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Colecção
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Bien Faire
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Henri-Marie-Fclix
Ramière (n. Castres, 1821, +
Toulouse, 1884). Oriundo de
uma família profundamente
católica, com fortes ligações ao
regime de Carlos X, entrou para
o noviciado da Companhia de
Jesus, em Julho de 1839, e foi
ordenado sacerdote em 1847.
Completou o curso de Teologia,
em Vais, e doulorou-se, em
Filosofia e Teologia, pela
Universidade Gregoriana de
Roma. Professor no Seminário
de Vais e, posteriormente, no
Instituto Católico de Toulouse,
foi também professor de
Filosofia do Direito na
Universidade Católica de
Toulouse. Participou no
Concilio Vaticano I, como
teólogo do bispo de Beauvais e
procurador do bispo de
Chambéry, sendo responsável
pelo semanário “Boletim do
Concilio”, onde publicou
importantes artigos em defesa
da infalibilidade pontifícia.
Colaborou na redacção da
revista “Éludes".
Considerado um dos mais
brilhantes teólogos do seu
tempo, é autor de uma vasta
obra doutrinai, tornando-se
particularmente conhecido
como o maior promotor do
Apostolado da Oração, movi­
mento que exerceu uma enorme
influência sobre a piedade cristã
em lodo o mundo. Foi fundador
do “Mensageiro do Coração de
Jesus”, revista mensal, cujas
páginas, durante muitos anos
(1861-1884), redigiu na sua
quase totalidade. Além de


I
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O Reino de Jesus Cristo


na História

I
Nihil Obstat
3 de Abril de 2001
P.e Fernando Leite. S.J.

Pode imprimir-se
Braga. 18 de Abril de 2001
Mons. Eduardo de Melo Peixoto
Vigário-Geral

Tradução: Antônio Carlos de Azeredo


Revisão: Maria Delfina de Almeida e Vasconcelos
Helena Cardoso de Macedo e Menezes
Coordenação editorial: José Narciso Soares
Capa: Felipe Barandiarán
Pormenor do quadro “A coroação de Nossa Senhora'’, Fra Angélico,
Galleria degli Uffizi, Florença).

© 2001 Livraria Civilização Editora. Porto


Todos os Direitos Reservados

Fotocomposiçâo. paginaçào, impressão e acabamento.


Companhia Editora do Minho, S.A.. Barcelos
em Julho de 2001

ISBN: 972-26-2055-X
Depósito Legal: 167238/01
Henri Ramière, S.J.

O Reino de Jesus Cristo


na História
Marco Antonio Fortes Rodrigues
Est Amara| Deixoto , 115 - Sobrado.
Fonseca - Niterói - RJ O kwU.Wjiw O*
Cep 2*140-000-TeL 2705-9836
E-ma»! panto^rator@ig com.br —* f r-

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C^çição
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Prefácio
São Paulo formula claramente a lei suprema da ordem natural
e da ordem sobrenatural, quando diz que, no governo dos séculos,
Deus quer “reunir sob a chefia de. Jesus Cristo todas as coisas que
há no Céu e na Terra” (Ef 1,10). Na verdade, todas as coisas encon­
tram a sua perfeita unidade nessa subordinação ao Homem-Deus.
A finalidade deste trabalho é descrever a realização desse
desígnio divino - que consiste em instaurar todas as coisas em Cristo
- ao longo da história do gênero humano, demonstrando a concor­
dância perfeita entre os factos e as verdades que a Fé nos revela, a
saber: que Jesus Cristo é indubitavelmente o fim último dos desíg­
nios de Deus, o Rei da criação, a chave de todos os enigmas, a solu­
ção de todas as dificuldades.
Se o nosso trabalho não ficar muito aquém do que esperamos,
haveremos de provar que a história só é inteligível à luz deJesus
) Cristo e que só a essa luz se poderá alcançar a unidade e a conexão
x interna que fazem dela uma verdadeira ciência.
Não nos dedicaremos a demonstrar directamente a divindade
do Salvador, nem a verdade dos dogmas do cristianismo. Esse é o
objecto de outras disciplinas teológicas. Suposta a divindade,
demonstraremos, isso sim, que ela explica o que sem ela seria inex­
plicável e, por esse meio, faremos da ciência histórica uma podero­
sa confirmação da Revelação cristã. Ao mesmo tempo, veremos a
Teologia como çomplemento .necessário da ciência histórica.
Isso não significa que iremos despojar a História de quaisquer
vantagens que ela possa ter conquistado, fora do influxo da Reve­
lação; pelo contrário, aceitaremos todos os factos que os historiado­
res tenham solidamente estabelecido e ainda todas as teorias legiti­
mamente deduzidas de tais factos. Contudo, vamos convencer-nos,

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sem dificuldade, que esses factos só podem ser inteiramente expli­
cados e essas teorias plenamente desenvolvidas, na medida em que
os relacionarmos com a razão última de todas as teorias e de todos
os factos, ou seja, com Jesus Cristo.
Jesus Cristo deverá, pois, aparecer-nos, no final deste livro,
como a verdade substancial e completa para a qual convergem todas
as verdades parciais.
Estudaremos especialmente a história da Igreja Católica, mas
na história da Igreja encontraremos a explicação da história da
humanidade. Se é verdade, como iremos demonstrar, que p objec-
tivo final da Providencia consiste em estabelecer no seio da huma­
nidade o Reino de Cristo por intermédio da Igreja, a história da
Igreja e a história da humanidade têm uma mesma explicação.e.uma
mesma fórmuku São dois elementos feitos um para o outro e que a
Providência procura unir para que se complementem. A humani­
dade é o corpo, que deve receber da Igreja a luz espiritual, a direc­
ção moral, a vida divina, a suprema perfeição. A Igreja é a alma
que, iluminada pela luz de Deus, conduzida e vivificada pelo seu
Espírito, é perfeitamente capaz de esclarecer, conduzir e vivificar a
humanidade. Mas durante muitos séculos, diante dos esforços fei­
tos pela Igreja para vivificar e elevar a humanidade, esta opôs-lhe
resistências violentas, tentando encontrar as suas vias longe da Igreja,
fissa luta constitui o grande drama da história, cuja solução passa
necessariamente pela desaparição desse imenso e lamentável
mal-entendido.
Eis a História considerada do ponto de vista cristão, ou, por
outras palavras, de um ponto de vista que não só não rejeita a ciência,
mas que se traduz numa análise histórica verdadeiramente científica.
Não pretendemos, neste livro, desenvolver em todos os seus
pormenores as aplicações da teoria que acabámos sumariamente de
descrever. Limitamo-nos a indicar as suas linhas gerais e a mostrar,
nas diversas épocas históricas, o encadeamento dos factos que
devem conduzir ao estabelecimento do Reino de Jesus Cristo.
Mas antes de passar à aplicação, devemos expor a teoria de
forma convincente. Como desejamos proceder com rigor científico,

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não faremos suposições, excepto no que estiver fora da ciência da


qual nos ocupamos e for demonstrado por outras ciências.
Daí a necessidade de analisarmos, nos seus elementos científi­
cos, a concepção do Reino de Jesus Cristo na História, para estu­
darmos, depois, a sua preparação e realização na ordem dos factos.
Em que condições pode a História ser considerada uma ciência?
Quais são os agentes que intervém na História? Qual é o fim, e que
plano segue, cada um desses agentes? Quais são as principais teorias
apresentadas para explicar a História e qual é, em cada uma delas, a
parte de verdade e de erro? Enfim, qual é a teoria verdadeira e quais
são as relações da ciência histórica bem compreendida com as outras
ciências? Essas são questões que trataremos na primeira parte.
Mas comecemos, antes de mais, por perguntar-nos se a História é,
de facto, uma ciência e sob que condições pode ela reivindicar tal título.

1. A história descritiva é ciência histórica?

Há muitas maneiras de considerar a história e nem todas igual­


mente científicas. O mais simples de todos os métodos históricos é,
certamente, o que se contenta em expor os factos em ordem crono­
lógica, sem procurar relacioná-los entre si.
A história assim considerada nada tem, evidentemente, do que
é necessário para constituir uma ciência.
Com efeito, a ciência não é um conhecimento qualquer da ver-
dade. É o conhecimento raciocinado ou, como diziam os antigos, o
conhecimento das coisas pelas suas causas, cognitio renun per causas.
O mais ignorante dos homens, se não for cego, vê tão bem como o
sábio o sol a eclipsar-se, quando a lua se coloca entre ele e a terra, e
a pedra a elevar-se no ar, quando é atirada com força. Mas o igno­
rante, embora conheça o facto, não tem o conhecimento científico
do mesmo, porque não conhece as suas razões.
Isto que sucede com os factos físicos ou materiais acontece,
analogamente, com os factos humanos ou históricos. Para conhecê-
-los, basta ter olhos, mas para ter deles um conhecimento científico,

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é necessário mais, é preciso ir até às razões últimas, ligando os efei­
tos às suas causas respectivas. Se a história se contentar em relatar
os acontecimentos que se passaram, sem mostrar o seu encadea-
mento e as suas causas, não poderá pretender o título de ciência.
Será apenas um ramo da literatura.
Não se pense que pretendemos negar o mérito da história assim
considerada. Com efeito, a literatura tem um lugar de relevo entre
as produções do espírito humano e, assim, a história meramente des­
critiva não tem de envergonhar-se da posição em que a colocamos.
Situá-la ao lado da poesia e da eloquência nada tem de afrontoso.
Mas mesmo que ela não aceite essas nobres companhias, não tería-
mos motivos para lhe negar uma verdadeira superioridade, quanto à
sua utilidade moral, pelo menos em relação à poesia. Com efeito, o
que faz a poesia nas suas mais belas criações do que descrever, de
forma mais ou menos quimérica, as verdades vivas que a história
imortaliza nos seus relatos?
Que poema se pode igualar à história de José ou à de Tobias?
Sob este ponto de vista inicial, verificamos com grande satisfa­
ção o progresso que a História tem feito nos nossos dias. Nos sécu­
los anteriores, ela perdera objectividade. No intuito de fugir da tri-
vialidade, perdeu calor e vida. Dir-se-ia que os historiadores tiveram
o cuidado de tirar dos factos históricos a sua cor própria, revestindo-
-os de uma tonalidade pálida e uniforme, que os tornava quase irre­
conhecíveis. Com o intuito de agradar ao público, vestiam os nossos
antepassados com roupagens actuais e punham-nos a falar a nossa
língua; o passado era apresentado na óptica do presente, o que equi­
vale a dizer que era muitíssimo deturpado.
A escola histórica moderna reagiu de maneira muito feliz con­
tra essa tendência. Aceitando o dever de ir às fontes, preocupou-se
em não lhes alterar a pureza. Conseguiu, de forma admirável, fazer i

reviver os séculos passados, com as suas idéias, sentimentos, costu­


mes, linguagem ingênua, qualidades e defeitos. Realizou assim um
grande progresso. Se a verdade dos factos, dos costumes, dos carac­
teres, não constitui por si só a ciência histórica, é pelo menos a maté­
ria sobre a qual a ciência histórica se deve debruçar. O historiador

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0 Sfaáia aífeíaa /ia Jfáj&ááz

erudito tem necessidade do historiador narrador, assim como o


astrônomo tem necessidade do observador, que lhe forneça os ele­
mentos dos seus cálculos e o ponto de apoio para as suas deduções.
Quanto mais rigorosa for a observação, quanto mais fidedigna for a
descrição, tanto mais seguras serão as deduções científicas.
A história descritiva é, portanto, o ponto de apoio da ciência
histórica, mas não é propriamente essa ciência.

2. Crítica histórica e ciência histórica

A história crítica tem alguns direitos adicionais ao título de ciência.


O historiador que relata os factos que sucedem diante dos seus
olhos, ou aqueles que lhe foram transmitidos por testemunhas ocula­
res, só precisa de alguma memória para não se afastar da verdade, ao
escrever os seus relatos. O mesmo não acontece àquele que vive numa
época distante dos acontecimentos que relata. Um historiador nestas
condições encontrar-se-á, quase sempre, em presença de vários rela­
tos contraditórios, entre os quais deverá optar. Para que a escolha não
o leve a preferir o erro à verdade, deve estabelecer regras seguras que
o ajudem a discernir os documentos autênticos dos que o não são, e
quando essa primeira dificuldade tiver sido vencida, será ainda neces­
sário, entre as testemunhas das quais se conhece, com certeza, o tes­
temunho, discernir as que merecem crédito das que se podem ter dei­
xado enganar, ou que quiseram enganar. A crítica nasceu dessa dupla
necessidade. Explicitou certas regras baseadas na experiência e no
conhecimento da natureza humana, que a ajudam a descobrir a frau­
de e o erro. Tais regras, como todos os teoremas científicos, ligam-se
a princípios gerais, de onde são deduzidas por raciocínios legítimos.
Temos então agora o que antes nos faltava: um conhecimento estru­
turado e uma série de efeitos ligados às respectivas causas. Não é
necessário mais para que a crítica possa merecer o título de ciência.
É verdade que ela possui, em baixo grau, uma das principais
exigências da ciência: a certeza imutável dos princípios e das con­
clusões. A crítica apoia-se, quase sempre, em probabilidades. E, assim,

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as suas conclusões quase nunca chegam ao grau de certezas. A ima­
ginação e os preconceitos têm talvez um papel maior nesta ciência
do que em qualquer outra, e entre os seus mestres mais famosos vê-
-se, por vezes, reinar um desacordo desconcertante. Certo docu­
mento, que um deles considera evidentemente autêntico, o outro
declara-o evidentemente falso; as testemunhas que, segundo este,
merecem inteiro crédito, são, segundo aquele, impostores. Basta ver
o que a Alemanha fez da Bíblia para nos convencermos de que o tem­
plo da crítica se tornou uma verdadeira babel; e, se não se chegou ali
ao ponto a que chegaram os áugures romanos, que não se podiam
entreolhar sem rir, foi por causa da sisudez inata do povo alemão.
No entanto, se essas contradições e incertezas têm a vantagem
inegável de diminuir um pouco o orgulho da crítica, não vemos nelas
um motivo suficiente para lhe negar carácter científico. Não lhe
negaremos nenhum dos progressos que conseguiu alcançar, nenhum
dos serviços que prestou à história.
Certamente, não é aos católicos que a tocha da crítica pode atemo­
rizar. A história seria, aliás, muito omissa e muito injusta, se conside­
rasse os católicos como seus inimigos. Quem definiu com mais autori­
dade as leis da crítica do que um Honoré de Sainte-Marie? 1 Quem as
aplicou com maior independência do que os Beneditinos de São Mauro2

1) Honoré de Sainte Maric (1651-1729). Carmelita descalço francês, nascido em Limoges. O


seu nome, no século, foi Blaise Vauzelle. Após brilhantes estudos literários, professou, em
1671. nos carmelitas descalços de Toulousc. Foi professor de Teologia e Filosofia. A sua
profunda erudição valeu-lhe um lugar de destaque na vida literária e religiosa do seu
tempo. Os seus escritos tem por objecto. principalmentc, a mística, a crítica histórica e o
combate contra o jansenismo. No campo da crítica histórica, a sua obra principal é
“Réflcxions sur les règles et sur Fusage de la critique touchant Fhistoire de 1’Église, les
ouvrages des Pères, les Actes des anciens martyrs, les vies des saints...”, em 3 volumes, na
qual apresenta os princípios gerais e os métodos que permitem fazer progredir a crítica his­
tórica, c onde põe cm relevo a importância das fontes e o rigor científico na sua apreciação.
2) Beneditinos de São Mauro. Congregação beneditina, fundada cm Paris, em 1618, por Dom
Bernard, para reformar os beneditinos franceses. Nos fins do século XVIII, agrupava 191
mosteiros, somente em França. O nome de São Mauro (510-584), dado à nova congregação,
deve-se ao insigne discípulo de São Bento que fundou, em Ganfeuil, a primeira abadia fran­
cesa. A partir de 1631, a Casa-mãe da nova Congregação esteve situada cm Saint-Germain-
des-Prés. Distinguiram-se estes beneditinos pelos trabalhos a que se dedicaram, especial­
mente pelas notabilíssimas edições das obras dos Padres da Igreja, c por terem lançado

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ou os Bolandistas? 3 E se esses grandes críticos católicos alguma vez


erraram, não terá sido pelo excessivo rigor, por vezes pouco justo,
com que julgaram os legados da tradição?
Uma vez mais, não queremos negar à crítica histórica qualquer
das suas glórias. Reconhecemos, de bom grado, os seus serviços e
somos os primeiros a proclamar que são muito necessários. Mas bas­
tará ela para fazer da História uma ciência?
Não basta, porque as suas deduções, ao invés de nos introduzi­
rem no santuário da História, conduzem-nos, somente, até ao seu
limiar. Com efeito, para onde tende a crítica? Para nos levar a com­
preender os factos, para penetrar as suas razões, para interpretá-los
de forma científica? Não, ela tende simplesmente a verificar a sua
veracidade. A crítica faz dos factos passados o que os nossos senti­
dos fazem dos factos presentes. Assim como, após observar um
eclipse, fico com a certeza do fenômeno físico, embora possa não
conhecer as suas razões, também depois de utilizar os recursos que

os fundamentos da ciência histórica moderna, com a preocupação do rigor na consulta


das fontes históricas e a transcrição e publicação de documentos inéditos. O primeiro
século de existência da Congregação de São Mauro foi marcado por um grande fervor e
pela observância estrita da Regra de São Bento. No século XVIII, ela não escapou à
decadência geral das ordens monásticas, chegando a sofrer certa influência jansenista
nalguns dos seus membros, o que não impediu a fidelidade heróica de muitos “mauris-
tas”, entre os quais se contaram três mártires, em Setembro de 1792. Esta congregação
deixou de existir em 1790.
3) Bolandistas. Associação de escritores eclesiásticos, principalmentc da Companhia de
Jesus, destinada a “submeter a um exame crítico a vasta literatura hagiográfica existente
para estudar e dar a conhecer o valor das fontes relativas aos santos de que se faz refe­
rência nos martirológios e, por conseguinte, poder discernir os dados historicamente cer­
tos dos legendários ou falsos, e, assim, poder reconstruir a verdade histórica c a espiri­
tualidade dos que merecem o nome de santos” (Ermanno Ancilli, Diccionario de espiri­
tualidade tomo II, Herder, Barcelona, 1983). Tomaram o nome do sacerdote flamengo,
Jan van Bolland, S. J. (1596-1665), de Antuérpia, continuador do plano inicial, que fora
elaborado pelo padre Herbert Roswcyde, S. J. (1569-1629), e se destinava a reagir contra
a determinação protestante de negar a autenticidade das antigas hagiografias. Os seus
discípulos deram continuidade àquela obra, através de uma vasta e cuidadosa recolha de
provas científicas, que culminaram com a publicação de numerosas e valiosíssimas hagio­
grafias, recolhidas nas Acta Sanctorunie que contam 70 volumes in folio, publicados até
hoje. O primeiro volume saiu cm 1643. Os trabalhos desta sociedade, interrompidos
entre 1794 c 1837, chegaram ate aos nossos dias. A sociedade possui, em Bruxelas, um
Museu Bolandiano, com mais de 150.000 volumes.

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a crítica me proporciona, adquiro a certeza da autenticidade de um
livro, da veracidade de um testemunho e, por conseguinte, da vera­
cidade do facto histórico, mas falta-me estudar as suas razões e
conhecê-lo cientificamente.
A crítica histórica nào é, pois, ainda a ciência histórica propria­
mente dita.

3. A ciência histórica propriamente dita

Vejamos agora outro modo de considerar os factos. Tomemos


a vida de uma personagem ilustre e, com os factos da sua vida, faça­
mos o que na Alemanha chamam uma construção. Ou seja, procu­
remos no carácter dessa figura histórica um traço domLriante9 com o
qual todos os outros aspectos da sua personalidade se relacionam.
Não tratamos aqui do abuso ignóbil que o materialismo faz de tal
método. Ao estudar os métodos históricos, só consideraremos as
teorias racionais. O materialismo não é racional, pois procura no
mundo físico a razão última da ordem moral) Explica a história
romana pela constituição do cérebro dos romanos, que supõe frio e
seco. Perante tolices dessas, não se argumenta, apenas se deve imi­
tar o poeta: “Non ragioniam di lor, ma guarda,_e passa” 4.
O método que exponho neste momento é mais sério. Não se
pode negar que em cada carácter humano existe uma qualidade
dominante e, em geral, também um defeito dominante, que são os
motivos principais das obras boas ou más, dos sucessos ou derrotas
de uma vida inteira.
Cada um dos homens que exerce sobre a sociedade uma grande
influência recebeu de Deus uma determinada missão, para cuja reali­
zação os acontecimentos exteriores concorrem maravilhosamente.
Nada melhor para compreender a unidade dessas grandes existências
do que procurar na referida motivação exterior a explicação dos acon­
tecimentos em que participaram e das influências que exerceram.

4) “Não deves falar deles - olha e passa”. A divina comédia - O Inferno, Danle Alighieri,
canto III, 17.

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Tz/rifo zza .zffijáúüz

O que dizemos dos homens notáveis, podemos afirmar com


maior razão das famílias, das sociedades e dos povos. Nessas pessoas
morais, tal como nos indivíduos, será muitas vezes possível encon­
trar um carácter colectivo, que nas épocas críticas da sua história
aparece com mais nitidez, e que explica muitas vezes os seus triun-
fos ou a sua decadência. Por outro lado, melhor ainda do que nas
existências individuais, os desígnios de Deus revelam-se na vida das
sociedades e permitem perceber a unidade da sua história.
Em resumo, os princípios da moral privada e pública podem
servir para explicar muitos factos, seja na biografia, seja na História
propriamente dita. Embora a virtude não seja sempre recompensa­
da na terra - como também nem sempre o vício é aqui punido - é
certo, no entanto, que a virtude, em si mesma, leva à felicidade, do
mesmo modo que o vício conduz à desordem e à infelicidade. Mas,
ainda quando a virtude fosse infeliz e o vício triunfante, seria dever
do historiador glorificar a primeira e censurar o segundo. gois_a
História é um tribunal ao qual o passado comparece para ser julga­
do e para ser proposto à imitação do presente ou à sua condenação.
Ela desconhecería a sua dignidade se não se considerasse como a
representante da consciência do gênero humano. Mas, se ela enten­
der assim a sua missão, elevar-se-á muito acima da história mera­
mente descritiva; os seus relatos tornar-se-ão o mais útil dos ensina­
mentos e, ao explicar os factos à luz dos princípios da moral, dá a tais
princípios a mais impressionante das confirmações. A História
torna-se assim uma verdadeira moral em acção, uma escola de polí­
tica e de filosofia social.
it
x. Nesta maneira de entender a história, encontramos, muito mais
do que nos métodos anteriores, as condições de uma ciência verda­
deira. Aqui, os factos não são apenas verificados, mas também expli-
cados. Os efeitos são reconduzidos às suas.causas.,, inicialmente, às
Cçausâs imédíãtàSp que são as tendências da vontade livre do homem,
e depois à sua causa primeira, que é a ''"Rr.Qvidência soberana ^de
Deus. Temos então um conhecimento raciocinado, semelhante
àquele que a física nos dá dos movimentos dos corpos. Contudo, na
primeira das duas ciências, as conclusões não são tão rigorosas como

15
na segunda, pois as leis morais, embora se imponham ao homem,
não negam a sua liberdade, mas também nãxLpodem produzir efei-
tos tão certos como as leis físicas, que se aplicam com uma necessi­
dade cega. Nos dois casos, entretanto, os fenômenos particulares e
mutáveis são relacionados com as leis gerais e permanentes da
ordem à qual pertencem; nos dois casos estamos, pois, em presença
de verdadeiras ciências.
É essa, então, a ciência histórica em toda a sua verdade e extensão?
Não, falta ainda à História, assimconsiderada, a mais alta de
todas as prerrogativas da ciência: a Unidade)
Se ficássemos por aqui, teríamos tantas ciências diferentes quan­
tas são as biografias e as histórias parciais. Não teríamos, contudo, uma
ciência completa da história. Compreenderiamos a vida de alguns
grandes homens, a existência colectiva de certos povos; não com­
preenderiamos. porém, a vida da humanidade. Já não ficaríamos redu­
zidos, como o historiador puramente descritivo, a juntar os materiais
das ciências, sem descobrir o seu encadeamento, a dissecar os elemen­
tos orgânicos sem perceber a organização que os une. Teríamos esbo­
ços de organização, partes do edifício, mas não teríamos um corpo per­
feito. Não poderiamos contemplar, na sua majestosa unidade, o gran­
de edifício que a Providência constrói desde o início dos séculos.
Essa unidade existe realmente nos acontecimentos da história
como existe em todos as outras partes da Criação? Terá a Provi­
dência divina impresso a esse caos aparente que é a existência da
humanidade, a bela ordem que caracteriza a sua acção e que consti­
tui a suprema beleza de todas as suas obras? É o que iremos exami­
nar. Mas o que, desde já, podemos afirmar é que, se fosse necessá­
rio renunciar a descobrir tal unidade, seria preciso renunciar igual­
mente à ciência da história.

4. A ciência histórica cm toda a sua grandeza

Neste ponto estamos de acordo com os mais eminentes dos nos­


sos contemporâneos. A unidade da história é reconhecida mesmo

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& de

por aqueles que se obstinam em procurá-la onde ela não está. Na


medida em que a família humana se tornou mais independente do
espaço físico, na medida em que pôde reunir com maior facilidade
os seus membros dispersos, também foi sendo invadida pelo senti­
mento da sua unidade. As origens dos diversos povos foram investi­
gadas com maior curiosidade; as necrópoles onde dormem as gera­
ções passadas foram escavadas com ardor infatigável; os mais anti­
gos anais foram interrogados, as línguas, os monumentos, a própria
fisiologia, vieram em auxílio da história escrita e entre os povos mais
distantes em aparência, foram encontrados laços estreitos de paren­
tesco. Enquanto a erudição trabalhava, assim, para demolir os
muros que dividiam o campo da história, o pensamento procurava,
na região dos princípios, uma unidade mais completa e mais depen­
dente dos factos?"
Daí, todas as teorias da Filosofia da História que surgiram nos
nossos dias e que se multiplicam continuamente, como se os seus
autores não suspeitassem que essa multiplicação equivale à respec­
tiva condenação.
Devemos examinar tais teorias e devemos até perguntar-nos se
existe uma Filosofia da História e quais podem ser as leis dessa ciên­
cia, supondo que ela existe. Mas, ao contrário dos seus autores, não
contestaremos aqueles primeiros pressupostos, do qual eles também
partem. Como eles, queremos que a Histórj_a__seja una; como eles,
sustentaremos que é regida por grandes leis, cuja aplicação infalível
ordena a sua aparente desordem.
Contudo, num ponto não podemos estar de acordo com a maior
parte desses fabricantes de sistemas: é quando afirmam que a infalibi­
lidade das leis históricas é incompatível com a liberdade humana. Para
preservar a unidade da ciência histórica, subtraem-lhe o seu objecto
próprio, ou seja, a actividade livre do homem. Para colher o fruto, cor­
tam a árvore. Eis uma loucura que não queremos imitar. Para nós, a
ciência não é incompatível com o bom senso. Antes de mais, reco­
nhecemos a liberdade. Mas, sem diminuir em nada este atributo do
homem, ser-nos-á fácil vê-lo dominado pela Providência de Deus.
É à liberdade humana que atribuiremos a variedade da história, mas,

17
ao mesmo tempo, descobriremos a sua unidade..nos desígnios da
Providência divina. Assim, poderemos salvaguardar as condições
essenciais da ciência histórica e sustentá-las, seja contra os simples
narradores, seja contra os ataques dos historiadores filósofos que
sacrificam a variedade à unidade.
( Este método, o único inteiramente conforme aos ensinamentos
da fé cristã, é também o único que reúne, na sua plenitude, os ele­
mentos constitutivos da ciência. Reúne todas as vantagens dos outros
métodos, sem incorrer nos inconvenientes que neles apontamos.^
A história pode conservar nos seus relatos todo o interesse e toda
a verdade atraente do método descritivo; pode possuir toda a segu­
rança da mais rigorosa crítica, toda a utilidade da história moral ou
política; pode dar a conhecer os factos, estabelecer a autenticidade
dos monumentos e a verdade dos testemunhos, permitir a compreen­
são dos homens e atribuir a cada povo o seu papel. Objectivos secun­
dários todos eles, mas compreendidos no seu fim específico. E quan­
to mais ela se colocar num ponto de vista superior, tanto mais lhe será
fácil entender cada um desses aspectos parciais, abarcando melhor o
conjunto e relacionando mais facilmente a acção dos indivíduos e das
sociedades particulares com os destinos gerais da humanidade.
Eis a verdadeira ciência da História em toda a sua grandeza e
beleza, tal como o cristianismo no-la revela. O paganismo não a
conheceu. E como poderia tê-la conhecido, se ignorava inteiramen­
te tanto a unidade do gênero humano como a Providência de Deus?
O deísmo, com a sua concepção absurda de uma divindade indife­
rente ao mundo, e de um mundo entregue aos caprichos do acaso, é
igualmente incapaz de compreender a maravilhosa unidade da
História. Mas também não procura roubar ao cristianismo essa
grande conquista. O pajiteísmo moderno foi mais audacioso na sua
guerra à Igreja; porém os seus esforços apenas farão com que, indi-
rectamente, a verdade triunfe. Desenvolvendo nos espíritos a exi­
gência da unidade da ciência, abre as vias para a única verdadeira
unidade, e até nas contradições em que cai, procurando essa unida­
de fora de Jesus Cristo, acabarão por levar ao divino Redentor as
almas rectas.

18
& S/faúw d? vtáfo /za Jfójfo/v/z

Em presença desses adversários, a nossa tarefa será fácil.


Demonstraremos que, no drama da história, o homem não é o único
actor. Acima dele há poderes superiores, a cuja influência a huma­
nidade obedece e cuja acção dá à História a unidade que a mobili­
dade das gerações humanas impediría.
Antes de mais, Deus, causa primeira de todos os seres e de todo
o movimento; Deus, princípio e fim último do homem, que dirige
para a sua glória todas as acções da sua criatura. E, abaixo de Deus,
Satanás, o chefe da cidade do mal, que utiliza sem cessar o poder
que Deus lhe concede para destruir o plano divino e arrastar a
humanidade na sua revolta.
Não nos contentaremos em demonstrar a realidade da inter­
venção desses agentes superiores na história. Analisaremos ainda a
sua acção, determinaremos o fim que buscam, os meios que empre­
gam, a táctica que seguem na sua luta. Faremos a respeito do plano
da grande batalha uma ideia tão precisa quanto possível, da qual
seguiremos depois as diversas peripécias nos relatos da história.
Se conseguirmos este objectivo, ficará demonstrado que a "ciên­
cia histórica bem entendida deve ser definida como a exposição dos
factos pelos quais a liberdade humana é infalivelmente conduzida
pela Providência divina para estabelecer na terra, apesar das resis­
tências dos espíritos rebeldes, o Reino de Jesus Cristo.'^

19
Primeira Parte

O Reino de Jesus Cristo


considerado nos seus
elementos
Capítulo I

A acção divina
Será Deus um agente histórico? Será a Providência uma ficção
piedosa? Estas questões foram resolvidas tão claramente pelo bom
senso do gênero humano, que nem sequer os pagãos tiveram dúvi­
das a seu respeito, exceptuando alguns filósofos, como os seguido­
res de Epicuro '.
Somos, entretanto, obrigados a discutir estas questões já no
princípio deste estudo, porque o racipnalismo dos nossos dias -
radicalmente oposto a tudo o que é divino - empreende todos os
seus esforços para expulsar Deus da História. Tal empenho é a prin­
cipal característica desta nova heresia, em que as facções diversas só
se distinguem pela extensão que conferem a essa exclusão.
Alguns, mais consequentes no seu erro, excluem absolutamen­
te do mundo físico e moral toda e qualquer acção superior à nature­
za e à humanidade: são os positivistas.
Outros admitem de bom grado'que Deus é a causa primeira de
todas as coisas e que os agentes físicos e morais Lhe devem a sua exis­
tência; mas negam que Deus lhes tenha estabelecido um fim. Rejeitam,
pois, como não científica, a teoria das causas finais. Não lhe poupam

1) Epicuro (341 a. C.-270 a. C.) Filósofo grego, nascido provavelmente em Samos


e educado em Atenas, onde ele próprio fundou uma escola. Ensinava que o pra­
zer é o supremo bem do homem. Não se referia ao prazer dos sentidos, mas à
cultura do espírito e à prática da virtude. A sua teoria do conhecimento ligava-
se ao atomismo: Tudo se deve a encontros atômicos sem qualquer intervenção
da Providência divina. Para ele, os deuses viviam no espaço inter-estelar, com­
pletamente divorciados dos assuntos humanos.

23
zombarias, embora poupem os argumentos sérios. Sem ousarem
confessar-se ateus, ou deístas, não hesitam em recusar o dogma da
Providência.
Enfim, os mais moderados entre os racionalistas aceitam a
Providência, mas sob a condição de que ela se limite a estabelecer,
na origem do mundo, as leis gerais cuja execução será confiada a
agentes secundários. Ela fica impedida, tanto na ordem física como
moral, de qualquer intervenção directa, limitando-se ao papel de
simples espectadora.
Lamentamos ter de acrescentar a todos esses adversários decla­
rados da acção divina alguns escritores católicos, que se deixam
dominar pelo contágio do naturalismo. Parecem ter medo de atri­
buir a Deus demasiada importância e acabam por perfilhar a teoria
das leis gerais, chegando mesmo a excluir o milagre da história.
A todos os erros acima mencionados não vamos opor aqui uma
teoria completa sobre a Providência: esse é o objecto da Filosofia e
da Teologia. O nosso objectivo é mostrar como os argumentos sobre
os quais se apoiam esses diferentes sistemas são historicamente
insustentáveis e como, pelo contrário, o dogma cristão da
Providência - tocha que ilumina a História - é poderosamente con­
firmado pelos testemunhos históricos.

1. A intervenção divina demonstrada pela história

É quase sempre na história que a escola positivista se apoia


para combater a realeza de Deus. Os argumentos que utiliza para
atingir o seu objectivo são de duas espécies.
O primeiro é negativo. Na história nada há que não seja histó­
rico, natural e humano. Deusnunca se manifestou autenticamente.
A ciência não tem, portanto, qualquer motivo para reconhecer a sua
existência. Quanto mais a ciência estiver longe dessa hipótese para
explicar os factos, tanto mais procederá cientificamente.
Este argumento é corroborado por um outro que parece ainda
mais científico. O progresso da ciência - diz a mesma escola positi-

24
dá' fejááJ

vista - tende manifestamente a excluir cada vez mais as causas supe­


riores à natureza. Houve um tempo em que, atrás de cada objecto,
o homem via uma divindade que o movia. As Náiades faziam jorrar
as fontes, Faetonte conduzia o carro do sol, Júpiter provocava o tro­
vão. Mais tarde, o conhecimento mais perfeito das forças naturais
eliminou todas essas divindades naturais. Contudo, a ignorância da
lei geral do mundo fez com que ainda se conservasse uma divindade
superior que lhe dava o ser e o movimento. Essa última ficção deve
desaparecer, como as primeiras, com o simples progresso da ciência.
Os modernos campeões do ateísmo têm tanta confiança nestes
dois argumentos, que não param de repeti-los. Vejamos se essa ufania
se justifica, e comecemos por analisar o valor do segundo argumento.
Afirmam eles que o espírito humano tende a fazer desaparecer
as potências superiores à natureza. Logo, deve chegar a suprimi-las
completamente. Existe neste raciocínio um grosseiro erro de facto e
uma violação igualmente grosseira dasjeis da,lógica..
Segundo eles, a humanidade ^tia<cQnT^£adoj3elaJdolatria e
pelo politeísmo, para chegar aos poucos à crença num Deus único.
E isso que diz a História? Não, ela afirma exactamente o contrário.
Não apenas a história sagrada dos hebreus - a mais antiga e mais
digna de fé de todas as histórias - nos mostra a crença num Deus
único, precedendo em todos os lugares as superstições idolátricas,
mas ainda os monumentos profanos nos confirmam nessa persuasão.
Entre os monumentos mais antigos estão os cantos dos poetas, ecos
sonoros de crenças populares. Ora, os antigos poetas^pxQ.çlamajn^de
forma-caíegórica, a unidade do princípio das coisas. Podemos então
ter como historicamente certo o facto (que o estudo da nossa natu­
reza teria bastado para nos revelar) de que a crença nas divindades
subalternas, encarregadas de mover a natureza, não foi a primeira
etapa do progresso do espírito humano, mas constituiu, pelo contrá­
rio, o resultado de um ochjjse da razão, obscurecida pela degradação
dos costumes.
Quando a Encarnação do Verbo Divino devolveu à razão a sua
jneponderância, ela voltou à crença primitivav.e essa volta, longe de
conduzi-la à negação cie Deus,'garant^oTriunfo do monoteísmo.

25
Por outro lado, se aceitássemos para efeitos de argumentação,
que o progresso da ciência levou a humanidade a substituir o politeís-
mo pelas forças naturais, o que decorrería daí? Que imperativo lógi­
co forçaria a deduzir, a partir da destruição de um erro evidente, a
negação de uma evidente verdade? Por rejeitar algumas causas fictí­
cias, inventadas pela imaginação, seria necessário negar todas as cau­
sas? Porque foi provado que um antigo edifício não foi construído por
fadas, como narram as lendas populares, teria a ciência o direito de
concluir que ele se construiu por si próprio? E se esta conclusão é tida
como absurda em relação a uma ruína medieval, como poderá pare­
cer científica quando se trata do magnífico edifício do universo?
Porém, aqui a escola positivista esgrime outro argumento: para
que a acção divina possa ser reconhecida pela ciência deve ser cien­
tificamente comprovada. Se assim não for, a história deve tê-la
como inexistente.
E preciso uma não pequena ousadia para desmentir tão catego­
ricamente os inúmeros testemunhos históricos da intervenção divina.
A escola positivista afirma, pois, que a intervenção divina não
está historicamente demonstrada. O que é, então, necessário para
demonstrar um facto? Até agora, pensava-se que era possível fazê-
lo de duas maneiras: por testemunhos directos e positivos, ou por
argumentos indirectos e negativos, isto é, pela impossibilidade de
explicar os outros factos, caso não se admita esse. Foi assim que a
ciência demonstrou, por exemplo, a existência de um planeta que a
observação directa ainda não tinha chegado a perceber.
Não falemos, ainda, da prova directa da intervenção divina que
o milagre nos fornece. Bastaria apontar aos positivistas dois factos,
entre mil que poderiamos lembrar, para desafiá-los a explicar o
fenômeno sem essa intervenção. São eles: a aparição da inteligência
na terra e a invenção da linguagem. Eles admitenique^inteligência
aparermi, apenas, a partir de um certo momento. De onde veio? Já
que o seu princípio básico éjo’<Jc._quc não se pode admitir nenhum
agenleJfora. dos agentes históxiC-OS. - isto é, os que vemos a movi­
mentarem-se sob os nossos olhos - a qual desses agentes atribuem eles
a produção da primeira inteligência? É um facto histórico inegável

26
0 Srfeúw ak jfaai /zzz Jfâtáfràz
C7Z

que todos os seres racionais nascem de outros seres racionais..Q.pri-


meiro de todos, evidentemente, não nasceu assim. É preciso então,
necessariamente, atribuir-lhe uma origem cxtra-hislórica. O princí­
pio sobre o qual se apoia a negação de Deus é então destruído. Mas
não é tudo. A origem do primeiro ser racional, se não é atribuída à
acção livre de Deus, deve resultar das forças cegas da natureza. É
admissível cientificamente esta hipótese? Evidentemente que não.
Pois as forças naturais, pelo facto de estarem privadas de liberdade,
agem sempre da mesma maneira. Se a produção do primeiro ser
racional foi o resultado do desenvolvimento da animalidade, todos
os dias veriamos animais inferiores tornarem-se racionais. Ora, esse
é um fenômeno que, desde o princípio dos tempos históricos, nunca
foi visto. Então, não é um simples resultado de alterações da natu­
reza, de onde se conclui que apenas a acção livre de Deus pode ser
causa da origem do homem.
.A_origem.da linguagem tem traços tão evidentes da intervenção
divina como os anteriores. Deus esclareceu o espírito do primeiro
inventor da linguagem com uma luz muito superior àquela que a
natureza nos deu. Porque basta considerar a estrutura da língua,
mesmo a mais elementar, para reconhecer que a invenção desses
mecanismos só pode ser o resultado da mais delicada análise dos
elementos do pensamento. Quanta abstracção não é necessária para
criar os nomes comuns dos gêneros e das espécies, para diferenciar
o adjectivo do substantivo e a seguir juntá-los mediante um verbo,
ou unicamente para encontrar o verbo ser, primeiro elemento de
qualquer proposição e objecto da mais abstracta de todas as idéias!
Será preciso, então, supor que o inventor da linguagem pôde executar
sozinho no seu espírito as mais complicadas operações. Ora, a His­
tória estabelece como lei - que até hoje nãosofreu uma só excepção
- que oJjQmem privado dajinguagem, se não~èsET7Ies7ít uído de
qualquer ideia intelectual, como erroneamente foi suposto, é pelo
menos incapaz de desenvolver essas idéias pelo raciocínio e de exe­
cutar em relação a elas qualquer operação, por mais simples que
seja. É, portanto, incapaz de inventar a linguagem. Deste modo, supor
que a linguagem foi inventada sem nenhuma assistência divina, por

27
um homem anteriormente privado desse dom, é colocar na história
um elemento que nada tem de histórico. É supor, sem qualquer fun­
damento, uma superioridade da humanidade primitiva sobre a
humanidade actual. Facto que contrariaria, aliás, manifestamente, a
lei do progresso.

2. A ordem moral e a ordem física

Contudo, essa intervenção divina, da qual provámos a necessi­


dade na origem das coisas, não se limitou a agir nesse momento? Os
agentes inferiores, uma vez criados, não foram completamente entre­
gues às suas forças naturais? Pode sustentar-se, sem ser desmentido
pelos factos, que eles foram feitos para um fim digno de Deus e que
são dirigidos para esse fim por uma Providência omnipotente? Não
seria essa hipótese desmentida pelas lacunas e desordens do mundo
físico e pelas desordens ainda mais graves do mundo moral, em que
tudo está entregue ao capricho da sorte e das paixões?
Notemos, em primeiro lugar, que, se existe no mundo um ser
que traz em si as marcas do seu destino providencial, esse ser - que
os pagãos chamaram microcosmos, isto é, a miniatura da ordem uni­
versal - é o homem. Não pensamos apenas na sua organização muito
mais perfeita do que a dos outros animais, a forma das suas mãos, a
sua estatura erecta, a sua fisionomia expressiva, os sons articulados
que profere a sua boca, a utilização que faz dos seus sentidos. Mais
do que isso, a sua constituição espiritual prova que ele é feito para
uma felicidade infinita. Com efeito, a sua inteligência tem o poder
de se elevar acima de todos os seres finitos e tem uma espécie de
impotência de se deter até chegar à causa primeira, ao ser infinito.
A sua vontade é irresistivelmente impelida a buscar, para além de
todos os bens finitos, um bem que não tem limites, no espaço e no
tempo. No homem, portanto, a potência do conhecimento é conexa
com o desejo de possuir. E dessas duas causas nasce nele uma inca­
pacidade, própria de um rei, de descansar nos deleites criados que
satisfazem todos os outros seres. Do mesmo modo que julgamos a

28
0Sffeúw aí’ Jfaaj /z/z jffíftórãz

respeito da finalidade do olho pela capacidade que lhe é própria de


receber a luz, e pelo mal-estar que experimenta quando dela fica pri­
vado por muito tempo, assim também a capacidade de conhecer o
bem soberano, e o mal-estar que acompanha a posse exclusiva de
qualquer outro objecto, provam-nos que o homem foi verdadeira­
mente criado para possuir esse objecto supremo.
Porém, a liberdade que ele tem de recusar o bem e querer o mal
não prova justamente o contrário? Não, e para nos convencermos
disso será suficiente notar que, quando o homem quer o mal, é sem­
pre sob a aparência de bem. Todos os actos maus trazem, pois, con­
sigo a sua própria condenação e são um desmentido a si mesmos, ao
invés de serem um desmentido ao fim verdadeiro do homem.
Tais actos encontram nos seus desenvolvimentos um desmentido
ainda mais eficaz. Na medida em que o homem se aproxima do seu
verdadeiro bem, todas as qualidades do seu ser permanecem em har­
monia perfeita. A vontade, obedecendo à razão, ordena a sensibilida­
de. Tudo fica em ordem, tudo fica em paz. Pelo contrário, quando o
homem pratica o mal, logo este introduz a desordem no seu ser; a sua
vontade, condenada pela razão, torna-se escrava das paixões e, mui­
tas vezes, até os próprios órgãos se recusam a obedecer-lhe.
A liberdade não pode, pois, justificar os ataques dirigidos con­
tra a Providência; pelo contrário, fornece-lhe um testemunho mag­
nífico, provando que Deus não quis conduzir o homem ao seu fim
como conduz os agentes materiais, mas quis comunicar a essa nobre
criatura o mais belo dos seus atributos, aquele pelo qual ele é o prin­
cípio da sua própria felicidade.
E as desordens sociais não são uma acusação contra a Provi­
dência? Certamente que não. O que provam as desordens da socieda­
de é que os desígnios da Providência não foram, ainda, compreendidos
e postos em prática pelos homens. Contudo, bem longe de infirmar a
realidade desses desígnios, essas desordens são deles a mais impressio­
nante confirmação. A um doente, um médico caridoso, depois de dar
cem vezes a prova da sua competência, oferece um remédio que deve
curá-lo. Se o remédio é rejeitado, não será a sua necessidade provada
pelas dores que o doente sofre? Já há muitos séculos, a Providência

29
oferece à sociedade doente o mais eficaz de todos os remédios, ou
seja, a doutrina de Jesus Cristo. Cada vez que essa doutrina é acei­
te, produz verdadeiros prodígios de virtude e felicidade: pensemos
no exemplo dos santos e das ordens religiosas. Em sentido contrá­
rio, quanto mais ela foi violentamente recusada, tanto mais desas­
trosos foram os excessos cometidos pelos indivíduos e as convulsões
padecidas pelas sociedades.
Concluamos: tanto o mundo moral como o mundo físico nos
demonstram a existência de uma Providência infinitamente sábia,
que impôs leis imutáveis a todas as suas criaturas, para que estas, na
observância dessas leis, sejam conduzidas à perfeição e à felicidade.

3. A intervenção da Providência impede a liberdade humana?

Já vimos que um certo número de racionalistas admite as leis


gerais impostas por Deus. Concedem a Deus, além do poder constitu­
tivo, que o deísmo igualmente Lhe reconhece, o poder legislativo que
este último sistema Lhe recusa. Contudo, negam-Lhe o poder executi­
vo, que consideram um atributo inalienável das causas segundas. O
que ficaria para os agentes inferiores, se Deus se reservasse o direito
de intervir nas suas acções? Como conservariam a sua liberdade?
Negam, pois, a Deus o poder.de suspender, mediante determi­
nações particulares, a execução das leis gerais que Ele próprio deu
às suas criaturas. Ora, como pode pretender-se privar Deus do
poder de suspender a execução das suas leis? Quer-se então que
Deus seja mais fraco do que as suas criaturas? Não se percebe que
na hierarquia dos seres, cada um dos queocupam um grau superior
tem poder para suspender o_efeúo, das leis que .regem o grau infe-
rior? O vegetal, ao assimilar o elemento mineral, suspende o efeito
das leis às quais tal elemento antes obedecia. Este mesmo elemento,
indo para o corpo do animal, terá movimentos contrários às leis do
reino vegetal. O homem poderá, quando quiser, opor a sua força às
forças dos seres inferiores e assim fazer cessar o efeito das leis às quais
esses seres obedecem. Poderá deter a pedra em cima dos abismos,

30
& aí? fe/aj /a/ Jfiaáírta

ou fazê-la subir ao ar. As criaturas podem tudo isso... E Deus, que


está muito acima de todos os seres criados, não poderá opor a sua
força à força deles e suspender, assim, o efeito das suas leis?
Afirmam os racionalistas que Deus, na sua sabedoria, não
poderia cair na contradição de querer a lei e, ao mesmo tempo,
a sua violação.
Na sucessão de determinações opostas haveria uma contradição
palpável. Mas essa contradição é tão só aparente. Que homem razoá­
vel não percebe que Deus, na sua imutável eternidade, estabeleceu
ao mesmo tempo a lei geral e a derrogação particular? Portanto, não
há nem mudança nem contradição. Tanto a lei como a sua derroga­
ção têm a sua razão de ser. Pela constância da sua lei, a natureza
manifesta as perfeições divinas; manifesta-a, porém, de uma maneira
ainda mais brilhante quando, pela suspensão dessas mesmas leis,
prova aos homens que é a serva dócil do seu Criador. O milagre não
destrói a lei, assimjcoijicL^.ex^cep.çãp. n.ãpudestrói.a^regca, Ele não
impede a lei de atingir o seu fim, quando ele mesmo atinge um fim
superior. Pelo milagre, a natureza contribui para o estabelecimento
da ordem sobrenatural e, já que a sabedoria é o atributo pelo qual
Deus tende ao seu fim, é evidente que o milagre, longe de ser o con­
trário desse atributo, é a sua mais solene manifestação.
O que dizer então dos argumentos com os quais Hume 2 e
Renan 3 tentam demonstrar que Deus não pode dar aos seus mila­
gres nem certeza científica nem existência histórica? Diremos que
esses argumentos são sofismas e vamos prová-lo facilmente.

2) David Hume (1711-1776). Filósofo e historiador escocês, nascido em


Edimburgo. Figura de proa da tradição empirista da filosofia britânica. Criador
da filosofia fenomenalista. Autor do “Tratado da natureza humana” (1737) e do
“Ensaio sobre o entendimento humano” (1748).
3) Ernest Renan (1823-1892). Escritor francês. Frequentou o Seminário de
Saint-Nicolas-du-Chardonnet, na época dirigido por Mons. Dupanloup e,
mais tarde, o de Saint-Sulpice. Em 1845, renuncia ao sacerdócio, após ter
recebido as ordens menores. É autor de uma vasta obra literária. O seu
livro, “Vida de Jesus”, onde apresenta a figura de Cristo sob uma óptica
racionalista, é a mais conhecida e polêmica de todas e foi considerada blas­
fema pela Igreja.

31
Qual é a certeza das leis físicas que, segundo Hume, prevalece
sempre sobre a certeza dos testemunhos favoráveis ao milagre? É
uma certeza metafísica e absoluta? Quem ousaria afirmá-lo?
Evidentemente essa certeza é puramente hipotética. Estou certo de
que a pedra, uma vez atirada ao ar e privada de qualquer apoio, cairá
ao chão, se uma força superior à atracção da terra não a retiver.
Mas como poderia saber se essa hipótese se verificou ou se o
efeito da lei foi suspenso pela intervenção de uma força superior?
Saberei pelos mesmos meios que me servem para conhecer a pró­
pria lei, isto é, pelo testemunho dos meus sentidos. Verei a pedra
subir ao ar e, mesmo quando não tiver visto a mão que a lançou, não
duvidarei da existência de uma força diferente daquela que é exer­
cida pela gravidade. Não haverá aqui nenhuma oposição entre a cer­
teza da lei e a certeza da suspensão dos efeitos da lei. Haverá sim­
plesmente conhecimento da realização de uma hipótese da qual
dependia a execução da lei. Acontece o mesmo com o milagre.
Quando ele se realiza, as suas testemunhas dispõem de todos os
meios de observação pelos quais conhecemos com certeza os outros
factos físicos. Se, depois de ter utilizado esses meios, estiverem una­
nimemente de acordo em afirmar a verdade do milagre, o seu teste­
munho é tão aceitável como os relativos a qualquer outro facto
importante. Não se tem o direito de lhes opor a certeza da lei física
derrogada pelo milagre porque, repetimos, essa certeza era hipoté­
tica e as testemunhas que atestam o milagre demonstram precisa­
mente a inexistência, no caso particular, da hipótese da qual decor­
ria tal certeza. Eis o que temos a responder ao sofisma de Hume.
Quanto à pretensão de Renan de proibir os milagres de Deus
que não tiverem a chancela das academias, além de ser um insulto à
majestade divina, é também um violento ultraje ao bom senso.
Centenas de pessoas viram voltar à vida, depois de três dias, um
Homem que incontestavelmente tinha sido morto pelos seus inimi­
gos. Comeram com Ele, tocaram-n’O com as mãos, não uma vez,
mas vinte, e em vinte lugares diferentes. Afirmaram a veracidade
desse facto, apesar dos preconceitos, das paixões e dos grandes inte­
resses que os levariam a negá-lo. Não se pode imaginar um conluio

32
xzz jfârtárâz

entre os diversos actores dessa cena. Mas, mesmo que eles se tivessem
posto todos de acordo para enganar a humanidade inteira, é certo que
não poderíam consegui-lo. Sofreram os tormentos da fogueira para
confirmar o seu testemunho e as suas palavras converteram o mundo.
Depois de vinte séculos, há pouca coisa a fazer além de registar os
resultados desse facto imenso... E só porque o divino Autor desse
milagre achou por bem não pedir prévia autorização a Renan e aos
seus confrades, deixa esse facto de ter realidade histórica?
Resta-nos ainda uma dificuldade para resolver. Se Deus age
sobre as criaturas, que liberdade lhes deixa? Respondemos: Deixa-
as fazer tudo. Sim, tudo^ ..porque age i^^çp^niQjsausa^piimeira^e
deixa-as, em consequência, fazer tudo o que a causa segunda pode
fazer. Pelo facto de a Terra ser movida pelo Sol, não se pode con­
cluir que sobre a superfície da Terra um corpo não possa ser movi­
do por outro. A acção do motor primário, longe de destruir a acção
dos motores secundários, é sua condição indispensável. Como pode­
riamos agir se Deus não conservasse o nosso ser, se não nos desse a
força, se não ajudasse as nossas faculdades? Onde encontraríamos a
perfeição, que não temos ainda, se o concurso de Deus não nos aju­
dasse a adquiri-la?
Como poderemos, porém, determinar-nos livremente se Deus
age em nós e connosco? Agimos livremente porque Deus para isso
nos dá a potência, porque não nos determina a uma só coisa, por um
movimento irresistível, mas leva-nos ao bem em geral, deixando-nos
a faculdade de escolher um bem ao invés de outro, de buscar ou
rejeitar qualquer objecto finito. Que há nisso de absurdo? Que há
nisso que não esteja perfeitamente em conformidade com os princí­
pios de uma sã filosofia?

4. Milagres: os excessos da credulidade e da incredulidade

Compete, efectivamente, à Filosofia responder a todas as outras


dificuldades que o racionalismo acumula contra a Providência. Para
nós, basta refutar as três bases históricas sobre as quais ele se apoia.

33
Demonstrámos que essas bases são igualmente ruinosas e que é
igualmente infundado rejeitar a acção divina, pôr em dúvida a certe­
za das leis providenciais, ou recusar a intervenção especial de Deus
nas leis humanas. Não nos foi difícil, apoiando-nos sobre a razão e
sobre a história, opor a essas três negações gratuitas a afirmação fun­
damentada das três verdades que elas tinham tentado obscurecer.
Para terminar, é preciso dizer que se deve evitar o excesso de cre­
dulidade que nos poderia levar a ver milagres onde não os há.
Contudo, se é de se temer tal excesso, também o excesso oposto o é.
Se constitui falta de respeito atribuir a Deus o que é obra da impostu­
ra, não Lhe faltamos também ao respeito atribuindo à impostura o que
é obra d’Ele? Se é prudente ter grande reserva diante da possibilidade
do milagre, negar o milagre, onde ele foi confirmado por testemunhos
dignos de fé, é cair na incredulidade. Reconhecemos que a sabedoria
divina tudo vê e que governa o mundo por leis gerais. Essa verdade
evidente, porém, não nos impede de reconhecer que esse olhar único
e abrangente percebe os menores detalhes e que as leis gerais condu­
zem aos seus fins específicos todos os agentes particulares. Assim,
podemos afirmar o grande dogma da Providência, sem negar nenhum
dos outros dogmas de fé, cuja verdade a razão nos demonstra.

