na Holanda. Entre
1652 e 1661, esteve no Maranhão, coordenando uma missão jesuítica. Sua atuação
foi muito importante para a promulgação da “Lei da Liberdade dos Índios”, de
1655.

Tratando-se de um homem tão brilhante e politicamente tão atuante,


não haveria como escapar de perseguições, inclusive da Igreja. Foi preso pela
Inquisição e permaneceu encarcerado entre os anos de 1665 e 1668. Por meio de
uma sentença emanada do Tribunal do Santo Ofício, foi-lhe cassada a palavra,
em 1667. Dirigiu-se, então, para Roma, e lá permaneceu pelo período de seis
anos. Neste tempo de permanência em Roma, consegue que o papa Clemente X
o livre da Inquisição. Retorna então ao Brasil, novamente para a Bahia, e passa ali
os últimos dezesseis anos de sua vida, organizando suas obras para publicação.
Morreu em Salvador, capital da Bahia, aos 18 de julho de 1697.

135
UNIDADE 2 | A PRODUÇÃO LITERÁRIA PORTUGUESA CLÁSSICA, BARROCA E ÁRCADE

Entre os sermões mais famosos de Padre Vieira, podem-se destacar:

- Sermão pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal Contra as de Holanda (1640).
Por causa da ação dos invasores holandeses, que cercaram a cidade de Salvador,
o Padre Vieira, ainda aos 32 anos de idade, declara que talvez este seja o seu mais
ousado e impressionante sermão, diante de uma plateia amedrontada, na Igreja de
Nossa Senhora da Ajuda. Padre Vieira, no sermão, não se dirige ao povo, mas, sim,
ao próprio Deus, rogando-lhe proteção para o seu povo: “Acordai, Senhor, por que
dormis?”, diz ele, com as palavras do Salmo 43.

- Sermão do Mandato (1650): este sermão trata do amor místico de Cristo, e é


considerado como um dos mais belos e mais perfeitos sermões.

- Sermão de Santo Antônio aos Peixes (1654). Este sermão foi proferido no
Maranhão, durante a luta dos jesuítas contra a escravização dos índios pelos
colonizadores. Vieira dá mostra de sua veia satírica, comparando os vícios dos
colonos ao comportamento das diversas espécies de peixes.

- Sermão da Sexagésima (1655): este sermão é visto como um dos mais famosos.
Foi proferido pelo Padre Vieira, em 1655, na Capela Real. Nas suas palavras,
o autor faz referência à arte de pregar, demonstrando suas dez partes. Padre
Vieira vale-se da metáfora de que pregar é o mesmo que semear. Ele traça um
paralelo entre a parábola bíblica do semeador que semeou nas pedras, nos
espinhos (em que o trigo frutificou e morreu), na estrada (ali não frutificou) e
na terra (que frutificou). Vieira critica muitos dos pregadores contemporâneos
seus, achando que estes o faziam mal, por tratarem de vários assuntos
concomitantemente. Consequentemente, a pregação tornava-se vaga, ineficaz,
agradando aos homens sem agradar a Deus. O sermão em questão foi chamado
de Sermão da Sexagésima, pois esta era, no calendário da Igreja, o segundo
domingo antes do primeiro da quaresma, ou seja, aproximadamente sessenta
dias antes da Páscoa.

Valendo-se da boa retórica, como jesuíta que era, sabendo organizar


e ordenar os conceitos e as ideias, Vieira mostrou-se um autêntico barroco
conceptista, no desenvolvimento e ordenação das ideias lógicas, com o objetivo
de persuadir a plateia. Pode ser visto também como um bom clássico, já que
possui clareza e simplicidade na sua maneira de se expressar. Entre os temas de
sua preferência, destacam-se o valor que deve ser atribuído à vida humana, para
reaproximá-la de Deus, e a exaltação do sofrimento, vendo-se nele o caminho
para a salvação.

A seguir, caro/a acadêmico/a, apresentamos um excerto do Sermão da


Sexagésima, para que você possa conhecer o conteúdo, a linguagem, o estilo, a
estética da prosa do período barroco português.

136
TÓPICO 2 | UMA ÉPOCA DE DUALISMOS: O BARROCO PORTUGUÊS

Sermão da Sexagésima
Padre Antônio Vieira

Sabeis, cristãos, por que não faz fruto a palavra de Deus? Por culpa dos
pregadores. Sabeis, pregadores, por que não faz fruto a palavra de Deus? —
Por culpa nossa. [...]

Mas dir-me-eis: Padre, os pregadores de hoje não pregam do Evangelho,


não pregam das Sagradas Escrituras? Pois como não pregam a palavra de
Deus? Esse é o mal. Pregam palavras de Deus, mas não pregam a palavra de
Deus: Qui habet sermonem meum, loquatur sermonem meum vere, disse Deus por
Jeremias. As palavras de Deus, pregadas no sentido em que Deus as disse,
são palavras de Deus; mas pregadas no sentido que nós queremos, não são
palavras de Deus, antes podem ser palavras do Demônio. Tentou o Demônio a
Cristo a que fizesse das pedras pão. Respondeu-lhe o Senhor: Non in solo pane
vivit homo, sed in omni verbo, quod procedit de ore dei. Esta sentença era tirada do
capítulo VIII do Deuteronômio. Vendo o Demônio que o Senhor se defendia da
tentação com a Escritura, leva-o ao Templo, e alegando o lugar do Salmo 90,
diz-lhe desta maneira: Mille te deorsum; scriptum est enim, quia Angelis suis Deus
mandavit de te, ut custodiant te in omnibus viis tuis. “Deita-te daí abaixo, porque
prometido está nas Sagradas Escrituras que os anjos te tomarão nos braços,
para que te não faças mal.” De sorte que Cristo defendeu-se do Diabo com a
Escritura, e o Diabo tentou a Cristo com a Escritura. Todas as Escrituras são
palavra de Deus: pois se Cristo toma a Escritura para se defender do Diabo,
como toma o Diabo a Escritura para tentar a Cristo? A razão é porque Cristo
tomava as palavras da Escritura em seu verdadeiro sentido, e o Diabo tomava
as palavras da Escritura em sentido alheio e torcido; e as mesmas palavras, que
tomadas em verdadeiro sentido são palavras de Deus, tomadas em sentido
alheio, são armas do Diabo. As mesmas palavras que, tomadas no sentido em
que Deus as disse, são defesa, tomadas no sentido em que Deus as não disse,
são tentação. Eis aqui a tentação com que então quis o Diabo derrubar a Cristo,
e com que hoje lhe faz a mesma guerra do pináculo do templo. O pináculo do
templo é o púlpito, porque é o lugar mais alto dele. O Diabo tentou a Cristo
no deserto, tentou-o no monte, tentou-o no templo: no deserto, tentou-o com a
gula; no monte, tentou-o com a ambição; no templo, tentou-o com as Escrituras
mal-interpretadas, e essa é a tentação de que mais padece hoje a Igreja, e que
em muitas partes tem derrubado dela, senão a Cristo, a sua fé. [...]

Miseráveis de nós, e miseráveis dos nossos tempos! Pois neles se veio a


cumprir a profecia de S. Paulo: Erit tempus, cum sanam doctrinam non sustinebunt:
Virá tempo, diz S. Paulo, “em que os homens não sofrerão a doutrina sã. Sed ad
sua desideria coacervabunt sibi magistros prurientes auribus: Mas para seu apetite
terão grande número de pregadores feitos a montão e sem escolha, os quais
não façam mais que adular-lhes as orelhas. A veritate quidem auditum avertent,
ad fabulas auten convertentur: Fecharão os ouvidos à verdade, e abri-los-ão às
fábulas”. Fábula tem duas significações: quer dizer fingimento e quer dizer
comédia; e tudo são muitas pregações deste tempo. São fingimento, porque

137
UNIDADE 2 | A PRODUÇÃO LITERÁRIA PORTUGUESA CLÁSSICA, BARROCA E ÁRCADE

são sutilezas e pensamentos aéreos, sem fundamento de verdade; são comédia,


porque os ouvintes vêm à pregação como à comédia; e há pregadores que vêm
ao púlpito como comediantes. Uma das felicidades que se contava entre as do
tempo presente era acabarem-se as comédias em Portugal; mas não foi assim.
Não se acabaram, mudaram-se; passaram-se do teatro ao púlpito. Não cuideis
que encareço em chamar comédias a muitas pregações das que hoje se usam.
Tomara ter aqui as comédias de Plauto, de Terêncio, de Sêneca, e veríeis se não
acháveis nelas muitos desenganos da vida e vaidade do mundo, muitos pontos
de doutrina moral, muito mais verdadeiros, e muito mais sólidos, do que
hoje se ouvem nos púlpitos. Grande miséria por certo, que se achem maiores
documentos para a vida nos versos de um poeta profano, e gentio, que nas
pregações de um orador cristão, e muitas vezes, sobre cristão, religioso! [...]

Estamos às portas da Quaresma, que é o tempo em que principalmente


se semeia a palavra de Deus na Igreja, e em que ela se arma contra os vícios.
Preguemos e armemo-nos todos contra os pecados, contra as soberbas, contra
os ódios, contra as ambições, contra as invejas, contra as cobiças, contra as
sensualidades. Veja o Céu que ainda tem na terra quem se põe da sua parte.
Saiba o Inferno que ainda há na terra quem lhe faça guerra com a palavra de
Deus, e saiba a mesma terra que ainda está em estado de reverdecer e dar muito
fruto: Et fecit fructum centuplum.

FONTE: PÉCORA, Alcir. Sermão da Sexagésima. In: Sermões: Padre Antônio Vieira. São Paulo:
Hedra, 2003. p. 163-175.

O Sermão da Sexagésima constitui-se uma verdadeira aula de retórica


clássica dentro da arte literária. Não à toa, já foi dito que, em muitos momentos,
os escritores barrocos se valeram da literatura para atingir certos objetivos. No
caso de Vieira, não seria diferente. Pelo sermão, ele ensina aos demais pregadores
a arte de pregar, isto é, indiretamente, como elaborar um bom sermão. Para ele, os
pregadores sempre deviam valer-se dos recursos argumentativos que pudessem
fazer com que os ouvintes permanecessem atentos, durante toda a pregação.
Acredita ele que se esses elementos fossem bem articulados, o sermonista atingiria
o fim último de convencer o ouvinte.

NOTA

O termo retórica refere-se à arte de bem falar através da oratória, também


chamada de eloquência, no sentido de persuadir o interlocutor.

138
TÓPICO 2 | UMA ÉPOCA DE DUALISMOS: O BARROCO PORTUGUÊS

Por outro lado, vislumbram-se já as luzes do século XVIII, tempo em que


as mentes também começam a se modificar, não aceitando, principalmente, a
pregação religiosa “imposta” pela Contrarreforma. Os exageros da arte barroca
não têm mais a mesma aceitação, o pensamento antropocêntrico começa a ser
retomado, o saber passa a ser racional, pois reflete o desenvolvimento tecnológico,
industrial, social e científico. Vive-se, agora, o século das luzes, o iluminismo
burguês que prepara o caminho para a chegada da Revolução Francesa, que
influenciará o mundo em muitos aspectos.

E a Literatura também passa a refletir as mudanças que se aproximam,


por isso, o Barroco começa a perder força, e novas maneiras de conceber e refletir
a produção literária começam a surgir. É o Arcadismo. E este será o assunto do
nosso próximo tópico. Até lá!

139
RESUMO DO TÓPICO 2

Caro/a acadêmico/a, no presente tópico, você teve oportunidade de


estudar aspectos importantes relacionados à Literatura Portuguesa, os quais
revemos, resumidamente, a seguir:

• O período denominado Barroco está marcado, no seu eixo espiritual e


ideológico, por dualismos, por ideias que contrastam entre si, o que coloca
o homem entre dois polos: homem e Deus, pecado e perdão, religiosidade e
paganismo, material e espiritual, antropocentrismo e teocentrismo.

• O Barroco, por excelência, é a arte dos contrastes, pois o artista está


constantemente tentando conciliar forças polares. O resultado disso é uma
obra de arte com a marca do exagero e da desigualdade, revelando, inclusive,
certa angústia por causa deste conflito.

• A tônica do Barroco é dada pelos ideais da reação da Igreja às ideias reformistas.


Em vista disso, há o medo, a crescente quantidade de templos religiosos
construídos, de estátuas de santos e de Jesus, de documentos sacros. As obras
de arte deveriam suscitar compaixão, autopiedade.

• No que concerne à literatura deste período, esta expressa um novo clima


intelectual e espiritual: à tendência mais racional, opõe-se a atração pelo místico
e irracional; excita-se a percepção dos contrastes entre os apelos do corpo e
os desejos pela espiritualidade. Além disso, manifesta-se um uso excessivo de
figuras de linguagem, o que constitui uma das principais características do
movimento literário barroco.

• O Cultismo (ou Culteranismo ou ainda Gongorismo) caracteriza-se pelo uso de


uma linguagem rebuscada, culta e extravagante.

• A característica conceptista manifesta-se na linguagem que se vale de jogos


de ideias ou conceitos, seguindo um raciocínio lógico, racionalista e com uma
retórica aprimorada.

• Por trás da estética do Barroco havia as intenções da Contrarreforma, já que esta


se valia do espírito catequizador. Na questão do lúdico da linguagem cultista,
aliada à dialética da linguagem conceptista e persuasiva, estava o objetivo de
ensinar e convencer.

• Os poetas, de um modo geral, procuraram seguir o exemplo camoniano do


soneto, valendo-se ora de uma linguagem de cunho mais conceptista ora de
cunho cultista. Talvez os poetas portugueses não tenham alçado voos mais
altos em virtude da falta de esforço para a inovação.
140
• No que se refere à prosa barroca portuguesa, esta apresentou notável expressão,
talvez pela sua maturidade, principalmente no que concerne ao aspecto formal.

• Padre Antônio Vieira constitui a maior expressão da prosa barroca portuguesa.


Valendo-se da boa retórica, mostrou-se um autêntico barroco conceptista, no
desenvolvimento e ordenação das ideias lógicas, com o objetivo de persuadir a
plateia.

141
AUTOATIVIDADE

Caro/a acadêmico/a, para que você possa melhor fixar o conteúdo deste
tópico, apresentamos, a seguir, uma atividade. Procure resolvê-la com base no
que você estudou.

1 Leia este soneto de Gregório de Matos e, em seguida, responda às questões


apresentadas:

Meu Deus, que estais pendente de um madeiro,


em cuja lei protesto de viver,
em cuja santa lei hei de morrer
animoso, constante, firme e inteiro:

neste lance, por ser o derradeiro,


pois vejo a minha vida anoitecer,
é, meu Jesus, a hora de se ver
a brandura de um pai, manso cordeiro.

Mui grande é vosso amor e o meu delito;


porém, pode ter fim todo o pecar,
e não o vosso amor, que é infinito.

Esta razão me obriga a confiar,


que, por mais que pequei, neste conflito
espero em vosso amor de me salvar.
(Gregório de Matos)

a) Observe o seguinte verso: “pois vejo a minha vida anoitecer”. Dentre as


muitas figuras de linguagem de que se valiam os poetas barrocos, qual está
presente neste verso?

b) No primeiro terceto, o poeta joga com a ideia de “finito” e “infinito”.


Comente o que o poeta diz ser finito e o que diz ser infinito.

2 Releia este trecho do Sermão do Mandato, de Padre Antônio Vieira. Em


seguida, responda às questões propostas:

142
A INGRATIDÃO

Padre Antônio Vieira

Outra vicissitude do tempo é a ingratidão. Esfriar o amor a ausência


é sem razão de que todos se queixam; mas que a ingratidão mude o
amor e o converta em aborrecimento, a mesma razão “quase” o aprova,
o persuade e parece que o manda. Que sentença mais justa que privar
do amor a um ingrato? A essência pode ser força, a ingratidão sempre é
delito. Se ponderarmos os efeitos de cada um desses contrários, acharemos
que a ingratidão é o mais forte. A ausência tira ao amor a comunicação, a
ingratidão tira-lhe o motivo. De sorte que o amigo, por estar ausente, não
perde o merecimento de ser amado; se o deixamos de amar não é culpa sua,
é injustiça nossa. Porém, se foi ingrato, ficou indigno de amor. Finalmente
a ausência combate o amor pela memória, a ingratidão pelo entendimento
e pela vontade; e ferido o amor no cérebro e ferido no coração, como pode
viver? “Assim, ensina a experiência no amor humano.” É a ingratidão com
o amor, como o vento com o fogo: se o fogo é pequeno, apaga-o o vento; se
é grande, acende mais. “E tal foi o amor de Cristo.” Quantas ingratidões
usaram com ele os homens! Mas nenhuma, nem todas juntas foram bastantes
para lhe remitirem um ponto o amor, nem vivo, nem morto: Cum dilexisset
suos qui erant in mundo, in finem dilexit eos (Como amasse os seus que estavam
no mundo, amou-os até o fim).
Dizem que um amor com outro se paga; o mais certo é que um amor
com outro se apaga. Ora, grande coisa deve de ser o amor; pois, sendo
assim que não bastam a encher um coração mil mundos, não cabem em
um coração dois amores. Daqui vem que se acaso se encontram e pleiteiam
sobre o lugar, sempre fica a vitória pelo melhor objeto. É o amor entre os
afetos, como a luz entre as qualidades. “Uma luz apaga-se por outra maior;
e assim vemos que em aparecendo o sol, que é luz maior, desaparecem as
estrelas. O mesmo sucede ao amor, por grande e extremado que seja. Em
aparecendo maior e melhor objeto, logo se desamou o menor.”

FONTE: GOMES, Eugênio. Vieira - trechos escolhidos. Rio de Janeiro: Agir, 1971. p. 85.

a) Neste sermão, Vieira fala dos efeitos da ausência sobre o amor. Cite-os.

b) Discorra acerca de como a razão considera o enfraquecimento do amor na


ausência do ser amado.

c) Encontre no texto do sermão características que se referem ao Barroco.

d) Considerando o modo de Vieira tratar o tema do amor neste sermão,


comente acerca de qual linha de pensamento do Barroco você julga que o
texto está mais próximo: se do cultismo ou do conceptismo.

143
144
UNIDADE 2 TÓPICO 3

AS LUZES DA RAZÃO: O ARCADISMO

“Eis, Bocage, em quem luz algum talento;


Saíram dele mesmo estas verdades
Num dia em que se achou mais
pachorrento.”

(BOCAGE, Manuel. Sonetos. São Paulo:


Publifolha, 1997, p. 298.)

1 INTRODUÇÃO
Gradativamente, a ação do movimento da Contrarreforma foi perdendo
terreno e, por outro lado, o movimento expansionista continuou seu trabalho,
deixando para o mundo os seus resultados, entre os quais, a expansão comercial.
Ao mesmo tempo em que as relações comerciais se intensificavam, desenvolviam-
se os instrumentos tecnológicos, o que garantiu o aparecimento de meios de
produção mais eficientes, mais rápidos. Diante disto, aumentou o consumo,
criou-se a necessidade de maior comércio, de maior integração econômica entre
as nações, desenvolveu-se, como consequência, o capitalismo comercial e, além
de tudo, promovia-se a integração cultural da Europa como um todo e o Mundo,
além do Novo Mundo, incluindo o Brasil.

Neste cenário, dava-se a ascensão da classe burguesa, por um lado, mas,


pelo outro, a classe dos trabalhadores do campo sentia-se atraída pelas novas
oportunidades de trabalho que eram abertas nas cidades, graças ao crescimento
da produção e o consequente alto consumo e aumento das vendas; era o êxodo
rural que começava a dar as caras. Via-se, ao mesmo tempo, a decadência dos
governos monárquicos absolutistas, e no seu lugar ganhavam espaço governos
revestidos de propostas rígidas e autoritárias e que respaldavam o capitalismo
comercial.

Atreladas a estas profundas mudanças socioeconômicas, chegaram


também as novas ideias artísticas e filosóficas, entre as quais a razão, que passou
a suplantar a religião, reinante esta no período barroco. Muitas correntes do
pensamento surgiram em toda a Europa, entre as quais o movimento mais
importante da época, o Iluminismo. Os seguidores desta corrente defendiam
a ideia de que a fonte do conhecimento estaria centrada na razão. Além disso,
“[...] o homem desse momento histórico, senhor do mundo pelo conhecimento,
modificador do mundo pela técnica” (SARAIVA, 1970, p. 39) conta agora com
um espírito mais reformista e deseja modificar também os vários aspetos das
manifestações artísticas, entre estas a literatura, já que se vive agora um novo
tempo e uma nova ideologia.

145
UNIDADE 2 | A PRODUÇÃO LITERÁRIA PORTUGUESA CLÁSSICA, BARROCA E ÁRCADE

Este tempo novo, que manifesta novas ideias dentro do espírito iluminista,
denomina-se Arcadismo (ou Setecentismo ou ainda Neoclassicismo), e dá uma
nova tônica às artes principalmente na segunda metade do século XVIII. Este
novo matiz vem principalmente dos ideais da nova burguesia e é caracterizado
pela procura da pureza e da simplicidade das formas clássicas. O Arcadismo
português, caro/a acadêmico/a, constitui o assunto deste terceiro tópico, e a sua
estética será estudada a seguir.

FIGURA 25 – ILUSTRAÇÃO TÍPICA DO ARCADISMO

FONTE: Enciclopédia Brasileira de Consultas e Pesquisas (1988, p. 368)

2 AS IDEIAS ILUMINISTAS E A ESTÉTICA NEOCLÁSSICA


Dentro do contexto do espírito iluminista do século XVIII, é natural que
os escritores também fossem tomados pela visão racional do mundo e das coisas.
E a expressão da literatura do momento histórico que se impõe nesta época,
representada pela crítica da burguesia mais culta ao modo de vida simbolizado
pelo clero e pela nobreza, recebe a denominação de Arcadismo.

O momento era de inovação, de insatisfação com a repetição dos modelos


e das formas, com a impregnação de um mesmo estilo. Com a influência do
racionalismo, da invenção, da técnica, as ideias do novo, a tendência só poderia
ser de romper com o presente e estabelecer projeções em relação ao futuro,
propondo novos modos, novas maneiras de fazer literatura. Mas, ao que parece,
vêm à tona elementos de um passado remoto. É novamente a retomada do
velho, acompanhada da negação de um passado imediatamente anterior. Ao
ser retomado, o modelo mais antigo recebe as devidas roupagens do momento
presente, para assim adaptar-se àquilo que é tido como estilo atual.

146
TÓPICO 3 | AS LUZES DA RAZÃO: O ARCADISMO

E isto não foi diferente com o Arcadismo, movimento que sucedeu o


Barroco, cuja estética calcada no rebuscamento, nos detalhes, nas contrariedades,
estava voltada para as classes mais abastadas, entre as quais a burguesia e o clero.
No atual movimento (Arcadismo), a reação procede da burguesia emergente,
propondo formas de expressão mais simples, mais ao seu gosto. Poder-se-
ia afirmar que, nesse trânsito, atenuam-se certos aspectos mais pesados do
seiscentismo e “[...] prefiguram-se as tendências estéticas do Arcadismo como a
busca do natural e do simples e a adoção de esquemas rítmicos mais graciosos.”
(BOSI, 1984, p. 61). Os ideais de uma vida mais modesta e natural vêm calhar com
os anseios de um público novo, consumidor em formação, que é composto pela
burguesia, a qual historicamente lutava pelo poder e denunciava a vida de luxo
da nobreza nas cortes.

A denominação do novo estilo – Arcadismo – origina-se da palavra


“arcádia”, que remete a uma região da Grécia antiga, no Peloponeso, que era
habitada por personagens mitológicas, constituída por um local de florestas, com
muitas riquezas e belezas naturais. No plano da mitologia grega, esse era um local
de morada das divindades, porém, na realidade, habitavam ali muitos pastores,
os quais se dedicavam também à composição de poesias.

Não à toa, os poetas arcadistas têm como fonte principal de inspiração e


como tema das suas composições a natureza. Por isso, o modelo a ser seguido é a
Arcádia. Ao iniciarem os literatos a reação aos exageros do Barroco, começaram
a denominar de Arcádias as agremiações em que se reuniam com o fim de
restaurarem a simplicidade e a sobriedade da poesia greco-latina. Geralmente,
nos encontros das arcádias, o que dominava era a disciplina. De acordo com as
regras, era necessária a adoção de pseudônimos, geralmente pastoris, muitas
vezes copiados da literatura ou da tradição mitológica clássica.

FIGURA 26 – ARCÁDIA, EM GREGO Αρκαδία, REGIÃO DA GRÉCIA ANTIGA

FONTE: Enciclopédia Brasileira de Consultas e Pesquisas (1988, p. 366)

147
UNIDADE 2 | A PRODUÇÃO LITERÁRIA PORTUGUESA CLÁSSICA, BARROCA E ÁRCADE

Tem-se como marco do início do Arcadismo lusitano o ano de 1756, data


em que foi fundada a Arcádia Lusitana. Esta entidade reunia vários artistas para
discutirem acerca da arte, entre esta a literária. Este período deu início a uma nova
fase à literatura portuguesa, seja em termos doutrinários seja de criação. Esta
Arcádia foi fundada nos mesmos moldes da já existente e inspiradora Arcádia
Romana, a qual foi fundada ainda em 1690. Com a recém-fundada Arcádia nas
terras lusitanas, dizem Saraiva e Lopes (1976, p. 564) “[...] que iriam culminar as
tendências neoclássicas e preparar a evolução literária no sentido do realismo
burguês setecentista.” Além disso, importante completar-se este pensamento com
as palavras de Vítor Manuel de Aguiar e Silva, o qual diz que com a fundação da
Arcádia Lusitana, em 1756, cobrou-se maior amplitude, consistência doutrinária e
relativa eficácia prática à difusão dos ideais neoclássicos à Literatura Portuguesa.
(1979).

Na fundação da Arcádia Lusitana, participaram poetas de renome dentro


da literatura portuguesa, entre os quais Antônio Dinis da Cruz e Silva, Pedro
Antônio Correia Garção, Manuel Nicolau Esteves Galvão e Teotônio Gomes de
Carvalho. Estes assumiram as principais características do novo movimento,
como a concepção da arte como imitação da natureza e o ataque ao movimento
barroco. Esta Arcádia tem duração até o ano de 1774, quando, por divergências
internas, seus sócios acabam se dispersando.

FIGURA 27 – SÍMBOLO DA ARCÁDIA LUSITANA

FONTE: Enciclopédia Brasileira de Consultas e Pesquisas (1988, p. 362)

148
TÓPICO 3 | AS LUZES DA RAZÃO: O ARCADISMO

Em termos de espírito doutrinário, o Arcadismo realizou um grande


trabalho dentro da literatura portuguesa, haja vista o espírito crítico que fez
amadurecer, por meio da revisão dos valores literários do passado e do presente.
Tome-se, por exemplo, a divisa inutilia truncat, inscrita no símbolo da Arcádia
Lusitana, a qual põe em evidência o espírito de rebeldia dos primeiros árcades,
em vista dos excessos praticados pelo estilo passado, Barroco.

Por meio do repúdio aos ideais do passado barroco e procurando seguir


racionalmente os ideais dos antigos, reformulando-os para adaptá-los à realidade
moderna, os escritores árcades conseguem restabelecer o equilíbrio de que a
poesia portuguesa necessita, o seu bom gosto e simplicidade enquanto arte
baseada na renascença.

Os escritores do período arcádico tinham por cunho a procura pela


recuperação dos ideais clássicos da literatura, conforme você já pôde perceber,
caro/a acadêmico/a. Nesse sentido, as fontes de equilíbrio e das quais emanava a
sabedoria têm sido os clássicos. Não à toa chamar-se a este estilo Arcadismo, pois,
como já foi apresentado, Arcádia era a morada dos pastores, a qual designava
o lugar verdadeiro para o poeta obter o equilíbrio necessário e a sabedoria. Em
vista disso, em muitas ocasiões, os poetas árcades autodenominavam-se pastores
e caracterizavam-se com alcunhas como pastores gregos e latinos.

É a partir da clara reação contra os exageros do Barroco que surgem as


principais características do Arcadismo:

EQUILÍBRIO: os escritores do Arcadismo, inicialmente, buscavam a


retomada dos moldes do período clássico, alegando que nesses modelos poderiam
encontrar o equilíbrio dos sentimentos, por meio do racionalismo (razão). Para
eles, esta seria a força capaz de monitorar os excessos. O desejo era, contrariamente
ao Barroco, uma linguagem simples, com frases diretas e vocabulário acessível,
distante do exagerado uso de figuras de linguagem, retirando tudo o que fosse
inútil, desnecessário à produção literária. Para eles, o texto deveria valer-se de um
caráter mais didático, concorrendo para a criação da consciência. Os escritores
do Arcadismo celebravam a virtude, o espírito de humildade, o desdém do luxo,
o enaltecimento de um tipo de vida que buscava a simplicidade e a moderação.
Heróis, para eles, geralmente, eram pastores anônimos e felizes. Veja-se o excerto
de uma poesia:

“Se não tivermos lãs e peles finas,


podem mui bem cobrir as carnes nossas
as peles dos cordeiros mal curtidas,
e os panos feitos com as lãs mais grossas.
Mas ao menos será o teu vestido
por mãos de amor, por minhas mãos cosido”.
(Tomás Antônio Gonzaga, Lira XV)

149
UNIDADE 2 | A PRODUÇÃO LITERÁRIA PORTUGUESA CLÁSSICA, BARROCA E ÁRCADE

BUCOLISMO: é o princípio do fugere urbem (palavras em latim cujo


significado é a fuga da cidade) adotado pelos árcades. A linguagem simples e clara
também é uma característica do Arcadismo. Por meio da inspiração no poeta latino
Horácio, com o fugere urbem (fugir da cidade, fugir da civilização), os escritores
do período arcádico acreditavam que o ser humano seria capaz de alcançar todo
o equilíbrio, a felicidade, a espiritualidade, através do contato com a natureza, o
chamado locus amoenus. O locus amoenus – lugar ameno – “[...] consiste de uma
bela e ensombrada nesga da natureza, cujo mínimo de apresentação consiste
numa árvore (ou várias), numa campina e numa fonte ou regato.” (CURTIUS,
1957, p. 202). Esta é a paisagem sonhada pelos poetas (ou pastores) árcades.

Nessa época estava em pleno andamento o crescimento acelerado das


cidades, embalado pelo rápido processo de industrialização; o Arcadismo
divulgava o retorno à vida simples do campo. Por causa disto, eram frequentes
os temas pastoris e cenas do campo sendo tratados pelos autores desse período.
Há que se explicar que a natureza de que falam os textos árcades geralmente é
criada pelo poeta, como um cenário artificial, falando de lindos campos, riachos
cristalinos, ou ainda relva verde. Os escritores, por sua vez, estão em pleno centro
urbano, por isso, está aí o chamado fingimento poético.

“Destes penhascos fez a natureza


O berço em que nasci: oh! quem cuidara
Que entre penhas tão duras se criara
Uma alma terna, um peito sem dureza!”
(Cláudio Manoel da Costa)

FIGURA 28 – O BUCOLISMO

FONTE: Enciclopédia Brasileira de Consultas e Pesquisas (1988, p. 381)

150
TÓPICO 3 | AS LUZES DA RAZÃO: O ARCADISMO

CONVENCIONALISMO: o estilo árcade traz uma marca característica


chamada convencionalismo, ou seja, a presença das frases prontas, dos clichês
e dos lugares comuns. Destaquem-se as ovelhas, os pastores e as pastoras, os
montes, as ninfas entre outros tantos elementos naturais, artificialmente criados
pelo poeta árcade. Tal convencionalismo transforma a poesia do Arcadismo, de
um modo geral, estigmatizado por causa da exígua expressividade e do amplo
artificialismo. Há que se destacar, nesse sentido, a monotonia causada pela
repetição, por vezes exaustiva, de temas bucólicos e pastoris.

