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Colecção
Tãlent de
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Henri-Marie-Fclix
Ramière (n. Castres, 1821, +
Toulouse, 1884). Oriundo de
uma família profundamente
católica, com fortes ligações ao
regime de Carlos X, entrou para
o noviciado da Companhia de
Jesus, em Julho de 1839, e foi
ordenado sacerdote em 1847.
Completou o curso de Teologia,
em Vais, e doulorou-se, em
Filosofia e Teologia, pela
Universidade Gregoriana de
Roma. Professor no Seminário
de Vais e, posteriormente, no
Instituto Católico de Toulouse,
foi também professor de
Filosofia do Direito na
Universidade Católica de
Toulouse. Participou no
Concilio Vaticano I, como
teólogo do bispo de Beauvais e
procurador do bispo de
Chambéry, sendo responsável
pelo semanário “Boletim do
Concilio”, onde publicou
importantes artigos em defesa
da infalibilidade pontifícia.
Colaborou na redacção da
revista “Éludes".
Considerado um dos mais
brilhantes teólogos do seu
tempo, é autor de uma vasta
obra doutrinai, tornando-se
particularmente conhecido
como o maior promotor do
Apostolado da Oração, movi
mento que exerceu uma enorme
influência sobre a piedade cristã
em lodo o mundo. Foi fundador
do “Mensageiro do Coração de
Jesus”, revista mensal, cujas
páginas, durante muitos anos
(1861-1884), redigiu na sua
quase totalidade. Além de
■
—
I
11
I
Nihil Obstat
3 de Abril de 2001
P.e Fernando Leite. S.J.
Pode imprimir-se
Braga. 18 de Abril de 2001
Mons. Eduardo de Melo Peixoto
Vigário-Geral
ISBN: 972-26-2055-X
Depósito Legal: 167238/01
Henri Ramière, S.J.
KÜKfll
C^çição
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Prefácio
São Paulo formula claramente a lei suprema da ordem natural
e da ordem sobrenatural, quando diz que, no governo dos séculos,
Deus quer “reunir sob a chefia de. Jesus Cristo todas as coisas que
há no Céu e na Terra” (Ef 1,10). Na verdade, todas as coisas encon
tram a sua perfeita unidade nessa subordinação ao Homem-Deus.
A finalidade deste trabalho é descrever a realização desse
desígnio divino - que consiste em instaurar todas as coisas em Cristo
- ao longo da história do gênero humano, demonstrando a concor
dância perfeita entre os factos e as verdades que a Fé nos revela, a
saber: que Jesus Cristo é indubitavelmente o fim último dos desíg
nios de Deus, o Rei da criação, a chave de todos os enigmas, a solu
ção de todas as dificuldades.
Se o nosso trabalho não ficar muito aquém do que esperamos,
haveremos de provar que a história só é inteligível à luz deJesus
) Cristo e que só a essa luz se poderá alcançar a unidade e a conexão
x interna que fazem dela uma verdadeira ciência.
Não nos dedicaremos a demonstrar directamente a divindade
do Salvador, nem a verdade dos dogmas do cristianismo. Esse é o
objecto de outras disciplinas teológicas. Suposta a divindade,
demonstraremos, isso sim, que ela explica o que sem ela seria inex
plicável e, por esse meio, faremos da ciência histórica uma podero
sa confirmação da Revelação cristã. Ao mesmo tempo, veremos a
Teologia como çomplemento .necessário da ciência histórica.
Isso não significa que iremos despojar a História de quaisquer
vantagens que ela possa ter conquistado, fora do influxo da Reve
lação; pelo contrário, aceitaremos todos os factos que os historiado
res tenham solidamente estabelecido e ainda todas as teorias legiti
mamente deduzidas de tais factos. Contudo, vamos convencer-nos,
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sem dificuldade, que esses factos só podem ser inteiramente expli
cados e essas teorias plenamente desenvolvidas, na medida em que
os relacionarmos com a razão última de todas as teorias e de todos
os factos, ou seja, com Jesus Cristo.
Jesus Cristo deverá, pois, aparecer-nos, no final deste livro,
como a verdade substancial e completa para a qual convergem todas
as verdades parciais.
Estudaremos especialmente a história da Igreja Católica, mas
na história da Igreja encontraremos a explicação da história da
humanidade. Se é verdade, como iremos demonstrar, que p objec-
tivo final da Providencia consiste em estabelecer no seio da huma
nidade o Reino de Cristo por intermédio da Igreja, a história da
Igreja e a história da humanidade têm uma mesma explicação.e.uma
mesma fórmuku São dois elementos feitos um para o outro e que a
Providência procura unir para que se complementem. A humani
dade é o corpo, que deve receber da Igreja a luz espiritual, a direc
ção moral, a vida divina, a suprema perfeição. A Igreja é a alma
que, iluminada pela luz de Deus, conduzida e vivificada pelo seu
Espírito, é perfeitamente capaz de esclarecer, conduzir e vivificar a
humanidade. Mas durante muitos séculos, diante dos esforços fei
tos pela Igreja para vivificar e elevar a humanidade, esta opôs-lhe
resistências violentas, tentando encontrar as suas vias longe da Igreja,
fissa luta constitui o grande drama da história, cuja solução passa
necessariamente pela desaparição desse imenso e lamentável
mal-entendido.
Eis a História considerada do ponto de vista cristão, ou, por
outras palavras, de um ponto de vista que não só não rejeita a ciência,
mas que se traduz numa análise histórica verdadeiramente científica.
Não pretendemos, neste livro, desenvolver em todos os seus
pormenores as aplicações da teoria que acabámos sumariamente de
descrever. Limitamo-nos a indicar as suas linhas gerais e a mostrar,
nas diversas épocas históricas, o encadeamento dos factos que
devem conduzir ao estabelecimento do Reino de Jesus Cristo.
Mas antes de passar à aplicação, devemos expor a teoria de
forma convincente. Como desejamos proceder com rigor científico,
8
&' defefz/j
9
é necessário mais, é preciso ir até às razões últimas, ligando os efei
tos às suas causas respectivas. Se a história se contentar em relatar
os acontecimentos que se passaram, sem mostrar o seu encadea-
mento e as suas causas, não poderá pretender o título de ciência.