34
Capítulo II

O plano divino estudado na


natureza de Deus
Provámos nas páginas anteriores que Deus age na humanidade,
e que a sua acção preenche todos os pontos do espaço e todos os
momentos do tempo; que, tanto na ordem espiritual como na ordem
material, as causas segundas não podem fazer um só movimento
para o qual a causa primeira não concorra; que os seres racionais
dão do seu Autor um testemunho ainda muito mais glorioso do que
os seres privados de razão. Afirmámos, igualmente, que Deus não
está de tal maneira obrigado pelas leis que impôs às criaturas, que
não possa derrogá-las para fins dignos da sua sabedoria. E o milagre
- cuja possibilidade a filosofia demonstra com sólidos argumentos -
é, com efeito, comprovado por irrecusáveis testemunhos da história.
Para negar isto, o naturalismo terá de rejeitar os métodos admitidos
peja ciência. ™
Constitui essa acção divina, cuja existência facilmente se
demonstra, um plano único? E, se esse plano existe, qual é? Essas
são as duas questões que iremos examinar de seguida.
São questões capitais para a ciência histórica, de cuja solução
depende a sua própria condição científica. Porque, fora do plano
divino, é impossível descobrir a unidade da história; só encontramos
os caprichos e desordens da Jiberdade humana, com as suas perma­
nentes oscilações em torno de pólos relativamente aos quais nunca
se fixam. No entanto, se pudermos demonstrar que esses movimen­
tos, tão diversos e caprichosos, são conduzidos a um fim único pela

35
acção omnipotente do Ordenador Soberano, então a unidade da his­
tória brilhará com intenso fulgor, pois brotará do seio de uma imen­
sa e tumultuosa diversidade.
Já estudámos, noutro trabalho, o assunto que nos ocupará
agora. Devemos, no entanto, resumir aqui as conclusões às quais
aquele estudo nos conduziu, pois o tema é fecundo e poderá propi­
ciar-nos novas luzes.

1. O universo tem um só fim: a glória de Deus

Perguntar se Deus segue um plano no governo do mundo, e em


particular na direcção do mundo moral, é o mesmo que perguntar se
Deus - que é a própria ordem essencial - não abandona à desordem
os seres saídos das suas mãos, bem como as acções destinadas a pro­
duzi-los e a conservá-los. Ã7(z/w é, na_verdade, a determinação da
ordem no espírito do ordenador, ejg^dem é a execução do plano nas
coisas ordenadas. Qualquer ordem supõe um plano e, onde não há
plano, só existe desordem. Então se, ao criar o mundo, Deus não
tivesse um plano, a obra divina, ao invés de ser uma ordem admirá­
vel (cosmos), seria um horrível caos, cuja desordem deveria ser atri­
buída ao próprio Deus.
Esta hipótese é inadmissível por ser contrária à razão e à
experiência.
Compreenderemos melhor o problema se analisarmos a ideia
de ordem. Esta é geralmente definida como a disposição dos meios
para um determinado fim. Em qualquer ordem, encontramos, pois,
duas partes essenciais: um fim único e meios múltiplos dirigidos a
esse fim. Se adoptássemos aqui a linguagem escolástica diriamos
que o fim é a forma da ordem, e os meios são a sua matéria. Com
efeito, os meios, por si sós, não constituem uma ordem, assim como
um amontoado de pedras não constitui um edifício. O fim é que as
põe no lugar, as une e ordena. Guiando-nos por estes princípios,
poderemos facilmente concluir que existe no mundo uma ordem ou
um plano divino, pois Deus tinha um fim ao criar, e não pode deixar

36
0 ak jfaad c&átó> mz Jfójáfrüz

de dirigir para este fim os seres criados e as suas acções. Ora, nada
é mais evidente do que esta dupla verdade.
O fim está para a vontade racional como o objecto para a inteli­
gência. O tender e o agir são, para a vontade, uma só coisa, pois a sua
acção é um movimento pelo qual ela procura atingir o bem, se esti­
ver ausente, e conservá-lo, se já o possui. Ora, qualquer tendência
supõe, necessariamente, um termo, um fim. A ideia de fim é, pois,
inseparável da própria ideia de vontade, e não se poderia conceber a
vontade em acto sem conceber esse acto a tender para um fim, do
mesmo modo que não se poderia representar um movimento corpo­
ral senão a partir de um ponto do espaço para chegar a outro ponto.
D e st e_ modo,. dizer que Deus não teve um fi m a o cr i ar é duvidar
da sua vontade e inteligência, é duvidar, em suma, do próprio Deus.
É bem verdade que, ao considerar o acto criador cm Deus,'só
com alguma impropriedade de linguagem lhe poderemos atribuir
um fim, pois o acto de Deus, não sendo distinto d’Ele, que é infini­
to e soberanamente completo em si mesmo, não se pode dizer que
tenha um fim propriamente dito. O fim propriamente dito é, com
efeito, distinto daquele que o busca, é alguma coisa que completa o
sujeito actuante, que sem ele seria incompleto. Esta consideração
torna ainda mais evidente o que procuramos demonstrar no
momento. Porque, se o acto íntimo de Deus não pode ter um fim, é
porque não pode ter outro objecto fora de Deus. Assim, quando
Deus decide estender a seres distintos d’Ele o acto pelo qual Ele
próprio se ama, é ainda a sua própria bondade infinita que Ele
amará nesses seres. Não poderá querê-los senão em razão de Si
mesmo. Deus não poderá, pois, deixar de ser o motivo e o fim da
existência desses seres, pois o motivo que leva o artista a produzir a
obra é o próprio fim da obra.
Não se pode, então, negar que a Criação tenha Deus por fim, a
menos que neguemos que a Criação seja obra de Deus, isto é, a
menos que afirmemos que a Criação não foi criada. Seja qual for a
forma pela qual consideremos essa verdade, ela apresenta-se, sem­
pre, com a mesma evidência. Portanto, a realidade do plano divino
é indubitável. Porque dizer que toda a Criação tem Deus por fim

37
equivale a afirmar que todos os seres que a compõem estão orienta­
dos para a glorificação de Deus, pelo próprio acto da sua criação.
Por conseguinte, tais seres são meios que a omnipotência divina, ao
criar, orientou para um fim único que é Deus. Deste modo, nada
falta ao universo para constituir uma ordem imensa, na qual uma
quantidade infinita de meios se alia maravilhosamente numa perfeita
unidade de fim.
A muito justo título, o universo recebeu na Antiguidade o
nome de cosmos, isto é, a ordem por excelência.

2. O mal e o bem nos planos de Deus

Mas estes raciocínios não nos afastam do que queremos provar?


Procuramos o plano de Deus na história e falamos da Criação
em geral. O universo, cuja ordem verdadeiramente admirável con­
templamos, esse cosmos dos antigos, é o mundo físico, cujo meca­
nismo maravilhoso nos revela esplendidamente a sabedoria do
Criador. No entanto, o mundo moral, o mundo histórico, apresenta-
nos um espectáculo inteiramente diferente. Que direito teríamos de
aplicar a este último considerações que só têm valor para o primei­
ro, e de afirmar a existência de um plano divino no caos da história,
semelhante ao da criação material? O nosso direito é incontestável,
porque se as agitações do mundo histórico, tão diferentes da marcha
constante e uniforme do universo material, nos obrigam a explica­
ções, diante das quais não recuaremos, elas em nada diminuem a
força dos argumentos pelos quais demonstramos, para o conjunto da
criação, a existência do plano divino. Com efeito, esses argumentos
não se aplicam ao mundo moral com menos força do que ao mundo
físico. O plano de Deus vai tão longe como a sua acção, já que Ele
nada pode fazer que não tenha como fim o próprio Deus. Se os espí­
ritos são obras do Criador, tal como os corpos, devem, como estes,
tender ao fim do Criador, e entrar no plano divino.
Mas os seres livres podem resistir à vontade divina e procurar
um fim diferente daquele que lhe está destinado. É verdade. Mas

38
0 Srfedw de Jfaaj

poderá daí concluir-se que eles conseguem destruir o plano divino?


Dando-lhes a possibilidade de desobedecer, reservou-se Deus o
poder de fazer com que a própria desobediência fosse posta ao ser­
viço dos seus fins. Duvidar disso seria questionar o poder e a sabe­
doria de Deus, seria introduzir, pelo menos num aspecto, a desor­
dem na acção d'Aquele que é a ordem essencial. Porque esses actos
livres, mas opostos à vontade primeira de Deus, só podem existir na
medida em que tiverem sido, livre e infalivelmente, previstos por
Deus. Como poderia Deus permiti-los, se não tivesse meios de con­
duzi-los ao seu fim único e essencial? Por ser esse fim único. Deus
não pode permitir um fim diferente. Por ser essencial, quer que tudo
o que depende d?Ele tenda para Ele.
Por outro lado, os actos livres que se pretendem colocar fora do
plano divino não poderíam ser produzidos se Deus não concorresse
para eles, dando forças ao agente racional? Deus não concorre para
o mal, mas concorre para tudo o que há de real e bom no acto mau,
não sendo esse acto nada mais do que amor ao bern, desviado do
bem verdadeiro para atingir um bem imediato e passageiro. Ó mal
está no desvio, que é um abuso da liberdade, mas o amor dó bem, de
que a liberdade abusa, só pode advir-lhe do concurso de Deus.
Daria Deus esse concurso à sua criatura reóeide, se não tivesse-
algum meio de reparar a desordem dessa rebelião? Não seria isso
agir contrariamente ao seu fim e contradizer-se a Si mesmo?
Não duvidemos: os actos maus e os actos bons, as faculdades
livres e as forças necessárias, a criação espiritual e a criação mate­
rial, tudo está no plano divino, tudo é dirigido para o fim único da
acção criadora. Mas esses elementos diferentes conservam, na uni­
dade de tal plano, a diversidade da sua natureza, a criação material
conforma-se cegamente a esse plano e a criação racional realizâ-o
dejforma intêpgen^^Ürna è3TêcüTá"-3^êmnTbéfdadè' è, põrlãnTO,
sem méTitõT^CTFdrrporém a falta de mérito compensada pela ausên-_
cia de desordem. A outra dá ao plano uma cooperação que pode ser
recusada. A recusa altera a ordem, mas a cooperação livre realça a
bondade. Por outro lado, a própria desordem que decorre do abuso
da liberdade é reconduzida à ordem, seja por actos bons e meritó-

39
rios que a criatura terá ocasião de fazer, seja por castigo infligido
pelo Criador.
Eis o que a consideração da natureza divina nos revela com evi­
dência e que a história inteira confirma de modo fulgurante.

3. A natureza do plano divino

Existe, pois, indubitavelmente, um plano divino para a história.


Mas poderemos conhecer a natureza desse plano? Vamos inquirir,
simultaneamente, a fé e a razão, a essência das coisas e a palavra de
Deus, a Filosofia e a Teologia. E verdade que a razão, neste assun­
to como em tantos outros do seu âmbito, estava quase cega, enquan­
to a tocha da fé não veio esclarecê-la. Contudo, quando Jesus tocou
essa pobre cega, ela pôde perceber, mediante a sua própria luz, mui­
tas coisas que, anteriormente, nem sequer vislumbrava. Poderemos
então interrogá-la antes de recorrer à Revelação divina. A filosofia
cristã ensinou-nos muita coisa que a filosofia pagã ignorava comple­
tamente. Ela nos dirá o que existe de necessário no plano divino.
De facto, existem no plano divino e nas duas partes que o consti­
tuem, dois elementos; um necessário e natural, o outro livre e sobre­
natural. Embora esses dois elementos não estejam separados na
ordem presente, importa, entretanto, não confundi-los. Consideremo-
-los então distintamente e comecemos pelo elemento necessário.
Ao constatar a existência do plano divino, já tínhamos reconhecido
que ele só podería ter a Deus como fim, pois Deus só podería produzir
seres distintos d’Ele, através do acto pelo qual Ele se ama a Si mesmo.
O que afirmámos da vontade de Deus, poderiamos, igualmen­
te, afirmar da sua inteligência. É absurdo supor que Deus conheça
os seres que Ele quer criar por um acto diferente daquele pelo qual
Ele se conhece a Si mesmo, pois, de um lado, D.ejisjião^po.de,tex^
Yáríos actos c, de outro, antes de existirem por si mesmos, os seres
criados só tinham, existência em Deus, gó podendo, .em çonsequên-
Ç.L^ser^o_nheçidos n/Ele. Esse é,o dado lujidamental sobre. o quaj ~
repousa toda a teoria do plano, divino.

40
0d? zzzz Jfafona

Na verdade, esse plano é tão-somente o jorro livre, para fora de


Deus, da ordem essencial que reina no acto íntimo de Deus. Há, então,
entre as duas ordens, um laço estreito que e indispensável com­
preender bem e que nos foi explicado com clareza por dois grandes
mestres: Santo Agostinho e São Tomás de Aquino.
Segundo estes santos doutores, Deus - conhecendo-Se a Si
mesmo - não vê apenas reunidos, na simplicidade da sua essência,
todos os graus possíveis de perfeição, mas vê ainda a possibilidade
de reproduzir essa perfeição fora de Si, segundo cada um desses
graus, porque é próprio do infinito poder difundir-se fora de si sem
nenhuma diminuição ou aumento da sua plenitude. Assim, Deus
não poderia conhecer perfeitamente a sua perfeição infinita sem
conhecer a possibilidade de um número infinito de seres participando
nessa perfeição em graus diversos e finitos. Nada O forçava a que­
rer a existência de tais seres, mas, também, nada O impedia. Se
nunca os tivesse criado, teria encontrado na sua perfeição infinita
um objecto plenamente suficiente para o seu amor infinito. Quando
quis produzir fora de Si imagens dessa beleza infinita, não teve outro
motivo senão o amor infinito que tem a Si mesmo. Poderia querê-las
apenas em Si, mas quis amá-las ainda nesses reflexos exteriores da
sua claridade. Mas assim como só há um acto de inteligência pelo
qual Ele conhece as criaturas como participações finitas_do seu ser
infinito, assim também só há um acto de vontade pelo qual Ele ama
as.suas perfeições finitas na sua infinita beleza.
Eis como Deus pôde amar a criação, serrFdeixar de se amar uni­
camente a Si; nos seres que a compõem, Ele ama a semelhança com
o seu Ser. Tal semelhança com a beleza divina é assim a razão de ser
das criaturas e ainda a sua glória suprema. Por causa do amor a essa
semelhança é que elas foram possíveis desde toda a eternidade. Só
por isso são dignas de amor e são mais dignas de amor e mais ama­
das pelo amor infinito na medida que têm em si essa semelhança.
Enquanto não possuem toda a perfeição de que são capazes, a acção
divina só pode ter como fim aperfeiçoá-las; e toda a actividade de
que são dotadas, nos desígnios de Deus, só visa esse objectivo. Para
a obtenção dessa semelhança divina, concorrem os seus instintos

41
naturais e as influências mútuas, infinitamente variadas, as quais,
agindo umas sobre as outras, têm como único objectivo contribuir
para a realização dessa lei suprema.
Essa lei, que a acção divina realiza desde sempre, podemos
agora formulá-la, convencendo-nos, ao mesmo tempo, de que ela é
o jorro exterior da lei gloriosa à qual até mesmo a vontade de Deus
está submetida; não é de facto para Deus uma feliz necessidade
amar e querer a sua própria perfeição? Ora, qual é a grande lei da
Criação senão reproduzir e aumentar nela a semelhança com a per­
feição divina?

4. A perfeição divina reflectida nas criaturas

Ao manifestar-nos essa grande lei, a razão iluminou com uma


luz viva o problema do plano divino cuja solução pretendíamos. Mas
ela não se detém aqui e uma consideração mais aprofundada da
natureza divina pode fornecer-nos noções mais precisas a respeito
desse problema difícil.
A perfeição soberana de Deus, que as criaturas estão destina­
das a reproduzir pela semelhança, compreende três gêneros de atri­
butos: os que se relacionam com o próprio Ser de Deus, como a sua
eternidade e a sua imensidade; os que se relacionam com a acção
pela qual Ele cria, conserva e faz mover as coisas que estão fora
d’Ele; e, finalmente, os que se relacionam com os actos vitais pelos
quais Ele conhece e ama a sua própria beleza.
Esses três raios da luz infinita reflectem-se na Criação? Sem
dúvida que sim, mas em distintos graus nas diferentes criaturas.
Todas elas participam do Ser de Deus, todas irão reproduzir na sua
duração alguma coisa da eternidade de Deus, todas também, ao ocu­
par alguma parte do espaço, imitarão a sua divina imensidade. Umas
terão maior densidade de ser, durarão mais, terão maior extensão
do que as outras e, em consequência, estarão mais próximas de
Deus; não obstante, entre aquela que estiver mais próxima de Deus
e o próprio Deus, ainda existirá uma distância infinita.

42
& Sfyâa? aí' JQjoj

Poderá, no entanto, a criatura reproduzir a acção pela qual


Deus age fora d’EIe? Descartes 1 e Malebranche 2 - que se julgavam
autorizados a desmentir a persuasão comum dos homens, afirmando
que as obras de Deus não se conformam com os seus sistemas -
negaram essa possibilidade, mutilando assim o plano divino. Mas
bastará o bom senso do gênero humano para fazer justiça? Vejamos.
Em que se tornaria o mundo, se as criaturas já não pudessem agir
umas sobre as outras? Perdería a luz, porque a luz supõe o poder de ilu­
minar; perdería a união, pois os seres distintos pela natureza só podem
unir-se pela acção; perdería, assim, a unidade, a beleza e a ordem.
Recusemos, pois, uma teoria tão contrária à razão e afirmemos
sem hesitar, com São Tomás, que Deus, além de ser bom em Si
mesmo, é ainda causa de bondade para as suas criaturas. E, assim,
elas não participam somente pelo seu ser na bondade divina, mas
ajudam-se mutuamente a aumentar a bondade umas das outras.3
Mas Deus não poderia dispensar-se de reproduzir fora de si os
atributos que constituem a sua vida íntima? Seria talvez temerário
afirmar que a sabedoria divina O obrigaria a isso. Contudo, é incon­
testável que sem os seres racionais, a Criação seria incomparavel­
mente menos perfeita. O mundo seria como que um corpo sem
alma. Deus poderia louvar-se, mas esse louvor não despertaria eco
na sua obra; entre essa obra inanimada e o divino Artista nenhuma
forma de sociedade teria sido possível.

1) René Descartes ((1596-1650). Filósofo, físico e matemático francês. Educado


pelos jesuítas no Colégio de La Flèche. Autor de descobertas científicas e de
conhecidos estudos que deram origem à psicologia moderna. Elaborou um
método para dirigir a razão em matéria metafísica, conhecido como cartesianismo.
É autor do “Discurso do Método" c das “Meditações metafísicas". O seu tra­
tado sobre a “Geometria" (1637) é uma obra científica que marcou o desen­
volvimento posterior desta disciplina.
2) Nicolas de Malebranclie (1638-1715). Filósofo francês. Estudou na Sorbonne
e, depois, no Oratório. Foi o mais avançado cartesiano do seu tempo.
Tornou-se conhecido pela sua doutrina sobre o “ocasionalismo". Escreveu
várias obras, entre as quais: “De la recherche de la vérité" (1674) :
“Méditations chrétiennes et mélaphysiques" : e “Entreticns sur la métaphy-
sique et la réligion" (1688).
3) Suma Teológica I, q. c. III a 4.

43
Mas, se a semelhança divina é susceptível de aperfeiçoar-se, se
a vida de inteligência e de amor que completa a perfeição e que faz
a felicidade de Deus se reproduz nalgumas criaturas privilegiadas, o
mundo, então, deixa de ser um belo cadáver, anima-se, fala, conhe­
ce o seu Criador, ama-O, louva-O, entra com ele num convívio con­
tínuo. O rio de amor que, sem cessar, emana do seio de Deus sobre
a criação, pode refluir da Criação para Deus; a palavra divina tem
um eco e a criação, em vez de ser um instrumento passivo nas mãos
do seu Autor, coopera com Ele e glorifica-O, como Ele se glorifica
no seu íntimo.
Eis como o plano divino se revela à razão, através da conside­
ração cuidadosa da natureza de Deus.
Já possuímos uma ideia precisa, embora incompleta, desse
plano. Sabemos que ele tende a reproduzir a semelhança da divina
beleza em cada um dos seres do universo, mas sobretudo nos seres
racionais, nos quais ela se reflecte sob todos os aspectos. Já podemos
perceber a unidade da criação. A multidão infinita de seres aparece-
nos como uma sociedade vasta, tendendo, pela sua acção comum, a
um fim único. Contudo, ainda muito mais perfeita e mais estreita­
mente unida nos aparece a sociedade dos seres racionais, da qual os
seres destituídos de razão são simples servos. As predilecções do
Criador são para aqueles; é sobretudo neles que Deus Se contempla
como num espelho; é para aumentar a sua semelhança com a bon­
dade divina que a sua Providência trabalha continuamente, convo­
cando as criaturas racionais, para colaborarem nessa obra. Dá a
esses seres privilegiados o poder de se iluminarem uns aos outros, de
comunicarem entre si os bens de Deus, ajudando-se, mutuamente, a
tornarem-se melhores e mais ricos na verdade e no amor. Se eles uti­
lizarem fielmente esse poder, se cooperarem energicamente com a
acção divina, saciarão todas as aspirações da sua natureza, reprodu­
zindo em si a semelhança da divina perfeição.
Eis o que a razão pode compreender a respeito do fim que Deus
tem em vista com a criação e com os acontecimentos da história.
Iremos agora consultar a Revelação e completar com os seus ensi­
namentos esse esboço inicial do plano divino.

44
Capítulo III

O plano divino estudado à


luz da Revelação
Deus nada deve às suas criaturas e, se tivesse querido, poderia
tê-las deixado eternamente no nada, do qual as tirou livremente.
Contudo, se lhes deu o ser, só pode ter sido para um fim digno de Si.
Se lhes deu certas faculdades, se lhes incutiu determinadas tendên­
cias, teve de colocar ao seu alcance um objecto sobre o qual possam
exercer a actividade dessas faculdades e um fim capaz de saciar tais
tendências. Não é às suas criaturas que Deus deve esses dons, mas
deve-os a Si próprio, pois cumpre-Lhe agir sempre com sabedoria e
nada fazer em vão. Deu, pois, a todos os seres criados os meios
necessários para imitar a sua perfeição e fazer reverter para a sua
glória todas as suas faculdades e tendências.
Mas nada impede que a divina bondade possa fazer ainda mais
pelas suas criaturas. É próprio da bondade o desejo de se difundir.
Bonum est sui diffusivum. Não surpreende, pois, que o plano divino
se estenda muito além dessa reprodução da semelhança puramente
natural da criatura com a beleza divina.
Mas aqui a razão cala-se e escuta em silêncio. Só a Deus com­
pete dizer-nos o que lhe aprouve fazer por nós. Apenas a sua pala­
vra pode expressar a dignidade à qual o seu amor nos elevou gratui­
tamente. Q hÍ5tQriadox.dXLplano„di.YÍnojjeve limitar-se, aqui, à tare­ i
fa de resumir c_cwxdeiiar QS ensinanLe QtQs dis.p£XSOS nas Escrituras
e na Tradição.

45
1. O fim sobrenatural do plano de Deus

Em que consiste essa ordem superior que Deus acrescentou


livremente à ordem natural da criação? O que pode existir para além
da efusão da divina liberalidade, da reprodução da vida divina, da
perfeição divina, da felicidade divina, que a razão acaba de nos mos­
trar como o termo necessário de todas as obras do poder de Deus?
Deus tem então uma ordem de atributos superior às três ordens
que vimos compartilhadas pelos seres racionais? Existe uma vida
mais íntima do que essa vida de inteligência e amor, cuja imagem
admirável Deus colocou em cada um deles e que procura continua­
mente aperfeiçoar?
Não, Deus nada tem de mais excelente do que a sua inteligên­
cia e o seu amor. Mas essa inteligência e esse amor são para Deus a
própria fonte de uma vida que a razão não consegue vislumbrar, mas
que a fé nos revela e nos chama a participar.
Essa vida íntima é aquela pela qual,|Deus, ao conhecer-se a Si
próprio, gera um Verbo igual a Si, e pela qual, ao amar-se nessa ima­
gem substancial da sua beleza, inspira - sem se dividir - uma tercei­
ra pessoa, que é o Espírito de amor, o elo de ligação das duas outras
pessoas e a consumação da sua divina unidade?!
Este mistério, tão incompreensível para a nossa razão, projecta»..
contudo, uma luz intensa sobre todo o plano divino.
Antes de mais, completa a noção que tínhamos de Deus. Antes
de conhecê-PO, a razão - conhecedora de que todas as perfeições
das criaturas se encontram em Deus num grau infinito - tinha difi­
culdades em descobrir entre os seus atributos essenciais, a mais alta
prerrogativa que possuem os seres racionais e a mais elevada virtude
que podem praticar. De facto, que há de mais maravilhoso em toda
a criação do que o poder dado aos seres racionais de produzir outros
seres racionais semelhantes a eles? E o que há de mais perfeito em
toda a hierarquia das virtudes que o dom desinteressado de si
mesmo, a caridade que procura apenas a difusão da sua abundância?
Ora, quem conhece de Deus apenas o que a razão sobre Ele ensina,
não encontra entre os seus atributos necessários nem uma nem outra

46
0 &edw de Jfaae

dessas perfeições incomparáveis. Contudo, a Trindade divina reflec-


te de modo infinito essas perfeições, no acto pelo qual Deus Pai gera
o seu Filho e no acto pelo qual o Pai e o Filho, impelidos pela ple­
nitude da sua perfeição, a comunicam inteira ao Espírito divino.
Mas que influência poderá ter este dogma - que ilumina tão
misteriosamente a vida íntima de Deus - sobre o plano divino? Irá
Deus reproduzir fora de Si, numa nova ordem de seres, esta diversi­
dade de pessoas com uma mesma essência, como reproduziu nos
seres racionais a sua inteligência e a sua vontade?
Não o fará, e não parece que possa fazê-lo. Essa trípjice.unidade
parece ser o atributo incomunicável da Santíssima Trindade. As cria­
turas materiais e, mais ainda, os seres racionais terão dela alguns ves­
tígios, mas nenhum a reproduzirá na sua essência. O espaço terá três
dimensões, o som três notas, a luz três cores, a alma três faculdades,
mas nenhuma substância terá três pessoas. E, no entanto, esse misté­
rio, tão exclusivamente próprio de Deus, tornar-se-á o princípio de
uma ordem inteiramente nova, de uma modificação que afecta toda a
economia do plano divino e eleva a criação inteira a uma dignidade
incomparavelmente superior àquela que a razão nos deu a conhecer.
Até agora.só.conhecemos, a, ordem, naturah mas q mistério da
Trindade divina vai colocar-nos na ordem sobrenatural. A vida ínti­
ma de Deus, que não pode ser comunicada às criaturas pela via da
reprodução e da semelhança, pode e deve ser-lhes comunicada pela
via da união. Nenhuma criatura terá o poder de produzir, na unida­
de da sua essência, duas outras pessoas semelhantes a ela, mas todas
as criaturas racionais serão chamadas a unir-se durante toda a eter­
nidade aos actos inefáveis pelos quais Deus Filho é gerado por Deus
Pai e Deus Espírito Santo é inspirado pelo Pai e pelo Filho. E já
durante esta vida mortal, as criaturas, destinadas a participar nos
actos que constituem a vida e a felicidade da Trindade divina, pode­
rão unir-se a esses actos inefáveis, pois já conhecerão Deus pelo seu
Verbo e amá-lo-ão pelo seu Espírito.
Tal é, pois, na ordem presente, o fim do plano divino. Já não se
trata, unicamente, de aperfeiçoar nos seres racionais a semelhança
natural da beleza divina, mas de conduzi-los à visão imediata dessa

47
Sfàwuere

beleza inefável. Não se trata de adquirir, apenas, uma perfeição e


fruir uma felicidade, que sejam imagens da perfeição e felicidade de
Deus, mas de entrar na posse e no gozo da perfeição e felicidade do
próprio Deus.
Eis o que ,a razão.não^pjDdenajuspeit^r, porque_a razão só vê o
que está na essência das coisas, qu o que a experiência sensível lhe
manifesta. Ora, este destino do homem de conhecer Deus em Si
mesmo, está tão distante das exigências da natureza como inacessí-
yeLaos_s.Qntidos... Se Deus não o tivesse concedido livremente à sua
criatura, esta nem sequer pensaria em lh’O pedir. Poderiamos fazer
consistir a nossa felicidade no conhecimento da verdade, como
Aristóteles, ou na contemplação das idéias, como Platão, ou ainda
na virtude, como os,estóicos, mas jamais leriamos pensado em par­
ticipar na própria vida divina e conhecer, assim, a beleza de Deus.
Este fim .q, portanto, absoluta e yerdadejramente sobrenatural.

2. O Reino de Jesus Cristo

Bastará agora um momento de reflexão para compreender que


tínhamos razão quando afirmávamos que esse fim modificava com­
pletamente todas as condições do plano divino.
Não poderia ser de outro modo, pois o fim como vimos, é que .
dá a forma e a essência ao plano. O_ fim não pode sex.modificado.
sem que todo o plano seja modificado; não pode ser enobrecido,
sem que todo o plano seja enobrecido com e 1 e
Pensemos, com efeito, como são diferentes, na ordem sobrena­
tural, a condição do homem e as suas relações com Deus e com os
seus semelhantes, se as compararmos com as que existiríam se ele
apenas tivesse um fim natural.
O homem adquire, pela sua união com Deus, uma dignidade
que o põe acima de todas as criaturas. Pela sua natureza, o homem
está no último degrau da criação inteligente. Acima dele, elevam-se
graus infinitos de inteligência, existentes ou possíveis, que se apro­
ximam cada vez mais da perfeição de Deus. Pela sua elevação ao

48
OSfeàw d,’ Jfaaj /z/z

estado sobrenatural, o homem passa através de todos esses graus, vê


abaixo de si tudo o que é puramente criado e finito, e entra na esfe­
ra do infinito. É certo que ele não se identifica com Deus, não deixa
a sua personalidade própria para tomar a personalidade de Deus,
mas une o seu ser com o ser de Deus, as suas faculdades com os
actos de Deus; fica iluminado pela luz de Deus e transforma-se.
Nessa luz, é animado pelo Espírito de Deus e arde no fogo divino.
Ele possui Deus verdadeiramente, torna-se um só espírito com Ele.
Já não está apenas na ordem da mera semelhança, mas^na ordem da
união, e é por isso que a sua semelhança com Deus e incomparavel­
mente mais perfeita;(o cristal assemelha-se muito mais ao sol quan­
do é atravessado pelos seus raios do que quando o mais genial dos
pintores pinta nele a imagem do sqL
_As relações da criatura raciona com Deus na ordem sobrena­
tural são, por conseguinte, completagiente diferentes daquelas que
existem na ordem meramente natural]
Na ordem natural, essas relações nada teriam de pessoal, diga­
mos assim. Deus manifestar-se-ia através das suas criaturas e exer­
cería, por meio delas, a sua Providência sobre nós. Pediriamos o seu
auxílio, esperaríamos as suas recompensas, temeriamos a sua justi­
ça, mas todos esses atributos se manifestariam igualmente por efei­
tos exteriores e não poderiamos conceber, com qualquer grau de
certeza, a possibilidade de relações mais íntimas. Nessa ordem,
Deus teria sido para nós o Criador livre, benfeitor generoso, auxiliar
omnipotente, mestre boníssimo, juiz justo, remunerador liberal, mas
nãaJeiíamos qualquerjjixeiLo^dgJL^ que Lhe
damos. hojer.o..título„de.£ai.ede..nos-intitularmos seus.filhos.
P.elo Jcontr.árÍQ.a_oxdem^o.bxenatniaLérLCu;deiirdiLadopçãQ. As
pessoas da Santíssima Trindade unem-se a nós e fazem-nos entrar
na sua sociedade. A sua vida é-nos comunicada, na espera do dia em
que poderemos receber a comunicação da sua felicidade. Mas essa
felicidade já é nosso patrimônio e nossa herança. Deus Pai fala-nos
pelo seu Verbo, move-nos pelo seu Espírito e temos com Ele rela­
ções pessoais e imediatas.
Enfim, as relações dos homens entre si, na ordem sobrenatural,

49
são incomparavelmente mais íntimas e profundas do que as que
poderíam existir se ficássemos apenas ao nível da natureza.
uSa_oid.em_uialm'aL que laços nos teriam mantido juntos?
Unicamente a semelhança de natureza, ou seja, um laço muito débil
e pouco capaz de resistir às numerosas causas de divisão e oposição.
O tempo, o espaço, as idades, as condições, as idéias, os costumes,
\ 1os interesses, a religião, os vícios, tudo nos isola, tudo nos coloca em
confronto. Entregue a si mesma, a humanidade é apenas uma abs-
X s r>! tracção e, se descermos ao plano do concreto, em vez de uma huma­
nidade unida, encontramos homens indiferentes com os outros e até
inimigos entre si.
Muito diferente é a ordem sobrenatural. O Verbo de Deus une
todas as inteligências, na unidade da sua palavra, à qual todas ade­
rem por H_ma^m,e^jQiajé-X) Espírito divino une todos os corações, na
unidade de um mesmo amor e na. tendência para um mesmo fim.
Então, todas as causas de divisão são destruídas e todos esses homens,
Xão^diferentes em idéias, idades.,.condições e costumes, começam a
C pensar, amar e .querer as mesmas coisas. Deixam de ser estranhos
uns para os outros, e aprendem a amar-se. O amor de cada um deles
inclui todos os irmãos, mesmo aqueles que nunca chegarão a conhe­
cer nesta terra.
Eis, agora, uma realidade mais admirável ainda. Nessa socieda­
de tão íntima, na qual a Santíssima Trindade é o laço de união, ela
compraz-se em reproduzir a imagem das relações inefáveis que a
constituem. Aos homens, a quem a natureza tinha dado o poder de
transmitir a vida no tempo, eis que a graça confere agora um poder
ainda maior, ou seja, o poder de comunicarem uns .aos outros a vida,
de Deus. Assim como Deus Pai produz, desde toda a eternidade, o
seu Verbo e o seu Espírito, ao se conhecer e ao se amar, assim tam­
bém um homem cheio da graça sobrenatural, confessando a Deus e
expressando o seu amor por Ele, dará de alguma maneira, ao Verbo
e ao Espírito Santo, uma existência nova, na alma do seu irmão; ilu­
minará e abrasará essa alma com a luz e com o fogo que inflama o
seio do próprio Deus. A cada dia e a cada instante se presenciará
esse fluxo e refluxo contínuo de claridade, de chamas e forças ceies-

50
0 de J/zífz/J fâúfto x/z

tes a passarem de alma para alma. O espaço não será obstáculo e o


próprio tempo será impotente para interromper as ondas da vida
divina, porque tais ondas são de um oceano infinito que o espaço e
o tempo não podem limitar e que, de forma semelhante, elimina
todos os limites para as almas cuja elevação ao estado sobrenatural
congregou na sua imensa unidade.
Como é magnífico o plano divino se o consideramos sob esse
ponto de vista! A razãp_^ Qidens, de algu­
ma maneira paralelas: a ordem dtV-ina.e.a,.ordem criada. A primeira,
arquétipo infinitamente perfeito da segunda; e a segunda, imagem
bastante imperfeita da primeira. Entre as duas ordens, contudo, a
razão só tinha podido mostrar-nos a unidade do acto de Deus, que
produziu a ordem criada como um reflexo da ordem incriada. Quão
mais verdadeira é a unidade que a fé nos mostra e que constitui a
ordem sobrenatural! Esta unidade já não está somente no acto de
Deus, mas está também no acto da criatura. Depois de ter produzido
a sua imagem e de se ter distinguido dela pela criação, a beleza divi­
na volta a unir-se a ela pela graça sobrenatural e inunda-a com o seu
esplendor. A própria imagem contempla o seu modelo, une-se a ele e
nele se transforma pelo amor. Unidade inefável, incomparavelmente
mais real e mais gloriosa para o homem do que a unidade absurda
sonhada pelo panteísmo. O pantcísmo identifica o homem cpm JDeus,
.destruindo concomitant.eju.^ hQmexa,Q~pJanp^
conforme nos é revelado pelo cris^^ subsistirão mfinitoje
o_.fi ni to na sua distinção e.sspnçial, mas esses dois termos, tãq distintos
ejão opostos pela essência, une^os ele por vínculos que preenchem i
todos os vazios do finito com as riquezas do infinito.
Mas. a essa unidade. tão..estreita, falta..ainda o. laço mais.forte.
Falta ao plano divino a suaxrmon^^unag^ pronunciamos
ainda o nome no qual o plano de alguma maneira se vai personifi­
car: o nome do Mediador entre Deus e os homens,que. na unidade
da sua Pessoa, une os homens a Deus e a criação ao Criador.
Com efeito, não pôde Deus contentar-se com essa dupla unidade
que vimos resultar do seu acto e do acto da criatura. Ele quis esta­
belecer connosco uma sociedade ainda mais estreita, uma aliança

51
fundada sobre um vínculo mais substancial, um parentesco mais ver­
dadeiro. Que fez então? Enviou o seu Verbo, a.Segunda Pessoa, que
na própria Trindade divina exerce uma espécie de mediação. Uniu-
-a na unidade de pessoa a uma natureza humana, descendente,
como nós, da raça de Adão.
Essa grande obra, que completa tão bem o plano divino, foi
decretada por Deus em consequência da previsão do pecado e como
uma espécie de réplica misericordiosa, feita por amor infinito, à pre­
tensa vitória do Inferno. Ou já estaria ela no desígnio inicial da sabe­
doria divina, vindo apenas modificar a sua execução quando o peca­
do veio tentar opor-se a tal desígnio? Nem a revelação ensina isto
claramente, nem nisto estão em perfeito acordo os doutores católi­
cos. Mas parece-nos que a segunda opinião se baseia em provas irre­
futáveis. Que o Verbo Encarnado seja o fim da humanidade, como
o de toda a criação, nenhum cristão pode duvidar. Ora, é contra a
natureza das coisas e contra a sabedoria que o fim exista para os
meios. Na opinião contrária, Jesus Cristo seria tão devedor aos
homens pecadores como estes a Ele. Dever-Lhe-íamos a nossa sal­
vação, Ele nos deveria a sua existência e, em consequência, a sua
glória e felicidade. Não seria verdadeiro afirmar - como disse São
Paulo (Cl 1,16) falando de Jesus Cristo, Homem-Deus e Cabeça do
corpo da Igreja - que todas as coisas foram criadas n’Ele e por Ele.
Seria preciso dizer, pelo contrário, que Ele em nada influiu no fim
da criação e que foi apenas para a restauração das coisas criadas que
a sua própria existência foi decretada.
Essas ilações são evidentemente inadmissíveis. Afirmemos, então,
sem hesitar, com grandes doutores e com a própria Escritura, que a
Sabedoria Encarnada foi a primeira obra do Altíssimo, não na execu­
ção, mas na predestinação. Afirmemos, sem temor, que todas as outras
obras foram decretadas e produzidas em vista daquela. Digamos que o
Homem-Deus foi o arquétipo pelo qual o Arquitecto divino modelou
cada elemento da sua obra, o centro para o qual Ele fez convergir tudo,
a unidade para a qual, desde o princípio, encaminhou a imensa varieda­
de das suas criaturas. Proclamemos, para honra da nossa humanidade, que
ela teve como único destino pertencer à própria família de Deus.

52
0 dk J/Qm/j

Com efeito, por causa dessa inefável aliança que fez do Filho de
Deus filho de Adão, todos os filhos de Adão se tornaram irmãos do
Filho de Deus e, em consequência, parentes de Deus Pai e do seu
Espírito divino. Entramos, já não só de forma moral, mas também fisi­
camente, na família de Deus. A nossa adopção divina, que já era muito
real, torna-se ainda mais, e os nossos direitos à herança e à felicidade
de Deus ficam fundamentados em títulos muito mais autênticos.
A aquisição dessa herança divina torna-se para nós, ao mesmo
tempo, muito mais fácil. A luz do Verbo e a graça do Espírito divino
não nos serão dadas individualmente e segundo a medida dos nossos
méritos; o Coração do Verbo Encarnado tornar-se-á delas, para a
humanidade inteira, o depósito comum. Ele merecerá por nós os
tesouros sobrenaturais e eles ser-lhe-ão dados sem medida, para que
possa distribuí-los segundo as nossas necessidades. Pela sua boca, o
Verbo de Deus falará a nossa língua e o seu Coração amar-nos-á com
um amor ao mesmo tempo humano e divino. E, assim como Deus se
dará a nós por Ele, também por Ele nos poderemos elevar até Deus.
Tendo-se humanizado n’Ele a perfeição divina, bastar-nos-á, a partir
de agora, para imitar Deus, tornarmo-nos semelhantes ao Homem
modelo. Poderemos oferecer as suas expiações pelas nossas faltas,
fazer valer os seus méritos, apoiarmo-nos no seu crédito, oferecê-l’O
a Deus, seu Pai, como hóstia do nosso sacrifício. Poderemos ter como
nossos os seus sentimentos e a sua voz e chamar Pai a Deus, com o
timbre filial que tudo obtém do amor paterno.
A execução desse conselho de amor fará crescer imensamente
os vínculos entre os homens. A partir da Encarnação em Jesus
Cristo, a humanidade não será apenas uma sociedade e uma família,
mas um só corpo. Com efeito, todos os que, entre os homens, dese­
jarem unir-se a Jesus Cristo receberão, por seu intermédio, a vida de
Deus, tal como os nossos membros recebem a vida por meio da
cabeça e do coração. Por uma circulação constante, do Coração de
Jesus Cristo ao coração de cada cristão da terra e de cada bem-aven­
turado no Céu, essa vida será difundida. Ainda por intermédio desse
Coração, centro comum da vida sobrenatural de todos os outros
corações, todos os membros do corpo místico do Salvador, seja qual

53
for a distância entre eles, poderão agir uns sobre os outros, iluminar-
-se, entreajudar-se, dar-se mutuamente a vida e, pela ajuda mútua,
tornar mais fácil a aquisição da felicidade eterna de cada um. Por
meio desse Coração divino, poderão os santos do Céu vir, sem ces­
sar, em socorro dos pecadores e os cristãos da terra poderão aliviar,
a todo o instante, os seus irmãos do Purgatório. Enfim, por meio
d'Ele, um dia, reunir-se-ão os cristãos da terra e os que sofrem no
Purgatório aos bem-aventurados no Céu, consumando-se, então, a
grande unidade que Deus teve em vista ao criar o mundo e para a
qual a sua Providência actua continuamente.
E assim, na Pessoa de Jesus Cristo, encontrar-se-ão efectiva-
mente reunidos, de forma indissolúvel, a ordem divina, a ordem
moral e a ordem física: Deus, os espíritos e os corpos. Nessa Pessoa,
a criação adorável, seja espiritual, seja material, será elevada a uma
dignidade verdadeiramente divina e, a partir dela, como de uma
fonte inesgotável, a vida divina emanará em abundância sobre essa
dupla criação. Enquanto os mais ricos dons de Deus forem difundi­
dos por Jesus Cristo sobre as criaturas, também por Jesus Cristo vol­
tarão a Deus os louvores das criaturas, os quais, passando pelo seu
Coração, adquirirão uma dignidade infinita, fazendo com que a gló­
ria exterior dada a Deus pela criação tenha um valor igual à que Ele
dá a Si. Já não será então apenas pela via da semelhança, nem somente
pela simples união de actos que a criação corresponderá às inten­
ções do Criador. Em Jesus Cristo, a semelhança atingirá o seu mais
alto grau, e a união de actos será infinitamente grande; entre a sua
humanidade e a sua divindade, Deus Pai contemplará, durante toda
a eternidade, um vínculo que fará brilhar todos os atributos com um
fulgor muito mais intenso do que o das suas outras obras: a unidade
substancial dos mais inconciliáveis extremos. As intenções de Deus
estarão então plenamente realizadas, a criação terá cumprido o seu
fim, a história terá atingido o seu objectivo, o plano divino terá sido
completamente executado. Estará consumado o Reino de Jesus Cristo.
Q Reino de Jesus Crislo, eis a expressão que melhor resume o
plano divino e que melhor exprime a restauração e a recapitulação
universal que São Paulo nos mostra como termo de todos os desígnios

54
de Deus (Ef 1,10). O Reino de Jesus Cristo é a sociedade de almas
unidas ao Verbo encarnado e associadas por meio d’Ele à Trindade
divina, recebendo d’Ele a luz, a força, o amor e a vida de Deus;
comunicando-se mutuamente, também por meio d’Ele, essa luz,
essa força, esse amor e essa vida, glorificando a Deus Pai e esperan­
do a consumação da glória com a qual Deus Pai o coroou. Esse
Reino é o fim único e completo de todas as obras do poder de Deus
e de todos os acontecimentos dirigidos pela sua Providência. É Ele
que domina a história da humanidade e a divide em três grandes
períodos, compreendendo o primeiro a preparação desseJB^Íno, o
. segundo o seu estabele.cinienio^ej? terceiro a sua, consumação^-
Antes de acompanhar, nessas três épocas, a execução do plano
divino, que acabamos de contemplar no seu conjunto magnífico à luz da
Revelação, é necessário ainda estudar, na nossa natureza, as condições
essenciais da sua realização. É esse o objectivo do próximo capítulo.

55
Capítulo IV

O píano divino estudado na


natureza do homem
O plano divino, tal como mostrámos nos capítulos precedentes,
grande unidade que.une todosps extremos,ninlinjlo-e.o.finito,
tempo e a eternidade, o mundo dos espíritos e o muudojios^cor­
pos. Fazendo descer a divindade até à pequenez da criatura, eleva a
criatura até às alturas da divindade.
Já tivemos ocasião de contemplar nesse plano magnífico a
aliança de duas características opostas:subljmidadc.<e~a.humildade.
Não se pode conceber princípio mais humilde, já que esse princípio
era o nada, mas também não se pode conceber termo mais subligje^
pois é o infinito. A matéria é p que, bá-.de mais humilde, o pó da
Jterra, mas a forma que essa matéria receberá torna-a preciosa: é a
própria vida de Deus.
A primeira parte do nosso estudo mostrou-nos sobretudo o
plano divino na sublimidade do seu fim. Esse fim foi, até aqui, o
objecto da nossa atenção. Devemos agora examinar o plano divino
jpju.e^exefere Auajute^a humana, a qual lhe deve servir de maté­
ria e de ponto inicial, pois a história que estudamos não é.a_da.
.sociedade..divina em geraTjLa hisloria^dessa. parte da^pcjedade
divina que habita a terra. Os anjos e os demônios terão o seu papel
no drama que^se^vai desenvolver dianfe^de nós, mas aparecerão
apenas como aliados ou como inimigos. O herói do drama é o
hpniern, o homem composto de uma alma racional e de um corpo
de natureza animal, o homem solicitado violentamente pelos bens

57
Sfyzmtére

sensíveis e, ao mesmo tempo, pelos bens espirituais, o homem decaí­


do e tendente ao mal.
Veremos que essas condições da natureza humana modificam o
plano divino. Comecemos por definir a natureza e o alcance dessas
modificações.

1. A natureza decaída do homem

Antes de mais, é necessário dizer que .a sociedade divina sobre


a Terra reveste-se de um jjiiplo carácter em consequência da. duali-
dade da natureza humana. Na Terra, tal como no Céu, a sociedade
âivina é certamente uma sociedade espiritual. Espiritual pelo seu
fim, que é a felicidade de Deus; espiritual pelo seu principal móvel,
que é a graça sobrenatural de Deus; e espiritual ainda pelos vínculos
que devem unir os seus membros, que são a .verdade e a caridade.
Conservando, porém, esse atributo que lhe é essencial, adquirirá
outro, que parecia incompatível: tprnar-se-á visível e corporal.
Estará, pois, sujejtajisj^ e aos entraves do espa­
ço, aos quais escapava pelo seu lado espiritual.
Essa espécie desujfíifiãP, que_£az^epender.o. destino das almas.
.da_acçãpjios corpos, poderá surpreender os espíritos superficiais,
mas os mais argutos reconhecerão nela a marca da sabedoria divina.
Verão aqui o complemento sobrenatural da obra de aproximação e
união da qual o homem é o instrumento principal na ordem natural.
Com efeito, o homem não une apenas na sua natureza dual, como já
referimos anteriormente, o mundo dos espíritos com o mundo dos
corpos, mas, em todas as suas acções, ele torna presentes esses dois
elementos tão díspares, para não dizer tão contrários. O que é o
olhar, o que é o sorriso do homem, senão uma certa disposição dos
olhos ou dos lábios e, portanto, um certo modo de ser da matéria?
Como pode acontecer que o olhar ou o sorriso, que são matéria,
exprimam os mais delicados matizes dos sentimentos da alma? E a
palavra, o que é senão o ar colocado em movimento pela língua e
pelos lábios? E, entretanto, qual é a ideia, por mais espiritual que seja,

58

L.
0SrfedM de fetáJ /ia J/Sütórâz

que esse ar agitado não possa exprimir e fazer brotar simultanea­


mente em milhares de inteligências? A acção-do^hQinein-JixLOLrdem
natural é, portanto, uma acção essencialmente saçramentaCexpxi-
.mindo e produzindo, por meio de sinais sensíveis, as coisas mais ina;
cessíveis aos sentidos. É a fusão contínua é"perfeita do elemento
espiritual com o elemento corporal.
O plano divino apenas completa ^essajfusão, Nesse plano, a
matéria já não será apenas sinal e causa das operações espirituais,
mas terá um significado maior £produzirá efeitos■sobrenaturais. Por
causa do homem, ela.elevou-se até à dignidade dos espíritos:
causa da graça, elevar-se-á até à dignidade divina. A natureza inteira
fornecerá à sociedade sobrenatural os elementos necessários às suas
obras mais santas: a água purificará as almas, o óleo fortificará, o
pão alimentará, e toda a escala dos seres ficará enobrecida. O ele­
mento material já podia elevar-se, de grau em grau, inicialmente até
à vida vegetal, depois até à vida animal e, por fim, até à vida racio­
nal. Agora, pode atingir a própria vida divina.
E assim como a natureza trabalha sem cessar para que os seus
elementos ultrapassem os primeiros graus dessa escala misteriosa,
assim também a Igreja trabalha continuamente para que ultrapas­
sem o último grau. Cada vez que um dos seus ministros sobe à cáte­
dra da verdade, é para fazer do ar, que os seus lábios agitam, um veí­
culo da luz do Céu; cada vez que^jm]_-^acxame.nlíréconferido, a
matéria torna-se sinal e causa da graça divina.. Quem ,não admirará
este mistério e quem não reconhecerá,.emJugar do abaixamento do
elemento divino, a divinização do ejemento material?. I
Outro resultado dessa condição corporal e visível da sociedade
divina é a distinção de duas ordens de^dignidades: da dignidade pes­
soal e da dignidade oficial. ACUgoidadeipessoa^constitui a santida­
de e. o mérito; nantoridade e o poder. A 7
primeira é, sem dúvida, mais excelente aos olhos de Deus, e, sem
ela, a dignidade oficial é para o indigno depositário um motivo
maior de condenação. O mérito, que Deus preza acima de tudo e
I
somente ao qual destina as recompensas da eternidade, nem sempre
é percebido pelos homens, pois manifesta-se, muitas vezes, por

59
sinais equívocos. A ordem da socied.ad.ejdiy.ina na terra não poderia,
-portanto,. depender desse tipo de dignidade. Era preciso que Deus
instituísse outra hierarquia, composta de dignidades e poderes tão
visíveis como a sociedade que eles devem governar.
Aqui, as pessoas de espírito acanhado poderão, uma vez mais,
ficar surpreendidas e algumas, mais orgulhosas, encontrarão nessa
sábia maneira de agir um objecto de murmuração e revolta. Os pró­
prios fiéis, lendo a história da Igreja, terão, por vezes, dificuldade
em compreender que Deus tenha feito reflectir a sua luz em espe­
lhos horrivelmente manchados e transmitir a sua graça por canais
tão sujos. Contudo, quem compreender melhor as condições essen­
ciais da natureza humana, em vez de murmurar ou de se espantar,
admirará, pelo contrário, o poder e a bondade de Deus. Na sua infi­
nita sabedoria, embora tenha feito depender a sua acção da coope­
ração do homem, não quis que essa dependência pudesse compro­
meter os interesses da sociedade que quis formar com ele.

2. As provas a que o homem é submetido

Continuemos o estudo das condições da natureza humana e da


sua influência sobre o plano divino.
O homem, pelo próprio facto de ser um composto de espírito e
matéria, tem tendência para se apegar tanto aos bens sensíveis como
aos espirituais. A sua prova é, pois, muito diferente daquela a que
foram submetidos os anjos e, assim, o plano divino em relação aos
homens é muito diferente do que existiu para aqueles.
A prova, em geral, é a condição essencial da perfeição e da feli­
cidade das criaturas racionais. O plano divino para todas elas consis­
te em conduzir essas criaturas ao seu fim, por meio de provas ade­
quadas a lhes dar merecimento. Seria, na verdade, contrário à sabe­
doria divina conduzir ao seu fim um ser dotado de espontaneidade e
liberdade, como se fosse um ser cego e inerte. Por ter dado Deus à sua
criatura o poder de se determinar e de escolher a sua via, deve obri­
gá-la a fazer com que esse poder reverta para a sua glória. É preciso,

60
então, que essa criatura seja intimada a escolher entre o bem infini­
to, ainda que ausente para ela, e o bem finito que lhe oferece um
gozo próximo. É essa a opção oferecida a todas as criaturas racio­
nais, à qual chamamos prova. Se a vontade livre menospreza o bem
presente e o gozo que lhe é oferecido, para se unir à bondade infi­
nita de Deus, que se oculta ainda aos seus desejos, ela dá a esse bem
soberano uma glória que toda a criação material não poderia ofere­
cer, dá-lhe o mais significativo de todos os testemunhos, fica seme­
lhante a Ele no mais incomunicável dos seus atributos, naquele pelo
qual Ele é o próprio princípio da sua felicidade. E essa glória para o
Criador, que lhe advém da prova da criatura, será tanto maior quan­
to mais rude e longa tiver sido a prova e quanto maior tiver sido o
mal que foi necessário sofrer, ou quanto mais atraente o bem que foi
necessário recusar.
Essa prova pode, contudo, revestir-se de formas diferentes.
Para os anjos, que são puros espíritos, consistirá em sacrificar a
Deus bens de natureza espiritual: a ciência, a grandeza, a glória, o
poder. O homem, enquanto espírito, poderá ser submetido a uma
prova análoga, mas enquanto unido a um corpo, estará sujeito a
outro gênero de inclinações, que se tornarão para ele o princípio de
provas continuamente renovadas. Muito mais intensamente ainda
do que os bens espirituais, os bens sensíveis atraí-lo-ão sem cessar,
por causa dos gozos imediatos que lhe oferecerão e dos apetites que
farão nascer no seu organismo. Solicitado, ao mesmo tempo, por
essas duas ordens de inclinações, e também dependendo dos senti­
dos, até para as operações mais espirituais da sua inteligência, o
homem não tem, nem a lucidez de concepção, nem a energia da von­
tade que permitiu aos anjos fazer, num instante, uma escolha intei­
ra e irrevogável. A sua prova também será muito mais longa que a
deles. Para eles, o plano divino consistiu em propor-lhes, uma única
vez, a opção entre uma gloriosa humilhação e uma revolta insensata.
Logo que a escolha foi feita, os anjos fiéis receberam a sua recom­
pensa e os anjos rebeldes sofreram o seu castigo. O homem, pelo
contrário, será intimado, durante um tempo mais ou menos consi­
derável, a confirmar ou retratar a sua primeira escolha. O mérito da

61
sua prova virá sobretudo da sua duração, resultará igualmente da
multiplicidade dos bens que o homem deverá sacrificar ao amor do
seu Deus e da variedade dos males que deverá suportar para lhe
provar o seu devotamento. Deus semeará de provas a vida do
homem para aumentar a sua recompensa, segundo os méritos adqui­
ridos. Todas as criaturas parecerão conspirar para realizar, neste
sentido, os desígnios do Criador. Os anjos bons unir-se-ão aos
homens bons e os anjos maus juntar-se-ão aos homens maus, para
tornar a prova contínua e completa. Os bens espirituais e temporais
virão sucessivamente oferecer-se ao homem para se tornar matéria
de um sacrifício glorioso. Este completará assim a obra do anjo e
dará o testemunho que os puros espíritos prestaram ao seu Criador,
diante de toda a criação. Assim, fará Ele com que as próprias cria­
turas inanimadas cantem os mais harmoniosos cânticos de louvor de
que sejam capazes. Porque toda a glória que elas dão a Deus pelo
fulgor da sua beleza e pela ordem das suas acções não pode compa­
rar-se à glória que resulta para Ele da sua destruição, em virtude de
uma vontade livre que, para se unir somente a Deus, calca aos pés
todos os prazeres que elas lhe apresentam.
Pode, então, o plano divino em relação à humanidade compli­
car-se por uma variedade infinita de influências, situações e vicissi-
tudes. Da mesma forma que a natureza do homem é incomparavel­
mente mais complexa que a dos outros seres racionais, assim tam­
bém a sua prova será incomparavelmente mais variada. Essa varie­
dade e essa complicação tornam a sua história muito mais longa e
obscura. A história da cidade de Deus no Céu só tem um capítulo e
esse capítulo é curto. A história da cidade de Deus na terra tem tan­
tos capítulos quantos os dias que decorreram desde a criação do
homem, e estamos muito longe de chegar ao fim do livro.