“Amáveis solidões, bosques sagrados,


que nas noites tranquilas livremente,
prestais um doce abrigo aos desgraçados.
de meus olhos a límpida corrente
deixai-me desatar; suspiros, brados,
expliquem sem receio o que a alma sente.”
(Marquesa de Alorna)

CARPE DIEM: uma das grandes marcas da estética árcade é ocarpe diem,
ou seja, aproveitar o dia, tido também como o princípio do viver intensamente os
momentos presentes. Este tema também, visto sob a ótica da fugacidade da vida
(por isso aproveitar o momento), é muito comum na literatura ocidental. E há
que se ressaltar que o próprio Barroco se valeu dele, porém o ângulo de visão do
Barroco era o negativo, próximo à ideia do fim, da morte. Por sua vez, os árcades
o utilizam na perspectiva de um convite amoroso, como uma insinuação erótica.
O poeta, na certeza de que a vida é algo passageiro (efemeridade da vida) chama
a amada para que juntos aproveitem o momento atual. Isto é o carpe diem, ou o
desejo de aproveitar o momento, a vida enquanto é possível, já que esta é apenas
uma passagem.

“Prendamo-nos, Marilia, em laço estreito,


gozemos do prazer de sãos amores.
Sobre nossas cabeças,
sem que o possam deter, o tempo corre:
e para nós o tempo que se passa
também, Marília, morre.”
(Tomás Antônio Gonzaga)

Em consonância com outras escolas literárias, o Arcadismo também


refletiu a sociedade de sua época, no caso, os valores emanados do Iluminismo,
entre os quais o culto à razão e a busca pelo conhecimento. Contrariando os valores
barrocos, por outro lado, distinguiu-se por um estilo mais simples, valendo-se
das paisagens bucólicas, dos temas pastoris, criando cenas artificialmente. O
Arcadismo adotou uma estética que se voltou mais às formas poéticas do que
para a prosa. Sabe-se, no entanto, que as manifestações em prosa desse período
não seguiram os cânones do Arcadismo.

151
UNIDADE 2 | A PRODUÇÃO LITERÁRIA PORTUGUESA CLÁSSICA, BARROCA E ÁRCADE

Durante o período árcade, muitos escritores se destacaram, entre os quais:

• Manuel Maria Barbosa du Bocage: Idílios Marítimos (1791); Obras Poéticas


(1812-1813) e Verdadeiras Inéditas Obras Poéticas (1814);
• Antonio Diniz Cruz e Silva: Odes Pindáricas, 1801; O Hissope, 1802;
• Correia Garção: Assembleia ou Partido; Obras Poéticas;
• Francisco José Freire: Vieira defendido, Lisboa, 1746; Lisboa, 1745;
• Marquesa de Alorna: Alcippe, Lisboa, 1844;
• Padre Francisco Manoel do Nascimento: Da Arte Poética Portuguesa;
• Domingos Reis Quita: Obras Poéticas;
• Domingos Caldas Barbosa: A Viola de Lereno;
• José Agostinho de Macedo: A Pena de Talião.

A partir de 1790, a literatura portuguesa contou com a Nova Arcádia,


e esta, por sua vez, foi agraciada com a presença de um dos maiores poetas
portugueses do Arcadismo – e talvez do século XVIII – Manuel Maria Barbosa du
Bocage. Por ter sido ele a maior expressão desse período, merece ser estudado à
parte, no próximo item.

FIGURA 29 – PALÁCIO DOS CONDES DE POMBEIRO, NO QUAL SE REUNIA A NOVA ARCÁDIA

FONTE: Enciclopédia Brasileira de Consultas e Pesquisas (1988, p. 383)

3 BOCAGE: A EXPRESSÃO DO LIRISMO PORTUGUÊS


Dentre os autores árcades, o mais renomado, o mais expressivo foi Manuel
Maria Barbosa L’ Hedois du Bocage, mais conhecido por Bocage. É considerado
o ícone do movimento literário do Arcadismo. Ao mesmo tempo, ele é uma
figura que se insere no período que marca a passagem para o estilo romântico e
constitui uma forte presença na literatura lusitana do século XIX. Para um melhor
conhecimento desse autor, é prudente que se apresente uma biografia sua, de
modo mais simplificado.

Bocage nasceu em Setúbal, Portugal, em 15 de setembro de 1765, às


quinze horas. Seu falecimento ocorre em Lisboa, capital do país, na manhã de 21
de dezembro de 1805. Seu pai era o bacharel José Luís Soares de Barbosa, juiz,
ouvidor e advogado. Sua mãe, D. Mariana Joaquina Xavier L’ Hedois Lustoff

152
TÓPICO 3 | AS LUZES DA RAZÃO: O ARCADISMO

du Bocage, era filha de um francês. Ainda em relação à mãe, esta era segunda
sobrinha da importante poetisa francesa Marie Anne Le Page du Bocage.

Ainda que tenham sido publicadas muitas biografias desse importante


poeta português, grande parte de sua vida permanece obscura. Pouco ou nada
se sabe acerca de seus estudos, mas acredita-se, segundo as análises da sua obra
poética, que tenha estudado (ou lido) muito os clássicos e a mitologia grega e
latina, que tenha estudado a língua francesa e também a latina. No que concerne
às mulheres que teria amado, não é possível (ou é duvidosa, ou ainda discutível)
a sua identificação.

Pelo que se sabe, o período de sua infância não foi muito infeliz. Seu pai foi
preso por causa de dívidas com o Estado, quando o menino Bocage ainda contava
seis anos. Permaneceu recluso pelo período de seis anos. Quando o menino tinha
dez anos, ocorreu o falecimento da mãe.

Em 22 de setembro de 1781, Bocage alistou-se para servir o exército como


voluntário, talvez por causa de uma desilusão amorosa, e permaneceu nas forças
armadas até 15 de setembro de 1783. Nesta mesma data, deu-se sua admissão à
Escola da Marinha Real, na qual fez seus estudos para guarda-marinha. Concluso
o curso, desertou, porém, mesmo assim, seu nome apareceu como uma das
nomeações para guarda-marinha efetuadas pela rainha D. Maria I. Neste tempo,
já é famoso como poeta e como versejador em Lisboa.

No ano de 1786, em 14 de abril, na qualidade de oficial da marinha


portuguesa, embarcou com destino à Índia, numa das naus portuguesas
denominada Nossa Senhora da Vida, a qual fez uma escala no Rio de Janeiro, por
volta do final de junho do mesmo ano. Segundo registros existentes, teria vivido
certo tempo na cidade, na atual Rua Teófilo Otoni, “[...] onde se regala em festins
e amores tropicais” (MOISÉS, 2008, p. 156).

O vice-rei ordenou que prosseguisse viagem para o seu destino final – a


Índia – e, no início de setembro de 1786, fez escala em Moçambique, chegando à
Índia em 28 de outubro do mesmo ano. Na cidade de Pangin, frequentou estudos
como oficial da Marinha e é promovido a tenente, sendo deslocado para Damão.
Entregue a baixos amores, deserta, segue para Macau em 1789, e depois retorna a
Lisboa, chegando em meados 1790.

A década que se segue, para ele, é muito promissora, por causa da sua
grande produção literária, ao mesmo tempo em que se caracteriza como um
período de entregas à vida boêmia e de aventuras. Ainda no ano de 1790, recebeu
o convite para compor a Academia das Belas Letras ou Nova Arcádia, à qual
aderiu e, como de costume, deveria adotar um pseudônimo, escolhendo, para
isso, Elmano Sadino.

153
UNIDADE 2 | A PRODUÇÃO LITERÁRIA PORTUGUESA CLÁSSICA, BARROCA E ÁRCADE

FIGURA 30 – MANUEL MARIA BARBOSA L’ HEDOIS DU BOCAGE

FONTE: Enciclopédia Brasileira de Consultas e Pesquisas (1988, p. 396)

A cidade de Lisboa era então dominada pelo Intendente da Polícia


Pina Manique, o qual decidiu pôr ordem na cidade, optando, em 7 de agosto
de 1797, pela prisão de Bocage, alegando ser este “desordenado nos costumes”.
Permaneceu recluso no Limoeiro até 14 de novembro de 1797, passando em
seguida ao calabouço da Inquisição, no Rossio. Ali permaneceu até 17 de fevereiro
do ano seguinte, tendo passado, logo após, ao Real Hospício das Necessidades,
coordenado pelos Padres Oratorianos de São Filipe Neri. Antes, porém, passou
brevemente pelo Convento dos Beneditinos. No seu demorado período de
detenção, Bocage poliu muito o seu jeito de ser e começou a trabalhar de modo
mais “sério” como redator e como tradutor. Foi libertado, finalmente, no dia 31
de dezembro de 1798.

Os anos que vão de 1799 a 1801 são para Bocage de muito trabalho,
principalmente com Frei José Mariano da Conceição Veloso, um frade brasileiro,
com uma boa posição política e bem visto pelo intendente Pina Manique. Ele lhe
proporcionou muitas oportunidades de trabalho, na área da tradução. A começar
pelo ano de 1801 até sua morte, causada por um aneurisma, morou numa casa
por ele mesmo arrendada, no Bairro Alto, no atual número 25, na travessa André
Valente, em Lisboa.

Durante a sua trajetória, Bocage levou uma vida até certo ponto confusa,
conturbada, dedicando-se, em muitos momentos, à boêmia. Frequenta também os
bares portugueses, convive com prostitutas, marinheiros, vagabundos. Em certos
momentos, tem oportunidade de estar com pessoas de bom nível cultural, social
e literário. Do mesmo modo que Camões, foi soldado e, por um certo período,
viveu e viajou para algumas terras portuguesas ultramarinas, as ditas colônias
portuguesas no Oriente ou no Ocidente. Entre a vida de Bocage e a de Camões,
há muitas semelhanças, por isso ele dedica um dos seus sonetos a traçar este
paralelo entre ele e o poeta épico português:

Camões, grande Camões, quão semelhante


acho teu fado ao meu, quando os cotejo!
Igual causa nos fez, perdendo o Tejo,
arrostar co’o sacrilégio gigante;

154
TÓPICO 3 | AS LUZES DA RAZÃO: O ARCADISMO

como tu, junto ao Ganges sussurrante,


da penúria cruel no horror me vejo;
como tu, gostos vãos, que em vão desejo,
também carpindo estou, saudoso amante.

Ludíbrio, como tu, da Sorte dura


meu fim demando ao Céu, pela certeza
de que só terei paz na sepultura.

Modelo meu tu és. Mas, oh tristeza!


Se te imito nos transes da Ventura,
não te imito nos dons da Natureza.
(BOCAGE, 1997, p. 35)

É muito conhecido como um poeta de múltiplas faces, pois a sua produção


vai do lírico ao satírico e ao erótico. Num de seus sonetos, ele traça um perfil de
si próprio. Nas quadras e no primeiro terceto, ele esboça seu autorretrato. Já na
segunda parte (último terceto), ele revela sua identidade e o motivo da criação do
soneto.

Magro, de olhos azuis, carão moreno,


bem servido de pés, meão na altura,
triste de facha, o mesmo de figura,
nariz alto no meio, e não pequeno;

incapaz de assistir num só terreno,


mais propenso ao furor do que à ternura,
bebendo em níveas, por taça escura,
de zelos infernais letal veneno;

devoto incensador de mil deidades


(digo de moças mil) num só momento,
e somente no altar amando frades;

eis Bocage em quem luz algum talento;


saíram dele mesmo estas verdades,
num dia em que se achou mais pachorrento.
(BOCAGE, 1997, p. 35)

A seguir, mais um soneto desse autor, no qual é possível perceber as


características neoclássicas:

Olha, Marília, as flautas dos pastores


que bem que soam, como estão cadentes!
Olha o Tejo a sorrir-se! Olha não sentes
os Zéfiros brincar por entre as flores?

155
UNIDADE 2 | A PRODUÇÃO LITERÁRIA PORTUGUESA CLÁSSICA, BARROCA E ÁRCADE

Vê como ali beijando-se os Amores


incitam nossos ósculos ardentes!
Ei-las de planta em planta as inocentes,
as vagas borboletas de mil cores.

Naquele arbusto o rouxinol suspira,


ora nas folhas a abelha para,
ora nos ares sussurrando gira.

Que alegre campo! Que manhã tão clara!


Mas ah! Tudo o que vês, se eu não te vira,
mais tristeza que a noite me causara.
(BOCAGE, 1997, p. 41)

Caro/a acadêmico/a, veja neste poema (soneto) a presença de características


próprias do período neoclássico. Entre estas a descrição de um possível locus
amoenus, este apresentado ao longo de quase todo o soneto. Eis a característica
chamada bucolismo, marcado pelo princípio do fugere urbem. Ao que parece, a
paisagem quase paradisíaca apresentada é passível de realização com a presença
da pessoa amada. Os elementos do neoclassicismo se manifestam também na
forma do poema (soneto) com a ocorrência de elementos mitológicos, como os
Zéfiros.

Já no que se refere à literatura erótica, o século XVIII encontra em Bocage


uma das grandes expressões. Dentro deste tema, há uma obra sua chamada
Poesias Eróticas, Burlescas e Satíricas. Este tipo de literatura, em Bocage, pode ser
considerado como um desejo de libertação do desejo sexual ou do amor sensual.
Veja-se, por exemplo, a poesia a seguir, intitulada Soneto de Todas as Putas:

Não lamentes, oh Nise, o teu estado;


puta tem sido muita gente boa;
putíssimas fidalgas tem Lisboa,
milhões de vezes putas têm reinado:

Dido foi puta, e puta d’ um soldado;


Cleópatra por puta alcança a c’ roa;
tu, Lucrécia, com toda a tua proa,
o teu cono não passa por honrado:

essa da Rússia imperatriz famosa,


que inda há pouco morreu (diz a Gazeta)
entre mil porras expirou vaidosa:

todas no mundo dão a sua greta:


não fiques pois, oh Nise, duvidosa
que isso de virgo e honra é tudo peta.
(BOCAGE, 1997, p. 35)

156
TÓPICO 3 | AS LUZES DA RAZÃO: O ARCADISMO

A obra poética de Bocage, quando analisada, revela certa evolução, a qual


poderia ser traduzida em três momentos principais; primeiramente ele revela
certa polêmica, ainda em vida; segue-se uma fase de idealização romântica ao
longo do século XIX e, por fim, a reinterpretação estética e ideológica dos nossos
dias. Diante disso, caro/a acadêmico/a, para um melhor aproveitamento da obra,
uma boa compreensão, calcule o quanto é necessário atentarmos às palavras do
poeta e ao modo de ele arranjá-las esteticamente.

Há que se frisar que o bom leitor da obra bacagiana, nos dias atuais,
jamais poderia, ou deveria, ignorar o quanto é difícil e o quanto é complexa a
compreensão da produção literária desse que é o maior e melhor poeta árcade
português. Assim, a obra de Bocage, no seu conjunto, não é totalmente árcade
tampouco romântica; é, sim, uma literatura de passagem de um tempo a outro,
ou melhor, que apresenta, ao mesmo tempo, aspectos de duas escolas literárias
portuguesas: o Arcadismo e o Romantismo. Esse aspecto de Bocage bem o revela
Massaud Moisés (2008, p, 161): “[...] é todo ele o anúncio da visão romântica do
mundo [...] é assim que deve ser considerado. Para ser integralmente romântico,
faltou-lhe caminhar um passo a mais e libertar-se por inteiro da formação
neoclássica”. E a escola romântica portuguesa, caro/a acadêmico/a, constitui o
assunto da nossa próxima unidade.

157
RESUMO DO TÓPICO 3

Caro/a acadêmico/a, no presente tópico, você teve oportunidade de


estudar aspectos importantes relacionados à Literatura Portuguesa, os quais
revemos, resumidamente, a seguir:

• Muitas correntes do pensamento surgiram em toda a Europa, no século XVIII,


entre as quais o movimento mais importante da época, o Iluminismo.

• O novo tempo, que manifesta novas ideias dentro do espírito iluminista,


denomina-se Arcadismo (ou Setecentismo ou ainda Neoclassicismo). Ele dá
uma nova tônica às artes principalmente na segunda metade do século XVIII.

• Os ideais de uma vida mais modesta e natural vêm calhar com os anseios de um
público novo, consumidor em formação, que é composto pela burguesia, a qual
historicamente lutava pelo poder e denunciava a vida de luxo da nobreza nas cortes.

• Ao iniciarem a reação aos exageros do Barroco, os literatos começaram


a denominar de Arcádias as agremiações em que se reuniam com o fim de
restaurarem a simplicidade e a sobriedade da poesia greco-latina.

• O marco do início do Arcadismo lusitano é o ano de 1756, data em que foi


fundada a Arcádia Lusitana.

• Os escritores do período arcádico tinham por cunho a procura pela recuperação


dos ideais clássicos da literatura.

• É a partir da clara reação contra os exageros do barroco que surgem as


principais características do arcadismo: equilíbrio, bucolismo, convencionalismo
e carpe diem.

• Um dos maiores poetas portugueses do Arcadismo – e talvez do século XVIII


– foi Manuel Maria Barbosa du Bocage. É considerado o ícone do movimento
literário do Arcadismo. Bocage é muito conhecido como um poeta de múltiplas
faces, pois a sua produção vai do lírico ao satírico e ao erótico.

• A obra poética de Bocage revela certa evolução, a qual poderia ser traduzida
em três momentos principais. Primeiramente, ele revela certa polêmica, ainda
em vida; segue-se uma fase de idealização romântica ao longo do século XIX e,
por fim, a reinterpretação estética e ideológica dos nossos dias.

• Bocage, ao que parece, não é totalmente árcade tampouco romântico; ele faz uma
literatura de passagem de um tempo a outro, ou melhor, que apresenta, ao mesmo
tempo, aspectos de duas escolas literárias portuguesas: o Arcadismo e o Romantismo.
158
AUTOATIVIDADE

Caro/a acadêmico/a, para que você possa melhor fixar o conteúdo


deste tópico, apresentamos, a seguir, uma atividade. Procure resolvê-la com
base no que você estudou.

1 Leia o soneto de Bocage e, em seguida, responda às questões propostas:

Sobre estas duras, cavernosas fragas,


que o marinho furor vai carcomendo,
me estão negras paixões na alma fervendo
como fervem no pego as crespas vagas.

Razão feroz, o coração me indagas,


de meus erros a sombra esclarecendo,
e vás nele (ai de mim!) palpando, e vendo
de agudas ânsias venenosas chagas.

Cego a meus males, surdo a teu reclamo,


mil objetos de horror co’a ideia eu corro,
solto gemidos, lágrimas derramo.

Razão, de que me serve o teu socorro?


Mandas-me não amar, eu ardo, eu amo;
Dizes-me que sossegue, eu peno, eu morro.
(BOCAGE, 1997, p. 31)

a) Na primeira estrofe, existe certa analogia entre o ambiente evocado e o


estado de espírito do “eu lírico”. Explique este fato.
b) Encontre, na estrofe inicial, exemplos que permitem associar as paixões à
ideia de escuridão e trevas.
c) Comente a contraposição existente entre Razão e Paixão, expressa no
segundo quarteto.
d) Discorra acerca das características árcades que podem ser perceptíveis no
poema.

2 Leia, a seguir, um soneto da Marquesa de Alorna. Procure, com base na


leitura, resolver a atividade proposta.

Como posso explicar em brando verso


doce prazer, se o peito nunca o sente?
Musas, vós não ditais ao descontente
senão queixas do seu fado adverso!

159
Linda cena, espetáculo diverso
embora alegre o mundo me apresente,
que em luto, isto que choro amargamente,
me sepulta o vastíssimo universo.

Jamais um dia alegre me afigura


a incerta e voadora fantasia,
que a mágoa o não transforme em sombra escura.

Que quereis que vos diga d’ alegria,


se vítima da negra desventura
sirvo sempre a cruel melancolia?!

FONTE: AMORA, Antônio Soares. Presença da Literatura Portuguesa – era clássica. São
Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1970. p. 287.

a) Explique o modo como, na primeira estrofe, é apresentada a ideia de poesia


enquanto expressão do mundo interior.
b) Na segunda estrofe, parece haver uma separação entre o eu lírico e a
realidade que o cerca. Comente como este fato é apresentado na poesia.
c) Discorra sobre as características do Arcadismo que podem ser percebidas
neste soneto.

160
UNIDADE 3

DO ROMANTISMO À
CONTEMPORANEIDADE: A ESTÉTICA E
A PRODUÇÃO LITERÁRIA
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, o/a acadêmico/a estará apto/a a:

• apresentar o momento histórico dos períodos romântico, simbolista, mo-


derno e contemporâneo da Literatura Portuguesa;

• refletir sobre as características estéticas do Romantismo, Simbolismo, Mo-


dernismo e da contemporaneidade literária portuguesa;

• conhecer a produção literária em prosa e em verso dos séculos XIX e XX,


da Literatura Portuguesa;

• discutir acerca da produção literária romântica, realista e moderna, na


perspectiva estética;

• localizar alguns autores marcantes dentro de cada escola literária, a exem-


plo de Almeida Garret, Eça de Queirós, Fernando Pessoa, José Saramago;

• analisar alguns textos literários considerados marcantes na formação dos


períodos literários romântico, realista, simbolista, modernista e contempo-
râneo, localizando neles características das respectivas escolas literárias.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em quatro tópicos. Ao final de cada um deles, o/a
acadêmico/a poderá dispor de atividades que o/a auxiliarão na fixação do
conteúdo.

TÓPICO 1 – O ESPÍRITO CRIADOR E LIVRE: PERÍODO ROMÂNTICO

TÓPICO 2 – A REVOLUÇÃO DA MENTALIDADE E O CULTO AO


ETÉREO: AS ESCOLAS REALISTA E SIMBOLISTA

TÓPICO 3 – LIBERDADE DE CONCEPÇÃO E EXPRESSÃO E A


ATUALIDADE: A ERA MODERNA E A PRODUÇÃO
LITERÁRIA CONTEMPORÂNEA

TÓPICO 4 – A LITERATURA PORTUGUESA E O ENSINO: ALGUMAS


IDEIAS

161
162
UNIDADE 3
TÓPICO 1
O ESPÍRITO CRIADOR E LIVRE: PERÍODO ROMÂNTICO

“Só me lembra que um dia formoso


Eu passei... dava o sol tanta luz!
E os meus olhos, que vagos giravam,
Em seus olhos ardentes os pus.
Que fez ela? eu que fiz? – não no sei;
Mas nessa hora a viver comecei...”

(GARRET, Almeida. Este Inferno de Amar)

1 INTRODUÇÃO
É historicamente sabido que o século XVIII é marcado por um grande
crescimento da classe burguesa, e isto é visto com maior rigor no território francês.
Na França, a burguesia sentia-se pouco valorizada, principalmente por parte dos
membros da realeza, monarquia absolutista. Atrelada ao descontentamento da
burguesia, estava também uma grande massa empobrecida que muito sofria, haja
vista a desigualdade social reinante na França nesse momento. A revolta popular
era iminente, em vista do descontentamento geral: os camponeses explorados
por causa da injusta cobrança de impostos, a burguesia rica e crescente exigia
igualdade de condições, as massas empobrecidas desejavam mudanças e muitos
dos que eram favorecidos pelo regime governamental temiam perdas de suas
posses.

Assim, a burguesia rebela-se e tenta uma tomada de poder, amparada


por três ideais revolucionários: liberdade, igualdade e fraternidade. Era o início
da Revolução Francesa, 14 de julho de 1789. Por isso, vale dizer que se trata
da expressão dos “[...] sentimentos dos descontentes com as novas estruturas.
[...]”. São as “[...] atitudes saudosistas ou reivindicatórias que pontuam todo o
movimento.” (BOSI, 1984, p. 100).

Os ideais pregados pelos revolucionários passam a constituir as novas


diretrizes políticas, econômicas e sociais, não somente na França, mas além
do território francês, e passam a intervir na maior parte das sociedades do
século XVIII. É crescente a influência da Revolução Francesa e da Revolução
Industrial, além do pensamento liberal, pregado pelos ideais de liberdade dos
revolucionários, o que passa a disseminar-se em todos os campos.

163
UNIDADE 3 | DO ROMANTISMO À CONTEMPORANEIDADE: A ESTÉTICA E A PRODUÇÃO LITERÁRIA

FIGURA 31 – LIBERDADE GUIANDO O POVO

FONTE: Enciclopédia Brasileira de Consultas e Pesquisas (1988, p. 346)

No que concerne às artes de um modo geral, estas também refletem esses


ideais. A literatura não é diferente e também passa a mostrar essas influências. A
liberdade suplanta as regras fixas de outrora, a razão é posta acima da emoção.
Instaura-se, assim, uma nova maneira de expressão artística (entre esta a literatura)
na Europa, o que chegou também em Portugal. É o chamado Romantismo. Este
novo estilo é o nosso assunto, caro/a acadêmico/a, deste primeiro tópico.

2 A ESTÉTICA DA POESIA E DA PROSA ROMÂNTICA


De um modo geral, as origens do Romantismo, embora a Revolução
Francesa tenha sido um dos grandes marcos deste estilo, estão na Inglaterra e
na Alemanha, sem desmerecer a função da França enquanto divulgadora do
movimento. Assim, os ideais românticos têm suas marcas a partir do escocês
Allan Ramsay, em 1724, o qual publicou uma antologia de poemas intitulada The
Evergreen. No ano de 1725, ele faz chegar ao público a obra The Gentle Shepherd
e, em 1727, este mesmo autor escreve The Teatabble Miscellany. Nestes livros
poéticos, ele valoriza o fator sentimental da poesia, ao mesmo tempo em que se
valia da natureza como fonte de expressão.

Do mesmo modo, um irlandês, James Macpherson, impulsiona, com sua


obra em prosa, a nova estética, publicando, em 1760, um volume que tratava das
poesias do autor do século II, Ossian, o que obteve imediato sucesso.

Em território alemão, novo o movimento chama-se Ímpeto e Violência, e


valorizava mais o sentimento que a razão, rompia com as regras rígidas, buscava
o retorno ao primitivismo e desejava liberdade de criação. Marcante, nesse
sentido, foi a obra de Johann Wolfgang von Goethe, Os Sentimentos do Jovem
Werther. Neste livro, é narrado o drama do jovem Werther por amar Charlotte,
uma moça comprometida. Por causa desse amor irrealizável, o garoto chega ao

164
TÓPICO 1 | O ESPÍRITO CRIADOR E LIVRE: PERÍODO ROMÂNTICO

suicídio. O livro foi muito bem aceito entre a juventude europeia, a ponto de
muitos jovens, em toda a Europa, suicidarem-se, o que chegou a ser um surto.
Portugal conseguiu controlar este surto graças à imprensa, que parou de publicar
os fatos.

Referindo-se ao surgimento da nova tendência e às suas origens inglesa e


alemã, diz Octávio Paz (1984, p. 34) que “[...] o romantismo nasceu, quase que ao
mesmo tempo, na Inglaterra e na Alemanha. Daí estendeu-se por todo o continente
europeu, como se fosse uma epidemia espiritual”. No território português, os
historiadores da literatura marcam o surgimento do novo movimento literário
a partir da publicação do poema Camões, por Almeida Garret, em 1825. Por sua
vez o término dar-se-ia com a polêmica da Questão Coimbrã, em 1865.

O Romantismo em geral passou a ser visto como um novo modo de


expressão, uma maneira diferente de enfrentar os percalços da vida e do modo
de pensar. Esta escola literária opunha-se aos clássicos, às regras e modelos fixos,
desejando certa liberdade na maneira de criar. Diante do domínio da burguesia,
percebe-se uma maior profissionalização do escritor, o qual passa a receber
pagamento pela produção da obra. Por sua vez, para ter acesso a essa obra, o
público deve pagar, pois é consumidor.

FIGURA 32 – ALMEIDA GARRET

FONTE: Nicola (2003, p. 127)

Ao falarmos em “romântico”, caro/a acadêmico/a, não é possível pensar


puramente no amor à moda antiga, a exemplo das pessoas que se amam e
mandam flores umas às outras, exemplo típico de amor cantado por muitas
músicas populares. Essa é, poderíamos dizer, uma imagem estereotipada do amor
romântico, além de muito pouco ou nada acrescentar para a definição do termo
romântico. Há inclusive autores que arriscam dizer que o movimento romântico
constitui um enigma:

165
UNIDADE 3 | DO ROMANTISMO À CONTEMPORANEIDADE: A ESTÉTICA E A PRODUÇÃO LITERÁRIA

Considerando a natureza arbitrária da escolha de algumas


características em relação a outras, vários críticos tentaram contornar
essa dificuldade apresentando listas cada vez mais compridas de
denominadores comuns da literatura romântica. Até aqui, a mais
extensa é aquela elaborada [...] sobre o romantismo europeu que
estabelece uma tabela sistemática de vinte e três denominadores
comuns: medievalismo, imaginação, culto das emoções fortes,
subjetivismo, interesse pela natureza, mitologia e folclore, mal do
século, simbolismo, exotismo, realismo, retórica etc. Uma vez mais: ao
admitir que essas características se encontram na obra de inúmeros,
ou até mesmo da maioria dos escritores românticos, será que por essa
razão ficamos sabendo o que é o romantismo? Seria possível alongar
as listas até o infinito, acrescentando um número cada vez maior
de denominadores comuns, sem nos aproximarmos da solução do
problema. (SAYRE; LÖVY, 1995, p. 97).

Conforme foi possível notar, a definição constitui um fenômeno difícil de


ser contornado, por isso, adiante, tentaremos tratar separadamente de alguns de
seus atributos, que constituem as principais características, que foram comuns
nos mais diversos locais em que ele obteve expressão. Para nós, o mais importante
é sua manifestação na Literatura Portuguesa.

Mas não poderíamos deixar de dar voz a alguém que tentou defini-
lo, ainda que de maneira simples, a exemplo de que o Romantismo
foi, sobretudo, um movimento de liberdade espiritual, primeiro,
que remonta às origens, filosófica, literária e artística, e depois, de
cunho social e político. Em arte e literatura, seu objetivo foi fazer algo
diferente dos movimentos do passado e daquele em voga no momento
presente, e até contra ambos. Excedeu o seu propósito, e em todos os
ramos de atividade mental, até nas ciências, foi uma reação contra o
espírito clássico, que, embora desnaturado, ainda dominava em todos.
(VERÍSSIMO, 1976, p. 77).