Será apenas um ramo da literatura.
Não se pense que pretendemos negar o mérito da história assim
considerada. Com efeito, a literatura tem um lugar de relevo entre
as produções do espírito humano e, assim, a história meramente des
critiva não tem de envergonhar-se da posição em que a colocamos.
Situá-la ao lado da poesia e da eloquência nada tem de afrontoso.
Mas mesmo que ela não aceite essas nobres companhias, não tería-
mos motivos para lhe negar uma verdadeira superioridade, quanto à
sua utilidade moral, pelo menos em relação à poesia. Com efeito, o
que faz a poesia nas suas mais belas criações do que descrever, de
forma mais ou menos quimérica, as verdades vivas que a história
imortaliza nos seus relatos?
Que poema se pode igualar à história de José ou à de Tobias?
Sob este ponto de vista inicial, verificamos com grande satisfa
ção o progresso que a História tem feito nos nossos dias. Nos sécu
los anteriores, ela perdera objectividade. No intuito de fugir da tri-
vialidade, perdeu calor e vida. Dir-se-ia que os historiadores tiveram
o cuidado de tirar dos factos históricos a sua cor própria, revestindo-
-os de uma tonalidade pálida e uniforme, que os tornava quase irre
conhecíveis. Com o intuito de agradar ao público, vestiam os nossos
antepassados com roupagens actuais e punham-nos a falar a nossa
língua; o passado era apresentado na óptica do presente, o que equi
vale a dizer que era muitíssimo deturpado.
A escola histórica moderna reagiu de maneira muito feliz con
tra essa tendência. Aceitando o dever de ir às fontes, preocupou-se
em não lhes alterar a pureza. Conseguiu, de forma admirável, fazer i
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0 Sfaáia aífeíaa /ia Jfáj&ááz
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as suas conclusões quase nunca chegam ao grau de certezas. A ima
ginação e os preconceitos têm talvez um papel maior nesta ciência
do que em qualquer outra, e entre os seus mestres mais famosos vê-
-se, por vezes, reinar um desacordo desconcertante. Certo docu
mento, que um deles considera evidentemente autêntico, o outro
declara-o evidentemente falso; as testemunhas que, segundo este,
merecem inteiro crédito, são, segundo aquele, impostores. Basta ver
o que a Alemanha fez da Bíblia para nos convencermos de que o tem
plo da crítica se tornou uma verdadeira babel; e, se não se chegou ali
ao ponto a que chegaram os áugures romanos, que não se podiam
entreolhar sem rir, foi por causa da sisudez inata do povo alemão.
No entanto, se essas contradições e incertezas têm a vantagem
inegável de diminuir um pouco o orgulho da crítica, não vemos nelas
um motivo suficiente para lhe negar carácter científico. Não lhe
negaremos nenhum dos progressos que conseguiu alcançar, nenhum
dos serviços que prestou à história.
Certamente, não é aos católicos que a tocha da crítica pode atemo
rizar. A história seria, aliás, muito omissa e muito injusta, se conside
rasse os católicos como seus inimigos. Quem definiu com mais autori
dade as leis da crítica do que um Honoré de Sainte-Marie? 1 Quem as
aplicou com maior independência do que os Beneditinos de São Mauro2
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0 defejad c&Tàfto aa Jfárfáwa
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a crítica me proporciona, adquiro a certeza da autenticidade de um
livro, da veracidade de um testemunho e, por conseguinte, da vera
cidade do facto histórico, mas falta-me estudar as suas razões e
conhecê-lo cientificamente.
A crítica histórica nào é, pois, ainda a ciência histórica propria
mente dita.
4) “Não deves falar deles - olha e passa”. A divina comédia - O Inferno, Danle Alighieri,
canto III, 17.
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Tz/rifo zza .zffijáúüz
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na segunda, pois as leis morais, embora se imponham ao homem,
não negam a sua liberdade, mas também nãxLpodem produzir efei-
tos tão certos como as leis físicas, que se aplicam com uma necessi
dade cega. Nos dois casos, entretanto, os fenômenos particulares e
mutáveis são relacionados com as leis gerais e permanentes da
ordem à qual pertencem; nos dois casos estamos, pois, em presença
de verdadeiras ciências.
É essa, então, a ciência histórica em toda a sua verdade e extensão?
Não, falta ainda à História, assimconsiderada, a mais alta de
todas as prerrogativas da ciência: a Unidade)
Se ficássemos por aqui, teríamos tantas ciências diferentes quan
tas são as biografias e as histórias parciais. Não teríamos, contudo, uma
ciência completa da história. Compreenderiamos a vida de alguns
grandes homens, a existência colectiva de certos povos; não com
preenderiamos. porém, a vida da humanidade. Já não ficaríamos redu
zidos, como o historiador puramente descritivo, a juntar os materiais
das ciências, sem descobrir o seu encadeamento, a dissecar os elemen
tos orgânicos sem perceber a organização que os une. Teríamos esbo
ços de organização, partes do edifício, mas não teríamos um corpo per
feito. Não poderiamos contemplar, na sua majestosa unidade, o gran
de edifício que a Providência constrói desde o início dos séculos.
Essa unidade existe realmente nos acontecimentos da história
como existe em todos as outras partes da Criação? Terá a Provi
dência divina impresso a esse caos aparente que é a existência da
humanidade, a bela ordem que caracteriza a sua acção e que consti
tui a suprema beleza de todas as suas obras? É o que iremos exami
nar. Mas o que, desde já, podemos afirmar é que, se fosse necessá
rio renunciar a descobrir tal unidade, seria preciso renunciar igual
mente à ciência da história.
16
& de
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ao mesmo tempo, descobriremos a sua unidade..nos desígnios da
Providência divina. Assim, poderemos salvaguardar as condições
essenciais da ciência histórica e sustentá-las, seja contra os simples
narradores, seja contra os ataques dos historiadores filósofos que
sacrificam a variedade à unidade.
