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Jean Cohen

Editora Cultrix
Editora da Universidade de São Paulo

L
ESTRUTURA DA LINGUAGEM POÉTICA

Jean Cohen

A análise estrutural dos procedimentos carac-


terísticos da linguagem poética revela, neles,
um caráter paradoxal: apresentam-se como
violação sistemática da linguagem comum.
Entretanto, esta negatividade é o instrumento
de que o poeta se vale para pôr em ação um
mecanismo universal de compensação — a
metáfora —, que permite à poesia transmitir
um significado de outra ordem e cumprir
assim sua função específica. A análise que
Jean Cohen empreende aqui da estrutura da
linguagem poética é de capital importância
para os que se interessem por questões de
teoria literária, notadamente estudantes das
Faculdades de Letras.

EDITORA CULTRIX

EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO


I •'
ESTRUTURA DA LINGUAGEM
POÉTICA

Jean Cohen

A poesia constitui uma forma específica de


linguagem, destinada a desempenhar uma função
específica de comunicação.
, . Essa especificidade
é de ordem estrutural. A poesia difere da pro­
sa, não pela substância sonora ou ideológica, mas
pelo tipo particular de relações que institui en­
tre os elementos do sistema linguístico. Tais
relações se desenvolvem em dois níveis: o nível
fónico, onde formam o que se chama verso, e o
nível semântico, onde constituem aquilo a que
a antiga retórica chamava figuras. Ora, a aná­
lise de conjunto desses procedimentos revela um
caráter paradoxal comum: apresentam-sc eles co­
mo uma violação sistemática das leis da lingua­
gem comum, como se o poeta tivesse por único
propósito baralhar a inteligibilidade da mensa­
gem.
Essa negatividade da linguagem poética au­
menta regularmente da idade clássica para a ida­
de moderna. Trata-se de uma negatividade que
o poeta busque por amor dela própria ou se
’ trata antes do instrumento necessário de uma
nova inteligibilidade? Jean Cohen adota esta
segunda hipótese. As figuras poéticas só são ne­
gativas numa primeira etapa, destinada a pôr
em ação um mecanismo universal de compensa­
ção, a metáfora, que permite à poesia transmitir
um significado de outra ordem e cumprir assim
sua função específica. Com base nesse enfoque
fecundo, Jean Cohen estuda em Estrutura da
Linguagem Poética temas de capital importân­
cia para os que se interessem por questões de
teoria literária: o problema poético; o nível fó­
nico e versificação; o nível semântico e a predi­
cação; a determinação c a coordenação; a ordem
das palavras em poesia; e a função poética.
A presente edição de Estrutura da Lin-
CUAGEM Poética, que foi traduzida por Álvaro
Lorencini e Anne Armchand da Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras de Manha, S. , e
publicada pela Cultrix com o presugioso apoto
da Editora da Universidade de Sao Paulo.
1

ESTRUTURA DA LINGUAGEM POÉTICA

EX-LIBRXS

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ísclDãoe
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Tel.: 2226-4106
=

FICHA CATALOGRAFICA

(Preparada pelo Centro de Catalogação-na-fonte,


Câmara Brasileira do Livro, SP)

Cohen, Jean.
C628e Estrutura da linguagem poética; tradução de
Álvaro Lorenclni e Anne Arnichand. São Paulo,
Cultrix, Ed. da Universidade de São Paulo, 1974.

Bibliografia.

1. Francês — Versificação 2. Poética I. Título.

CDD-808.1
-446
74-0432 -801

índices para o catálogo sistemático:


1. Poesia : Teoria literária 801
2. Poética : Retórica : Literatura 801.1
3. Versificação : Francês : Linguística 446
Obra publicada
com a colaboração da

UNIVERSIDADE DE SÂO PAULO

Reitor: Prof. Dr. Orlando Marques de Paiva

EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SÀO PAULO

Presidente: Prof. Dr. Mário Guimarães F.erri

Comissão Editorial:
Presidente: Prof. Dr. Mário Guimarães Ferri (Instituto
de Biociências). Membros: Prof. Dr. Antonio Brito da
Cunha (Instituto de Biociências), Prof. Dr. Carlos da
Silva Lacaz (Faculdade de Medicina), Prof. Dr. Pérsio
de Souza Santos (Escola Politécnica) e Prof. Dr. Roque
Spencer Maciel de Barros (Faculdade de Educação).
JEAN COHEN

ESTRUTURA
DA
LINGUAGEM POÉTICA
A esta perspectiva eu chamo Transposição.
— Estrutura, outra.
Mallarmé

Tradução de
Álvaro Lorencini e Anne Arnichand

EDITORA CULTRIX
SÃO PAULO

EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO


S

Título do original:
STRUCTURE DU LANGAGE POÉTIQUE

© Flammarion, 1966

MCMLXXIV

Direitos de tradução para o Brasil adquiridos com exclusividade pela


EDITORA CULTRIX LTDA.
Rua Conselheiro Furtado, 648, fone 278-4811, S. Paulo,
que se reserva a propriedade literária desta tradução.

Impresso no Brasil
Printed in Brazil
à memória de meu pai.
S U M ÁR I O

Introdução: Objeto e mctodo 1 1

Capítulo I
O Problema Poético 27

Capítulo II
Nível Fónico: A Versificação 46

Capítulo III
Nível Semântico: A Predicação 87

Capítulo IV
Nível Semântico: A Determinação 112

Capítulo V
Nível Semântico: A Coordenação 133

Capítulo VI
A Ordem das Palavras 148

Capítulo VII
A Função Poética 161

Bibliografia 183
SUMÁRIO DOS QUADROS

I. Pausas métricas não pontuadas 59

II. Rimas não categoriais 71

III. Epítetos impertinentes (1) 99

IV. Epítetos impertinentes (2) 101

V. Epítetos impertinentes de cor 108

VI. Epítetos redundantes (1) 120

VII. Epítetos pertinentes redundantes 121

VIII. Epítetos redundantes (2) 122

IX. Epítetos anormais 122

153
X. Epítetos invertidos
155
XI. Epítetos não valorativos invertidos

10
INTRODUÇÃO

OBJETO E MÉTODO

A poética é uma ciência cujo objeto é a poesia. Esta palavra,


poesia, tinha na época clássica um sentido inequívoco: designava
um gênero literário, o poema, ele próprio caracterizado pelo uso
do verso. Mas hoje, pelo menos entre o público culto, a palavra
tomou um sentido mais amplo, consequente de uma evolução que
parece ter começado com o romantismo e que podemos analisar apro-
ximadamente da maneira seguinte. No início, o termo passou, por
transferência, da causa para o efeito, do objeto para o sujeito. Assim,
‘‘poesia” designou a impressão estética particular normalmente pro­
duzida pelo poema. Tornou-se comum então falar em “sentimento”,
ou em “emoção poética”. Depois, por recorrência, o termo aplicou-
-se a todo objeto extra-literário suscetível de provocar esse tipo de
sentimento: primeiro às outras artes (poesia da música, da pintura,
etc.), depois, às coisas da natureza. “Dizemos de uma paisagem,
escreve Valéry, que ela é poética, dizemo-lo de uma circunstância
da vida, dizemo-la às vezes de uma pessoa 1.” Aliás, desde então, a
extensão do termo continuou: hoje ele engloba uma forma parti­
cular de conhecimento, e até uma dimensão da existência.
Não queremos em absoluto contestar os empregos modernos
da palavra “poesia”. Não cremos que o fenômeno poético se limite
às fronteiras da literatura e que seja ilícito indagar-lhe as causas

(D Propos sur la poêsie, Plêiade, p. 1362.

11
entre os seres da natureza ou as circunstâncias da vida. É perfeita­
mente possível esboçar uma poética geral que procuraria os traços
comuns a todos os objetos, artísticos ou naturais, suscetíveis de pro­
vocar a emoção poética2. Por razoes de ordem puramente meto­
dológica, julgamos preferível limitar desde o início o campo da pes­
quisa e considerar, em primeiro lugar, apenas os aspectos propria­
mente literários do fenômeno. Pretendemos analisar as fornias
poéticas da linguagem, e somente da linguagem. Se conseguirmos
resultados positivos, então será possível tentar estendê-los para além
do domínio literário. Todavia, pareceu-nos metodologicamente ra­
zoável começar pelo especial antes de ir ao geral, e procurar a poesia
onde ela se encontra, se não unicamente, pelo menos eminentemente,
na arte em que nasceu e que lhe deu o nome, isto é, naquele gênero
de literatura chamado poema.
Contudo, a própria palavra “poema” não deixa de ser equívoca.
Com efeito, a existência da expressão “poema em prosa”, que se
tornou corrente, tira desta palavra a determinação sem ambiguidade
que tinha quando era caracterizada por sua forma versificada. Sendo
o verso uma forma convencional e estritamente codificada na lin­
guagem, o poema possuía uma espécie de existência jurídica incon-
testaye . Era poema ’ aquilo que era conforme às regras da versi-
caçao, prosa aquilo que não o era. No entanto, a expressão
aparentemente contraditória de “poema em prosa” obriga-nos a de-
nnir novamente a palavra.
_• lin^em,.como se sabe, pode ser analisada a dois níveis, fô-
t e semantJC0 • poesia opõe-se à prosa por caracteres exis-
codifLT amb°S osJníveis- Os caracteres de nível fónico foram
sem cuia V n£meados- Chama-se “verso” toda forma de lingua-
tamen?e v X-’apresenta estes caracteres. Por serem imedia-
tituem ainda hn- 6 rigor/osam1ente codificados, para o público, cons-
não são únicos A Cn^rí° P°Çsia. Mas, na realidade, tais traços
cíficos que conqtit° R1Ve semânt^co» Há igualmente caracteres espe-
. q constituem um segundo recurso poético da linguagem.

(2) Como Mikel Dufrenne,


Duírenne, por e
tulado: Le Poétique, Paris, PUF, ^.exemp^
1963. no
no penetrante
Porto Alegre, Globo, 1969.]
(3) “Semântico”
“lexical”. Adotamos c , tomado
, r geralmente pelos linguistas no sentido de
aqui, provisoriamenti•e> um sentido mais amplo que
abrange também o significado
2o gramatical.
12
Estes também foram objeto de uma tentativa de codificação, por
parte daquela arte de escrever chamada “retórica”. No entanto, por
razoes que seria preciso analisar, o código retórico foi considerado
facultativo, ao passo que o verso permanecia obrigatório. O fato de
a palavra “poética”, por oposição a “retórica”, ter designado du­
rante muito tempo as normas da versificação — e somente da ver­
sificação —, é uma prova do privilégio geralmente concedido aos
meios propriamente fónicos da arte poética.
Seja como for, o fato principal é que existem dois níveis de
processos poéticos oferecidos à linguagem, e que estes níveis per­
manecem independentes. De tal modo que o escritor que visa a
objetivos poéticos tem a liberdade de associá-los ou, pelo contrário,
de empregar apenas um dos dois. Consequentemente, podemos dis­
tinguir três tipos de poemas:
O primeiro, conhecido como “poema em prosa”, poderia
chamar-se “poema semântico”. Com efeito, só atua nessa face da
linguagem, deixando poeticamente inexplorada a face fónica. A este
tipo, pertencem obras esteticamente consagradas, como Les chants
de Maldoror ou Une saison en enfer, o que prova que os recursos
semânticos bastam, por si sós, para criar a beleza procurada. Pelo
contrário, na segunda categoria, que se poderia chamar “poemas
fónicos”, porque só utilizam os recursos sonoros da linguagem,
não se conta nenhuma obra literariamente importante. Pertencem-lhe
apenas as produções de poetas amadores que nada mais fazem que
acrescentar rima e metro àquilo que semanticamente é prosa. Daí,
c nome pejorativo de “prosa versificada” para designá-las. Isso pa­
rece destacar, na hierarquia do rendimento poético, um privilégio
que não dá vantagem à versificação. Mas nosso problema não é
avaliar o rendimento poético comparativo desses dois níveis. Sejam
quais forem seus valores respectivos, o fato é que eles têm sido
sempre utilizados juntos pela grande tradição poética francesa e que,
'
unindo seus recursos, produzem i as obras que nosso espírito relaciona
imediatamente com o nome <de poesia, tal como La Légende des
siècles ou Les Fleurs du Mal.___ A esses poemas que constituem a
terceira categoria, pode-se dar o nome de poesia “fono-semântica’,
ou poesia integral.
Essa classificação pode ser figurada de maneira prática pelo
quadro seguinte:

U
CARACTERES POÉTICOS
GÊNERO FÓNICOS SEMÂNTICOS
Poema em prosa
Prosa versificada
+
Poesia integral
Prosa integral .

Incluímos neste quadro a prosa integral, a única a merecer


o nome de prosa, por oposição à poesia integral, ou poesia sim­
plesmente dita. Todavia, para designar a linguagem não versifi­
cada, mesmo quando é semanticamente poética, continuaremos em-
pregando a palavra “prosa”, conforme à tradição, contando com as
oposições contextuais = prosa/verso
, ) e prosa/poesia, para dissipar
qualquer equívoco.
Limitamos a análise aos poemas em verso só para obedecer ao
princípio metodológico que recomenda a homogeneidade do mate­
rial observado. Assim, não pensamos que se corra o risco de limitar-
-Ihe o alcance. Com efeito, no poema em prosa, encontram-se ge­
ralmente os mesmos tipos de caracteres semânticos que o poema cm
verso utiliza. Naturalmente, o poeta em prosa está livre das contin­
gências da versificação e, por conseguinte, mais à vontade para uti­
lizar os recursos de segundo nível. Não é fácil, sobretudo em fran­
cês, manejar a linguagem livremente e, ao mesmo tempo, submeter-se
às exigências do metro e da rima. Assim, Valéry censurava Baudelai-
re por ter enterrado “sa servante au grand coeur” [sua criada de
grande coração] debaixo duma “humble pelouse” [humilde gramado]
para rimar com “jalouse” [ciumenta], “a rima à razão”. Contudo,
parece que na maioria dos casos nossos grandes poetas souberam ma­
nejar harmoniosamente o duplo poder da poesia, e que não se perde
nada de essencial quando se estuda o nível semântico naqueles que
aceitaram as duras servidões da versificação, para não sacrificar as
possibilidades de seu instrumento.
Toda escolha do material de observação comporta uma parte
de arbitrariedade inevitável. O “corpus” deve obedecer a duas re­
gras contraditórias: ser suficientemente restrito para não prejudicar
a pesquisa, e suficientemente amplo para permitir a indução. Ao res­
tringir nosso estudo aos poemas em verso, introduzimos uma pri­
meira limitação, e aceitamos uma segunda dedicando-o exclusiva-

14
mente à poesia francesa. Naturalmente, para constituir uma poética
literária digna desse nome, seria necessário destacar os caracteres
comuns a todo poema, seja qual for a língua ou cultura a que per­
tença. Mas, nesse domínio mal explorado, o princípio de homoge­
neidade é mais imperioso que nunca e, em matéria de linguagem, é
evidentemente à língua que se aplica em primeiro lugar. Estabelecer
conclusões válidas exclusivamente para a poesia francesa já seria
um resultado bastante valioso. Podemos limitar a isso nossas ambi­
ções, mesmo que seja para tentar estender depois os resultados a
poemas de outras línguas ou culturas.
■é

Já circunscrevemos com precisão o objeto de nosso estudo:


trata-se do poema em verso de língua francesa considerado no nível
duplo, fónico e semântico. Resta-nos agora definir o método.
Há dois tipos de estética, diz Etienne Souriau: uma chamada
“estética-filosofia”, outra “estética-ciência”4. É nesta segunda cate­
goria que nosso ensaio de poética pretende incluir-se. A palavra
“ciência” só é pretensiosa quando presume a validade dos resulta­
dos, mas não quando exprime apenas exigências de método. Por
“científico”, entenda-se unicamente o propósito de apoiar nossa aná­
lise o máximo possível na observação dos fatos.
Há um fato bruto do qual, a nosso ver, se deve necessariamente
partir: é a existência dessas duas rubricas, prosa e poesia, em que
se reparte unânime e necessariamente a linguagem escrita. O obje­
tivo da poética pode, então, enunciar-se em termos simples: trata-se
de saber em que fundamento objetivo se baseia a classificação de
um texto numa dessas rubricas. Haverá caracteres que estão pre­
sentes em tudo que é classificado de “poesia” e ausentes em tudo
que é classificado de “prosa”? Em caso afirmativo, quais são?
Essa é a pergunta a que deve responder uma poética que se pretenda
científica.
Da maneira como a questão é colocada decorre uma consequên­
cia metodológica. O método utilizado para responder a um pro­
blema diferencial só pode ser comparativo. Temos que confrontar
o poema com a prosa. Já que a prosa é a Linguagem corrente, pode-

(4) “Propos préliminaires”, in Sciences de LfArt, n.9 I, 1965.

15
mos tomar esta como norma e considerar o poema como um desvio
em relação a ela 5. O desvio é a própria definição que Charles Bru-
neau, retomando Valéry, dava do fato de estilo, e tal definição é
conservada hoje pela maioria dos especialistas. Na realidade, ela só
tem uma significação negativa. Definir o estilo como desvio é
dizer não o que é, mas o que não é. É estilo aquilo que não é cor­
rente, normal, conforme ao “padrão” usual; mas não impede que
o estilo, tal qual é praticado pela literatura, possua um valor esté­
tico. É um desvio em relação a uma norma, portanto um erro, mas,
dizia também Bruneau, “um erro voluntário”. Portanto, o desvio
é uma noção excessivamente ampla e que deve ser especificada, ex­
plicando-se por que certos desvios são estéticos e outros não.
No entanto, essa definição possui um valor operatório. Ela é
insubstituível na operação preliminar da estilística que seu fundador,
Charles Bally, chamava “delimitação” do fato de estilo. Antes de
saber quais desvios são esteticamente válidos, é necessário percebê-los
primeiro como desvios, o que só é possível por comparação à norma.
Consequentemente, consideramos a linguagem poética como um fato
de estilo tomado no seu sentido geral. O fato inicial em que se
baseará nossa análise é que o poeta não fala como todo mundo.
Sua linguagem é anormal, e tal anormalidade confere-lhe um estilo.
A poética é a ciência do estilo poético.
O estilo é frequentemente considerado como um desvio indi­
vidual, uma maneira de escrever particular de um só autor. O pró­
prio Bally definia-o como “desvio do falar individual”, e Leo Spitzer
como “desvio individual em relação a uma norma”. A célebre
fórmula de Buffon: “O estilo é o próprio homem”, é gcralmente
interpretada nesse sentido. Realmente, não se pode negar a apli­
cação do termo à marca pessoal de cada poeta, à “maneira” única
que o diferencia de todos os demais; mas pode-se dar à palavra es­
tilo uma acepção mais ampla, que aliás ela possuía inicialmente.
Admitimos, pelos menos a título de hipótese de trabalho, a existên­
cia na linguagem de todos os poetas de uma invariante que perma­
, . uma maneira idêntica
nece através das variações individuais, ou <seja,
de desviar da norma, uma regra imanente ao próprio^ desvio, Com
------- codificado,
efeito, o que é a versificação, senão um <desvio — uma lei
de desviamento em relação à norma fónica da linguagem usual? Do

(5) A palavra “norma” não tem aqui uin sentido normativo: dc-
signa apenas o comparando, por oposição ao comparado.

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mesmo modo, no plano semântico, existe paralelamcnte uma lei de
desviamento que, embora não codificada com igual rigor, existe
através da diversidade dos conteúdos. A esse título, a poesia pode
ser definida como um gênero de linguagem e a poética como uma
estilística de gênero que coloca a existência de uma linguagem poé­
tica e procura-lhe os caracteres constitutivos.
Tal definição apresenta uma vantagem metodológica conside­
rável: permite que a poética sc torne uma ciência quantitativa. Na
noção de desvio, afirma-se urna convergência notável entre a esti­
lística e a estatística. Como a estilística é a ciência dos desvios lin­
guísticos, e a estatística ciência dos desvios cm geral, é lícito aplicar
à primeira os resultados da segunda. O fato poético torna-se, então,
um fato mensurável, exprime-se como sendo a frequência média dos
desvios que a linguagem poética apresenta em relação à prosa. O es­
tilo, diz P. Guiraud, “é um desvio que se define quantitativamente
em relação a uma norma”6. Esta definição aplica-se ao indivíduo,
mas aplica-se também a um gênero. O estilo poético será o desvio
médio do conjunto dos poemas, a partir do qual seria teoricamente
possível medir a “taxa de poesia” de um poema determinado.
O estudo estatístico do estilo supõe duas abordagens, uma que
consiste cm caracterizar o fato, outra em medi-lo. Nem todos os
desvios são estilisticamente pertinentes. Se encontramos, por exemplo,
maior número de monossílabos em poesia que em prosa, não signi­
fica necessariamente que as palavras curtas possuam um privilégio
estilístico. O fato só sc deve às facilidades métricas que as palavras
curtas oferecem, e não passa, portanto, de uma consequência con-
tingente do fato métrico, o único poeticamente pertinente. Antes de
contar, cumpre saber o que contar, c julgamos efetivamente que “o
verdadeiro problema do estilo é de ordem qualitativa, e não quanti­
tativa” 7. Por conseguinte, a caracterização é a abordagem essencial
da poética, e deve-se inteiramente aos métodos comuns da intuição
e do raciocínio. Podemos até, com Lco Spitzer, recorrer a uma “sim­
patia” necessária entre o analista e a obra que estuda. Porém, esse
método puramente intuicionista é um método de descoberta, não de
prova. Uma vez produzido o “clique característico”, como certificar-

(6) Problèmes et inéthodcs de la statistique linguistique, Paris, PUF,


1960, p. 19.
(7) A. J. Grcimas, “Linguistique statistique et linguistique structura-
le”, in: Le français modcrnc, outubro de 1962.

17
-se de que não houve erro, de que este é realmente o traço específico
de uma obra ou de um gênero, senão comparando estatisticamente
tal obra com outros gêneros? Só a existência de um desvio de fre­
quência estatisticamente significativa permite transformar em ver­
dade o que, ao nível da intuição ou do sentimento, não passa de uma
hipótese. Maurice Grammont, cuja sensibilidade poética não po­
demos pôr em dúvida, definiu como “harmonia” do verso uma relação
entre o som e o sentido, cujo caráter aleatório foi provado pelo con­
trole estatístico. É claro que isso não desqualifica a teoria de
Grammont, mas coloca-a na posição de simples hipótese a ser ve­
rificada 8.
Para nosso objetivo, é o único serviço que pedimos à estatística:
não para entregar ela mesma a chave da poesia, mas para verificar
uma hipótese que apareceu ao refletir sobre alguns problemas privi-
legiados. Todavia, o exemplo não prova nada. Quando a reali-
dade observada é suficientemente vasta, é sempre possível encon-
trar exemplos favoráveis a uma teoria. Pode-se pensar que a in-
versão, por exemplo, é um traço característico da poesia. Mas como
ter certeza, senão verificando que a inversão se apresenta no poema
como um desvio de freqiiência estatisticamente significativo?
A utilização do método estatístico apresenta o problema — sem-
pre espinhoso — da constituição de uma amostra representativa do
conjunto estudado. O conjunto, no caso, é a totalidade dos poemas
publicados, ou do que é considerado como tal: resta fazer uma es-
colha nessa totalidade. Quanto mais ampla for a cscolha, mais
representativa poderá ser. Todavia, tivemos que levar em conta
as necessidades práticas. Contar fenômenos visíveis e evidentes, a
rima, por exemplo, é fácil. Não ocorre o mesmo quando se contam
metáforas, o que impõe para cada caso uma análise semântica prévia.
Por essas razões, limitamos a escolha a nove poetas. É pouco, com­
parado à imensa riqueza da poesia francesa e, com um “corpus” tão
restrito, a parte de arbitrário inevitável de toda amostra aumenta
consideravelmente. Para limitar ao máximo possível esse arbitrário,
obedecemos aos dois princípios seguintes.
O primeiro é eliminar qualquer perspectiva normativa, A lin-
guística tornou-se ciência a partir
[ do momento em que deixou de
(8) A mesma observação aplica-sc à análise do poema de Baudclairc:
Lcs Chats, por Jakobson c Lcvy-Strauss. Entre os traços levantados apenas
neste poema, alguns são certamente pertinentes, mas outros são talvez alea­
tórios. Como sabc-lo, sem processo dc verificação?

18
impor regras para observar fatos. A estética deve fazer o mesmo,
deve descrever e não julgar. Mas, em matéria estética, o fato supõe
o valor, já que só a obra de arte julgada bela é reconhecida como
obra de arte. A obra falha, a obra feia, não é um fato estético, e o
esteticista só pode observar o que foi previamente julgado como tal.
Parece então que nossa ciência se encontra num círculo, do qual
só poderá sair separando julgamento e descrição. Para retomar os
termos de Pius Servien 9, a estética supõe duas operações: “eleição”
e “observação”. Para dar-lhe a objetividade exigida, é preciso que
o papel de “eleitor” e “observador” não seja desempenhado por
uma só e única pessoa. E, como o esteticista desempenha o papel
de observador, deve deixar a outro o de eleitor.
Consequentemente, confiamos este papel ao grande público, que
se chama posteridade tão logo o tempo passa. O público pode errar
em parte e por algum tempo, mas não pode equivocar-se totalmente
c sempre; por definição, já que o belo não é uma qualidade própria
da coisa em si, mas o nome que se dá à sua capacidade de despertar
o sentimento estético nas consciências. É possível que muitas obras
belas sejam desconhecidas, mas é pouco provável que muitas obras
reconhecidas como belas não o sejam realmente. Portanto, escolhe­
mos os poetas entre as glórias seguras da literatura francesa. A es­
colha não é nossa. Temos, como cada um, nosso gosto e prefe­
rências, e se os tivéssemos seguido, a amostra teria sido diferente.
No entanto, achamos mais rigoroso apoiar-nos no consenso, que é o
único critério objetivo no domínio do valor.
O segundo princípio de seleção prescreve a homogeneidade do
“corpus” observado. Quanto mais homogéneo for o material estu­
dado, maior será a probabilidade de aparecerem os traços comuns.
Ora, em matéria de poesia, como já dissemos, é à língua que este
princípio se aplica cm primeiro lugar. Por isso limitamos nossa
análise à poesia francesa exclusivamente. Se existe uma estrutura
da linguagem poética como tal, deve encontrar-se evidentemente
na poesia de todas as línguas. Destacar características comuns a
uma poesia tão rica e tão variada como a francesa, já seria um re­
sultado bastante valioso.
Em princípio a homogeneidade implica a sincronia. “O cor-
pus, diz Roland Barthes, deve eliminar ao máximo os elementos
diacrônicos, deve coincidir com um estado do sistema, um “corte”

(9) Príncipes (Peslhétique, Paris, Boivin, 1911, p. 11.

19
da história” 10. No entanto, pareceu-nos interessante observar o
movimento evolutivo da poesia francesa cm diversos momentos de
sua história. Mas reaparece, então, a questão da homogeneidade da
língua. Em princípio, uma língua só existe num ponto do tempo.
Pode-se ampliar a faixa temporal, mas com a condição de que a
língua tenha mudado relativamente pouco durante o período estudado.
Todas essas considerações levaram-nos a escolher finalmente três
épocas bastante semelhantes na língua, mas bastante diferentes nas
suas estéticas particulares, conhecidas na história da literatura pelo
nome geral de Classicismo, Romantismo e Simbolismo. Dentro de
cada uma, escolhemos três autores:
— Corneille, Racine, Molière;
— Lamartine, Hugo, Vigny;
— Rimbaud, Verlaine, Mallarmé.
Pensamos assim abranger não só escolas e movimentos poéti­
cos bastante diversos, mas também gêneros bastante variados: lírico,
trágico, épico, cómico, etc., além de constituir um corpus suficiente­
mente homogéneo para favorecer a pesquisa e, ao mesmo tempo,
suficientemente amplo para permitir a indução 11.
Assim constituído, esse corpus apresenta outra vantagem: es­
tendendo-se sobre três períodos sucessivos, permite comparar a poe­
sia a si própria através de sua história e observar-lhe a evolução.
Veremos destacar-se um fato que nos parece revelador: na maioria
dos casos, os caracteres próprios desse tipo de linguagem aumentam
de maneira regular, de um período para o período seguinte. Como
interpretar esse fato? Vemos aí uma confirmação da validade dos
caracteres em questão.
Com efeito, sendo o desvio a condição necessária para toda
poesia, é evidente que a estética clássica se prestava pouco à explo­
ração de tal processo. Na época atual, a originalidade constitui por
si só um elemento de valor estético. Na época clássica, era o inverso.
A norma era o valor e o desvio só era permitido dentro de limites

(1°) “Eléments de sémiologie”, in: Communications, n.° 4. [Tradução


brasileira: Elementos de Semiologia, S. Paulo, Ed. Cultrix — Ed. da Univ.
de S. Paulo, 1971.]
(11) Este corpus apresenta numerosos defeitos.
< Cabe aos demais pes-
quisadorcs utilizar outro para invalidar oui confirmar os resultados esta-
tísticos.

20
estreitos, que eram garantidos por certa tradição. As ousadias de lin­
guagem eram severamente reprimidas, muitas vezes pela voz oficial
da Academia. Assim, para retomar um exemplo citado por G. An-
toine , a coordenação tem sua norma. Dizemos: “Paulo, Pedro e
João”, mas a língua literária tolera: “Paulo e Pedro e João”. Temos
aqui um desvio ao mesmo tempo limitado e previsto, que faz do
estilo uma segunda língua dentro da língua geral. Ora, o verdadeiro
desvio, aquele que infringe toda norma, é: “Paulo e Pedro, João”.
Mas se o poeta se arriscar a tal desvio, por exemplo, Desportes em:
Mon tcint pâle et ma voix, mon ocil pleurant sans cesse,
[Minha cor pálida e minha voz, meus olhos chorando sem cessar,]

é imediatamente chamado à ordem, e o que é o cúmulo, por outro


poeta, Malherbe. Nessas condições, podemos até afirmar que a es-
tética clássica é uma estética antipoética e que, embora o gênío
criador de um Racine ou La Fontainc tenha conseguido vencer o
obstáculo, a arte da poesia só poderá desabrochar verdadeiramente
no clima de liberdade que o romantismo teve o mérito de intro­
duzir na arte.
Pode-se acrescentar aqui uma segunda consideração: a palavra
“poesia”, no seu sentido moderno, que designa uma categoria de­
terminada do belo, data precisamente da época romântica. O ro­
mantismo não inventou a poesia, mas pode-se dizer que a descobriu.
“A poesia, escreve Jean Wahl, tem cada vez mais consciência de si
mesma e de sua essência. Podemos dizer que o movimento român­
tico constitui o momento em que a poesia desenvolveu pela pri-
meira vez de maneira generalizada essa consciência de si mesma.
O classicismo é a poesia inconsciente de si própria. A poesia ro­
mântica conhece-se a si mesma como poesia” 13. A partir daí, des­
coberto o fim estético particular da arte poética, é normal que o
instrumento se tenha adaptado cada vez melhor à função. A partir
do romantismo, a poesia evoluiu para aquilo que Valéry e Bremond
chamaram “poesia pura” e, efetivamente, para nossa sensibilidade
moderna, o nome de “poeta” está mais ligado a Rimbaud ou Mallar-
mé que a Corneille ou Molière. O aumento dos caracteres incrimi­
nados, constatado pela estatística, corrobora portanto essa intuição
de nossa sensibilidade. A poesia tornou-se cada vez mais poética

(12) La coordination, p. 64.


(13) Poésie, Pensée, Pcrception, Paris, Calmann-Lévy, 1948, p. 24.

21
à medida que progredia na história. Fenômeno talvez generalizá-
vel, que permitiria definir a modernidade estética, já que cada arte
involui, por assim dizer, aproximando-se cada vez mais de sua pró­
pria forma pura, a poesia do poético puro, da mesma forma que a
pintura do pictural puro através da arte abstrata. Porém, essa é
uma perspectiva teórica à qual não queríamos sujeitar nossa análise.
Seja qual for a interpretação que dele se faça, o fato estatistica­
mente comprovado de um aumento progressivo de certos caracteres
linguísticos, através de três grandes momentos da história literária,
constitui por si só um resultado interessante.
Resta um último problema metodológico, Queremos comparar
a poesia com a prosa, e por “prosa” entendemos o uso, isto é, o
conjunto das formas estatisticamente mais frequentes na linguagem
de uma mesma comunidade linguística. A esse título, qualquer usuá-
rio é capaz de julgar o que é prosa ou não. Basta confiar na sua
própria espontaneidade.
M. JOURDAIN
Et comine Von parle, qu/cst-cc donc que cela?
LE MAITRE DE PHILOSOPHIE
De la prose.
M. JOURDAIN
Quoi! Quand je dis, Nicolc apportcz-moi mes pantoufles
Et me donnez mon bonnct de nuit, c’est de la prose?
LE MAITRE DE PHILOSOPHIE
Oui, monsieur.

[sr. jourdain: E o modo como se fala, o que é?


O PROFESSOR DE FILOSOFIA: PrOSa.
sr. jourdain: O que! Quando eu digo, Nicolc traga-mc os chinelos/E
dê-me o gorro de dormir, isso c prosa?
o professor de filósofia: Sim, senhor.}

Mas o princípio de homogeneidade exige que a poesia, que é


escrita, seja comparada com a prosa escrita, Ora, neste caso, a es-
pontaneidade não é mais um critério suficiente, Com efeito, nin-
guem escreve, espontaneamente. A escritura implica sempre urh
mínimo de esforço e de elaboração, e quando se pensa em escrever,
nem que-seja úmá simples carta, sempre se visa ao estilo. Toda
linguagem escrita tende, por assim dizer, a ser um “escrito”, e o
sentido metafórico da palavra já é revelador. Existem vários tipos

22
de prosa escrita, a do romancista, a do jornalista, a do cientista,
„para__citar apenas
x as mais correntes. Qual escolher como"norma?
É claro que devemos optar pelo escritor menos preocupado com
fins estéticos, isto é, o cientista. INa linguagem deste, o desvio não
é nulo, mas é certamente mínimo.
Com efeito, definido como desvio, o estilo não é mais uma
categoria regida pela lei do tudo ou nada. Linguagem natural e
linguagem de arte são dois pólos entre os quais se estabelecem, à
distância variável de um ou de outro, as produções escritas efetivas.
Sem dúvida, a prosa literária tem processos próprios mas, como
teremos a ocasião de verificar, emprega um_ grande número de pro­
cessos que caractcrizam o poema. Entre poesia e prosa romanesca, a
diferença é menos qualitativa que quantitativa. É pela freqiiência
do desvio que esses dois gêneros literários se distinguem, podendo
a diferença de freqiiência ser a menor possível. Entre um trecho de
prosa romanesca — de Chateaubriand, por exemplo — c o que é
classificado como poema em prosa, a fronteira é muito indecisa.
Só o verso regular parece submeter-se à lei do tudo ou nada. Um
texto é rimado ou não, metrificado ou não, mas veremos que isso
não passa de uma primeira aparência e que a própria versificação
apresenta diferenças de graus. Mais ainda ao nível semântico, o
desvio nunca é total. Talvez nenhum poema seja poético cem por
cento, e é sempre dc maneira um tanto arbitrária que tal texto for­
temente estilizado é classificado como poema em prosa ou prosa
literária. Os dois gêneros praticam os mesmos tipos de desvio e a
diferença está apenas na frequência, ou seja, numa variável pratica-
mente contínua.
Podemos figurar o fenômeno de estilo por uma linha reta cujas
extremidades representam os dois pólos, pólo prosaico de desvio
nulo e pólo poético de desvio máximo. Entre os dois, distribuem-se
os diferentes tipos de linguagem efetivamente praticados. Mais perto
do pólo máximo encontra-se o poema, mais perto do outro pólo
situa-se, com certeza, a linguagem dos cientistas. Nesta, o desvio
não é nulo, mas tende para zero. É numa linguagem desse tipo
que encontramos a melhor aproximação daquilo que Roland Barthes
chama “grau zero da escritura”; é com ela que confrontaremos o
poema sempre que for necessário 14. De qualquer modo, isso é apenas

(14)l Lembremos que também Bally considera a linguagem científica


como o pólo oposto da linguagem dc “estilo”.

23
uma preocupação de rigor, uma vez que cada usuário é competente
para julgar o que é o uso, desde que se trate de sua língua materna.
No entanto, é mais prudente recorrer a juízes para testar a validade
da intuição, como tivemos o cuidado de fazer.
*
*
Considerar a poesia como um fato semelhante aos outros, cien-
tificamcnte observável e quantitativamente determinável, é condenar-
-sc a entrar em choque com o senso comum. Hoje em dia, a poesia
é tão sacralizada que qualquer tentativa para esclarecer seus meca­
nismos corre o risco de ser encarada como sacrilégio. Ciência da
poesia? A expressão é tão blasfematória quanto paradoxal, já que a
poesia está, como nós próprios reconhecemos, nos antípodas da
ciência.
Mas convém denunciar uma vez mais uma confusão sempre
renascente entre a observação e o fato observado. A poesia opõe-se
à ciência como fato, mas tal oposição não presume o método de
> observação adotado. A diferença entre astrologia e astronomia não
está nas estrelas, mas no espírito do homem que as estuda. Nada,
no fato poético em si, se opõe a priori a uma tentativa de observa­
ção e descrição científica. É certo que,_neste caso, o fato é parti­
cularmente complexo, obscurò7<evanescente.; O próprio Valéry dizia:
“Indefinível entra na definição”? Contudo, deve-se eliminar outra
confusão. Se a obscuridade constitui um caráter necessário do
poético como tal, isso é também verdadeiro para o “consumidor”,
o sujeito estético que cumpre o ato de contemplação, mas essa
obscuridade fenomenológica não é necessariamente obscuridade ao
nível reflexivo. O fato de conhecer os mecanismos do fenômeno
não impede absolutamente que tais mecanismos atuem ao nível
imediato. Há uma evidência da percepção contra a qual o conheci­
mento reflexivo nada pode fazer. A Terra continuou imóvel para
nós, depois que soubemos que ela gira.
Outra dificuldade parece surgir do fato de que a poética se
exprime em prosa. A prosa é a metalinguagem da qual a poesia e a
linguagem-objeto.- Essa heterogeneidade fundamental parece conde­
nar a poética a não alcançar a própria essência dc seu objeto: ela
empobrece irremediavelmente a poesia quando a explica em piosa.
Porém, mais uma vez, convém distinguir entre o ato de consumo,
que é estético, e o ato de reflexão, que é científico. Sentir o poema

24
não é conhecê-lo, conhecê-lo não é senti-lo. É normal que esses dois
atos diferentes se exprimam em linguagens diferentes.
De qualquer modo, é preciso escolher. Ou a poesia é uma graça
vinda do céu, que se deve receber em silêncio c recolhimento, ou
decidimos falar dela; neste caso, é preciso tentar fazê-lo de uma
maneira positiva. Muitos críticos preferem falar da poesia só poe-
ticamente. Seus comentários e explicações são um segundo poema,
superposto ao primeiro, lirismo sobre lirismo. Georges Mounin cita
alguns exemplos: “Na poesia, trata-se de fazer de maneira evidente
certa operação do espírito, de restituir seu equivalente assimilável
por meio exclusivo da física das palavras. A missão própria da poesia
c oferecer ao mais sólido da linguagem e ao mais misterioso do
mundo o lugar de uma misteriosa coincidência”15. Tais fórmulas
são vãs, porque não são claras nem verificáveis, e fazem de um
problema um mistério. Pelo contrário, deve-se colocar o problema
de maneira que certas soluções sejam concebíveis. É possível que as
hipóteses que apresentamos aqui se revelem falsas, mas pelo menos
elas têm o mérito de oferecer o meio de provar que o são. Será
então possível corrigi-las ou substituí-las até encontrar a verdadeira.
Aliás, nada nos garante que neste assunto a verdade seja acessível,
e a investigação científica pode finalmente revelar-se inoperante. Mas
como sabê-lo antes de experimentar?

(15) Poésic et Sociétéj Paris, PUF, 1962, pp. 53-4.

25
Capítulo I

O PROBLEMA POÉTICO

Ao tomar a linguagem poética como objeto de estudo, nem


por isso definimos tal objeto com suficiente clareza. P
Porque a lin-
_guagem é uma realidade paradoxal, que a análise revelai como for-
mada de elementos não linguísticos. Há duas maneiras de encarar
o poema, uma que é linguística e outra que não o é.
A linguagem, como se sabe, é feita de duas substâncias, ou
seja, duas realidades que existem por si sós e independentes uma
da outra, chamadas “significante e significado” (Saussure) ou “ex­
pressão e conteúdo” (Hjclmslev). O significante é o som articulado,
o significado é a idéia ou a coisa10. Q signo, segundo a velha defi­
nição escolástica novamente em voga, é “aliquid pro aliquo”, quer
dizer, dois termos que remetem um para o outro, e esse processo de
“remessa para” constitui aquilo que se chama “significação”.
No entanto, considerada em si mesma, nenhuma dessas duas
substâncias é propriamente linguística. Nos dois planos da expres­
são e do conteúdo, como Hjelmslev, devemos distinguir uma “forma”
e uma “substância”. A forma é o conjunto das relações estabele­
cidas por cada elemento dentro do sistema, e é esse conjunto de re­
lações que permite a determinado elemento desempenhar sua função
linguística.
Assim, no plano da expressão, há duas maneiras diferentes de
pronunciar a letra “r” em francês: há um “r^-apical” e um “r”

(16) Os linguistas atuais identificam o significado mais à idéia ou


conceito que à coisa. Mas já que toda ideia é ideia de alguma coisa, como
diz a fenomcnologia, temos o direito de estender o processo de significação
até à própria coisa; e quando se trata de substância do significado, muitas
vezes é mais prático falar cm termos de coisas.

27
“uvular”. Do ponto de vista substancial, vale dizer, acústico e ar-
ticulatório, a diferença é tão importante quanto a que separa “r”
de “1”. Foneticamente, portanto, os dois “r” representam dois sons
distintos. Mas essa diferença fonética não é linguística, porque não
há em francês duas palavras que se oponham por esta única diferença,
como “rampe” se opõe a “lampe”, por exemplo.
Do mesmo modo, é possível distinguir a forma ce a substância
do conteúdo. A substância é a realidade, mental ou ontológica; a
forma é essa mesma;;realidade tal como é estruturada pela expressão.
•Uma palavra só adquire sentido pelo jogo de suas relações de opo­
sição com as outras palavras da língua. Assim, para retomar um
exemplo de Hjelmslev: "... the part of the spectrum that is co-
vered by our word green is intersected in Welsh by a line that as-
signs a part of it to the same area as our word blue while the En-
glish boundary between green and blue is not found in Welsh” 17.
Assim, para uma mesma realidade objetiva, o espectro das cores,
as palavras tomam em cada língua um sentido diferente, conforme
o sistema de suas oposições respectivas. “A língua, dizia Saussure,
é uma forma e não uma substância”.
Esse ponto de vista “formal” que o estruturalismo aplica à
língua será por nós aplicado à linguagem, quer dizer, à própria
mensagem. Dentro de uma mesma língua, prosa e poesia distinguem
dois tipos diferentes de mensagem. Ora, duas mensagens podem
por sua vez opor-se seja pela forma, seja pela substância, c isso tanto
no plano da expressão como no do conteúdo. É na forma que iremos
procurar a origem da diferença, divergindo assim da poética tradi­
cional que, até há pouco, a procurava quase exclusivamente na
substância.
Consideremos primeiro o plano da expressão, isto é, a dicotomia
verso-prosa. Neste caso, a concepção “substancialista” do verso
parece derivar de sua própria definição, Com efeito, todos os sis-
temas de versificação baseiam-seí em normas convencionais cuja ca-
racterística comum é lançar mão só das unidades não-significantes

(17) “(...) a parte do espectro abrangida pela palavra verde em


nosso idioma é atravessada cm gales por uma linha que coloca parte dele
na mesma área do nosso azul, ao passo que: a linha divisória entre verde e
azul não existe em galês.” Prolegomena to <a Theory of language, trad. do
dinamarquês, Baltimore, 1953.

28

i
da língua. Para considerar apenas o verso regular francês, ele
baseia-se no metro e na rima, ou seja, na sílaba e no fonema. Ora,
sílaba e fonema são unidades menores que a palavra ou monema,
isto é, que a unidade mínima de significação, Que uma mensagem
comporte tal ou tal número de sílabas, isso não mudai sua significação,
do mesmo modo que o sentido de uma palavra não se altera quando
ela rima ou deixa de rimar com outra.
Por conseguinte, metro e rima não parecem caracteres linguis-
ticamente pertinentes. Apresentam-se como uma super-estrutura,
que modifica apenas a substância sonora, sem influência funcional
sobre o significado. Portanto, do ponto de vista propriamente lin­
guístico, o discurso versificado aparece como isomorfo à linguagem
não versificada. E se existe entre eles uma diferença estética é
porque ao primeiro se acrescenta, de fora, uma espécie de ornamento
sonoro capaz de produzir um efeito estético próprio. A linguagem
versificada identifica-se então à soma: prosa + música. A música
soma-se à prosa sem modificar nada de sua estrutura. Para retomar
a comparação saussureana da linguagem com o jogo de xadrez, a I
versificação seria semelhante àquelas peças artisticamente esculpidas, /
susceptíveis de representar um valor estético próprio, mas sem ne-(
nhuma relação com a partida de xadrez, considerada na sua estrutura
e funcionamento.
Esta concepção do verso talvez não seja totalmente falsa. Consi­
derações de estética sonora — eufonia, eurritmia, — certamente não
são estranhas ao poeta. Há uma “música” do verso que agrada
por si mesma, como prova o prazer que podemos sentir ouvindo
versos de uma língua desconhecida. Um esteticista inglês, C. M.
Valentine, declara sentir certo prazer em recitar “barbara celarent
darii ferio”, o que prova que um ritmo como este, de fórmula 3333,
é capaz de agradar ao ouvido. Assim também, a repetição regular
dos mesmos sons apresenta certo valor hedônico, como se observa
nas crianças. Mas não acreditamos que tal valor constitua a função
única, nem a mais importante, da versificação.
Com efeito, a essa concepção podemos opor argumentos de fato.
Primeiro, a relativa pobreza de recursos sonoros de que dispõe a
música verbal. Sabe-se que o verso foi originalmente cantado, mas
também que deixou de sê-lo. O poema que estudamos é um poema
dito, ou mesmo lido. Assim sendo, ele renunciou a uma parte con­
siderável de seus recursos musicais. Considerando apenas a duração,

29
Georges Lote18 mostrou que a relação entre a longa e a breve na
declamação é somente de 1 para 7, ao passo que no canto a relação
entre a semifusa e a semibreve é de 1 para 64. Da mesma maneira,
ao passar do canto para a fala, a voz reduz consideravelmente a escala
de intensidades, e mais ainda a escala de alturas. Henri Bremond
observava justamente: “frágil música se comparada à verdadeira,
Baudelaire e Wagner” 19.
Uma objeção da mesma ordem pode ser feita a respeito da
tentativa chamada “letrista”. O letrismo é interessante pelo seu
próprio fracasso. Teve o mérito de levar até o fim a lógica do
substancialismo. Se é verdade que os sons articulados do poema
têm um valor estético próprio, por que não jogar com eles livremente,
sem se preocupar com os imperativos do sentido? E por que limitar-
-se apenas às combinações de fonemas autorizadas pela língua?
Portanto, o letrismo primeiro inventou suas próprias palavras e,
foi ainda mais longe, inventou seus fonemas ou, mais exatamente,
seus elementos sonoros. Criou assim uma espécie de música con­
creta, talvez esteticamente válida, mas que não pode absolutamente
ser colocada na categoria das artes da linguagem. Com efeito, a
linguagem é significação, e esta palavra não deve designar — meta­
foricamente — tudo aquilo que é capaz de sugestão ou de “expres­
são”, mas sim aquele processo de “remessa para”, que implica a
transcendência do significado, ou seja, a dualidade, percebida como
tal, dos dois termos do processo semiológico.
O letrismo pretendeu ser poema. Com isso, condenou-se a
si próprio: um poema que não significa não é mais poema, porque
não é mais linguagem20.
Para provar experimentalmente esse fato, seria necessário com-
parar dois textos idênticos pelo som e diferentes pelo sentido, o
que é impossível por definição. Mas Raymond Qucneau deu um
passo nesse sentido, com seu processo de “isovocalismo”, que con­
siste em tomar um verso e dar seu equivalente sonoro, limitando-se
apenas às vogais. O verso de Mallarmé:

(18) Ualcxandrin dcvant la phonétiquc expérimcntale, 2? ed., Paris,


La Phalange, 1913.
(19) La poésie pure> Paris, Grassct, 1926, p. 24.
(20) J. Rousselot inclui alguns poemas letristas na sua Anthologie de
la Poésie Française, Paris, Seghers, 1962. Mas acrescenta esta objeção:
“Contestamos seu caráter poético”, p. 112.