3. O pecado original e o plano divino

A complexidade da nossa prova nào se deve somente às carac­


terísticas da nossa natureza, mas resulta, ainda, do pecado original,

62
0

que acarretou uma profunda modificação do plano divino em relação


à humanidade.
Não abordaremos agora os desígnios de Deus, pelos quais o
destino do gênero humano ficou ligado à livre escolha dos nossos
primeiros pais. Vamos analisar apenas o pecado original nos seus
resultados. Ora, nós conhecemos muito bem esses resultados, pela
nossa experiência de todos os dias. O nosso equilíbrio físico e moral
ficou profundamente abalado; no plano inicial do Criador, a razão
estava submetida à verdade, a sensibilidade à razão, o corpo à alma
e toda a natureza ao homem, que nela tinha sido colocado como rei.
Logo que o homem sacudiu o jugo do seu Criador, a natureza revol­
tou-se contra ele, e nele o corpo revoltou-se contra a alma e a sensi­
bilidade contra a razão.
Como pôde a Sabedoria de Deus tolerar tal desordem e como
pôde, sobretudo, permitir que ela se perpetuasse?
Poderiamos justificar esse facto com várias razões, mas há uma
que tem mais relação com o nosso tema. E que a desordem deu a
Deus a oportunidade de colocar a última coroa na ordem geral.
Sabemos, com efeito, que essa ordem consiste em que a Criação
manifeste em todos os aspectos possíveis a sua semelhança com Deus
e proclame a sua infinita bondade, pelo concerto de milhões de
vozes. Essa ordem será tanto mais perfeita quanto mais reproduzir a
semelhança com Deus, na maior variedade de circunstâncias, e quan­
to mais for glorificada a bondade de Deus, apesar dos numerosos e
poderosos obstáculos que se levantem. Ora, se o homem não tivesse
pecado. Deus só teria sido imitado por criaturas inocentes e a glori­
ficação da sua bondade só teria encontrado obstáculos em inclina­
ções perfeitamente submissas ao império da razão. Teria, então, fal­
tado alguma coisa à manifestação dos atributos de Deus. O poder, a
sabedoria e o amor de Deus brilharão muito mais, pois farão apare­
cer a semelhança perfeita com a divina beleza, não apenas a partir do
nada, mas até da própria lama do pecado. A prova do homem é mais i

i
penosa, mas também mais meritória para o homem e mais gloriosa
para Deus, uma vez que, para atingir o seu fim, ele deverá ultrapas­
sar incontáveis obstáculos que o pecado amontoou no seu caminho.

63
Compreendemos, então, por que motivo permitiu Deus essa
desordem. Compreendemos por que motivo, depois de ter resolvido
repará-la, permitiu entretanto que se desenvolvessem todas as suas
desastrosas consequências. Compreendemos por que motivo a nossa
regeneração não destruiu em nós nenhuma das más inclinações que
são a triste consequência da nossa queda. É que essas inclinações
devem ser a matéria da nossa prova, a fonte do nosso mérito, o ins­
trumento da maior glória que devemos dar a Deus. Se Deus não des-
trói em nós os efeitos do pecado, é porque deseja dar-nos a glória de
os destruir. Falámos há pouco de uma reacção misericordiosa, feita
pelo amor de Deus contra o seu infernal inimigo; essa reacção não é
a Encarnação do Verbo, que em qualquer hipótese deveria coroar a
obra da Criação, mas é a elevação da natureza humana vencida por
Satanás a uma dignidade ainda mais alta do que aquela à qual pode­
ría chegar antes da derrota. É a vitória gloriosa que obterá o vencido,
debilitado pelos seus ferimentos, contra o seu vencedor orgulhoso.
Não devemos, pois, espantar-nos com nenhuma fraqueza, com
nenhuma miséria, com nenhuma queda, com nenhuma desordem;
tudo isso são sombras que o pintor celeste permite ao seu inimigo
colocar no seu quadro, porque elas servirão para melhor realçar as
belíssimas cores com que Ele quer completá-lo. No Céu, a graça divi­
na foi colocada em vasos de ouro e diamantes, cujo fulgor natural
tinha alguma proporção com a sua dignidade sobrenatural.
Louvemos essa disposição da Sabedoria eterna e bendigamos o
Altíssimo nos seus anjos. Mas vendo esse mesmo tesouro posto na
terra, colocado em frágeis vasos de barro, e esses vasos a quebrarem-
se em mil pedaços, mas vendo igualmente a força desse licor celeste
ir ao ponto de recuperar a sua integridade primitiva, não temos aí
motivos para admirar essa modo de agir de Deus e para louvá-l’O no
pecador regenerado mais ainda do que no anjo preservado?
É fácil perceber a luz fulgurante que emana destas considera­
ções e que ilumina os pontos obscuros do plano divino e as páginas
mais negras da história da humanidade. Se fixássemos o olhar ape­
nas no fim magnífico que a Providência busca, isto é, a divinização
do homem, podíamos persuadir-nos de que toda a existência da

64

L.
0'

humanidade é um longo desmentido a esse destino sublime. Mas se,


ao invés, compreendermos que Deus não modifica nenhuma das con­
dições da nossa natureza quando nos propõe esse fim, nem as decor­
rentes da nossa origem, nem as decorrentes da nossa queda, pelas
quais nos tornamos, ao mesmo tempo, seres corporais e espirituais,
mais inclinados aos prazeres sensíveis que aos gozos espirituais, sujei­
tos a inclinações e hábitos desordenados; se colocarmos firmemente
no espírito que a glória que Deus espera de nós, como a que Ele nos
destina, está ligada à luta contra os obstáculos e à enérgica recusa das
desordens, então, já não nos surpreenderemos quando os encontra­
mos na nossa vida, assim como não nos surpreendemos de ver na
arena o lutador que quer obter o prêmio da força e da coragem, sujei­
tando-se às maiores fadigas e expondo-se a grandes perigos.

4. A procura da verdadeira e da falsa felicidade

Antes de deixar este assunto, é ainda necessário penetrar um


pouco mais nas profundidades da nossa natureza, para descobrir a
razão do concurso ou das resistências que ela pode oferecer à acção
divina, nas diferentes épocas da sua vida moral. As inclinações que
arrastam as vontades humanas são muito diferentes e opostas, mas
têm uma fonte comum. Os movimentos que nos levam ao bem e os
que nos levam ao mal, as desordens mais criminosas e as mais herói­
cas virtudes têm um mesmo motivo, fljjgsejo de felicidade, Todos
queremos - e necessariamente queremos - ser felizes. Se essa felici­
dade pudesse ser, ao mesmo tempo, presente e completa, não have­
ría ocasião para qualquer hesitação na escolha. Precipitar-nos-íamos
simplesmente para o seu gozo com todo o ímpeto da nossa vontade.
Mas não é assim, e nisso está a nossa prova. Deus, único bem com­
pleto e infinito, oculta-se e, recusando-nos o gozo presente da sua
própria beleza, proíbe-nos um amor demasiado vivo do gozo que
poderiamos encontrar nas criaturas. É aí que os homens se dividem.
Deixam-se levar pelo mesmo desejo de felicidade mas para rumos
opostos: uns, querem a qualquer preço satisfazer esse desejo na vida

65
presente, revoltando-se contra Deus, que lhes recusa essa satisfação.
Outros, aceitam o momento em que Deus quer satisfazê-los.
Está aqui o ponto de separação entre as duas sociedades inimi­
gas que Santo Agostinho chamou “a Cidade de Deus” e a “Cidade
dos filhos dos homens”. A primeira é composta por aqueles que
querem ser felizes com Deus e a segunda pelos que pretendem ser
felizes sem Deus e apesar de Deus; o móvel da primeira é “o amor
de Deus até ao desprezo de si próprio” e o móvel da segunda é
“o amor de si próprio até ao desprezo de Deus”. Mas não é num só
acto que a maioria dos homens toma definitivamente o seu lugar,
numa ou noutra dessas sociedades.
O homem começa, normalmente, a agir bem ou mal, de acordo
com o modo pelo qual é educado. Obrigado a receber de fora a
maior parte dos seus conhecimentos, recebe daí também as suas
inclinações. Será, portanto, bom ou mau consoante as influências
que receba; e, seguindo-as, buscará a sua felicidade no serviço de
Deus ou na violação da sua lei.
Enquanto sofrer, docilmente, as influências estranhas, não pode­
rá fixar-se, firmemente, nem no bem nem no mal. Essa fixação só lhe
virá da luta. Se a educação o tornou bom, a luta nascerá dos atracti-
vos do mal, do despertar das suas paixões, dos gozos presentes que a
solicitação delas lhe fará sentir, da satisfação imediata que a sede de
felicidade lhe exigirá. Parecer-lhe-á fascinante ser senhor do seu pró­
prio destino e não depender de nenhuma autoridade superior.
Se, pelo contrário, o homem foi levado ao mal antes de conhe­
cer a desordem que ele causa, as consequências amargas de tal
desordem não tardarão a fazer-se sentir. A virtude, por sua vez,
apresentará os seus encantos e a felicidade verdadeira oporá as suas
sólidas esperanças às ilusões de uma felicidade mentirosa. Nas duas
situações, haverá luta e essa luta poderá prolongar-se durante muito
tempo por uma sucessão de derrotas e de vitórias, conseguidas ora
pelo bem, ora pelo mal.
De quem será o triunfo definitivo? É somente a liberdade que
o vai dizer. Mas eis o que acontece muitas vezes: o homem que se
deixou arrastar para as desordens mais vergonhosas por um desejo

66

L
0 dk jfaüJ fâúto /za

mal compreendido de felicidade, convencido pela sua experiência


da impossibilidade de satisfazer tal desejo longe de Deus, esmagado
pela vergonha e pelos remorsos, volta para o bem soberano e une-
se a ele com uma força tanto maior quanto maior foi o seu crimino­
so afastamento de Deus.
Podemos então, na vida moral do homem, distinguir três perío­
dos que correspondem às três primeiras idades da sua vida física. A
idade da infância, que é a da ingenuidade dócil e quase inconsciente;
a idade da juventude, que é a das paixões e das lutas; a idade da matu­
ridade, que é a das desilusões e da determinação plenamente delibe­
rada. Em todas essas idades, o homem é livre de se unir a Deus ou de
se revoltar contra Ele, mas a sua liberdade só atinge a plenitude na
maturidade, que é a idade em que Deus tem mais influência sobre as
almas humanas e em que Ele muitas vezes reconduz a Si aqueles que
na juventude não evitaram desregramentos muito tristes.
Mas, enquanto dura a prova, seja na infância, seja na juventu­
de, seja na maturidade, sempre tem Deus uma grande influência
sobre os corações, mesmo sobre aqueles que mais se afastam d’Ele.
O motivo dessa influência é o mesmo que leva os corações a afasta­
rem-se d’Ele: o desejo da felicidade. Existe, pois, entre os homens e
Deus, um grande mal-entendido, pois a felicidade à qual querem
chegar só pode ser obtida com o auxílio de Deus. Causar e manter
esse mal-entendido é o objectivo constante de Satanás e dos seus
agentes. Acabar com ele é a prioridade dos esforços contínuos de
Deus e dos seus amigos.
O Verbo de Deus, ao descer à Terra, não teve outro objectivo
senão o de reunir no seu coração e colocar ao alcance dos homens
todos os bens que eles em vão procuravam há muitos séculos.
Depois que o Divino Salvador subiu aos Céus, a Igreja não fez senão
incitar as sucessivas gerações a irem beber dessa fonte divina.
Estudámos nos capítulos precedentes o plano divino em relação
a Deus. Acabámos de o considerar em relação ao homem, falta
ainda estudá-lo na sociedade e no conjunto da criação.

67
Capítulo V

O plano divino estudado na


natureza da sociedade
Deus poderia ter criado um único ser racional. Bastaria, na ver­
dade, uma só boca para elevar ao Autor do Universo as homenagens
de toda a criação. Mas já vimos que a multidão inumerável das cria­
turas reflecte, de modo muito mais variado e excelente, as perfei-
ções divinas, do que cada uma separadamente. Vimos também que
a sociedade dos espíritos, unida por fortes vínculos de inteligência e
amor, reflecte admiravelmente as relações inefáveis que unem as
próprias pessoas da Santíssima Trindade!
E, pois, incontestável que a sociedade espiritual, em si, possui um
gênero de perfeição muito superior à perfeição isolada de cada um
dos elementos que a compõe. Ela é a mais fiel representação criada
da beleza incriada e, por isso mesmo, o mais digno objecto do amor
divino. Todos os desvelos da Providência infinitamente sábia que
governa o mundo se dirigem à realização plena desta grande obra.
Isto não quer dizer que cada ser racional não tenha o seu fim
próprio. A felicidade eterna de cada um constitui o fim específico de
um conjunto ordenado e completo de disposições providenciais.
Mas esses diferentes conjuntos, que visam a perfeição e a felicidade
individual de cada um dos espíritos criados, constituem partes de
uma ordem providencial destinada à perfeição e felicidade da gran­
de sociedade da qual Jesus Cristo é a cabeça.
Só poderemos compreender verdadeiramente o plano divino,
se estudarmos as características da natureza humana considerada

69
individualmente, para examinar depois as modificações que ela
sofre, em decorrência da reunião de um certo número de indivíduos
num corpo social.
A sabedoria divina, que não manifesta menos suavidade na dis­
posição dos meios do que força na realização dos fins, adapta sem­
pre a sua acção à natureza concreta dos sujeitos sobre os quais actua.
Para entender a acção social da Providência, é, pois, necessário
conhecer a natureza da sociedade.

1. A lei da mutualidade

_A primeira característica essencial da sociedade que logo


chama a nossa atenção, quando a consideramos sob o ponto de vista
do plano divino, é a mútua dependência dos membros que a com­
põem. É o que podemos chamar lei da mutualidade.
Esta lei decorre da própria ideia de sociedade. Com efeito, esta
pode definir-se como a ordem entre os seres racionais. Ou melhor,
como a coligação de seres racionais na procura de um fim comum.
Assim como um monte de pedras não faz um edifício, não é qual­
quer coligação que faz a sociedade. O que faz o edifício é a unida­
de do plano e dos objectivos; o que faz a sociedade é a unidade do
fim. Para executar o seu plano e utilizar as pedras de que dispõe
para a finalidade que tem em vista, o arquitecto deve reuni-las
numa certa ordem e estabelecer entre elas um equilíbrio perfeito.
Do mesmo modo, para que o fim da sociedade possa ser alcançado,
os membros que a compõem deverão estar ligados entre si por
direitos e deveres, cujo exercício os une tendencialmente e constitui
a vida da sociedade.
Esta colaboração dos seres racionais para alcançarem um fim
comum, dá à sociedade uma extraordinária beleza, que reflecte as
relações inefáveis das próprias Pessoas da Santíssima Trindade.
Entre todas as faculdades conferidas por Deus às criaturas racionais,
nenhuma é mais sublime do que o poder de iluminar, fortificar e
divinizar os seus semelhantes.

70
0 Sffeúw de feftáJ fârèffo /ia efâddrâz

Esta acção mútua - que é a característica mais essencial da socie­


dade - carreta, no entanto, uma dependência mútua. Pois, onde há
uma acção, há sempre um elemento passivo, que se torna, em conse­ I
-
quência de tal acção, o que não seria sem ela. Qual é na sociedade o
elemento passivo? São os membros de que ela se compõe. E o ele­
mento activo? São também os seus membros. Cada um age sobre os
outros e, por sua vez, sofre a influência deles. Não estão todos unidos
por igual, nem todas as acções são igualmente imediatas, mas, haven­
do sociedade, há necessariamente uma troca mútua de influências. O
que um membro ganha é necessariamente ganho pelo corpo social
inteiro, e o que ele perde é necessariamente perdido por todos. Não
há nenhum, por mais débil que seja, que não possa ajudar os outros
a alcançar o fim comum, e também não há um só, por pobre que seja,
que ao enriquecer-se não enriqueça a sociedade inteira.
Assim, no dia em que entramos em sociedade, começamos a ■
depender de todos aqueles que dela faziam parte antes de nós, mas,
também nesse dia, todos os outros começaram a depender de nós.
Os seus destinos foram colocados nas nossas mãos, assim como os
nossos destinos lhes foram confiados. Deus subordinou de algum
modo a eficácia da sua acção sobre nós ao concurso dos outros
homens, como subordinou ao nosso concurso a sua acção sobre os
nossos semelhantes. Ele continua, sem dúvida, a actuar directamen-
te sobre nós. pois não poderiamos existir nem agir se Ele não nos
desse, a cada instante, o ser, a potência e o movimento. Mas essa
acção, que nos move no mais íntimo do nosso ser, apenas acompanha,
normalmente, a acção exterior exercida sobre nós pelos membros da
sociedade. Da mesma forma que Deus move imediatamente todos
os corpos, mas não lhes dá um movimento diferente daquele que
lhes é comunicado por outros corpos, também assim ilumina ime­
diatamente todas as inteligências e estimula todas as vontades, mas
faz com que a luz seja mais ou menos abundante e que o estímulo ao
bem seja mais ou menos eficaz, consoante a sua graça for mais ou
menos ajudada pelos membros da sociedade.
É preciso acentuar que, tanto na ordem moral como na ordem
física, Deus não se despojou do poder de intervir directamente.

71
Mas essas derrogações da regra geral são sempre excepcionais, não
podendo transformar-se em regra sem destruir a ordem e sem con-
vulsionar a sociedade. Podemos até dizer que, no mundo moral, as
intervenções directas de Deus são mais frequentes do que no mundo
físico. No primeiro desses dois mundos, com efeito, a Providência
deve conciliar duas ordens: a ordem individual e a ordem social. Se
a ordem social pede a transmissão da acção divina a cada homem
por meio de outros homens, a ordem individual exige que nenhum
agente livre, pela falta de outros, seja privado dos meios indispensá­
veis para atingir o seu fim. Deus poderá mesmo fazer um milagre
antes de permitir que algum homem, no gozo da sua liberdade e
fazendo bom uso dela, possa, apesar disso, ser desviado do seu fim.
Mas não está obrigado a impedir por um milagre - nem a própria lei
constitutiva da sociedade o permitiría ordinariamente - que, por
culpa da sociedade, sejam tirados a muitos dos seus membros o uso
da liberdade e os socorros abundantes que Ele lhes destinou e sem
os quais, de facto, nunca atingirão o seu fim.
Esta primeira consideração tem um imenso alcance e dá-nos a
chave de questões enigmáticas do plano providencial.
Por que existe essa imensa diferença entre o mundo moral e o
mundo físico? Por que a perfeição é tão raramente conseguida no
primeiro e tão frequente no segundo? Por que são tão comuns entre
as almas os seres estultos e até os monstruosos, a ponto de parecerem
regra, enquanto que entre as plantas e os animais são apenas excep-
ção? É que, no primeiro desses dois mundos, a acção divina pede da
sociedade uma cooperação que lhe é dada muito raramente, enquan­
to que no segundo nunca lhe é recusada a cooperação que ela exige.
Não poderia ser de outro modo? Sem dúvida que sim, se Deus
tivesse querido uma ordem distinta, mas uma vez escolhida esta, a
sabedoria divina não pode tornar a sua acção sobre os indivíduos
independente da acção social, porque destruiría a lei da mutualida-
de. Ora, esta lei é tão essencial para a sociedade como a organização
o é para a vida física.

72
& Sffeúw de fluuj

2. A lei da desigualdade

Compreenderemos melhor as vias da Providência relativas ao


governo das sociedades se estudarmos, agora, a lei da mutualidade
nas suas aplicações concretas e a natureza das influências, de cujo
contínuo intercâmbio é feita a vida social.
Já vimos que essas influências são recíprocas, mas isso não sig­
nifica que sejam iguais. Pelo contrário, a sociedade é composta de
todo o tipo de desigualdades^. Teremos ocasião de ver que isso
decorre da aplicação ao mundo moral de uma lei geral que rege a
"A G ; criação inteira. Por agora^fiquemos na mera constatação do facto.
Iguais por natureza/origem e finitos homens são desiguais em todo
o resto, desiguais nas faculdades intelectuais, nas inclinações, nas
energias morais, nas forças físicas... Desiguais, consequentemente,
no poder que têm de agir uns sobre os outros, pois a intensidade
dessa acção depende das qualidades intelectuais, morais e físicas
daquele que as exerce.
Entre os corpos celestes, existem alguns que, embora sofram a
influência de corpos menores, exercem sobre estes uma influência
maior; também no nosso corpo existem certos órgãos que podem ser
considerados fontes de vida e, contudo, recebem vida de outros
órgãos. Assim é também na sociedade: não há uma só alma que não
dependa de outras, em certa medida, mas há algumas cuja influên­
cia sobre a sociedade inteira é preponderante; são como sóis que
arrastam todas as outras no seu movimento. Não estamos aqui a
negar a lei da mutualidade. mas, simplesmente, a delimitar o seu
âmbito, reconhecendo que na sociedade há membros activos e
membros passivos. Nuns e noutros se encontram os dois elementos
que acabámos de distinguir, mas, nos primeiros, o elemento activo
predomina, enquanto que, nos segundos, ele apaga-se quase inteira­
mente. Os primeiros, em número muito menor, são chamados por
Deus para representá-PO diante dos seus semelhantes e para repro­
duzir, em grau superior, o poder que Ele tem de agir sobre os espíri­
tos. Essa sublime vocação acarreta, contudo, deveres e responsabili­
dades temíveis. Os outros, em número muito maior, embora conservem

73
a sua liberdade, seguem em geral o movimento das inteligências
mais poderosas; quando se deixam levar para o bem, têm menos
mérito do que aqueles que lhe imprimiram o impulso para o bem,
mas também serão menos culpados e menos castigados, quando se
deixarem levar para o mal.
A lei da rnutualidade social completa-se, pois, e explica-se
melhor pela lei da desigualdade. Uma e outra concorrem maravilho­
samente para esclarecer e explicar a história.
Se compreendermos bem estas duas leis, não nos surpreendere­
mos ao ver tão amiúde as sociedades separarem-se ou reaproxima-
rem-se de Deus, segundo as intenções dos que as governam. Não nos
parecerão tão estranhos os atrasos sofridos na execução do plano
divino, se considerarmos a infidelidade daqueles que Deus chama
para executá-lo consigo. Saberemos onde colocar a responsabilidade
do estado deplorável em que ainda se encontra a humanidade, dois
mil anos depois da vinda do seu Salvador. Veremos o crime e a cor­
rupção dominarem o poder do ceptro, o poder do gládio, o poder do
espírito, p poder da vontade, o poder corporal e todas as fontes de
influência social. Veremos, em todas as épocas, numerosos membros
activos da sociedade unirem-se para arrastá-la para fora das vias que
a Providência lhe traçou desde as origens, e que o Verbo Divino veio
iluminar com a sua palavra e exemplos. Como podemos, pois, estra­
nhar que - em lugar da ordem que por definição lhe cabe - a socie­
dade se apresente hoje na mais lamentável desordem?

3. A próxima reconciliação entre as sociedades e Deus

Será isto sempre assim? As influências sociais - em relação às


quais os homens são tão dóceis, mas que muitas vezes os afastam de
Deus - contribuirão alguma vez para aproximá-los do Criador?
Veremos as sociedades submeterem-se ao Omnipotente, e a executar os
seus magníficos desígnios no mundo? Não podemos de momento res­
ponder taxativamente a essa questão, como não pudemos, no capítulo
anterior, resolver por uma afirmação absoluta uma questão análoga.

74

L
& Sffedw de

O homem é livre na sua acção social, assim como na sua acção indi­
vidual, e, se não pode impedir que Deus triunfe das suas resistências
pela força e glória da sua Justiça, pode, no entanto, impedir que
Deus execute o plano inicialmente traçado pela sua bondade.
Se não podemos conhecer o destino das sociedades humanas,
podemos todavia entrever o seu provável futuro e, de certo modo,
conhecer assim o plano divino. I
O homem, tanto em sociedade como individualmente, só procu­
ra uma coisa: a felicidade, mas - quando se sente apoiado pelos seus
semelhantes, mais do que quando está entregue a si mesmo - procu­
ra encontrá-la no presente e possuí-la com independência de Deus.
Logo que começou a domar a natureza, e superou o período em
que a luta contra os elementos exteriores o absorvia, deixou-se
embriagar pelo sentimento da sua força. A medida que as paixões
encontraram alimento, tornou-se-lhe mais difícil submeter os seus
apetites turbulentos à Lei de Deus.
Mas o que mais custa ao homem é reconhecer acima de si a
autoridade de alguém que, pela superioridade do talento ou pela
coragem, exerce um domínio sobre os seus semelhantes.
Não é difícil, pois, compreender a luta entre as influências
sociais e a acção divina. A primeira inclinação que experimentam
aqueles que conquistaram tais influências é revoltarem-se contra
Deus, para, de seguida, colocarem fora das vias da Providência as
sociedades que dominam.
Em certas épocas, o vento da revolta sopra com mais violência
no seio das sociedades. São as épocas de grande prosperidade mate­
rial, das grandes descobertas científicas e dos grandes progressos
industriais. Nessas épocas, os homens que constituem o elemento
passivo da sociedade, deixando-se facilmente deslumbrar e vendo
acima de si os gênios a quem a natureza obediente parece entregar
todos os segredos, esquecem facilmente o Deus que reina nos Céus,
persuadindo-se de que a única felicidade é a terrena.
Mas essa ilusão durará sempre? Na sua infinita bondade, Deus t

assim não o quis. Colocou o remédio no próprio excesso do mal e i


tornou as nações da terra susceptíveis de cura, pelas próprias conse-

75
quências das suas doenças. Com efeito, não há uma só ilusão das
sociedades, um só atentado dos que as governam, que não redunde
em castigo terrível para todos eles. O orgulho dos governantes con­
duz facilmente à tirania, a sua ambição faz nascer guerras desastro­
sas, o seu luxo impele-os a vergonhosas desordens e a loucas prodi­
galidades. Essas mesmas causas produzem resultados não menos
funestos, quando agem sobre os membros principais das sociedades
e quando, a partir daí, estendem a sua influência aos membros infe­
riores. Os vínculos sociais debilitam-se e diminui a subordinação -
único elo que pode unir os inferiores aos superiores - ao devota-
mento, único elemento capaz de refrear a rivalidade entre iguais,
sucede o espírito de independência e de egoísmo. Os deveres dei­
xam de ser cumpridos, os direitos deixam de ser respeitados, a paz
social é continuamente perturbada pelas revoluções, apagam-se as
virtudes morais e o próprio progresso material é interrompido pela
instabilidade das instituições, acabando a sociedade por compreender
que, ao procurar o progresso e a felicidade longe de Deus, andou
atrás de quimeras.
Nessas circunstâncias, a reconciliação entre as sociedades e
Deus torna-se mais fácil e apresenta maiores garantias de duração.
Procurem-se então os homens capazes de exercer influência séria
sobre os seus semelhantes e dispostos a colocar essa influência ao
serviço da divina bondade; procurem-se escritores, oradores e poe­
tas que saibam tocar as almas em todas as suas faculdades e que à
eloquência da palavra acrescentem a eloquência mais persuasiva do
exemplo; procurem-se príncipes dispostos a tornarem-se verdadei­
ros pais e salvadores dos seus povos. Com tais instrumentos, não
precisará Deus de muito tempo para tirar a sociedade do mais pro­
fundo abismo e para fazer nascer a ordem a partir do caos, como nos
primeiros dias.
Devemos distinguir, na vida das sociedades, à semelhança do que
se verifica na vida dos indivíduos, três períodos distintos, três épocas:
a idade da infância, em que elas ignoram ainda as suas forças, quando
têm uma consciência rudimentar das suas crenças e erros, das suas vir­
tudes e do seu poder; a idade da juventude, quando têm uma violenta

16
OSffeüw de fetáj /ia Jfójfiúúz

tendência de voltar o seu poder contra Deus; e, finalmente, a idade da


maturidade e da experiência, quando as ilusões se dissipam.
Assim como os indivíduos, as sociedades conservam nas três
idades a liberdade de obedecer a Deus ou de se revoltar contra Ele,
mas essa liberdade alcança a plenitude na idade da maturidade.
Então, as sociedades poderão, se quiserem, persistir no erro e obsti­
narem-se a procurar longe de Deus uma felicidade e uma perfeição
que nunca encontrarão. Mas também será incomparavelmente mais
fácil - tomando por ponto de apoio a sua experiência e por alavan­
ca o desejo de felicidade - exercer sobre elas uma acção decisiva
para que regressem à observância do plano divino.
E assim que o retorno ao bem poderá, muitas vezes, seguir de
muito perto as maiores decadências. Por vezes, estão mais próximas
da salvação as sociedades que parecem perdidas. A lei que governa
os astros - em virtude da qual a gravidade que os atrai começa a
triunfar no momento em que a força centrífuga os afastou mais -
reproduz-se na ordem moral. A história dá-nos disso muitos exem­
plos capazes de nos alimentar a confiança apesar das desordens que
presenciamos.
De resto, não nos esqueçamos que, em todas as épocas, mas
sobretudo em épocas de perturbação e de revolta geral, o grande
dever dos que desejam cooperar para o estabelecimento do Reino
de Jesus Cristo no seio da sociedade, consiste em mostrar-lhe que
apenas nesse Reino ela pode encontrar o progresso autêntico e a
felicidade. É o grande desafio que nos oferecem, tanto as sociedades
como os indivíduos. Ignorá-lo seria manifestação de pouca inteli­
gência e equivalería a sacrificar, insensatamente, os interesses da
grande causa à qual consagramos os nossos esforços.

77
Capítulo VI

O plano divino estudado no


conjunto da criação
Tendo estudado o plano divino na natureza de Deus e à luz da
Revelação, assim como na natureza do homem e na da sociedade,
parecería que o tínhamos considerado em todos os seus aspectos.
Resta-nos porém - para compreendê-lo na sua unidade magnífica -
comparar as disposições da Providência relativas à sociedade dos
seres racionais com as leis, por Ela estabelecidas, para o conjunto
da Criação.
Sendo essa sociedade o ponto culminante da obra divina, é
impossível que não encontremos numerosas analogias entre ela e
todas as outras partes dessa grande obra. Deus não podería deixar
de^estabelecer, entre todos os elementos do seu edifício, uma pro-
porção perfeita que manifeste, pela unidade do seu plano, a unida­ I
de da causa que o construiu.
A unidade desse plano Já o vimos, aparece na lei fundamental
segundo a qual todos os seres criados devem reproduzir,~cada um
consoante a sua medida, a_perfçição_in.fjmla_do_Criador. Essa lei
suprema, também já o vimos, encontra na sociedade espiritual a sua
realização suprema.
Devemos descer, agora, às principais aplicações dessa lei, ou
seja, às leis particulares que regem a criação material, para aplicá-
las, depois, à Igreja. Será, então, mais fácil compreender o conjunto
do plano divino, e daremos mais um passo na demonstração da tese
que é objecto deste livro.

79
1. Como pode a Criação manifestar a beleza divina?

A Criação pode manifestar a beleza de Qeus reproduzindo em


graus diversos os dois elementos constitutivos dessa beleza soberana.
A beleza é a unidade na variedade. Omnis pulchritudinis forma
est unitas, disse Santo Agostinho. Com efeito^a unidade, ao reunir
a&perfeições que por efeito da dLvisão-estay.am_dirninuídas,,faz com
que umas perfeições realcem as outras, e aumenta o seu mútuo
poder de atracção. A unidade é, pois, a forma que torna belo e amá-
yel^aquilo que, sem ela, não atrairía nem admiração nem amor. Ela
é o elemento principal da beleza, enquanto que a variedade é ape­
nas a matéria e, por conseguinte, o seu elemento inferior.
Mas poderemos aplicar a Deus esta definição de beleza? Sem
dúvida, porque em Deus a variedade infinita alia-se à infinita unida­
de. Deus compendia em si todas as verdades, forças, tendências, pro­
priedades ou realidades, existentes ou possíveis, que existem fora
d’Ele. Aliás, nada disso seria possível, se Deus não o possuísse em Si
em grau infinito. Há, portanto, em Deus uma variedade infinita.
J^no^entantoJDeusjtemapenaTuma^sfõsiâl^^iiâinêlliÊ sim­
ples: um só pensamento que não é distinto da sua essência; um só amor
-que nãoé distinto ngjn-da.,sua essência nem (^seu^pensarrierito. Em
JDeus, a variedadeJnJinita alia-se a uma unidade infinita. Longe de se
excluírem, pelo contrario, esses dois elementos atraem-se mutuamen­
te, porque o infinito só pode ser um, e porque, fora dele, não há nada
que ele não contenha. E, portanto, necessário que a variedade, quan­
do se toma infinita, se torne também unidade infinita.
Jís^cojsas criadas, não podendo ser infinitas, não podem tam­
bém reproduzir .essa perfeita união dos dois elementos djpbeleza.
Todas deverão, no entanto, ter dela alguns traços, já que todas
devem imitar a beleza divina. .Desde o minerâl^ujas partes têm
uma variedade quase só numérica e uma unidade quase de simples
justaposição) até ao puro espírito (que reúne numa unidade incom­
paravelmente mais perfeita a prodigiosa variedade das suas faculda­
des, conhecimentos e tendências) todos os seres criados se esforçam
à porfia por juntar esses dois elementos que parecem contraditórios.

80
0Sffedw de

sendo o próprio lugar de cada um desses seres na escala da Criação


determinado pela perfeição com que conseguem operar tal concilia­
ção maravilhosa. i
No ápice dessa hierarquia de.belezas criadas aparece a Igreja,
na qual a multidão imensa dos espíritos e a imensa variedade das
suas aptidões naturais e dos seus dons sobrenaturais se conjuga na
unidade inefável de um mesmo espírito, de uma mesma verdade, de
um mesmo amor, de uma mesma felicidade.
Esta lei da beleza, como as que estudámos precedentemente,
pode servir também para dissipar muitos dos pontos obscuros que
entrevemos ao contemplar a Igreja. Às vezes custa-nos a compreen­
der as enormes diferenças existentes entre os membros desse corpo
imenso. Uns são inundados de luz, outros parecem caminhar nas tre­
vas; uns são fortes, outros fracos; alguns são preservados do pecado,
outros livram-se dele apenas no último momento. Qual a razão
dessa diversidade? É que a diversidade constitui um dos elementos
da beleza da Igreja e, em consequência, um dos principais meios que
lhe foram dados para cumprir a grande lei da Criação.
Podemos dividir essas leis em duas grandes categorias, que cor­
respondem aos dois elementos constitutivos da beleza. As primeiras
são aquelas em virtude das quais as criaturas imitam a variedade
divina; as segundas aproximam a Criação da unidade divina.
Começaremos por estudar umas e outras em si mesmas, para
fazer em seguida a sua aplicação à Igreja.

2. As leis da variedade

A imensa variedade que admiramos na Criação resulta, sobretudo,


dexjnco condições que podemos considerar como outras tantas leis.
l*T'Pecorre da simples multiplicidade dos seres. Não podendo
Deus criar um só ser que representasse todas as suas perfeições,
supre de algum modo, pejo número das suas criaturas, a insuficiêm'
£Íaule_cada uma delas. Deus Pai gerou, desde toda a eternidade, o
Verbo, e esse Verbo único representa-O perfeitamente. A unidade é,

81
nessa produção interior, o resultado da perfeição. Mas, a partir do
momento em que Deus agiu fora de Si, a tendência à perfeição
impôs a lei da multiplicidade.
A multiplicidade por si só, embora manifeste o poder e a
fecundidade inesgotável do Criador, não conseguiría fazer fulgurar,
suficientemente, a variedade dos atributos divinos. Se todos os seres de
que o mundo se compõe fossem semelhantes, a sua própria multiplici-
^dade seria factor de monotonia. No entanto, se à multiplicidade dos
-indivíduos^.^Jynjar.ajdíferença das naturezas, a beleza do conjunto
tomar-se-á admirável. E temos, então, aQei da variedade. Veja-se a
Criação e contem-se, se for possível, as espécies diferentes de minerais,
de vegetais e de animais. Em tal observação, apenas ficaria incluída a
Terra, que é um dos menores planetas, e entretanto já o nosso pensa­
mento estaria sobrecarregado pela variedade que se oferece ao nosso
olhar. O que aconteceria se fosse possível percorrer todas as estrelas
semeadas pelo espaço como grãos de areia e se, para além do mundo
dos corpos, fosse possível contemplar o mundo dos espíritos, com o
sem número de espécies de seres inteligentes que o compõem?
ÇJy ,Ldjtosxontrastes harmônicos. A multiplicidade das cria­
turas é tanto mais maravilhosa quanto a diversidade é levada até a
uma espécie de oposição. “Considera assim - diz o filho de Sirá -
elodas as obras do_ Altíssimo, sempre duas a duas, e uma oposta à
.outra” (Ecli 33,15)^O-unLvexso c um grande contraste, composto de
contras.tesjnen.Qies. O grande contraste é a oposição entre o mundo
> dos corpos e o dos e.spíritQS, tão cheios de analogias como de dife­
renças. De um lado simplicidade, do outro variedade; de um lado,
poder de agir internamente pela inteligência e pela vontade; do outro,
acção exterior pela atracção ou pela repulsa. E em cada ordem de
coisas, em cada indivíduo, quantas oposições e quantos contrastes!
Nos corpos celestes, duas forças, uma centrípeta e outra centrífuga;
nos minerais, a coesão das moléculas, contrabalançada pela sua
mútua repulsão; na.eleclriçjdade, dois pólos contrários; nos seres
vivos, a riu pia organização dos sexos; nas plantas, o.dupjojnpyimen-
to das suas xaízes e dos seusjramos; nos animais, os contrastes de
estrutura e de movimento, que se conjugam em oposições bizarras de

82
0' dz> Jfauj nzz jfâjâfrúz

instintos, de movimento e repouso, de CQnservação e destruição; nas


inteligências racionais, o movimento de análise e de síntese; nas von­
tades livres, o amor aos outros e o amor a si. Contrastes nos dias e nas
estações, nos temperamentos e nos^aracteres; em toda a parte, a varie­
dade levada até à oposição, a qual só contribui para realçar a beleza.
4a - Lei da hierarquia. Aumenta ainda a variedade da obra divina
a hierarquia admirável formada pela diversidade de perfeição das par­
tes que a compõem. Essa hierarquia nota-se, antes de mais, no mundo
espiritual, que é superior ao material. No mundo dos espíritos, as hie­
rarquias angélicas estão subordinadas umas às outras. No mundo-_dos
corpos, temos o reino animal - que pelo homem toca nos espíritos - e
que tem abaixo de si o reino vegetal, seguido do reino mineral que, por
sua vez, toca no nada pelo átomo. Nesses reinos, há gêneros mais ou
menos perfeitos, compostos de espécies diferentes^sendo a mais ele­
vada aquela que toca no gênero superior e a mais imperfeita aquela,
que em quase nada se diferencia do gênero jnferior. Enfim, em cada
uma dessas espécies, há indivíduos superiores aos outros, pelo desen­
volvimento mais completo das propriedades das suas espécies.
.5ay- A maravilhosa gradação existente entre as diversas partes
da Criação aparece igualrnenTê~nos diversos estados pxlQS-jqiiais--
jpassa cada um dos^seres, que, compõem esse grande todo. Temos,
aqui, a. lei do progresso.'Este, quando contido em justos limites, é
uma verdade incontestável. Tudo o que vive na terra começa por um
germe imperceptível que se desenvolve pouco a pouco e só atinge a
sua maturidade depois de passar por uma série de fases. À própria
Terra parece ter sido sujeita a essa lei, porque, se crermos nos dados
revelados pelas pesquisas geológicas, a sua existência atravessou
períodos sucessivos, tendo cada um aperfeiçoado o anterior.

3. As leis da variedade aplicadas à Igreja

, Todos esses elementos de variedade se reflectem na Igreja.


\loíy Quem poderia contar a infinidade dos seus membros? Não
falamos dos anjos, cujo número incomensurável nos é desconhecido,

83
‘í Vi

mas apenas dos homens. Quantos a Igreja já regenerou no seu seio


e enviou para o Céu! Quantos justos na Lei antiga, seja no judaísmo,
seja até mesmo na gentilidade! E na Lei nova, quantos adultos ino­
centes ou penitentes! Quantas crianças falecidas depois do baptis­
mo! E o que nos impede de crer que no futuro o número dos eleitos
não seja ainda muito maior?
Nessa multiplicidade imensa, quanta diversidade! Diver­
sidade de r^ças, de idéias, de cultura intelectual de tendências, de cos­
tumes. Inutilmente se buscarão, entre os mais perfeitos imitadores do
Modelo divino, dois homens perfeitamente iguais. Todos ps santos se
assemelham a Jesus Cristo, segundo o grau da sua santidade, mas
mesmo aqueles que iguãlfnente se parecem com o divino Exemplo,
não são perfeitamente parecidos entre si. Por outro lado, cada século
tem na Igreja a sua característica própria, cada doutor tem o seu méto­
do, de^ensino, cada pontífice tem a sua maneira de governar, cada país
têID-Q^se.usxostumes e toda essa diversidade coexiste perfeitamente
com.a UBidad^do^dogma^da moral e da disciplina^
■ 3o -^A diversTdaclc não se detçm?aí/Na lgreja. como na Criação,
ela vai até à oposição, sem detrimento da concórdia. Com efeito,
quantos contrastes no seio dessa unidade divina! tendência à fé cega
nuns e à investigaçãojacional noutros, amor ao movimento entre os
povos bárbaros, amor ao repouso nas sociedades civilizadas. Até nos
santos encontramos oposições de caracteres, porque Há uns com mais
bonomia, outrosjnaisjrígidos; uma virtude que tende a concentrar-se
e outra que tende a difundir-se. uma que brilha pelo ardor, sempre
pronta a avançar, e outra que se distingue pela.prudência, medindo
todos os passos..gomo o homemjndlvidual, a Igreja é composta por
mna alma, que é o Espírito de Deus, e por um corpo, que é a huma­
nidade. Ela é, ao mesmo tempo, visível e invisível e, nas suas insti­
tuições, na sua pregação, no seu governo, nos seus sacramentos, esses
dois elementos se encontram constantemente interligados. Pelo seu
espírito, ela participã na eternidade e imutabilidade divinas; pelo seu
corpo, está sujeita a todas as vicissitudes da fraqueza humana.
4o - A ordem hierárquica está admiravelmente presente na
Igreja Católica. E como não ver aí a marca evidente do selo divino?

84
0 de Jfaaj /uz

Desde o Papa, que imprime o movimento ao corpo inteiro, até ao


último dos clérigos, que maravilhosa gradação de ordem, de jurisdi­
ções, de movimentos! E em cada igreja particular, em cada casa reli­
giosa, encontramos hierarquias. Como se torna mais bela a ordem
geral quando resulta dessas ordens particulares!
5o - Resta ainda considerar o último grau de variedade.
Pertencerá igualmente à Igreja a variedade progressiva e será ela
compatível com a sua origem divina? Se considerarmos o elemento
divino da Igreja, a lei do progresso não pode ter aí nenhuma aplica­
ção. O mesmo se pode dizer a respeito da verdade, cujo depósito lhe
foi confiado, ou da graça, da qual é dispensadora. Na sua parte supe­
rior, composta por puros espíritos, a Igreja só parece ter progredido
no sentido de que os anjos, submetidos a uma prova, mereceram
vencê-la por um acto livre. Esses puros espíritos são, na Igreja, o que,
no mundo físico, são os corpos celestes que recebem, num só instan­
te, todo o seu fulgor. Para eles, como para nós, a perfeição foi uma
coroa, mas para conquistar tal coroa bastou-lhes um combate. Mas a
situação é diferente para a parte humana da Igreja, depois da queda
de Adão. Este foi iluminado como um sol desde o primeiro instante
da sua criação e, se tivesse sido fiel, ter-nos-ia transmitido a luz sobre­
natural ao transmitir-nos a vida. Mas pecou e, pela sua prevaricação,
apagou essa luz dada de forma tão liberal e gratuita. A partir de
então, Deus quis que ela fosse conhecida na terra somente por graus.
JEssa_é_actualmente a lei da Igreja, que está inserida^em virtude j

^a sua parte_humana,.na condição das coisas terrestres que atingem


a sua perfeição ao longo de sucessivos acréscimos. O dia sobrenatu­
ral desenvolve-se como o dia natural. Teve uma longa aurora de
milhares de anos que precedeu a aparição do sol divino. Quando o
sol da verdade apareceu, não mostrou logo todos os seus esplendo­
res. Dois mil anos se passaram e ele ainda não atingiu o meio-dia. i
Quantas regiões existem no horizonte terrestre onde os seus raios
ainda não chegaram!
Essa lei do crescimento sucessivo e do progresso não se apli­
!
ca apenas à extensão da Igreja, mas também à manifestação da
sua doutrina. O longo caminho percorrido para chegar à defini-

85
i
ção dogmática da Imaculada Conceição, é uma prova fulgurante
desta afirmação.
Poderiamos demonstrar que, em relação à santidade, a Igreja
pode ter um crescimento ainda mais glorioso do que o que resulta
da manifestação mais explícita dos seus dogmas. Mas não será
necessário para entendermos as analogias impressionantes que
neste domínio a aproximam das outras obras de Deus. Irão causar-
-nos maior espanto a lentidão do seu crescimento e os limites estrei­
tos em que foi encerrada durante tanto tempo. Deus, que viu fra­
cassar o seu primeiro desígnio de bondade, por causa da revolta do
homem, quis acomodar o seu segundo plano à nossa fraqueza e dar
ao gênero humano, na própria lentidão dos seus progressos, uma
dura mas necessária lição de humildade.
Aqui levanta-se uma questão: na terra, a lei do declínio acom­
panha sempre a lei do progresso. Tudo o que atinge a sua perfeição
por graus, dela se afasta por graus semelhantes. Acontecerá o
mesmo com a Igreja? Para responder a essa pergunta, é necessário
distinguir na Igreja vários elementos, como já fizemos atrás: o ele­
mento divino, que é a sua alma, e o elemento criado, que forma o
seu corpo. Como o elemento divino em nada está sujeito à lei do
progresso, não pode, do mesmo modo, ser sujeito à lei do declínio.
A Igreja ensinará sempre a mesma verdade e conferirá sempre a
mesma graça.
Porém, o elemento criado - o corpo da Igreja - será susceptível de
declínio, já que também é susceptível de progresso? Isso dependerá da
vontade livre das almas que constituem esse corpo divino. Se elas qui­
serem unir-se inviolavelmente ao Espírito que as anima, e aceitar com
docilidade a sua influência, participarão da sua inviolabilidade e da sua
imutabilidade; e, depois de terem atingido o crescimento pleno, passa­
rão à morada da imortalidade onde o declínio não existirá.
Mas as almas que, por voluntária infidelidade, colocarem obs­
táculos ao domínio do Espírito Santo, poderão, depois de ter pro­
gredido algum tempo, entrar em declínio e chegar assim até à morte.
3
Todos os dias se verifica em muitas almas esta triste sorte, que foi
também na história o destino de muitas sociedades. Aceitai am com

86
0 &eâw de fejuí fê/veto /ia

entusiasmo a vida celeste que lhes trazia a Igreja, cresceram sob a


sua influência e realizaram progressos brilhantes, mas continham
em si elementos mórbidos que a Igreja não conseguiu abafar intei­
ramente. Infelizmente, esses princípios funestos desenvolveram-se e
a vida divina foi diminuindo até se extinguir.
E o que pode acontecer, ainda, a muitos povos que a Igreja,
hoje, acolhe no seu seio. Contudo, ela própria não decairá jamais,
mas continuará até ao fim dos séculos a acrescentar novos membros
àqueles que no Céu já gozam da plenitude da vida. E, quando o seu
crescimento tiver terminado, será a vez do seu divino Chefe, Jesus
Cristo, vir para julgar os vivos e os mortos.

4. As leis da unidade

Acabámos de aplicar à Igreja as leis em virtude das quais a


Criação imita a infinita variedade da essência divina. Mas a variedade,
já o dissemos, é apenas o elemento inferior da beleza. O que constitui
propriamente a beleza, o que lhe dá a forma, é a unidade. E a unidade í
divina resplandece em toda a Criação. Veremos agora como a unida­
de resplandece na Igreja, ainda com mais fulgor do que a variedade.
1 - Lei da continuidade. A unidade da obra de Deus ressalta
desde logo da inexistência de qualquer interrupção entre as diferen­
tes partes. Há unidade na continuidade e na coesão. O universo
forma um grande todo, composto de partes mais ou menos subtis,
mas nas quais o vazio absoluto não tem lugar. A terra toca na água,
a água no ar, o ar no éter, e assim todas as partes agem e reagem
continuamente umas sobre as outras. Dessa forma, um filósofo pôde
dizer, sem cair no absurdo, que nenhum átomo se movia na extre­
midade do universo sem que a repercussão do seu movimento não
se fizesse sentir até à outra extremidade. Na Igreja, encontramos
essa dupla continuidade de existência e de acção. Não é tanto no
espaço, mas sobretudo no tempo, que devemos procurá-la, porque a
extensão própria às coisas espirituais é a da duração. Tente-se
encontrar, se possível, em toda essa extensão, um só momento que

87
esteja vazio da existência e da acção da Igreja. A história de todas as
seitas conduz-nos a um momento em que elas começaram a existir,
havendo entre esse começo e o início do mundo um abismo. A Igreja
Católica, pelo contrário, começa com o próprio acto de Deus e
nunca sofreu interrupção. Criada com os anjos, antes da criação do
mundo material, desceu à Terra, logo que a Terra foi preparada
para a receber. Encheu os séculos com os seus combates e o último
dia do mundo será o do seu triunfo. E quem nos revelará o entre-
cruzamento de influências que nesse imenso corpo fazem circular a
vida divina de um membro para outro? Em cada graça que, nos nos­
sos dias, um cristão recebe, quem poderá detectar a parte das épo­
cas passadas que cabe a outros cristãos? Que bem podemos fazer,
hoje, que não possa e não deva ter influência até ao fim dos séculos?
2 - A segunda das leis relativas à unidade é a lei das transições.
E o complemento da lei da continuidade. Entre as diferentes partes
que se tocam, reina uma perfeita harmonia que exclui os choques
violentos. Nos climas, assim como nas estações, o calor sucede ao
frio e o frio ao calor, por acréscimos ou diminuições suavemente
dispostos. Entre a noite e o dia interpõe-se a aurora, tal como o cre­
púsculo se interpõe entre o dia e a noite. O progresso e a decadên­
cia, que vemos em tudo o que está na Terra, realizam-se de forma
igualmente gradual. Nem sequer a doença, embora desordenada na
sua essência, escapa a esta lei. A hierarquia dos seres apresenta-nos
uma gradualidade igualmente impressionante. Desde o macaco, cuja
estrutura orgânica se assemelha à do homem, até ao zoófito, que
tem de vegetal quase tanto como de animal, os gêneros e as espécies
sucedem-se numa gradação perfeita. Natura nihil facií per saltum
(a natureza não procede por saltos), disse um grande naturalista.
Quanto mais se fazem descobertas no campo da história natural,
mais fácil fica preencher os vazios que deixam entre eles os gêneros
anteriormente conhecidos.
Aplicam-se essas leis também à Igreja? Quem poderia duvidar?
Desde Adão até Jesus Cristo, a progressão na marcha da verdade foi
lenta mas ininterrupta. Enquanto as promessas feitas aos patriarcas
se tornavam cada vez mais claras, as virtudes que eles piaticavam

88
& &edw de JeMJ mz effzj/dzdz

revelavam ao mundo com maior fulgor, a santidade d’Aquele que os


enviava. O povo de Deus formou-se lentamente e difundiu entre as
nações a luz de que era depositário. O mundo foi assim preparado de
modo gradual para receber o Salvador. Depois da sua vinda, o pro­
gresso da Igreja também se deu por transições suaves. Foram as here­
sias, essas grandes desordens da inteligência, que numa sucessão sur­
preendente, acabaram por causar o desenvolvimento dos dogmas
católicos: primeiro, os referentes à Santíssima Trindade, depois os
relativos ao Homem-Deus e à sua graça, e, finalmente, os concer­
nentes à Igreja. Com raras excepções, a santificação das almas reali­
za-se segundo as leis de iluminação da sociedade inteira. Em toda a
parte, vemos realizar-se, melhor ainda na Igreja do que no mundo
físico, a palavra do sábio “ela estende o seu vigor de uma extremida­
de à outra e governa todas as coisas com suavidade” (Sab 8,1).’
3 - Leis da proporção. O sábio revela-nos outras leis igual­
mente destinadas a fazer brilhar a unidade da obra divina, quando
diz ao Criador, “dispusestes tudo com medida, número e peso” (Sab
11, 20). Segundo a explicação de Santo Agostinho, confirmada por
São Tomás (Suma Teológica, I, q. 5 a. 5), o número aqui relaciona-
se com a gradação entre as espécies que se sucedem como unidades
na série numeral. É o que acima chamamos lei das transições. A medida
indica a perfeita proporção, em virtude da qual as coisas criadas se
relacionam umas com as outras. Pode indicar também a simetria,
que causa a unidade entre os contrastes. A proporção é a medida e
a unidade das relações; a simetria é a medida e a unidade das oposi-
ções. Uma e outra impressionam o nosso olhar, para onde quer que
o dirijamos. Em toda a parte, causas semelhantes produzem efeitos
semelhantes. O movimento comunicado por um corpo está na razão
directa da sua massa e na razão inversa do quadrado da distância; a

1) A lei das transições e a lei dos contrastes, foram desenvolvidas de maneira notá­
vel pelo P. Blanc na sua introdução à História Eclesiástica. Utilizamos aqui
várias das suas considerações. Contudo, julgamos não dever dar a tais leis a
importância que ele lhes atribui. Cremos que são apenas aplicações das duas leis
gerais da unidade e da variedade, as quais se unem à lei primeira da imitação da
beleza divina pela Criação.