Sabemos que as características marcantes do Romantismo são várias,


e que todas elas procuram centrar-se na valorização do eu e da liberdade, ao
mesmo tempo em que vão se juntando e formam um painel muito amplo com
os traços reveladores da estética romântica. Para mostrar as principais, tomamos
como base os estudos de literatura efetuados por Domício Proença Filho (1995,
p. 216-227):

- Contraste entre os ideais divulgados e a imitação imposta pela realidade


vivida: o universo conhecido se apresenta de modo amplo, o século das
luzes (Iluminismo) deixa a marca dos anseios de liberdade, deslocando
o centro do poder, a dependência social e econômica, a inconsciência, o
desconhecimento, que estabelecem para uma grande maioria, no entanto,
uma existência marcada por limitações de todas as espécies.
- Imaginação criadora: na tentativa de fuga, o escritor (artista) romântico
dirige-se para universos criados, que são, ao mesmo tempo, invenção de sua
inteligência, localizados num passado ou num futuro por ele idealizados,
que podem estar longe, envolvidos em magia e no exotismo, nos ideais de
liberdade concebidos a partir de figuras heroicas. É a fantasia que é capaz de

166
TÓPICO 1 | O ESPÍRITO CRIADOR E LIVRE: PERÍODO ROMÂNTICO

levar os românticos a imaginar um mundo fascinante de beleza, como um


universo em que a emoção pode se realizar no que é belo associado àquilo
que é mais aterrorizante.
- Subjetivismo: o espaço para a criação é constituído pelo mundo pessoal,
interior, do próprio autor e seus sentimentos. O autor romântico não tem
medo de expor as emoções pessoais. Ele se sente em plena liberdade para
isso, pois ele faz delas um tema em constante recuperação nas suas obras.
- Evasão: nas obras românticas, o escapismo manifesta-se via idealização da
realidade ou por meio da fuga para mundos imaginários. Há momentos em
que essa evasão traz a marca da desesperança, neste caso percebe-se o clamor
pela morte, em muitos casos desejada pelo artista. A morte, o seu chamado,
constitui tema de muitos poetas.
- Senso de mistério: as criações do romantismo trazem muito a questão da
valorização daquilo que é misterioso, mágico, maravilhoso. Talvez seja por
esse motivo que muitos românticos buscaram aquilo que é sobrenatural ou o
terror.
- Consciência da solidão: o autor romântico é levado a refugiar-se no próprio
eu por causa do seu elevado grau de subjetivismo. Isso lhe atribui um
sentimento de inadequação, por isso deslocado do mundo real.
- Reformismo: os ideais contestadores e libertários, adquiridos pelos artistas
românticos por causa da sua participação em movimentos sociais, influíram,
e muito, na sua produção literária, a exemplo da campanha abolicionista e o
movimento pela república.
- Sonho: por meio dessa característica, os escritores revelam a busca por certas
verdades, a revelação de anseios, a idealização do mundo.
- Fé: a fé, condutora do movimento, manifesta-se na crença na própria
verdade, na busca de justiça, na crença nos sentimentos revelados, nos ideais
perseguidos, na manifestação da religiosidade cristã. Esta é uma influência
medieval manifestada na construção do romantismo.
- Ilogismo: por meio desta característica, certas manifestações emocionais se
opõem entre si e se contradizem.
- Culto à natureza: no ambiente romântico, a natureza tem especial
significado, haja vista constituir-se testemunha e companheira das almas
que são sensíveis. Ela é um refúgio, uma proteção, uma verdadeira mãe que
acolhe. Há quem diga que a natureza, para os românticos, foi personagem
nas tramas.
- Retorno ao passado: esse retorno resultou, em muitas obras, na saudade
da infância, da terra natal, do passado individual, no medievalismo, no
indianismo, na busca pelas raízes históricas, nas origens da pátria.
- Gosto pelo pitoresco, pelo exótico: fator que remete à valorização dos locais
ainda inexplorados, ao mundo oriental, às terras distantes.
- Exagero: manifestação exacerbada das emoções, dos sentimentos, da figura
do herói, do vilão, na separação entre bem e mal.
- Liberdade criadora: valorização do gênio criador do artista. Ele se coloca
acima de qualquer regra.
- Sentimentalismo: caracteriza-se através da paixão, do amor e do eu
expressos na poesia. Principalmente o amor representa o estado de fruição

167
UNIDADE 3 | DO ROMANTISMO À CONTEMPORANEIDADE: A ESTÉTICA E A PRODUÇÃO LITERÁRIA

estética, manifestado por meio da exaltação extrema, do cinismo ou ainda da


libertinagem. Contudo, será sempre o amor.
- Ânsia de glória: por meio da vontade de obter a glória, o artista romântico
de um modo geral anseia pelo seu reconhecimento, deseja ser admirado,
glorificado.
- Importância da paisagem: constitui a principal temática das obras literárias
românticas. Esta é tecida em consonância com as emoções das personagens
da obra.
- Gosto pelas ruínas: dentro desta característica, a natureza é colocada acima
da obra construída.
- Gosto pelo noturno: o noturno aparece em harmonia com a atmosfera de
mistério criada pelo artista, muito apreciada pelos românticos.
- Idealização da mulher: a figura da mulher, dentro do Romantismo, é sempre
criada pela idealização do artista, seja ela prostituta ou anjo.
- Função sacralizadora da arte: a arte é vista com uma função redentora e o
poeta sente-se um guia para a humanidade.

FIGURA 33 – SÓ DEUS, QUADRO METRASS

FONTE: De Giovanni (2007, p. 72)

Se passarmos um olhar mais genérico sobre o novo estilo, ou ainda


na tentativa de reforçarmos as características apresentadas, podemos dizer
que o Romantismo passou a ser visto como uma nova forma de expressão, de
enfrentamento dos problemas da vida e do pensamento, a exemplo do que revela
Massaud Moisés (2008, p. 168): “[...] corresponde a muito mais do que uma
revolução literária: sendo mais uma nova maneira de enfrentar os problemas
da vida e do pensamento, implica uma profunda metamorfose, uma verdadeira
revolução histórico-cultural.” A nova escola literária repudiava os clássicos,
opunha-se às regras fixas e aos modelos do passado, buscava, sim, maior
liberdade de criação e expressão. Mais do que isso, queria defender a "impureza"
dos gêneros literários.

168
TÓPICO 1 | O ESPÍRITO CRIADOR E LIVRE: PERÍODO ROMÂNTICO

Os elementos naturais, do mesmo modo que a figura feminina, são


pontos marcantes do novo momento literário. O artista homem buscava idealizar
a mulher, constituí-la deusa, colocá-la num plano divino, e com isso retornava
ao passado medieval, ao Trovadorismo, às madames que eram desejadas pelos
trovadores, ainda que inatingíveis por causa das condições sociais de um e de
outro. Agora, o escritor romântico desejava, ansiava, pela mulher nos seus sonhos,
mas frustrava-se ao tomar consciência de que não a tinha ou a perdia ao acordar,
o que o levava ao devaneio por meio da obra.

Assim, para escapar, fugir, desta situação, na escrita, desnudava-se dos


seus desejos e tentava esquivar-se da realidade, valendo-se, para isto, da natureza
como sua confidente. Não raro, buscava na obscuridade a fuga, procurando nos
ambientes fúnebres e sombrios o seu consolo. Tais frustrações tinham seu ponto
central geralmente nos amores ou ainda nas desilusões comuns da vida, muitas
vezes levadas ao extremo através do suicídio. Por causa disto, são frequentes no
Romantismo temas como a morte, caracterizados através do chamado Mal do
Século.

Nesse sentido, o romântico padecia o caos interior, e acabava por “[...]


sentir melancolia e tristeza que, cultivadas ou brotadas durante a introversão, o
conduzem ao tédio, ao já dito Mal do Século.” (MOISÉS, 2008, p. 170). Assim, o
constante desgosto podia levá-lo a uma terrível angústia, que trazia o desespero.
E para sair desse desespero, “[...] o romântico vislumbrava duas saídas: [...] a
fuga, a deserção pelo suicídio, caminho escolhido por não poucos, ou a fuga para
a natureza, a pátria, terras exóticas, a história.” (MOISÉS, 2008, p. 170).

Dentro do Romantismo de Portugal, merecem destaque alguns escritores


como Alexandre Herculano e Almeida Garret, apesar de, como é normal em toda
nova tendência literária, o novo estilo também não ter sido implantado totalmente
e de modo súbito, logo nos primeiros instantes de sua manifestação em Portugal.
No começo, procurava-se gradativamente desfazer os modelos rígidos clássicos
que ainda se faziam presentes na sociedade. Os artistas, de todas as modalidades,
nesse momento, manifestavam-se como românticos espiritualmente, nos seus
ideais, na sua ação política e literária, porém ainda clássicos em muitos aspectos.

Nos parágrafos que seguem, procuraremos apresentar um pouco de cada


um dos escritores nominados, com uma pequena reflexão acerca de sua obra:

1) ALMEIDA GARRETT: João Baptista da Silva Leitão de Almeida Garrett,


também conhecido como Visconde de Almeida Garrett, destacou-se como
escritor romântico, como orador e Secretário de Estado Honorário português.
Nasceu na cidade do Porto, em 4 de fevereiro de 1799 e faleceu em Lisboa, aos
9 de dezembro de 1854, vítima de câncer. Cultivou bastante o jornalismo, a
poesia, a prosa de ficção e o teatro; teve uma vida amorosa muito atribulada,
em vista também do romance adúltero com a Viscondessa da Luz, a qual serviu
de fonte de inspiração para os seus poemas mais importantes.

169
UNIDADE 3 | DO ROMANTISMO À CONTEMPORANEIDADE: A ESTÉTICA E A PRODUÇÃO LITERÁRIA

Na sua produção poética, tomou como base os modelos clássicos, mas


faleceu sem vir a ser um autêntico escritor romântico, pois não incorporou certas
características como o egocentrismo. Em 1824, foi à França e lá escreveu o poema
Camões, no ano de 1825, e Dona Branca, em 1826, poemas vistos pela história
literária portuguesa como as primeiras obras da literatura romântica em Portugal.

No ano de 1826, retornou à sua pátria natal, mas deixa novamente a terra
em 1828. Nesse mesmo ano, sofre com o falecimento da filha recém-nascida.
Estando na Inglaterra, publica Adozinda e Catão, em 1828.

FIGURA 34 – ALMEIDA GARRET

FONTE: Nicola (2003, p. 131)

Em Portugal, exerceu alguns cargos políticos, em cujas funções distinguiu-


se como um dos grandes oradores nacionais. Além de trabalhar para a construção
de teatros, Garrett buscou renovar a produção teatral do país. Em 1843, Garrett
publica duas coletâneas de poesias: o Romanceiro e o Cancioneiro Geral.
A obra que publica em seguida é o livro Viagens na Minha Terra, no qual
ele retrata fatos contemporâneos ocorridos em diferentes lugares que ele visita
e descreve. Na poesia, Garrett também destacou-se como inovador. Na última
fase da sua vida, publica duas coletâneas: Flores sem fruto, em 1844, e Folhas
caídas, em 1853. Por meio delas, ele consegue introduzir certa espontaneidade e
simplicidade quase que não praticadas na poesia lusitana até então.

Em 1851, Almeida Garrett recebe a titulação de Visconde de Almeida


Garrett. Durante o século XIX e o século XX, a obra literária de Garrett era
geralmente considerada como uma das mais importantes, inferior apenas à de
Camões. A sua obra terá para sempre, no cânone da literatura portuguesa, o seu
lugar de destaque, em vista das inovações que introduziu, as quais abriram novos
rumos aos autores que vieram após ele. Por isso e por outros aspectos, Garrett
merece ser considerado um autor representativo da poesia do Romantismo
lusitano.

Este inferno de amar


Este inferno de amar - como eu amo!
Quem mo pôs aqui n'alma... quem foi?
Esta chama que alenta e consome,

170
TÓPICO 1 | O ESPÍRITO CRIADOR E LIVRE: PERÍODO ROMÂNTICO

Que é a vida - e que a vida destrói -


Como é que se veio a atear,
Quando - ai quando se há-de ela apagar?

Eu não sei, não me lembro: o passado,


A outra vida que dantes vivi
Era um sonho talvez... – foi um sonho –
Em que paz tão serena a dormi!
Oh! que doce era aquele sonhar...
Quem me veio, ai de mim! despertar?

Só me lembra que um dia formoso


Eu passei... dava o sol tanta luz!
E os meus olhos, que vagos giravam,
Em seus olhos ardentes os pus.
Que fez ela? eu que fiz? - não no sei;
Mas nessa hora a viver comecei...
(FERREIRA, 1985, p. 29)

Acerca da obra Folhas Caídas, lançada em 1853, da qual faz parte o poema
Este Inferno de Amar, compõe-se de quarenta e seis poemas, divididos em duas
partes. De um modo geral, envolvem a paixão amorosa, ou, como expressa o
poema Inferno de Amar, aparecem os efeitos contraditórios do amor, que oscilam
entre a alegria de amar e os tormentos sentimentais.

Ao mesmo tempo em que apresenta estrofes regulares, com o mesmo


número de versos, um esquema também regular de rimas, o “[...] ritmo dos versos
ganha um andamento coloquial ou mesmo popular, à beira de transformar-se em
prosa versificada.” (MOISÉS, 2008, p. 185). É claro também no poema o jogo de
antíteses e imagens que visam, talvez, caracterizar a paixão amorosa do eu lírico.
Ele tece uma oposição entre o tempo hodierno (inferno de amar) e o passado
(paz), um sentimento que o faz sofrer e o faz viver. Nesse sentido, valem também
as palavras de Jorge de Sena (apud FERREIRA, 1985, p. 16), as quais se aplicam
principalmente aos aspectos formais do poema, mormente à sua perfeição:

O tom do livro, em que, a par de singelíssimas líricas, todos os


cambiantes de uma paixão violenta e sensual eram dados com
uma contenção rítmica e uma elegância coloquial inigualáveis, esse
ressumava uma intensa e culposa sinceridade, que só uma juventude
muito madura seria capaz de atingir.

Nas suas palavras, Garrett caracteriza “uma época de vida íntima e


recolhida”. Se ele concebe a arte como expressão da sociedade e a literatura como
reflexo da época, pode-se dizer que em seus poemas encontramos uma escrita
de si. No poema Este Inferno de Amar, o autor faz várias referências a termos
como rosa e luz. Trata-se de referências claras à sua dama de eleição, talvez Dona
Rosa de Montúfar, Viscondessa da Luz, mulher lindíssima, porém já casada com
um oficial do exército, o que, de certa forma, justifica o escândalo causado pela
publicação do livro.
171
UNIDADE 3 | DO ROMANTISMO À CONTEMPORANEIDADE: A ESTÉTICA E A PRODUÇÃO LITERÁRIA

O poeta, assim, não mais canta nos seus versos as damas idealizadas dos
clássicos, mas prefere confessar as próprias vivências amorosas, o que é uma
característica fundamental do Romantismo. Por isso, quem sabe, essa poesia (e a
romântica em geral) é um fazer poético da personalidade.

Já no que concerne à prosa romântica portuguesa, um dos destaques é


Alexandre Herculano, cuja preocupação enquanto escritor romântico se dirige
mais para a caracterização de especificidades geo-históricas e culturais da sua
nação, buscando, na sua produção, a construção de figuras modelares capazes de
corporificar os ideais pátrios.

Assim, temos a criação do cavaleiro medieval, na figura de Eurico, no


romance Eurico, o presbítero, obra em que “[...] Herculano consegue atingir
o ponto mais alto de suas possibilidades como ficcionista, em razão de haver
deixado mais livres a imaginação e o impulso lírico.” (MOISÉS, 2008, p. 195).

Caro/a acadêmico/a, aproveitamos, neste espaço, para apresentar o autor


da prosa romântica lusitana, Alexandre Herculano, seguindo-se uma reflexão
acerca do romance Eurico, o presbítero:

2) ALEXANDRE HERCULANO: Alexandre Herculano de Carvalho e Araújo


nasceu em Lisboa, no dia 28 de março de 1810. Seu falecimento ocorre em
Santarém, aos 18 de setembro de 1877. Sua obra é marcada por uma profunda
coerência, de acordo com um programa romântico que norteou não apenas o
seu trabalho, mas também a sua vida.

Herculano descende de uma família modesta. Na sua juventude, dedicou-


se ao estudo de humanidades na Congregação do Oratório, na qual também se
dedicou à leitura meditada da Bíblia. Por causa de dificuldades econômicas e
familiares, não pôde estudar na universidade, porém preparou-se para a vida
profissional frequentando um curso prático de comércio e estudando diplomacia
na Torre do Tombo. À altura dos dezoito anos, já demonstrava sinais para
a vida literária. Por isso, estudou o francês e o alemão, leu vários românticos
estrangeiros e iniciou-se nos textos literários da marquesa de Alorna, a qual seria
por ele reconhecida sua mentora.

172
TÓPICO 1 | O ESPÍRITO CRIADOR E LIVRE: PERÍODO ROMÂNTICO

FIGURA 35 – ALEXANDRE HERCULANO

FONTE: De Giovanni (2007, p. 92)

Em 1831, por causa de uma acusação de conspiração, foi obrigado a


exilar-se na Inglaterra (primeiramente) e depois na França. No exílio, dedicou-
se ao estudo da história, leu os que seriam mais tarde seus modelos literários:
Chateaubriand, Lamennais, Klopstock e Walter Scott. Entre 1834 e 1835, lançou
vários artigos de teoria literária na revista Repositório Literário. De volta a
Lisboa, dirigiu a revista literária do Romantismo português, O Panorama, para a
qual contribuiu com diversos artigos, narrativas e traduções.

Em 1867, após a morte do rei, prefere retirar-se para a sua quinta em


Vale de Lobos, dedicando-se com esmero à vida rural. Também casa-se com D.
Maria Hermínia Meira, namorada do seu tempo de juventude. Em 1872, orientou
a publicação do primeiro volume dos Opúsculos, ao mesmo tempo em que
aproveitou para manter correspondência com muitas pessoas ilustres da vida
política e literária. Foi a óbito vitimado por uma pneumonia, quando contava 67
anos, em 1877.

A obra de Alexandre Herculano é muito vasta, e entre os seus muitos


escritos destacam-se A Voz do Profeta, livro escrito em 1836 (poesias); A Harpa
do Crente, escrito em 1838 (poesias); Eurico, o Presbítero, romance publicado em
1844; História de Portugal, em quatro volumes, escritos respectivamente em 1846,
1847, 1850 e 1853 (obra historiográfica) e O Monge de Cister, romance escrito em
1848.

Para os nossos estudos, caro/a acadêmico/a, trataremos do romance


Eurico, o Presbítero. Apresentaremos a seguir um pequeno resumo, seguido de
uma reflexão acerca do enredo e das personagens:

173
UNIDADE 3 | DO ROMANTISMO À CONTEMPORANEIDADE: A ESTÉTICA E A PRODUÇÃO LITERÁRIA

O romance Eurico, o Presbítero conta a história triste do amor entre dois


jovens: Hermengarda e Eurico. O episódio se passa nas terras espanholas, no início
do século VIII, no tempo em que ocorreram as invasões dos visigodos. Eurico e
Teodomiro são amigos e juntos combatem na companhia de Vitiza, imperador da
Espanha, contra os montanheses rebeldes e contra os francos, seus aliados.

Depois de um combate vitorioso, Eurico pede ao Duque de Fávila a


mão de sua filha, Hermengarda, em casamento. Fávila, conhecendo a intenção
de Eurico e sabendo ainda que este descendia de família humilde, nega-lhe o
pedido. A partir disto, a vida de Eurico passa a resumir-se à prática religiosa,
à composição de hinos sacros e poemas, atividades estas que lhe ocupavam a
mente e afastavam dele os pensamentos dirigidos a Hermengarda.

Porém, tudo muda de figura a partir do instante que ele descobre que
os muçulmanos, liderados por Tarrique, invadem a Península Ibérica. Ele toma
para si a responsabilidade de liderar o combate contra os invasores. Num
momento inicial, avisa seu amigo Teodomiro, mas posteriormente, já durante o
combate, o Presbítero de Carteia, assume a identidade do misterioso Cavaleiro
Negro. Incansavelmente, ele luta para defender as terras espanholas, o que atrai
a admiração dos companheiros godos e lhes dá forças para combater os povos
invasores.

Em dado momento, sob ameaça de os godos assumirem o trono, o domínio


dos combates passa às mãos dos árabes. Morre, então, em combate, Roderico, rei
dos godos, e à liderança do povo passa Teodomiro. É nesse momento que os árabes
invadem o Mosteiro da Virgem Dolorosa, no qual se encontra Hermengarda, que
é raptada. O Cavaleiro Negro e mais alguns companheiros conseguem salvá-la,
no instante em que o príncipe árabe iria profaná-la.

Durante a fuga, Hermengarda é levada para as montanhas das Astúrias,


local em que é aguardada por seu irmão Pelágio, que também se encontra
refugiado. Este local é o único ponto de refúgio do povo godo, conforme tratado
de paz efetuado após uma longa batalha com os árabes.

Já em segurança na gruta Covadonga, Hermengarda depara-se com


Eurico, que lhe declara seu amor. Ele, porém, sabe que o romance é impossível,
devido às suas convicções religiosas. Ele lhe revela também que o presbítero de
Carteia e o Cavaleiro Negro são a mesma pessoa. Sabendo disso, Hermengarda
perde a razão, e Eurico, ciente de suas obrigações religiosas, parte para a batalha
com os árabes, convicto de que se trataria de um combate suicida.

Esse romance é recheado de história, de reflexão, predominando no seu


corpus a narrativa e a descrição. Predominam as marcas do estilo da primeira
geração romântica portuguesa, a qual tinha por cunho as questões nacionalistas,
o historicismo, o medievalismo e a criação e valorização do herói medieval, neste
caso incorporado por Eurico.

174
TÓPICO 1 | O ESPÍRITO CRIADOR E LIVRE: PERÍODO ROMÂNTICO

As marcas da história são a tônica deste romance, o que permite o resgate


do culto ao sentimento nacionalista e a ficção elaborada a partir da figura do
herói medieval, ambos ideais românticos. Não se pode deixar de apresentar a
caracterização da mulher como anjo, presente na descrição do romancista:
“Era bela, mais bela que nos tempos da mocidade. O seu gesto angélico [...].”
(HERCULANO, 1997, p. 168).

Ainda no que se refere à presença de caracteres típicos do romantismo


no texto de Herculano, há que se destacar o grande número de comparações,
hipérboles, antíteses e metáforas, figuras estas que atribuem à obra o verdadeiro
perfil poético ao romance. Com base nisto, o romance de Herculano desenvolve
várias ideias ao longo do episódio, entre as quais merecem destaque:

• RELIGIOSIDADE: o conflito entre os adeptos do cristianismo e do islã (cristãos


e muçulmanos), portanto os ditos fiéis e os infiéis, os seguidores do evangelho
e os seguidores do corão.

• LEIS SOCIAIS: por causa das diferenças de posição social, Eurico e Hermengarda
foram impedidos de se unir em casamento. Eis aí, então, a dicotomia humana
entre razão e emoção, a vontade do coração e as regras da vida em sociedade.

• AMOR PROFANO E AMOR DIVINO: o amor profano não é realizado em


vista do amor divino. E isso é perceptível na figura de Eurico, pois era movido
pelos seus ideais cavalheirescos, pela fidelidade a estes ideais e pelas leis a
estes impostas. O amor, ou dever divino, trazia a marca do celibato e da rígida
disciplina do clero da época.

• MANIQUEÍSMO: a disputa constante entre bem e mal é marca muito presente


nas obras do período romântico. No romance Eurico, o Presbítero, é visível
este duelo quando se trata da guerra entre cristãos e muçulmanos, ou seja, uns
(cristãos) personificam o bem, os outros (muçulmanos) são a personificação do
mal.

NOTA

A doutrina maniqueísta baseia-se em uma divisão dualista do universo, na luta


entre o bem (Deus) e o mal (Satã). O maniqueísmo se constitui por um modo de pensar
muito simples, em que o mundo é visto sob a ótica dos dois polos: o bem e o mal, certo e
errado, causa e efeito, isto ou aquilo.

175
UNIDADE 3 | DO ROMANTISMO À CONTEMPORANEIDADE: A ESTÉTICA E A PRODUÇÃO LITERÁRIA

• MULHER: a mulher, neste caso, é representada por Hermengarda, tratada sob


a visão romântica de angelical, pura e imaculada. Outro caso, no romance, é
mostrado quando as monjas são sacrificadas para que não sejam violadas pelos
infiéis invasores do mosteiro.

Afora os aspectos tratados anteriormente, num sentido mais genérico,


podemos dizer, caro/a acadêmico/a, que no romance Eurico, o Presbítero
destacam-se os conflitos um tanto trágicos entre o coração e a consciência moral,
a intensidade do drama passional e de consciência dos amantes, ou melhor, há
uma lógica de ordem social que é colocada acima da paixão dos apaixonados,
ao melhor estilo de Guinsburg: “E o conceito de noite se funde e confunde com
o conceito de amor, e a ideia de amor, com a de morte. É a grande trindade
romântica: noite, amor e morte.” (BRAGA, 2005, p. 272).

Caro/a acadêmico/a, neste tópico tratamos do romantismo, dando mostras


de duas das principais estrelas: Almeida Garrett e Alexandre Herculano. Fica
aqui o convite para que você pesquise outros autores e os leia. Além do mais, é
importante que você leia as principais obras destes autores. E para completar os
seus estudos, oferecemos, a seguir, uma leitura complementar:

176
TÓPICO 1 | O ESPÍRITO CRIADOR E LIVRE: PERÍODO ROMÂNTICO

LEITURA COMPLEMENTAR

O ROMANTISMO EM PORTUGAL
Massaud Moisés

Com o Romantismo, abre-se um ciclo de cultura inteiramente novo,


correspondente à diminuição do poder das oligarquias reinantes em favor das
monarquias constitucionais ou das repúblicas federativas, e ao aparecimento do
Liberalismo em política, moral, arte etc. A aristocracia de sangue aos poucos cede
terreno à burguesia na pirâmide social, invertendo completamente os papéis e
estabelecendo nova escala de valores, marcada agora pela posse do dinheiro.
Por fim, os ideais românticos e burgueses acabam por confundir-se, numa rede
inextricável de malhas que se repelem e se aproximam desordenadamente.
Opera-se, em suma, o domínio amplo das fórmulas burguesas de viver e
pensar, com todas as suas múltiplas e complexas consequências. Dentre elas,
a profissionalização do escritor, que desfruta agora das melhores condições de
trabalho, graças à remuneração que lhe vem de produzir um artefato consumido
por um grande público, a classe média. O mecanismo desaparece, dando origem
a uma relação diversa entre escritor e público: aquele produz um objeto, e este
paga para consumi-lo.

No plano das teorias, das ideias e temas literários, dá-se o seguinte


processo: repudiando os clássicos, ou melhor, os neoclássicos, os românticos
revoltam-se contra as regras, os modelos, as normas, batem-se pela total liberdade
na criação artística, e defendem a mistura e a impureza dos gêneros literários.
Em lugar da ordem clássica, colocam a aventura; ao cosmos, como sinônimo de
equilíbrio, preferem o caos, ou a anarquia; ao universalismo clássico opõem um
conceito de arte extremamente individualista: substituem a visão macrocósmica
que os clássicos tinham da vida e da arte, por uma visão microcósmica, isto é,
centrada no eu interior de cada um.

O eu torna-se o universo em que vivem, ou, ao menos, o centro do


Universo: à semelhança de Narciso, o romântico contempla a si próprio, como se
estivesse permanentemente voltado para um espelho real ou imaginário, e faz-se
espetáculo de si próprio. A tal ponto que, quando se projeta para fora de si, não
consegue ver os objetos ou os sentimentos alheios e coletivos senão como reflexo
e prolongamento do próprio eu: este engloba tudo quanto cai sob os sentidos do
homem romântico, acabando por identificar-se com o mundo real e sensível, e
por transformá-lo numa espécie de manifestação exterior sua. O homem volta a
sentir-se a medida de todas as coisas, mas agora com nova intensidade e novos
conteúdos trazidos pelas artes e as filosofias em voga.

Esse egocentrismo traduz a existência de um condimento feminino na


atitude romântica, revelado pela aceitação de expedientes próprios da vaidade
das mulheres [...] e pelas características seguintes, dele decorrentes: ao culto da
Razão, que fazia o apanágio dos clássicos, opõe-se o culto das razões do coração;
em lugar do racionalismo, o sentimentalismo, em lugar da especulação conceitual,
177
UNIDADE 3 | DO ROMANTISMO À CONTEMPORANEIDADE: A ESTÉTICA E A PRODUÇÃO LITERÁRIA

a fantasia. Mas o sentimentalismo implica introversão, e os românticos voltam-


se para si, na sondagem do mundo interior, onde vegetam sentimentos vagos.
Mais ainda: os sentimentos, já de si contraditórios, levam ao desequilíbrio, ao
paradoxo, à anarquia. Instável, complexo, rebelde, jogado por sentimentos
opostos, numa irrefreável mobilidade, o romântico cultiva atitudes feminoides
e adolescentes: o Romantismo é uma estética da juventude, expressando
sentimentos femininamente juvenis, ou vice-versa.

Daí que o romântico mergulhe cada vez mais na própria alma, a examinar-
lhe masoquistamente os desvãos, com o intento vaidoso de revelá-la e confessá-la.
E, embora confesse tempestades íntimas ou fraquezas sentimentais, experimenta
um prazer agridoce em fazê-lo, certo da superior dignidade do sofrimento. À
confissão de intimidades sentimentais corresponde a descoberta de sensações
ligadas à fragilidade e ao mistério dos destinos humanos, submetidos aos azares
e à perpétua mudança de tudo.

Imerso no caos interior, o romântico acaba por sentir melancolia e tristeza


que, cultivadas ou brotadas durante a introversão, o conduzem ao tédio, ao “mal
do século”. Repetido o tédio, sobrevém terrível angústia, logo transformada
em insuportável desespero. Para sair dele, o romântico vislumbra duas saídas,
apenas diferentes no aspecto e no grau, visto serem essencialmente idênticas: a
fuga, a deserção pelo suicídio, caminho escolhido por não poucos, ou a fuga para
a Natureza, a Pátria, terras exóticas, a História.

FONTE: Adaptado de: MOISÉS, Massaud. Romantismo. In: ______. A Literatura Portuguesa. São
Paulo: Cultrix, 2008. p. 169-170.

Ao completarmos este item, importante dizermos que a sociedade europeia


do século XIX vivia profundas transformações sociais e econômicas, entre estas,
a segunda revolução industrial. E nessa sociedade não havia mais espaço para
idealizações. Era necessária, sim, uma nova postura diante da realidade. As artes,
como sempre, refletem as novas posturas. E a literatura também assim age: é o
Realismo que vem ali, assunto do nosso próximo tópico.

178
RESUMO DO TÓPICO 1

Caro/a acadêmico/a, no presente tópico, você teve oportunidade de


estudar aspectos importantes relacionados à Literatura Portuguesa, os quais
revemos, resumidamente, a seguir:

• O século XVIII é marcado por um grande crescimento da classe burguesa, e


isto é visto com maior rigor no território francês. Na França esta burguesia
se sentia pouco valorizada, principalmente da parte dos membros da realeza,
monarquia absolutista.

• Os ideais pregados pelos revolucionários passam a constituir as novas diretrizes


políticas, econômicas e sociais, não somente na França, mas além do território
francês, e passam a intervir na maior parte das sociedades do século XVIII.

• A literatura também passa a mostrar essas influências. A liberdade suplanta as


regras fixas de outrora, a razão é posta acima da emoção. Instaura-se, assim,
uma nova maneira de expressão artística (entre esta a literatura) na Europa, o
que chegou também em Portugal. É o chamado Romantismo.

• Os ideais românticos têm suas marcas a partir do escocês Allan Ramsay, em


1724, o qual publicou uma antologia de poemas intitulada The Evergreen.

• No território português, os historiadores da literatura marcam o surgimento


do novo movimento literário a partir da publicação do poema Camões, por
Almeida Garret, em 1825.

• O Romantismo opunha-se aos clássicos, às regras e modelos fixos, desejando


certa liberdade na maneira de criar.

• O Romantismo foi um movimento de liberdade espiritual, filosófica, literária,


artística, social e política. Em arte e literatura, seu objetivo foi fazer algo
diferente do passado e do existente, e até contra ambos.

• As características que são marcantes no Romantismo são várias. Todas elas


procuram se centrar na valorização do eu e da liberdade, ao mesmo tempo
em que vão se juntando e formam um painel muito amplo com os traços
reveladores da estética romântica.

• O Romantismo passou a ser visto como uma nova forma de expressão, de


enfrentamento dos problemas da vida e do pensamento.

179
• O artista homem buscava idealizar a mulher, constituí-la deusa, colocá-la num
plano divino, e com isso retornava ao passado medieval, ao Trovadorismo,
às madames que eram desejadas pelos trovadores, ainda que inatingíveis por
causa das condições sociais de um e de outro.

• Dentro do Romantismo de Portugal, merecem destaque alguns escritores


como Alexandre Herculano e Almeida Garret, apesar de, como é normal em
toda nova tendência literária, o Romantismo também não ter sido implantado
totalmente e de modo súbito, logo nos primeiros instantes de sua manifestação,
em Portugal.

180
AUTOATIVIDADE

Caro/a acadêmico/a, para que você possa melhor fixar o conteúdo


deste tópico, apresentamos, a seguir, uma atividade. Procure resolvê-la com
base no que você estudou.

1 Leia o seguinte trecho extraído do romance Eurico, o Presbítero, de


Alexandre Herculano. Em seguida, resolva a atividade que é proposta:

O mundo atual nunca poderá entender plenamente o afeto que,


vibrando-me dolorosamente as fibras do coração, me arrastava para as solidões
marinhas do promontório, quando os homens nos povoados se apinhavam à
roda do lar aceso e falavam das suas mágoas infantis e dos seus contentamentos
de um instante. E que me importa a mim isso? Virão um dia a esta nobre terra
de Espanha gerações que compreendam as palavras do presbítero. Arrastava-
me para o ermo um sentimento íntimo, o sentimento de haver acordado, vivo
ainda, deste sonho febril chamado vida, e de hoje ninguém acorda, senão
depois de morrer. Sabeis o que é esse despertar de poeta? É o ter entrado
na existência com o coração que transborda de um amor sincero e puro por
tudo quanto o rodeia, e ajuntaram-se os homens e lançaram-lhe dentro do seu
vaso de inocência lodo, fel e peçonha e, depois, rirem-se dele: é o ter dado às
palavras – virtude, amor, pátria e glória – uma significação profunda e, depois
de haver buscado por anos a realidade delas neste mundo, só encontrar ali
hipocrisia, egoísmo e infâmia.