( Este método, o único inteiramente conforme aos ensinamentos
da fé cristã, é também o único que reúne, na sua plenitude, os ele
mentos constitutivos da ciência. Reúne todas as vantagens dos outros
métodos, sem incorrer nos inconvenientes que neles apontamos.^
A história pode conservar nos seus relatos todo o interesse e toda
a verdade atraente do método descritivo; pode possuir toda a segu
rança da mais rigorosa crítica, toda a utilidade da história moral ou
política; pode dar a conhecer os factos, estabelecer a autenticidade
dos monumentos e a verdade dos testemunhos, permitir a compreen
são dos homens e atribuir a cada povo o seu papel. Objectivos secun
dários todos eles, mas compreendidos no seu fim específico. E quan
to mais ela se colocar num ponto de vista superior, tanto mais lhe será
fácil entender cada um desses aspectos parciais, abarcando melhor o
conjunto e relacionando mais facilmente a acção dos indivíduos e das
sociedades particulares com os destinos gerais da humanidade.
Eis a verdadeira ciência da História em toda a sua grandeza e
beleza, tal como o cristianismo no-la revela. O paganismo não a
conheceu. E como poderia tê-la conhecido, se ignorava inteiramen
te tanto a unidade do gênero humano como a Providência de Deus?
O deísmo, com a sua concepção absurda de uma divindade indife
rente ao mundo, e de um mundo entregue aos caprichos do acaso, é
igualmente incapaz de compreender a maravilhosa unidade da
História. Mas também não procura roubar ao cristianismo essa
grande conquista. O pajiteísmo moderno foi mais audacioso na sua
guerra à Igreja; porém os seus esforços apenas farão com que, indi-
rectamente, a verdade triunfe. Desenvolvendo nos espíritos a exi
gência da unidade da ciência, abre as vias para a única verdadeira
unidade, e até nas contradições em que cai, procurando essa unida
de fora de Jesus Cristo, acabarão por levar ao divino Redentor as
almas rectas.
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& S/faúw d? vtáfo /za Jfójfo/v/z
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Primeira Parte
A acção divina
Será Deus um agente histórico? Será a Providência uma ficção
piedosa? Estas questões foram resolvidas tão claramente pelo bom
senso do gênero humano, que nem sequer os pagãos tiveram dúvi
das a seu respeito, exceptuando alguns filósofos, como os seguido
res de Epicuro '.
Somos, entretanto, obrigados a discutir estas questões já no
princípio deste estudo, porque o racipnalismo dos nossos dias -
radicalmente oposto a tudo o que é divino - empreende todos os
seus esforços para expulsar Deus da História. Tal empenho é a prin
cipal característica desta nova heresia, em que as facções diversas só
se distinguem pela extensão que conferem a essa exclusão.
Alguns, mais consequentes no seu erro, excluem absolutamen
te do mundo físico e moral toda e qualquer acção superior à nature
za e à humanidade: são os positivistas.
Outros admitem de bom grado'que Deus é a causa primeira de
todas as coisas e que os agentes físicos e morais Lhe devem a sua exis
tência; mas negam que Deus lhes tenha estabelecido um fim. Rejeitam,
pois, como não científica, a teoria das causas finais. Não lhe poupam
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zombarias, embora poupem os argumentos sérios. Sem ousarem
confessar-se ateus, ou deístas, não hesitam em recusar o dogma da
Providência.
Enfim, os mais moderados entre os racionalistas aceitam a
Providência, mas sob a condição de que ela se limite a estabelecer,
na origem do mundo, as leis gerais cuja execução será confiada a
agentes secundários. Ela fica impedida, tanto na ordem física como
moral, de qualquer intervenção directa, limitando-se ao papel de
simples espectadora.
Lamentamos ter de acrescentar a todos esses adversários decla
rados da acção divina alguns escritores católicos, que se deixam
dominar pelo contágio do naturalismo. Parecem ter medo de atri
buir a Deus demasiada importância e acabam por perfilhar a teoria
das leis gerais, chegando mesmo a excluir o milagre da história.
A todos os erros acima mencionados não vamos opor aqui uma
teoria completa sobre a Providência: esse é o objecto da Filosofia e
da Teologia. O nosso objectivo é mostrar como os argumentos sobre
os quais se apoiam esses diferentes sistemas são historicamente
insustentáveis e como, pelo contrário, o dogma cristão da
Providência - tocha que ilumina a História - é poderosamente con
firmado pelos testemunhos históricos.
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dá' fejááJ
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Por outro lado, se aceitássemos para efeitos de argumentação,
que o progresso da ciência levou a humanidade a substituir o politeís-
mo pelas forças naturais, o que decorrería daí? Que imperativo lógi
co forçaria a deduzir, a partir da destruição de um erro evidente, a
negação de uma evidente verdade? Por rejeitar algumas causas fictí
cias, inventadas pela imaginação, seria necessário negar todas as cau
sas? Porque foi provado que um antigo edifício não foi construído por
fadas, como narram as lendas populares, teria a ciência o direito de
concluir que ele se construiu por si próprio? E se esta conclusão é tida
como absurda em relação a uma ruína medieval, como poderá pare
cer científica quando se trata do magnífico edifício do universo?
Porém, aqui a escola positivista esgrime outro argumento: para
que a acção divina possa ser reconhecida pela ciência deve ser cien
tificamente comprovada. Se assim não for, a história deve tê-la
como inexistente.
E preciso uma não pequena ousadia para desmentir tão catego
ricamente os inúmeros testemunhos históricos da intervenção divina.
A escola positivista afirma, pois, que a intervenção divina não
está historicamente demonstrada. O que é, então, necessário para
demonstrar um facto? Até agora, pensava-se que era possível fazê-
lo de duas maneiras: por testemunhos directos e positivos, ou por
argumentos indirectos e negativos, isto é, pela impossibilidade de
explicar os outros factos, caso não se admita esse. Foi assim que a
ciência demonstrou, por exemplo, a existência de um planeta que a
observação directa ainda não tinha chegado a perceber.