30
Lc vierge, lc vivacc et lc bei aujourd’hui
[O virgem, o vivaz c o belo hoje]
dá então:
Lc liège, lc titanc d lc sei aujourd’hui
[A cortiça, o titânio c o sal hoje]

Parece-nos que a experiência é concludente.


Mas a essas objeções de fato, que não são dirimentes, podemos
acrescentar argumentos de direito, tirados do funcionamento da pró­
pria versificação. Retomemos o caso da rima. Dissemos que ela
joga com fonemas, portanto com unidades não significantes da lín­
gua. Mas isso à primeira vista, porque na realidade a rima não é
uma simples identidade sonora. Há na língua dois tipos de homo-
fonia: umas que são significantes, como é o caso das homofonias
gramaticais do tipo ator e fator; outras que não o são, como as ho­
mofonias não gramaticais do tipo dor e condor. Ora, como diz Jakob-
son: “As rimas devem ser gramaticais ou antigramaticais; uma rima
agramatical, indiferente à relação entre o som e a estrutura grama­
tical, seria um caso de patologia verbal, como todas as formas de
agramatismo”21. Assim, é em relação ao significado que a rima
se define. Esta relação pode ser positiva ou negativa, mas em
todos os casos é uma relação interna e constitutiva do processo.
É dentro desta relação que a rima deve ser estudada.
Do mesmo modo, um processo como o “enjambement”, ampla­
mente utilizado pela poesia francesa moderna, define-se como uma
discordância entre o metro c a sintaxe, ou seja, também por uma rela­
ção interna entre som e sentido. Por conseguinte, o verso não é
um elemento autónomo do poema, vindo de fora para juntar-se ao
conteúdo: é parte integrante do processo de significação. Como tal,
não pertence à musicologia, mas à linguística.
A mesma distinção de ponto de vista aplica-se à outra face do
discurso poético, isto é, ao significado. À primeira vista, se o poema
é linguagem, como já dissemos, ele tem a função de remeter para
o conteúdo considerado como substância, ou seja, como coisa exis­
tente em si e independente de qualquer expressão verbal ou não
verbal. As palavras são simples substitutos das coisas, existem

(21) Essais de linguistique, Paris, Editions de Minuit, p. 23. (Trad.


do inglês por N. Ruwct). [Tradução brasileira parcial: Linguística c Co­
municação, S. Paulo, Ed. Cultrix — Ed. da Univ. de S. Paulo, 1968.]

51
!
i
para transmitir uma informação sobre as coisas que as próprias coisas
nos forneceriam mais adequadamente se pudéssemos percebê-las. Se,
na falta de um relógio, eu perguntar a alguém que horas são, sua
resposta: “São duas horas”, fornece-me uma informação idêntica
à que eu teria obtido se eu mesmo olhasse o mostrador do relógio.
A linguagem, portanto, é um simples intermediário codificado
j da própria experiência. De modo que a comunicação verbal supõe
3uás operações inversas: a codificação, que vai das coisas às pala­
vras; a descodificação, que vai das palavras às coisas. Compreender
um texto não é porventura discernir o que se esconde por detrás
das palavras, ir das palavras às coisas, em suma, separar o conteúdo
de sua própria expressão?
Objetar-se-á que há casos em que o próprio pensamento não
pode conceber-sc sem as palavras que o exprimem. Os psicólogos
vêm repetindo que não há pensamento sem linguagem, que a lin­
guagem não é a roupa, mas o próprio corpo do pensamento. O que
parece ser particularmente verdadeiro em relação à idéia abstrata,
que só existe quando é nomeada. Mas solidariedade não quer dizer
identidade: embora o pensamento não possa dispensar a expressão,
isso não prova que esteja ligado a tal expressão determinada. É sem­
pre possível relacionar o pensamento, sobretudo o pensamento abs­
trato, com expressões diferentes, e a tradutibilidade, tanto para
outra língua como para a mesma, é uma prova de que o conteúdo
permanece distinto da expressão.
Traduzir é dar duas expressões diferentes de um mesmo conteúdo,
O tradutor entra no circuito da comunicação de acordo com o se-
guinte esquema:
Remetente • mensagem I tradutor -> mensagem II

destinatário.
A tradução realiza-se se a mensagem II for semanticamente
li equivalente à mensagem I, isto é, se a iinformação transmitida for
a mesma. Certamente, a tradução é• um exercício difícil, contra o

I qual se tem acumulado as iacusações resumidas pelo adágio italiano,


Mas o tradutor só trai os textos literários. Quanto à linguagem
científica, ela é traduzível e às vezes até perfeitamente traduzível,
o que vem provar que quanto mais abstrato se torna o pensamento,
menos ele se adapta à linguagem 22.
(22) Sobre esses problemas, cf. o livro de G. Mounin, Problèmcs théo
riques de la traduction, Paris, Gallimard, 1962.

32
Por conseguinte, temos o direito de admitir a autonomia do
conteúdo, pelo menos no que concerne à linguagem de tipo cientí­
fico, c basear neste princípio a subordinação da expressão ao con­
teúdo. A linguagem é simples veículo do pensamento, é o meio do
qual este é o fim, e nunca se sabe a priori se o mesmo fim não pode
ser atingido tão bem, ou talvez melhor, por outros meios. Podere­
mos sempre traduzir uma mensagem em outras palavras, seja para
torná-la mais acessível, seja, como faz o professor, para ter certeza
de que o aluno compreendeu. É esse exercício eminentemente pe­
dagógico que se chama “explicação de texto”. Na escola, o pro­
fessor aplica-o indiferentemente a textos de todos os gêneros, tan­
to literários como filosóficos, tanto à poesia como à prosa. Ora,
o problema é justamente esse. A autonomia do conteúdo, atestada
pela tradutibilidade, é indiscutível quando se trata de textos não
literários. Será também o caso de textos literários, mais precisa­
mente da poesia?
Talvez a tradutibilidadc seja justamente o critério que permite
diferenciar os dois tipos de linguagem. Eis aí um fato que a má­
quina de traduzir pode comprovar22. Todo o problema se resume
em saber qual a causa da intradutibilidade poética.
Para resolver essa questão é necessário mais uma vez distin­
guir a forma e a substancia do conteúdo. A tradução substancial é
possível, só a tradução formal é que não é. Um grande especialista
desses problemas diz: “A tradução consiste em produzir na língua
de chegada o equivalente natural mais próximo da mensagem da
língua de partida, primeiro quanto à significação, segundo quanto
ao estilo ” 24. Temos aí os dois níveis da operação. A substância
do conteúdo é a significação, a forma é o estilo. De tal modo que,
quando a língua de partida e a língua de chegada são ambas prosa,
o nível formal perde toda pertinência, porque a prosa, por definição,
é o grau zero do estilo. É sempre possível traduzir exatamente um
texto científico para outra língua ou para a mesma, justamente por­
que neste caso a expressão permanece exterior ao conteúdo. 'É rigo-

(23) Cf. P. Berteaux, “Lcs inachines à traduire”, in Etudes philoso-


phiques, 1962, n.° 2: “De experiências dc tradução feitas no ano passado
c publicadas na imprensa, resulta, que, entre dois textos submetidos à má­
quina dc traduzir, um c traduzível, outro não é.” O texto intraduzível c
evidentemente um poema.
(24) Nida, “Principies of translation”, in, On translation, ed. Brower,
Harvard Univ. Press, 1959.

2 33
rosamente a mesma coisa dizer: “São duas horas da tarde”, ou “São
cartorze horas”, ou “It is two o’clock p. m.”. Mas as coisas mudam
quando o estilo intervém: a expressão dá ao conteúdo uma forma
ou estrutura específica que é difícil, ou impossível, dar de outro
modo. De sorte que se pode guardar o sentido do poema (na sua
substância) e perder a forma, e com ela a poesia.
Para compreender melhor, tomemos um exemplo banal. Com-
paremos estas três fórmulas
a) cabelos loiros
b) loiros cabelos
c) cabelos de ouro

Entre essas três fórmulas existe uma diferença: a pertence à


prosa; b e c (malgrado o desgaste da banalidade) podem ser atri-
buídas à poesia. De onde vem a diferença? Todo o problema da
poética está aí.
As três fórmulas têm a mesma substância do conteúdo, o que
significa que transmitem a mesma informação. À pergunta: “De
que cor são os cabelos?”, três pessoas que tomassem conhecimento
de uma das três mensagens responderiam da mesma maneira: loiros.
Portanto, a diferença entre prosa e poesia não está aí, não depende
do significado na sua substância. Também não repousa na substân­
cia sonora, embora as três expressões, por definição, não sejam fo-
nicamente idênticas. Na verdade, ela baseia-se em algo que cons­
titui a relação dos significados entre si. A relação do significado
“loiros” com o significado “cabelos” não é a mesma, conforme o
significante esteja colocado antes ou depois do nome; também não
é idêntica conforme seja designado pelo significante “loiros” ou pelo
significante “de ouro”. Como se trata de uma relação, falaremos
de estrutura ou de forma, e como essa relação é de significados,
poderemos falar de uma forma do sentido.
Assim, a é a tradução de b e c, se traduzir significa: conservar
a substância. Já não o é, se traduzir significa conservar a forma.
E como é a forma que contém a poesia, a tradução de um poema
em prosa, por mais exata que seja, não conserva nada da poesia.
Henri Bremond dá um excelente exemplo disso. Do verso de
Malherbe:
a) Et les fruits passeront la promesse des flcurs

34
ele dá a seguinte versão ligeiramente diferente:
b) Et les fruits passeront les promesses des flcurs

O que, segundo ele, basta para degradar completamente o verso.


Este exemplo é particularmente precioso: como a estrutura métrica
e rítmica das duas fórmulas é a mesma, podemos deixar o significan-
te fora da discussão e examinar apenas a fase significada. Se há
degradação do verso, ela c a única responsável. Ora, a substância do
significado é idêntica nas duas versões; a mesma informação nos é
transmitida. Isso pode ser verificado submetendo-se as duas fór­
mulas à prova da verdade, conforme uma sugestão de Jakobson.
É claro que não se pode afirmar ou negar a sem afirmar ou negar b.
Se é verdadeiro ou falso que “os frutos ultrapassarão a promessa das
flores”, também é verdadeiro ou falso que “os frutos ultrapassarão
as promessas das flores”. A diferença estética deve pois ser atribuída
à única diferença linguística que subsiste entre a e b, e esta dife-
rença, como veremos, reside na forma do significado. Passando de
“a promessa das flores” para “as promessas das flores”, mudou-se
a relação dos dois termos do sintagma, alterando-se a própria estru­
tura do significado, como mostraremos. Na linguagem, costuma-se
opor a forma ao sentido, atribuindo-se à “forma” apenas o nível
sonoro. Na verdade, deve-se distinguir dois planos formais, o pri­
meiro ao nível do som, o segundo ao nível do sentido. Há uma
forma ou estrutura do sentido que muda quando se passa da fór­
mula poética para sua tradução prosaica. A tradução conserva a
substância do sentido, mas perde a forma. Mallarmé parece ter
tido a intuição exata desse fato, segundo Valéry: “Ele parecia que­
rer que a poesia, que deve distinguir-se essencialmente da prosa pela
forma fonética e pela música, se distinguisse também pela fornia do
sentido" 25.
Em que consiste esta forma? Toda a análise que vamos fazer
é uma tentativa de resposta. No estágio em que estamos, precisa­
mos apenas limpar o terreno, indicando o que a forma não é. Opu­
semos a forma à substância, ou seja, à realidade extra-lingiiística
ou à coisa, no sentido amplo, para a qual a linguagem remete.
A coisa, considerada em si mesma, não é poética. O que não implica
que ela seja prosa. Digamos que é neutra em relação ao par prosa-
-poesia, e que cabe à linguagem decidir. Todavia, outro contra-senso

(25) Stéphanc Mallarmé, Plêiade, p. 668.

35
nos espera aqui. As fórmulas que acabamos de empregar não pe­
sam em favor de uma espécie de realismo da expressão, segundo o
qual só as palavras seriam dotadas de um poder estético que as
coisas não teriam. Mais uma vez, a linguagem remete para as coisas
e, afora sua musicalidade própria, cujos limites traçamos, ela não
possui nada que não lhe seja emprestado pelas coisas. O que se
deve dizer é que as coisas só são poéticas cm potencial e que cabe
à linguagem fazer com que este potencial passe a ser ato. A rea­
lidade, tão logo é falada, entrega seu destino estético nas mãos da
linguagem. Ela será poética ser for poema, prosaica se for prosa.
Talvez este potencial esteja desigualmente distribuído e talvez
existam coisas com vocação poética. A lua, por exemplo, esse tema
inesgotável dos poetas de todas as épocas e nações, deve receber
esse privilégio de algum caráter intrínseco. (O próprio Mallarmé
que, cansado dessa obsessão, tinha jurado expulsá-la, teve que admi­
tir um dia: “Ela é poética, a danada!”). Esse problema pertence
a uma poética das coisas, que ainda está para ser feita. Mas tam­
bém neste caso, diga-se de passagem, será talvez necessário distinguir,
na própria substância, um nível que seria formal em relação a um
nível substancial, de grau inferior, que poderia ser relacionado com
a estrutura da percepção por oposição à coisa percebida 2C. No que
concerne ao poema, não é com as próprias coisas que lidamos, mas
com as coisas expressas através da linguagem. Assim sendo, existe
uma dominância da linguagem em relação às coisas. A expressão
é soberana para atualizar ou não a potencialidade poética do con­
teúdo. A lua é poética como “rainha da noite” ou como “foice de
ouro”; é prosaica como “o satélite da terra”. Daí resulta claramente
que a tarefa específica da poética literária é interrogar não o con­
teúdo, que permanece o mesmo, mas a expressão, a fim de saber
em que consiste a diferença.
Devemos endossar plenamente aquela verdade expressa por
Etienne Souriau quando condena “a exigência de um universo de
jardins, florestas, lagos, belos rostos femininos, luar terno ou melan-
eólico ou neblinas matinais, rosas ou rouxinóis, mitologias gregas
ou bretãs; sobretudo nada de _______
avião,_ _____ J.J ou chaminés da fá-
automóvel
brica” 27. E acrescenta: Enganam-se aqueles que pensam poder

(26) A crítica que faremos à poética de Gaston Bachclard c não opc


rar tal distinção.
(27) La. Correspondance des Arts, Paris, Flammarion, 1947, p. 259.

36
classificar as coisas uma por uma, como próximas ou distantes do
poético’ . De fato, a história literária ignorou essa exigência: a
poesia seguiu a evolução das sociedades, não deixou de se democra­
tizar. A princípio reservada aos deuses c às deusas, hoje ela abriu
suas portas à multidão de plebeus. Da carniça de Baudelaire ao
metrô de Prévert, os seres e coisas que se julgavam excluídos da
poesia por uma espécie de maldição natural mostraram-se dignos
de penetrar nela, quando as palavras forçavam sua entrada.
Mas a poética parece atrasada em relação à poesia. Na sua
grande maioria, críticos e comentaristas permanecem fiéis à tradição
da antiga retórica, que distinguia os “gêneros” segundo o objeto de
que tratavam. As categorias literárias ajustavam-se às categorias
das coisas, a estética era deduzida da ontologia. Assim, Possidônio
determinava que o poema reproduzisse “os problemas humanos e
divinos”, e Mathieu de Vendôme prescrevia-lhe um “conteúdo grave
e sério”. Ainda no século XVII, a comédia podia permitir-se uma
expressão em prosa, ao passo que a dignidade da tragédia lhe impu­
nha a linguagem do verso.
Os críticos de hoje teimam em procurar esse “conteúdo grave
e sério” no poeta, como se o valor estético do poema residisse no
que ele diz, e não na maneira como o diz. O poema só é analisado
ao nível ideológico, desprezando-se o nível linguístico ou considerando-
-o apenas a título de índice ou sintoma. Há mais interesse pelo
poeta que pelo poema, a explicação literária torna-se criptológica
a obra é um efeito que permite remontar às causas. Ao tornar-sc
psicanalítica ou sociológica, no fundo, a ciência da literatura perma­
neceu no velho problema das fontes. A crítica antiga procurava as
fontes literárias e julgava ter dito tudo sobre a obra quando desco­
bria sua filiação histórica. A crítica atual procura as fontes psicoló­
gicas ou sociais e julga ter explicado a obra quando consegue rela­
cioná-la com uma infância ou um ambiente. Põe-se à busca de um
significado verdadeiro, diferente do significado aparente, que daria
a chave da obra. Assim agindo, perde de vista seu verdadeiro objeto,
porque procura por detrás da linguagem uma chave que se encon­
tra na própria linguagem, como unidade indissolúvel do significante
e do significado.
Entenda-se: não procuramos absolutamente contestar a vali-
dade das interpretações psicanalíticas ou sociológicas. Essas duas
ciências têm todo o direito de interrogar a obra literária, assim como
qualquer outra manifestação da realidade humana que constitui seu

37
objeto. Só queremos contestar a competência estética que elas, tal­
vez involuntariamente, às vezes se arrogam. Ao interrogar a lin­
guagem do poeta como se fosse um sintoma ou um documento,
perde-se aquilo que o distingue, que é a beleza. Sobre o único pro-
\ plema pertinente para o poeticista — cm que a poesia difere da prosa?
— tanto a psicanálise como a sociologia nada têm a dizer. Uma
metáfora pode perfeitamente ser o sinal de uma obsessão, não é
por isso que ela é poesia, mas sim porque é metáfora, quer dizer,
certa maneira de significar um conteúdo que, sem qualquer pre-
juízo, poderia ser expresso em linguagem direta, Por detrás deste
verso de Baudelaire:

h Mais le vert paradis des amours enfantines.


[Mas o verde paraíso dos amores infantis]
o psicanalista tem o direito de projetar a sombra edipiana de Ma-
dame Aupick. Mas a mesma inferência poderia apoiar-se numa
frase de prosa banal: “Os meninos apaixonados são tão felizes”,
que teria conservado o conteúdo mas perdido a forma, juntamente
com a poesia.
A linguística tornou-se ciência no dia em que, com Saussure,
adotou o ponto de vista da imanência: explicar a linguagem por si
mesma. A poética deve adotar o mesmo ponto de vista: a poesia
é imanente ao poema, tal deve ser seu princípio básico. Como a
linguística, ela só trata da linguagem, com a diferença de que a poé-
tica toma por objeto não a linguagem em geral, mas uma de suas
formas específicas. O poeta é poeta não pelo que pensou ou sentiu,
mas pelo que disse. Ele é criador não de ideias, mas de palavras.
Todo seu gênio reside na invenção verbal. Uma sensibilidade ex-
cepcional não faz um grande poeta. Já foi possível definir a poesia
lírica pela sua própria banalidade, já que um mesmo repertório de
grandes sentimentos, herança comum da humanidade, fornece-lhe os
inesgotáveis temas de inspiração. Mas a banalidade está no que é
expresso, não na expressão. Le Lac de Lamartine, La Trislesse
cTOlympio de Hugo, Le Souvenir de Musset dizem a mesma coisa,
mas cada um o diz de uma maneira nova, em combinações únicas
de palavras, que permanecem para sempre na memória, porque é
nelas que está a beleza.
“Durante muito tempo, dizia Apollinaire, os franceses amaram
a beleza a título de informação”. Nada ilustra melhor a verda e
desse julgamento que a mania de exegese de que são objeto alguns

38
dc nossos poetas, sobretudo Mallarmé. Na obra desse poeta consi­
derado “obscuro”28, alguns esforçam-se para descobrir abismos me­
tafísicos. Talvez existam, e fique claro mais uma vez que não preten­
demos absolutamente negar a existência dc um conteúdo da lingua­
gem poética. Mas quando se fixa só esse conteúdo, seja qual for
seu valor de verdade, profundidade ou originalidade, corre-se o risco
de fazer crer que ele é o único detentor do valor poético do poema.
O fato é ainda mais paradoxal tratando-se de Mallarmé, poeta que
foi também poeticista e exprimiu-se muito claramente sobre sua
própria estética. Ora, ninguém mais que ele tomou consciência tão
clara da natureza lingiiística de sua arte. “Não é com idéias que
se fazem versos, é com palavras”, dizia ele, e definia a si próprio
por esta fórmula surpreendente: “Eu sou um sintaxista”. Apesar
disso, ainda há quem se interesse mais pela ideologia que pela lingua-
gem, mais pelo que o poema diz que pela maneira como diz29.
Assim, a propósito deste verso:
Victorieusemcnt fuit le suicide beau,
[Vitoriosamente foge do suicídio belo]
OS exegetas discutem, interminavelmente, sobre o sentido da palavra
“suicide”. Uns (Mauron, Gengoux) tomam o termo no sentido li-
teral; outros (Thibaudet, Davies Gardner) veem nele um pôr de
sol. Ora, essa discussão corre o risco de mascarar um fato que é
importante: o mesmo sentido poderia, sem prejuízo, exprimir-se em
prosa. Por exemplo:
Ayant surmonté la tentation d’un beau suicide,
[Tendo vencido a tentação de um belo suicídio]
para a primeira versão;
Ayant détourné mon regard d’un bcau coucher dc solcil
[Tendo desviado meu olhar dc um belo pôr dc sol]
para a segunda.

As duas fórmulas são diferentes pelo sentido, mas, como prosa


que são, também se opõem à fórmula original, que é poesia. A dife-

(28) Cf. a propósito nosso artigo “L’obscuritc de Mallarmé”, in


Revue d^sthétique, janeiro-março, 1962.
(29) Ver todavia o livro de Jacqucs Schercr, L’expression litléraire
chez Stéphanc Mallarmé, Paris, Droz, 1947.

J9
tença está primeiro na forma sonora. Mas não é tudo, Há um se-
gundo nível, léxico-gramatical, pelo qual o sentido adquire sua es-
pecificidade poética.
Todavia, o problema levantado pelo exegeta não é gratuito:
o poema tem um sentido e é preciso saber qual é esse sentido. Neste
verso de Valéry:
Ce toit tranquille ou inarchent des colombcs,
[Esse teto tranquilo em que andam as pombas]

se não soubéssemos que “toit” [teto] designa o mar e “colombes”


[pombas] navios, não perceberíamos a intenção do poeta. Mas este
sentido como substância, isto é, o fato de que “navios navegam
num mar calmo”, em si mesmo nada tem de poético. Pelo menos,
não é poético por direito natural, como prova a própria possibilidade
que tivemos de exprimir a mesma coisa numa fórmula que pertence
à mais prosaica das prosas. O fato poético começa a partir do mo­
mento em que o mar é chamado “teto” e os navios “pombas”.
Há aqui uma violação do código da linguagem, um desvio lin­
guístico que, com a antiga retórica, podemos chamar “figura”30
e que é a única que fornece o verdadeiro objeto da poética.
*

Desde a Antiguidade, a retórica define as figuras como manei­


ras de falar diferentes das naturais e comuns, vale dizer, como des­
vios de linguagem. Portanto, a palavra figura pode abranger o
conjunto dos fatos de estilo, para os quais é uma cômoda etiqueta.
É bem verdade que hoje o termo caiu em descrédito, como tudo que
vem da antiga retórica. Injustamente, a nosso ver. As causas desse
descrédito em que caiu uma ciência outrora tão respeitada são múl­
tiplas. Citaremos apenas uma, que envolve diretamente a questão
que acabamos de discutir.
Podemos distinguir dois tipos de figuras que, de acordo com
Fontanier31, chamaremos “figuras de invenção” e “figuras de uso”.
. (30) A terminologia da retórica não era fixa. Alguns opõem tropos
a figuras, outros tomam um dos termos como a espécie do outro. Adota-
remos este último critério: “figura” é o termo genérico e “tropo” sua espccie
lexical.
O último dos grandes retoristicas. Seus dois tratados: Manuel
(31)
")
classique pour Vétude des tropes (1822) e Des figures du discours autres que
les tropes (1827) serviram-nos como obras
c~ de referência.

40
Para compreender essa oposição, é preciso distinguir na própria fi-
gura a forma e a substância. A forma é a relação que une os ter­
mos, a substância são os próprios termos. Tomemos o caso da me­
táfora. Inicialmente, ela é construída sobre uma relação complexa,
que analisaremos depois, entre um termo e seu contexto. Tal re­
lação, que podemos chamar “lógica”, é idêntica a si mesma em
metáforas cujos termos são radicalmente diferentes. Em “noite
verde” (Rimbaud) e “ “ soluçante idéia” (Mallarmé), temos dois pa-
res de termos e, por conseguinte,, um conteúdo completamente dis-
tintos. Mas a relação que dentro de cada fórmula une o adjetivo
mesma, “Verde” é para “noite” o que “solu­
ao substantivo é a mesma.
çante” é para “idéia
ideia”. A estrutura sintagmática é idêntica e é
essa estrutura que faz de cada uma dessas fórmulas uma metáfora.
O que se pode simbolizar da seguinte maneira (designando
por So o► significado de cada termo e por R a relação):
Teoria substancialista: Prosa =5 Soj + So2;
------- = » So3
Poesia + So.,.
Teoria estruturalista: Prosa =(Sox) Rx (So2);
Poesia =(SoJ R2 (So2).
A diferença Ri/R2 é uma diferença formal que, como tal, pode
ser idêntica em significados diferentes e diferente em significados
idênticos.
Portanto, quando o poeta cria uma metáfora original, o que ele
inventa são os termos, não a relação: encarna uma forma antiga
numa substância nova. Aí está a sua invenção poética. O processo
é dado, resta utilizá-lo. A arte poética, ao longo de sua história,
certamente não deixou de inventar figuras originais, vale dizer, fornias
novas, mas, como nas outras artes, também aqui não são sempre
os maiores artistas que forjam as técnicas inovadoras. Na maioria
dos casos, limitam-se a explorar o arsenal das técnicas existentes.
Portanto, a figura de invenção não é original na forma, mas apenas
nos termos novos em que o gênio do poeta soube encarná-la.
Mas ocorre que algumas dessas realizações são retomadas, ca­
indo então no uso. Temos então as “figuras do uso”, nas quais
forma e substância, relação e termos são dados previamente. Assim,
em “chama tão negra” (Racine), temos uma fórmula aparentemente
ousada, mas que na realidade não contém nenhum traço de invenção.
“Chama” por “amor” e “negra” por “culpado” são de uso corrente

41
na época. A inteligibilidade para o público culto é imediata, Por
essa razão, desapareceu o desvio e com ele o efeito estilístico.
Se a figura é desvio, a expressão “figura de uso” é uma con­
tradição nos termos, já que o usual é a própria negação do desvio.
De fato, se a expressão conserva algum sentido, é porque existem
dois usos, um que c geral, difundido entre o conjunto dos membros
da comunidade linguística, outro que é especial, reservado apenas
a uma parte dessa comunidade. Dentro da língua, como é sabido,
existem sub-línguas, patuás, gírias ou jargões, que pela sua própria
especificidade conservam um valor estilístico particular. O con­
junto das figuras de uso utilizadas pelos poetas tem um valor “nobre”,
é uma marca de dignidade literária. Dizer “chama” por “amor”
é, para a mensagem, como trazer a indicação: “eu sou poesia”.
Resulta daí um “efeito” previsível que a antiga retórica tinha
codificado. Assim, segundo o Traité de stile de Mauvillon (1751),
numa série de sinónimos, existe um termo neutro, chamado “medío­
cre”, ao passo que todos os outros são estilisticamente marcados.
Por exemplo, “face” é de estilo “sublime”, “cara” de estilo “burles­
co”, ao passo que “rosto” é de estilo “medíocre”. As metáforas de
uso num poeta apenas acrescentam novos sinónimos à lista, e estes,
devido ao emprego reservado, são portadores da marca “estilo
poético”.
Mas seu poder se limita a isso, e logo degenera cm estilo “aca­
dêmico” ou “precioso”. Ora, a antiga poética progressivamente con­
fundiu “figura” e figura de uso, porque a arte poética consistia
apenas em servir-se destas formas estereotipadas ou “clichés dis­
poníveis”. De acordo com G. Antoine, podemos distinguir dois
tipos de fatos estilísticos, uns que ele chama “de escolha”, outros
“de criação ”32. O emprego das figuras de uso liga-se à estilística
de escolha: entre as formas oferecidas pela língua, o poeta limita-se
a escolher as mais raras, que são marcadas pelo signo literário.
A invenção é nula e o efeito degradado. Compreende-se por que os
modernos, principalmente os românticos, quiseram libertar-se desses
ouropéis antiquados. A frase de Hugo: “Guerra à retórica” não
tem outro sentido. Ele ataca a retórica fixada, as fórmulas feitas
que atravancam inutilmente a linguagem, mas não a retórica viva e
atuante, sem a qual não haveria poesia.

(32) La coordination cn /rançais, Paris, Ed. d’Arthey, 1958, P- 64.

42
A querela da metáfora renasce periodicamente, La Bruyère
já exclamava: “Por que não dizem: está chovendo!”, e todos co-
nhecem a diatribe de Âlccste contra o soneto de Oronte. Mais re­
centemente, André Breton replicava: “Não, senhor, Saint-Pol Roux
não quis dizer. . . se tivesse querido dizer, ele teria dito”. Há aqui
uma necessidade dc retorno à linguagem natural, uma reivindicação
de “literalidade”, pela qual o poeta julga conquistar um mérito mais
elevado. A poesia não se conforma muito em ser apenas uma forma
de linguagem, uma determinada maneira de falar. Como a ciência
ou a filosofia, ela quer ser expressão de verdades novas, descoberta
de aspectos ignorados do mundo objetivo. Assim agindo, é preciso
ter a coragem dc dizê-lo, ela comete um erro mortal. A poesia não
é ciência, mas arte, e arte é forma e nada mais que forma. O poeta
pode revelar novas verdades, se quiser; não é por isso que ele é
poeta. A linguagem natural, por definição, é a prosa; a poesia é
linguagem de arte, vale dizer, artifício. E certos poetas de hoje,
que julgam falar a linguagem natural, ficariam muito surpresos em
ver uma análise aplicada às suas obras encontrar nelas as mesmas
figuras tradicionais, metáforas, silepses ou anacolutos, há muito ca­
talogadas c classificadas pela retórica clássica. As “figuras” não são
ornamentos inúteis: constituem a própria essência da arte poética.
São elas que liberam a carga poética que o mundo esconde e que
a prosa mantém cativa.
Segundo Valéry, Mallarmée parece ter percebido isso: “Na
ordem da linguagem, as figuras — que normalmente desempenham
um papel acessório, parecendo intervir só para ilustrar ou reforçar
uma intenção, como se fossem adventícias, semelhantes a ornamentos
que a substância do discurso pode dispensar — tornam-se elementos
essenciais na reflexão de Mallarmé.”33 Mais ainda: “as rimas, as
aliterações, dc um lado, as figuras, tropos e metáforas, de outro,
deixam de ser detalhes e ornamentos do discurso que se possam su­
primir: constituem propriedades substanciais da obra;; o fundo não
é mais causa da forma, é um dos efeitos.” 34 Prolongando o pensa-
mento do mestre, Valéry declarava: “Se procurar informar-me hoje
sobre esses usos, ou 1talvez abusos de linguagem, reunidos sob o
nome vago e geral
g de “figuras”, nada mais encontrarei que os ves-
tígios esquecidos da análise bastante imperfeita que: os antigos ten-
taram fazer dos fenômenos “retóricos”. Ora, C essas figuras tão des-

(33) Je disais quclqucfois. . ., Plêiade, p. 658.


(34) Mallarmé, Plêiade, pp. 709-710.

43
prezadas pela crítica dos modernos desempenham um papel de pri­
meira importância na poesia. . . Parece que ninguém tentou reto­
mar essa análise. No exame aprofundado dessas substituições, des­
sas notações contractas, desses equívocos voluntários e desses expe­
dientes, até aqui tão vagamente definidos pelos gramáticos, ninguém
procura as propriedades que eles supõem.”35 Depois que essas li­
nhas foram escritas, o preconceito anti-retórico modificou-se um pouco,
pelo menos entre os linguistas, e a estilística moderna reconhece sua
dívida para com essa velha ciência, ao mesmo tempo em que tenta
renová-la. Nosso estudo tem a ambição de inscrever-se dentro dessa
tentativa.
Na verdade, a antiga retórica foi construída numa perspectiva
puramente taxinômica. Procurou apenas descobrir, nomear e classi­
ficar os diferentes tipos de desvio. Foi uma tarefa fastidiosa, porém
necessária. Todas as ciências começaram por aí. Mas a retórica
parou nesta primeira etapa, não procurou a estrutura comum às
I diferentes figuras. É precisamente esse o objetivo de nossa análise.
Será que entre a rima, a metáfora e a inversão, existe algum traço
comum capaz de explicar sua eficácia comum? Cada uma dessas
figuras pode ser considerada como uma espécie de operador poético
que funciona de maneira própria e por conta própria. Mas se
todas produzem o mesmo efeito estético, se todas constituem o ar­
senal dos meios utilizados pelo mesmo gênero literário determinado,
temos o direito de supor que todas têm uma natureza semelhante.
A retórica clássica situava-se realmente no nível formal, já que
toda figura é uma forma. Mas, ao insistir nas diferenças, ela ficava
próxima do termo material em que cada figura se encarna e encon­
tra sua especificidade. A poética estrutural situa-se num grau su­
perior de formalização. Procura uma forma das formas, um opera­
dor poético geral do qual todas as figuras seriam apenas realiza­
ções virtuais particulares, especificadas segundo o nível e a função
linguística em que o operador se atualiza. Assim, a rima é um ope­
rador fónico, por oposição à metáfora, operador semântico; dentro
do seu próprio nível, como operador distintivo, ela se opõe ao
metro, operador contrastivo; ao nível semântico, a metáfora, opera­
dor predicativo, opõe-se ao “epíteto”, operador determinativo.
Por conseguinte, nossa análise distribuir-se-á segundo os níveis
e segundo as funções. Em cada caso, só estudará uma figura parti-
cularmente representativa de sua função. Vale dizer que so um

(35) Questions de poésie, Plêiade, pp. 1289/90.

44
pequeno número de figuras serão analisadas aqui. Era impossível,
evidentemente, estudar as duzentas e cinquenta figuras classificadas
pela retórica clássica. Nossa perspectiva é sintética e julgamos que
o que é verdadeiro para as figuras principais, provavelmente o seja
para todas as outras. Também não estudaremos exaustivamente ne­
nhum desses processos: só a metáfora36 exigiria um volume inteiro.
E que dizer da versificação! Ao invés de nos perdermos em deta­
lhes, pareceu-nos preferível para a nossa perspectiva procurar dis­
tinguir os grandes traços, já que só a comparação das diferentes fi­
guras entre si, esclarecendo uma pela outra, pode revelar sua estru­
tura íntima. Compreenderemos melhor a rima ou a inversão, se as
compararmos com a metáfora: cada figura projeta sua luz sobre
todas as outras. Em resumo, não se trata de abarcar nestas pági­
nas o conjunto da poética, mas apenas de levantar as preliminares
necessárias para a construção de uma hipótese, por sua vez susceptí-
vel de facilitar pesquisas futuras.
Por outro lado, só examinaremos neste estudo o primeiro tempo
de um mecanismo que, a nosso ver, comporta dois. O primeiro
tempo é negativo. Constitui-se como violação sistemática do código
da linguagem, porque cada figura se especifica como infração a uma
das regras que compõem esse código. Para nós, a poesia não é prosa
ntais alguma coisa. É antiprosa. Neste aspecto, ela aparece como
totalmente negativa, como uma forma de patologia da linguagem.
Mas esta primeira fase implica uma segunda, que é positiva. A poe­
sia só destrói a linguagem corrente para reconstruí-la num plano su­
perior. À desestruturação operada pela figura sucede uma reestru-
turação de outra ordem. Esta segunda fase só será abordada na
conclusão; o essencial de nossa análise será dedicado à fase negativa
porque, apesar de condição necessária da segunite, ela até agora
nunca foi objeto de um estudo sistemático. Ora, tal estudo apre­
senta um particular interesse linguístico c psicológico. Esse código
da linguagem em relação ao qual a poesia se define não foi expli­
citado em lugar nenhum. Ele não se confunde com a língua, nem
com a lógica, mas ultrapassa ambas. A poética pode justamente
ajudar-nos a conhecê-lo melhor, distinguindo as leis das quais cada
figura constitui uma violação. Sendo o estudo das formas anormais
da linguagem, ela permite compreender melhor como funciona a
linguagem normal.
(36) Por “metáfora” designamos aqui uma figura da qual, na reali-
dade, ela só constitui uma parte, como veremos no capítulo III.

45
Capítulo II

NÍVEL FÓNICO: A VERSIFICAÇÃO

Ainda hoje, e até nos meios eruditos, é comum confundir verso


com poesia, erro que deve ser denunciado, tendo-se o cuidado de
não cair no erro inverso, como fazem aqueles que denunciam o
verso como um ornamento inútil e até mesmo como um entrave
ao livre voo do pensamento poético. O verso não é um revesti­
mento desnecessário aplicado sobre uma linguagem cujo destino poé­
tico se situe em outro nível. A raridade do poema em prosa está aí
para prová-lo: apesar de sucessos incontestáveis, ele constitui uma
exceção na nossa literatura. “Quem de nós, escreveu Baudelaire,
já não sonhou, em certos dias dc ambição, com o milagre de uma
prosa poética, musical, sem ritmo nem rima, suficientemente fle­
xível e nervosa para adaptar-se aos movimentos líricos da alma,
às ondulações do devaneio, aos sobressaltos da consciência?” Essa
ambição, Baudelaire realizou-a escrevendo seus “pequenos poemas
em prosa”. Não obstante, quem há de negar que o grande Baudelai­
re é o das Flores do Mal? Apesar das profundas modificações que
sofreu no decorrer de sua história, o verso continua sendo até hoje
o veículo corrente da poesia. É de se acreditar que constitui para
ela um instrumento eficaz.
Como muitas vezes acontece, as duas concepções estão certas
no que afirmam e erradas no que negam. A verdade é que o verso
não é nem indispensável nem inútil. Porque o ato da poetização
abrange os dois níveis da linguagem, fónico e semântico. O nível
semântico é sem dúvida privilegiado. Com efeito, o poema em prosa
existe poeticamente, ao passo que o verso letrista só tem umai exis-
tência musical, A poesia pode prescindir do verso, mas^ por^que
prescindir dele? Uma arte completa tem a obrigação de d_ utilizar

46
todos os recursos de seu instrumento. INãoNão utilizando os recursos
fónicos da linguagem, o poema em prosa aparece sempre como uma
poesia mutilada. O verso é um processo de poetização, e é como
tal que devemos estudá-lo.
Aqui, um esclarecimento. Ao situar o verso no nível fónico, não
caímos no erro substancialista que já denunciamos. Como veremos,
o verso só existe como relação entre o som e o sentido. Portanto,
é uma estrutura fono-semântica. Contudo, difere dos outros pro­
cessos de poetização, como a metáfora, que se situa unicamente no
nível semântico. Para as necessidades da análise, devemos distingui­
do dos demais, mas veremos que na sua estrutura profunda o verso
é uma figura semelhante às outras. Verso e metáfora têm estrutu­
ras homólogas: a diferença entre ambos está apenas nos elementos
que as duas figuras utilizam. As dificuldades insolúveis que o verso
opôs à poética devem-se ao isolacionismo fonético. Para dizer a
verdade, é dcsalentador pesquisar, ainda que sumariamente, a co­
piosa bibliografia que lhe foi consagrada. No fim, chegamos a
perguntar-nos se existe rcalmente algo que seja o verso francês.
Sc o considerarmos do ponto de vista da totalidade como relação
som-sentido, veremos as dificuldades diminuírem, se não desapare­
cerem, ao mesmo tempo em que certos fatos até então inexplicados
a supressão dc pontuação por exemplo, encontrarão uma justificativa
O que é o verso francês? Pergunta aparentemente ingénua.
O verso obedece a regras convencionais e, por conseguinte, estas
regras dão-lhe a priori sua definição.
Todo verso é “versus”, ou seja, retorno. Por oposição à prosa
(“prorsus”) que avança linearmente, o verso volta sempre sobre
si mesmo. Gerard Hopkins dá-lhe a seguinte definição, conservada
por Jakobson: “discurso que repete total ou parcialmente a mesma
figura fónica” 37. O versus baseia-se em elementos sonoros variáveis
de uma língua para outra. Em francês, sabe-se que é o isossilabismo,
ou número igual de sílabas, que fundamenta a repetição. Conside­
rando todas as sílabas iguais, chamaremos discurso versificado todo
discurso que se possa dividir em segmentos de igual número de
sílabas, pelo menos dois a dois. A isso se acrescenta a identidade
dos terminais ou rima, sempre dois a dois. Digamos que o verso
francês é cm primeiro lugar homométrico, em segundo homofônico.

(37) Essais, p. 221.

47
Essa definição não deixa de apresentar numerosos problemas,
sobre os quais voltaremos demoradamente. Veremos que é con­
testada por foneticistas eminentes, entre os quais George Lote. Por
enquanto, oporemos uma questão prévia. Uma boa definição deve
aplicar-se a todo o definido e somente ao definido. Ora, a definição
acima só se aplica ao verso regular. E o “verso livre”, ou seja, o
verso que não respeita nem o metro nem a rima? Devemos negar-
-Ihe a qualidade de verso? Tal procedimento não constituiria um
método científico válido, Ante uma definição que não abrange
o conjunto dos fatos observados, julgamos metodologicamente mais
proveitoso tentar refazer a definição antes de excluir sistematica-
mente os casos aberrantes.
De fato, os poetas que empregaram o verso livre consideram-no
como um verso autêntico; poetas consagrados como Claudel< ou
Saint-John Perse, para citar apenas alguns, usaram-no, e hoje a
jovem poesia francesa emprega-o quase exclusivamente. Quando
Claudel escreve em La Ville-.
J’inventai cc vers qui n9avait ni rime ni mèlrc
[Inventei aquele verso que não tinha rima nem metro]

podemos negar-lhe o direito de chamar verso o que não tem “nem


rima nem metro”? Não. Pelo menos a priori, antes de tentar en­
contrar uma definição que abranja ao mesmo tempo o verso regular
e o verso livre, tanto Hugo como Claudel.
O caráter ou os caracteres definicionais devem convir para tudo
que é chamado verso, e apenas para o que é chamado verso: o
que significa que, na medida do possível, não devem encontrar-se
no que é tido como prosa. É por isso que o ritimo baleado no
acento temporal, como o definiu Lote, não nos parece responder
a essas exigências. O ritmo existe na prosa, e entre prosa rítmica
e verso rítmico não vemos muita diferença. Talvez o ritmo seja
mais marcado em Bossuet que em Claudel, onde às vezes é bastante
solto! Isso não significa em absoluto que contestemos a existência
e a importância do ritmo acentuai no verso francês, pelo contrário,
como veremos.
Mas queríamos, desde o início, mostrar-nos bastante exigentes:
encontrar, se possível, um <caráter ---- a- ao mesmo tempo pre-
— esteja
-------- que
sente em Hugo e Claudel, e ausente em Bossuet e Chateaubriand.
Da mesma forma, para satisfazer às exigências de um método rigo-

48
rosamente positivo, queríamos encontrar tal caráter só naquilo que
é escrito.
Realmente, a poesia é feita para ser declamada.
declamada, Porém, nem
todos os declamadores recitam da mesma maneira e as diferenças
podem às vezes ser consideráveis, Os próprios foneticistas não estão
de acordo quanto à maneira de dizer• um verso. De onde vem tal
desacordo? A resposta é fácil, Nunca os poetas se preocuparam
em anotar na “partitura” qualquer indicação. No tocante ao ritmo,
sobretudo, teria sido fácil indicar com um signo o lugar dos acentos.
Os poetas nunca o fizeram. 7Portanto, se quisermos limitar-nos aos
dados objetivos indiscutíveis, devemos seguir o que o poeta pres­
creveu explicitamente, ou seja, o texto escrito. É no dado gráfico,
portanto, que pretendemos encontrar o caráter procurado.
Resumindo, nossa definição deverá então satisfazer a três
condições:
1. ° Convir a todos os versos, regulares ou livres.
2. ° Não se aplicar a nenhuma espécie de prosa.
3. ° Basear-se apenas nos dados gráficos.
Existirá um caráter susceptível de satisfazer a essa tripla exi­
gência? Sim, e pensamos que aquilo que podemos chamar “recorte”
do discurso versificado é capaz de fornecer o caráter específico em
questão.
*
* *

À primeira vista, uma página em verso distingue-se de uma pá-]


gina em prosa pela composição tipográfica. Após cada verso,, o
poema muda de linha. Cada verso é separado do seguinte por um
espaço cm branco que vai da última letra ao fim da página.
O espaço em branco é o signo gráfico da pausa ou silêncio.
Signo natural, aliás, pois a ausência de letra simboliza normalmente
a ausência de voz. Até hoje, os poeticistas não atribuíram grande
importância à pausa. Negligência surpreendente, se considerarmos
que os poetas nunca tiveram o cuidado de anotar os valores musicais
das sílabas, mas nenhum deles deixou de observar a tradicional mu­
dança de linha após cada verso.
Na origem, a pausa é uma suspensão de voz necessária para
que o falante tome fôlego. Portanto, em si, ela é um simples fe-

49
nômeno fisiológico exterior ao discurso, mas que se carregou natu­
ralmente de significação linguística.
“A cadeia fónica, diz Saussure, tem como primeiro caráter o
fato de ser linear. . . Considerada em si mesma, ela é apenas uma
linha em que o ouvido não percebe nenhuma divisão suficiente ou
precisa”. 38
Ora, compreender o discurso é primeiro dividi-lo, ou seja, mar­
car as relações de solidariedade variável que unem seus diversos
elementos. Solidariedade ao mesmo tempo lógica e gramatical, que
divide o discurso em partes que se encaixam: capítulos, parágrafos,
frases, palavras. Tal divisão opera-se normalmente segundo o sen­
tido, mas é consideravelmente facilitada quando, aos limites mar­
cados pelo sentido, acrescentam-se fronteiras marcadas pela voz. O
falante acha natural fazer uma parada de voz numa parada de sen­
tido, e a pausa toma então uma significação precisa: marca a in­
dependência semântica das unidades entre as quais se interpõe39.
Assim, a divisão semântica é acompanhada de uma divisão fó­
nica paralela. Temos aí o exemplo de um fato geral cm toda a
extensão da língua, conhecido pelo nome de redundância. Sempre, ou
quase sempre, a língua significa mais de uma vez o que ela quer dar
a entender.
Da mesma forma, pode-se dizer que toda sequência é dividida
duas vezes, uma vez pelo sentido, outra vez pelo som. Esta seqiiên-
cia, por exemplo: “O tempo está bom. Vou sair”, é divisível em
dois grupos distintos, pelo som que marca uma pausa entre os dois
grupos e, ao mesmo tempo, pelo sentido que — pelo menos num
caso tão simples — bastaria para operar a divisão. Para fazer a
experiência, basta escrever a sequência de outro modo:
O tempo está bom vou sair

A ausência de qualquer pausa não nos impede de ligar cm


conjunto dois grupos separados: de um lado “o tempo está bom”,
de outro “vou sair”.