E o perceber à custa de amarguras que o existir e padecer, o pensar,
descrer, o experimentar desenganar-se, é a esperança das coisas da terra uma
cruel mentira de nossos desejos, um fumo tênue que ondeia em horizonte
aquém do qual está assentada a sepultura. Este é o acordar do poeta. Depois
disso, nos abismos de sua alma só há para mandar aos lábios um sorriso de
desprezo em resposta às palavras mentidas dos que o cercam, ou uma voz de
maldição desabridamente sincera para julgar as ações dos homens. É então que
para ele há unicamente uma vida real – a íntima; unicamente uma linguagem
inteligível – a do bramido do mar do rugido dos ventos; unicamente uma
convivência não travada de perfídia – a da solidão.

(HERCULANO, Alexandre. Eurico, o Presbítero. São Paulo: Publifolha, 1997. p. 37.)

a) Extraia do texto elementos que fazem parte da estética do Romantismo.

b) Identifique o trecho em que é possível observar o individualismo da


personagem.

c) Retirar do texto partes que identificam o poeta com a natureza.

181
182
UNIDADE 3
TÓPICO 2

A REVOLUÇÃO DA MENTALIDADE E O CULTO AO ETÉREO:


AS ESCOLAS REALISTA E SIMBOLISTA

“O Romantismo era a apoteose do sentimento; o


Realismo é a anatomia do caráter. É a crítica do
homem. É a arte que nos pinta a nossos olhos – para
condenar o que houver de mal na sociedade.”

(QUEIRÓS, Eça de. Conferência no Cassino


Lisbonense)

“Meu infinito amor é a alma universal,


Essa nuvem primeira, essa sombra d’ outrora...
O bem que tenho hoje é o meu antigo mal,
A minha antiga noite é hoje a minha aurora!”

(PASCOAES, Teixeira de. Poesias. Rio de Janeiro:


Agir, 1970, p. 68.)

1 INTRODUÇÃO
Com o advento da segunda metade do século XIX, o contexto sociocultural
da Europa começa a dar mostra de mudanças muito significativas, principalmente
no que concerne à burguesia e à indústria mecânica, as quais começam a firmar-
se. Os ideais de liberalismo e democracia recebem proporções gradativamente
maiores. Do mesmo modo, as ciências naturais começam a desenvolver-se e, na
mesma medida, os métodos experimentais e de observação da realidade começam
a ser vistos como possíveis para explicar racionalmente o mundo físico.

O desenvolvimento científico tomou conta da grande maioria dos


intelectuais, bem como passou a ser bem aceito em todos os ambientes, dos mais
simples aos ambientes universitários. A adesão, enfim, ao cientificismo e ao
materialismo é geral, em flagrante oposição à metafísica, à religião e a tudo o que
pudesse fugir dos limites da matéria.

Certas doutrinas científicas e filosóficas surgidas na época marcaram


visivelmente a produção literária. Nesse sentido, Hegel põe à mostra a Dialética
do Processo Racional, para quem qualquer raciocínio pode ser lógico, desde
que seja estruturado na trilogia sequencial tese – antítese – síntese. Juntamente,
Augusto Comte, com o Positivismo, justifica o valor da ciência para a sociedade
humana. Segundo ele, a Teologia e a Metafísica poderiam ser postas de lado, já
que a realidade é concreta, objetiva e lógica, valendo, para fins de entendimento,
a análise lógica e experimental, pois tudo é possível de ser explicado e entendido
por todos. Neste mesmo tempo, surge a obra científica de Charles Darwin, A

183
UNIDADE 3 | DO ROMANTISMO À CONTEMPORANEIDADE: A ESTÉTICA E A PRODUÇÃO LITERÁRIA

Origem das Espécies, por meio da qual retomou a teoria da evolução dos animais
e plantas, ou melhor, dos seres vivos. A teoria de Darwin obteve grande oposição
da Igreja, mas, por outro lado, foi extraordinariamente aceita pelo público, haja
vista a curiosidade geral em torno deste novo tema.

Todos estes conhecimentos e mudanças sociais trouxeram novos ares à


literatura, que começava a refletir a realidade; enfim, na segunda metade do século
XIX, surge uma geração de escritores contrária à monarquia e em parte adepta
do regime republicano. Esta geração de escritores preferia mostrar o momento
presente, a realidade social, tal qual a via, descrevendo-a nos pormenores. Era
a geração que trazia um novo estilo artístico – o Realismo, que chega às terras
lusitanas por volta de 1865, com momentos de intensa agitação e polêmicas no
ambiente literário português.

Por outro lado, nas últimas décadas do século XIX, começava a surgir
na Europa uma nova corrente literária, a qual se opunha ao Realismo. Esta
geração dizia-se frustrada nas suas tentativas de modificar a realidade. Bem o
revela Alfredo Bosi (1984, p. 296) que “[...] do âmago da inteligência europeia
surge uma oposição vigorosa ao triunfo da coisa e do fato sobre o sujeito – aquele
sujeito a quem o otimismo do século prometera o paraíso, mas não dera senão o
purgatório de contrastes e frustrações”.

Ao mesmo tempo em que temos a desilusão dos escritores realistas, há os


estados ricos que disputam entre si as benesses dos países menos desenvolvidos,
entre estas as matérias-primas e a mão de obra. De carona, aparecem novas ideias,
novas atitudes e concepções contrárias ao racionalismo, as concepções psicológicas
de Freud, a escola sociológica de Durkheim. E mais, na arte convive-se com novas
revoluções estéticas, entre os novos meios expressivos como o impressionismo,
o cubismo, o surrealismo e o expressionismo, os quais refletiram no ambiente
literário. Tudo isto levou, sobretudo, ao retorno ao "eu", ao afastamento do real
em prol de uma adesão à nebulosidade, ao culto do vago, ao oculto, ao mistério,
à ilusão, à solidão. Diante disto, percebe-se um retorno à crença na teologia e
à metafísica, as quais foram abandonadas quando do surgimento do Realismo.
Em Portugal, esta nova estética chega por volta de 1890, tendo recebido grande
influência do Simbolismo francês.

Assim, caro/a acadêmico/a, neste tópico temos por propósito tratar destes
dois estilos de época bastante marcantes, ao mesmo tempo que esteticamente
opostos, dentro do panorama literário português. Trata-se do Realismo e do
Simbolismo.

184
TÓPICO 2 | A REVOLUÇÃO DA MENTALIDADE E O CULTO AO ETÉREO: AS ESCOLAS REALISTA E SIMBOLISTA

2 ASPECTOS GERAIS DO REALISMO


No ambiente lusitano, a escola literária do Realismo chega via importação.
Ao que parece, trata-se mais de uma posição assumida por grupos intelectuais
minoritários, ansiosos por reformas, entre os quais figuram Eça de Queirós
e Antero de Quental. Todavia, a influência destes literatos será de grande
importância no seio dos setores burgueses mais progressistas.

Os realistas desejavam apresentar os fatos ou as cenas cotidianas da


sociedade tais quais se apresentavam, sem ocultar, inclusive, o seu lado mais
sombrio, desfazendo-se da ficção e da fantasia, marcas de estilos anteriores.
Desejosos de mostrar o que era real na sociedade, dirigem, por isso, suas lentes
do mundo dos mais abastados, dos nobres, para o mundo dos menos favorecidos,
dos pobres. E mais ainda, quando focalizam o universo burguês, o alvo não é o
aparente, mas procuram as essências, desmistificando as hipocrisias da sociedade.

Grande exemplo que não poderia deixar de ser mostrado, até por se
tratar de um marco do realismo, é o romance Madame Bovary, publicado em
1857, por Gustave Flaubert, que faz uma sátira discreta à hipocrisia da educação
sentimental da burguesia. É a partir deste exemplo literário que a literatura passa
a ser um instrumento de denúncia e crítica social.

Implantado o novo modelo estético, percebeu-se também uma nova tônica


na maneira de apresentar os fatos, ou seja, transformou-se a linguagem, a qual
abandonou o tom emocional romântico, adquiriu um timbre mais objetivo. Além
disso, para ser mais reveladora, fez-se necessário aproximar-se da modalidade
realmente falada pelas personagens focalizadas. Houve, sim, preocupação com a
utilização da língua nos moldes gramaticais clássicos, sem a presença das formas
regionais típicas do nacionalismo romântico.

FIGURA 36 – GUSTAVE FLAUBERT

FONTE: De Giovanni (2007, p. 106)

185
UNIDADE 3 | DO ROMANTISMO À CONTEMPORANEIDADE: A ESTÉTICA E A PRODUÇÃO LITERÁRIA

No que concerne ao conteúdo tratado, na literatura realista não há


heróis. São as pessoas comuns os protagonistas dos romances no novo estilo. A
preocupação dos autores é fixar a sua psicologia, desnudar o que há por trás
das ações e das atitudes. Acredita-se que é dessa maneira que se criam “[...]
as bases para a representação da realidade cotidiana, com a abordagem dos
problemas sociais, políticos, econômicos e psicológicos desse novo público-
leitor.” (ABDALA JÚNIOR; PASCHOALIN, 1985, p. 100). Diante disso, há que
se dizer que o desejo de observar e analisar impulsionou os escritores realistas
a valerem-se da realidade da vida contemporânea, do seu próprio tempo, como
fonte de inspiração e objeto de escrita.

Não menos importante é mencionarmos que a renovação literária, no


território lusitano, deu-se paralelamente à construção da ferrovia que interligou
Portugal ao restante da Europa, por volta do ano de 1864, fator este que permitiu
(e talvez facilitou) o fluxo das ideias e mercadorias ou, de um modo geral, a
acessibilidade àquilo que havia de moderno então.

Sobre isso, vale o depoimento do autor realista Antero de Quental, que


pode testemunhar as mudanças artístico-literárias que se aproximam das terras
lusitanas:

Coimbra vivia então numa grande atividade, ou antes, num grande tumulto
mental. Pelos caminhos de ferro, que tinham aberto a Península, rompiam cada
dia, descendo da França e da Alemanha (através da França), torrentes de coisas
novas, ideias, sistemas, estéticas, formas, sentimentos, interesses humanitários.
Cada manhã trazia a sua revelação, como um sol que fosse novo. (NICOLA, 1994,
p. v).
Percebe-se no comentário a questão inerente ao programa estético realista,
no qual transparece a preocupação em observar o ser humano de modo imparcial,
ou seja, como o fariam as ciências físicas. É desse modo que se desejava a criação
de uma literatura verdadeira, mais apropriada aos novos tempos. Desta maneira,
o novo escritor poderia intervir na cena contemporânea, de posse de uma atitude
mais crítica e de modo combativo.

É diante deste novo momento em Portugal que, em 1865, ocorre a


Questão Coimbrã, que marca o início do Realismo português, e acontecem as
Conferências Democráticas do Cassino Lisbonense, em 1871, que definem os
verdadeiros propósitos e consagram a nova arte. Estes são momentos de intensa
movimentação e preparam a tomada de posição dos literatos portugueses
envolvidos na polêmica.

A chamada Questão Coimbrã, que irrompeu em 1865, foi o resultado da


confrontação entre jovens estudantes de Coimbra e alguns poetas ultrarromânticos
de Lisboa. Dito de maneira simples, a palavra “questão coimbrã” faz alusão, num
primeiro momento, à prolongada polêmica literária estabelecida entre os escritores
Antônio Feliciano de Castilho, representante do Romantismo já em decadência, na
cidade de Lisboa, e Antero de Quental, acadêmico da Universidade de Coimbra,

186
TÓPICO 2 | A REVOLUÇÃO DA MENTALIDADE E O CULTO AO ETÉREO: AS ESCOLAS REALISTA E SIMBOLISTA

autor da obra Odes Modernas, o qual já havia assumido as novas tendências


literárias e se inteirado da nova visão de mundo, advinda das transformações
técnicas e estéticas.

Nessa polêmica, tomaram parte, entre outros, escritores portugueses


notáveis, Ramalho Ortigão, Camilo Castelo Branco, Teófilo Braga, alguns
assumindo o partido de Castilho, outros o de Quental, na tentativa de apaziguar
a questão ou levar para o debate ponderações de harmonização. Nas palavras de
Massaud Moisés (2008, p. 222), no que concerne à questão, “[...] formaram-se dois
partidos, um pró-Castilho e outro, pró-Antero, que vão engrossando durante os
anos de 1865 e 1866, inclusive estendendo-se até o Brasil, com a adesão de D.
Pedro II e Sílvio Romero”. Há, assim, uma grande polêmica instalada, entre duas
gerações – a velha e a nova.

O início da questão teria sido uma referência não muito elogiosa do poeta
Antônio Feliciano de Castilho, defensor da ala ultrarromântica, à nova estética
literária portuguesa, representada pela publicação do livro Odes Modernas, no
ano de 1865, do escritor Antero de Quental. Castilho valeu-se do posfácio ao
Poema da Mocidade, de Pinheiro Chagas (seu favorecido) para criticar o novo
modelo de poesia lançado por Quental.

Sentindo-se no direito de replicar, Antero de Quental utilizou-se de uma


carta aberta, sob o título de Bom Senso e Bom Gosto, na qual sustentou que a
grande falha da escola de Coimbra teria sido a vontade de introduzir a novidade
estética. Na ocasião, aproveitou para criticar a atividade literária de Castilho,
a qual, para Antero, estaria esvaziada de conteúdo ideológico, porém cheia de
frases e sentimentos postiços de acadêmico. Dizia Antero de Quental na carta:
“O escritor quer o espírito livre de jugo, o pensamento livre de preconceitos e
respeitos inúteis, o coração livre de vaidades, incorruptível e intemerato. Só assim
serão grandes e fecundas as suas obras.” (ABDALA JÚNIOR; PASCHOALIN,
1985, p. 101). Como podemos ver, as palavras de Quental defendem a liberdade
de pensamento e opõem certos princípios estéticos românticos àquilo que é
pregado pela ciência.

O texto de Antero levou à publicação de diversos folhetins e artigos


trocados entre as duas alas, acabando com a Questão Coimbrã. Exemplo disto é
o texto intitulado Vaidades Irritadas e Irritantes, publicado em 1866 por Camilo
Castelo Branco, por meio do qual defende Castilho. No mesmo ano, Teófilo Braga
toma o partido de Quental, com o folhetim Teocracias Literárias. Outro a defender
Antero de Quental foi Luciano Cordeiro, com o artigo A Arte Realista, em 1867.
Por fim, há quem diga que tudo chegou ao extremo através de um duelo à espada,
na cidade do Porto, entre Antero de Quental e Ramalho Ortigão, defensor de
Castilho. Não sabemos como isso terminou, mas talvez o respondam as palavras
de Moisés: “[...] A vitória sorri aos moços, mas era preciso que voltassem à carga
mais adiante a fim de consolidarem as suas posições. A derrota de Castilho

187
UNIDADE 3 | DO ROMANTISMO À CONTEMPORANEIDADE: A ESTÉTICA E A PRODUÇÃO LITERÁRIA

significava apenas o golpe de morte do Romantismo.” (2008, p. 222). Não à toa,


o grupo de jovens acadêmicos da Universidade de Coimbra, antirromânticos e
anticastilhistas, após um tempo de dispersão, volta a se congregar em Lisboa, em
1868, num grupo chamado Cenáculo.

“E é este mesmo grupo que, em 1871, resolve organizar uma série


de palestras, com o fim de discutir questões de ordem ideológica que então
interessavam à gente culta da Europa e da América do Norte”. (MOISÉS, 2008,
p. 222). O evento passou a chamar-se Conferências Democráticas do Cassino
Lisbonense. Saraiva (1976, p. 802), acerca das conferências, de um modo resumido,
demonstra o que segue:

O propósito das conferências era o de expor “[...] as grandes questões


contemporâneas religiosas, literárias, políticas, sociais e científicas, num espírito
de franqueza, coragem e positivismo.” Isso é o que se pode ler no manifesto
publicado sob o título A Revolução de Setembro, de 18 de maio de 1871, que
define a finalidade das conferências:

 abrir uma tribuna em que tenham voz as ideias e os trabalhos que caracterizam
esse movimento do século, preocupando-nos, contudo, com a transformação
social, moral e política;

 ligar Portugal com o movimento moderno, fazendo-o assim nutrir-se dos


elementos vitais de que vive a humanidade civilizada;

 procurar adquirir consciência dos fatos que nos rodeiam na Europa;

 agitar na opinião pública as grandes questões da Filosofia e da Ciência moderna;

 estudar as questões da transformação política, econômica e religiosa da


sociedade portuguesa.

FONTE: Adaptado de: <http://www.citi.pt/cultura/literatura/romance/eca_queiroz/manifesto.


html>. Acesso em: 24 nov. 2010.

Caro/a acadêmico/a, valeria registrar aqui que em virtude das ideias


revolucionárias divulgadas nas conferências às críticas lançadas contra a
influência da Igreja, após decorrida a quinta conferência, o Cassino Lisbonense
acabou fechado por um decreto real. Tal intervenção excessivamente autoritária
por parte das autoridades acirrou os ânimos e acabou por provocar maiores
polêmicas na comunidade literária e as palestras e reuniões não aconteceram mais.
Há que se expor que “[...] as ideias básicas, porém, já tinham sido divulgadas e a
renovação da cultura portuguesa marcou indelevelmente o final do século XIX,
principalmente as décadas de setenta e oitenta.” (TUFANO, 1981, p. 185).

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TÓPICO 2 | A REVOLUÇÃO DA MENTALIDADE E O CULTO AO ETÉREO: AS ESCOLAS REALISTA E SIMBOLISTA

Com o andamento das ideias realistas na literatura portuguesa, novos


métodos são propostos, entre estes a proposição do método científico para escrever,
divulgado por Émile Zola, em 1867, por meio da publicação das obras Thérèse
Raquin, O Romance Experimental e O Germinal, em que ele sustenta a importância
de se utilizar o método científico na escrita – coleta de dados, formulação de
hipóteses, criação de personagens para comprovar a validade dessas hipóteses.
Esta nova estética dentro do Realismo passa a chamar-se Naturalismo. Surge
agora o Realismo/Naturalismo, cujas características principais são:

 OBJETIVISMO, IMPASSIBILIDADE, OBSERVAÇÃO E ANÁLISE: procura por


uma explicação que seja lógica e aceita cientificamente para os fatos e as ações
tratadas no texto.

 SENSORIALISMO: destaque para a descrição objetiva, para as impressões


sensoriais claras. A narrativa ocorre de modo lento, por causa da necessidade
da apresentação de pormenores excessivos, ocorrendo, inclusive a perda
de importância do enredo diante da necessidade de caracterização das
personagens. As personagens são esféricas, ou seja, muito complexas,
multiformes, imprevisíveis e dinâmicas. O autor aparece mais distante da
narrativa, em vista da necessidade de se tornar um observador marcado pela
neutralidade.

 TEMAS CONTEMPORÂNEOS: para isto, os autores valiam-se de críticas sociais


à burguesia, ao clero, à ignorância do provincianismo; ao capitalismo selvagem,
ao preconceito racial, à monarquia. Dentro desta característica, aparecem os
romances sociais, psicológicos e de tese. Destaque grande é dado a temas como
o sexo, o adultério, a degradação das personagens, os assassinatos, o triunfo
do mal. A corrente naturalista, a seu turno, prefere explorar a sexualidade, no
sentido de que os escritores adeptos dessa corrente buscarão no cotidiano os
fatos mais inusitados e incomuns para fazer deles a sua matéria artística.

 PREOCUPAÇÃO FORMAL: o Realismo preocupava-se muito com a clareza,


com a concisão, com a precisão lexical, com a rigidez da língua e das formas,
com o vernáculo. Na escrita, havia o predomínio da denotação, com as
metáforas cedendo lugar às metonímias.

189
UNIDADE 3 | DO ROMANTISMO À CONTEMPORANEIDADE: A ESTÉTICA E A PRODUÇÃO LITERÁRIA

FIGURA 37 – ÈMILE ZOLA

FONTE: De Giovanni (2007, p. 108)

No que diz respeito à semelhança das duas estéticas, a realista e a


naturalista, apresentamos a seguir um quadro comparativo, principalmente no
que concerne aos modos de tratar os diferentes temas:

QUADRO 3 – COMPARAÇÃO ENTRE OS MOVIMENTOS REALISTA E NATURALISTA

REALISMO NATURALISMO
A investigação da sociedade e dos caracteres A investigação da sociedade e dos caracteres
individuais é feita de "dentro para fora", isto é, individuais ocorre "de fora para dentro"; as
por meio de uma análise psicológica capaz de personagens tendem a se simplificar, pois
abranger toda a sua complexidade, utilizando são vistas como joguetes, títeres dos fatores
entre outros recursos a ironia, que sugere e biológicos e sociais que determinam suas
aponta, em vez de afirmar. ações, pensamentos e sentimentos.
 Ênfase nas relações entre os homens Ênfase na descrição das coletividades, dos
e a sociedade burguesa, atacando suas tipos humanos que encarnam os vícios,
instituições e seus fundamentos ideológicos: as taras, as patologias e anormalidades
o casamento, o clero, a escravidão do reveladoras do parentesco entre o homem
homem ao trabalho como meio de "vencer e o animal; o homem descendo à condição
na vida"; as contradições entre ricos e pobres, animalesca em sua situação de mero
vistas da ótica dos "vencidos" (os marginais, produto das circunstâncias externas, como a
os operários, as prostitutas) e não dos hereditariedade e o meio ambiente.
"vencedores".
O tratamento imparcial e objetivo dos temas O tratamento dos temas a partir de uma
garante ao leitor um espaço de interpretação, visão determinista conduz e direciona
de elaboração de suas próprias conclusões a as conclusões do leitor e empobrece
respeito das obras. literalmente os textos.

FONTE: Machado (1996, p. 256)

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TÓPICO 2 | A REVOLUÇÃO DA MENTALIDADE E O CULTO AO ETÉREO: AS ESCOLAS REALISTA E SIMBOLISTA

Até aqui, caro/a acadêmico/a, apresentamos a parte estética do movimento


realista. Importante também tratarmos dos autores que foram marcantes neste
movimento. Por isso optamos por apresentar um que se destaca pela poesia –
Antero de Quental – e outro que se destaca na prosa – Eça de Queirós.

Um dos principais líderes do movimento realista foi o poeta Antero de


Quental, considerado também um dos grandes sonetistas da literatura portuguesa,
ao lado de Camões e Bocage. Ele foi também um dos que trabalharam pela
ruptura com o Romantismo português. Dele, apresentamos inicialmente alguns
dados biográficos:

FIGURA 38 – ANTERO DE QUENTAL

FONTE: Machado (1996, p. 161)

ANTERO TARQUÍNIO DE QUENTAL nasceu na ilha de São Miguel, nos


Açores, em 18 de abril de 1842. É descendente de uma das mais antigas famílias
dos colonizadores. Era filho de Fernando de Quental, um dos 7.500 liberais que,
em 1832, contribuíram para implantar o regime constitucional. A mãe de Antero,
Ana Guilhermina da Maia, educou-o religiosamente, o que contribuiria para as
suas reflexões místicas, mesmo que mais tarde abandonasse a religião. Aliás, uma
das suas primeiras emoções intelectuais ocorre quando, em 1852, lê Ode a Deus,
de Alexandre Herculano.

Em 1847, aprende francês com Antônio Feliciano de Castilho e inglês com


Mr. Rendall. Em 1852, vai para Lisboa e passa a frequentar o Colégio Pórtico, cujo
diretor é o já conhecido Castilho. Em 1865, depois de uma viagem a São Miguel,
Antero retorna a Coimbra e passa a estudar Direito. Logo passa a ser muito bem
visto pelos colegas e torna-se um líder entre os companheiros de turma.

Em 1865, publica uma de suas primeiras obras, Odes Modernas, fato que

191
UNIDADE 3 | DO ROMANTISMO À CONTEMPORANEIDADE: A ESTÉTICA E A PRODUÇÃO LITERÁRIA

lhe confere renome e prediz o seu caminho futuro. Esta publicação de Quental
contribui para desencadear a já citada por nós Questão Coimbrã. Depois de uma
estada breve em Paris e Nova Iorque, retorna a Lisboa a passa a fazer parte do
grupo Cenáculo, em 1868, do qual se torna um dos líderes. A partir de 1871,
compõe o grupo que lidera as Conferências do Cassino, das quais participa
ativamente.

Afastado do convívio social, desiludido com algumas de suas ideias,


tomado por problemas psíquicos, não vê para si outra saída a não ser o suicídio, o
qual comete em 11 de setembro de 1891, com dois tiros na boca. Antero cultivou
um tipo de poesia e de prosa carregadas de polêmica e filosofia. Destacam-se, entre
as suas obras poéticas, Odes Modernas, poesia publicada em 1865, Primaveras
Românticas e Versos dos Vinte Anos, publicadas em 1871, Sonetos Completos,
publicados em 1886 e Raios da Extinta Luz, em 1892.

Sua obra traz a marca de uma temática muito rica e variada, porém
interessa-nos destacar o que consideramos o desdobramento poético da polêmica
Questão Coimbrã. Ao que parece, ele escreveu o soneto A Um Poeta com o objetivo
de atingir os poetas do romantismo, colocando como epígrafe a frase bíblica em
latim, tirada do evangelho surge et ambula!, a qual significa “levanta-te e anda!”.

Tu que dormes, espírito sereno,


posto à sombra dos cedros seculares,
como um levita à sombra dos altares,
longe da luta e do fragor terreno.

Acorda! É tempo! O sol, já alto e pleno


afugentou as larvas tumulares...
para surgir do seio desses mares
um mundo novo espera só um aceno...

Escuta! É grande a voz das multidões!


São teus irmãos, que se erguem! São canções...
mas de guerra... e são vozes de rebate!

Ergue-te, pois, soldado do Futuro,


e dos raios de luz do sonho puro,
sonhador, faze espada de combate!
(QUENTAL, 1991, p. 191)

Nas palavras do soneto de Quental, percebe-se uma intenção estética que


acaba com o caráter pessoal, intimista, confessional, e reafirma o caráter do não-
eu, que atenta para a coletividade. Nos mesmos versos, pode-se ler o domínio de
um caráter diurno, longe do culto ao noturno, próprio do romântico, clima este
apropriado aos devaneios pessoais.

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TÓPICO 2 | A REVOLUÇÃO DA MENTALIDADE E O CULTO AO ETÉREO: AS ESCOLAS REALISTA E SIMBOLISTA

Outro poema interessante nesse sentido é o Mais Luz!, também de


Antero de Quental, o qual traz a marca da iluminação pelo desejo de intervir no
contemporâneo, já que a poesia, no dizer do próprio poeta, “é a voz da revolução”.

Amem a noite os magros crapulosos,


e os que sonham com virgens impossíveis,
e os que se inclinam, mudos e impassíveis,
à borda dos abismos silenciosos...

Tu, Lua, com teus raios vaporosos,


cobre-os, tapa-os e torna-os insensíveis,
tanto aos vícios cruéis e inextinguíveis,
como os longos cuidados dolorosos!

Eu amarei a santa madrugada,


e o meio-dia em vida refervendo,
e a tarde rumorosa e repousada.

Viva e trabalhe em plena luz: depois,


seja-me dado ainda ver, morrendo,
o claro Sol, amigo dos heróis!
(QUENTAL, 1991, p. 186)

Na parte relacionada à prosa, temos como expoente Eça de Queirós,


cuja produção literária é marcada pela noção de literatura de intervenção, mais
voltada para a tomada de consciência dos problemas sociais. Esta questão é muito
bem definida na textualidade de Queirós. Inicialmente, consideramos importante
apresentar alguns dados biográficos de Eça de Queirós:

JOSÉ MARIA EÇA DE QUEIRÓS nasceu em Póvoa de Varzim, Portugal,


aos 25 de novembro de 1845. Equivocadamente, muitos escrevem seu nome como
Eça de Queiroz, com a letra Z. Eça faleceu em Paris, capital francesa, em 16 de
agosto de 1900, porém, seu funeral foi realizado em Lisboa, no dia 17 de agosto.
Eça de Queirós era casado com a D. Emília de Castro Pamplona, irmã do conde
de Resende.

193
UNIDADE 3 | DO ROMANTISMO À CONTEMPORANEIDADE: A ESTÉTICA E A PRODUÇÃO LITERÁRIA

FIGURA 39 – EÇA DE QUEIRÓS

FONTE: Machado (1996, p. 173)

Seu pai era o Dr. José Maria Teixeira de Queirós, juiz do Supremo
Tribunal de Justiça, e sua mãe D. Carolina de Eça. Estudou em alguns colégios da
cidade do Porto e cursou ensino superior (Direito) na Universidade de Coimbra,
completando a sua graduação em 1866. Em 1867, estabeleceu-se como advogado,
cuja profissão exerceu durante algum tempo, mas logo a abandou por achar que
não alcançaria um futuro promissor. Era amigo pessoal de Antero de Quental,
com o qual viveu fraternalmente. Estabeleceu com ele e outros companheiros
uma verdadeira agremiação literária, em cuja assembleia entraram Ramalho
Ortigão, Oliveira Martins, Salomão Saraga e Lobo de Moura. Este grupo, em
1871, estabeleceu as famosas Conferências Democráticas no Cassino Lisbonense.

Eça, mais tarde, decidiu-se pela carreira diplomática e prestou concurso


para tal em 21 de julho de 1870, sendo aprovado como primeiro colocado. Em
1872, foi nomeado cônsul geral em Havana – Cuba – cidade para a qual partiu.
Permaneceu pouco tempo em Cuba, no meio das agitações do governo espanhol.
No ano de 1874, foi transferido para Newcastle, em 1876 foi para Bristol e,
finalmente, no ano de 1888, para Paris, cidade em que faleceu.

Entre as suas muitas obras, destacam-se alguns romances mundialmente


conhecidos, como: O Crime do Padre Amaro, publicado em 1876, O Primo Basílio,
cujo lançamento se deu em 1878, Os Maias, publicado em 1888, A Ilustre Casa de
Ramires, publicado em 1900 e A Cidade e as Serras, lançado no mesmo ano, 1900.

Dentre os romances marcantes de Eça de Queirós, primeiramente está


O Primo Basílio, lançado em 1878, no qual ganha destaque a fútil educação
romântica das burguesas lisboetas, representada na personagem Luísa. Outro
romance é O Crime do Padre Amaro, lançado ainda em 1875, o qual faz uma
crítica contundente a certos membros do clero, tanto pela tendência aos gozos
materiais quanto pela luxúria e gula.

194
TÓPICO 2 | A REVOLUÇÃO DA MENTALIDADE E O CULTO AO ETÉREO: AS ESCOLAS REALISTA E SIMBOLISTA

Em ambos os textos, estamos diante do que poderia ser denominado


romance de tese, pois as suas personagens, Luísa no primeiro e Amaro e Amélia
no segundo, são condicionadas pelo meio em que estão dispostas. Acerca destas
personagens, pode-se ler no Dicionário de Literatura Portuguesa que:

Eça procura fundar a representação narrativa na observação que


pode fazer dos cenários que privilegia; as personagens que os
povoam surgem então como figuras afetadas por fatores educativos
e hereditários que os romances tratam de pôr em evidência, de forma
normalmente muito crítica. Se Luísa é levada ao adultério, um tal
destino há de ser explicado como resultado de deformações que o
passado e o presente da personagem atestam: as leituras românticas,
o ócio burguês etc.; por sua vez, Amaro e Amélia são conduzidos a
uma relação amorosa moralmente irregular porque os temperamentos
que os dominam e o meio em que se encontram favorecem uma
visão ambiguamente divinizada do padre, detentor de um poder que
transcendia a esfera espiritual. (MACHADO, 1996, p. 397).