Não falemos, ainda, da prova directa da intervenção divina que
o milagre nos fornece. Bastaria apontar aos positivistas dois factos,
entre mil que poderiamos lembrar, para desafiá-los a explicar o
fenômeno sem essa intervenção. São eles: a aparição da inteligência
na terra e a invenção da linguagem. Eles admitenique^inteligência
aparermi, apenas, a partir de um certo momento. De onde veio? Já
que o seu princípio básico éjo’<Jc._quc não se pode admitir nenhum
agenleJfora. dos agentes históxiC-OS. - isto é, os que vemos a movi
mentarem-se sob os nossos olhos - a qual desses agentes atribuem eles
a produção da primeira inteligência? É um facto histórico inegável
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0 Srfeúw ak jfaai /zzz Jfâtáfràz
C7Z
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um homem anteriormente privado desse dom, é colocar na história
um elemento que nada tem de histórico. É supor, sem qualquer fun
damento, uma superioridade da humanidade primitiva sobre a
humanidade actual. Facto que contrariaria, aliás, manifestamente, a
lei do progresso.
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0Sffeúw aí’ Jfaaj /z/z jffíftórãz
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oferece à sociedade doente o mais eficaz de todos os remédios, ou
seja, a doutrina de Jesus Cristo. Cada vez que essa doutrina é acei
te, produz verdadeiros prodígios de virtude e felicidade: pensemos
no exemplo dos santos e das ordens religiosas. Em sentido contrá
rio, quanto mais ela foi violentamente recusada, tanto mais desas
trosos foram os excessos cometidos pelos indivíduos e as convulsões
padecidas pelas sociedades.
Concluamos: tanto o mundo moral como o mundo físico nos
demonstram a existência de uma Providência infinitamente sábia,
que impôs leis imutáveis a todas as suas criaturas, para que estas, na
observância dessas leis, sejam conduzidas à perfeição e à felicidade.
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& aí? fe/aj /a/ Jfiaáírta
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Qual é a certeza das leis físicas que, segundo Hume, prevalece
sempre sobre a certeza dos testemunhos favoráveis ao milagre? É
uma certeza metafísica e absoluta? Quem ousaria afirmá-lo?
Evidentemente essa certeza é puramente hipotética. Estou certo de
que a pedra, uma vez atirada ao ar e privada de qualquer apoio, cairá
ao chão, se uma força superior à atracção da terra não a retiver.
Mas como poderia saber se essa hipótese se verificou ou se o
efeito da lei foi suspenso pela intervenção de uma força superior?
Saberei pelos mesmos meios que me servem para conhecer a pró
pria lei, isto é, pelo testemunho dos meus sentidos. Verei a pedra
subir ao ar e, mesmo quando não tiver visto a mão que a lançou, não
duvidarei da existência de uma força diferente daquela que é exer
cida pela gravidade. Não haverá aqui nenhuma oposição entre a cer
teza da lei e a certeza da suspensão dos efeitos da lei. Haverá sim
plesmente conhecimento da realização de uma hipótese da qual
dependia a execução da lei. Acontece o mesmo com o milagre.
Quando ele se realiza, as suas testemunhas dispõem de todos os
meios de observação pelos quais conhecemos com certeza os outros
factos físicos. Se, depois de ter utilizado esses meios, estiverem una
nimemente de acordo em afirmar a verdade do milagre, o seu teste
munho é tão aceitável como os relativos a qualquer outro facto
importante. Não se tem o direito de lhes opor a certeza da lei física
derrogada pelo milagre porque, repetimos, essa certeza era hipoté
tica e as testemunhas que atestam o milagre demonstram precisa
mente a inexistência, no caso particular, da hipótese da qual decor
ria tal certeza. Eis o que temos a responder ao sofisma de Hume.
Quanto à pretensão de Renan de proibir os milagres de Deus
que não tiverem a chancela das academias, além de ser um insulto à
majestade divina, é também um violento ultraje ao bom senso.
Centenas de pessoas viram voltar à vida, depois de três dias, um
Homem que incontestavelmente tinha sido morto pelos seus inimi
gos. Comeram com Ele, tocaram-n’O com as mãos, não uma vez,
mas vinte, e em vinte lugares diferentes. Afirmaram a veracidade
desse facto, apesar dos preconceitos, das paixões e dos grandes inte
resses que os levariam a negá-lo. Não se pode imaginar um conluio
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xzz jfârtárâz
entre os diversos actores dessa cena. Mas, mesmo que eles se tivessem
posto todos de acordo para enganar a humanidade inteira, é certo que
não poderíam consegui-lo. Sofreram os tormentos da fogueira para
confirmar o seu testemunho e as suas palavras converteram o mundo.
Depois de vinte séculos, há pouca coisa a fazer além de registar os
resultados desse facto imenso... E só porque o divino Autor desse
milagre achou por bem não pedir prévia autorização a Renan e aos
seus confrades, deixa esse facto de ter realidade histórica?
Resta-nos ainda uma dificuldade para resolver. Se Deus age
sobre as criaturas, que liberdade lhes deixa? Respondemos: Deixa-
as fazer tudo. Sim, tudo^ ..porque age i^^çp^niQjsausa^piimeira^e
deixa-as, em consequência, fazer tudo o que a causa segunda pode
fazer. Pelo facto de a Terra ser movida pelo Sol, não se pode con
cluir que sobre a superfície da Terra um corpo não possa ser movi
do por outro. A acção do motor primário, longe de destruir a acção
dos motores secundários, é sua condição indispensável. Como pode
riamos agir se Deus não conservasse o nosso ser, se não nos desse a
força, se não ajudasse as nossas faculdades? Onde encontraríamos a
perfeição, que não temos ainda, se o concurso de Deus não nos aju
dasse a adquiri-la?
Como poderemos, porém, determinar-nos livremente se Deus
age em nós e connosco? Agimos livremente porque Deus para isso
nos dá a potência, porque não nos determina a uma só coisa, por um
movimento irresistível, mas leva-nos ao bem em geral, deixando-nos
a faculdade de escolher um bem ao invés de outro, de buscar ou
rejeitar qualquer objecto finito. Que há nisso de absurdo? Que há
nisso que não esteja perfeitamente em conformidade com os princí
pios de uma sã filosofia?