(38) Cours de linguistique générale, Paris, Payot, 5.a ed., 1962, p. 15.
[Tradução brasileira:: Curso de Linguística Geral, S. T Paulo, Ed. Cultrix
— Ed da Univ. de S. Paulo, 1969.]
(39) Portanto,
1 a segmentação do discurso depende da linguagem
“analógica”, É um dos fatos que mostram que a fala é muito menos arbi-
traria que a língua.

>0
. a organização do dado lingiiístico é consideravelmente
facilitada pela convergência dos dois fatores. Empregando a ter-
minologia <da Psicologia da Porma, poderíamos falar de “formas
fortes” em todos
----- j os casos em que dois fatores de estruturação atuam
no mesmo sentido, e de “formas fracas” no caso em que atuam
em sentido contrário.
No discurso normal, a composição das partes encaixadas cons-
titui uma fforma forte, pois o paralelismo fono-semântico atua em
todos os graus da divisão. Com efeito, a independência das unida­
des componentes do discurso é relativa. Dois capítulos são mais in­
dependentes entre si que dois parágrafos, e estes o são mais que
duas frases. A pausa encarrega-se de exprimir essas variações, com
uma duração proporcional ao grau de independência. Ao nível da
frase, onde a solidariedade psicológica dos elementos é acompanhada
de uma solidariedade gramatical, a língua escrita julgou conveniente
sobrecarregar os espaços em branco com signos particulares, chama­
dos “signos de pontuação”. Em francês, há dois principais: o ponto
e a vírgula. Estes signos, que Damourette chama “signos pausais” 40,
não são os únicos a marcarem a pausa, já que todos os espaços em
branco têm esta função, mas assinalam uma articulação que é ao
mesmo tempo psicológica e gramatical. Entre ambos, há uma hie­
rarquia: o ponto marca o fim da frase, isto é, de um conjunto que
pode existir isoladamcnte pelo fato de apresentar um sentido com­
pleto. Quanto à vírgula, separa grupos que não podem existir
isoladamente, embora gozem de uma relativa autonomia. A vírgula,
diz Damourette, “representa as pequenas pausas que separam numa
frase certos elementos ligados de maneira bastante frouxa aos ter­
mos com que sc relacionam” 41.
Tal é o sistema de organização do discurso que vigora na prosa,
E a linguagem versificada? Consideremos os dois versos seguintes:
Souvcnir, souvcnir, que me veux-tu? L’automnc
Faisait voler la grive à travers 1’air atone.
[Recordação, recordação, que queres de mim?
O outono/Fazia a torda voar através do ar parado.]
(Verlaine)
Entre os dois, intercala-se uma pausa chamada “pausa métrica”,
porque tem a função de significar que o metro está preenchido e o
(40) Por oposição aos “signos melódicos”, ponto de interrogação, de
exclamação, etc. Traité Modcrne de ponctuation, Paris, Laroussc, 1939, p. 10.
(41) Ibid., p. 13.

51
verso terminado. Ora, a pausa aqui não tem valor semântico: com
efeito, separa duas unidades estreitamente solidárias, o sujeito “au-
tomne” e o verbo “faisait voler”. Mas como distinguir a pausa
métrica da pausa semântica? Oralmente, ambas são marcadas por
silêncios e não há nenhum meio de diferençá-las. Assim sendo, cum­
pre atribuir aos dois sistemas de pausa um mesmo valor, seja se­
mântico, seja métrico, seja ambos. Em todos estes casos, trai-se
a estrutura ao mesmo tempo métrica e semântica do discurso. Os
silêncios, com efeito, decompõem a seqíiência em três grupos:
Souvenir, souvenir, que me vcux-tu? —
Lfautomne —
Faisait voler la grive à travers Vair atonc. —

Portanto, temos três versos e três frases, onde na realidade só há


dois versos e duas frases.
Para evitar esse inconveniente, o recitante pode escolher entre
duas possibilidades: ignorar a pausa métrica ou, pelo contrário, eli-
minar a pausa semântica. Examinemos sucessivamente as duas:
No primeiro caso, a dicção segue o sentido e, marcando a pausa
depois de “Que me veux-tu?”, liga sem interrupção “1’automne” com
“faisait voler”:
Souvenir, souvenir, que me veux-tu? —
L’automne faisait voler la grive à travers Vair atonc. —

Tal dicção respeita a frase, mas ignora o verso, contradizendo um


princípio que Grammont enuncia formalmente nos seguintes termos:
“Quando há conflito entre o metro e a sintaxe, é sempre o metro
que vence, e a frase deve curvar-se às suas exigências. Todo verso,
sem nenhuma exceção possível, é seguido de uma pausa mais ou
menos longa” 42. Prova disso é que o hiato, entre dois versos, não
é proscrito. Porém, o simples bom senso nos diz que num discurso
versificado não se pode ignorar a versificação: portanto, o tipo de
dicção acima citado é poeticamente inadequado, devendo ser banido
sem restrição.
Resta, então, a segunda possibilidade: eliminar a pausa semân-
tica e dizer o verso de uma maneira que pode ser notada do seguinte
modo:
Souvenir souvenir que me vcux-tu Vautomne
Faisait voler la grive à travers Vair atonc.

(42) Le vers français, Paris, Picard et fils, 1904, p. 35.

>2
Tal dicção pode parecer aberrante. Ignorando o ponto, ela enfra­
quece a estrutura da frase. A palavra “automne liga-se sem inter­
mediário às palavras que a precedem, com as quais não se relaciona
sintaticamente e, ao contrário, separa-se das palavras que a seguem,
com as quais é sintaticamente solidária. Portanto, temos uma ruptu-
ra do paralelismo fono-semântico que normalmente garante a es­
truturação da frase.
Não obstante, como veremos adiante, todos os fatos estão a
favor desta solução.
Primeiro, é bastante significativo o fato de nós termos supri­
mido naturalmente os signos de pontuação para indicar este tipo
de dicção. Com efeito, adotamos assim uma forma de notação am­
plamente praticada pela poesia moderna desde os fins do século XIX.
Essa recusa dc pontuação foi encarada como uma extravagância da
parte do poeta, mas devemos desconfiar de explicações semelhantes
quando sc trata dc um fenômeno tão generalizado. Com efeito, os
poetas souberam entender que o “conflito entre o metro e a sintaxe”
vinha da própria essência do verso. Os dois sistemas de pausa en­
tram necessariamente em cm concorrência e, se quisermos salvar o
metro, devemos sacrificar a sintaxe. Talvez o objetivo impreciso
do verso seja mesmo deslocar a sintaxe, mas não nos antecipemos:
por enquanto, basta acrescentar' a nosso dossiê um fato que a poé-
tica nunca considerou com a devida atenção.
Apollinaire justificava a não-pontuação da seguinte forma: “É
uma novidade. Pareceu-me que a pontuação dificultava singular­
mente o voo de um poema, que segue seu curso alado de uma só
vez. Evidentemente, não compreendemos, mas isso não tem im-
portância, não é verdade? ” 43 Assim, para Apollinaire, o verso não-
-pontuado se diz de uma só vez, isto é, sem marcar pausa, nem se-
quer onde o sentido exige. Por exemplo, estes dois versos de Aragon:
Jc cricrai jc crierai Ta Icvre est le verre ou
]’ai bu le long amour ainsi que du vin rouge.
[Eu gritarei cu gritarei Teu lábio éc o copo em que/ Bebi o
longo amor como sc fora vinho tinto]

só podem ser ditos tal como estão escritos, Marcar-se-á a pausa


métrica depois de “le verre oii", ou seja, entre os dois versos; pelo

(43) Segundo um artigo publicado em UOeuvre, 5 de fevereiro dc


1935, assinado por H. S

55
contrário, omitir-se-á a pausa entre “je
]e crierai” e “Ta lèvre”, ou
seja, entre as duas frases. Nestes dois exemplos, a versificação pa­
rece contrariar as regras do discurso normal: coloca uma pausa onde
o sentido a recusa, e não a coloca onde o sentido exige.
É verdade que os dois exemplos apresentados realizam um pro­
cesso particular, conhecido como “enjambement”. O enjambement
é a frase que acaba no meio do verso. Tal recurso, como se sabe,
foi totalmente proscrito no século XVII, embora tenha sido pra­
ticado no século anterior. Ronsard escrevia no prefácio póstumo
de La Plêiade: “Na minha juventude, eu julgava que os versos que
continuam em outro verso não eram bons para nossa poesia; no en­
tanto, mudei de opinião depois da leitura de bons autores gregos e
romanos”. Mas enfim chegou Malhcrbe e, com ele, segundo Boileau:
Lcs Stanccs avcc grâcc apprirent à tomber
Et le vers sur le vers n’osa plus enjamber.
[As Estâncias com graça aprenderam a terminar/
E um verso cm outro verso não ousou mais continuar.]
Notemos que o “enjambement” foi retomado a partir dos ro­
mânticos, e até sistematicamente praticado às vezes, em Hérodiade
de Mallarmé, por exemplo. Mas esse não é o problema essencial.
Com efeito, o “enjambement”, no sentido estrito, nada mais é que
um caso particular do conflito metro-sintaxe, observável em todos
os versos.
Tal conflito tem origem na concorrência dc dois sistemas de
pausa indiscerníveis. Para solucioná-lo, seria [preciso uma coinci-
dência perfeita entre pausa métrica e pausa semântica,. Ora, nenhum
poema francês conhecido realiza tal coincidência.
Consideremos estes dois versos famosos:
Ariane, ma soeur, dc quel amour blcsséc,
Vous mourutes aux bords ou vous futes laissée
[Ariane, minha irmã, de que amor ferida/
Morrestes nas margens em que fostes abandonada]

O primeiro contém três pausas semânticas iguais, anotadas por


três vírgulas que coincidem todas com pausas rítmicas. Portanto,
parece que aqui existiria coincidência. Observemos mais atenta­
mente. As três pausas rítmicas são de valor desigual: a primeira
marca o fim de uma medida, a segunda, o fim de um hemistíquio, a
terceira o fim de um verso. Logo, as pausas semânticas iguais cor­
respondem a pausas rítmicas desiguais. Inversamente, no segundo

54
verso, as pausas rítmicas não estão marcadas por signos de pontua­
ção e, consequentemente, não correspondem a pausas semânticas.
O que os clássicos fizeram foi uma redução ao mínimo da dis­
cordância entre som e sentido. Por um lado tiveram o cuidado de
evitar o “enjambement”, isto é, a pausa forte no meio do verso e,
por outro, de fazer coincidir os finais de verso com as pausas se­
mânticas, isto é, com pontos e vírgulas. Assim, reduziram o con­
flito, convém repetir, mas não o eliminaram. Para garantir uma con­
vergência total dos dois sistemas, seria necessário um paralelismo
exato entre pausa métrica e pausa semântica, ou seja, que a pausa
de final de verso correspondesse sempre a certa pausa semântica
— final de frase, por exemplo —, garantindo assim a proporciona­
lidade. Por exemplo:
PAUSA MÉTRICA PAUSA SEMÂNTICA
fim de verso fim dc frase (ou ponto)
fim de hemistíquio fim de oração (ou vírgula)
fim de medida fim de núcleo de oração

Ora, considerando-se apenas os finais de verso, encontramos nos


clássicos igual número de vírgulas que dc pontos, o que é suficiente
para romper o paralelismo. Empenhando-se em terminar os versos
com signo de pontuação, os clássicos atenuaram verdadeiramente o
conflito entre o verso e a gramática. Convém notar, entretanto,
que não respeitaram sempre esta regra, como veremos adiante por
meio da estatística. Por exemplo, em:
D cpuis que sur ccs bords les Dieux ont envoyé
La filie de Minos et dc Pasiphaê,
[Desde que as estas margens os Deuses enviaram/
A filha de Minos c de Pasífae,]

observamos que o 1fim do primeiro verso não está pontuado e que,


conseqiientemente, a pausa métrica mais forte não coincide * ’: com
uma pausa semântica. Portanto, a dicção marcará um ssilêncio
-------- onde
o sentido não exige.
A ausência de pontuação em fim de verso constitui, então, um
fenômeno de ruptura do paralelismo som-sentido, que assegura ge­
ralmente a forte estruturação do discurso. Esse fato vai permitir-
-nos introduzir um segundo argumento, tirado da comparação da
poesia consigo mesma através de sua história.

55

Estabeleceremos esta comparação de um duplo ponto de vista,


intensivo e extensivo.
A frase é uma totalidade lógico-gramatical, mas essa totalidade
é orgânica, o que significa que é analisável em unidades menores:
i orações, grupos sintáticos, palavras. Esse campo da linguística cha­
mado “sintagmática” tem justamente como objeto a exata determi­
nação das unidades componentes da frase.44 Não entraremos nos
detalhes de tal análise, sobre a qual o debate permanece aberto.
Basta saber que a coesão gramatical apresenta diferenças de grau,
vale dizer que a discordância metro-sintaxe observada no verso é
I suscetível de variação intensiva. A discordância cresce em intensi­
dade, conforme a pausa de fim de verso caia entre duas orações,
i
entre dois grupos sintáticos, ou dentro de tais grupos. Portanto,
pode-se comparar de um ponto de vista intensivo os diferentes pe­
ríodos da poesia francesa ao nível do agramaticalismo.
Ora, a história da poesia mostra o aumento progressivo deste
caráter. Do classicismo ao romantismo e do romantismo ao simbo­
lismo, notamos que o fim de verso rompe um grau cada vez mais
elevado de solidariedade gramatical.
Nos clássicos, mesmo quando o fim do verso não coincide com
um signo de pontuação, ele atinge um grau de coesão sintática re­
lativamente baixo.
Com efeito, ou separa duas orações distintas, seja coordenadas:
Mcs yeux sont éblouis du jour que jc rcvois
Et mes genoux tremblants se dérobcnt sous moi.
[Meus olhos estão deslumbrados pela luz que volto a ver/
E meus joelhos trémulos dobram sob meu corpo]

seja subordinadas:
JJai demande Thésée au peuple de ccs bords
Ou Von voit VAchéron se perdTC chez les rnorts.
[Perguntei por Tescu ao povo daquelas margens/
Onde se vc o Aquerontc perder-se entre os mortos]

Ou separa grupos sintáticos diferentes, por exemplo, a circunstância


do resto da oração:

(44) A esse respeito, cf. Knud Togeby, Structure immanente de la


langue française, Copenhague, 1951.

56
Sur qucl espoir nouveau, dans quels heureux climals
Croyez-vous découvrir la trace de ses pas?
[Com que esperança nova, cm que plagas felizes/
Pensais descobrir o vestígio de seus passos?]

Ou ainda, o grupo sujeito do grupo objeto, como nos versos já cita­


dos, em que o fim do verso separa “Les dieux ont envoyé” do objeto
direto “la filie de Minos et de Pasiphaé”.
Mas, na poesia clássica, nunca a fronteira do verso corta um
grupo sintático, isto é, um conjunto que não admite pausa semântica.
É com os românticos que vemos fronteiras de verso romperem os
graus mais altos de solidariedade gramatical.
Assim, neste exemplo de Hugo:
Comme si l’on voyait la haltc des marcheurs
Mystérieux que Vaube ejjace en scs blanchcurs,
[Como se víssemos a parada dos caminhantes/
Misteriosos que a aurora apaga cm suas brancuras,]

a pausa separa o substantivo do epíteto, ou seja, duas unidades alta­


mente solidárias.
No entanto, trata-se de duas palavras lexicais, isto é, unidades
que têm uma espécie de existência linguística autónoma. Pelo con­
trário, as palavras gramaticais, preposições, conjunções, etc. são va­
zias e não se pode absolutamente dissociá-las das palavras plenas
a que se ligam. Os simbolistas não hesitaram em terminar o verso
com esse gênero de palavras, por exemplo:
Scs picds dans les glaieuls il dort. Souriant comme
Sourirait un enfant malade, il fait un somrne.
[Com os pés entre os gladíolos, ele dorme. Sorrindo como/
Sorriria uma criança doente, ele tira um sono.]
(Rimbaud)

Verlaine separa artigo e substantivo:


Et je m*en vais
Au vent mauvais
Qui mteinporte
De çà de là
Pareil à la
Feuille morte.
[E sou Icvado/Pclo vento malvado/Que me
transporta/De cá de lá/Semelhante à/Folha morta.]

57
No quinto verso, a pausa separa o artigo “la” e o substantivo “jeuille”,
dois termos cuja solidariedade c tão grande que certos gramáticos
os consideram como formando uma só unidade morfológica. Mallar-
mé vai mais longe ainda:
A toutes jambes, Factcur, chez V
Editeur de la dccadcncc,
[Depressa, Carteiro, para a casa do Editor da decadência]

interrompendo o verso depois de um artigo elidido, elisão essa que


reforça justamente o sentimento de coesão com o substantivo.
Ou ainda neste exemplo:
QueZ sepulcral naufrage {tu
Lc sais, écumc, mais y baves),
[Que sepulcral naufrágio (tu/o sabes, espuma, mas babas]
a pausa separa um pronome e o verbo, c isso após o parêntese.
Enfim, nos versos de Aragon:
Jc onerai Je onerai Mes ycux que 'faime oii êtes-
Vous Ou es-tu mon alouette ma mouette,
[Eu gritarei Eu gritarei Meus olhos que amo onde encontrar-/
Vos Onde estás tu minha cotovia minha gaivota,]

temos uma espécie de modelo exemplar da figura. A pausa métrica


cai no hífen, ao passo que nenhuma pausa semântica separa frases
diferentes, no segundo verso. A não ser que se corte uma palavra
no meio, atingimos aqui os limites do processo45.
Tentaremos agora quantificar o fenômeno, adotando o ponto
de vista seguinte: já que a pausa de fim de verso é a mais longa
de todas as pausas métricas e a única que deve obrigatoriamente ser
respeitada, é preciso fazê-la coincidir, para reduzir a discordância
entre o metro e a sintaxe, com uma pausa semântica forte, vale
dizer, um ponto, ou se não, uma vírgula. Portanto, para observar
a variação histórica do fenômeno, resta calcular nas diferentes épocas
a frequência relativa dos fins de verso não pontuados.

(45) Um poeta inglês, Dylan Thomas, ultrapassou esses limites, cs-


crevendo a palavra “soft” da seguinte maneira:
so
! f !
t
c parece que não se pode ir mais longe.

58
Escolhemos, ao acaso, uma população de cem versos, dez séries
de dez unidades cada uma, em nove poetas:
3 clássicos: Corneille, Racine, Molière;
3 românticos: Lamartine, Hugo, Vigny;
3 simbolistas: Rimbaud, Verlaine, Mallarmé;
Os resultados numéricos vêm mais adiante, no quadro I. Como
interpretá-los?
Como prova o cálculo do X2, a diferença é bastante significativa.
Passamos de uma média de 11% nos clássicos para 19% nos român­
ticos e 39% nos simbolistas. Em Mallarmé, esta média alcança
até 52%, vale dizer que cm cada duas fronteiras de verso, mais de
uma não é pontuada. Parece que estamos em presença de uma linha
de evolução,, uma espécie de lei tendencial da poesia francesa. Assim,
durante esses três períodos de sua história, a; versificação acentuou
constantemente a divergência entre metro e sintaxe, /oz sempre
mais longe no sentido do agramaticalismo.
Notemos que tal caráter não é acidental, É interessante obser-
var que clássicos e românticos, como prova o controle estatístico,
formam famílias homogéneas. E se o mesmo não acontece com os
simbolistas, a culpa é exclusivamente de Mallarmé, que exagerou
o processo, neste c em outros domínios, A homogeneidade resta-
belece-sc com Verlaine e Rimbaud. Seja como for, não deixa de

Quadro I
PAUSAS MÉTRICAS NÃO PONTUADAS (Para 100 versos)

AUTORES NÚMERO TOTAL MÉDIA


Corneille 12
Racine 11 33 11%
Molière 10
Lamartine 18
Hugo 15 57 19%
Vigny 24
Rimbaud 29
Verlaine 36 117 39%
Mallarmé 52

59
CÁLCULO DO X„«

Taxa
Valor- (limiar de
GRUPOS Valores -Limite probabil.) DIFERENÇA
3 clássicos 0,16 3,32 0,10 não-significativa
3 românticos .... 1,93 3,32 0,10 não-significativa
3 simbolistas 22,55 6,44 0,01 significativa
Clássico-romântico . 13,22 4,78 0,01 significativa
Romântico-simbolista 22,55 4,78 0,01 significativa

ser um resultado estilístico interessante, que abre uma possibilidade


de classificação dos poetas segundo um caráter até então despre­
zado e mostra sobretudo que a divergência não é devida ao acaso.
Resta, portanto, encontrar a significação.
É fora de dúvida que os clássicos tentaram, sem consegui-lo,
eliminar a divergência. Os românticos, e muito mais ainda os sim­
bolistas tentaram o contrário, como provamos do duplo ponto de
vista intensivo e extensivo. O que concluir? Que estamos diante
de duas concepções opostas da poesia ou, pelo contrário, que a
poesia só assumiu progressivamente sua verdadeira natureza? Será
o agramaricalismo o acidente ou o caráter próprio da versificação?
Somos levados a optar pela segunda hipótese, porque este cará-
ter de agramaticalismo é o único que se encontra tanto no verso
regular como no verso livre, o único caráter verdadeiramente defini-
cional, já que se encontra em todo o definido. Vejamos os versos de
Claudel:
Ni
Le marin, ni
Le poisson qu’un autre poisson à manger
Entraxne, mais la chose meme et tout le tonncau
Et la veine vive
Et Veau même et Velément. Je jouc, je rcsplendis.
[Nem/O marinheiro, ncm/O peixe! que outro peixe a comer/
A---------------
Arrasta, mas a __
-----------
própria — •—
coisa „e todo o tonel/E a veia viva/E a
própria água e o elemento. Eu jogo, eu resplandeço.]

(46) Utilizamos para nossos cálculos o método bastante cômodo de


MUe Bacher, publicadç em B.I.N.O.P., n.9 1, 1957. Os números acima dão
o valor do N.R. Para conseguir o X2, 1.basta multiplicar por 1,38.

60
Vemos mais uma vez que corte de verso e corte de frase não
coincidem. O poeta não vacila em mudar de linha depois da con­
junção “ni”, ao passo que coloca no mesmo verso — o último —
duas frases distintas. Ora, por definição, o verso livre não obedece
a nenhuma lei de metro ou rima. Não se pode pensar que o corte
esteja subordinado às exigências do número de sílabas ou aos impe­
rativos da rima. Portanto, a ruptura do paralelismo fono-semântico
é deliberado neste caso; constitui um objetivo em si, logo um fator
efetivo de versificação. Mais ainda, este fator é o único que convém
apenas ao definido. Com efeito, aquilo que se chama “poema em
prosa” só difere do verso livre pelo respeito às regras do paralelismo.
Consideremos, por exemplo, um fragmento qualquer de um Petit
poème en prose de Baudclaire:
Infeliz pode ser o homem, mas feliz o artista que o desejo dilacera.
Anseio por pintar aquela que me apareceu tão raramente c que sumiu
tão depressa, como uma L_l_bela coisa
1 saudosa atrás
. do viajante levado pela
noite. Faz tanto tempo que ela desapareceu.
E bela, c mais que bela; c surpreendente, Nela, tudo c negro, e tudo
o que ela inspira é noturno e profundo. SeusL-- olhos são dois antros onde
cintila vagamente o mistério, c seu olhar ilumina como o relâmpago: é
uma explosão nas trevas.

Por que este poema se chama prosa e o de Claudel verso?


Qual é o traço distintivo? Apenas o seguinte: o poema de Baude-
lairc corta sempre no fim da frase, respeitando o paralelismo das
duas estruturas fónica e semântica, ao contrário de Claudel. Por-
tanto, esse é o único critério pelo qual o verso livre se distingue da
prosa.
Sendo assim, a conclusão impÕe-se: o verso não é agramatical,
mas antigramatical. É um desvio em relação às regras do parale-
lismo entre som e sentido que existe em toda prosa. Desvio siste-
mático e deliberado, já que se acentuou no decorrer dos séculos,
apesar das leis prosódicas comuns, e se manteve no verso livre,
onde tais leis não existem.
Por conseguinte, de um ponto de vista exclusivamente estrutu-
ral, pode-se definir o verso negativamente: o verso é a antifrase.
O que é a frase? Questão bastante difícil e sempre discutida,
como provam as duzentas definições encontradas por E. Lerch.
Geralmente, os lingiiistas concordam em definir a frase a dois
níveis:

61
1. ° — Ao nível semântico, que se desdobra em:
a) Plano psicológico: a frase é a unidade que apresenta um
sentido completo em si. G. Antoine, após longa análise, adota a de-
finição de Haas: “O correlativo linguístico de uma representação
de conjunto”;
b) Plano gramatical: a frase é o conjunto das palavras sinta­
ticamente solidárias. A. Martinet define-a da seguinte forma: “Um
enunciado cujos elementos estão todos ligados a um predicado sim'
pies ou a vários predicados coordenados”47. Os “estemas” de L.
Tesnière48 esclarecem essa série de “conexões” hierarquizadas que
fazem a unidade gramatical da frase.
2. ° — Ao nível fónico: a frase é definida ao mesmo tempo
pela entoação e pela pausa, mas a entoação é variável, ao passo que
a pausa é imutável. A frase interrogativa termina com uma ascen­
são da voz, a frase declarativa com uma queda, mas ambas terminam
infalivelmente com uma pausa, e sempre os signos melódicos são
ao mesmo tempo signos pausais.
Portanto, podemos finalmente dar da frase uma dupla defi-
nição: por um lado, o que apresenta um sentido completo; por outro,
o que está situado entre duas pausas. Sendo assim, a frase é uma
unidade tanto pelo som como pelo sentido. Porém, essa dupla de-
finição só é possível quando a linguagem garante o paralelismo ri-
goroso das estruturas sonoras e semânticas; portanto, só é válida
em prosa. No verso, a dupla definição não se aplica.
Para que possa ser aplicada, é preciso que a cadeia verbal seja
divisível pelos dois fatores nos mesmos pontos, É o que acontece
na prosa. No verso, o paralelismo é rompido, O que apresenta
um sentido completo, ou seja, a frase, não está mais situado entre
duas pausas; e o que está situado entre duas pausas, ou seja, o
verso, não apresenta mais um sentido completo. O que pode ser
simbolizado por um esquema onde o som e o sentido estão repre­
sentados por duas linhas horizontais e os cortes por traços verticais.
Assim, vemos o verso operar a dissociação dos dois fatores de
estruturação que a prosa associa. Sem dúvida, quando dois signos

(47) Êlémenls dc linguislique génêrale, Paris, Armand Colin, 2.a ed., 1961.
(48) ÊléTnents dc syntaxe structurale, Paris, Klincksiek, 1959.

62
tem a mesma significação, um deles parece inútil; mas na maioria
dos casos, essa inutilidade — ou redundância — é apenas aparente.
Na realidade, a convergência dos dois signos garante a segurança da
comunicação. Com a redundância, a linguagem procura construir es­
truturas fortes. Esse é um dos princípios fundamentais da estra­
tégia linguística, e é justamente esse princípio que a versificação
inverte. Tudo ocorre como se o poeta quisesse enfraquecer as es­
truturas do discurso, como se o seu objetivo final fosse embaralhar
a mensagem. Temos aí uma conclusão evidentemente paradoxal.
Reduzimos o verso a algo a menos, quando tradicionalmente é con­
siderado como algo a mais. Parece uma pura negatividade.
Negatividade parcial, sem dúvida alguma: dos dois fatores em
presença, conserva-se o sentido — isto é, o conjunto das relações
léxico-gramaticais — o que basta geralmente para estruturar o dis­
curso. Voltaremos a este ponto no fim do capítulo. Embora as
pausas não sejam indispensáveis para a articulação da mensagem,
não deixam de dar-lhe um apoio positivo incontestável. Com toda
certeza, a deslocação do sistema de pausa tem como efeito uma de-
sestruturação, limitada mas efetiva, da mensagem poética. Parece que
esse é o objetivo consciente ou inconsciente do poeta.
Tal concepção, por mais inesperada que seja, poderia invocar
defensores célebres. Particularmente Mallarmé, a quem se associa
geralmente a idéia de obscuridade. Porém, a obscuridade poética só
é doutrina de uma escola particular; a poesia simbolista não é
toda a poesia, Antes de adotar essa conclusão, convém realmente
esperar que outros aspectos do verso venham confirmá-la.

PROSA

som

sentido

63
POESIA

som

sentido

(Poder-se-ia representar a intensidade da divergência variando a dis­


tância que separa os traços verticais de cada linha dos traços correspondentes
da outra linha.)

Seja como for, embora esse caráter seja o único em todos os


versos, não se pode concluir que é o mais importante. Acreditamos,
pelo contrário, que o verso propriamente dito é o verso regular.
O metro e a rima têm certamente um rendimento maior, mas o
rendimento poético do não-paralelismo — que podemos chamar “en-
jambement”, no sentido amplo — não é nulo. Para medi-lo, pode­
mos fazer a experiência seguinte. Tomemos uma frase da prosa mais
banal, por exemplo, qualquer informação extraída de um jornal:
“Ontem, na Rodovia n.° 7, um automóvel a cem por hora chocou-se
contra uma árvore. Os quatro passageiros morreram.” Quebremos
agora o paralelismo escrevendo a frase assim:
Ontem, na Rodovia n° 7
Um automóvel
A cem por hora chocou-sc
Contra uma árvore
Os quatro passageiros
Morreram.
Evidentemente, não é poesia; o que mostra bem que o processo em
si, sem a ajuda de outras figuras, é incapaz de produzir poesia.
Podemos afirmar, contudo, que já não é prosa. As palavras animam-
-se, passa uma corrente, como se a frase, pela virtude da divisão aber­
rante, fosse despertar de seu sono prosaico.
*
* *

64
Passemos agora ao verso regular. Sabemos que ele se define
pelo metro) c pela rima. Vejamos esta última. Ela foi muitas vezes
desprezada, embora seja notório que: o verso branco nunca conse-
guiu impor-se na nossa língua. É um paradoxo muito conhecido o
fato de Verlaine tê-la amaldiçoado:
O qui dira les torts de la Rime!
Quel enfant sourd ou quel nègrc fou
Nous a forgé ce bijou d’un sou
Qui sonnc creux et faux sous la lime?
[Oh, quem dirá os malefícios da Rima!/Que criança surda ou que
doido varrido/Forjou-nos essa jóia barata/Que soa oco c falso
sob a lima?]

em versos regularmente rimados!


Porém, não devemos estranhar que Verlaine tenha denunciado
a rima no seu Art poétique, que tem como princípio: “a música
antes de tudo”.
Pobre recurso musical essa repetição monótona de um mesmo
som! Qual é, então, a função da rima? Quiseram ver nela um auxi-
liar do metro, encarregado de marcar o fim do verso, Assim, o autor
de um livro recente afirma que a “perenidade e a onipotência da
rima, como a do metro aritmético, pertencem à natureza da língua.
A rima é o corolário de um verso baseado unicamente no número
de sílabas, caráter insuficiente para estabelecer por si só o versus” 49.
Notemos, neste ponto, a opinião concordante do poeta: “É a
rima. . . que dita onde se deve mudar de linha” 50, escreve Aragon.
Na realidade, tal concepção encerra uma contradição. A rima
não é simples repetição de sons, mas repetição de sons terminais.
A posição terminal da rima está contida na sua definição: “Homo-
fonia da última vogal e dos fonemas que eventualmente a seguem” 51.
Sendo assim, não é a rima que marca o fim do verso, mas o fim do
verso que marca a rima. Além de não ser capaz de concluir o verso,
a rima por si só não é percebida como tal se não for sublinhada por

(49) P. Guiraud, Langage et vcrsification d’après Vttuvre de Paul


Valcry, Paris, Klincksiek, 1953, p. 107.
(50) Prefácio a Les ycux d’Elsa, Paris, Scghers, 1946.
(51) Henri Morier, Dictionnaire de Rhétorique et de Poétique, Paris
P.U.F., 1961. (Grifo nosso).

3 65
um acento52; c podemos acrescentar: se não for seguida de unia
pausa. Sem isso, ela é indiscernível da homofonia interior, É a ■
pausa que faz um só verso de:
Tristcment dort une mandorc.
[Tristemcnte dorme uma bandola.]
(Mallarmé)
Com efeito, a rima e o acento poderiam cindir o verso em dois:
Tristcment dort
Une mandorc.

Na verdade, a rima não é um instrumento, um meio subordi-


nado a outra coisa, É um fator independente, uma figura que se
acrescenta às outras, Como as outras, sua verdadeira função aparece
somente se a relacionarmos com o sentido.
Sabe-se que a relação som-sentido é arbitrária, mas isso só c ver­
dadeiro para o signo isolado: se passamos a considerar o sistema,
a motivação reaparece. As relações entre significantes são as mesmas
que as relações entre significados. Esse é um princípio fundamental,
sem o qual nenhuma língua pode funcionar. Ora, “como o meca­
nismo linguístico é todo baseado em identidades c diferenças’’ (Saus-
sure), tal princípio enuncia-se em duas fórmulas:

1) Sej = Se-, Sex •/— Se->


I
2) SOj u-- 1 SOo Soj 7*— So2

Significantes diferentes terão significados diferentes; significan-


tes total ou parcialmente semelhantes terão significados total ou par-
cialmente semelhantes. É neste princípio que se fundamcnta a mo-
tivação relativa da flexão e da derivação.
Porém, tal princípio tem suas deficiências. Para exprimir sig-
nificados diferentes, a língua deveria utilizar os significantes mais
diferentes possíveis; mas,, como escreve A. Martinet, este processo
“seria incompatível com ;as latitudes articulatórias e a sensibilidade
auditiva do ser humano”. Nessas condições, todas as línguas do

;;
(52) Como prova a experiência feita no Collège de Franco, da qual
participou André Spire. Cf! Plaisir Jpoétique et plaisir musculaire, Paris,
C*
José Corti, 1949, pp. 150-151.

66
mundo julgaram mais económico utilizar o chamado princípio da
L dupla articulação, que permite exprimir com apenas quarenta sons
elementares, ou fonemas, um número ilimitado de significações,
Percebem-se as consequências de tal sistema: ele condena a
língua à homofonia. Significados diferentes exprimir-se-ão por sig-
nificantes parcial ou totalmcnte semelhantes (homonímia), e o in-
divíduo deverá fazer a aprendizagem do que, na sua língua, é se-
melhança arbitrária ou semelhança motivada. Na verdade, e trata-se
de um ponto essencial, a experiência prova que a tendência de todos
os usuários é a motivação, Uma semelhança sonora sugere sempre
um parentesco de sentido, e é para lutar contra essa tendência que
a fala aplica espontaneamente uma regra de compensação: evita asso-
ciar homónimos ou reunir homófonos numa mesma frase e, quando
não pode evitá-lo, insiste na diferença. Dizemos, por exemplo, “não
fiz porque não quis”, colocando um acento de insistência nas duas
consoantes de ataque dos dois homófonos. É justamente este prin-
cípio de compensação que a rima inverte.
Com efeito, a rima é assim em virtude de sua posição. Coloca-se
no fim do verso, logo antes da pausa, e possui um acento particular.
A homofonia impõe-se à nossa atenção, o paralelismo diferencial é
então rompido.
Há semelhanças de som onde não há semelhanças de sentido.
A significados diferentes correspondem significantes percebidos como
semelhantes. A rima inverte o paralelismo fono-scmântico em que
se baseia a segurança da mensagem. Também neste caso, é como se
o poeta, ao invés das exigências normais da comunicação, procurasse
aumentar os riscos de confusão.
Para corroborar tal afirmação, podemos mais uma vez invocar
a evolução da rima através da história do verso francês.
Com efeito, dois fatos aparentemente contraditórios dominam a
história da rima.
Primeiro, o reforço progressivo da identidade sonora. A Idade
Média limitava-se à assonância, isto é, à homofonia restrita à vogal
terminal. A partir do século XIII, a assonância perde terreno,
cedendo progressivamente lugar à rima propriamente dita. A se­
guir, no século XIX, aparece a exigência da rima rica, ou seja, de
uma rima que engloba a consoante de apoio da ultima vogal.
Essas exigências tornam a rima muito difícil. Particularmente
em francês, o número de rimas possível é extremamente limitado, e

67
se levarmos em conta as necessidades do sentido, as possibilidades
da rima francesa esgotam-se rapidamentew.
Sendo assim, pareceria normal satisfazer às exigências da rima
valendo-se das homofonias semânticas, Existe, de fato, dois tipos
de homofonia. A primeira, de que já falamos, rege as palavras sim-
pies. Baseada na contingência da língua, é desprovida de sentido:
por exemplo, “abrigo-trigo”, “dor-condor”, etc. A segunda, pelo
contrário, tem sentido. É a homofonia de palavras que são simples
em aparência, mas na realidade são compostas de um radical e de
um afixo: “bondade e maldade”, por exemplo, e sobretudo, as
rimas ditas gramaticais, por fazerem incidir a homofonia num mesmo
sufixo ou numa mesma desinência. Por exemplo, “cantarão” e “dan­
çarão”, ou “prender” e “render”. Como se vê, aqui a homofonia
é significante. Porém, as possibilidades da rima acham-se ao mes­
mo tempo multiplicadas, e é com razão que essas combinações fo­
ram chamadas “rimas fáceis”.
Ora, é justamente esse tipo de rimas que a versificação fran-
cesa rejeita terminantemente a partir do século XVII. Nos poetas
do Renascimento, elas são abundantes, Du Bellay, por exemplo,
não hesita em fazer rimar duas formas do mesmo pronome:
Maintenant la Fortune est maistresse de moy
Et mon cocur qui soulait estre maistre dc soy
[Agora a Fortuna c dona de mim/E meu coração que costumava
ser dono de si]

e Ronsard, duas formas verbais idênticas (3.a pessoa do futuro),


que rimam duas vezes:
Avant le temps tes tempes jleuriront
De peu de jours ta fin sera bornéc,
Avant le soir se clorra ta journée
Trahis d’espoir tes pensers périront-.
Sans me fléchir tes escrits jlétriront,
En ton désastre ira ma destinée,
Ta mort sera pour m’amour terminée,
De tes soupirs nos neveux se riront.
[Antes do tempo tuas têmporas florirão/Teu fim se limitará a
poucos dias/Antes da noite se encerrará tua jornada/Traidos pela
esperança teus pensamentos perecerão://Sem comover-me teus

' ’ > em P. Guiraud,


(53) Sobre o assunto, há interessantes estatísticas
*_ riqueza
op. cit., pp. 108-116. jA dupla exigência de a l e não-gramaticalidade
40 000
conserva apenas '.2 rimas do milhão e meio * de rimas possíveis.
22_ -------

68
escritos murcharão/Com teu desastre irá meu destino,/ Tua morte
será por meu amor complctada/De teus suspiros nossos netos se
rirão.]

A partir do século XVII, tais liberdades não são mais permiti­


das, proíbem-se as rimas “fáceis”. Por que essa proibição? Gosto
pela dificuldade? Esta é geralmente a interpretação de uma estética
imbuída de considerações éticas. Mas a arte não é acrobacia, e
não é bela pelo fato de ser difícil. Ninguém mede o valor de uma
obra pelo trabalho que ela custou. Se, ao proibir a rima fácil, a
poesia resolveu dificultar seu próprio trabalho, foi devido a motivos
mais sólidos, ligados à função profunda da rima.
A rima semântica respeita o princípio do paralelismo: à seme­
lhança de som corresponde uma semelhança de sentido. O princí­
pio em que ela se baseia é o que Saussure chama “arbitrário re­
lativo” 54, no qual intervém a motivação interna. A motivação in­
terna é mínima no léxico, máxima na gramática. Portanto, a rima
gramatical é motivada, as homofonias são significantes. É justa­
mente esta homofonia significante que a versificação pretende pros­
crever. No século XIX, Banville formula claramente o princípio no
Tetit Traité de poésie française-. “Fareis rimar, tanto quanto possí­
vel, palavras muito semelhantes como som e muito diferentes como
sentido”. O que a rima homonímica realiza perfeitamente, ilus­
trando melhor a oposição entre a prosa e a poesia. Na medida dc
possível, a prosa evita aproximar homónimos, ao contrário da poe­
sia que não só os aproxima, como os coloca no mesmo lugar. Ela
cultiva o equívoco, e podemos verificar no século XV uma verda verda-­
deira moda da rima chamada “equívoca”, Escreveram-se poemas
inteiros deste tipo:
Homme misérable ct labilc
Qui vas contrefaisant 1’habile
Mcnant cstat dcsordonné
Cray qu’cnfer cst des or donné55.
[Homem miserável c lábil/Quc vai se fazendo de hábil/Levando
vida desordcnada/Crc que o inferno c feito de ouro]

Diga-se de passagem, não há nada melhor que a palavra “equívoco”


para manifestar o objetivo impreciso do poeta, Trata-se de tomar
o paralelismo fono-semântico às avessas, fazendo as semelhanças atua-
(54) Cours dc linguistique générale, pp. 180-181.
(55) Poema de Meschinot, citado por Lote, Histoire du vers français,
t. II, p. 156.

69
rem ao contrário de sua significação habitual. Se esse for o caso,
é de se prever que o antiparalelismo será progressivamente levado ao
extremo, conforme nosso princípio de involução. Ora, como ve­
remos, é exatamente o que aconteceu.
Sabe-se que as palavras se classificam por categorias morfoló­
gicas: substantivos, adjetivos, verbos, etc. A essas categorias gra­
maticais correspondem categorias semânticas. Segundo a interpre­
tação tradicional, o substantivo designa a substância, o adjetivo a
qualidade, o verbo o processo, etc. Consequentemente, as palavras
da mesma categoria, seja qual for seu sentido, conservam um fundo
de significação comum. Nessas condições, se o verso obedece real­
mente ao princípio de não-paralelismo, é de prever-se que evitará
fazer rimar palavras da mesma categoria: dois substantivos ou dois
verbos, etc. A história, efetivamente, confirma essa previsão.
Retomemos nossos três períodos e, para um total de cem rimas,
calculemos o número de rimas categoriais. Os resultados que vêm
adiante, no quadro II, são significativos. As rimas nâo-categoriais,
ou seja, as rimas de palavras que não pertencem à mesma categoria
morfológica, aumentam consideravelmente dos clássicos para os ro­
mânticos. Passamos de um total de 56 para 86. Como prova o X2,
a diferença é amplamente significativa. Em compensação, dos ro­
mânticos para os simbolistas, a progressão é pequena, de 86 para
92, e a diferença não é significativa. Mas, aqui também, devemos
levar em conta a dificuldade da rima francesa. Se não quisermos sa­
crificar o conteúdo, devemos conformar-nos com o escasso arsenal
das rimas existentes. De cada três rimas, duas não-categoriais cons­
tituem talvez uma taxa limite, pelo menos para as obras de fôlego.
No entanto, quando se trata de obras mais curtas e mais bem ela­
boradas, como o soneto, vemos aparecer fatos reveladores. Consi­
deremos o famoso soneto Le Cygne de Mallarmé:
Lc vierge, le vivace et le bcl aujourd*hui
Va-t-il nous déchirer aucc un coup d’aile ivre
Ce lac dur oublié que hante sous lc givre
Le transparent glacier des vols qui n’ont pas fui!
Un cygne d’autrefois se souuient que c’est lui
Magnifique mais qui sans espoir se délivre
Pour n’auoir pas chanté la région ou vivre.
Quando du estérile hiver a resplendi Vennui.
Tout son col secouera cctte blanche agonie
Par Vespace infligée à Poiseau qui le nie,
Mais non Vhorrcur du sol ou son plumage est pris.

70
Fantômc qidà cc lieu son pur
/ cclat assigne,
II s^mmobilisc au songc froid dc
de mépris
Que vct parmi l’exil inulilc Ic Cygnc.
[O virgem, o vivaz e o viridente agora/Vai-nos dilacerar de um
golpe dc asa levc/Duro lago de olvido a solver sob a neve/
O transparente azul que nenhum voo aflora!//Lcmbrando que é
ele mesmo esse cisne de outrora/Magnífico mas que sem esperança
bebc/Por não ter celebrado a região que o recebe/Quando o
estéril inverno acende a fria flora,//Todo o colo estremece sob a
alva agonia/Pclo espaço infligida ao pássaro que o adia,/Mas não
o horror do solo onde as plumas têm peso.//Fantasma que no
azul designa o puro brilho,/Ele se imobiliza à cinza do desprezo/
De que se veste o Cisne cm seu sinistro exílio.
(Tradução de Augusto de Campos)

Quadro II
RIMAS NAO-CATEGORIAIS (Para 100 versos)

AUTORES NÚMERO TOTAL MÉDIA


Corneille 16
Racine 22 56 18,6%
Molière . 18
Lamartine 25
Hugo 32 86 28,6%
Vigny . . 29
Rimbaud 25
Verlaine 35 92 30,6%
Mallarmé 32

CALCULO DO X2

Taxa
Valor- (limiar de
GRUPOS Valor -Limite probabil.) DIFERENÇA

3 clássicos 1,86 3,32 0,10 não-significativa


3 românticos 0,88 3,32 0,10 não-significativa
3 simbolistas .... 1,81 3,32 0,10 não-significativa
Clássico-romântico . 3,04 2,77 0,05 significativa
Romântico-simbolista 0,08 1,952 0,10 não-significativa

71
No soneto, a dificuldade da rima é maior, pelo fato de impor dois
jogos de rimas quádruplas. Mallarmé acrescenta aqui uma dificul­
dade suplementar ao fazer assonância em todas as rimas em i. Apesar
dessas dificuldades, não encontramos nenhuma rima categorial. Por­
tanto, a média de rimas não-categoriais é de 100%, mesmo nas
rimas quádruplas. Temos, então:
aujourd’htã advérbio
fui verbo
lui pronome
ennui substantivo
ivre adjetivo
givre substantivo
se délivre verbo
vivre verbo infinitivo

Isso constitui uma façanha sem precedente nos poetas anteriores,


Porém, não devemos ver aí uma simples manifestação de virtuosis-
mo verbal, mas a prova da intuição profunda que o grande poeta
tinha da natureza de sua arte.
A aliteração constitui um processo homólogo à rima, Como
esta, consegue um efeito de homofonia a partir das contingências da
língua; porém, a aliteração atua dentro do verso e realiza, de uma pa-
lavra para outra, o que a rima efetua de um verso para outro 56 .
Podemos falar de homofonia interna, por oposição à homofonia ex-
terna constituída pela rima. O processo foi utilizado em todas as
épocas e parece mais generalizado que a rima. Todas as línguas que
não utilizam a rima fazem uso da aliteração, Os poetas franceses
praticaram-na sem exceção. Temos exemplos célebres:
Potir qui sont ces serpents qui sifflent sur nos têtes.
[Para quem são essas serpentes que silvam sobre nossas cabeças.]