89
vida comunicada por um ser vivo é proporcional ao vigor de quem a
dá; a alma forte difundirá a força em torno dela como a lareira
difunde o seu calor...
A aplicação dessa lei à Igreja exige, evidentemente, certos cui­
dados, pois sendo Deus a única causa dos efeitos sobrenaturais pro­
duzidos pela pregação e pelos sacramentos, quer que os seus minis­
tros se consciencializem de que são simples instrumentos das mara­
vilhas que realizam. Um sacerdote pecador poderá perdoar pecado­
res, um infiel poderá validamente baptizar outro infiel. Mas o referi­
do cuidado não impede que a lei das proporções tenha na Igreja uma
ampla aplicação. Os sacramentos têm o poder de conferir a graça,
mas conferem-na segundo o grau das disposições de quem os recebe.
4 - A lei da simetria é tão visível como a da proporção.
Vemo-la em todas as ordens dos seres a acompanhar a lei dos con­
trastes. No reino mineral, vemos, por exemplo, como os ângulos
opostos uns aos outros são perfeitamente iguais. Os ramos e folhas
da planta, as pétalas da flor, os matizes da corola, a estrutura do animal,
as próprias faculdades da alma - na qual a inteligência e a vontade,
apesar da sua diferença, se correspondem tão admiravelmente - as
propriedades dos membros e dos rostos, numa palavra, toda a
ordem do Universo mostra-nos o Criador por assim dizer a brincar
no meio das coisas, fazendo-as proclamar a sua unidade; ludens in
orbe terrarum. Era impossível que uma característica tão importante
da obra divina não se encontrasse na Igreja. Basta um pouco de
atenção para a descobrirmos tanto no conjunto como nos episódios
da sua história. Poderemos, quiçá, deduzir mesmo dessa característica
tão visível no passado da Igreja um argumento poderoso para pres-
sagiar o seu futuro. Jesus Cristo surge no meio dessa história como
o centro com o qual se relaciona tudo o que O precedeu e tudo o que
O seguiu. Assim como a Sinagoga recebeu a missão de representar,
pelas vicissitudes que atravessou, as diversas etapas da vida terrena
do Salvador, assim também a Igreja tem a missão de reproduzir em
grande escala essa mesma vida, nas suas principais circunstâncias.
A Sinagoga, Jesus Cristo, a Igreja, três partes de uma mesma história;
em cada uma dessas partes, divisões análogas que corresponderão

90
&S/Zeâw fejzzj /za ^jtórzà

umas às outras. Nascimento obscuro, segundo o mundo, e, entretan­


to, assinalado por milagres; perseguições dos gentios, libertação
milagrosa, período de grande expansão mas também de grandes
lutas, crise suprema, seguida da Ressurreição e de um triunfo glo­
rioso, tais são os actos do drama já representado por duas vezes na
Terra e pela terceira vez a decorrer perante os nossos olhos. No papel
das diversas personagens do drama também surpreendem algumas
analogias; todas se relacionam com a personagem principal; as suas
vidas são a prefigura d’Ele ou a sua reprodução simétrica. Os justos
da Lei antiga são prefiguras, os justos da Lei nova são reproduções,
mas uns e outros estão feitos à medida do modelo divino: “dispu-
sestes tudo com medida”.
5 - Ainda nos falta referir as duas leis que melhor destacam a
unidade da obra divina: a lei da monarquia e a lei da sociedade, a
unidade de princípio e a unidade de fim. Já admirámos a subordina­
ção que Deus estabeleceu entre todas as partes da sua obra, reco­
nhecemos que o plano divino era essencialmente hierárquico, mas,
nessa hierarquia dos seres, consideramos mais a diversidade do que
a unidade. O que faz a unidade da hierarquia é a monarquia.
Agradeçamos à ciência porque, em virtude dos seus progressos
recentes, nos permitiu compreender muito melhor no universo este
sinal divino. Sem dúvida, na proporção das suas observações, ela já
tinha podido comprovar essa unidade de princípio, apresentando o
sol como rei do nosso sistema planetário, imprimindo movimento a
um grande número de corpos celestes que arrastam, por sua vez,
satélites mais ou menos numerosos. Há poucos anos, foi possível
conhecer os movimentos das próprias estrelas. Ora, todas as obser­
vações feitas até agora levam a reconhecer um centro único que
imprime o movimento à Criação inteira. O que a ciência apenas
começa a suspeitar no mundo dos corpos, a Igreja já oferecia há
muito tempo, para nossa admiração, no mundo dos espíritos. Na Terra,
ela mostra-nos um Pontífice único, que imprime movimento ao epis-
copado e, pelo episcopado, ao sacerdócio e, pelo sacerdócio, aos mais
humildes fiéis. É a imagem perfeita do sistema planetário. Mas nós
sabemos que essa Igreja visível da terra forma apenas uma parte

91
Jfártri ^iartuère

mínima do imenso exército dos eleitos. Se quisermos conceber a


ordem e a unidade desse exército santo, será preciso elevarmo-nos
em pensamento até ao Céu, será necessário ver Jesus Cristo - Deus
e Homem, espírito e corpo - nas suas mais inacessíveis profundida­
des, reunindo na unidade da sua Pessoa, o mundo dos espíritos e o
mundo dos corpos à sua divindade, e dando pelo seu poder o impul­
so ao mundo dos corpos e ao mundo dos espíritos. Portans omnia
Verbo virtutis sua et ipse est ante omnia et omnes in ipso constant. Eis
a monarquia suprema; eis a unidade suprema da Igreja, da humani­
dade e de toda a criação.
6 - Essa unidade faz com que todos esses corpos e todos esses
espíritos tendam para o divino Chefe da Igreja - seu princípio
comum - recebendo d’Ele o seu movimento e tendendo igualmente
para Ele, seu fim comum. É o que designamos por unidade da socie­
dade. Já no mundo dos corpos, podemos ver o esboço dessa unidade
de tendência, porque esses seres, considerados em mútua subordi­
nação, e diferentes nas suas naturezas, estão também subordinados,
de igual maneira, ao encadeamento das suas acções. O meio ambiente
serve para a conservação do reino mineral e este trabalha, em união
com o meio, para a nutrição e desenvolvimento do reino vegetal.
Os vegetais, por sua vez, unem-se aos agentes inferiores para contri­
buírem ao crescimento e à multiplicação dos animais. Enfim, todos
os reinos juntos se unem para servir o homem e para satisfazer todas
as suas necessidades. O homem apresenta-se, então, aos nossos olhos
como o fim da natureza visível, constituindo a unidade dessa parte da
Criação. Contudo, essa união é ainda muito imperfeita, porque os
homens são incontáveis e muito diferentes entre si, mas, se essa mul­
tidão não fosse conduzida à unidade, a Criação não seria a pirâmide
magnífica que realmente é. Seria apenas um cone truncado e imper­
feito. Por outro lado, como pode o homem ser o fim último da
Criação, se ele não é o seu primeiro princípio? Como podem os seres,
que nada recebem dele, tender para ele?
É a Igreja que nos vai mostrar a unidade que faltaria à sociedade
dos seres, se não elevássemos os nossos olhares acima da humani­
dade. É ela que vai dar à pirâmide a sua coroa divina. Divina, sem

92
0 de fejaj /uz Jfójfo/úz

dúvida, mas também humana. O que faz a incomparável perfeição


da ordem presente é o próprio Deus, enquanto fim de todos os
seres, pois tal decorre da própria essência divina. Mas, se Deus tives­
se permanecido envolto no esplendor da sua essência, a Criação, ao
tender para Ele não teria n’Ele o seu fim e ficaria, portanto, priva­
da da sua coroação e da sua perfeição. Não é o que acontece hoje.
Deus - fim essencial dos seres e seu princípio único - comunicou à
santa humanidade do Salvador a plenitude da sua divindade e, em
consequência, comunicou-lhe também todos os seus direitos de pri­
meiro princípio e de fim último. Desde então, a unidade é perfeita e
nada mais falta à obra divina. Todas as coisas visíveis pertencem à
humanidade, a humanidade pertence à Igreja, a Igreja pertence a
Jesus Cristo e Jesus Cristo pertence a Deus. “Tudo é vosso - disse
São Paulo aos primeiros membros da Igreja - mas vós sois de Cristo
e Cristo é de Deus” (1 Cor 3, 22-23).
O esboço que acabámos de traçar das relações entre a socieda­
de cristã e o plano geral da criação é, sem dúvida, muito incomple­
to, mas equivale, desde já, a uma demonstração categórica da divin­
dade da Igreja. Com efeito, se Deus não fosse o seu Autor, haveria
alguém mais sábio do que Deus que podia ufanar-se de ter dado à
obra do Omnipotente aquilo que constitui a sua mais alta perfeição.
Mas esta demonstração, que surge com tanto fulgor desta sim­
ples exposição, não é o fim principal que temos em vista ao escrevê-
la. Quisemos, apenas, descrever, no seu conjunto, os desígnios de
Deus relativos à grande instituição cuja história vamos estudar. Falta-
nos, agora, conhecer o plano do seu inimigo infernal. Tiraremos,
depois, as conclusões relativas à primeira parte do nosso livro.

93
Capítulo VII

O plano satânico
O estudo que fizemos do plano divino facilitará o conhecimento
do plano satânico, pois este é simplesmente a contraposição daquele.
O chefe dos espíritos rebeldes esforça-se por vingar na Terra a
derrota que sofreu no Céu. Quis colocar-se no lugar de Deus e ser
adorado pelas legiões angélicas. Colocado acima delas pela perfeição
superior da sua natureza e pela excelência dos seus dons naturais,
acreditou poder utilizar, contra Deus, essa dignidade que d’Ele tinha
recebido. A sua tentativa insensata fracassou. A maior parte dos
anjos preferiu submeter-se ao seu Criador, em vez de se revoltar.
Em lugar do trono que tinha ambicionado no Céu, Lúcifer
obteve apenas a lúgubre realeza dos infernos. O poder que tinha
sobre o resto da criação foi-lhe retirado, e só a Terra não ficou
inteiramente fora do seu domínio. Foi-lhe permitido vir provar os
seus habitantes. É por aí que o arcanjo maldito espera poder vin­
gar-se do seu vencedor. Se não pôde reinar sobre os anjos, pelo
menos tentará reinar sobre os homens, e não quer que os filhos de
Adão subam aos Céus para preencher os lugares que a sua rebe­
lião deixou vazios. O objectivo de Satanás consiste, pois, em des­
truir o plano divino e perturbar toda a economia da Providência
relativa à humanidade.
E o que indica o nome Satanás, que significa adversário. Depois
que o nome de Lúcifer, que tinha no Céu, se tornou para ele a mais
humilhante das contra-verdades, não mereceu outro nome senão o
que deriva da sua revolta. Só tem luz, energia e poder para se opor
ao Bem, e lutar contra o divino Amor. Ele é somente Satanás.

95
Contudo, só por etapas consegue aproximar-se da destruição do
plano divino. Procura degradar a natureza humana, tanto quanto
Deus se esforça por exaltá-la. Uma vez obtido esse resultado, nada
mais poderia impedir Satanás de realizar completamente as suas
metas e de receber, no lugar de Deus, a adoração dos homens.
Entravar o plano divino, destruir esse plano e executar uma con-
trafacção do mesmo, são as três fases em que se resume o plano satâ­
nico, que devemos conhecer, se quisermos compreender a história.

1. Entravar o plano divino

A primeira vantagem que Satanás procura obter contra o


Altíssimo é impedir a execução dos seus desígnios de misericórdia
relativos à humanidade, arrancando-lhe os instrumentos pelos quais
esses objectivos deveríam ser realizados, ou, pelo menos, colocando
obstáculos à acção desses instrumentos.
Com este objectivo, vê-lo-emos atacar, violentamente, todos
os que foram chamados por Deus para exercer sobre os seus seme­
lhantes uma grande influência. Ao lado das marcas de uma parti­
cular protecção de Deus, vemos, na vida de todos os santos, os
efeitos bem visíveis da malícia de Satanás. A Providência assim o
permite para aumentar a humildade e o mérito dessas almas pre­
destinadas e para lhes fazer sentir melhor a necessidade da graça.
O preternatural diabólico caminha, assim, quase sempre, a par do
sobrenatural divino. Até nas mais evidentes comunicações celes­
tes, os servidores de Deus sempre deverão recear as ilusões postas
pelo anjo das trevas.
Foi o que o Divino Salvador quis fazer compreender a todos os
que mais tarde deveria chamar para cooperar na sua obra, quando
permitiu que o demônio se aproximasse da sua pessoa sagrada para
O tentar. As armadilhas, que o espírito mau colocou ao Homem-
Deus, dão-nos uma boa ideia dos meios que ele põe em acção para
perder ou, pelo menos, enfraquecer os que poderíam prestar um
grande auxílio aos desígnios da Providência Divina.

96
0 dó' flw.f

O demônio começa por oferecer-lhes bens sensíveis. Se tem


êxito nessa primeira tentativa, conseguirá uma grande vitória, pois a
alma dotada das mais eminentes faculdades de nada é capaz, se perder
as suas energias com objectos indignos dela. O seu discernimento
obscurece-se e a sua vontade torna-se débil; em vez de dominar as
outras almas, deixa-se dominar pelos sentidos. São inúmeros os
homens chamados aos maiores destinos, que se deixaram prender
nessa armadilha.
Satanás procura cativar aqueles que venceram a atracção dos
bens sensíveis, seduzindo-os através do prestígio do mando e do
incenso dos elogios, sentimentos que com facilidade embriagam o
coração humano. Essa sedução é especialmente perigosa na ordem
espiritual. Esclarecer e dirigir as almas mais santas, ser objecto da
veneração e do amor dos corações mais puros e generosos, é estar numa
posição muito semelhante à que Lúcifer ocupava no Céu. Por isso, ele
estimula muitas vezes os mesmos sentimentos que fizeram cair o
arcanjo soberbo. De início, fará com que a vítima apenas procure a
autoridade para melhor servir a Deus; em seguida, levá-la-á a amar
essa vantagem em si mesma; e, finalmente, fará com que a considere
um bem privado, dirigindo todos os esforços para a sua aquisição.
Não é necessário mais nada para transformar o ministro de Deus em
seu inimigo, o anjo em demônio. E mesmo quando esse orgulho não
leva a uma ruína completa, interrompe necessariamente a comunica­
ção que a humildade manteria entre o amor divino e o seu instru­
mento. Aquele que podería ter atingido a honra mais sublime, se
tivesse procurado apenas a glória de Deus, condena-se à esterilidade,
a partir do momento em que começa a buscar a própria glória.
Em relação às almas que escapam desta última armadilha,
Satanás utiliza um artifício ainda mais subtil. Leva-as a confiar nas
suas próprias forças, nos impulsos do seu próprio espírito, em vez de
se manterem continuamente sob a dependência da acção divina.
Esse orgulho, que tende a negar a Deus o seu título de princípio pri­
meiro, não é menos criminoso nem menos funesto do que aquele
I
que leva a recusar o seu título de fim último; e não coloca um dique
menos intransponível às efusões da bondade divina.

97

s
A Deus nada custa realizar maravilhas em favor do homem, e
mediante ele. Contudo, quer Deus que tais maravilhas possam ser
atribuídas apenas a Ele e que o instrumento se apague para deixar
toda a glória da obra ao celeste operário. A partir do momento em
que o instrumento começa a confiar nas próprias forças e a desejar
uma acção independente, o poder divino abandona-o à sua fraque­
za. Satanás conhece bem essa realidade e, por isso, utiliza diaria­
mente o veneno da presunção para paralisar os servidores de Deus,
infelizmente quase sempre com êxito.
Tanto mais se esforça ele por lhes insuflar esse apego às próprias
luzes e à própria acção, quanto mais facilidade encontra em fazer
germinar dessa raiz amarga um fruto ainda mais amargo, ou seja, as
invejas, as murmurações e as ilusões, com o objectivo de precipitar o
homem na escravidão dos prazeres brutais. A natureza humana
encontra-se num tal declive que um ligeiro estímulo dos apetites é
quanto basta para, rapidamente, a fazer mergulhar nessa lama.
Temos aqui o primeiro e o mais fácil de todos os triunfos que
Satanás obtém contra os que conseguiu afastar de Deus. Leva-os a
mancharem-se de crimes que fazem corar a natureza e sujar a imagem
de Deus com as mais vergonhosas abominações. O que a natureza das
coisas já nos deixa adivinhar, confirma-o a história pelo seu testemu­
nho. Veremos a sociedade dos filhos dos homens, antes de cair na ido­
latria, entregar-se aos excessos da devassidão. A igreja de Satanás,
antes do Dilúvio, parecia ter como símbolo apenas a mais monstruosa
lubricidade. Mais tarde, acrescentou erros especulativos à mencionada
desordem prática, mas nunca abandonou as suas tradições infames.
Para manter os homens no seio da sua igreja, o espírito do mal tem um
recurso seguro. Utiliza o próprio instrumento que os devia elevar até
Deus, isto é, a necessidade do infinito. O animal, que não experimen­
ta essa necessidade, pára, logo que os seus apetites estão saciados.
Nunca ultrapassa os limites colocados pela natureza. Mas o homem,
impossibilitado de satisfazer fora da volúpia sensível a imensa necessi­
dade de felicidade que o atormenta, nunca conseguirá contentar-se
com os prazeres terrenos. Satanás serve-se, então, do próprio desejo
que devia unir o homem a Deus para acorrentá-lo ao pecado.

98
Mas o triunfo desse espírito mau ainda está longe de ser com­
pleto. O corpo está manchado e as faculdades sensíveis pervertidas.
No entanto, são, sobretudo, as faculdades racionais que se asseme­
lham a Deus. Portanto, é especialmente à perversão delas que o
demônio vai dedicar-se.
O desenvolvimento excessivo da actividade dos sentidos facili­
ta-lhe a tarefa, pois o amor aos objectos inferiores, faz diminuir as
energias para alcançar os bens espirituais, os únicos que têm pro­
porção com a sua dignidade.
A desordem dos sentidos começa por obscurecer a inteligên­
cia e impede-a de compreender a linguagem eloquente pela qual
a criação inteira proclama a glória de Deus. Ao invés de subir até
ao operário, chega-se apenas até à obra, ou só às aparências que
tal obra oferece aos sentidos. Assim, quem explorará, em proveito
próprio, a tendência, naturalmente religiosa, da alma humana não
será o Deus omnipotente que fez todas as coisas; serão poderes
múltiplos, e, por isso, mesmo imperfeitos, cujo culto enche a alma
de temor e impede os sentimentos virtuosos. Esses poderes são os
próprios demônios, que se fazem adorar sob o disfarce de forças
da natureza, para impor aos seus adoradores absurdas crenças e
práticas criminosas.
Daí nasce o fetichismo - a religião dos povos primitivos - que
se torna sedutora para a imaginação, sem ser capaz de iluminar a
inteligência e aperfeiçoar a vontade. Tais erros decorrem da desor­
dem dos sentidos.
Nas sociedades cristãs, habituadas à vida intelectual, o espírito
de mentira faz com que o erro nasça do orgulho e do espírito de
independência. A razão presunçosa pretende submeter às suas sen­
tenças a revelação divina, parecendo-lhe contrário à sua dignidade
acreditar sem compreender. O jugo do mistério incomoda-a e pro­
cura escapar-lhe, tanto no que se refere à Revelação como às ver­
dades naturais. Daí os mil sistemas que substituem afirmações divi­
nas por hipóteses contraditórias, experimentadas num dia e repu­
diadas no outro. Para evitarem o mistério, desembocam no absurdo
e, sob o pretexto de libertarem a razão, escravizam-na ao erro.

99
Existe, porém, um meio que o demônio emprega com o mesmo
sucesso para desviar as inteligências humanas. É a arte da adivinhação.
A sêde de conhecer é tão grande no homem, que ele tem muita difi­
culdade em resistir ao oferecimento que lhe é feito - em nome do espí­
rito da mentira - no sentido de lhe ser revelado o futuro ou de lhe
serem mostradas as coisas ocultas. Satanás só pode prever o futuro de
forma conjectural, mas conhece uma multidão de coisas que nos são
ocultas. Desde o começo do mundo, faz brilhar aos olhos dos impru­
dentes mortais, como uma miragem enganadora, o conhecimento des­
ses segredos. Muitos correm como cegos atrás dessas aparências vãs e,
ao invés das verdades que esperavam conhecer, saciam-se com ilusões.

2. Destruir o plano divino

Corrompidos os sentidos pelo excesso de volúpia, e obscurecida


a inteligência pelo erro, torna-se fácil a perversão da vontade. Pouco
resta para completar a obra de Satanás. Procurando os bens sensí­
veis, deixando-se arrastar pelas ilusões da imaginação, pelas especu­
lações presunçosas da inteligência e pelos atractivos da superstição, a
alma afastou-se de Deus e destruiu em si a imagem do Criador.
Porém, à medida que o homem adquire a consciência da sua revolta
e a ela adere, apaga-se o que resta da imagem divina, tornando-se
mais absoluta e irremediável a oposição entre a vontade humana e a
vontade de Deus. E para obter esse resultado que trabalha o espíri­
to do mal. Ele é, todavia, obrigado a proceder nessa obra com certa
prudência, pelo horror que muitas almas teriam se percebessem cla­
ramente a sua perversidade e pela facilidade com que voltariam para
Deus, se lhes fosse dado ver como estavam a afastar-se d’Ele. Essa
boa-fé a meias é a situação da maioria das vítimas do erro. Satanás
evita tirá-las desse estado. A sua táctica consiste em aumentar, gra­
dativamente, os atractivos do mal e em dificultar, progressivamente,
o seu regresso ao bem. Ele só revela o jogo na medida em que a von­
tade da vítima estiver presa no duplo jugo do afecto e do temor.
Ficará Satanás satisfeito quando tiver pervertido, dessa forma,

100
todas as faculdades do homem? Não o cremos. Até aqui, com efeito,
só vimos a acção da sua malícia sobre os indivíduos. Ora, à semelhan­
ça de Deus, ele não se contenta com o triunfo sobre algumas almas
isoladas, mas, sobretudo, com o triunfo sobre as sociedades, pois é aí
que vê a chave para a destruição do plano divino. Depois da destrui­
ção do Império Romano, Jesus Cristo adquiriu na Europa e, depois,
noutras partes do mundo, uma realeza social. Os povos, na sua exis­
tência pública,- e os indivíduos, na sua conduta privada, reconheceram
a sua soberania, e nem as violações frequentes da sua lei impediram
que a autoridade dessa lei fosse universalmente reconhecida.
Satanás viu com furor o estabelecimento do direito cristão que tan­
tas garantias preciosas ofereceu à acção benéfica da Igreja. Envidou,
pois, todos os esforços para o substituir pelo direito novo. Este propõe a
constituição de uma sociedade sem Deus, fundada, unicamente, sobre a
vontade livre dos homens e unida apenas pelos interesses temporais.
Para pôr esse direito no lugar do direito de Jesus Cristo, Satanás utilizou
todos os artifícios. Lisonjeou o orgulho dos governantes e, ao mesmo
tempo, o dos povos pela sedução da sua independência em relação aos
governantes. Seduziu os jurisconsultos, pela majestade do direito roma­
no; os cientistas, pela independência da ciência; os escritores, pela liber­
dade de expressão; e todos os homens, indistintamente, pelo deleite de
só dependerem de si próprios e de não reconhecerem outra autoridade
senão aquela que tiverem criado e que poderão destruir quando enten­
derem. No momento em que - com a ajuda de todos essas ilusões reu­
nidas - for possível colocar Jesus Cristo fora da lei e privar a Igreja de
todas as garantias exteriores, espera Satanás que as sociedades não con­
sigam resistir à sua influência. Terá então chegado o momento de dar à
sociedade divina o último assalto e de realizar o seu plano.

3. Executar a contrafacção do plano divino

Esse plano, já o dissemos, não consiste somente em obstar e


destruir o plano divino. O espírito do mal quer também executar em
proveito próprio uma contrafacção do plano divino.

101
Por muito degradadas que estejam as almas ou as sociedades,
elas não satisfarão o orgulho de Satanás enquanto a sua autoridade
não for reconhecida em lugar da de Jesus Cristo, e enquanto nas
almas a sua imagem não substituir a de Deus. O sonho do seu ódio
é arrastar os filhos de Deus como escravos, para poder na pessoa
deles insultar Aquele que o venceu. Contudo, precisa de mais.
Precisa, como Jesus Cristo, de apóstolos, de soldados, de confesso­
res, de padres e até de mártires. Ele disse: “Serei semelhante ao
Altíssimo'’. Quer a qualquer preço saciar na Terra essa ambição,
que não pôde satisfazer no Céu. Tudo o que Jesus Cristo fez pela
verdade e pela caridade, pretende ele fazer pela mentira e pelo ódio.
Antes da vinda do Salvador, tinha sido possível executar esse
desígnio apenas de forma muito imperfeita, já que o plano divino
não era ainda bastante conhecido pelo demônio. Já tinha ele, é
claro, à imitação do Deus verdadeiro, templos de sacrifícios, orácu­
los, mistérios, sacerdotes e adoradores. Mas, assim como a Igreja
verdadeira estava ainda apenas em esboço, também a igreja diabó­
lica não tinha recebido a sua última organização. Por outro lado,
nessa época os homens ainda não estavam suficientemente esclare­
cidos para chegar ao grau de perversidade necessário a Satanás para
a execução completa dos seus pavorosos objectivos. Os adeptos do
fetichismo e os idólatras só o reconheciam como deus porque não
conheciam o Deus verdadeiro e, por isso, o tirano infernal necessi­
tava de aderentes que se unissem a ele com inteiro conhecimento de
causa e que, conhecendo perfeitamente a Jeová, preferissem aderir
ao mal, devotando-se a ele de corpo e alma, para combater Aquele
que reina nos Céus. Até Jesus Cristo, ele reinou quase só pelo
temor, mas agora pretende ser servido com devoção e com ofereci­
mento de sacrifícios pela sua causa.
Mas como poderá suscitar devoção aquele que é o ódio perso­
nificado? Não é fácil compreender isto. Só o excesso de orgulho
pode explicar tal mistério. Quando o homem chega ao ponto de con­
siderar a obediência voluntariamente prestada a Deus como a pior
das infelicidades, fica capaz de se ligar a um amor aparente por
aquele que o leva à revolta e que procura ajudá-lo com todo o seu

102

k.
& a/íatoa aí Jfaai <êrtifto /za affíftorta

poder. O ódio à ordem produz, ao mesmo tempo, o ódio ao amor e o


amor ao ódio. É a perversidade completa. Do mesmo modo que a
santidade perfeita consiste em amar Deus até ao esquecimento de si,
a perfeita iniquidade consiste em amar o mal ao ponto de se sacrificar
pelos interesses dele. Eis o triunfo completo ao qual Satanás aspira.
A partir da vinda à Terra do Deus verdadeiro, começou o
demônio a sonhar com o seu próprio triunfo. Logo após a constitui­
ção da Igreja de Jesus Cristo, constitui-se a igreja de Satanás nas
numerosas seitas, que sob os mais diversos nomes se perpetuaram
até aos nossos dias. Desde então, começaram a ser executados os
ritos infames que, não tendo podido esconder-se completamente nas
trevas, nos são revelados pelos historiadores.
Todos os sacramentos de Jesus Cristo são parodiados indigna­
mente nessa liturgia lúgubre. A primeira condição a ser preenchida
é a doação completa e absoluta de si mesmo ao rei dos infernos, a
renúncia a Jesus Cristo, a Deus, aos Santos, à Igreja, ao Céu. São
empregues diversos sinais sensíveis para tornar o pacto mais invio­
lável. Tertuliano descreve-nos os rituais que eram utilizados no
século II, revelando que, já naquela época, nada faltava à contrafac-
ção diabólica dos mistérios cristãos. O próprio sacrifício eucarístico
era parodiado, havendo muitos motivos para crermos que outros
Judas se venderam a Satanás e colocaram ao seu serviço o poder
indestrutível que lhes conferiu a augusta Vítima dos nossos altares.
Por outro lado, Satanás procura copiar a hierarquia da Igreja de
Jesus Cristo, cujo poder conhece muito bem. Também ele estabele­
ce poderes diversos que sobem de grau em grau até ao chefe supre­
mo que governa a sociedade inteira e que dirige o apostolado do
mal, assim como o Vigário de Jesus Cristo dirige o apostolado do
bem. Dos dois lados há, por cima do chefe visível, um chefe invisível
cujas inspirações sustentam e animam os seus discípulos. É verdade ;
que Satanás não conseguiu ainda imitar a perfeita unidade da Igreja |
de Cristo. Mas, à medida que as dificuldades de comunicação entre I
os diferentes povos foram vencidas pelas descobertas científicas, e
1
que o plano de Satanás se tornou mais compreendido pelos seus
seguidores, facilitou-se a acção uniforme e conjugada da perversidade.
I
103

i
Este exército também aprendeu hoje uma disciplina que antes
lhe era desconhecida. Obedece, de facto, com espantosa pontuali­
dade a palavras de ordem, ora ficando imóvel, ora retrocedendo, ora
avançando com ímpeto furioso. Todos os meios de que dispõe dis­
param ao mesmo tempo e atacam sem descanso os alvos que lhes
sào designados. De onde vêm os recursos imensos de que dispõe
esse exército? Quem poderá revelá-lo? Esses recursos, porém, não
nos devem surpreender, se nos lembrarmos que, em todos os luga­
res onde se desfralda o estandarte da revolta contra os direitos
humanos e divinos, houve no passado, e auspiciamos que haja tam­
bém agora, homens a acudir em massa, determinados a dar anima-
damente as suas vidas pelo triunfo de Satanás. Se este tem, portan­
to, os seus mártires, por que não haveria de ter também homens
devotados para lhe fazer - como os religiosos a Jesus Cristo - o
sacrifício dos bens materiais?
Quando o espírito da mentira obtém tal dedicação, não tem
motivos para poupar os direitos da verdade. Ele pode deixar agir as
suas inclinações e permitir que os princípios falsos desenvolvam
todas as suas consequências. Podemos então esperar que a marcha
do erro se acelere, sem o uso de paliativos. Ao mesmo tempo que
Jesus Cristo dá a conhecer melhor ao mundo os segredos do seu
Coração, Satanás, por seu lado, proclama, ousadamente, a sua últi­
ma palavra. O panteísmo já não lhe basta: precisa do ateísmo, mas
tem que ser o mais abjecto ateísmo, o que mais se aproxima do nii-
lismo. E do nada que tudo procede; o nada é inseparável do ser; o
nada é o próprio ser. O mal não é diferente do bem, nem o erro da
verdade, nem o feio do belo. Destruído o princípio de contradição,
desaparece a moral, desaparece a liberdade, a alma, o Céu, o
Inferno, e o próprio Deus. Só é real o que se pode tocar com a mão,
a matéria. O resto é ilusão.
Eis o que Satanás ousa proclamar pela boca dos seus adeptos
nas épocas nefastas em que ele se julga senhor da situação. E o que
sucede actualmente. Mas ainda não é tudo.
Um sintoma ainda mais nítido é a facilidade com que, nesta
sociedade saturada de incredulidade e materialismo, se difunde a

104
0 Stfe/7w fefaj 7/77 JfâjtóTTTZ

superstição... Negar Deus e afirmar Satanás, rejeitar como absurdo


o sobrenatural divino e abraçar com entusiasmo o preternatural
infernal é o cúmulo da contradição e da impiedade. É, por conse­
guinte, a obra-prima do espírito da mentira. Satanás tem, sem dúvi­
da, motivos para estar satisfeito com a nossa época. Os confessores
de Satanás, que conjugam a fé nos seus prodígios com a increduli­
dade na acção divina, são encontrados em toda a parte. A supersti­
ção e o materialismo, que até aqui pareciam irreconciliáveis, unem-se,
agora, para lutar contra a verdade.
Tal é a característica própria do nosso tempo: o desenvolvi­
mento extremo do erro e a realização histórica mais completa do
plano satânico. Esse plano ainda não é, provavelmente, conhecido
na sua totalidade por todos aqueles que concorrem para a sua exe­
cução. Todavia, a maldade consciente parece aumentar continua­
mente, e, dessa forma, o terreno fica cada dia mais preparado para
a chegada do homem que deverá ser a manifestação suprema do
ódio satânico, e para oferecer à adoração dos outros homens o mal
encarnado na sua pessoa. Esse homem do pecado, de quem os anti­
gos heresiarcas foram precursores, estabelecerá no mundo a realeza
social de Satanás. Será o Anticristo por excelência e completará a
obra que todos os anticristos parciais esboçaram. Como Juliano o
apóstata, fará das práticas infernais da magia um instrumento de
governo. Como Maomé, servir-se-á da espada para impor o erro.
Como os heresiarcas, servir-se-á da pseudo-autoridade de uma ciên­
cia falsa. Todas as armas para arrancar as almas de Deus serão usa­
das, concomitantemente, e produzirão aquilo a que São Paulo cha­
mou a suprema “apostasia” (2 Tes 2,3).
No entanto, esse supremo êxito de Satanás trará a intervenção
suprema d'Aquele que já o venceu, no momento em que ele triun­
fava no mundo inteiro. No seu corpo místico, assim como no seu
corpo natural, Jesus Cristo ressuscitará gloriosamente três dias
depois de ter sido aparentemente derrotado.
Até então, Satanás parecerá triunfar e não haverá esforços que
o impeçam de seduzir os homens. O que nós podemos fazer é tirar-
lhe almas que seriam suas vítimas sem a nossa intervenção.

105
Podemos, ainda, desmascarar os seus artifícios e acelerar a comple­
ta manifestação do seu ódio, à qual se seguirá a sua derrota comple­
ta. Cumpre-nos, enfim, levar adiante, no interior da sociedade dos
eleitos, a realização do plano divino com um zelo ainda maior do
que aquele que manifestam os sequazes de Satanás, na execução dos
desígnios do seu amo.

106
Capítulo VIII

As falsas filosofias da história


a) Teorias ateias
A doutrina exposta nos capítulos anteriores permite-nos res­
ponder agora às grandes questões que dominam o nosso estudo.
Existe uma Filosofia da História? E, existindo esta Filosofia, qual é
o seu primeiro princípio e quais os seus principais teoremas?
Há quem negue a existência da Filosofia da História por meio
de dois argumentos. Primeiro, alega-se que os sistemas concebidos
até agora sob esse nome partem de princípios falsos e conduzem a
conclusões inadmissíveis. Segundo, porque a Filosofia da História só
poderia existir se a humanidade tivesse uma unidade real e tendesse
para um fim comum, o que é falso. E essa a opinião do historiador
Pierre Roux-Lavergne (1802-1874). Para este autor, a humanidade é
apenas uma reunião de indivíduos, cada um com o seu fim próprio.
Não existe um fim comum, que possa dar origem à ciência dos
desenvolvimentos da humanidade, isto é, à Filosofia da História.
Depois do que dissemos anteriormente, compreende-se bem
que não podemos aceitar completamente a conclusão desse autor,
nem o segundo argumento em que se apoia. Cremos que a humani­
dade tem um destino comum. Distinto, embora não independente,
do fim de cada indivíduo. Pensamos que a Providência dirige, sem
cessar, a sociedade para a realização desse destino, sem lesar em
nada a liberdade dos seus membros. Estamos, enfim, persuadidos de
que é possível conhecer as leis gerais que a Providência segue no

107
governo dos povos e controlar pela experiência a aplicação de tais leis.
Essas leis, é verdade, deduzem-se muito mais das verdades revela­
das do que dos dados racionais, pelo que a ciência da História é mais
teológica do que filosófica. E igualmente verdadeiro que a aplicação
das leis impostas aos seres livres não é susceptível do mesmo rigor
existente na aplicação das leis às quais obedecem os agentes mate­
riais. A ciência da História difere, portanto, também neste ponto,
das ciências exactas, mas tem, entre os seus princípios e conclusões,
a conexão suficiente para merecer o nome de ciência.
Tais são as deduções que, a partir dos princípios anteriormente
estabelecidos, nos parecem legítimas. Contudo, antes de estudar
mais a fundo tais deduções, parece-nos indispensável examinar as
principais teorias que apareceram, até hoje, sob o nome de Filosofia
da História.
Neste ponto, estamos perfeitamente de acordo com Roux-
Lavergne. Os erros e enormes carências destas teorias impedem que
se lhes.possa atribuir idoneamente tal qualificação.
Algumas colocam Deus completamente fora da história, e pro­
curam na própria humanidade o princípio e o termo dos seus desti­
nos. São as teorias ateias, cujo absurdo radical aparece já no próprio
enunciado.
Outras teorias, não menos absurdas, vêem na humanidade a
manifestação ou o desenvolvimento necessário do infinito. São as teo­
rias panteístas, às quais é preciso acrescentar todas as que impõem à
humanidade a necessidade fatal de um progresso contínuo.
Finalmente, há ainda outras teorias que admitem algumas leis
verdadeiras, impostas pela Providência divina à humanidade, mas
que não consideram o princípio capital - non tenent caput - como
disse São Paulo, e, ao desconsiderar o princípio que dá a todos os
outros princípios inferiores a sua verdade e medida, exageram a
importância de alguns, ao mesmo tempo que omitem outros igual­
mente importantes.
O exame ao qual iremos sucessivamente submeter essas dife­
rentes teorias, a partir das mais absurdas, para chegar às menos falsas,
permitir-nos-á estabelecer, finalmente, como conclusão desta primeira

108
& &eàw de jfauJ

parte, a teoria verdadeira, que abarca tudo o que há de verdade nas


outras, excluindo o que as torna falsas. Começaremos pelas teorias ateias.

1. Considerações prévias

Um dos traços mais marcantes do movimento científico deste


século é, sem dúvida, a necessidade que ele tem de encontrar uma
explicação universal para todas as coisas. Tal necessidade nota-se
até em escolas seguidoras de doutrinas contraditórias e absurdas.
E um sinal manifesto do amadurecimento dos grandes problemas
sociais e mais um motivo para esperar um próximo triunfo da ver­
dade. Clamam por esse desenlace o rumo lógico das idéias e dos
próprios acontecimentos. Se essa explicação universal é fácil para a
verdade, é também progressivamente mais difícil para o erro, na
medida em que deve incluir, numa mesma fórmula, problemas cada
vez mais vastos e complicados. Em vão se procurará na filosofia
antiga os traços de uma concepção assim. Antes que a unidade da
família humana se tivesse revelado no Homem-Deus, não se supu­
nha que pudesse haver um destino comum para as diferentes tribos
e classes da raça humana. Esta é uma ideia essencialmente cristã,
que os sistemas anti-cristãos se vêem obrigados a assumir - a per­
verter - para combater o cristianismo.
Nunca será demasiado insistir neste ponto, pois ele servirá de
base para qualquer debate verdadeiramente eficaz. O que confere
alguma credibilidade aos sistemas errôneos e, portanto, algum
poder sobre o espírito das massas, é o facto de eles se valerem da
doutrina cristã. Assim, o primeiro cuidado dos defensores desta
doutrina deve consistir em separar, naqueles sistemas, a parte de
verdade, para tornar patente os seus erros. Revelaria grande inabi­
lidade quem repudiasse por igual, nesses sistemas, a verdade que
eles vieram buscar ao cristianismo, e o erro que acrescentaram.
O presente tema dá-nos ocasião para aplicar essa grande regra.
A unidade da sociedade humana, que o cristianismo nos apresenta
como resultado da nossa origem comum (enquanto criada por um

109
único Deus), da nossa vida comum (enquanto incorporada ao
Homem-Deus) e do nosso fim comum (a fruição da mesma felicida­
de), é uma concepção tão grande e bela que o próprio ateísmo não
a pôde dispensar quando procurou construir uma base científica.
Encontramos, pois, essa verdade nos dois sistemas que resumem
todas as correntes ateias modernas, mas encontramo-lo corrompido
e desfigurado.
Os dois sistemas que pretendemos analisar são o ateísmo meta­
físico de Hegel 1 e o ateísmo positivo de Augusto Comte 2. Opostos
na aparência, constituem, na verdade, um só sistema, como não é
difícil demonstrar.

2. O ateísmo metafísico de Hegel

Como se sabe, o sistema de Hegel está baseado na negação do.


princípio,da_causalidade . Sempre se acreditou que um ser só pode
existir se for produzido por outro ser já existente. Hegel, pelo con­
trário, afirma que ^nad.a_se_torna ser pela_sua própria^virtualida-
de. Para ele não há um Deus pessoal distinto do mundo, como não
há também um infinito panteísta. a produzir o mundo pelas diver­
sas evoluções da sua substância. ^Jnfinit^ é para Hegel, apenas, o
l^!inojÁealj?aLa^quaUend.ejíacessantemente o finito, sem nunca
o atingir.

1) Georg Wilhelm Fricdrich Hegel (1770-1831). Filósofo alemão, nascido em


Stuttgart. Estudou Filosofia e Teologia em Tübingcn e foi professor de Filosofia
na Universidade de Jena. A sua filosofia, de tendências panleístas, deriva das
doutrinas de Kant, Fichte e Schelling. Teve uma influência considerável na evo­
lução do espírito alemão. A sua doutrina está na base do pensamento de
Kierkegaard e Karl Marx.
2) Auguste Comte (1798-1857). Matemático e filósofo francês, nascido em Mont-
pellier, fundador do positivismo. Rompeu com o passado católico e monárqui­
co da sua família. Entre 1818 e 1824, trabalhou com o filósofo socialista Claude
de Saint-Simon, cujas idéias exerceram grande influência no seu espírito. O seu
“Curso de filosofia positiva” é uma das obras mais significativas da filosofia do
século XIX.

110
0 Sfyúw dk /za Jfâdtóna

Para Hegel, como para os panteístas, 4LUQÍy£rs.Q JfQrcaa. um-só.


todo, mas está longe de ser perfeito desde a sua origem. Pela neces­
sidade do seu ser, esseAQdo que HegeLcJbajna.idéia, garjju^do esta­
do mais imperfeito e, mediante transformações sucessivas, adquiriu
o estado de perfeição que tem agora. Hegel resume essas transfor­
mações em três momentosdejp^erfeiçpaniento.suçessjv.Q.dp.untversp:
a tese, a antítese e aísíntesè. A te_se é o estado ainda vago e confuso
_em que, nas diversas. ordens_d£cpisas, pjex£jD,nada se confundem.
A antítese é o momento emque o scr sc distingue, do nada..Ã sínte­
se é o momento em que essas duas propriedades plenamente desen­
volvidas se harmonizam novamente, uma.com a outra.
A negação do princípio de causalidade é, pois, o ponto de parti­
da do sistema de Hegel. Por outro lado, o seu modo de raciocinar con­
siste, essencialmente, em negar o princípio de contradição, segundo o
qual é impossível que uma coisa seja e não seja ao mesmo tempo.
A_aplicação dessas idéias aos acontecimentos humanos vai da.r-
^'■nos.a Filosofia da Historia segundo Hegel. Para ele, humanidade
é o último termo do desenvolvimento da ideia\ é^d^aadquirir a
consciência de si própria e a tornar-se espírito. Mas essa consciência
pode ser mais ou menos perfeita e, por conseguinte, o desenvolvi­
mento da ideia também pode ser mais ou menos completo.
.Adquirirá o seu complemento .passando pelas mencionadas fases da
.tese, antítese e síntese,. A tese é o espírito universal que, tendo ainda
uma consciência confusa 3e*si mesmo,.não-dlsímgue os direitos^p.ar-
ticulares e obedece passiva mente a uma só individualidadeCÉ a ciyi-\
Clização_moná_rquiçajs panteísta do Orientç) A antítese é o mesmo
^espírito .universal .a. sair. de. si. mesmo, a particulanzar:se e a criar
~ múltiplas individualidades) E. a Gré.cia\om o seu politeísmo, as suas
.repúblicas e as suas artes. A,.síntese,jpelo* contrário, é o espírito uni­
versal a voltar a si mesmo e‘a^êstabelecer a sua generalidade.pela I
.constituição da sociedade romana e do direito romano. Enfim, a sín­
tese é também a conciliação do direito geral e do direito individual,
progresso supremo da humanidade, reservado à raça germânica.
Surpreende que Hegel só preveja lugar para quat?ò raças na sua
filosofia da história. É que, segundo ele, nem todos os povos estão
*

111
aptos para servir de elo aos desenvolvimentos.da ideia. Muitos con­
tinuam imóveis no^estado-.de.,tes.e_e_ de isolamento. Entre os povos
mais felizes, os que passam da tese à antítese e da antítese à síntese,
apenas um representa cada um desses momentos, do mesmo modo
que, nesse povo privilegiado, um sóJndivíduo resume em si os des-
_tirios.de uma raça?

3. O ateísmo positivo de Augusto Conite '

É fácil perceber por que razão o ateísmo francês não aceitou as


conclusões da teoria hegeliana, tão marcadas pelo .nacionalismo
germânico. Augusto Comte divide ojjrogresso histórico da humani­
dade em tj.êsddades que inventou; a idade teológica, à idade mctafí-)
•Siça^e ã idade positiya^A idade teológica é aquela cm que o homem
procura expliçar_ps_ fenómenps.naturais pela acção de causas invisí­
veis. Essas causas parecem-lhe inicia 1 men te^eLscon d id as_n os objectos
£ue, impressionam os sentidos. É a idade do fetichismo, primeiro
V jgeríodo da idade teológica4?Qsegundo período é o do politeísmo,
^enLque_o homem diminui o número de poderes superiores, aumen­
tando, porém, o poder dos mesmos?O terceiro período é o do mono-
t£Ísrpo em que a divindade é reduzida a um só ser pessoal e infinita­
mente poderoso. Esses três períodos constituem a primeira idade da

3) N.T: A dialéctica hegcliana obteve uma das suas mais importantes e nefastas
projecções no “materialismo histórico” de Karl Marx (depois desenvolvido e
aplicado à Rússia , por Lenine), o qual, por meio da tese, antítese e síntese, ou
seja, sobre o fundamento da luta de classes, explica toda a história da huma­
nidade como caminho irreversível para uma repartição, cada vez mais iguali­
tária da riqueza e para um prometido “paraíso comunista” de bem-estar eco­
nômico. A aplicação desta doutrina ao rumo político dos numerosos Estados
socialistas, mais ou menos totalitários, produziu uma das maiores catástrofes
da História, com mais de 84 milhões de mortos, (Cfr. Le livre noir du commu-
nisme, Ed. Robert Laffont, 846 pág.. Paris, 1997) e repercussões gravíssimas,
e muitas vezes irreparáveis, nos mais variados campos da existência humana.
Por causa dela, o século XX poderá ficar, para sempre, conhecido como o
século da guerra, da morte e do pecado.

112
0 Sffedw de jfaaJ

humanidade, a sua infância._ Diga-se, de passagem, que foi uma


infância bastante dilatada, já que ainda continua...
A segunda idade é a da metafísica. O homem deixa união de
imaginar que os poderes superiores movem os corpos, mas atrjbuj
existência real nos próprios corpos a entidades, a que chama subs-
tâncias, causas etc. É a esta idade que chegaram muitas das pessoas
da nossa época que deixaram de acreditar em Deus...
A idade positiva, a idade da verdade, cpjneça para a.humanid.a-
de a partir do momento em que ela aceita p.sisterna de.Comtc. Esse
sistema é a filosofia positiva. Consiste em tratar as ciências morais,
a.Biologia (ciência do homem individual) e a.Sociologia (ciência do
homem a viver em sociedade com os seus semelhantes) da mesma
forma que se tem tratado, já há três séculos, a Física, a Astronomia
e as outras ciências exactãs’ Segundo Comte, assim como as ciências
não se ocupam das causas nem do fim dos seres, mas unicamente das
leis gerais segundo as quais eles se desenvolvem, assim também se
deve fazer em relação ao homem e à sociedade, caso se deseje che­
gar a um conhecimento verdadeiramente científico e atingir a per­
feição suprema da humanidade.
Es^si^teJB.ajest£longe de ser novo. Trata-se no fundo do velho
materialismo, ampliado por Comte com a sua teoria das três idades,
históricas. Mas esta descoberta não teve grandes méritos, pois as
três idades são, precisamente, as mesmas que Turgot4 descrevera no
seu discurso à Academia Francesa sobre os progressos sucessivos do
espírito humano.
É necessário, porém, reconhecer - sobretudo depois de Littré 5 se
ter tornado o profeta deste novo dogma - que a filosofia positivista não
teve dificuldades em conquistar o terreno que a queda do ecletismo e
as tendências materialistas da ciência tão bem lhe tinham preparado.

4) Anne Robcrt Jacques Turgot (1727-1781). barão de L’Aulne. Estadista francês,


adepto do mercantilismo. Foi conselheiro no Parlamento de Paris, intendente
de Limoges e mjnistrp de Luís XVI. ColaborQ.u,c,Qin,Qs, enciclopedistas.
5) Émile Li11ré (1801-1881) Filósofo francês da escola positivista. Membro da
Academia Francesa. Tomou parte na Assembléia Nacional, e foi eleito senador
em 1875.

113
Quando os homens se recusam a aceitar a verdade plena, cedo ou
tarde, acabam por ser atraídos, irresistivelmente, por este sistema.
Afirmámos acima que entre este sistema e o de Hegel não havia diferen­
ças substanciais. Se dermos crédito a Littré, a filosofia positivista recusa
tão energicamente as especulações hegelianas como todos os outros sis­
temas metafísicos. Mas isso é a aparência, pois a afinidade entre as duas
doutrinas é muito estreita. São diferentes pólos do mesmo ateísmo.
Çom efeito, ambas negam a existência da causa primeira e, em
consequência, do. pxincipio.de.causalidade. De facto, embora os positi­
vistas evitem tratar claramente este tema, deixam entretanto escapar
declarações que manifestam o fundo do seu pensamento, como Littré,
quando dizia que o dogma novo oferecia uma concepção geral do
mundo. E§saj:oncepção, eliminando definitivamente todas as vontades
Sobrenaturais, conhecidas sob o nome de deuses, anjos, demônios ou
.Providência, mostrava,.segundo o autor,_que tudo obedece a leis natu­
rais, qt^pQden^nws^chamar as propriedades imanentes das coisas.
Sem dúvida jp. sistema positivista é tao ateu como o idealismo de Hegel.
Nestes dois sistemas, o desenvolvimento do universo em geral e
da humanidade em particular faz-se segundo um método semelhan­
te. Qs positivistas, assim como os discípulos de Hegel, admitem um
progresso fatal e contínuo em guejj_homem e a,sociedade sêsüjêí-
tam a leis tão necessárias como as que regem os corpos. JD homem é
produto de um estado dgpura,animalidade, proveniente da espécie
vegetal, ajquaLpor .sua vez,, proyém.da ordem mineral. O universo
leria nascido do nada pela energia nativa desse nada fecundo.

4. A teoria contemporizadora de Vacherot

Não há assim dissonâncias relevantes entre estes dois sistemas,


conforme muito bem demonstrou Vacherot6. No seu livro, “La métaphy-

6) Étienne Vacherot (1809-1897). Filósofo e político francês. Fez parte da ala


esquerda da Assembléia Nacional. Autor de diversas obras.

114
0 ak Jfaaj ff/táfo /ia jffijfo/ãz

sique et la Science”, despoja a filosofia hegeliana da sua indumentá­


ria pesadona e da terminologia demasiadamente germânica, apre­
sentando-a de tal maneira que o positivista mais radical não pode
deixar de a adoptar. Vacherot diz que a metafísica é uma necessida­
de irresistível do espírito humano, e que é impossível, sem alienar
todas as inteligências lúcidas, impedi-las de colocar as questões eter­
nas relativas à essência das coisas. Por outro lado, prova aos positi­
vistas que eles raciocinam de forma metafísica, no próprio momen­
to em que pretendem excluir essa ciência, já que sem a metafísica
não poderíam enunciar qualquer afirmação absoluta. Vacherot mos­
tra-lhes, com efeito, o meio de se aproveitarem dessa força que inu­
tilmente procuravam destruir, oferecendo ao ateísmo e ao positivis­
mo uma metafísica para uso próprio, da qual são eliminadas todas as
entidades incomodas da metafísica antiga - as causas, as substâncias,
Deus, a alma, a Providência - e substituídas por leis resultantes da
observação e deduzidas da análise. Já que a supressão completa
daqueles seres invisíveis, em que o mundo acreditou até agora, pro­
duziría um efeito desagradável, Vacherot propõe conduzir tais seres
a uma realidade ideal, que não incomodará ninguém, e que permiti­
rá contentar o povo simples. Deus, o infinito, a liberdade, a alma, a
Providência, como muito bem afirma Renan - outro hegeliano fran­
cês - são palavras úteis e antigas das quais dificilmente se poderia
abrir mão. A teoria de Vacherot permite que não sejam supressas,
reduzindo-as entretanto a formas ideais, cujas propriedades são
expostas pela geometria. Assim como o triângulo geral não existe
fora dos triângulos particulares, nenhum dos quais entretanto realiza
completamente a ideia de triângulo, assim também, para Vacherot,
Deus não existe fora do mundo, do qual é apenas o ideal. Há, por­
tanto, dois deuses nesse sistema: o deus perfeito e o deus real. O pri­
meiro é o deus da metafísica, absoluto e imutável; o outro é o deus
da ciência, mutável e evolutivo. O primeiro possui toda a perfeição,
mas não pode possuir a existência; o segundo possui a existência,
mas nunca terá a perfeição absoluta, da qual, no entanto, se aproxi­
ma sem cessar. Mediante essa distinção engenhosa, o positivismo e
o idealismo ficam perfeitamente reconciliados e Littré, que até

115
entào se julgava ateu, recebe, sem mudar de crença, um atestado de
homem religioso. Com efeito, seria preciso ter muito ódio a Deus
para lhe recusar essa realidade ideal e tão pouco incômoda que
Vacherot lhe confere.
Contudo, temperando com uma habilidade incontestável as
fantasmagorias de Hegel, de maneira a torná-las menos repugnantes
para o espírito francês, Vacherot, no fundo, não muda nada ao sis­
tema hegeliano. Para ele, assim como para o seu mestre, o universo
em geral e a humanidade em particular obedecem, irresistivelmen­
te, à lei do progresso, passando sucessivamente pelos três períodos
hegelianos, que Vacherot qualifica como do envolvimento, do
desenvolvimento e da organização. Não julgou oportuno, porém, a
aplicação dessa teoria aos acontecimentos da história, da qual se
contentou em enunciar a fórmula.

5. Refutação dos fundamentos destas teorias

Já dissemos, acima, que a exposição de tais sistemas equivale a


refutá-los. Assim, pois, não será necessário estendermo-nos muito
para mostrar como esta filosofia da história é contrária à História e à
Filosofia. Bastará analisar os fundamentos em que se apoia e estudar
de seguida a própria teoria, para nos convencermos dos seus absurdos.
As suas frases metafísjcas. como vimos, são a jnegação dos.prin-
£Ípio5-,derxausalidade.e de contradição. Ora, tais princípios consti­
tuem a própria evidência e a sua negação representa a negação do
próprio.-pensamento, e até do simples bom senso. Poucas formula­
ções mais claras do absurdo existem do que os dois axiomas sobre os
quais se apoiam as teorias que acabámos de expor: o nada é idênti-
J^âSUgr e^^rXpjoduzidp pelo nada.
As bases fisiológicas de tais teorias não são menos contrárias à
observação e à ciência do que a sua metafísica é contrária à evidên­
cia e ao bom senso. Essas bases-são,asjeis_da.eojitinui.da.d.e,e jiojgro-
greppo, confundidas entre si e„gj^seirajmçute alteradas. A lejLda
continuidade, tal como a observação a apresenta aos nossos olhos e

116
0 jfa/zJ zzzz Jfójfo/üz

tal como está na boa formulação de Leibniz 7, estabelece entre todos


.os seres que compõem o universo uma gradação contínua, tãQ.,har­
mônica, que os seres superiores dos gêneros inferiores tocam, em
todas as ordens de coisas, as espécies inferiores dos gêneros superio­
res. A lei do progresso .determina, por sua vez, que Qs indivíduos_de
cada espécie saiam do estado jnais jmperfeito..para.atingh gradual­
mente a perfeição. É o que a experiência nos ensina. Contudo, longe
de nos dar o menor motivo para pensarmos que o progresso radica na
transformação das espécies, a mais constante e universal experiência
prova, pelo contrário, que os caracteres específicos são imutáveis.
Assim, quando a filosofia positivista baseia a sua teoria cosmológica e
histórica na suposição de uma transformação contínua do ser univer­
sal, atravessando todos os graus da escala dos seres para chegar final­
mente à consciência de si mesmo, no estado humano, esta filosofia,
que se quer fundamentar apenas na observação científica, coloca-se
em contradição flagrante com todos os dados experimentais.
Será necessário mostrar que as suas bases psicológicas são
ainda mais ruinosas? Segundo.estaJeqria, a alma_não seria reaL
mente distinta do corpo, a liberdade seria apenas um nome e o
homem seria tão só um corpo mais organizado do que os outros e
obedecería a leis tão necessárias como as leis que regem o mundo
físico. Se assim fosse, então o pensamento seria o atributo de um ser
composto, a mais simples ideia teria por sede um órgão de múltiplas
partes e a nossa sensibilidade engana-nos quando testemunha o
poder que teríamos de não fazer o que fazemos, de fazer o bem
quando praticamos o mal. Mais uma vez, o que é tudo isto, senão um
rotundo desmentido ao bom senso?
Mas terá esta filosofia da história condições para se apoiar
sobre bases^hi^tórkas minimamente sólidas? Não. Pelo contrário,

7) Gottfried Wilhelm von Leibniz (1646-1716). Filósofo, matemático e diplomata


alemão. Estudou Filosofia e Direito em Leipzig e Altdorf, colocando-se ao ser­
viço do príncipe eleitor de Mogúncia, em 1667 e, posteriormente, da Casa de
Hannover. Foi membro da Academia francesa das Ciências, membro fundador
e presidente da Academia de Berlim, em 1700. Chefe da escola optimista.