Como é possível você perceber, caro/a acadêmico/a, Queirós procura extrair


suas personagens da sociedade em que vivia, da observação da vida cotidiana,
enfim, da realidade. Assim é com O Primo Basílio, do qual apresentamos, para
seu conhecimento, uma pequena síntese, seguida de uma análise breve:

Este romance ilustra bem a posição crítica de Eça de Queirós em face


da sociedade lisboeta de seu tempo. Luísa, ociosa e sonhadora, é envolvida
pelos galanteios de Basílio, um primo com que convivera na infância e que vem
visitá-la durante a ausência do marido, Jorge, que estava viajando a negócios.
Depois de uma série de encontros, a relação entre eles é descoberta por Juliana,
a empregada, que então passa a fazer chantagem com as cartas que conseguiu
roubar do quarto de Luísa. Basílio, a esta altura, já não se encontra mais em
Lisboa. Luísa, por causa disso (a chantagem, a ausência de Basílio e o medo de
Jorge) desespera-se.

Após sentir-se muito humilhada por Juliana, consegue, com a ajuda de


um amigo, reaver as cartas. A empregada morre e Luísa adoece gravemente,
como consequência da tensão em que esteve envolvida. Jorge toma conhecimento
de tudo, e resolve perdoá-la. A esposa, porém, não se recupera e vai a óbito.
Basílio, por sua vez, lamenta apenas a morte de uma mulher que seria um bom
passatempo para ele quando tivesse que ir a Lisboa.

FONTE: Nicola (2003, p. 62).

Um tema muito marcante no romance O Primo Basílio é a questão do


adultério de Luísa e as consequências que dele decorrem. Ela é uma mulher de
classe média, entediada facilmente pelas constantes ausências do marido, em
viagens de negócios. Como resultado das suas leituras romanescas, advém o
sonho do sabor de uma vida amorosa. O resultado, ou a realização desse sonho,
se dá com a visita de Basílio, seu primo e primeiro amor.

195
UNIDADE 3 | DO ROMANTISMO À CONTEMPORANEIDADE: A ESTÉTICA E A PRODUÇÃO LITERÁRIA

Diante disso, pode-se afirmar que Luísa é uma personagem bastante


verossímil. Ela era uma mulher comum da sociedade, e como ela, muitas tinham
as mesmas ações, porém nela estavam colocadas de modo mais evidente. Eça
retrata as cenas com muitos pormenores, a exemplo do que ocorre no primeiro
encontro amoroso:

A carruagem parou ao pé de uma casa amarela, com uma portinha


pequena. Logo à entrada, um cheiro mole e salobre enojou-a. A escada
de degraus gastos subia ingrememente, apertada entre paredes onde
a cal caía, e a umidade fizera nódoas. No patamar da sobreloja, uma
janela com um gradeadozinho de arame, parda do pó acumulado,
coberta de teias de aranha, coava a luz suja do saguão. E por trás
de uma portinha, ao lado, sentia-se o ranger de um berço, o chorar
doloroso de uma criança. (QUEIRÓS, 1994, p. 124).

A minuciosa descrição do espaço permite ao leitor visualizar facilmente


a cena. Na maneira de mostrar os detalhes, Queirós passa ao leitor como uma
fotografia do que acontece na chegada ao local do encontro, como também na
entrada para o compartimento. A descrição Eça a faz carregada de uma dose de
ironia, com um verdadeiro culto ao pormenor, com atenção exímia aos detalhes,
o que faz com que a realidade seja representada detalhadamente.

Enfim, o fragmento apresentado consegue demonstrar as pretensões


do movimento realista português, revelando o que condiciona a realização de
O Primo Basílio. Entre estes elementos, há que se destacar a verossimilhança, a
pintura fidedigna da realidade, o compromisso com a crítica social e os lugares
comuns do movimento romântico. E para completar a reflexão, pode-se afirmar
com Massaud Moisés (2008, p. 265) que, “[...] com O Primo Basílio, Eça desloca-
se para a cidade, a sondar as moléstias degenerescentes no centro nevrálgico
da Nação, a Capital: o ficcionista penetra agora no recesso dum lar burguês
pretensamente sólido e feliz.”

Mas, em dado momento, principalmente na segunda metade do século XIX,


os artistas realistas veem-se desiludidos e frustrados graças às impossibilidades
de mudarem a realidade social. Assim, encaminha-se para o fim este estilo, e as
atenções começam a voltar-se mais para o lado espiritual. Como em todo fim
de século, a realidade está em transformação social e econômica, pois nesse
momento a classe média está em dificuldades. Na literatura também ocorrem
transformações. Um novo estilo começa a dar mostras. É o Simbolismo, que será
tratado a seguir.

3 ASPECTOS GERAIS DO SIMBOLISMO


O Simbolismo, em Portugal, caracterizou-se por um movimento literário
que teve como ponto de partida os ideais decadentistas originários da França. Por
isso é comum dizermos que esse movimento manifesta o espírito da decadência
do final do século XIX. Decadente no sentido de que está decretada a falência do

196
TÓPICO 2 | A REVOLUÇÃO DA MENTALIDADE E O CULTO AO ETÉREO: AS ESCOLAS REALISTA E SIMBOLISTA

Positivismo, do Naturalismo e do Cientificismo, elementos das ciências marcantes


do movimento realista. Nesse sentido, o homem se vê sem horizonte, sem soluções
em curto prazo para os seus problemas. Dentro das novas ideias, “[...] as atitudes
de espírito almejam a apreensão direta dos valores transcendentais, o bem, o belo,
o verdadeiro, o sagrado e situam-se no polo oposto da ratio calculista e anônima.”
(BOSI, 1984, p. 296).

Assim, no final do século XIX, após um certo esgotamento da estética


do Realismo, algo de novo na poesia começou a dar outros contornos, pois
desejava-se alçar a poesia à condição de quase música. E a esta nova tendência
convencionou-se chamar Simbolismo.

O termo simbolismo foi criado por Jean de Maréas (1856-1910), através


da publicação de um artigo, que também serviu de manifesto, e foi publicado
no jornal francês Le Figaro. Neste mesmo texto publicado, Maréas assinalou o
inevitável fim do Romantismo e do Realismo, ao mesmo tempo em que anunciou
o surgimento de uma nova manifestação artística, o que ele chamou Le Symbolisme.
No seu manifesto, Maréas prega a nova estética poética e a define como “[...]
inimiga do ensinamento, da declamação, da falsa sensibilidade, da descrição
objetiva, a poesia simbolista procura vestir a ideia de uma forma sensível”.
(MOISÉS, 2008, p. 281).

Os poetas do novo estilo têm por intuito não somente cantar e evocar as
emoções, mas também trazê-las para dentro do texto de um modo prático, de
modo que o leitor possa vivenciá-las, senti-las plenamente. Por esse motivo, os
simbolistas se valem das sinestesias, da forte ligação com as cores, das sensações,
das imagens além de outras características, como as que apresentaremos a seguir:

ESPIRITUALISMO E MISTICISMO: os simbolistas concebiam a arte como


uma prática religiosa. Os textos criados por poetas desse estilo, muitas vezes,
ligam-se a uma certa visão religiosa, ou mesmo cristã. Por esse motivo, é notória
a distinção que eles faziam de corpo e alma, a ânsia pela purificação, a vontade
de anular a matéria corpórea em busca da libertação da alma. O vocabulário
próximo ao místico e ao religioso era muitas vezes evocado, a exemplo do missal,
do breviário, dos hinos, dos salmos etc.

SUGESTÃO: os simbolistas não desejavam somente nomear as coisas,


fazê-lo diretamente. Para eles, era mais importante sugerir, a fim de que o leitor
pudesse adivinhar, o que tornava, de certo modo, o poema um enigma. Para a
palavra, o importante era o seu valor sonoro e não o seu significado.

IMPRECISÃO: esta característica vem ligada àquela apresentada


anteriormente e preconiza que a realidade não deveria ser apresentada pronta,
mas, ao contrário, evocada de modo vago e impreciso. Assim, entendemos que
o estilo simbolista desejava não a matéria, mas a essência humana, os estados da
alma, o inconsciente.

197
UNIDADE 3 | DO ROMANTISMO À CONTEMPORANEIDADE: A ESTÉTICA E A PRODUÇÃO LITERÁRIA

USO DE SINESTESIAS: na poesia simbolista, era comum a presença desse


tipo de figura. Trata-se de uma figura de linguagem que consiste na fusão de
várias sensações, sem que necessariamente haja lógica, a exemplo de alusões ao
olfato, ao tato, à gustação, à audição, aos aspectos visuais.

MUSICALIDADE: para os simbolistas, a poesia deveria estar impregnada


de um tom musical. Para chegar a isso, o recurso adotado pelos poetas do novo
estilo era a grande quantidade de figuras de linguagem associadas à sonoridade,
entre estas as rimas, o eco, a aliteração. Para esses poetas, a música deveria ser
colocada antes de qualquer coisa. Vejamos um exemplo de aliteração, que é a
repetição de sons consonantais: “E as cantilenas de serenos sons amenos, fogem
fluidas fluindo à fina flor dos fenos”. (CASTRO, apud ABDALA JÚNIOR;
PASCHOALIN, 1985).

MAIÚSCULAS ALEGORIZANTES: é um recurso que objetiva enfatizar o


uso de certas palavras, chamar a atenção do leitor, por meio da utilização de letras
maiúsculas no meio das palavras. Atentemos que não existe razão gramatical
para isso, mas é um recurso estilístico.

Perceba, caro/a acadêmico/a, que o estilo simbolista traz em si, e muito


forte, a marca do misticismo. O poeta, neste estilo, assume a função de vate, ou
melhor, de porta-voz das mais altas esferas, de vidente ou ainda de tradutor.
Daí dizermos que na arte simbolista retomamos o culto àquilo que é misterioso
e, portanto, a valorização da dimensão mística da vida. Mais do que isso, no
Simbolismo, os poetas “[...] voltam-se para dentro de si, em busca das camadas
submersas, iniciando uma viagem interior de imprevisíveis resultados. [...]
Mergulhavam no caos, no alegórico, no anárquico.” (MOISÉS, 2008, p. 282).

FIGURA 40 – HELENA, DO PINTOR SIMBOLISTA FRANCÊS HENRI FANTIN-LATOUR (1836-1904)

FONTE: De Giovanni (2007, p. 398)

198
TÓPICO 2 | A REVOLUÇÃO DA MENTALIDADE E O CULTO AO ETÉREO: AS ESCOLAS REALISTA E SIMBOLISTA

Em palavras mais simples, os novos poetas faziam da arte da poesia


uma forma de culto, e muitas vezes autointitulavam-se cultores da religião do
verbo, ou seja, da palavra. E por consequência, da poesia. Em suma, dentro do
Simbolismo, a postura estética poderia ser definida como a expressão das relações
e correspondências que a linguagem cria entre o concreto e o abstrato, o material
e o ideal, entre as diferentes esferas dos sentidos.

E este novo estilo consolidou-se nas terras lusitanas com o poeta Eugênio
de Castro e a publicação do poema Oaristos. Esta poesia abriu os novos tempos
no cenário da literatura de Portugal. Para uma análise inicial, utilizaremos o
poema intitulado Um Sonho:

Na messe, que enlourece, estremece a quermesse...


O sol, o celestial girassol, esmorece...
E as cantilenas de serenos sons amenos
Fogem fluidas, fluindo à fina flor dos fenos...

As estrelas em seus halos


Brilham com brilhos sinistros...
Cornamusas e crotalos,
Cítolas, cítaras, sistros,
Soam suaves, sonolentos,
Sonolentos e suaves,
Em suaves,
Suaves, lentos lamentos
De acentos
Graves,
Suaves.

Flor! enquanto na messe estremece a quermesse


E o sol, o celestial girassol esmorece,
Deixemos estes sons tão serenos e amenos,
Fujamos, Flor! à flor destes floridos fenos...

Soam vesperais as Vésperas...


Uns com brilhos de alabastros,
Outros louros como nêsperas,
No céu pardo ardem os astros...

Como aqui se está bem! Além freme a quermesse...


– Não sentes um gemer dolente que esmorece?
São os amantes delirantes que em amenos
Beijos se beijam, Flor! à flor dos frescos fenos...

199
UNIDADE 3 | DO ROMANTISMO À CONTEMPORANEIDADE: A ESTÉTICA E A PRODUÇÃO LITERÁRIA

As estrelas em seus halos


Brilham com brilhos sinistros...
Cornamusas e crotalos,
Cítolas, cítaras, sistros,
Soam suaves, sonolentos,
Sonolentos e suaves,
Em suaves,
Suaves, lentos lamentos
De acentos
Graves,
Suaves...

Esmaece na messe o rumor da quermesse...


– Não ouves este ai que esmaiece e esmorece?
É um noivo a quem fugiu a Flor de olhos amenos,
E chora a sua morta, absorto, à flor dos fenos...

Soam vesperais as Vésperas...


Uns com brilhos de alabastros,
Outros louros como nêsperas,
No céu pardo ardem os astros...

Penumbra de veludo. Esmorece a quermesse...


Sob o meu braço lasso o meu Lírio esmorece...
Beijo-lhe os boreais belos lábios amenos,
Beijo que freme e foge à flor dos flóreos fenos...

As estrelas em seus halos


Brilham com brilhos sinistros...
Cornamusas e crotalos,
Cítolas, cítaras, sistros,
Soam suaves, sonolentos,
Sonolentos e suaves,
Em suaves,
Suaves, lentos lamentos
De acentos
Graves,
Suaves...

Teus lábios de cinábrio, entreabre-os! Da quermesse


O rumor amolece, esmaiece, esmorece...
Dá-me que eu beije os teus' morenos e amenos
Peitos! Rolemos, Flor! à flor dos flóreos fenos...

Soam vesperais as Vêsperas...


Uns com brilhos de alabastros,
Outros louros como nêsperas,
No céu pardo ardem os astros...
200
TÓPICO 2 | A REVOLUÇÃO DA MENTALIDADE E O CULTO AO ETÉREO: AS ESCOLAS REALISTA E SIMBOLISTA

Ah! não resistas mais a meus ais! Da quermesse


O atroador clangor, o rumor esmorece...
Rolemos, b morena! em contactos amenos!
– Vibram três tiros à florida flor dos fenos...

As estrelas em seus halos


Brilham com brilhos sinistros...
Cornamusas e crotalos,
Cítolas, cítaras, sistros,
Soam suaves, sonolentos,
Sonolentos e suaves,
Em suaves,
Suaves, lentos lamentos
De acentos
Graves,
Suaves...

Três da manhã. Desperto incerto... E essa quermesse?


E a Flor que sonho? E o sonho? Ah! tudo isso esmorece!
No meu quarto uma luz, luz com lumes amenos,
Chora o vento lá fora, à flor dos flóreos fenos...
(ABDALA JÚNIOR; PASCHOALIN, 1985, p. 130)

FIGURA 41 – EUGÊNIO DE CASTRO E ALMEIDA

FONTE: Machado (1996, p. 196)

201
UNIDADE 3 | DO ROMANTISMO À CONTEMPORANEIDADE: A ESTÉTICA E A PRODUÇÃO LITERÁRIA

No texto de Castro, um grande valor é dado ao aspecto musical, melodioso


da linguagem. O autor, de modo especial, explora o quanto pode os aspectos
melódicos das expressões que utiliza. Vejamos como exemplo:

- o eco, observado na parte sonora final das palavras (messe, quermesse,


estremece, enlouquece);

- a assonância, constituída da repetição da vogal e;

- a aliteração, verificada na repetição da consoante f;

- as rimas, as reiterações de palavras, conforme se vê em “soam suaves,


sonolentos/sonolentos e suaves/em suaves/suaves, lentos lamentos/de acentos/
graves/suaves”;

- os paralelismos ou repetição de versos com a mesma estrutura sintática, a


exemplo de “O sol, o celestial girassol, esmorece”;

- a repetição de estrofes inteiras ao modo de estribilho ou refrão.

Caro/a acadêmico/a, os aspectos aqui apresentados constituem um


elemento importante para que se considere este poema como pertencente à
estética simbolista. Há vários outros, entre os quais a recorrência de instrumentos
musicais ao longo do texto, a exemplo de cítola (que é uma gaita de foles), o
crótalo (instrumento de percussão) e o sistro (um chocalho). Esse aspecto vai
ao encontro do que dissemos anteriormente sobre o poema, que os simbolistas
colocam, no poema, a música acima de tudo.

No que concerne ao aspecto sonoro, à valorização da camada sonora


do verso, ao que parece, recebe maior valorização o som do que o sentido,
mas o modo como se dá a organização das palavras, dos diferentes termos, as
figurações é capaz de “[...] produzir pela sugestão do som um estado emocional.”
(GUIMARÃES, 1982, p. 27).

Outro traço característico da poesia simbolista é a predileção pelos


ambientes e paisagens crepusculares. Isto também é visível no poema Um Sonho,
quando o autor cita o sol que esmorece ou se põe. O ambiente retratado, portanto,
é de melancolia. Trata-se, talvez, de uma poesia marcada pelo recolhimento ao
mundo interior.

A correspondência entre os vários elementos no poema é nítida: a messe


que enlouquece a plantação de trigo se associa à coloração do sol; o sol que se põe
é associado aos sons suaves e sonolentos, ao sono do sujeito poético, que, por sua
vez, também esmorece. Ao entardecer, soam os cantos religiosos, as vésperas. No
poema, predomina a cor do sol, tal qual a cor da fruta madura, das nêsperas.

202
TÓPICO 2 | A REVOLUÇÃO DA MENTALIDADE E O CULTO AO ETÉREO: AS ESCOLAS REALISTA E SIMBOLISTA

Essa inteireza atribui ao poema uma ideia de imensidão cósmica entre o


sujeito poético e o mundo. Ela traz com todas as figurações que se fazem presentes
uma afinidade entre os diferentes planos sensoriais: visual, auditivo, gustativo,
tátil, olfativo, próprio da sinestesia, característica marcante da poesia simbolista.

De uma maneira mais resumida, pode-se dizer que o tema que acompanha
a poesia de início a fim é o tédio e a desilusão, o pessimismo existencial, temas
esses muito próprios da poética simbolista. E isto o poeta bem soube fazê-lo, pelas
vias da sugestão, sem mostrar claramente o objeto, pois se o fizesse acabaria com
o encanto do poema. Por isso, “[...] sugerir, eis o sonho. É a perfeita utilização
deste mistério que constitui o símbolo.” (MALLARMÉ apud GOMES, 1994, p.
27).

De uma maneira mais genérica, poderíamos dizer que a poesia simbolista


contribui muito para a quebra das tradições literárias do passado, trazendo para
dentro da literatura uma nova linguagem, um novo modo de fazer literatura. De
certo modo, essa tradição quebrou os velhos modelos do seu tempo, colocando-
se numa linha de evolução, o que é muito producente no sentido de preparar o
terreno para o novo modelo que se aproxima, ou seja, o Modernismo, para nós, o
assunto do próximo tópico.

203
RESUMO DO TÓPICO 2

Caro/a acadêmico/a, no presente tópico, você teve oportunidade de


estudar aspectos importantes relacionados à Literatura Portuguesa, os quais
revemos, resumidamente, a seguir:

• No ambiente lusitano, a escola literária do Realismo chega via importação, pois


trata-se de mais uma posição assumida por grupos intelectuais minoritários,
ansiosos por reformas.

• Os realistas desejavam apresentar os fatos ou as cenas cotidianas da sociedade


tais quais se apresentavam, sem ocultar o seu lado mais sombrio, desfazendo-
se da ficção e da fantasia, marcas de estilos anteriores.

• É a partir da publicação do romance Madame Bovary, em 1857, que a literatura


passa a ser um instrumento de denúncia e crítica social.

• Na literatura realista, não há heróis. São as pessoas comuns os protagonistas


dos romances no novo estilo. A preocupação dos autores é fixar a sua psicologia,
desnudar o que há por trás das ações e das atitudes.

• A chamada Questão Coimbrã, que irrompeu em 1865, foi o resultado


da confrontação entre jovens estudantes de Coimbra e alguns poetas
ultrarromânticos de Lisboa.

• O grupo de jovens acadêmicos da Universidade de Coimbra, em 1871, resolve


organizar uma série de palestras, com o fim de discutir questões de ordem
ideológica que então interessavam à gente culta da Europa e da América do
Norte, cujo evento passou a se chamar Conferências Democráticas do Cassino
Lisbonense.

• Um dos principais líderes do movimento realista foi o poeta Antero de Quental,


considerado também um dos grandes sonetistas da literatura portuguesa. O
destaque na prosa realista portuguesa é o autor Eça de Queirós.

• Um tema muito marcante no romance O Primo Basílio é a questão do adultério


de Luísa e as consequências que dele decorrem. Ela é uma mulher de classe
média, entediada facilmente pelas constantes ausências do marido, em viagens
de negócios.

204
• O Simbolismo em Portugal caracterizou-se por um movimento literário que
teve como ponto de partida os ideais decadentistas originários da França.
Por isso, é comum dizermos que esse movimento manifesta o espírito da
decadência do final do século XIX. O termo simbolismo foi criado por Jean de
Maréas (1856-1910), através da publicação de um artigo, que também serviu de
manifesto, e foi publicado no jornal francês Le Figaro.

• O estilo simbolista traz em si a marca do misticismo. O poeta assume a função


de vate, ou melhor, de porta-voz das mais altas esferas, de vidente ou ainda
de tradutor. E este novo estilo se consolidou nas terras lusitanas, com o poeta
Eugênio de Castro e a publicação do poema Oaristos. Esta poesia abriu os
novos tempos no cenário da literatura de Portugal.

• A poesia simbolista contribui muito para a quebra das tradições literárias do


passado, trazendo para dentro da literatura uma nova linguagem, um novo
modo de fazer literatura.

205
AUTOATIVIDADE

Caro/a acadêmico/a, para que você possa melhor fixar o conteúdo deste
tópico, apresentamos, a seguir, uma atividade. Procure resolvê-la com base no
que você estudou.

1 Leia a poesia de Camilo Pessanha, um dos autores simbolistas da Literatura


Portuguesa. Em seguida, resolva as questões propostas:

Viola chinesa
Ao longo da viola morosa
Vai adormecendo a parlenda
Sem que amadornado eu atenda
A lengalenga fastidiosa.
Sem que o meu coração se prenda,
Enquanto nasal, minuciosa,
Ao longo da viola morosa,
Vai adormecendo a parlenda.
Mas que cicatriz melindrosa
Há nele que essa viola ofenda
E faz que as asitas distenda
Numa agitação dolorosa?

Ao longo da viola, morosa...


(GUIMARÃES, 1982, p. 41)

a) Procure observar a presença da musicalidade nos versos do poema.


Considere atentamente este aspecto fônico e relacione-o com o sentido do
texto.

b) Nas palavras do poema, é possível perceber o estado de espírito do eu lírico.


Identifique-o.

c) Compare a sonoridade entre os versos da primeira estrofe e da terceira.


Comente o que você consegue identificar.

d) Explique, relendo o poema, se é possível observar o despertar do mundo


interior do eu lírico. Justifique.

e) Apresente aspectos estilísticos e temáticos que permitem identificar


características simbolistas no poema.

206
UNIDADE 3
TÓPICO 3

LIBERDADE DE CONCEPÇÃO E EXPRESSÃO E A


ATUALIDADE: A ERA MODERNA E A PRODUÇÃO LITERÁRIA
CONTEMPORÂNEA

“Não sou nada.


Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos
os sonhos do mundo.” (PESSOA,
Fernando. Tabacaria)

1 INTRODUÇÃO
Quando se fala em modernismo, a referência que se faz é às características
estéticas de determinada época ou geração. A partir de tal ideia, ao fazermos
menção à modernidade, nossa referência se volta à questão histórica e, dentro desta,
aos processos e transformações, muitas vezes profundas, que se desenvolvem em
determinado período. E aqui, caro/a acadêmico/a, é importante que se tenha em
conta que a maior parte dos países do continente europeu levou um longo tempo
para se modernizar.

Deste modo, o início do século XX marca a introdução de uma nova época


artístico-literária em Portugal – o Modernismo – o qual concebia a arte, inclusa
a literatura, sob um novo olhar estético: a consciência de modernidade, que já
assentava suas marcas nas transformações sociais, políticas e econômicas que
estavam ocorrendo gradativamente, e de certa maneira até acanhadas, haja vista
a nação portuguesa não possuir um projeto de desenvolvimento nacional que
permitisse ao país acompanhar a modernidade do restante da Europa, a qual
ocorria de modo mais acelerado.

Mesmo sem ser uma sociedade moderna, os passos iniciais do movimento


modernista português começam a surgir por volta de 1910, cuja época era
marcada por um tempo de transição e também de uma certa instabilidade
política, já que Portugal estava em processo de mudança quanto ao regime de
governo, transitando do regime monárquico para o republicano. Sobre isto, assim
comenta Massaud Moisés (2008, p. 316): “[...] o monarca equilibra-se até 1910,
quando, precisamente a 4 de outubro, se instala a república em Portugal. [...]
Proclamado o novo regime, chamam Teófilo Braga para assumir provisoriamente
as responsabilidades do governo”. É nesse terreno que surge o movimento do
Modernismo literário português, o qual constitui o assunto do primeiro item
deste tópico.

207
UNIDADE 3 | DO ROMANTISMO À CONTEMPORANEIDADE: A ESTÉTICA E A PRODUÇÃO LITERÁRIA

2 PANORAMA DO MODERNISMO E DA EXPRESSÃO


LITERÁRIA CONTEMPORÂNEA
Diante da nova situação política que Portugal vivia, formaram-se
dois grupos distintos: um grupo satisfeito com a instalação do novo regime
(republicano), que se esforçava para dar-lhe bases sólidas, e outro insatisfeito com
a queda do regime monárquico e que agora se posiciona contrário à República.

O grupo dos satisfeitos com o regime republicano esforça-se para que as


novas ideias se estabeleçam. E nesse sentido, a atuação dessas pessoas é muito
importante para a renovação das mentalidades no ambiente português. Por
isso, começa a surgir no novo ambiente português um grande sentimento de
nacionalismo, de orgulho nacional. E seria este princípio de nacionalidade que
concorreria para definir a identificação do povo com o seu território e com a sua
língua comum, bem como o sentimento de pertencimento que daria ao povo a
característica de unidade, desconsiderando, para isto, as diferenças.

É dentro deste cenário que, no ano de 1910, surge a revista A Águia:

[...] revista mensal de literatura, arte, ciência, filosofia e crítica


social, logo tornada órgão da Renascença Portuguesa, rótulo que os
conformados passaram a usar como expressão do seu programa de
fundamentação e revigoramento, em moldes modernos, da literatura
portuguesa.” (MOISÉS, 2008, p. 316).

Em suma, um veículo de comunicação revelador da tendência moderna e


importante para a formação de uma nova cultura nacional.

FIGURA 42 – REVISTA A ÁGUIA

FONTE: De Giovanni (2007, p. 195)

208
TÓPICO 3 | LIBERDADE DE CONCEPÇÃO E EXPRESSÃO E A ATUALIDADE: A ERA MODERNA E A PROD. LITE. CONTEMP.

Por volta do ano de 1915, alguns membros deste mesmo grupo, juntamente
com outros, fundam a revista Orpheu, a qual, entre os principais escritores,
contava com a colaboração de Mário de Sá Carneiro, Fernando Pessoa, que
também colaborou na revista A Águia, Luís de Montalvor, Almada Negreiros
e inclusive um brasileiro, Ronald de Carvalho. Estes ilustres literatos desejavam
revolucionar e atualizar a cultura portuguesa dentro do cenário europeu. E esta
revista é mais um dos marcos do início do Modernismo em Portugal.

FIGURA 43 – CAPA DA REVISTA ORPHEU Nº 1

FONTE: De Giovanni (2007, p. 196)

Dentro do Modernismo na literatura, em terras lusitanas, este se manifestou


através de um tipo de poesia que transparecia certa perturbação, ao mesmo tempo
em que trazia um tom provocador, irritante. Nela, talvez, o objetivo que estava
oculto era provocar certa desestabilização na ordem política, econômica e social
reinante no momento. Entre outros fatores, o que também exercia certa influência
era o contexto mundial, figurado este na agitação da Primeira Guerra Mundial
(1914), a Revolução Russa (1919), o poderio que gradativamente era assumido
pelos Estados Unidos como maior potência mundial, as tendências vanguardistas
que estavam nascendo em toda a Europa, as temáticas pregadas pela arte que
manifestavam certo inconformismo, instabilidade, o desejo de rompimento com
o passado, a vontade de adesão às ideias futuristas nascentes e a vontade de dar
mais vida e visibilidade ao país.

209
UNIDADE 3 | DO ROMANTISMO À CONTEMPORANEIDADE: A ESTÉTICA E A PRODUÇÃO LITERÁRIA

NOTA

Caro/a acadêmico/a, quando falamos em vanguarda, referimo-nos aos


movimentos culturais, artísticos, científicos de características militantes e avançadas, ou seja,
com tendências de futuro. Melhor explicando, o termo vanguarda designa aquilo que é pioneiro,
está à frente, que é revolucionário, inovador e propõe um novo modo de expressão. A origem
da palavra vanguarda está no francês: avant-garde. Entre as vanguardas influenciadoras do
Modernismo português podemos citar: Futurismo, de Tommaso Marinetti, que propunha a
rejeição do passado e ao academicismo e a destruição das tradições; Expressionismo, de Van
Gogh e Paul Cézanne além do poeta Julien-Auguste Hervé, que propõe a expressão do que é
mais característico num objeto, do ponto de vista absolutamente interior. Por isso, uma das suas
características é a deformação da realidade de maneira cruel e quase caricatural; Cubismo, que
toma como base as obras de Georges Braque, Pablo Picasso entre outros, e propõe a apreensão
do objeto sob a forma de fragmentos, dando a impressão de que ele pode ser visto em todos
os ângulos; Dadaísmo, que surgiu em várias cidades da Suíça ao mesmo tempo e propõe a
destruição dos valores burgueses e usa o non-sense (desprovido de significação, de coerência e
de bom senso, absurdo, ilógico) como forma de crítica feroz à sociedade; Surrealismo, proposto
por André de Breton, propõe que a arte deveria fluir livremente a partir do inconsciente, do sonho,
da fantasia. Na literatura, propõe a escrita automática, como um fluxo do interior.

Em Portugal, o primeiro movimento modernista apareceu logo na


transição da monarquia para a república e foi formado pelo grupo que se propôs
a composição da revista Orpheu, por isso esse grupo chamou-se Geração Orpheu.
Compunham este grupo Luís de Montalvor, o brasileiro Ronald de Carvalho,
Fernando Pessoa e Mário de Sá Carneiro. Esta geração praticamente foi a vanguarda
do Modernismo português, e tinha suas ideias baseadas nas teses futuristas de
Filippo Tommaso Marinetti. Tais ideias foram introduzidas em Portugal através
de Mário de Sá Carneiro (poeta) e de Guilherme de Santa Rita (artista plástico).
Eles tiveram contato com Marinetti e conheceram o Manifesto Futurista em Paris,
já que lá viviam. Este manifesto foi publicado em 20 de fevereiro de 1909, no Le
Figaro, importante jornal francês, posteriormente levado à publicação no território
português via tradução do original francês. A seguir, alguns itens do Manifesto
Futurista de Marinetti:

- nós queremos cantar o amor ao perigo, o hábito da energia e da temeridade;


- a coragem, a audácia, a rebelião são elementos essenciais de nossa poesia;
- a literatura exaltou até hoje a imobilidade pensativa, o êxtase, o sono. Nós
queremos exaltar o movimento agressivo, a insônia febril, o passo de corrida,
o salto mortal, o bofetão e o soco;
- é preciso que o poeta prodigalize com ardor, esforço e liberdade, para
aumentar o entusiástico fervor dos elementos primordiais;
- não há mais beleza, a não ser a luta. Nenhuma obra que não tenha um caráter
agressivo pode ser uma obra-prima. A poesia deve ser concebida como um
violento assalto contra as forças desconhecidas, para obrigá-las a prostrar-se
diante do homem;

210
TÓPICO 3 | LIBERDADE DE CONCEPÇÃO E EXPRESSÃO E A ATUALIDADE: A ERA MODERNA E A PROD. LITE. CONTEMP.

- cantaremos as grandes multidões agitadas pelo trabalho, pelo prazer ou pela


sublevação; cantaremos as marés multicores e polifônicas das revoluções nas
capitais modernas, cantaremos o vibrante fervor noturno dos arsenais e dos
estaleiros incendiados por violentas lutas elétricas, as estações esganadas,
devoradoras de serpentes que fumam, as fábricas penduradas nas nuvens
pelos fios contorcidos de suas fumaças, as pontes, semelhantes ginastas
gigantes que cavalgam os rios, faiscantes ao sol com o luzir de facas.

