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Jean Cohen
Editora Cultrix
Editora da Universidade de São Paulo
L
ESTRUTURA DA LINGUAGEM POÉTICA
Jean Cohen
EDITORA CULTRIX
Jean Cohen
EX-LIBRXS
PioP. Dra.
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o lUBiNesiui rasem
•2 Rua Vbconda da PI rajá, 605
co Lj 0 - Ipanama
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Tel.: 2226-4106
=
FICHA CATALOGRAFICA
Cohen, Jean.
C628e Estrutura da linguagem poética; tradução de
Álvaro Lorenclni e Anne Arnichand. São Paulo,
Cultrix, Ed. da Universidade de São Paulo, 1974.
Bibliografia.
CDD-808.1
-446
74-0432 -801
Comissão Editorial:
Presidente: Prof. Dr. Mário Guimarães Ferri (Instituto
de Biociências). Membros: Prof. Dr. Antonio Brito da
Cunha (Instituto de Biociências), Prof. Dr. Carlos da
Silva Lacaz (Faculdade de Medicina), Prof. Dr. Pérsio
de Souza Santos (Escola Politécnica) e Prof. Dr. Roque
Spencer Maciel de Barros (Faculdade de Educação).
JEAN COHEN
ESTRUTURA
DA
LINGUAGEM POÉTICA
A esta perspectiva eu chamo Transposição.
— Estrutura, outra.
Mallarmé
Tradução de
Álvaro Lorencini e Anne Arnichand
EDITORA CULTRIX
SÃO PAULO
Título do original:
STRUCTURE DU LANGAGE POÉTIQUE
© Flammarion, 1966
MCMLXXIV
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
à memória de meu pai.
S U M ÁR I O
Capítulo I
O Problema Poético 27
Capítulo II
Nível Fónico: A Versificação 46
Capítulo III
Nível Semântico: A Predicação 87
Capítulo IV
Nível Semântico: A Determinação 112
Capítulo V
Nível Semântico: A Coordenação 133
Capítulo VI
A Ordem das Palavras 148
Capítulo VII
A Função Poética 161
Bibliografia 183
SUMÁRIO DOS QUADROS
153
X. Epítetos invertidos
155
XI. Epítetos não valorativos invertidos
10
INTRODUÇÃO
OBJETO E MÉTODO
11
entre os seres da natureza ou as circunstâncias da vida. É perfeita
mente possível esboçar uma poética geral que procuraria os traços
comuns a todos os objetos, artísticos ou naturais, suscetíveis de pro
vocar a emoção poética2. Por razoes de ordem puramente meto
dológica, julgamos preferível limitar desde o início o campo da pes
quisa e considerar, em primeiro lugar, apenas os aspectos propria
mente literários do fenômeno. Pretendemos analisar as fornias
poéticas da linguagem, e somente da linguagem. Se conseguirmos
resultados positivos, então será possível tentar estendê-los para além
do domínio literário. Todavia, pareceu-nos metodologicamente ra
zoável começar pelo especial antes de ir ao geral, e procurar a poesia
onde ela se encontra, se não unicamente, pelo menos eminentemente,
na arte em que nasceu e que lhe deu o nome, isto é, naquele gênero
de literatura chamado poema.
Contudo, a própria palavra “poema” não deixa de ser equívoca.
Com efeito, a existência da expressão “poema em prosa”, que se
tornou corrente, tira desta palavra a determinação sem ambiguidade
que tinha quando era caracterizada por sua forma versificada. Sendo
o verso uma forma convencional e estritamente codificada na lin
guagem, o poema possuía uma espécie de existência jurídica incon-
testaye . Era poema ’ aquilo que era conforme às regras da versi-
caçao, prosa aquilo que não o era. No entanto, a expressão
aparentemente contraditória de “poema em prosa” obriga-nos a de-
nnir novamente a palavra.
_• lin^em,.como se sabe, pode ser analisada a dois níveis, fô-
t e semantJC0 • poesia opõe-se à prosa por caracteres exis-
codifLT amb°S osJníveis- Os caracteres de nível fónico foram
sem cuia V n£meados- Chama-se “verso” toda forma de lingua-
tamen?e v X-’apresenta estes caracteres. Por serem imedia-
tituem ainda hn- 6 rigor/osam1ente codificados, para o público, cons-
não são únicos A Cn^rí° P°Çsia. Mas, na realidade, tais traços
cíficos que conqtit° R1Ve semânt^co» Há igualmente caracteres espe-
. q constituem um segundo recurso poético da linguagem.
U
CARACTERES POÉTICOS
GÊNERO FÓNICOS SEMÂNTICOS
Poema em prosa
Prosa versificada
+
Poesia integral
Prosa integral .
14
mente à poesia francesa. Naturalmente, para constituir uma poética
literária digna desse nome, seria necessário destacar os caracteres
comuns a todo poema, seja qual for a língua ou cultura a que per
tença. Mas, nesse domínio mal explorado, o princípio de homoge
neidade é mais imperioso que nunca e, em matéria de linguagem, é
evidentemente à língua que se aplica em primeiro lugar. Estabelecer
conclusões válidas exclusivamente para a poesia francesa já seria
um resultado bastante valioso. Podemos limitar a isso nossas ambi
ções, mesmo que seja para tentar estender depois os resultados a
poemas de outras línguas ou culturas.
■é
15
mos tomar esta como norma e considerar o poema como um desvio
em relação a ela 5. O desvio é a própria definição que Charles Bru-
neau, retomando Valéry, dava do fato de estilo, e tal definição é
conservada hoje pela maioria dos especialistas. Na realidade, ela só
tem uma significação negativa. Definir o estilo como desvio é
dizer não o que é, mas o que não é. É estilo aquilo que não é cor
rente, normal, conforme ao “padrão” usual; mas não impede que
o estilo, tal qual é praticado pela literatura, possua um valor esté
tico. É um desvio em relação a uma norma, portanto um erro, mas,
dizia também Bruneau, “um erro voluntário”. Portanto, o desvio
é uma noção excessivamente ampla e que deve ser especificada, ex
plicando-se por que certos desvios são estéticos e outros não.
No entanto, essa definição possui um valor operatório. Ela é
insubstituível na operação preliminar da estilística que seu fundador,
Charles Bally, chamava “delimitação” do fato de estilo. Antes de
saber quais desvios são esteticamente válidos, é necessário percebê-los
primeiro como desvios, o que só é possível por comparação à norma.
Consequentemente, consideramos a linguagem poética como um fato
de estilo tomado no seu sentido geral. O fato inicial em que se
baseará nossa análise é que o poeta não fala como todo mundo.
Sua linguagem é anormal, e tal anormalidade confere-lhe um estilo.
A poética é a ciência do estilo poético.
O estilo é frequentemente considerado como um desvio indi
vidual, uma maneira de escrever particular de um só autor. O pró
prio Bally definia-o como “desvio do falar individual”, e Leo Spitzer
como “desvio individual em relação a uma norma”. A célebre
fórmula de Buffon: “O estilo é o próprio homem”, é gcralmente
interpretada nesse sentido. Realmente, não se pode negar a apli
cação do termo à marca pessoal de cada poeta, à “maneira” única
que o diferencia de todos os demais; mas pode-se dar à palavra es
tilo uma acepção mais ampla, que aliás ela possuía inicialmente.
Admitimos, pelos menos a título de hipótese de trabalho, a existên
cia na linguagem de todos os poetas de uma invariante que perma
, . uma maneira idêntica
nece através das variações individuais, ou <seja,
de desviar da norma, uma regra imanente ao próprio^ desvio, Com
------- codificado,
efeito, o que é a versificação, senão um <desvio — uma lei
de desviamento em relação à norma fónica da linguagem usual? Do
(5) A palavra “norma” não tem aqui uin sentido normativo: dc-
signa apenas o comparando, por oposição ao comparado.
16
mesmo modo, no plano semântico, existe paralelamcnte uma lei de
desviamento que, embora não codificada com igual rigor, existe
através da diversidade dos conteúdos. A esse título, a poesia pode
ser definida como um gênero de linguagem e a poética como uma
estilística de gênero que coloca a existência de uma linguagem poé
tica e procura-lhe os caracteres constitutivos.
Tal definição apresenta uma vantagem metodológica conside
rável: permite que a poética sc torne uma ciência quantitativa. Na
noção de desvio, afirma-se urna convergência notável entre a esti
lística e a estatística. Como a estilística é a ciência dos desvios lin
guísticos, e a estatística ciência dos desvios cm geral, é lícito aplicar
à primeira os resultados da segunda. O fato poético torna-se, então,
um fato mensurável, exprime-se como sendo a frequência média dos
desvios que a linguagem poética apresenta em relação à prosa. O es
tilo, diz P. Guiraud, “é um desvio que se define quantitativamente
em relação a uma norma”6. Esta definição aplica-se ao indivíduo,
mas aplica-se também a um gênero. O estilo poético será o desvio
médio do conjunto dos poemas, a partir do qual seria teoricamente
possível medir a “taxa de poesia” de um poema determinado.
O estudo estatístico do estilo supõe duas abordagens, uma que
consiste cm caracterizar o fato, outra em medi-lo. Nem todos os
desvios são estilisticamente pertinentes. Se encontramos, por exemplo,
maior número de monossílabos em poesia que em prosa, não signi
fica necessariamente que as palavras curtas possuam um privilégio
estilístico. O fato só sc deve às facilidades métricas que as palavras
curtas oferecem, e não passa, portanto, de uma consequência con-
tingente do fato métrico, o único poeticamente pertinente. Antes de
contar, cumpre saber o que contar, c julgamos efetivamente que “o
verdadeiro problema do estilo é de ordem qualitativa, e não quanti
tativa” 7. Por conseguinte, a caracterização é a abordagem essencial
da poética, e deve-se inteiramente aos métodos comuns da intuição
e do raciocínio. Podemos até, com Lco Spitzer, recorrer a uma “sim
patia” necessária entre o analista e a obra que estuda. Porém, esse
método puramente intuicionista é um método de descoberta, não de
prova. Uma vez produzido o “clique característico”, como certificar-
17
-se de que não houve erro, de que este é realmente o traço específico
de uma obra ou de um gênero, senão comparando estatisticamente
tal obra com outros gêneros? Só a existência de um desvio de fre
quência estatisticamente significativa permite transformar em ver
dade o que, ao nível da intuição ou do sentimento, não passa de uma
hipótese. Maurice Grammont, cuja sensibilidade poética não po
demos pôr em dúvida, definiu como “harmonia” do verso uma relação
entre o som e o sentido, cujo caráter aleatório foi provado pelo con
trole estatístico. É claro que isso não desqualifica a teoria de
Grammont, mas coloca-a na posição de simples hipótese a ser ve
rificada 8.
Para nosso objetivo, é o único serviço que pedimos à estatística:
não para entregar ela mesma a chave da poesia, mas para verificar
uma hipótese que apareceu ao refletir sobre alguns problemas privi-
legiados. Todavia, o exemplo não prova nada. Quando a reali-
dade observada é suficientemente vasta, é sempre possível encon-
trar exemplos favoráveis a uma teoria. Pode-se pensar que a in-
versão, por exemplo, é um traço característico da poesia. Mas como
ter certeza, senão verificando que a inversão se apresenta no poema
como um desvio de freqiiência estatisticamente significativo?
A utilização do método estatístico apresenta o problema — sem-
pre espinhoso — da constituição de uma amostra representativa do
conjunto estudado. O conjunto, no caso, é a totalidade dos poemas
publicados, ou do que é considerado como tal: resta fazer uma es-
colha nessa totalidade. Quanto mais ampla for a cscolha, mais
representativa poderá ser. Todavia, tivemos que levar em conta
as necessidades práticas. Contar fenômenos visíveis e evidentes, a
rima, por exemplo, é fácil. Não ocorre o mesmo quando se contam
metáforas, o que impõe para cada caso uma análise semântica prévia.
Por essas razões, limitamos a escolha a nove poetas. É pouco, com
parado à imensa riqueza da poesia francesa e, com um “corpus” tão
restrito, a parte de arbitrário inevitável de toda amostra aumenta
consideravelmente. Para limitar ao máximo possível esse arbitrário,
obedecemos aos dois princípios seguintes.
O primeiro é eliminar qualquer perspectiva normativa, A lin-
guística tornou-se ciência a partir
[ do momento em que deixou de
(8) A mesma observação aplica-sc à análise do poema de Baudclairc:
Lcs Chats, por Jakobson c Lcvy-Strauss. Entre os traços levantados apenas
neste poema, alguns são certamente pertinentes, mas outros são talvez alea
tórios. Como sabc-lo, sem processo dc verificação?
18
impor regras para observar fatos. A estética deve fazer o mesmo,
deve descrever e não julgar. Mas, em matéria estética, o fato supõe
o valor, já que só a obra de arte julgada bela é reconhecida como
obra de arte. A obra falha, a obra feia, não é um fato estético, e o
esteticista só pode observar o que foi previamente julgado como tal.
Parece então que nossa ciência se encontra num círculo, do qual
só poderá sair separando julgamento e descrição. Para retomar os
termos de Pius Servien 9, a estética supõe duas operações: “eleição”
e “observação”. Para dar-lhe a objetividade exigida, é preciso que
o papel de “eleitor” e “observador” não seja desempenhado por
uma só e única pessoa. E, como o esteticista desempenha o papel
de observador, deve deixar a outro o de eleitor.
Consequentemente, confiamos este papel ao grande público, que
se chama posteridade tão logo o tempo passa. O público pode errar
em parte e por algum tempo, mas não pode equivocar-se totalmente
c sempre; por definição, já que o belo não é uma qualidade própria
da coisa em si, mas o nome que se dá à sua capacidade de despertar
o sentimento estético nas consciências. É possível que muitas obras
belas sejam desconhecidas, mas é pouco provável que muitas obras
reconhecidas como belas não o sejam realmente. Portanto, escolhe
mos os poetas entre as glórias seguras da literatura francesa. A es
colha não é nossa. Temos, como cada um, nosso gosto e prefe
rências, e se os tivéssemos seguido, a amostra teria sido diferente.
No entanto, achamos mais rigoroso apoiar-nos no consenso, que é o
único critério objetivo no domínio do valor.
O segundo princípio de seleção prescreve a homogeneidade do
“corpus” observado. Quanto mais homogéneo for o material estu
dado, maior será a probabilidade de aparecerem os traços comuns.
Ora, em matéria de poesia, como já dissemos, é à língua que este
princípio se aplica cm primeiro lugar. Por isso limitamos nossa
análise à poesia francesa exclusivamente. Se existe uma estrutura
da linguagem poética como tal, deve encontrar-se evidentemente
na poesia de todas as línguas. Destacar características comuns a
uma poesia tão rica e tão variada como a francesa, já seria um re
sultado bastante valioso.
Em princípio a homogeneidade implica a sincronia. “O cor-
pus, diz Roland Barthes, deve eliminar ao máximo os elementos
diacrônicos, deve coincidir com um estado do sistema, um “corte”
19
da história” 10. No entanto, pareceu-nos interessante observar o
movimento evolutivo da poesia francesa cm diversos momentos de
sua história. Mas reaparece, então, a questão da homogeneidade da
língua. Em princípio, uma língua só existe num ponto do tempo.
Pode-se ampliar a faixa temporal, mas com a condição de que a
língua tenha mudado relativamente pouco durante o período estudado.
Todas essas considerações levaram-nos a escolher finalmente três
épocas bastante semelhantes na língua, mas bastante diferentes nas
suas estéticas particulares, conhecidas na história da literatura pelo
nome geral de Classicismo, Romantismo e Simbolismo. Dentro de
cada uma, escolhemos três autores:
— Corneille, Racine, Molière;
— Lamartine, Hugo, Vigny;
— Rimbaud, Verlaine, Mallarmé.
Pensamos assim abranger não só escolas e movimentos poéti
cos bastante diversos, mas também gêneros bastante variados: lírico,
trágico, épico, cómico, etc., além de constituir um corpus suficiente
mente homogéneo para favorecer a pesquisa e, ao mesmo tempo,
suficientemente amplo para permitir a indução 11.
Assim constituído, esse corpus apresenta outra vantagem: es
tendendo-se sobre três períodos sucessivos, permite comparar a poe
sia a si própria através de sua história e observar-lhe a evolução.
Veremos destacar-se um fato que nos parece revelador: na maioria
dos casos, os caracteres próprios desse tipo de linguagem aumentam
de maneira regular, de um período para o período seguinte. Como
interpretar esse fato? Vemos aí uma confirmação da validade dos
caracteres em questão.
Com efeito, sendo o desvio a condição necessária para toda
poesia, é evidente que a estética clássica se prestava pouco à explo
ração de tal processo. Na época atual, a originalidade constitui por
si só um elemento de valor estético. Na época clássica, era o inverso.
A norma era o valor e o desvio só era permitido dentro de limites
20
estreitos, que eram garantidos por certa tradição. As ousadias de lin
guagem eram severamente reprimidas, muitas vezes pela voz oficial
da Academia. Assim, para retomar um exemplo citado por G. An-
toine , a coordenação tem sua norma. Dizemos: “Paulo, Pedro e
João”, mas a língua literária tolera: “Paulo e Pedro e João”. Temos
aqui um desvio ao mesmo tempo limitado e previsto, que faz do
estilo uma segunda língua dentro da língua geral. Ora, o verdadeiro
desvio, aquele que infringe toda norma, é: “Paulo e Pedro, João”.
Mas se o poeta se arriscar a tal desvio, por exemplo, Desportes em:
Mon tcint pâle et ma voix, mon ocil pleurant sans cesse,
[Minha cor pálida e minha voz, meus olhos chorando sem cessar,]
21
à medida que progredia na história. Fenômeno talvez generalizá-
vel, que permitiria definir a modernidade estética, já que cada arte
involui, por assim dizer, aproximando-se cada vez mais de sua pró
pria forma pura, a poesia do poético puro, da mesma forma que a
pintura do pictural puro através da arte abstrata. Porém, essa é
uma perspectiva teórica à qual não queríamos sujeitar nossa análise.
Seja qual for a interpretação que dele se faça, o fato estatistica
mente comprovado de um aumento progressivo de certos caracteres
linguísticos, através de três grandes momentos da história literária,
constitui por si só um resultado interessante.
Resta um último problema metodológico, Queremos comparar
a poesia com a prosa, e por “prosa” entendemos o uso, isto é, o
conjunto das formas estatisticamente mais frequentes na linguagem
de uma mesma comunidade linguística. A esse título, qualquer usuá-
rio é capaz de julgar o que é prosa ou não. Basta confiar na sua
própria espontaneidade.
M. JOURDAIN
Et comine Von parle, qu/cst-cc donc que cela?
LE MAITRE DE PHILOSOPHIE
De la prose.
M. JOURDAIN
Quoi! Quand je dis, Nicolc apportcz-moi mes pantoufles
Et me donnez mon bonnct de nuit, c’est de la prose?
LE MAITRE DE PHILOSOPHIE
Oui, monsieur.
22
de prosa escrita, a do romancista, a do jornalista, a do cientista,
„para__citar apenas
x as mais correntes. Qual escolher como"norma?
É claro que devemos optar pelo escritor menos preocupado com
fins estéticos, isto é, o cientista. INa linguagem deste, o desvio não
é nulo, mas é certamente mínimo.
Com efeito, definido como desvio, o estilo não é mais uma
categoria regida pela lei do tudo ou nada. Linguagem natural e
linguagem de arte são dois pólos entre os quais se estabelecem, à
distância variável de um ou de outro, as produções escritas efetivas.
Sem dúvida, a prosa literária tem processos próprios mas, como
teremos a ocasião de verificar, emprega um_ grande número de pro
cessos que caractcrizam o poema. Entre poesia e prosa romanesca, a
diferença é menos qualitativa que quantitativa. É pela freqiiência
do desvio que esses dois gêneros literários se distinguem, podendo
a diferença de freqiiência ser a menor possível. Entre um trecho de
prosa romanesca — de Chateaubriand, por exemplo — c o que é
classificado como poema em prosa, a fronteira é muito indecisa.
Só o verso regular parece submeter-se à lei do tudo ou nada. Um
texto é rimado ou não, metrificado ou não, mas veremos que isso
não passa de uma primeira aparência e que a própria versificação
apresenta diferenças de graus. Mais ainda ao nível semântico, o
desvio nunca é total. Talvez nenhum poema seja poético cem por
cento, e é sempre dc maneira um tanto arbitrária que tal texto for
temente estilizado é classificado como poema em prosa ou prosa
literária. Os dois gêneros praticam os mesmos tipos de desvio e a
diferença está apenas na frequência, ou seja, numa variável pratica-
mente contínua.
Podemos figurar o fenômeno de estilo por uma linha reta cujas
extremidades representam os dois pólos, pólo prosaico de desvio
nulo e pólo poético de desvio máximo. Entre os dois, distribuem-se
os diferentes tipos de linguagem efetivamente praticados. Mais perto
do pólo máximo encontra-se o poema, mais perto do outro pólo
situa-se, com certeza, a linguagem dos cientistas. Nesta, o desvio
não é nulo, mas tende para zero. É numa linguagem desse tipo
que encontramos a melhor aproximação daquilo que Roland Barthes
chama “grau zero da escritura”; é com ela que confrontaremos o
poema sempre que for necessário 14. De qualquer modo, isso é apenas
23
uma preocupação de rigor, uma vez que cada usuário é competente
para julgar o que é o uso, desde que se trate de sua língua materna.
No entanto, é mais prudente recorrer a juízes para testar a validade
da intuição, como tivemos o cuidado de fazer.
*
*
Considerar a poesia como um fato semelhante aos outros, cien-
tificamcnte observável e quantitativamente determinável, é condenar-
-sc a entrar em choque com o senso comum. Hoje em dia, a poesia
é tão sacralizada que qualquer tentativa para esclarecer seus meca
nismos corre o risco de ser encarada como sacrilégio. Ciência da
poesia? A expressão é tão blasfematória quanto paradoxal, já que a
poesia está, como nós próprios reconhecemos, nos antípodas da
ciência.
Mas convém denunciar uma vez mais uma confusão sempre
renascente entre a observação e o fato observado. A poesia opõe-se
à ciência como fato, mas tal oposição não presume o método de
> observação adotado. A diferença entre astrologia e astronomia não
está nas estrelas, mas no espírito do homem que as estuda. Nada,
no fato poético em si, se opõe a priori a uma tentativa de observa
ção e descrição científica. É certo que,_neste caso, o fato é parti
cularmente complexo, obscurò7<evanescente.; O próprio Valéry dizia:
“Indefinível entra na definição”? Contudo, deve-se eliminar outra
confusão. Se a obscuridade constitui um caráter necessário do
poético como tal, isso é também verdadeiro para o “consumidor”,
o sujeito estético que cumpre o ato de contemplação, mas essa
obscuridade fenomenológica não é necessariamente obscuridade ao
nível reflexivo. O fato de conhecer os mecanismos do fenômeno
não impede absolutamente que tais mecanismos atuem ao nível
imediato. Há uma evidência da percepção contra a qual o conheci
mento reflexivo nada pode fazer. A Terra continuou imóvel para
nós, depois que soubemos que ela gira.
Outra dificuldade parece surgir do fato de que a poética se
exprime em prosa. A prosa é a metalinguagem da qual a poesia e a
linguagem-objeto.- Essa heterogeneidade fundamental parece conde
nar a poética a não alcançar a própria essência dc seu objeto: ela
empobrece irremediavelmente a poesia quando a explica em piosa.
Porém, mais uma vez, convém distinguir entre o ato de consumo,
que é estético, e o ato de reflexão, que é científico. Sentir o poema
24
não é conhecê-lo, conhecê-lo não é senti-lo. É normal que esses dois
atos diferentes se exprimam em linguagens diferentes.
De qualquer modo, é preciso escolher. Ou a poesia é uma graça
vinda do céu, que se deve receber em silêncio c recolhimento, ou
decidimos falar dela; neste caso, é preciso tentar fazê-lo de uma
maneira positiva. Muitos críticos preferem falar da poesia só poe-
ticamente. Seus comentários e explicações são um segundo poema,
superposto ao primeiro, lirismo sobre lirismo. Georges Mounin cita
alguns exemplos: “Na poesia, trata-se de fazer de maneira evidente
certa operação do espírito, de restituir seu equivalente assimilável
por meio exclusivo da física das palavras. A missão própria da poesia
c oferecer ao mais sólido da linguagem e ao mais misterioso do
mundo o lugar de uma misteriosa coincidência”15. Tais fórmulas
são vãs, porque não são claras nem verificáveis, e fazem de um
problema um mistério. Pelo contrário, deve-se colocar o problema
de maneira que certas soluções sejam concebíveis. É possível que as
hipóteses que apresentamos aqui se revelem falsas, mas pelo menos
elas têm o mérito de oferecer o meio de provar que o são. Será
então possível corrigi-las ou substituí-las até encontrar a verdadeira.
Aliás, nada nos garante que neste assunto a verdade seja acessível,
e a investigação científica pode finalmente revelar-se inoperante. Mas
como sabê-lo antes de experimentar?
25
Capítulo I
O PROBLEMA POÉTICO
27
“uvular”. Do ponto de vista substancial, vale dizer, acústico e ar-
ticulatório, a diferença é tão importante quanto a que separa “r”
de “1”. Foneticamente, portanto, os dois “r” representam dois sons
distintos. Mas essa diferença fonética não é linguística, porque não
há em francês duas palavras que se oponham por esta única diferença,
como “rampe” se opõe a “lampe”, por exemplo.
Do mesmo modo, é possível distinguir a forma ce a substância
do conteúdo. A substância é a realidade, mental ou ontológica; a
forma é essa mesma;;realidade tal como é estruturada pela expressão.
•Uma palavra só adquire sentido pelo jogo de suas relações de opo
sição com as outras palavras da língua. Assim, para retomar um
exemplo de Hjelmslev: "... the part of the spectrum that is co-
vered by our word green is intersected in Welsh by a line that as-
signs a part of it to the same area as our word blue while the En-
glish boundary between green and blue is not found in Welsh” 17.
Assim, para uma mesma realidade objetiva, o espectro das cores,
as palavras tomam em cada língua um sentido diferente, conforme
o sistema de suas oposições respectivas. “A língua, dizia Saussure,
é uma forma e não uma substância”.
Esse ponto de vista “formal” que o estruturalismo aplica à
língua será por nós aplicado à linguagem, quer dizer, à própria
mensagem. Dentro de uma mesma língua, prosa e poesia distinguem
dois tipos diferentes de mensagem. Ora, duas mensagens podem
por sua vez opor-se seja pela forma, seja pela substância, c isso tanto
no plano da expressão como no do conteúdo. É na forma que iremos
procurar a origem da diferença, divergindo assim da poética tradi
cional que, até há pouco, a procurava quase exclusivamente na
substância.
Consideremos primeiro o plano da expressão, isto é, a dicotomia
verso-prosa. Neste caso, a concepção “substancialista” do verso
parece derivar de sua própria definição, Com efeito, todos os sis-
temas de versificação baseiam-seí em normas convencionais cuja ca-
racterística comum é lançar mão só das unidades não-significantes
28
i
da língua. Para considerar apenas o verso regular francês, ele
baseia-se no metro e na rima, ou seja, na sílaba e no fonema. Ora,
sílaba e fonema são unidades menores que a palavra ou monema,
isto é, que a unidade mínima de significação, Que uma mensagem
comporte tal ou tal número de sílabas, isso não mudai sua significação,
do mesmo modo que o sentido de uma palavra não se altera quando
ela rima ou deixa de rimar com outra.
Por conseguinte, metro e rima não parecem caracteres linguis-
ticamente pertinentes. Apresentam-se como uma super-estrutura,
que modifica apenas a substância sonora, sem influência funcional
sobre o significado. Portanto, do ponto de vista propriamente lin
guístico, o discurso versificado aparece como isomorfo à linguagem
não versificada. E se existe entre eles uma diferença estética é
porque ao primeiro se acrescenta, de fora, uma espécie de ornamento
sonoro capaz de produzir um efeito estético próprio. A linguagem
versificada identifica-se então à soma: prosa + música. A música
soma-se à prosa sem modificar nada de sua estrutura. Para retomar
a comparação saussureana da linguagem com o jogo de xadrez, a I
versificação seria semelhante àquelas peças artisticamente esculpidas, /
susceptíveis de representar um valor estético próprio, mas sem ne-(
nhuma relação com a partida de xadrez, considerada na sua estrutura
e funcionamento.
Esta concepção do verso talvez não seja totalmente falsa. Consi
derações de estética sonora — eufonia, eurritmia, — certamente não
são estranhas ao poeta. Há uma “música” do verso que agrada
por si mesma, como prova o prazer que podemos sentir ouvindo
versos de uma língua desconhecida. Um esteticista inglês, C. M.