117
ela está em contradição manifesta com os factos da história. Nem
falemos da tese, antítese e síntese de Hegel. Ocupemo-nos, somen­
te, do sistema de Littré e perguntemos-lhe: onde encontrou ele esta
sucessão- necessária que estabeleceu entre a idade teológica e a
idade metafísica, em que povos viu ele o politeísmo sair do fetichis-
mq e conduzir ao monoteísmo? Pelo contrário, o que a história nos
mostra são povos que acreditaram, inicialmente, num único Deus e
que^a seguir, s_e_tornaram politeístas ou mesmo fetichistas, quando
a decadência dos costumes começou a obscurecer neles as luzes da
razão, bem como o<ensinamentos da Revelação primitiva. O que a
história nos mostra, ainda, é um povo que conservou desde as suas
origens a fé tradicional num só Deus e a expansão dessa fé no
mundo, não como desenvolvimento natural do politeísmo, mas
como resultado de uma epopeia de três séculos, escrita pelo sangue
de incontáveis mártires, contra esse mesmo politeísmo. Eis o que
testemunha a verdadeira História. Ou seja, ela apresenta o mais for­
mal e solene desmentido à teoria histórica da escola positivista.

6. Refutação do conteúdo da filosofia positivista

Será necessário examinar agora as teorias em si mesmas? Não é


preciso prolongar muito o exame, pois, como veremos, sendo defi­
cientes os alicerces, toda a estrutura do edifício está irremediavel­
mente comprometida.
Xls-jiQsitivistas não cumprermas suas promessas. A sua teoria
pretende ser uma teoria de progresso. Ora, como foi dito numa
cátedra ilustre, a primeira obrigação, exigida a qualquer homem.que
anuncia um progresso, é que ele mostre o fim paraonde_e.S5e.pxo-
^gresso conduzirá. PiogresgxLqxieudizeovançQ, rumo a um fim supe-
.rior ao ponto de_p.artida. Qual é o fim para o qual a filosofia positi­
vista propõe conduzir a humanidade? Esse fim, já o dissemos, é a
própria filosofia positivista. Se a sociedade humana consente em
adoptar o sistema de Augusto Comte e de Littré, que recompensa
lhe prometem? A felicidade de possuir tal sistema e a glória de ter

118
&de jfaacf 'ó/vz^ /ia

todos os seus membros semelhantes a Comte e a JLittré. Tal glória


será talvez muito grande. Surpreende-nos, contudo, que esses dois
senhores pudessem estimá-la tanto ao ponto de fazer dela o termo
de todas as evoluções do ser universal... Não surpreende menos o
terem podido persuadir-se de que bastaria o aparecimento da filo­
sofia positivista para preencher todas as necessidades do coração
humano e satisfazer todas as exigências da sociedade. Devo consi­
derar-me feliz pelo facto de me ter persuadido de que o bem infinito
ao qual aspiro se reduz a uma quimera e que a imortalidade não
passa de uma ilusão? Como só existe a matéria e não há um Deus
que castiga o mal e recompensa o bem, deixarão, por isso, os homens
de praticar o mal e farão só o bem? Para desviar o criminoso do crime
que pretende cometer, bastará persuadi-lo de que nada tem a temer
da justiça divina? Este seria o novo dogma, para apaziguar todas as
discórdias sociais, extinguir as más paixões e reconciliar todos os
interesses. Como é possível crer seriamente em tais coisas?
Será também para tomar a sério a promessa de que a arte e a poe­
sia verão jorrar do seio dessas teorias uma fonte fecunda de aspirações
sublimes? Poetas, preparai as vossas liras; pintores, preparai os vossos
pincéis - eis que acima da humanidade existe o nada e que a própria
humanidade, causada pelo nada, é um nada que se transforma! - ten­
des matéria para inspirar os vossos talentos! Não é tão pura e feliz essa
humanidade, termo último da perfeição do nada? Porque lamentais
que vos roubem os anacrônicos ideais que antes vos inspiravam?
Mas, então, onde está o segredo da expansão actual deste sistema?
O absurdo repugna à razão e o coração humano não é feito para o nada.
Qual o atractivo de um sistema que tem o absurdo por princípio e o nada
por objectivo? Conseguirá porventura seduzir o coração e a vontade?
Para compreender este mistério, é necessário distinguir no erro I

o motivo que leva a abraçá-lo e o pretexto que permite ao espírito,
pervertido pelo coração, tomá-lo como verdade. Não há sistema
para o qual essa confusão seja mais difícil do que o que nos ocupa
no momento. Mas, se ele não tem argumentos sérios para oferecer à
razão, tem, em contrapartida, motivos poderosos para se fazer valer
junto de um coração corrompido.Persuadiixd.Q^se^deque o Deus do

119
Céu_é_ap,enasaiiiLjdeal e de que o único Deus real é o próprio indi­
víduo, fica^est,eJiv-Fe-para-£azer--tude-o-que-deseja. Infelizmente, são
muito numerosos os homens para os quais essa independência é o
argumento mais forte.
Por outro lado, o argumento que serve de pretexto lógico a esse
erro e que os seus defensores insistem em repetir não passa de um
fraco sofisma. Do facto de as ciências físicas terem progredido e de
as leis dos corpos serem obtidas por observação, deduz-se que não
se pode conhecer da alma senão o que as leis físicas dizem dela.
Ora, o método indutivo é incapaz de propiciar ao homem tudo
o que lhe é necessário saber sobre ele mesmo e sobre a sociedade.
Que serei eu depois da morte? Que devo esperar, se fizer o bem
e que devo temer se fizer o mal? Eis algumas questões que a Biologia
e a Sociologia, apoiadas unicamente na experiência, não podem
resolver, nem suprimir. Este^sistema c.onfunde, pois, duas ordens de
coisas, completamente diferentes. Quando se trata da ordem física,
posso^sjperarjazer .descobertas interessantes, aplicando aos factos
dessa ordem novos instrumentos e meios de observação inacessíveis
ao .comum das pessoas. Ma^quando se trata do mundo moral, não
há.instrumento-novor.a.inyentar nem.nieio de observação a aplicar.
Há, portanto, poucas descobertas a fazer. Mas também essa ordem se
presta, muito mais do que o mundo dos corpos, à análise metafísica.
Examinámos as bases e o conteúdo da filosofia da história que a
escola positivista contrapõe à divina Filosofia do Evangelho e vimos os
absurdos em que incorre. O juízo é severo e a palavra absurdo é um
termo que a filosofia deve pronunciar raramente, mas, quando se trata
de uma doutrina baseada na identidade do ser e do nada, seria deso­
nesto procurar uma qualificação mais suave. Mantemos, portanto, esse
juízo e estamos persuadidos de que será confirmado por todos aqueles
em que o senso da verdade não esteja completamente obliterado.
Quanto àqueles que estabeleceram um divórcio eterno com a luz, seria
inútil tentar esclarecê-los. Para eles, jLÍilQsofia poskivista^ofej.eçe a
satisfação, completa dos seus,desejos. A filosofia do nada não podejjei-
xar-de.terjdisçípulos. SAo.^QS.que^exnbpra exj^tjndo, preferem o nada, e_.
em lugar de.se.unjr^aQ-Cnad.or preferem identificar-se com a matéria.

120
b) Teorias panteístas
Sob este título queremos reunir todas as teorias que impõem à x
.humanidade e ao universo a lei de um progresso necessário e indefini-
jdo. Incluiremos também, aqui, as teorias que possuam características
semelhantes, muito embora os seus autores possam recusar o panteís-
mo. Tal recusa é incoerente. O progresso universal só seria necessário
.S£_a_existência do universo fosse necessária. Mas esta só o seria na
medida em que se relacione com Deus, ou pelo menos com alguma
_£.ojsa que vem de Deus. Supor o universo necessário a Deus é uma
£Q.ntradição nos termos. A Deus só é necessário o seu próprio ser. Das
duas, uma: ou supomos queTTá maísjpérféf^^ em criar do
que em não criar,;6u^supomos que essas duas hipóteses lhe são perfei-
tamente indiferentes. Na segunda suposição, a Criação não pode ser
necessária, porque é absurdo considerar necessário aquilo que é indi­
ferente. A liberdade da criação activa e a indiferença da criação passi­
va são, em relação à Deus, uma só e mesma coisa. Mas, se supusermos
que há para Deus mais perfeição em criar, como todas as perfeições
pertencem à essência dé Deus, será necessário dizer que a criação se
relaciona coma.sua essência. Mas tudo o que se relaciona com a essên­
cia de Deus é o próprio Deus. Assim, nessa hipótese, a Criação será ao
mesmo tempo Deus e obra de Deus. Ele ter-se-ia criado a Si mesmo,
e o que Lhe é essencial não teria existido desde a eternidade. Absurdos
obviamente notórios. Os propagandistas do progresso necessário e
indefinido da humanidade e do universo são assim obrigados (a menos
que neguem a doutrina que defendem) a afirmar a identidade entre o
universo e Deus e, assim, podemos justificadamente colocar todas as
suas doutrinas sob a denominação comum de teorias panteístas.

1. Resumo das teorias panteístas

Inicialmen.te, a doutrina do .progresso necessário e indefinido


não se rodeou do aparato científico que possui agora. Antes do fim

121
do séculoÇxvjlj^só encontramos algumas afirmações isoladas e
não sistematizadas em autores considerados como precursores
desta doutrina.
No seu livro De dignitate et augmentis scientiarum (livro VIII,
af. 97^jjjacoiy refere “a propriedade inseparável da duração em vir­
tude da qual a verdade cresce continuamente”. Mas, logo a seguir,
confessa que U14imgEesso_p.Q.de_serjjQteirompido, e muitas vezes foi,
por diversas causas que chegaram a fazer da sociedade humana um
grande deserto. Exprime, é certo, a esperança de que as ciências
haveríam de escapar a tais devastações, mas não funda tal esperan­
ça nas forças da natureza, mas sim na imprensa, que contribui para
salvar os monumentos científicos das causas locais de destruição.
Embora acreditasse no_progresso das ciênciasC.Pascar ; negou
formalmente que a Humanidade pudesse esperar, errTrelação à
moral e à religião, uma perfeição superior à que lhe oferece o cris­
tianismo. E, pois, sem qualquer fundamento que os qjrogressistãs)
pretendem fazer do autor de Pensées o patrono das suas doutrinas.
Charles Perrault3, na sua célebre obra Parallèles des Anciens et
desJM&demes sustentou, é verdade, que o gênero humanp deveria ser
jcomparado.a um homem que adquire experiêncieuao longo dos anos.
Mas nada há aí que se pareça com o progresso <fatal dos panteístas>
--------- k
1) Francis Bacon (1561-1626). Político, ensaísta e filósofo inglês. Foi chanceler da
Inglaterra, sob Jaime II. Tornou-se famoso no campo das ciências, com o seu
“Advancment of Learning”, de 1605, em que preconiza a reorganização das
ciências naturais- Opos-seÀ filosofia aristotélica, e defendeu o sistema üidutLv.o
^de.çonhecipient.o.^O seu empirismo exerceu uma profunda influência no pensa­
mento inglês durante mais de dois séculos.
2) Blaise Pascal (1623-1662). Matemático, físico e escritor francês, nascido em
Clermont-Ferrand._Aderiu ao jansenismo em 1646. Para além da sua obra cien­
tífica, tonou-se especialmente conhecidopelo livro póstumo “Pensées”, onde se
recolhem diversos escritos inéditos de Pascal.’A sua obra filosófica teve grande
influência em pensadores como Kierkgaard, Dostoievski, Nietzsche e na cor­
rente existencialista. “ '
3) "Charles Perrault (1*628-1703). Literato e poeta francês. Membro da Academia
Francesa. Serviu como controlador geral dos Edifícios, sob o ministério de
Colbert, no reinado de Luís XIV. A sua obra literária, muito marcada pela futi­
lidade do século, caiu facilmente no esquecimento, não porém os seus contos de
fadas para crianças, que se tornaram universalmente famosos.

122
/ia Jfójfá/Tzz

O sistema de(jGio vanni Batt ista~Vicoy aproxima-se um pouco


mais do panteísmo. Este professor de retórica pretendeu reduzir os
factos históricos a uma fórmula inflexível. Segundo ele, todas as socie­
dades obedecem a tendências semelhantes que sc maiii£esüiiii_p..QL Arês
espécies de sinaisfo culto exte'fiob(manifestação das tendências reli­
giosas); as solenidâcies/çiB casãmenT^ (expressão das tendências
sociais); e, finalmente, /gs^cêrirrióhias fúnebi^ (símbolo de crenças
espiritualistas). O desenvolvimento destes _três tjpos de tendências
tem como ponto de partida o estado selvagem em que Vico faz cair
Iodos os povos, como resultado de uma prevaricação original. O sen­
timento do temor dá a esses povos, completamente embrutecidos, a
ideia de um poder superior, diante do qual se inclinam temerosos. E
a idade dos deuses, à qual corresponde, na constituição social, a forma
'■mwnárquica>Mais tarde, alguns homens elevam-se acima dessa deca­
dência geral e atraem pelpsjseus feitos a veneração que antes era tri­
butada aos deuses. É aêjçjade dos heroj^ à qual corresponde a forma
aristocrática. Finalmente, as massas conseguem libertar-se dos laços
que as mantinham cativas e recuperam os direitos da humanidade. E
a idade humana à qual corresponde a forníá^âemocrática. j
Encontramos aqui um progresso contínuo, mas não ilimitado.
Pelo contrário, Vico pensa que as sociedades, à maneira dos astros,
Le_ç.omeçam inccssantemenlc as suas revoluções. Segundo ele,
depois da idade madura, as sociedades degeneram, voltando aos
poucos ao estado selvagem, do qual sairão de novo, depois de um
tempo indeterminado, para recomeçar o seu tríplice desenvolvimento.
Eis a tese de Vico que Michelet 5 se deu ao trabalho de traduzir,
como sendo um tesouro há muito tempo escondido!

4) Giovanni Battista Vico (1668-1744). Filósofo, historiador e escritor napolitano,


autor do “Princípio de Filosofia da História”. Foi professor de retórica em
Nápoles e historiador do Rei das Duas Sicílias.
5) Jules Miclielet (1798-1874). Historiador francês. Foi director da secçâo de histó­
ria dos Arquivos Nacionais e professor do Collège de France. Tornou-se muito
conhecido pelas suas obras “Introduction à FHistoire Universelle” e “Histoire de
France” (em 17 volumes), mas sobretudo, pela sua “Histoire de la Révolution
Française” (1847-1853), que reflecte claramente a sua ideologia revolucionária.

123
Este sistema difere pouco do de Maquiavel.6 Segundo o famoso
escritor florentino, as sociedades fazem, inintermplamente, as mes­
mas^ revolugões. Ocupando-se apenasjjojado político da história,
Maquiavel dá^Ü££Lominações puramente políticas, às..diversas fases
so.çiais. A monarquia, degenerando effr^espotismo, é substituída
pela aristocraciâA Por sua vez, esta última çlc.gcnéfa em tirania oligár-
quica e é suB^ituída pelã^âemocràciâ^Quando a democracia deixa de
respeitar as leis da justiça, t.orna-se oclocracja e cai por culpa dos seus
próprios excessos. Renasce então a monarquia e o ciclo recomeça.
As revoluções ocorridas no fim do século XVIII propiciaram a
eclosão da doutrina do progresso que surge, quase simultaneamen­
te, na França, Suíça e Alemanha, adquirindo nesta elaboração
simultânea a forma científica que antes lhe faltava.
Em França, Condorcet7 vale-se de certas indicações dadas por
Turgot, nos seus discursos da Sorbonne, para esboçar, sob a ameaça
dos punhais da Convenção, um quadro histórico dos progressos do
espírito humano. Segundo^ele, a história éuma progressão dividida
em dez períodos. Os (nove prímeirõs“sa^: 1o) o período dos povos
pescadores e caçadores: 2o) o perfõdoTfos povos pastores, um pouco
menos absorvidos pelas necessidades físicas; 3°) o período da agri-
c^ítnra, que permite’ desenvolver algumas artes nos .tempos livres;
4o) a civilização grega, que atinge o seu apogeu com Epicuro; 5o) a

6) Niccolò Machiavelli (1469-1527). Publicista, historiador e filósofo florentino.


Tornou-se famoso pela sua obra de teoria política “O Príncipe”. Pode-se consi­
derar o precursor da poderosa corrente que se veio a afirmar nos últimos sécu­
los da história mundial, para a qual os fins justificam os meios, mesmo os mais
cínicos e cruéis.
7) Antoine Nicolas de Condorcet (1743-1794). Filósofo, político e matemático
francês. Fez parte da Convenção, durante a Revolução Francesa. Foi secretário
da Academia das Ciências, amigo c colaborador dos enciclopedistas. Depois da
Revolução de 1789, tornou-se deputado e chegou a ser presidente da revolucio­
nária Assembléia Legislativa. Implicado na queda dos Girondinos, foi preso,
suicidando-se na prisão. A sua obra mais conhecida é o “Esquisse d’un tableau
historique des progrès de Pesprit humain” (1794), no qual apresenta a História
como um inevitável progresso que culmina na Revolução Francesa. No seu
caminho para uma infinita perfeição, a humanidade tornar-se-ia cada vez mais
livre e igual.

124
& &ezyw de jfaad /ia

-Civilização romanajjue, comp.arada à precedente^seria mais um


declínio do que um progresso; 6o e_^) a Idade Média,ZépocxLjjg—
retrocesso, sob todos os aspectos; 8o) aJ^ejQascexbça.daspletras^pagãs
e do despertar da razão; 9o) a emancipação dajazão com Descartes
e a preparação do reino da^verdadeira^ filosofia, o qual viria a ser
fundado poKCondillac8 e’Rousseau^?)
ic O décimo período, que começava no próprio momento em que
Condorcet escrevia, deveria ser marcado por três grandes progres­
sos. Antes de mais, pelá^estruição das desigualdades sociais. Esse
.primeiro progresso-resultaria do aperfeiçoamento cias inteligências
em virtude da generalização do ensino^da supressão, das causas de
crimes pela elaboração de melhores leis. " ç
O segundo.pr_QgresSQ da idade presente deveria conduzir à dss-
Jxuiç.ão da desigual,dade,entre os diferentes povos, através da ljb£T- ç
dade de comércio, da çlimüLqa.ção das .guerras e da criação JÍê.uma
língua universal. Finalmente,(o tercefro progress^“dessa idade seria
o aperfeiçoamento da natureza e das faculdades de cada homem.
Esse aperfeiçoamento, activado pelos progressos simultâneos de
todas as ciências, não teria limites demarcáveis; enquanto as facul­
dades da alma se desenvolvem, as forças corporais aumentam e
assim também a duração da vida. “Mas ignoramos - reconhece
modestamente Condorcet - se as leis gerais da natureza fixaram um
ponto, além do qual a vida não pode ir”.

8) Étienne Bonnot de Condillac (1715-1780). filósofo francês e membro da


Academia Francesa. Estudou no Seminário de Paris e foi ordenado sacerdote.
.Amigo dos enciclopedistas Diderot, Fontenellc e Rous$eau. E considerado um
dos fundad.oxe_s da ciência cconomica moderna. O seu “Tratado das sensações”
(1754) é uma análise detalhada das sensações, que se baseia no pensamento de
John Loçke, mas vai mais longe do que este, chegando a_ rejeitaria reflexão
como fonte de çonhecimen to. Tem diversas obras sobre o mesmo tema, próxi­
mas do-idealismo-agnó^4€G^
9) Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). Filósofo e escritor .francês. Foi um dos
principais enciclopedistas e autor do “Contrato saciai” Propugnava o retorno à
natureza C exaltava a excelência inicial do homem primitivo, perantêTõ homem
^artificmiílUÍQnpado pela civilizacão^cnstã. A Revolução Francêsã^e' o
Romantismo inspiraram-se largamenteTros seus escritos. É considerado o pai da
democracia actual e o grande preconizador da “soberania popular”.

125
Jffê/írt'^amtere

Logo depois de acenar com esta perspectiva de imortalidade,


alcançada sob a influência da filosofia de Rousseau, Condorcet sui­
cidou-se, para escapar ao decreto de proscrição lançado contra ele
pelos próprios discípulos de Rousseau.
Na mesma ocasião, o filósofo e naturalista suíço, Charles
Bonnet (1720-1793), na sua “Palingénésie Philosophique ” acres­
centava um elemento à doutrina do progresso indefinido, ligan­
do-a à lei da continuidade, exposta por Leibniz. Mas, enquanto
o filósofo alemão descobre a continuidade progressiva na grada­
ção simultânea dos seres criados, o pensador de Genebra pre­
tende encontrá-la na formação sucessiva do mundo. Na primeira
perspectiva, a lei da continuidade, alicerçada na observação, é
um dos sintomas mais fulgurantes da sabedoria de Deus; na
segunda, pelo contrário, não passa de uma hipótese, desmentida
por inúmeras observações.
O sistema de Herder 10 não difere essencialmente do de Charles
Bonnet. Também aqui a humanidade nos é apresentada como o
termo último do desenvolvimento da vida universal. Mas esse
desenvolvimento está longe de ser completo em todos os homens,
porque em todos eles não aconteceu o desabrochar completo das
potencialidades que a sua natureza contém. Portanto, nem todos
estão na plena posse da sua humanidade. E em direcção a essa
humanidade perfeita que o gênero humano caminha. Atingirá a
meta? É lícito duvidar, mas, pelo menos, aproximar-se-á dela.
Herder admite uma vida mais perfeita depois da morte.

10) Johann Gottfried von Herder (1744-1803). Escritor e filósofo alemão.


Aluno de Kant e amigo íntimo de J. Hamann e Goethe. Como pastor pro­
testante que era, encontrou em Riga os enciclopedistas Didcrot e
d'Alembert, com quem travou amizade. Foi pregador na Corte de Weimar,
até à sua morte. E criador do termo “nacionalismo”, que exprime o desen­
volvimento histórico de um povo, através da língua, costumes e arte.
Tornou-se muito conhecida a sua obra “Pela Filosofia da História para a
educação da humanidade”. (1784-1791) e a “Carta sobre o progresso da
humanidade” (1793-1797). Em contraste com o racionalismo matemático do
século XVIII, Herder põe em destaque a noção de desenvolvimento histó­
rico, ponto central da sua filosofia.

126
Um pouco antes de Herder, o seu amigo Lessing " tinha formu­
lado um sistema semelhante, embora menos completo. Segundo ele,
o gênero humano é um ser colectivo cuja educação se faz gradual­
mente. Os diferentes graus dessa educação progressiva devem-se às
revelações. Frutos da espontaneidade da razão humana, as revela­
ções aperfeiçoaram-se gradativamente de Moisés a Jesus Cristo.
Restar-nos-ia agora receber o novo evangelho, que elevará a huma­
nidade muito acima do ponto em que o cristianismo a colocou.
No entanto, na mesma ocasião em que Lessing e Herder escre­
viam, uma nova filosofia começava a difundir-se na Alemanha. Kant12
acabava de colocar o problema da realidade objectiva das idéias e
abalava, com a sua crítica, tudo o que antes se julgava certo. As hipó­
teses mais ou menos aventurosas que ostentavam o augusto nome de
Filosofia, desde que se abandonou a grande Filosofia católica, não
puderam resistir a esse choque. Iria igualmente cair a teoria do pro­
gresso? Pelo contrário, iria receber das mãos de Fichte 13 e de
Schelling 14 a sua sistematização definitiva. O próprio Kant deu algu­
mas indicações que os seus discípulos aproveitaram. Segundo ele, a

11) Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781). Escritor c dramaturgo alemão. Com


os seus escritos deu grande impulso ao movimento dramático e literário ale­
mão. Admirador do teatro clássico francês, traduziu diversas obras de
Voltaire. As suas idéias estão expressas num “testamento espiritual'’, intitula­
do “A educação da humanidade”.
12) Immanuel Kant (1724-1804). Filósofo alemão. Nasceu em Kõnigsberg, Prússia
Oriental. Fundador da filosofia “crítica”. Contrasta o seu próprio criticismo
com a filosofia tradicional, baseada na verdade revelada. A sua “Crítica da
razão pura” é considerada um dos principais pontos de referência da história
da filosofia moderna.
13) Johann Gottlicb Fichte (1762-1814). Filósofo alemão. Discípulo de Kant e
mestre de Schelling. Da escola panteísta. criador do “idealismo transcenden­
tal”. A sua teoria do conhecimento é semelhante ao processo dialéctico da
tese, antítese e síntese da filosofia hegeliana. Para Fichte, que foi adepto da
Revolução Francesa, o supremo ideal político do homem era a liberdade, mas
tornou-se um defensor dos princípios socialistas para a organização do Estado,
e, no fim da vida, foi um ardoroso nacionalista.
14) Fricdrich Wilhelm Joseph von Schelling (1775-1854). Filósofo romântico ale­
mão, autor do sistema do “idealismo subjectivo”. Estudou Teologia em Leipzig e
Filosofia em Tübingen, onde foi condiscípulo de Hegel. Foi professor de Filosofia

127
Jfâ/írí<fíaj/uère

Humanidade deve desenvolver todos os elementos contidos no seu


seio, sendo a história o resultado desse desenvolvimento.
Fichte desenvolveu essa ideia. Sabe-se que este discípulo desta­
cado de Kant levou às últimas consequências o idealismo do mestre,
a quem se deve a afirmação de que “o objecto das nossas idéias é-
nos desconhecido”. Fichte nega resolutamente que as idéias tenham
um objecto e que haja no mundo outra coisa que não seja o eu. Esse
eu é então, segundo ele, o único Deus verdadeiro que, atingindo na
humanidade a consciência de si própria, se manifesta gradualmente
nessa consciência. Segundo Fichte, tais manifestações são cinco e
constituem as cinco idades do mundo:
Ia) a idade da inocência irreflectida, em que o bem se faz ins-
tintivamente e sem liberdade;
2a) a idade da autoridade e do pecado, em que a multidão se
afasta do recto caminho e é contida nos seus desregramentos por um
pequeno número de homens virtuosos;
3a) a idade da corrupção, em que a sociedade inteira sacode o
jugo da autoridade, bem como o da razão;
4a) a idade da ciência, em que a razão se coloca outra vez na
busca da verdade e prepara a regeneração social;
5a) a idade da justificação consumada e da inocência reconquistada.
O sistema de Schelling é mais simples e, no conjunto, mais
completo do que o de Fichte, seu mestre. É o spinosismo adaptado
às exigências da crítica transcendental. Schelling pergunta-se com
que direito Fichte afirma a realidade do sujeito e nega a do objecto.
Um e outro aparecem à inteligência como formas do ser e têm, em
consequência, o mesmo direito à realidade. Segundo Schelling, o ser
absoluto não é menos objecto que sujeito, não é menos natureza que
espírito, mas é tudo isso nos modos pelos quais se manifesta. Esses
modos são de dois gêneros: na natureza, eles são visíveis e simbóli­
cos; no espírito, são invisíveis e fornecem à natureza os tipos que ela

na Universidade de Jena e exerceu o cargo de secretário geral da Academia de


Belas artes de Munique e, mais tarde, presidente da Academia Real das Ciências
da mesma cidade.

128
0 d? JeMJ /az Jfâtáí/úz

exprime mediante os símbolos. Contudo, igualmente, nessas duas


ordens, as evoluções do ser universal obedecem a uma lei necessária
e seguem uma progressão contínua. Corno espírito, tende a adquirir
a plena consciência de si mesmo, ou seja, da divindade. Atinge essa
meta por três evoluções sucessivas que são os períodos históricos.
O primeiro é a idade do destino, durante o qual o elemento infi­
nito aparece isolado e se apresenta como dominador da natureza.
O segundo é a idade da necessidade, em que a força dominan­
te é concebida como inerente à natureza e no qual, em consequên­
cia, só aparece o finito.
Finalmente, o terceiro período é a idade da Providência em que
o ser universal, por assim dizer mais sensato, se concebe como união
do infinito e do finito, do ideal e do real, do espírito e da natureza.
Este sistema estava em pleno florescimento na Alemanha,
quando Cousin, 15 tendo feito uma viagem científica por além Reno,
julgou que não poderia prestar melhor serviço à França do que ini­
ciá-la em tais especulações transcendentais. O famoso curso de
História da Filosofia proferido em 1828 é, no fundo, a teoria históri­
ca de Schelling, rodeada de belas formas oratórias e dissimulada pela
habilidade do fundador do eclectismo para se apropriar das idéias
dos outros. Se pusermos de lado os pormenores, encontraremos nos
textos do professor francês todas as idéias do pensador alemão. Deus
manifesta-se, necessariamente, através da criação e da história; o
homem manifesta-se pelo seu pensamento e pelas suas obras; a his­
tória desenvolve, sucessivamente, todos os elementos do ser divino e
tende a dar-lhes consciência plena nos três períodos dessa manifesta­
ção (do infinito, do finito e das relações entre finito e infinito); o opti-
mismo histórico; a religião reduzida a fruto espontâneo da razão; a
justificação de todos os erros e de todos os crimes; a apoteose do

15) Victor Cousin (1792-1867). Filósofo e político francês. Amigo de Hegel e de


Schelling. Foi conselheiro de Estado na Monarquia de Julho (1830-1848). Par
de França, membro da Academia Francesa e ministro da Educação no gover­
no Thiers. De orientação panteísta, preconizou a aliança das “duas irmãs imor­
tais": a Filosofia e a Religião. Os sistemas filosóficos, para ele, resumem-se a
quatro: o sensualismo, o idealismo, o cepticismo e o misticismo.

129
sucesso; eis um sistema que exerceu perniciosa influência mas que
veio a desvanecer-se, tal como o de Schelling, que o inspirou.
Benjamin Constant 16 não é muito inovador na sua teoria do
progresso. Para este publicista, a escala dos aperfeiçoamentos suces­
sivos da humanidade compõe-se de sete graus: o estado selvagem, a
teocracia, o governo dos guerreiros e a escravidão, o feudalismo e a
servidão da gleba, o domínio da nobreza, o domínio da burguesia e
o domínio da plebe.
Saint-Simon17 conseguiu fazer da doutrina do progresso neces­
sário e indefinido, não só o programa de uma escola, mas o símbolo
de uma religião. E verdade que este pensador soube evitar o grande
obstáculo contra o qual se chocam geralmente as religiões novas.
Não deu uma formulação completa à sua. Contentou-se, como
Lessing, em anunciar o novo evangelho e a organização definitiva da
sociedade. Segundo ele, essa organização deve ser o resultado da
verdadeira ciência social, que se tornará uma fisiologia verdadeira
quando, deixando de proceder apenas com a ajuda da análise, veri­
ficará, pela observação e pela indução, as suas deduções analíticas.
A finalidade prática dessa ciência é a felicidade de todos pelo tra­
balho de todos. No estágio definitivo da humanidade, só haverá traba­
lhadores, divididos em três classes: sábios, industriais e artistas. Numa
perfeita igualdade de sexos, não haverá entre os homens outras distin­
ções que não sejam as decorrentes das diferentes aptidões e serviços.

16) Benjamin Constant de Rebecque (1767-1830). Político e escritor francês, nas­


cido em Lausanne, onde a sua família se refugiou após o Edito de Nantes.
Depois da Revolução Francesa, foi um dos 100 membros da Tribuna. Apesar
de certas vacilações na sua atitude política, defendia os princípios liberais e
opôs-se ao centralismo estatal. Como escritor, foi uma das figuras mais mar­
cantes da primeira fase do romantismo literário francês.
17) Claude Henri de Rouvroy de Saint-Simon (1760-1825). Economista francês.
Conde e neto do Duque de Saint-Simon, famoso memorialista da Corte de
Luís XIV. Espírito turbulento, tomou parte na Guerra da Independência dos
Estados Unidos. Entusiasmado pela sociedade industrial nascente, tentou
criar um novo ideal que substituísse os velhos conceitos morais, políticos e eco­
nômicos. Propunha-se substituir os dogmas religiosos por uma “moral positiva”.
Pelas suas doutrinas, Saint-Simon é considerado o pai do socialismo.

130
0 de fefaJ zzz J&tórâz

Para esse fim, tende gradualmente a humanidade, desde o prin­


cípio. Os escravos passaram a servos, estes a assalariados, que final­
mente deverão caminhar a par dos que até agora os exploraram. A mulher
caminha também para a sua libertação. Só então se realizará a pala­
vra de Jesus Cristo, segundo a qual todos os homens são irmãos.
Os continuadores de Saint-Simon puseram-se em campo para
construir a fisiologia social que o seu mestre se limitara a prever.

2. Refutação destas teorias

Para refutar os diversos sistemas que acabámos de expor, basta


desmontar a base em que se apoiam. Mostrámos que essa b^ç é o
panteísmo. Talvez os autores de alguns desses sistemas não queiram
reconhecer as suas afinidades com o panteísmo, mas também não as
conseguirão desmentir. A lógica tem mais força que a mera negação.
Ao ouvirmos Pierre Leroux ,s - fazendo eco a Lessing - falar de
revelações e mostrar Deus a educar o gênero humano, seria fácil
convencermo-nos de que ele admite uma distinção real entre Deus
e os homens, mas logo depois ele explica que^.D-Q-US.d^^jalâjéJl
ser imancntc no universo, na aljiia c em iodas as criaturas, c.que a
_rey_eJação c apenas adornada de posse da viclh por ela mesma. A vida,
por sua vez, revela-se a si mesma por um mistério que o antigo sím­
bolo do Verbo chamou encarnação 19. Não nos detenhamos, portan­
to, nestas palavras. É próprio do panteísmo confundir os termos e as
noções, além de usurpar fórmulas ortodoxas para exprimir os seus
erros. Já o dissemos: a absoluta necessidade é um atributo inaliená­
vel de Deus. Atribuir essa necessidade ao progresso da criatura, sig­
nifica identificar a criatura com Deus. Mas essa icjexilLfiçação do fini­
to como infinito, do imutável com o mutável, Jojespintp„.cpin a
matéria, do simples com o composto, é_.algo tão absurdo, como a
identificação do ser com o nada, subscrita por Hegel.

18) Pierre Leroux (1797-1871). Publicista francês. Adepto da escola de Saint-Simon.


19) Revue Sociale, ano 2o, pág. 129.

131
.tâewí&am&v

Por outro lado, o progresso necessário e indefinido - que está na


base do panteísmo- contradiz manifestamente o próprio panteísmo.
Se o universo forma com Deus um único ser, o universo é tão neces­
sário como Deus, e esta necessidade não se pode limitar à substância
do ser universal porque é uma necessidade real e concreta. Ora, a
substancia só existe, real c concretamente, com os seus modos. Ela
.não pode conter, em si mesma, a razão necessária da sua existência,
.sem que essa razão se estenda aos modos da sua existência. Esses
modos são, portanto, tão necessários como a própria existência.
Assim, não há possibilidade de progresso, já que a ideia de progres-
so envolve a ideia de novas perfeições, a acrescentar às já existentes.
Somente podem hesitar em admitir esta conclusão os que nunca
conceberam bem a necessidade da existência do Ser infinito. Esta
vK* O ^SA
necessidade é apenas a necessidade da perfeição, a impossibilidade
absoluta de que uma parcela da realidade não exista nalgum lugar.
Para ser possível, num ser contingente, uma perfeição qualquer, ela já
tem que existir no ser necessário. Mas, se assim é, também o ser neces­
sário não é susceptível de qualquer progresso. Por outro lado, se o Ser
necessário possui em si mesmo - e no mais alto grau - essa perfeição,
não pode estar submetido à necessidade de reproduzir esta perfeição
fora d?Ele. Então, o progresso necessário é absurdo em qualquer
hipótese. E absurdo enquanto progresso do próprio infinito e ainda
absurdo enquanto necessariamente produzido pelo infinito.
“ ' -J=^4ais uma contradição: sexLprogresso.é.nec.ess.ário, e.eterno; se_é
ete_rn.ojá_passou.p.or.uma infini.dade.de.graus antes de chegar ao seu
.estado actual;-Cnmo.se explica, então que esteja ainda tão distante do
seLulcrmo?_CQrno^acrescentar graus nQvos_a.-uma escala infinita?
Como pode acontecer^mç.h^ía. tantas. d^gu^^e^ejilie^as
diversas partes desse ser universal cuja lei^supremaé- a. Jej^dojxo-
gresso? gor.flu^está-P. mineral ainda privadogie.vida, o vegetal pri­
vado .de sentimento, ojmimal..privado de inteligência, e uns povos
mais civilizados do que outros? Não têm a mesma substância uni­
versal que nós? Não se encontram tão perfeitamente incluídos como
nós na lei do progresso? Se começaram, como nós, a progredir desde
a eternidade e se progridem segundo a mesma lei, como podem

132
0 d? jfauJ

estar tão atrasados? Encontraram obstáculos, alguém dirá. Mas de


onde poderíam ter vindo esses obstáculos? Da própria natureza des­
ses seres? Isso não é concebível, pois a sua natureza é, como a nossa,
essencialmente progressiva. Os obstáculos ao progresso também
não podem vir de fora, pois nada há fora do ser universal. Há aqui,
portanto, não um mistério incompreensível, mas uma contradição
palpável na própria ideia que constitui o fundo de todos os sistemas
que acabámos de examinar, isto é, ngddeia^cle^um progresso neces-
sário e indefinido. v- nhc» V NV
Encontraremos ainda outras contradições, se examinarmos
separadamente cada um desses sistemas. Alguns afirmam que o pro­
gresso da humanidade consiste na consciência, cada vez mais distin­
ta, que o ser universal adquire de si mesmo.^Mas como admitir que o
,s.exnecessário e infinito.tenha-PQdido existir durante uma eternidade
sem se conhecer a si mesmo?-Çomo admitir que, neste momento, não
tenha de si um conhecimento mais.p.erfeito do que o dxmaioría dos
homens? Sob-red.udo,..coxno.admiUxqj4.cxLe^ae..coiüie^jn^liomeiiLe.,.
ao mesmo tempo, se ignqre.no animal.e.no,mineral? Terão razão
para se revoltar, contra os mistérios revelados por Deus, os que pre-
tendem impor à nossa credulidade contradições deste tipo?
\ K A doutrina do progresso panteísta é contraríada.-pelos-factos
v históricos. Vejamos, por exemplo, como agem os çpnslrulores dq
r .escalas históricas e os inventores, de ex.ftl±l£Ões gwgressivas da,
humanidade.\Escolhem, no meio da multidão dos povos, uma Uacção
relativamente pouco considerável, e adaptam como podem àJttstn-
ria desses povos. osi^teina.que.çonstrujxanx^/íÀ^WwMas esquecem-
-se de que tal sistema está baseado na hipótese de um prpgresso
necessário que emanada essência das coisas. O que pertence à essên­
cia das coisas é necessariamente. umyersal, e, assim, .todos, os povos
deveríam ter um desenvolvimento semelhante. Para atribuir o pro­
gresso dos povos a um desenvolvimento espontâneo da natureza
humana, é necessário negar a evidência histórica. Com efeito, foi
espontaneamente que a sociedade romana abjurou do politeísmo, dos
seus vícios e crimes para abraçar o Evangelho? Foi espontaneamente que
se separaram as ordens espiritual e temporal? Foi espontaneamente que

133
a condição da mulher foi dignificada? Foi espontaneamente que os
direitos do escravo passaram a ser reconhecidos ao lado dos do seu
senhor, e que os reis aprenderam que eram apenas os servidores dos
seus povos? Será possível esquecer os milagres de Jesus Cristo e dos
apóstolos? Será possível esquecer o sangue que dezoito milhões de
mártires tiveram que derramar para fazer aceitar, pelo mundo
pagão, todos estes progressos espontâneos?
Há um desmentido que estas teorias aplicam a si mesmas.
Porque, depois de terem erigido em princípio a necessidade do pro­
gresso, todas admitem épocas de retrocesso. Todas estão, de. acordo
em amaldiçoar a Idade Média e em glorjficar a Renascença. Das
duas, uma: ou a humanidade da Idade Média não era humanidade,
ou essa humanidade em retrocesso, durante cinco séculos, não era
essencialmente progressiva. Q que é essenciaLdeye,ser, constante e
um-vorsal. Para fugir a esta contradição, alguns imaginam figuras
mais ou menos poéticas, para falar de umÇprogresso em espiral; ou
para comparar a caminhada da humanidade à de um barco. São figu­
ras, não são razões, e apesar dessas comparações, os factos conti­
nuam a opor-se manifestamente a tais princípios.
Mas estas teorias, além de absurdas nos seus princípios e con­
traditórias nas suas conclusões especulativas, negam a evidência dos
factos históricos e acarretam consequências morais funestas.
Não há moral &ejn, estesJtês.elementos:liberdade como con-
djção.çãJ^ejjtpmoJundamento e a<sanção da lei como complemento.
Se não sou livre, não poderei ser obrigado a realizar alguns actos e
proibido de realizar outros; não poderei ser louvado ou censurado,
ser recompensado ou punido; para mim deixará de existir o bem e o
mal, porque o bem moral é a conformidade à lei, assim como o mal
é a sua violação. Enfim, se a lei moral não tem sanção, para mim é
como se não existisse, porque, impulsionado a buscar a felicidade
pela propensão irresistível da minha natureza, fico também indife­
rente àquilo que não altera a minha felicidade.
Ora, a teoria do progresso panteísta destrói radicalmente estes
três elementos de qualquer moral.
Destrói a liberdade, pois afirma que a humanidade e, por con-

134

k
seguinte, os indivíduos que a compoenKobede.ce.,na suaJLÇÇão, a um
impulso irresistível e necessariamente progressivo.
Destrói a lei moral,zppissó pode haver lei obrigatória ng medi-
da em que emane de um poder superior. Na teoria que agora consi­
deramos, não há poder superior ao homem, já que o homem é Deus.
O homem não quer, portanto, ser submetido a qualquer lei. No
máximo, pode ver em certas acções maior conveniência à sua natu­
reza. Mas, se as suas paixões lhe sugerirem ignorar tais conveniên­
cias, não ficará facilmente persuadido de que as paixões, constituin­
do também um elemento da sua natureza divina, merecem ser tão
acatadas como a razão?
Enfim, qual a sanção que a teona^doprogresso panteísta.pode
oferecer à violação da lei moral? Para aqueles que admitem tal teo­
ria, é preciso escolher entre duas hipóteses: ou se admite que os indi­
víduos (manifestações passageiras do ser universal) perdem com a
morte a sua individualidade; ou se supõe que passam de um estágio
menos perfeito para um estágio mais perfeito.
Em nenhuma hipótese, porém, se poderia admitir para as
almas, que são parcelas da substância divina, um lugar de tormen­
tos onde elas expiam as faltas cometidas durante a vida. A ideia
de uma sanção penal, depois da morte, é incompatível com o pan-
teísmo. Mas a sua falta precipita a sociedade na completa degra­
dação moral.
Chegámos assim ao termo no qual desembocam necessaria­
mente todas as tentativas de fazer progredir o homem e a socieda­
de sem Deus e apesar de Deus. Elas conduzem à degradação do
homem e à desorganização social. A primeira coisa a fazer a favor
do progresso verdadeiro é combater, na geração presente, essas ilu­
sões que a desencaminham. Quando abandonar essa quimera fu­
nesta, poderá entrar na via do progresso verdadeiro que o cristia­
nismo lhe abre.

135
c) Sistema de Jean Reynaud
1. Exposição desta doutrina

Para Jean Reynaud 1 - que segue e desenvolve a doutrina de


Saint-Simon - o dogma cristão deve sofrer uma transformação radi­
cal, a fim de resolver de maneira satisfatória os diversos problemas
levantados pelo estudo comparado da humanidade e do universo.
Reynaud encontra essa solução na teoria da metempsicose,
ensinada outrora pelos druidas. Afirma que Deus, cujo poder infini­
to se exerce continuamente, cria eternamente mundos infinitos e um
número infinito de almas para povoar esses mundos. Tais almas
saem da sua mão num estado muito imperfeito e só chegam à pleni­
tude das suas faculdades espirituais, através de diversos estágios, ao
longo de séculos. As almas encarnam-se num corpo formado pela
matéria de um certo astro e, nesse corpo, realizam um certo pro­
gresso. Depois, despojam-se do corpo que foi o seu instrumento e
vão para outro astro percorrer uma fase nova do seu desenvolvimento.
Para o referido autor, a narração bíblica da criação de Adão
apresenta-nos a história da entrada na vida racional de duas das
inumeráveis almas de que os espaços celestes estão repletos.
Chegadas à Terra no momento em que o planeta, depois de muitas
transformações, se tinha tornado apto para fazer desabrochar as
suas faculdades, as almas do primeiro homem e da primeira mulher,
logo que adquiriram a consciência do seu livre arbítrio, tiveram de
optar entre os apetites inferiores, que até então as tinham governa­
do em exclusividade, e os apetites superiores, que acabavam de des­
pertar. Infelizmente o peso da animalidade predominou e, em lugar
de subirem até Deus, caíram. Essa queda, embora desculpável, teve
como resultado a geração de uma descendência decaída, em vez de
dar origem a almas puras e perfeitas. Essa é a lei de transmigração

1) Jean Reynaud (1806-1863). Filósofo e político francês, nascido em Lyon.

136
0 aí?fatáj fâúfo x/z
das almas pela qual cada uma delas é levada no começo de cada
nova existência e por virtude da atracção espiritual, até a um
meio análogo ao do seu estado. Assim, todos nascemos mancha­
dos pelo pecado original, pecado que não é o de Adão, mas que
é uma falta cometida por nós numa existência anterior e pela
qual recebemos a punição de nascer da raça decaída de Adão. A
força maior ou menor das inclinações más que temos ao nascer é
apenas o resultado da gravidade, maior ou menor, das faltas ante­
riores ao nascimento.
A hipótese da transmigração, segundo Jean Reynaud, explica
igualmente a reparação do mal e a sua origem. As almas que se
abandonaram aos seus instintos inferiores, durante uma das suas
existências, são levadas a um mundo mais doloroso do que aquele
que acabam de deixar. A sua condição torna-se mais infeliz à medi­
da que as suas faltas se multiplicam. Se elas persistem nas suas
desordens durante a eternidade, poderão tornar eterno o seu casti­
go, o que não é plausível. Pelo contrário, tudo nos leva a esperar
que, esclarecidas enfim pelas consequências funestas da sua perver­
sidade, serão tocadas pelo arrependimento, e subirão - de purgató­
rio em purgatório e de terra em terra - a encosta do progresso, até
finalmente poderem ser admitidas nos mundos superiores.
Ali, as almas não serão certamente imutáveis, pois devem pro­
gredir durante a eternidade. Contudo, tal será a repulsa sentida pelo
mal experimentado, que já não estarão expostas ao perigo de cair.
Cada vez mais perfeitas, possuindo a lembrança de todas as existên­
cias passadas, dotadas de um poder progressivamente maior para
mover a matéria e para fazer bem às outras almas, aproximar-se-ão
cada vez mais da visão de Deus, mas essa visão é apenas um ideal
que se vislumbra mas nunca se atinge.
Somente o Homem-Deus goza da visão de Deus. Ele é o ideal
divino da humanidade. Do mesmo modo que no espaço infinito do
universo há diferenças infinitas na perfeição dos mundos, assim tam­
bém há graus infinitos na perfeição dos espíritos.
Reynaud só reconhece a dualidade druídica da Terra e do Céu.
O Inferno não existe.

137
^a/ruère

Na sua teoria particular da história da humanidade, atribui à


Terra quatro idades, cuja sucessão lhe parece demonstrada pelas
observações geológicas:
Ia) A idade do fogo, durante a qual o nosso planeta, completamen­
te liquefeito, formou os minerais, período em que ainda não havia vida;
2a) A idade da água, na qual os vapores suspensos na atmosfera
durante a primeira idade se condensam pouco a pouco em consequên­
cia do arrefecimento do planeta, acabando por cobri-lo inteiramente. É
nos sedimentos depositados no fundo das águas, ao longo dessa idade,
que aparecem as primeiras manifestações de vida vegetal e animal;
3a) A idade da terra, durante a qual a capa sólida do globo é
levantada acima das águas pelos choques do núcleo líquido. Os con­
tinentes aparecem e neles, gradualmente, se desenvolvem a vida
vegetal e animal, que se aproximam cada vez mais do tipo humano;
4a) Aparece finalmente o homem para coroar essa série inferior
e começar uma série nova. É a idade do homem.
A idade humana divide-se, por sua vez, em quatro épocas, con­
forme o grau de consciência dos homens a respeito da sua origem e
destino. Na primeira idade, sendo os homens ainda recentes na
Terra, não tinham colocado claramente o problema. Na segunda
idade, o problema começa a atormentá-los, mas conseguem encon­
trar, apenas, o primeiro termo da solução, ou seja, a ideia de deca­
dência. Na terceira idade, à ideia de decadência, os homens juntam
a ideia de reabilitação. Finalmente, na quarta idade, considerando
os seus destinos numa única visão de conjunto, concebem a ideia do
progresso indefinido, princípio e termo de todas as outras.
Jean Reynaud considera que a perfeição suprema da humani­
dade começa com o decreto da Convenção.Nacional, pelo qual a era
da república francesa una e indivisível, substitui a era cristã.

2. Análise crítica

Misturando os ensinamentos dos druidas com os de Jesus


Cristo, Reynaud pretende libertar a doutrina cristã daquilo que con-

138
d? fâwto /uz JfóitáúYzz

sidera as más influências do espírito romano. Para poder seduzir, o


erro tem necessidade de se mascarar. O livro de Jean Reynaud é um
conjunto de alegações violentas contra o catolicismo sem que, no
entanto, o catolicismo seja ali mencionado uma única vez. Em vez
dele, aparece “o espírito da Idade Média”, “o regime decadente” ou
outros circunlóquios. Rejeita a doutrina católica sobre o pecado ori­
ginal, o inferno, o céu e os anjos. Jesus Cristo, em vez de ser o
Salvador e Senhor, é apenas um símbolo e um ideal. Se Reynaud
afirma que a visão da essência de Deus é o termo das ambições inte­
ligentes dos homens, também diz que esse termo é somente um ideal
irrealizável. Se a visão da essência de Deus é apenas um ideal, pode­
rá então a essência divina ser mais do que um ideal? Não encontra­
mos aqui, sob uma aparência menos sincera, o sistema hegeliano de
Vacherot? Não é a acção de Deus na Criação que nos obriga a admi­
tir a sua existência pessoal, uma vez que a Criação se desenvolve
segundo leis matemáticas de um progresso indefinido e uma vez
que, nas suas transmigrações sucessivas, as almas são governadas,
unicamente, pelas suas atracções. No entanto, segundo Jean
Reynaud, Deus é Criador. Criador nominal, mas também criador
necessário, o que destrói a realidade da .Criação. O universo, consi­
derado obra de Deus, é simultaneamente apresentado como um ser
infinito, que em cada instante adquire uma infinidade nova. Não há
outro Deus senão o universo.
Outra característica que nos apresenta o sistema de Jean
Reynaud é uma imoralidade radical, que consiste na negação da
base da moral, ou seja da ideia de fim último.
A filosofia moral ensina que a vontade deve ter necessariamente
um fim, e que a sua perfeição só pode consistir na rectidão do movi­
mento pelo qual ela busca esse fim. Essa rectidão é a moralidade.
Quando a moralidade se apresenta sob a forma de um poder confor­
me ao fim, chama-se direito; quando se manifesta como a necessida­
de de realizar certos actos para atingir um fim, chama-se dever; quan­
do se transforma em hábito, chama-se virtude; quando adquire um
novo grau de união com o fim, chama-se mérito. Mas todos estes
aspectos particulares da moralidade, como a própria moralidade,

139
decorrem do fim. Retirado o fim, a vontade fica sem objectivo e, em
consequência, deixa de ter necessidade de agir de um modo em vez
de outro. Não há hábitos morais, não há progresso rumo a um objec­
tivo, só há um poder físico. Os direitos, os deveres, as virtudes, os
méritos, tudo isso desaparece e dá lugar ao desenvolvimento brutal
da força física. É a imoralidade erigida em sistema. É, em conse­
quência, a moralidade ultrajada muito mais gravemente do que o
poderia ser pela propaganda do vício.
Esta negação do fim último constitui o fundo do sistema de Jean
Reynaud. Como nós, ele afirma que o objectivo do homem é a visão
da essência divina, isto é, o conhecimento da verdade infinita e a
posse do bem infinito, mas afirma ao mesmo tempo que esse fim não
pode ser atingido. Ora, um fim que não pode ser atingido, é um fim
inexistente. O Céu, diz-nos Reynaud, não é uma morada, é um cami­
nho, ou seja, durante toda a eternidade, as almas racionais experi­
mentarão desejos cada vez mais intensos que nunca poderão satisfa­
zer. É o que Reynaud chama manter as almas em actividade e pre­
servar nelas a imagem de Deus. Como se a perfeição de Deus não
fosse sobretudo a posse da sua verdade e da sua bondade, e como se
Ele pudesse dar-nos o poder e o desejo de conhecê-l’O e amá-l’O,
para outro fim que não fosse o de saciar completamente tal aspiração.
Não podemos seguir Jean Reynaud em todas as hipóteses gra­
tuitas que apresenta como dogmas da ciência moderna. A sua teoria
do infinito criado é uma hipótese não só gratuita, mas absurda.
Porque quem diz infinito, afirma uma grandeza à qual nada pode ser
acrescentado. Ora, é absurdo conceber uma quantidade criada e
múltipla à qual nada se pode adicionar, pois sempre será possível
acrescentar uma das unidades de que já é composta. As ciências
matemáticas raciocinam sobre o infinito, mas raciocinam perfeita-
mente, porque o número de que se ocupam é o número abstracto, a
quantidade possível. Ora, a própria razão que demonstra o absurdo
de uma grandeza criada infinita, demonstra também a necessidade
de admitir uma grandeza possível infinita. Porque se é absurdo que
um número infinito exista, é precisamente porque sempre é possível
acrescentar alguma coisa a qualquer número existente, o que equi-

140
0 Sfàdw de /ia Jfójtáwz

vale a afirmar que o número é necessariamente finito na existência


porque é infinito na possibilidade.
Quantas outras contradições poderiamos assinalar, se percor­
réssemos esse sistema nos seus detalhes! Falso no enunciado, fanta­
sioso nas hipóteses, contraditório nas afirmações, este sistema é
ainda mais funesto nas suas consequências. A sua divisão da história
em quatro épocas não está melhor fundamentada do que o resto da
sua filosofia. A história diz-nos que o homem conheceu o seu desti­
no desde o primeiro dia do mundo e que, com a consciência da
queda, adquiriu a esperança da reabilitação. As três primeiras ida­
des de Jean Reynaud correspondem, na verdade, a uma só. Quanto
à quarta época da idade humana (aquela que começa pelo famoso
decreto de Frimário), em que a ideia do progresso indefinido subs­
titui o dogma da reabilitação em Jesus Cristo, esperemos - pela feli­
cidade da humanidade e da França - não ver a sua chegada definiti­
va. Porque se uma nova Convenção Nacional, como Jean Reynaud
parece deduzir, tomasse o lugar dos concílios cristãos, a guilhotina
tomaria ao mesmo tempo o lugar da cruz e os novos Condorcets
poderíam muito bem subir os degraus desse instrumento do pro­
gresso na companhia dos discípulos de Cristo, compartilhando o seu
suplício, sem partilhar entretanto a sua esperança e a sua glória.

141
Capítulo IX

Teorias incompletas de alguns


escritores católicos
Entre as teorias que examinámos nos capítulos anteriores e as
dos escritores católicos encontramos uma enorme diferença. As pri­
meiras foram imaginadas para banir a acção de Deus dos assuntos
humanos; as outras, pelo contrário, têm por finalidade expor e glori­
ficar a acção soberana do Criador. Para os escritores ateus, panteís-
tas ou deístas, o progresso da humanidade é o resultado de uma força
independente e de uma lei necessária. Para os filósofos católicos, o
progresso, se é necessário, só pode ter tal característica por uma dis­
posição livre do Criador. O progresso dos primeiros vem de baixo; o
dos segundos, vem do alto. Este tem o seu princípio e o seu fim cla­
ramente marcados; aquele, pelo contrário, não tem definição de prin­
cípio nem de fim. Parte do indefinido para chegar... à indefinição.
Contudo, os escritores de quem vamos expor a doutrina não
recusam à humanidade uma real possibilidade de aperfeiçoamento e
encontram um verdadeiro progresso na história. Definir as leis desse
progresso e colocá-lo de acordo com os ensinamentos da religião, tal
é o objectivo que eles têm em vista e que realizam parcialmente.
Satisfaz-nos dar a cada um deles o que lhe pertence. Se é necessário
refutar os ataques dos inimigos da verdade, é muito mais agradável
reconhecer os relevantes serviços prestados à religião por Ballanche ’,

1) Pierre-Simon Bailanchc (1776-1847). Escritor místico e editor francês, nas­


cido em Lyon. Autor de várias obras religiosas, sendo mais conhecida a

143
Châteaubriand 2 ou Frederico von Schlegel3. Embora os seus êxitos
possam não ter sido completos, devemos reconhecer o valor dos
esforços que empreenderam e fazer-lhes justiça. Mas, ao destacar os
pontos com os quais cada um deles enriqueceu a Filosofia da
História, devemos, de forma concomitante, indicar as deficiências
das suas teorias. Os que semeiam no campo da ciência muito dificil­
mente podem produzir a verdade sem alguma mistura de erro. Fica,
quase sempre, para os que vêm depois deles, a necessidade de sub­
meter os seus ensinamentos a um trabalho de depuração.