FONTE: MACHADO, Álvaro Manuel. Dicionário de literatura portuguesa. Lisboa: Presença, 1996.
p. 415.

Inicialmente, foi grande o impacto exercido pelo Manifesto Futurista sobre


a geração modernista Orpheu, o qual, gradativamente, foi sendo minimizado e,
do mesmo modo, contribuiu para que o grupo pudesse, via criatividade própria,
instituir o próprio estilo modernista. De uma maneira mais genérica, podemos
dizer que são marcantes as seguintes características para este grupo:

• inovação estética e ousadia, a exemplo de Fernando Pessoa, que neste período


adotou os seus heterônimos;

• ideal futurista, manifestado na recusa do passado, inclusive não o ligando à


guerra. Os poetas desta geração mencionam a guerra por meio da provocação
à classe política e criticando o conformismo da burguesia;

• presença do espírito de maquinismo, ou seja, na imitação da produção


industrial em série e por meio dos movimentos repetitivos. Nos textos, isto era
imitado pela repetição e multiplicação dos versos.

Retomando a questão revista Orpheu, importante mencionar que esta não


conseguiu outras publicações além do segundo número, por causa da carência
de recursos financeiros. Além disso, um ano após a publicação do primeiro
número (1916), o grupo é tomado por um grande pesar: o amigo mais próximo
de Fernando Pessoa e também poeta Mário de Sá Carneiro é levado ao suicídio
com vários frascos de estricnina, a 26 de abril de 1916.

211
UNIDADE 3 | DO ROMANTISMO À CONTEMPORANEIDADE: A ESTÉTICA E A PRODUÇÃO LITERÁRIA

FIGURA 44 – MÁRIO DE SÁ CARNEIRO

FONTE: Enciclopédia Brasileira de Consultas e Pesquisas (1988, p. 357)

Do mesmo modo, no ano seguinte – 1917 – uma nova revista é levada a


público, Revista Portugal Futurista, mas não passa do primeiro número, pois é
apreendida pela força policial e impedida de retomar suas atividades. E mais,
os artistas plásticos Guilherme de Santa Rita e Amadeu de Souza Cardoso, que
trabalharam na Revista Portugal Futurista e que eram membros atuantes da
Geração Orpheu vão a óbito no ano de 1918. Todos estes acontecimentos são
contribuidores para assinalar o fim da vanguarda modernista portuguesa.

Mas o Modernismo português não acaba junto com a geração que termina.
Os membros da geração Orpheu que ficaram continuam amadurecendo as ideias
modernistas e a divulgá-las. Assim, no ano de 1927, um grupo de estudantes de
Coimbra, entre os quais José Régio, João Gaspar Simões e Branquinho da Fonseca
(mais tarde tomam parte também Miguel Torga e Casais Monteiro) reúnem-se
com o objetivo de criar uma nova revista, a Presença. Esta se constituiu o veículo
de expressão mais importante do grupo, além de ser o meio de divulgação das
ideias dos intelectuais portugueses no tempo compreendido entre os anos de
1927 e 1940. Diferentemente das duas revistas anteriores, esta teve uma tiragem
bastante duradoura, pois, durante o seu período de vigência, efetuaram-se
cinquenta e quatro números.

Durante o tempo de existência desta revista, expoentes de renome da arte


passaram por ela, defendendo ideais comuns do grupo Presença, entre os quais
as características estéticas do grupo, como o individualismo, a introspecção, o
subjetivismo, a exaltação da autonomia do ideal estético (a dita arte pela arte),
a negação de muitos valores políticos e ideológicos. A geração Presença, de um
modo geral, queria realizar uma grande reviravolta: “[...] simultaneamente à
consolidação da herança de Orpheu, implantava, ao menos do ponto de vista
teórico, um ambiente de rigor e severidade que não deixou de produzir excelentes

212
TÓPICO 3 | LIBERDADE DE CONCEPÇÃO E EXPRESSÃO E A ATUALIDADE: A ERA MODERNA E A PROD. LITE. CONTEMP.

frutos, sobretudo na parte referente à crítica literária.” (MOISÉS, 2008, p. 363).


Basicamente, os integrantes deste grupo buscavam, em consonância com as ideias
divulgadas e abraçadas pela geração anterior, aprofundar no território lusitano
discussões acerca da teoria da literatura e das novas maneiras de expressão que
continuamente surgiam no mundo.

Quanto aos propósitos da nova revista, estes foram apresentados num


texto de José Régio, no primeiro número da revista, chamado Literatura Viva.
Régio comenta que a literatura que se considera viva expressa o ser humano
(neste caso o autor) por inteiro, dentro da sua sinceridade e da sua originalidade.
Mais do que isso, o autor deveria vivenciar o que propõe na sua obra artística.
Nas palavras do próprio José Régio (1971, p. 127):

Eis como tudo isto se reduz a pouco: literatura viva é aquela em que
o artista insuflou a sua própria vida, e que por isso mesmo passa a
viver de vida própria. Sendo esse artista um homem superior pela
sensibilidade, pela inteligência e pela imaginação, a literatura viva que
ele produz será superior: inacessível, portanto, às condições do tempo
e do espaço.

Conforme é possível perceber nas palavras do autor, caro/a acadêmico/a,


semeava-se a ideia de uma conduta individual do artista, tomando-se por base
questões do tipo originalidade, intimidade, verdade, profundidade. Para Régio,
fica claro que a arte não deve estar a serviço de ninguém: nem da política, nem da
sociedade, nem do seu autor, nem de entidades. A arte deve servir a si própria – a
chamada arte pela arte. Ela se basta a si mesma.

Ficou perceptível, em dado momento, que certos valores artísticos


defendidos pela geração Presença não conseguiam provocar mudanças sociais
significativas, haja vista serem tais valores, até certo ponto, inertes. E isto provocou
certo desconforto entre os membros da revista. Em vista disso, alguns ocuparam
cargos de direção dentro do grupo, outros saíram da Orpheu e foram diretamente
às páginas da Presença, e outros ainda acabaram deixando a Presença sob a
alegação de não apresentarem afinidade com os seus ideais.

Estes, porém, eram problemas internos. Afora tal problemática, havia a


questão da rivalidade teórica, a exemplo de José Rodrigues Miguéis, que dirigia
uma revista que propunha o contrário da Presença. Era a Seara Nova, que fazia
uma crítica militante, com uma expressão estética que apresentava compromisso
com mudanças sociais. Mas, o fim da revista é decretado pelo surgimento dos
rumores da Segunda Guerra Mundial, tendo publicado o seu último número em
1940, porém com a certeza de sua “[...] missão cumprida: nesse mesmo ano, o
neorrealismo aparece com toda a sua força revolucionária”, diz Massaud Moisés
(2008, p. 362).

Está aberto, deste modo, o espaço para novos grupos com tendências
modernas, ou mais modernas, o que não tardou a se formar, mesmo diante
das grandes conturbações sociais e políticas que advinham da Segunda Guerra

213
UNIDADE 3 | DO ROMANTISMO À CONTEMPORANEIDADE: A ESTÉTICA E A PRODUÇÃO LITERÁRIA

Mundial. Este grupo propunha uma maior aproximação dos escritores aos
problemas sociais e políticos da época. Os adeptos dessa corrente literária
defendiam a existência de um tipo de literatura que atuasse como crítica, como
denúncia social, de cunho combativo, com missão reformadora e que se colocasse
a serviço da sociedade.

O nome da nova corrente literária, Neorrealismo, ensejava a criação


de um novo tipo de realismo, ou seja, que pudesse alertar as pessoas e tirá-las
da passividade. Quanto ao tipo de produção literária, este grupo se destacou
principalmente pela prosa, enquanto os grupos anteriores focaram mais
a produção literária poética. Destacam-se como grandes prosadores neste
período, Fernando Namora, Alves Redol, Ferreira de Castro e Vergílio Ferreira.
Estes, nas suas produções, valiam-se das ideias neorrealistas de deixar claro
aos leitores uma visão completa, mais integrada, dos seres humanos, para que
pudesse adotar a consciência do dinamismo da sociedade. Além disso, enquanto
escritores, desejavam identificar-se como forças transformadoras do mundo. Por
isso, normalmente é consenso afirmar-se que “[...] o Neorrealismo tenha sido
um movimento em que se restaurou a ideia de literatura social, de consciente
ação transformadora, literatura engagée, a serviço da redenção do homem do
campo e da cidade, injustiçado e humilhado por estruturas sociais envelhecidas.”
(MOISÉS, 2008, p. 394).

Para a disseminação dos seus ideais, o Neorrealismo valeu-se de


importantes revistas, entre as quais Seara Nova, Revista Diabo, Revista Sol
Nascente e Revista Vértice, nas quais importantes assuntos de cunho social
eram debatidos por escritores, juntamente com vários artistas plásticos. E o
neorrealismo mostrou-se à sociedade como um programa estético que tinha por
intuito:

• combater a estética da arte pela arte, sustentada pela geração Orpheu;


• tornar-se um movimento artístico transformador da sociedade, principalmente
por caracterizar-se pela denúncia política do governo (regime ditatorial
salazarista), que lançou muitos trabalhadores, principalmente rurais, às
condições de miséria;
• rever a produção poética e prosaica no seu conteúdo enquanto Modernismo.

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TÓPICO 3 | LIBERDADE DE CONCEPÇÃO E EXPRESSÃO E A ATUALIDADE: A ERA MODERNA E A PROD. LITE. CONTEMP.

FIGURA 45 – ANTÔNIO DE OLIVEIRA SALAZAR (1889-1970)

FONTE: Enciclopédia Brasileira de Consultas e Pesquisas (1988, p. 137)

NOTA

Caro/a acadêmico/a, quando citamos o regime salazarista, fazemos referência


à forma política, econômica e social do governo de António de Oliveira Salazar (1889-1970),
ditador que governou Portugal por um período que se estendeu de1928 até 1974.

Nesse sentido, pode-se compreender que o grande propósito do


Neorrealismo português era também o de desfazer a alienação de uma conduta
elitista que tinha por foco somente a vida urbana da burguesia e da classe política,
para focar também a visão exótica do ambiente rural. Daí a ideia de desfazer os
preconceitos, principalmente em relação às manifestações genuínas das classes
populares. E acerca disso, comenta Antônio Cândido (1989, p. 142) que “[...] não é
falso dizer que, sob esse aspecto, o romance adquiriu uma força desmistificadora
que precede a tomada de consciência dos economistas e políticos.”

Mas essa atitude de autocrítica aos poucos vai entrando em esgotamento,


permanecendo, outrossim, o sentido político da literatura. E nas décadas de
1950, mais no seu final, e em 1960, primeiros tempos, o Neorrealismo entra numa
fase de influências estéticas de outros movimentos que surgiram no ambiente
europeu. É essa produção que começa a encaminhar o período de transição entre
o Neorrealismo e a Contemporaneidade.

215
UNIDADE 3 | DO ROMANTISMO À CONTEMPORANEIDADE: A ESTÉTICA E A PRODUÇÃO LITERÁRIA

No seu aspecto contemporâneo, a literatura portuguesa traz como marca


principal o abandono dos aspectos estéticos do período anterior – Neorrealismo –
e a adoção das marcas pós-modernas e pós-coloniais. E o marco da desvinculação
em relação ao Neorrealismo é o ano de 1974, com a Revolução dos Cravos, que
põe fim ao regime fascista republicano.

NOTA

Acerca da Revolução dos Cravos, citada anteriormente, é importante que você


saiba que o levante militar do dia 25 de abril de 1974 derrubou, num só dia, o regime político
que vigorava em Portugal desde 1926, sem grande resistência das forças leais ao governo que
cederam perante o movimento popular que rapidamente apoiou os militares. Este levante
é conhecido por 25 de abril ou Revolução dos Cravos. O levante foi conduzido pelos oficiais
intermediários da hierarquia militar (o MFA), na sua maior parte capitães, que tinham participado
na Guerra Colonial. Considera-se, em termos gerais, que esta revolução devolveu a liberdade ao
povo português (denominando-se como "dia da Liberdade" ao feriado instituído em Portugal
para comemorar a revolução).

Durante o século XX, a nação portuguesa precisou enfrentar também as


‘constantes guerras das suas colônias africanas em busca de independência. E
a submissão de alguns países africanos a Portugal era malvista pelo povo e por
muitos militares portugueses. A expressão desse malquerer deu-se na Revolução
dos Cravos.

FIGURA 46 – LIVRO 25 DE ABRIL DE 1974


AUTOR: LINCOLN SECCO

FONTE: Machado (1996, p. 187)

216
TÓPICO 3 | LIBERDADE DE CONCEPÇÃO E EXPRESSÃO E A ATUALIDADE: A ERA MODERNA E A PROD. LITE. CONTEMP.

Em 25 de abril de 1974, a população portuguesa saiu às ruas com o


intuito de comemorar o fim da ditadura. No mesmo ato, as vendedoras de flores
começaram a distribuir espontaneamente cravos aos soldados que participaram
do ato libertador, como forma de agradecimento a eles.

Foi justamente a Revolução dos Cravos um ponto de partida para a


literatura, pois passou a perseguir maior liberdade, já que esteve presa a um certo
tempo de repressão. “Apesar de não ter havido nos primeiros anos da democracia
muita abertura no campo literário, o que se percebeu foi uma grande renovação
da literatura de língua portuguesa e um certo silêncio” (LOURENÇO, 1984, p. 7),
que talvez contribuiu para o surgimento de novos nomes e temas. Nesse período,
pode-se citar como autores de destaque Vergílio Ferreira, com a obra Bolor (1964)
e Cardoso Pires, com o romance Balada da Praia dos Cães (1982).

Como a modernidade se assenta sobre a ideia de evolução, de progresso,


de continuidade do processo histórico, inicia o período contemporâneo na
literatura, que lê, reavalia, relê, reescreve, remonta, reinventa e atualiza os temas,
colocando-os em diálogo com a história, com diferentes temas do passado e do
presente, caracterizando principalmente a presença da intertextualidade.

A contemporaneidade é bastante contraditória, histórica e muito política.


Nas suas características, na contemporaneidade lida-se principalmente com
a valorização da visão particular sobre os temas e os objetos tratados e o fim
das narrativas totalizadoras baseadas em modelos que servem para criar obras
parecidas, seguidoras de regras estabelecidas previamente. Deste modo, deixam
de existir os consensos.

A partir disto, podemos afirmar que, na literatura contemporânea


portuguesa, passa-se à revisão do passado, à reelaboração das ideias de história,
adota-se uma maior fluidez na narrativa, o texto é marcado pela intertextualidade,
ocorre a quebra de gêneros textuais e a quebra também das fronteiras gramaticais,
há a falência das narrativas totalizadoras. Estas são características básicas para
compreender a ficção historiográfica, principal estilo da literatura contemporânea
portuguesa. E entre os principais expoentes deste período, podemos citar José
Saramago.

3 EXPOENTES DA POESIA E DA PROSA MODERNA E JOSÉ


SARAMAGO
Para uma questão de conhecimento, caro/a acadêmico/a, passamos a análise
de alguns autores que se destacaram na estética modernista e contemporânea, no
âmbito da literatura portuguesa. Para isto, selecionamos Mário de Sá Carneiro,
José Régio, Fernando Pessoa, Cardoso Pires, Florbela Espanca e José Saramago.
Tendo em vista uma questão mais didática, apresentamos os dados biográficos,
uma obra (ou excerto) e, quando possível, um comentário analítico.

217
UNIDADE 3 | DO ROMANTISMO À CONTEMPORANEIDADE: A ESTÉTICA E A PRODUÇÃO LITERÁRIA

MÁRIO DE SÁ CARNEIRO nasceu em 19 de maio de 1890, na capital


portuguesa, Lisboa. Sua mãe faleceu quando o menino contava apenas dois anos.
Em 1894, o pai iniciou uma vida de viagens, deixando o filho aos cuidados dos
avós e uma ama, na Quinta da Victória, em Camarate. Em 1900, passa ao liceu do
Carmo, iniciando-se, então, na escrita da poesia. Matriculou-se, mais tarde, em
1911, na Faculdade de Direito de Coimbra, mas não chegou sequer a concluir o
ano. No ano de 1912, foi a Paris com o intuito de estudar Direto na Sorbone, mas
na capital francesa dedicou-se sobretudo à vida de boêmia dos cafés e salas de
espetáculo. Em 1914, publicou a novela A Confissão de Lúcio e a poesia Dispersão.

No ano seguinte, durante uma estada em Lisboa, começou a projetar,


juntamente com outros colegas, especialmente Fernando Pessoa, a revista
literária Orpheu. Nesse mesmo ano, Sá Carneiro voltou para Paris, regressando
mais tarde a Portugal, mas com uma passagem por Barcelona, após a declaração
da guerra. Em julho de 1915, Sá Carneiro retornou à capital francesa e de lá
escreveu a Fernando Pessoa que o pai não mais subsidiaria o lançamento da
revista Orpheu nº 3. A essa altura, a situação financeira de Carneiro começa a
agravar-se, ao mesmo tempo em que suas crises sentimentais também começam a
tomar as piores proporções possíveis, o que o levou a escrever a Fernando Pessoa
várias vezes, dizendo-lhe que poderia suicidar-se.

O pior acontece em 26 de abril de 1916, num hotel de Nice, quando


Sá Carneiro é levado a cometer suicídio, com a ingestão de vários frascos de
estricnina. Ele contava então vinte e seis anos de idade. Tal suicídio foi descrito
por José Araújo, o qual fora chamado por Mário Sá Carneiro para testemunhar
a sua morte. Ele também tratou, antecipadamente, com Fernando Pessoa da
publicação da obra que dele houvesse, conforme lhe parecesse melhor.

Entre as suas obras, destacam-se os contos Princípio (1912) e Céu em Fogo


(1915), os poemas Amizade (1912), Dispersão e Indícios de Oiro (1914).

Dispersão

Perdi-me dentro de mim


porque eu era labirinto
e hoje, quando me sinto,
é com saudades de mim.

Passei pela minha vida


um astro doido a sonhar.
Na ânsia de ultrapassar,
nem dei pela minha vida...

Para mim é sempre ontem,


não tenho amanhã nem hoje:
o tempo que aos outros foge
cai sobre mim feito ontem.

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TÓPICO 3 | LIBERDADE DE CONCEPÇÃO E EXPRESSÃO E A ATUALIDADE: A ERA MODERNA E A PROD. LITE. CONTEMP.

(O domingo de Paris
lembra-me o desaparecido
que sentia comovido
os domingos de Paris:

Porque um domingo é família,


é bem-estar, é singeleza,
e os que olham a beleza
não têm bem-estar nem família.)

(As minhas grandes saudades


são o que nunca enlacei.
Ai, como eu tenho saudades
dos sonhos que não sonhei!...)

Eu sinto que a minha morte –


minha dispersão total –
existe lá longe, ao norte,
numa grande capital.

Desceu-me n’alma o crepúsculo;


eu fui alguém que passou.
Serei, mas já não me sou;
não vivo, durmo o crepúsculo.

Quando eu morrer batam em latas,


rompam aos saltos e aos pinotes,
façam estalar no ar os chicotes,
chamem palhaços e acrobatas!

Que o meu caixão vá sobre um burro


ajaezado à andaluza...
a um morto nada se recusa,
eu quero por força ir de burro!
(ABDALA JÚNIOR; PASCHOALIN, 1985, p. 68)

Na sua produção poética, Sá Carneiro imprimiu quanto pôde a sua


máxima individualidade. Exemplo disso é o trecho da poesia Dispersão, em que
ele, pelas vias do lirismo, repassa toda a sua angústia por estar longe da família
e planeja o próprio fim. Ele mostra-se muito sensível, tomado de um aguçado
delírio, por isso consegue desnudar-se como uma pessoa alheia à vida. O poeta,
muito novo ainda em idade, isola-se, volta-se para a própria alma na esperança
de chegar ao próprio eu. Nesse mergulho, ele consegue chegar ao ápice: a morte,
o suicídio.

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UNIDADE 3 | DO ROMANTISMO À CONTEMPORANEIDADE: A ESTÉTICA E A PRODUÇÃO LITERÁRIA

JOSÉ RÉGIO, pseudônimo de José Maria dos Reis Pereira, nasceu em Vila
do Conde, aos 17 de novembro de 1901. Licenciou-se em Letras na Universidade
de Coimbra e tornou-se professor do ensino secundário em Portalegre, onde
permaneceu mais de trinta anos, desempenhando, ao mesmo tempo, a criação
literária. Em Coimbra, foi um dos fundadores da revista Presença, com Adolfo
Casais Monteiro, João Gaspar Simões, entre outros. Aos 18 anos, foi para Coimbra
e cursou Filologia Românica (1925), com a tese As Correntes e As Individualidades
na Moderna Poesia Portuguesa.

FIGURA 47 – JOSÉ RÉGIO

FONTE: Machado (1996, p. 256)

Para além da sua colaboração assídua na revista Presença, deixou


também textos publicados na Seara Nova, Ler, O Comércio do Porto e o Diário
de Notícias. Só em 1967 retornou à Vila do Conde e faleceu ali, sua terra natal, a
22 de dezembro de 1969. Como escritor, José Régio dedicou-se ao romance, ao
teatro, à poesia e ao ensaio.

Na vida literária, estreou em 1926 com Poemas de Deus e do Diabo,


seguindo-se Biografia, em 1929. Também publicou o romance Cabra Cega, em
1934. Sua obra-prima é o livro de poesias Encruzilhadas de Deus (1936). Em 1941,
publica o livro de poesias Fado, em 1942, o romance O Príncipe com Orelhas de
Burro. Em 1945, lança Mas Deus É Grande, livro de poesias. Há também outras
obras de expressão na literatura portuguesa, mas as citadas são as principais.

José Régio, caro/a acadêmico/a, foi expoente dentro da Geração Presença


e foi o autor do Manifesto Literatura Viva, em 1927. E antes deste manifesto,
ele consegue já mostrar sua liberdade de expressão, tão pregada pela geração
Presença, através do poema Cântico Negro, em 1925.

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TÓPICO 3 | LIBERDADE DE CONCEPÇÃO E EXPRESSÃO E A ATUALIDADE: A ERA MODERNA E A PROD. LITE. CONTEMP.

CÂNTICO NEGRO

"Vem por aqui" – dizem-me alguns com olhos doces,


Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há nos meus olhos ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:


Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
– Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha Mãe.

Não, não vou por aí! Só vou por onde


Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde,


Por que me repetis: "Vem por aqui"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi


Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós


Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?
Corre nas vossas veias sangue velho dos avós.
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,


Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

221
UNIDADE 3 | DO ROMANTISMO À CONTEMPORANEIDADE: A ESTÉTICA E A PRODUÇÃO LITERÁRIA

Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.


Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!


Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou,
– Sei que não vou por aí!
(LISBOA, 1989, p. 56)
   
FERNANDO ANTÔNIO NOGUEIRA PESSOA nasceu em Lisboa,
aos 13 de junho de 1888. Era filho de um funcionário público muito culto que
morreu de tuberculose em 1893, deixando o filho que contava então cinco anos
de idade e a esposa. A mãe era oriunda de família açoriana, uma senhora de
esmerada educação. Após a morte do marido, casou novamente em fins de 1895
com o cônsul português na África do Sul, João Miguel Rosa. O casal instalou-
se em Durban (África do Sul), local em que Fernando estudou, mas prosseguiu
os estudos na Universidade do Cabo. Ao retornar a Lisboa, Pessoa dominava a
língua e a literatura inglesa melhor que a materna. 

A partir de 1908, dedicou-se à tradução de correspondência estrangeira de


várias casas comerciais, mas o tempo restante era dedicado à escrita e ao estudo
de filosofia (grega e alemã), ciências humanas e políticas, teosofia e literatura
moderna, que assim acrescentava mais conteúdo à sua formação, determinante
na sua personalidade.  Estudou os filósofos gregos e alemães, os simbolistas
franceses e a moderna poesia portuguesa: Antero de Quental, Cesário Verde etc.

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TÓPICO 3 | LIBERDADE DE CONCEPÇÃO E EXPRESSÃO E A ATUALIDADE: A ERA MODERNA E A PROD. LITE. CONTEMP.

FIGURA 48 – FERNANDO PESSOA

FONTE: Machado (1996, p. 361)

Pessoa era retraído, parecia disposto a viver isolado, sem compromissos,


mas estava sempre disponível para as aventuras de espírito: levava uma vida
relativamente apagada, frequentava um círculo restrito de amigos intelectuais,
acompanhando-os nos cafés da capital portuguesa. Envolveu-se nas discussões
literárias e inclusive as políticas da época.

Foi como ensaísta que primeiro se revelou, ao publicar, em 1912, na revista


A Águia, uma série de artigos sobre a nova poesia portuguesa. Desde cedo,
escreveu poesias em inglês, mas compôs poesias também em português. Foi um
dos introdutores,  juntamente com o restante grupo de Orpheu, do Modernismo
em Portugal. Em fevereiro de 1914, publicou na revista A Renascença a poesia
Pauis e “Ó sino da minha aldeia”. Em 1914 surgiram os principais heterônimos:
Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis.  Em 1915, com Mário de Sá
Carneiro, Luís de Montalvor e outros poetas e artistas plásticos lançou a revista
Orpheu.

Em 1920, ano em que a mãe ficou viúva e regressou a Portugal com os


irmãos, Fernando Pessoa foi viver de novo com a família. Iniciou, nesta época,
uma relação sentimental com Ophélia Queiroz, a qual foi interrompida logo em
seguida e retomada depois para terminar definitivamente em 1929. Este caso
amoroso é testemunhado pelas Cartas de Amor. Em 1925, a mãe de Pessoa vai a
óbito.

Em fins de 1934, publicou uma coletânea de poesias que celebra os heróis


e profetiza, em atitude de expectativa ansiosa, a renovada grandeza da pátria,
chamada Mensagem.  Nesta altura de sua vida, começam a acentuar-se os sintomas

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UNIDADE 3 | DO ROMANTISMO À CONTEMPORANEIDADE: A ESTÉTICA E A PRODUÇÃO LITERÁRIA

advindos do seu descontrole em relação à bebida alcoólica. Fernando Pessoa


morreu em 30 de novembro de 1935, no Hospital de São Luís dos Franceses, onde
foi internado com uma cólica hepática, causada provavelmente pelo consumo
excessivo de álcool.

Sua obra foi deixada, em grande parte, inédita, só conhecida por um


círculo restrito de amigos, principalmente os do grupo da revista Presença. Sabe-
se, no entanto que, em vida, Fernando Pessoa somente publicou versos em inglês
e alguma prosa em português. Escreveu English Poems I, II e III (1921), Poesias de
Fernando Pessoa (1942), Poesias de Álvaro de Campos (1944), Poesias de Alberto
Caeiro (1946), Odes de Ricardo Reis (1946) entre outras obras.

As atitudes experimentais, próprias dos movimentos vanguardistas do


século XX, permitiram que Fernando Pessoa criasse um sistema de heterônimos,
juntamente com os quais há toda uma sistemática de dramatização e máscaras
assumidas pelo autor, dependendo do momento, da temática do poema, do seu
temperamento. Os principais heterônimos dialogam entre si, correspondem-se e
indicam as contradições do outro.

A heteronímia não é uma novidade na literatura portuguesa, pois ela já


ocorreu com Eça de Queirós, Antero de Quental e Jaime Batalha Reis, os quais
adotaram um heterônimo coletivo de Fradique Mendes, em 1870. Com Pessoa,
essa prática apenas recebe notoriedade.

NOTA

Caro/a acadêmico/a, a palavra heterônimo origina-se do grego, heteronumos, e


significa “que difere de nome”, ou “nome diferente”. Portanto, é um nome imaginário por meio do
qual alguém, no caso um autor, se identifica como o autor de determinada obra. Diante disto, quanto
a Fernando Pessoa, este adotou diferentes nomes, em diferentes momentos, para assinar diferentes
criações literárias de sua autoria.

No que concerne aos heterônimos adotados por Pessoa, importante


lembrar que cada um destes adota uma biografia própria, possui personalidade
própria, data de nascimento e mapa astral elaborados pelo próprio Fernando
Pessoa. Cada um deles é dotado de profissão, de costumes diversos, modo de
vida, além de gostos e hábitos, ou ainda afinidades quanto à política ou filosofia.
No dizer de Massaud Moisés (2008, p. 334), eles “[...] constituem, por isso, meios
de conhecer a complexidade do real, impossível para uma única pessoa. O poeta
não poderia, obviamente, multiplicar-se em número igual aos seres viventes nas
três dimensões temporais”. Portanto, seria como que encontrar as visões-matrizes
da realidade, apenas alteradas no plano do indivíduo. De Fernando Pessoa, temos
alguns heterônimos mais conhecidos, entre os quais:

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TÓPICO 3 | LIBERDADE DE CONCEPÇÃO E EXPRESSÃO E A ATUALIDADE: A ERA MODERNA E A PROD. LITE. CONTEMP.

ALBERTO CAEIRO: considerado o mestre de todos os demais heterônimos, ele


teria nascido em Lisboa, e passou a maior parte da vida no campo. Não teve
profissão, nem passou pela escolarização, morreram-lhe cedo os pais. Viveu mais
recolhido em casa, com uns pequenos rendimentos, na companhia de uma tia-
avó, de idade avançada. Faleceu vitimado pela tuberculose. Com esse nome,
Pessoa publicou, em 1925, na Revista Athena, a poesia O Guardador de Rebanhos.

Sou um guardador de rebanhos.


O rebanho é os meus pensamentos
e os meus pensamentos são todos sensações.

Penso com os olhos e com os ouvidos


e com as mãos e os pés
e com o nariz e a boca.

Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la


e comer um fruto é saber-lhe o sentido.

Por isso, quando num dia de calor


me sinto triste de gozá-lo tanto,
e me deito ao comprido na erva,
e fecho os olhos quentes,
sinto todo meu corpo deitado na realidade,
sei a verdade e sou feliz.
(PESSOA, Fernando. Cancioneiro. Porto Alegre: L&PM, 2008. p. 5.)

Nesta poesia, Caeiro manifesta o desejo de não pensar enquanto apregoa


a importância de simplesmente viver harmonicamente com o estado de natureza,
em passiva contemplação do mundo e de acordo com a percepção imediata das
coisas. Tal percepção é possibilitada pelas sensações experimentadas e que lhe
permitiria a interação com a realidade.