Valentine, declara sentir certo prazer em recitar “barbara celarent
darii ferio”, o que prova que um ritmo como este, de fórmula 3333,
é capaz de agradar ao ouvido. Assim também, a repetição regular
dos mesmos sons apresenta certo valor hedônico, como se observa
nas crianças. Mas não acreditamos que tal valor constitua a função
única, nem a mais importante, da versificação.
Com efeito, a essa concepção podemos opor argumentos de fato.
Primeiro, a relativa pobreza de recursos sonoros de que dispõe a
música verbal. Sabe-se que o verso foi originalmente cantado, mas
também que deixou de sê-lo. O poema que estudamos é um poema
dito, ou mesmo lido. Assim sendo, ele renunciou a uma parte con
siderável de seus recursos musicais. Considerando apenas a duração,
29
Georges Lote18 mostrou que a relação entre a longa e a breve na
declamação é somente de 1 para 7, ao passo que no canto a relação
entre a semifusa e a semibreve é de 1 para 64. Da mesma maneira,
ao passar do canto para a fala, a voz reduz consideravelmente a escala
de intensidades, e mais ainda a escala de alturas. Henri Bremond
observava justamente: “frágil música se comparada à verdadeira,
Baudelaire e Wagner” 19.
Uma objeção da mesma ordem pode ser feita a respeito da
tentativa chamada “letrista”. O letrismo é interessante pelo seu
próprio fracasso. Teve o mérito de levar até o fim a lógica do
substancialismo. Se é verdade que os sons articulados do poema
têm um valor estético próprio, por que não jogar com eles livremente,
sem se preocupar com os imperativos do sentido? E por que limitar-
-se apenas às combinações de fonemas autorizadas pela língua?
Portanto, o letrismo primeiro inventou suas próprias palavras e,
foi ainda mais longe, inventou seus fonemas ou, mais exatamente,
seus elementos sonoros. Criou assim uma espécie de música con
creta, talvez esteticamente válida, mas que não pode absolutamente
ser colocada na categoria das artes da linguagem. Com efeito, a
linguagem é significação, e esta palavra não deve designar — meta
foricamente — tudo aquilo que é capaz de sugestão ou de “expres
são”, mas sim aquele processo de “remessa para”, que implica a
transcendência do significado, ou seja, a dualidade, percebida como
tal, dos dois termos do processo semiológico.
O letrismo pretendeu ser poema. Com isso, condenou-se a
si próprio: um poema que não significa não é mais poema, porque
não é mais linguagem20.
Para provar experimentalmente esse fato, seria necessário com-
parar dois textos idênticos pelo som e diferentes pelo sentido, o
que é impossível por definição. Mas Raymond Qucneau deu um
passo nesse sentido, com seu processo de “isovocalismo”, que con
siste em tomar um verso e dar seu equivalente sonoro, limitando-se
apenas às vogais. O verso de Mallarmé:
30
Lc vierge, lc vivacc et lc bei aujourd’hui
[O virgem, o vivaz c o belo hoje]
dá então:
Lc liège, lc titanc d lc sei aujourd’hui
[A cortiça, o titânio c o sal hoje]
51
!
i
para transmitir uma informação sobre as coisas que as próprias coisas
nos forneceriam mais adequadamente se pudéssemos percebê-las. Se,
na falta de um relógio, eu perguntar a alguém que horas são, sua
resposta: “São duas horas”, fornece-me uma informação idêntica
à que eu teria obtido se eu mesmo olhasse o mostrador do relógio.
A linguagem, portanto, é um simples intermediário codificado
j da própria experiência. De modo que a comunicação verbal supõe
3uás operações inversas: a codificação, que vai das coisas às pala
vras; a descodificação, que vai das palavras às coisas. Compreender
um texto não é porventura discernir o que se esconde por detrás
das palavras, ir das palavras às coisas, em suma, separar o conteúdo
de sua própria expressão?
Objetar-se-á que há casos em que o próprio pensamento não
pode conceber-sc sem as palavras que o exprimem. Os psicólogos
vêm repetindo que não há pensamento sem linguagem, que a lin
guagem não é a roupa, mas o próprio corpo do pensamento. O que
parece ser particularmente verdadeiro em relação à idéia abstrata,
que só existe quando é nomeada. Mas solidariedade não quer dizer
identidade: embora o pensamento não possa dispensar a expressão,
isso não prova que esteja ligado a tal expressão determinada. É sem
pre possível relacionar o pensamento, sobretudo o pensamento abs
trato, com expressões diferentes, e a tradutibilidade, tanto para
outra língua como para a mesma, é uma prova de que o conteúdo
permanece distinto da expressão.
Traduzir é dar duas expressões diferentes de um mesmo conteúdo,
O tradutor entra no circuito da comunicação de acordo com o se-
guinte esquema:
Remetente • mensagem I tradutor -> mensagem II
■
destinatário.
A tradução realiza-se se a mensagem II for semanticamente
li equivalente à mensagem I, isto é, se a iinformação transmitida for
a mesma. Certamente, a tradução é• um exercício difícil, contra o
32
Por conseguinte, temos o direito de admitir a autonomia do
conteúdo, pelo menos no que concerne à linguagem de tipo cientí
fico, c basear neste princípio a subordinação da expressão ao con
teúdo. A linguagem é simples veículo do pensamento, é o meio do
qual este é o fim, e nunca se sabe a priori se o mesmo fim não pode
ser atingido tão bem, ou talvez melhor, por outros meios. Podere
mos sempre traduzir uma mensagem em outras palavras, seja para
torná-la mais acessível, seja, como faz o professor, para ter certeza
de que o aluno compreendeu. É esse exercício eminentemente pe
dagógico que se chama “explicação de texto”. Na escola, o pro
fessor aplica-o indiferentemente a textos de todos os gêneros, tan
to literários como filosóficos, tanto à poesia como à prosa. Ora,
o problema é justamente esse. A autonomia do conteúdo, atestada
pela tradutibilidade, é indiscutível quando se trata de textos não
literários. Será também o caso de textos literários, mais precisa
mente da poesia?
Talvez a tradutibilidadc seja justamente o critério que permite
diferenciar os dois tipos de linguagem. Eis aí um fato que a má
quina de traduzir pode comprovar22. Todo o problema se resume
em saber qual a causa da intradutibilidade poética.
Para resolver essa questão é necessário mais uma vez distin
guir a forma e a substancia do conteúdo. A tradução substancial é
possível, só a tradução formal é que não é. Um grande especialista
desses problemas diz: “A tradução consiste em produzir na língua
de chegada o equivalente natural mais próximo da mensagem da
língua de partida, primeiro quanto à significação, segundo quanto
ao estilo ” 24. Temos aí os dois níveis da operação. A substância
do conteúdo é a significação, a forma é o estilo. De tal modo que,
quando a língua de partida e a língua de chegada são ambas prosa,
o nível formal perde toda pertinência, porque a prosa, por definição,
é o grau zero do estilo. É sempre possível traduzir exatamente um
texto científico para outra língua ou para a mesma, justamente por
que neste caso a expressão permanece exterior ao conteúdo. 'É rigo-
2 33
rosamente a mesma coisa dizer: “São duas horas da tarde”, ou “São
cartorze horas”, ou “It is two o’clock p. m.”. Mas as coisas mudam
quando o estilo intervém: a expressão dá ao conteúdo uma forma
ou estrutura específica que é difícil, ou impossível, dar de outro
modo. De sorte que se pode guardar o sentido do poema (na sua
substância) e perder a forma, e com ela a poesia.
Para compreender melhor, tomemos um exemplo banal. Com-
paremos estas três fórmulas
a) cabelos loiros
b) loiros cabelos
c) cabelos de ouro
34
ele dá a seguinte versão ligeiramente diferente:
b) Et les fruits passeront les promesses des flcurs
35
nos espera aqui. As fórmulas que acabamos de empregar não pe
sam em favor de uma espécie de realismo da expressão, segundo o
qual só as palavras seriam dotadas de um poder estético que as
coisas não teriam. Mais uma vez, a linguagem remete para as coisas
e, afora sua musicalidade própria, cujos limites traçamos, ela não
possui nada que não lhe seja emprestado pelas coisas. O que se
deve dizer é que as coisas só são poéticas cm potencial e que cabe
à linguagem fazer com que este potencial passe a ser ato. A rea
lidade, tão logo é falada, entrega seu destino estético nas mãos da
linguagem. Ela será poética ser for poema, prosaica se for prosa.
Talvez este potencial esteja desigualmente distribuído e talvez
existam coisas com vocação poética. A lua, por exemplo, esse tema
inesgotável dos poetas de todas as épocas e nações, deve receber
esse privilégio de algum caráter intrínseco. (O próprio Mallarmé
que, cansado dessa obsessão, tinha jurado expulsá-la, teve que admi
tir um dia: “Ela é poética, a danada!”). Esse problema pertence
a uma poética das coisas, que ainda está para ser feita. Mas tam
bém neste caso, diga-se de passagem, será talvez necessário distinguir,
na própria substância, um nível que seria formal em relação a um
nível substancial, de grau inferior, que poderia ser relacionado com
a estrutura da percepção por oposição à coisa percebida 2C. No que
concerne ao poema, não é com as próprias coisas que lidamos, mas
com as coisas expressas através da linguagem. Assim sendo, existe
uma dominância da linguagem em relação às coisas. A expressão
é soberana para atualizar ou não a potencialidade poética do con
teúdo. A lua é poética como “rainha da noite” ou como “foice de
ouro”; é prosaica como “o satélite da terra”. Daí resulta claramente
que a tarefa específica da poética literária é interrogar não o con
teúdo, que permanece o mesmo, mas a expressão, a fim de saber
em que consiste a diferença.
Devemos endossar plenamente aquela verdade expressa por
Etienne Souriau quando condena “a exigência de um universo de
jardins, florestas, lagos, belos rostos femininos, luar terno ou melan-
eólico ou neblinas matinais, rosas ou rouxinóis, mitologias gregas
ou bretãs; sobretudo nada de _______
avião,_ _____ J.J ou chaminés da fá-
automóvel
brica” 27. E acrescenta: Enganam-se aqueles que pensam poder
36
classificar as coisas uma por uma, como próximas ou distantes do
poético’ . De fato, a história literária ignorou essa exigência: a
poesia seguiu a evolução das sociedades, não deixou de se democra
tizar. A princípio reservada aos deuses c às deusas, hoje ela abriu
suas portas à multidão de plebeus. Da carniça de Baudelaire ao
metrô de Prévert, os seres e coisas que se julgavam excluídos da
poesia por uma espécie de maldição natural mostraram-se dignos
de penetrar nela, quando as palavras forçavam sua entrada.
Mas a poética parece atrasada em relação à poesia. Na sua
grande maioria, críticos e comentaristas permanecem fiéis à tradição
da antiga retórica, que distinguia os “gêneros” segundo o objeto de
que tratavam. As categorias literárias ajustavam-se às categorias
das coisas, a estética era deduzida da ontologia. Assim, Possidônio
determinava que o poema reproduzisse “os problemas humanos e
divinos”, e Mathieu de Vendôme prescrevia-lhe um “conteúdo grave
e sério”. Ainda no século XVII, a comédia podia permitir-se uma
expressão em prosa, ao passo que a dignidade da tragédia lhe impu
nha a linguagem do verso.
Os críticos de hoje teimam em procurar esse “conteúdo grave
e sério” no poeta, como se o valor estético do poema residisse no
que ele diz, e não na maneira como o diz. O poema só é analisado
ao nível ideológico, desprezando-se o nível linguístico ou considerando-
-o apenas a título de índice ou sintoma. Há mais interesse pelo
poeta que pelo poema, a explicação literária torna-se criptológica
a obra é um efeito que permite remontar às causas. Ao tornar-sc
psicanalítica ou sociológica, no fundo, a ciência da literatura perma
neceu no velho problema das fontes. A crítica antiga procurava as
fontes literárias e julgava ter dito tudo sobre a obra quando desco
bria sua filiação histórica. A crítica atual procura as fontes psicoló
gicas ou sociais e julga ter explicado a obra quando consegue rela
cioná-la com uma infância ou um ambiente. Põe-se à busca de um
significado verdadeiro, diferente do significado aparente, que daria
a chave da obra. Assim agindo, perde de vista seu verdadeiro objeto,
porque procura por detrás da linguagem uma chave que se encon
tra na própria linguagem, como unidade indissolúvel do significante
e do significado.
Entenda-se: não procuramos absolutamente contestar a vali-
dade das interpretações psicanalíticas ou sociológicas. Essas duas
ciências têm todo o direito de interrogar a obra literária, assim como
qualquer outra manifestação da realidade humana que constitui seu
37
objeto. Só queremos contestar a competência estética que elas, tal
vez involuntariamente, às vezes se arrogam. Ao interrogar a lin
guagem do poeta como se fosse um sintoma ou um documento,
perde-se aquilo que o distingue, que é a beleza. Sobre o único pro-
\ plema pertinente para o poeticista — cm que a poesia difere da prosa?
— tanto a psicanálise como a sociologia nada têm a dizer. Uma
metáfora pode perfeitamente ser o sinal de uma obsessão, não é
por isso que ela é poesia, mas sim porque é metáfora, quer dizer,
certa maneira de significar um conteúdo que, sem qualquer pre-
juízo, poderia ser expresso em linguagem direta, Por detrás deste
verso de Baudelaire:
38
dc nossos poetas, sobretudo Mallarmé. Na obra desse poeta consi
derado “obscuro”28, alguns esforçam-se para descobrir abismos me
tafísicos. Talvez existam, e fique claro mais uma vez que não preten
demos absolutamente negar a existência dc um conteúdo da lingua
gem poética. Mas quando se fixa só esse conteúdo, seja qual for
seu valor de verdade, profundidade ou originalidade, corre-se o risco
de fazer crer que ele é o único detentor do valor poético do poema.
O fato é ainda mais paradoxal tratando-se de Mallarmé, poeta que
foi também poeticista e exprimiu-se muito claramente sobre sua
própria estética. Ora, ninguém mais que ele tomou consciência tão
clara da natureza lingiiística de sua arte. “Não é com idéias que
se fazem versos, é com palavras”, dizia ele, e definia a si próprio
por esta fórmula surpreendente: “Eu sou um sintaxista”. Apesar
disso, ainda há quem se interesse mais pela ideologia que pela lingua-
gem, mais pelo que o poema diz que pela maneira como diz29.
Assim, a propósito deste verso:
Victorieusemcnt fuit le suicide beau,
[Vitoriosamente foge do suicídio belo]
OS exegetas discutem, interminavelmente, sobre o sentido da palavra
“suicide”. Uns (Mauron, Gengoux) tomam o termo no sentido li-
teral; outros (Thibaudet, Davies Gardner) veem nele um pôr de
sol. Ora, essa discussão corre o risco de mascarar um fato que é
importante: o mesmo sentido poderia, sem prejuízo, exprimir-se em
prosa. Por exemplo:
Ayant surmonté la tentation d’un beau suicide,
[Tendo vencido a tentação de um belo suicídio]
para a primeira versão;
Ayant détourné mon regard d’un bcau coucher dc solcil
[Tendo desviado meu olhar dc um belo pôr dc sol]
para a segunda.
J9
tença está primeiro na forma sonora. Mas não é tudo, Há um se-
gundo nível, léxico-gramatical, pelo qual o sentido adquire sua es-
pecificidade poética.
Todavia, o problema levantado pelo exegeta não é gratuito:
o poema tem um sentido e é preciso saber qual é esse sentido. Neste
verso de Valéry:
Ce toit tranquille ou inarchent des colombcs,
[Esse teto tranquilo em que andam as pombas]
40
Para compreender essa oposição, é preciso distinguir na própria fi-
gura a forma e a substância. A forma é a relação que une os ter
mos, a substância são os próprios termos. Tomemos o caso da me
táfora. Inicialmente, ela é construída sobre uma relação complexa,
que analisaremos depois, entre um termo e seu contexto. Tal re
lação, que podemos chamar “lógica”, é idêntica a si mesma em
metáforas cujos termos são radicalmente diferentes. Em “noite
verde” (Rimbaud) e “ “ soluçante idéia” (Mallarmé), temos dois pa-
res de termos e, por conseguinte,, um conteúdo completamente dis-
tintos. Mas a relação que dentro de cada fórmula une o adjetivo
mesma, “Verde” é para “noite” o que “solu
ao substantivo é a mesma.
çante” é para “idéia
ideia”. A estrutura sintagmática é idêntica e é
essa estrutura que faz de cada uma dessas fórmulas uma metáfora.
O que se pode simbolizar da seguinte maneira (designando
por So o► significado de cada termo e por R a relação):
Teoria substancialista: Prosa =5 Soj + So2;
------- = » So3
Poesia + So.,.
Teoria estruturalista: Prosa =(Sox) Rx (So2);
Poesia =(SoJ R2 (So2).
A diferença Ri/R2 é uma diferença formal que, como tal, pode
ser idêntica em significados diferentes e diferente em significados
idênticos.
Portanto, quando o poeta cria uma metáfora original, o que ele
inventa são os termos, não a relação: encarna uma forma antiga
numa substância nova. Aí está a sua invenção poética. O processo
é dado, resta utilizá-lo. A arte poética, ao longo de sua história,
certamente não deixou de inventar figuras originais, vale dizer, fornias
novas, mas, como nas outras artes, também aqui não são sempre
os maiores artistas que forjam as técnicas inovadoras. Na maioria
dos casos, limitam-se a explorar o arsenal das técnicas existentes.
Portanto, a figura de invenção não é original na forma, mas apenas
nos termos novos em que o gênio do poeta soube encarná-la.
Mas ocorre que algumas dessas realizações são retomadas, ca
indo então no uso. Temos então as “figuras do uso”, nas quais
forma e substância, relação e termos são dados previamente. Assim,
em “chama tão negra” (Racine), temos uma fórmula aparentemente
ousada, mas que na realidade não contém nenhum traço de invenção.
“Chama” por “amor” e “negra” por “culpado” são de uso corrente
41
na época. A inteligibilidade para o público culto é imediata, Por
essa razão, desapareceu o desvio e com ele o efeito estilístico.
Se a figura é desvio, a expressão “figura de uso” é uma con
tradição nos termos, já que o usual é a própria negação do desvio.
De fato, se a expressão conserva algum sentido, é porque existem
dois usos, um que c geral, difundido entre o conjunto dos membros
da comunidade linguística, outro que é especial, reservado apenas
a uma parte dessa comunidade. Dentro da língua, como é sabido,
existem sub-línguas, patuás, gírias ou jargões, que pela sua própria
especificidade conservam um valor estilístico particular. O con
junto das figuras de uso utilizadas pelos poetas tem um valor “nobre”,
é uma marca de dignidade literária. Dizer “chama” por “amor”
é, para a mensagem, como trazer a indicação: “eu sou poesia”.
Resulta daí um “efeito” previsível que a antiga retórica tinha
codificado. Assim, segundo o Traité de stile de Mauvillon (1751),
numa série de sinónimos, existe um termo neutro, chamado “medío
cre”, ao passo que todos os outros são estilisticamente marcados.
Por exemplo, “face” é de estilo “sublime”, “cara” de estilo “burles
co”, ao passo que “rosto” é de estilo “medíocre”. As metáforas de
uso num poeta apenas acrescentam novos sinónimos à lista, e estes,
devido ao emprego reservado, são portadores da marca “estilo
poético”.
Mas seu poder se limita a isso, e logo degenera cm estilo “aca
dêmico” ou “precioso”. Ora, a antiga poética progressivamente con
fundiu “figura” e figura de uso, porque a arte poética consistia
apenas em servir-se destas formas estereotipadas ou “clichés dis
poníveis”. De acordo com G. Antoine, podemos distinguir dois
tipos de fatos estilísticos, uns que ele chama “de escolha”, outros
“de criação ”32. O emprego das figuras de uso liga-se à estilística
de escolha: entre as formas oferecidas pela língua, o poeta limita-se
a escolher as mais raras, que são marcadas pelo signo literário.
A invenção é nula e o efeito degradado. Compreende-se por que os
modernos, principalmente os românticos, quiseram libertar-se desses
ouropéis antiquados. A frase de Hugo: “Guerra à retórica” não
tem outro sentido. Ele ataca a retórica fixada, as fórmulas feitas
que atravancam inutilmente a linguagem, mas não a retórica viva e
atuante, sem a qual não haveria poesia.
42
A querela da metáfora renasce periodicamente, La Bruyère
já exclamava: “Por que não dizem: está chovendo!”, e todos co-
nhecem a diatribe de Âlccste contra o soneto de Oronte. Mais re
centemente, André Breton replicava: “Não, senhor, Saint-Pol Roux
não quis dizer. . . se tivesse querido dizer, ele teria dito”. Há aqui
uma necessidade dc retorno à linguagem natural, uma reivindicação
de “literalidade”, pela qual o poeta julga conquistar um mérito mais
elevado. A poesia não se conforma muito em ser apenas uma forma
de linguagem, uma determinada maneira de falar. Como a ciência
ou a filosofia, ela quer ser expressão de verdades novas, descoberta
de aspectos ignorados do mundo objetivo. Assim agindo, é preciso
ter a coragem dc dizê-lo, ela comete um erro mortal. A poesia não
é ciência, mas arte, e arte é forma e nada mais que forma. O poeta
pode revelar novas verdades, se quiser; não é por isso que ele é
poeta. A linguagem natural, por definição, é a prosa; a poesia é
linguagem de arte, vale dizer, artifício. E certos poetas de hoje,
que julgam falar a linguagem natural, ficariam muito surpresos em
ver uma análise aplicada às suas obras encontrar nelas as mesmas
figuras tradicionais, metáforas, silepses ou anacolutos, há muito ca
talogadas c classificadas pela retórica clássica. As “figuras” não são
ornamentos inúteis: constituem a própria essência da arte poética.
São elas que liberam a carga poética que o mundo esconde e que
a prosa mantém cativa.
Segundo Valéry, Mallarmée parece ter percebido isso: “Na
ordem da linguagem, as figuras — que normalmente desempenham
um papel acessório, parecendo intervir só para ilustrar ou reforçar
uma intenção, como se fossem adventícias, semelhantes a ornamentos
que a substância do discurso pode dispensar — tornam-se elementos
essenciais na reflexão de Mallarmé.”33 Mais ainda: “as rimas, as
aliterações, dc um lado, as figuras, tropos e metáforas, de outro,
deixam de ser detalhes e ornamentos do discurso que se possam su
primir: constituem propriedades substanciais da obra;; o fundo não
é mais causa da forma, é um dos efeitos.” 34 Prolongando o pensa-
mento do mestre, Valéry declarava: “Se procurar informar-me hoje
sobre esses usos, ou 1talvez abusos de linguagem, reunidos sob o
nome vago e geral
g de “figuras”, nada mais encontrarei que os ves-
tígios esquecidos da análise bastante imperfeita que: os antigos ten-
taram fazer dos fenômenos “retóricos”. Ora, C essas figuras tão des-
43
prezadas pela crítica dos modernos desempenham um papel de pri
meira importância na poesia. . . Parece que ninguém tentou reto
mar essa análise. No exame aprofundado dessas substituições, des
sas notações contractas, desses equívocos voluntários e desses expe
dientes, até aqui tão vagamente definidos pelos gramáticos, ninguém
procura as propriedades que eles supõem.”35 Depois que essas li
nhas foram escritas, o preconceito anti-retórico modificou-se um pouco,
pelo menos entre os linguistas, e a estilística moderna reconhece sua
dívida para com essa velha ciência, ao mesmo tempo em que tenta
renová-la. Nosso estudo tem a ambição de inscrever-se dentro dessa
tentativa.
Na verdade, a antiga retórica foi construída numa perspectiva
puramente taxinômica. Procurou apenas descobrir, nomear e classi
ficar os diferentes tipos de desvio. Foi uma tarefa fastidiosa, porém
necessária. Todas as ciências começaram por aí. Mas a retórica
parou nesta primeira etapa, não procurou a estrutura comum às
I diferentes figuras. É precisamente esse o objetivo de nossa análise.
Será que entre a rima, a metáfora e a inversão, existe algum traço
comum capaz de explicar sua eficácia comum? Cada uma dessas
figuras pode ser considerada como uma espécie de operador poético
que funciona de maneira própria e por conta própria. Mas se
todas produzem o mesmo efeito estético, se todas constituem o ar
senal dos meios utilizados pelo mesmo gênero literário determinado,
temos o direito de supor que todas têm uma natureza semelhante.
A retórica clássica situava-se realmente no nível formal, já que
toda figura é uma forma. Mas, ao insistir nas diferenças, ela ficava
próxima do termo material em que cada figura se encarna e encon
tra sua especificidade. A poética estrutural situa-se num grau su
perior de formalização. Procura uma forma das formas, um opera
dor poético geral do qual todas as figuras seriam apenas realiza
ções virtuais particulares, especificadas segundo o nível e a função
linguística em que o operador se atualiza. Assim, a rima é um ope
rador fónico, por oposição à metáfora, operador semântico; dentro
do seu próprio nível, como operador distintivo, ela se opõe ao
metro, operador contrastivo; ao nível semântico, a metáfora, opera
dor predicativo, opõe-se ao “epíteto”, operador determinativo.
Por conseguinte, nossa análise distribuir-se-á segundo os níveis
e segundo as funções. Em cada caso, só estudará uma figura parti-
cularmente representativa de sua função. Vale dizer que so um
44
pequeno número de figuras serão analisadas aqui. Era impossível,
evidentemente, estudar as duzentas e cinquenta figuras classificadas
pela retórica clássica. Nossa perspectiva é sintética e julgamos que
o que é verdadeiro para as figuras principais, provavelmente o seja
para todas as outras. Também não estudaremos exaustivamente ne
nhum desses processos: só a metáfora36 exigiria um volume inteiro.
E que dizer da versificação! Ao invés de nos perdermos em deta
lhes, pareceu-nos preferível para a nossa perspectiva procurar dis
tinguir os grandes traços, já que só a comparação das diferentes fi
guras entre si, esclarecendo uma pela outra, pode revelar sua estru
tura íntima. Compreenderemos melhor a rima ou a inversão, se as
compararmos com a metáfora: cada figura projeta sua luz sobre
todas as outras. Em resumo, não se trata de abarcar nestas pági
nas o conjunto da poética, mas apenas de levantar as preliminares
necessárias para a construção de uma hipótese, por sua vez susceptí-
vel de facilitar pesquisas futuras.
Por outro lado, só examinaremos neste estudo o primeiro tempo
de um mecanismo que, a nosso ver, comporta dois. O primeiro
tempo é negativo. Constitui-se como violação sistemática do código
da linguagem, porque cada figura se especifica como infração a uma
das regras que compõem esse código. Para nós, a poesia não é prosa
ntais alguma coisa. É antiprosa. Neste aspecto, ela aparece como
totalmente negativa, como uma forma de patologia da linguagem.
Mas esta primeira fase implica uma segunda, que é positiva. A poe
sia só destrói a linguagem corrente para reconstruí-la num plano su
perior. À desestruturação operada pela figura sucede uma reestru-
turação de outra ordem. Esta segunda fase só será abordada na
conclusão; o essencial de nossa análise será dedicado à fase negativa
porque, apesar de condição necessária da segunite, ela até agora
nunca foi objeto de um estudo sistemático. Ora, tal estudo apre
senta um particular interesse linguístico c psicológico. Esse código
da linguagem em relação ao qual a poesia se define não foi expli
citado em lugar nenhum. Ele não se confunde com a língua, nem
com a lógica, mas ultrapassa ambas. A poética pode justamente
ajudar-nos a conhecê-lo melhor, distinguindo as leis das quais cada
figura constitui uma violação. Sendo o estudo das formas anormais
da linguagem, ela permite compreender melhor como funciona a
linguagem normal.
(36) Por “metáfora” designamos aqui uma figura da qual, na reali-
dade, ela só constitui uma parte, como veremos no capítulo III.
45
Capítulo II
46
todos os recursos de seu instrumento. INãoNão utilizando os recursos
fónicos da linguagem, o poema em prosa aparece sempre como uma
poesia mutilada. O verso é um processo de poetização, e é como
tal que devemos estudá-lo.
Aqui, um esclarecimento. Ao situar o verso no nível fónico, não
caímos no erro substancialista que já denunciamos. Como veremos,
o verso só existe como relação entre o som e o sentido. Portanto,
é uma estrutura fono-semântica. Contudo, difere dos outros pro
cessos de poetização, como a metáfora, que se situa unicamente no
nível semântico. Para as necessidades da análise, devemos distingui
do dos demais, mas veremos que na sua estrutura profunda o verso
é uma figura semelhante às outras. Verso e metáfora têm estrutu
ras homólogas: a diferença entre ambos está apenas nos elementos
que as duas figuras utilizam. As dificuldades insolúveis que o verso
opôs à poética devem-se ao isolacionismo fonético. Para dizer a
verdade, é dcsalentador pesquisar, ainda que sumariamente, a co
piosa bibliografia que lhe foi consagrada. No fim, chegamos a
perguntar-nos se existe rcalmente algo que seja o verso francês.