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Demonstrámos que essas bases são igualmente ruinosas e que é
igualmente infundado rejeitar a acção divina, pôr em dúvida a certe
za das leis providenciais, ou recusar a intervenção especial de Deus
nas leis humanas. Não nos foi difícil, apoiando-nos sobre a razão e
sobre a história, opor a essas três negações gratuitas a afirmação fun
damentada das três verdades que elas tinham tentado obscurecer.
Para terminar, é preciso dizer que se deve evitar o excesso de cre
dulidade que nos poderia levar a ver milagres onde não os há.
Contudo, se é de se temer tal excesso, também o excesso oposto o é.
Se constitui falta de respeito atribuir a Deus o que é obra da impostu
ra, não Lhe faltamos também ao respeito atribuindo à impostura o que
é obra d’Ele? Se é prudente ter grande reserva diante da possibilidade
do milagre, negar o milagre, onde ele foi confirmado por testemunhos
dignos de fé, é cair na incredulidade. Reconhecemos que a sabedoria
divina tudo vê e que governa o mundo por leis gerais. Essa verdade
evidente, porém, não nos impede de reconhecer que esse olhar único
e abrangente percebe os menores detalhes e que as leis gerais condu
zem aos seus fins específicos todos os agentes particulares. Assim,
podemos afirmar o grande dogma da Providência, sem negar nenhum
dos outros dogmas de fé, cuja verdade a razão nos demonstra.
34
Capítulo II
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acção omnipotente do Ordenador Soberano, então a unidade da his
tória brilhará com intenso fulgor, pois brotará do seio de uma imen
sa e tumultuosa diversidade.
Já estudámos, noutro trabalho, o assunto que nos ocupará
agora. Devemos, no entanto, resumir aqui as conclusões às quais
aquele estudo nos conduziu, pois o tema é fecundo e poderá propi
ciar-nos novas luzes.
36
0 ak jfaad c&átó> mz Jfójáfrüz
de dirigir para este fim os seres criados e as suas acções. Ora, nada
é mais evidente do que esta dupla verdade.
O fim está para a vontade racional como o objecto para a inteli
gência. O tender e o agir são, para a vontade, uma só coisa, pois a sua
acção é um movimento pelo qual ela procura atingir o bem, se esti
ver ausente, e conservá-lo, se já o possui. Ora, qualquer tendência
supõe, necessariamente, um termo, um fim. A ideia de fim é, pois,
inseparável da própria ideia de vontade, e não se poderia conceber a
vontade em acto sem conceber esse acto a tender para um fim, do
mesmo modo que não se poderia representar um movimento corpo
ral senão a partir de um ponto do espaço para chegar a outro ponto.
D e st e_ modo,. dizer que Deus não teve um fi m a o cr i ar é duvidar
da sua vontade e inteligência, é duvidar, em suma, do próprio Deus.
É bem verdade que, ao considerar o acto criador cm Deus,'só
com alguma impropriedade de linguagem lhe poderemos atribuir
um fim, pois o acto de Deus, não sendo distinto d’Ele, que é infini
to e soberanamente completo em si mesmo, não se pode dizer que
tenha um fim propriamente dito. O fim propriamente dito é, com
efeito, distinto daquele que o busca, é alguma coisa que completa o
sujeito actuante, que sem ele seria incompleto. Esta consideração
torna ainda mais evidente o que procuramos demonstrar no
momento. Porque, se o acto íntimo de Deus não pode ter um fim, é
porque não pode ter outro objecto fora de Deus. Assim, quando
Deus decide estender a seres distintos d’Ele o acto pelo qual Ele
próprio se ama, é ainda a sua própria bondade infinita que Ele
amará nesses seres. Não poderá querê-los senão em razão de Si
mesmo. Deus não poderá, pois, deixar de ser o motivo e o fim da
existência desses seres, pois o motivo que leva o artista a produzir a
obra é o próprio fim da obra.
Não se pode, então, negar que a Criação tenha Deus por fim, a
menos que neguemos que a Criação seja obra de Deus, isto é, a
menos que afirmemos que a Criação não foi criada. Seja qual for a
forma pela qual consideremos essa verdade, ela apresenta-se, sem
pre, com a mesma evidência. Portanto, a realidade do plano divino
é indubitável. Porque dizer que toda a Criação tem Deus por fim
37
equivale a afirmar que todos os seres que a compõem estão orienta
dos para a glorificação de Deus, pelo próprio acto da sua criação.
Por conseguinte, tais seres são meios que a omnipotência divina, ao
criar, orientou para um fim único que é Deus. Deste modo, nada
falta ao universo para constituir uma ordem imensa, na qual uma
quantidade infinita de meios se alia maravilhosamente numa perfeita
unidade de fim.
A muito justo título, o universo recebeu na Antiguidade o
nome de cosmos, isto é, a ordem por excelência.
38
0 Srfedw de Jfaaj
39
rios que a criatura terá ocasião de fazer, seja por castigo infligido
pelo Criador.
Eis o que a consideração da natureza divina nos revela com evi
dência e que a história inteira confirma de modo fulgurante.
40
0d? zzzz Jfafona
41
naturais e as influências mútuas, infinitamente variadas, as quais,
agindo umas sobre as outras, têm como único objectivo contribuir
para a realização dessa lei suprema.
Essa lei, que a acção divina realiza desde sempre, podemos
agora formulá-la, convencendo-nos, ao mesmo tempo, de que ela é
o jorro exterior da lei gloriosa à qual até mesmo a vontade de Deus
está submetida; não é de facto para Deus uma feliz necessidade
amar e querer a sua própria perfeição? Ora, qual é a grande lei da
Criação senão reproduzir e aumentar nela a semelhança com a per
feição divina?