RICARDO REIS: era um poeta de formação neoclássica, com influência pagã e


dotado de uma atitude contemplativa em relação à natureza e ao mundo, com
inspiração nos valores estéticos greco-latinos. Reis acreditava em todos os deuses
e julgava que nenhum deveria ser mais venerado que outro. A linguagem adotada
por Ricardo Reis era mais erudita, por isso a preferência pelas odes. Segundo
Pessoa expôs em dado momento, Ricardo Reis nasceu no Porto, foi educado em
escolas jesuíticas, era médico e vivia no Brasil desde 1919, tendo se expatriado por
adotar uma tendência monárquica. Ele cultuava musas como Lídia, Neera e Cloe.
Vejamos um texto de Ricardo Reis:

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UNIDADE 3 | DO ROMANTISMO À CONTEMPORANEIDADE: A ESTÉTICA E A PRODUÇÃO LITERÁRIA

Lídia

Lídia, ignoramos. Somos estrangeiros


onde quer que estejamos.
Lídia, ignoramos. Somos estrangeiros
onde quer que moremos. Tudo é alheio
nem fala língua nossa.
Façamos de nós mesmos o retiro
onde esconder-nos, tímidos do insulto
do tumulto do mundo.
Que quer o amor mais que não ser dos outros?
Como um segredo dito nos mistérios,
seja sacro por nosso.
(PESSOA, 2008, p. 18)

ÁLVARO DE CAMPOS: dedica-se a uma poética cheia de paradoxos e


ambivalente. Adota uma poesia profundamente desencantada e cética, mas
também às vezes entusiástica e futurista. Eleva o individualismo ao extremo.
Seus poemas adotam os versos livres, por isso, é um poeta moderno, “[...] que do
desespero extrai a própria razão de ser e não escapa da sua condição de homem
sujeito à máquina e à cegueira dos semelhantes, tudo transfundido numa revolta
a um só tempo atual e permanente, própria dos contestadores.” (MOISÉS, 2008,
p. 335). Conforme revela o próprio Fernando Pessoa, Campos teria nascido em
Tavira, em 1890, e teve uma educação vulgar de liceu, tendo sido, mais tarde,
enviado à Escócia para obter formação em engenharia mecânica inicialmente e,
mais tarde, naval. Numa viagem de férias ao Oriente, escreveu o poema Opiário.
Sem atividade como engenheiro, passou sua vida em Lisboa. A seguir, caro/a
acadêmico/a, veja parte da poesia Opiário e parte de uma das muitas poesias
famosas – Tabacaria.

Opiário

É antes do ópio que a minha alma é doente.


Sentir a vida convalesce e estiola
E eu vou buscar ao ópio que consola
Um Oriente ao oriente do Oriente.
(PESSOA, 2008, p. 16)

TABACARIA

Não sou nada.


Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

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TÓPICO 3 | LIBERDADE DE CONCEPÇÃO E EXPRESSÃO E A ATUALIDADE: A ERA MODERNA E A PROD. LITE. CONTEMP.

Janelas do meu quarto,


Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
[...]

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.


Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?
Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
[...]

Não, não creio em mim.


[...]

O mundo é para quem nasce para o conquistar


E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
[...]

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UNIDADE 3 | DO ROMANTISMO À CONTEMPORANEIDADE: A ESTÉTICA E A PRODUÇÃO LITERÁRIA

Serei sempre o que não nasceu para isso;


Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem
porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.
[...]

Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,


Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.
[...]

Meu coração é um balde despejado.


Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)
Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente
Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz. [...]
Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça

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TÓPICO 3 | LIBERDADE DE CONCEPÇÃO E EXPRESSÃO E A ATUALIDADE: A ERA MODERNA E A PROD. LITE. CONTEMP.

Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.


Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como
tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.
Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.
(PESSOA, 2008, p. 21)

BERNARDO SOARES: este é destacado como um semi-heterônimo, pois assim


o afirma o próprio Pessoa, “[...] não sendo a personalidade a minha, é, não
diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio
e afetividade." Este poeta, no caso Bernardo Soares, trabalha como ajudante
de guarda-livros (hoje seria auxiliar de quem faz registros contábeis) e sempre
morou sozinho em Lisboa. O modo de escrever de Soares é muito fragmentário
e carregado de aforismos (carregado de máximas e sentenças), com linguagem
apurada e bastante reflexiva. Este poeta teria publicado um único livro – O livro
do desassossego. A seguir, um fragmento deste livro.

O livro do desassossego

A literatura, que é a arte casada com o pensamento e a realização sem


a mácula da realidade, parece-me ser o fim para que deveria tender todo o
esforço humano, se fosse verdadeiramente humano, e não uma superfluidade
do animal. Creio que dizer uma coisa é conservar-lhe a virtude e tirar-lhe o
terror. Os campos são mais verdes no dizer-se do que no seu verdor. As flores,
se fossem descritas com frases que as definam no ar da imaginação, terão cores
de uma permanência que a vida celular não permite.

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UNIDADE 3 | DO ROMANTISMO À CONTEMPORANEIDADE: A ESTÉTICA E A PRODUÇÃO LITERÁRIA

Mover-se é viver, dizer-se é sobreviver. Não há nada de real na vida


que o não seja porque se descreveu bem. Os críticos da casa pequena soem
apontar que tal poema, longamente ritmado, não quer, afinal, dizer senão que
o dia está bom. Mas dizer que o dia está bom é difícil, e o dia bom ele mesmo
passa. Temos, pois, que conservar o dia bom em uma memória florida e prolixa,
e assim constelar de novas flores ou de novos astros os campos ou os céus da
exterioridade vazia e passageira.

Tudo é o que somos, e tudo será, para os que nos seguirem na


diversidade do tempo, conforme nós intensamente o houvermos imaginado,
isto é, o houvermos, com a imaginação metida no corpo, verdadeiramente sido.
Não creio que a história seja mais, em seu grande panorama desbotado, que um
decurso de interpretações, um consenso confuso de testemunhos distraídos.

O romancista é todos nós, e narramos quando vemos, porque ver é


complexo como tudo.

Tenho neste momento tantos pensamentos fundamentais, tantas coisas


verdadeiramente metafísicas que dizer, que me canso de repente, e decido não
escrever mais, não pensar mais, mas deixar que a febre de dizer me dê sono, e
eu faço festas, com os olhos fechados, como a um gato, a tudo quanto poderia
ter dito.

FONTE: Pessoa (2001, p. 98)

FIGURA 49 – QUARTO DE FERNANDO PESSOA, LOCALIZADO NA CASA FERNANDO PESSOA,


INAUGURADA EM 1993, EM CAMPO DO OURIQUE – LISBOA

FONTE: De Giovanni (2007, p. 234)

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TÓPICO 3 | LIBERDADE DE CONCEPÇÃO E EXPRESSÃO E A ATUALIDADE: A ERA MODERNA E A PROD. LITE. CONTEMP.

JOSÉ MARIA FERREIRA DE CASTRO nasceu em Oliveira de Azeméis,


em 24 de maio de 1898, de uma família pobre e camponesa. Enfrenta o falecimento
do pai aos oito anos, o que o faz emigrar para o Brasil em 1911, contando então
doze anos. Foi mandado muitos quilômetros para o interior da selva amazônica,
além da foz do Rio Amazonas, para trabalhar como seringueiro, e mais tarde
como empregado de armazém no seringal Paraíso. Permanece quase quatro
anos no Brasil e nesse tempo escreve contos e crônicas para jornais do Brasil e
de Portugal. Com catorze anos, escreve o seu primeiro romance – Criminoso por
Ambição.

FIGURA 50 – FERREIRA DE CASTRO

FONTE: Machado (1996, p. 384)

Distinguiu-se também como jornalista, colaborando em jornais e revistas


do Brasil. Ferreira de Castro começa verdadeiramente a se notabilizar por seus
artigos sobre literatura, notícias sobre a colônia portuguesa no Brasil, artigos de
reflexão moral, palestras, crônicas sobre o seu país, sobre o Brasil, sobre política.
Nos seus textos, coloca-se ao lado dos indivíduos explorados e vexados e sem
liberdade. Decide regressar a Portugal em 9 de setembro de 1919, por causa das
saudades da pátria, dispondo de pouquíssimo dinheiro no bolso.

Novamente em Lisboa, faz carreira no jornalismo e nas letras. O êxito


obtido no Pará é totalmente desconsiderado em Portugal, por isso vive períodos
de total miséria e passa muito tempo sem comer. Escrevia três a quatro artigos
por dia e uma novela diária para o jornal A Pátria. Em 1925, é aceito como sócio
do Sindicato dos Profissionais da Imprensa de Lisboa. No ano seguinte, é eleito
presidente da direção, em cujo cargo instituiu um prêmio literário, plano este
que foi aprovado por unanimidade. Em 1934, abandonou o jornalismo, devido à
censura nos tempos da ditadura. No ano de 1928, publica o romance Emigrantes.
No ano seguinte, lança outro romance, A Selva. Estas obras fizeram crescer o seu
prestígio para os anos vindouros, até a sua morte, ocorrida em 29 de junho de
1974, na cidade do Porto.

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UNIDADE 3 | DO ROMANTISMO À CONTEMPORANEIDADE: A ESTÉTICA E A PRODUÇÃO LITERÁRIA

A seguir, um excerto do romance A Selva, o qual trata de um jovem


português, Alberto, emigrado para o Brasil, a Belém, do Pará. Este, não dispondo
de emprego nos primeiros tempos de estada no novo país, termina por empregar-
se em um seringal, Paraíso, nas imediações do Rio Madeira. Há um capítulo
que trata exclusivamente da viagem. No seringal Paraíso, vive a angústia da
imensidão da floresta amazônica e do sexo. Através de mil peripécias, os dias
passam arrastados. Finalmente, chega a oportunidade de regressar à civilização,
depois de um dos empregados ter ateado fogo ao seringal.

A Selva

A subida lenta, quinze dias bem puxados de Belém a Paraíso,


impacientava Alberto, moroso em adaptar-se ao meio.

O Justo Chermont ora enfiava pelos estreitos paranás, tão ocultos nas
margens que o barco dir-se-ia entrar na própria floresta, ora despachava para
o céu os rolos do seu fumo em pleno centro do rio. E, então, se os olhos se
dirigiam para a frente, a saída tornava-se tão misteriosa como o fora a entrada
– tudo selva, selva por toda parte, fechando o horizonte na primeira curva
do monstro líquido. As suas pequenas veias que davam passagem a grandes
transatlânticos e que na geografia europeia figurariam como rios primordiais,
só se revelavam plenamente às pupilas mestras dos práticos – sábios em
conhecer a assombrosa trama fluvial, embora ela principiasse em Salinas, que
se debruçava sobre o Atlântico e fosse terminar, para a navegação brasileira,
nas fronteiras do Peru ou da Bolívia, após quarenta dias de viagem. Os olhos
profanos não encontravam referência naquelas margens sempre iguais, na
vegetação que se repetia, senão na espécie, no entrançado, despersonalizando
o indivíduo e fazendo valer apenas o conjunto. Cada curva se parecia com
a outra curva, cada reta com a reta antecedente; onde não existia barraca ou
cidade, o espírito hesitava, tornava-se perplexo e ia formulando a pergunta
íntima: já passei aqui ou é a primeira vez que passo aqui?

FONTE: Moisés (1971, p. 243)

FLORBELA ESPANCA, cujo nome de nascimento era Flor Bela de Alma


da Conceição Espanca, nasceu em Vila Viçosa, Alentejo, a 8 de dezembro de
1894, filha de João Maria Espanca e de Antônia da Conceição Lobo. João Maria
ainda teve mais um filho com esta segunda esposa, Apeles. Mais tarde, Antônia
abandona João Maria, quando então os filhos passam a viver com o pai e sua
esposa, que os adota. O pai de Florbela foi um dos introdutores do cinema em
Portugal, o que o levará mais tarde a viver em Évora para ali abrir um estúdio
fotográfico. Este fato desperta em Florbela grande paixão pela fotografia, vindo a
tornar-se a modelo favorita do pai.

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TÓPICO 3 | LIBERDADE DE CONCEPÇÃO E EXPRESSÃO E A ATUALIDADE: A ERA MODERNA E A PROD. LITE. CONTEMP.

FIGURA 51 – FLORBELA ESPANCA

FONTE: Machado (1996, p. 89)

No ano de 1903, Florbela lança seu primeiro poema, aos sete anos de idade
– A vida e a morte – demonstrando precocemente sua tendência a temas mais
escusos e melancólicos. Já em 1908 falece a mãe de Florbela, Antônia Conceição,
e nesse mesmo ano Florbela ingressa no Liceu e permanece até 1912. Ela foi uma
das primeiras mulheres a ingressar no curso secundário. Este fato não era bem
visto pela sociedade, como também pelos professores do Liceu.

Aos 19 anos, no ano de 1913, casa-se com Alberto Moutinho, seu colega de
estudos, e passa a viver em Redondo até 1915, quando então escolhem a cidade de
Évora para viver, movidos também por dificuldades financeiras. Decide retornar
a Redondo no ano de 1916, quando então Florbela reúne uma seleção de poemas
de sua produção (88 poemas e três contos) e lança o projeto Trocando Olhares.

Retornando novamente a Évora no ano de 1917, Florbela completa o


11º ano do curso de Letras e logo em seguida ingressa no curso de Direito da
Faculdade de Lisboa. Neste tempo, sofre um aborto involuntário, quando então
se muda para Quelves e demonstra os primeiros sintomas de neurose, o que
contribui para que seu casamento chegue ao fim.

No ano de 1919, lança seu primeiro livro – Livro das Mágoas – o qual
é bastante aceito e esgota-se rapidamente. Logo em seguida, lança o Livro de
Sóror Saudade, publicado em 1923. Após o segundo aborto, separa-se também
do segundo casamento, com Antônio Guimarães. No ano de 1925, Florbela casa-
se com Mário Lage, no civil e no religioso, e passa a viver com ele em Esmoriz
primeiramente, e depois em Porto. Em 1927, compõe com D. Nuno os poemas
que fazem parte da obra Charneca em Flor.

Nesse mesmo ano, morre o irmão de Florbela – Apeles – motivo pelo qual
ela lança As Máscaras de Destino. Este fato também agrava a doença de Florbela,
o que fará com que nunca mais seja a mesma. Já em 2 de dezembro de 1930,

233
UNIDADE 3 | DO ROMANTISMO À CONTEMPORANEIDADE: A ESTÉTICA E A PRODUÇÃO LITERÁRIA

Florbela encerra seu Diário do Último Ano com a seguinte frase “… e não haver
gestos novos nem palavras novas.” Seu falecimento ocorre às duas horas do dia 8
de dezembro, dia do seu aniversário, levada ao suicídio na cidade de Matosinhos,
por ingestão de dois frascos de Veronal.

A seguir, caro/a acadêmico/a, você vai conhecer um soneto de Florbela


Espanca, acompanhado de um pequeno estudo:

Eu
Eu sou a que no mundo anda perdida,
eu sou a que na vida não tem norte,
sou a irmã do Sonho, e desta sorte
sou a crucificada… a dolorida…
Sombra de névoa tênue e esvaecida,
e que o destino amargo, triste e forte,
impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida!…
Sou aquela que passa e ninguém vê…
sou a que chamam triste sem o ser…
sou a que chora sem saber por que…
Sou talvez a visão que Alguém sonhou,
alguém que veio ao mundo pra me ver
e que nunca na vida me encontrou!
(TUFANO, 1981, p. 218)

Este soneto não é o primeiro que ela lança para o Livro de Mágoas, mas
constitui parte da obra, embora seja uma boa obra autobiográfica. Por meio deste
poema, ela apresenta a dor, a incompreensão sofrida e que talvez não percebesse.
Ela se apresenta como desnorteada, sem rumo para a sua vida, com o desejo
de se evadir e ligada com o irreal. Os adjetivos escolhidos para caracterizar-se
psicologicamente são crucificada e dolorida. Ela se declara crucificada por causa
da incompreensão, talvez pelos maridos (ou não só por eles) e dolorida por causa
da tristeza que trazia dentro de si. Num futuro próximo, será a negridão débil
e desfeita que lhe dará destino último, mais forte, triste e amargo, a sua morte
trágica.
 
O primeiro terceto mostra a falta de atenção, a discriminação, o estereótipo
por causa de muitos pensarem que ela estava sempre triste, o que a leva muitas
vezes a chorar. Quanto ao amor, este é definido como uma vida cheia de amores,
mas que talvez nenhum deles tivesse sido o certo.   

JOSÉ SARAMAGO era filho e neto de camponeses. Nasceu na aldeia


de Azinhaga, na província do Ribatejo, no dia 16 de novembro de 1922. Quando
foi registrá-lo, o pai pretendia que se chamasse apenas José da Silva, mas como
seu apelido na aldeia era Saramago, a pessoa encarregada de registrá-lo deu-lhe
o apelido do pai. Por esse motivo, José da Silva veio a chamar-se Saramago. Este

234
TÓPICO 3 | LIBERDADE DE CONCEPÇÃO E EXPRESSÃO E A ATUALIDADE: A ERA MODERNA E A PROD. LITE. CONTEMP.

fato foi descoberto quando a matrícula de José Saramago da Silva na escola foi
rejeitada porque não tinha o mesmo nome do pai. O pai de Saramago teve, então,
de mudar de nome, acrescentando Saramago para que seu filho pudesse estudar.

Aos dois anos de idade, Saramago acompanhou a família a Lisboa, mas


nunca se distanciou definitivamente da aldeia de Azinhaga. Aos doze anos, em
vista de problemas econômicos, Saramago teve que transferir-se para uma escola
técnica. Foi com onze anos de idade que recebeu seu primeiro livro O Mistério do
Moinho, o que o fez adquirir gosto pela leitura, a ponto de, aos dezoito anos, ser
um frequentador assíduo da Biblioteca do Palácio das Galveias, na qual lê tudo
que pode.

FIGURA 52 – JOSÉ SARAMAGO

FONTE: De Giovanni (2007, p. 165)

Até os 25 anos, quando publicou seu primeiro romance – Terra do Pecado


– Saramago trabalhou como serralheiro, desenhista, funcionário da saúde e da
previdência social. No ano de 1949, Saramago escreveu Claraboia, que foi recusado
pela editora. Ele só passa a se dedicar à literatura em definitivo no ano de 1959,
quando assume o lugar de Nataniel Costa como editor literário. O segundo livro
publicado é Os Poemas Possíveis. E aí começa um tempo de silêncio literário, que
vai até 1966, que é justificado por Saramago como não ter o que dizer.

O livro seguinte é Provavelmente Alegria, o qual é lançado em 1970, dois


anos antes do seu ingresso no jornalismo, o que lhe rende outro livro, A Bagagem
do Viajante, em 1973. A sua mudança começa a ocorrer em 1975, quando é
nomeado diretor adjunto do Diário de Notícias, e demitido mais tarde. Decide
então por uma mudança no curso de sua vida: somente escrever. No final do ano
de 1975 publica O Ano de 1993, seu último livro de poesias.

235
UNIDADE 3 | DO ROMANTISMO À CONTEMPORANEIDADE: A ESTÉTICA E A PRODUÇÃO LITERÁRIA

A partir dos 55 anos, a produção literária de Saramago cresce em


grande escala, mas é em 1980 que ele dá a maior guinada da sua vida literária,
com a publicação de Levantado do Chão. Esse livro marca o início do estilo
saramaguiano, pois trata-se de uma escrita com longos parágrafos e uma forma
diferente de construir os diálogos, com a eliminação dos travessões, o que atribui
uma maior dinâmica ao texto.

Já em 1991, Saramago lançou sua obra que gerou a maior polêmica: O


Evangelho Segundo Jesus Cristo, indicado para concorrer ao Prêmio Literário
Europeu, mas o governo português vetou a sua candidatura, por considerar que
este livro semeava a desunião entre o povo e não representava convenientemente
Portugal. Magoado por ter censurada sua obra, Saramago deixa Portugal e se
muda para Lanzarote, nas ilhas Canárias, no ano de 1993. Mas no ano de 1998, o
processo criativo de Saramago é mundialmente reconhecido por receber o Prêmio
Nobel de Literatura. Seu último livro lançado foi Caim, no ano de 2009. Sua morte
se dá em 23 de junho de 2010, o que constitui uma grande perda para a cultura
literária portuguesa.

Caro/a acadêmico/a, para o conhecimento da obra de Saramago, passamos


alguns comentários do livro O Evangelho Segundo Jesus Cristo, o qual, como
dissemos na biografia do autor, gerou certa polêmica:

Logo no início do romance, mais precisamente no segundo capítulo, para


afirmar a humanidade do seu Jesus, Saramago nega a concepção deste por obra
do Espírito Santo no ventre virginal de Maria. No romance, Jesus é concebido
como todos os seres humanos. Ele é fruto da relação sexual entre José e Maria:

Sem pronunciar palavra, José aproximou-se (de Maria) e afastou


devagar o lençol que a cobria. Ela desviou os olhos, soergueu um
pouco a parte inferior da túnica, mas só acabou de puxá-la para cima, à
altura do ventre, quando ele já vinha debruçando e procedia do mesmo
modo com sua própria túnica... Deus, que está em toda parte, estava
ali, mas, sendo aquilo que é, um puro espírito, não podia ver como a
pele de um tocava a pele do outro, como a carne dele penetrou a carne
dela, criadas uma e outra para isso mesmo, e, provavelmente, já nem
lá se encontraria quando a semente sagrada de José se derramou no
sagrado interior de Maria. (SARAMAGO, 2002).

No entender de Saramago, a concepção de Jesus não tem nenhuma


influência divina. A origem da vida de Jesus está na relação entre José e Maria e na
fertilidade de ambos. Sem a relação entre os dois a vida de Jesus seria impossível
e inconcebível. Por isso, a origem de Jesus Cristo é puramente humana, sem nada
possuir de divino. O nascimento de Jesus é visto como um acontecimento comum
e normal. Para Saramago, “[...] o filho de José e de Maria nasceu como todos os
filhos dos homens, sujo do sangue de sua mãe, viscoso das suas mucosidades e
sofrendo em silêncio.”

236
TÓPICO 3 | LIBERDADE DE CONCEPÇÃO E EXPRESSÃO E A ATUALIDADE: A ERA MODERNA E A PROD. LITE. CONTEMP.

Ao construir a identidade humana de Jesus, Saramago deixa claro também


o fato de que nada ele teria apresentado de prodigioso, de supra-humano. Na sua
infância, foi igual a todas as demais crianças de sua época. Ele apresenta, no livro,
Maria, sua mãe, amamentando o filho e todo o prazer do menino ao sorver o leite
materno. Mais do que isso, Saramago comenta que, quando o menino estiver
crescido, certamente não mais se lembrará desta terna experiência:

[...] abrindo a túnica, [Maria] deu-lhe de mamar, primeiro o seio


esquerdo, supõe-se que por estar mais perto do coração... Jesus,
dizíamos, suspirou com deliciada satisfação, sentindo na face o suave
peso do seio, a humildade da pele ao contato doutra pele. A boca
enche-se-lhe do sabor adocicado do leite materno... Crescendo, irá
esquecer estas sensações primitivas, a ponto de não poder imaginar
que as tivesse experimentado. É assim com todos nós, onde quer que
tenhamos nascido, de mulher sempre, e seja qual for o destino que nos
espera. (SARAMAGO, 2002).

Sobre a sua semelhança com as demais crianças, Saramago aponta


ainda que o menino Jesus, não diferentemente das crianças humanas comuns,
engatinhava, chorava e babava, demonstrando nada ter de divino, mas somente
ser filho de Maria de Nazaré:

Maria olha o seu primogênito, que por ali anda engatinhando como
fazem todos os crios humanos, na sua idade, olha-o e procura nele uma
marca distintiva, um sinal, uma estrela na testa, um sexto dedo na mão,
e não vê mais do que uma criança igual às outras, baba-se, suja-se e
chora como elas, a única diferença é ser seu filho. (SARAMAGO, 2002).

O Jesus criado por Saramago na sua obra apresenta uma infância normal,
é um menino semelhante a todos os outros, pois vive com os pais, brinca com os
seus irmãos, é instruído dentro da religião judaica, trabalha e aprende o ofício do
pai. Este relato contraria alguns relatos fantasiosos dos evangelhos apócrifos, aos
quais, certamente, Saramago teve acesso e tomou conhecimento. Trata-se de um
menino com uma boa memória e sabe argumentar com lógica.

Entre os pontos geradores de grande polêmica nesta obra é a questão do


sexo e sua relação com Jesus. Saramago não se esquece de explorar este fato.
Com a intenção de revelar uma verdadeira semelhança do seu Jesus com os
homens, ele destaca Jesus enfrentando a força dos seus instintos naturais. No
romance, encontramos referências como a de Jesus ficar excitado e que pensa em
se masturbar só por imaginar uma mulher desnuda tomando banho num rio.
Para alguns cristãos mais piedosos, isto é motivo de desespero e escândalo:

O corpo de Jesus deu um sinal. Inchou no que tinha entre as pernas,


como acontece a todos os homens e animais, o sangue correu veloz a
um mesmo sítio, a ponto de lhe secarem subitamente as feridas, Senhor,
que forte é esse corpo, mas Jesus não foi dali à procura da mulher,
e as suas mãos repeliram as mãos da tentação violenta da carne [...]
Pelo caminho não vem ninguém, Jesus olha ao redor, suspira, busca
um recanto escondido e para lá se encaminha, mas de súbito para,
lembrou-se a tempo de que o Senhor tirou a vida a Onan por derramar
o seu sêmen no chão. (SARAMAGO, 2002).

237
UNIDADE 3 | DO ROMANTISMO À CONTEMPORANEIDADE: A ESTÉTICA E A PRODUÇÃO LITERÁRIA

A excitação sexual de Jesus não constitui uma ocorrência única no relato


de Saramago. Fato semelhante é mencionado quando Jesus é socorrido por Maria
Madalena por causa de um ferimento no pé. Madalena encosta em Jesus e o
abraça para ajudá-lo a caminhar. Isto o deixa excitado, o que revela o despertar
da masculinidade de Jesus diante da presença feminina. Outro relato também
mostra Jesus na sua primeira relação sexual com uma mulher, Maria Madalena.
Esta narração é mostrada com uma beleza sem par, parecendo mostrar que Jesus é
realmente um homem que assume aquilo que é próprio e normal da sua condição
humana – o amor por uma mulher ou o sexo. Ao mesmo tempo em que Saramago
mostra todos estes fatos, não os vulgariza. Ele os apresenta de uma forma muito
humanizadora.

A relação entre os dois não fica somente no plano físico, pois é permeada
de afetos, de carícias e, enfim, de amor. Tanto é que depois disso Maria Madalena
deixa de ser prostituta e passa a assumir um compromisso de amor e fidelidade
com Jesus, e este com ela. Saramago não se esquece de apresentar o seu Jesus
como alguém que experimenta tensões e conflitos no relacionamento, de forma
especial com sua família e, sobretudo, com sua mãe.

Depois da morte de José, seu pai, Jesus começa a se revelar como um


menino com sentimentos de frieza para com sua mãe até chegar à total indiferença
com relação a ela. A tensão no relacionamento com Maria de Nazaré e seus irmãos
faz de Jesus uma pessoa totalmente amargurada, carente de amor e de aceitação.
Saramago se vale disso para mostrar que Jesus é tão humano quanto os outros,
pois é suscetível a sentimentos bons e sentimentos negativos. Saramago mostra
isso depois que este tem uma conversa tensa com sua mãe:

[...] Jesus, de joelhos, gritou, e todo o seu corpo lhe ardia como se
estivesse a suar sangue, Pai, meu pai, por que me abandonastes, que
isto era o que o pobre rapaz sentia abandono, desespero, a solidão
infinda de um outro deserto, nem pai, nem mãe, nem irmãos, um
caminho morto de principiado. (SARAMAGO, 2002).

Esse sentimento de solidão e de abandono aparece como uma constante


na vida desse Jesus. Em todo romance, Saramago comenta várias vezes a presença
desses sentimentos em Jesus. E o interessante é que esses comentários são feitos
depois do encontro de Jesus com Deus, o que revela que Deus não é uma presença
paterna e amiga para Jesus.

De um modo geral, em O Evangelho Segundo Jesus Cristo, apesar das


polêmicas, José Saramago acentua as características humanas em Jesus para
mostrar que o seu Jesus é como uma pessoa normal e imperfeita como todas as
outras da face da terra. O desejo do autor poderia ser o de mostrar que seu Jesus
é humano mesmo; é uma pessoa chamada a se construir.

238
TÓPICO 3 | LIBERDADE DE CONCEPÇÃO E EXPRESSÃO E A ATUALIDADE: A ERA MODERNA E A PROD. LITE. CONTEMP.

Caro/a acadêmico/a, a literatura portuguesa modernista e contemporânea


foi muito expressiva dentro do território português, como também o foi muito
além das terras lusitanas. Foi traduzida e chegou às diferentes nações, compondo
inclusive os cânones literários mundiais. Ao ultrapassar os limites de Portugal,
nas diferentes colônias africanas e asiáticas, também temos obras de expressão,
conforme veremos no item a seguir.

4 MANIFESTAÇÕES DA LITERATURA PORTUGUESA ALÉM-


PORTUGAL
Os países outrora pertencentes a Portugal, localizados além-mar, ou
em palavras mais claras, as antigas colônias portuguesas, entre estas Angola,
Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e Timor Leste são
territórios de língua portuguesa que hoje se tornaram independentes.

Tais países enfrentaram no passado grandes dificuldades, principalmente


com a questão expansionista, em que muitos deles constituíram entrepostos para
o comércio de escravos, como é o caso de Cabo Verde e São Tomé e Príncipe. Mas,
com a chegada da independência das colônias, já no início de 1975, o trabalho
começa a voltar-se para a criação de uma identidade nacional, com a criação do
sentimento de nação, o estabelecimento de uma língua nacional.

E para a sustentação da língua comum e a criação de uma cultura nacional,


importante fator constitui a literatura. No caso específico dos países africanos,
muitas pessoas que participaram dos movimentos de independência foram as
primeiras a assentar registros sobre os acontecimentos, ou valeram-se destes
temas libertários, episódios dolorosos, reflexões sobre a identidade da nação
independente a ser construída como temas literários.

No caso de países como Angola, Moçambique e Guiné-Bissau, estabelecer


uma língua nacional torna-se um pouco difícil, tendo em vista a coexistência
de muitas línguas minoritárias e tribais regionalizadas. Mas, ainda assim, o
estabelecimento de uma identidade nacional comum passa pela questão de uma
língua comum.

Politicamente, as novas literaturas ligam-se inicialmente aos movimentos
negros de libertação. Conforme revelam Abdala Júnior e Paschoalin (1985, p.
188), “[...] a evolução dessa perspectiva política faz-se no sentido da luta social
de libertação, independentemente da raça: da negritude vai-se à africanidade”.

No caso de Angola, as novas literaturas contam com precursores de


grande importância, como é o caso de Alfredo Toni, autor da novela Nga Muturi
(Senhora Viúva). Este autor surgiu na metade do século XX, quando começava a
se formar no território angolano uma classe burguesa.

239
UNIDADE 3 | DO ROMANTISMO À CONTEMPORANEIDADE: A ESTÉTICA E A PRODUÇÃO LITERÁRIA

Já dentro da moderna literatura angolana, importante citar-se Castro


Soromenho, o qual é nascido em Moçambique, viveu em Angola, trabalhou em
Portugal e morreu no Brasil. Suas produções mais notáveis são Terra morta (1949),
Viragem (1957) e Chaga (1970).

Já entre as maiores expressões de Cabo Verde, importante citarmos Jorge


Barbosa, Osvaldo Alcântara, Manuel Lopes (O galo que cantou na baía, Os
flagelados do vento leste), Aguinaldo Fonseca, Gabriel Mariano entre outros.

Entre os ficcionistas de renome, há que se citar Manuel Ferreira, com as


obras Morna, Morabeza, Hora di bai, Terra trazida e Voz de prisão. Sua obra
é bastante significativa no sentido de que aproveita os registros populares da
linguagem e também pela temática adotada.

Dentro da literatura angolana também temos autores de renome, a exemplo


de Agostinho Neto, principal poeta do país, autor de Sagrada esperança. Entre os
mais modernos, está Viriato da Cruz, autor de Sô Santo. A seguir, transcrevemos
um trecho da poesia Mussunda Amigo, de Agostinho Neto:

Para aqui estou eu


Mussunda amigo
para aqui estou eu.

Contigo
com a firme vitória da tua alegria
e da tua consciência.

O iô kalunga ua um bangele!
O iô kalunga ua um bangele-lé-lelé...

Lembras-te?

Da tristeza daqueles tempos


em que íamos
comprar mangas
e lastimar o destino
das mulheres da Funda
dos nossos cantos de lamento
dos nossos desesperos.

E das nuvens dos nossos olhos


lembras-te?

240
TÓPICO 3 | LIBERDADE DE CONCEPÇÃO E EXPRESSÃO E A ATUALIDADE: A ERA MODERNA E A PROD. LITE. CONTEMP.

Para aqui estou eu


Mussunda amigo.
A vida a ti devo
à mesma dedicação ao mesmo amor
com que me salivaste do abraço
da jiboia.

À tua força
que transforma os destinos dos homens
a ti Mussunda amigo
a ti devo a vida.