1. Ajpalingenesia social de Ballanche

Examinemos, em primeiro lugar, a teoria que Ballanche expôs


na sua obra: “Palingenesia social”.
A possibilidade de aperfeiçoamento da natureza humana deve
ser admitida como uma lei filosófica, mas, para ser bem compreen­
dida e aplicada adequadamente aos factos da história, essa lei deve
ser completada pelo dogma cristão da queda e da reabilitação.

sua “Palingenesia social”. Em todas essas obras a sua filosofia da História, liga­
da a Vico, alia-se a uma sentimentalidade vaga, eivada de esoterismo.
2) François-René Auguste de Châteaubriand (1768-1848). Famoso escritor e políti­
co francês. Nascido na antiga família bretã dos viscondes de Châteaubriand.
Depois de uma juventude agitada, acabou por alistar-se no exército realista que
lutou contra a Revolução Francesa. Converteu-se ao catolicismo, escrevendo
duas obras que se tornaram célebres: “Atalie”(1801) e “Le génic du christianis-
me” (1802). Foi. durante o regime de Carlos X. ministro dos Negócios
Estrangeiros. Possuidor de um estilo literário brilhante, com riqueza de imagi­
nação, eloquência e poder descritivo. Exerceu grande influência sobre o desen­
volvimento da literatura romântica. O livro “Mémoires d’outretombe”.é a sua
obra prima, com carácter autobiográfico.
3) (Karl Wilhclm) Friedrich von Schlegel (1772-1829). Escritor e crítico alemão.
Figura chave, juntamente com o seu irmão August, do primeiro Romantismo
germânico. Estudou em Gõttingen e Leipzig, onde se interessou, sobretudo,
pela filologia clássica. Converteu-se ao catolicismo em 1808. Leccionou na
Universidade de Viena, cidade onde ocupou funções oficiais na chancelaria de
Estado. Terminou a sua carreira como alto funcionário do Governo Imperial. E
autor de uma importante obra literária e filosófica.

144

O&eàw de fejvj fâ/xtá? /za Jfódtówz

A história e a própria psicologia são uma manifestação fulgu­


rante desse dogma misterioso que, por sua vez, é a tocha que ilumi­
na os pontos obscuros da história. A Revelação cristã mostra-nos, l
no destino de Adão, três coisas que devem ser consideradas como os
elementos verdadeiros da Filosofia da História: DJD primeiro homem
foi submetido a uma prova para merecer a'felicidade eterna; A
ciência do bem e do mal foi procurada infelizmente na revolta, em
lugar de ser conquistada pela submissão; 3LA reabilitação, miseri­
cordiosamente prometida pela bondadéciivina, é obtida penosa­
mente pelos esforços do próprio homem.
Ora, esses três elementos do destino do primeiro homem,
encontra-os Ballanche, não apenas na história individual de cada um
dos seus descendentes, mas também na história colectiva de cada i
povo e na história universal do gênero humano. Porque Adão,
segundo ele, não era somente um homem dotado de uma personali­ ií
dade própria, mas era ainda o representante da humanidade inteira.
Daí três unidades históricas que têm a sua raiz em Adão, e que se
desenvolvem ao longo dos séculos. Mas esse desenvolvimento reali­
za-se, sempre, segundo as mesmas leis e apresenta os mesmos ele­
mentos: prova, iniciação, reabilitação.
Eis o que Ballanche procura demonstrar na sua “Palingenesia
social”, buscando o auxílio, não apenas dos relatos históricos, mas tam­
bém das línguas, dos vestígios arqueológicos e até das próprias fábulas
da mitologia. Mesmo os que recusam a sua teoria não lhe negam rique­
za de erudição, elevação de conceitos e elegância de estilo.
Nós também lhe reconhecemos, de bom grado, esses méritos e
ainda o de ter recuperado do panteísmo a teoria, verdadeira em si, I
ainda que profundamente alterada por este erro, da existência
colectiva dos povos e da unidade real do gênero humano. A lei da I ■

solidariedade, que é uma das grandes chaves interpretativas dos pro­


blemas sociais, foi estudada com brilho por Ballanche. Finalmente, H
o dogma da queda, tão presente na primeira página da história e tão
arraigado no fundo de todas as tradições, foi oposto por esse elo­
quente escritor, de maneira feliz, às elucubrações fantasiosas de um
progresso espontâneo e necessário. Dessa forma, o progresso tor-

145
nou-se, na pena de Ballanche, aquilo que deve ser para a humani­
dade, ou seja, um laborioso retorno a uma situação melhor (de onde
decaímos por falta nossa) e o resultado da misericordiosa condes­
cendência do Criador, que opõe o instinto celeste da sua graça às
tendências retrógradas de uma natureza corrompida.
Devemos, pois, agradecer a Ballanche ter relembrado certas
verdades luminosas indispensáveis para construir a Filosofia da
História. Ballanche, levantando-a da ruína, prestou a esta ciência um
serviço notável. Contudo, não compreendeu - coisa surpreendente
num espírito tão elevado - que as idéias de queda e reabilitação serão
sempre obscuras, se não forem iluminadas por uma ideia superior: a
ideia do plano primitivo. Como compreender uma queda se não se
conhece a altura de onde se caiu? Como compreender a restauração
de um desígnio subvertido, se não se conhece o próprio desígnio?
Como compreender uma ordem qualquer sem conhecer o seu fim?
Há um outro ponto, importantíssimo, ao qual Ballanche não con­
cedeu a importância devida: é a Encarnação do Filho de Deus. Este é o
verdadeiro eixo da história - aquele que oferece à unidade dos povos e
do gênero humano uma base incomparavelmente mais sólida do que a
paternidade carnal de Adão - Ballanche reconhece-o, mas não lhe dá o
lugar devido no corpo imenso que deve a Jesus Cristo a unidade e a vida.

2. Châteaubriand

Para Châteaubriand, e também para Bossuet, o mundo antigo é a


preparação do cristianismo, assim como o moderno é a sua expansão.
O progresso humano, destruído pela queda original e retardado pelas
consequências do pecado, só pode ter a cruz como instrumento eficaz.
Mas há um ponto em que Châteaubriand se separa de Bossuet
e, infelizmente, também da ortodoxia estrita. É que, no seu pensa­
mento, a obra de Cristo não é apenas o princípio do progresso da
humanidade, mas é ela mesma susceptível de um progresso substan­
cial. É um círculo do qual a cruz é o centro imóvel, mas cuja circun­
ferência flexível aumenta com o progresso da razão e das liberdades.

146
0 £/?edw de /za

A humanidade aperfeiçoa então a obra de Deus, ao mesmo tempo


que lhe fica a dever a perfeição.
A tarefa da Filosofia da História consiste em apontar as diver­
sas fases desse progresso simultâneo da humanidade e do cristianis­
mo. Châteaubriand encontra essas fases nas três verdades que for­
mam a base do edifício social: a verdade religiosa, a verdade filosó­
fica e a verdade política. A verdade religiosa é o conhecimento de
um Deus único, manifestado por um culto; a verdade política é a
aliança da ordem e da liberdade; a verdade filosófica é a tríplice
ciência das coisas intelectuais, morais e naturais.
Antes da vinda de Jesus Cristo, essas três verdades estavam
profundamente alteradas. Era a época da luta entre a religião, a
inteligência e a constituição da sociedade; era a época da desigual­
dade entre os homens e da hostilidade entre as raças.
A cruz começa uma sociedade nova em que todos os membros
estão unidos e são iguais diante de Deus. O cristianismo, que é a
verdade religiosa, contém em si o germe das duas outras verdades,
que faz florescer.
Depois de ter atravessado a sua primeira fase exclusivamente
religiosa, o cristianismo torna-se político na Idade Média. Trans­
forma-se então numa monarquia electiva representativa, democráti­
ca, baseada no princípio da mais completa igualdade. Quando as
nações perderam os seus direitos, ficou depositária deles a única ins­
tituição respeitada naqueles tempos, isto é, a Igreja Católica. O Papa
tornou-se o tribuno e o mandatário dos homens. Foi nessa qualida­
de de único representante de uma verdade política oprimida que ele
teve a missão de julgar e depor os reis.
Mas hoje, tendo os povos retomado os seus direitos, acabou a
idade política do cristianismo. Começou a sua idade filosófica. O
clero, abandonando a autoridade política, na qual tinha sido justa­
mente investido nos dias de opressão e barbárie, retorna aos cami­
nhos da Igreja primitiva. O antagonismo entre a ciência e a fé, em
que a fé foi mal defendida e a ciência mal compreendida, desapare­
ce diante de uma manifestação mais completa dessas duas ordens de
verdade. O acordo restabelece-se entre as diversas comunhões cris-

147
tãs por algumas concessões de parte a parte, e o Papado torna-se,
então, a fonte pura na qual se conservará o princípio da fé, no seu
sentido mais racional e mais amplo.
A história confirma, sob o prisma dos tempos e das sociedades,
essa reabilitação da humanidade por Cristo, que a religião apresen­
ta sob o ângulo do indivíduo e da eternidade. Uma sociedade é uma
família que caminha para um mesmo fim e que, guiada pelo cristia­
nismo, tende a uma perfeição infinita. Então, mesmo que pareça
regredir, ela segue uma linha progressiva na civilização e não cessa
de subir as encostas desse Sinai desconhecido, no topo do qual ela
verá Deus mais uma vez.
Segundo Châteaubriand, a era filosófica em que estamos, é o
cume mais alto da montanha de Deus.
De passagem, convém lembrar que na construção do seu siste­
ma, assim como na maioria dos seus trabalhos, Châteaubriand foi
muito mais poeta do que filósofo ou teólogo. Não podemos encon­
trar melhor desculpa para atenuar a gravidade dos erros em que
caiu. O conhecimento do catecismo seria suficiente para lhe fazer
compreender que a sua teoria da constituição primitiva da Igreja
cristã e da mutabilidade do dogma (teoria evidentemente bebida em
Guizot4), era inteiramente protestante. E, entretanto, a linguagem
que Châteaubriand emprega no seu livro, em relação ao protestan­
tismo, não permite atribuir ao autor dos “Estudos históricos” uma
vontade deliberada de tomar partido contra a fé católica.
Nada impede, com efeito, de se considerar o progresso da
humanidade como decorrente da influência da doutrina cristã na
ordem social e na ordem científica. Nada impede de se ver na orga­
nização social da Europa medieval o esboço, infelizmente incom-

4) François-Pierre-Guillaume Guizot (1787-1874). Estadista e historiador francês.


Proveniente de uma família protestante, estudou na Universidade de Genebra.
Foi professor de História na Sorbonne, a partir de 1812. Foi ministro do
Interior, embaixador em Londres e, mais tarde, ministro dos Negócios
Estrangeiros e primeiro ministro, do Rei Luís Filipe. Rival de Thiers. Autor de
obras célebres, como “Discours sur 1’histoire de la révolution d’Angleterrc”,
“Mémoires sur l’histoire de France” e “Histoire de la civilisation en France”.

148
/ia Jfójáfrüz

pleto, da política cristã. Nada nos proíbe prometer, como resultado


do grande desenvolvimento das ciências, um triunfo próximo da fé
sob os pontos de vista intelectual e científico. Nada se opõe a que se
considere a sociedade como destinada a glorificar Jesus Cristo por
causa da perfeição que ela lhe deve na Terra, da mesma forma que
cada homem deve glorificar o Homem-Deus pela felicidade que o
espera no Céu. Tudo isso pode ser afirmado sem ferir a ortodoxia, a
constituição da Igreja, ou a própria história. Se tivesse respeitado
esses limites, o sistema de Châteaubriand teria completado, com
êxito, a doutrina de Bossuet. Mas, infelizmente, não sucedeu assim.

3. Frederico von Schlegel

Felizmente, não somos obrigados a fazer um juízo tão severo a


respeito da teoria de Frederico von Schlegel. Este protestante, con­
vertido ao catolicismo, é incomparavelmente mais ortodoxo na sua
Filosofia da História do que o autor de “O gênio do cristianismo”.
Entre os seus sistemas existem, porém, analogias muito estrei­
tas e, como o filósofo alemão publicou a sua obra muitos anos antes
da obra do escritor francês, é difícil não lhe conceder primazia no
que toca à originalidade e à exactidão.
Assim como Châteaubriand e Bossuet, Schlegel relaciona todos
os acontecimentos da história com a Redenção, que ele chama “pólo
divino colocado no meio dos tempos”. Também como eles, julga que
o progresso da humanidade deve decorrer da influência da ideia
cristã sobre todos os elementos da civilização. Com o primeiro, afir­
ma a necessidade de fazer brotar do dogma a luz científica que até
então nele estava encoberta.
O que é específico do professor de Viena, contudo, é a constru­
ção das suas épocas históricas e o modo como as relaciona com a
própria origem do mundo. Para ele, há três épocas, todas elas carac­
terizadas pelos dons que Deus concedeu sucessivamente à humani­
dade. A primeira época, que inclui o mundo antigo, é a era da pala­
vra ou da Revelação primitiva. O dom da palavra eterna ao homem

149
recentemente criado é atestado, em todas as tradições primitivas, e
a história antiga é apenas a história das alterações sucessivas que
essa Revelação foi sofrendo pela acção da palavra humana. Sob a
influência funesta dessa acção, as crenças reveladas deram sucessi­
vamente lugar à tríplice idolatria da natureza sensível, das virtudes
supra-sensíveis e do poder social do Estado.
Quando essas alterações se tornaram tão profundas, ao ponto
de o homem ter ficado incapaz de encontrar o seu caminho. Deus
manifestou-se outra vez. Desta feita, já não como palavra, mas como
força, pois o homem tinha, efectivamente, necessidade de uma gran­
de força para vencer as influências que o arrastavam para o mal.
Todas as forças humanas do carácter, do gênio e das armas tinham
sido, em vão, postas em actividade pelos persas, gregos e romanos.
Quando a sua insuficiência ficou completamente demonstrada, o
Verbo de Deus apareceu e inaugurou a segunda época histórica: a
era da força divina.
A partir daí, a Igreja - ao mesmo tempo depositária da palavra
primitiva e da força sobrenatural, cujo princípio é a graça de Jesus
Cristo - tende a introduzir essa dupla influência em todos os ele­
mentos que constituem a vida da sociedade. Ela esforça-se por ligar
todas as idéias ao foco divino que as irradia e por compor, com elas,
um só feixe luminoso, que seria a base da grande ciência, verdadei­
ramente una e verdadeiramente católica. Mas o espírito humano,
com as suas concepções orgulhosas e com a sua resistência ao domí­
nio da graça sobrenatural, prejudica a expansão da luz divina, ao
mesmo tempo que as forças humanas lutam contra o império e a
graça sobrenatural. De um lado, a tirania dos imperadores pagãos e
de um grande número de monarcas cristãos de Constantinopla, da
Alemanha, da França e da Inglaterra, que paralisaram e depois des­
truíram completamente o reino da política cristã. De outro lado, a
heresia e a seguir o racionalismo, que combateram violentamente o
reino da verdade cristã. Dos dois lados, foi o absolutismo: o absolu-
tismo de um só ou o absolutismo das massas, da razão ou das pai­
xões. Foi a adoração da criatura, colocada no lugar do Altíssimo,
com a pretensão de se tornar independente d’Ele.

150
!

/za Jfâjâfrâz

Quando essa dupla idolatria tiver sido completamente destruí­


da, então a humanidade entrará no terceiro período: a era da luz. A
fé cristã, vencendo todos os erros e penetrando com a sua influência
todas as ciências particulares e todas as idéias sociais, governará a
humanidade regenerada e unida. A sociedade encontrará, finalmen­
te, a perfeição à qual aspira tão ardentemente.
Schlegel julga estar em condições de prometer essa era ditosa
para um futuro mais ou menos próximo. Considera assim a espe­
rança religiosa de uma restauração plena e inteira do mundo pelo
cristianismo como conclusão legítima da Filosofia da História, ao
mesmo tempo que atribui a essa ciência uma influência considerável
para apressar a desejada restauração. ■

Nesse sistema, repetimos, não há nada que a mais severa orto­


doxia possa censurar, ou que seja positivamente contrário aos dados
da ciência. É difícil, entretanto, não ver na construção das eras his­
tóricas alguma coisa de artificial. A palavra, a força, a luz, dificil­
mente podem constituir três dons distintos, três graus de uma pro­
gressão regular. É mais difícil ainda aplicar essas características aos
três grandes períodos da história.
O que é a palavra dada à humanidade nascente senão uma luz
intelectual? E que utilidade poderia ter tido para os primeiros huma­
nos o dom dessa luz, se não viesse acompanhada da força? Se a pala­ I
vra pudesse caracterizar uma época, não seria sobretudo a época da !
vinda do Verbo? E mesmo essa época não seria uma era de luz, como
também de força? O evangelista de Patmos não a caracteriza dizen­
do que a luz brilhou nas trevas e que as trevas não a puderam aba­
far? Se a Igreja cristã é a depositária da força do Espírito Santo, não
será ela a guardiã da verdade revelada? Se, como cremos com
Schlegel, o cristianismo está destinado a ver uma era de glória e de
paz suceder à era de lutas e trevas, não deverá esse novo triunfo do
Verbo Encarnado ser o resultado de uma manifestação mais bri­
lhante da luz revelada, ou seja da graça e da força de Deus? São
questões às quais nos é impossível dar uma solução em conformida­
de com a teoria do célebre estudioso alemão. E todo o nosso apreço
por ele não nos impede de observar que ele mesmo não escapou,

151
&amere

completamente, ao perigo que apontou, isto é, delinear quadros de


conjunto nos quais os factos se encaixam com alguma dificuldade.
A este primeiro reparo, acrescentaremos outro muito mais
importante. Como Ballanche, Schlegel não dá o relevo devido à
figura adorável do Homem-Deus. As razões que apresenta no déci­
mo capítulo para justificar a sua opção não nos convencem. Parece-
nos, pelo contrário, que o eminente professor se refuta a si mesmo.
A Filosofia da História deve relacionar com o mistério da
Encarnação a maior parte dos factos e dos acontecimentos históricos.
Nada poderia obrigá-la a contemplar esse mistério como se fosse um
santuário acessível, apenas, à religião. O Homem-Deus é o Modelo
divino dos povos e dos homens, e a imitação perfeita desse Modelo
é o grande objectivo dos desígnios da Providência. Em vão a
Filosofia da História irá buscar a outra fonte o conhecimento desses
desígnios misteriosos.
Para terminar, ressaltamos a unanimidade de todos os que se
ocupam da Filosofia da História - sejam eles ateus, panteístas, deís-
tas ou católicos - na afirmação de que a humanidade padece uma
crise decisiva e que está a entrar numa nova era. Tal unanimidade é
um argumento poderoso a favor da autenticidade do pressentimen­
to generalizado de uma grande mudança. Na história do mundo, já
houve uma persuasão semelhante: foi a época que precedeu imedia­
tamente a vinda do Salvador. Neste pressentimento generalizado,
bem como nas guerras e agitações que agitam os povos, e no tre­
mendo mal-estar que as acompanha, parece-nos ver os sinais pre­
cursores da misericórdia que Deus quer manifestar ao mundo.

152
Segunda Parte

A verdadeira ciência
da História

I
r

Capítulo I

Doutrina de Santo Agostinho ■

Deus deu ao seu povo a luz da Fé e instruiu-o pelo ministério


dos'profetas. Mas, quando chegou a^píenitude do§_tempfls - quando
° próprio Filho de Deus veio esclarecer e completar, através dos
seus ensinamentos, as revelações dos profetas - o Espírito da Ver­
dade, que agira até então, sobretudo, como Espírito de intehgência,
passou a agir como Espírito de ciência. Ao ministério dos profetas
sucedeu, pois, o dos^doutoresN
Com efeito, desde a origem da Igreja, o^dpuloiejL começaram a
klYiar-o campo fértil da Revelação e, enquanto.arrancavam, oJoio da
heresia, fizeram brotar os frutos saborosos da verdade. Sem estar reves­
tida do carácter de infalibilidade, que é exclusivo da autoridade suprema,
a assistência do Espírito Santo, em relação aos doutores católicos, reve­
lou-se na extraordinária harmonia dos trabalhos feitos por eles sobre os
mais diversos assuntos. JEstes trabalhos eram parciais; cada doutor dedi-
çava-se a um ponto particular do dogma. Os trabalhos.de .conjunto - as
sumas teológicas - nascerão mais Jarde, comoTnit2_da_Escp]ástica.
É necessário confessar, entretanto, que no imenso campo revolvi­
do durante dois milênios, por tantos trabalhadores intrépidos, há um
ponto que ficou.relativamente pouco explorado: foi o da. ciênçia^cris.tã
daj-listória. .Os Padres da Igreja tocaram pouco no assunto e, quando
ojizeram, foi apenas de passagem. São Tomás de Aqüino, cujo gênio
percorreu como conquistador o mundo inteiro das ciências conhecidas
do seu tempo, não parece ter pensado em aplicar aos factos da histó­
ria as suas luminosas teorias. Os escolásticos também não se aventura­
ram neste vasto oceano.

155
Os séculos anteriores ao nosso, só nos mostram'duas obras que
tiveram como objectivo estruturar, sobre princípios gerais, a ciência
cristã da História. Mas também é certo que elas constituem verda­
deiras obras-primas. Referimo-nos à “Cidade de Deus” de Santo
Agostinho e ao “^Discurso sobre a História Universal” de Bossuet.
O filósofo cristão que deseja escrutinar com humildade os
desígnios da Providência, relativos à Igreja e ao Mundo, não pode
dispensar-se de entrar como discípulo na escola destes dois ilustres
doutores. Talvez possamos, sem presunção excessiva, dar mais
alguns passos na via que eles abriram, sempre com a condição de os
tomar por guias e de chegar, sob a sua conduta, ao ponto a que o seu
gênio os levou, assistidos pelo Espírito de Deus. Começaremos por
Santo Agostinho.

1. Um livro apologético

Como a maioria das obras dos Padres da Igreja, “A Cidade de


Deus” 1 não foi escrita com o único objectivo de expor a verdade. E
um livro apologétjco. Os filósofos pagãos, sempre prontos a apro­
veitar todas as ocasiões para atacar o cristianismo, utilizavam como
pretexto, no fim do século IV, as calamidades que caíam então sobre
o Império Romano. Exploravam com esse objectivo a d-OX„pública,
.a^Dl^s^URerstições e o orgulho nacional, para combater a Igreja.
Enquanto honrou os seus deuses - diziam - Roma foi a senhora do
mundo, mas, assim que os abandonou, tornou-se presa dos bárbaros
e atraiu a cólera dos deuses. Alguns mostravam mesmo nesses fac­
tos uma prova manifesta da impotência do Deus dos cristãos (Liv. I,
Cap.l). Propunham, pois, voltar ao paganismo, embora continuan-
do_.arexonhecer.um só Deus, com os maiores filósofos (VIII, 10), e
rendendo-lhe um culto espiritual - o único que pode ser-lhe agradá­
vel -mas tratando de apaziguar as potências inferiores, boas ou más,

1) Ed. da Fundação Calouste Gulbenkian, 3 vols., Lisboa, 1991-95.

156

& &eàw de feu/j z//z efádtáràz

cjue se ocupam directamente dos assuntos humanos (VIII, 16; X, 9).


A Jesus Cristo era dado um lugar entre as divindades de segunda
ordem (XIX. 23; XXII, 25). Aceitavam-se alguns dos seus dogmas,
mas não se excluíam os dogmas contrários. As próprias superstições
não deveríam ser combatidas, por ser conveniente que o povo per­
manecesse no erro (IV, 27; VI, 10). Sobretudo n.ão se ..ppdjajdmitir
a„re_ssurreição dos corpos (XXII, 4) e a eternidade das penas do
jnferno (XXI, I), já que o primeiro desses dogmas é inconcebível, e
o segundo é contrário à própria ideia de castigo, que só é justo na
medida em que serve para a emenda do culpado (XXI, 13).
Tal é, em resumo, a doutrina esgrimida no começo do século V
contra a verdade cristã. Essa doutrina, principalmente sustentada por
Porfírio - filósofo que fora cristão e que renegou a Igreja - apoiava-
se, como se vê, em três bases: primeiro, nos factos; depois, nasjgprias,
platônicas; e, em terceiro lugar, nas sjipeislições da idolatria*
O livro “A Cidade de Deus” foi escrito paraj^futjiUQStes^tiês
fundamentos. Santo Agostinho detém-se, longamente, em mostrar
os aspectos censuráveis e obscenos das superstições idolátricas e em
provar que os respectivos deuses, ao exigirem tal forma de culto,
I
merecem apenas o desprezo. Às teorias neoplatónicas opõe, não
apenas refutações directas e sólidas, mas a própria autoridade de
Platão, mostrando que, num grande número de pontos em que com­
batem o cristianismo, esses novos discípulos de Platão são condena­
dos pelo seu próprio mestre.
No entanto, as dificuldades que Santo Agostinho mais se esfor­
ça por resolver são as que os inimigos do cristianismo tiravam dos
factos. Foi esse objectivo que deu o título ao livro, que constituiu a
sua unidade e que originou o encadeamento das suas diversas partes. í

2. Conteúdo da obra

O mencionado objectivo é enunciado no preâmbulo da obra.


o Para atingi-lo, Santo Agostinho tece uma dupla série de considerações.
A^piámejra série ocupa osjdez primeiros livros. Contém. a.polêmica i
:

157
Jfféwi &a#uere

çpm os pagãos. Procuraprovar que ,a..prosperidade do Império


Romanojião dçcorrp.u Hajrotpcçção dos deuses, nem a sua queda se
devia à sua cóleraXÍNo primeiro livro? o santo doutor explica essas
calamidades como castigos salutares para os maus e provações meri­
tórias para os bons. No segundó’liv?ò; mostra que os deuses do paga­
nismo, longe de livrar os seus adoradores do mal, pelo contrário,
conduzem-nos à iniquidade.cNo terceiro livro, recorda os males tem­
porais que em .todas as épocas assaltaram as sociedades que cultua-
v.am falsos deuses. No quarto livro,^procura a causa verdadeira do
crescimento do Império Romano e prova que, se esse crescimento
foi um bem, não ficou a dever-se às divindades do paganismo.
Apenas a Providência do único Deus dirige soberanamente os acon­
tecimentos. Se ela deu aos romanos o poder temporal, foi para
recompensá-los das virtudes humanas, que praticaram durante
muito tempo, mas pelas quais não mereciam uma recompensa eterna.
Essa teoria vem exposta no {Quinto livrCr^Nos cinÇQ Jiyros seguintes,
Santo Agostinho demonstra quão inferiores aos bens da vida pre-
jente_são ps bens que se podem esperar da vida futura, oferecida
pelos deuses do paganismo. E prova-o peías próprias palavras dos
mais conceituados doutores entre os pagãos. Varrão, por exemplo,
distingue três teologias: a teologia fabulosa, que ele recusa como
absurda e ímpia; a teologia física ou filosófica, à qual adere; e a teo­
logia civil, que não ousa condenar, e cujos ritos expõe. Santo
Agostinho demonstra, com o testemunho de Séneca, que essa teolo­
gia é pelo menos tão absurda como a primeira (livro VI). Em segui­
da, mostra que a explicação filosófica dos ritos pagãos não diminui
o seu aspecto arbitrário e não evita os seus efeitos funestos (livro
VII). O próprio platonismo, com a sua teologia dos demônios ou
deuses inferiores, apenas estimula a superstição (livro VIII e IX).
Esses demônios, aos quais os neoplatónicos oferecem sacrifícios, são
anjos maus que não têm o mais pequeno desejo de contribuir para a
purificação das almas, antes, pelo contrário, trabalham para afastá-
las cada vez mais da verdadeira pureza (livro X).
Aqui termina a primeira parte do livro. Depois de ter, assim,
refutado, directamente, as conclusões que os pagãos tiravam dos

158
&de feíZZJ

acontecimentos contemporâneos contra a Igreja Católica, o santo


doutor vai mais longe. Demonstra que a instalação e o desenvolvi­
mento dessa Igreja santa é o objectivo de todos os acontecimentos
da história. Se tivesse êxito, as calúnias dos pagãos seriam refutadas
de forma mais cabal do que pela discussão de factos particulares. O que
fez então? Começou pela origem da história da humanidade.
Mostrou que essa grande sociedade, sem perder a unidade que lhe
vem do seu princípio comum, está entretanto dividida em duas
sociedades, que se fazem guerra incessante devido às disposições
morais dos seus membros: a Cidade de Deus, que procura a sua feli­
cidade no Céu, e a Cidade dos Homens, que se esforça por encon­
trá-la na terra. Santo Agostinho faz-nos ver essas duas cidades a nas­
cerem juntas e a desenvolverem-se paralelamente e, pela sua sim­
ples exposição, obriga-nos a reconhecer a incomparável superiori­
dade da Cidade de Deus em relação à Cidade dos Homens.
Essa demonstração ocupa doze livros, divididos em três partes.
Os quatro primeiros têm por objectivo a origem das duas cidades.
Os seus progressos constituem a matéria dos quatro seguintes. Nos
quatro últimos, o santo doutor mostra os objectivos contrários, para
os quais tendem incessantemente as duas cidades.
Em lugar de seguir Santo Agostinho passo a passo, no desen­
volvimento de cada uma das três partes, julgamos preferível resumir
a sua doutrina em alguns pontos principais que nos permitirão
entender, num só relance, o seu magnífico conjunto.

3. A Cidade de Deus e a Cidade dos Homens

Compreendamos bem, desde logo, o que Santo Agostinho enten­


de pelas duas cidades, cujos destinos entremeados formam, segundo
ele, o tecido da história. As duaj^cidades, afirma, são.constitjiídas ^o^
dois amores: _o, amor, de si próprio, levado até ao desprezo de Deus,
constitui a cidade terrestre; p.^morde Deus, levado até ao desprezo de
si próprio, constitui a cidade celeste. Aquela compraz-se em si e esta
compraz-se em Deus. Uma, espera dos homens a sua glória; a outra,

159
encontra toda a sua glória em Deus, que sonda os corações (XIV, 28).
Nada de mais correcto, do ponto de vista filosófico, do que esta divisão
dos homens em duas grandes classes, segundo a natureza do amor que
domina o seu coração. De facto, apenas a tendência livre da vontade dá
aos seres racionais o seu valor moral. O resto pode não estar no poder
do homem, excepto a boa ordenação do seu amor, que está ao alcance
de qualquer um. Se ele ordenar bem esse amor, será virtuoso e perten­
cerá à sociedade dos que tendem ao seu verdadeiro fim, com a certeza
de possuí-lo. Se o ordenar mal, cairá nos vícios e pertencerá à socieda­
de dos que se afastam, simultaneamente, da lei divina e da sua felicida­
de verdadeira. Poderá haver graus infinitamente variados quanto à pro­
ximidade ou quanto ao distanciamento do bem verdadeiro, mas, nessa
variedade, haverá, nos dois lados, uma semelhança capital que consti­
tuirá a unidade de cada uma das duas cidades. Num lado, existe o pre­
domínio da caridade; no outro, o predomínio do egoísmo.
Temos o direito de concluir daí que Santo Agostinho reserva,
na Cidade de Deus, um lugar mesmo para os que não pertencem a
Jesus Cristo? E que, segundo ele, o homem pode chegar à salvação
pelo uso recto das suas faculdades sem o concurso da graça? Seria
um erro e uma contradição ao mais constante ensinamento do santo
doutor. No seu livro, ele mostra a Cidade de Deus a viver, desde o
início, na expectativa do Redentor e a trabalhar para Lhe preparar
os caminhos, aguardando o dia em que possa seguir as suas pegadas.
Para Santo Agostinho, Deus não recusa o conhecimento do Divino
Salvador a ninguém que faça um bom uso do seu livre arbítrio. Daí
se segue que nenhum homem que ame a Deus sobre todas as coisas
ficará, até ao fim da sua vida, no desconhecimento de Jesus Cristo,
mesmo que a sociedade dos servidores de Jesus Cristo não seja efec-
tivamente distinta da sociedade dos servidores de Deus.
Quase não seria necessário ressaltar que, em consequência da
oposição dos seus princípios constitutivos, as duas sociedades estão,
necessária e continuamente, em luta. Desde o princípio, os que andam
segundo a carne perseguem os que vivem segundo o espírito e aumen­
tam, com essas perseguições, o mérito e a glória das suas vítimas.
No entanto, a oposição das duas cidades não é de tal forma

160
0 de JeMí

absoluta que elas não possam ter interesses comuns, como sejam a
paz e a segurança temporal (XIX, 17). A cidade dos filhos de Deus
sacrifica tudo a esse interesse, menos os direitos de Deus (XIX, 26),
e, só luta contra a cidade terrestre, quando esta quer obrigá-la a vio­
lar a lei divina. Longe de ser naturalmente hostil às sociedades tem­
porais, a sociedade celeste é a única que nelas pode estabelecer uma
igualdade verdadeira e uma ordem constante (XIX 21, 24, 25).
Unidas por essa comunidade de interesses, as duas cidades tam­
bém o estão pela partilha, mais ou menos igual, de bens e males da vida.
A Providência divina manifesta-se certamente com fulgor, em mais de
uma ocasião, pelas bênçãos temporais que concede aos seus servidores
e pelos flagelos temporais com que atinge os seus inimigos. Mas essas
manifestações necessárias para sustentar a fé, tirar-lhe-iam todo o méri­
to, se não fossem excepções raras. Pelo próprio facto de a Cidade de
Deus estar ainda in via, não pode esperar a sua recompensa nesta terra.
A provação é a sua contingência presente. Sofrerá, então, os mesmos
males que a Cidade dos Homens, e partilhará, com ela, os bens sensí­
veis. Mas esses males, que são um castigo para os inimigos de Deus,
serão para ela uma razão de méritos; e os bens, que são o fim exclusivo
do amor e da ambição dos maus, são desprezados por ela (I, 7). Se ela
se apegar excessivamente a eles, Deus a purificará lirando-lhos (XV, 6).
Enfim, os limites das duas cidades não estão definitivamente
demarcados na terra. Quis Deus, pelo contrário, que, até ao último dia,
cada homem pudesse passar de um lado para outro. Para isso, basta
uma mudança no coração. Os castigos que Deus destina aos seus ini­
migos visam causar essa mudança salutar. Quantas vezes não acaba o
perseguidor por se transformar em perseguido e quantas vezes aquele
que antes atormentava os filhos de Deus não passa a ser atormentado
por aqueles com quem antes compartilhava orgulho e ódio!...

4. Origem e destino das duas cidades

Qual é a origem destas duas cidades? Antes de mais, foi a prova


a que foram submetidos os anjos; e, em seguida, a prova dos nossos

161
primeiros pais. Todos os anjos começaram por pertencer à Cidade de
Deus, mas, a partir do momento em que alguns pretenderam atribuir
a si a sua perfeição, foram banidos dessa sociedade de amor e come­
çaram a formar entre eles a sociedade do ódio (XI1, 6). Adão e Eva,
ligados pela criação à sociedade dos anjos bons, caíram logo nas
armadilhas do anjo mau. Pecaram por uma vaidade secreta, antes de
transgredir o preceito do seu Deus (XIV, 13). Tornaram-se assim,
sucessivamente, os pais das duas cidades; uma, imita a sua inocência
e o seu arrependimento; a outra, reflecte a sua prevaricação.
A separação deu-se na própria família dos primeiros pais do
gênero humano. Caim e os seus filhos só deram ouvidos às suas pai­
xões e só pensaram em se estabelecer na terra, onde fundaram cida­
des e inventaram as artes. Pelo contrário, Set e os seus descendentes
fizeram do culto de Deus a sua actividade principal (XIV, 21). Com
o tempo, essas tradições santas foram-se perdendo. Os filhos de Deus
deixaram-se seduzir pelos filhos dos homens, as duas cidades mistu­
raram-se, a Terra inteira ficou maculada pelo crime e, para purificá-
la, foi preciso que Deus enviasse as águas do dilúvio (XV, 22).
Essa é a origem das duas cidades que marcam toda a história. A
arca que salva do Dilúvio os restos da Cidade de Deus é a figura de
Jesus Cristo, por cujo coração entreaberto passaram todos os que
não pereceram nas águas (XV, 26).

5. A preparação da vinda do Salvador

Depois de Noé, as duas cidades retomam a marcha do seu


desenvolvimento paralelo. Entre os filhos do santo Patriarca, Sem
e Jafet são os que imitam a sua fidelidade. Cam, pelo contrário,
revolta-se e atrai terríveis castigos sobre si e sobre os seus des­
cendentes. Contudo, no próprio seio dessa família castigada, Deus
teve servidores durante algum tempo. Mas o seu número dimi­
nuiu, gradualmente, até que deixou de se saber onde encontrar a
Cidade de Deus. A própria família de Sem foi invadida pela ido­
latria. Para salvar a verdade de um naufrágio completo, Deus

162
0&eõa> aí Jfaaj Cfâtáfo 707 JfátáÓ‘07

escolheu um povo que deu à sociedade dos seus servidores uma


existência visível (XVI, 12).
E nesse ponto que começa, propriamente, a terceira idade do
mundo, com o desenvolvimento paralelo das duas cidades. Com
efeito, Santo Agostinho, e com ele toda a tradição, divide em sete
idades a existência da humanidade. A primeira idade, compreende
o período que antecedeu o dilúvio; a segunda, vai do dilúvio até à
vocação de Abraão, é a segunda infância da Cidade de Deus. Com
Abraão, esta sociedade entra na sua adolescência, adquire um
conhecimento mais completo dos desígnios que Deus tem sobre ela
e começa a multiplicar-se. A quarta idade, a da juventude, das lutas,
das provas, mas também do desregramento dos costumes, abre-se
com a saída do Egipto, para se encerrar com o cativeiro da
Babilônia. Começa então a quinta idade, a da maturidade, que con­
duz o povo antigo até à vinda do Redentor e à formação do povo
novo (XXII, 30). À medida que se sucedem esses períodos, e que a
Cidade de Deus se desenvolve, ela recebe do Céu luzes mais abun­
dantes e o Salvador é revelado aos homens de forma cada vez mais
clara. Pelos profetas, completa Deus a educação do seu povo e, por
meio dele, ilumina todos os outros povos (XVII-XVIII).
Mas a sociedade dos filhos dos homens recusa abrir os olhos a
essa luz. Afunda-se, pelo contrário, em trevas que se tornam cada
vez mais espessas. Dá aos seus chefes, e a seguir às criaturas mais vis,
a adoração que recusa dar a Deus (XVIII, 3, 13). Os poetas mais
celebrados, os sábios mais venerados, os mais doutos filósofos não
conseguem tirá-la desse abismo (XVIII, 14, 24, 25).
Por fim, no momento em que a sua corrupção atingira o auge,
o Verbo de Deus aparece e a sua_ En£arnação abre ao mundo uma
era nova. AjÇjdad.e..de Deus, que até então era apenas um esboço,
recebe a sua, constituição.,definitiva e, embora comece a ser assalta­
da pelas perseguições de fora e pelas heresias de dentro, fica dupla­
mente fortificada por essa provação. Cada luta nova que enfrenta é
prelúdio de um novo triunfo (XVIII, 49, 53).

163
6. Fim das duas cidades

Depois de dar a conhecer a origem e o progresso das duas cida­


des, Santo Agostinho revela o fim ao qual devem chegar.
Apresenta-se uma primeira questão: deverá a sexta idade do mundo,
iniciada com Jesus Cristo, ser também a última? Ou haverá um sétimo dia
de repouso e de triunfo (após esses seis dias de trabalhos e lutas), com o
qual se completaria a semana terrestre e que precedería um oitavo dia,
que seria o da eternidade sem fim? Santo Agostinho reconhece que essa
opinião, sustentada por um certo número de Padres da Igreja, nada tem
de condenável (XX, 7). Não enuncia, contudo, os motivos que o teriam
levado a abandonar essa opinião, que sustentara anteriormente.
De qualquer modo, Santo Agostinho parece persuadido de que
toda a existência da Igreja deve desenvolver-se numa contínua suces­
são de lutas, que chegarão até à luta suprema contra o Anticristo. No
momento em que, pelas ilusões e poder desse homem do pecado, a
Cidade dos Homens parecerá ter vencido completamente a Cidade de
Deus, Jesus Cristo intervirá em pessoa e destruirá os seus inimigos.
Reunirá na sua presença os vivos e os mortos, para retribuir a cada
um segundo as suas obras e reparar todas as desordens cometidas na
Terra, desde a origem dos tempos.
Será o final solene do grande drama da história. As duas cida­
des, até então confundidas, serão separadas uma da outra e irão, cada
qual, ocupar o lugar que lhe cabe em justiça. A Cidade dos Homens,
que desprezou as promessas de Deus, experimentará o efeito das
suas ameaças e expiará nas dores eternas do inferno o abuso que fez
dos prazeres passageiros da Terra (livro XXI). A Cidade de Deus,
pelo contrário, gozará eternamente no Céu o bem soberano ao qual
se uniu na Terra pela fé e pelo sacrifício (livro XXII).

7. Conclusão

Embora rápido, este esboço é suficiente para apreciarmos o


valor da grande obra do Bispo de Hipona. Com efeito, julgamos ter

164
0 &eàw de

exposto, com fidelidade, o fundo da sua teoria e ainda as idéias


gerais que constituem propriamente a sua doutrina histórica.
Dissemos o suficiente para que se possa admirar a sua amplitu­
de e a sua sublime simplicidade. Unindo a moral e a história, dá-nos,
^a^expjicação dos destinos-do género...huinanoJ_segundo..o_ mesmo
princípio pelo qual devemos julgar os destinos de.cadajiomem.
Distinguindo as duas grandes sociedades, no meio das inúmeras
sociedades que cobrem a Terra, Santo Agostinho fez, em relação à
história humana, o que faz o cientista em relação à história natural.
Enquanto que nas plantas e animais que cobrem a Terra, o olho
comum apenas percebe a sua incontável variedade, o cientista,
penetrando até às profundidades da sua organização, descobre aí
certas características gerais que lhe servem para classificar indiví­
duos tão diversos num pequeno número de gêneros e de classes. Do
mesmo modo, nos acontecimentos da história, também os outros
escritores, colocando-se unicamente sob o prisma do tempo, vêem
indivíduos, famílias e povos. Mas Santo Agostinho, subindo até ao
ponto de vista de Deus e da eternidade e indo ao fundo das almas,
discerne ali a única diferença capital para seres morais. Ou seja, a
diferença que os faz pertencer ao exército da ordem ou ao exército
da desordem, a Deus ou a Satanás.
No entanto, depois de ter tão bem percebido o princípio, con­
seguiu Santo Agostinho ver bem as aplicações? Será completa a sua
teoria histórica? Depois de termos lido o livro, não nos restará nada
a aprender sobre os destinos da Cidade da Deus? Responder, afir­
mativamente, a essa pergunta seria atribuir ao Bispo de Hipona um
mérito que não comportava o século para o qual ele escrevia. A últi­
ma palavra sobre a Cidade de Deus só poderá ser dita no último dia.
Até lá, a sua história continuará a desenvolver-se e a revelar ao
mundo fenômenos novos e completamente inesperados. Cada acon­
tecimento comporta para o historiador-filósofo uma conclusão nova
que ele relaciona, sem muita dificuldade, com os princípios antigos,
mas que nunca teria podido, apenas pelas próprias luzes, deduzir
desses princípios. É, assim, manifestamente impossível que uma his­
tória da Cidade de Deus, escrita no século IV, seja plenamente satis-

165
fatória para um leitor contemporâneo. Santo Agostinho ofereceu
tudo o que poderia oferecer na época em que escrevia, isto é, os
princípios e as suas primeiras aplicações. O estudo dos factos poste­
riores revelaria o resto.
Reconheçamos, entretanto, que - mesmo em relação aos factos
anteriores - a teoria de Santo Agostinho contem uma lacuna consi­
derável. Não fala da lei que preside os destinos colectivos dos povos.
A fórmula que apresenta para distinguir ás”dúãs cidades é perfeita,
quando se trata de marcar o lugar de cada homem no grande plano
da Providência. Mas, fora dessa acção individual que determina o
valor moral de cada homem, há uma acção colectiva, que ele exerce,
conjuntamente, com os que fazem parte da mesma sociedade políti­
ca. Do mesmo modo, fora dos bens e dos males, de cuja sucessão se
compõe a existência individual de cada homem, há prosperidades e
adversidades que são comuns a povos inteiros. As obras sociais, as
calamidades e as adversidades colectivas são, muito mais do que as
acções individuais, o objecto da História propriamente dita. Sendo
assim, a atenção do historiador-filósofo deve fixar-se, principalmen­
te, sobre esse tema, consistindo a sua tarefa principal em determinar
as leis que regem a acção colectiva dos povos e a sanção providencial
dessas leis. Mas esse pormenor não escapou à clarividência de Santo
Agostinho. Ele afirma, com efeito, numa das mais eloquentes passa­
gens do seu livro, que a evolução das nações é, muito mais do que os
factos isolados, o objecto dos cuidados da Providência. A explicação
do crescimento do Império Romano pode ajudar-nos a compreender
a sua ideia da acção providencial sobre as sociedades, embora em
parte alguma, ele ofereça sobre isso uma teoria completa. No seu
livro vemos bem as duas cidades a desenvolverem-se juntas e a cami­
nhar para rumos opostos, mas talvez não vejamos, claramente, a
influência que uma pode exercer sobre a outra e a unidade do plano
divino que regula o seu desenvolvimento.
Lembremos, por fim, a observação que fizemos no início e que
nos permitirá descobrir uma qualidade relativa, sem a qual poderia­
mos estar perante um defeito grave. Ao escrever o seu livro ”A
Cidade de Deus”, Santo Agostinho tinha em vista a refutação dos

166
0 e/e sfaaj
í
inimigos do cristianismo. A sua obra é, pois, mais polêmica do que
didáctica. Não devem surpreender-nos, assim, as interrupções que o
santo doutor faz à história das duas cidades para discutir as questões
de filosofia ou de exegese bíblica que davam, aos filósofos pagãos, o
pretexto para levantar objecções contra os dogmas do cristianismo.
Certamente, era ele o primeiro a compreender que essas contínuas
digressões prejudicavam a unidade e o encadeamento metódico da
sua doutrina, não hesitando, mesmo assim, em sacrificar a perfeição
da obra em benefício dos leitores. Quem poderia censurá-lo por isso?
Graças a essa preocupação, podemos hoje verificar que os erros
por ele refutados há quinze séculos têm o mais estreito parentesco
com os que hoje atacam o dogma cristão, conforme verificámos no
rápido resumo feito no começo do presente capítulo. O facto com­
preende-se, ainda melhor, quando lemos no livro do Bispo de
Hipona a refutação das teorias de Porfírio. Em nenhum lugar se
aplica melhor do que aqui a palavra do Eclesiastes: “Ninguém pode
dizer: ‘Eis, aqui está uma coisa nova’, porque ela já existia nos tem­
pos passados” (Ecle 1, 10). Com efeito, ainda hoje não se encontra
nada melhor para opor à verdade cristã do que os sofismas pulveri­
zados, há quinze séculos, por Santo Agostinho. Um deus que se limi­
ta a ser a alma do mundo e que se revela a nós pelas forças da natu­
reza; espíritos superiores com os quais nos relacionamos mediante
certos ritos e que misturam certas verdades úteis com revelações
mentirosas; um inferno temporário; a indiferença das crenças reli­
giosas. Enfim, os dogmas do paganismo, combatidos por Santo
Agostinho não são também os principais artigos do credo professa­
do pelo paganismo moderno? O que acrescentou Jean Reynaud ao
sistema de Porfírio senão algumas elucubrações de pouca importân­
cia? Tal é o “progresso” do erro: depois de tanto se mexer, volta afi­
nal ao ponto de partida... quinze séculos depois! E aquilo que apre­
senta como conquista das sociedades modernas é apenas o refugo
dos tempos passados...

167
I
Capítulo II

Doutrina de Bossuet
Encarregado de dirigir a educação do delfim, filho de Luís XIV,
Jacques Benigne Bossuet ', Bispo de Meaux, compreendeu que ela
não ficaria completa se, além de relatar os factos históricos, não
explicasse as respectivas causas ao seu real pupilo. Decidiu, pois, que
o delfim, após estudar, separadamente, a história dos diversos povos,
considerasse numa visão de conjunto os quadros que observara.nos
detalhes, para compreender a relação entre des^ penetrar os motivos
secretos que determinaram a acção dos homens e estudar a causa.pri-
meira que dispõe dos corações bem como das acções exteriores. J4ão
V Qxistia nenhum livro em que a história fosse tratada sob esse ponto
de vista. Se o delfim fosse um novo Carlos Magno, poder-se-ia espe­
rar que a leitura de “A Cidade de Deus” tivesse, sobre o seu espíri­
to, um efeito análogo ao que teve sobre o fundador do império do
Ocidente. Mas o herdeiro de Luís XIV não tinha a idade, nem os
horizontes que lhe permitissem entender um livro tão profundo.
Bossuet resolveu, então, compor uma obra adequada a tal fim. Feliz
necessidade que nos valeu uma das maiores obras do gênio humano!
Este objectivo inicial não foi o único que Bossuet teve em vista.
A segunda parte do seu livro denota a sua preocupação com a incre-

1) Jacques-Bénigne Bossuet (1627-1704). Orador sacro c escritor francês. Foi bispo


de Condom e, mais tarde, de Meaux. Célebre pela sua eloquência e talento lite­
rário, que lhe deram um lugar de destaque entre os clássicos da literatura fran­
cesa. Combateu o “quietismo” de Fénelon. Em 1671 tornou-se membro da
Academia Francesa. Os seus sermões - muitos deles proferidos diante da Corte
de Luís XIV - alcançaram grande fama. Perto de 200 foram publicados em 1772.

169
^a//uerc

dulidade que começava, na sombra, a preparar a guerra contra a fé,


que havería de se desencadear no século seguinte. Para prevenir os
seus ataques, decidiu reunir as provas da divindade da religião cristã.
Não conhecemos um tratado de religião, denso e completo como este,
que seja, ao mesmo tempo, tão conciso e tão eloquente. Se “ A Cidade
de Deus” é uma refutação admirável do paganismo, o “Discurso
sobre a História Universal” é uma magnífica apologia do cristianismo.
Mas não é sob este ponto de vista que vamos considerar esta
obra-prima. O que aí procuraremos, em primeiro lugar, são as gran­
des leis da história. Para atingir este objectivo, será preciso analisar
a obra de Bossuet como fizemos com a do Bispo de Hipona.
Perceberemos, então, facilmente os progressos que a ciência da
História deve ao doutor do século XVII.

1. Conteúdo da obra

O “Discurso sobre a História Universal”, no plano do seu autor,


devia abarcar tanto a história antiga como a moderna. No entanto,
apenas a primeira parte ficou publicada e, nos papéis de Bossuet, só
se encontrou um esboço muito incompleto da segunda. Mais adian­
te, veremos as possíveis causas que impediram o grande homem de
completar a sua mais bela obra. A sua investigação vai até Carlos
Magno, cujo advento assinala, em sua opinião, o fímr3õ7Tmpério
Romano e, portanto, da história antiga.
O primeiio jiyro (único concluído) divide-se em tjê^partes. Na
primeira, o autor resume todos O5.íaçtos da história antiga e reúne-
os em torno de um certo número de épocas importantes. Na segun­
da, mostra o desenvolvimento da religião e, de forma admirável,
destaca a Providência paternal de Deus em relação ao seu povo. Na
terceira parte, procura a causa da ascensão e declínio dos diversos
impérios que se sucederam na Terra.
Desde logo, notamos uma diferença importante entre.os pontos
de-vista-de-Bossueke ,os„ de .Santo Agostinho. Este considerava o
ipjTipo.e_a eternidade como duas sociedades inimigas. Descura os

170
0 Sfat/w d? fen/d na ^íftárâz

destinos temporais dos homens, fixando-se nos seus destinos eternos.


Bossuet, pelo contrário, analisa, ao lado da Cidade de Deus, as socie­
dades temporais, das quais só considera os destinos terrestres. Essas
sociedades podem pertencer à Cidade de Deus ou podem ser-lhe hos­
tis. Bossuet tem em conta essa situação, mas não se limita a ela.
Aceitando a acção da causa primeira, a sua atenção volta-se, princi­
palmente, para o estudo dos resultados da acção das causas segundas.

2. As épocas históricas, segundo Bossuet

Não vamos resumir a primeira parte, que é ela mesma um resu­ !


mo da história antiga. Notamos apenas que, ao adoptar a clássica
divisão dos tempos em sete idades, Bossuet modifica-a. Segundo
Santo Agostinho, que nisso está de acordo com os mais antigos
Padres da Igreja, a primeira vinda de Jesus Cristo, que coroa a cria­
ção sobrenatural, corresponde, de algum modo, ao aparecimento do
antigo Adão, que se deu no sexto dia da criação. Bossuet, talvez i
i I
embaraçado por não conseguir encontrar o sétimo dia na grande
semana da história, prefere contar seis dias antes de Jesus Cristo e
fazer começar em Jesus Cristo o dia do sábado. Assim, está de acor­
do com Santo Agostinho quanto às quatro primeiras idades as quais,
tanto num como noutro, são marcadas pela criação, o dilúvio, a
YQcagão de Abraão e a promulgação da Lei. Mas a quarta idade,
segundo Santo Agostinho, ^i^íU.até.a.Q cativeiro da Babilônia,
enquanto que para Bossuet dura apenas até Salomão. E difícil,
entretanto, atribuir a essa época do povo de Deus uma relevância
suficiente para motivar o início de uma nova idade. Por outro lado,
a opinião de Bossuet discorda da bela analogia que os Padres da
Igreja viram entre os dias da criação e os dias da história.
Certamente não foi uma era de repouso, mas de trabalhos e lutas a
que o Filho de Deus, ao vir ao mundo, abriu aos seus adoradores. O
povo de Deus, diz São Paulo, espera ainda o seu sábado.
Entre essas sete épocas, que se relacionam sobretudo com a his­
tória da Cidade de Deus, Bossuet intercala três outras, que marcam

171
mudanças consideráveis na sucessão dos impérios. Entre a quarta e
a quinta, coloca a conquista de Tróia; entre a quinta e a sexta, põe a
fundação de Roma; a destruição de Cartago fica entre a sexta e a
sétima; e já que, segundo ele, a história antiga se estende para além
de Jesus Cristo, acrescenta ainda (depois do começo da sétima
idade) mais_d.uas épocas: a de Constantino, ou da paz da Igreja, e a
de Carlos Magno, ou do estabelecimento do império novo.

3. A Igreja Católica

-A-SegmLda pjTte dojJDjs^cjJxso’’ está dedicada, já o dissemos, à


exposição do desenvolvimento da religião. Bossuet mostra a reli­
gião santa e, em consequência, a sociedade que dela é depositária,
como objecto especial dos desígnios da Providência. Segue-a desde
a criação do mundo até ao perfeito estabelecimento da Igreja
Católica, justifica os seus ensinamentos e destaca o seu destino glo­
rioso. Prova que, entre todas as doutrinas professadas pelos
homens, nenhuma há que dê sobre Deus, o homem, a origem do
mundo e as causas do estado actual da humanidade, explicações tão
satisfatórias como as Sagradas Escrituras. Mostra as intervenções
de Deus para fazer triunfar a verdade contra a malícia dos homens.
O dilúvio, a vocação de Abraão, as promessas feitas aos patriarcas,
■ os.jnilagres a favor do seu povo, a lei moisáica, o ministério profé­
tico, o cativeiro da Babilônia e a realização milagrosa das profecias, ^ 'Á
as predições sobre o Messias na volta do cativeiro)'a interrupção
das mesmas com o retrocesso à idolatria e, finalmente, os quatro- ' '
centos anos de paz raramente .interrompida. Nessa sequência de
acontecimentos, Bossuet mostra a mão de Deus a preparar o cami­
nho para a vinda do seu Filho.
Enquanto, no seio do povo de Deus, o Redentor é cada dia mais
conhecido e esperado, as outras nações caem no erro e na corrup­
ção, cuja profundidade demonstra a necessidade da sua vinda. Os
filósofos pagãos, embora conscientes da verdade, não procuram
fazê-la prevalecer, por lhes parecer empresa impossível.