Sc o considerarmos do ponto de vista da totalidade como relação
som-sentido, veremos as dificuldades diminuírem, se não desapare
cerem, ao mesmo tempo em que certos fatos até então inexplicados
a supressão dc pontuação por exemplo, encontrarão uma justificativa
O que é o verso francês? Pergunta aparentemente ingénua.
O verso obedece a regras convencionais e, por conseguinte, estas
regras dão-lhe a priori sua definição.
Todo verso é “versus”, ou seja, retorno. Por oposição à prosa
(“prorsus”) que avança linearmente, o verso volta sempre sobre
si mesmo. Gerard Hopkins dá-lhe a seguinte definição, conservada
por Jakobson: “discurso que repete total ou parcialmente a mesma
figura fónica” 37. O versus baseia-se em elementos sonoros variáveis
de uma língua para outra. Em francês, sabe-se que é o isossilabismo,
ou número igual de sílabas, que fundamenta a repetição. Conside
rando todas as sílabas iguais, chamaremos discurso versificado todo
discurso que se possa dividir em segmentos de igual número de
sílabas, pelo menos dois a dois. A isso se acrescenta a identidade
dos terminais ou rima, sempre dois a dois. Digamos que o verso
francês é cm primeiro lugar homométrico, em segundo homofônico.
47
Essa definição não deixa de apresentar numerosos problemas,
sobre os quais voltaremos demoradamente. Veremos que é con
testada por foneticistas eminentes, entre os quais George Lote. Por
enquanto, oporemos uma questão prévia. Uma boa definição deve
aplicar-se a todo o definido e somente ao definido. Ora, a definição
acima só se aplica ao verso regular. E o “verso livre”, ou seja, o
verso que não respeita nem o metro nem a rima? Devemos negar-
-Ihe a qualidade de verso? Tal procedimento não constituiria um
método científico válido, Ante uma definição que não abrange
o conjunto dos fatos observados, julgamos metodologicamente mais
proveitoso tentar refazer a definição antes de excluir sistematica-
mente os casos aberrantes.
De fato, os poetas que empregaram o verso livre consideram-no
como um verso autêntico; poetas consagrados como Claudel< ou
Saint-John Perse, para citar apenas alguns, usaram-no, e hoje a
jovem poesia francesa emprega-o quase exclusivamente. Quando
Claudel escreve em La Ville-.
J’inventai cc vers qui n9avait ni rime ni mèlrc
[Inventei aquele verso que não tinha rima nem metro]
48
rosamente positivo, queríamos encontrar tal caráter só naquilo que
é escrito.
Realmente, a poesia é feita para ser declamada.
declamada, Porém, nem
todos os declamadores recitam da mesma maneira e as diferenças
podem às vezes ser consideráveis, Os próprios foneticistas não estão
de acordo quanto à maneira de dizer• um verso. De onde vem tal
desacordo? A resposta é fácil, Nunca os poetas se preocuparam
em anotar na “partitura” qualquer indicação. No tocante ao ritmo,
sobretudo, teria sido fácil indicar com um signo o lugar dos acentos.
Os poetas nunca o fizeram. 7Portanto, se quisermos limitar-nos aos
dados objetivos indiscutíveis, devemos seguir o que o poeta pres
creveu explicitamente, ou seja, o texto escrito. É no dado gráfico,
portanto, que pretendemos encontrar o caráter procurado.
Resumindo, nossa definição deverá então satisfazer a três
condições:
1. ° Convir a todos os versos, regulares ou livres.
2. ° Não se aplicar a nenhuma espécie de prosa.
3. ° Basear-se apenas nos dados gráficos.
Existirá um caráter susceptível de satisfazer a essa tripla exi
gência? Sim, e pensamos que aquilo que podemos chamar “recorte”
do discurso versificado é capaz de fornecer o caráter específico em
questão.
*
* *
49
nômeno fisiológico exterior ao discurso, mas que se carregou natu
ralmente de significação linguística.
“A cadeia fónica, diz Saussure, tem como primeiro caráter o
fato de ser linear. . . Considerada em si mesma, ela é apenas uma
linha em que o ouvido não percebe nenhuma divisão suficiente ou
precisa”. 38
Ora, compreender o discurso é primeiro dividi-lo, ou seja, mar
car as relações de solidariedade variável que unem seus diversos
elementos. Solidariedade ao mesmo tempo lógica e gramatical, que
divide o discurso em partes que se encaixam: capítulos, parágrafos,
frases, palavras. Tal divisão opera-se normalmente segundo o sen
tido, mas é consideravelmente facilitada quando, aos limites mar
cados pelo sentido, acrescentam-se fronteiras marcadas pela voz. O
falante acha natural fazer uma parada de voz numa parada de sen
tido, e a pausa toma então uma significação precisa: marca a in
dependência semântica das unidades entre as quais se interpõe39.
Assim, a divisão semântica é acompanhada de uma divisão fó
nica paralela. Temos aí o exemplo de um fato geral cm toda a
extensão da língua, conhecido pelo nome de redundância. Sempre, ou
quase sempre, a língua significa mais de uma vez o que ela quer dar
a entender.
Da mesma forma, pode-se dizer que toda sequência é dividida
duas vezes, uma vez pelo sentido, outra vez pelo som. Esta seqiiên-
cia, por exemplo: “O tempo está bom. Vou sair”, é divisível em
dois grupos distintos, pelo som que marca uma pausa entre os dois
grupos e, ao mesmo tempo, pelo sentido que — pelo menos num
caso tão simples — bastaria para operar a divisão. Para fazer a
experiência, basta escrever a sequência de outro modo:
O tempo está bom vou sair
(38) Cours de linguistique générale, Paris, Payot, 5.a ed., 1962, p. 15.
[Tradução brasileira:: Curso de Linguística Geral, S. T Paulo, Ed. Cultrix
— Ed da Univ. de S. Paulo, 1969.]
(39) Portanto,
1 a segmentação do discurso depende da linguagem
“analógica”, É um dos fatos que mostram que a fala é muito menos arbi-
traria que a língua.
>0
. a organização do dado lingiiístico é consideravelmente
facilitada pela convergência dos dois fatores. Empregando a ter-
minologia <da Psicologia da Porma, poderíamos falar de “formas
fortes” em todos
----- j os casos em que dois fatores de estruturação atuam
no mesmo sentido, e de “formas fracas” no caso em que atuam
em sentido contrário.
No discurso normal, a composição das partes encaixadas cons-
titui uma fforma forte, pois o paralelismo fono-semântico atua em
todos os graus da divisão. Com efeito, a independência das unida
des componentes do discurso é relativa. Dois capítulos são mais in
dependentes entre si que dois parágrafos, e estes o são mais que
duas frases. A pausa encarrega-se de exprimir essas variações, com
uma duração proporcional ao grau de independência. Ao nível da
frase, onde a solidariedade psicológica dos elementos é acompanhada
de uma solidariedade gramatical, a língua escrita julgou conveniente
sobrecarregar os espaços em branco com signos particulares, chama
dos “signos de pontuação”. Em francês, há dois principais: o ponto
e a vírgula. Estes signos, que Damourette chama “signos pausais” 40,
não são os únicos a marcarem a pausa, já que todos os espaços em
branco têm esta função, mas assinalam uma articulação que é ao
mesmo tempo psicológica e gramatical. Entre ambos, há uma hie
rarquia: o ponto marca o fim da frase, isto é, de um conjunto que
pode existir isoladamcnte pelo fato de apresentar um sentido com
pleto. Quanto à vírgula, separa grupos que não podem existir
isoladamente, embora gozem de uma relativa autonomia. A vírgula,
diz Damourette, “representa as pequenas pausas que separam numa
frase certos elementos ligados de maneira bastante frouxa aos ter
mos com que sc relacionam” 41.
Tal é o sistema de organização do discurso que vigora na prosa,
E a linguagem versificada? Consideremos os dois versos seguintes:
Souvcnir, souvcnir, que me veux-tu? L’automnc
Faisait voler la grive à travers 1’air atone.
[Recordação, recordação, que queres de mim?
O outono/Fazia a torda voar através do ar parado.]
(Verlaine)
Entre os dois, intercala-se uma pausa chamada “pausa métrica”,
porque tem a função de significar que o metro está preenchido e o
(40) Por oposição aos “signos melódicos”, ponto de interrogação, de
exclamação, etc. Traité Modcrne de ponctuation, Paris, Laroussc, 1939, p. 10.
(41) Ibid., p. 13.
51
verso terminado. Ora, a pausa aqui não tem valor semântico: com
efeito, separa duas unidades estreitamente solidárias, o sujeito “au-
tomne” e o verbo “faisait voler”. Mas como distinguir a pausa
métrica da pausa semântica? Oralmente, ambas são marcadas por
silêncios e não há nenhum meio de diferençá-las. Assim sendo, cum
pre atribuir aos dois sistemas de pausa um mesmo valor, seja se
mântico, seja métrico, seja ambos. Em todos estes casos, trai-se
a estrutura ao mesmo tempo métrica e semântica do discurso. Os
silêncios, com efeito, decompõem a seqíiência em três grupos:
Souvenir, souvenir, que me vcux-tu? —
Lfautomne —
Faisait voler la grive à travers Vair atonc. —
>2
Tal dicção pode parecer aberrante. Ignorando o ponto, ela enfra
quece a estrutura da frase. A palavra “automne liga-se sem inter
mediário às palavras que a precedem, com as quais não se relaciona
sintaticamente e, ao contrário, separa-se das palavras que a seguem,
com as quais é sintaticamente solidária. Portanto, temos uma ruptu-
ra do paralelismo fono-semântico que normalmente garante a es
truturação da frase.
Não obstante, como veremos adiante, todos os fatos estão a
favor desta solução.
Primeiro, é bastante significativo o fato de nós termos supri
mido naturalmente os signos de pontuação para indicar este tipo
de dicção. Com efeito, adotamos assim uma forma de notação am
plamente praticada pela poesia moderna desde os fins do século XIX.
Essa recusa dc pontuação foi encarada como uma extravagância da
parte do poeta, mas devemos desconfiar de explicações semelhantes
quando sc trata dc um fenômeno tão generalizado. Com efeito, os
poetas souberam entender que o “conflito entre o metro e a sintaxe”
vinha da própria essência do verso. Os dois sistemas de pausa en
tram necessariamente em cm concorrência e, se quisermos salvar o
metro, devemos sacrificar a sintaxe. Talvez o objetivo impreciso
do verso seja mesmo deslocar a sintaxe, mas não nos antecipemos:
por enquanto, basta acrescentar' a nosso dossiê um fato que a poé-
tica nunca considerou com a devida atenção.
Apollinaire justificava a não-pontuação da seguinte forma: “É
uma novidade. Pareceu-me que a pontuação dificultava singular
mente o voo de um poema, que segue seu curso alado de uma só
vez. Evidentemente, não compreendemos, mas isso não tem im-
portância, não é verdade? ” 43 Assim, para Apollinaire, o verso não-
-pontuado se diz de uma só vez, isto é, sem marcar pausa, nem se-
quer onde o sentido exige. Por exemplo, estes dois versos de Aragon:
Jc cricrai jc crierai Ta Icvre est le verre ou
]’ai bu le long amour ainsi que du vin rouge.
[Eu gritarei cu gritarei Teu lábio éc o copo em que/ Bebi o
longo amor como sc fora vinho tinto]
55
contrário, omitir-se-á a pausa entre “je
]e crierai” e “Ta lèvre”, ou
seja, entre as duas frases. Nestes dois exemplos, a versificação pa
rece contrariar as regras do discurso normal: coloca uma pausa onde
o sentido a recusa, e não a coloca onde o sentido exige.
É verdade que os dois exemplos apresentados realizam um pro
cesso particular, conhecido como “enjambement”. O enjambement
é a frase que acaba no meio do verso. Tal recurso, como se sabe,
foi totalmente proscrito no século XVII, embora tenha sido pra
ticado no século anterior. Ronsard escrevia no prefácio póstumo
de La Plêiade: “Na minha juventude, eu julgava que os versos que
continuam em outro verso não eram bons para nossa poesia; no en
tanto, mudei de opinião depois da leitura de bons autores gregos e
romanos”. Mas enfim chegou Malhcrbe e, com ele, segundo Boileau:
Lcs Stanccs avcc grâcc apprirent à tomber
Et le vers sur le vers n’osa plus enjamber.
[As Estâncias com graça aprenderam a terminar/
E um verso cm outro verso não ousou mais continuar.]
Notemos que o “enjambement” foi retomado a partir dos ro
mânticos, e até sistematicamente praticado às vezes, em Hérodiade
de Mallarmé, por exemplo. Mas esse não é o problema essencial.
Com efeito, o “enjambement”, no sentido estrito, nada mais é que
um caso particular do conflito metro-sintaxe, observável em todos
os versos.
Tal conflito tem origem na concorrência dc dois sistemas de
pausa indiscerníveis. Para solucioná-lo, seria [preciso uma coinci-
dência perfeita entre pausa métrica e pausa semântica,. Ora, nenhum
poema francês conhecido realiza tal coincidência.
Consideremos estes dois versos famosos:
Ariane, ma soeur, dc quel amour blcsséc,
Vous mourutes aux bords ou vous futes laissée
[Ariane, minha irmã, de que amor ferida/
Morrestes nas margens em que fostes abandonada]
54
verso, as pausas rítmicas não estão marcadas por signos de pontua
ção e, consequentemente, não correspondem a pausas semânticas.
O que os clássicos fizeram foi uma redução ao mínimo da dis
cordância entre som e sentido. Por um lado tiveram o cuidado de
evitar o “enjambement”, isto é, a pausa forte no meio do verso e,
por outro, de fazer coincidir os finais de verso com as pausas se
mânticas, isto é, com pontos e vírgulas. Assim, reduziram o con
flito, convém repetir, mas não o eliminaram. Para garantir uma con
vergência total dos dois sistemas, seria necessário um paralelismo
exato entre pausa métrica e pausa semântica, ou seja, que a pausa
de final de verso correspondesse sempre a certa pausa semântica
— final de frase, por exemplo —, garantindo assim a proporciona
lidade. Por exemplo:
PAUSA MÉTRICA PAUSA SEMÂNTICA
fim de verso fim dc frase (ou ponto)
fim de hemistíquio fim de oração (ou vírgula)
fim de medida fim de núcleo de oração
55
■
seja subordinadas:
JJai demande Thésée au peuple de ccs bords
Ou Von voit VAchéron se perdTC chez les rnorts.
[Perguntei por Tescu ao povo daquelas margens/
Onde se vc o Aquerontc perder-se entre os mortos]
56
Sur qucl espoir nouveau, dans quels heureux climals
Croyez-vous découvrir la trace de ses pas?
[Com que esperança nova, cm que plagas felizes/
Pensais descobrir o vestígio de seus passos?]
57
No quinto verso, a pausa separa o artigo “la” e o substantivo “jeuille”,
dois termos cuja solidariedade c tão grande que certos gramáticos
os consideram como formando uma só unidade morfológica. Mallar-
mé vai mais longe ainda:
A toutes jambes, Factcur, chez V
Editeur de la dccadcncc,
[Depressa, Carteiro, para a casa do Editor da decadência]
58
Escolhemos, ao acaso, uma população de cem versos, dez séries
de dez unidades cada uma, em nove poetas:
3 clássicos: Corneille, Racine, Molière;
3 românticos: Lamartine, Hugo, Vigny;
3 simbolistas: Rimbaud, Verlaine, Mallarmé;
Os resultados numéricos vêm mais adiante, no quadro I. Como
interpretá-los?
Como prova o cálculo do X2, a diferença é bastante significativa.
Passamos de uma média de 11% nos clássicos para 19% nos român
ticos e 39% nos simbolistas. Em Mallarmé, esta média alcança
até 52%, vale dizer que cm cada duas fronteiras de verso, mais de
uma não é pontuada. Parece que estamos em presença de uma linha
de evolução,, uma espécie de lei tendencial da poesia francesa. Assim,
durante esses três períodos de sua história, a; versificação acentuou
constantemente a divergência entre metro e sintaxe, /oz sempre
mais longe no sentido do agramaticalismo.
Notemos que tal caráter não é acidental, É interessante obser-
var que clássicos e românticos, como prova o controle estatístico,
formam famílias homogéneas. E se o mesmo não acontece com os
simbolistas, a culpa é exclusivamente de Mallarmé, que exagerou
o processo, neste c em outros domínios, A homogeneidade resta-
belece-sc com Verlaine e Rimbaud. Seja como for, não deixa de
Quadro I
PAUSAS MÉTRICAS NÃO PONTUADAS (Para 100 versos)
59
CÁLCULO DO X„«
Taxa
Valor- (limiar de
GRUPOS Valores -Limite probabil.) DIFERENÇA
3 clássicos 0,16 3,32 0,10 não-significativa
3 românticos .... 1,93 3,32 0,10 não-significativa
3 simbolistas 22,55 6,44 0,01 significativa
Clássico-romântico . 13,22 4,78 0,01 significativa
Romântico-simbolista 22,55 4,78 0,01 significativa
60
Vemos mais uma vez que corte de verso e corte de frase não
coincidem. O poeta não vacila em mudar de linha depois da con
junção “ni”, ao passo que coloca no mesmo verso — o último —
duas frases distintas. Ora, por definição, o verso livre não obedece
a nenhuma lei de metro ou rima. Não se pode pensar que o corte
esteja subordinado às exigências do número de sílabas ou aos impe
rativos da rima. Portanto, a ruptura do paralelismo fono-semântico
é deliberado neste caso; constitui um objetivo em si, logo um fator
efetivo de versificação. Mais ainda, este fator é o único que convém
apenas ao definido. Com efeito, aquilo que se chama “poema em
prosa” só difere do verso livre pelo respeito às regras do paralelismo.
Consideremos, por exemplo, um fragmento qualquer de um Petit
poème en prose de Baudclaire:
Infeliz pode ser o homem, mas feliz o artista que o desejo dilacera.
Anseio por pintar aquela que me apareceu tão raramente c que sumiu
tão depressa, como uma L_l_bela coisa
1 saudosa atrás
. do viajante levado pela
noite. Faz tanto tempo que ela desapareceu.
E bela, c mais que bela; c surpreendente, Nela, tudo c negro, e tudo
o que ela inspira é noturno e profundo. SeusL-- olhos são dois antros onde
cintila vagamente o mistério, c seu olhar ilumina como o relâmpago: é
uma explosão nas trevas.
61
1. ° — Ao nível semântico, que se desdobra em:
a) Plano psicológico: a frase é a unidade que apresenta um
sentido completo em si. G. Antoine, após longa análise, adota a de-
finição de Haas: “O correlativo linguístico de uma representação
de conjunto”;
b) Plano gramatical: a frase é o conjunto das palavras sinta
ticamente solidárias. A. Martinet define-a da seguinte forma: “Um
enunciado cujos elementos estão todos ligados a um predicado sim'
pies ou a vários predicados coordenados”47. Os “estemas” de L.
Tesnière48 esclarecem essa série de “conexões” hierarquizadas que
fazem a unidade gramatical da frase.
2. ° — Ao nível fónico: a frase é definida ao mesmo tempo
pela entoação e pela pausa, mas a entoação é variável, ao passo que
a pausa é imutável. A frase interrogativa termina com uma ascen
são da voz, a frase declarativa com uma queda, mas ambas terminam
infalivelmente com uma pausa, e sempre os signos melódicos são
ao mesmo tempo signos pausais.
Portanto, podemos finalmente dar da frase uma dupla defi-
nição: por um lado, o que apresenta um sentido completo; por outro,
o que está situado entre duas pausas. Sendo assim, a frase é uma
unidade tanto pelo som como pelo sentido. Porém, essa dupla de-
finição só é possível quando a linguagem garante o paralelismo ri-
goroso das estruturas sonoras e semânticas; portanto, só é válida
em prosa. No verso, a dupla definição não se aplica.
Para que possa ser aplicada, é preciso que a cadeia verbal seja
divisível pelos dois fatores nos mesmos pontos, É o que acontece
na prosa. No verso, o paralelismo é rompido, O que apresenta
um sentido completo, ou seja, a frase, não está mais situado entre
duas pausas; e o que está situado entre duas pausas, ou seja, o
verso, não apresenta mais um sentido completo. O que pode ser
simbolizado por um esquema onde o som e o sentido estão repre
sentados por duas linhas horizontais e os cortes por traços verticais.
Assim, vemos o verso operar a dissociação dos dois fatores de
estruturação que a prosa associa. Sem dúvida, quando dois signos
(47) Êlémenls dc linguislique génêrale, Paris, Armand Colin, 2.a ed., 1961.
(48) ÊléTnents dc syntaxe structurale, Paris, Klincksiek, 1959.
62
tem a mesma significação, um deles parece inútil; mas na maioria
dos casos, essa inutilidade — ou redundância — é apenas aparente.
Na realidade, a convergência dos dois signos garante a segurança da
comunicação. Com a redundância, a linguagem procura construir es
truturas fortes. Esse é um dos princípios fundamentais da estra
tégia linguística, e é justamente esse princípio que a versificação
inverte. Tudo ocorre como se o poeta quisesse enfraquecer as es
truturas do discurso, como se o seu objetivo final fosse embaralhar
a mensagem. Temos aí uma conclusão evidentemente paradoxal.
Reduzimos o verso a algo a menos, quando tradicionalmente é con
siderado como algo a mais. Parece uma pura negatividade.
Negatividade parcial, sem dúvida alguma: dos dois fatores em
presença, conserva-se o sentido — isto é, o conjunto das relações
léxico-gramaticais — o que basta geralmente para estruturar o dis
curso. Voltaremos a este ponto no fim do capítulo. Embora as
pausas não sejam indispensáveis para a articulação da mensagem,
não deixam de dar-lhe um apoio positivo incontestável. Com toda
certeza, a deslocação do sistema de pausa tem como efeito uma de-
sestruturação, limitada mas efetiva, da mensagem poética. Parece que
esse é o objetivo consciente ou inconsciente do poeta.
Tal concepção, por mais inesperada que seja, poderia invocar
defensores célebres. Particularmente Mallarmé, a quem se associa
geralmente a idéia de obscuridade. Porém, a obscuridade poética só
é doutrina de uma escola particular; a poesia simbolista não é
toda a poesia, Antes de adotar essa conclusão, convém realmente
esperar que outros aspectos do verso venham confirmá-la.
PROSA
som
sentido
63
POESIA
som
sentido
64
Passemos agora ao verso regular. Sabemos que ele se define
pelo metro) c pela rima. Vejamos esta última. Ela foi muitas vezes
desprezada, embora seja notório que: o verso branco nunca conse-
guiu impor-se na nossa língua. É um paradoxo muito conhecido o
fato de Verlaine tê-la amaldiçoado:
O qui dira les torts de la Rime!
Quel enfant sourd ou quel nègrc fou
Nous a forgé ce bijou d’un sou
Qui sonnc creux et faux sous la lime?
[Oh, quem dirá os malefícios da Rima!/Que criança surda ou que
doido varrido/Forjou-nos essa jóia barata/Que soa oco c falso
sob a lima?]
3 65
um acento52; c podemos acrescentar: se não for seguida de unia
pausa. Sem isso, ela é indiscernível da homofonia interior, É a ■
pausa que faz um só verso de:
Tristcment dort une mandorc.
[Tristemcnte dorme uma bandola.]
(Mallarmé)
Com efeito, a rima e o acento poderiam cindir o verso em dois:
Tristcment dort
Une mandorc.
;;
(52) Como prova a experiência feita no Collège de Franco, da qual
participou André Spire. Cf! Plaisir Jpoétique et plaisir musculaire, Paris,
C*
José Corti, 1949, pp. 150-151.
66
mundo julgaram mais económico utilizar o chamado princípio da
L dupla articulação, que permite exprimir com apenas quarenta sons
elementares, ou fonemas, um número ilimitado de significações,
Percebem-se as consequências de tal sistema: ele condena a
língua à homofonia. Significados diferentes exprimir-se-ão por sig-
nificantes parcial ou totalmcnte semelhantes (homonímia), e o in-
divíduo deverá fazer a aprendizagem do que, na sua língua, é se-
melhança arbitrária ou semelhança motivada. Na verdade, e trata-se
de um ponto essencial, a experiência prova que a tendência de todos
os usuários é a motivação, Uma semelhança sonora sugere sempre
um parentesco de sentido, e é para lutar contra essa tendência que
a fala aplica espontaneamente uma regra de compensação: evita asso-
ciar homónimos ou reunir homófonos numa mesma frase e, quando
não pode evitá-lo, insiste na diferença. Dizemos, por exemplo, “não
fiz porque não quis”, colocando um acento de insistência nas duas
consoantes de ataque dos dois homófonos. É justamente este prin-
cípio de compensação que a rima inverte.
Com efeito, a rima é assim em virtude de sua posição. Coloca-se
no fim do verso, logo antes da pausa, e possui um acento particular.
A homofonia impõe-se à nossa atenção, o paralelismo diferencial é
então rompido.
Há semelhanças de som onde não há semelhanças de sentido.
A significados diferentes correspondem significantes percebidos como
semelhantes. A rima inverte o paralelismo fono-scmântico em que
se baseia a segurança da mensagem. Também neste caso, é como se
o poeta, ao invés das exigências normais da comunicação, procurasse
aumentar os riscos de confusão.
Para corroborar tal afirmação, podemos mais uma vez invocar
a evolução da rima através da história do verso francês.
Com efeito, dois fatos aparentemente contraditórios dominam a
história da rima.
Primeiro, o reforço progressivo da identidade sonora. A Idade
Média limitava-se à assonância, isto é, à homofonia restrita à vogal
terminal. A partir do século XIII, a assonância perde terreno,
cedendo progressivamente lugar à rima propriamente dita. A se
guir, no século XIX, aparece a exigência da rima rica, ou seja, de
uma rima que engloba a consoante de apoio da ultima vogal.
Essas exigências tornam a rima muito difícil. Particularmente
em francês, o número de rimas possível é extremamente limitado, e
67
se levarmos em conta as necessidades do sentido, as possibilidades
da rima francesa esgotam-se rapidamentew.
Sendo assim, pareceria normal satisfazer às exigências da rima
valendo-se das homofonias semânticas, Existe, de fato, dois tipos
de homofonia. A primeira, de que já falamos, rege as palavras sim-
pies. Baseada na contingência da língua, é desprovida de sentido:
por exemplo, “abrigo-trigo”, “dor-condor”, etc. A segunda, pelo
contrário, tem sentido. É a homofonia de palavras que são simples
em aparência, mas na realidade são compostas de um radical e de
um afixo: “bondade e maldade”, por exemplo, e sobretudo, as
rimas ditas gramaticais, por fazerem incidir a homofonia num mesmo
sufixo ou numa mesma desinência. Por exemplo, “cantarão” e “dan
çarão”, ou “prender” e “render”. Como se vê, aqui a homofonia
é significante. Porém, as possibilidades da rima acham-se ao mes
mo tempo multiplicadas, e é com razão que essas combinações fo
ram chamadas “rimas fáceis”.
Ora, é justamente esse tipo de rimas que a versificação fran-
cesa rejeita terminantemente a partir do século XVII. Nos poetas
do Renascimento, elas são abundantes, Du Bellay, por exemplo,
não hesita em fazer rimar duas formas do mesmo pronome:
Maintenant la Fortune est maistresse de moy
Et mon cocur qui soulait estre maistre dc soy
[Agora a Fortuna c dona de mim/E meu coração que costumava
ser dono de si]
68
escritos murcharão/Com teu desastre irá meu destino,/ Tua morte
será por meu amor complctada/De teus suspiros nossos netos se
rirão.]
69
rem ao contrário de sua significação habitual. Se esse for o caso,
é de se prever que o antiparalelismo será progressivamente levado ao
extremo, conforme nosso princípio de involução. Ora, como ve
remos, é exatamente o que aconteceu.
Sabe-se que as palavras se classificam por categorias morfoló
gicas: substantivos, adjetivos, verbos, etc. A essas categorias gra
maticais correspondem categorias semânticas. Segundo a interpre
tação tradicional, o substantivo designa a substância, o adjetivo a
qualidade, o verbo o processo, etc. Consequentemente, as palavras
da mesma categoria, seja qual for seu sentido, conservam um fundo
de significação comum. Nessas condições, se o verso obedece real
mente ao princípio de não-paralelismo, é de prever-se que evitará
fazer rimar palavras da mesma categoria: dois substantivos ou dois
verbos, etc. A história, efetivamente, confirma essa previsão.