42
& Sfyâa? aí' JQjoj
43
Mas, se a semelhança divina é susceptível de aperfeiçoar-se, se
a vida de inteligência e de amor que completa a perfeição e que faz
a felicidade de Deus se reproduz nalgumas criaturas privilegiadas, o
mundo, então, deixa de ser um belo cadáver, anima-se, fala, conhe
ce o seu Criador, ama-O, louva-O, entra com ele num convívio con
tínuo. O rio de amor que, sem cessar, emana do seio de Deus sobre
a criação, pode refluir da Criação para Deus; a palavra divina tem
um eco e a criação, em vez de ser um instrumento passivo nas mãos
do seu Autor, coopera com Ele e glorifica-O, como Ele se glorifica
no seu íntimo.
Eis como o plano divino se revela à razão, através da conside
ração cuidadosa da natureza de Deus.
Já possuímos uma ideia precisa, embora incompleta, desse
plano. Sabemos que ele tende a reproduzir a semelhança da divina
beleza em cada um dos seres do universo, mas sobretudo nos seres
racionais, nos quais ela se reflecte sob todos os aspectos. Já podemos
perceber a unidade da criação. A multidão infinita de seres aparece-
nos como uma sociedade vasta, tendendo, pela sua acção comum, a
um fim único. Contudo, ainda muito mais perfeita e mais estreita
mente unida nos aparece a sociedade dos seres racionais, da qual os
seres destituídos de razão são simples servos. As predilecções do
Criador são para aqueles; é sobretudo neles que Deus Se contempla
como num espelho; é para aumentar a sua semelhança com a bon
dade divina que a sua Providência trabalha continuamente, convo
cando as criaturas racionais, para colaborarem nessa obra. Dá a
esses seres privilegiados o poder de se iluminarem uns aos outros, de
comunicarem entre si os bens de Deus, ajudando-se, mutuamente, a
tornarem-se melhores e mais ricos na verdade e no amor. Se eles uti
lizarem fielmente esse poder, se cooperarem energicamente com a
acção divina, saciarão todas as aspirações da sua natureza, reprodu
zindo em si a semelhança da divina perfeição.
Eis o que a razão pode compreender a respeito do fim que Deus
tem em vista com a criação e com os acontecimentos da história.
Iremos agora consultar a Revelação e completar com os seus ensi
namentos esse esboço inicial do plano divino.
44
Capítulo III
45
1. O fim sobrenatural do plano de Deus
46
0 &edw de Jfaae
47
Sfàwuere
48
OSfeàw d,’ Jfaaj /z/z
49
são incomparavelmente mais íntimas e profundas do que as que
poderíam existir se ficássemos apenas ao nível da natureza.
uSa_oid.em_uialm'aL que laços nos teriam mantido juntos?
Unicamente a semelhança de natureza, ou seja, um laço muito débil
e pouco capaz de resistir às numerosas causas de divisão e oposição.
O tempo, o espaço, as idades, as condições, as idéias, os costumes,
\ 1os interesses, a religião, os vícios, tudo nos isola, tudo nos coloca em
confronto. Entregue a si mesma, a humanidade é apenas uma abs-
X s r>! tracção e, se descermos ao plano do concreto, em vez de uma huma
nidade unida, encontramos homens indiferentes com os outros e até
inimigos entre si.
Muito diferente é a ordem sobrenatural. O Verbo de Deus une
todas as inteligências, na unidade da sua palavra, à qual todas ade
rem por H_ma^m,e^jQiajé-X) Espírito divino une todos os corações, na
unidade de um mesmo amor e na. tendência para um mesmo fim.
Então, todas as causas de divisão são destruídas e todos esses homens,
Xão^diferentes em idéias, idades.,.condições e costumes, começam a
C pensar, amar e .querer as mesmas coisas. Deixam de ser estranhos
uns para os outros, e aprendem a amar-se. O amor de cada um deles
inclui todos os irmãos, mesmo aqueles que nunca chegarão a conhe
cer nesta terra.
Eis, agora, uma realidade mais admirável ainda. Nessa socieda
de tão íntima, na qual a Santíssima Trindade é o laço de união, ela
compraz-se em reproduzir a imagem das relações inefáveis que a
constituem. Aos homens, a quem a natureza tinha dado o poder de
transmitir a vida no tempo, eis que a graça confere agora um poder
ainda maior, ou seja, o poder de comunicarem uns .aos outros a vida,
de Deus. Assim como Deus Pai produz, desde toda a eternidade, o
seu Verbo e o seu Espírito, ao se conhecer e ao se amar, assim tam
bém um homem cheio da graça sobrenatural, confessando a Deus e
expressando o seu amor por Ele, dará de alguma maneira, ao Verbo
e ao Espírito Santo, uma existência nova, na alma do seu irmão; ilu
minará e abrasará essa alma com a luz e com o fogo que inflama o
seio do próprio Deus. A cada dia e a cada instante se presenciará
esse fluxo e refluxo contínuo de claridade, de chamas e forças ceies-
50
0 de J/zífz/J fâúfto x/z
51
fundada sobre um vínculo mais substancial, um parentesco mais ver
dadeiro. Que fez então? Enviou o seu Verbo, a.Segunda Pessoa, que
na própria Trindade divina exerce uma espécie de mediação. Uniu-
-a na unidade de pessoa a uma natureza humana, descendente,
como nós, da raça de Adão.
Essa grande obra, que completa tão bem o plano divino, foi
decretada por Deus em consequência da previsão do pecado e como
uma espécie de réplica misericordiosa, feita por amor infinito, à pre
tensa vitória do Inferno. Ou já estaria ela no desígnio inicial da sabe
doria divina, vindo apenas modificar a sua execução quando o peca
do veio tentar opor-se a tal desígnio? Nem a revelação ensina isto
claramente, nem nisto estão em perfeito acordo os doutores católi
cos. Mas parece-nos que a segunda opinião se baseia em provas irre
futáveis. Que o Verbo Encarnado seja o fim da humanidade, como
o de toda a criação, nenhum cristão pode duvidar. Ora, é contra a
natureza das coisas e contra a sabedoria que o fim exista para os
meios. Na opinião contrária, Jesus Cristo seria tão devedor aos
homens pecadores como estes a Ele. Dever-Lhe-íamos a nossa sal
vação, Ele nos deveria a sua existência e, em consequência, a sua
glória e felicidade. Não seria verdadeiro afirmar - como disse São
Paulo (Cl 1,16) falando de Jesus Cristo, Homem-Deus e Cabeça do
corpo da Igreja - que todas as coisas foram criadas n’Ele e por Ele.