172

0 .Stfet/w de feítáj ^7^ z/zz

Entretanto, até os próprios judeus se deixam corromper pela


concupiscência das coisas terrestres. Entram em discórdias que os
levam a cair nas mãos dos inimigos. Diversas seitas aparecem no
meio deles e abafam a piedade verdadeira. Deus entrega o seu povo
aos romanos e a reis estrangeiros que dependem do favor dos roma­
nos. O ceptro sai de Judá e as setenta semanas de Daniel comple­
tam-se quando o Messias aparece.
Cumprem-se aí as duas grandes predições que, nos escritos dos
profetas, se ligam constantemente à vinda do Homem-Deus, isto é,
a infidelidade do povo eleito e a vocação dos^genlips._
São os próprios filhos cegos de Abraão que pronunciam a
sentença da sua condenação. Inebriados pela ideia de um reino
temporal, que julgam prometido pelos profetas ao herdeiro de
David, fecham os olhos aos sacrifícios que os mesmos profetas
também anunciaram. E, assim, se recusam a aceitar a pobreza e
humildade de Jesus Cristo, condenando-0 à morte e fazendo com
que as profecias se cumprissem, não apenas n’Ele mas em si mes­
mos, ao atrair, pelo seu orgulho e obstinação, a vingança dos
romanos. Abandonam-se a todos os impostores que sabem explo­
rar os seus preconceitos e terminam por obrigar os romanos, dese­
josos de poupá-los, a destruir inteiramente o Templo e a cidade
santa de Jerusalém. ■

, Ao mesmo tempo, os gentios (até então excluídos das promes­


sas) são convertidos pela pregação dos apóstolos. A loucura da Cruz
opera no mundo uma mudança que a sabedoria humana nunca
ousara tentar. A idolatria, sustentada pelos maiores interesses e
poderes, é destruída.
A acção de Deus na Igreja não cessa de se manifestar pelos
símbolos mais fulgurantes. De Adão a Moisés, de Moisés a Jesus
Cristo, de Jesus Cristo até nós, a sociedade dos filhos de Deus
mostra um encadeamento ininterrupto de tradições veneráveis
que se vão iluminando e completando à medida que a humanida­
de cresce. Os elos dessa grande corrente estão firmemente ligados
uns aos outros.

173
JTfcnrí Sffanuère

4. O destino dos impérios

Na terceira parte do seu livro, Bossuet desce da altura em que


se encontrava para estudar os destinos dos impérios. E verdade que,
num primeiro capítulo, mostra esses destinos ligados aos da Igreja.
Os diversos impérios que se sucederam na Terra serviram os inte­
resses da Igreja, quando a apoiaram, ou quando a purificaram pela
perseguição. Mas, nos capítulos seguintes, é unicamente na sabedo­
ria das instituições e nas qualidades dos príncipes e dos povos que o
ilustre preceptor do delfim busca a razão da prosperidade e da esta­
bilidade dos impérios.
Entre os egípcios', Bossuet destaca sobretudo a simplicidade e a
estabilidade das leis, a inviolabilidade dos antigos costumes, o res­
peito de que gozavam todas as profissões úteis, o reconhecimento
testemunhado aos servidores da pátria, a severidade imparcial da
justiça que se exercia até além da morte e não poupava sequer os
reis, a educação igualmente assegurada a todos e talhada para forti­
ficar o corpo e formar as almas; enfim, a magnificência dos trabalhos
públicos cujos vestígios ainda despertam, depois de séculos, a admi­
ração do mundo.
Essa magnificência - mérito menor dos antigos egípcios - é, a
bem dizer, a única qualidade digna de admiração que Bossuet
encontra nos impérios de Nínive e da Babilônia. Mas essa qualidade
degenera logo em vício, transforma-se em fausto orgulhoso e em
moleza voluptuosa. Os assírios, vítimas dos seus próprios excessos,
foram rapidamente subjugados pelos persas e pelos medos.
Admiráveis pela austeridade dos seus costumes, estes últimos
povos perdem as suas virtudes ao aumentar o seu poder, deixando-
se, logo, dominar pelos vícios dos povos que acabam de subjugar.
Todavia, no meio dessa decadência, os persas conservam grande
generosidade de carácter, detestam a mentira, são imparciais e seve­
ros na aplicação da justiça, recompensam com liberalidade os servi­
ços públicos, glorificam as famílias numerosas, honram a agricultu­
ra, veneram universalmente a autoridade dos reis e prezam a edu­
cação dos seus herdeiros reais, para fazer deles bons príncipes.

174
Todas essas qualidades, porém, não bastam para colocar os per­
sas em condições de resistir aos ataques dos gregos, incomparavel­
mente menos numerosos, porém mais disciplinados. O que fez a
força dessa nação pequena foi, sobretudo, o amor da liberdade e do
bem público que animava todos os seus membros. Entre eles, a lei
era soberana, e todos os cidadãos se estimavam iguais diante dela.
A Grécia — que teria sido invencível se estivesse unida - dividia-se
em repúblicas que se guerreavam. Essas divisões favoreceram os
persas e fizeram-na cair em poder dos macedónios. Alexandre apro­
veitou esse poderio para vencer os persas, mas o seu extensíssimo
império, de bases pouco sólidas, não sobreviveu ao fundador.
Na terceira parte, Bossuet põe em relevo as causas do cresci­
mento e da ruína do Império Romano. O poder alcançado por esse
império, explica-se, segundo ele, pelo amor à liberdade e à pátria
que estava enraizado nos romanos; pela j.abedoria do Senado, cuja
orientação o povo seguia nas grandes crises; pelo segredo das deli­
berações e nobreza da conduta; pela antecedência com que prepa­
rava os empreendimentos e que evitava o aparecimento simultâneo
de vários inimigos a combater; pela resolução inquebrantável de
nunca ceder à força nem se deixar abater pelos reveses; pela gene­
rosidade em relação aos povos vencidos e a preocupação de com­
pensar a perda da sua liberdade; pela.equidade dos seus magistrados
na administração da justiça; enfim, pela admirável disciplina do
exército. A essas qualidades juntava-se, porém, um grande vício
que, depois de ter por muito tempo prejudicado a república romana,
acabou por destruí-la. O vício capital era a rivalidade entre as duas
ordens da república: os plebeus e os patrícios. Logo que os reis
foram expulsos, as discórdias apareceram. Inicialmente reduzidas I
pelas concessões dos patrícios e pelas guerras exteriores, agravaram-
se depois da destruição de Cartago, geraram a sedição dos Gracos,
as guerras de Mário e Sila, acabando por sujeitar o povo romano a esse
tirano que foi o precursor de César e de Augusto. Desapareceu, então,
a república para surgir uma ditadura militar. O imperador concentra
na sua pessoa o poder do Senado e do povo, mas ele mesmo fica à
mercê do exército. À medida que este toma consciência do seu poder,

175
impõe os seus caprichos e desestabiliza o império. Este divide-se em
facções e perde o seu vigor. O prestígio romano dissipa-se, os bár­
baros invadem o império pelo norte, enquanto os persas o desmem­
bram pelo oriente, caindo tudo em ruínas.
Bossuet termina o livro lembrando ao seu real aluno que o
encadeamento das causas particulares depende das ordens secretas
da Providência divina, que dirige sempre os acontecimentos para
os seus fins.

5. Observação crítica

Este esboço do “Discurso sobre a História Universal” não dis­


pensa a leitura daquela obra-prima, marcada a fundo pelo gênio de
Bossuet. Apenas resumimos a teoria histórica do Bispo de Meaux,
mostrando o que nela se deve a Santo Agostinho e o que a ela pró­
pria ficou a dever a ciência cristã da História.
Ora, se comparamos as obras desses dois grandes doutores,
reconheceremos sem dificuldade que o trabalho de Bossuet é mais
metódico e completo que o de Santo Agostinho. Com efeito, cada
uma das suas três partes forma um conjunto perfeitamente estrutu­
rado, cujos detalhes se encontram tão bem ligados entre si, que é
impossível omitir qualquer um. Nada falta e nada é supérfluo.
A lacuna que tínhamos notado em Santo Agostinho, relativa­
mente aos destinos colectivos dos povos, preencheu-a Bossuet de
forma admirável, dando-lhes uma explicação dupla, isto é, relacio­
nando-os com as causas próximas e com a causa primeira.
Mas, se reconhecemos à obra de Bossuet grandes méritos, nal-
guns casos até superiores à obra de Santo Agostinho, não podemos
esconder que eles se devem a uma qualidade na qual o Bispo de
Hipona é muito superior ao Bispo de Meaux. Falamos da unidade
no dado fundamental da história.
Em “A Cidade de Deus” essa unidade é perfeita. O desígnio da
Providência sobre a humanidade manifesta-se numa fórmula sim­
ples e luminosa que domina toda a história. No “Discurso sobre a

176
cé/üfo /za

História Universal” não encontramos isso. Temos ali uma certa uni­
dade no desenvolvimento da Religião, que é o objecto da segunda
parte. Jesus Cristo aparece como o elo de ligação entre o povo antigo
e o povo novo. Ele é, sempre, a consolação e a esperança dos filhos de
Deus, tanto quando era esperado, como depois de nos ser dado.
Por outro lado, a sucessão dos impérios liga-se a esse centro
divino, mas por pontos meramente acidentais. Bossuet não formula
uma lei geral que permita compreender o conjunto do plano provi­
dencial. Prova, magnificamente, que a causa primeira dirige, segun­
do a sua livre disposição, a acção das causas segundas, mas nada diz
sobre o fim para que o faz. Completa o edifício construído por Santo
Agostinho, conclui, com mão de mestre, as suas diversas partes, mas
faz-lhes perder o seu mérito principal, ou seja, a unidade e a simpli­
cidade do plano. Parece-nos que, se tivesse desenvolvido o princípio
fundamental que lhe dava unidade, isso bastaria para preencher as
eventuais lacunas de Santo Agostinho.
Essa falta de unidade na teoria histórica de Bossuet não se mostra,
apenas, na falta de uma fórmula geral que esclareça e domine as três par­
tes do seu trabalho, mas manifesta-se, também, na divisão do livro.
Ninguém ignora que, para ajuizar a unidade de um plano, o meio mais
simples consiste em verificar a sua divisão. Noto, inicialmente, que
Bossuet estabeleceu o ponto de separação entre o mundo antigo e o
novo, não na vinda do Salvador, mas na fundação do Império do
Ocidente. Jesus Cristo não aparece, pois, como a união entre os dois
mundos e o fulcro de toda a história religiosa. Terá Bossuet querido que
a História Universal tivesse como centro a história da Cidade de Deus?
Enfim, procuro, em vão, nessa primeira parte da obra de
Bossuet, algum dado que me permita adivinhar o que escrevería na
segunda. Em qualquer plano bem concebido, as partes simétricas
atraem-se e manifestam-se de tal maneira que, vendo a primeira,
certamente não se fica a conhecer a segunda, mas pode-se imaginar
o conjunto. Mas aqui nada há de semelhante. Que diferença existe,
com efeito, entre a acção da Providência na Nova Aliança e na
Antiga? Que influência produzirá a Encarnação nos destinos dos
impérios? Bossuet nada diz a esse respeito.

vn
E, entretanto, ele não poderia conceber o conjunto do seu plano
sem ter a respeito dele um pensamento delineado, e as conclusões a
que deveria chegar não poderíam deixar de modificar o dado funda­
mental da sua teoria. Como foi possível que não tenha deixado explí­
cito o seu desígnio? Como explicar que tenha tanto tempo sobrevivi­
do à sua obra-prima sem pensar em completá-la? Como pôde (segun­
do testemunho do Padre Ledieu), empregar tanto tempo, nos últimos
anos da sua vida, ao aperfeiçoamento de detalhes desse edifício
incompleto em vez de colocar, pelo menos, os alicerces da parte que
tinha, há tempos, prometido construir? A acção de Deus na Igreja
era então mais difícil de entender do que a conduta da Providência
na Sinagoga. Mas não encontraria o talento de um Bossuet, nos des­
tinos gloriosos do povo novo, mais firme apoio para a sua eloquência
do que nos destinos ainda obscuros do povo antigo?
Para essas questões que, naturalmente, se apresentam diante da
sua obra-prima mutilada, só encontramos uma resposta. Os infelizes
preconceitos que o cegaram em relação ao Papado obstaram a que
entendesse a acção da Providência na Igreja. Basta ler a “Declaração
do Clero da França”2, escrita em grande parte pelo Bispo de Meaux -
e que é um veemente requisitório contra os maiores papas da Idade
Média - para compreender que o seu autor se tornara incapaz de
interpretar os desígnios de Deus sobre a Igreja e sobre as sociedades
modernas. A época tão grande, embora tão convulsionada, em que o
Papado trabalhou com tanta intrepidez e constância na educação dos
povos bárbaros e na formação da Cristandade, era, aos olhos de
Bossuet, apenas um grande eclipse durante o qual Deus permitiu que
os seus vigários, e com eles a Igreja inteira, caíssem em erros deplorá­
veis dos quais só escaparam pelas doutrinas nascidas do cisma do
Ocidente. É triste dizê-lo. Bossuet não compreendeu essa grande ideia
da Cristandade - tão bem compreendida pela Idade Média, embora
por ela realizada de forma imperfeita - que conseguiu associar os
povos cristãos sob a direcção não política, mas moral, do vigário de

■. 1682 em defesa das liberdades galicanas. Era um apoio a Luís


2) Declaração de
XIV, na c—~ em choque com o Papa Inocêncio XI.
ocasião

178
I

de fátíJ ZUZ

Cristo. Bossuet não conseguiu compreender, e censurou até como


usurpações, os esforços feitos pelos papas para vencer as resistências
do cesarismo pagão. Não compreendeu a admirável acção do Papado
(cujo desaparecimento nos respectivos países foi lamentado pelos
próprios protestantes) e que refreou a tirania dos príncipes e a insu­
bordinação dos povos pela autoridade de um ancião desarmado,
representante da consciência humana; autoridade para a qual os
povos modernos só encontraram substituto teórico num equilíbrio
impossível e substituto prático nas revoluções periódicas. Bossuet não
compreendeu o reinado social de Jesus Cristo, cujo mero esboço foi
mesmo assim suficiente para lançar as bases da civilização moderna.
Contudo, esse é o grande plano da Providência, só podendo a
humanidade voltar às vias do seu progresso autêntico quando o
adoptar novamente. Como poderia, pois, Bossuet mostrar à humani­ i

dade os seus verdadeiros destinos? Bastar-lhe-ia um pouco de bene­


volência em relação ao Papado para justificar a sua acção, sem entrar
na questão do domínio directo e indirecto do Vigário de Cristo sobre
os poderes temporais. No fundo, o que queriam os papas da Idade
Média era estabelecer no mundo essa unidade que Bossuet não
soube ver, e que, sem destruir a distinção e a independência legítima
das duas sociedades, as teria feito convergir para o mesmo objectivo.
Como poderia o escritor dar na sua obra relevo a essa unidade
se a considerava um crime?
Quando David se preparava para construir o Templo, enviou-lhe
Deus um profeta a dizer que as suas mãos não estavam suficiente
mente puras para realizar aquele trabalho santo. E, no entanto, as
mãos de David estavam manchadas apenas com o sangue do inimigo.
Infelizmente, Bossuet, embora devotado à verdade e à Igreja, empre­
gou a sua pena, que era também a sua espada, para combater os maio­
res chefes do exército de Deus. Mas, também, recebeu a punição da
sua falta, deixando inacabada a sua mais bela obra. Se, ao invés de ser
o panegirista exagerado do absolutismo real, se tivesse colocado como
discípulo dócil do Papado, o ‘‘Discurso sobre a História Universal
estaria, provavelmente, concluído e a Igreja já possuiría, há três sécu­
los, a Filosofia da História pela qual ainda hoje espera.

179
Capítulo III

A Teologia da História
Logo no início deste estudo, formulámos duas questões: 1)
Existe uma Filosofia da História?; 2) Se existe, a que leis obedece?
Para responder com pleno conhecimento de causa a estas duas
questões, começámos por analisar o âmago do nossoi tema.
Acompanhámos a acção dos agentes históricos: JD.eus, o homem e o
demônio. Estudámos os respectivos fins, e os meios que esses agen­
tes podem empregar para os atingir. Feito isso, já estaríamos aptos
para tirar conclusões, mas pareceu-nos necessário, a fim de evitar
possíveis erros, examinar ainda as diversas teorias, verdadeiras ou
errôneas, que têm sido apresentadas para resolver as duas questões
que apresentámos. Neste momento, esclarecidos pelos ensinamen­
tos dos grandes mestres, e até mesmo pelos erros dos nossos prede-
cessores na matéria, podemos, sem temeridade excessiva, explicitar
a nossa própria opinião.

1. Filosofia ou Teologia da História?

Já vimos que alguns escritores católicos aceitam a existência da


Filosofia da História, enquanto outros a negam. Essas duas atitudes
podem ser igualmente correctas, consoante o sentido dado à pri­
meira pergunta formulada acima. Veremos, pois, que não é difícil
conciliar as duas opiniões antes expostas, já que apenas em aparência
são contraditórias. O que se entende por Filosofia da História? Será
uma ciência puramente filosófica, que pretende dar uma explicação

181
completa dos factos da História, estruturando-os segundo princípios
racionais, mas sem ter em conta a Revelação? Se assim se entender
a Filosofia da História, não hesitamos em concordar com os que
negam a viabilidade de uma tal ciência. Afirmar que é possível
encontrar uma explicação completa dos factos da História, sem
recorrer à Revelação, equivale a negar a própria Revelação. Com
efeito, nada há de mais absurdo do que afirmar que o Filho de Deus
se fez homem, para, seguidamente, negar a sua influência sobre a
humanidade. Não há meio-termo: ou se nega a Encarnação do
Verbo de Deus, ou se reconhece que ela é o próprio fulcro da
História e a verdadeira solução de todos os enigmas sociais.
Só podemos conceber uma situação na qual a ciência da
História poderia ser uma simples filosofia. Se Deus quisesse deixar
o homem na sua condição natural, então não haveria outra luz para
explicar o seu destino além da que vimos nos capítulos anteriores.
Provámos que o fim essencial de Deus, em todas as obras que reali­
za fora de Si, consiste em reflectir nas suas criaturas a imagem das
suas perfeições divinas. Mostrámos como essa semelhança divina
pode produzir-se em cada homem, nas sociedades e até na humani­
dade inteira. E, em conformidade com esses princípios, que os fac­
tos deviam ser explicados numa história puramente natural. A expli­
cação talvez não fosse inteiramente satisfatória, e a ligação dos prin­
cípios com as suas conclusões chegaria com dificuldade para que a
História pudesse ser considerada uma verdadeira ciência. Não o
negamos. Mas não haveria então outra teoria geral dos factos histó­
ricos. Relacionar as acções individuais com as leis da moral, os
movimentos das sociedades com as leis da política, as vicissitudes da
humanidade com o fim essencial da Providência, tal seria então a
tarefa do historiador-filósofo.
Mas isso deixou de ser assim, a partir do momento em que, por
uma sublime aliança, a humanidade foi unida à Divindade. O seu
destino ganhou incomensurável amplitude e a missão do historiador
enobreceu-se imensamente. O fim essencial da Providência apare­
ceu com clareza extraordinária. As leis da moral e da política trans­
formaram-se, juntamente com os destinos dos indivíduos e dos povos.

182
1

0 Srfówe de fefzzj /za

A ciência da História deixou de ser uma simples filosofia para se


tornar uma teologia admirável.
É bem verdade que a Encarnação do Filho de Deus, ao elevar
o homem à ordem sobrenatural, não destruiu a ordem natural. Essa
ordem foi, pelo contrário, enobrecida e completada. Contudo, pelo
próprio facto de ter sido completada, pela sobreposição de uma
ordem mais elevada, deixou de ser completa em si mesma. Os prin­
cípios racionais que serviríam para explicar a História, se Deus
tivesse deixado a humanidade no estado de pura natureza, consei-
vam assim, na presente ordem, toda a sua verdade, mas não formam,
por si, a ciência histórica. São tochas nas quais a luz não se apagou,
mas se empalideceu ao raiar o sol. Existe, na ordem presente, algu­
ma coisa da filosofia pura e da religião natural, ou seja, um conjun­
to de deveres que resultam das relações essenciais da criatura racio­
nal para com o seu Criador. É concebível mesmo uma ordem de coi
sas em que esses deveres pudessem ser suficientes para conduzir o
homem até Deus. Mas, a partir do momento em que Deus quis
acrescentar preceitos positivos a esses deveres essenciais, a obser
vância destes já não pode ser suficiente. A religião natural, se existe
na ordem presente, é apenas como parte da religião sobrenatural, e
unicamente por ela seria impossível chegar até Deus. Do mesmo
modo, a ciência racional da História é de todo insuficiente para nos
explicar os destinos da humanidade, a menos que a ela acrescente
mos o conhecimento que nos foi dado por Deus na Revelação. Não
negamos, pois, a realidade dessa ciência. Pelo contrário, sustenta
mo-la com todas as nossas forças. Estamos dispostos a aceitar todas
as considerações úteis que o racionalismo possa deduzir da essência
I
de Deus, da natureza do homem e das condições da sociedade. Mas
não nos privaremos da tocha muito superior que a bondade divina
nos oferece. Negamos que a filosofia racional da história seja uma
ciência completa e que possa oferecer uma explicação suficiente dos
problemas que visa resolver.
Todavia, não pretendemos discutir palavras. Frederico von
Schlegel e muitos outrosescritpres católjcps considerama Filosofia,
da História como a ciência que relaciona_os !aç.tos da_hislória cojn

183
os seus princípios - sejam eles racionais ou revelados. Aceitamos
essa definição, que não nos parece oferecer qualquer dúvida.
O próprio Roux-Lavergne, no livro em que combate a Filosofia da
História, segue esta opinião.

2. As leis da História

Falta, porém, resolver a segunda questão, que é muito mais


difícil do que a primeira. Quais são as leis dessa Filosofia ou dessa
Teologia da História, cuja existência aceitamos? Antes de respon­
der, digamos em que sentido se deve entender a palavra lei, quando
aplicada à História. Ninguém ignora que há dois tipos de leis: as leis
físicas e as leis morais. As primeiras resultam da natureza dos seres
e, salvo raras excepções, a sua execução é necessária e, consequen­
temente, infalível e constante. As leis morais, pelo contrário, depen­
dem na sua realização da vontade livre de agentes racionais, ficando
assim sujeitas a violações constantes. A qual desses dois gêneros
pertencem as leis da História? Não podem, evidentemente, perten­
cer à categoria das leis físicas, pois regem a acção de agentes morais.
Nada mais contrário à natureza das coisas do que tornar a Filosofia
da História semelhante à física, que obtém por simples indução as
leis do mundo material. No entanto, as leis da História, sendo sobre­
tudo morais, não estão completamente dependentes do livre arbítrio
do homem. Ao dar-lhe inteira liberdade, Deus pôde reservar - e
reservou - para Si a faculdade de dirigir infalivelmente para os fins
desejados por Ele os próprios abusos da liberdade humana.
Poderemos então - ao lado das leis morais, pelas quais Deus indica
à humanidade o fim que ela deve livremente buscar - descobrir
outras leis pelas quais o Criador realiza os seus desígnios, apesar de
todas as resistências. Essas leis constituem o destino verdadeiro, que
não destrói a liberdade mas que a domina e a põe dentro da ordem
querida por Deus.
Esses dois gêneros de leis estão ligados estreitamente, e é fácil
uni-los a um princípio primeiro de onde dimana, como que de uma

184
& Sffeâw t/e fáaJ /i/z jffútáràz

fonte luminosa, toda a Filosofia cristã da História. Exporemos rapi


damente essa teoria, já que ela é apenas o resumo e a conclusão os
capítulos anteriores.

3. A lei suprema da História

A grande lei da História, ou seja, o objectivo supremo pro­


posto pela vontade divina aos indivíduos, às sociedades e à huma­
nidade inteira é a instauração do Reino de Cristo. Entendemos por
Reino de Cristo a semelhança perfeita e a submissão completa dos
indivíduos, dos povos e de toda a humanidade ao Homem-Deus,
modelo soberano de todas as perfeições e soberano Senhor de
todas as coisas.
A autenticidade dessa lei é evidente. Decorre do amor substan
ciai do Pai pelo seu divino Filho, da perfeição incomparável do Verbo
Encarnado que não poderia fazer-Se homem, sem se tornar, por isso
mesmo, modelo e chefe da humanidade. Decorre, finalmente, do
dever essencial que nos obriga a nos submetermos a Deus e a nos
assemelharmos a Ele, e que nos obriga também, com a mesma força,
a nos submetermos e a nos assemelharmos ao Homem-Deus.
Esta lei é universal e absoluta. Aplica-se às acções colectivas
das sociedades, bem como às acções individuais dos homens, que
delas fazem parte. Se o Homem-Deus é o Senhor soberano, qual
quer acto livre dos homens deve conformar-se com a sua vontade.
Se Ele é o soberano Modelo de todas as perfeições morais, qual
quer acto susceptível dessa perfeição deve ser semelhante a esse
Modelo. Tudo o que não se apoia neste fundamento, constrói-se
fora do plano de Deus e, consequentemente, em oposição aos
desígnios da Providência.
As sanções dessa lei são, em primeiro lugar, a própria perfeição
e a felicidade que a semelhança com Jesus Cristo e a submissão à sua
lei confere aos homens, aos povos e à humanidade inteira. São tam­
bém, em sentido contrário, a degradação e a perturbação que neces­
sariamente resultam da desobediência à vontade divina e do afasta-

185
mento do Modelo celeste. Essas duas espécies de sanções, embora
igualmente infalíveis, nào são, porém, igualmente imediatas: a per­
feição e a degradação moral seguem sempre, inevitável e imediata­
mente, a imitação e a recusa do Modelo divino. Pelo contrário, a
felicidade ou a perturbação nem sempre serão sentidas num primei­
ro momento de submissão ou de revolta. Se essa recompensa e essa
punição fossem sempre instantâneas, a bem dizer, não haveria liber­
dade nem mérito. Continua a ser verdade, no entanto, que para os
indivíduos, para os povos e para a humanidade inteira, o Reino de
Jesus Cristo é, em si mesmo, um princípio de felicidade, que come­
ça já nesta Terra, e a revolta contra Jesus Cristo, o princípio das
maiores infelicidades.
Aqui se apresenta, porém, uma questão mais difícil: o Reino de
Jesus Cristo, que é o fim da acção providencial, depende muito da
vontade livre do homem. Nesta perspectiva, não deveria Deus esta­
belecê-lo na Terra de alguma maneira, mais cedo ou mais tarde,
apesar de todas as resistências? Não nos parece possível responder
a priori e com segurança a esta pergunta.
Mesmo que Deus tenha dado à humanidade o poder de pôr, até
ao fim dos tempos, obstáculos ao triunfo completo do Verbo
Encarnado, nem por isso a Providência faltaria a uma promessa sua.
Parece, entretanto, mais conforme à dignidade do Homem-Deus e à
sabedoria de seu Pai, que esse triunfo completo não seja adiado para
a eternidade. Se o Homem-Deus é o Rei da Terra e do Céu, por que
não haveria o seu Reino de se estabelecer na Terra e no Céu? Essa
glória, que Ele recebería de todos os povos livremente submetidos
ao seu império, não Lhe será devida sob todos os aspectos? E se ela
Lhe é devida, poderia Deus-Pai recusá-la, quando a sua sabedoria
Lhe dá todos os meios para a realizar, sem lesar em nada a liberda­
de dos homens? Haverá conveniência em que a Providência se veja
frustrada até ao fim, na consecução do objectivo supremo que ela
busca na direcção das coisas humanas?
A liberdade dos homens permite-lhes contrariar ou protelar
esse objectivo divino. Admitir, porem, que tal realizaçao possa sei
definitivamente impedida, nao seria dar excessiva vantagem à mal-

186
dade do demônio sobre a bondade divina? Parece-nos evidente que
sim. Mas vejamos o que dizem, sobre isso, as Sagradas Esciituras.
Deus pronunciou-se. Prometeu ao seu Filho dar-lhe as nações em
herança. Anunciou, por todos os profetas, que, um dia, todas as revol
tas acabariam para dar lugar a uma grande paz, que a montanha de
Sião seria elevada sobre todas as alturas da Terra, e que o reino, o
poder e a grandeza, não apenas no Céu, mas em tudo que está debai­
xo do Céu, pertenceríam um dia ao povo dos santos do Altíssimo.
É o que já demonstrámos noutro lugar e a que voltaremos mais
adiante. Na expectativa de virmos a conhecer provas peremptórias
contra as razões que apresentámos, é normal a nossa adesão aos
motivos de conveniência que tendem a persuadii-nos de que a ei
suprema da História não será ineficaz para sempre e que o Reino de
Jesus Cristo na Terra deixará um dia de ser apenas um reino e
direito, para se tornar um reino de facto.

4. Principais aplicações dessa lei

Ficámos a conhecer o objectivo supremo da humanidade e,


consequentemente, a lei suprema da História. Cabe-nos agora estu­
dar as principais aplicações dessa lei.
Antes de mais, vamos distinguir na humanidade dois elementos:
um deles é por assim dizer a alma da humanidade, o outro é o seiLgorpa
A alma da Humanidade é_aJgreja. Só ela pode dar aos homens
e aos povos o conhecimento dos seus destinos e a força para realizá-
los. A Igreja, vivificada pelo Espírito de Deus, vivifica, igualmente,
tudo o que se submete à sua influência. A Igreja é a sociedade das
almas que querem imitar o Modelo divino e desejam observar os
preceitos do Legislador soberano.
E evidente que, no seio dessa sociedade divina, a grande lei da
História realiza-se com muito mais perfeição do que nas sociedades
temporais. A liberdade humana tem, certamente, o poder de con­
trariar os desígnios de Deus, e os membros da Igreja têm a liberda­
de de imitar Jesus Cristo ou de se afastar d’Ele, de se submeterem à

187
sua lei ou de violar as suas prescrições. Mas Jesus Cristo, tendo ins­
tituído a Igreja para ocupar o seu lugar na Terra, deve a Si mesmo
manter sempre o conjunto dessa sociedade na via recta e não per­
mitir que ela deixe de reflectir no mundo o ideal divino.
Ííesta forma, o Reino de Jesus Cristo na Igreja será sempre um
Reino de facto, embora nem sempre alcance toda a plenitude que
seria de desejar]
Antes de mais, Jesus Cristo reinará sempre nalgumas almas que
se Lhe submeterão e que se esforçarão por serem semelhantes a Ele.
As almas em que o Reino de Jesus Cristo está inteiramente estabele­
cido, são as almas dos santos, cuja raça nunca poderá extinguir-se
completamente no seio da Igreja. Cada uma dessas almas constitui
uma imagem parcial do ideal divino, cada uma é chamada a reprodu­
zir um dos aspectos da sua beleza, e a beleza da Igreja no seu conjun­
to resulta, em grande parte, da variedade infinita dessas imagens. São
incontáveis espelhos a reflectir aspectos do Homem-Deus, formando
em justaposição um retrato magnífico da sua fisionomia adorável.
Jesus Cristo reina ainda no seio das sociedades religiosas da
Igreja. O fim destas é a imitação, tanto na vida colectiva, como na
individual dos seus membros, dos exemplos do Homem-Deus e a
realização plena dos desejos do seu Coração. Tal como sucede aos
indivíduos, essas sociedades particulares não poderão abarcar, em
toda a sua extensão, a perfeição do Modelo divino. Cada uma esco­
lherá um aspecto que O reproduzirá muito mais perfeitamente do
que um só homem poderia fazê-lo. Algumas ordens serão contem­
plativas, outras serão pregadoras da palavra divina, outras cuidarão
dos doentes. Não haverá uma só função do Mediador divino que não
seja realizada por uma dessas santas famílias. O seu conjunto for­
mará, assim, uma nova imagem do ideal celeste, mais vasta nas suas
proporções do que a beleza admirável das almas dos santos.
Mais ampla ainda é a imagem do Homem-Deus apresentada pela
Igreja inteira. Nela encontramos as prerrogativas do Mediador divi­
no constantemente reproduzidas; as suas virtudes constantemente
praticadas; as suas funções constantemente exercidas; e a sua vida
constantemente renovada. Como Ele, a Igreja é una, embora abrigue

188
fáaJ 'fíntâ na Jfá/áína

no seu seio uma mistura surpreendente das fraquezas da humanidade


com as glórias da Divindade. Como Ele, nada teme das vicissitudes do
tempo; como Ele, está presente no Céu e em toda a Terra; como Ele, é
santa e santifica as almas; como Ele, ilumina os espíritos pela verdade,
purifica e fortifica os corações pela graça; perdoa os pecados, expulsa os
demônios; cura os doentes; confunde o orgulho e dissipa os erros, como
Ele, é pobre, humilde, paciente e dedicada, sempre perseguida e sem
pre calma; como Ele, vê sucederem-se no decurso da sua existência, a
adoração dos Magos e as perseguições dos Herodes, a humildade de
Nazaré e os trabalhos do apostolado, os esplendores do Tabor e as tre
vas do Calvário, a morte e a Ressurreição.
No entanto, essa semelhança com o Homem-Deus - que nunca
deixa de ser reconhecível na Igreja - não se encontra sempre nela com
a mesma perfeição. Composta de elementos humanos sujeitos a todas
as fraquezas e influências terrenas, a santa Igreja poderá ver a sua
beleza alterada por muitas causas; aos dias de fervor e de consolação,
sucederão os dias de provação e de luto. A Providência, que a az pas
sar por essas vicissitudes dolorosas, não permitirá que sucum a.
Disporá as venturas e as tribulações de maneira a prová-la, porem nao
a esmagá-la. Se a malícia dos homens e do demônio podem impor-lhe
fracassos temporários, também a vontade divina pode intervir a
tempo de a fazer triunfar. Apesar de todas as nuvens que passarao
sobre ela, o ideal divino manifestar-se-á ao mundo, por seu interme
dio, com um brilho sempre crescente. Todos os acontecimentos e i
zes ou infelizes que terão sobre ela alguma influência, tenderão a taci-
litar-lhe a realização desse grande dever e ajudá-la-ão a apresentar ao
Céu as imagens mais perfeitas de Jesus Cristo, seja na sua existência
colectiva, seja nas sociedades religiosas que nascem constantemente
no seu seio fecundo, seja, por fim, nas almas dos seus santos.

5. A questão de direito

A lei geral que domina a história da humanidade realiza-se, assim,


com um brilho incomparável na história da Igreja e é suficiente para

189
explicar todas as suas vicissitudes. Mas realizar-se-á também essa
mesma lei na história das nações? Não somos obrigados a reconhe­
cer que um grande número de povos ficou durante toda a sua exis­
tência, privado de conhecer Jesus Cristo e fora da sua influência? Se
fosse uma influência directa, poderiamos sentir-nos embaraçados
em responder. Mas existem influências muito reais que agem de
forma indirecta e até negativa. Além disso, nos destinos das nações,
mais ainda do que nos da Igreja, podemos distinguir questões de
direito e questões de facto. Essa distinção permite entender, sem
cair em exageros, a unidade do plano providencial. Sim, o estabele­
cimento do Reino de Jesus Cristo - ousamos afirmá-lo - é o fim que
busca a Providência, tanto no governo das nações, como no governo
da Igreja, embora de forma diferente.
Se examinarmos a questão de direito, não parece haver lugar
para dúvidas. Em que consiste a perfeição e, consequentemente, o
destino das nações? Não é pela ordem que nelas reina que se salva­
guardam os direitos e interesses legítimos, que se garante o devota-
mento dos chefes e a livre submissão dos súbditos, a união dos mem­
bros entre si, a generosidade que leva os ricos a socorrerem os que
sofrem, e a busca dos verdadeiros bens sociais? Não se poderá dizer
que uma nação realiza o seu fim quando nela reinam a verdade e a
justiça e os interesses materiais estão subordinados, no seu desen­
volvimento, aos interesses morais?
Mas essas condições de perfeição das sociedades não serão as
próprias condições do Reino de Jesus Cristo? Em vão se procuraria
na História, fora da influência de Jesus Cristo, a realização desse
ideal. Apenas o divino Salvador ensinou a verdade de forma a torná-
la acessível a todas as classes da sociedade humana. Os legisladores
mais astutos julgaram poder dominar as inteligências dos seus povos
enganando-as com fábulas e ficções mentirosas nas quais apoiaram
o edifício da sua moral. Apenas Jesus Cristo revelou verdadeira
grandeza, abaixando-se voluntariamente e colocando a sua glória ao
serviço dos seus súbditos. Apenas Ele elevou a dignidade da obe­
diência ao nível da dignidade do comando. Apenas Ele provou aos
ricos que o seu interesse verdadeiro deve levá-los a despojarem-se

190
0 Sfyàw d? na Jfâjfona

os seus bens em favor dos pobres. Apenas Ele provou aos pobres
que podiam encontrar, na sua miséria, o princípio dos bens mais pre­
ciosos. Nas virtudes de que deu um perfeito exemplo, o Homem-
eus apiesentou aos povos a única defesa eficaz contra os vícios que
os arruinam e corrompem. Dessa forma, por uma consequência tão
verdadeira como aparentemente paradoxal, a renúncia tornou-se,
sob a sua influência, a fonte das verdadeiras riquezas e dos prazeres
puros. E, sob a sua influência benfazeja, quanto podem desenvolver-
se as faculdades superiores do homem, nos campos da ciência e da
criação artística! Jesus Cristo é o Homem modelo, o Homem eleva-
o à dignidade divina, é o elo que une todas as perfeições criadas
com a perfeição incriada. É o Ideal plenamente realizado pela mão
do Omnipotente, vindo das regiões do invisível para se tornar visí-
Vel e palpável. Como poderia tamanha grandeza deixar de atrair a
Si, irresistivelmente, os amantes das ciências e das artes?
Mas a imitação desse ideal divino tornou-se ainda mais fácil às
sociedades por causa da sua realização na Igreja. A Igreja é a socie-
dade-modelo, do mesmo modo que Jesus Cristo é o Homem-mode-
lo. A sua missão não poderia limitar-se a formar imagens de Jesus
Ci isto em cada uma das almas e em cada uma das sociedades reli­
giosas de que é composta. Ela apresenta, ainda, uma imagem colec-
tiva desse Redentor divino às sociedades temporais para as quais a
imitação do Modelo divino se torna, assim, muito mais fácil. Todas
as formas sociais se encontram na constituição da Igreja, sem
nenhum dos defeitos que, noutras situações, tenderíam a alterá-las e
a torná-las prejudiciais.
A autoridade do monarca não tem limites quando se trata de
fazer observar a lei divina, mas é nula, fora dessa lei. E quem dirige
todas as almas, deve gloriar-se de ser o servidor de todos. Os prínci­
pes dessa Igreja santa só são pastores em relação aos povos, na con­
dição de serem ovelhas em relação ao primeiro dos pastores. Os que
ocupam os últimos lugares podem chegar aos primeiros postos,
sendo o mérito a medida dos cargos. Todos os sofrimentos são nela
aliviados; todas as dedicações praticadas; as ciências honradas; as
artes encontram nela o seu mais sublime exercício; todas as riquezas

191
S/Hanuese

da Terra nela são santificadas pela sua consagração ao culto do Rei


dos Céus. Não estará aí, na medida das possibilidades da fraqueza
humana, o ideal da sociedade? Como ficam abaixo dessa admirável
realidade as utopias de Platão e dos filósofos que deram asas soltas
à sua imaginação! Se todos os povos imitassem este Modelo, cada
um segundo a sua vocação e aptidões, se imitassem a Igreja, pelo
menos nos laços morais que unem os seus membros tão intimamen­
te, se dela aceitassem receber a verdade, se apoiassem a autoridade
da lei moral nos seus ensinamentos infalíveis, se procurassem nas
suas promessas e ameaças um freio mais eficaz que o das recom­
pensas e penas temporais, então, a humanidade teria realizado todos
os desígnios da Providência, porque o Reino de Jesus Cristo estaria
estabelecido em todas as nações.

6. A questão de facto

Não se pode então negar que, de direito, o estabelecimento do


Reino de Jesus Cristo seja o objectivo que a Providência busca no
governo dos povos, e que a história das nações possa ter outra lei
que não seja a da humanidade inteira. Mas será mesmo assim nos
factos? As guerras e revoluções que agitam os povos não parecem
negar esse desígnio providencial?
Os impérios terrenos contribuíram, inicialmente, para o estabe­
lecimento do Reino de Jesus Cristo pela influência que exerceram
na sociedade dos filhos de Deus, quando a favoreceram ou quando
a perseguiram. Basta abrir as Sagradas Escrituras para nos conven­
cermos da realidade dessa influência e percebermos a sua relação
com o destino dos povos. Todos os grandes impérios da Antiguidade
estiveram, sucessivamente, em contacto com o povo de Deus. Os
egípcios, depois de o favorecerem longamente, perseguiram-no; mas
fizeram, com essas perseguições, brilhar sobre Israel a Providência
milagrosa do Omnipotente. Mais tarde, os assírios vieram atacá-lo
e foram vencidos, enquanto Israel se manteve fiel ao seu Deus. Mas,
quando o número das suas prevaricações ultrapassou todos os limites,

192

k
0 (&üá> na

oram os assírios, por sua vez, os executores do castigo divino. Os


pcisas e os medos livraram-no do seu cativeiro, no momento assina­
ndo pelos profetas, e Ciro, chamado pelo seu nome já muitos sécu-
os antes de vir ao mundo, parece ter nascido e ter sido elevado tão
a t°, apenas, para ser o seu grande libertador. Alexandre e os prín­
cipes gregos, seus sucessores, cumpriram igualmente as profecias,
osse pela protecção que deram ao povo de Deus, fosse pelas perse­
guições que lhe infligiram. Roma exerceu sobre o Reino de Cristo
uma influência ainda mais manifesta. Não apenas foi executora da
justiça divina contra a Sinagoga rebelde, mas preparou ainda, pelas
suas conquistas, a difusão da Igreja e, depois de a ter atormentado
durante três séculos com perseguições, terminou por se prostrar aos
seus pés e por lhe entregar o governo do mundo.
Não falamos aqui dos povos da Europa moderna cuja relação
com o Reino de Cristo é notória. Ora fiéis, ora rebeldes, tanto ser­
viram de apoio à Igreja como de instrumento de provações. Quanta
virtude e heroísmo fez surgir na Igreja a cimitarra de Maomé!
Quanta glória recebe Jesus Cristo nas regiões que os descobrimen­
tos marítimos aproximaram, e entre os novos filhos da Igreja, gera-
dos por ela entre populações selvagens!‘ As diversas nações são
pela mão de Deus, para
como campos lavrados, há muito tempo, r e
que a semente divina, frutificando sob as mais diversas con içoes
obstáculos, manifeste a sua fecundidade e energia invencíveis.
O Reino de Jesus Cristo serve também de medida para o pro
gresso dos povos. De facto - podemos enunciar a regra quanto
mais os povos se aproximaram do modelo de perfeição que e Jesus
Cristo, tanto mais progrediram. Para sentir a veracidade dessa regra,
basta ler a explicação luminosa que Santo Agostinho apresenta na
“Cidade de Deus” sobre a dilatação do Império Romano. Faltou
muito, certamente, pàra que os romanos, mesmo nos melhores dias
da sua República, fossem discípulos verdadeiros de Jesus Cristo. í
Mas, então, a que causas deviam os romanos a sua prosperidade. A
certas virtudes que Santo Agostinho lhes atribui com perfeita justi­
ça: a dedicação de todos ao bem público, a severa disciplina do exér­
cito, o desapego das riquezas e a resolução generosa de tudo sofrer

193
> e de tudo sacrificar antes de se submeterem à opressão. Todavia,
quem não percebe que essa pobreza preferida às riquezas, esta obe­
diência até à morte, esta renúncia ao interesse próprio, são virtudes
essencialmente cristãs? Pois não têm elas a sua razão de ser no cris­
tianismo? Entre os romanos, tais virtudes, privadas da ratificação
eterna que lhes deu Jesus Cristo, foram como plantas sem raízes.
Secaram com o sopro da prosperidade.
Mas, enquanto floresceram entre eles, deram frutos e esses fru­
tos estavam em proporção exacta com o grau de semelhança que
essas virtudes tinham produzido na sociedade romana. Imitadas por
razões puramente terrenas, só puderam dar recompensas terrenas
aos seus imitadores. Essa regra pode ser aplicada a todos os outros
povos. Sempre veremos o progresso verdadeiro ser proporcional ao
grau de perfeição moral e a perfeição moral ser proporcional ao
grau de semelhança com o Modelo divino. A certos povos Deus dá
todos os elementos humanos de prosperidade e, quando assim é,
realmente gozam de um progresso durável, embora continuem
estranhos à influência directa do Homem-Deus. Tal é o caso das
grandes civilizações orientais. A nossa regra é válida para todos as
nações, mas ali a Providência parece ter querido ainda dar outra gló­
ria a Jesus Cristo. Permitindo que aquelas nações se elevassem ao
mais alto ponto de prosperidade que as sociedades humanas podem
naturalmente atingir, quis também mostrar-nos a distância imensa
que separa essa perfeição humana da perfeição divina, da qual Jesus
Cristo foi o nosso Modelo. Com efeito, toda a influência que alcan­
çaram, por exemplo, os sábios da China e toda a perfeição do meca­
nismo social que, efectivamente, regeu esse império, não foram sufi­
cientes para o preservar de manifestações assustadoras e requinta­
das de crueldade e de degradação moral.

7. A Cristandade

Contudo, os desígnios da Providência sobre asjnações não se


limitam à perfeição que cada uma delas, pode adqumr, ao se aproximar

194
&de fltíad

do ideal divino. Do mesmo modo que os homens só realizam os seus


«destinos quando se unem para se defenderem e para se. ajudarem,
mutuamente, assim, tambéniuis^nações só poderão caminhar cons­
tantemente na via do progresso, na medida em que formarem,pnljre
si, uma sociedade capaz de evitar as guerras desastrosas que até aqui
ensanguentam a Terra. Enquanto essa sociedade não se formar, as
nações estarão, umas em relação às outras, num estado semelhante
ao que estariam os homens, se não existisse a sociedade civil. Tudo
seria decidido pela força e os direitos mais santos estariam expostos
a contínuas agressões. Num estado de coisas assim, a guerra é certa­
mente legítima, tal como é legítima a justiça executada pelas pró­
prias mãos do inocente injustamente atacado, quando, não existe
repressão legal. Mas quem não conhece os inconvenientes desastro­
sos que resultam do uso da acção directa, ou das vias de facto?
Quantos outros direitos necessariamente lesados, quantos interesses
comprometidos, quantas vidas sacrificadas, quantos recursos úteis se
consumiríam inutilmente! Que estagnação para a civilização! E
quantos anos - por vezes séculos - são necessários para fazer reflo-
rescer os desertos que a guerra produz! Será impossível poupar à
humanidade todos esses desastres? Será utópica a formação de uma
sociedade de povos que coloque a sua força colectiva ao serviço dos
direitos ameaçados e que, considerando o interesse geral da socie­
dade humana, saiba resistir às ambições dos povos mais arrogantes
no seu poderio?
Se pensarmosque na humanidade nada, mais existe do que ela
própria, há muitos motivos para recear que tão belo sonho nunca se’
torne realidade. Uma sociedade assim só poderia ser formada com
o concurso dos povos mais poderosos. Ora. como esperar que tais
povos se submetam a esses freios desagradáveis? Como esperar que,
no momento em que o freio incomodar demais as suas ambições,
eles não o rejeitem? Não será o mero interesse que fará cessar as
guerras. Além disso, como seria constituído o tribunal que deveria
pronunciar-se sobre as disputas entre os Estados? Os réus fariam,
necessariamente, parte do tribunal e os juizes. dificilmente, deixa­
riam de ter compromissos com os réus.

195
O que parece ser uma impossibilidade manifesta, quando nos
detemos na ordem puramente natural, torna-se fácil a partir do
momento em que consideramos os desígnios da Providência. Basta
que o Rgino moral de Jesus Cristo se estabeleçamo.interior de cada
-p.QYfi^eJogo, pela força das coisas, se formará uma grande sociedade
de povos sob a direcção moral da Igreja. QL£ap.ado_, essencialmente
desinteressado e benevolente em relação aos membros dessa grande
família será, em todas as suas disputas, um intermediário benfazejo,
cuja intervenção amortecerá os choques, acalmará as paixões e fará
pender, para o lado do direito, a balança da força. O que os congres­
sos internacionais não conseguem fazer, porque os interesses têm
neles influência preponderante, o que as alianças de nações são
impotentes para realizar, porque causam o aparecimento de outras
coligações, será fácil a partir do momento em que se encontrar, de
novo, o eixo em torno do qual, outrora, a ordem se movia. Se, no
meio das paixões ardentes que agitaram a Idade Média e no seio dos
povos ainda semi-bárbaros, a Igreja conseguiu tantas vezes impedir
as guerras, desarmar a tirania e imprimir à actividade da Europa uma
direcção útil, o que não fará ela, quando as nações modernas aban­
donarem a desconfiança e aceitarem de bom grado a sua arbitragem?
Poderá então o Reino de Jesus Cristo estabelecer-se completa­
mente, realizando-se, assim, as profecias que anunciam na Terra
uma paz duradoura.

8. Conclusão

Tocámos, em toda a sua extensão, os destinos da humanidade.


Quanto à teoria que procurámos apresentar, em conformidade com
os dogmas do cristianismo, é tão satisfatória como qualquer outra
semelhante, antes de ser submetida à prova dos factos.
É fácil descobrir os pontos em que esta teoria difere das de
Santo Agostinho e de Bossuet.
Estamos plenamente de acordo com Santo Agostinho quanto à
sua ideia fundamental. Também fazemos da Cidade de Deus o

196

L
objectivo de todos os desígnios da Providência, parecendo-nos que
o seu triunfo será o termo de todos os acontecimentos da História.
Mas afastamo-nos, um pouco, desse grande Doutor, quando damos
a essa cidade o seu nome específico e o único fundamento sobre o
qual pode ser construída. Em segundo lugar —e isto é mais impor­
tante— não relacionamos os destinos dessa cidade santa somente
com a vida futura, mas também com a vida presente, a qual perten­
ce ao domínio da História. Em terceiro lugar, procuramos definir a
relação dos destinos da Cidade de Deus com os destinos colectivos
dos Estados, aspecto que Santo Agostinho deixou na sombra. Numa i

palavra, procurámos na valiosíssima obra do Bispo de Hipona, um


ponto de partida que tentámos desenvolver.
Aceitámos, igualmente, o conjunto da doutrina de Bossuet
sobre a conduta de Deus para com a sua Igreja, as causas imediatas
da prosperidade e do declínio das nações. Tudo isso tem lugar na
nossa teoria. Mas procurámos seguir o desenvolvimento da
Religião, descrito de forma tão eloquente pelo Bispo de Meaux,
relacionando-o com o fim supremo, que é a meta da Providência no
governo das nações. Procurámos completar Santo Agostinho com a
doutrina de Bossuet e procurámos dar a Bossuet a unidade que ele
tinha perdido ao tentar completar Santo Agostinho.
É esta a última palavra da Teologia da História? Não, eviden­
temente. É apenas o esboço dela e ainda assim um esboço muito
imperfeito. À medida que a Providência completa a construção do
edifício, o plano vai-se tornando mais patente. Estou certo, também,
i
que aparecerão escritores mais hábeis do que nós para o exporem de
forma mais completa. Acreditamos, porém, que esses trabalhos mais
-
perfeitos apenas virão confirmar a exactidão do presente esboço,
tornando cada vez mais evidente, em relação à História, as palavras
de São Paulo: “porque ninguém pode pôr outro fundamento dife­
rente do que foi posto, isto é, Jesus Cristo” (ICor 3,11).

197
Capítulo IV

O autêntico progresso
à luz da Teologia da História
No capítulo anterior, estudámos, até às suas últimas conse­
quências lógicas, os princípios da Teologia da História desenvolvi­
dos por Santo Agostinho e por Bossuet. Seguindo estes grandes
mestres, procurámos completar a teoria de um com a do outro e, ao
tirar as referidas consequências, fomos apenas um pouco mais longe
do que eles foram.
Comparando, agora, essa doutrina com os sistemas errôneos
que refutámos anteriormente, encontramos divergências profundas.
Há, contudo, um ponto em que coincidimos com os nossos antago­
nistas e em que eles também estão de acordo entre si. É o ponto cul­ !
minante dos seus diferentes sistemas, o único que lhes pode dar
algum crédito, isto é, a doutrina do progresso.
O progresso tão celebrado nos nossos dias, procurado por todas
as sociedades e que todas as escolas inscrevem nas suas bandeiras, não
é recusado pela Filosofia cristã da História. Pelo contrário, esta ofe­
rece uma teoria racional e verdadeiramente prática sobre esse tema.
Entre os muitos defensores do progresso, poucos são capazes
de definir exactamente o significado dessa palavra. Nada nos dizem,
na verdade, sobre as metas a alcançar pelo progresso, sobre a manei­
ra de o realizar, sobre os obstáculos a vencer, ou sobre os meios a
empregar. Persuadem os homens de que ele se realizará fatalmente
- o que, se fosse verdade, não se coadunaria com a liberdade dos
agentes chamados a realizá-lo - e, fazem com que estes, para alcançá-lo,

199
acabem por afastar-se dele. Muito se fala de progresso, para invia­
bilizar. afinal, o verdadeiro progresso...
O conceito de progresso que a Filosofia cristã da História ofe­
rece à humanidade é perfeitamente compreensível, tanto nos seus
objectivos como nos meios que oferece. Ela mostra os obstáculos
que podem afastá-lo e os meios de vencer tais obstáculos. Sem negar
inteiramente a sua necessidade, deixa incólume a liberdade humana;
proclamando-o indefinido, define claramente o ponto de onde ele
parte e os graus pelos quais ele se aproxima do seu objectivo.

1. Fins do progresso

A Filosofia cristã da História define, muito exactamente, o o


objectivo e as condições do progresso verdadeiro. -
O seu verdadeiro firm já o vimos, é a imitação da pejdej_çãodivi-
qa, pelos indivíduos e pelas sociedades, tal como ela se manifesta em
Jesus CrísR) e naQgrej^ Embora elevadíssimo, esse fim está ao
alcance de todos. É o Infinito a atrair o finito, para que este se apro­
xime cada vez mais d'Ele. Infinito em todos os sentidos e em todos
os gêneros de perfeição de que o homem é susceptível. Infinito de
verdade e de ciência, de virtude e de felicidade, de poder sobre a
matéria e de beleza ideal, de grandeza no espaço e de permanência
no tempo, infinito na intimidade e na eficácia das relações sociais, na
comunicação dos bens e na união das obras. Tudo o que a imagina­
ção pode sonhar, encontra-se realizado num grau infinito, cujo ideal
o cristianismo apresenta aos homens.
Este ideal não está encerrado unicamente na profundidade
incomensurável dos Céus, mas tornou-se visível numa natureza
semelhante à nossa. “O Verbo fez-Se homem e habitou entre nós”
(Jo 1, 14). Sofreu Ele todas as misérias da nossa condição presente
e submeteu-se a todas as necessidades das nossas provações. E, para
que as gerações que devem suceder-se na Terra, até à consumação
dos séculos nada tivessem a invejar àquela que O viu nascer e mor­
rer, permaneceu presente na sua Igreja, ensinando aos homens a

200
0' &eàw de fefad /ta efârfd/üz

mesma doutrina, levando-os à mesma perfeição e oferecendo-lhes o


modelo das mesmas virtudes.
O que falta então a esse modelo para ser completo e para ser
fácil de imitar? Que forma de progresso moral e material não se
poderá alcançar quando os indivíduos e as sociedades se dirijam
resolutamente para este objectivo?