Retomemos nossos três períodos e, para um total de cem rimas,
calculemos o número de rimas categoriais. Os resultados que vêm
adiante, no quadro II, são significativos. As rimas nâo-categoriais,
ou seja, as rimas de palavras que não pertencem à mesma categoria
morfológica, aumentam consideravelmente dos clássicos para os ro
mânticos. Passamos de um total de 56 para 86. Como prova o X2,
a diferença é amplamente significativa. Em compensação, dos ro
mânticos para os simbolistas, a progressão é pequena, de 86 para
92, e a diferença não é significativa. Mas, aqui também, devemos
levar em conta a dificuldade da rima francesa. Se não quisermos sa
crificar o conteúdo, devemos conformar-nos com o escasso arsenal
das rimas existentes. De cada três rimas, duas não-categoriais cons
tituem talvez uma taxa limite, pelo menos para as obras de fôlego.
No entanto, quando se trata de obras mais curtas e mais bem ela
boradas, como o soneto, vemos aparecer fatos reveladores. Consi
deremos o famoso soneto Le Cygne de Mallarmé:
Lc vierge, le vivace et le bcl aujourd*hui
Va-t-il nous déchirer aucc un coup d’aile ivre
Ce lac dur oublié que hante sous lc givre
Le transparent glacier des vols qui n’ont pas fui!
Un cygne d’autrefois se souuient que c’est lui
Magnifique mais qui sans espoir se délivre
Pour n’auoir pas chanté la région ou vivre.
Quando du estérile hiver a resplendi Vennui.
Tout son col secouera cctte blanche agonie
Par Vespace infligée à Poiseau qui le nie,
Mais non Vhorrcur du sol ou son plumage est pris.
70
Fantômc qidà cc lieu son pur
/ cclat assigne,
II s^mmobilisc au songc froid dc
de mépris
Que vct parmi l’exil inulilc Ic Cygnc.
[O virgem, o vivaz e o viridente agora/Vai-nos dilacerar de um
golpe dc asa levc/Duro lago de olvido a solver sob a neve/
O transparente azul que nenhum voo aflora!//Lcmbrando que é
ele mesmo esse cisne de outrora/Magnífico mas que sem esperança
bebc/Por não ter celebrado a região que o recebe/Quando o
estéril inverno acende a fria flora,//Todo o colo estremece sob a
alva agonia/Pclo espaço infligida ao pássaro que o adia,/Mas não
o horror do solo onde as plumas têm peso.//Fantasma que no
azul designa o puro brilho,/Ele se imobiliza à cinza do desprezo/
De que se veste o Cisne cm seu sinistro exílio.
(Tradução de Augusto de Campos)
Quadro II
RIMAS NAO-CATEGORIAIS (Para 100 versos)
CALCULO DO X2
Taxa
Valor- (limiar de
GRUPOS Valor -Limite probabil.) DIFERENÇA
71
No soneto, a dificuldade da rima é maior, pelo fato de impor dois
jogos de rimas quádruplas. Mallarmé acrescenta aqui uma dificul
dade suplementar ao fazer assonância em todas as rimas em i. Apesar
dessas dificuldades, não encontramos nenhuma rima categorial. Por
tanto, a média de rimas não-categoriais é de 100%, mesmo nas
rimas quádruplas. Temos, então:
aujourd’htã advérbio
fui verbo
lui pronome
ennui substantivo
ivre adjetivo
givre substantivo
se délivre verbo
vivre verbo infinitivo
72
i
onde 15 dos 23 fonemas aliteram, sendo que o som “r” aparece seis
vezes, “m” cinco vezes e “u” quatro vezes.
Neste particular, o soneto Le Cygne constitui também um mo-
delo. Com efeito, aliteração e rima atuam no mesmo fonema, o
som “i” aparece trinta e cinco vezes ao longo do poema. Assim,
opera-se a síntese dos dois processos, a homofonia externa junta-se
à homofonia interna, de um verso para outro, de um verso para uma
palavra, de uma palavra para outra.
A identidade da rima e da aliteração é reveladora do ponto de
vista funcional. Como vimos, os poeticistas conferem à rima o
papel de marcar o fim do verso. Não podemos, evidentemente, con
ferir o mesmo papel à aliteração. Para que serve então? Efeito mu
sical? O ouvido não sentiria grande prazer com essas repetições!
Devemos atribuir-lhe uma função expressiva? Sobre o famoso pro
blema da expressividade, existe toda uma literatura cuja leitura pode
deixar no fim um sentimento de ceticismo 57. No que nos concerne,
não queremos tomar posição sobre o problema. Digamos apenas
que, sendo a alib ração homóloga à rima, devemos atribuir a mesma
função a ambas. Podemos pretender honestamente que a rima tem
um valor expressivo em todos os versos onde é encontrada? Seria
fácil mostrar que não, pelo simples fato de os mesmos jogos de
rima encontrarem-se cm versos cujo sentido é completamente di
ferente.
A função da homofonia só aparece se relacionarmos o verso
com a prosa. Com efeito, a prosa só desempenha sua função de
comunicação através das diferenças fonemáticas, e tolera as seme-
lhanças por razões puramente económicas, Aliás, a fala corrige,
na medida do possível, as dificuldades que a língua lhe opõe. No
discurso prosaico, toda rima, toda aliteração é importuna,, e o es-
critor esforça-se naturalmente por evitá-las. OC verso,, pelo contrá-
rio, procura-as, e até faz da rima uma regra constitutiva, A única
conclusão a tirar desses fatos é que a versificação só tem uma fun
ção negativa. Sua norma é a antinomia da linguagem natural. Esta
linguagem desempenha sua função através de um máximo de dife
renciação. O verso parece encarregado de operar uma indiferen-
ciação. O fonema, que funciona na língua só como traço distintivo,
funciona na poesia em sentido exatamente inverso.
(57) Pesquisas recentes parecem provar a realidade de um simbo-
lismo fonético (Cf. M. Chastaing, "Le symbolisme des voyelles”, in J. de
psychol. normal, et pathol. 55, 1958).
73
* *
Verifica-se a mesma tendência naquilo que constitui o caráter
fundamental do verso regular, isto é, no metro. O metro é o
número de sílabas que o verso possui. No entanto, o importante
não é o número em si, mas o fato de ele sc repetir, idêntico, de um
verso para outro. É como tal que ele garante o “versus”. Geral
mente, a versificação clássica adotou certos metros fixos, todos pa-
rissílabos, mas os poetas podem utilizar sem inconveniente todos os
metros. O essencial é que o número adotado se encontre em outro,
ou em vários outros versos. O verso é métrico só por ser homomé-
trico; o verso parissílabo é privilegiado porque, divisível em dois,
pode realizar a homometria interna, isto é, a igualdade numérica
das duas partes do verso ou hemistíquios. A esse respeito, o ale
xandrino apresenta uma vantagem particular. Divisível cm quatro,
pode dividir os hemistíquios em partes iguais entre si.
Sabe-se que o metro é o fator convencional básico do verso
francês. No entanto, vários autores puseram cm dúvida sua rea
lidade, e os especialistas podem ser divididos cm dois campos: os
que defendem o metro e os que defendem o ritmo. Entre os pri
meiros, pode-se citar o padre Scoppa c a maioria dos metricistas do
século XIX. Assim, Banville escreve (Petit Traité): “O verso
francês não é ritmado, como nas outras línguas, pelo entrelaçamento
de sílabas breves e longas. Ele nada mais é que o conjunto de um
número regular de sílabas, cortado em certos trechos por uma parada
chamada cesura”.
Entre os segundos, deve-se citar George Lote em primeiro
lugar.
O autor de Ualexandrin devant la phonétique expérimentale
conseguiu provar que na pronúncia efetiva dos declamadores, por
exemplo Coquelin ou Sarah Bernhardt, a maioria dos alexandrinos
não contava doze sílabas, mas variava na realidade de nove a ca-
torze sílabas. E George Lote conclui: “O silabismo é uma ilusão...
As alterações que a fala impõe ao texto não ofendem o ouvido. . . Nada
se opõe ao abandono do numerismo, essa pura aparência da grafia” .
O simples fato de não sc pronunciar mais o c mudo desde o século XVI
toma falsos todos os versos que o contem. A não ser que sc adote uma
2.° Pela distribuição regular dos acentos. Dois são fixos (rima
e cesura), dois móveis, e alguns (cf. Grammont) interpretam tal
mobilidade como a especificidade do verso francês. A verdade é
que nossos poetas utilizaram pouco essa latitude. Em numerosos
casos — seria preciso fazer a estatística —, a distribuição atual é re
gular O-3-3-3), como no verso citado, ou simétrica em relação à
cesura, segundo as fórmulas 2-4-2-4 ou 4-2-2-4. Por exemplo:
75
I . I I . I
Voici dcs fruits, dcs jlcurs, dcs fetullcs cl dcs branches.
[Eis aqui frutos, flores, folhas c ramos.]
76
i
Orientado para o polo das semelhanças, o verso nunca pode
atingi-lo. Esforça-se apenas por aproximar-se dele o máximo pos
sível. O poeta faz o que pode com o que tem. Não foi ele quem
fez a língua. Se tivesse que refazê-la, é possível que o poeta francês,
por exemplo, reservasse para si um repertório de rimas muito
maior, assim como multiplicaria os monossílabos, ritmicamente mais
manejáveis. Seja como for, o poeta está colocado diante de uma
dupla exigência: por um lado, dizer o que tem para dizer, devendo
para tal utilizar as palavras do léxico comum; por outro, fazer
versos, isto é, garantir um máximo de semelhança entre as unidades
do discurso. Sendo assim, ele divide os elementos do discurso de
que dispõe em duas partes:
l.° Os fonemas: por sua combinação, eles compõem o léxico,
contêm as significações. Portanto, o poeta só pode atuar nas seme
lhanças contingentes que a língua oferece. Essa parte é necessaria
mente pequena. A rima e a aliteração só afetam uma pequena mino
ria de fonemas. É bem verdade que se pode ir muito longe na homo-
fonia, por exemplo, nos dois versos seguintes:
Gal, amant de la Reine, alia, tour magnanime
Galammcnt dc Varènc à la tour Magne à Nimes.
[Gal, amante da Rainha, foi, gesto magnânimo/Galantcmente da
arena à torre Magna cm Nimes.]
77
retorno pelo qual o verso se opõe à evolução irreversível da prosa.
E, apesar do caráter aproximativo do isossilabismo, por um lado, da
irregularidade posicionai dos acentos, por outro, é incontestável que
o ouvido percebe a semelhança, sendo sensível ao “ronronar” in
cansável dos regimentos de alexandrinos. Isso é o essencial quando
se coloca o verso na sua verdadeira perspectiva, que é estrutural e
funcional.
O verso foi criticado por sua monotonia. Verdadeiro contra-
-senso! O verso é monótono por natureza. Sua monotonia não agra
da ao ouvido, mas isso não tem importância no caso. Pois o som, no
poema, é um significante em toda a extensão. Homometria e homor-
ritmia são significantes — naturais — de uma “homosscmia”. Ora,
tal homossemia não existe no poema. Assim, quebra-se o parale
lismo do som e do sentido, e nessa ruptura o verso desempenha
sua verdadeira função.
Se tal é a função do verso, podemos tirar certas consequên
cias importantes no que diz respeito à dicção. Lamentaremos mais
uma vez que os poetas não tenham anotado de que maneira queriam
que os versos fossem ditos. Talvez confiassem no instinto do de-
clamador, mas cometeram um erro. A experiência mostra, de fato,
que a dicção variou consideravelmente no decorrer dos séculos.
Pode-se distinguir principalmente duas maneiras de dizer, ou
talvez seja preferível falar aqui de dois pólos da dicção: polo ex
pressivo e polo inexpressivo.
A dicção expressiva modula a voz segundo o <conteúdo inte-
lectual e emocional do poema. As variações da voz: afetam a ve-
locidade, a intensidade, e especialmente a altura. Com efeito, a melo-
dia ou entoação, isto é, a curva das alturas desenhada pela voz, varia
consideravelmente conforme o sentido do discurso. Portanto, a
entoação é significante, vale dizer que acentua as diferenças para
marcar melhor a diversidade dos significados. Assim, a interrogação
opÕe-se à afirmação não só pela construção da frase, mas também
pela entoação.
Ora, no século XVII, a dicçao era inexpressiva. Todos os ato-
res declamavam os alexandrinos com voz uniforme. Levantavam
a voz no primeiro hemistíquio, abaixavam-nai no segundo, causando
uma cansativa impressão de monotonia. O romantismo impôs a
Doravante,
dicção expressiva. Z---- a entoação de cada verso varia com
78
o sentido. Conta-se 00 que Rachel “só para nas vírgulas e nos pontos,
preocupando-se apenas com o sentido da frase, muito pouco com o
período poético: faz de cada verso uma linha, cujo hemistíquio e
rima são dificilmente sentidos, mesmo pelo ouvido mais exercitado”.
Por isso, Théophile Gautier criticava-a por sacrificar a prosódia.
Deparamos aqui com a dualidade das exigências da poesia, que
forma o que poderíamos chamar a antinomia da dicção poética. Pelo
fato de transmitir uma mensagem, o poema funciona como a prosa,
por diferenças. Pelo fato de ser poético, ele se baseia nas semelhan
ças. O recitante deve escolher. Se o texto é mais dramático que
poético, como o teatro clássico, pode-se sacrificar a prosódia. Mas
não completamente: o recitante deve equilibrar a balança, fazer
sentir o verso e, ao mesmo tempo, marcar o sentido. No entanto,
tratando-se do poema lírico, isto é, do poema puramente poético,
a relação se inverte. A dicção deve, então, tornar-se inexpressiva.
É exatamente o que ela tende a fazer hoje. A “emissão natural”
cede lugar à “dicção plana”. Nesse particular, podemos invocar o
testemunho dos próprios poetas. A propósito de Apollinaire, que
gravou Le Pont Mirabeau, André Spire diz: “Tive uma impres
são de monotonia igual à da recitação de certas melodias infantis”61.
Mallarmé, segundo Valéry, também dizia seu Coup de dés “com voz
baixa, igual, sem o menor efeito, quase para si”. E Valéry acres
centa este comentário: “...os recitantes profissionais que preten
dem valorizar, interpretar, quase sempre me são insuportáveis”C2.
Evidentemente, é impossível interpretar um poema de Mallarmé,
ou de qualquer poeta moderno. Neles, a dicção plana é a regra.
Disso, temos uma prova gráfica: ao eliminar a pontuação, os poe
tas modernos eliminaram tanto os signos melódicos como os signos
pausais. Em:
Vicnnc la nuit Sonne Vhcure
[Venha a noite Soe a hora]
faltam os pontos de exclamação. Com certeza, o poeta não quis que
esta fosse marcada. Nessas condições, por mais paradoxal que pa
reça, a verdadeira dicção poética é inexpressiva, deve tender para
a uniformidade. Sendo assim, numa dicção desse tipo, pode ser
que exista a isocronia de que falava Grammont.
79
Medindo três versos de Iphigénie, Grammont63 encontrou as
seguintes durações absolutas: 4,53, 4,52 e 4,79 segundos, ou seja,
durações aproximativamente iguais. Portanto, isocronia de um verso
para outro, à qual vem acrescentar-se uma isocronia de uma medida
para outra. Com efeito, as doze medidas dos três versos em questão
duram mais ou menos um segundo. George Lote contestou cate
goricamente os resultados. Suas próprias medidas revelam que a
duração de um verso pode variar de 1,75 a 6,12 segundos. Porém,
Lote reconhece que esta duração varia com o sentido. Isso significa
que os recitantes com que fez a experiência praticavam a dicção
expressiva, diminuindo ou aumentando a velocidade, conforme ex
primiam tristeza ou furor. O que acontece com a dicção inexpres
siva? Para saber, seria necessário praticar medidas. A priori, é
provável que os versos assim declamados tenham tendência a apro
ximar-se da isocronia.
Obter-se-ia, então, a uniformidade máxima que atua em todos
os elementos fónicos de que dispõe o poeta. Somente essa dicção
é fiel à essência do verso que é o “versus”, o retorno, isto é, a
identidade. É esta dicção plana, monocórdia, quase litânica, que dá
ao recitante aquela “voz de sonho”, voz encantadora, vinda de outro
lugar, da qual adivinhamos que tem a missão de transmitir não uma
simples informação de interesse teórico ou prático, mas algo radi-
calmente diferente, que é a poesia.
*
* *
80
Como a prosa, a poesia compõe um discurso, isto é, alinha séries
de termos foneticamente diferentes, Todavia, na linha das diferen-
ças semânticas, o verso adapta toda uma série de semelhanças fô-
nicas; é como tal que ele é verso.
Procuremos traduzir essa estrutura por um esquema, simbo-
lizando cada termo do discurso por uma letra, minúscula para o
significante, maiuscula para o significado.
PROSA
som a b c cl e f
sentido A B C D E F
POESIA
som a a a a a a
sentido A B C D E F
sentido A B C D E F G
81
mum entre eles: ambos contrariam o paralelismo fono-semântico em
que se baseia o funcionamento da linguagem, A versificação une os
segmentos que a prosa separa e identifica os termos que a prosa
distingue. Processos negativos, portanto, que tendem a enfraquecer
a estruturação da mensagem.
Esse ponto é capital. Por isso, voltemos à nossa análise, ainda
que nos repitamos um pouco.
Os linguistas chamam os fonemas “unidades distintivas”, o
que é uma fórmula reveladora! O importante, no fonema, não é o
timbre particular, ou seja, a substância, mas sua capacidade de dis
tinguir-se dos outros fonemas. O timbre é apenas o suporte de
uma diferença. A rigor, sua substância fónica nem é percebida.
Existem muitas maneiras de pronunciar o som francês “a”, mas só
o foneticista sabe reconhecê-las. O usuário confunde-as, porque to
das elas têm o traço comum de opor-se a “e”, “i”, etc. Como disse
incisivamente Saussure: “. . . os termos a e b são radicalmente in
capazes de chegarem, como tais, até a consciência — a qual só per
cebe de maneira constante a diferença a/b”C4. Ora, o que faz o
poeta? Através da rima e da aliteração, que constituem um dos pro
cessos fundamentais do verso regular, ele tende a limitar a diferença.
O fonema é utilizado não como unidade distintiva, mas, pelo con
trário, como unidade por assim dizer “confusiva”. Parece que seu
objetivo seja atrapalhar o funcionamento do instrumento linguístico,
como se quisesse confundir o que deve ser distinguido.
Passemos aos acentos. Em francês, o acento não é um “ele
mento distintivo”. Isso significa que não existe em francês, ao con
trário do inglês ou do espanhol, termos foneticamente semelhantes
que se oponham apenas pelo acento. Contudo, o acento não deixa
de ter em francês um valor significante. Sua função é sublinhar ou
pôr em relevo. Portanto, a palavra ou a sílaba que ele marca dis-
tingue-se por isso mesmo do conjunto em que se encontra. O que
o verso faz? Distribui uniformemente os acentos. No verso, tudo
é igualmente sublinhado. Mas, por isso mesmo, nada mais o é. Os
diferentes termos tendem a fundir-se na uniformidade.
Do mesmo modo, a pausa tem a função de reforçar o corte
operado pela gramática e pelo sentido. O verso faz o possível para
deslocar a pausa, de maneira a ligar foneticamente o que o sentido
separa.
82
I i
Sendo assim, as três figuras têm a mesma função, função que
é paradoxalmcnte antifuncional. Trata-se realmente, como já dis-
semos, de baralhar a mensagem.
Mas convém entender bem o sentido desta fórmula. Não se
trata de destruir a mensagem. Vimos que Apollinaire não vacilava
diante de tal consequência, mas não o seguiremos. Uma mensagem
não entendida deixa de ser uma mensagem. O discurso deve ser
inteligível, ou então, deixa de ser um discurso, O poeta utiliza a
língua porque quer comunicar, ou seja, ser entendido, Mas ele
quer sê-lo de certa maneira, pretende suscitar no destinatário um
modo de compreensão específica, diferente da compreensão clara, ana-
lítica, provocada pela mensagem comum.
Um exemplo vai permitir-nos apreender a significação do pro
cesso. Consideremos os primeiros versos do Pont Mirabeaw.
Sous lc Pont Mirabeau coule la Seine
Et nos amours
Faut-il qu’il m’cn souuicnne
La joic venait toujours après la pcinc.
[Sob a Ponte Mirabeau passa o Sena/E nossos amorcs/É preciso
que me lembre/A alegria vinha sempre após a pena.]
53
não têm nada em comum com o verso, mas que se revelam, na aná
lise, estrutural e funcionalmente análogos. Ao contrário do que
geralmente se acreditou, teremos a prova de que o verso não é um
caráter físico da linguagem. O som, tanto no verso como na prosa,
é signo, mas sua significação é dificilmente perceptível porque é
toda negativa: o verso é feito de signos que funcionam em sentidos
opostos.
O verso é cíclico, a prosa linear. O aspecto antinômico dos
dois caracteres é evidente e, no entanto, a poética nunca o levou
em conta. Ela fez do “retorno” um caráter isolado, que se acres
centa de fora à mensagem para conferir-lhe uma virtude musical
qualquer. Na verdade, a antinomia constitui o verso, pois ele não
é inteiramente verso, ou seja, retorno. Se fosse, não poderia ser
portador de um sentido. Ele permanece linear porque significa.
A mensagem poética é ao mesmo tempo verso e prosa. Uma parte
de seus elementos componentes garante o retorno, enquanto outra
garante a linearidade normal do discurso. Estes últimos funcionam
no sentido usual da diferenciação, ao passo que os primeiros atuam,
pelo contrário, no sentido de uma indiferenciação.
Considerando-se dois séculos, a história da versificação francesa
mostra o aumento progressivo da indiferenciação. Esse é um fato
que revela, por assim dizer, a lei tendencial da poesia francesa. Para
essa evolução, podemos de antemão fixar um limite. Com efeito,
se a semelhança fosse maior que a diferença, a mensagem perderia
seu sentido. A poesia não seria mais linguagem, c sabemos que ela
o é essencialmente. Portanto, pode-se fixar o limite no ponto má
ximo em que a semelhança não é mais compatível com as exigências
da significação.
É o que acontece com a homofonia. Passou da assonância para
a rima e da rima suficiente para a rima rica. Mas, mesmo rica, a
rima só atua numa minoria de fonemas: três ou quatro, quando
muito, numa média de vinte e seis a vinte e sete fonemas por ale
xandrino, isto é, 12% aproximadamente. No caso extremo do
soneto do Cygne, o som “i”, que garante ao mesmo tempo a rima
e a aliteração, representa apenas uns 10% do número total dos fo
nemas. É verdade que a história da versificação conheceu as rimas
equívocas e também o verso de rima total, tipo “Gal, amant de la
reine. . Mas tais realizações não tiveram futuro, justamente porque
ultrapassavam o limite permitido pelas exigências . da significação.
O desvio só é redutível visualmente. Na audição, tais versos revelar-
84
-se-iam completamente ininteligíveis, A esse respeito, há outro
fato significativo. A assonância é permitida, na época moderna,
quando atua em monossílabos. Por exemplo:
Tcllc cn plcin jour parjois, sons un soleil de fcu
La lunc, astro des morts, blanche■ au fond d’un ciei bleu.
[Como cm pleno dia às vezes, sob um sol de fogo/A lua, astro
dos mortos, branca ao fundo de um céu azul.]
(Hugo)
85
Neste poema, não há rima nem metro. O ritmo não atua,
ou muito pouco. De todos os processos de versificação, subsiste
unicamente o emprego dos “espaços em branco”. O próprio autor
insistiu nisso num comentário de sua obra: “Com efeito, os “bran
cos” assumem importância, impressionam de início; a versificação,
ordinariamente, exigiu-os como silêncio ao redor, a ponto de um
trecho lírico, ou de poucos pés, ocupar no meio a terceira parte do
folheto: não transgrido essa medida, disperso-a simplesmente”. As
sim, para Mallarmé, o espaço em branco é realmcnte fator essencial
de seu poema, não na quantidade, que é conforme ao uso, mas na
disposição. Com tal “dispersão”, o discurso fica totalmente deslo
cado. A solidariedade semântica das unidades, normalmente garan
tida por sua proximidade espacial, aqui se perde, talvez sem remissão.
Os diversos segmentos não formam mais um discurso inteligível,
pelo menos para o leitor médio65. Ora, o poema destina-se a ele.
Podemos então perguntar-nos se Mallarmé não ultrapassou aqui a
fronteira proibida, passando para a região em que, com a signifi
cação, se perdeu a linguagem, isto é, a poesia. Seja qual for a res
posta a essa pergunta, a tentativa merecia ser feita porque desvenda
abertamente para nós o mecanismo de toda a versificação: opor a
mensagem ao código para obrigar o código a transformar-se, como
veremos.
O verso, disse Mallarmé, “compensa o defeito das línguas”.
Fórmula profunda, mas que deve ser precisa. O verso só tira pro
veito do defeito da língua se o agravar primeiro.
86
Capítulo III
87
ciamos uma dessas regras, relativa ao significante. O princípio do
paralelismo fono-semântico prescreve que o falante deve evitar uma
frase deste tipo: “Ferindo os nós dos dedos, ele desatou os nós das
amarras do Nostradamus e o navio carregado de noz passou por nós
a vinte nós por hora”. É uma frase correta do ponto de vista da
língua, mas ao multiplicar os homónimos, ela diminui proporcional
mente suas possibilidades de inteligibilidade, contrariando assim o
axioma fundamental.67 Tal procedimento, como vimos, é caracte-
rístico precisamente da versificação que, como tal, constitui uma vio
lação do código da fala. Como a versificação é codificada, pode-se
dizer que constitui, paradoxalmente, um código do anticódigo.
Passemos agora ao nível semântico. Também aqui iremos res
tringir-nos ao ponto de vista da forma, ou seja, da relação dos signi
ficados entre si. Mais uma vez, iremos estabelecer uma regra do
código, da qual a linguagem poética constitui uma violação.
Para formar uma frase com sentido, não basta alinhar pala
vras tiradas de um dicionário. A probabilidade de que uma sequência
de palavras, tiradas ao acaso de um dicionário, forme uma frase
é praticamente nula, como demonstrou Shannon ( 1948), mesmo
que tais palavras sejam flexionadas. Tal maneira de operar daria
sequências como esta: “combate caloso irritabilidade emigrado de
pravado temporal prolixo infelizmente pelourinho náutico”C8, onde
cada elemento é dotado de sentido, ao passo que o conjunto não o é.
Para que palavras formem frases, devem submeter-se a duas espé
cies de regras, a primeira das quais está explicitamente codificada,
a segunda não, mas tentaremos estabelecer sua existência.
Consideremos este exemplo (F. Brcsson) 69:
Os elefantes são hipomóveis,
88
classes ou categorias formalmente marcadas, e autoriza ou proíbe
as associações dc palavras somente em funçã<o destas categorias.
Portanto, toda sequência que seja conforme aos “patterns” * per-
mitidos pela gramática, é formalmente correta. É o caso das duas
frases citadas. Mas será que por essa razão seriam frases inteligíveis?
Para Jakobson, uma frase é dotada de sentido se puder ser
submetida à prova da verdade. Segundo ele, é o que ocorre com
as frases gramaticais. O exemplo de Chomsky é dotado de sentido
porque podemos perguntar se existem ou não ideias verdes incolores
que dormem furiosamente, e responder que é falso. Do mesmo
modo, poderíamos afirmar que é falso que “os elefantes são hipo-
móveis”. Todavia, parece que aqui a lógica não está de acordo.
Pelo menos é o que pensa um lógico que, precisamente sobre este
ponto, parece ter respondido ao linguista:
“Dada uma função, por exemplo . . .é oviparo, será que se pode
atribuir-lhe como argumento o nome de um indivíduo absolutamente
qualquer: uma cadeira, um tremor de terra, um número, um pont<
do espaço-tempo? Talvez se pudesse admiti-lo considerando com
proposições falsas os enunciados assim obtidos. Todavia, é ciar
que não são falsos da mesma maneira que, por exemplo, Black,
minha cadela, é ovipara. Ser ou não ser oviparo é uma alternativa
que, na realidade, só tem sentido para seres sucetíveis de serem
“pais”. Para os outros, não há dúvida que é mais natural considerar
que a questão nada significa. Assim, 3 é oviparo e 3 não é oviparo
terão exatamente o mesmo valor de verdade, isto é, nenhum, nem
o falso nem o verdadeiro, ao passo que uma proposição autêntica
se caracteriza justamente por isto: a negação tem por efeito per
mutar seu valor de verdade. Sc julgarmos destituídos de sentido
tais enunciados absurdos, devemos negar ao instrumento lógico a
’ ’ .
possibilidade de construí-los, sob pena de desacreditá-lo. Quando
fizermos uso <dele,
‘ deveremos esclarecer em que universo do dis-
curso nos colocamos: dos animais, dos números, dos astros, etc.,
ou, por outras'S palavras, devemos atribuir a qualquer variável que
se associe a determinada função certa faixa de significação, mais
ampla que a faixa de verdade, porém mais estreita que a totalidade
indeterminada dos indivíduos de todo gênero”71.