Neste verso, apenas 5 dos 29 fonemas aliteram, recorde batido de


longe pelo verso de Valéry:
Vous me le murmurez, ramures, O rumeurs,
[Vós mo murmurais, ramagens, Ó rumores,]

(56) “Aliteração” no sentido amplo, que é registrado pelo Petit La-


e, de repetição dos mesmos fonemas, tanto vogais como consoantes.
rousse,

72

i
onde 15 dos 23 fonemas aliteram, sendo que o som “r” aparece seis
vezes, “m” cinco vezes e “u” quatro vezes.
Neste particular, o soneto Le Cygne constitui também um mo-
delo. Com efeito, aliteração e rima atuam no mesmo fonema, o
som “i” aparece trinta e cinco vezes ao longo do poema. Assim,
opera-se a síntese dos dois processos, a homofonia externa junta-se
à homofonia interna, de um verso para outro, de um verso para uma
palavra, de uma palavra para outra.
A identidade da rima e da aliteração é reveladora do ponto de
vista funcional. Como vimos, os poeticistas conferem à rima o
papel de marcar o fim do verso. Não podemos, evidentemente, con­
ferir o mesmo papel à aliteração. Para que serve então? Efeito mu­
sical? O ouvido não sentiria grande prazer com essas repetições!
Devemos atribuir-lhe uma função expressiva? Sobre o famoso pro­
blema da expressividade, existe toda uma literatura cuja leitura pode
deixar no fim um sentimento de ceticismo 57. No que nos concerne,
não queremos tomar posição sobre o problema. Digamos apenas
que, sendo a alib ração homóloga à rima, devemos atribuir a mesma
função a ambas. Podemos pretender honestamente que a rima tem
um valor expressivo em todos os versos onde é encontrada? Seria
fácil mostrar que não, pelo simples fato de os mesmos jogos de
rima encontrarem-se cm versos cujo sentido é completamente di­
ferente.
A função da homofonia só aparece se relacionarmos o verso
com a prosa. Com efeito, a prosa só desempenha sua função de
comunicação através das diferenças fonemáticas, e tolera as seme-
lhanças por razões puramente económicas, Aliás, a fala corrige,
na medida do possível, as dificuldades que a língua lhe opõe. No
discurso prosaico, toda rima, toda aliteração é importuna,, e o es-
critor esforça-se naturalmente por evitá-las. OC verso,, pelo contrá-
rio, procura-as, e até faz da rima uma regra constitutiva, A única
conclusão a tirar desses fatos é que a versificação só tem uma fun­
ção negativa. Sua norma é a antinomia da linguagem natural. Esta
linguagem desempenha sua função através de um máximo de dife­
renciação. O verso parece encarregado de operar uma indiferen-
ciação. O fonema, que funciona na língua só como traço distintivo,
funciona na poesia em sentido exatamente inverso.
(57) Pesquisas recentes parecem provar a realidade de um simbo-
lismo fonético (Cf. M. Chastaing, "Le symbolisme des voyelles”, in J. de
psychol. normal, et pathol. 55, 1958).

73
* *
Verifica-se a mesma tendência naquilo que constitui o caráter
fundamental do verso regular, isto é, no metro. O metro é o
número de sílabas que o verso possui. No entanto, o importante
não é o número em si, mas o fato de ele sc repetir, idêntico, de um
verso para outro. É como tal que ele garante o “versus”. Geral­
mente, a versificação clássica adotou certos metros fixos, todos pa-
rissílabos, mas os poetas podem utilizar sem inconveniente todos os
metros. O essencial é que o número adotado se encontre em outro,
ou em vários outros versos. O verso é métrico só por ser homomé-
trico; o verso parissílabo é privilegiado porque, divisível em dois,
pode realizar a homometria interna, isto é, a igualdade numérica
das duas partes do verso ou hemistíquios. A esse respeito, o ale­
xandrino apresenta uma vantagem particular. Divisível cm quatro,
pode dividir os hemistíquios em partes iguais entre si.
Sabe-se que o metro é o fator convencional básico do verso
francês. No entanto, vários autores puseram cm dúvida sua rea­
lidade, e os especialistas podem ser divididos cm dois campos: os
que defendem o metro e os que defendem o ritmo. Entre os pri­
meiros, pode-se citar o padre Scoppa c a maioria dos metricistas do
século XIX. Assim, Banville escreve (Petit Traité): “O verso
francês não é ritmado, como nas outras línguas, pelo entrelaçamento
de sílabas breves e longas. Ele nada mais é que o conjunto de um
número regular de sílabas, cortado em certos trechos por uma parada
chamada cesura”.
Entre os segundos, deve-se citar George Lote em primeiro
lugar.
O autor de Ualexandrin devant la phonétique expérimentale
conseguiu provar que na pronúncia efetiva dos declamadores, por
exemplo Coquelin ou Sarah Bernhardt, a maioria dos alexandrinos
não contava doze sílabas, mas variava na realidade de nove a ca-
torze sílabas. E George Lote conclui: “O silabismo é uma ilusão...
As alterações que a fala impõe ao texto não ofendem o ouvido. . . Nada
se opõe ao abandono do numerismo, essa pura aparência da grafia” .
O simples fato de não sc pronunciar mais o c mudo desde o século XVI
toma falsos todos os versos que o contem. A não ser que sc adote uma

(58) L’alexandrin> p. 701.


s
74
pronúncia arcaica, mas a dicção moderna tem geralmcntc renunciado a esta
solução.

Refutamos tal conclusão por duas razões: primeiro, porque os


versos falsos não constituem a maioria; segundo, porque mesmo
quando isso acontece, é gcralmente com uma sílaba a mais ou a me­
nos. No caso do alexandrino, temos uma desigualdade que repre­
senta 1/12 do comprimento médio dos versos, desigualdade pequena
demais para anular a impressão global da igualdade deixada pelo
poema em oposição à prosa.
Com efeito, a prosa alinha frases cujo comprimento apresenta
variações comparativamente enormes. Uma frase de 60 sílabas
pode seguir outra de apenas 5 ou 6. Tal variação é de origem alea­
tória, pois significados diferentes têm em geral significantes numeri­
camente diferentes. Acrescenta-se a isso uma regra implícita do
discurso que tende a alternar frases curtas com frases longas. Aqui,
também, o verso constitui uma inversão das regras da fala: exprime
frases semânticas diferentes através de frases fónicas semelhantes.
O ritmo vem apoiar essa impressão global de regularidade.
O ritmo, diz Pius Servien, é “periodicidade percebida”. Ora, no
verso francês, essa periodicidade é garantida a um duplo nível:

l.° Pelo número igual de acentos. Como se sabe, o acento


tônico em francês cai na última sílaba do grupo sintático. Tanto em
Baudelairc como em Racine, o alexandrino é sempre constituído de
quatro grupos, ou seja, quatro acentos:
I . I , I I
Chevcux bleus pavillon dc ténèbrcs tenducs.
[Cabelos azuis pavilhão dc trevas estendidas.]

Portanto, podemos definir o alexandrino como uma -divisão


do poema em segmentos que oscilam pouco em torno de uma. forma
canónica de 12 sílabas e 4 acentos.

2.° Pela distribuição regular dos acentos. Dois são fixos (rima
e cesura), dois móveis, e alguns (cf. Grammont) interpretam tal
mobilidade como a especificidade do verso francês. A verdade é
que nossos poetas utilizaram pouco essa latitude. Em numerosos
casos — seria preciso fazer a estatística —, a distribuição atual é re­
gular O-3-3-3), como no verso citado, ou simétrica em relação à
cesura, segundo as fórmulas 2-4-2-4 ou 4-2-2-4. Por exemplo:

75
I . I I . I
Voici dcs fruits, dcs jlcurs, dcs fetullcs cl dcs branches.
[Eis aqui frutos, flores, folhas c ramos.]

Quando a dissimetria intervém, é apenas limitada. Uma fórmula


como 2-4-3-3, por exemplo:
i III
Sois sage o ma Douleur et tiens-toi plus tranquillc
[Comporte-se ó minha Dor c mantcnha-sc mais tranquila]
é relativamente regular, se a compararmos com a prosa, como faz
o próprio Lote, que opõe a relativa igualdade das medidas de verso
à anarquia acentuai da prosa, a qual comporta geralmcnte “pés” de
5,6,7 sílabas, e até mais.
O que devemos concluir? Simplesmente que o ritmo do verso
é feito de uma periodicidade aproximativa que satisfaz o ouvido.
Segundo Paul Fraisse: “Uma estrutura é dita rítmica só se consi­
derarmos sua repetição pelos menos virtual”59. A impressão de
repetição pode subsistir, mesmo que a estrutura não se repita exata­
mente. Ora, se admitirmos a aproximação para o ritmo, por que
não admiti-la também para o metro? Entre uma sequência de doze
sílabas e uma de onze, e mesmo de dez, o ouvido não percebe
diferença ou, se for exercitado, percebe uma diferença relativamente
pequena, Os alexandrinos parecem-lhe aproximativamente iguais,
da mesma forma que os pés rítmicos parecem aproxiniativamente se-
nielnantes. Homometria e homorritmia encontram-se na mesma si-
tuação e podemos, portanto, admitir as duas como fatores consti-
tuintes do versus.
Todavia, esse aspecto aproximativo, digamos mesmo grosseiro,
do versus é revelador. Com efeito, se o versus fosse provido de
uma função própria, de natureza musical, sua imperfeição seria re-
dibitória. Nenhum ouvido se satisfaria com tal aproximação. Mas
essa não é sua função: ele apenas se encarrega de acentuar as se­
melhanças, por oposição às diferenças semânticas. Ora, já vimos
que a diferença não é total. A língua tolera semelhanças, e embora
a fala as corrija, nunca pode apagá-las completamcntc. A diferen­
ciação total é um polo do qual o discurso prosaico se aproxima tanto
quanto pode, sem nunca atingi-lo. O escritor prosaico evita espon­
taneamente as rimas e aliterações, alterna frases longas e frases
curtas, varia a construção verbal, mas não pode nunca eliminar toda
a similitude entre as unidades sucessivas.
(59) Lc- structures rythmiques, Éditions Erasme, 1956.

76

i
Orientado para o polo das semelhanças, o verso nunca pode
atingi-lo. Esforça-se apenas por aproximar-se dele o máximo pos­
sível. O poeta faz o que pode com o que tem. Não foi ele quem
fez a língua. Se tivesse que refazê-la, é possível que o poeta francês,
por exemplo, reservasse para si um repertório de rimas muito
maior, assim como multiplicaria os monossílabos, ritmicamente mais
manejáveis. Seja como for, o poeta está colocado diante de uma
dupla exigência: por um lado, dizer o que tem para dizer, devendo
para tal utilizar as palavras do léxico comum; por outro, fazer
versos, isto é, garantir um máximo de semelhança entre as unidades
do discurso. Sendo assim, ele divide os elementos do discurso de
que dispõe em duas partes:
l.° Os fonemas: por sua combinação, eles compõem o léxico,
contêm as significações. Portanto, o poeta só pode atuar nas seme­
lhanças contingentes que a língua oferece. Essa parte é necessaria­
mente pequena. A rima e a aliteração só afetam uma pequena mino­
ria de fonemas. É bem verdade que se pode ir muito longe na homo-
fonia, por exemplo, nos dois versos seguintes:
Gal, amant de la Reine, alia, tour magnanime
Galammcnt dc Varènc à la tour Magne à Nimes.
[Gal, amante da Rainha, foi, gesto magnânimo/Galantcmente da
arena à torre Magna cm Nimes.]

Mas vê-se que o conteúdo aqui é sacrificado e que os versos foram


fabricados especialmente para a rima. Forçar o sentido para satis­
fazer às exigências da versificação pode acontecer aos melhores poetas.
Vimos que Valéry censurava Baudelaire por ter escrito:
La servante au grande cccur dont vous étiez jalouse
Et qui dort son sonimeil sous une humble pelouse.
[A criada dc grande coração de que tinhas ciúmcs/E que dorme
seu sono sob um humilde gramado.]

De fato, não se costuma enterrar as pessoas debaixo dos gramados.


Porém, o sacrifício é limitado no caso: o sentido geral subsiste.
Do mesmo modo, o poeta pode empregar o “chavão” para satisfazer
o número, mas sem nunca exagerar.
2.° Uma serie de caracteres que podemos chamar “prosódicos”,
a sílaba e o acento. Um alexandrino é composto de doze sílabas e
quatro acentos. Estes são os dois pilares que sustentam o eterno

77
retorno pelo qual o verso se opõe à evolução irreversível da prosa.
E, apesar do caráter aproximativo do isossilabismo, por um lado, da
irregularidade posicionai dos acentos, por outro, é incontestável que
o ouvido percebe a semelhança, sendo sensível ao “ronronar” in­
cansável dos regimentos de alexandrinos. Isso é o essencial quando
se coloca o verso na sua verdadeira perspectiva, que é estrutural e
funcional.
O verso foi criticado por sua monotonia. Verdadeiro contra-
-senso! O verso é monótono por natureza. Sua monotonia não agra­
da ao ouvido, mas isso não tem importância no caso. Pois o som, no
poema, é um significante em toda a extensão. Homometria e homor-
ritmia são significantes — naturais — de uma “homosscmia”. Ora,
tal homossemia não existe no poema. Assim, quebra-se o parale­
lismo do som e do sentido, e nessa ruptura o verso desempenha
sua verdadeira função.
Se tal é a função do verso, podemos tirar certas consequên­
cias importantes no que diz respeito à dicção. Lamentaremos mais
uma vez que os poetas não tenham anotado de que maneira queriam
que os versos fossem ditos. Talvez confiassem no instinto do de-
clamador, mas cometeram um erro. A experiência mostra, de fato,
que a dicção variou consideravelmente no decorrer dos séculos.
Pode-se distinguir principalmente duas maneiras de dizer, ou
talvez seja preferível falar aqui de dois pólos da dicção: polo ex­
pressivo e polo inexpressivo.
A dicção expressiva modula a voz segundo o <conteúdo inte-
lectual e emocional do poema. As variações da voz: afetam a ve-
locidade, a intensidade, e especialmente a altura. Com efeito, a melo-
dia ou entoação, isto é, a curva das alturas desenhada pela voz, varia
consideravelmente conforme o sentido do discurso. Portanto, a
entoação é significante, vale dizer que acentua as diferenças para
marcar melhor a diversidade dos significados. Assim, a interrogação
opÕe-se à afirmação não só pela construção da frase, mas também
pela entoação.
Ora, no século XVII, a dicçao era inexpressiva. Todos os ato-
res declamavam os alexandrinos com voz uniforme. Levantavam
a voz no primeiro hemistíquio, abaixavam-nai no segundo, causando
uma cansativa impressão de monotonia. O romantismo impôs a
Doravante,
dicção expressiva. Z---- a entoação de cada verso varia com

78
o sentido. Conta-se 00 que Rachel “só para nas vírgulas e nos pontos,
preocupando-se apenas com o sentido da frase, muito pouco com o
período poético: faz de cada verso uma linha, cujo hemistíquio e
rima são dificilmente sentidos, mesmo pelo ouvido mais exercitado”.
Por isso, Théophile Gautier criticava-a por sacrificar a prosódia.
Deparamos aqui com a dualidade das exigências da poesia, que
forma o que poderíamos chamar a antinomia da dicção poética. Pelo
fato de transmitir uma mensagem, o poema funciona como a prosa,
por diferenças. Pelo fato de ser poético, ele se baseia nas semelhan­
ças. O recitante deve escolher. Se o texto é mais dramático que
poético, como o teatro clássico, pode-se sacrificar a prosódia. Mas
não completamente: o recitante deve equilibrar a balança, fazer
sentir o verso e, ao mesmo tempo, marcar o sentido. No entanto,
tratando-se do poema lírico, isto é, do poema puramente poético,
a relação se inverte. A dicção deve, então, tornar-se inexpressiva.
É exatamente o que ela tende a fazer hoje. A “emissão natural”
cede lugar à “dicção plana”. Nesse particular, podemos invocar o
testemunho dos próprios poetas. A propósito de Apollinaire, que
gravou Le Pont Mirabeau, André Spire diz: “Tive uma impres­
são de monotonia igual à da recitação de certas melodias infantis”61.
Mallarmé, segundo Valéry, também dizia seu Coup de dés “com voz
baixa, igual, sem o menor efeito, quase para si”. E Valéry acres­
centa este comentário: “...os recitantes profissionais que preten­
dem valorizar, interpretar, quase sempre me são insuportáveis”C2.
Evidentemente, é impossível interpretar um poema de Mallarmé,
ou de qualquer poeta moderno. Neles, a dicção plana é a regra.
Disso, temos uma prova gráfica: ao eliminar a pontuação, os poe­
tas modernos eliminaram tanto os signos melódicos como os signos
pausais. Em:
Vicnnc la nuit Sonne Vhcure
[Venha a noite Soe a hora]
faltam os pontos de exclamação. Com certeza, o poeta não quis que
esta fosse marcada. Nessas condições, por mais paradoxal que pa­
reça, a verdadeira dicção poética é inexpressiva, deve tender para
a uniformidade. Sendo assim, numa dicção desse tipo, pode ser
que exista a isocronia de que falava Grammont.

(60) L. Barthou, Rachel, Alcan, 1926, pp. 40-41.


(61) Op. cit., p. 476.
(62) Un coup de dés, Plêiade, p. 624.

79
Medindo três versos de Iphigénie, Grammont63 encontrou as
seguintes durações absolutas: 4,53, 4,52 e 4,79 segundos, ou seja,
durações aproximativamente iguais. Portanto, isocronia de um verso
para outro, à qual vem acrescentar-se uma isocronia de uma medida
para outra. Com efeito, as doze medidas dos três versos em questão
duram mais ou menos um segundo. George Lote contestou cate­
goricamente os resultados. Suas próprias medidas revelam que a
duração de um verso pode variar de 1,75 a 6,12 segundos. Porém,
Lote reconhece que esta duração varia com o sentido. Isso significa
que os recitantes com que fez a experiência praticavam a dicção
expressiva, diminuindo ou aumentando a velocidade, conforme ex­
primiam tristeza ou furor. O que acontece com a dicção inexpres­
siva? Para saber, seria necessário praticar medidas. A priori, é
provável que os versos assim declamados tenham tendência a apro­
ximar-se da isocronia.
Obter-se-ia, então, a uniformidade máxima que atua em todos
os elementos fónicos de que dispõe o poeta. Somente essa dicção
é fiel à essência do verso que é o “versus”, o retorno, isto é, a
identidade. É esta dicção plana, monocórdia, quase litânica, que dá
ao recitante aquela “voz de sonho”, voz encantadora, vinda de outro
lugar, da qual adivinhamos que tem a missão de transmitir não uma
simples informação de interesse teórico ou prático, mas algo radi-
calmente diferente, que é a poesia.
*
* *

De todos esses fatos, podemos tirar uma mesma conclusão.


O verso não é simplesmente diferente da prosa. Opõe-se a ela;
não é nao-prosa, mas antiprosa. O discurso prosaico exprime o
pensamento, que é “discursivo”, vale dizer que vai de uma ideia
à outra. Descartes comparava o pensamento a uma. corrente,. Com
uma restrição, esta comparação é exata: os <elos de uma
---- — — corrente
são idênticos, ao passo que os elementos do pensamento e da fala
que o exprime são diferentes. Um discurso que repetisse as mesmas
palavras e as mesmas frases não seria um discurso, mas um defeito
da fala.

(63) Le vers jrançais, p. 85 c 89.

80
Como a prosa, a poesia compõe um discurso, isto é, alinha séries
de termos foneticamente diferentes, Todavia, na linha das diferen-
ças semânticas, o verso adapta toda uma série de semelhanças fô-
nicas; é como tal que ele é verso.
Procuremos traduzir essa estrutura por um esquema, simbo-
lizando cada termo do discurso por uma letra, minúscula para o
significante, maiuscula para o significado.

PROSA
som a b c cl e f

sentido A B C D E F

POESIA
som a a a a a a

sentido A B C D E F

Este esquema não é exato, evidentemente, porque o verso uti­


liza diferenças fonemáticas. TUma representação mais fiel seria, por
exemplo:
POESIA
som a b c a b a

sentido A B C D E F G

Mas o esquema representa, por assim dizer, o pólo para o qual


tende a versificação: estabelecer uma homogeneidade máxima entre
os significantes.
Se compararmos agora este esquema com aquele pelo qual
ilustramos o corte particular dos versos, encontramos um traço co-

81
mum entre eles: ambos contrariam o paralelismo fono-semântico em
que se baseia o funcionamento da linguagem, A versificação une os
segmentos que a prosa separa e identifica os termos que a prosa
distingue. Processos negativos, portanto, que tendem a enfraquecer
a estruturação da mensagem.
Esse ponto é capital. Por isso, voltemos à nossa análise, ainda
que nos repitamos um pouco.
Os linguistas chamam os fonemas “unidades distintivas”, o
que é uma fórmula reveladora! O importante, no fonema, não é o
timbre particular, ou seja, a substância, mas sua capacidade de dis­
tinguir-se dos outros fonemas. O timbre é apenas o suporte de
uma diferença. A rigor, sua substância fónica nem é percebida.
Existem muitas maneiras de pronunciar o som francês “a”, mas só
o foneticista sabe reconhecê-las. O usuário confunde-as, porque to­
das elas têm o traço comum de opor-se a “e”, “i”, etc. Como disse
incisivamente Saussure: “. . . os termos a e b são radicalmente in­
capazes de chegarem, como tais, até a consciência — a qual só per­
cebe de maneira constante a diferença a/b”C4. Ora, o que faz o
poeta? Através da rima e da aliteração, que constituem um dos pro­
cessos fundamentais do verso regular, ele tende a limitar a diferença.
O fonema é utilizado não como unidade distintiva, mas, pelo con­
trário, como unidade por assim dizer “confusiva”. Parece que seu
objetivo seja atrapalhar o funcionamento do instrumento linguístico,
como se quisesse confundir o que deve ser distinguido.
Passemos aos acentos. Em francês, o acento não é um “ele­
mento distintivo”. Isso significa que não existe em francês, ao con­
trário do inglês ou do espanhol, termos foneticamente semelhantes
que se oponham apenas pelo acento. Contudo, o acento não deixa
de ter em francês um valor significante. Sua função é sublinhar ou
pôr em relevo. Portanto, a palavra ou a sílaba que ele marca dis-
tingue-se por isso mesmo do conjunto em que se encontra. O que
o verso faz? Distribui uniformemente os acentos. No verso, tudo
é igualmente sublinhado. Mas, por isso mesmo, nada mais o é. Os
diferentes termos tendem a fundir-se na uniformidade.
Do mesmo modo, a pausa tem a função de reforçar o corte
operado pela gramática e pelo sentido. O verso faz o possível para
deslocar a pausa, de maneira a ligar foneticamente o que o sentido
separa.

(64) Cours de linguistique génêrale, p. 163.

82

I i
Sendo assim, as três figuras têm a mesma função, função que
é paradoxalmcnte antifuncional. Trata-se realmente, como já dis-
semos, de baralhar a mensagem.
Mas convém entender bem o sentido desta fórmula. Não se
trata de destruir a mensagem. Vimos que Apollinaire não vacilava
diante de tal consequência, mas não o seguiremos. Uma mensagem
não entendida deixa de ser uma mensagem. O discurso deve ser
inteligível, ou então, deixa de ser um discurso, O poeta utiliza a
língua porque quer comunicar, ou seja, ser entendido, Mas ele
quer sê-lo de certa maneira, pretende suscitar no destinatário um
modo de compreensão específica, diferente da compreensão clara, ana-
lítica, provocada pela mensagem comum.
Um exemplo vai permitir-nos apreender a significação do pro­
cesso. Consideremos os primeiros versos do Pont Mirabeaw.
Sous lc Pont Mirabeau coule la Seine
Et nos amours
Faut-il qu’il m’cn souuicnne
La joic venait toujours après la pcinc.
[Sob a Ponte Mirabeau passa o Sena/E nossos amorcs/É preciso
que me lembre/A alegria vinha sempre após a pena.]

Pesa uma ambigiiidade sobre a função gramatical da palavra “amours


É sujeito de “coule”? A conjunção coordenativa sugere-o, mas c
verbo “coule” no singular não o permite. Se o segmento “et nos
amours” fosse ligado, seja ao primeiro verso, seja ao terceiro, a am­
bigiiidade teria desaparecido. De início, uma simples vírgula no fim
do primeiro verso, ou do segundo, teria resolvido o problema. Mas
Apollinaire fez justamente com quei o problema não pudesse ser
resolvido. 1Não podemos dizer, portanto, que o texto seja total-
mente inteligível, mas será que é totalmente incompreensível? Evi-
dente que não. Ele está, por assim dizer, a meio caminho entre a
compreensão e a incompreensão. É precisamente a esse nível que
a poesia pretende situar-se.
Não iremos niais longe por enquanto, pois descrever esse nível
já não compete à linguística, mas à psicologia. Nossa análise quer
referir-se à mensagem, e somente à mensagem. De que modo tal
mensagem específica, constituída pela poesia, é recebida pela cons­
ciência do receptor? Abordaremos o problema no fim da análise.
Agora, pretendemos analisar a linguagem poética ao nível semântico.
Veremos que ela utiliza a esse nível processos que materialmente

53
não têm nada em comum com o verso, mas que se revelam, na aná­
lise, estrutural e funcionalmente análogos. Ao contrário do que
geralmente se acreditou, teremos a prova de que o verso não é um
caráter físico da linguagem. O som, tanto no verso como na prosa,
é signo, mas sua significação é dificilmente perceptível porque é
toda negativa: o verso é feito de signos que funcionam em sentidos
opostos.
O verso é cíclico, a prosa linear. O aspecto antinômico dos
dois caracteres é evidente e, no entanto, a poética nunca o levou
em conta. Ela fez do “retorno” um caráter isolado, que se acres­
centa de fora à mensagem para conferir-lhe uma virtude musical
qualquer. Na verdade, a antinomia constitui o verso, pois ele não
é inteiramente verso, ou seja, retorno. Se fosse, não poderia ser
portador de um sentido. Ele permanece linear porque significa.
A mensagem poética é ao mesmo tempo verso e prosa. Uma parte
de seus elementos componentes garante o retorno, enquanto outra
garante a linearidade normal do discurso. Estes últimos funcionam
no sentido usual da diferenciação, ao passo que os primeiros atuam,
pelo contrário, no sentido de uma indiferenciação.
Considerando-se dois séculos, a história da versificação francesa
mostra o aumento progressivo da indiferenciação. Esse é um fato
que revela, por assim dizer, a lei tendencial da poesia francesa. Para
essa evolução, podemos de antemão fixar um limite. Com efeito,
se a semelhança fosse maior que a diferença, a mensagem perderia
seu sentido. A poesia não seria mais linguagem, c sabemos que ela
o é essencialmente. Portanto, pode-se fixar o limite no ponto má­
ximo em que a semelhança não é mais compatível com as exigências
da significação.
É o que acontece com a homofonia. Passou da assonância para
a rima e da rima suficiente para a rima rica. Mas, mesmo rica, a
rima só atua numa minoria de fonemas: três ou quatro, quando
muito, numa média de vinte e seis a vinte e sete fonemas por ale­
xandrino, isto é, 12% aproximadamente. No caso extremo do
soneto do Cygne, o som “i”, que garante ao mesmo tempo a rima
e a aliteração, representa apenas uns 10% do número total dos fo­
nemas. É verdade que a história da versificação conheceu as rimas
equívocas e também o verso de rima total, tipo “Gal, amant de la
reine. . Mas tais realizações não tiveram futuro, justamente porque
ultrapassavam o limite permitido pelas exigências . da significação.
O desvio só é redutível visualmente. Na audição, tais versos revelar-

84
-se-iam completamente ininteligíveis, A esse respeito, há outro
fato significativo. A assonância é permitida, na época moderna,
quando atua em monossílabos. Por exemplo:
Tcllc cn plcin jour parjois, sons un soleil de fcu
La lunc, astro des morts, blanche■ au fond d’un ciei bleu.
[Como cm pleno dia às vezes, sob um sol de fogo/A lua, astro
dos mortos, branca ao fundo de um céu azul.]
(Hugo)

Com efeito, a rima dos monossílabos poderia provocar a confusão


entre as palavras terminais. Vemos que a homofonia sabe parar
quando a inteligibilidade corre o risco de desaparecer definitivamente.
Quanto ao metro e ao ritmo, eles atuam em elementos não-sig-
nificantes da mensagem. Por conseguinte, a difercnciação fonemá-
tica não é afetada. No entanto, ao ouvir um poema bem ritmado,
com a dicção litânica que o acompanha, sentimos que a mensagem
enfraquece suas estruturas, que as palavras e as frases tendem a
perder seus contornos para fundir-se num todo inanalisável, como
se o verso e o poema inteiro formassem uma só frase, até uma sé
palavra. “O verso, diz Mallarmé, que de vários vocábulos refa
uma palavra total”.
O “enjambement” concorre poderosamente para esse efeito.
Ao tirar aos silêncios todo valor sintático, ele tende a fundir cada
sequência na sequência seguinte. O discurso não é mais feito de
segmentos ligados, embora distintos, mas de um fio contínuo, sem
nada nele que comece ou acabe. Todavia, as pausas são apenas um
fator secundário na estruturação do discurso. A prova disso está na
possibilidade de ler textos escritos nos quais faltam a pontuação
e os espaços em branco entre as palavras. Notemos, aliás, que se
a grafia achou necessário marcar a separação entre as palavras, a
voz pelo contrário as liga indissoluvelmente, sem que a compreensão
seja afetada. As marcas memoriais deixadas pelas palavras são sufi­
cientemente fortes para que as reconheçamos no contínuo vocal.
O mesmo acontece com as frases. A solidariedade gramático-
-semântica de seus elementos é suficientemente forte para resistir
à ação dissolvente da dicção poética.
No conjunto, portanto, a versificação não chega a destruir a
mensagem. Respeita suas obras vivas e esforça-se por respeitá-las,
com exceção de certos casos cm que o poeta recuou os limites do
processo, como Mallarmé no Coup de dês.

85
Neste poema, não há rima nem metro. O ritmo não atua,
ou muito pouco. De todos os processos de versificação, subsiste
unicamente o emprego dos “espaços em branco”. O próprio autor
insistiu nisso num comentário de sua obra: “Com efeito, os “bran­
cos” assumem importância, impressionam de início; a versificação,
ordinariamente, exigiu-os como silêncio ao redor, a ponto de um
trecho lírico, ou de poucos pés, ocupar no meio a terceira parte do
folheto: não transgrido essa medida, disperso-a simplesmente”. As­
sim, para Mallarmé, o espaço em branco é realmcnte fator essencial
de seu poema, não na quantidade, que é conforme ao uso, mas na
disposição. Com tal “dispersão”, o discurso fica totalmente deslo­
cado. A solidariedade semântica das unidades, normalmente garan­
tida por sua proximidade espacial, aqui se perde, talvez sem remissão.
Os diversos segmentos não formam mais um discurso inteligível,
pelo menos para o leitor médio65. Ora, o poema destina-se a ele.
Podemos então perguntar-nos se Mallarmé não ultrapassou aqui a
fronteira proibida, passando para a região em que, com a signifi­
cação, se perdeu a linguagem, isto é, a poesia. Seja qual for a res­
posta a essa pergunta, a tentativa merecia ser feita porque desvenda
abertamente para nós o mecanismo de toda a versificação: opor a
mensagem ao código para obrigar o código a transformar-se, como
veremos.
O verso, disse Mallarmé, “compensa o defeito das línguas”.
Fórmula profunda, mas que deve ser precisa. O verso só tira pro­
veito do defeito da língua se o agravar primeiro.

(65) Ver a tentativa — reconstituição


de ---------- , de Gardncr Davics, Vcrs une
explication rationnelle du “Coup de dés”, Paris, Josc Corti, 1953.

86
Capítulo III

NÍVEL SEMÂNTICO: A PREDICAÇÃO

A linguagem seria impossível se tivéssemos que inventar nossa


língua cada vez que falamos; seria inútil se, para falar, tivéssemos
que nos limitar a repetir frases feitas. Cada um se serve da lin­
guagem para exprimir seu pensamento pessoal do momento, o que
implica na liberdade da fala. “A característica da fala, escreve
Saussure, é a liberdade dc combinações”. Jakobson retoma esse
ponto dc vista precisando-o: “A liberdade de combinar os fonemas
em palavras, declara, é circunscrita: limita-se à situação marginal
da criação de palavras. Na formação de frases a partir de palavras, a
coerção imposta ao falante é menor. Finalmente, na combinação
de frases em enunciados, cessa a ação das regras coercitivas da sin­
taxe e aumenta substancialmente a liberdade, embora não se deva
subestimar o número de enunciados estereotipados”G6.
Todavia, cumpre acrescentar uma emenda a esse princípio de
liberdade. Cada um é livre para dizer o que quiser, contanto que
seja compreendido por aquele a quem se dirige, A linguagem é
comunicação, e nada é comunicado se o discurso não for compre-
endido. Toda mensagem deve ser inteligível. Tal é o axioma fun­
damental do código da fala, do qual as regras são modalidades de
aplicação. Por “inteligível” deve-se entender: dotado de sentido
e de sentido acessível ao destinatário. Para isso, não basta res-
peitar o código da língua, é necessário também que a descodificação
da mensagem seja possível. O que acarreta para a liberdade da
fala certo número de restrições, que constituem outras tantas re-
gras de um código que lhe é próprio. No capítulo anterior, enun-

(66) Essais dc linguistique générale, p. 47.

87
ciamos uma dessas regras, relativa ao significante. O princípio do
paralelismo fono-semântico prescreve que o falante deve evitar uma
frase deste tipo: “Ferindo os nós dos dedos, ele desatou os nós das
amarras do Nostradamus e o navio carregado de noz passou por nós
a vinte nós por hora”. É uma frase correta do ponto de vista da
língua, mas ao multiplicar os homónimos, ela diminui proporcional­
mente suas possibilidades de inteligibilidade, contrariando assim o
axioma fundamental.67 Tal procedimento, como vimos, é caracte-
rístico precisamente da versificação que, como tal, constitui uma vio­
lação do código da fala. Como a versificação é codificada, pode-se
dizer que constitui, paradoxalmente, um código do anticódigo.
Passemos agora ao nível semântico. Também aqui iremos res­
tringir-nos ao ponto de vista da forma, ou seja, da relação dos signi­
ficados entre si. Mais uma vez, iremos estabelecer uma regra do
código, da qual a linguagem poética constitui uma violação.
Para formar uma frase com sentido, não basta alinhar pala­
vras tiradas de um dicionário. A probabilidade de que uma sequência
de palavras, tiradas ao acaso de um dicionário, forme uma frase
é praticamente nula, como demonstrou Shannon ( 1948), mesmo
que tais palavras sejam flexionadas. Tal maneira de operar daria
sequências como esta: “combate caloso irritabilidade emigrado de­
pravado temporal prolixo infelizmente pelourinho náutico”C8, onde
cada elemento é dotado de sentido, ao passo que o conjunto não o é.
Para que palavras formem frases, devem submeter-se a duas espé­
cies de regras, a primeira das quais está explicitamente codificada,
a segunda não, mas tentaremos estabelecer sua existência.
Consideremos este exemplo (F. Brcsson) 69:
Os elefantes são hipomóveis,

ou este (Chomsky) 70:


Incolores idéias verdes dormem furiosamente.

Gramaticalmente, ambas as frases são corretas, Com efeito, o


código gramatical é puramente formal: distribui as palavras em

(67) A ortografia corrige a homonímia e sabe-sc que esse é o princi-


de seus defensores.
pai argumento Jc
(68) Miller, Langage et cornmunication, P.U.F., 1956, p. 117.
(69) “La signification”, in Problèmes dc Psycho-linguistique, P.U.F.,
1963.
(70) Syntactic struclures, s’ Gravcnhage, 1957.

88
classes ou categorias formalmente marcadas, e autoriza ou proíbe
as associações dc palavras somente em funçã<o destas categorias.
Portanto, toda sequência que seja conforme aos “patterns” * per-
mitidos pela gramática, é formalmente correta. É o caso das duas
frases citadas. Mas será que por essa razão seriam frases inteligíveis?
Para Jakobson, uma frase é dotada de sentido se puder ser
submetida à prova da verdade. Segundo ele, é o que ocorre com
as frases gramaticais. O exemplo de Chomsky é dotado de sentido
porque podemos perguntar se existem ou não ideias verdes incolores
que dormem furiosamente, e responder que é falso. Do mesmo
modo, poderíamos afirmar que é falso que “os elefantes são hipo-
móveis”. Todavia, parece que aqui a lógica não está de acordo.
Pelo menos é o que pensa um lógico que, precisamente sobre este
ponto, parece ter respondido ao linguista:
“Dada uma função, por exemplo . . .é oviparo, será que se pode
atribuir-lhe como argumento o nome de um indivíduo absolutamente
qualquer: uma cadeira, um tremor de terra, um número, um pont<
do espaço-tempo? Talvez se pudesse admiti-lo considerando com
proposições falsas os enunciados assim obtidos. Todavia, é ciar
que não são falsos da mesma maneira que, por exemplo, Black,
minha cadela, é ovipara. Ser ou não ser oviparo é uma alternativa
que, na realidade, só tem sentido para seres sucetíveis de serem
“pais”. Para os outros, não há dúvida que é mais natural considerar
que a questão nada significa. Assim, 3 é oviparo e 3 não é oviparo
terão exatamente o mesmo valor de verdade, isto é, nenhum, nem
o falso nem o verdadeiro, ao passo que uma proposição autêntica
se caracteriza justamente por isto: a negação tem por efeito per­
mutar seu valor de verdade. Sc julgarmos destituídos de sentido
tais enunciados absurdos, devemos negar ao instrumento lógico a
’ ’ .
possibilidade de construí-los, sob pena de desacreditá-lo. Quando
fizermos uso <dele,
‘ deveremos esclarecer em que universo do dis-
curso nos colocamos: dos animais, dos números, dos astros, etc.,
ou, por outras'S palavras, devemos atribuir a qualquer variável que
se associe a determinada função certa faixa de significação, mais
ampla que a faixa de verdade, porém mais estreita que a totalidade
indeterminada dos indivíduos de todo gênero”71.

(*) Modelo específico que representa, de maneira esquemática, uma


estrutura da língua ou do comportamento verbal dos falantes. (N. dos T.)
(71) R. Blanché, Introduction à la logique contcmporaine. Paris,
A. Colin, 1957.

89
Assim, frases como “os elefantes são hipomóveis” ou “inco­
lores ideias verdes dormem furiosamente’ não são apenas falsas, são
absurdas. Corretas segundo a sintaxe, incorretas “segundo o sen­
tido”, como diz F. Bresson. Embora a diferença entre proposição
falsa c proposição absurda seja uma diferença semântica, continua
sendo formal. A relação entre os significados não é a mesma nos
dois casos. A proposição falsa pode ser verdadeira, porque o pre­
dicado é um dos predicados possíveis do sujeito. A proposição
absurda não pode ser verdadeira pelo motivo inverso. No primeiro
caso, falaremos de pertinência do predicado e, no segundo, de im­
pertinência.
Neste ponto, aparece uma lei geral relativa à combinação das
palavras em frases. Tal lei exige que; em toda frase predicativa,
o predicado seja pertinente em relação ao sujeito. É bem verdade
que a predicação é apenas uma das funções gramaticais que um termo
pode exercer; estudaremos outras, em que voltaremos a encontrar
a mesma distinção entre termos que convêm e termos que não
convêm à sua função. Podemos agora dar a esta regra uma formu­
lação mais geral. Já que toda frase é feita de termos lexicais dota­
dos de uma função gramatical determinada, a regra cm questão exige
que todo termo de uma frase seja semanticamente capaz de exercer
sua função. Esta regra nada mais é que a modalidade que o axioma
de inteligibilidade assume, ao nível semântico. A este mesmo nível,
tentaremos caracterizar a linguagem poética pela infração a essa regra
do código da fala.
Poder-se-ia perguntar, naturalmente, se uma regra como essa é
de natureza linguística, ou se, pelo contrário, não se refere a valores
lógicos, extra-linguísticos. De fato, lógica e linguagem estão intima-
mente ligadas e sabemos que os antigos designavam as duas pela
mesma palavra. De resto, é possível dar a esta regra uma formu­
lação puramente linguística. Para tal, basta prever “graus de gra-
maticalidade”, segundo uma sugestão dc Chomsky12. Com efeito,
aquilo que chamamos gramática rege a associação das palavras entre
si, segundo seu valor mais geral. Ela prevê que um verbo pode
ser predicado de um substantivo, sem especificar de que verbo ou
de que substantivo se trata. Mas bastaria especificar essas catego­
rias gerais em categorias menores para abranger os desvios de tipo
semântico. Como diz Saporta, comentando Chomsky, uma fórmula

(72) Op. cit.

90
como “a árvore sussurra” só é gramatical ao grau mais geral, por­
que é conforme ao estereótipo “frase nominal + frase verbal”.
A fórmula só infringe uma restrição quando dividimos os nomes
cm animados e inanimados e os verbos em sub-classes, para depois
estabelecer restrições quanto à associação de certos nomes com
certos verbos. Assim, uma frase que infrinja uma regra muito geral
pode ser considerada menos gramatical que uma frase que só in­
fringe uma regra mais específica. Por conseguinte, todo discurso
pode ser descrito em termos de gramaticalidade...”73.
Para evitar confusão, não usaremos o termo “gramaticalidade”
e reservaremos a expressão “pertinência semântica”, ou simples­
mente “pertinência”, para caracterizar as frases corretas segundo
o sentido. Mas nossa análise inscreve-se na perspectiva que se de­
preende da última frase da citação acima: procuraremos descrever o
discurso poético como um discurso de gramaticalidade inferior à
da prosa, em relação ao grau mais específico de gramaticalidade re­
presentado pela pertinência semântica. Posteriormente, considera­
remos o grau mais geral, ou seja, a gramática no sentido clássico
da palavra.
É certo que a gramática se apega a marcas formais e que tais
marcas vão rareando à medida que descemos os graus da escala.
Em francês, não há nenhuma marca que distinga os nomes inanima­
dos dos animados, e uma grande proporção de frases poéticas baseia-
-se na confusão destas classes. Todavia, embora a ausência dessas
marcas retire o rigor formal de tal sintaxe, nem por isso a torna
impossível.
Segundo a teoria da significação chamada “contextuai” ou “fun­
cional”, comum entre os lingiiistas anglo-saxônicos, o sentido de
uma palavra é o conjunto dos contextos em que ela pode figurar. Aqui
a semântica encontra-se com a sintaxe, visto que a significação nada
mais é que o conjunto das combinações permitidas para um termo
dado. Por conseguinte, a relação signo-referente fica absorvida na
relação signo-signo. Ademais, que é o dicionário senão uma lista
de relações entre signos e, em suma, um repertório de frases que
podem ser formadas a partir do termo definido? Certos dicioná­
rios, como o Littré, orientam até a definição para uma simples no-

(73) “The application of Linguisties to the Study of poetic language”,


in Style in Language, Scbcok ed., 1960, p. 92.

91
menclatura de frases-tipo, nas quais o termo entra como elemento.
Compreender o sentido de uma palavra é saber que frases é possível
construir com ela. Isso é verdadeiro pelo menos para as frases
simples, tais como os sintagmas binários nome-verbo, nome-epíteto,
etc. Compreender a palavra “gato” é saber que se pode dizer
“o gato mia, o gato dorme”, mas não “o gato late, o gato voa”, ou
ainda que “gato preto” é permitido, mas “gato isóscele” não é.
Temos, então, o direito de supor a existência de um repertó­
rio de frases simples possíveis, que constituiriam uma verdadeira
tabela de pertinência, válida pelo menos para determinada cultura.
Semelhante código da fala, se existisse explicitamentc, fornecer-nos-ia
um critério objetivo para a detecção das infrações cometidas pela
poesia. Na falta dele podemos então confiar no nosso próprio sen­
timento linguístico. Com efeito, se compreender uma linguagem
é conhecer o conjunto das combinações permitidas entre seus termos,
então deve-se supor que esse código se acha depositado na memória
de cada um dos usuários. No fundo, falar não é construir uma frase,
mas escolher, entre os modelos de frase que a memória nos oferece,
aquele que nos parece corresponder à situação. É em função desta
correspondência com a situação que se introduzem os valores de
verdade. Uma proposição falsa não é adequada à situação, mas,
salvo em casos excepcionais (emoção, embriaguez, etc.), será sem­
pre uma frase possível, por ser conforme à tabela de pertinência c,
como tal, aceitável para qualquer membro da comunidade. Portanto,
pediremos ao nosso próprio sentimento linguístico para nos dizer o
que é correto ou incorreto no poema. Não há dúvida de que, para
maior rigor, poderíamos recorrer a juízes, mas a abundância dos
itens observados tornaria bastante difícil tal procedimento, Conten-
tamo-nos então com eliminar sistematicamente todos os casos du-
vidosos, conservando no nosso inventário só aqueles em que a
impertinência é flagrante, como nestes exemplos:
Les souvenirs sont cors de chasse. (Apollinaire)
[As recordações são trombetas de caça.]

Lc Ciei est raort. (Mallarmé)


[O Céu morreu.]

____ de
Essas duas frases, tiradas x
/ poemas, ’
realizami as duas formas
------------- — verbo de ligação — adje­
típicas da predicação: l.° 1Substantivo
tivo; 2.° Substantivo — verbo.

92
Ambas apresentam uma impertinência predicativa caracterizada.
Para que a frase “X morreu” tenha sentido, é necessário que X
entre na faixa dc significação do predicado, isto é, que faça parte da
categoria dos seres vivos, o que não é o caso do céu. Do mesmo
modo, só a classe dos instrumentos musicais pode fornecer um su-
jeito do qual “trombetas de caça” seja predicado pertinente, o que
não é o caso das recordações. Temos aí, portanto, duas infrações
ao código ou ('desvios que, como nos mostrará a estatística, são sim-
pies exemplos de um fenômeno geral dentro da linguagem poética.

* *
Antes porém, precisamos examinar uma objeção, cuja discussão
nos levará longe. Trata-se do problema da metáfora, vale dizer,
aquilo que constitui a característica fundamental da linguagem poé­
tica. Pelo menos é essa a opinião corrente. T. S. Eliot definia
A Divina Comédia como “uma vasta metáfora”, e Claudel opunha
poesia e prosa como “a lógica da metáfora” e “a lógica do silogismo”.
Numa obra dedicada a essa figura, a poesia é definida como “um;
metáfora constante e generalizada”74. Aceitaremos essa definição
que julgamos exata, mas com a condição de devolver a metáfora
à sua verdadeira natureza, recolocando-a no devido lugar.
É claro que nas frases poéticas citadas só há desvio se tomarmos
as palavras no sentido literal. Inversamente, para reduzir o desvio,
basta mudar o sentido de uma. dessas palavras.
Para dar um exemplo simples, numa frase como “O homem é
o lobo do homem”, o predicado só é impertinente enquanto signi-
fique animal. Mas esse é um primeiro sentido que remete para um
segundo: “O homem é o lobo do homem” significa na realidade
“o homem é cruel”, o que faz a frase voltar à norma, Estamos
diante de uma figura chamada “mudança de sentido” ou “tropo”.
figura que podemos simbolizar pelo seguinte esquema (no qual Se
representa o significante e So o significado):
Se—> S01—> So2
É evidente que a mudança de sentido não é gratuita: entre Sox
e So2 existe uma relação variável, cujos diferentes tipos engendram

(74) H. Adank, Essai sur les jondemenls linguistiques d psychologiqucs


de la inétaphorc affectivc, Gcnèvc, 1939.