Seria preciso dizer, pelo contrário, que Ele em nada influiu no fim
da criação e que foi apenas para a restauração das coisas criadas que
a sua própria existência foi decretada.
Essas ilações são evidentemente inadmissíveis. Afirmemos, então,
sem hesitar, com grandes doutores e com a própria Escritura, que a
Sabedoria Encarnada foi a primeira obra do Altíssimo, não na execu
ção, mas na predestinação. Afirmemos, sem temor, que todas as outras
obras foram decretadas e produzidas em vista daquela. Digamos que o
Homem-Deus foi o arquétipo pelo qual o Arquitecto divino modelou
cada elemento da sua obra, o centro para o qual Ele fez convergir tudo,
a unidade para a qual, desde o princípio, encaminhou a imensa varieda
de das suas criaturas. Proclamemos, para honra da nossa humanidade, que
ela teve como único destino pertencer à própria família de Deus.
52
0 dk J/Qm/j
Com efeito, por causa dessa inefável aliança que fez do Filho de
Deus filho de Adão, todos os filhos de Adão se tornaram irmãos do
Filho de Deus e, em consequência, parentes de Deus Pai e do seu
Espírito divino. Entramos, já não só de forma moral, mas também fisi
camente, na família de Deus. A nossa adopção divina, que já era muito
real, torna-se ainda mais, e os nossos direitos à herança e à felicidade
de Deus ficam fundamentados em títulos muito mais autênticos.
A aquisição dessa herança divina torna-se para nós, ao mesmo
tempo, muito mais fácil. A luz do Verbo e a graça do Espírito divino
não nos serão dadas individualmente e segundo a medida dos nossos
méritos; o Coração do Verbo Encarnado tornar-se-á delas, para a
humanidade inteira, o depósito comum. Ele merecerá por nós os
tesouros sobrenaturais e eles ser-lhe-ão dados sem medida, para que
possa distribuí-los segundo as nossas necessidades. Pela sua boca, o
Verbo de Deus falará a nossa língua e o seu Coração amar-nos-á com
um amor ao mesmo tempo humano e divino. E, assim como Deus se
dará a nós por Ele, também por Ele nos poderemos elevar até Deus.
Tendo-se humanizado n’Ele a perfeição divina, bastar-nos-á, a partir
de agora, para imitar Deus, tornarmo-nos semelhantes ao Homem
modelo. Poderemos oferecer as suas expiações pelas nossas faltas,
fazer valer os seus méritos, apoiarmo-nos no seu crédito, oferecê-l’O
a Deus, seu Pai, como hóstia do nosso sacrifício. Poderemos ter como
nossos os seus sentimentos e a sua voz e chamar Pai a Deus, com o
timbre filial que tudo obtém do amor paterno.
A execução desse conselho de amor fará crescer imensamente
os vínculos entre os homens. A partir da Encarnação em Jesus
Cristo, a humanidade não será apenas uma sociedade e uma família,
mas um só corpo. Com efeito, todos os que, entre os homens, dese
jarem unir-se a Jesus Cristo receberão, por seu intermédio, a vida de
Deus, tal como os nossos membros recebem a vida por meio da
cabeça e do coração. Por uma circulação constante, do Coração de
Jesus Cristo ao coração de cada cristão da terra e de cada bem-aven
turado no Céu, essa vida será difundida. Ainda por intermédio desse
Coração, centro comum da vida sobrenatural de todos os outros
corações, todos os membros do corpo místico do Salvador, seja qual
53
for a distância entre eles, poderão agir uns sobre os outros, iluminar-
-se, entreajudar-se, dar-se mutuamente a vida e, pela ajuda mútua,
tornar mais fácil a aquisição da felicidade eterna de cada um. Por
meio desse Coração divino, poderão os santos do Céu vir, sem ces
sar, em socorro dos pecadores e os cristãos da terra poderão aliviar,
a todo o instante, os seus irmãos do Purgatório. Enfim, por meio
d'Ele, um dia, reunir-se-ão os cristãos da terra e os que sofrem no
Purgatório aos bem-aventurados no Céu, consumando-se, então, a
grande unidade que Deus teve em vista ao criar o mundo e para a
qual a sua Providência actua continuamente.
E assim, na Pessoa de Jesus Cristo, encontrar-se-ão efectiva-
mente reunidos, de forma indissolúvel, a ordem divina, a ordem
moral e a ordem física: Deus, os espíritos e os corpos. Nessa Pessoa,
a criação adorável, seja espiritual, seja material, será elevada a uma
dignidade verdadeiramente divina e, a partir dela, como de uma
fonte inesgotável, a vida divina emanará em abundância sobre essa
dupla criação. Enquanto os mais ricos dons de Deus forem difundi
dos por Jesus Cristo sobre as criaturas, também por Jesus Cristo vol
tarão a Deus os louvores das criaturas, os quais, passando pelo seu
Coração, adquirirão uma dignidade infinita, fazendo com que a gló
ria exterior dada a Deus pela criação tenha um valor igual à que Ele
dá a Si. Já não será então apenas pela via da semelhança, nem somente
pela simples união de actos que a criação corresponderá às inten
ções do Criador. Em Jesus Cristo, a semelhança atingirá o seu mais
alto grau, e a união de actos será infinitamente grande; entre a sua
humanidade e a sua divindade, Deus Pai contemplará, durante toda
a eternidade, um vínculo que fará brilhar todos os atributos com um
fulgor muito mais intenso do que o das suas outras obras: a unidade
substancial dos mais inconciliáveis extremos. As intenções de Deus
estarão então plenamente realizadas, a criação terá cumprido o seu
fim, a história terá atingido o seu objectivo, o plano divino terá sido
completamente executado. Estará consumado o Reino de Jesus Cristo.