89
Assim, frases como “os elefantes são hipomóveis” ou “inco
lores ideias verdes dormem furiosamente’ não são apenas falsas, são
absurdas. Corretas segundo a sintaxe, incorretas “segundo o sen
tido”, como diz F. Bresson. Embora a diferença entre proposição
falsa c proposição absurda seja uma diferença semântica, continua
sendo formal. A relação entre os significados não é a mesma nos
dois casos. A proposição falsa pode ser verdadeira, porque o pre
dicado é um dos predicados possíveis do sujeito. A proposição
absurda não pode ser verdadeira pelo motivo inverso. No primeiro
caso, falaremos de pertinência do predicado e, no segundo, de im
pertinência.
Neste ponto, aparece uma lei geral relativa à combinação das
palavras em frases. Tal lei exige que; em toda frase predicativa,
o predicado seja pertinente em relação ao sujeito. É bem verdade
que a predicação é apenas uma das funções gramaticais que um termo
pode exercer; estudaremos outras, em que voltaremos a encontrar
a mesma distinção entre termos que convêm e termos que não
convêm à sua função. Podemos agora dar a esta regra uma formu
lação mais geral. Já que toda frase é feita de termos lexicais dota
dos de uma função gramatical determinada, a regra cm questão exige
que todo termo de uma frase seja semanticamente capaz de exercer
sua função. Esta regra nada mais é que a modalidade que o axioma
de inteligibilidade assume, ao nível semântico. A este mesmo nível,
tentaremos caracterizar a linguagem poética pela infração a essa regra
do código da fala.
Poder-se-ia perguntar, naturalmente, se uma regra como essa é
de natureza linguística, ou se, pelo contrário, não se refere a valores
lógicos, extra-linguísticos. De fato, lógica e linguagem estão intima-
mente ligadas e sabemos que os antigos designavam as duas pela
mesma palavra. De resto, é possível dar a esta regra uma formu
lação puramente linguística. Para tal, basta prever “graus de gra-
maticalidade”, segundo uma sugestão dc Chomsky12. Com efeito,
aquilo que chamamos gramática rege a associação das palavras entre
si, segundo seu valor mais geral. Ela prevê que um verbo pode
ser predicado de um substantivo, sem especificar de que verbo ou
de que substantivo se trata. Mas bastaria especificar essas catego
rias gerais em categorias menores para abranger os desvios de tipo
semântico. Como diz Saporta, comentando Chomsky, uma fórmula
90
como “a árvore sussurra” só é gramatical ao grau mais geral, por
que é conforme ao estereótipo “frase nominal + frase verbal”.
A fórmula só infringe uma restrição quando dividimos os nomes
cm animados e inanimados e os verbos em sub-classes, para depois
estabelecer restrições quanto à associação de certos nomes com
certos verbos. Assim, uma frase que infrinja uma regra muito geral
pode ser considerada menos gramatical que uma frase que só in
fringe uma regra mais específica. Por conseguinte, todo discurso
pode ser descrito em termos de gramaticalidade...”73.
Para evitar confusão, não usaremos o termo “gramaticalidade”
e reservaremos a expressão “pertinência semântica”, ou simples
mente “pertinência”, para caracterizar as frases corretas segundo
o sentido. Mas nossa análise inscreve-se na perspectiva que se de
preende da última frase da citação acima: procuraremos descrever o
discurso poético como um discurso de gramaticalidade inferior à
da prosa, em relação ao grau mais específico de gramaticalidade re
presentado pela pertinência semântica. Posteriormente, considera
remos o grau mais geral, ou seja, a gramática no sentido clássico
da palavra.
É certo que a gramática se apega a marcas formais e que tais
marcas vão rareando à medida que descemos os graus da escala.
Em francês, não há nenhuma marca que distinga os nomes inanima
dos dos animados, e uma grande proporção de frases poéticas baseia-
-se na confusão destas classes. Todavia, embora a ausência dessas
marcas retire o rigor formal de tal sintaxe, nem por isso a torna
impossível.
Segundo a teoria da significação chamada “contextuai” ou “fun
cional”, comum entre os lingiiistas anglo-saxônicos, o sentido de
uma palavra é o conjunto dos contextos em que ela pode figurar. Aqui
a semântica encontra-se com a sintaxe, visto que a significação nada
mais é que o conjunto das combinações permitidas para um termo
dado. Por conseguinte, a relação signo-referente fica absorvida na
relação signo-signo. Ademais, que é o dicionário senão uma lista
de relações entre signos e, em suma, um repertório de frases que
podem ser formadas a partir do termo definido? Certos dicioná
rios, como o Littré, orientam até a definição para uma simples no-
91
menclatura de frases-tipo, nas quais o termo entra como elemento.
Compreender o sentido de uma palavra é saber que frases é possível
construir com ela. Isso é verdadeiro pelo menos para as frases
simples, tais como os sintagmas binários nome-verbo, nome-epíteto,
etc. Compreender a palavra “gato” é saber que se pode dizer
“o gato mia, o gato dorme”, mas não “o gato late, o gato voa”, ou
ainda que “gato preto” é permitido, mas “gato isóscele” não é.
Temos, então, o direito de supor a existência de um repertó
rio de frases simples possíveis, que constituiriam uma verdadeira
tabela de pertinência, válida pelo menos para determinada cultura.
Semelhante código da fala, se existisse explicitamentc, fornecer-nos-ia
um critério objetivo para a detecção das infrações cometidas pela
poesia. Na falta dele podemos então confiar no nosso próprio sen
timento linguístico. Com efeito, se compreender uma linguagem
é conhecer o conjunto das combinações permitidas entre seus termos,
então deve-se supor que esse código se acha depositado na memória
de cada um dos usuários. No fundo, falar não é construir uma frase,
mas escolher, entre os modelos de frase que a memória nos oferece,
aquele que nos parece corresponder à situação. É em função desta
correspondência com a situação que se introduzem os valores de
verdade. Uma proposição falsa não é adequada à situação, mas,
salvo em casos excepcionais (emoção, embriaguez, etc.), será sem
pre uma frase possível, por ser conforme à tabela de pertinência c,
como tal, aceitável para qualquer membro da comunidade. Portanto,
pediremos ao nosso próprio sentimento linguístico para nos dizer o
que é correto ou incorreto no poema. Não há dúvida de que, para
maior rigor, poderíamos recorrer a juízes, mas a abundância dos
itens observados tornaria bastante difícil tal procedimento, Conten-
tamo-nos então com eliminar sistematicamente todos os casos du-
vidosos, conservando no nosso inventário só aqueles em que a
impertinência é flagrante, como nestes exemplos:
Les souvenirs sont cors de chasse. (Apollinaire)
[As recordações são trombetas de caça.]
____ de
Essas duas frases, tiradas x
/ poemas, ’
realizami as duas formas
------------- — verbo de ligação — adje
típicas da predicação: l.° 1Substantivo
tivo; 2.° Substantivo — verbo.
92
Ambas apresentam uma impertinência predicativa caracterizada.
Para que a frase “X morreu” tenha sentido, é necessário que X
entre na faixa dc significação do predicado, isto é, que faça parte da
categoria dos seres vivos, o que não é o caso do céu. Do mesmo
modo, só a classe dos instrumentos musicais pode fornecer um su-
jeito do qual “trombetas de caça” seja predicado pertinente, o que
não é o caso das recordações. Temos aí, portanto, duas infrações
ao código ou ('desvios que, como nos mostrará a estatística, são sim-
pies exemplos de um fenômeno geral dentro da linguagem poética.
* *
Antes porém, precisamos examinar uma objeção, cuja discussão
nos levará longe. Trata-se do problema da metáfora, vale dizer,
aquilo que constitui a característica fundamental da linguagem poé
tica. Pelo menos é essa a opinião corrente. T. S. Eliot definia
A Divina Comédia como “uma vasta metáfora”, e Claudel opunha
poesia e prosa como “a lógica da metáfora” e “a lógica do silogismo”.
Numa obra dedicada a essa figura, a poesia é definida como “um;
metáfora constante e generalizada”74. Aceitaremos essa definição
que julgamos exata, mas com a condição de devolver a metáfora
à sua verdadeira natureza, recolocando-a no devido lugar.
É claro que nas frases poéticas citadas só há desvio se tomarmos
as palavras no sentido literal. Inversamente, para reduzir o desvio,
basta mudar o sentido de uma. dessas palavras.
Para dar um exemplo simples, numa frase como “O homem é
o lobo do homem”, o predicado só é impertinente enquanto signi-
fique animal. Mas esse é um primeiro sentido que remete para um
segundo: “O homem é o lobo do homem” significa na realidade
“o homem é cruel”, o que faz a frase voltar à norma, Estamos
diante de uma figura chamada “mudança de sentido” ou “tropo”.
figura que podemos simbolizar pelo seguinte esquema (no qual Se
representa o significante e So o significado):
Se—> S01—> So2
É evidente que a mudança de sentido não é gratuita: entre Sox
e So2 existe uma relação variável, cujos diferentes tipos engendram
93
as diferentes espécies de tropos, Se a relação for de semelhança,
falaremos em metáfora; se for de contigiiidade, em metonímia; se
for da parte pelo todo, em sinédoque, etc. Todavia, um uso cor-
rente confere à “metáfora” o sentido genérico de mudança de sen-
tido, e é essa prática que adotaremos aqui 75.
Façamos agora uma pergunta ingénua. Por que a mudança
de sentido? Por que razão o descodificador não se conforma com
o código da língua que impõe a um significante um significado de-
terminado? Por que recorre ele a uma descodificação segunda, que
põe em jogo um significado novo? A resposta é evidente: porque
o termo, no primeiro sentido, é impertinente, ao passo que o se
gundo sentido lhe devolve a pertinência. A metáfora intervém para
reduzir o desvio criado pela impertinência. Os dois desvios são
complementares, mas precisamente porque não se situam no mesmo
plano linguístico. A impertinência é uma infração ao código da
fala, situa-se no plano sintagmático; a metáfora é uma infração ao
código da língua, situa-se no plano paradigmático. Existe uma es
pécie de supremacia da fala sobre a língua, uma vez que esta aceita
transformar-se para dar um sentido àquela. O conjunto do processo
compõe-se de dois tempos, inversos e complementares:
1. ° Posição do desvio: impertinência
2. ° Redução do desvio: metáfora
O que podemos simbolizar pelo esquema seguinte (onde a
flecha representa a pertinência e o traço cortado a impertinência):
Se
l
I Soj
CONTEXTO l
So2
<
Temos, então, dois planos diferentes: o primeiro é sintagmá
tico, o segundo paradigmático. Só o segundo merece o nome de
metáfora. Ao mesmo tempo vemos que, embora seja uma figura, a
94
metáfora não pertence ao mesmo tipo de outras, como a rima, a
elipse, o epíteto explicativo ou a inversão, Todas estas figuras, com
efeito, são desvios sintagmáticos, ao passo que a metáfora é• um des-
vio paradigmático. Não só pertence ao mesmo plano linguístico,
como também é o complemento de todas as outras, Veremos que
todas as figuras têm por objetivo provocar o processo metafórico,
A estratégia poética tem por único objetivo a m udança de sentido,
O poeta atua sobre a mensagem para modificar a língua. Se é ne
cessário fazer um desvio, é porque o caminho direto que vai de
Se a So2 se acha cortado. Entre ambos interpõe-se Son que deve
ser afastado num primeiro tempo, para que So2 lhe tome o lugar num
segundo tempo. Se o poema infringe o código da fala é para que
a língua o restabeleça transformando-se. Tal é o objetivo de toda
poesia: obter uma mutação da língua que, como veremos, é ao
mesmo tempo uma metamorfose mental.
O que implica, entre os dois significados, uma diferença que
não é de conteúdo. Se existisse apenas uma diferença referencia]
entre Soj e So2, o desvio não seria necessário. Mas ocorre que
entre os dois significados existe, como veremos, uma diferença de
natureza. Nem toda metáfora é poética. Só o é quando o significado
segundo pertence a determinado domínio de sentido, cuja natureza
tentaremos precisar no nosso último capítulo.
Limitemo-nos aqui ao lugar que a metáfora ocupa dentro da
figura. Ela constitui o segundo plano de toda figura, o segundo
tempo de um mecanismo que é sempre o mesmo. E talvez seja
preferível chamar “figura” o processo total, cujo primeiro plano
varia, enquanto o segundo permanece invariável. Assim, ao con
trário do que julgava a retórica clássica, as diferentes figuras não
são a rima, a inversão, a metáfora, etc., mas sim a rima-metáfora, a
inversão-metáfora, etc. Aquilo que a retórica clássica opunha aos
outros tipos de figuras, sob o nome de “figuras de palavras”, nada
mais é que uma parte integrante de todas as figuras. A retórica não
soube distinguir o plano sintagmático do plano paradigmático, não
viu que os dois planos, longe de se oporem, se completavam, e
este erro é em grande parte responsável pelo impasse em que ficou
a poética.
Por conseguinte, o desvio de nível semântico não se confunde
com a metáfora. A este nível, existe um desvio sintagmático, para-
leio ao que é a rima no nível fónico, e a inversão no nível sintá-
tico. A esse desvio cumpre dar um nome. Já o chamamos “im-
95
pertinência”; todavia, para diferençar as várias figuras semânticas
segundo as funções, reservaremos tal nome para o desvio predica-
tivo e falaremos em redundância e inconsequência nos demais casos
aqui estudados.
Se os dois planos foram confundidos é porque a impertinência
constitui um desvio de tal modo flagrante que sua redução é evi-
dente. A rima e a inversão, pelo contrário, são um desvio relati-
vamente fraco, de tal modo que, neste caso, foi a redução que se
manteve dissimulada. A retórica chamou figura, em um caso o
desvio sintagmático, em outro o desvio paradigmático, colocando
no mesmo plano dois momentos diferentes e complementares de
uma mesma figura.
No que concerne à frase predicativa, porém, a regra de perti
nência funcional cria uma dificuldade. Com efeito, como conciliar
essa regra com a possibilidade que tem a linguagem de exprimir
verdades novas, as descobertas da ciência, por exemplo, onde um
predicado novo é atribuído a um sujeito? E como irá exprimir-se a
literatura de ficção, contos de fadas, histórias fantásticas, etc., que
estão no mesmo caso? Se “a árvore sussurra” é um desvio linguís
tico que, como tal, provoca a redução metafórica, como distingui-la
da árvore que fala nos contos de fada, que exige literalidade e repele
a metáfora?
O problema é difícil e só poderia obter resposta satisfatória
no quadro de uma semiologia (ainda por fazer-se) daqueles signos
pelos quais a fala se situa dentro de um gênero, científico, romanesco,
etc., indicando assim as normas que ela aceita. Na ausência de
qualquer signo particular, o código em vigor é o código usual. Se
a frase não se adaptar a ele, é retificada por mudança de sentido ou,
então, colocada fora da linguagem como absurda. Os enunciados
inovadores que, por definição, escapam ao código usual, devem
indicá-lo. Digamos apenas que tais mensagens procuram geralmente
prover-se de “signos de literalidade”, com os quais avisam o desti
natário que a impertinência deve ser atribuída às coisas e não às
palavras. O “era uma vez” dos contos de fada é um signo desse
tipo: indica ao leitor que as incompatibilidades habituais estão sus
pensas, e que por conseguinte as impertinências aparentes não são
obra das palavras. A árvore que fala e o cavalo que voa são então
tomados ao pé da letra e os processos habituais de redução linguís
tica ficam inibidos. Portanto, do ponto de vista literário, o conto
de fadas como tal não é poesia, mas prosa. O que não quer dizer,
96
é claro, que não seja “poético”. Mas, neste caso, a poesia com
efeito estético emana das coisas, não^ das palavras. “Feérico”, por
tanto, é uma categoria do ser e não da linguagem; aplica-se ao con
teúdo, não à forma. É bem verdade que se pode exprimir o feérico
cm linguagem poética, unindo assim duas fontes diferentes num só
efeito. Mas a ligação não é necessária, como prova a grande poesia
lírica francesa, cujos pontos mais altos raramente tiram seus sorti
légios do universo do fantástico. Neste caso, o poema não é a ex
pressão fiel de um universo anormal, mas a expressão anormal de
um universo comum. O poema realmente é aquela “alquimia do
verbo” de que falava Rimbaud, pela qual se juntam na frase termos
incompatíveis segundo as normas usuais da linguagem.
Restam evidentemente os enunciados realmente inovadores: os
que exprimem verdades descobertas pela ciência e nos quais as coisas
aparecem dotadas de predicados novos (cisnes negros, plantas car
nívoras, etc.). Trata-se de um problema difícil, cuja discussão apro
fundada nos levaria longe demais. Digamos que, em muitos casos,
esses enunciados aparecem no contexto com uma “marca de origina
lidade” do tipo “A experiência revela que”... ou “X descobriu
que...”. Tais fórmulas anunciam uma modificação do código e,
no fundo, pertencem à metalinguagem. Não são encontradas em
poesia. O poeta não diz: “Foram descobertos peixes capazes de
cantar”, mas sim:
]’aurais voulu monlrcr aux enfants ccs dorades
Du flot bleu, ccs poissons d’or> ccs poissons chantants.
(Rimbaud)
[Eu queria mostrar às crianças aqueles dourados/Da onda azul,
aqueles peixes de ouro, aqueles peixes cantantes.]
* *
4 97
cesso seguido será o mesmo: comparação dc grupos de três autores,
à razão de cem itens cada um. Mais uma vez, não se trata de
abranger o conjunto das relações sintagmáticas. Todavia, com o
intuito de ampliar ao máximo a extensão da análise, estudaremos
as três grandes funções principais: predicação, determinação e co
ordenação. Este capítulo será dedicado à mais importante delas,
a predicação, pela qual uma característica, no sentido amplo, é
atribuída a um sujeito a título de propriedade. Em francês, exprime-
-se a predicação de duas maneiras principais: nominal (sujeito-verbo
de ligação-predicativo) ou verbal (sujeito-verbo). Todavia, para
facilitar a análise, vamos estudá-la sob a forma epitética. O epíteto,
como veremos no capítulo seguinte, exerce uma função determina
tiva, mas só pode fazê-lo se aparecer como uma propriedade do
nome ao qual se aplica. Por conseguinte, pode-se estudar a pre
dicação através dele. “O vestido vermelho” pode transformar-se
facilmente em frase predicativa, pela simples introdução do verbo
de ligação: “O vestido é vermelho” 76. A pertinência c a mesma
nos dois casos. Inversamente, existe impertinência tanto em “a so
lidão é azul” como em “solidão azul” (Mallarmé).
Duas considerações justificam a escolha do epíteto, Por um
lado, os epítetos são frequentes em todos c" poemas,
os p------- , ~o 'que facilita
consideravelmente a operação estatística; por outro lado,, o epíteto
é dotado de um incomparável rendimento poético. Para convcncer-se
disso, basta suprimi-lo. Compare-se, por exemplo:
Lc vent crispé du matin (Vcrlainc)
[O vento crispado da manhã]
com
Le vent du matin.
[O vento da manhã.]
ou então
II a monte 1’âpre cscalicr (Hugo)
[Ele subiu a áspera escada]
com
II a monte Vescalier.
[Ele subiu a escada.]
* *
Qu/\dro III
EPÍTETOS IMPERTINENTES (I)
99
Como se vê, na linguagem científica dessa época, a impertinên
cia é nula. Os sábios às vezes empregam metáforas de uso, mas
nunca criam novas. Já que a linguagem científica nos serve de re
ferência normativa, é fora de dúvida que, por definição, a imperti
nência nela só pode ser muito fraca. Mas, a priori, não se saberia
que era nula. A norma é um pólo do qual a realidade pode se
aproximar sem atingi-lo. Aqui, a realidade não tolera desvio: nos
sos três autores só empregam a linguagem comum.
A linguagem romanesca desvia-se dela. Mas tal desvio (8%)
é pequeno, comparado ao que a poesia apresenta (23,6%). A di
ferença é quase de um para três, demasiado significativa para pre
cisar de controle estatístico. Também, para representar a poesia
do século XIX, só consideramos aqui o grupo romântico. Os sim-
bolistas, como veremos, teriam dado uma diferença muito mais acen
tuada. Lembremos, por outro lado, que a prosa romanesca não
representa realmente a prosa, se por esta palavra entendermos a
linguagem usual. Toda linguagem literária é estilizada, mas a graus
diferentes, e, à parte a versificação, só esta diferença quantitativa
separa o que é considerado prosa do que é considerado poesia.
É bem verdade que, dialeticamente, a quantidade se transforma em
qualidade. Abaixo de certo limiar, a anormalidade desaparece, o
que explica por que a linguagem dos grandes prosadores do século
XIX pode aparecer como linguagem normal. A determinação vai
nos fornecer exemplos ainda mais claros desta confusão.
É interessante notar que os dois grupos literários, prosadores
e poetas, formam grupos homogéneos, como mostra o cálculo do X2:
Valor-
GÊNERO Valor -limitc Limiar Diferença
Prosa romanesca 0,78 3,32 0,10 não-significativa
Poesia 0,64 3,32 0,10 não-significativa
100
1
/crenças de conteúdo, os dois gêneros podem caracterizar-se apenas
ao nível da estrutura.
Podemos agora comparar a poesia a si mesma e tirar uma se
gunda prova de sua evolução. Assinalemos os epítetos nos nossos
trés grupos habituais: clássico, romântico e simbolista. A frequên
cia dos impertinentes é dada no quadro abaixo:
Quadro IV
EPÍTETOS IMPERTINENTES (II)
Valor-
AUTORES Valor -limite Limiar Diferença
Clássicos 0,64 3,52 0,10 não-significativa
Simbolistas 1,98 3,52 0,10 não-significativa
101
1
Valor-
GRUPOS Valor -limitc Limiar Diferença
Clássicos-românticos . 15,15 4,78 0,01 significativa
Românticos-simbolistas 7,28 4,78 0,01 significativa
102
Soj (a b c) —> So2 (a cl e)
onde a representa a parte comum. Vê-se imediatamente que esse
processo requer a divisão do significado em partes componentes,
e tal divisão, que durante muito tempo foi um problema capital da
filosofia, começa agora a entrar no campo de preocupação da lin
guística.
Segundo o princípio de isomorfismo proposto por Hjelmslev77,
existe um paralelismo exato entre o plano da expressão e o plano
do conteúdo. Ora, quanto à expressão, a palavra pode ser dividida
em unidades menores, que são os fonemas. O princípio de isomor
fismo exige a mesma coisa quanto ao conteúdo, ou seja, que o signi-
ficado de uma palavra possa, por sua vez, ser dividido em unida-
des menores. Assim, a palavra “égua” pode ser analisada em dois
traços pertinentes de significação:
“cavalo + fêmea”
Aplicando esse princípio, Prieto analisa a palavra latina “vir” em:
“homo + masculino”
Sõrensen, por seu lado, decompõe “pai” em:
“ancestral + do l.° grau + masculino.
103
Mas, seja qual for o valor que se lhe atribua, essa divisão é
necessária se quisermos explicar a metáfora. É certo que se a pa
lavra abrangesse um significado indecomponível, seu emprego meta
fórico seria impossível. “Raposa” só pode significar “astuto”, por
que no espírito dos usuários a astúcia era um dos componentes se
mânticos do termo. Portanto, temos o direito de analisar “raposa”
em “animal + astuto”, conservando-se apenas o segundo traço no
emprego metafórico. Segundo Winckler, que desenvolve o tema do
“traço dominante” de Wund, este traço é, inclusive, o único cons
tituinte subjetivo do sentido, e a prova é que, em certos dialetos,
a raposa é chamada “a astuta”79. Todavia, esta teoria leva a mu
tilar o sentido. Quando dizemos “casaco de raposa”, designamos
por sinédoque “a pele”, que constitui outro componente do sentido.
A multiplicidade das mudanças de sentido a partir de um mesmo
termo é uma prova da pluralidade dos traços constituintes do signi
ficado. E o estudo dos tropos, seja dito de passagem, talvez for
necesse o critério linguístico requerido pela semântica estrutural.
Podemos então admitir, pelo menos para certos termos cha
mados “concretos”, a possibilidade de uma análise do sentido em
unidades semânticas menores, e tal possibilidade vai fornecer-nos
o meio de quantificar a impertinência.
Consideremos algumas fórmulas da linguagem poética, tais como:
tresses d’ébène
[tranças de ébano]
(Lamartine)
herbe d’émeraude
[erva de esmeralda]
(Vigny)
104
desvio, de fato nada mais é que uma sinédoque, posto que o traço
pertinente é uma parte efetiva, embora abstrata, da totalidade do
significado. A esse tipo de impertinência, limitada a um dos ele
mentos do significado e redutível por simples subtração desse ele
mento, nós chamaremos desvio do 1° grau.
Consideremos agora uma fórmula como:
bleus angélus
[azuis ângclus]
(Maliarmé)
105
No caso de “ângelus azuis”, estamos diante do que os psicó
logos chamam “sinestesia”, ou seja, a associação de sensações que
pertencem a registros sensoriais diferentes. Neste caso, uma sensa-
ção visual é associada a uma sensação auditiva, O problema da
sinestesia pertence à psicologia, e não podemos estender-nos aqui
sobre sua natureza. Voltaremos depois ao problema, mas, neste
estágio de nossa análise, a sinestesia só nos interessai como fenômeno
linguístico, enquanto relação entre dois significados. A sinestesia é
reconhecida pelos linguistas como um tipo de metáfora. Para nós,
aqui, ela é um grau da metáfora.
metáfora, Com efeito, já que a cor é ina-
nalisável, a mudança de sentido não pode atuar sobre seus caracteres
intrínsecos. Só o efeito subjetivo produzido pela cor — no caso
da cor azul, digamos que há um efeito de calma — é suscetível de
reduzir a impertinência. “Ângelus azuis” remete para a impressão
de paz produzida pelo som do ângelus. Não vamos insistir muito
nessa interpretação. Pouco importa o valor particular que se dê a
“azul”; por enquanto, o essencial não é isso, mas o fato de que
esse valor, puramente subjetivo, não pode ser considerado como
uma parte componente do significado de “azul”. Não constitui em
absoluto um traço pertinente de significação. Entre o significado
próprio de “azul”, uma determinada cor objetiva, e aquela impressão
subjetiva, a distância é grande, maior mesmo que a que separa “as
tuta”, de “raposa”, ou “negro” de “ébano”. A astúcia é um cará
ter objetivo da raposa, assim como a cor negra do ébano. Para
passar de um sentido a outro basta uma simples abstração. Por sim
ples abstração, não se pode absolutamente passar de “azul” para
“paz”. Por conseguinte, vamos distinguir dois graus na metáfora
e, correlativamente, dois graus na impertinência, conforme a rela
ção dos dois significados. Elaverá impertinência do primeiro grau
se a relação for de interioridade; impertinência do segundo grau se
for de exterioridade.
A sinestesia não é o único exemplo de impertinência do segundo
grau. A distinção estabelecida por H. Adank 80 entre “metáforas
explicativas” e “metáforas afetivas” corrobora nosso ponto de vista,
Metáfora afetiva é toda aquela que “repousa numa analogia de
valor sugerida por nossos sentimentos, nossa subjetividade”. Mas,
ao que para o autor é uma diferença qualitativa, nós acrescentamos
uma distinção quantitativa. “A analogia de valor” constitui para
106
nós uma semelhança mínima. A metáfora afetiva corresponde, por
tanto, a uma impertinência máxima cm virtude do princípio que
propusemos, segundo o qual a grandeza da impertinência é propor
cional à grandeza da mudança dc sentido necessário para reduzi-la,
vale dizer, à distância que separa o sentido próprio do sentido figurado.
Esta noção de distância, que permite quantificar a figura, de
resto, não é nova: a antiga retórica distinguia entre metáforas “pró
ximas” e metáforas “distantes”, segundo a terminologia de Barry,
ou metáforas “claras” e “obscuras”, segundo Fontanier. Mas não
fornecia critério dc distinção. A nosso ver, o recurso aos “primitivos”
da significação, como as palavras de cor, garante-nos o caráter “dis
tante” das metáforas baseadas neles, e, por conseguinte, o alto grau de
impertinência dos sintagmas de que são predicados. E assim chegamos
ao objetivo que pretendíamos com esta longa discussão: comparar
a poesia a si mesma no que diz respeito à impertinência do 2.°
grau. Os retoricistas, de acordo com a estética da época, proibiam
a metáfora distante. Vejamos se a poesia na sua história seguiu tal
preceito.