93
as diferentes espécies de tropos, Se a relação for de semelhança,
falaremos em metáfora; se for de contigiiidade, em metonímia; se
for da parte pelo todo, em sinédoque, etc. Todavia, um uso cor-
rente confere à “metáfora” o sentido genérico de mudança de sen-
tido, e é essa prática que adotaremos aqui 75.
Façamos agora uma pergunta ingénua. Por que a mudança
de sentido? Por que razão o descodificador não se conforma com
o código da língua que impõe a um significante um significado de-
terminado? Por que recorre ele a uma descodificação segunda, que
põe em jogo um significado novo? A resposta é evidente: porque
o termo, no primeiro sentido, é impertinente, ao passo que o se­
gundo sentido lhe devolve a pertinência. A metáfora intervém para
reduzir o desvio criado pela impertinência. Os dois desvios são
complementares, mas precisamente porque não se situam no mesmo
plano linguístico. A impertinência é uma infração ao código da
fala, situa-se no plano sintagmático; a metáfora é uma infração ao
código da língua, situa-se no plano paradigmático. Existe uma es­
pécie de supremacia da fala sobre a língua, uma vez que esta aceita
transformar-se para dar um sentido àquela. O conjunto do processo
compõe-se de dois tempos, inversos e complementares:
1. ° Posição do desvio: impertinência
2. ° Redução do desvio: metáfora
O que podemos simbolizar pelo esquema seguinte (onde a
flecha representa a pertinência e o traço cortado a impertinência):
Se
l
I Soj
CONTEXTO l
So2
<
Temos, então, dois planos diferentes: o primeiro é sintagmá­
tico, o segundo paradigmático. Só o segundo merece o nome de
metáfora. Ao mesmo tempo vemos que, embora seja uma figura, a

(75) Se estendermos a flecha para o plano diacrônico,, teremos a


“metáfora de uso”; se a limitarmos à sincronia, teremos a “metáfora de
invenção”. Só esta última será estudada aqui, já que a metáfora de uso
como vimos, por definição não é um desvio.

94
metáfora não pertence ao mesmo tipo de outras, como a rima, a
elipse, o epíteto explicativo ou a inversão, Todas estas figuras, com
efeito, são desvios sintagmáticos, ao passo que a metáfora é• um des-
vio paradigmático. Não só pertence ao mesmo plano linguístico,
como também é o complemento de todas as outras, Veremos que
todas as figuras têm por objetivo provocar o processo metafórico,
A estratégia poética tem por único objetivo a m udança de sentido,
O poeta atua sobre a mensagem para modificar a língua. Se é ne­
cessário fazer um desvio, é porque o caminho direto que vai de
Se a So2 se acha cortado. Entre ambos interpõe-se Son que deve
ser afastado num primeiro tempo, para que So2 lhe tome o lugar num
segundo tempo. Se o poema infringe o código da fala é para que
a língua o restabeleça transformando-se. Tal é o objetivo de toda
poesia: obter uma mutação da língua que, como veremos, é ao
mesmo tempo uma metamorfose mental.
O que implica, entre os dois significados, uma diferença que
não é de conteúdo. Se existisse apenas uma diferença referencia]
entre Soj e So2, o desvio não seria necessário. Mas ocorre que
entre os dois significados existe, como veremos, uma diferença de
natureza. Nem toda metáfora é poética. Só o é quando o significado
segundo pertence a determinado domínio de sentido, cuja natureza
tentaremos precisar no nosso último capítulo.
Limitemo-nos aqui ao lugar que a metáfora ocupa dentro da
figura. Ela constitui o segundo plano de toda figura, o segundo
tempo de um mecanismo que é sempre o mesmo. E talvez seja
preferível chamar “figura” o processo total, cujo primeiro plano
varia, enquanto o segundo permanece invariável. Assim, ao con­
trário do que julgava a retórica clássica, as diferentes figuras não
são a rima, a inversão, a metáfora, etc., mas sim a rima-metáfora, a
inversão-metáfora, etc. Aquilo que a retórica clássica opunha aos
outros tipos de figuras, sob o nome de “figuras de palavras”, nada
mais é que uma parte integrante de todas as figuras. A retórica não
soube distinguir o plano sintagmático do plano paradigmático, não
viu que os dois planos, longe de se oporem, se completavam, e
este erro é em grande parte responsável pelo impasse em que ficou
a poética.
Por conseguinte, o desvio de nível semântico não se confunde
com a metáfora. A este nível, existe um desvio sintagmático, para-
leio ao que é a rima no nível fónico, e a inversão no nível sintá-
tico. A esse desvio cumpre dar um nome. Já o chamamos “im-

95
pertinência”; todavia, para diferençar as várias figuras semânticas
segundo as funções, reservaremos tal nome para o desvio predica-
tivo e falaremos em redundância e inconsequência nos demais casos
aqui estudados.
Se os dois planos foram confundidos é porque a impertinência
constitui um desvio de tal modo flagrante que sua redução é evi-
dente. A rima e a inversão, pelo contrário, são um desvio relati-
vamente fraco, de tal modo que, neste caso, foi a redução que se
manteve dissimulada. A retórica chamou figura, em um caso o
desvio sintagmático, em outro o desvio paradigmático, colocando
no mesmo plano dois momentos diferentes e complementares de
uma mesma figura.
No que concerne à frase predicativa, porém, a regra de perti­
nência funcional cria uma dificuldade. Com efeito, como conciliar
essa regra com a possibilidade que tem a linguagem de exprimir
verdades novas, as descobertas da ciência, por exemplo, onde um
predicado novo é atribuído a um sujeito? E como irá exprimir-se a
literatura de ficção, contos de fadas, histórias fantásticas, etc., que
estão no mesmo caso? Se “a árvore sussurra” é um desvio linguís­
tico que, como tal, provoca a redução metafórica, como distingui-la
da árvore que fala nos contos de fada, que exige literalidade e repele
a metáfora?
O problema é difícil e só poderia obter resposta satisfatória
no quadro de uma semiologia (ainda por fazer-se) daqueles signos
pelos quais a fala se situa dentro de um gênero, científico, romanesco,
etc., indicando assim as normas que ela aceita. Na ausência de
qualquer signo particular, o código em vigor é o código usual. Se
a frase não se adaptar a ele, é retificada por mudança de sentido ou,
então, colocada fora da linguagem como absurda. Os enunciados
inovadores que, por definição, escapam ao código usual, devem
indicá-lo. Digamos apenas que tais mensagens procuram geralmente
prover-se de “signos de literalidade”, com os quais avisam o desti­
natário que a impertinência deve ser atribuída às coisas e não às
palavras. O “era uma vez” dos contos de fada é um signo desse
tipo: indica ao leitor que as incompatibilidades habituais estão sus­
pensas, e que por conseguinte as impertinências aparentes não são
obra das palavras. A árvore que fala e o cavalo que voa são então
tomados ao pé da letra e os processos habituais de redução linguís­
tica ficam inibidos. Portanto, do ponto de vista literário, o conto
de fadas como tal não é poesia, mas prosa. O que não quer dizer,

96
é claro, que não seja “poético”. Mas, neste caso, a poesia com
efeito estético emana das coisas, não^ das palavras. “Feérico”, por­
tanto, é uma categoria do ser e não da linguagem; aplica-se ao con­
teúdo, não à forma. É bem verdade que se pode exprimir o feérico
cm linguagem poética, unindo assim duas fontes diferentes num só
efeito. Mas a ligação não é necessária, como prova a grande poesia
lírica francesa, cujos pontos mais altos raramente tiram seus sorti­
légios do universo do fantástico. Neste caso, o poema não é a ex­
pressão fiel de um universo anormal, mas a expressão anormal de
um universo comum. O poema realmente é aquela “alquimia do
verbo” de que falava Rimbaud, pela qual se juntam na frase termos
incompatíveis segundo as normas usuais da linguagem.
Restam evidentemente os enunciados realmente inovadores: os
que exprimem verdades descobertas pela ciência e nos quais as coisas
aparecem dotadas de predicados novos (cisnes negros, plantas car­
nívoras, etc.). Trata-se de um problema difícil, cuja discussão apro­
fundada nos levaria longe demais. Digamos que, em muitos casos,
esses enunciados aparecem no contexto com uma “marca de origina­
lidade” do tipo “A experiência revela que”... ou “X descobriu
que...”. Tais fórmulas anunciam uma modificação do código e,
no fundo, pertencem à metalinguagem. Não são encontradas em
poesia. O poeta não diz: “Foram descobertos peixes capazes de
cantar”, mas sim:
]’aurais voulu monlrcr aux enfants ccs dorades
Du flot bleu, ccs poissons d’or> ccs poissons chantants.
(Rimbaud)
[Eu queria mostrar às crianças aqueles dourados/Da onda azul,
aqueles peixes de ouro, aqueles peixes cantantes.]

A impertinência, introduzida no meio de uma frase, é imedia­


tamente percebida como tal e aciona o mecanismo de redução lin­
guística. Como tentaremos mostrar na conclusão, é esse mecanismo
que introduz aqueles valores semânticos de outra ordem que cons­
tituem o sentido poético.

* *

Uma vez admitida a existência de uma regra de pertinência se-


mântica, resta confrontar a linguagem poética com ela. Para tanto,
procederemos por via estatística, como fizemos para o verso. O pro-

4 97
cesso seguido será o mesmo: comparação dc grupos de três autores,
à razão de cem itens cada um. Mais uma vez, não se trata de
abranger o conjunto das relações sintagmáticas. Todavia, com o
intuito de ampliar ao máximo a extensão da análise, estudaremos
as três grandes funções principais: predicação, determinação e co­
ordenação. Este capítulo será dedicado à mais importante delas,
a predicação, pela qual uma característica, no sentido amplo, é
atribuída a um sujeito a título de propriedade. Em francês, exprime-
-se a predicação de duas maneiras principais: nominal (sujeito-verbo
de ligação-predicativo) ou verbal (sujeito-verbo). Todavia, para
facilitar a análise, vamos estudá-la sob a forma epitética. O epíteto,
como veremos no capítulo seguinte, exerce uma função determina­
tiva, mas só pode fazê-lo se aparecer como uma propriedade do
nome ao qual se aplica. Por conseguinte, pode-se estudar a pre­
dicação através dele. “O vestido vermelho” pode transformar-se
facilmente em frase predicativa, pela simples introdução do verbo
de ligação: “O vestido é vermelho” 76. A pertinência c a mesma
nos dois casos. Inversamente, existe impertinência tanto em “a so­
lidão é azul” como em “solidão azul” (Mallarmé).
Duas considerações justificam a escolha do epíteto, Por um
lado, os epítetos são frequentes em todos c" poemas,
os p------- , ~o 'que facilita
consideravelmente a operação estatística; por outro lado,, o epíteto
é dotado de um incomparável rendimento poético. Para convcncer-se
disso, basta suprimi-lo. Compare-se, por exemplo:
Lc vent crispé du matin (Vcrlainc)
[O vento crispado da manhã]
com
Le vent du matin.
[O vento da manhã.]

ou então
II a monte 1’âpre cscalicr (Hugo)
[Ele subiu a áspera escada]
com
II a monte Vescalier.
[Ele subiu a escada.]

(76) Cf. Bally, Linguistique génirale ct linguistique française, Paris,


Leroux, 1962, p. 106.
O estudo gramatical do epíteto será retomado no capítulo se­
guinte. Limitemo-nos aqui a observar que a função epitética é signi­
ficada por marcas gramaticais, a partir das quais o adjetivo pode
constituir-se como predicado do substantivo. Resta ao significado
lexical adaptar-se a esta função. Consideraremos como impertinen­
tes os que não se adaptarem. E notemos que a oposição pertinente/
impertinente é de nível formal. Não analisaremos a significação do
sintagma, mas simplesmente perguntaremos se constitui ou não uma
fórmula linguisticamente aceitável. O que Verlaine quis dizer com
“vent crispe” e Hugo com “âpre escalier”? Não procuraremos sa­
ber, limitando-nos a constatar que não se pode dizer do vento que
ele é “crispado”, nem de uma escala que ela é “áspera”, do mesmo
modo que em fonologia uma oposição de fonemas é considerada
pertinente se corresponder a uma oposição de termos, sem que se
procure saber o que significam tais termos. Dito isso, podemos
passar à estatística.

* *

Um primeiro quadro nos dá os resultados comparados da prosa


e da poesia para um mesmo estado de língua (século XIX).

Qu/\dro III
EPÍTETOS IMPERTINENTES (I)

GÊNERO AUTORES NÚMERO TOTAL MÉDIA


Berthelot 0
Prosa científica Cl. Bcrnard 0 0 0%
Pasteur 0
Hugo 6
Prosa romanesca Balzac 8 24 8%
Maupassant 10
Lamartine 23
Poesia Hugo 19 71 23,6%
Vigny 29

99
Como se vê, na linguagem científica dessa época, a impertinên­
cia é nula. Os sábios às vezes empregam metáforas de uso, mas
nunca criam novas. Já que a linguagem científica nos serve de re­
ferência normativa, é fora de dúvida que, por definição, a imperti­
nência nela só pode ser muito fraca. Mas, a priori, não se saberia
que era nula. A norma é um pólo do qual a realidade pode se
aproximar sem atingi-lo. Aqui, a realidade não tolera desvio: nos­
sos três autores só empregam a linguagem comum.
A linguagem romanesca desvia-se dela. Mas tal desvio (8%)
é pequeno, comparado ao que a poesia apresenta (23,6%). A di­
ferença é quase de um para três, demasiado significativa para pre­
cisar de controle estatístico. Também, para representar a poesia
do século XIX, só consideramos aqui o grupo romântico. Os sim-
bolistas, como veremos, teriam dado uma diferença muito mais acen­
tuada. Lembremos, por outro lado, que a prosa romanesca não
representa realmente a prosa, se por esta palavra entendermos a
linguagem usual. Toda linguagem literária é estilizada, mas a graus
diferentes, e, à parte a versificação, só esta diferença quantitativa
separa o que é considerado prosa do que é considerado poesia.
É bem verdade que, dialeticamente, a quantidade se transforma em
qualidade. Abaixo de certo limiar, a anormalidade desaparece, o
que explica por que a linguagem dos grandes prosadores do século
XIX pode aparecer como linguagem normal. A determinação vai
nos fornecer exemplos ainda mais claros desta confusão.
É interessante notar que os dois grupos literários, prosadores
e poetas, formam grupos homogéneos, como mostra o cálculo do X2:

Valor-
GÊNERO Valor -limitc Limiar Diferença
Prosa romanesca 0,78 3,32 0,10 não-significativa
Poesia 0,64 3,32 0,10 não-significativa

É como se, dentro de um gênero determinado, o autor se fi-


xasse espontaneamente uma taxa de desvio, um grau estilístico que
não deve ser uiiltrapassado. Nesse sentido, há um fato comprobatório:
o mesmo autor, Hugo, adapta-se à*i norma quantitativa do gênero,
conforme seja prosador ou poeta. Emprega x 6% de epítetos imper­
tinentes quando escreve um romance e passa u a 19% quando com-
põe um poema, ,Fica assim provado que, sejam quais forem as di-

100

1
/crenças de conteúdo, os dois gêneros podem caracterizar-se apenas
ao nível da estrutura.
Podemos agora comparar a poesia a si mesma e tirar uma se­
gunda prova de sua evolução. Assinalemos os epítetos nos nossos
trés grupos habituais: clássico, romântico e simbolista. A frequên­
cia dos impertinentes é dada no quadro abaixo:

Quadro IV
EPÍTETOS IMPERTINENTES (II)

AUTORES NÚMERO TOTAL MÉDIA


Corneille 4
Racine . 4 11 3,6%
Molière 3
Lamartine 23
Hugo 19 71 23,6%
Vigny . 29
Rimbaud 44
Vcrlaine 42 139 46,3%
Mallarmé 53

Observemos primeiro que os clássicos e os simbolistas constituem,


como os românticos, grupos homogéneos:

Valor-
AUTORES Valor -limite Limiar Diferença
Clássicos 0,64 3,52 0,10 não-significativa
Simbolistas 1,98 3,52 0,10 não-significativa

Trata-se de um resultado estilisticamente interessante em si


mesmo, já que prova que as etiquetas atribuídas pela história da
literatura se justificam ao nível formal. Clássicos, românticos e
simbolistas são aparentados não só pelo conteúdo, pelos temas, idéias,
sentimentos, etc. mas também ao nível formal, pela taxa de desvio
que praticam. A título de exemplo, fizemos o levantamento de im­
pertinências epitéticas em Baudelaire. O resultado, 39, homogéneo

101
1

à média de 46,3% do grupo simbolista, permite ligá-lo estilística­


mente a este grupo. Mas esse é apenas um exemplo, posto que
uma única figura constitui uma base demasiado estreita para carac-
terizar um estilo.
Mas o resultado mais interessante para nós é dado pela dife­
rença amplamente significativa de um grupo para outro, como mos­
tra o cálculo de X,:

Valor-
GRUPOS Valor -limitc Limiar Diferença
Clássicos-românticos . 15,15 4,78 0,01 significativa
Românticos-simbolistas 7,28 4,78 0,01 significativa

A progressão de um grupo para outro é muito clara e da mesma


ordem que a apresentada pela versificação. A evolução realizou-se
lincarmente, no sentido de uma acentuação da anormalidade lin­
guística. Nos simbolistas, quase um epíteto sobre dois c imperti­
nente. Estamos diante da prática deliberada daquele “equívoco”
prescrito por Verlaine na sua “arte poética”. Mas o preceito não
é uma particularidade da escola; constitui o resultado consciente de
uma necessidade interna da poesia.
*
* *

A análise acima tratou da impertinência como um caráter glo­


bal, regido pela lei do tudo ou nada. Os epítetos convêm ou não
convêm ao sujeito. Pode-se perguntar agora se não existem graus
de conveniência, uma grandeza da própria impertinência que per­
mitisse introduzir uma distinção mais sutil na análise da figura. Um
subterfúgio vai fornecer-nos esse meio. Com efeito, é possível me­
dir o desvio de acordo com a resistência que oferece à redução.
A semelhança é identidade parcial. Haverá metáfora se Sot
e So2 possuírem alguma parte ou “sema” comum. Assim, em “ca-
“) beça de alfinete” existe uma relação de semelhança entre, o. sentido
/ próprio (cabeça) e o sentido fi^radõ^^xtrèrní^deTTconstituída pelo
“sema” comum (forma arredondada). O que se pode representar
pelo esquema:

102
Soj (a b c) —> So2 (a cl e)
onde a representa a parte comum. Vê-se imediatamente que esse
processo requer a divisão do significado em partes componentes,
e tal divisão, que durante muito tempo foi um problema capital da
filosofia, começa agora a entrar no campo de preocupação da lin­
guística.
Segundo o princípio de isomorfismo proposto por Hjelmslev77,
existe um paralelismo exato entre o plano da expressão e o plano
do conteúdo. Ora, quanto à expressão, a palavra pode ser dividida
em unidades menores, que são os fonemas. O princípio de isomor­
fismo exige a mesma coisa quanto ao conteúdo, ou seja, que o signi-
ficado de uma palavra possa, por sua vez, ser dividido em unida-
des menores. Assim, a palavra “égua” pode ser analisada em dois
traços pertinentes de significação:
“cavalo + fêmea”
Aplicando esse princípio, Prieto analisa a palavra latina “vir” em:
“homo + masculino”
Sõrensen, por seu lado, decompõe “pai” em:
“ancestral + do l.° grau + masculino.

Tais análises apresentam um defeito, sobre o qual insiste Mar-


tinet: trata-se da “dificuldade que se sente em manejar a realidade
semântica sem o auxílio de uma realidade concreta correspondente,
fónica ou gráfica” 78. Com efeito, o significante “égua” não traz ne­
nhum vestígio de sua articulação semântica. Não se deixa dividir
formalmentc como, por exemplo, “cantor” em “cant + or”, já que
cada elemento do significante corresponde a um elemento do sig­
nificado. Portanto, se a linguística só opera dentro da relação
significante-significado, então a análise do significado de “égua” não
é mais uma operação linguística: é de ordem epistemológica ou psi­
cológica, e não se percebe bem em que critério objetivo a análise po­
deria basear-se neste caso.

(77) “La stratification du langage”, in Word, 1954, n.9 2-3.


(78) “Arbitrairc linguistique ct doublc articulation”, Cahiers F. de
Saussure, n.9 15, p. 107.

103
Mas, seja qual for o valor que se lhe atribua, essa divisão é
necessária se quisermos explicar a metáfora. É certo que se a pa­
lavra abrangesse um significado indecomponível, seu emprego meta­
fórico seria impossível. “Raposa” só pode significar “astuto”, por­
que no espírito dos usuários a astúcia era um dos componentes se­
mânticos do termo. Portanto, temos o direito de analisar “raposa”
em “animal + astuto”, conservando-se apenas o segundo traço no
emprego metafórico. Segundo Winckler, que desenvolve o tema do
“traço dominante” de Wund, este traço é, inclusive, o único cons­
tituinte subjetivo do sentido, e a prova é que, em certos dialetos,
a raposa é chamada “a astuta”79. Todavia, esta teoria leva a mu­
tilar o sentido. Quando dizemos “casaco de raposa”, designamos
por sinédoque “a pele”, que constitui outro componente do sentido.
A multiplicidade das mudanças de sentido a partir de um mesmo
termo é uma prova da pluralidade dos traços constituintes do signi­
ficado. E o estudo dos tropos, seja dito de passagem, talvez for­
necesse o critério linguístico requerido pela semântica estrutural.
Podemos então admitir, pelo menos para certos termos cha­
mados “concretos”, a possibilidade de uma análise do sentido em
unidades semânticas menores, e tal possibilidade vai fornecer-nos
o meio de quantificar a impertinência.
Consideremos algumas fórmulas da linguagem poética, tais como:
tresses d’ébène
[tranças de ébano]
(Lamartine)
herbe d’émeraude
[erva de esmeralda]
(Vigny)

Se analisarmos os predicados de acordo com o processo que acaba­


mos de descrever:
ébano = madeira + negra,
esmeralda = pedra + verde,

veremos que a impertinência só atinge uma das duas unidades de


significação; retirada esta, restabelece-se a pertinência. Neste caso,
portanto, a impertinência só é parcial, e a metáfora que reduz o

(79) Cf. H. Konrad, Étude sur la Métaphore, Laverguc, 1939.

104
desvio, de fato nada mais é que uma sinédoque, posto que o traço
pertinente é uma parte efetiva, embora abstrata, da totalidade do
significado. A esse tipo de impertinência, limitada a um dos ele­
mentos do significado e redutível por simples subtração desse ele­
mento, nós chamaremos desvio do 1° grau.
Consideremos agora uma fórmula como:
bleus angélus
[azuis ângclus]
(Maliarmé)

O mesmo processo seria aplicável aqui? Poder-se-ia analisar o pre­


dicado impertinente “azuis” em unidades menores? A operação
parece bastante difícil. Estamos em presença de um termo que
denota um dado empírico subjetivamente indecomponível, c é difícil
dizer como se poderia construir uma definição da palavra “azul”.
No que concerne à cor, e de maneira geral a todos os dados senso-
riais elementares, a definição só pode ser do tipo referencial, pela
designação do objeto significado: “Isto é azul”, Ou, então, temos
que recorrer à definição tautológica: “Azul é a cor de todos os
objetos azuis”.
Com as palavras que designam cor parece que atingimos aqueles
“signos semanticamente primitivos” ou “primitivos”, como os chama
Sórensen, cuja análise semântica implica a existência. Com efeito,
a análise dc Hjelmslev, assim como a de Prieto, divide o sentido
em unidades menores, mas tais unidades, por sua vez, são signos
que também podem ser divididos. Se “égua” = “cavalo + fê­
mea”, cavalo pode, por sua vez, sofrer a mesma divisão: “animal
+ mamífero + solípede -f- doméstico, etc.” Pouco a pouco, deve-
-se chegar aos elementos últimos, desta vez indivisíveis, que cons-
tituiriam verdadeiros “átomos semânticos”. A axiomática contem-
porânea, como se sabe, viu-se na necessidade de admitir tais átomos,
indefiníveis, com os quais é possível compor todas as definições.
Portanto, se as palavras que designam cor são realmente ele­
mentos últimos de significação, a conclusão lógica é que não se pode
tomá-las como termos de uma metáfora motivada. Os predicados de
cor seriam pertinentes ou absurdos. Na realidade, não é isso que
acontece, como provam metáforas de uso como “idéias sombrias”
ou “ver a vida cor de rosa”. Resta procurar a motivação de tais
metáforas e, como não podemos encontrá-la dentro, a única possibili­
dade é procurá-la fora do significado.

105
No caso de “ângelus azuis”, estamos diante do que os psicó­
logos chamam “sinestesia”, ou seja, a associação de sensações que
pertencem a registros sensoriais diferentes. Neste caso, uma sensa-
ção visual é associada a uma sensação auditiva, O problema da
sinestesia pertence à psicologia, e não podemos estender-nos aqui
sobre sua natureza. Voltaremos depois ao problema, mas, neste
estágio de nossa análise, a sinestesia só nos interessai como fenômeno
linguístico, enquanto relação entre dois significados. A sinestesia é
reconhecida pelos linguistas como um tipo de metáfora. Para nós,
aqui, ela é um grau da metáfora.
metáfora, Com efeito, já que a cor é ina-
nalisável, a mudança de sentido não pode atuar sobre seus caracteres
intrínsecos. Só o efeito subjetivo produzido pela cor — no caso
da cor azul, digamos que há um efeito de calma — é suscetível de
reduzir a impertinência. “Ângelus azuis” remete para a impressão
de paz produzida pelo som do ângelus. Não vamos insistir muito
nessa interpretação. Pouco importa o valor particular que se dê a
“azul”; por enquanto, o essencial não é isso, mas o fato de que
esse valor, puramente subjetivo, não pode ser considerado como
uma parte componente do significado de “azul”. Não constitui em
absoluto um traço pertinente de significação. Entre o significado
próprio de “azul”, uma determinada cor objetiva, e aquela impressão
subjetiva, a distância é grande, maior mesmo que a que separa “as­
tuta”, de “raposa”, ou “negro” de “ébano”. A astúcia é um cará­
ter objetivo da raposa, assim como a cor negra do ébano. Para
passar de um sentido a outro basta uma simples abstração. Por sim­
ples abstração, não se pode absolutamente passar de “azul” para
“paz”. Por conseguinte, vamos distinguir dois graus na metáfora
e, correlativamente, dois graus na impertinência, conforme a rela­
ção dos dois significados. Elaverá impertinência do primeiro grau
se a relação for de interioridade; impertinência do segundo grau se
for de exterioridade.
A sinestesia não é o único exemplo de impertinência do segundo
grau. A distinção estabelecida por H. Adank 80 entre “metáforas
explicativas” e “metáforas afetivas” corrobora nosso ponto de vista,
Metáfora afetiva é toda aquela que “repousa numa analogia de
valor sugerida por nossos sentimentos, nossa subjetividade”. Mas,
ao que para o autor é uma diferença qualitativa, nós acrescentamos
uma distinção quantitativa. “A analogia de valor” constitui para

(80) Obra cilada.

106
nós uma semelhança mínima. A metáfora afetiva corresponde, por­
tanto, a uma impertinência máxima cm virtude do princípio que
propusemos, segundo o qual a grandeza da impertinência é propor­
cional à grandeza da mudança dc sentido necessário para reduzi-la,
vale dizer, à distância que separa o sentido próprio do sentido figurado.
Esta noção de distância, que permite quantificar a figura, de
resto, não é nova: a antiga retórica distinguia entre metáforas “pró­
ximas” e metáforas “distantes”, segundo a terminologia de Barry,
ou metáforas “claras” e “obscuras”, segundo Fontanier. Mas não
fornecia critério dc distinção. A nosso ver, o recurso aos “primitivos”
da significação, como as palavras de cor, garante-nos o caráter “dis­
tante” das metáforas baseadas neles, e, por conseguinte, o alto grau de
impertinência dos sintagmas de que são predicados. E assim chegamos
ao objetivo que pretendíamos com esta longa discussão: comparar
a poesia a si mesma no que diz respeito à impertinência do 2.°
grau. Os retoricistas, de acordo com a estética da época, proibiam
a metáfora distante. Vejamos se a poesia na sua história seguiu tal
preceito.
O inventário estatístico, desta vez, vai limitar-se, portanto, ape­
nas aos epítetos de cor, à razão de cem por autor, conforme o pro­
cesso habitual. Foram classificadas como impertinentes:
l.° As cores diferentes das que os objetos possuem por definição:
nuit verte
[noite verde]
(Rimbaud)
crépusculcs blancs
[crepúsculos brancos]
(Mal 1 arme)

2.° As cores atribuídas a objetos não coloridos por natureza.


Por exemplo:
noirs parfums
[negros perfumes]
(Rimbaud)
blanchc agonie
[branca agonia]
(Mallarmc)

Se os clássicos desta vez não figuram no nosso inventário é


simplesmente porque, neles, as palavras de cor são tão raras que

107
é difícil conseguir o número exigido pela estatística. Todavia, al­
guns exemplos recolhidos parecem mostrar que neles o desvio é
quase igual a zero. Todos os epítetos de cor são tomados ora no
sentido próprio, ora num sentido metafórico de uso. Assim, em
Iphigénie, o epíteto “epíteto “noir” aparece três vezes:
Approuvc la fureur dc ce noir sacrijicc
[Aprova o furor deste negro sacrifício]

Qu’on osc des fureurs avoucr la plus noire


[Que ousa confessar o mais negro dos furores]

Sous un nom emprunté, sa noire destinée.


[Sob um nome emprestado, seu negro destino]

Como se vê, nas três ocorrências,, a palavra é tomada no sentido fi-


gurado de “funesto” ou “culpado”, usual na linguagem literária
da época.
Como no caso do “enjambement”, aparece aqui aquele mesmo
conflito entre o respeito ao código, segundo a estética da época, e
as exigências contrárias da poesia. Os clássicos resolveram o pro­
blema pelo compromisso da metáfora de uso, grau mais fraco do
desvio, que, em compensação, praticam abundantemente.
Os modernos, pelo contrário, repudiam a metáfora de uso. En­
contramos algumas nos românticos, quase nenhuma nos simbolistas.
A única metáfora que a palavra de cor proporciona é a metáfora
de invenção. Mas, neste caso, o desvio entre os modernos separa
os dois grupos, como mostra o quadro seguinte:

Quadro V
EPÍTETOS DE COR IMPERTINENTES

AUTORES NÚMERO TOTAL MÉDIA

Lamartine 4
Hugo 5 13 4,3%
Vigny 4
Rimbaud 42
Verlaine 36 126 42%
Mallarmé 48

108
O desvio do 2.° grau aparece com os românticos, mas só se
generaliza com os simbolistas. Os primeiros abriram o caminho,
mas só os segundos tiveram a coragem de seguir por ele. É bem
verdade que, com a cor, escolhemos um caráter particularmente di­
fícil de tratar poeticamente. A cor é uma das propriedades empí­
ricas mais flagrantes que possuem as coisas deste mundo. Dar a
um objeto uma cor que ele não tem, ou ainda, atribuir uma cor a
seres não sensíveis, parece um desafio deliberado à razão. O uni­
verso simbolista é um universo desconcertante: nele, a lua é rosada,
a erva azul, o sol negro e a noite verde. E o que é ainda mais estra­
nho: o êxtase ê vermelho, a solidão azul, o sono verde. Tais são
quclas “cores nunca vistas” que, misturando-se a formas estranhas,
aquelas
al ruídos inauditos, compõem o mundo aparentemente fantástico
do poeta.
Com o simbolismo começa o divórcio atual entre a poesia e o
público. Mas tal divórcio provém de um malentendido, pelo qual
são cm parte responsáveis certas concepções doutrinais, às vezes
defendidas pelos próprios poetas. O surrealismo, sobretudo, levou
este malentendido ao extremo pela afirmação, herdada do idealismo
alemão, de um “surreal” concebido como um segundo mundo, oculte
sob o primeiro, que é sua falsa aparência. Desse modo, perpetuava o
erro substancialista, creditando para as coisas o que pertence à lingua­
gem. Não existe universo poético; o que existe é uma maneira poé­
tica de exprimi-lo. A poesia não fala a linguagem literal. A lua
não é rosada, o sol não é negro, a noite não é verde. Se fossem, o
poeta o diria de maneira diferente. A fórmula de Breton, que ci­
tamos acima, poderia inverter-se. O poeta nunca diz diretamente
o que quer dizer, nunca chama as coisas pelo nome. A cor verde,
em “noite verde” não é a cor objetiva. É apenas um primeiro
significado que funciona como significante de um significado se­
gundo. A exigência de literalidade detém o processo de descodifi­
linguagei poética
cação no seu primeiro tempo, privando assim a linguagem
de sua verdadeira significação.
Se a poesia pratica sistematicamente a impertinência, se de ma­
neira geral ela só pode construir-se violando sistematicamente as re­
gras da linguagem, é porque o caminho direto que vai de Se a So2
se acha cortado, como já dissemos. Entre ambos interpõe-se sem­
pre Soj, o significado primeiro. Trata-se de um fato que decorre
da própria estrutura da linguagem; por isso é preciso primeiro des­
locar essa estrutura.

109
A metáfora ou mudança de sentido c uma transmutação do sis­
tema ou paradigma. A figura é um conflito entre o sintagma c o
paradigma, entre o discurso c o sistema. O discurso normal inscreve-
-se na linha do sistema, de conformidade com suas leis. Nada mais
faz que atualizar suas virtualidades. O discurso poético inverte o
sistema e, nesse conflito, é o sistema que cede e aceita transformar-se.
A poesia, na profunda expressão de Valéry, é uma “linguagem den­
tro da linguagem”, uma nova ordem linguística fundada sobre as
ruínas da antiga, através da qual, como veremos na conclusão, se
constrói um novo tipo de significação. O absurdo poético não é
preconcebido. É o caminho inelutável pelo qual o poeta deve pas­
sar, se quiser fazer a linguagem dizer aquilo que a linguagem nunca
diz naturalmente.
Podemos dar uma contraprova disso mostrando que, em qual­
quer fórmula poética, basta suprimir ou diminuir o desvio para ex­
pulsar a poesia. E não se poderia escolher exemplo melhor que
este célebre verso de Virgílio, objeto de recente controvérsia81:
Ibant obscuri sola sub noctc. . .
Cuja tradução ao pé da letra seria:
Iam escuros na noite solitária.
A impertinência é evidente, Os epítetos parecem deslocados, como
por engano, Tanto é que alguns comentaristas, apesar do texto,
restabelecem a ordem normal, que seria então:
Iam solitários na noite escura.
Com isso, salva-se o código, mas mata-se a poesia. Com efeito,
quem não vê imediatamente que esta segunda versão é simples prosa
e nada mais que prosa? A poesia nasce da impertinência e o poeta
sabia disso muito bem. Assim, contra o código, dizia homens es-
curos e noite solitária.
A mesma concepção permite-nos responder ao desafio de Bre-
mond, cujos termos lembramos aqui:
“Esperemos enfim que os filósofos da poesia-razão nos expli-
quem por que o verso de Malherbe:
Et les fruits passeront la promesse des jlcurs

(81) Cf. Le Monde, 8, 15 c 22 de agosto de 1964.

110
é um dos quatro ou cinco milagres da poesia francesa, e por que
não se pode alterar a mínima letra desse verso sem degradá-lo in-
teiramente. Acrescente-se o peso de um floco de neve ao terceiro
destes divinos anapestos:
Et les fruits passeront les promesses des fleurs

e o vaso se quebra.”
Mas a passagem do singular para o plural pesa mais que um
floco de neve. Na realidade, constitui simplesmente uma redução
do desvio. ‘‘As promessas” é uma metáfora de uso, uma fórmula
correntemente tomada no sentido de “signos precursores”. O fato de
que flores possam anunciá-los está em conformidade com o código.
“A promessa”, pelo contrário, conserva seu sentido próprio de
“juramento”, o qual só pode ser feito por homens
homens 82. Por conse­
guinte, o singular atribui ao sujeito um predicado impertinente, vio-
lando o código que o plural restabelece. Se o vaso se quebra quando
suprimimos o desvio, isso vem provar que o desvio é seu pedestal.

(82) . A esse nível, portanto, encontramos a oposição catcgorial anima-


do x inanimado.

111
Capítulo IV

NÍVEL SEMÂNTICO: A DETERMINAÇÃO

“O que é determinar? Antes de tudo — como indica a pa­


lavra —, é precisar os termos ou limites, isto é, distinguir um objeto
dentro de um conjunto, separá-lo dos outros; por outras palavras,
quando se trata de vários, indicar claramente qual deles”83.
Essa função não seria necessária numa língua composta exclu­
sivamente de nomes próprios. Com efeito, tais nomes (Napolcão,
I a
França, a Lua, etc.) são totalmente determinados por si mesmos.
Mas percebe-se que uma língua desse tipo possuiriai um número
de termos que excederiam as possibilidades da memória, Por essa
razão, a linguagem julgou mais prático reservar os nomes próprios
a um pequeno número de objetos familiares (pessoas, cidades, obras
de arte, etc.). Para o conjunto dos outros objetos, é evidentemen­
te mais económico reuni-los em classes segundo suas propriedades
comuns e dar nomes somente às classes. Todavia, quando queremos
referir-nos apenas a uma parte destas, a uma espécie ou a um indi­
víduo, devemos prever um processo linguístico particular, especial­
mente encarregado de operar a delimitação. Tal processo é a de­
terminação, que consiste em acrescentar ao termo comum um ou
vários outros termos chamados “determinantes”. A língua possui
toda uma categoria de termos especialmente incumbidos dessa ta­
refa, os adjetivos ditos “determinativos” (demonstrativos, possessi­
vos, indefinidos, numerais).
Tais adjetivos não acrescentam nenhum caráter novo ao termo
que determinam. Em “este homem é inteligente”, ao contrário do

(83) G. e R. Le Bidois, Syntaxe du français inodcrnc, 2 vol., Paris,


A. Picard, 1935-1938.

112
predicativo, que enriquece a compreensão do sujeito, o demonstra­
tivo nada mais faz que indicar a quem se refere o predicativo. Por­
tanto, enquanto o termo predicativo aumenta a compreensão do su­
jeito, o termo determinativo só lhe limita a extensão. Nesse senti­
do, a determinação pode reduzir-se a simples quantificação, e é assim
que a consideram grande número de linguistas (Brunot, Yvon, Cres-
sot. . . ). Porém, notamos que subsiste uma diferença entre as duas
fórmulas seguintes: “Uns cães” e “estes cães”. Em ambos os ca­
sos, a extensão do sujeito está limitada, mas, enquanto o indefinido
se restringe à limitação, o demonstrativo permite saber exatamente
de que cães se trata. Por isso, certos linguistas, como Bally, dis­
tinguem duas funções diferentes: de um lado, a “quantificação”,
de outro, a “localização”. Os indefinidos e os numerais limitam-se
a quantificar; os demonstrativos e os possessivos quantificam e lo­
calizam ao mesmo tempo. Adotaremos este ponto de vista, que é
confirmado, como veremos, pela existência de dois tipos de figuras
diferentes.
A função determinativa é desempenhada por uma categoria de
termos previstos para isso, mas pode também efetuar-se sob outras
formas: adjunto adnominal (o livro de Pedro), oração adjetiva
(o livro que está sobre a mesa), e também epíteto (o livro preto),
Pelas razões já indicadas no capítulo anterior — abundância e ren-
dimento —, basearemos nossa análise no epíteto, Será fácil esten-
der os resultados para as outras formas.

Hoje, a palavra “epíteto” só tem um valor gramatical. Anti-


gamente, tinha um sentido duplo, gramatical e também retórico,
Por “epíteto” designava-se, no sentido retórico, uma figura da qual
Fontanier dá a seguinte
í definição, por oposição ao epíteto normal,
chamado adjetivo: “Mas em que o epíteto difere do adjetivo pro-
priamente dito? A diferença está suficientemente indicada pela
própria definição do epíteto. O epíteto e o adjetivo juntam-se am­
bos ao substantivo, ambos para modificar a idéia principal com idéias
secundárias. Mas o adjetivo é necessário, imprescindível mesmo para
a determinação ou complemento do sentido, e não se pode dizer
nunca que ele é dispensável. O epíteto, pelo contrário, às vezes é
apenas útil, servindo só para o ornamento ou a energia do discur-

113
so, ou é julgado até dispensável e redundante. Sc eliminarmos o ad­
jetivo de uma oração, ela fica incompleta ou apresenta um sentido
diferente. Se eliminarmos o epíteto, a oração poderá permanecer
inteira, mas ficará talvez solta ou enfraquecida. “Essa é a regra
geral, segundo Roubaud, para distinguir o epíteto do adjetivo, e
aplicá-la-emos ao exemplo seguinte: “O espírito sombrio entristece,
por assim dizer, os objetos mais risonhos. A pálida morte bate
tanto na porta do pobre como na porta dos reis”. Tiremos a pa­
lavra sombrio da primeira frase: esta não tem mais sentido. Tire­
mos a palavra pálida da segunda: o sentido permanece, mas a ima­
gem fica desbotada. Portanto, a palavra sombrio é puramente adje­
tivo na primeira frase, e a palavra pálida é epíteto na segunda” 84.
No entanto, Fontanier não explica por que o adjetivo c ora
dispensável ou redundante, ora necessário ou indispensável. Por que
podemos eliminar sem inconveniente “pálida” em “a pálida morte”,
e não “sombrio” em “o espírito sombrio”? Tentaremos responder
a esta pergunta. Veremos aparecer, então, a estrutura particular da
figura.
Se, pela supressão do epíteto, transformarmos a frase: “O es­
pírito sombrio entristece os objetos mais risonhos” em “O espírito
entristece os objetos mais risonhos”, não obteremos uma fórmula
“que não tem mais sentido”, como afirma Fontanier. Alterou-se
apenas o valor de verdade da oração. A primeira é verdadeira, a
segunda é falsa. Por que? Porque, ao eliminar o epíteto, se trans-
formou a <extensão do sujeito e, consequentemente, o campo de apli-
cação do predicado, Passou-se de alguns a todos; ora, o predicado
é válido para alguns, mas não para todos. É verdade que o espírito
sombrio entristece os objetos mais “risonhos”, mas não é verdade
para todo espírito, Deste modo, o epíteto prova seu valor pura-
mente determinativo. Ele foi feito para responder à pergunta:
Qual? Desempenha essa função delimitando uma espécie dentro
de um gênero.
Para desempenhar seu papel, é preciso que o epíteto se aplique
somente a uma parte da extensão do substantivo. O que pode ex­
primir-se em linguagem simbólica da maneira seguinte:
Consideremos todas as palavras como classes, e a relação subs­
tantivo-epíteto como um caso de multiplicação lógica. Sendo A

(84) Des figures du discours..., p. 80.

114
o substantivo c B o adjetivo, para que a função determinativa possa
atuar, é preciso que:
A X B = C, cm que C<A.
Assim, a classe dos homens multiplicada pela classe dos brancos dá
a subclasse dos homens brancos.
Mas, caso o adjetivo se aplique a toda a extensão do substan-
tivo, temos:
A X B = A.
Assim, a classe dos homens, multiplicada pela classe dos mortais,
dá a classe dos homens mortais, que é igual à classe dos homens.
A multiplicação torna-se inútil, então, e o epíteto é redundante.
O primeiro caso é o de ‘‘espírito sombrio”, que constitui uma
subclasse da classe “espírito”. O segundo, pelo contrário, é o de
“pálida morte”, que é extensivamente igual a “a morte”, pois o
adjetivo se aplica à morte em geral. Sendo assim, existe entre o
epíteto e o predicativo uma diferença ao mesmo tempo gramatical
e lógica. Gramaticalmente, o epíteto difere do predicativo pele
fato de ligar-se imediatamente ao substantivo, ao passo que o pre
dicativo se liga por meio de um verbo de ligação. Logicamente, a
diferença está na regra que acabamos de enunciar. O predicativo
pode aplicar-se a todo ou parte do substantivo. O epíteto só pode
aplicar-sc exclusivamcnte a uma parte deste.
Encontramos uma estrutura análoga à da figura precedente.
Chamamos impertinente o predicado lexicalmente incapaz de cum­
prir sua função predicativa. No caso presente, o epíteto que cha­
maremos “redundante” se revela, por sua vez, incapaz de desem­
penhar a função determinativa. Em ambos os casos, estamos diante
de palavras cujo sentido as torna incapazes de desempenhar o papel
que a gramática lhes atribui.
Considerando-se apenas o epíteto, podemos até encarar imper­
tinência e redundância como dois tipos da mesma figura. Com
efeito, se o epíteto é normal quando
A X B = C,
teremos dois casos de anormalidade:
l.° A X B = O.

115
É o caso da impertinência.
2.° A X B = A.
É o caso da redundância.
Para desempenhar sua função, um epíteto deve; 1.'.° aplicar-se
a uma parte do substantivo; 2.'.° aplicar-se somente a iuma parte,
Ele é anormal se não convier para nenhum ou se convier para todos.
Não se aplica a nenhum em “perfumes negros' , aplica-se a todos em
“verde esmeralda”.
Vamos mostrar agora, através da análise estatística, que o epí­
teto redundante caracteriza a linguagem poética. Antes, convém
dissipar uma objeção eventual.
Se “perfumes negros” é uma expressão cuja incongruência é
evidente, não acontece o mesmo com “verde esmeralda”. Neste
caso, o desvio parece muito menor. É inútil, certamcnte, precisar
que a esmeralda é verde, porque já o sabemos. Mas precisá-lo é
apenas desobedecer a um princípio de economia do discurso, que
prescreve evitar as palavras inúteis, c tal princípio, baseado na lei
do mínimo esforço, parece menos imperioso que o princípio de con­
tradição infringido pela impertinência. No final das contas, redun­
dância e impertinência não parecem situar-se ao mesmo nível fun­
cional.
Na realidade, trata-se de um desvio da mesma ordem, Con si-
deremos esta fórmula de Leconte de Lisle:
Les éléphants rugueux. . . vont au pays natal.
[Os elefantes rugosos. . . vão ao país natal.]

Aqui, o desvio não está apenas no fato de o adjetivo não indicar


nada. Sabemos, é claro, que todo elefante tem a pele rugosa.
Mas, se o adjetivo fosse predicado, se a fórmula fosse: “Os ele-
fantes são rugosos”, não haveria nenhum desvio, A fórmula seria
banal, mas a banalidade não é um defeito de ordem linguística,
A Teoria da Informação, tomando a palavra “redundância” da retó-
rica, deu-lhe justamente o sentido de “banalidade”85. Só o predi-
cado novo, imprevisível, traz informação.. Mas, convém repetir,
nenhuma regra propriamente linguística obriga a linguagem a tra-

(85) Neste caso, trata-se da redundância externa, relativa ao desli-


natário.