E escrevo versos que não entendes


compreendes a minha angústia?
(VENÂNCIO, 1992, p. 87)

No território moçambicano, a grande expressão literária é o poeta José


Craveirinha, que é autor de Chigubo, Cântico a un dio de Catrame, Keringana
Ua Karingana e Cela 1. No que diz respeito à prosa de Moçambique, há que se
valorizar o nome de Luís Bernardo Honwana, autor do romance Nós matamos
o cão Tinhoso. Orlando Mendes, autor de Portagem, Ascênio de Freitas, que
escreveu Ontem era a madrugada, e ainda Carneiro Gonçalves, com a publicação
de contos e crônicas.

Quanto às publicações literárias mais significativas de São Tomé e Príncipe,
merecem destaque as poesias. Entre os poetas, figuram Francisco José Terneiro,
que publicou Ilha do nome santo e Obra poética. Outros poetas de destaque são
Alda do Espírito Santo, Maria Manuela da Conceição Margarido e Antônio Alves
Tomaz Medeiros.

Na atualidade, a maior expressão da literatura africana é Mia Couto,


cujo principal livro é Terra Sonâmbula, publicado em 1992. O tema desta obra
é a guerra civil moçambicana e o fim da guerra pela independência, a partir das
quais retrata o terror dos campos de refugiados.

Mia Couto publicou cerca de dezesseis livros, entre romances, crônicas


e contos. Por causa de suas obras, no ano de 1999, recebeu o prêmio Vergílio
Ferreira, em 2001 o prêmio literário Mário Antônio, em 2007 ganhou o prêmio
União Latina de Literaturas Românicas e o prêmio Passo Fundo Zaffari e Bourbon
de Literatura, na Jornada Nacional de Literatura. Além disso, ele é membro da
Academia Brasileira de Letras.

241
UNIDADE 3 | DO ROMANTISMO À CONTEMPORANEIDADE: A ESTÉTICA E A PRODUÇÃO LITERÁRIA

UNI

Caro/a acadêmico/a, para complementar seus estudos acerca da literatura


africana de expressão portuguesa, oferecemos a seguir uma leitura complementar.

242
TÓPICO 3 | LIBERDADE DE CONCEPÇÃO E EXPRESSÃO E A ATUALIDADE: A ERA MODERNA E A PROD. LITE. CONTEMP.

LEITURA COMPLEMENTAR

VOZES DA ÁFRICA
Antônio Edson

A Copa do Mundo mostrou ao planeta uma África capaz de vencer


desafios, globalizada e sujeita aos prós e contras dessa opção. Incluem-se ali,
como exemplos, os conflitos entre as tradições tribalistas e a modernidade. Esses
e outros ângulos da inserção africana no Ocidente podem ser aferidos através
da fortuna literária do continente que, para sorte nossa, em boa parte, é escrita
em português. Sim, o idioma do brasileiro Milton Hatoum e do português José
Saramago é o mesmo da moçambicana Paulina Chiziane, do angolano Pepetela e
do cabo-verdiano Armênio Vieira. Trata-se, ainda, de uma língua falada por nada
menos de 37 milhões de habitantes dos seis países do continente africano [...] que
tiveram em Portugal sua matriz europeia.

Há razões de sobra para lermos o que escrevem os africanos. “Conhecer
as literaturas produzidas em países africanos é fundamental para podermos
compreender melhor nossas raízes, influências e interferências”, garante Suely
Fadul Flory, livre-docente em Teoria Literária na Universidade de Marília.

Na conversa a seguir, a professora Suely fala sobre o que os brasileiros
têm a aprender com essa literatura-irmã:

1) As literaturas de Moçambique, Angola, Cabo Verde e dos outros países


africanos lusófonos estão em fase de formação de sua identidade nacional, com
predominância de sua influência da oralidade e do aproveitamento dos mitos,
lendas e folclores. O interessnte é que isso também marcou bastante a literatura
brasileira dos séculos XVIII e XIX. [...] Já em relação às afinidades entre as
literaturas produzidas pelos países africanos e a nossa, essas são temáticas.
Lá também se abordam assuntos como seca, fome, opressão econômica,
perseguições políticas, preconceito racial, formação da identidade, mitos,
lendas e sincretismo religioso.

2) Em Angola e Moçambique, a literatura de resistência e a luta colonial é um


tema predominante. Há nisso um ponto comum com a nossa história, porque
a literatura brasileira tem também uma forte identidade com as lutas pela
independência, com a busca de sua definição nacional e com estudos regionais
de literatura.

3) A influência de autores brasileiros é muito marcante nas literaturas de língua


portuguesa produzidas nos países africanos. A literatura cabo-verdiana,
para ficar em apenas um exemplo, denota uma forte influência do romance
brasileiro dos anos 1930 a 1945, com autores como Graciliano Ramos, José
Lins do Rego, Jorge Amado e outros que também exploraram as temáticas dos
flagelados pela seca e pela miséria. Os personagens estão sempre partindo em

243
UNIDADE 3 | DO ROMANTISMO À CONTEMPORANEIDADE: A ESTÉTICA E A PRODUÇÃO LITERÁRIA

busca da sobrevivência e vivem sob a exploração do homem pelo homem. O


poeta Manuel Bandeira é outro bom exemplo. Com sua poética, ele influenciou
toda uma geração de autores africanos de diferentes países. Já as literaturas de
Angola e Moçambique, mais recentemente, revelam uma influência de autores
mais contemporâneos como Guimarães Rosa e Rubem Fonseca. [...]

4) As literaturas dos países africanos de língua portuguesa têm como um dos


seus leitmotivs, ou como uma de suas temáticas preponderantes, exatamente
os conflitos existentes entre a tradição e a modernidade, entre metrópole e
colônia. Enfim, entre os valores do tribalismo das raízes africanas e os valores
do ocidente, como a globalização e a integração. Esses pontos emergem da
grande maioria das obras e de seus autores. Esses conflitos, uma vez discutidos
e divulgados pela literatura, caminham para soluções que, embora nunca
sejam definitivas, poderão contribuir para a paz e a harmonia entre os povos
irmãos. Outra contribuição da cultura africana à cultura ocidental é a sua
oralidade. A literatura própria, ou mesmo autóctone, dos países africanos é a
que chamamos de oratura ou literatura oral das comunidades tribais africanas.
O colonialismo europeu oferece a ela o modelo e o padrão de uma literatura
oficial, contribuindo com a cultura teórica e a vasta bibliografia de suas
literaturas centenárias, dando oportunidade para a divulgação e distribuição
de autores africanos em nível internacional.

FONTE: Adaptado de: EDSON, Antônio. Vozes d’ África. Revista Família Cristã, São Paulo, n.
895, p. 6-8, jun. 2010.

244
RESUMO DO TÓPICO 3

Caro/a acadêmico/a, no presente tópico, você teve oportunidade de


estudar aspectos importantes relacionados à Literatura Portuguesa, os quais
revemos, resumidamente, a seguir:

• O início do século XX marca o início de uma nova época artístico-literária em


Portugal – o Modernismo – o qual concebia a arte sob um novo olhar estético: a
consciência de modernidade, que já assentava suas marcas nas transformações
sociais, políticas e econômicas, que estavam ocorrendo gradativamente.

• O movimento modernista português começa a surgir por volta de 1910,


cuja época era marcada por um tempo de transição e também de uma certa
instabilidade política, já que Portugal estava em processo de mudança quanto
ao regime de governo, transitando do regime monárquico para o republicano.

• A revista Orpheu contava com a colaboração de Mário de Sá Carneiro, Fernando


Pessoa, que também colaborou na revista A Águia, Luís de Montalvor, Almada
Negreiros e inclusive um brasileiro, Ronald de Carvalho.

• A revista A Águia era uma revista mensal de literatura, arte, ciência, filosofia
e crítica social, logo tornada órgão da Renascença Portuguesa, rótulo
que os conformados passaram a usar como expressão do seu programa
de fundamentação e revigoramento, em moldes modernos, da literatura
portuguesa.

• O Modernismo na literatura, em terras lusitanas, manifestou-se através de um


tipo de poesia que transparecia certa perturbação, ao mesmo tempo em que
trazia um tom provocador, irritante.

• Surge em Portugal uma nova revista, a Presença, que se constituiu o veículo


de expressão mais importante do grupo, o Presença, além de ser o meio de
divulgação das ideias dos intelectuais portugueses entre os anos 1927 a 1940.

• Para a disseminação dos seus ideais, o Neorrealismo valeu-se de importantes


revistas, entre as quais Seara Nova, Revista Diabo, Revista Sol Nascente e
Revista Vértice, em que importantes assuntos de cunho social eram debatidos
por escritores, juntamente com vários artistas plásticos.

• A modernidade assenta-se sobre a ideia de evolução, de progresso, de


continuidade do processo histórico: inicia o período contemporâneo na
literatura, que lê, reavalia, relê, reescreve, remonta, reinventa e atualiza os temas,
colocando-os em diálogo com a história, com diferentes temas do passado e do
presente, caracterizando principalmente a presença da intertextualidade.
245
• Nas suas características, a contemporaneidade lida principalmente com a
valorização da visão particular sobre os temas e os objetos tratados e o fim das
narrativas totalizadoras baseadas em arquétipos legitimadores.

• Na sua produção poética, Sá Carneiro imprimiu quanto pôde a sua máxima


individualidade. Exemplo disso é o trecho da poesia Dispersão, em que ele,
pelas vias do lirismo, repassa toda a sua angústia por estar longe da família e
planeja o próprio fim.

• No que concerne aos heterônimos adotados por Pessoa, importante lembrar


que cada um destes adota uma biografia própria, possui personalidade própria,
data de nascimento e mapa astral elaborados pelo próprio Fernando Pessoa.

• No caso específico dos países africanos, muitas pessoas que participaram dos
movimentos de independência foram os primeiros a assentar registros sobre
os acontecimentos ou se valeram destes temas libertários, episódios dolorosos,
reflexões sobre a identidade da nação independente a ser construída como
temas literários.

246
AUTOATIVIDADE

Caro/a acadêmico/a, para que você possa melhor fixar o conteúdo


deste tópico, apresentamos, a seguir, uma atividade. Procure resolvê-la com
base no que você estudou.

1 Releia o Tópico 3 desta unidade e responda às seguintes questões, como


forma de revisão do assunto:

a) Comente as principais características estéticas das diferentes gerações do


Modernismo português.

b) Referente à questão estética, explique as características da contemporaneidade


literária portuguesa.

c) Referente às diferentes revistas publicadas durante o Modernismo, dê a sua


função.

d) Explique o que propunham as principais vanguardas europeias que


influenciaram o Modernismo português.

e) Discorra acerca do objetivo do Manifesto Futurista.

f) Fale acerca da pretensão do Neorrealismo português.

2 Releia o texto complementar Vozes da África, de Antônio Edson. Em


seguida, apresente as principais ideias tratadas no que concerne à literatura
dos países africanos de língua portuguesa.

247
248
UNIDADE 3
TÓPICO 4

A LITERATURA PORTUGUESA E O ENSINO: ALGUMAS IDEIAS

“[...] ler não é somente caminhar


sobre as palavras, e também não
é voar sobre as palavras. Ler é
reescrever entre o texto e o contexto
do texto, e também como vincular
texto/contexto com o meu contexto, o
contexto do leitor.”

(FREIRE, Paulo. Medo e Ousadia: o


cotidiano do professor)

1 INTRODUÇÃO
No que se refere ao trabalho com o texto literário na sala de aula, muitas
vezes, alunos e professores sentem-se insatisfeitos por considerarem pouco
criativa e desinteressante a disciplina de literatura. Sabe-se também que é grande
o esmero do professor à procura de alternativas para melhorar a qualidade de
ensino nesse campo. Contudo, parece incômodo deixar de lado antigas práticas
para adequar-se a certas necessidades que são exigidas pelo momento moderno.
Esse “adequar-se” pressupõe muita reflexão, para a qual o próprio professor às
vezes não se sente “competente”, ou não encontra tempo, talvez nem razão.

No presente tópico, a pretensão é pincelar algumas ideias iniciais para


estimular a reflexão do professor à busca de propostas sobre o ensino de literatura
que, talvez, possam levar também o aluno a um aprendizado com entusiasmo,
satisfação, interesse e alegria, o que poderia contribuir para a aquisição do gosto
pela leitura e literatura, atualmente tão em baixa entre crianças, adolescentes e
jovens. No tópico que segue efetuaremos uma breve reflexão sobre o trabalho
pedagógico a partir da literatura, ao mesmo tempo em que apresentaremos alguns
pontos que poderiam orientar o trabalho do professor de língua e literatura.

2 A LITERTURA PORTUGUESA E O ENSINO: UM COMEÇO


Primeiramente, é preciso atentar para o fato de que grande parte dos alunos
do Ensino Fundamental e Médio não gosta de ler, havendo entre estes os que até
repudiam a leitura. Tal constatação, sabendo que estamos lidando com literatura, e
que esta passa, necessariamente, pelo ato de ler, deve nos levar a repensar a prática
pedagógica no que concerne às atividades literárias na sala de aula, buscando a
aplicação de estratégias diversificadas. Com isso, objetiva-se conquistar os alunos
e fazer deles leitores conscientes e satisfeitos, primordialmente em relação às obras
da literatura, no nosso caso a portuguesa.
249
UNIDADE 3 | DO ROMANTISMO À CONTEMPORANEIDADE: A ESTÉTICA E A PRODUÇÃO LITERÁRIA

Trata-se, diante dessas palavras, de empreender esforços no sentido de


dotar o aluno da capacidade de se apropriar da literatura. Por extensão, poder-
se-ia também pensar não apenas em alguém que seja capaz de ler poesia, drama
ou narrativas, mas, sim, em alguém que desses gêneros textuais se aproprie
efetivamente por meio da experiência estética, fruindo-os. Para atingir o objetivo
de criar o prazer no ato de ler e a solução das dificuldades para trabalhar com o
texto dentro da sala de aula, muitos professores, principalmente de Português e
Literatura, têm se debatido ao longo dos anos letivos.

Nesse sentido, no contexto da sala de aula, a presença do texto literário


continua sendo ainda muito artificial, pois a situação da aula é coletiva, pressupõe
e incentiva a leitura orientada. Mais do que isso, visa a uma reação do leitor (o
aluno) deflagrada a partir de uma interpretação que outro leitor (o autor do livro
didático) acredita ser a mais pertinente, útil, adequada, agradável. Desse modo,
infere-se que a interpretação do texto lido não é mais a do leitor/aluno, mas a
desejada pelo leitor/autor do livro didático.

Sobre o ato de leitura e interpretação, os PCN (1998, p. 69) entendem que “[...]
a leitura é o processo pelo qual o leitor realiza um trabalho ativo de compreensão
e interpretação do texto, a partir de seus objetivos, de seu conhecimento sobre
o assunto, sobre o autor, de tudo o que sabe sobre a linguagem”. Vê-se, então,
que não se trata de um simples ato de extração de informações com base em
perguntas formuladas pelo autor do livro didático, e que levem o aluno a uma
mera decodificação letra por letra, palavra por palavra. Trata-se, sim, de uma
atividade que implica estratégias de seleção, antecipação, inferência e verificação,
sem as quais não é possível proficiência.

Assim, o professor poderia preocupar-se com a diversidade das práticas
de recepção dos textos: não se lê uma notícia da mesma forma que se consulta
um dicionário; não se lê um romance da mesma forma que se estuda. É notório,
porém, que muitos materiais disponíveis no mercado, ainda que se preocupem
em incluir textos de diversos gêneros, ignoram a diversidade e submetem a
maioria dos textos a um tratamento uniforme.

Considerando tal diversidade de gêneros, não ignorando a diversidade de


recepção, as atividades organizadas para a prática da leitura também poderiam
ser aplicadas de modo diversificado, sob pena, talvez, de trabalharem contra a
formação de alunos leitores. O modo como se lê um texto é também um modo
de fazê-lo produzir sentido; assim, explicam os PCN (1998, p. 70) que “[...] se
os sentidos construídos são resultado da articulação entre as informações do
texto e os conhecimentos ativados pelo leitor no processo de leitura, o texto não
está pronto quando escrito”. É nesse ponto que se concentra uma das tarefas do
professor de literatura, como preocupar-se com a exploração da funcionalidade
dos elementos constitutivos da obra e sua relação com seu contexto de criação.

250
TÓPICO 4 | A LITERATURA PORTUGUESA E O ENSINO: ALGUMAS IDEIAS

O ensino da literatura na sala de aula, hoje, implica o desenvolvimento de


habilidades de leitura, compreensão, interpretação de diferentes tipos e gêneros
textuais, escritos em diferentes modalidades da língua – formal, informal,
de interação com diferentes portadores de textos, habilidades de escrever os
tipos de textos que as práticas sociais de escrita exigem dos indivíduos. “É o
desenvolvimento dessas habilidades que os professores de Língua Portuguesa
devem perseguir, além de buscar responder, na escolha dos textos para leitura
e atividades de produção de texto, aos interesses e características das crianças e
jovens de hoje, para que também possam descobrir o prazer da leitura e o prazer
da escrita”. (SARDAGNA, 2004, p. 23). Eis aqui o grande desafio para a formação
de leitores competentes.

Vê-se também que a compreensão de um texto depende das informações


adicionais, por isso, uma boa leitura implica muito mais do que ler as linhas –
identificar as informações apresentadas e reproduzi-las. Mas é isso que a maioria
dos estudantes faz. Para que deem um passo à frente, as novas informações
precisam ser integradas ao que já sabem. Enquanto se extrai significado do texto,
atribui-se significado ao texto, ou como afirma Leffa (1996, p. 10), “[...] ler é usar
segmentos da realidade para chegar a outros segmentos”. E é aqui que ocorre
a intertextualidade, ou seja, quando são associadas as informações contidas no
texto em estudo com as informações extraídas anteriormente de outros textos
lidos, de outras fontes.

Mas, sem margem de dúvida, o verbo mais importante para uma aula
de literatura é ler. É em torno deste que se constrói toda a prática pedagógica, e
o que se procura construir é o despertar o aluno ao prazer da prática da leitura.
Convenhamos que trabalhar com a linguagem da literatura, particularmente,
não é coisa muito fácil. Primeiramente, é importante que se tenha presente que
“[...] ler é manusear um instrumento físico chamado texto: o romance, o conto, o
poema, a crônica, que estão impressos em livros”. (CITELLI, 1981, p. 77). E esse
fator, a grande maioria das vezes, esbarra com a precariedade, quando não com
a inexistência, de bibliotecas nas nossas escolas públicas. Some-se isto às poucas
condições de as escolas poderem adquirir instrumentos de leitura, ou porque não
há verbas para comprá-los, ou porque o nível da renda da maioria dos alunos
não permite tal investimento. Como fator segundo poder-se-ia citar a baixa carga
horária para o ensino de literatura, ao pouco incentivo financeiro para que o
professor possa absorver novas leituras, ao pouco tempo para pesquisar novos
textos de interesse mais próximo dos alunos.

Perde com isso esse aluno, que deveria, supostamente, sentir necessidade
da leitura de textos literários: poesias, crônicas, romances, novelas etc., textos aos
quais, a partir do conhecimento de outros textos, o educando poderia atribuir
significação, relacionando-os, ainda, a outros textos significativos, entregando-
se a esta leitura, ou poderia também rebelar-se contra ela, propondo outra não
prevista, conforme explica Lajolo (1982). Reside aqui a ideia de que a escritura
de um texto é um ato que ultrapassa a própria obra literária; ela encarrega outros
de efetuarem o fechamento das suas palavras. Portanto, o texto literário é uma

251
UNIDADE 3 | DO ROMANTISMO À CONTEMPORANEIDADE: A ESTÉTICA E A PRODUÇÃO LITERÁRIA

proposição da qual a resposta só é conhecida pelo leitor que, aliás, é quem pode
atribuir-lhe todo o significado. Comungando, a este ponto, da ideia de Barthes
(1971, p. 23), a obra literária é inauguradora de uma ambiguidade, pois ela se
oferece, paradoxalmente, “[...] como um silêncio a ser decifrado”. A obra nunca
é de todo significante e também nunca é de todo clara; ela é, por assim dizer,
sentido suspenso. Vista sob essa ótica, a obra literária interroga o leitor e a si
mesma, sem, contudo, dar respostas. Esse conceito mantém estreita relação com
o que já foi visto acerca da intertextualidade.

No que concerne ao ensino de literatura, após vermos as concepções dos


autores precedentes, parece estranha a costumeira pergunta que os professores
fazem ao findar a leitura de determinado texto: “O que o autor quis dizer... ?”
Ora, é sabido que as obras literárias, sejam elas clássicas ou modernas, são abertas,
ou ambíguas, no dizer de Umberto Eco (2003), prestando-se, portanto a várias
interpretações, o que expõe o leitor a um trabalho criativo, na medida em que
tenta interpretá-la, compreendê-la. Uma vez que nem tudo está dado no texto de
forma fechada, mas que a obra se organiza com uma ambiguidade fundamental
em todos os níveis, isto é, abre-se numa potencialidade muito grande de sentidos,
necessariamente, provoca um trabalho por parte do leitor. Tal trabalho vai muito
além de uma simples interpretação; na verdade, “[...] mais do que um intérprete,
o leitor torna-se um criador que refaz a obra para entendê-la”. (FERREIRA, 1983,
p. 27). Diante disto, infere-se que a ênfase não mais reside puramente no efeito,
no texto como uma coisa pronta e acabada, mas no processo, no texto como algo
a fazer e fazendo-se continuamente. A obra está em contínuo movimento.

Assim sendo, é aconselhável efetuar-se, primeiramente, uma seleção entre


os textos estrangeiros/clássicos, principalmente os que moldaram a literatura
ocidental: Homero, Dante, Camões, Cervantes, Shakespeare, Dostoievski,
aliados aos autores portugueses como os estudados neste Caderno de Estudos.
Desnecessário parece mencionar que os textos dos grandes escritores sempre
têm algo a dizer aos adolescentes, o que poderia incitar discussões e abalar
os preconceitos. Pode-se também aproveitar a sensibilidade exacerbada da
adolescência para a leitura e produção de textos poéticos.

Outra estratégia que poderia ser aqui sugerida seria, talvez, iniciar-se
o trabalho pelas cantigas do século XII – Trovadorismo e, a partir delas criar
novos textos, musicais, por exemplo, de modo que estes estejam mais próximos à
realidade do aluno, paródias com textos musicais atuais de sucesso. Além disso,
o trabalho pode concentrar-se na análise e discussão de influências de um texto
sobre outros textos, o que chamamos intertextualidade. Aconselha-se concentrar
o trabalho num mínimo de textos exemplares. Ao falarmos em análise, esta
poderia processar-se nas personagens e suas ações, tempos, espaços, questões
sociais, históricas, políticas e culturais tratadas nas entrelinhas, influências de
outras culturas, os discursos que subjazem às palavras dos autores, entre outros
argumentos, que poderiam ser ao mesmo tempo tratados de forma interdisciplinar.
Bordini (1985, p. 36) demonstra ainda que “[...] no Ensino Médio não se esperará
que o aluno empreenda análises sofisticadas do fenômeno literário [...] Bastará

252
TÓPICO 4 | A LITERATURA PORTUGUESA E O ENSINO: ALGUMAS IDEIAS

que se movimente com perspicácia no interior da obra, sabendo nomear o que


compreende e fundamentar objetivamente o que interpreta.” É preferível, assim,
que os alunos interpretem os textos literários com maior fruição e com menos
pretensões a mergulhá-los em períodos e escolas literárias, características,
nomenclaturas de autores e obras, figuras estilísticas, sem, por outro lado, as
suficientes vivências dos textos, fator que poderá, como acréscimo, levá-los ao
amor ou à aversão pelos livros.

Podemos deduzir também que o procedimento adotado pelos professores
de literatura deve objetivar o maior proveito possível da leitura, leitura esta que
vá além do conhecimento linguístico propriamente dito, promova um repertório
de informações também exteriores ao texto. A seguir, passamos algumas
estratégias para o trabalho com literatura no âmbito do Ensino Fundamental e
Médio, tomando como base, para isto, as propostas formuladas por Maria da
Glória Bordini (1985, p. 37):

• Incentivar os alunos à narração de histórias do seu cotidiano, inventando


personagens/ações, concretizando-as através da dramatização, desenhos,
esculturas.
• Narração de histórias na sala de aula, acompanhadas da apresentação de
imagens através de lâminas, slides, power point ou acompanhamento musical.
• Narração de histórias e criação de músicas e poesias alusivas ao enredo.
• Leituras de vários poemas – análogos – e encená-los em grupos.
• Visitar seguidamente a biblioteca escolar, efetuando a escolha de livros para
leitura, individualmente ou em duplas, para posterior apresentação à classe.
• Emprestar livros para que os alunos possam levá-los para casa, cumprindo o
devido prazo para leitura e devolução.
• Ler histórias periodicamente dentro da sala de aula, permitindo que o
aluno intervenha, pedindo-lhe, também, esclarecimentos ou a expressão de
emoções.
• Chamar a atenção dos alunos para os novos lançamentos/aquisições da
biblioteca, expondo cartazes com os novos títulos, gravuras dos livros e as
respectivas sinopses para despertar o interesse à leitura/aquisição.
• Formar dentro da escola clubes de leitura, de mútuo auxílio para aquisição
das obras e organização de atividades em volta do livro.
• Instituir a hora da leitura diária em toda a escola, acompanhada de atividades
paralelas sobre as histórias.
• Memorizar histórias e apresentá-las com encenação em todas as classes.
• Trabalhar as artes plásticas dentro do tema das histórias lidas.
• Trazer autores e livrarias para a escola. Escrever cartas para autores e efetuar
entrevistas com eles.
• Instituir sessões de discussão em grupos de leituras espontâneas, com
relatórios dos tópicos abordados pela equipe.
• Incentivar o contato com o mundo cultural e literário da cidade, estado ou
país, através da busca de notícias sobre os livros e autores nos meios de
comunicação no momento.

253
UNIDADE 3 | DO ROMANTISMO À CONTEMPORANEIDADE: A ESTÉTICA E A PRODUÇÃO LITERÁRIA

• Enfatizar as atividades de escrita com expressão de posições individuais e


grupais acerca dos mundos descobertos na leitura.
• Comparar textos do presente com os do passado, sem a preocupação com
estilos e recursos compositivos, mas focalizando especialmente os sentidos
veiculados, para verificar as diferentes épocas e compreender a origem de
fatos atuais.
• Questionar a conduta de personagens e afirmações dos textos, enlaçando-as
com a realidade vivida, sem propor padrões modelares.
• Introduzir as noções de gênero e período literário, partindo das descobertas
obtidas no cotejo de textos clássicos e modernos, narrativos, poéticos ou
dramáticos.
• Relacionar os textos com as condições históricas em que foram produzidos,
buscando dados sobre a vida social e cultural da época, através da pesquisa
bibliográfica ou consulta a pessoas-fonte, como outros professores, críticos
literários, grandes leitores.
• Promover debates em classe ou extraclasse sobre questões culturais do país,
a partir de leituras realizadas.
• Incentivar a participação da classe a seminários sobre literatura ou promoções
correlatas: encontros com autores, conferências. Promover dentro da própria
classe esse tipo de atividades.
• Colocar cada texto como um desafio que seja capaz de provocar polêmicas e
tomadas de posição, evitando selecionar o texto morno, inócuo ou mediano.
• Dotar o aluno de instrumental mínimo para interpretação do texto:
discriminar temas, relacionar ações e trama, personagens e ações, recursos
da linguagem entre outros fatores requeridos pelo professor, acerca da teoria
literária.
• Levar o aluno a perceber os sistemas de ideias por trás dos textos: ideias que
são aceitas, as que são contestadas, as colocadas em dúvida.
• Treinar o aluno para o distanciamento crítico, de modo a que reconheça o
que o texto diz e o que diz a ele, especificamente, separando impressões
subjetivas de fatos objetivos.
• Treinar o aluno a recorrer à história da literatura, à crítica literária, sempre
que necessitar de apoio para a compreensão ou interpretação de um texto.
• Veicular noções de história literária não somente nacional, mas também
estrangeira, para que o aluno possa se localizar no tempo e no espaço de
suas leituras.
• Dar preferência à expressão escrita, dissertativa, sempre que o aluno for
solicitado a analisar ou emitir um juízo sobre um texto.
• Efetuar exercícios de criação literária, ao estudar os elementos e gêneros da
produção artística, iniciando com reescrita de textos curtos, paródias, cópia
de padrões com situações modificadas, até chegar à originalidade.

Entendemos que, a partir dessas sugestões seja possível efetuar estudos


sobre literatura que visem principalmente a ensinar a ler o texto, compreendendo-o,
situando-o no seu contexto e atualizando seus valores, pois “[...] ler literatura não
é apenas penetrar em um universo de fantasia: é humanizar-se, reconhecer-se”.
(BORDINI, 1985, p. 37).

254
TÓPICO 4 | A LITERATURA PORTUGUESA E O ENSINO: ALGUMAS IDEIAS

Caro/a acadêmico/a, sabemos que a este Caderno de Estudos de


literatura seguir-se-ão mais dois. Por isso, novas metodologias de trabalho
serão apresentadas também nos outros cadernos. Certamente, as demais ideias
completarão as que aqui foram apresentadas. Desejamos a você um excelente
trabalho com a literatura na sala de aula.

NOTA

À GUISA DE CONCLUSÃO – Caro/a acadêmico/a, considero importante


apresentar umas palavras finais, no sentido de esclarecer que foram selecionados somente
alguns autores, considerados mais expressivos no cânone literário português. Aproveitamos,
sim, para enfatizar a parte teórico-estética de cada período, na intenção de dotá-lo/a de
subsídios para efetuar as devidas análises de autores, obras e períodos, dentro do que diz
respeito à prática do ensino de literatura. Assim, nosso intuito é que você procure estudar
autonomamente outros autores, outras obras, inclusive teóricas, para melhor instrumentalizar-
se para trabalhar e discutir com mais propriedade a literatura portuguesa. Desejo sucesso no
prosseguimento dos estudos. Até uma próxima oportunidade!

255
RESUMO DO TÓPICO 4

Caro/a acadêmico/a, no presente tópico, você teve oportunidade de


estudar aspectos importantes relacionados à Literatura Portuguesa, os quais
revemos, resumidamente, a seguir:

• Grande parte dos alunos do Ensino Fundamental e Médio não gosta de ler,
havendo entre estes os que até repudiam a leitura.

• Para atingir o objetivo de criar o prazer no ato de ler e a solução das dificuldades
para trabalhar com o texto dentro da sala de aula, muitos professores,
principalmente de Português e Literatura, têm se debatido ao longo dos anos
letivos.

• O trabalho com o texto literário visa a uma reação do leitor (o aluno) deflagrada
a partir de uma interpretação que outro leitor (o autor do livro didático) acredita
ser a mais pertinente, útil, adequada, agradável.

• O professor poderia se preocupar com a diversidade das práticas de recepção


dos textos: não se lê uma notícia da mesma forma que se consulta um dicionário;
não se lê um romance da mesma forma que se estuda.

• O ensino da literatura na sala de aula, hoje, implica o desenvolvimento de


habilidades de leitura, compreensão, interpretação de diferentes tipos e gêneros
textuais, escritos em diferentes modalidades da língua – formal, informal, de
interação com diferentes portadores de textos, habilidades de escrever os tipos
de textos que as práticas sociais de escrita exigem dos indivíduos.

• O procedimento adotado pelos professores de literatura deve objetivar o


maior proveito possível da leitura, leitura esta que vai além do conhecimento
linguístico propriamente dito, promova um repertório de informações também
exteriores ao texto.

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AUTOATIVIDADE

Caro/a acadêmico/a, para que você possa melhor fixar o conteúdo


deste tópico, apresentamos, a seguir, uma atividade. Procure resolvê-la com
base no que você estudou.

1 Selecione um autor estudado no presente caderno. Leia uma poesia ou outro


tipo de texto que ele tenha escrito e formule uma proposta de trabalho em
sala de aula com esta obra e autor. Depois de formulada esta proposta, é
aconselhável que seja compartilhada com os colegas de sala.

257
258
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