O inventário estatístico, desta vez, vai limitar-se, portanto, ape
nas aos epítetos de cor, à razão de cem por autor, conforme o pro
cesso habitual. Foram classificadas como impertinentes:
l.° As cores diferentes das que os objetos possuem por definição:
nuit verte
[noite verde]
(Rimbaud)
crépusculcs blancs
[crepúsculos brancos]
(Mal 1 arme)
107
é difícil conseguir o número exigido pela estatística. Todavia, al
guns exemplos recolhidos parecem mostrar que neles o desvio é
quase igual a zero. Todos os epítetos de cor são tomados ora no
sentido próprio, ora num sentido metafórico de uso. Assim, em
Iphigénie, o epíteto “epíteto “noir” aparece três vezes:
Approuvc la fureur dc ce noir sacrijicc
[Aprova o furor deste negro sacrifício]
Quadro V
EPÍTETOS DE COR IMPERTINENTES
Lamartine 4
Hugo 5 13 4,3%
Vigny 4
Rimbaud 42
Verlaine 36 126 42%
Mallarmé 48
108
O desvio do 2.° grau aparece com os românticos, mas só se
generaliza com os simbolistas. Os primeiros abriram o caminho,
mas só os segundos tiveram a coragem de seguir por ele. É bem
verdade que, com a cor, escolhemos um caráter particularmente di
fícil de tratar poeticamente. A cor é uma das propriedades empí
ricas mais flagrantes que possuem as coisas deste mundo. Dar a
um objeto uma cor que ele não tem, ou ainda, atribuir uma cor a
seres não sensíveis, parece um desafio deliberado à razão. O uni
verso simbolista é um universo desconcertante: nele, a lua é rosada,
a erva azul, o sol negro e a noite verde. E o que é ainda mais estra
nho: o êxtase ê vermelho, a solidão azul, o sono verde. Tais são
quclas “cores nunca vistas” que, misturando-se a formas estranhas,
aquelas
al ruídos inauditos, compõem o mundo aparentemente fantástico
do poeta.
Com o simbolismo começa o divórcio atual entre a poesia e o
público. Mas tal divórcio provém de um malentendido, pelo qual
são cm parte responsáveis certas concepções doutrinais, às vezes
defendidas pelos próprios poetas. O surrealismo, sobretudo, levou
este malentendido ao extremo pela afirmação, herdada do idealismo
alemão, de um “surreal” concebido como um segundo mundo, oculte
sob o primeiro, que é sua falsa aparência. Desse modo, perpetuava o
erro substancialista, creditando para as coisas o que pertence à lingua
gem. Não existe universo poético; o que existe é uma maneira poé
tica de exprimi-lo. A poesia não fala a linguagem literal. A lua
não é rosada, o sol não é negro, a noite não é verde. Se fossem, o
poeta o diria de maneira diferente. A fórmula de Breton, que ci
tamos acima, poderia inverter-se. O poeta nunca diz diretamente
o que quer dizer, nunca chama as coisas pelo nome. A cor verde,
em “noite verde” não é a cor objetiva. É apenas um primeiro
significado que funciona como significante de um significado se
gundo. A exigência de literalidade detém o processo de descodifi
linguagei poética
cação no seu primeiro tempo, privando assim a linguagem
de sua verdadeira significação.
Se a poesia pratica sistematicamente a impertinência, se de ma
neira geral ela só pode construir-se violando sistematicamente as re
gras da linguagem, é porque o caminho direto que vai de Se a So2
se acha cortado, como já dissemos. Entre ambos interpõe-se sem
pre Soj, o significado primeiro. Trata-se de um fato que decorre
da própria estrutura da linguagem; por isso é preciso primeiro des
locar essa estrutura.
109
A metáfora ou mudança de sentido c uma transmutação do sis
tema ou paradigma. A figura é um conflito entre o sintagma c o
paradigma, entre o discurso c o sistema. O discurso normal inscreve-
-se na linha do sistema, de conformidade com suas leis. Nada mais
faz que atualizar suas virtualidades. O discurso poético inverte o
sistema e, nesse conflito, é o sistema que cede e aceita transformar-se.
A poesia, na profunda expressão de Valéry, é uma “linguagem den
tro da linguagem”, uma nova ordem linguística fundada sobre as
ruínas da antiga, através da qual, como veremos na conclusão, se
constrói um novo tipo de significação. O absurdo poético não é
preconcebido. É o caminho inelutável pelo qual o poeta deve pas
sar, se quiser fazer a linguagem dizer aquilo que a linguagem nunca
diz naturalmente.
Podemos dar uma contraprova disso mostrando que, em qual
quer fórmula poética, basta suprimir ou diminuir o desvio para ex
pulsar a poesia. E não se poderia escolher exemplo melhor que
este célebre verso de Virgílio, objeto de recente controvérsia81:
Ibant obscuri sola sub noctc. . .
Cuja tradução ao pé da letra seria:
Iam escuros na noite solitária.
A impertinência é evidente, Os epítetos parecem deslocados, como
por engano, Tanto é que alguns comentaristas, apesar do texto,
restabelecem a ordem normal, que seria então:
Iam solitários na noite escura.
Com isso, salva-se o código, mas mata-se a poesia. Com efeito,
quem não vê imediatamente que esta segunda versão é simples prosa
e nada mais que prosa? A poesia nasce da impertinência e o poeta
sabia disso muito bem. Assim, contra o código, dizia homens es-
curos e noite solitária.
A mesma concepção permite-nos responder ao desafio de Bre-
mond, cujos termos lembramos aqui:
“Esperemos enfim que os filósofos da poesia-razão nos expli-
quem por que o verso de Malherbe:
Et les fruits passeront la promesse des jlcurs
110
é um dos quatro ou cinco milagres da poesia francesa, e por que
não se pode alterar a mínima letra desse verso sem degradá-lo in-
teiramente. Acrescente-se o peso de um floco de neve ao terceiro
destes divinos anapestos:
Et les fruits passeront les promesses des fleurs
e o vaso se quebra.”
Mas a passagem do singular para o plural pesa mais que um
floco de neve. Na realidade, constitui simplesmente uma redução
do desvio. ‘‘As promessas” é uma metáfora de uso, uma fórmula
correntemente tomada no sentido de “signos precursores”. O fato de
que flores possam anunciá-los está em conformidade com o código.
“A promessa”, pelo contrário, conserva seu sentido próprio de
“juramento”, o qual só pode ser feito por homens
homens 82. Por conse
guinte, o singular atribui ao sujeito um predicado impertinente, vio-
lando o código que o plural restabelece. Se o vaso se quebra quando
suprimimos o desvio, isso vem provar que o desvio é seu pedestal.
111
Capítulo IV
112
predicativo, que enriquece a compreensão do sujeito, o demonstra
tivo nada mais faz que indicar a quem se refere o predicativo. Por
tanto, enquanto o termo predicativo aumenta a compreensão do su
jeito, o termo determinativo só lhe limita a extensão. Nesse senti
do, a determinação pode reduzir-se a simples quantificação, e é assim
que a consideram grande número de linguistas (Brunot, Yvon, Cres-
sot. . . ). Porém, notamos que subsiste uma diferença entre as duas
fórmulas seguintes: “Uns cães” e “estes cães”. Em ambos os ca
sos, a extensão do sujeito está limitada, mas, enquanto o indefinido
se restringe à limitação, o demonstrativo permite saber exatamente
de que cães se trata. Por isso, certos linguistas, como Bally, dis
tinguem duas funções diferentes: de um lado, a “quantificação”,
de outro, a “localização”. Os indefinidos e os numerais limitam-se
a quantificar; os demonstrativos e os possessivos quantificam e lo
calizam ao mesmo tempo. Adotaremos este ponto de vista, que é
confirmado, como veremos, pela existência de dois tipos de figuras
diferentes.
A função determinativa é desempenhada por uma categoria de
termos previstos para isso, mas pode também efetuar-se sob outras
formas: adjunto adnominal (o livro de Pedro), oração adjetiva
(o livro que está sobre a mesa), e também epíteto (o livro preto),
Pelas razões já indicadas no capítulo anterior — abundância e ren-
dimento —, basearemos nossa análise no epíteto, Será fácil esten-
der os resultados para as outras formas.
113
so, ou é julgado até dispensável e redundante. Sc eliminarmos o ad
jetivo de uma oração, ela fica incompleta ou apresenta um sentido
diferente. Se eliminarmos o epíteto, a oração poderá permanecer
inteira, mas ficará talvez solta ou enfraquecida. “Essa é a regra
geral, segundo Roubaud, para distinguir o epíteto do adjetivo, e
aplicá-la-emos ao exemplo seguinte: “O espírito sombrio entristece,
por assim dizer, os objetos mais risonhos. A pálida morte bate
tanto na porta do pobre como na porta dos reis”. Tiremos a pa
lavra sombrio da primeira frase: esta não tem mais sentido. Tire
mos a palavra pálida da segunda: o sentido permanece, mas a ima
gem fica desbotada. Portanto, a palavra sombrio é puramente adje
tivo na primeira frase, e a palavra pálida é epíteto na segunda” 84.
No entanto, Fontanier não explica por que o adjetivo c ora
dispensável ou redundante, ora necessário ou indispensável. Por que
podemos eliminar sem inconveniente “pálida” em “a pálida morte”,
e não “sombrio” em “o espírito sombrio”? Tentaremos responder
a esta pergunta. Veremos aparecer, então, a estrutura particular da
figura.
Se, pela supressão do epíteto, transformarmos a frase: “O es
pírito sombrio entristece os objetos mais risonhos” em “O espírito
entristece os objetos mais risonhos”, não obteremos uma fórmula
“que não tem mais sentido”, como afirma Fontanier. Alterou-se
apenas o valor de verdade da oração. A primeira é verdadeira, a
segunda é falsa. Por que? Porque, ao eliminar o epíteto, se trans-
formou a <extensão do sujeito e, consequentemente, o campo de apli-
cação do predicado, Passou-se de alguns a todos; ora, o predicado
é válido para alguns, mas não para todos. É verdade que o espírito
sombrio entristece os objetos mais “risonhos”, mas não é verdade
para todo espírito, Deste modo, o epíteto prova seu valor pura-
mente determinativo. Ele foi feito para responder à pergunta:
Qual? Desempenha essa função delimitando uma espécie dentro
de um gênero.
Para desempenhar seu papel, é preciso que o epíteto se aplique
somente a uma parte da extensão do substantivo. O que pode ex
primir-se em linguagem simbólica da maneira seguinte:
Consideremos todas as palavras como classes, e a relação subs
tantivo-epíteto como um caso de multiplicação lógica. Sendo A
114
o substantivo c B o adjetivo, para que a função determinativa possa
atuar, é preciso que:
A X B = C, cm que C<A.
Assim, a classe dos homens multiplicada pela classe dos brancos dá
a subclasse dos homens brancos.
Mas, caso o adjetivo se aplique a toda a extensão do substan-
tivo, temos:
A X B = A.
Assim, a classe dos homens, multiplicada pela classe dos mortais,
dá a classe dos homens mortais, que é igual à classe dos homens.
A multiplicação torna-se inútil, então, e o epíteto é redundante.
O primeiro caso é o de ‘‘espírito sombrio”, que constitui uma
subclasse da classe “espírito”. O segundo, pelo contrário, é o de
“pálida morte”, que é extensivamente igual a “a morte”, pois o
adjetivo se aplica à morte em geral. Sendo assim, existe entre o
epíteto e o predicativo uma diferença ao mesmo tempo gramatical
e lógica. Gramaticalmente, o epíteto difere do predicativo pele
fato de ligar-se imediatamente ao substantivo, ao passo que o pre
dicativo se liga por meio de um verbo de ligação. Logicamente, a
diferença está na regra que acabamos de enunciar. O predicativo
pode aplicar-se a todo ou parte do substantivo. O epíteto só pode
aplicar-sc exclusivamcnte a uma parte deste.
Encontramos uma estrutura análoga à da figura precedente.
Chamamos impertinente o predicado lexicalmente incapaz de cum
prir sua função predicativa. No caso presente, o epíteto que cha
maremos “redundante” se revela, por sua vez, incapaz de desem
penhar a função determinativa. Em ambos os casos, estamos diante
de palavras cujo sentido as torna incapazes de desempenhar o papel
que a gramática lhes atribui.
Considerando-se apenas o epíteto, podemos até encarar imper
tinência e redundância como dois tipos da mesma figura. Com
efeito, se o epíteto é normal quando
A X B = C,
teremos dois casos de anormalidade:
l.° A X B = O.
115
É o caso da impertinência.
2.° A X B = A.
É o caso da redundância.
Para desempenhar sua função, um epíteto deve; 1.'.° aplicar-se
a uma parte do substantivo; 2.'.° aplicar-se somente a iuma parte,
Ele é anormal se não convier para nenhum ou se convier para todos.
Não se aplica a nenhum em “perfumes negros' , aplica-se a todos em
“verde esmeralda”.
Vamos mostrar agora, através da análise estatística, que o epí
teto redundante caracteriza a linguagem poética. Antes, convém
dissipar uma objeção eventual.
Se “perfumes negros” é uma expressão cuja incongruência é
evidente, não acontece o mesmo com “verde esmeralda”. Neste
caso, o desvio parece muito menor. É inútil, certamcnte, precisar
que a esmeralda é verde, porque já o sabemos. Mas precisá-lo é
apenas desobedecer a um princípio de economia do discurso, que
prescreve evitar as palavras inúteis, c tal princípio, baseado na lei
do mínimo esforço, parece menos imperioso que o princípio de con
tradição infringido pela impertinência. No final das contas, redun
dância e impertinência não parecem situar-se ao mesmo nível fun
cional.
Na realidade, trata-se de um desvio da mesma ordem, Con si-
deremos esta fórmula de Leconte de Lisle:
Les éléphants rugueux. . . vont au pays natal.
[Os elefantes rugosos. . . vão ao país natal.]
116
zer informação. A teoria da informação coloca-se a um nível extra-
-lingiiístico, ao nível da comunicação como conduta social. Como
tal, a comunicação é provida de uma finalidade própria, que trans-
cende o plano da estrutura particular da mensagem, plano esse em
que nos colocamos rigorosamente aqui.
No verso citado, “rugosos” é um desvio, porque está encarre
gado de uma função determinativa que é incapaz de cumprir. Como
epíteto, deve delimitar uma espécie dentro do gênero “elefante”, mas
não pode cumprir tal função. Portanto, o epíteto não funciona como
epíteto, c temos aqui um desvio propriamente linguístico. Podemos,
aliás, utilizar termos de lógica e considerar “os elefantes rugosos”
como uma expressão que designa ao mesmo tempo a parte e o todo.
Ao nível gramatical, “os elefantes rugosos” designa necessariamente
uma espécie de elefante, mas ao nível lexical, a expressão designa
todos os elefantes. Sendo assim, a parte é igual ao todo e vemos
que se trata efetivamente de um desvio de ordem lógica.
Por isso, expressões como “a verde esmeralda”, ou “o anil
azul” (Mallarmé), são figuras de invenção, achados particulares do
poeta. Invenção e redundância parecem termos antitéticos, mas só
o seriam se o adjetivo fosse atributo. Dizer “a esmeralda é verde”
não provaria nenhuma invenção; mas, aqui, a invenção consistiu jus
tamente em fazer dc maneira abusiva um epíteto a partir de um
adjetivo incapaz de desempenhar este papel. É nisso que a figura
é poética, como provaremos através da estatística. Porém, a intui
ção de cada um confirma que o mesmo adjetivo perde seu poder
quando se comporta normalmente. “Tecido verde” pertence à
prosa, porque o adjetivo determina realmente o substantivo, já que
nem todo tecido c verde. Se existissem duas cores de esmeralda,
como existem duas cores dc diamante, “verde esmeralda” não seria
mais poético que “diamante azul”.
Tudo isso supõe que a função normal do epíteto seja a deter
minação. Ora, neste particular, os gramáticos mostram-se hesitantes.
Alguns, como Damourctte c Pichon, admitem dois tipos de epíteto:
um “restritivo”, isto é, determinativo, outro “pictivo”, isto é, que
pinta. Mas os dois autores não assinalam o caráter retórico do se
gundo tipo dc epíteto, o que faria pensar que ele pertence à linguagem
normal. Sabe-se de onde vem essa dúvida: os gramáticos conside
ram como linguagem normal a linguagem literária, onde os epítetos
não determinativos são frequentes, sem perceber que estes constituem
um desvio em relação à norma. Pelo contrário, se nos referirmos
117
apenas à linguagem científica, como é justo fazer, o desvio aparece.
Veremos no quadro estatístico que, na linguagem científica, os epí
tetos não determinativos são excessivamente raros (3,66%) c apa
recem quando o autor deixa de falar como homem de ciência, como
prova o conteúdo. Por exemplo, na frase seguinte, de Claude Ber-
nard: “...Para mencionar uma das opiniões mais autorizadas no
assunto, citarei o que meu sábio colega c amigo J. Bertoud escreveu
a respeito”. “Sábio” é redundante, mas ao falar de um colega e
amigo, Claude Bernard não fala mais a linguagem da ciência e em
prega uma expressão literária. Todos os demais epítetos são deter
minativos, como mostra este fragmento de Introduction à la Mé-
decine expérimentale: “Como a Ciência se estabelece apenas através
de comparação verdadeira, o conhecimento do estado patológico ou
anormal não pode obter-se sem o conhecimento do estado normal,
da mesma forma que a ação terapêutica dos agentes normais ou
medicamentos não pode compreender-se cientificamente sem o es
tudo prévio da ação fisiológica dos agentes normais que mantêm
os fenômenos da vida” (grifado por nós).
De resto, convém notar que todos os outros casos de redun
dância observados nos textos científicos pertencem ao grau mais
baixo da figura. Diremos logo adiante o que se deve entender por
isso.
Portanto, temos o direito de concluir que o epíteto é normal
mente determinativo, e que todo epíteto que não o é constitui um
desvio ou figura. Veremos que este desvio aparece com a prosa li
terária e se desenvolve com a poesia.
A análise de textos mostra que há dois tipos de redundância
epitética, conforme o substantivo seja um substantivo comum ou
um nome próprio.
l.° Substantivo comum. Já demos exemplos:
Les éléphants rugueux, voyageurs lents et rudes
Vont au pays natal, à travers les déscrts. (Lcconte dc Lisle)
[Os elefantes rugosos, viajantes lentos e rudes
Vão ao país natal, através dos desertos.]
118
-
i
Aqui, o substantivo designa uma classe, e o adjetivo aplica-se a toda
a extensão desta classe. Não há elefante que não seja rugoso, nem
esmeralda que não seja verde, nem anil que não seja azul.
2.° Nome próprio.
La blanche Ophélia flotte comine un grand lys.
[A branca Ofélia flutua coino um grande lírio.]
(86) Pelo menos para o “right rcader”, para quem Ofélia remete a
Hamlct, c Palmira à cidade desaparecida.
119
O caso do nome próprio é interessante, pois mostra, melhor
que o substantivo simples, o sentido particular que se deve atribuir
à redundância. Com efeito, o mesmo adjetivo utilizado como pre
dicado retomaria aqui seu aspecto normal. “Ofélia é branca”, ou
“tua cabeça é loira”, não teriam nada que surpreendesse. Como
não são de notoriedade pública, esses caracteres escapam da redun
dância no sentido de banalidade. Nota-se que são anormais só por
que o poeta fez deles epítetos, isto é, impôs-lhes uma função que
são incapazes de desempenhar.
Reconhecidos os principais tipos de redundância epitética, po
demos fazer a estatística comparada, segundo nosso método habi
tual, ou seja, contando o número de epítetos redundantes numa po
pulação de cem epítetos, escolhidos ao acaso em cada autor estudado.
Quisemos confrontar primeiro a taxa de redundância das lin
guagens científica, literária e poética. Para esse fim, escolhemos
autores que pertencem a um mesmo estado de língua. Estudamos
três científicos, três romancistas e três poetas do século XIX.
Os resultados vêm a seguir no quadro VI. A diferença é bas
tante nítida e não necessita de controle estatístico. Passamos de
Quadro VI
EPÍTETOS REDUNDANTES (Para 100 epítetos)
120
uma média de 3,66% nos científicos para 16,66% nos romancistas e
35,66% nos poetas.
E isso, considerando estas médias cm relação a uma população
bruta de epítetos; dessa forma, os epítetos impertinentes são conta
dos como normais. Pelo contrário, se eliminarmos os impertinentes
para considerar apenas os epítetos pertinentes, os resultados tornam-
-se ainda mais significativos: não mudam para a ciência, que não
comporta epítetos impertinentes; mudam pouco para a prosa lite
rária, que só comporta um número reduzido; mas aumentam muito,
pelo contrário, para a poesia, onde a impertinência é frequente. Os
resultados corrigidos são os seguintes:
Quadro VII
Prosa científica 3,6%
Prosa literária 18,4%
Poesia 58,5%
121
rém, deve-se levar cm conta o grau da figura. Com efeito, no grau
baixo, como veremos logo adiante, a redundância é tão facilmente
redutível que o desvio mal aparece. Ora, a grande maioria dos epí
tetos clássicos pertence ao grau baixo da redundância.
Quadro VIII
EPÍTETOS REDUNDANTES
Quadro IX
EPÍTETOS /XNORMAIS (Impertinentes c Redundantes)
- (Para 100 epítetos)
122
Rimbaud 79
Verlaine 81 246 82 %
Mallarmé 86
Valor-
GRUPOS Valor -1 imite Limiar Diferença
Clássicos . 4,45 6,64 0,01 não-significativa
Românticos 0,02 3,32 0,10 não-significativa
Simbolistas 1,19 3,32 0,01 não-significativa
123
que quer e não se assemelha a ninguém. Porém, embora o que ele
diz seja pessoal, a maneira de dizer não lhe pertence, permanece
qualitativamente a maneira de um gênero e quantitativamente a de
uma época. Não existe língua poética se por língua entendermos
uma soma de palavras. Existe, porém, uma linguagem poética, se
linguagem significar combinação de palavras, isto é, frases. Temos
então, uma frase poética que é tal não pelo conteúdo, mas pela
estrutura.
A semelhança estrutural entre redundância e impertinência apa
rece também ao nível da redução. Convém repetir que a linguagem
poética é provida de sentido. A redundância leva a um absurdo,
tornando a parte igual ao todo. Ao pé da letra, “verde esmeralda”
designa uma espécie do gênero “esmeralda”. Para que a expressão
tenha novamente sentido, é preciso que a redução do desvio seja
possível. Ela o é sempre, como provaremos; mas a dificuldade é
maior ou menor, o que nos autoriza, segundo esse critério, a intro
duzir na figura uma diferença de intensidade.
Já que o epíteto é supérfluo, parece a priori que basta elimina
do para reduzir o desvio. Contudo, tal maneira de operar seria
abusiva. O adjetivo está presente no texto, é preciso integrá-lo.
Podemos fazê-lo “alterando” a fórmula, isto é, transformando um
de seus elementos. Já que o desvio provém de uma oposição entre
o léxico e a gramática, é preciso mudar aquele ou esta, vale dizer,
ou o sentido da palavra, ou sua função.
O primeiro grau da redução consiste em mudar a função,
Trata-se da operação mais fácil: basta transformar o epíteto em
aposto, ou seja, destacar o adjetivo.
A diferença entre epíteto e aposto (ou “epíteto destacado”,
como o chama Grevisse) está na simples presença ou ausência de
uma pausa entre o substantivo e o adjetivo. “Pedro doente não
pode vir” pode facilmente interpretar-se como: “Pedro, doente,
não pode vir”. Sob esta forma, o adjetivo deixa de ser aberrante,
Com efeito, o epíteto
• destacado não tem mais função determinativa,
mas predicativa,. É uma espécie de predicado secundário, que toma
naturalmente o 1valor de adjunto adverbial de causa, concessão, modo,
etc. A fórmula precedente, por exemplo, tem claramentej o sentido
de “Pedro não pode vir porque está doente”.
Mas nota-se que a operação só é possível se o adjetivo o per
mitir lexicalmente. Assim, neste exemplo:
124
Et mon amour flattcur dejà me persuade
Que je le vois assis au trône de Grenadc (Comeille)
[E meu amor lisonjeiro já me faz crcr/Quc o vejo sentado no
trono de Granada]
125
Na sua grande maioria, os epítetos redundantes que encontra
mos na prosa literária e nos poetas clássicos pertencem ao grau
baixo da figura. Daí provém certamente o fato de o epíteto re
dundante ter parecido normal às vezes. Considerou-se naturalmente
tal epíteto como uma espécie de predicado secundário, uma quali
ficação secundária introduzida para fins legítimos. Não se levou
I em conta que o predicado secundário deve, por um lado, destacar-se
do substantivo, por outro, justificar sua presença pelo sentido. No
primeiro caso, a direfença é pequena e pode passar despercebida.
Ela aparece claramente no segundo, e este é justamente o caso obser
vado nos românticos, mais ainda nos simbolistas. Aqui, predomina
■
o grau alto da figura. Tomaremos apenas um exemplo, porque
i constitui um caso-limite de redundância:
Et la bouche, fiéureuse et d*azur bleu voracc. (Mallarmé)
[E a boca, febril e de anil azul voraz.]
126
li
O ato de comunicação supõe a existência cic uma mensagem
e de um código que funcionem separadamente. Porém, entre men-
sagem e código, dentro da própria mensagem, pode estabclccer-se
relações complexas que Jakobson analisa nos seguintes termos:
“A mensagem (M) e o código subjacente (C) são ambos su
portes de comunicação linguística, mas funcionam de maneira dupla:
tanto um como outro podem sempre ser tratados seja como objetos
de emprego, seja como objetos de referência. É assim que uma
mensagem pode remeter para o código ou para outra mensagem
e que, por outro lado, a significação geral de uma unidade do có
digo pode implicar numa referência seja ao código, seja à mensagem.
Consequentemente, deve-se distinguir quatro tipos duplos: l.° —
dois tipos de circularidade: mensagem que remete para a mensagem
(M/M) c código que remete para o código (C/C); 2.° — dois ti
pos de superposição: mensagem que remete para o código (M/C)
c código que remete para a mensagem (C/M)”89.
Dos quatro tipos, conservaremos dois porque dão origem a fi-
guras poéticas notáveis, Ambos emanam do código, c vão seja para
a mensagem, seja para o código, Ou melhor, pode-se simbolizar
essas duas relações por (M.C.M.) e (M.C.C.), já que a mensagem
é sempre a fonte, mas pode-sé designá-las economicamente por (C.M.)
e (C.C.).
Existe na língua uma classe especial de unidades que Jespersen
chama “shifters” e define assim: “Uma classe de palavras cujo sen
tido varia com a situação’’ 90. O exemplo típico é o pronome pessoal.
“Eu”, segundo o código, significa a pessoa que emite a mensagem.
Porém, vemos que tal designação permanece lacunária. Ao contrário
do substantivo que designa uma pessoa, “Eu” pode aplicar-se a
qualquer um e, para dissipar a ambiguidade, é preciso saber quem
é o emissor da mensagem. Na linguagem falada, essa informação
é fornecida pela situação: o emissor é quem profere os sons.
No entanto, o poema é escrito e a linguagem escrita está “fora
de qualquer situação”. Por conseguinte, a própria mensagem deve
fornecer a informação exigida. É no discurso escrito que o “pro-
-nome” substitui verdadeiramente o nome, mas só pode fazê-lo se
este nome aparecer efetivamente no contexto. Sendo assim, a lin-
127
guagem escrita apresenta certa redundância em relação à linguagem
falada. Uma carta leva obrigatoriamente uma assinatura, uma auto
biografia o nome do autor. No romance escrito na primeira pessoa,
“Eu” designa um ser fictício, evidentemente, mas não deixa de
ser apresentado e nomeado no contexto. O que acontece no poema?
Quem diz “Eu” em:
Jc suis le ténébrcux, Ic veuf, 1’inconsolé
Lc Princc d’Aquitaine à la tour abolic. . .
[Eu sou o tenebroso, o viúvo, o inconsolado/O Príncipe de Aqiii-
tânia da torre desaparecida. . .]
128
]■
Vê-se que “Eu” já não c simplesmente o “emissor da mensa
gem”. O pronome remete para uma significação nova, que não
está inscrita no código, embora emane dele. A ausência, na própria
mensagem, da referência para a qual o código remete, transforma O
código, dotando-o de um poder novo, Não existe palavra no dicio-
nário para significar “o poeta essencial e absoluto”: a figura conse-
gue criar uma. Tal fórmula exprime, na i metalinguagem, uma signi-
ficação que deriva do próprio ato da figura, infringindo como tal
as leis da linguagem normal.