116
zer informação. A teoria da informação coloca-se a um nível extra-
-lingiiístico, ao nível da comunicação como conduta social. Como
tal, a comunicação é provida de uma finalidade própria, que trans-
cende o plano da estrutura particular da mensagem, plano esse em
que nos colocamos rigorosamente aqui.
No verso citado, “rugosos” é um desvio, porque está encarre­
gado de uma função determinativa que é incapaz de cumprir. Como
epíteto, deve delimitar uma espécie dentro do gênero “elefante”, mas
não pode cumprir tal função. Portanto, o epíteto não funciona como
epíteto, c temos aqui um desvio propriamente linguístico. Podemos,
aliás, utilizar termos de lógica e considerar “os elefantes rugosos”
como uma expressão que designa ao mesmo tempo a parte e o todo.
Ao nível gramatical, “os elefantes rugosos” designa necessariamente
uma espécie de elefante, mas ao nível lexical, a expressão designa
todos os elefantes. Sendo assim, a parte é igual ao todo e vemos
que se trata efetivamente de um desvio de ordem lógica.
Por isso, expressões como “a verde esmeralda”, ou “o anil
azul” (Mallarmé), são figuras de invenção, achados particulares do
poeta. Invenção e redundância parecem termos antitéticos, mas só
o seriam se o adjetivo fosse atributo. Dizer “a esmeralda é verde”
não provaria nenhuma invenção; mas, aqui, a invenção consistiu jus­
tamente em fazer dc maneira abusiva um epíteto a partir de um
adjetivo incapaz de desempenhar este papel. É nisso que a figura
é poética, como provaremos através da estatística. Porém, a intui­
ção de cada um confirma que o mesmo adjetivo perde seu poder
quando se comporta normalmente. “Tecido verde” pertence à
prosa, porque o adjetivo determina realmente o substantivo, já que
nem todo tecido c verde. Se existissem duas cores de esmeralda,
como existem duas cores dc diamante, “verde esmeralda” não seria
mais poético que “diamante azul”.
Tudo isso supõe que a função normal do epíteto seja a deter­
minação. Ora, neste particular, os gramáticos mostram-se hesitantes.
Alguns, como Damourctte c Pichon, admitem dois tipos de epíteto:
um “restritivo”, isto é, determinativo, outro “pictivo”, isto é, que
pinta. Mas os dois autores não assinalam o caráter retórico do se­
gundo tipo dc epíteto, o que faria pensar que ele pertence à linguagem
normal. Sabe-se de onde vem essa dúvida: os gramáticos conside­
ram como linguagem normal a linguagem literária, onde os epítetos
não determinativos são frequentes, sem perceber que estes constituem
um desvio em relação à norma. Pelo contrário, se nos referirmos

117
apenas à linguagem científica, como é justo fazer, o desvio aparece.
Veremos no quadro estatístico que, na linguagem científica, os epí­
tetos não determinativos são excessivamente raros (3,66%) c apa­
recem quando o autor deixa de falar como homem de ciência, como
prova o conteúdo. Por exemplo, na frase seguinte, de Claude Ber-
nard: “...Para mencionar uma das opiniões mais autorizadas no
assunto, citarei o que meu sábio colega c amigo J. Bertoud escreveu
a respeito”. “Sábio” é redundante, mas ao falar de um colega e
amigo, Claude Bernard não fala mais a linguagem da ciência e em­
prega uma expressão literária. Todos os demais epítetos são deter­
minativos, como mostra este fragmento de Introduction à la Mé-
decine expérimentale: “Como a Ciência se estabelece apenas através
de comparação verdadeira, o conhecimento do estado patológico ou
anormal não pode obter-se sem o conhecimento do estado normal,
da mesma forma que a ação terapêutica dos agentes normais ou
medicamentos não pode compreender-se cientificamente sem o es­
tudo prévio da ação fisiológica dos agentes normais que mantêm
os fenômenos da vida” (grifado por nós).
De resto, convém notar que todos os outros casos de redun­
dância observados nos textos científicos pertencem ao grau mais
baixo da figura. Diremos logo adiante o que se deve entender por
isso.
Portanto, temos o direito de concluir que o epíteto é normal­
mente determinativo, e que todo epíteto que não o é constitui um
desvio ou figura. Veremos que este desvio aparece com a prosa li­
terária e se desenvolve com a poesia.
A análise de textos mostra que há dois tipos de redundância
epitética, conforme o substantivo seja um substantivo comum ou
um nome próprio.
l.° Substantivo comum. Já demos exemplos:
Les éléphants rugueux, voyageurs lents et rudes
Vont au pays natal, à travers les déscrts. (Lcconte dc Lisle)
[Os elefantes rugosos, viajantes lentos e rudes
Vão ao país natal, através dos desertos.]

Une verte émeraude a couronné sa tctc. (Vigny)


[Uma verde esmeralda coroou sua cabeça.]

Et la bouche, fiévrcuse et d’azur bleu voracc. (Mallarmc)


[E a boca, febril e de anil azul voraz.]

118
-

i
Aqui, o substantivo designa uma classe, e o adjetivo aplica-se a toda
a extensão desta classe. Não há elefante que não seja rugoso, nem
esmeralda que não seja verde, nem anil que não seja azul.
2.° Nome próprio.
La blanche Ophélia flotte comine un grand lys.
[A branca Ofélia flutua coino um grande lírio.]

Neste caso, o nome designa um indivíduo que, como tal, não


se deixa dividir. A determinação é inútil, porque já se fez. O epí­
teto é redundante, porque Ofélia só pode ser branca. Ocorre o
mesmo com aqueles nomes próprios sem maiúscula que designam
uma realidade única, como a lua, o sol, etc. Assim, o epíteto é
redundante em:
La lune blanche
Luit dans les bois. (Vcrlainc)
[A luz branca
Brilha nos bosques.]
Convém distinguir, porém, os casos em que a realidade, singular no
espaço, se deixa dividir no tempo. Assim, “a lua cheia” opõe-se à
“lua nova” e, neste caso, o epíteto não é redundante. Acontece o
mesmo com “a Roma antiga” que se opõe à “Roma moderna”,
Todavia, temos um caso de redundância em:
Mais les bijoux perdus de Vantiqúe Palmyre, (Baudelairc)
[Mas as jóias perdidas da antiga Palmira,]

pois Palmira só pode ser antiga, o que torna o epíteto supérfluo86.


Nesta mesma rubrica do nome próprio, deve-se incluir os subs­
tantivos simples já providos de determinantes, que Bally chama com
razão de “nomes próprios da fala”. Assim, em:
pour rclcvcr ta tête blonde, (Hugo)
[para levantar tua cabeça loira,]

“blonde” é redundante, já que a criança grega tem apenas uma ca­


beça, com uma só cor de cabelos. Temos o mesmo caso em:
Ne le déchirez pas avcc vos deux mains blanches. (Vcrlainc)
[Não o rasgueis com vossas duas mãos brancas.]

(86) Pelo menos para o “right rcader”, para quem Ofélia remete a
Hamlct, c Palmira à cidade desaparecida.

119
O caso do nome próprio é interessante, pois mostra, melhor
que o substantivo simples, o sentido particular que se deve atribuir
à redundância. Com efeito, o mesmo adjetivo utilizado como pre­
dicado retomaria aqui seu aspecto normal. “Ofélia é branca”, ou
“tua cabeça é loira”, não teriam nada que surpreendesse. Como
não são de notoriedade pública, esses caracteres escapam da redun­
dância no sentido de banalidade. Nota-se que são anormais só por­
que o poeta fez deles epítetos, isto é, impôs-lhes uma função que
são incapazes de desempenhar.
Reconhecidos os principais tipos de redundância epitética, po­
demos fazer a estatística comparada, segundo nosso método habi­
tual, ou seja, contando o número de epítetos redundantes numa po­
pulação de cem epítetos, escolhidos ao acaso em cada autor estudado.
Quisemos confrontar primeiro a taxa de redundância das lin­
guagens científica, literária e poética. Para esse fim, escolhemos
autores que pertencem a um mesmo estado de língua. Estudamos
três científicos, três romancistas e três poetas do século XIX.
Os resultados vêm a seguir no quadro VI. A diferença é bas­
tante nítida e não necessita de controle estatístico. Passamos de

Quadro VI
EPÍTETOS REDUNDANTES (Para 100 epítetos)

GÊNERO AUTORES NÚMERO TOTAL MÉDIA


Prosa Berthelot 3
Científica Pasteur 5 li 3,6%
Cl. Bernard 3
Hugo (Les Misérables} 21
Prosa Balzac (Le lys dans la
vallée) 13 50 16,6%
Literária Maupassant (Fort com-
me la mort) 16
Hugo 45
Poesia Baudelaire 87 29 107 35,6%
Mallarmé 33

(87) Baudelaire c introduzido aqui para, com Hugo c Mallarmé, ho­


mogeneizar a amostra representativa da poesia do século XIX.

120
uma média de 3,66% nos científicos para 16,66% nos romancistas e
35,66% nos poetas.
E isso, considerando estas médias cm relação a uma população
bruta de epítetos; dessa forma, os epítetos impertinentes são conta­
dos como normais. Pelo contrário, se eliminarmos os impertinentes
para considerar apenas os epítetos pertinentes, os resultados tornam-
-se ainda mais significativos: não mudam para a ciência, que não
comporta epítetos impertinentes; mudam pouco para a prosa lite­
rária, que só comporta um número reduzido; mas aumentam muito,
pelo contrário, para a poesia, onde a impertinência é frequente. Os
resultados corrigidos são os seguintes:

Quadro VII
Prosa científica 3,6%
Prosa literária 18,4%
Poesia 58,5%

Portanto, temos o direito de concluir que a redundância é um


processo que caracteriza como tal a linguagem poética.
Nesta altura, queremos abrir um parêntese sobre a prosa lite-
rária. Percebe-se que ela pratica com certa frequência este tipo de
figura, Isso mostra que, do ponto de vista estilístico, só difere da
poesia pelo aspecto quantitativo. A prosa literária não é senão uma
poesia moderada em que a poesia, por assim dizer, constitui a forma
veemente da literatura, o grau paroxístico do estilo. O estilo é uno.
Apresenta um número finito de figuras, sempre as mesmas. Da prosa
para a poesia, e de um estado de poesia para outro, a diferença está
na audácia com que a linguagem utiliza os processos virtualmente
inscritos na sua estrutura.
Passemos agora a nosso segundo tipo de prova, isto é, à com­
paração da própria poesia em diferentes épocas de sua história, re­
tomando os nove poetas habituais, sempre repartidos em três gru­
pos. Calcularemos a taxa de redundância somente em relação aos
epítetos pertinentes. Com efeito, a abundância dos epítetos imper-
tinentes prejudicaria os resultados, se não fossem eliminados. Os re-
sultados estão no quadro VIII. A progressão aparece nitidamente.
No entanto, é menos marcada que no caso da impertinência, Os
clássicos atingem uma taxa de redundância até muito alta, contras-
tando com a timidez que mostravam para com a impertinência. Po-

121
rém, deve-se levar cm conta o grau da figura. Com efeito, no grau
baixo, como veremos logo adiante, a redundância é tão facilmente
redutível que o desvio mal aparece. Ora, a grande maioria dos epí­
tetos clássicos pertence ao grau baixo da redundância.

Quadro VIII
EPÍTETOS REDUNDANTES

AUTORES NÚMERO TOTAL MÉDIA


Corneille 42
Racine . . . 48 121 40,3%
Molière 31
Lamartine 55
Hugo . . 56 162 54 %
Vigny . 51
Rimbaud 63
Verlaine 67 200 66 %
Mallarmé 70

Mas os números tornam-se particularmente significativos quan­


do, para uma população de cem epítetos, se acrescentam os imperti­
nentes aos redundantes. Temos, então, a taxa global de anorma­
lidade linguística de cada poeta no que concerne ao epíteto. Os re­
sultados (quadro IX) revelam uma diferença significativa de um
grupo para outro. Enquanto as unidades anormais constituem a

Quadro IX
EPÍTETOS /XNORMAIS (Impertinentes c Redundantes)
- (Para 100 epítetos)

AUTORES NÚMERO TOTAL MÉDIA


Corneille 43
Racine . . . 50 126 42 %
Molière 33
Lamartine 65
Hugo . . 64 194 64,6%
Vigny . . 65

122
Rimbaud 79
Verlaine 81 246 82 %
Mallarmé 86

CALCULO DO X„ (Epítetos anormais)

Valor-
GRUPOS Valor -1 imite Limiar Diferença
Clássicos . 4,45 6,64 0,01 não-significativa
Românticos 0,02 3,32 0,10 não-significativa
Simbolistas 1,19 3,32 0,01 não-significativa

Clássicos-românticos . 7,74 4,78 0,01 significativa


Românticos-simbolistas 5,40 4,78 0,01 significativa

minoria nos clássicos (42 96), tornam-se nitidamente o maior nú-


mero nos românticos (64,696), para absorver nos simbolistas a quase
totalidade da população (82 96). Isso significa que, de 100 epítetos
da poesia simbolista, 82 são ou impertinentes, ou redundantes, e ape­
nas 8 são epítetos normais. Mais uma vez, Mallarmé vem na frente
(8 6 96) e podemos perguntar-nos se este recorde foi batido. Have­
rá autores que alcancem 100 96 de anormalidade? É uma pergunta
à qual poderão responder futuras pesquisas. Com essa taxa, parece
que se chega — no sentido rigoroso do termo — à “poesia pura”.
O mais notável, nestes números, é a grande homogeneidade que
revelam. Como mostra o cálculo do X2, para os grupos romântico e
simbolista, as diferenças internas são mínimas. Nota-se que nos
clássicos a homogeneidade é menor88, devido provavelmente à di­
ferença dos gêneros cómico e trágico. Nos poetas que podemos
chamar “líricos”, c que são de fato os poetas no sentido próprio
do termo, é notável observar a mesma taxa de anormalidade lin­
guística que em autores de um mesmo período. Nada mostra me­
lhor a essência formal da poesia. Ela é toda feita de desvios, que
são qualitativamente semelhantes dentro de um gênero e quanti­
tativamente os mesmos durante uma época, e isso para funções tão
diferentes como a predicação e a determinação. Cada poeta diz o

(88) Ela só c não-significativa para um limiar de ,01.

123
que quer e não se assemelha a ninguém. Porém, embora o que ele
diz seja pessoal, a maneira de dizer não lhe pertence, permanece
qualitativamente a maneira de um gênero e quantitativamente a de
uma época. Não existe língua poética se por língua entendermos
uma soma de palavras. Existe, porém, uma linguagem poética, se
linguagem significar combinação de palavras, isto é, frases. Temos
então, uma frase poética que é tal não pelo conteúdo, mas pela
estrutura.
A semelhança estrutural entre redundância e impertinência apa­
rece também ao nível da redução. Convém repetir que a linguagem
poética é provida de sentido. A redundância leva a um absurdo,
tornando a parte igual ao todo. Ao pé da letra, “verde esmeralda”
designa uma espécie do gênero “esmeralda”. Para que a expressão
tenha novamente sentido, é preciso que a redução do desvio seja
possível. Ela o é sempre, como provaremos; mas a dificuldade é
maior ou menor, o que nos autoriza, segundo esse critério, a intro­
duzir na figura uma diferença de intensidade.
Já que o epíteto é supérfluo, parece a priori que basta elimina­
do para reduzir o desvio. Contudo, tal maneira de operar seria
abusiva. O adjetivo está presente no texto, é preciso integrá-lo.
Podemos fazê-lo “alterando” a fórmula, isto é, transformando um
de seus elementos. Já que o desvio provém de uma oposição entre
o léxico e a gramática, é preciso mudar aquele ou esta, vale dizer,
ou o sentido da palavra, ou sua função.
O primeiro grau da redução consiste em mudar a função,
Trata-se da operação mais fácil: basta transformar o epíteto em
aposto, ou seja, destacar o adjetivo.
A diferença entre epíteto e aposto (ou “epíteto destacado”,
como o chama Grevisse) está na simples presença ou ausência de
uma pausa entre o substantivo e o adjetivo. “Pedro doente não
pode vir” pode facilmente interpretar-se como: “Pedro, doente,
não pode vir”. Sob esta forma, o adjetivo deixa de ser aberrante,
Com efeito, o epíteto
• destacado não tem mais função determinativa,
mas predicativa,. É uma espécie de predicado secundário, que toma
naturalmente o 1valor de adjunto adverbial de causa, concessão, modo,
etc. A fórmula precedente, por exemplo, tem claramentej o sentido
de “Pedro não pode vir porque está doente”.
Mas nota-se que a operação só é possível se o adjetivo o per­
mitir lexicalmente. Assim, neste exemplo:

124
Et mon amour flattcur dejà me persuade
Que je le vois assis au trône de Grenadc (Comeille)
[E meu amor lisonjeiro já me faz crcr/Quc o vejo sentado no
trono de Granada]

a transposição é fácil. Podemos marcar mentalmente a pausa e ler:


Et mon amour, flattcur, déjà me persuade

pois o sentido do adjetivo permite a transposição. O amor pode


me persuadir porque é lisonjeiro; o epíteto deixa-se transformar
em aposto, porque pode semanticamente assumir um valor explicativo.
Também no exemplo seguinte:
Et dans cc vain savoir qu’on va chercher si loin (Molicrc)
[E nesse inútil saber que se vai buscar tão longe]

O adjetivo toma facilmente um valor concessivo, aquele saber que


vamos procurar tão longe, embora seja vão. Exemplos desse tipo
ilustram o primeiro grau da figura.
Mas em certos casos, pelo contrário, o isentido do adjetivo não
permite a transposição, e não pode assumir nenhum valor circuns­
tancial em relação à oração. É o caso dos “elefantes rugosos”. Não
se pode conceber que eles vão para a terra natal porque são rugosos,
ou embora sejam rugosos. Da mesma forma, a esmeralda não co­
roou a cabeça porque era verde, ou embora fosse verde.
Resta mudar, então, o sentido do adjetivo, de maneira que per­
mita a operação. Ou seja, operar uma metáfora que se acrescente
à mudança de função. Neste caso, a operação combina um tropo gra­
matical com o tropo lexical. Trata-se de uma operação evidente­
mente mais difícil, que constitui o segundo grau da figura.
Assim, se colocarmos “elefantes rugosos” no seu contexto, en-
trevemos a possibilidade de interpretar a. rugosidade como símbolo
de força, de dureza; isso explica por que, no deserto implacável onde
“nada se move”, os elefantes são os únicos que viajam. Da mesma
forma, em:
Nous grimpâmes un jour jusqirà cc livre noir (Hugo)
[Subimos um dia até àquele livro negro]

o adjetivo não pode tomar um valor circunstancial se conservarmos


seu sentido literal; mas, se lhe atribuirmos o sentido metafórico, ele
assume um valor concessivo, As crianças subiram até o livro, ape-
sar de seu aspecto medonho.

125
Na sua grande maioria, os epítetos redundantes que encontra­
mos na prosa literária e nos poetas clássicos pertencem ao grau
baixo da figura. Daí provém certamente o fato de o epíteto re­
dundante ter parecido normal às vezes. Considerou-se naturalmente
tal epíteto como uma espécie de predicado secundário, uma quali­
ficação secundária introduzida para fins legítimos. Não se levou
I em conta que o predicado secundário deve, por um lado, destacar-se
do substantivo, por outro, justificar sua presença pelo sentido. No
primeiro caso, a direfença é pequena e pode passar despercebida.
Ela aparece claramente no segundo, e este é justamente o caso obser­
vado nos românticos, mais ainda nos simbolistas. Aqui, predomina

o grau alto da figura. Tomaremos apenas um exemplo, porque
i constitui um caso-limite de redundância:
Et la bouche, fiéureuse et d*azur bleu voracc. (Mallarmé)
[E a boca, febril e de anil azul voraz.]

“Anil” significa “azul”, e estamos na pura tautologia, Tautologia


que desaparece se, por meio da metáfora, azul” tomar um sentido
que não é mais o do código.
Assim, também do ponto de vista da intensidade, tanto na re­
dundância como na impertinência, a história da poesia aparece como
um desvio que vai aumentando sempre.
*
* •k

O tipo de figura que passamos a estudar não foi, salvo engano,


registrado pela retórica. Portanto, além de esclarecer-lhe a natureza,
teremos de provar sua existência. Trata-se de novo tipo de figura,
que não se baseia, como as duas precedentes, na divergência de
dois fatores, mas na ausência de um deles. Nesse sentido, podemos
compará-la com a elipse, embora difira num ponto: a elipse é a
ausência, dentro da frase, de um elemento por esta requerido. Pelo
contrário, a figura em questão está marcada—pela—carência de um
elemento normalmente _sipjado__fora da frase, no contexto ou na
situação. Por essa razão, tal figura escapa facilmente à vista. Con­
siderada isoladamente, uma frase como: “Ele veio ontem”, parece
perfeitamente normal. No entanto, para funcionar corretamente,
exige fora dela a presença de um elemento que está sempre presente
na prosa, mas que a poesia omite muitas vezes, por uma deficiência
deliberada que constitui justamente a figura.

126

li
O ato de comunicação supõe a existência cic uma mensagem
e de um código que funcionem separadamente. Porém, entre men-
sagem e código, dentro da própria mensagem, pode estabclccer-se
relações complexas que Jakobson analisa nos seguintes termos:
“A mensagem (M) e o código subjacente (C) são ambos su­
portes de comunicação linguística, mas funcionam de maneira dupla:
tanto um como outro podem sempre ser tratados seja como objetos
de emprego, seja como objetos de referência. É assim que uma
mensagem pode remeter para o código ou para outra mensagem
e que, por outro lado, a significação geral de uma unidade do có­
digo pode implicar numa referência seja ao código, seja à mensagem.
Consequentemente, deve-se distinguir quatro tipos duplos: l.° —
dois tipos de circularidade: mensagem que remete para a mensagem
(M/M) c código que remete para o código (C/C); 2.° — dois ti­
pos de superposição: mensagem que remete para o código (M/C)
c código que remete para a mensagem (C/M)”89.
Dos quatro tipos, conservaremos dois porque dão origem a fi-
guras poéticas notáveis, Ambos emanam do código, c vão seja para
a mensagem, seja para o código, Ou melhor, pode-se simbolizar
essas duas relações por (M.C.M.) e (M.C.C.), já que a mensagem
é sempre a fonte, mas pode-sé designá-las economicamente por (C.M.)
e (C.C.).
Existe na língua uma classe especial de unidades que Jespersen
chama “shifters” e define assim: “Uma classe de palavras cujo sen­
tido varia com a situação’’ 90. O exemplo típico é o pronome pessoal.
“Eu”, segundo o código, significa a pessoa que emite a mensagem.
Porém, vemos que tal designação permanece lacunária. Ao contrário
do substantivo que designa uma pessoa, “Eu” pode aplicar-se a
qualquer um e, para dissipar a ambiguidade, é preciso saber quem
é o emissor da mensagem. Na linguagem falada, essa informação
é fornecida pela situação: o emissor é quem profere os sons.
No entanto, o poema é escrito e a linguagem escrita está “fora
de qualquer situação”. Por conseguinte, a própria mensagem deve
fornecer a informação exigida. É no discurso escrito que o “pro-
-nome” substitui verdadeiramente o nome, mas só pode fazê-lo se
este nome aparecer efetivamente no contexto. Sendo assim, a lin-

(89) Essais, cap. IX, p. 176.


(90) O. Jespersen, Languagc, Londres, 1922.

127
guagem escrita apresenta certa redundância em relação à linguagem
falada. Uma carta leva obrigatoriamente uma assinatura, uma auto­
biografia o nome do autor. No romance escrito na primeira pessoa,
“Eu” designa um ser fictício, evidentemente, mas não deixa de
ser apresentado e nomeado no contexto. O que acontece no poema?
Quem diz “Eu” em:
Jc suis le ténébrcux, Ic veuf, 1’inconsolé
Lc Princc d’Aquitaine à la tour abolic. . .
[Eu sou o tenebroso, o viúvo, o inconsolado/O Príncipe de Aqiii-
tânia da torre desaparecida. . .]

Mesmo o poema não fornece nenhuma resposta a csta pergunta.


O pronome permanece sem referência contextuai.
O poema está assinado, é claro. Tem como autor um indi­
víduo determinado, Gérard Labrunie, dito Nerval, o que parece
fornecer a referencia exigida; mas tal identificação é simplista.
O poema não é uma confissão sentimental, e os estados de alma de
um indivíduo particular, por mais genial que seja, só poderiam ter
interesse para seus amigos, ou ainda, para os psicólogos. No entan­
to, para refutar essa prova, basta escolher a segunda pessoa, vocativo
poético que designa o destinatário. Mas, aqui também, de maneira
lacunária:
Mon enfant, ma soeur
Songe à la douccur.
[Minha criança, minha irmã/Pcnsa na doçura.]

A quem se dirigem estas palavras? A uma mulher, sem dúvida,


mas isto é tudo o que o poema indica sobre sua identidade. A criança-
-irmã permanece uma mulher sem nome nem rosto, Ela é a “sem
nome”, como é sem nome aquele que se dirige a ela.
A significação complexa e dificilmente conceitualizávcl que re-
sulta de tal carência sobressai na resposta que Etienne Souriau pro-
põe à pergunta: “Quem é Eu”?
“É ao mesmo tempo um poeta essencial e absoluto, diz ele,
e também a imagem poetizada de si mesmo que o poeta quer dar
ao leitor. É o próprio leitor que, como tal, se introduz no poema,
num lugar para ele preparado, para participar dos sentimentos que
I
lhe foram sugeridos””91
91.

(91) Corrcspondance des Arts, p. 149.

128
]■
Vê-se que “Eu” já não c simplesmente o “emissor da mensa­
gem”. O pronome remete para uma significação nova, que não
está inscrita no código, embora emane dele. A ausência, na própria
mensagem, da referência para a qual o código remete, transforma O
código, dotando-o de um poder novo, Não existe palavra no dicio-
nário para significar “o poeta essencial e absoluto”: a figura conse-
gue criar uma. Tal fórmula exprime, na i metalinguagem, uma signi-
ficação que deriva do próprio ato da figura, infringindo como tal
as leis da linguagem normal.
O poema é escrito, mas simula ser falado. Assim, infringe
uma regra geral da estratégia do discurso. O discurso tem de for­
necer ao destinatário o conjunto de informações que este requer.
Mas, por economia, o falante elimina as informações que o inter­
locutor pode deduzir da situação. O poema faz a mesma coisa,
com a diferença de que a situação está ausente. A partir daí, todas
as palavras que são feitas para determinar tornam-se incapazes de
cumprir sua função, designam sem designar. É o que acontece com
os demonstrativos. Dentro da situação, funcionam como “index”,
para utilizar a terminologia de Pierce. Acompanham um gesto que
fornece a referência. No discurso escrito, remetem para algo já
mencionado pela própria mensagem. No poema, as duas referências
faltam:
Vois sur ces canaux
Dormir ces vaisscaux
[Veja nesses canais/Dormirem esses navios]
Na ausência de situação, canais e navios deveriam ser objeto
de outra menção na mensagem, mas o poeta não apresenta nenhuma.
Não é por economia, evidentemente, pois a poesia, quando quer,
pratica de bom grado a redundância:
Là tout n’cst qu’ordrc ct beauté
Luxe, calme ct volupté.
[Lá tudo c ordem c bclcza/Luxo, calma e volúpia.]
é uma informação que o poema contém três vezes. A carência é
propositada, para marcar de indeterminaçao os seres e as coisas que
povoam o universo poético. É principalmente desta figura que
emana aquela impressão de realidade vaga, nebulosa, irremediavel­
mente secreta, que se prende à própria categoria do poético. O mis­
tério que pesa sobre as coisas não é um caráter contingente, oriundo

5 129
de uma ignorância circunstancial e sempre revocável; c um mistério
em si, aquilo que c desconhecido por natureza, para todos c para
sempre.
O tratamento poético das determinações de espaço c de tempo
pode ser objeto das mesmas observações, Trata-se de uma questão
que mereceria longa análise, aliás, mas sobre a qual nos limitaremos
a dar algumas indicações.
Advérbios de tempo tais como amanha, ontem, outrora, ou
advérbios de lugar tais como aqui, lã, entram também na categoria
dos “shifters”. Ligam o código à mensagem. “Amanhã”, por exem­
plo, significa o dia que se segue ao da emissão da mensagem; “on­
tem”, aquele que o precede. Todavia aqui também, na ausência de
situação, é o contexto que deve fornecer a informação requerida:
obrigação que o poema não respeita, mais uma vez. Essas palavras,
feitas para determinar um dia preciso, designam todos os dias e
nenhum deles. Pelo uso que o poeta faz, a função fica invertida e
torna-se função de indeterminação.
Pode afirmar-se o mesmo dos tempos verbais. Todos se refe­
rem a um presente que é o do enunciado. Na linguagem falada, o
presente é datado pela situação; na linguagem escrita, pelo contexto.
Mas o poema não é datado. A data que, às vezes, acompanha o texto
remete para a fabricação do poema, isto c, para um tempo que trans­
cende o discurso. Também neste caso, o poema comporta-se como
se fosse falado, supõe o eixo de referência temporal dado pela própria
comunicação. Mas, como a comunicação escrita não está situada
no tempo como acontecimento, ela mesma deve mencionar seu eixo
de referência: “Era no ano da Graça...” diz a narrativa clássica.
Esta referência falta no poema. A narrativa irrompe num passado
não referido:
Lcs champs n’étaient point noirs, les cieux n’élaient pas mornes...
[Os campos nao estavam sombrios, o ccu não estava escuro...]

O passado perde, então, a relatividade que o define como se fosse,


por assim dizer, passado desde sempre, pois o poder parodoxal da
figura confere à própria relatividade um valor absoluto.
A mesma figura atribui uma transmutação idêntica para as
determinações espaciais. Quando o poeta diz:
Allcr là-bas vivre ensemble
[Ir para lá viver juntos]

130
1

designa um “lálá ” que, não se referindo a um “aqui” indicado pelo


contexto, se situa ao mesmo tempo em todo lugar e em nenhum,
“onde quer que seja fora do mundo”, num “alhures” que é tal por
natureza, por uma espécie de ausência que não é mais o contrário de
uma presença.
Singular poder de uma figura feita de simples carência! Ela
tem o dom de transformar a existência em essência e o relativo em
absoluto. Assim, uma palavra como “outro” supõe que um “mesmo”
foi dado, em relação ao qual é outro. Mas basta que o poema
omita este “mesmo” para que a alteridade se torne uma espécie de
caráter de natureza. Como fez Garcilaso de la Vega:
Busquemos otro llano
Busquemos oiros montes y oiros rios
Otros vallcs floridos y sombrios.
em versos onde a palavra “outro”, repetida quatro vezes, se torna
o predicado único, que basta para qualificar o objeto como “outro
que não seja o mesmo”, transformando o indefinido em definição.
O segundo tipo de estrutura dupla (C/C) dá origem ao mesmo
gênero de figura. Tal estrutura concerne essencialmente aos nomes
próprios, cuja significação — como afirma Jakobson — “não podf
definir-se senão por referência ao código. No código do inglês
Jerry significa uma pessoa chamada Jerry. A circularidade é evi­
dente: o nome designa qualquer um que tenha este nome” 92. Nessas
condições, o nome próprio só pode assumir sua significação se quem
o possui for apresentado, seja efetivamente pela situação, seja através
de uma “descrição” — no fsentido lógico do termo — contida na
própria mensagem.
Aqui também, o poema falta às suas obrigações. A descrição não
consta, e o nome não nomeia ninguém.
Dis-moi, ton cocur parfois s^envole-t-il, Agathe,
Loin du noir océan de 1’immonde cité,
Vers un autre océan ou la splcndeur éclate... (Baudelaire)
[Diga-mc, Ágata, seu coração às vezes não voa/Para longe do
negro oceano da imunda cidadc,/Atc outro oceano em que o
esplendor explode. . .]

Quem é Agathe? O poema não diz nada a respeito e os eruditos


podem entregar-se novamente ao jogo das hipóteses. Assim,
/ dão

(92) Essais, p. 177.

131
uma resposta a uma pergunta que não foi feita. “Agathe” não é
um pseudónimo, nem é convencional, à maneira dos nomes da co­
média clássica. É um nome de mulher, mas como não se aplica
a tal ou tal mulher em particular, remete ao mesmo tempo para
todas e nenhuma. Agathe não é uma mulher determinada, conhecida
pelo autor, de quem ele esconderia a identidade; também não é
uma mulher qualquer. Retomando as palavras de Etienne Souriau,
podemos qualificá-la de mulher “essencial e absoluta”. Esta fór­
mula, assim como outras do mesmo tipo por nós utilizadas — pas­
sado sempre passado, ausência sem presença — constitui uma ten­
tativa para dizer o inefável. A este último termo, não atribuímos
o sentido quase místico que se lhe dá às vezes. “Inefável” significa
apenas que é impossível de exprimir com rigor pela prosa, isto é,
sem figura, aquilo que só a poesia, através de figuras, tem o poder
de exprimir.
O significado poético não é inefável, já que precisamente a
poesia o diz. A verdade é que ele é indizível em prosa, porque
transcende o universo conceituai em que esta linguagem situa sua
significação. A poesia não é a “bela linguagem”, mas uma lingua­
gem que o poeta teve de inventar para dizer aquilo que não teria
dito de outra forma.

132
Capítulo V

NÍVEL SEMÂNTICO: A COORDENAÇÃO

Com a coordenação, vamos abordar uma figura até aqui pouco


estudada, embora constitua um dos processos mais característicos
não só da poesia, mas também do romance e até da pintura e do
cinema contemporâneo. Acontece que predicação e determinação são
funções puramente linguísticas, ao passo que a coordenação trans­
borda amplamentc do campo da fala. Com efeito, no seu sentido
mais amplo, coordenar é “colocar junto”, o que pode ser feito tanto
dentro como fora do discurso, por exemplo, na sucessão de imagens
de um filme ou na extensão de um quadro, ou até mesmo no espaço
real: o encontro do guarda-chuva e da máquina de costura numa
mesa de dissecação, imaginado por Lautréamont, nada mais é que
a realização de uma figura coordenativa ao nível ontológico.
Todavia, dedicaremos apenas um breve estudo à coordenação,
uma vez que ela apresenta estreitas relações com a predicação.
Mutatis mutandiS) podemos aplicar a uma tudo o que dissemos da
outra e, para evitar repetições, só analisaremos a coordenação no
que esta tem de específico.
Destaquemos primeiro um ponto. Enquanto as duas funções
anteriores nos mantinham dentro da frase, o estudo da coordenação,
pelo contrário, vai permitir-nos examinar essa sucessão de frases que
se chama discurso.
Na linguagem corrente, a coordenação opera-se de duas for­
mas. Uma que é explícita, feita por meio de um vínculo sintático,
que pode ser uma conjunção (e, ou, mas, etc.) ou um advérbio
(com efeito, contudo, etc.). Outra que é implícita e realiza-se por
simples justaposição. Assim, pode-se dizer indiferentemente: “O
céu está azul e o sol brilha” ou “O céu está azul. O sol brilha”.

133
Vê-se claramente que a segunda forma, em que falta a conjunção,
é, todavia, semanticamente análoga à primeira.
Na realidade, a justaposição é a maneira mais comum de coor­
denar. A presença do vínculo “e” no começo de cada frase tornaria
o discurso muito pesado e a fala escrita prefere a simples justapo­
sição. Portanto, se o processo é corrente, não pode ser considerado
uma figura e, embora a antiga retórica chamasse “disjunção” essa
omissão do vínculo, consideraremos a justaposição como a forma
normal de coordenação. É o que faz Gérald Antoine quando define
o discurso como uma “imensa coordenação”93, definição que co­
menta mais adiante nestes termos: “Onde há fala, discurso seguido,
há necessariamente sequência, encadeamento, cm suma, “coordena­
ção de frases”. Notemos, por outro lado, que na maioria dos casos
a frase seguinte retoma uma palavra da frase anterior, seja direta­
mente, seja por meio de um pronome. Não se trata de uma regra,
mas do efeito de leis semânticas implícitas.
Como toda função, a coordenação submete-se a leis gramaticais
codificadas, Pode-se dizer que de maneira geral ela exige a homo-
geneidade ao mesmo tempo morfológica e funcional dos termos co-
ordenados, Os coordenados devem em primeiro lugar pertencer à
mesma categoria, pelo menos em francês moderno. Saint-Simon po-
dia escrever: “Pedi-lhe para vir e que lhe dissesse”, o que não é
tolerado hoje, Em segundo lugar, os coordenados devem exercer a
mesma função. Não se pode dizer: “Ele teve uma gripe e na semana
passada”, pois os dois complementos não têm a mesma função cir-
cunstancial.
Do ponto de vista semântico, será que existem regras da função
coordenativa?
Consideremos as duas fórmulas seguintes:
Jl pleut et 2 et 2 font quatre.
Paul est blond et honnête.
[Está chovendo e dois e dois são quatro./Paulo c loiro c honesto.]

Do ponto de vista estritamente gramatical, ambas as fórmulas


são inatacáveis. A conjunção coordenativa liga dois termos grama-
ticalmente homogéneos, duas orações no primeiro caso, dois adje­
tivos no segundo. Todavia, do mesmo modo que as fórmulas cita-

(93) La coordination, t. I, p. 16.

134
das a [propósito da predicação, estas também produzem iuma nítida
impressão de incongruência, Temos o sentimento de umi desvio de
uma regra não formulada, mas que todavia existe. E a prova é que
esse tipo de desvio recebeu um nome em francês: chama-se “coq-
-à-l’âne” *, essa passagem de uma ideia para outra que não tem
nenhuma relação com a primeira, É exatamente o que ocorre com
as fórmulas em questão: ligam ideias cuja relação lógica é difícil
de estabelecer. Não há dúvida de que é difícil precisar qual deve
ser a relação lógica entre ideias sucessivas. Entretanto, não hesita­
mos em recusar como “desconexo” ou “incoerente” um discurso
cujas partes sucessivas nos parecem desarticuladas. Nestes casos, como
ocorre freqúentemente, temos o sentimento do desvio sem ter o
conceito da regra cm relação à qual ele é desvio. É esta regra que
tentaremos estabelecer aqui, pelos menos grosseiramente.
Se nos contentarmos com uma formulação geral, podemos dizer,
a título de regra, que toda coordenação requer certa unidade de
sentido entre os termos que coordena. No fundo, temos aqui o
correlato semântico da regra gramatical. À homogeneidade formal
exigida pela gramática responde uma homogeneidade de sentido exi­
gida pela lógica. É com essa mesma generalidade que um eminente
gramático exprime a regra: “...Neste caso, só há coordenação se
as expressões que se sucedem nas frases formarem um todo, uma
unidade de pensamento”94. É bem verdade que tal unidade de
pensamento pode ser a unidade, meramente aditiva, de termos per­
cebidos simultaneamente. Mas, geralmentc, a consciência normal
não abarca, num mesmo ato de pensamento, termos heterogéneos.
No mesmo momento, não é possível pensar no tempo que está fazen­
do e no teorema de Pitágoras.
Charles Bally, no entanto, tentou dar uma forma mais precisa a
este princípio. Para ele, “duas frases são coordenadas quando a
segunda tem por tema a primeira”95. O que equivale a fazer da
segunda frase o predicado psicológico da primeira. Bally dá este
exemplo: “Está frio. Não sairemos” que, a seu ver, equivale a
isto: “Está frio (e a propósito do fato de estar frio), acrescento:

(*) Litcralmente, “galo-a-asno”. A expressão tem origem numa fábula


em que o galo e o asno semeiam grande confusão durante uma viagem.
[N. dos T.J
(94) C. de Boer, Syntaxc du français moderne, Lcidcn, 1947, p. 50.
(95) Linguistique généralc, p. 56.

135
Não sairemos”, Gérald Antoine critica essa concepção ao nível
gramatical, mas observa: “No plano psicológico, só existem coor-
denações predicativas”.
Se nos é permitido dar aqui nossa opinião, parece-nos que a
predicação não se faz entre um termo e outro, mas entre dois ter­
mos e um sujeito implícito. Assim, na frase: ‘‘O céu está azul e o
sol brilha”, parece difícil fazer da segunda oração o predicado da
primeira; é mais fácil fazer de ambas predicados de um sujeito im­
plícito: o tempo que está fazendo. O sujeito psicológico, lembre­
mos, é uma pergunta a que o predicado responde. À pergunta: “Que
tempo está fazendo?”, as duas orações respondem logicamente. A
frase do Sr. Jourdain: ‘Nicole, traga meus chinelos e dc-me o
gorro de dormir”, coordena duas orações cuja unidade temática é
evidente 96.
Encarada desse modo, a coordenação não passa de um as­
pecto da predicação, e as regras lógicas que valem para uma valem
para outra. Os coordenados devem, portanto, pertencer ao mesmo
universo do discurso. Deve existir uma idéia que possa constituir
o tema comum. No discurso, o título às vezes desempenha esta
função: constitui, na realidade, o sujeito ou o tema geral do qual
todas as ideias do discurso são os predicados, o todo do qual elas
são as partes. E notemos imediatamente que enquanto todo dis­
curso em prosa, científica ou literária, recebe necessariamente um
título, só o poema se permite dispensá-lo, de tal modo que somos
obrigados a designá-lo pelas suas primeiras palavras 97. Neste caso,
não há nem negligência nem capricho. O poema suprime o título
porque lhe falta, como veremos, essa ideia sintética da qual o título
é a expressão.
A coerência do pensamento é encontrada, evidentemente, no
pensamento científico, e é inútil citar exemplos. Cada oração con­
duz normalmente à seguinte e quando faltam as transições é porque
estas são evidentes e o autor julga que os leitores são capazes de
restabelecê-las. Não acontece o mesmo na poesia, pelo menos na
poesia moderna. Neste ponto, existe uma diferença radical entre
os clássicos e os modernos.
(96) Sendo constituído de coordenações sucessivas, todo discurso se
situa na ordem do predicativo puro, com o sujeito do discurso necessariamente
implícito ou expresso por um título.
(97) Mais um fato atestado que, salvo engano, a poética nunca con­
siderou.

136
-
A poesia clássica, pelos menos nos autores que estudamos, é
de ponta a ponta um modelo de discurso coerente. A coordenação
gramatical sempre liga termos logicamente homogéneos. Todos os
exemplos de frases coordenadas que encontramos são tão impe­
cáveis como esta, que principia a Fedra de Racine:
Lc dessein cn est pris; jc pars, chcr Théramène
Et quitte lc séjour dc 1’aimable Trézènc.
[A decisão está tomada; cu parto, caro Tcrâmencs/E deixo a morada
da amável Trczena.]

“Eu parto. . . c deixo”, a unidade semântica dos dois verbos coor-


denados não poderia ser mais completa.
Até mesmo no momento em que Fedra prorrompe na confissão
de sua paixão, quando a emoção, portanto, poderia justificar a de-
sordcm do pensamento, sua fala permanece notavelmente coerente,
a tal ponto que se pode até fazer aquele exercício caro à velha pe-
dagogia, que consiste em estabelecer o “plano” do trecho, dando um
título a cada parte:
l.° Encontro com Hippolyte
2. ° Nascimento da paixão
3. ° Luta contra o amor
4. ° Fracasso dessa luta
Quatro partes que exprimem as quatro fases de um amor, que for­
nece o título geral ao conjunto do discurso.
Todavia, há uma exceção cm Fedra, que é particularmente in­
teressante porque oferece um exemplo de desvio reduzido pelo pró-
prio discurso,. Convém citar o trecho inteiro. Fedra declara à cria-
da sua iintenção de suicidar-se:
CCNONE

Quoi! Vous ne perdrez point ccttc cruclle envie


Vous verrai-je toujours, renonçant à la vie,
Fairc de votre mort les funestes apprêts?
PHEDRE

Dicux, que nc suis-je assise à Vombre des forêts!


Quand pourrai-je, au travers d* une noble poussière,
Suivrc de Uccil un char fuyant dans la carrièrc?
CCNONE

Quoi, Madame?

137
PHEDRE

Inscnséc, ou suis-je? et qu’ai-je dit?


Ou laissc-jc égarer mes voeux et inon esprit?

[enóne: Como! Nunca perdereis esse cruel dcsejo/Vcr-vos-ei sem-


pre, renunciando à vida,/Fazer os funcslos preparativos de vossa
morte?//fedra: Deuses, por que não estou sentada à sombra das
florestas!/Quando poderei, cm meio a uma nobre poeira,/Acompa-
nhar com os olhos um carro sumindo na carreira?//ENÓNE: Como,
Scnhora?//FEDRA: Insensata, onde estou? que foi que cu disse?/
Para onde deixei ir meus desejos e meu espírito?]

Na primeira réplica, coloca-se uma pergunta: Fedra persistirá


no seu funesto projeto? Mas a esta pergunta Fedra não responde,
Ela partiu para um sonho interior, A réplica não se encadeia com
a anterior, rompe-se a coordenação e quebra-se o fio do discurso,
Neste caso, portanto, há incoerência, Entretanto, a sequência do
texto marca explicitamente o desvio e opera sua redução, A excla-
mação de Enone: “como, senhora?” exprime a surpresa legítima
de um espírito habituado às mudanças coerentes. E a resposta
: de
Fedra, na qual o ilogismo é ao mesmo tempo significado e recusado
como tal, retoma o fio normal do discurso, integrandoi o próprio
desvio ao seu conteúdo. “Insensata!... Que foi que cu disse? ”
Como se vê, o desvio é reduzido logo que é produzido, Mas, assim
mesmo, conserva certa eficácia. A imagem do carro sumindo na
carreira seria menos deslumbrante se não surgisse como um meteoro
num universo do discurso que não a esperava.
Salvo engano, a retórica nunca deu nome a esta figura, cons-
tituída pela ruptura do fio lógico do pensamento. Encontramos em
Fontanier, com o nome de “abrupção”, uma figura definida como
“passagem brusca, imprevista”. Assim definida, a “abrupção” pa-
rece realmente abranger o desvio estudado aqui, Mas Fontanier dá
como exemplo o fato de suprimir as transições usuais de um diálogo,
empregando as fórmulas: “disse ele”, “respondeu ele”, Como se
vê, isso está longe de corresponder à'i nossa concepção; portanto, não
adotaremos tal denominação, Chamaremos “inconsequência” esse
tipo de desvio que consiste em coordenar duas ideias que, aparen-
não têm nenhuma relação lógica entre si.
temente, i_
Foi a partir do romantismo que a grande poesia começou a
usar a inconsequência como processo sistemático. Ja notava Valery:
“Q romantismo decidiu abolir a escravidão. Sua essência é a su-

138
pressão da sequência nas ideias” Mas a sequência nas ideias não i
é escravidão, é submissão à Razão universal. É a partir do mo­ I
mento em que as ideias não se encadeiam que o espírito é consi­
derado insensato, e Lévy-Bruhl declara que foi levado ao estudo do
pensamento primitivo pela leitura de um velho livro chinês, cujo
encadeamento de ideias não compreendia. A razão é, antes de tudo,
consequência; por isso os clássicos jamais ousaram empregar a in­
consequência. Os românticos tiveram esta audácia: romper a or­
denação do discurso, embora de maneira muito moderada. É a
Rimbaud, com as Illuminations, que devemos atribuir a responsa­
bilidade do salto decisivo sobre a fronteira que separa a razão da
desrazão. Como já se disse, foi ele o primeiro a falar “a linguagem
moderna da poesia” 99. Mas foi o romantismo que deu o primeiro
passo. Releiamos este trecho de Booz endormi:
Pendant qu’il sommeillait, Ruth, une Moabite,
S’était couchéc aux pieds dc Booz, Ic sein nu,
Espcrant on nc sait qucl rayon inconnu,
Quand uiendrait du réveil la lumièrc subite.
Booz nc savait point qidunc fetnine était là,
Et Ruth nc savait point cc que Dieu voulait d’elle,
[Enquanto ele dormia, Rute, uma moabita,/Dcitou-sc aos pés dc
Booz, com o seio nu,/Esperando não se sabe que luz desconhecida/
Quando viesse do despertar a claridade súbita.//Booz não sabia
que uma mulher estava a!i,/E Rute não sabia o que Deus queria
dela,]

Estamos no momento crucial da narrativa: Rute deitou-se aos pés


de Booz, a união miraculosa está para acontecer. . . Mas eis que
bruscamente a narrativa se interrompe:
Un frais parfum sortait des touffes d’asphodèle;
Lcs soufflés dc la nuit flottaicnt sur Galgala.
[Um fresco perfume saía dos tufos de asfódclo;/ Os sopros da noite
flutuavam sobre Galgala.]