2. Condições do progresso

Tão clara é a definição do verdadeiro progresso, segundo a


Filosofia cristã da História, como claras são as condições necessárias
para que ele se verifique.
A maior parte das teorias modernas idealiza ^jirogj^síEJini-
.çamente, na ^sociedade, sem se preocupar em realizá-lo, primeira­
mente, no indivíduo. É como querer elevar um edifício grandioso
sem seleccionar e ordenar, previamente, os materiais que o devem
constituir. O progresso cristão é um progresso racional. E nas almas
que ele começa a realizar-se e a preparai'os^ej_em£ntos,.da^prosperi-
dade social. Jesus Cristo, modelo soberano desse progresso, dirige-
Se inicialmente aos indivíduos, unindo-os a Si pelo santo baptismo,
nutrindo-os pela Sagrada Eucaristia, ensinando-lhes a sua doutrina,
inspirando-lhes os seus sentimentos, inflamando-os na sua caridade.
Dai-me uma família, uma sociedade qualquer, composta de
homens-modelo, moldados segundo Jesus Cristo, e vereis como essa
sociedade progredirá rapidamente.
Outro grande erro das teorias, anlicr-istãs está na inversão dos
elementos do verdadeiro progresso, dentro do próprio indivíduo. O
progresso moral constitui para o homem e para a sociedade rnn bem
.çle importância maior do que ctprogresso material. Se este último
for procurado de forma exclusiva, tenderá a degradar o homem e
não a aperfeiçoá-lo. Ora, esse progresso tão inferior é precisamente
o que hoje se coloca em primeiro plano. Quanto ao desenvolvimento
pleno da inteligência pelo estudo da verdade divina, e o aperfeiçoa­
mento do coração pela prática da virtude, costuma-se relegar para

201
último plano ou nem sequer se pensa nisso. O desenvolvimento da
indústria e das suas ciências auxiliares são o único progresso aceite.
A Filosofia cristã tem uma visão mais objectiva e justa da nossa
natureza. Em Jesus Cristo, modelo do verdadeiro progresso, ela ofe­
rece à nossa admiração uma beleza física e um poder sobre a maté­
ria, superiores a tudo o que já foi visto e que ainda está por ver. Em
consequência, não nos proíbe desejar o desenvolvimento indefinido
das condições secundárias da nossa perfeição. Mas quer que nos
preocupemos, sobretudo, com as condições essenciais, as que estão
sempre em nosso poder e que constituem o nosso mérito pessoal. Ela
apresenta-nos Jesus Cristo a ocultar a sua beleza corporal, durante a
sua existência terrestre, e a evitar o uso habitual do seu poder sobre
a matéria, para nos oferecer um modelo mais perfeito das virtudes
morais e para nos ensinar a dar à perfeição da nossa alma a impor­
tância que lhe é devida. Ela obriga-nos a reconhecer, na generosida­
de do sacrifício de Cristo, o princípio da sua glória e, na humildade
do seu túmulo, a fonte dos esplendores da sua Ressurreição.
Eis a grande lei de qualquer progresso, incluindo o progresso
material. Procurar antes de tudo a perfeição moral, não recuar diante
dojs.ofrirnentQ e do trabalho, que sãCLas.cQndições da nossa prova, tudo
sacrificar ao^seryiço de Deus, esse é o meio de tudo obter d’Ele. ÇLpro-
^resso-material. não .dará os seus frutos e não evitará os seus .perigos
^^^Q-^medida..ern.que.estiver subordinado, ao progresso moral. E a
riqueza, por sua vez, será duradoura e benfazeja para todos, apenas na
proporção em que for santificada pelo espírito de renúncia.1
7} 3 * (' *-<*•*“• k. -O f •» *O KC» \ c C* q

3. Obstáculos ao verdadeiro progresso

A compreensão profunda da nossa natureza, manifestada pelo


cristianismo na indicação das condições verdadeiras do progresso,

1) Esta tese, aparentemente paradoxal, foi desenvolvida de forma primorosa por


Périn, Professor da Universidade de Lovaina, no seu livro “De la richesse dans
les sociéles modernes”.

202
pode, igualmente, ser admirada quando ele nos aponta os obstácu­
los que se opõem a tal progresso e as medidas que devem ser adop-
jadas para vencê-los.
Todas as outras doutrinas se precipitam em excessos. Ora exal­
tam a nossa natureza, até a fazer esquecer-se das suas misérias, ora
a rebaixam até lhe arrancar todas as suas grandezas e esperanças.
Dos dois lados, o perigo é o mesmo. Há entre as nossas grandezas e
misérias uma diferença: as primeiras só nos pertencem na medida
em que soubermos conquistá-las; as segundas pegam-se a nós e delas
só nos livramos por esforços perseverantes. Não faremos nem uma
coisa nem outra, se apenas virmos, na nossa natureza, grandes exem­
plos de misérias, ou misérias sem nenhuma grandeza. O esqueci­
mento das nossas grandezas fará com que seja impossível conquistá-
las. O esquecimento das nossas misérias torna-nos impotentes para
as combater. A ideia exagerada que fizermos da nossa baixeza,
impedir-nos-á de subir; a falsa elevação que atribuirmos a nós pró­
prios, não nos deixará atingir a dignidade sublime, à qual só pode­
mos chegar por esforços heróicos.
A Filosofia cristã da História preserva o homem desses dois
perigos. Não lhe dissimula a profundidade do abismo em que caiu,
nem a elevação do objectivo para o qual deve tender. Não atenua a
gravidade dos obstáculos que encontrará no caminho do progresso,
nem o poder dos meios que lhe são oferecidos para vencê-los. Pelo
pecado dos nossos primeiros pais, mostra a nossa natureza despoja­
da de todas aquelas prerrogativas que a bondade divina lhe tinha gra­
tuitamente concedido e entregue à condição nativa da sua ignorância
e às tendências animais que sempre colocam obstáculos ao despertar
das nossas faculdades superiores. Mas, por outro lado, apresenta
Jesus Cristo descido do Céu para expiar a falta original, esclarecer a
nossa ignorância e dar-nos forças para vencer a concupiscência.
i
Assim, não podemos enganar-nos a respeito d^nossa baixeza
natural, nem da nossa grandeza sobrenatural. Não criemos ilusões
sobre uma absoluta impotência do nosso carácter, nem sobre a sua
força invencível. Saibamos que, por nós mesmos, nada podemos,
mas que em Deus podemos tudo. Tenhamos consciência de que nos

203
r

&a//uere

depararemos com violentos obstáculos e vergonhosas tendências


contrárias ao nosso progresso mas, por outro lado, encontraremos
em Jesus Cristo o socorro omnipotente da sua graça.
E^joiadu.la,.e-iitre>e^sas.duas espécies de inclinações que, na práti-
^^^le^ke.Q^randeproblema do progresso, tanto individual como
social. Pretender esclarecer tal questão, sem ter em conta esse dado
essencial, é caminhar atrás de uma quimera e condenar-se às mais
frustrantes decepções. É pretender sarar um doente sem conhecer a
sua doença. O homem é anjo e animal ao mesmo tempo. Tem todas
as aspirações do anjo e todas as inclinações do animal. Tem sede de
infinito e fome dos mais vis alimentos. Encontramos nele todos os
instintos baixos do animal, mas com uma diferença. No animal, tais
instintos têm medida e são refreados por outros instintos. No
homem, es_ses_instintos participam da necessidade„de infimto que
.£tomefrta>as suas faculdades superiores. As suas exigências não têm
limites. Podemos, então, ver o animal humano ultrapassar o animal
irracional nas vias da ignomínia e da atrocidade. É o que acontece
sempre que há desrespeito pela grande lei do progresso que a
Filosofia cristã da História nos ensina. Em contrapartida, sempre que
essa lei for fielmente observada, poderemos esperar ver o anjo ter­
restre igualar o anjo celeste em pureza e grandeza verdadeiras.
Desta forma, esclarecidos sobre os verdadeiros obstáculos ao
progresso, e sobre os verdadeiros meios de o buscar, podemos agora
apelar ao testemunho dos factos, na certeza de que não nos desmen­
tirão. Contemplaremos, sem espanto, o espectáculo estranho que
apresenta a história. Teremos a explicação dos crimes, das crueldades,
das torpezas sem nome, às quais veremos entregarem-se os homens
mais notáveis e as mais civilizadas nações. Compreenderemos por que
H é tão pequeno o número dos que andaram nas vias do verdadeiro pro­
gresso. Compreenderemos aquilo que é inexplicável para aqueles que
fazem brotar a lei do progresso do próprio fundo da natureza huma­
í na. Veremos, claramente, como a verdade da doutrina cristã o faz
dimanar do próprio Coração Santíssimo do Verbo Encarnado.
Se o progresso fosse mero efeito das forças da natureza, os homens
e os povos deveríam ter progredido ininterruptamente. Não teria

204
0&eàw de Jfovj Yvvjfo zt/z jfâjMráz

havido selvagens, nem bárbaros, nem povos decadentes; ou, então,


homens virtuosos transformados em criminosos.
Se, pelo contrário, o progresso verdadeiro é o resultado da
graça de Jesus Cristo, os homens e os povos devem crescer em per­
feição, na mesma medida em que se submeterem à influência do
Homem-Deus e devem decair cada vez mais, na medida em que
rejeitarem os seus ensinamentos e a sua graça divina. Qual das duas
hipóteses é confirmada pela história? A menos que se tenha decidi­
do fechar os olhos à evidência dos factos, veremos que o testemunho
da história é tão decisivo contra a primeira como é concludente a
favor da segunda.

4. Sobre a necessidade do progresso

O progresso não é, pois, necessário no sentido em que os nos­


sos antagonistas entendem essa necessidade. O homem não progri­
de como uma planta que produz a sua flor, ou como o sol quando
aumenta a sua claridade à medida que sobe no horizonte. Um pro­
gresso assim equivalería à destruição da liberdade e, portanto, à des­
truição do mérito e da verdadeira perfeição da natureza racional.
Assim faz sempre a filosofia anticristã. Só se assenhoreia das mais
nobres fórmulas para despojá-las do seu significado e das coisas mais
santas para as destruir. Então a lei do progresso não tem eficácia
certa? Poderá este progresso, que desejamos ardentemente alcan­
çar, ficar até ao fim do mundo no estado de mera possibilidade?
Julgamos que não. O que dissemos, acima, já permite com­
preender que atribuímos à dita lei uma necessidade que em nada
prejudica a liberdade humana. Para entender bem a importância
dessa necessidade, é preciso distinguir, mais uma vez, os dois ele­
mentos da humanidade, a alma e o corpo, a Igreja e as sociedades
temporais. A necessidade de progresso não é a mesma para essas
duas partes da humanidade.
Quantoji Igreja, pode afirmar-se num sentido muito real, como ■
já foi explicado anteriormente, que o^rogresso jhe é necessário.

205
O que nào significa que cada membro da Igreja, considerado sepa­
radamente, nào possa afastar-se da perfeição e perder-se. Mas a
Providência, que vela sem cessar sobre a Esposa do Verbo
Encarnado, não poderia permitir que essas defecções internas a des­
truíssem ou interrompessem o seu crescimento. Independentemente
dos esforços dos seus inimigos internos ou externos, a Igreja conti­
nuará sempre a crescer até ao fim dos séculos. Crescerá em exten­
são, pelos elementos novos que assimilará sem cessar; crescerá em
luz, pelas afirmações cada vez mais explícitas que oporá aos erros;
crescerá em graça e em méritos, pelos actos de virtude que os seus
membros novos produzirão continuamente, sob a influência do
Espírito de Deus. O momento em que cessar esse tríplice progresso,
o momento em que o corpo de Jesus Cristo atinja o seu crescimen­
to pleno, será o momento em que ele será elevado à glória, para par­
ticipar na felicidade do seu Chefe divino. Assim, no ápice da huma­
nidade, realizar-se-á, apesar de todos os obstáculos, um progresso
real e um progresso autenticamente divino.
Nas regiões inferiores, nas sociedades temporais que forrriam o
çprpn dq humanidade, não temos os mesmos motivos para afirmar a
necessidade do progresso. Tudo^ojjuejjodemos dizerjjq.ue.o.pro-
gress€>")hes- será-sempxQ..ppssíy.el e até relativamente fácil, pois a
Igreja oferecerá, continuamente, todos os elementos que são,impres­
cindíveis à sua realização. Finalmente, podemos afirmar que o pro­
gresso dessas sociedades será condicionalmente necessário, se for
deixada à Igreja uma libèrdade plena para desenvolver no interior
delas a sua fecundidade divina. O declínio de algumas nações católi­
cas não contradiz esta asserção, pois esse declínio coincidiu sempre
com entraves colocados à acção da Igreja pelos poderes temporais.
.O_que é efectivamente necessário é a fidelidade dos governan-
Jfís^e_dos.povos -aos_,ensinamentos da igreja, e a submissão deles à
sua viyificante influência. JO que é necessário é que não se deixem
persuadir pela ideia de que encontrarão na revolta um maior grau
de liberdade, de prosperidade e de poder político. Os povos têm as
suas provações, como os indivíduos; e, como estes, podem preferir
um bem presente à perfeição duradoura; deixam então as vias do

206

à
0/z/z

progresso para entrar no caminho da decadência, tanto mais funes­


ta quanto mais se disfarça sob as aparências do progresso material.
A sociedade, depois de ter os seus fundamentos morais gradual­
mente minados pelo egoísmo, em vez de se expandir sem cessar e
fortalecer, desmorona-se e cai numa ruína completa. Sucedeu, quase
sempre, que os responsáveis pela construção recusaram a influência
salutar da Igreja...
Estamos longe de estender às sociedades temporais a lei do pro­
gresso que admitimos para a sociedade espiritual. Para a Igreja, a lei
l
do progresso é uma lei eficaz de cuja aplicação a Providência se
encarrega, para que seja infalivelmente executada, sem lesar a liber­
dade dos seus agentes. Para as sociedades temporais, pelo contrário,
a lei do progresso é uma lei simplesmente moral, cuja execução
depende inteiramente da vontade livre dos próprios povos.
Os defensores mais enérgicos do progresso necessário são obri­
gados a desmentir a sua teoria e estar de acordo connosco, neste
ponto. Afirmar para cada povo a necessidade do progresso e negar
que, num período de crescimento maior ou menor, possa suceder a
decadência e a morte, seria entrar em notória contradição com os
factos históricos.
Mas não se poderia afirmar, para a humanidade inteira, a neces­
sidade de um progresso de conjunto que compensasse as decadên-
cias parciais deste ou daquele povo? Os físicos admitem que, no
mundo físico, nunca há desperdício de forças e que aquilo que se
perde num ponto é encontrado noutro. Não se poderia admitir tam­
bém no mundo moral um progresso assim entendido? Não pensa­
mos desta forma, mesmo que confinemos esse progresso a certos
limites. Seria contradizer os factos. Pelo contrário, a história da
humanidade parece composta de alternâncias semelhantes à do dia
e da noite e à sucessão das diversas estações do ano. O sol ilumina e ■
aquece, e a humanidade conserva sempre a sua energia. Se conside­
rarmos no seu conjunto a criação espiritual, podemos pensar que a
luz e o calor nunca diminuem. Mas, no que toca à Terra em particu­
lar, a luz e o calor variam continuamente.

207


Jffwt &a//uère

5. Limites do progresso

Falta-nos ainda ver qual é, segundo a Filosofia cristã da His­


tória, a extensão do progresso. E aqui, mais uma vez, discordamos
dos nossos antagonistas. Embora afirmem conceder algumas prer­
rogativas à humanidade, acabam por tirá-las completamente.
Para nós, como para os filósofos anti-cristãos, o progresso da
humanidade pode ser ilimitado, mas não entendemos isso do mesmo
modo. Para eles, o progresso não tem ponto de partida nem ponto de
chegada. E uma sequência sem termo inicial e final. Em que situação a
humanidade o começou? Em que base se constrói a escala dos seus pro­
gressos? Os mais sábios nada respondem a tal questão. Os mais since­
ros afirmam que a série anterior dos progressos feitos é infinita, tal
como a dos que virão. Já vimos o que essa tese contém de absurdo. Não
são me .os chocantes as contradições em que eles caem quando pre­
tendem indicar o termo para o qual o progresso nos conduz. Esse termo
deve ter uma perfeição superior a todas as perfeições finitas. Mas será
então uma perfeição infinita? Não, porque, se fosse infinita, o progres­
so pararia, o que contrariaria a lei do progresso. Então, a perfeição infi­
nita será sempre um puro nada? Certamente, pois é um limite inatingí­
vel. Ou seja, os seres racionais caminham para um ideal irrealizável. A
sua perfeição consiste unicamente em serem atraídos por esse ideal
irrealizável. Eis, pois, as duas bases da teoria do progresso indefinido: o
nada como princípio do progresso, e o nada como termo do progresso.
^^oulyiULXiistã, pelo contrário, dá aQ_progresso,liumanjQ. um
pcjnto.dcqwlida pcrlcilíiinciHc coinpiccnsíxcl. É o estado de dcs-
jpojament.o,completo a que ficamos reduzidos peloflSècadoklos nos>
sos piimcEõspirj^ Na queda, nenhuma das nossas faculdades essen­
1 ciais foi lesada, mas foram-nos tirados todos os dons que tinhani sido
ojaJuitamente açre.sce,ntad.o^a^essas prerrogativas-essenciais. Deus
só nos tirou o que poderia não nos ter dado. Reduziu-nos à nudez
em que originariamente poderia ter-nos criado, se tivesse querido.
Tal é o estado em que nascemos e tal é o ponto de onde devemos
partir para chegar, pela graça do Homem-Deus, à semelhança da
bondade divina e à posse da felicidade divina.

208
0 Sffedw de fewj

Entre estes dois termos, compreendemos que há lugar para um


progresso indefinido. Não quer isto dizer que o objectivo a atingir e
o modelo a imitar sejam indefinidos. Mas, sendo infinito o modelo e
sendo essencialmente limitadas as faculdades que devem reproduzi-
lo, é sempre possível chegar gradualmente mais perto dele, sem, no
entanto, se conseguir alguma vez atingi-lo.
Mas a possibilidade desse progresso indefinido não é a mesma
para os indivíduos e para as sociedades. Para cada homem, existe a
possibilidade do progresso indefinido, no sentido em que é impossí­
vel marcar um grau de perfeição intelectual ou moral, além do qual
esse homem, ajudado pela graça divina, não possa ir. Qualquer que
seja a extensão da sua ciência, poderá sempre saber mais; qualquer
que seja a sublimidade da sua virtude, poderá sempre ser mais vir­
tuoso. É a diferença que existe entre as faculdades espirituais e os
órgãos corporais. O desenvolvimento conseguido pelas primeiras
torna mais fáceis outros desenvolvimentos posteriores, de forma
que o seu progresso é uma perfeição sempre crescente. Não aconte­
ce o mesmo com as faculdades sensíveis, cuja perfeição é limitada.
_O progresso intelectua] c nioraMoJiomem. embora indeíinido
çm si mesmo, lem de lacto uniJjmitc. que c o limite marcado.pejep
J^mpojJa prova. O crescimento dos nossos méritos depende dg^nós.,
^enquanto viy.ennos-Mas quando sobrevier a morte, colocando um
termo à nossa prova, o nosso progresso será também interrompido.
A árvore deixa de crescer, e toda a sua fecundidade, que durante a
prova foi empregue para estender os seus ramos, produzirá na eter­
nidade o fruto delicioso da felicidade.
A vida das sociedades é mais longa que a dos indivíduos. Também
a escala dos seus progressos possíveis é mais vasta. O progresso social
é a soma de todos os progressos individuais, e essa soma cresce sem­
pre. Muitos acidentes podem, certamente, destruir o edifício erigido ao
longo de numerosas gerações e muitas catástrofes podem engolir os
tesouros da ciência, acumulados com grande esforço. A própria virtu­
de não está certa de conseguir uma duração sem limites para os gran­
des exemplos que lega aos séculos futuros. De facto, quantas civiliza­
ções já foram inteiramente extintas da face da Terra!

209
Excluindo essas catástrofes capazes de devorar nações inteiras,
cada operário que acrescenta alguma riqueza nova à herança social
recebida dos seus antecessores, pode estar certo de que as suas con­
quistas não serão perdidas. Ao largar o seu campo de trabalho e a
esfera do tempo para ir repousar na eternidade, deixa atrás de si
operários mais jovens. Assim cresce a riqueza intelectual e moral da
sociedade, sem que a tal crescimento seja possível marcar um limite
que não venha a ser depois ultrapassado.
O mundo físico poderá sempre revelar segredos novos aos cien­
tistas, as verdades racionais poderão sempre fornecer aos filósofos
matéria para novas especulações, as Sagradas Escrituras e a
Tradição poderão sempre ser mais aprofundadas e melhor com­
preendidas; sobretudo, em qualquer época, os indivíduos e as socie­
dades poderão sempre aproximar-se mais do ideal de perfeição ensi­
nado pelo Homem-Deus.
O homem terá sempre a possibilidade de decair, se quiser. Mas
também poderá sempre aperfeiçoar-se. Para esse progresso indefinido
da natureza só haverá realmente um limite, que será posto pelo anjo
que, no último dia, vier anunciar, em nome de Deus, o fim dos tempos.

6. O progresso autêntico

Será realmente este limite do tempo, o limite do progresso? Não


haverá nenhum desenvolvimento durante a eternidade? Não se pode­
rá admitir que, guardadas as proporções e a medida dos seus méritos,
os bem-aventurados habitantes do Céu crescerão em luz, amor e feli­
cidade durante toda a eternidade? Se essa hipótese pudesse ser admi­
tida, teríamos, no rigor da expressão, um progresso indefinido. Mas
permitirá a tradição católica dar aos anjos e aos santos esse eterno
aumento de perfeição e de felicidade? Muitos escritores pensaram
assim e apoiaram a sua opinião na autoridade de São João Clímaco.2

2) Procurámos em Roux-Lavergne, “De la Philosophie de 1’Histoire” a tradução

210
fetád fâúfa/za efffotóràz

A autoridade desse santo escritor é venerável, mas, por outro lado,


a Igreja nada ainda definiu a esse respeito. A Sagrada Escritura não
nega que o progresso dos santos possa ser assim entendido.
Podemos até citar em favor dessa opinião alguns testemunhos da
Bíblia. A fixidez que a razão reconhece como essencial ao estado
último, é a necessidade de amar o bem soberano e a impossibilida­
de de perdê-lo, mas não a impossibilidade de possui-lo com uma ple­
nitude sempre crescente. Por conseguinte, nada parece impedir que
a mencionada opinião seja sustentada, até que a Igreja, a quem cabe
distinguir as crenças piedosas das novidades perigosas, se pronuncie
a este respeito. Não temos, porém, necessidade dessa hipótese para
mostrar que a doutrina católica está longe de ser inimiga do pro­
gresso verdadeiro. Não importa, aqui, o que sucede na eternidade.
O que não se pode negar é que, pelo menos na Terra, ela abre uma
vasta possibilidade aos aperfeiçoamentos físicos, intelectuais e
morais dos indivíduos e dos povos.
Não devemos, portanto, ficar envergonhados diante dos filóso­
fos que fazem tanto alarde da sua devoção ao progresso. A Igreja já
tinha desfraldado, muitos séculos antes deles, essa nobre bandeira.
A verdadeira fórmula do progresso foi dada aos homens por Jesus I
Cristo, quando lhes disse: “Sede, pois, perfeitos como é perfeito o

da passagem da escada santa em que São João Clímaco sustenta a opinião aqui
levantada. Está no XXVI grau, artigo 155 “Deus regulamentou a ordem de
todas as coisas criadas e Ele mesmo marcou o seu fim. Mas a virtude não tem
fim que não seja sem fim”. Ou seja, ela avança sempre mais e o progresso que
nela se pode fazer não tem limites. “Vi - disse David - que há um limite em toda
a perfeição; mas a vossa lei é ilimitada” (SI 118,96). É verdadeiramente, pois
alguns servidores de Deus passam das virtudes da vida activa para as da con­
templativa, já que a caridade nunca cessa de agir no coração que a possui, pois
o Senhor, segundo o profeta-rei (SI 120,8) “guarda a tua entrada” (que é a do
temor dos seus juízos) “e a tua saída” (que é a do teu amor pela sua bondade).
A posse desse amor é sem limite e sem fim, pois não cessamos nunca de nele
fazer progressos, nem no tempo presente nem no tempo que há-de vir, em que
a luz dos nossos conhecimentos receberá sempre um crescimento novo. E ainda
que o que direi possa parecer ao espírito de muitos um paradoxo, não recearei
entretanto, bem-aventurado Pai, de tirar essa consequência do raciocínio que
fiz. Os próprios anjos não permanecem num mesmo estado, mas a sua glória e
os seus conhecimentos crescem sempre (XXVIo grau, art. 155).

211
vosso Pai celeste’’ (Mt 5, 48). O princípio do progresso foi mesmo
enunciado nos primeiros dias do mundo, quando Deus ao criar os
seres humanos, disse: “Façamos o homem à nossa imagem e seme­
lhança” (Gn 1, 26). Reivindiquemos, com ufania, essa doutrina que
nos pertence. Não permitamos que outros ofereçam um subproduto
adulterado à sociedade. Progressos, luzes, liberdade, igualdade, fra­
ternidade, todas as palavras mais belas do vocabulário cristão foram
roubadas à Igreja para servirem interesses muitas vezes inconfessá­
veis. Façamos todos os esforços para desenganar as nações e espere­
mos que elas terminem por perceber a diferença que existe entre a
verdade e o erro. Onde os sequazes do erro oferecem à humanidade
apenas palavras sempre desmentidas pela realidade, a Igreja Católica
oferece realidades garantidas por uma experiência de dois mil anos.

2YL
Capítulo V

Relações da Teologia da
História com outras ciências
Para se adquirir uma noção completa da Filosofia cristã da
História, não basta estudar esta ciência em si mesma. É preciso
ainda considerá-la nas suas relações com as outras ciências. Não
poderiamos, pois, concluir este estudo sem lançar uma visão de con­
junto sobre o domínio inteiro do saber humano, o que nos permiti­
rá fixar o lugar exacto que ocupa nesse vasto império a ciência da
qual acabámos de expor as leis.
Não será difícil perceber que esse lugar é dos mais nobres. A
Teologia dajjbstória cede a primazia às ciências matemáticas e físi-
_cas, no que respeita acuiigor das deduções. t Ela ocupa uizL-lugar
UQodesto em relação à Teologia e mesmo à Filosofia, no sentido em
quejhes pede .todos os princípios e não dá um so passo-sern se^apoiar
pelas. _Mas tem, em relação a todas as_cjencias, a vantagem de mos-
trar a realização das suas teorias. Preçjsamente porque supõe todas
as outras ciências, ^Teologia da História ultrapassa-as. Parte do
ponto onde as outras chegará m;~para estudar e alcançar o fim últi­
mo dos seus agentes, cuja natureza e faculdades são estudadas pelas
outras ciências. ■
Ao indicar este objectivo, a Teologia da História dá-nos a
conhecer a unidade suprema da ciência, unidade preciosa que os
cientistas verdadeiros sempre procuraram e que os cientistas não-
cristãos não conseguiram encontrar.

213
1. A Filosofia

A primeira base da Teologia da História é a Filosofia. É impos­


sível compreender a finalidade do gênero humano, sob a influência
irresistível da Providência divina, se a Filosofia não nos disser o que é
a humanidade, a sua natureza e as suas tendências essenciais; e o que
é a Providência e a sua forma de agir. A Teologia da História está
assim para a Filosofia, como a ciência aplicada está para a ciência
pura. A primeira mostra os agentes em acção; a segunda estuda as
forças e a organização. Os inimigos modernos da Filosofia acusam-na,
para além da falta de rigor, de não poder realizar as suas abstracções.
A Teologia da História responde a tais censuras. Do mesmo modo
que a Física demonstra a verdade das suas teorias, apresentando a
explicação completa dos movimentos dos corpos, também a Teologia
da História, demonstrando a conformidade perfeita dos movimentos
das almas e das sociedades com os ensinamentos da sã Filosofia, con­
firma poderosamente a autoridade desta ciência. Os actos ajudam a
compreender melhor as faculdades e a aplicação completa da teoria.
Há, no entanto, uma parte da Filosofia que não tem com a Teologia
da História uma relação tão íntima: é a que trata dos corpos, da sua natu­
reza e das suas leis. Ocupando-se unicamente dos movimentos livres dos
espíritos e das leis da ordem moral, a História pode parecer inteiramen­
te independente da ciência que estuda os movimentos necessários da
matéria e as leis do mundo físico. Essa independência, que não preten­
demos negar, não impede contudo uma relação estreita entre essas duas
ordens de conhecimentos. Se a Teologia da História não tem princípios
alicerçados na Física, interessa-se, no entanto, pelos conhecimentos
desta ciência. Num edifício bem ordenado, as partes inferiores não ser­
vem apenas para suportar as partes superiores. Ao lado das pedras que
sustentam a construção, há outras que a ornamentam e que, pela cor­
respondência das suas formas com as formas dos andares superiores,
revelam a unidade do plano e o senso estético do arquitecto.
Assim é a Filosofia em relação à Teologia da História, a qual
constitui o cume da ciência humana. Tudo o que, na Filosofia, tem
relação com Deus e com o homem, serve de base para a ciência dos

214
de fâúfo /?£ efârtdtáz

desígnios de Deus e dos destinos do homem. O restante, que tem rela­


ção com os corpos, pelas analogias maravilhosas que apresenta entre
as leis da matéria e as leis do espírito, ajuda a compreender a unida­
de da Criação e a sabedoria do Criador. Sem que uma dependa da
outra, a Teologia da História e a Física ajudam-se e completam-se
mutuamente. Pode ser-se um bom físico sem se ter estudado o sim­
bolismo do mundo físico que a Teologia da História põe em destaque;
pode também ser-se muito bom canteiro sem se conhecerem as razões
pelas quais se talha uma pedra de uma maneira ou de outra.
Do mesmo modo que o bom conhecedor se priva de uma gran­
de satisfação estética, ao observar um belo edifício, apenas na pers­
pectiva de um canteiro ou de um pedreiro, assim também, quem vê
o mundo físico, apenas, na perspectiva de um físico, priva-se das
satisfações que pode ter o verdadeiro cientista ao considerar as har­ í
monias estupendas do universo.

2. A Teologia

Desta forma, a Filosofia, quando considerada isoladamente, é


impotente para esclarecer, por completo, os desígnios de Deus e os
destinos do homem. As bases racionais da ciência da História são
também insuficientes, sendo, portanto, necessário que sobre elas a
Revelação construa um novo edifício, que completará o primeiro e
que oferecerá à Teologia da História o seu fundamento imediato.
O próprio nome desta ciência mostra a sua ligação estreita com todo
o conjunto da ciência teológica. Não há um só dos ramos tão varia­
dos desse imensa árvore em que a verdadeira ciência da História, no
momento próprio, não se apoie.
Antes de mais, apoia-se nas Sagradas Escrituras, que lhe fazem
conhecer a ordem que Deus seguiu na criação, as leis que deu ao
homem, os castigos com que puniu a infracção dessas leis, as pro­
messas que fez e os milagres com que as realizou, os seus desígnios
sobre o povo fiel e sobre os povos revoltados; finalmente, as provas
e as bênçãos que reserva às gerações futuras.

215
A Tradição eclesiástica fornece à Teologia da História esclare­
cimentos que lhe são de grande valia para entender bem as passa­
gens mais difíceis da Bíblia e compreender os desígnios de Deus. A
legislação e a disciplina da Igreja ajudam a Teologia da História a
compreender melhor as condições desse Reino social de Jesus
Cristo, que ela considera o objectivo final para o qual convergem
todos os acontecimentos.
Mas. de todas as disciplinas teológicas, a que oferece à Teologia
da História o alicerce mais sólido é, sem dúvida, a Teologia Esco-
lástica. E nos ensinamentos dessa ciência que ela encontra o comple­
mento dos dados preciosos que lhe forneceu a Filosofia. É, aí. que ela
aprende a conhecer melhor os atributos de Deus e a ordem dos seus
misteriosos desígnios relacionados com a salvação e reprovação dos
homens. E. aí. que a origem das duas cidades - inicialmente no Céu
e depois na Terra - lhe é mostrada completamente. É, aí, que forma
as idéias precisas sobre a primeira prevaricação, que tão grande
repercussão teve em toda a história. É, aí, sobretudo, que se apre­
senta, na sua luz verdadeira, a Encarnação do Homem-Deus, esse
facto imenso que é o eixo da história, e é, aí, que se manifestam tam­
bém. na sua ordem, todos os outros factos que explicam o caminho
da humanidade para Deus e as suas vicissitudes: a fundação da Igreja,
a missão do Espírito Santo, a efusão da graça nas almas, a instituição
dos sacramentos. E aí, enfim, que são mostrados os objectivos últi­
mos, aos quais todos devem chegar, necessariamente, bons e maus,
os servidores de Jesus Cristo e os seus inimigos.
Acabámos de indicar, pelo menos nas suas características prin­
cipais, os ensinamentos da Teologia Escolástica que servem para ilu­
minar o caminho da Teologia da História. Mas, também, não é
necessário mais para compreender como o estudo da Teologia da
História é útil para esclarecer os ensinamentos da Teologia Esco­
lástica. A Teologia da História permite-nos tocar, por assim dizer,
com as nossas próprias mãos, nos efeitos da Providência, da Encarnação,
da graça, da Igreja e de todos os dogmas que a Escola demonstra e
explica tão bem. Depois de subir, com a ajuda da primeira, até às
altas regiõés do pensamento e da abstracção, descemos, guiados

216
0

pela segunda, ao mundo dos factos e das realidades vivas, onde


temos a alegria de reconhecer a perfeita conformidade dessas reali­
dades com as abstracções, e a dos factos com as idéias.
Há mais ainda. A Teologia da História fornece à Teologia espe­
culativa não apenas a sua aplicação e a sua confirmação pelos factos,
mas fornece-lhe, ainda, a sua fórmula mais universal. Porque em vão
se procuraria uma fórmula que abarcasse melhor todas as disciplinas
teológicas e que fizesse compreender melhor as relações entre elas,
do que aquela que consideramos como lei suprema da História: o
Reino de Jesus Cristo. Deus no ápice e, logo abaixo, a humanidade
do Mediador divino. Depois, os anjos e os homens predestinados, os
espíritos em situação de prova, o mundo dos corpos, servindo para
tornar meritória a prova e mais fulgurante a glória dos espíritos
bem-aventurados e, finalmente, os condenados que realçam, pela
sua infelicidade, a felicidade dos que permaneceram fiéis. Eis o
Reino de Jesus Cristo no seu conjunto magnífico e eis também o
conjunto da Teologia Escolástica. Essa ciência, portanto, não tem
outra fórmula que não seja a da Teologia da História. Elas diferem
uma da outra na maneira de a considerar: enquanto que uma a estu­
da especulativamente, a outra considera-a na sua realidade.

3. A História

Quase não seria necessário destacar a profunda ligação que exis­


te entre a Teologia da História e a História propriamente dita. A pri­
meira está para a segunda, como uma organização completa está para
os seus elementos. Somente a Teologia da História pode dar à história
a sua alma, a sua vida, a sua unidade; enfim, fazer dela uma ciência.
Fora disso, o que pode ser a história? Já o dissemos, mas agora
podemos compreender melhor a verdade daquelas asserções. Se na
história considerarmos apenas os factos ligados uns aos outros pela
simples sucessão do tempo, teremos então os materiais de uma ciên­
cia, mas nada que se pareça a uma ciência, teremos um monte de
pedras, mas não um edifício.

217
Quando reunimos um certo número de factos para os rela­
cionar com um princípio único; quando estudamos a vida de um
homem e nela procuramos a causa do seu rumo; quando, nos fac­
tos que compõem a história de um povo, descobrimos a influên­
cia das inclinações que dominam o seu temperamento moral;
quando, num encadeamento de acontecimentos históricos, pro­
curamos compreender a aplicação das leis morais e vemos os
resultados funestos da sua transgressão, aproximamo-nos da
ideia de ciência. Mas ainda falta aquilo que constitui propria­
mente uma ciência: a unidade. Temos verdades esparsas e múlti­
plas, mas não temos o princípio. Temos diversos raios, mas o foco
está oculto. Temos conquistas úteis, no âmbito científico, mas
falta-nos a fórmula superior que, sem destruir a unidade dos fac­
tos, lhes dá a unidade. Ora, essa fórmula, já o vimos, em vão será
procurada fora da Teologia da História. Os verdadeiros historia­
dores caminham sob a sua luz. Fora daí, teremos eruditos, com­
piladores mais ou menos engenhosos, mais ou menos pacientes,
escritores mais ou menos eloquentes, cronologistas, orientalistas,
geógrafos, mestres nas várias especialidades. Mas em relação à
ciência geral, à ciência orgânica, à verdadeira ciência, esses mes­
tres serão apenas auxiliares. Tal como os operários de Tiro, que
Salomão empregou na construção do Templo, eles fornecerão ao
filósofo cristão os materiais que necessita para edificar o monu­
mento que ele resolveu construir.
Ficaremos sempre gratos a esses homens pelos serviços que
prestam à ciência. Não lhes recusaremos nenhuma glória mere­
cida. Mas há um mérito que não lhes poderemos conceder, e
que a maioria deles nem sequer ambiciona (e os que o ambicio­
nam são os que menos têm razões para tal): é a visão da unida­
de, a concepção verdadeiramente científica da História. Falta-
lhes o principal fundamento em que se apoia a ciência da
História, bem como a ordem do mundo, isto é, o conhecimento
de Jesus Cristo.

218
0 SffeÚM de J/eJtzJ

4. A Moral

Até aqui, contentámo-nos em considerar as relações da


1 eologia da História com as ciências especulativas, tendo visto
como ela é a coroação dessas ciências e como lhes confere a unida­
de suprema. Ela une a Filosofia e a Teologia, a ciência racional e as
ciências nascidas da Revelação, as especulações abstractas e os
conhecimentos experimentais. Não terá ela, também, alguma afini­
dade com as ciências práticas, sobretudo com a Moral, que é a ciên­
cia prática por excelência? O estudo da Teologia da História só traz
luz para o espírito? Não pode também exercer uma boa influência
sobre a vontade, ao mostrar-nos o fim que a Providência almeja para
o mundo e, simultaneamente, o objectivo que devemos ter?
Sim, ela dá-nos, certamente, esse ensinamento precioso, porque
mostra a identidade perfeita entre o fim da humanidade e o nosso,
fazendo-nos compreender que, ao trabalharmos pela nossa própria
felicidade, trabalhamos pela perfeição geral da Criação e pela glória
do Criador. Finalmente, leva-nos a realizar, com diligência, esse tra­
balho ao fazer-nos considerar a Providência divina, desde o começo
dos séculos, na sua tentativa de realizar a obra com a qual somos
chamados a cooperar e ao destruir, irresistivelmente, os obstáculos
que parecem tornar a sua realização impossível.
O que há de mais adequado para nos encher de coragem? Sim,
o objectivo da humanidade inteira, este fim buscado pela
Providência divina desde a origem dos séculos, é também o fim pro­
posto a cada um dos homens. O Reino de Jesus Cristo, que Deus
quer estabelecer no universo, começa por estabelecê-lo em cada
alma. Deseja ver na sociedade humana, apenas, um grande retrato
do seu divino Filho, mas deseja, também, que cada membro dela seja
uma imagem menor do divino Modelo. Os dois anelos decorrem de
um mesmo princípio: o amor essencial de Deus Pai pelo seu Filho. O
motivo é apenas a dignidade infinita do Homem-Deus, que faz d’Ele,
necessariamente, o Chefe de toda a Criação e de cada criatura.
A lei que prescreve a imitação e a submissão a Jesus Cristo,
assim como a sua glorificação é, como vemos, uma só e única lei, que

219
se aplica igualmente aos indivíduos e à sociedade e que constitui o
fundamento comum da Moral e da História. Difere, apenas, na apli­
cação e, mesmo aí, a diferença é puramente acidental, pois o que
Deus busca na glorificação do seu Filho não é tanto o número dos
que O imitam, mas, sobretudo, a perfeição das imagens. Ora, uma só
alma pode imitar mais perfeitamente o Modelo divino, e realizar
melhor os desígnios de Deus, do que um povo inteiro.
Desta forma, a Teologia da História não nos permite contem­
plar, como simples críticos, as vicissitudes da humanidade. Os que
foram esclarecidos pela sua luz não se colocam, no estudo da histó­
ria, como espectadores estranhos, sentados nos degraus de um anfi­
teatro, a contemplar as peripécias da luta. Pelo contrário, são solda­
dos da mesma luta. Perante os acontecimentos mais distantes, tanto
no tempo como no espaço, têm um interesse capital que os faz seguir
o seu desenrolar com uma emoção palpitante. Em todos os lugares,
vêem agitar-se duas causas que consideram como próprias: a causa
de Deus e a causa da humanidade. Não se limitam a dizer como o
poeta “sou homem e nada do que é humano me é alheio”1, mas dese­
jam pertencer ao Reino de Cristo e não são indiferentes a nada do
que interessa a esse Reino.

5. O Reino de Cristo é obra de todos nós

A essa primeira consideração, já muito tocante, junta-se outra,


que não o é menos. A Teologia da História não manifesta, apenas,
uma identidade perfeita entre o nosso destino pessoal e o do uni­
verso. Ela, ainda, nos faz compreender que depende só de nós,
quando buscamos o nosso fim pessoal, influir, poderosamente, nos
destinos do universo.
De facto, o Reino de Jesus Cristo, cujo estabelecimento é o

1) Públio Terencio, Hautontimorumenos, (o castigador de si próprio) I,


sc. 1 v. 25.

220

■u
de tz/z Jffzjztf/za

grande objectivo da Providência, deve ser um reino social. Quer islo


dizer que não se estabelece, separadamente, em cada um dos indi­
víduos que constituem a grande família humana, mas em cada um
com a cooperação de todos. Nisso está a sua perfeição soberana.
E, sobretudo, por aí, que os membros do Corpo de Jesus Cristo se
tornam semelhantes ao seu Chefe divino. Ou seja, como Ele e sob a
sua dependência, são mediadores secundários, uns em relação aos
outros, tornando-se capazes de comunicar a vida de Deus. Cada um
é dotado do poder de contribuir para a perfeição e felicidade dos
seus semelhantes. Esse poder só tem por limite a fidelidade de cada
um. Todos podem influir pessoalmente no destino geral, no mesmo
grau em que cada um influi no seu destino pessoal.
Aqui, de facto, as circunstâncias exteriores não são nada, ou
quase nada. Podem determinar o exercício da influência, mas não
podem aumentá-la ou diminuí-la. O Reino de Jesus Cristo não é
somente um reino social, mas é, ainda, um reino espiritual e sobre­
natural. Assim, ele não se estabelece nem se propaga, apenas, por
meios exteriores e visíveis, mas, sobretudo, por meios interiores e
invisíveis. São os membros visíveis que agem uns sobre os outros,
mas agem por virtude do Chefe invisível, podendo essa virtude fazer
com que exerçam, de forma muito real, a sua influência, mesmo no
caso em que as circunstâncias exteriores lhes tirem qualquer possi­
bilidade de manifestar tal influência.
Eis o verdadeiro ponto de vista, a partir do qual devemos con­
siderar o Reino de Jesus Cristo, cujo estabelecimento é o fim supre­
mo da história. É, certamente, uma obra de Deus - a sua obra por
excelência - mas é, também, a nossa obra, a obra de cada um de
nós, podendo e devendo cada um dos nossos actos fazê-la cami­
nhar. Uma súplica ardente lançada ao Céu é capaz de fazê-la avan­
çar mais do que uma vitória num campo de batalha. Quantos emba­
tes foram ganhos pela força de súplicas assim! No último dia, quan­
do a verdadeira história se desenrolar diante dos nossos olhos,
reconheceremos que os verdadeiros actores dos grandes aconteci­
mentos históricos não são as personagens mais famosas e heróicas,
mas as almas humildes cuja caridade ardente dá força ao herói.

221
6. A ajuda de Deus

Uma terceira consideração pela qual a Teologia da História nos


anima a desejar, ardentemente, o Reino de Jesus Cristo em nós, está
na segurança que nos vem do facto de sermos muito ajudados por
Deus na realização dessa grande tarefa. Ela mostra-nos, com efeito,
a Providência divina ocupada, unicamente, em obter esse objeclivo,
preparando, desde a eternidade, todos os meios que devem garantir
a sua realização, empregando nele todos os recursos da sua sabedo­
ria e do seu poder. Mostra-nos os próprios obstáculos a servirem,
afinal, para aumentar a glória do triunfo. E, assim, se compreende
que os inimigos, antes de vencidos, sejam exaltados na proporção
necessária para provar os servidores fiéis.
A Teologia da História faz-nos assistir, desde o começo dos
séculos, a uma sucessão de lutas nas quais os amigos de Deus, pare­
cendo sucumbir, sempre acabaram por sair vitoriosos. De quanta
confiança nos devemos encher nas nossas lutas e dificuldades pre­
sentes, ao recordar tal realidade! Pouco importa se se trata de ata­
ques invisíveis, desencadeados contra a nossa alma, ou de persegui­
ções exteriores suscitadas contra a Igreja. A guerra que se desenro­
la é sempre a mesma desde o início dos tempos; são os mesmos ini­
migos, as mesmas armas, as mesmas conspirações, as mesmas apa­
rências de derrota do bem e de triunfo do mal. Se nos limitarmos ao
presente, as trevas que o enchem podem perturbar-nos. Mas, quan­
do a Teologia da História nos eleva às suas alturas, e nos faz ver, na
sucessão das idades, as noites mais escuras sempre seguidas dos dias
mais brilhantes, podemos então tranquilizar-nos e confiar. Se
vamos ao encontro dos objectivos de Deus e se trabalharmos na sua
obra, podemos contar com o seu apoio. O que torna a montanha
sólida sobre os seus fundamentos e a torrente irresistível no seu
percurso, é que uma e outra cumprem a lei do seu Senhor.
Inabalável é a fortaleza da alma e irresistível o seu ímpeto, quando
ela compreende e cumpre com docilidade a lei suprema da Criação,
trabalhando, com todas as suas forças, para o estabelecimento do
Reino de Jesus Cristo.

222
OSfteàM de feíai fâúto zzzz efâjtáda

“Venha a nós o Vosso Reino!”

A Teologia da História, ao esclarecer o nosso espírito, dirige e


fortifica a nossa vontade. Dando às ciências especulativas a sua uni­
dade, fornece à Moral um apoio sólido. Ao mostrar-nos o fim dese­
jado por Deus, facilita a procura do nosso próprio fim.
Mas não é somente a Moral ordinária que recebe da Teologia
da História um apoio precioso. Também a mais alta espiritualidade,
o mais perfeito ascetismo, todos os estados pelos quais Deus faz
passar as almas santas, que se entregam completamente a Ele, não
têm outro objectivo senão o de estabelecer, perfeitamente, nelas, o
Reino de Jesus Cristo. Todas as provações, às quais essas almas são
sucessivamente submetidas, estão destinadas a fazê-las cada vez
mais semelhantes ao Modelo divino. Tirar-lhes gradualmente todos
os apoios criados para as fazer apoiar-se, apenas, em Jesus Cristo,
tirar-lhes todas as satisfações na ordem criada para as habituar a
procurarem, somente, Jesus Cristo, tal é o caminho que Deus segue
com essas almas e que o ministro de Deus deve adoptar, por sua
vez, se não quiser ser o principal obstáculo à acção do Espírito
Santo. Cada uma dessas almas de escol é um mundo, no qual Deus
realiza (em proporções menores mas com igual perfeição) o desíg­
nio que busca no universo. Para cooperar, eficazmente, na realiza­
ção desse desígnio, é preciso ter a atenção, constantemente, fixa no
ideal divino, para nos assemelharmos a Ele. Eis aqui o resumo da
Teologia Mística; em vão se procuraria uma espiritualidade mais
sublime e mais sólida.
Assim, em nós e nos outros, na ordem religiosa e na ordem civil,
nas relações de família e na sociedade, só temos uma lei a seguir.
Essa lei resume todas as outras; é a grande lei da História: trabalhar
pelo estabelecimento do Reino de Jesus Cristo.
O advento desse Reino, em nós, é a perfeição para a qual deve­
mos, pelos nossos actos, tender sem cessar. O advento desse Reino,
no mundo, é a felicidade que esperamos para a sociedade e para os
povos. Devemos pedi-la incessantemente, buscá-la pelo ardor dos
nossos desejos e dos nossos esforços.

223

Cumpriremos, assim, a lei da História e o preceito do Senhor:


“Rezai, pois, assim: Pai Nosso, que estais nos céus, santificado seja
o Vosso nome, venha a nós o Vosso Reino, seja feita a Vossa von­
tade, assim na Terra como no Céu” (Mt 6, 9-10).

224
z
índice

Prefácio 7
1. A história descritiva é ciência histórica?.. 9
2. Crítica histórica e ciência histórica 11
3. A ciência histórica propriamente dita 14
4. A ciência histórica em toda a sua grandeza 16

Primeira Parte
O Reino de Jesus Cristo considerado nos seus elementos 21

Capítulo I
A acção divina 23
1. A intervenção divina demonstrada pela História 24
2. A ordem moral e a ordem física 28
3. A intervenção da Providência impede a liberdade humana? . 30
4. Milagres: os excessos da credulidade e da incredulidade 33

Capítulo II
O plano divino estudado na natureza de Deus. 35
1. O universo tem um só fim: a glória de Deus 36
2. O mal e o bem nos planos de Deus 38
3. A natureza do plano divino . 40
4. A perfeição divina reflectida nas criaturas . . 42

225
Capítulo UI
O plano divino estudado à luz da Revelação 45
1. O fim sobrenatural do plano de Deus. . . 46
2. O Reino de Jesus Cristo 48

Capítulo IV
O plano divino estudado na natureza do homem 57
1. A natureza decaída do homem 58
2. As provas a que o homem é submetido .... 60
3. O pecado original e o plano divino 62
4. A procura da verdadeira e da falsa felicidade 65

Capítulo V
O plano divino estudado na natureza da sociedade . . 69
1. A lei da mutualidade 70
2. A lei da desigualdade 73
3. A próxima reconciliação entre as sociedades e Deus 74

Capítulo VI
O plano divino estudado no conjunto da Criação . . 79
1. Como pode a Criação manifestar a beleza divina? 80
2. As leis da variedade 81
3. As leis da variedade aplicadas à Igreja 83
4. As leis da unidade 87

Capítulo VH
O plano satânico 95
1. Entravar o plano divino 96
2. Destruir o plano divino 100
I 3. Executar a contrafacção do plano divino

Capítulo Vm
As falsas filosofias da história
A. Teorias ateias 107
1. Considerações prévias ... 109

226
!

0áé feftáj

2. O ateísmo metafísico de Hegel ..................... 110


3. O ateísmo positivo de Augusto Comte........ 112
4. A teoria contemporizadora de Vacherot . . . 114
5. Refutação dos fundamentos destas teorias . . 116
6. Refutação do conteúdo da filosofia positivista 118

B. Teorias panteístas................. 121


1. Resumo das teorias panteístas 121
2. Refutação destas teorias . . . 131

C. Sistema de Jean Reynaud. 136


1. Exposição desta doutrina . 136
2. Análise crítica................... 138

Capítulo IX
Teorias incompletas de alguns escritores católicos 143
1. A palingenesia social de Ballanche ................... 144
2. Châteaubriand...................................................... 146
3. Frederico von Schlegel ..................................... 149

Segunda Parte
A verdadeira ciência da História 153

Capítulo I
Doutrina de Santo Agostinho ....................... 155
1. Um livro apologético ................................. 156
2. Conteúdo da obra ..................................... 157
3. A Cidade de Deus e a Cidade dos Homens 159
4. Origem e destino das duas cidades .......... 161
5. A preparação da vinda do Salvador.......... 162
6. Fim das duas cidades................................... 164
7. Conclusão .................................................... 164

227
Capítulo n
Doutrina de Bossuet 169
1. Conteúdo da obra 170 i
2. As épocas históricas, segundo Bossuet 171
3. A Igreja Católica 172
4. O destino dos impérios 174
5. Observação crítica 176
Capítulo IH
A Teologia da História 181
1. Filosofia ou Teologia da História? . . 181
2. As leis da História 184
3. A lei suprema da História 185
4. Principais aplicações dessa lei 187
5. A questão de direito 189
6. A questão de facto 192
7. A Cristandade 194
8. Conclusão 196
Capítulo IV
O autêntico progresso à luz da Teologia da História . . . 199
1. Fins do progresso 200
2. Condições do progresso 201
3. Obstáculos ao verdadeiro progresso 202
4. Sobre a necessidade do progresso 205
5. Limites do progresso 208
6. O progresso autêntico 210
Capítulo V
Relações da Teologia da História com as outras ciências 213
1. A Filosofia 214
2. A Teologia 215
3. A História 217
4. A Moral 219
5. O Reino de Cristo é obra de todos nós 220
6. A ajuda de Deus 222
7. “Venha a nós o Vosso Reino!” 223

228
escritor e professor, exerceu o
seu ministério sacerdotal como
pregador, director espiritual e
organizador de retiros. r
Promoveu a unidade política
dos católicos franceses, na base
de um programa prático de
defesa da liberdade religiosa.
As páginas escritas por fe
Henri Ramière contam-se por
1
dezenas de milhares, entre
livros e artigos. A sua capacida­
de de trabalho era verdadeira­
mente prodigiosa. A sua
■T
espiritualidade baseia-se
amplamente nos Exercícios |
Espirituais de Santo Inácio, que
punha cuidadosamente em
1 O 'T' 1 \ •1 IO —
M
prática, assim como nos escritos \ «j
■í
de Santa Teresa de Ávila e de São
Francisco de Sales. jj
Nutriu, durante toda a
vida, uma filial e ardente
devoção à Mãe de Deus.
Publicou uma revista mensal
com o título “Pequeno mensage­
iro do Coração de Maria”.
Fez época o seu curso “de
Teologia e de História” proferi­
do no Seminário de Vais, entre
1862 e 1863, litografado, na
altura, sob o título “Le Royaume
de Jésus Christ dans FHistoire”,
que traduz o profundo cristo-
centrismo do autor, e que agora é
publicado em português.
Henri Ramière marcou a
fundo a história do catolicismo.
Para ele, o principal fim da
oração, do apostolado e da acção
social e política, era a glória de
Deus e o amor a Jesus Cristo,
simbolizado no seu Sagrado
Coração.
mbora venha de muito longe, o interesse pela Filosofia da História
incrementou-se notoriamente nos últimos séculos, numa tentativa
incessante de racionalizar a sucessão dos factos históricos e dar um sentido >i
ao caminho da humanidade através dos tempos. Para os antigos, a história
era simples crônica, não tinha um sentido, nem unidade. A procura do
sentido &à história, e da sua unidade, aparece logo no início do pensamento
cristão, tornando-se tema recorrente na literatura patrística, que culminou
na genial síntese de Santo Agostinho, compendiada na “Cidade de Deus”.
Bossuet, no seu famosíssimo “Discurso da História”, e outros autores das
épocas moderna e contemporânea, procuraram desenvolver e actualizar a
teologia agostiniana da História.
No século XVIII, em oposição a esta escola, surge, com Voltaire, uma
corrente filosófica laica, que, num esforço articulado para expulsartãcus
da História, afirma-se no idealismo dialécticoáe Hegel, no positivismo de
Augusto Comte, no materialismo histórico de Marx, e em tantos outros
filósofos, que divergem apenas no grau que conferem àquela expulsão.
No decurso do século XX, a humanidade, pela mão desses filósofos, foi
conduzida a desastres, revoluções e guerras de proporções nunca antes
vistas. Estas calamidades contribuíram para que, na aurora do século XXI,
um número crescente de pessoas se interroguem sobre a coerência
científica desses pensadores, e procurem ansiosamente na Filosofia da
História, e muito particularmente na Teologia da História, a
sistematização unitária e coerente de todos aqueles dados que decorrem da
Revelação e que podem iluminar a história humana e os seus problemas.
Henri Ramière retoma, numa abordagem surpreendente, mas com
rigor lógico, poder de síntese e clareza de linguagem, as teses de Santo
Agostinho e Bossuet, provando que a Providência não é uma ficção piedosa,
mas que Deus conduz, efectivamente, a humanidade, apesar das aparentes
derrotas, para “reunir sob a chefia de Jesus Cristo todas as coisas que há no
Céu e na Terra” (Ef 1,10).

ISBN: 972-26-2055-X
fl. .1.
911
Vivihz^ao

9 789722 620550

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