O poema é escrito, mas simula ser falado. Assim, infringe
uma regra geral da estratégia do discurso. O discurso tem de for
necer ao destinatário o conjunto de informações que este requer.
Mas, por economia, o falante elimina as informações que o inter
locutor pode deduzir da situação. O poema faz a mesma coisa,
com a diferença de que a situação está ausente. A partir daí, todas
as palavras que são feitas para determinar tornam-se incapazes de
cumprir sua função, designam sem designar. É o que acontece com
os demonstrativos. Dentro da situação, funcionam como “index”,
para utilizar a terminologia de Pierce. Acompanham um gesto que
fornece a referência. No discurso escrito, remetem para algo já
mencionado pela própria mensagem. No poema, as duas referências
faltam:
Vois sur ces canaux
Dormir ces vaisscaux
[Veja nesses canais/Dormirem esses navios]
Na ausência de situação, canais e navios deveriam ser objeto
de outra menção na mensagem, mas o poeta não apresenta nenhuma.
Não é por economia, evidentemente, pois a poesia, quando quer,
pratica de bom grado a redundância:
Là tout n’cst qu’ordrc ct beauté
Luxe, calme ct volupté.
[Lá tudo c ordem c bclcza/Luxo, calma e volúpia.]
é uma informação que o poema contém três vezes. A carência é
propositada, para marcar de indeterminaçao os seres e as coisas que
povoam o universo poético. É principalmente desta figura que
emana aquela impressão de realidade vaga, nebulosa, irremediavel
mente secreta, que se prende à própria categoria do poético. O mis
tério que pesa sobre as coisas não é um caráter contingente, oriundo
5 129
de uma ignorância circunstancial e sempre revocável; c um mistério
em si, aquilo que c desconhecido por natureza, para todos c para
sempre.
O tratamento poético das determinações de espaço c de tempo
pode ser objeto das mesmas observações, Trata-se de uma questão
que mereceria longa análise, aliás, mas sobre a qual nos limitaremos
a dar algumas indicações.
Advérbios de tempo tais como amanha, ontem, outrora, ou
advérbios de lugar tais como aqui, lã, entram também na categoria
dos “shifters”. Ligam o código à mensagem. “Amanhã”, por exem
plo, significa o dia que se segue ao da emissão da mensagem; “on
tem”, aquele que o precede. Todavia aqui também, na ausência de
situação, é o contexto que deve fornecer a informação requerida:
obrigação que o poema não respeita, mais uma vez. Essas palavras,
feitas para determinar um dia preciso, designam todos os dias e
nenhum deles. Pelo uso que o poeta faz, a função fica invertida e
torna-se função de indeterminação.
Pode afirmar-se o mesmo dos tempos verbais. Todos se refe
rem a um presente que é o do enunciado. Na linguagem falada, o
presente é datado pela situação; na linguagem escrita, pelo contexto.
Mas o poema não é datado. A data que, às vezes, acompanha o texto
remete para a fabricação do poema, isto c, para um tempo que trans
cende o discurso. Também neste caso, o poema comporta-se como
se fosse falado, supõe o eixo de referência temporal dado pela própria
comunicação. Mas, como a comunicação escrita não está situada
no tempo como acontecimento, ela mesma deve mencionar seu eixo
de referência: “Era no ano da Graça...” diz a narrativa clássica.
Esta referência falta no poema. A narrativa irrompe num passado
não referido:
Lcs champs n’étaient point noirs, les cieux n’élaient pas mornes...
[Os campos nao estavam sombrios, o ccu não estava escuro...]
130
1
131
uma resposta a uma pergunta que não foi feita. “Agathe” não é
um pseudónimo, nem é convencional, à maneira dos nomes da co
média clássica. É um nome de mulher, mas como não se aplica
a tal ou tal mulher em particular, remete ao mesmo tempo para
todas e nenhuma. Agathe não é uma mulher determinada, conhecida
pelo autor, de quem ele esconderia a identidade; também não é
uma mulher qualquer. Retomando as palavras de Etienne Souriau,
podemos qualificá-la de mulher “essencial e absoluta”. Esta fór
mula, assim como outras do mesmo tipo por nós utilizadas — pas
sado sempre passado, ausência sem presença — constitui uma ten
tativa para dizer o inefável. A este último termo, não atribuímos
o sentido quase místico que se lhe dá às vezes. “Inefável” significa
apenas que é impossível de exprimir com rigor pela prosa, isto é,
sem figura, aquilo que só a poesia, através de figuras, tem o poder
de exprimir.
O significado poético não é inefável, já que precisamente a
poesia o diz. A verdade é que ele é indizível em prosa, porque
transcende o universo conceituai em que esta linguagem situa sua
significação. A poesia não é a “bela linguagem”, mas uma lingua
gem que o poeta teve de inventar para dizer aquilo que não teria
dito de outra forma.
132
Capítulo V
133
Vê-se claramente que a segunda forma, em que falta a conjunção,
é, todavia, semanticamente análoga à primeira.
Na realidade, a justaposição é a maneira mais comum de coor
denar. A presença do vínculo “e” no começo de cada frase tornaria
o discurso muito pesado e a fala escrita prefere a simples justapo
sição. Portanto, se o processo é corrente, não pode ser considerado
uma figura e, embora a antiga retórica chamasse “disjunção” essa
omissão do vínculo, consideraremos a justaposição como a forma
normal de coordenação. É o que faz Gérald Antoine quando define
o discurso como uma “imensa coordenação”93, definição que co
menta mais adiante nestes termos: “Onde há fala, discurso seguido,
há necessariamente sequência, encadeamento, cm suma, “coordena
ção de frases”. Notemos, por outro lado, que na maioria dos casos
a frase seguinte retoma uma palavra da frase anterior, seja direta
mente, seja por meio de um pronome. Não se trata de uma regra,
mas do efeito de leis semânticas implícitas.
Como toda função, a coordenação submete-se a leis gramaticais
codificadas, Pode-se dizer que de maneira geral ela exige a homo-
geneidade ao mesmo tempo morfológica e funcional dos termos co-
ordenados, Os coordenados devem em primeiro lugar pertencer à
mesma categoria, pelo menos em francês moderno. Saint-Simon po-
dia escrever: “Pedi-lhe para vir e que lhe dissesse”, o que não é
tolerado hoje, Em segundo lugar, os coordenados devem exercer a
mesma função. Não se pode dizer: “Ele teve uma gripe e na semana
passada”, pois os dois complementos não têm a mesma função cir-
cunstancial.
Do ponto de vista semântico, será que existem regras da função
coordenativa?
Consideremos as duas fórmulas seguintes:
Jl pleut et 2 et 2 font quatre.
Paul est blond et honnête.
[Está chovendo e dois e dois são quatro./Paulo c loiro c honesto.]
134
das a [propósito da predicação, estas também produzem iuma nítida
impressão de incongruência, Temos o sentimento de umi desvio de
uma regra não formulada, mas que todavia existe. E a prova é que
esse tipo de desvio recebeu um nome em francês: chama-se “coq-
-à-l’âne” *, essa passagem de uma ideia para outra que não tem
nenhuma relação com a primeira, É exatamente o que ocorre com
as fórmulas em questão: ligam ideias cuja relação lógica é difícil
de estabelecer. Não há dúvida de que é difícil precisar qual deve
ser a relação lógica entre ideias sucessivas. Entretanto, não hesita
mos em recusar como “desconexo” ou “incoerente” um discurso
cujas partes sucessivas nos parecem desarticuladas. Nestes casos, como
ocorre freqúentemente, temos o sentimento do desvio sem ter o
conceito da regra cm relação à qual ele é desvio. É esta regra que
tentaremos estabelecer aqui, pelos menos grosseiramente.
Se nos contentarmos com uma formulação geral, podemos dizer,
a título de regra, que toda coordenação requer certa unidade de
sentido entre os termos que coordena. No fundo, temos aqui o
correlato semântico da regra gramatical. À homogeneidade formal
exigida pela gramática responde uma homogeneidade de sentido exi
gida pela lógica. É com essa mesma generalidade que um eminente
gramático exprime a regra: “...Neste caso, só há coordenação se
as expressões que se sucedem nas frases formarem um todo, uma
unidade de pensamento”94. É bem verdade que tal unidade de
pensamento pode ser a unidade, meramente aditiva, de termos per
cebidos simultaneamente. Mas, geralmentc, a consciência normal
não abarca, num mesmo ato de pensamento, termos heterogéneos.
No mesmo momento, não é possível pensar no tempo que está fazen
do e no teorema de Pitágoras.
Charles Bally, no entanto, tentou dar uma forma mais precisa a
este princípio. Para ele, “duas frases são coordenadas quando a
segunda tem por tema a primeira”95. O que equivale a fazer da
segunda frase o predicado psicológico da primeira. Bally dá este
exemplo: “Está frio. Não sairemos” que, a seu ver, equivale a
isto: “Está frio (e a propósito do fato de estar frio), acrescento:
135
Não sairemos”, Gérald Antoine critica essa concepção ao nível
gramatical, mas observa: “No plano psicológico, só existem coor-
denações predicativas”.
Se nos é permitido dar aqui nossa opinião, parece-nos que a
predicação não se faz entre um termo e outro, mas entre dois ter
mos e um sujeito implícito. Assim, na frase: ‘‘O céu está azul e o
sol brilha”, parece difícil fazer da segunda oração o predicado da
primeira; é mais fácil fazer de ambas predicados de um sujeito im
plícito: o tempo que está fazendo. O sujeito psicológico, lembre
mos, é uma pergunta a que o predicado responde. À pergunta: “Que
tempo está fazendo?”, as duas orações respondem logicamente. A
frase do Sr. Jourdain: ‘Nicole, traga meus chinelos e dc-me o
gorro de dormir”, coordena duas orações cuja unidade temática é
evidente 96.
Encarada desse modo, a coordenação não passa de um as
pecto da predicação, e as regras lógicas que valem para uma valem
para outra. Os coordenados devem, portanto, pertencer ao mesmo
universo do discurso. Deve existir uma idéia que possa constituir
o tema comum. No discurso, o título às vezes desempenha esta
função: constitui, na realidade, o sujeito ou o tema geral do qual
todas as ideias do discurso são os predicados, o todo do qual elas
são as partes. E notemos imediatamente que enquanto todo dis
curso em prosa, científica ou literária, recebe necessariamente um
título, só o poema se permite dispensá-lo, de tal modo que somos
obrigados a designá-lo pelas suas primeiras palavras 97. Neste caso,
não há nem negligência nem capricho. O poema suprime o título
porque lhe falta, como veremos, essa ideia sintética da qual o título
é a expressão.
A coerência do pensamento é encontrada, evidentemente, no
pensamento científico, e é inútil citar exemplos. Cada oração con
duz normalmente à seguinte e quando faltam as transições é porque
estas são evidentes e o autor julga que os leitores são capazes de
restabelecê-las. Não acontece o mesmo na poesia, pelo menos na
poesia moderna. Neste ponto, existe uma diferença radical entre
os clássicos e os modernos.
(96) Sendo constituído de coordenações sucessivas, todo discurso se
situa na ordem do predicativo puro, com o sujeito do discurso necessariamente
implícito ou expresso por um título.
(97) Mais um fato atestado que, salvo engano, a poética nunca con
siderou.
136
-
A poesia clássica, pelos menos nos autores que estudamos, é
de ponta a ponta um modelo de discurso coerente. A coordenação
gramatical sempre liga termos logicamente homogéneos. Todos os
exemplos de frases coordenadas que encontramos são tão impe
cáveis como esta, que principia a Fedra de Racine:
Lc dessein cn est pris; jc pars, chcr Théramène
Et quitte lc séjour dc 1’aimable Trézènc.
[A decisão está tomada; cu parto, caro Tcrâmencs/E deixo a morada
da amável Trczena.]
Quoi, Madame?
137
PHEDRE
138
pressão da sequência nas ideias” Mas a sequência nas ideias não i
é escravidão, é submissão à Razão universal. É a partir do mo I
mento em que as ideias não se encadeiam que o espírito é consi
derado insensato, e Lévy-Bruhl declara que foi levado ao estudo do
pensamento primitivo pela leitura de um velho livro chinês, cujo
encadeamento de ideias não compreendia. A razão é, antes de tudo,
consequência; por isso os clássicos jamais ousaram empregar a in
consequência. Os românticos tiveram esta audácia: romper a or
denação do discurso, embora de maneira muito moderada. É a
Rimbaud, com as Illuminations, que devemos atribuir a responsa
bilidade do salto decisivo sobre a fronteira que separa a razão da
desrazão. Como já se disse, foi ele o primeiro a falar “a linguagem
moderna da poesia” 99. Mas foi o romantismo que deu o primeiro
passo. Releiamos este trecho de Booz endormi:
Pendant qu’il sommeillait, Ruth, une Moabite,
S’était couchéc aux pieds dc Booz, Ic sein nu,
Espcrant on nc sait qucl rayon inconnu,
Quand uiendrait du réveil la lumièrc subite.
Booz nc savait point qidunc fetnine était là,
Et Ruth nc savait point cc que Dieu voulait d’elle,
[Enquanto ele dormia, Rute, uma moabita,/Dcitou-sc aos pés dc
Booz, com o seio nu,/Esperando não se sabe que luz desconhecida/
Quando viesse do despertar a claridade súbita.//Booz não sabia
que uma mulher estava a!i,/E Rute não sabia o que Deus queria
dela,]
139
l
ligação lógica entre esta descrição e a narração? O que vêm fazer
.as coisas do drama vivido pelos homens? Logicamente, a descrição
das coisas só se integra à narrativa do drama se estas coisas tiverem
algum efeito sobre ele. Aqui não se vê de que modo o perfume
do asfódelo ou a calma da noite possam ser causa ou obstáculo ao
que está acontecendo.
A este propósito, talvez possamos determinar' um critério prá-
tico da inconsequência. Em 7 toda unidade funcional, não se pode
suprimir ou deslocar um elemento sem perturbar seu funcionamento,
Do mesmo modo, diremos que um elemento da mensagem é incon-
sequente se puder ser suprimido ou deslocado sem romper a uni-
dade ou a continuidade intelectual da mensagem. No exemplo que
nos ocupa, é claro que os dois versos descritivos podem ser suprimi-
dos ou deslocados sem que a compreensão da narrativa seja alte-
rada. Se suprimirmos todo o trecho descritivo intercalado, a narrativa
retoma seu curso normal.
Observemos que o mesmo processo reaparece mais adiante,
desta vez dentro de um mesmo verso:
Rut songeait et Booz rêvait; Vherbe était noire.
[Rute pensava e Booz sonhava; a erva estava escura.]
140
Numa sucessão rápida de imagens, o poema exprime uma filo
sofia da renúncia. Não se pode possuir o ser, mas apenas sua aparên
cia. A frase: “O crepúsculo é calmo c o mundo silencioso”, aparece
aqui inesperadamente. Por que esta súbita descrição da paisagem?
Outra irrupção imotivada do mundo das coisas no universo dos ho
mens. No entanto, é justamente quando intervém esta frase parasi
tária que o poema atinge o auge de sua força. Se a suprimirmos, o
conteúdo nada perde de sua substância, mas a poesia perde muito
de seu poder.
Abramos aqui um parêntese. Tal processo é de todas as épocas,
assim como de todas as artes: inventado pela poesia, foi retomado
recentemente pelo romance e pelo cinema, aliás de maneira tão sis
temática que está em vias de perder seu efeito. A figura de invenção
acha-se ameaçada pela figura de uso. Em muitos filmes, por exem-
pio, vemos a câmera dcsviar-sc bruscamente da ação e dos homens,
para fixar-se um instante numa árvore, numa casa, num pedaço de
céu. Técnica dos “tempos mortos”, que apenas retoma uma velha
figura poética, A comparação poderia estender-se até mesmo à
música. A música clássica resolvia as dissonâncias, a música con
temporânea deixa de fazê-lo. Aliás, não é o único caso do gênero, e
uma estilística comparada das diversas artes descobriria facilmente o
que todas devem à poesia. Mas fechemos este parêntese que desem
bocaria no vasto problema que Souriau chamou “correspondência
das artes” e que não podemos abordar aqui.
Nem sempre a inconsequência é interferência de seres e coisas.
Essa é a maneira mais comum de encarnar o processo, mas existem
várias outras. Eis aqui um exemplo:
II est un air pour qui jc donnerais
Tout Rossini, tout Mozart et tout Weber.
Un air très vieux, languissant et funèbre,
Qui, pour moi seul, a des charmes sccrets.
Or, chaquc fois que jc viens à 1’entendre,
De deux ccnts ans mon âmc rajeunit:
C’est sous Louis treize... Et je crois voir s,étendre
Un cotcau vert que le couchant jaunit. (Nerval)
\
[Existe uma melodia pela qual eu daria/Todo Rossini, todo Mozart
c todo Wcber./Uma melodia muito antiga, lânguida e fúnebre,/
Que, somente para mim, tem encantos secrctos.//Òra, cada vez que
a ouço,/Minha alma rejuvenesce duzentos anos:/É no tempo de
Luís treze. . . E parecc-mc ver entcnder-sc/Uma encosta verde
que o ocaso amarelece.]
141
I
O último verso é o ponto de chegada das duas estrofes c a
frase que o contém está explicitamente coordenada à anterior. Enun-
cia a visão despertada por aquela música preferida entre todas,
porque só ela tem o poder de evocá-la. Ora, justamente esta visão
não corresponde ao que se poderia esperar dela. Quando lemos:
“É no tempo de Luís treze...”, preparamo-nos para a evocação de
algo que pertença tipicamente à época em questão ou, em todo caso,
a um passado distante, perdido, do qual a alma possa realmente
sentir nostalgia. Mas a visão é: “de uma encosta verde que o ocaso
amarelece”, isto é, de algo que pertence a todas as épocas, que não
tem nada de especificamente “Luís treze”, nada de histórico. E que
tampouco é deslumbrante, extraordinário, como o contexto fazia
prever. Essa encosta verde é a coisa mais humilde do mundo, e
não justifica que sacrifiquemos toda a música pela ária capaz de
ressuscitar sua lembrança!
Devemos reservar um lugar à parte para a coordenação seman-
tizada. Sabemos que, com exceção de “e” e “nem”, que exprimem
a coordenação pura, todas as conjunções conservam um valor se
mântico muito claro. “Mas”, por exemplo, exprime a oposição.
Então, ao invés da simples heterogeneidade dos coordenados, o
desvio pode consistir no fato de eles não se oporem. Entre todos
os versos de Rimbaud, André Breton gostava deste: “Mais que sa
lubre est le vent!” Recoloquemo-lo no seu contexto:
Toutc route, avcc des mystèrcs révoltants
De cainpagnes d’anciens temps
De donjons visités, de pares importantst
C’est en ces bords qu’on entend
Lcs passions mortes des chcvalicrs errants;
Mais que salubre est le vent!
[Toda estrada, com mistérios revoltantes/De campanhas dos; tcm-
pos antigos/De torreões visitados, de parques importantcs:/
i t
É nestes lugares que se ouvem/As paixões mortas dos cavaleiros
errantes;/ Mas que salubre que é o vento!]
742
1-J
143
É evidente que a redutibilidade do desvio coordenativo está ins
crita no próprio desvio. Deve-se descobrir a homogeneidade entre os
termos heterogéneos. O que será feito por metaforismo, exatamente
como no caso da predicação. Uma mudança de sentido que afete
um dos coordenados fará a sequência voltar à norma.
Em ‘‘vestido de probidade cândida e de linho branco”, o sim
bolismo é patente, já que a brancura simboliza a pureza, como o
sugere também a palavra “cândida”, que ainda conserva traços de
seu sentido etimológico. Notemos a esse propósito que o símbolo
se aproxima sempre da metáfora, já que também se baseia na seme
lhança. Mas o recurso fundamental de toda poesia, o tropo dos
tropos, é a metáfora sinestésica ou semelhança afetiva. Todos os
exemplos coordenativos que estudamos baseiam-se nela. Para mostrá-
-lo, vejamos um único caso. Destes dois versos:
Un frais parjum sortait des touffes d’asphodèlc
Lcs soujjlcs dc la nuit flottaient sur Galgala,
[Um fresco perfume saía dos tufos dc asfódclo/Os sopros da noite
flutuavam sobre Galgala,]
144
i
145
Lc long dc la vigne, infétant appuyé du pied à una gargouille, — je
suis descendu dans ce carrosse dont Vépoque est assez indiquée par les glaces
convcxcs, les panneaux bombés ct les sophas contournés. — Corbillard dc
mon sommeil, isole, maison dc berger de ma niaiscric, lc véhicule vire sur
lc gazon dc la grande route cffacée: ct dans un defaut cn haut dc la glace
dc droitc tournaient les blêmes figures lunaircs, feuilles, seins. — Un vert
ct un bleu très foncés cnvahisscnt 1'imagc. — Dételage aux environs d’unc
tache dc gravicr. — Ici va-t-on siffler pour 1’orage, et les Sodomcs ct les
Solymes, et les betes fcroccs et les armees. (Postillon ct betes de songe ré-
pondront-ils sous les plus suffocantes futaies, pour rrdcnfoncer jusqu’aux
yeux dans la source de soic?)
Et nous cnvoyer, foucttés à travers les eaux clapotantes et les boissons
répandues, rouler sur 1’aboi des dogues. . .
— Un soufflé disperse les limites du foyer.
“Um sopro abre brechas opcráldicas nos tabiques, — baralha o suporte
dos telhados roídos, — dispersa os limites dos lares, — eclipsa as janelas.
Ao longo das vinhas, apoiando o pé numa gárgula, — desci naquela carrua
gem cuja época c claramentc indicada pelos vidros convexos, pelos painéis
abaulados e pelos sofás arredondados. — Carro funerário de meu sonho,
isolado, choupana da minha tolice, o veículo gira sobre a relva da grande
estrada apagada: e num defeito ao alto do vidro da direita rodopiavam as
pálidas figuras lunares, folhas, seios. — Um verde c um azul muito escuros
invadem a imagem. — Dcsatrelagem nas imediações dc uma mancha de
cascalho. — É aqui que se vai assobiar para a tempestade, e as Sodomas
c as Solimas, e os animais ferozes c os exércitos. (Postilhão e animais dc
sonho, será que responderão sob os mais sufocantes bosques, para afundar-
-me até os olhos na fonte dc seda?)
E, açoitados através das águas marulhantes e das bebidas derramadas,
mandar-nos rolar sobre o latido dos mastins. . .
— Um sopro dispersa os limites do lar.”
146
onde o surrealismo encontrou seu processo de criação poética funfun-
damental, nada mais é que uma ruptura perpétua de si para si,
espontaneamente realizada por um pensamento de baixa tensão.
Todavia, tanto na ordem da predicação como da coordenação,
o surrealismo encontra uma espécie de super-unidade ao nível trans
cendente do supra-real. Breton confia ao “acaso objetivo”, vale
dizer, a um princípio sobrenatural, a tarefa de motivar as relações
aparentemente arbitrárias da imagem produzida pela escritura auto
mática. Sabe-se também que os surrealistas às vezes pediram ao
inconsciente psicológico para fornecer a motivação procurada, por
uma espécie de hesitação entre a sub-determinação psicológica e a
super-determinação metafísica. Mas só podemos recusar semelhante
interpretação. Repitamos de uma vez por todas: a poesia, como a
prosa, é um discurso que o autor remete ao leitor. Não há discurso
se não houver comunicação. Para que o poema se realize como
poema, deve ser compreendido por aquele a quem se dirige. A poe-
tização é um processo de duas faces, correlativas e simultâneas:
desvio e redução, desestruturação e reestruturação. Para que o
poema funcione poeticamente, é preciso que na consciência do leitor
a significação seja ao mesmo tempo perdida e reencontrada.
Esse movimento de vaivém, de ida e volta do sentido ao sem-
-sentido e do sem-sentido ao sentido, constitui o processo comum
dos três grandes tipos de figura que estudamos.
Se esse vaivém confere ao poema sua especificidade poética, é
sem dúvida porque o processo não é absolutamente reversível. A
consciência não reencontra na volta o que havia deixado ao partir.
No curso desse movimento, o sentido sofreu uma transmutação
íntima. A “forma” não é mais a mesma c, se por forma do sentido
entendermos a estrutura da representação, cabe a outras disciplinas,
psicologia ou fenomenologia, determinar a natureza dessa transmu
tação. Abordaremos o problema na conclusão. Compreenderemos,
então, por que toda exegese é ao mesmo tempo verdadeira e falsa.
Quando é verdadeira do ponto de vista da substância do sentido, é
falsa porque dá o sentido em termos de prosa, traindo assim a forma
do sentido própria da poesia. É possível ler a tradução prosaica de
um poema, mas com a condição de esquecê-la no momento em que
se lê o poema. Os dois textos não podem coexistir na consciência,
sob pena de vermos um deles, a prosa, destruir o outro. A poesia
é de essência monárquica: ou reina sozinha ou abdica.
147
■
Capítulo VI
148
tais como figuram sob o título Patience (D’un été. . . ), na edição
Vanier. Hoje, querem que se leia (edição crítica, Mercure de France):
Voltigent parmi les groscilles
[Giram entre as groselhas]
e deve ser assim, sem dúvida. Mas não posso refazer o caminho
percorrido e, para mim, enquanto viver, hei de ler: Voltigent partout,
que poderão dizer ser um erro e que teimo em considerar uma beleza”.
E o poeta acrescenta este comentário: “. . . Só há poesia quan
do há meditação sobre a linguagem, e reinvenção dessa linguagem
a cada passo. O que implica em quebrar os quadros fixos da lin
guagem, as regras da gramática e as leis do discurso” (p. 14).
Ao longo das análises precedentes, tentamos mostrar como a
poesia “quebra” a seu modo “as leis do discurso”, Tentaremos
ver agora o que acontece com as regras da gramática.
Também neste caso a poesia caracteriza-se por um desvio sis
temático em relação às normas da prosa, mas pode marcar-se desde
já os limites deste desvio. No conjunto, a poesia francesa respeitou
as regras gramaticais; as infrações são geralmente bastante tímidas,
pelo menos até Mallarmé, que parece ter procurado deliberadamente,
no desvio gramatical, a mola fundamental de sua escritura poética.
Lembremos a fórmula: “Sou um sintaxista?” É realmente por
derrogação à sintaxe que tal ou tal poema desafia a inteligibilidade.
Por exemplo, o Tombeau de Charles Baudelaire, do qual damos
este fragmento:
Qucl fcuillage séché dans les cités sans soir
Votif pourra bénir comme cllc se rasseoir
Contrc le marbre vainement de Baudelaire.
[Que folhagem seca nas cidades sem tarde/Votiva poderá abençoar
como ela asscntar-se/Contra o mármore inutilmente de Baudelaire.]
149
■
André Breton, justamente citada pelos gramáticos 101 como prova
da universilidade de sua disciplina:
Ce jour dc pluie, o jour comme tant d’autres oit je suis seul à garder
1c troupeau dc ines fcnêtrcs au bord d’un précipice sur lequel est jeté un
pont dc larmcs, ^observe ines mains qui sont des masques sur des visages,
des loups qui s’accommodcnt si bien dc la dentcllc dc mes sensations.
Neste dia dc chuva, dia como muitos outros cm que estou só
para guardar o rebanho das minhas janelas beirando um precipício
no qual está jogada uma ponte de lágrimas, observo minhas mãos
que são máscaras em rostos, lobos que se acomodam tão bem com
a renda das minhas sensações.
Este texto, que parece desafiar toda lógica, não deixa de ser
gramaticalmente perfeito. Na maioria, os poetas franceses parecem
ter obedecido às instruções de Hugo: “Paz com a gramática”.
E entendemos por que.
A gramática é o pilar que sustenta a significação. A partir de
certo grau de desvio em relação às regras da ordem e da concor-
dância, a frase desmorona e a inteligibilidade desaparece. Jakobson
dá um excelente exemplo com a frase já citada:
Incolores ideias verdes dormem furiosamente.
(Colorlcss green ide as slecp furiously.)
no
I
151
ticada por todos os poetas com uma frequência suficiente para ser
aplicada em estatística.
Sabc-se que em francês, ao contrário das línguas flexionais,
como o latim, as relações entre os termos são marcadas mais pelas
posições respectivas que pelas desinências, A ordem das palavras
obedece em francês a uma regra que Bally chama “sequência pre
gressiva”, que coloca o determinado antes do determinante, o su-
jeito antes do verbo, o verbo antes do complemento, etc. Toda
infração a esta regra chama-se inversão, Pretendemos estudá-las a
propósito de nosso exemplo predileto, o epíteto.