Neste ponto, a razão discursiva tem o direito de perguntar:


Como se encadeiam as ideias? Os asfódelos exalam perfume e a
noite está calma. Mas qual a relação com o que precede? Qual a

(98) Lcttre sur Mallarmé, Plêiade, p. 646.


(99) Pelo menos na nossa amostra. Houve, sem dúvida, precedentes,
sobretudo a poesia barroca, Mas neste estudo só tratamos da grande poesia,
pelo menos daquela que a posteridade consagrou como tal.

139

l
ligação lógica entre esta descrição e a narração? O que vêm fazer
.as coisas do drama vivido pelos homens? Logicamente, a descrição
das coisas só se integra à narrativa do drama se estas coisas tiverem
algum efeito sobre ele. Aqui não se vê de que modo o perfume
do asfódelo ou a calma da noite possam ser causa ou obstáculo ao
que está acontecendo.
A este propósito, talvez possamos determinar' um critério prá-
tico da inconsequência. Em 7 toda unidade funcional, não se pode
suprimir ou deslocar um elemento sem perturbar seu funcionamento,
Do mesmo modo, diremos que um elemento da mensagem é incon-
sequente se puder ser suprimido ou deslocado sem romper a uni-
dade ou a continuidade intelectual da mensagem. No exemplo que
nos ocupa, é claro que os dois versos descritivos podem ser suprimi-
dos ou deslocados sem que a compreensão da narrativa seja alte-
rada. Se suprimirmos todo o trecho descritivo intercalado, a narrativa
retoma seu curso normal.
Observemos que o mesmo processo reaparece mais adiante,
desta vez dentro de um mesmo verso:
Rut songeait et Booz rêvait; Vherbe était noire.
[Rute pensava e Booz sonhava; a erva estava escura.]

Duas notações justapostas, cuja unidade lógica não se percebe bem.


A intromissão inesperada da natureza no drama humano é
uma das maneiras mais comuns de realizar a inconsequência. Cons­
titui, como se vê, o correspondente coordenativo da impertinência.
Vimos que a realização mais freqiiente da impertinência era a atri­
buição de propriedades materiais a seres espirituais e vice-versa.
Nos dois casos, a poesia mistura os homens e as coisas.
Seria fácil multiplicar exemplos deste tipo de inconsequência.
Não o faremos para não nos repetirmos. Queríamos apenas notar
que, embora a tenha praticado sistematicamente, o romantismo não
foi seu inventor. 7 Prova disso é este belo poema árabe do século
XIII, citado por Brunschvicg (Hérilage de mots, héritage d,idées)i
que não resistimos à tentação de reproduzir aqui:
Contenta-te com o que tens: um pequeno sorriso, algumas palavras,
um olhar. Não se deve suspirar pelo ser inteiro. Sente seu perfume deli­
cado, contempla o esplendor de sua beleza. Mas não suspires por ela...
A alma humana não é um objeto de desejo. O crepúsculo é calmo e
o mundo silencioso. Extingue o fogo do desejo nas lágrimas.

140
Numa sucessão rápida de imagens, o poema exprime uma filo­
sofia da renúncia. Não se pode possuir o ser, mas apenas sua aparên­
cia. A frase: “O crepúsculo é calmo c o mundo silencioso”, aparece
aqui inesperadamente. Por que esta súbita descrição da paisagem?
Outra irrupção imotivada do mundo das coisas no universo dos ho­
mens. No entanto, é justamente quando intervém esta frase parasi­
tária que o poema atinge o auge de sua força. Se a suprimirmos, o
conteúdo nada perde de sua substância, mas a poesia perde muito
de seu poder.
Abramos aqui um parêntese. Tal processo é de todas as épocas,
assim como de todas as artes: inventado pela poesia, foi retomado
recentemente pelo romance e pelo cinema, aliás de maneira tão sis­
temática que está em vias de perder seu efeito. A figura de invenção
acha-se ameaçada pela figura de uso. Em muitos filmes, por exem-
pio, vemos a câmera dcsviar-sc bruscamente da ação e dos homens,
para fixar-se um instante numa árvore, numa casa, num pedaço de
céu. Técnica dos “tempos mortos”, que apenas retoma uma velha
figura poética, A comparação poderia estender-se até mesmo à
música. A música clássica resolvia as dissonâncias, a música con­
temporânea deixa de fazê-lo. Aliás, não é o único caso do gênero, e
uma estilística comparada das diversas artes descobriria facilmente o
que todas devem à poesia. Mas fechemos este parêntese que desem­
bocaria no vasto problema que Souriau chamou “correspondência
das artes” e que não podemos abordar aqui.
Nem sempre a inconsequência é interferência de seres e coisas.
Essa é a maneira mais comum de encarnar o processo, mas existem
várias outras. Eis aqui um exemplo:
II est un air pour qui jc donnerais
Tout Rossini, tout Mozart et tout Weber.
Un air très vieux, languissant et funèbre,
Qui, pour moi seul, a des charmes sccrets.
Or, chaquc fois que jc viens à 1’entendre,
De deux ccnts ans mon âmc rajeunit:
C’est sous Louis treize... Et je crois voir s,étendre
Un cotcau vert que le couchant jaunit. (Nerval)
\
[Existe uma melodia pela qual eu daria/Todo Rossini, todo Mozart
c todo Wcber./Uma melodia muito antiga, lânguida e fúnebre,/
Que, somente para mim, tem encantos secrctos.//Òra, cada vez que
a ouço,/Minha alma rejuvenesce duzentos anos:/É no tempo de
Luís treze. . . E parecc-mc ver entcnder-sc/Uma encosta verde
que o ocaso amarelece.]

141

I
O último verso é o ponto de chegada das duas estrofes c a
frase que o contém está explicitamente coordenada à anterior. Enun-
cia a visão despertada por aquela música preferida entre todas,
porque só ela tem o poder de evocá-la. Ora, justamente esta visão
não corresponde ao que se poderia esperar dela. Quando lemos:
“É no tempo de Luís treze...”, preparamo-nos para a evocação de
algo que pertença tipicamente à época em questão ou, em todo caso,
a um passado distante, perdido, do qual a alma possa realmente
sentir nostalgia. Mas a visão é: “de uma encosta verde que o ocaso
amarelece”, isto é, de algo que pertence a todas as épocas, que não
tem nada de especificamente “Luís treze”, nada de histórico. E que
tampouco é deslumbrante, extraordinário, como o contexto fazia
prever. Essa encosta verde é a coisa mais humilde do mundo, e
não justifica que sacrifiquemos toda a música pela ária capaz de
ressuscitar sua lembrança!
Devemos reservar um lugar à parte para a coordenação seman-
tizada. Sabemos que, com exceção de “e” e “nem”, que exprimem
a coordenação pura, todas as conjunções conservam um valor se­
mântico muito claro. “Mas”, por exemplo, exprime a oposição.
Então, ao invés da simples heterogeneidade dos coordenados, o
desvio pode consistir no fato de eles não se oporem. Entre todos
os versos de Rimbaud, André Breton gostava deste: “Mais que sa­
lubre est le vent!” Recoloquemo-lo no seu contexto:
Toutc route, avcc des mystèrcs révoltants
De cainpagnes d’anciens temps
De donjons visités, de pares importantst
C’est en ces bords qu’on entend
Lcs passions mortes des chcvalicrs errants;
Mais que salubre est le vent!
[Toda estrada, com mistérios revoltantes/De campanhas dos; tcm-
pos antigos/De torreões visitados, de parques importantcs:/
i t
É nestes lugares que se ouvem/As paixões mortas dos cavaleiros
errantes;/ Mas que salubre que é o vento!]

À primeira vista, a salubridade do vento não se opõe ao que pre-


cede. Trata-se, portanto, de uma exclamação inesperada que, por
isso mesmo, confere um segundoj poder à salubridade do vento.
_
A inconsequência em poesia não se observa * apenas> ao nível
inter-oracional. Encontramo-la também
—------------------ ---------- dentro da oração, embora
mais raramente.

742
1-J

A mesma lei rege a coordenação entre orações e a coordenação


entre termos. Assim, a fórmula: “Paulo é loiro e alto’’ é conse­
quente, ao passo que: “Paulo é loiro c honesto’’ parece incongruente.
E que, na primeira fórmula, os dois predicados se referem ao mesmo
sujeito real, que é a pessoa física de Paulo, ao passo que, na segunda,
um se aplica à sua pessoa física e outro à sua pessoa moral.
É esse tipo de inconsequência que se observa neste verso de
Booz endormr.
Vêtu de probitc candide ct dc lin blanc.
[Vestido dc probidade cândida c dc linho branco.]
Neste caso, como em qualquer uer outro, a inconsequência aparecerá
claramente se traduzirmos o verso cm prosa. Qualquer leitor ficaria
surpreso de encontrar num texto de prosa normal uma frase como:
“Ele era probo e vestido de linho branco”.
Encontramos a mesma mistura indevida do físico com o espi-
ritual nesta série enumerativa:
Voici des fruitSj des flcurs des feuillcs ct des branchcs
Et puis voici mon cocur qui ne bat que pour vous.
(Verlaine)
[Eis aqui frutos, flores, folhas c ramos/ E também meu coraçãc
que só bate por vós.]
Citemos enfim este belo exemplo de Garcia Lorca:
Sucia de besos y arena
onde uma vez mais a conjunção liga o humano c o não-humano.
Todos esses exemplos aproximam a inconsequência da imper­
tinência: nos dois casos, o desvio é projjizido,pelo fato de os ter-
mos não pertencerem ao mesmo universo do discurso. Mas há ca-
sos em que a inconsequência-talvez se aproxime mais da redundância.
Tal é o caso das frases em que se coordenam termos dos quais um
implica o outro, o gênero e a espécie, por exemplo, ou o todo e a
parte. Não se pode dizer: “A Europa e a França” ou “O animal
e o cão”. O poeta, porém, não teme esse tipo de fórmula, Por
exemplo:
La coulcur du corail ct ccllc dc tes joues
Teignent Ic char nocture ct ses inuets cssieux. (Vigny)
[A cor do coral c dc tuas faccs/Tingcm o carro noturno c SCUS
eixos mudos.]

143
É evidente que a redutibilidade do desvio coordenativo está ins­
crita no próprio desvio. Deve-se descobrir a homogeneidade entre os
termos heterogéneos. O que será feito por metaforismo, exatamente
como no caso da predicação. Uma mudança de sentido que afete
um dos coordenados fará a sequência voltar à norma.
Em ‘‘vestido de probidade cândida e de linho branco”, o sim­
bolismo é patente, já que a brancura simboliza a pureza, como o
sugere também a palavra “cândida”, que ainda conserva traços de
seu sentido etimológico. Notemos a esse propósito que o símbolo
se aproxima sempre da metáfora, já que também se baseia na seme­
lhança. Mas o recurso fundamental de toda poesia, o tropo dos
tropos, é a metáfora sinestésica ou semelhança afetiva. Todos os
exemplos coordenativos que estudamos baseiam-se nela. Para mostrá-
-lo, vejamos um único caso. Destes dois versos:
Un frais parjum sortait des touffes d’asphodèlc
Lcs soujjlcs dc la nuit flottaient sur Galgala,
[Um fresco perfume saía dos tufos dc asfódclo/Os sopros da noite
flutuavam sobre Galgala,]

assim como da longa descrição que se segue, destaca-se uma “im­


pressão” característica, uma especificidade qualitativa, difícil de de­
finir com as palavras do vocabulário corrente. Digamos, para fixar
as idéias, que essa mistura de doçura e solenidade, de simplicidade
e majestade, cria a atmosfera “bíblica”, e que essa atmosfera dá
unidade ao poema inteiro. Traduzindo a iimpressão por uma imagem,
dir-se-ia que toda a criação se acalma e se recolhe no momento em
que o amor miraculoso vai acontecer. O acontecimento e o cenário,
em si mesmos heterogéneos, reencontram assim uma homogeneidade
impressionai, A mesma paz bíblica envolve os seres e as coisas, eli-
minando a diferença objetiva que existe entre ambos, e deixando
transparecer apenas a alma que os habita. A unidade perdida no
nível nocional é recuperada no plano emocional. Essa é a força pro-
funda de toda poesia.
Mas tomemos cuidado para não atribuir apenas ao conteúdo
essa unidade emocional, que a prosa ignora c a poesia suscita, esse
“sentido atmosférico”, que é o sentido de todo poema. É na e pela
inconsequência que ela aparece. Sem a figura, as mesmas palavras
transmitiriam apenas sua mensagem objetiva e nocional. A unidade
emocional é o reverso da inconsequência nocional.

144
i

Será que se pode agora estabelecer uma distinção de graus para


esta figura, como fizemos para as anteriores? Existe um grau baixo
c um grau alto da inconsequência? Parece que aqui as coisas se pas­
sam da mesma maneira que no caso da predicação, isto é, os graus
de desvio correspondem aos graus de heterogeneidade dos coordena­
dos. Existe, todavia, outro meio de hierarquizar esta figura, meio
esse que constitui sua originalidade. Com efeito, a heterogeneidade
pode estabclecer-se entre dois termos que não têm a mesma impor­
tância no discurso. Um pode ser principal e o outro secundário.
A inconsequência quebra o fio do discurso. Mas o fio pode ser re­
tomado depois do termo inconsequente, voltando a ligar-se com
o que se segue. Neste caso, a inconsequência nada mais é que um
corpo estranho dentro de um organismo que, apesar disso, conserva
sua unidade.
É o caso da quase totalidade dos poemas românticos e pós-
-românticos, até Rimbaud c Lautréamont. A descrição, por exemplo,
interrompe a narrativa, mas a narrativa é retomada depois dela,
O poema continua sendo um discurso encadeado. A sequência das
idéias permanece como uma trama transparente sob os fios da in­
consequência. Estes versos do soneto de Nerval, que seguem a
frase analisada:
Puis un châleau de brique à coins de pierrc
Aux vitraux teints dc rougcâtres couleurs
[Depois um castelo de tijolos com cantos dc pcdra/Com vitrais
pintados dc cores avermelhadas]
e
Puis une dame, à sa haute fenêtre.
ct/c,

Blonde aux yeux noirs, en ses ihabits anciens. . .


[Depois uma dama cm sua alta jancla/Loira de olhos negros, em
seus trajes antigos...]

descrevem temas que possuem ao mesmo tempo a beleza e a histo-


ricidade previstas. Mas com Rimbaud as coisas mudam, Nos seus
poemas em prosa, principalmente, a diferença entre tema principal
e tema secundário desaparece, A inconsequência se estabelece de
frase para frase e o fio do discurso não se emenda. Eis aqui um dos
“poemas em prosa
]_ ” de Rimbaud, intitulado Nocturno vulgar:
Un soufflé ouvre des brèches opéraldiques dans les cloisons — brouille
le pivotement des toits rouges, — disperse les limites des foycrs, — éclipse
les croisées.

145
Lc long dc la vigne, infétant appuyé du pied à una gargouille, — je
suis descendu dans ce carrosse dont Vépoque est assez indiquée par les glaces
convcxcs, les panneaux bombés ct les sophas contournés. — Corbillard dc
mon sommeil, isole, maison dc berger de ma niaiscric, lc véhicule vire sur
lc gazon dc la grande route cffacée: ct dans un defaut cn haut dc la glace
dc droitc tournaient les blêmes figures lunaircs, feuilles, seins. — Un vert
ct un bleu très foncés cnvahisscnt 1'imagc. — Dételage aux environs d’unc
tache dc gravicr. — Ici va-t-on siffler pour 1’orage, et les Sodomcs ct les
Solymes, et les betes fcroccs et les armees. (Postillon ct betes de songe ré-
pondront-ils sous les plus suffocantes futaies, pour rrdcnfoncer jusqu’aux
yeux dans la source de soic?)
Et nous cnvoyer, foucttés à travers les eaux clapotantes et les boissons
répandues, rouler sur 1’aboi des dogues. . .
— Un soufflé disperse les limites du foyer.
“Um sopro abre brechas opcráldicas nos tabiques, — baralha o suporte
dos telhados roídos, — dispersa os limites dos lares, — eclipsa as janelas.
Ao longo das vinhas, apoiando o pé numa gárgula, — desci naquela carrua­
gem cuja época c claramentc indicada pelos vidros convexos, pelos painéis
abaulados e pelos sofás arredondados. — Carro funerário de meu sonho,
isolado, choupana da minha tolice, o veículo gira sobre a relva da grande
estrada apagada: e num defeito ao alto do vidro da direita rodopiavam as
pálidas figuras lunares, folhas, seios. — Um verde c um azul muito escuros
invadem a imagem. — Dcsatrelagem nas imediações dc uma mancha de
cascalho. — É aqui que se vai assobiar para a tempestade, e as Sodomas
c as Solimas, e os animais ferozes c os exércitos. (Postilhão e animais dc
sonho, será que responderão sob os mais sufocantes bosques, para afundar-
-me até os olhos na fonte dc seda?)
E, açoitados através das águas marulhantes e das bebidas derramadas,
mandar-nos rolar sobre o latido dos mastins. . .
— Um sopro dispersa os limites do lar.”

Num texto como esse não é possível distinguir a idéia parasita


da idéia principal e fazer o discurso voltar à sua consequência, su­
primindo ou deslocando aquilo que não se integra nele. Não é pos­
sível resumir esse discurso pelo “pequeno texto” de que falava
Valéry, e o próprio título Nocturno vulgar não exprime o tema geral.
Com efeito, não é possível intitular esse poema, que não tem tema
determinado. Desfile de objetos heteróclitos e de fatos disparatados,
tal texto ultrapassa as fronteiras do discurso coerente. Dissemos
acima que um mesmo ato de pensamento não pode abranger termos
totalmente heterogéneos. Pelo menos quando se trata do pensamento
normal. A disparidade temática que caracteriza esse poema lembra
o universo onírico, aquele pensamento de sonho cuja incoerência in­
terna sempre constituiu seu aspecto mais espetacular. O surrealismo,
como é sabido, assumiu esta analogia. Poesia, sonho e delírio têm
pelo menos este traço negativo comum. E a escritura automática,

146
onde o surrealismo encontrou seu processo de criação poética funfun-­
damental, nada mais é que uma ruptura perpétua de si para si,
espontaneamente realizada por um pensamento de baixa tensão.
Todavia, tanto na ordem da predicação como da coordenação,
o surrealismo encontra uma espécie de super-unidade ao nível trans­
cendente do supra-real. Breton confia ao “acaso objetivo”, vale
dizer, a um princípio sobrenatural, a tarefa de motivar as relações
aparentemente arbitrárias da imagem produzida pela escritura auto­
mática. Sabe-se também que os surrealistas às vezes pediram ao
inconsciente psicológico para fornecer a motivação procurada, por
uma espécie de hesitação entre a sub-determinação psicológica e a
super-determinação metafísica. Mas só podemos recusar semelhante
interpretação. Repitamos de uma vez por todas: a poesia, como a
prosa, é um discurso que o autor remete ao leitor. Não há discurso
se não houver comunicação. Para que o poema se realize como
poema, deve ser compreendido por aquele a quem se dirige. A poe-
tização é um processo de duas faces, correlativas e simultâneas:
desvio e redução, desestruturação e reestruturação. Para que o
poema funcione poeticamente, é preciso que na consciência do leitor
a significação seja ao mesmo tempo perdida e reencontrada.
Esse movimento de vaivém, de ida e volta do sentido ao sem-
-sentido e do sem-sentido ao sentido, constitui o processo comum
dos três grandes tipos de figura que estudamos.
Se esse vaivém confere ao poema sua especificidade poética, é
sem dúvida porque o processo não é absolutamente reversível. A
consciência não reencontra na volta o que havia deixado ao partir.
No curso desse movimento, o sentido sofreu uma transmutação
íntima. A “forma” não é mais a mesma c, se por forma do sentido
entendermos a estrutura da representação, cabe a outras disciplinas,
psicologia ou fenomenologia, determinar a natureza dessa transmu­
tação. Abordaremos o problema na conclusão. Compreenderemos,
então, por que toda exegese é ao mesmo tempo verdadeira e falsa.
Quando é verdadeira do ponto de vista da substância do sentido, é
falsa porque dá o sentido em termos de prosa, traindo assim a forma
do sentido própria da poesia. É possível ler a tradução prosaica de
um poema, mas com a condição de esquecê-la no momento em que
se lê o poema. Os dois textos não podem coexistir na consciência,
sob pena de vermos um deles, a prosa, destruir o outro. A poesia
é de essência monárquica: ou reina sozinha ou abdica.

147


Capítulo VI

A ORDEM DAS PALAVRAS

Nas análises precedentes, falamos constantemente em gramá-


tica, porque todas as figuras estudadas foram definidas em relação
a ela. O enjambement é uma discordância entre o metro e a sintaxe,
a rima verdadeira é não-gramatical, a impertinência atua na função
predicativa, a redundância na função determinativa, etc. Aqui, po-
rém, colocar-nos-emos ao nível estritamente gramatical, As estrutu-
ras estudadas não se valem mais dos elementos fónicos ou. lexicais da
língua, mas apenas de seus elementos propriamente gramaticais,
morfológicos ou sintáticos.
O poder poetizante da gramática foi sentido tanto pelo lin-
giiista como pelo poeta. Assim, Jakobson escreve: “Os recursos poé­
ticos dissimulados na estrutura morfológica e sintática da linguagem,
enfim, a poesia da gramática e seu produto literário, a gramática da
poesia, foram raramente reconhecidas pelos críticos e quase total-
mente desprezadas pelos linguistas; em compensação, os escritores
criadores sempre souberam aproveitá-las magistralmente’ »100
Essa é também a opinião do poeta. No prefácio a Les Yeux
d’Elsa, Aragon confessa:
“Na idade em que se aprende a gostar de poemas, eu fiquei
singularmente impressionado por estes versos de Rimbaud:
Mais dcs chansons spiritucllcs
Voltigcnt partout les groseilles
[Mas canções cspirituais/Giram por toda parte as groselhas]

(100) Essais, p. 224.

148
tais como figuram sob o título Patience (D’un été. . . ), na edição
Vanier. Hoje, querem que se leia (edição crítica, Mercure de France):
Voltigent parmi les groscilles
[Giram entre as groselhas]

e deve ser assim, sem dúvida. Mas não posso refazer o caminho
percorrido e, para mim, enquanto viver, hei de ler: Voltigent partout,
que poderão dizer ser um erro e que teimo em considerar uma beleza”.
E o poeta acrescenta este comentário: “. . . Só há poesia quan­
do há meditação sobre a linguagem, e reinvenção dessa linguagem
a cada passo. O que implica em quebrar os quadros fixos da lin­
guagem, as regras da gramática e as leis do discurso” (p. 14).
Ao longo das análises precedentes, tentamos mostrar como a
poesia “quebra” a seu modo “as leis do discurso”, Tentaremos
ver agora o que acontece com as regras da gramática.
Também neste caso a poesia caracteriza-se por um desvio sis­
temático em relação às normas da prosa, mas pode marcar-se desde
já os limites deste desvio. No conjunto, a poesia francesa respeitou
as regras gramaticais; as infrações são geralmente bastante tímidas,
pelo menos até Mallarmé, que parece ter procurado deliberadamente,
no desvio gramatical, a mola fundamental de sua escritura poética.
Lembremos a fórmula: “Sou um sintaxista?” É realmente por
derrogação à sintaxe que tal ou tal poema desafia a inteligibilidade.
Por exemplo, o Tombeau de Charles Baudelaire, do qual damos
este fragmento:
Qucl fcuillage séché dans les cités sans soir
Votif pourra bénir comme cllc se rasseoir
Contrc le marbre vainement de Baudelaire.
[Que folhagem seca nas cidades sem tarde/Votiva poderá abençoar
como ela asscntar-se/Contra o mármore inutilmente de Baudelaire.]

Uma das funções principais da gramática é indicar, na série linear


da mensagem, qual termo se refere a qual termo, No exemplo
acima, até os exegetas confessaram sua incerteza.
No entanto, tal desordem sintática é excepcional na poesia fran­
cesa. Mesmo os surrealistas, que tomaram as liberdades que conhe­
cemos com a lógica, permanecem submetidos na maioria das vezes
aos imperativos gramaticais. Eis uma ilustração que devemos a

149


André Breton, justamente citada pelos gramáticos 101 como prova
da universilidade de sua disciplina:
Ce jour dc pluie, o jour comme tant d’autres oit je suis seul à garder
1c troupeau dc ines fcnêtrcs au bord d’un précipice sur lequel est jeté un
pont dc larmcs, ^observe ines mains qui sont des masques sur des visages,
des loups qui s’accommodcnt si bien dc la dentcllc dc mes sensations.
Neste dia dc chuva, dia como muitos outros cm que estou só
para guardar o rebanho das minhas janelas beirando um precipício
no qual está jogada uma ponte de lágrimas, observo minhas mãos
que são máscaras em rostos, lobos que se acomodam tão bem com
a renda das minhas sensações.

Este texto, que parece desafiar toda lógica, não deixa de ser
gramaticalmente perfeito. Na maioria, os poetas franceses parecem
ter obedecido às instruções de Hugo: “Paz com a gramática”.
E entendemos por que.
A gramática é o pilar que sustenta a significação. A partir de
certo grau de desvio em relação às regras da ordem e da concor-
dância, a frase desmorona e a inteligibilidade desaparece. Jakobson
dá um excelente exemplo com a frase já citada:
Incolores ideias verdes dormem furiosamente.
(Colorlcss green ide as slecp furiously.)

Ele escreve: “Decomponhamos a frase: extraímos um sujeito no


plural, “ideias”, do qual é dito que tem uma atividade, “dormir”;
cada um destes dois termos é caracterizado — as “ideias” “incolo-
res” e “verdes”, o “sono” “furioso” 102.
Embora seja absurda, esta frase permanece uma frase, conser-
vando como tal uma primeira camada de sentido, Isso, pelo fato
de respeitar o código gramatical. Se o violasse, pelo contrário, como
nesta seqiiência: “furiosamente dormir ideias verdes incolores”,
não teríamos mais uma frase, mas uma simples justaposição de pa­
lavras em que — como afirma Jakobson — “só a entoação dc frase
mantém juntas palavras soltas” ?03
A expressão “palavras soltas” caracteriza bem certas formas
de poesia contemporânea, em que as palavras parecem ter perdido

(101) Fisher e Hacquard, A la découvertc de la graininaire française,


Paris, Hachette, 1959.
(102) Essais, p. 204.
(103) Ibid., p. 206.

no
I

seus índices de conexão sintática, A ausência de verbo, em parti-


cular, tira a chave do edifício linguístico, As palavras desfilam sem
que se saiba qual delas se refere a qual, É verdade que uma sim-
pies sequência de palavras pode sugerir suas conexões sintáticas
particulares. Não é difícil reconstruir uma frase a partir da se-
qúência:
O gato o canário preto come.

Mas, além disso, se as próprias ligações lexicais forem impertinen-


tes, isto é, se o poeta acumular ao mesmo tempo o desvio lógico
e o agramaticalismo, perde-se a inteligibilidade, pelo menos para o lei­
tor médio. É o caso, por exemplo, dos versos de Reverdy:
La rctraitc et le bruit des pas
Un jour de fêtc
L’ccil noir
La tete
Le nom barbare du nouveau vcnu.
[O retiro c o ruído dos passos/Um dia de festa/O olho negro/
A cabeça/O nome bárbaro do recém-chegado.]

O que dizer do Coup de dês, que abandona O signo sintático funda-


mental, quer dizer, o morfema de proximidade? Só o exegeta sutil
pode dar um sentido a poemas desse tipo, mas o público não se
compõe de exegetas. Há um ponto crítico do desvio, uma espécie
de limiar de inteligibilidade, variável segundo os leitores, evidente­
mente, mas ao qual se pode atribuir estatisticamente um valor médio,
além do qual o poema deixa de atuar como linguagem significante.
Talvez seja porque a poesia contemporânea ultrapassa freqúentemente
esse limiar que se estabeleceu o divórcio entre a poesia e seu público,
de que se queixam justamente os jovens poetas de hoje.
Porém, na amostra que escolhemos, exceto alguns poemas de
Mallarmé, o desvio gramatical permanece aquém do ponto crítico.
O agramaticalismo é limitado, mas não deixa de ser real e a reda-
ção de uma gramática da poesia é uma tarefa que se impõe verdadei­
ramente. Nosso intento, como há de se adivinhar, não é empreendê-
-la. Queremos apenas, convém repeti-lo, estabelecer uma hipótese
geral válida para todos os níveis da língua. Para verificar que ela
se estende efetivamente para o nível gramatical, basta aplicá-la a
um só tipo de desvio. Escolhemos a inversão ou desvio da regra
sobre a ordem das palavras. Tal figura tem uma vantagem: é pra-

151
ticada por todos os poetas com uma frequência suficiente para ser
aplicada em estatística.
Sabc-se que em francês, ao contrário das línguas flexionais,
como o latim, as relações entre os termos são marcadas mais pelas
posições respectivas que pelas desinências, A ordem das palavras
obedece em francês a uma regra que Bally chama “sequência pre­
gressiva”, que coloca o determinado antes do determinante, o su-
jeito antes do verbo, o verbo antes do complemento, etc. Toda
infração a esta regra chama-se inversão, Pretendemos estudá-las a
propósito de nosso exemplo predileto, o epíteto.
A colocação do epíteto é uma das questões mais pormenori­
zadas e debatidas da gramática francesa. Podemos distinguir quatro
casos principais:
l.° Os adjetivos normalmente pospostos (adjetivos de relação,
de cor, etc.). Diz-se “as eleições municipais” e não “as municipais
eleições”; “o cachorro preto” e não “o preto cachorro”;
2. ° Os adjetivos normalmcnte antepostos, pouco numerosos,
dos quais se pode dar a lista limitativa, tais como belo, grande,
velho, longo, etc. Diz-se “um belo quadro”, e não “um quadro
belo”;
3. ° Os adjetivos que podem ocupar as duas posições, mas com
um só valor: “Um terrível acidente. Um acidente terrível”;
4.° Ou com dois valores: “Um livro grande. Um grande livro”.
No entanto, considerando-se as coisas na sua generalidade, pode
afirmar-se que, a não ser um pequeno número fixo de adjetivos
sempre antepostos, a tendência do francês é a posposição — caso
se refira, é claro, como pensamos que se deve, à prosa científica como
a norma da língua. Para convencer-se disso, basta recorrer à esta­
tística. Excluindo do inventário os adjetivos sempre antepostos,
nota-se que a inversão do epíteto não ultrapassa 2% ~ ~> na linguagem
científica (cf. o quadro X). f Temos, portanto,, o direito de concluir
-------- se coloca normalmente depois do substan-
que o epíteto em 1francês
tivo e que a anteposiçao é um desvio, isto é, um fato de estilo.
Ora, se considerarmos agora a linguagem poética, a inversão
aparece com uma 1frequência nitidamente mais alta. Portanto, essa
figura é um traço específico da. poesia,. Tanto ao nível gramatical
como aos outros, a -- —ia constitui,
poesia ----- então, um desvio sistemático da
linguagem habitual.

152
I

Quadro X
EPÍTETOS INVERTIDOS

AUTORES NÚMERO TOTAL MÉDIA


Berthelot 2
Pasteur 3 6 2 %
Cl. Bernard 1
Corneille 62
Racine 60 167 54,3%
Molière 45
Lamartine 42
Hugo 32 101 33,6%
Vigny . 26

Rimbaud 30
Verlaine 35 91 30,3%
Mallarmé 26

N.B. As diferenças entre as três primeiras categorias são su­


ficientemente grandes e entre a 3.a e a 4.a suficientemente pequenas
para prescindir do controle estatístico.

Todavia, o quadro acima apresenta uma particularidade, Com


efeito, a frequência do desvio diminui dos clássicos para os moder-
nos, ao passo que verificamos sempre, até agora, um aumento, Será
falha nossa hipótese sobre a evolução da poesia?
Para interpretar estes resultados, é preciso levar em conta dois
fatores.
O primeiro é de ordem histórica. A anteposição era mais fre-
qúentemente praticada no século XVII que nos tempos modernos.
Como diz A. Blinkenberg: “Se a liberdade que existe em francês
para a colocação do adjetivo só é verdadeira liberdade num sentido
restrito, em certo momento da evolução do francês, ela foi maior
que na época atual; naquela época, a ordem era mais que hoje:
blanc bonnet ou bonnet blanc”.104

(104) L’ordre des mots cn français moderne, Copenhagen, 2.a ed., 1928,
t. II, P- 40.

153
O segundo fator é mais importante: mostra a ligação estreita
entre sintaxe e semântica. A tendência para a posposição é normal
em francês, como dissemos, mas é menos ou mais forte, conforme
o sentido do adjetivo. O que o mesmo autor enuncia nos seguintes
termos: “Quanto mais o sentido do adjetivo se aproximar dos sen­
tidos bom-mau, grande-pequeno (qualidade, número, grau), mais
comum, portanto mais natural será a anteposição; quanto mais o
sentido do adjetivo se afastar desses sentidos, mais excepcional será
a anteposição, e maior, porém mais arriscado, será o efeito estilís­
tico conseguido” 105. Assim, só haverá realmente ruptura de norma
se a anteposição afetar um adjetivo que não tem sentido nem qua-
litativo, nem quantitativo, Com efeito, para todos os demais, a
inversão constitui apenas um desvio mínimo. É interessante, por­
tanto, submeter à estatística somente os adjetivos desse tipo, que
chamaremos não-avaliativos.
Em primeiro lugar, podemos verificar a regra de Blinkenberg
na prosa científica. Os resultados são eloquentes. Nenhum desses
adjetivos é anteposto nos três autores científicos. As raras inversões
são de tipo avaliativo: “úteis informações” (Cl. Bernard) ou “inú-
meros ensaios” (Pasteur).
Ao contrário, em poesia, a inversão de adjetivos não-avaliati­
vos é praticada por todos, e sobretudo — fato essencial para nós —
aumenta nitidamente dos clássicos para os modernos (ver quadro
XI)
Ainda, essa progressão é sensivelmente mais forte se considerar­
mos apenas a relação dos adjetivos não-avaliativos para o pequeno
número dos epítetos invertidos. A média assim calculada cresce, en­
tão, de 11,5% nos clássicos para 52,4% nos românticos, ou seja, au­
menta numa proporção que é quase de 1 para 5. Consequentemente,
encontramos nossa lei de involução habitual.
Os clássicos praticam largamente a inversão, mas na maioria
dos casos, trata-se de adjetivos de sentido avaliativo. Por exemplo:
Haute vertu — mortels ajronts (Corncillc);
[Alta virtude — mortais afrontas]

Heureux climats — odieux artiour (Racinc).


[Felizes climas — odioso amor]

(105) Ibid, pp. 100-101.

154

l
I

Quadro XI
EPÍTETOS NAO-AVALIATIVOS INVERTIDOS

AUTORES NÚMERO TOTAL MÉDIA


Berthelot 0
Pasteur 0 0 0%
Cl. Bernard 0

Corneille 6
Racine 8 19 6,3%
Molière 5
Lamartine 19
Hugo 18 53 17,6%
Vigny 16
Rimbaud 17
Verlaine 15 51 17 %
Mallarmé 19

N.B. As diferenças entre as três primeiras categorias são su­


ficientemente grandes, também neste caso, para prescindir do con­
trole estatístico. Entre Românticos e Simbolistas, a diferença é não-
-significativa (NR = 0,16).

Nos modernos, pelo contrário, mais de metade das inversões


afeta adjetivos não-avaliativos, isto é, termos que a prosa não in­
verte nunca. Por exemplo:
obliqúe allée — rouges tabliers (Hugo);
[oblíqua alameda — vermelhos aventais]
transparents glacicrs — bizarre fleur (Mallarmé).
[transparentes geleiras — estranha flor]

Em compensação, não verificamos a progressão habitual dos


românticos para os simbolistas. A diferença das médias não é esta­
tisticamente significativa e os resultados são iguais. Já encontramos
o mesmo efeito a propósito da rima, e podemos invocar aqui o
mesmo tipo de explicação. Com efeito, deve-se levar em conta
a incidência das necessidades da versificação na ordem das palavras.

155

I
Obrigado a respeitar ao mesmo tempo a rima e o metro, o poeta
não pode dispor à vontade das palavras, Convém assinalar, aliás, uma
realização que parece particular dos simbolistas: a posposição de
adjetivos normalmente antepostos, tais como doce, belo, etc. Por
exemplo:
O lc bruit doux de la pluie (Verlaine).
[Oh, o ruído doce da chuva]
Victoricuscmcnt fui le suicide beau (Mallarmc).
[Vitoriosamente foge do suicídio belo]
•k

A inversão do epíteto é apenas um exemplo de desvio gramati-


cal. Desvio pouco notável, aliás, já que, pelo fato de certos adje­
tivos serem regularmente antepostos, a anteposição dos outros não
nos parece aberrante, embora sejam normalmente pospostos. Seria
interessante estudar outras figuras gramaticais, e ver se evoluíram
no mesmo sentido historicamente. No que nos concerne, basta ter
estabelecido a realidade de um desvio crescente ao nível i gramatical
e ter coincidido com as análises desenvolvidas aos outros níveis,
Depois de comprovar a semelhança dos fatos, vejamos se a analogia
persiste de ponto de vista estrutural, Ora, como veremos, a estru-
tura é mais uma vez a mesma, Como as figuras fónicas e lexicais, a
figura gramatical realiza uma dissociação de fatores de estruturação
que a prosa associa.
O que é um adjetivo?
As gramáticas escolares costumam defini-lo como a palavra
que designa um estado ou uma qualidade, por oposição ao substan-
tivo que designa um ser ou uma coisa. rTemos aí uma definição se-
------- ....
mântica. 7Do ponto de vista puramente gramatical, o adjetivo dis-
tingue-se do substantivo por dois fatores principais:
1. ° O substantivo é regente, ao passo que o adjetivo é regido
ou subordinado, quer dizer que tira seu gênero e número não de
si mesmo, mas do substantivo a que se refere;
2. ° O substantivo requer determinantes específicos (um “su­
porte” como dizem Damourette e Pichon), sendo o artigo o princi­
pal deles.
Este último 1 1, , já xque & presença do artigo
4xaíw fator é 1fundamental,
— como se i sabe — basta para substantivar o adjetivo: “o belo”,
I

“o branco”, etc., e, inversamente, sua ausência basta para adjetivar o


substantivo, por exemplo: “um vestido laranja”.
É particularmente interessante observar o último exemplo. Com
efeito, dois substantivos estão juntos, um deles toma um valor
adjetivo. Qual dos dois? Aquele que vem em segunda posição,
isto é, “laranja”. Pelo contrário, “vestido”, colocado em primeira
posição, logo depois do artigo, conserva sua identidade de substan­
tivo. Vê-se, portanto, o papel determinante do fator posicionai.
Contudo, a transformação da categoria “laranja” é somente parcial,
já que não há concordância de gênero, nem de número, com o subs­
tantivo. Assim, os dois fatores gramaticais que servem para reco­
nhecer o adjetivo, subordinação c posição, entram em oposição e o
resultado é uma adjetivação parcial do substantivo.
Ora, encontramos, mutatis niutandis, o mesmo processo com
a inversão do adjetivo, Na expressão “os loiros cabelos”, os dois
fatores atuam ainda em sentido contrário. O adjetivo permanece
subordinado, porque faz a concordância com “cabelos”, mas é subs-
tantivado porque vem em primeira posição, logo depois do artigo,
O resultado é uma substantivação parcial do adjetivo. Também
neste caso, temos uma termo híbrido, que perdeu parcialmente sua
personalidade gramatical. Sendo assim, diminuiu a diferença entre
categorias complementares, o substantivo de um lado, o adjetivo
de outro. Tendemos para um estado de indiferenciação dos termos
que compõem o sintagma. Estamos diante de um processo já encontrado
muitas vezes. Há uma indiferenciação das partes componentes da
mensagem, enfraquecimento das estruturas, que o discurso normal
garante fortemente através da ação conjugada de dois ou vários fa­
tores. Portanto, a dissociação de fatores normalmente conjugados
parece constituir, no final das contas, o processo linguístico geral
da poesia em todos os seus níveis.
Comparada com as outras figuras, a inversão tem um rendi­
mento baixo: isso porque, em francês, a posição não é a mesma para
todos os adjetivos. Quando vemos um adjetivo colocado antes de
um substantivo, reconhecemos uma disposição que não é anormal
para outros termos da mesma categoria. Podemos acrescentar a isso
que a posposição só é imperativa em francês moderno. Ora, os
leitores de poemas são geralmente impregnados de literatura clássica,
portanto, acostumados com a disposição inversa. A anormalidade
é flagrante na linguagem falada, e ficaríamos surpreendidos se al­
guém pedisse no restaurante “um copo de tinto vinho”. Porém,

157
tratando-se de literatura, mudamos de ótica, pois a norma não c
mais a linguagem que costumamos ouvir, mas a linguagem que
costumamos ler. A noção de “desvio” é uma noção complexa e
variável, que não se pode manejar sem precaução. Por isso, esforçamo-
-nos sempre por estabelecer primeiro a norma a partir de uma base
positiva, pedindo à linguagem escrita dos cientistas que sirva de re­
ferência.
Para que a inversão produza um efeito completo, é preciso
dar-lhe a amplitude que a retórica resigna pelo nome de “hipérbato”.
Com efeito, se compararmos um verso como:
a) Sous le pont Mirabeau coulc la Seinc
[Sob a ponte Mirabeau passa o Sena]
com a ordem natural, sujeito-verbo-complemento:
b) La Seinc coule sous le Pont Mirabeau,
[O Sena passa sob a ponte Mirabeau,]

medimos a eficácia do processo. Mudamos o metro e o ritmo, é


claro, mas ninguém há de contestar que a inversão desempenha um
papel capital na génese daquilo que é um dos versos mais célebres
da poesia francesa.
Chegou o momento de insistir aqui no caráter formal da figura.
A propósito do mesmo verso, podemos notar que as duas fórmulas
não têm exatamente a mesma significação, se entendermos com isso
a série de acontecimentos psíquicos que a mensagem induz. A fórmula
a) apresenta a ponte antes do rio; a fórmula b) o rio antes da ponte.
É verdade, mas podemos perguntar-nos por que a ordem ponte-rio
seria em si mais poética que a ordem inversa. A esta pergunta, a
estilística responde geralmcnte invocando a verdade psicológica da
ordem inversa. A inversão entregar-nos-ia os conteúdos mentais na
ordem em que se produzem, e o hipérbato era conhecido pelos retó­
ricos como a forma de expressão específica da paixão.
Para nos convencermos de que a explicação não é satisfatória,
basta notar que o efeito estilístico desaparece quando a ordem é
habitual, seja qual for essa ordem. Em inglês, por exemplo, a ante-
posição do adjetivo é habitual, portanto, não produz nenhum efeito
estilístico. Mesmo em francês, nenhum efeito particular está ligado
à anteposição usual: “un jeune homme” não é um fato de estilo.
Portanto, não é a posição do adjetivo cm si que é responsável pelo
efeito produzido, mas seu caráter inabitual. Quando o adjetivo se

158
I
coloca normalmente após o substantivo, pode conseguir-se um efeito
literário colocando-o antes do substantivo. Isso pela razão que dis­
semos: já que, em francês, o primeiro lugar pertence ao substantivo,
qualquer termo que tome esse lugar assume automaticamente um
valor substantivo para a consciência do usuário. A estrutura deter­
minado-determinante encontra-se enfraquecida, então, e a inteligibi­
lidade da frase diminui. Portanto, a inversão atua da mesma forma
que a aliteração ou a rima: no sentido de uma indiferenciação das uni­
dades constituintes da frase. Figuras tão diferentes materialmente
— quer dizer, quanto aos elementos de que lançam mão — revelam-se
estruturalmcnte idênticas, pois os elementos têm o mesmo tipo de
relação em cada caso.
Mais geralmente, é o conjunto das figuras poéticas, sejam quais
forem seus níveis, que revelam estruturas homogéneas. Em todos os
casos, encontramos uma mesma dissociação dos fatores estruturantes,
que leva a uma mesma desestruturação da mensagem. Todos os pro­
cessos utilizados pelo poeta manifestam uma mesma negatividade,
uma mesma função de obscurecimento do discurso.
Porem, como nos outros casos, tal negatividade é apenas provi­
sória; constitui o avesso de uma positividade cuja natureza tentare­
mos determinar no fim da análise.
O adjetivo anormalmente anteposto assume, então, um valor
genérico. O epíteto é distintivo. Colocado antes do substantivo,
perde sua função. Não determina mais uma espécie dentro de um
gênero, mas o próprio gênero. Como afirma P. Guiraud: “...No
seu lugar normal, o adjetivo tem um valor específico e determina o
indivíduo nomeado; anteposto, tem um valor genérico e determina a
categoria lexical nomeante” 10G. E o autor dá este exemplo: “Um
homem grande é um indivíduo alto; uni grande homem é um indi­
víduo no qual a humanidade é grande”.
No entanto, o autor não sublinha o fato — essencial para nós —
de o valor genérico dado ao adjetivo pela colocação entrar em oposi­
ção com seu sentido. Se cm “loiros cabelos”, “loiros” qualifica o
gênero, c não mais a espécie, deve-se admitir que todos os cabelos
são loiros, o que contradiz aquilo que sabemos. Os cabelos loiros são
uma espécie do gênero cabelos. Há, portanto, oposição entre os
dois valores, específico e genérico, dados ao mesmo tempo ao adjetivo.

(106) Syntaxe du français, p. 111.

159
Tal contradição pode ser resolvida se o adjetivo mudar de sen­
tido. De que modo, é o que o próximo capítulo tentará esclarecer.
Veremos, então, que a mudança de sentido que reduz o desvio re­
presenta o objetivo procurado pelo próprio desvio. Todas as figuras,
a todos os níveis, acabam e completam-se na metáfora. A inversão,
como a impertinência ou a rima, é somente o primeiro tempo de um
mecanismo do qual a metáfora é o segundo. Ao longo desta análise,
só procuramos o primeiro; por essa razão, a linguagem poética apareceu-
-nos apenas na sua negatividade. Porém, tal negatividade nada mais
é que o desvio obrigatório pelo qual a poesia atinge sua significação
específica.
Uma observação, antes de concluir. As exigências da análise le­
varam-nos a estudar cada figura em si isoladamente. No entanto, as
diferentes figuras podem funcionar no mesmo ponto do discurso e
acumular seus efeitos. Eis um exemplo de acumulação de três figuras
em três palavras.
No sintagma um fresco perfume, encontramos:
1. ° uma inversão (“fresco” é normalmente posposto);
2. ° uma impertinência (de tipo sinestésico);
3. ° uma aliteração (úfre/erfú — 8 dos 14 fonemas).
É pelo jogo simultâneo e convergente das figuras que: a lingua-
gem se transfigura, e a análise literária do poema como 1tal só pode
ser o esclarecimento dos mecanismos de transfiguração.

160
I

Capítulo VII

A FUNÇÃO POÉTICA

A hipótese que defendemos ao longo de nossa análise pode


resumir-se cm dois pontos:
1. ° A diferença entre prosa e poesia é de natureza linguística,
vale dizer, formal. Não se acha nem na substância sonora, nem na
substância ideológica, mas no tipo particular de relações que o poema
institui entre o significante e o significado, de um lado, e os significa­
dos entre si, de outro;
2. ° Esse tipo particular de relações caracteriza-se pela sua nega-
tividade, já que cada um dos processos ou “figuras” que constituem
a linguagem poética em sua especificidade é uma maneira, diferente
segundo os níveis, de violar o código da linguagem normal.
Tentamos aplicar a este segundo ponto uma verificação estatís
tica, comparando estatisticamente, de um lado a poesia à prosa, de
outro a poesia a si mesma através de três momentos de sua história.
Esse tipo de prova não pode deixar de levantar duas objeções,
que podem resumir-se numa só fórmula: a frequência do desvio no
poema não prova que o desvio constitui a condição ao mesmo tempo
necessária e suficiente do fato poético. Para provar que é necessária,
seria preciso provar que não há poesia sem desvio; para provar que
é suficiente, que não há desvio sem poesia.
À primeira objeção não nos é possível responder de uma ma­
neira rigorosamente satisfatória. Para tanto, seria necessário esgotar
a poética, e estamos muito longe disso. Só estudamos uma pequena
amostra de figuras, certamente as mais típicas e as mais frequentes,
mas que representam apenas uma fração das figuras possíveis. É per­
feitamente possível produzir textos sem nenhuma das figuras por nós
estudadas. Textos sem metro, nem rima, nem impertinência, nem
o 161
redundância, nem inversão, e, apesar disso, autenticamente poéticos.
Mas tais argumentos, por sua vez, só seriam probatórios se tivésse­
mos esgotado o arsenal dos meios retóricos de que a poesia dispõe.
Ora, a retórica, como se sabe, distinguia mais de duzentas figuras di­
ferentes, mas nem por isso esgotou a análise. Nós próprios, partindo
de estruturas duplas, descobrimos figuras que ainda não tinham sido
assinaladas. E o fato de que um simples pronome possa encobrir uma
figura deve prevenir-nos contra textos aparentemente inocentes.
De resto, por motivos meramente práticos, nossa análise limitou-
-se aos segmentos mais curtos do discurso, ao sintagma binário, na
maioria das vezes. Ora, o sintagma é tirado da frase e esta, por sua
vez, acha-se inserida no discurso. Trata-se de conjuntos concêntricos,
cujas leis de organização são complexas e ainda mal conhecidas. Só o
conhecimento do código total que rege a comunicação verbal permiti­
ria esgotar a poética. Sem isso, podemos evitar a objeção supondo
que um texto poético só aparece como linguisticamente homogéneo à
prosa pela falta de uma análise lingiiística suficiente. “Não há sen­
tido, não há idéia, escreve Valéry, que não seja o ato de alguma figura
notável” 107.
Seja dito que, às vezes, pudemos proceder à contraprova, mos­
trando que basta restabelecer o código para expulsar a poesia, por
exemplo, no verso de Virgílio: “Ibant obscuri. . .”. É verdade que
ao dizer “expulsar a poesia”, referimo-nos ao nosso sentimento esté­
tico pessoal. Os tradutores que, apesar do texto, preferem colocar
os epítetos no lugar lógico, certamente têm um sentimento da poesia
que é diferente do nosso.

Resta a segunda objeção. Não tentaremos refutá-la; pelo con­


trário, fá-la-emos nossa. Acreditamos efetivamente que não basta vio­
lar o código para escrever um poema. O estilo é erro, mas nem todo
erro é estilo, e o engano do surrealismo foi ter acreditado às vezes
nisso. “Para mim, dizia Breton, não escondo, a imagem mais forte
é aquela que apresenta o mais elevado grau de arbitrariedade. ”
Semelhante doutrina reconhece a escritura automática como téc­
nica de composição literária. Como se sabe, o surrealismo teve com
isso algumas decepções, que teriam sido mais graves se tal automa-

(107) ]e disais quclquejois. . . PIciade, p. 644.

162
tismo não fosse de fato sub-repticiamente controlado. Do mesmo
modo, o método do sorteio confia justamente ao acaso a tarefa de
alterar o código. Mas, limitando-se a isso, tal método produz mais o
absurdo que o poético. Uma frase como “a ostra do Senegal comerá o
pão tricolor ’ só é poesia quando se decide a priori confundir esta com
o absurdo. Ora, entre os dois casos subsiste justamente uma dife­
rença que nós próprios já assinalamos. Frase poética e frase absurda
apresentam uma mesma impertinência; mas, enquanto na primeira
a impertinência é redutível, na segunda não o é. Portanto, estrutu­
ralmente, elas só são semelhantes negativamente, por violarem o có­
digo. Mas esse é apenas um primeiro tempo do mecanismo total. Para
a frase absurda falta o segundo tempo. Aí está a diferença e esta é
considerável, já que, para a poesia, o desvio é um erro cometido de
propósito para obter sua própria correção.
O mecanismo de fabricação do poético decompõe-se em dois
tempos:
1. ° Posição do desvio;
2. ° Redução do desvio.
Só o primeiro é negativo, Reservamos a este nossa análise por-
que, apesar de condição necessária para o segundo, achamos que ele
foi até agora negligenciado pelos esipecialistas. Mas, funcionalmentc
não passa de um meio cujo fim é o segundo. A poesia, apesar d
que disse Poe, não é possuída pelo “espírito de negação”. Ela sc
destrói para reconstruir. O conjunto da operação, como se vê, não
é nulo. Sobra um produto limpo. O absurdo do poema é-lhe essen­
cial, mas não é gratuito, É o preço que se paga por uma clareza de
outra ordem. Na figura c pela figura, o sentido é ao mesmo tempo
perdido e reencontrado, Mas não sai intacto da operação. No ca-
minho, sofreu uma metamorfose cuja natureza precisamos explicar
agora.
Primeiro, cumpre fixar o sentido da palavra “sentido”. Este
problema do “meaning of meaning” é o mais debatido da linguística
contemporânea. Não queremos nos perder nele, mas, para a com­
preensão do que vem a seguir, é necessário fixar um ponto.
A palavra “sentido” designa globalmente aquilo a que o signifi-
cante remete. Mas podemos distinguir com Ogden e Richards 108
dois elementos diferentes:

(108) Meaning of meaning, Londres. Inter. Librar)' of Psycli., 1949.

163
1. ° O referente, isto é, o “designatum”, o objeto real considerado
em si mesmo;
2. ° A referência, isto é, o correlato subjetivo do objeto, o fenô-
meno mental através do qual é apreendido.
A maioria dos linguistas reserva o nome de sentido a este se­
gundo elemento. Entretanto, achamos que o primeiro deve ser man­
tido. Com efeito, só a sua presença torna compreensível o fato de
que o sentido, da prosa para a poesia, seja ao mesmo tempo idêntico
e diferente.
Idêntico quanto ao referente: “o satélite da terra” e “esta foice
de ouro” têm a mesma designação, remetem ao mesmo objeto, que é
o próprio planeta. Diferente quanto à referência: dois tipos de ex­
pressão remetem ao mesmo objeto, mas suscitam duas maneiras di­
ferentes de apreendê-lo, dois modos distintos da “consciência de”.
Portanto, se por “sentido” se entende o objeto, tanto “o satélite da
terra” como “esta foice de ouro” têm o mesmo sentido. Pelo contrá­
rio, se se entende o modo subjetivo da apreensão do objeto, então
as duas expressões têm sentidos diferentes, que podemos chamar
“sentido prosaico” e “sentido poético”.
Resta esclarecer a natureza dessa distinção. Mas vê-se que o
problema ultrapassa amplamente o quadro estrito da linguística. Não
se trata mais da mensagem em si mesma, como sistema de signos,
mas do efeito subjetivo produzido no receptor. O problema já não
é da estrutura, mas da função da linguagem, e tal problema pertence
mais à psicolingiiística que à linguística propriamente dita, à qual
quisemos limitar nosso estudo. Portanto, se abordamos aqui o pro­
blema fundamental, é para não ficar na fase negativa de um processo
que comporta uma fase positiva, da qual a primeira é apenas o ins­
trumento. Esperamos fazer desta segunda fase o objeto de futuras
pesquisas e aqui só nos limitamos a atestar sua existência.
Sabe-se que a maioria dos linguistas concordam em reconhecer
uma polivalência funcional da linguagem. É certo que divergem
quanto ao número e ao valor dessas diferentes funções. Mas todos
concordam em atribuir-lhe pelo menos duas, que correspondem às
duas grandes divisões clássicas da vida psíquica: vida intelectual e
vida afetiva 109. A primeira é a função normal da linguagem escrita,

(109) A retórica antiga distinguia duas funções principais: 1) “rem


docere” (ensinar); “impellere ânimos” (comover). Esta duPJa fun磰 e
reencontrada nas classificações de Buhler (1933) e de Ombredane (1939 e 1944).

164
I

chamada “intelectual”, ou “cognitiva”, ou “representativa”, etc., con­


forme os autores. Sob essa variedade de nomes, é fácil perceber um
conteúdo unívoco. Tal vocabulário esconde, sem dúvida, uma im-
precisão. Não é fácil dizer o que seja a representação, ou ideia, ou
conceito. Mas para o que nos interessa, podemos pelo menos defini-
-lo por oposição à outra função, chamada “afetiva” ou “emotiva”
(o vocabulário varia menos neste caso). Por tal, deve entender-se
uma impressão afetiva que a ideia não contém. Afetivamente, a ideia
é neutra, informa, mas não comove. Para designar os dois tipos de
sentido, empregamos dois termos cômodos: “denotação” e “conota­
ção”. Deve ficar claro que a denotação e a conotação têm ambas o
mesmo referente e só se opõem no plano psicológico: a denotação
designa a resposta cognitiva e a conotação a resposta afetiva, provo­
cadas por expressões diferentes do mesmo objeto.
A função da prosa é denotativa, a função da poesia é conota-
tiva 110. A teoria conotativa da linguagem poética não é nova. A bem
dizer, atualmente, encontramo-la em toda parte. Valéry já distinguia
“dois efeitos da expressão pela linguagem: transmitir um fato — pro­
duzir uma emoção. A poesia é um compromisso ou certa proporção
destas duas funções” ni. I. A. Richards é mais categórico: a poesia,
diz ele (Principies of Literary Criticism), é “a forma suprema da
linguagem emocional” (the supreme form of emotive language).
Carnap (Philosopby and Logical Syntax) diz também com a mesma
clareza: “A finalidade de um poema onde aparecem as palavras “raio
de sol” e “nuvem” não é informar-nos de fatos meteorológicos, mas ex­
primir certas emoções do poeta e excitar em nós emoções análogas” 112.
A última citação exprime muito bem nossa própria concepção.
Só acrescentaríamos uma precisão. A emoção provocada por um
poema merece tal nome porque é uma impressão afetiva que se pode
classificar numa das grandes categorias da vida emocional: alegria,
tristeza, medo, esperança, etc. Mas entre essas emoções reais, como
as sentimos na vida cotidiana, e as emoções poéticas, subsiste na
própria impressão uma diferença importante, que é de ordem fenome-

(110) Com a reserva, já assinalada, de que se trata neste caso de uma


distinção polar. A prosa científica aproxima-se mais do pólo denotativo, ao
passo que a poesia se aproxima mais do pólo conotativo.
(111) Je disais quclquefois. . . Plêiade, p. 650.
(112) Cf. ainda S. Langer (Feeling and Form), que estende a teoria à
beleza inteira: “Beauty is expressive form”, p. 396.

165
nológica. Enquanto a emoção real é vivida pelo eu como um estado
interior, a emoção poética é atribuída ao objeto. A tristeza real é
expressa pelo sujeito à maneira do “eu estou”, como uma modificação
de si mesmo, cuja causa exterior é o mundo. A tristeza poética, pelo
contrário, é apreendida como uma qualidade do mundo. Um céu
de outono é triste como é cinzento. Poder-se-ia dizer que a primeira
é “subjetal” e a segunda “objetai”. Mikel Dufrenne, para diferença-la
melhor, reserva-lhe o nome de “sentimento”. “Sentir, diz ele, é
experimentar um sentimento não como um estado de meu ser, mas
como uma propriedade do objeto” 113. Trata-se, portanto, de uma
modalidade da consciência das coisas, uma maneira original e espe­
cífica de apreender o mundo. Logo, a emoção poética não se acres­
centa de fora à imagem do objeto: é imanente à imagem e constitui
o que se pode chamar “imagem afetiva” do objeto. De um mesmo
objeto, então, podemos ter duas imagens ou representações psicolo­
gicamente distintas, que constituem os dois tipos de significação in­
duzidas pelos dois tipos de linguagem.
A representação afetiva existe certamente fora da linguagem.
Hegel declara com razão: “. . . Já que as próprias palavras nada mais
são que signos das representações, a verdadeira origem da linguagem
poética não deve ser procurada na escolha das palavras e na maneira
de associá-las para formar orações e períodos, nem na sonoridade,
no ritmo, etc., mas sim na modalidade da representação” 114. É certo,
todavia, que esta “modalidade da representação” é provocada por
determinada linguagem. A representação afetiva não é um efeito ex­
clusivo do poema. Outras artes e a própria natureza são capazes de
induzi-la, e é por isso que na nossa introdução reservamos a possibili­
dade de uma poética das coisas. Mas o poema é pelo menos o seu
introdutor mais eficaz, e por essa razão podemos chamar “poético”
o modo de consciência do qual ele é o instrumento privilegiado. Po­
demos dizer que aquilo que chamamos poema é precisamente uma
técnica linguística de produção de um tipo de consciência que o es­
petáculo do mundo normalmente não produz.
Embora não se possa pôr em dúvida a realidade desse modo
de representação, fazer dele a base da semântica poética apresenta

(113) Phénoménologie de lfcxpérience esthétique, Paris, P.U.F., t. II,


p. 544.
(114) Eslhétique, trad. Jankélcvitch, Aubier, t. III, p. 50.

166
I

graves inconvenientes, particularmente para uma estética que se pre­


tenda científica. Hoje em dia, toda definição mentalista do sentido
é geralmente considerada suspeita. Mais ainda quanto se trata de
fenômenos afetivos, que dão muita margem ao subjetivismo no mau
sentido da palavra, As qualidades afetivas ou “expressivas” das
coisas são certamcnte reais, mas como é difícil descrevê-las e clas-
sificá-las! Quando falamos da “tristeza” de! um céu cinzento, será que
esta palavra c mais que uma metáfora?
Não há dúvida de que a impressão se aproxima mais da tristeza
que da alegria ou da <* cólera, mas resta sempre um indizível, uma
tonalidade própria e: incomparável, que os termos genéricos do voca-
bulário afetivo não podem definir,. Seria necessário nomear tais qua­
lidades por referência a seus objetos, como fazemos com os odores,
por exemplo, falar de “sentimento de céu cinzento”, como dizemos
“odor de rosas”. Sem isso, podemos apenas aproximar-nos da indi­
vidualidade combinando as categorias, sem nunca atingi-la. Como as­
sinala Etiene Souriau: “... Sob certos aspectos, toda obra digna de
atenção estética traz consigo um sabor que lhe é próprio. O crítico,
por meio de uma acumulação de epítetos, tentará qualificar esse sabor.
Invocará uma terna melancolia, ou uma originalidade selvagem e ar­
dente, ou uma rica e solene grandeza. Essas tentativas analíticas, porém,
não devem esconder-nos o caráter sui generis e irredutível de um sabor,
de uma atmosfera, de uma stimmung cuja qualificação verbal, multipli­
cando inutilmente os epítetos, não pode apreender a fisionomia pró­
pria na sua unicidade original” 115. Guardemos esse aviso na memória.
Com a reserva que ele implica e à falta de coisa melhor, utilizaremos
tais combinações de epítetos que, se não podem definir, podem pelo
menos evocar esses “sabores” em quem os tenha experimentado.
Um segundo inconveniente decorre da variabilidade indiscutível
das respostas afetivas. Todos vêem cinzento o céu cinzento. Mas
será que ele é triste para todos? Até nos meios cultos, há pessoas
que são cegas à expressividade das coisas. E mesmo quando são sen­
síveis, a tonalidade afetiva própria da resposta, por um mesmo estí­
mulo, é extremamente variável segundo o caráter e o momento.
Ao passar do sentido prosaico ao sentido poético, será que a lingua­
gem não corre o risco de perder sua consistência semântica? Além de
certo grau de polissemia, a língua não pode mais funcionar.

(H5) Lcs catégorics esthétiques, Centre de documentation socialc, p. 4.

167
Mas é possível que tal argumento seja artificialmente exagerado.
Vejamos o erro do primeiro ponto. Os afetivamente cegos nada
provam contra a realidade das qualidades afetivas, nem os sensorial-
mente cegos contra a realidade das cores. O poema, mais que qual-
quer outro gênero literário, dirige-se àqueles que os Anglo-Saxões
chamam “the right reader”. fSe o poema não é entendido por todos,
a culpa não é do poema, do> mesmo modo que um texto científico
não tem culpa de ser obscuro para muitos, Existe uma “inteligência
poética” que é, como a outra, um dom da natureza, com a diferença
de que depende daquilo que se chamava “coração” (palavra fora da
moda, mas sempre sugestiva), ou capacidade de resposta emocional
ao espetáculo do mundo 116.
Quanto à variabilidade dessas respostas, experiências recentes pa­
recem demonstrar que é menor do que parecia à primeira vista. As
associações cor-sentimento e música-sentimento, principalmente, apa­
recem com indiscutível consistência nas pessoas testadas 117. Ocorre
o mesmo com o fenômeno sinestesia definido por Warren: “A phe-
nomenon characterizing the experiences of certain individuais, in
which certain sensations belonging to one sense or mood attach to
certain sensations of another group and appear regularly whenever a
stimulus of the latter occurs” 118. A associação cor-som, principal­
mente, parece amplamente difundida e dá lugar a pequenas varia­
ções de um indivíduo para outro, pelo menos dentro de certo grupo
sócio-cultural. Já vimos o papel desempenhado pela sinestesia no pro­
cesso metafórico. A associação de sensações diferentes deve-se certa­
mente à similitude de suas ressonâncias afetivas, Existe uma espécie
de “cenestesia externa” que dá a cada sensível sua “expressividade”,
sua totalidade emocional, e essas tonalidades podem ser idênticas ou

(116) R. 1Ruyer, que opõe “ " significação■”’ a “expressividade”, diz que


a primeira é “epicrítica” segunda “protopática”, quer dizer, mais primitiva,
mais irude, de
’ nível
' ’ inferior,
’ r ligada ao dienccfalo, ao passo que a significação
se liga ao córtex cerebral”. “Uexpressivité” in Revue de Métaphysique, 1955.
(117) Cf. particularmente K. Hcvner, “Experimental studies of the cle-
ments of expression in music”, in Amer. J. of Psych., 1936 c R. Francês, La
perception de la musique, Paris, Vrin., 1958, onde os fundamentos psicológicos
das associações perceptivo-afetivas são longamente discutidos.
(118) “Fenômeno que caracteriza as experiências de certos indivíduos,
nos quais determinadas sensações, próprias de um sentido ou estado de espí­
rito, se ligam a determinadas sensações de outro grupo, aparecendo regular­
mente sempre que houver um estímulo da parte destas últimas” Dictio-
nary of Psychology, Boston, 1934.

168
I

semelhantes para sensíveis de registro diferentes. A experiência mos­


tra que “os seres humanos têm tendência a associar, de um lado, tudo
aquilo que é luminoso, pontiagudo, duro, alto, leve, rápido, agudo,
estreito, e assim por diante, numa longa série, e inversamente, tudo
aquilo que é escuro, quente, mole, macio, embotado, baixo, pesado,
lento, grave, largo, em outra longa série” 119.
No que concerne aos estímulos verbais, seu poder emocional é
o mesmo das coisas que designam 12°. Como diz Hegel, as palavras são
“os signos das representações” e seu único poder é trazê-las à cons­
ciência do receptor. Mas, como já vimos, há dois tipos de represen­
tação, e cada palavra virtualmente tem o poder de evocar outra,
segundo a estrutura da mensagem em que aparece. Portanto, cada
palavra tem um duplo sentido virtual: denotativo e conotativo. O sen­
tido denotativo é o que vem nos dicionários. A palavra é definida se­
gundo as qualidades “cognitivas” do referente. As qualidades afetivas
ou “terciárias” não aparecem, a não ser como “sentido figurado”, quan­
do a palavra é objeto de uma metáfora de uso. Mas poderíamos imagi­
nar um “dicionário conotativo” no qual as palavras seriam definidas
a partir das qualidades afetivas. Vermelho significaria “excitante, vio­
lento”; azul, “calmo, sereno”, etc. É claro que tal dicionário terií
uma base pouco sólida e as definições correriam o risco de variai
muito de um dicionário para outro. Todavia, com o método da “me­
dida do sentido” 121, elaborada por Osgood e seus colaboradores, es­
pera-se dar a tais significações um fundamento experimental e, mais
ainda, atribuir-lhes um valor quantitativo.
Tal método baseia-se na constituição de um “diferencial semân­
tico” (semantic differential), feito de escalas bipolares de sete graus,
definidas por dois adjetivos opostos: bom-mau, forte-fraco, quente-
-frio, etc. Pede-se às pessoas que coloquem nessas escalas a palavra
cujo sentido se quer medir. A análise estatística de um grande nú­
mero de respostas permite construir um “espaço semântico de três

(119) Whorf, Languagc, Thought and Reality, citado por Jakobson,


Essais, p. 242.
(120) Quando muito, podem acrescentar o efeito da substância sonora
que tem sua própria expressividade. Tal questão mereceria uma longa dis­
cussão, que não abriremos para não complicar a análise. Digamos apenas que,
embora seja real, o efeito do significante c secundário. A predominância é
do significado.
(121) Osgood, Suei e Tannenbaum, Mcasurement of meaning, Univ. of
Illinois, 2.a cd., 1958.

169
dimensões”, no qual cada conceito encontra seu lugar. Tais dimen­
sões são chamadas “valor” (evaluation), “potência” (potency) e
“atividade” (activity). Fica bem claro que as três delimitam não o
sentido em geral (meaning), mas seu componente conotativo. Como
observa Ullmann, mede-se aquela parte do sentido “usually refered to
as ajfective meaning or emotive connotation” 122. E também, como
os próprios autores confessam, essas três dimensões dão uma análise
apenas rudimentar, mas fornecem uma base objetiva à subjetividade.
Como dizem os autores: “A objetividade refere-se ao papel do obser­
vador, não do observado” 123.

Podemos agora voltar ao nosso segundo tempo. Definimos a


figura como um conflito função-sentido. A frase poética confere aos
seus termos uma função que o sentido é incapaz de exercer. Podemos
agora completar a definição. Basta substituir, nesta fórmula, “senti­
do” por “denotação”.
O sentido denotativo torna o termo incapaz de exercer a função
que a frase lhe confere. Mas a conotação toma o lugar da denotação
enfraquecida. Então, o acordo dos termos atua no plano conotativo.
Uma espécie de “lógica afetiva” dá norma à frase poética. A lingua­
gem mudou de código. Não há dúvida de que o axioma fundamental
de toda comunicação verbal permanece: a mensagem deve ser inteli­
gível. Mas a inteligibilidade já não é da mesma ordem. O signifi-
cante remete para outro significado. S2 toma o lugar de St. S2 e Si
têm o mesmo referente, o que garante a correspondência entre os
dois códigos. Mas as regras de concordância já não são as mesmas.
O código da linguagem normal apóia-se na experiência externa.
O código da linguagem poética, pelo contrário, na experiência interna.
Ele resume as semelhanças ou oposições qualitativas terciárias, tais
como nossa sensibilidade as revela. Os ângelus são azuis porque a
impressão qualitativa que corresponde a esta cor — digamos: calma,
tranquilidade — concorda com aquela que o sino produz ao tocar o
ângelus. Do mesmo modo, a trombeta de caça é um instrumento mu­
sical, mas no seu toque há algo de “melancólico e distante”, que
corresponde justamente ao que a sensibilidade poderia dizer da re-

(122) Language and Stylc» Oxford, 1964, p. 125.


(123) Osgood, op. cit., p. 25.

170
I
cordação. Tanto cm poesia como em prosa, o predicado convém ao
sujeito. A frase poética é objetivamente falsa, mas subjetivamente
verdadeira. A poesia, dizia Hugo, “é o que há de íntimo em tudo”.
E Mallarmé: “. . . uma poética bastante nova, que eu poderia defi­
nir cm duas palavras: Pintar, não a coisa, mas o efeito que ela produz”.
Não há dúvida de que tal poética dá muita margem à interpreta­
ção pessoal. Falta-nos o dicionário conotativo, onde poderíamos ve­
rificar a validade das predicações poéticas. Mas ainda aqui o poeta
poderia pedir a caução da experimentação: do método de Osgood, por
exemplo, que permite medir a distância que separa no espaço semân­
tico as posições ocupadas pelo sujeito e pelo predicado. Se tais po­
sições são idênticas ou muito próximas, temos, se não uma prova,
pelo menos um índice de que a intuição do poeta coincide com a do
público. Poder-se-ia também pensar em utilizar os métodos clássicos
da estética experimental. O método da escolha, por exemplo, pelo
qual as pessoas escolhem, numa lista de adjetivos, um predicado que
convenha subjetivamente a determinado sujeito, permitiria confrontar
a verdade poética com o critério clássico da verdade objetiva, com a
diferença de que, neste caso, não se trataria da concordância dos es
píritos, mas das sensibilidades. Seja qual for o resultado dessas ex­
periências, porém, não confundamos subjetividade com “arbitrário”,
para retomar o termo de Breton. Na sua linguagem, o poeta obedece a
uma evidência do sentimento que, para ele, é tão forçosa quanto a
evidência empírica 124. É por isso que se pode falar em código. O
poeta não se deixa levar pelas palavras. Exprime uma verdade que
só é absurda aos olhos do código objetivo e que deve sê-lo para que
este código dê lugar a outro. Eluard diz:
La terre est bleuc comine une orange
Jamais une erreur les mots ne mentent pas.
[A terra é azul como uma laranja/Nunca um erro as palavras não
mentem.]
Afirmação que podemos subscrever, com a condição de dar às pala­
vras seu ísentido conotativo, sem o que o primeiro verso cairia no
absurdo.
A poesia define-se em relação a dois códigos: negativamente em
relação a um, positivamente em relação a outro. Por isso ela tem

(124) Para alguns, essa evidencia é fundamentada. A subjetividade


liga-se à objetividade profunda do ser. Mas essa é uma questão que pertence
à metafísica, não à poética.

171
dois opostos: l.° a prosa que respeita o código denotativo; 2.° o
absurdo que desobedece aos dois 125. Só a frase poética satisfaz à
dupla exigência que a define: desobedecer a um e obedecer a outro.
O que pode ser representado pelo quadro seguinte:

PERTINÊNCIA
FRASE CONOTATIVA DENOTATIVA
Prosaica - +
Absurda
Poética +
Nem todas as combinações possíveis, como se vê, figuram neste qua­
dro. Falta a simétrica da frase absurda, marcada positivamente duas
vezes. Mas tal frase não existe. Com efeito, se a poesia é feita de
figuras, e se a figura é uma violação do código denotativo, teoria em
que se resume nossa análise, então, resulta que a negatividade de-
notativa é a condição sine qua non da positividade conotativa. Conota­
ção e denotação são antagonistas. Resposta emocional e resposta in­
telectual não podem produzir-se ao mesmo tempo. Elas são antitéti-
cas, e, para que surja a primeira, é necessário que a segunda desapa­
reça. Numa frase como “céu azul”, as conotações não estão em desa­
cordo, e a fórmula poderia ser marcada positivamente aos olhos da
dupla pertinência. Mas para que as conotações concordem, é neces­
sário ainda que se atualizem. O que só podem fazer se as denotações
lhes cederem o lugar. Não é o caso da frase cm questão, que é de-
notativamente pertinente, razão pela qual permanece prosa.
Como já dissemos, a metáfora é o objetivo da figura. O desvio
sintagmático só é criado para suscitar o desvio paradigmático. Mas
a metáfora poética não é simples mudança de sentido: é mudança de
tipo ou natureza de sentido, passagem do sentido nocional ao sentido
emocional. Por essa razão, toda metáfora é poética. Se So2 é uma
parte de Soj, a mudança de sentido permanece no nível denotativo.
Mudou-se de sentido, não de língua. A resposta permanece nocional.
É o que acontece com as metáforas científicas. Quando o c.. elétron
------ é-

(125) Podemos fazer justiça ao binarismo, hierarquizando as oposições.


Poético e absurdo se opõem como redutível e irredutível, e o conjunto, como
desvio, opõe-se à prosa, como norma.

172
>
chamado ‘‘planetário”, o sentido metafórico deste termo é constituí­
do por um caráter que pertence à denotação do termo. Do sentido
denotativo global da palavra “planeta”: “corpo celeste que gira em
torno do sol” (Laurousse), extrai-se o caráter “corpo... que gira
em torno”. Restabelece-se a pertinência, mas dentro de um mesmo
universo semântico, o da denotação, vale dizer, da prosa. Para que
a conotação, vale dizer, a poesia apareça, é necessário então que Sot
e So2 não tenham nenhum elemento comum. Então, e só então,
na ausência de qualquer analogia objetiva, surge a analogia subjetiva,
o significado emocional ou sentido poético.
Assim se explica que a poesia moderna, como mostramos, tenha
recorrido tão amplamente à “metáfora distante” e, para isso, tenha
baseado a impertinênciai nos “primitivos” da língua. Com efeito,
tais termos, pela sua jsimplicidade
’ de compreensão, excluem qualquer
possibilidade de identidade parcial com outro termo, e só podem
apresentar analogia extrínseca, ao nível da resposta subjetiva emo-
cional.
Se a poesia moderna faz tão largo uso dos termos sensoriais,
e mais particularmente das palavras que designam cores, não é
— digamos não é apenas — para introduzir o concreto no universo
poético, como se pensou. Durante muito tempo, atribuiu-se à metá­
fora, como função, a passagem do abstrato ao concreto 12€. Na rea­
lidade, muitas metáforas substituem o concreto pelo concreto. Por
exemplo: cabelos azuis (Baudelaire), olhos loiros (Rimbaud), céu
verde (Valéry), etc. A verdade é que a palavra que exprime a cor
não remete para a cor, ou melhor, só remete num primeiro tempo.
Num segundo tempo, a própria cor torna-se o significante de um
segundo significado de natureza emocional. Quando Mallarmé diz
“azuis ângelus”, não há nenhuma imagem, na realidade impossível
de imaginar, mas somente um processo de estimulação de uma res­
posta emocional que não pode ser obtida de outro modo. O poeta
não procura “pintar”, e a metáfora não é “pintura” como o verso
não é “música”. A metáfora poética é passagem da língua denota-
tiva para a língua conotativa, passagem obtida por meio do desvio
de uma fala, que perde seu sentido ao inível da primeira língua, ~para
reencontrá-lo ao nível da segunda.

(126) Marouzcau define a metáfora do seguinte modo: “processo de ex­


pressão considerado como uma transferencia de uma noção abstrata para a
ordem do concreto...” (Léxiquc de terminologie linguistique, Paris, Geuthner,
1943).

173
O conjunto do processo poético pode enfim ser simbolizado
pela figura do capítulo III, dando) aos dois significados seus valores
respectivos:
Se

Sot — denotação

CONTEXTO
<r Soo •= conotação

A teoria conotativa da linguagem poética, convém repetir, não


é original. jMas os que a defendem geralmente consideram as duas
significações como independentes. O que aparece claramente nesta
passagem de Richards: “No uso científico da linguagem . . ., as
conexões e relações das referências entre si devem pertencer ao
tipo que chamamos lógico... Mas, Mas, para seu uso
para seu uso emocional, o
arranjo lógico não é necessário. Ele pode ser, e freqúentemente
é, um obstáculo. Porque o que importa é que as séries de atitudes
devidas às referências tenham..i sua própria organização, sua própria
intercomunicação emocional, e isso nem sempre depende das rela-
ções lógicas das referências que produze::m tais atitudes”. 127 Como
se vê, aquilo que o autor chama “arranjo lógico” — na nossa língua
“pertinência denotativa ” — pode acompanhar ou não “o uso emo-
cional”. frequentemente, diz ele, é um obstáculo”, o que implica
dizer que não o é necessariamente.
É neste ponto capital que nos separamos das concepções geral­
mente admitidas pelas teorias emocionais da poesia. A significação
emocional é antitética da significação intelectual; por conseguinte,
é necessário “opor obstáculo” a esta para garantir o triunfo daquela.
Embora decorra logicamente do resultado de nossa análise, nem
por isso o antagonismo entre as duas significações é um fato evidente
por si mesmo. Não se percebe a priori por que os dois tipos de
respostas não poderiam aparecer ao mesmo tempo. A nosso ver,
este é um problema cuja solução poderia lançar alguma luz sobre
o comportamento profundo da função linguística.
(127) Principies, p. 268.

174
*

Até aqui, só raciocinamos dentro do quadro da frase predica­


tiva. Resta examinar como o segundo tempo funciona nos outros
tipos de figura. O princípio geral permanece o mesmo: a substitui­
ção do sentido denotativo pelo sentido conotativo faz o termo
sobre o qual recai a figura concordar com sua função.
No que concerne à determinação, mostramos por antecipação
que o desvio é redutível através de uma dupla mudança, primeiro
gramatical, depois lexical, O epíteto redundante é tal porque é
incapaz de exercer a função distintiva destinada ao epíteto. Para
reduzir o desvio, o epíteto deve transformar-se em aposto com fun-
ção circunstancial, o que só é possível quando o sentido permite,
Constatamos que isso ocorre nos clássicos, mas quase nunca nos
modernos. Em:
Les élcphants rugueux . . . uont au pays natal,
[Os elefantes rugosos. . . vão ao país natal,]

o epíteto não pode desempenhar o papel de uma circunstância tem


poral, causal, concessiva, etc. Mas tal incapacidade só recusa o sen­
tido denotativo. É neste ponto que a conotação aparece para de­
volver ao adjetivo sua função. A imagem afetiva da “rugosidade”
é uma espécie de “dureza selvagem”. O adjetivo pode então assumir
uma função causal: explica o caminhar obstinado, implacável, dos
elefantes nesse universo de imobilidade e morte que é o deserto, como
o poeta o vê.
Os desvios gramaticais reduzem-se da mesma maneira. Vimos
que a inversão do epíteto lhe confere um sentido genérico. Em “ca­
belos loiros”, o adjetivo distingue uma espécie entre outras; em
“loiros cabelos”, aplica-se a toda extensão do substantivo, como se
toda cabeleira, por natureza, fosse loira. O que mais uma vez é falso
se “loiro” conservar seu sentido denotativo, mas verdadeiro se co-
notar um matiz de beleza clara e frágil, expressiva da própria es-
sência da feminilidade, da qual a cabeleira é um símbolo. Como se,
paradoxalmente, a mulher morena não fosse plenamente feminina,
ou, mais paradoxalmente ainda, como se a cabeleira negra escondes-
se uma loirice secreta. O que é absurdo aos olhos da razão é, pelo
contrário, evidente para o coração do poeta, pelo menos daqueles
que renderam culto à loirice, e foram numerosos.

175
Passemos finalmente à versificação. Mostramos que os traços
versificatórios: rima, metro, enjambement, etc., não são simples
figuras, mas que exercem uma função semântica. A rima, para co­
meçar por ela, é um significante. Segundo o princípio do paralelismo
fono-semântico, a homonímia significa uma sinonímia. As palavras
que se assemelham pelo som devem assemelhar-se pelo sentido. Este
alcance semântico da rima já foi muitas vezes assinalado 128. Assim,
Jakobson escreve: “Embora a rima, por definição, baseie-se na re­
corrência regular de fonemas ou grupos de fonemas equivalentes,
seria uma simplificação abusiva tratar a rima simplesmente do ponto
de vista do som. A rima implica necessariamente uma relação se­
mântica entre as unidades que liga” 129. Resta esclarecer a natureza
desta relação semântica. Ora, vimos que se tratava de uma relação
negativa. No curso de sua evolução, a rima torna-se cada vez maís
rica e cada vez menos gramatical. Quanto mais a semelhança de
sons aumenta, tanto mais a semelhança de sentidos diminui. No ca­
pítulo dedicado à versificação, limitamo-nos a esse aspecto negativo
da relação fono-semântica, chegando, por conseguinte, à conclusão
de que havia uma intenção deliberada de obscurecer a mensagem.
Mas essa vontade não é gratuita. A versificação só obscurece a men­
sagem denotativa; o princípio do paralelismo, violado nesse plano,
torna a aparecer no plano conotativo. A disfuncionalidade da lin­
guagem poética nada mais é que o avesso de uma funcionalidade de
outra ordem. A própria rima constitui um mecanismo de dois tem­
pos, que podemos representar pelo esquema seguinte (no qual Sd
é o sentido denotativo e Sc o sentido conotativo):

D Sej Se2

2) Sdx 7^ Sd2

3) Sei Sc2

(128) Cf. particularmente Wimsatt, The verbal Icon, Lexington, 1954.


(129) Essais, p. 233.

176
i

Como se vê, o |paralelismo é rompido entre os estágios 1 e 2,


-- -1 e- 3. C
mas restabelecido entre *
O desvio através do estágio 2 é
necessário, porque, uma vez mais, Sc sój se atualiza se Sd lhe ceder
o lugar. I
Vejamos agora num (exemplo como funciona o mecanismo. Nes-
tes dois versos de Baudelaire:
Mon cnfant, ma rccur
Songe à la douceur.
[Minha criança, minha irmã/Pensa na doçura.]

as palavras que rimam não têm nenhum parentesco semântico deno-


tativo. A doçura é uma qualidade do espírito, a irmã é um membro
da família, e não há nenhuma implicação recíproca entre as duas
noções. A similitude sonora não passa de um acidente da língua,
enganadoramente destacado pela rima. Mais uma vez, porém, a ver­
dade afetiva vem corrigir o erro nocional. Se a “sororidade” conota
um valor, sentido como tal, de intimidade e amor, então é verdade
que toda irmã é doce, e até reciprocamente, que toda doçura é “so-
roral”. O semantismo da rima é metafórico 130. A similitude fónica
desempenha o mesmo papel que a relação predicativa, e poderíamos
falar de uma impertinência da rima, que exige a mesma redução.
Neste exemplo privilegiado, assistimos a uma notável convergência
das duas figuras. A equação estabelecida pela gramática: “enfant
= soeur” é falsa, assim como a equação estabelecida pelo som:
“soeur = douceur”. Mas a transmutação do sentido dá aos três
termos uma equivalência semântica e justifica a dupla equação.
Pode-se medir a extrema dificuldade de uma rima como essa.
Ela deve satisfazer a uma tripla exigência: acrescentar 1) à similitude
sonora 2) uma heterogeneidade denotativa 3) compensada por uma
homogeneidade conotativa. Por isso, uma rima como essa, que po­
deríamos chamar “rima motivada” não é muito comum. Cremos até
que é relativamente rara, já que geralmente a rima se limita à sua
função fónica de reforço do metro. Mas, pelo próprio fato de ser
rara, quando aparece, tem um efeito incomparável. Sirva de exem­
plo o soneto do Cygne, cujos quartetos apresentam esta rima tripla
de três fonemas:

(130) Constatamos aqui a verdade desta afirmação de Mallarmé: “O


verso compensa a falha das línguas”.

177
ivrc
délivrc
vivrc

que acrescenta à riqueza c à não-gramaticalidade uma notável con­


vergência conotativa. O princípio de Banvillc: “Fareis rimar, tanto
quanto possível, palavras muito semelhantes como» som e muito di-
ferentes como sentido’’, contradiz o de Pope: “The sound must
seem an Echo of the sense” (O som deve parecer um eco do sen­
tido). A contradição deixa de existir se recorrermos à diferença
entre os dois tipos de sentido. O princípio de Banville refere-se
ao sentido denotativo, o de Pope ao sentido conotativo. A rima
motivada obedece simultaneamente aos dois princípios. Entre am­
bos, não há contradição, mas implicação. A rima só pode satisfazer
ao segundo princípio depois de ter satisfeito ao primeiro.
O metro e o ritmo têm a mesma função que a rima: assegurar
aquele retorno sonoro que é a essência do verso. Já se disse que a
homometria, às vezes, é apenas aproximativa. Mas o essencial é
que o discurso possa ser dividido em fragmentos que oscilem pouco
em torno de um número idêntico de sílabas. O ouvido retira daí
uma impressão de regularidade sonora que basta Dara opor radical­
mente o verso à prosa.
A missão do ritmo é apoiar essa impressão de regularidade.
Os fragmentos métricos contêm um número igual de acentos tôni­
cos que, na melhor das hipóteses, se distribuem uniformemente de
um verso para outro. Já se disse que o ritmo é ao mesmo tempo
estrutura e periodicidade. Na versificação, o essencial é a periodi­
cidade. Pouco importa a estrutura rítmica adotada pelo verso. A
fórmula pode basear-se em duas, três ou quatro sílabas, o que im­
porta é que a mesma fórmula se repita de um verso para outro,
para fazer funcionar aquele mecanismo de dois tempos que cons­
titui a mola profunda de toda poesia. Assim, nestes dois versos:
Un frais parfurn sortait des touffes d’asphodèlc;
Les soufflés de la nuit flottaient sur Galgala.
[Um fresco perfume saía dos tufos de esfódelo/Os sopros da noite
flutuavam sobre Galgala.]

a identidade sonora é garantida três vezes:


1. ° pelas aliterações (em /);
2. ° pelo número de sílabas (12);
3. ° pelo ritmo (4224 e 2424).

178
I
Ora, essa identidade fónica implica uma identidade semântica,
que não é realizada pelo sentido denotativo. Os dois versos deno­
tam duas “ideias” conexas, mas diferentes (os asfódelos exalavam
perfume; a brisa noturna soprava sobre Galgala). É neste ponto
que, em virtude do princípio de paralelismo, a conotação aparece.
Com efeito, os dois versos conotam a mesma atmosfera de sentido
(divina doçura, paz amorosa?). A linguagem cumpriu, pois, sua
função poética: forçar a alma a sentir aquilo que geralmente ela se
limita a pensar.
O não-paralelismo também não é um desvio gratuito. Em cer­
tos casos, pode desempenhar um simples papel auxiliar, colocar-se
a serviço do metro ou da rima; em outros, serve para pôr em relevo
uma palavra. Mas não é essa sua função essencial. A maneira sis­
temática como a poesia moderna o utiliza prova que ele é dotado
de uma finalidade própria. O desvio metro-sintaxe é visado como
tal. Trata-se de opor a divisão métrica à divisão sintática, violando
assim o princípio do paralelismo. No verso que tomamos comc
modelo:
Souvenir, souvenir, que me veux-tu? L’automne
[Recordação, recordação, que queres de mini? O outono]

as divisões sintáticas são contrariadas pela unidade métrica. O metro


é um significante que remete a um significado, no qual “o outono”
não é mais o sujeito da frase que segue, mas complemento da que
precede, como se fornecesse uma resposta para a pergunta feita à
recordação. Mas eis aí uma função que a denotação recusa e a co­
notação aceita, se é verdade que toda recordação é “outonal”, cm
virtude daquela “correspondência” emocional que dá uma lei or-
gânica ao código do discurso poético.
Como fizemos antes, podemos agora completar o esquema da
figura do capítulo II com um terceiro estágio no qual fica resolvi­
do o desvio representado pelo segundo:

Significante:

Denotação:

179
Conotação:

O estágio conotativo restabelece o paralelismo entre som e


sentido. Mas trata-se de um paralelismo
[ do tipo “homológico”. A
semelhança que a poética sempre supôs existir entre! as duas faces
do signo não é entre o som e o sentido, mas entre a relação entre
significados, E tal relação é dupla,
significantes e a relação entre significados.
negativa ao nível da denotação, positiva ao nível dc conotação.
A antinomia denotação-conotação dá a chave de todas as figuras.
Como já se disse, a poesia é uma vasta metáfora, e já mostramos
que, em todos os casos, se trata de uma “mudança de sentido”,
sendo sempre possível reduzir o desvio por esta via. Mas então
põe-se o problema fundamental: Por que a metáfora, por que a
mudança de sentido? Por que não chamar as coisas pelo nome?
Por que dizer “esta foice de ouro” e não simplesmente “a lua”?
A resposta encontra-se na antinomia dos dois códigos. Sentido
nocional e sentido emocional não podem existir juntos dentro de
uma mesma consciência. O significante não pode induzir simul­
taneamente dois significados que se excluem. Por essa razão, a
poesia tem que utilizar um desvio. Tem que romper a ligação ins­
tituída entre o significante e a noção, para substituí-la pela emoção.
Tem que bloquear o funcionamento do velho código para permitir
que o novo funcione. A poesia, convém repetir, não é algo diferente
da prosa, mas sim a antiprosa. A metáfora não é simples mudança
de sentido, mas sua metamorfose. A fala poética é ao mesmo tempo
morte e ressurreição da linguagem.
Mas se a metáfora é necessária, se a poesia é arte, vale dizer,
artifício, é porque o código nocional é o código usual, O signifi-
cante remete o usuário de imediato ao sentido nocional. O poeta
não pode dizer simplesmente “a lua” porque tal palavra suscita
espontaneamente em nós a modalidade “neutra” da consciência. É
por isso que a prosa é “prosaica”, e é por isso que a poesia é arte,
Para despertar a imagem emocional da lua, o poeta precisa recorrer
à figura, precisa violar• o código, precisa dizer: esta foice de ouro no
campo das estrelas, justamente porque tais palavras, segundo o có-
digo usual, não podem associar-se.
Mas esta ligação significante-denotação não é necessariamente
uma ligação natural. Pode ser apenas o produto de um aprendizado
180
cultural, de uma montagem social, operada desde a primeira idade
na consciência do homem civilizado. Na realidade, como tentaremos
mostrar um dia, ela depende da estrutura da língua, a qual, por sua
vez, é um reflexo de nossa cultura. A priori, nada impede que se
imagine uma montagem inversa, uma ligação direta significante-
-conotação. Mas, neste caso, a poesia é que seria natural e a prosa
artifício. Seria preciso usar a figura para suscitar a imagem neutra
das coisas, ao passo que, inversamente, bastaria chamar as coisas pelo
nome (“Eu digo: uma flor../’) para induzir a imagem emocional.
Mas, na nossa civilização, tal não ocorre. Nosso código é denotativo
Por essa razão, o poeta é obrigado a violar a linguagem se quiser
mostrar a face patética do mundo, cuja aparição produz em nós
aquela forma limite da alegria estética que Valéry chama “encan­
tamento”.

181
I

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