A colocação do epíteto é uma das questões mais pormenori
zadas e debatidas da gramática francesa. Podemos distinguir quatro
casos principais:
l.° Os adjetivos normalmente pospostos (adjetivos de relação,
de cor, etc.). Diz-se “as eleições municipais” e não “as municipais
eleições”; “o cachorro preto” e não “o preto cachorro”;
2. ° Os adjetivos normalmcnte antepostos, pouco numerosos,
dos quais se pode dar a lista limitativa, tais como belo, grande,
velho, longo, etc. Diz-se “um belo quadro”, e não “um quadro
belo”;
3. ° Os adjetivos que podem ocupar as duas posições, mas com
um só valor: “Um terrível acidente. Um acidente terrível”;
4.° Ou com dois valores: “Um livro grande. Um grande livro”.
No entanto, considerando-se as coisas na sua generalidade, pode
afirmar-se que, a não ser um pequeno número fixo de adjetivos
sempre antepostos, a tendência do francês é a posposição — caso
se refira, é claro, como pensamos que se deve, à prosa científica como
a norma da língua. Para convencer-se disso, basta recorrer à esta
tística. Excluindo do inventário os adjetivos sempre antepostos,
nota-se que a inversão do epíteto não ultrapassa 2% ~ ~> na linguagem
científica (cf. o quadro X). f Temos, portanto,, o direito de concluir
-------- se coloca normalmente depois do substan-
que o epíteto em 1francês
tivo e que a anteposiçao é um desvio, isto é, um fato de estilo.
Ora, se considerarmos agora a linguagem poética, a inversão
aparece com uma 1frequência nitidamente mais alta. Portanto, essa
figura é um traço específico da. poesia,. Tanto ao nível gramatical
como aos outros, a -- —ia constitui,
poesia ----- então, um desvio sistemático da
linguagem habitual.
152
I
Quadro X
EPÍTETOS INVERTIDOS
Rimbaud 30
Verlaine 35 91 30,3%
Mallarmé 26
(104) L’ordre des mots cn français moderne, Copenhagen, 2.a ed., 1928,
t. II, P- 40.
153
O segundo fator é mais importante: mostra a ligação estreita
entre sintaxe e semântica. A tendência para a posposição é normal
em francês, como dissemos, mas é menos ou mais forte, conforme
o sentido do adjetivo. O que o mesmo autor enuncia nos seguintes
termos: “Quanto mais o sentido do adjetivo se aproximar dos sen
tidos bom-mau, grande-pequeno (qualidade, número, grau), mais
comum, portanto mais natural será a anteposição; quanto mais o
sentido do adjetivo se afastar desses sentidos, mais excepcional será
a anteposição, e maior, porém mais arriscado, será o efeito estilís
tico conseguido” 105. Assim, só haverá realmente ruptura de norma
se a anteposição afetar um adjetivo que não tem sentido nem qua-
litativo, nem quantitativo, Com efeito, para todos os demais, a
inversão constitui apenas um desvio mínimo. É interessante, por
tanto, submeter à estatística somente os adjetivos desse tipo, que
chamaremos não-avaliativos.
Em primeiro lugar, podemos verificar a regra de Blinkenberg
na prosa científica. Os resultados são eloquentes. Nenhum desses
adjetivos é anteposto nos três autores científicos. As raras inversões
são de tipo avaliativo: “úteis informações” (Cl. Bernard) ou “inú-
meros ensaios” (Pasteur).
Ao contrário, em poesia, a inversão de adjetivos não-avaliati
vos é praticada por todos, e sobretudo — fato essencial para nós —
aumenta nitidamente dos clássicos para os modernos (ver quadro
XI)
Ainda, essa progressão é sensivelmente mais forte se considerar
mos apenas a relação dos adjetivos não-avaliativos para o pequeno
número dos epítetos invertidos. A média assim calculada cresce, en
tão, de 11,5% nos clássicos para 52,4% nos românticos, ou seja, au
menta numa proporção que é quase de 1 para 5. Consequentemente,
encontramos nossa lei de involução habitual.
Os clássicos praticam largamente a inversão, mas na maioria
dos casos, trata-se de adjetivos de sentido avaliativo. Por exemplo:
Haute vertu — mortels ajronts (Corncillc);
[Alta virtude — mortais afrontas]
154
l
I
Quadro XI
EPÍTETOS NAO-AVALIATIVOS INVERTIDOS
Corneille 6
Racine 8 19 6,3%
Molière 5
Lamartine 19
Hugo 18 53 17,6%
Vigny 16
Rimbaud 17
Verlaine 15 51 17 %
Mallarmé 19
155
I
Obrigado a respeitar ao mesmo tempo a rima e o metro, o poeta
não pode dispor à vontade das palavras, Convém assinalar, aliás, uma
realização que parece particular dos simbolistas: a posposição de
adjetivos normalmente antepostos, tais como doce, belo, etc. Por
exemplo:
O lc bruit doux de la pluie (Verlaine).
[Oh, o ruído doce da chuva]
Victoricuscmcnt fui le suicide beau (Mallarmc).
[Vitoriosamente foge do suicídio belo]
•k
157
tratando-se de literatura, mudamos de ótica, pois a norma não c
mais a linguagem que costumamos ouvir, mas a linguagem que
costumamos ler. A noção de “desvio” é uma noção complexa e
variável, que não se pode manejar sem precaução. Por isso, esforçamo-
-nos sempre por estabelecer primeiro a norma a partir de uma base
positiva, pedindo à linguagem escrita dos cientistas que sirva de re
ferência.
Para que a inversão produza um efeito completo, é preciso
dar-lhe a amplitude que a retórica resigna pelo nome de “hipérbato”.
Com efeito, se compararmos um verso como:
a) Sous le pont Mirabeau coulc la Seinc
[Sob a ponte Mirabeau passa o Sena]
com a ordem natural, sujeito-verbo-complemento:
b) La Seinc coule sous le Pont Mirabeau,
[O Sena passa sob a ponte Mirabeau,]
158
I
coloca normalmente após o substantivo, pode conseguir-se um efeito
literário colocando-o antes do substantivo. Isso pela razão que dis
semos: já que, em francês, o primeiro lugar pertence ao substantivo,
qualquer termo que tome esse lugar assume automaticamente um
valor substantivo para a consciência do usuário. A estrutura deter
minado-determinante encontra-se enfraquecida, então, e a inteligibi
lidade da frase diminui. Portanto, a inversão atua da mesma forma
que a aliteração ou a rima: no sentido de uma indiferenciação das uni
dades constituintes da frase. Figuras tão diferentes materialmente
— quer dizer, quanto aos elementos de que lançam mão — revelam-se
estruturalmcnte idênticas, pois os elementos têm o mesmo tipo de
relação em cada caso.
Mais geralmente, é o conjunto das figuras poéticas, sejam quais
forem seus níveis, que revelam estruturas homogéneas. Em todos os
casos, encontramos uma mesma dissociação dos fatores estruturantes,
que leva a uma mesma desestruturação da mensagem. Todos os pro
cessos utilizados pelo poeta manifestam uma mesma negatividade,
uma mesma função de obscurecimento do discurso.
Porem, como nos outros casos, tal negatividade é apenas provi
sória; constitui o avesso de uma positividade cuja natureza tentare
mos determinar no fim da análise.
O adjetivo anormalmente anteposto assume, então, um valor
genérico. O epíteto é distintivo. Colocado antes do substantivo,
perde sua função. Não determina mais uma espécie dentro de um
gênero, mas o próprio gênero. Como afirma P. Guiraud: “...No
seu lugar normal, o adjetivo tem um valor específico e determina o
indivíduo nomeado; anteposto, tem um valor genérico e determina a
categoria lexical nomeante” 10G. E o autor dá este exemplo: “Um
homem grande é um indivíduo alto; uni grande homem é um indi
víduo no qual a humanidade é grande”.
No entanto, o autor não sublinha o fato — essencial para nós —
de o valor genérico dado ao adjetivo pela colocação entrar em oposi
ção com seu sentido. Se cm “loiros cabelos”, “loiros” qualifica o
gênero, c não mais a espécie, deve-se admitir que todos os cabelos
são loiros, o que contradiz aquilo que sabemos. Os cabelos loiros são
uma espécie do gênero cabelos. Há, portanto, oposição entre os
dois valores, específico e genérico, dados ao mesmo tempo ao adjetivo.
159
Tal contradição pode ser resolvida se o adjetivo mudar de sen
tido. De que modo, é o que o próximo capítulo tentará esclarecer.
Veremos, então, que a mudança de sentido que reduz o desvio re
presenta o objetivo procurado pelo próprio desvio. Todas as figuras,
a todos os níveis, acabam e completam-se na metáfora. A inversão,
como a impertinência ou a rima, é somente o primeiro tempo de um
mecanismo do qual a metáfora é o segundo. Ao longo desta análise,
só procuramos o primeiro; por essa razão, a linguagem poética apareceu-
-nos apenas na sua negatividade. Porém, tal negatividade nada mais
é que o desvio obrigatório pelo qual a poesia atinge sua significação
específica.
Uma observação, antes de concluir. As exigências da análise le
varam-nos a estudar cada figura em si isoladamente. No entanto, as
diferentes figuras podem funcionar no mesmo ponto do discurso e
acumular seus efeitos. Eis um exemplo de acumulação de três figuras
em três palavras.
No sintagma um fresco perfume, encontramos:
1. ° uma inversão (“fresco” é normalmente posposto);
2. ° uma impertinência (de tipo sinestésico);
3. ° uma aliteração (úfre/erfú — 8 dos 14 fonemas).
É pelo jogo simultâneo e convergente das figuras que: a lingua-
gem se transfigura, e a análise literária do poema como 1tal só pode
ser o esclarecimento dos mecanismos de transfiguração.
160
I
Capítulo VII
A FUNÇÃO POÉTICA
162
tismo não fosse de fato sub-repticiamente controlado. Do mesmo
modo, o método do sorteio confia justamente ao acaso a tarefa de
alterar o código. Mas, limitando-se a isso, tal método produz mais o
absurdo que o poético. Uma frase como “a ostra do Senegal comerá o
pão tricolor ’ só é poesia quando se decide a priori confundir esta com
o absurdo. Ora, entre os dois casos subsiste justamente uma dife
rença que nós próprios já assinalamos. Frase poética e frase absurda
apresentam uma mesma impertinência; mas, enquanto na primeira
a impertinência é redutível, na segunda não o é. Portanto, estrutu
ralmente, elas só são semelhantes negativamente, por violarem o có
digo. Mas esse é apenas um primeiro tempo do mecanismo total. Para
a frase absurda falta o segundo tempo. Aí está a diferença e esta é
considerável, já que, para a poesia, o desvio é um erro cometido de
propósito para obter sua própria correção.
O mecanismo de fabricação do poético decompõe-se em dois
tempos:
1. ° Posição do desvio;
2. ° Redução do desvio.
Só o primeiro é negativo, Reservamos a este nossa análise por-
que, apesar de condição necessária para o segundo, achamos que ele
foi até agora negligenciado pelos esipecialistas. Mas, funcionalmentc
não passa de um meio cujo fim é o segundo. A poesia, apesar d
que disse Poe, não é possuída pelo “espírito de negação”. Ela sc
destrói para reconstruir. O conjunto da operação, como se vê, não
é nulo. Sobra um produto limpo. O absurdo do poema é-lhe essen
cial, mas não é gratuito, É o preço que se paga por uma clareza de
outra ordem. Na figura c pela figura, o sentido é ao mesmo tempo
perdido e reencontrado, Mas não sai intacto da operação. No ca-
minho, sofreu uma metamorfose cuja natureza precisamos explicar
agora.
Primeiro, cumpre fixar o sentido da palavra “sentido”. Este
problema do “meaning of meaning” é o mais debatido da linguística
contemporânea. Não queremos nos perder nele, mas, para a com
preensão do que vem a seguir, é necessário fixar um ponto.
A palavra “sentido” designa globalmente aquilo a que o signifi-
cante remete. Mas podemos distinguir com Ogden e Richards 108
dois elementos diferentes:
163
1. ° O referente, isto é, o “designatum”, o objeto real considerado
em si mesmo;
2. ° A referência, isto é, o correlato subjetivo do objeto, o fenô-
meno mental através do qual é apreendido.
A maioria dos linguistas reserva o nome de sentido a este se
gundo elemento. Entretanto, achamos que o primeiro deve ser man
tido. Com efeito, só a sua presença torna compreensível o fato de
que o sentido, da prosa para a poesia, seja ao mesmo tempo idêntico
e diferente.
Idêntico quanto ao referente: “o satélite da terra” e “esta foice
de ouro” têm a mesma designação, remetem ao mesmo objeto, que é
o próprio planeta. Diferente quanto à referência: dois tipos de ex
pressão remetem ao mesmo objeto, mas suscitam duas maneiras di
ferentes de apreendê-lo, dois modos distintos da “consciência de”.
Portanto, se por “sentido” se entende o objeto, tanto “o satélite da
terra” como “esta foice de ouro” têm o mesmo sentido. Pelo contrá
rio, se se entende o modo subjetivo da apreensão do objeto, então
as duas expressões têm sentidos diferentes, que podemos chamar
“sentido prosaico” e “sentido poético”.
Resta esclarecer a natureza dessa distinção. Mas vê-se que o
problema ultrapassa amplamente o quadro estrito da linguística. Não
se trata mais da mensagem em si mesma, como sistema de signos,
mas do efeito subjetivo produzido no receptor. O problema já não
é da estrutura, mas da função da linguagem, e tal problema pertence
mais à psicolingiiística que à linguística propriamente dita, à qual
quisemos limitar nosso estudo. Portanto, se abordamos aqui o pro
blema fundamental, é para não ficar na fase negativa de um processo
que comporta uma fase positiva, da qual a primeira é apenas o ins
trumento. Esperamos fazer desta segunda fase o objeto de futuras
pesquisas e aqui só nos limitamos a atestar sua existência.
Sabe-se que a maioria dos linguistas concordam em reconhecer
uma polivalência funcional da linguagem. É certo que divergem
quanto ao número e ao valor dessas diferentes funções. Mas todos
concordam em atribuir-lhe pelo menos duas, que correspondem às
duas grandes divisões clássicas da vida psíquica: vida intelectual e
vida afetiva 109. A primeira é a função normal da linguagem escrita,
164
I
165
nológica. Enquanto a emoção real é vivida pelo eu como um estado
interior, a emoção poética é atribuída ao objeto. A tristeza real é
expressa pelo sujeito à maneira do “eu estou”, como uma modificação
de si mesmo, cuja causa exterior é o mundo. A tristeza poética, pelo
contrário, é apreendida como uma qualidade do mundo. Um céu
de outono é triste como é cinzento. Poder-se-ia dizer que a primeira
é “subjetal” e a segunda “objetai”. Mikel Dufrenne, para diferença-la
melhor, reserva-lhe o nome de “sentimento”. “Sentir, diz ele, é
experimentar um sentimento não como um estado de meu ser, mas
como uma propriedade do objeto” 113. Trata-se, portanto, de uma
modalidade da consciência das coisas, uma maneira original e espe
cífica de apreender o mundo. Logo, a emoção poética não se acres
centa de fora à imagem do objeto: é imanente à imagem e constitui
o que se pode chamar “imagem afetiva” do objeto. De um mesmo
objeto, então, podemos ter duas imagens ou representações psicolo
gicamente distintas, que constituem os dois tipos de significação in
duzidas pelos dois tipos de linguagem.
A representação afetiva existe certamente fora da linguagem.
Hegel declara com razão: “. . . Já que as próprias palavras nada mais
são que signos das representações, a verdadeira origem da linguagem
poética não deve ser procurada na escolha das palavras e na maneira
de associá-las para formar orações e períodos, nem na sonoridade,
no ritmo, etc., mas sim na modalidade da representação” 114. É certo,
todavia, que esta “modalidade da representação” é provocada por
determinada linguagem. A representação afetiva não é um efeito ex
clusivo do poema. Outras artes e a própria natureza são capazes de
induzi-la, e é por isso que na nossa introdução reservamos a possibili
dade de uma poética das coisas. Mas o poema é pelo menos o seu
introdutor mais eficaz, e por essa razão podemos chamar “poético”
o modo de consciência do qual ele é o instrumento privilegiado. Po
demos dizer que aquilo que chamamos poema é precisamente uma
técnica linguística de produção de um tipo de consciência que o es
petáculo do mundo normalmente não produz.
Embora não se possa pôr em dúvida a realidade desse modo
de representação, fazer dele a base da semântica poética apresenta
166
I
167
Mas é possível que tal argumento seja artificialmente exagerado.
Vejamos o erro do primeiro ponto. Os afetivamente cegos nada
provam contra a realidade das qualidades afetivas, nem os sensorial-
mente cegos contra a realidade das cores. O poema, mais que qual-
quer outro gênero literário, dirige-se àqueles que os Anglo-Saxões
chamam “the right reader”. fSe o poema não é entendido por todos,
a culpa não é do poema, do> mesmo modo que um texto científico
não tem culpa de ser obscuro para muitos, Existe uma “inteligência
poética” que é, como a outra, um dom da natureza, com a diferença
de que depende daquilo que se chamava “coração” (palavra fora da
moda, mas sempre sugestiva), ou capacidade de resposta emocional
ao espetáculo do mundo 116.
Quanto à variabilidade dessas respostas, experiências recentes pa
recem demonstrar que é menor do que parecia à primeira vista. As
associações cor-sentimento e música-sentimento, principalmente, apa
recem com indiscutível consistência nas pessoas testadas 117. Ocorre
o mesmo com o fenômeno sinestesia definido por Warren: “A phe-
nomenon characterizing the experiences of certain individuais, in
which certain sensations belonging to one sense or mood attach to
certain sensations of another group and appear regularly whenever a
stimulus of the latter occurs” 118. A associação cor-som, principal
mente, parece amplamente difundida e dá lugar a pequenas varia
ções de um indivíduo para outro, pelo menos dentro de certo grupo
sócio-cultural. Já vimos o papel desempenhado pela sinestesia no pro
cesso metafórico. A associação de sensações diferentes deve-se certa
mente à similitude de suas ressonâncias afetivas, Existe uma espécie
de “cenestesia externa” que dá a cada sensível sua “expressividade”,
sua totalidade emocional, e essas tonalidades podem ser idênticas ou
168
I
169
dimensões”, no qual cada conceito encontra seu lugar. Tais dimen
sões são chamadas “valor” (evaluation), “potência” (potency) e
“atividade” (activity). Fica bem claro que as três delimitam não o
sentido em geral (meaning), mas seu componente conotativo. Como
observa Ullmann, mede-se aquela parte do sentido “usually refered to
as ajfective meaning or emotive connotation” 122. E também, como
os próprios autores confessam, essas três dimensões dão uma análise
apenas rudimentar, mas fornecem uma base objetiva à subjetividade.
Como dizem os autores: “A objetividade refere-se ao papel do obser
vador, não do observado” 123.
170
I
cordação. Tanto cm poesia como em prosa, o predicado convém ao
sujeito. A frase poética é objetivamente falsa, mas subjetivamente
verdadeira. A poesia, dizia Hugo, “é o que há de íntimo em tudo”.
E Mallarmé: “. . . uma poética bastante nova, que eu poderia defi
nir cm duas palavras: Pintar, não a coisa, mas o efeito que ela produz”.
Não há dúvida de que tal poética dá muita margem à interpreta
ção pessoal. Falta-nos o dicionário conotativo, onde poderíamos ve
rificar a validade das predicações poéticas. Mas ainda aqui o poeta
poderia pedir a caução da experimentação: do método de Osgood, por
exemplo, que permite medir a distância que separa no espaço semân
tico as posições ocupadas pelo sujeito e pelo predicado. Se tais po
sições são idênticas ou muito próximas, temos, se não uma prova,
pelo menos um índice de que a intuição do poeta coincide com a do
público. Poder-se-ia também pensar em utilizar os métodos clássicos
da estética experimental. O método da escolha, por exemplo, pelo
qual as pessoas escolhem, numa lista de adjetivos, um predicado que
convenha subjetivamente a determinado sujeito, permitiria confrontar
a verdade poética com o critério clássico da verdade objetiva, com a
diferença de que, neste caso, não se trataria da concordância dos es
píritos, mas das sensibilidades. Seja qual for o resultado dessas ex
periências, porém, não confundamos subjetividade com “arbitrário”,
para retomar o termo de Breton. Na sua linguagem, o poeta obedece a
uma evidência do sentimento que, para ele, é tão forçosa quanto a
evidência empírica 124. É por isso que se pode falar em código. O
poeta não se deixa levar pelas palavras. Exprime uma verdade que
só é absurda aos olhos do código objetivo e que deve sê-lo para que
este código dê lugar a outro. Eluard diz:
La terre est bleuc comine une orange
Jamais une erreur les mots ne mentent pas.
[A terra é azul como uma laranja/Nunca um erro as palavras não
mentem.]
Afirmação que podemos subscrever, com a condição de dar às pala
vras seu ísentido conotativo, sem o que o primeiro verso cairia no
absurdo.
A poesia define-se em relação a dois códigos: negativamente em
relação a um, positivamente em relação a outro. Por isso ela tem
171
dois opostos: l.° a prosa que respeita o código denotativo; 2.° o
absurdo que desobedece aos dois 125. Só a frase poética satisfaz à
dupla exigência que a define: desobedecer a um e obedecer a outro.
O que pode ser representado pelo quadro seguinte:
PERTINÊNCIA
FRASE CONOTATIVA DENOTATIVA
Prosaica - +
Absurda
Poética +
Nem todas as combinações possíveis, como se vê, figuram neste qua
dro. Falta a simétrica da frase absurda, marcada positivamente duas
vezes. Mas tal frase não existe. Com efeito, se a poesia é feita de
figuras, e se a figura é uma violação do código denotativo, teoria em
que se resume nossa análise, então, resulta que a negatividade de-
notativa é a condição sine qua non da positividade conotativa. Conota
ção e denotação são antagonistas. Resposta emocional e resposta in
telectual não podem produzir-se ao mesmo tempo. Elas são antitéti-
cas, e, para que surja a primeira, é necessário que a segunda desapa
reça. Numa frase como “céu azul”, as conotações não estão em desa
cordo, e a fórmula poderia ser marcada positivamente aos olhos da
dupla pertinência. Mas para que as conotações concordem, é neces
sário ainda que se atualizem. O que só podem fazer se as denotações
lhes cederem o lugar. Não é o caso da frase cm questão, que é de-
notativamente pertinente, razão pela qual permanece prosa.
Como já dissemos, a metáfora é o objetivo da figura. O desvio
sintagmático só é criado para suscitar o desvio paradigmático. Mas
a metáfora poética não é simples mudança de sentido: é mudança de
tipo ou natureza de sentido, passagem do sentido nocional ao sentido
emocional. Por essa razão, toda metáfora é poética. Se So2 é uma
parte de Soj, a mudança de sentido permanece no nível denotativo.
Mudou-se de sentido, não de língua. A resposta permanece nocional.
É o que acontece com as metáforas científicas. Quando o c.. elétron
------ é-
172
>
chamado ‘‘planetário”, o sentido metafórico deste termo é constituí
do por um caráter que pertence à denotação do termo. Do sentido
denotativo global da palavra “planeta”: “corpo celeste que gira em
torno do sol” (Laurousse), extrai-se o caráter “corpo... que gira
em torno”. Restabelece-se a pertinência, mas dentro de um mesmo
universo semântico, o da denotação, vale dizer, da prosa. Para que
a conotação, vale dizer, a poesia apareça, é necessário então que Sot
e So2 não tenham nenhum elemento comum. Então, e só então,
na ausência de qualquer analogia objetiva, surge a analogia subjetiva,
o significado emocional ou sentido poético.
Assim se explica que a poesia moderna, como mostramos, tenha
recorrido tão amplamente à “metáfora distante” e, para isso, tenha
baseado a impertinênciai nos “primitivos” da língua. Com efeito,
tais termos, pela sua jsimplicidade
’ de compreensão, excluem qualquer
possibilidade de identidade parcial com outro termo, e só podem
apresentar analogia extrínseca, ao nível da resposta subjetiva emo-
cional.
Se a poesia moderna faz tão largo uso dos termos sensoriais,
e mais particularmente das palavras que designam cores, não é
— digamos não é apenas — para introduzir o concreto no universo
poético, como se pensou. Durante muito tempo, atribuiu-se à metá
fora, como função, a passagem do abstrato ao concreto 12€. Na rea
lidade, muitas metáforas substituem o concreto pelo concreto. Por
exemplo: cabelos azuis (Baudelaire), olhos loiros (Rimbaud), céu
verde (Valéry), etc. A verdade é que a palavra que exprime a cor
não remete para a cor, ou melhor, só remete num primeiro tempo.
Num segundo tempo, a própria cor torna-se o significante de um
segundo significado de natureza emocional. Quando Mallarmé diz
“azuis ângelus”, não há nenhuma imagem, na realidade impossível
de imaginar, mas somente um processo de estimulação de uma res
posta emocional que não pode ser obtida de outro modo. O poeta
não procura “pintar”, e a metáfora não é “pintura” como o verso
não é “música”. A metáfora poética é passagem da língua denota-
tiva para a língua conotativa, passagem obtida por meio do desvio
de uma fala, que perde seu sentido ao inível da primeira língua, ~para
reencontrá-lo ao nível da segunda.
173
O conjunto do processo poético pode enfim ser simbolizado
pela figura do capítulo III, dando) aos dois significados seus valores
respectivos:
Se
Sot — denotação
CONTEXTO
<r Soo •= conotação
174
*
175
Passemos finalmente à versificação. Mostramos que os traços
versificatórios: rima, metro, enjambement, etc., não são simples
figuras, mas que exercem uma função semântica. A rima, para co
meçar por ela, é um significante. Segundo o princípio do paralelismo
fono-semântico, a homonímia significa uma sinonímia. As palavras
que se assemelham pelo som devem assemelhar-se pelo sentido. Este
alcance semântico da rima já foi muitas vezes assinalado 128. Assim,
Jakobson escreve: “Embora a rima, por definição, baseie-se na re
corrência regular de fonemas ou grupos de fonemas equivalentes,
seria uma simplificação abusiva tratar a rima simplesmente do ponto
de vista do som. A rima implica necessariamente uma relação se
mântica entre as unidades que liga” 129. Resta esclarecer a natureza
desta relação semântica. Ora, vimos que se tratava de uma relação
negativa. No curso de sua evolução, a rima torna-se cada vez maís
rica e cada vez menos gramatical. Quanto mais a semelhança de
sons aumenta, tanto mais a semelhança de sentidos diminui. No ca
pítulo dedicado à versificação, limitamo-nos a esse aspecto negativo
da relação fono-semântica, chegando, por conseguinte, à conclusão
de que havia uma intenção deliberada de obscurecer a mensagem.
Mas essa vontade não é gratuita. A versificação só obscurece a men
sagem denotativa; o princípio do paralelismo, violado nesse plano,
torna a aparecer no plano conotativo. A disfuncionalidade da lin
guagem poética nada mais é que o avesso de uma funcionalidade de
outra ordem. A própria rima constitui um mecanismo de dois tem
pos, que podemos representar pelo esquema seguinte (no qual Sd
é o sentido denotativo e Sc o sentido conotativo):
D Sej Se2
2) Sdx 7^ Sd2
3) Sei Sc2
176
i
177
ivrc
délivrc
vivrc
178
I
Ora, essa identidade fónica implica uma identidade semântica,
que não é realizada pelo sentido denotativo. Os dois versos deno
tam duas “ideias” conexas, mas diferentes (os asfódelos exalavam
perfume; a brisa noturna soprava sobre Galgala). É neste ponto
que, em virtude do princípio de paralelismo, a conotação aparece.
Com efeito, os dois versos conotam a mesma atmosfera de sentido
(divina doçura, paz amorosa?). A linguagem cumpriu, pois, sua
função poética: forçar a alma a sentir aquilo que geralmente ela se
limita a pensar.
O não-paralelismo também não é um desvio gratuito. Em cer
tos casos, pode desempenhar um simples papel auxiliar, colocar-se
a serviço do metro ou da rima; em outros, serve para pôr em relevo
uma palavra. Mas não é essa sua função essencial. A maneira sis
temática como a poesia moderna o utiliza prova que ele é dotado
de uma finalidade própria. O desvio metro-sintaxe é visado como
tal. Trata-se de opor a divisão métrica à divisão sintática, violando
assim o princípio do paralelismo. No verso que tomamos comc
modelo:
Souvenir, souvenir, que me veux-tu? L’automne
[Recordação, recordação, que queres de mini? O outono]
Significante:
Denotação:
179
Conotação:
181
I
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