Q Reino de Jesus Crislo, eis a expressão que melhor resume o
plano divino e que melhor exprime a restauração e a recapitulação
universal que São Paulo nos mostra como termo de todos os desígnios
54
de Deus (Ef 1,10). O Reino de Jesus Cristo é a sociedade de almas
unidas ao Verbo encarnado e associadas por meio d’Ele à Trindade
divina, recebendo d’Ele a luz, a força, o amor e a vida de Deus;
comunicando-se mutuamente, também por meio d’Ele, essa luz,
essa força, esse amor e essa vida, glorificando a Deus Pai e esperan
do a consumação da glória com a qual Deus Pai o coroou. Esse
Reino é o fim único e completo de todas as obras do poder de Deus
e de todos os acontecimentos dirigidos pela sua Providência. É Ele
que domina a história da humanidade e a divide em três grandes
períodos, compreendendo o primeiro a preparação desseJB^Íno, o
. segundo o seu estabele.cinienio^ej? terceiro a sua, consumação^-
Antes de acompanhar, nessas três épocas, a execução do plano
divino, que acabamos de contemplar no seu conjunto magnífico à luz da
Revelação, é necessário ainda estudar, na nossa natureza, as condições
essenciais da sua realização. É esse o objectivo do próximo capítulo.
55
Capítulo IV
57
Sfyzmtére
58
L.
0SrfedM de fetáJ /ia J/Sütórâz
59
sinais equívocos. A ordem da socied.ad.ejdiy.ina na terra não poderia,
-portanto,. depender desse tipo de dignidade. Era preciso que Deus
instituísse outra hierarquia, composta de dignidades e poderes tão
visíveis como a sociedade que eles devem governar.
Aqui, as pessoas de espírito acanhado poderão, uma vez mais,
ficar surpreendidas e algumas, mais orgulhosas, encontrarão nessa
sábia maneira de agir um objecto de murmuração e revolta. Os pró
prios fiéis, lendo a história da Igreja, terão, por vezes, dificuldade
em compreender que Deus tenha feito reflectir a sua luz em espe
lhos horrivelmente manchados e transmitir a sua graça por canais
tão sujos. Contudo, quem compreender melhor as condições essen
ciais da natureza humana, em vez de murmurar ou de se espantar,
admirará, pelo contrário, o poder e a bondade de Deus. Na sua infi
nita sabedoria, embora tenha feito depender a sua acção da coope
ração do homem, não quis que essa dependência pudesse compro
meter os interesses da sociedade que quis formar com ele.
60
então, que essa criatura seja intimada a escolher entre o bem infini
to, ainda que ausente para ela, e o bem finito que lhe oferece um
gozo próximo. É essa a opção oferecida a todas as criaturas racio
nais, à qual chamamos prova. Se a vontade livre menospreza o bem
presente e o gozo que lhe é oferecido, para se unir à bondade infi
nita de Deus, que se oculta ainda aos seus desejos, ela dá a esse bem
soberano uma glória que toda a criação material não poderia ofere
cer, dá-lhe o mais significativo de todos os testemunhos, fica seme
lhante a Ele no mais incomunicável dos seus atributos, naquele pelo
qual Ele é o próprio princípio da sua felicidade. E essa glória para o
Criador, que lhe advém da prova da criatura, será tanto maior quan
to mais rude e longa tiver sido a prova e quanto maior tiver sido o
mal que foi necessário sofrer, ou quanto mais atraente o bem que foi
necessário recusar.
Essa prova pode, contudo, revestir-se de formas diferentes.
Para os anjos, que são puros espíritos, consistirá em sacrificar a
Deus bens de natureza espiritual: a ciência, a grandeza, a glória, o
poder. O homem, enquanto espírito, poderá ser submetido a uma
prova análoga, mas enquanto unido a um corpo, estará sujeito a
outro gênero de inclinações, que se tornarão para ele o princípio de
provas continuamente renovadas. Muito mais intensamente ainda
do que os bens espirituais, os bens sensíveis atraí-lo-ão sem cessar,
por causa dos gozos imediatos que lhe oferecerão e dos apetites que
farão nascer no seu organismo. Solicitado, ao mesmo tempo, por
essas duas ordens de inclinações, e também dependendo dos senti
dos, até para as operações mais espirituais da sua inteligência, o
homem não tem, nem a lucidez de concepção, nem a energia da von
tade que permitiu aos anjos fazer, num instante, uma escolha intei
ra e irrevogável. A sua prova também será muito mais longa que a
deles. Para eles, o plano divino consistiu em propor-lhes, uma única
vez, a opção entre uma gloriosa humilhação e uma revolta insensata.
Logo que a escolha foi feita, os anjos fiéis receberam a sua recom
pensa e os anjos rebeldes sofreram o seu castigo. O homem, pelo
contrário, será intimado, durante um tempo mais ou menos consi
derável, a confirmar ou retratar a sua primeira escolha. O mérito da
61
sua prova virá sobretudo da sua duração, resultará igualmente da
multiplicidade dos bens que o homem deverá sacrificar ao amor do
seu Deus e da variedade dos males que deverá suportar para lhe
provar o seu devotamento. Deus semeará de provas a vida do
homem para aumentar a sua recompensa, segundo os méritos adqui
ridos. Todas as criaturas parecerão conspirar para realizar, neste
sentido, os desígnios do Criador. Os anjos bons unir-se-ão aos
homens bons e os anjos maus juntar-se-ão aos homens maus, para
tornar a prova contínua e completa. Os bens espirituais e temporais
virão sucessivamente oferecer-se ao homem para se tornar matéria
de um sacrifício glorioso. Este completará assim a obra do anjo e
dará o testemunho que os puros espíritos prestaram ao seu Criador,
diante de toda a criação. Assim, fará Ele com que as próprias cria
turas inanimadas cantem os mais harmoniosos cânticos de louvor de
que sejam capazes. Porque toda a glória que elas dão a Deus pelo
fulgor da sua beleza e pela ordem das suas acções não pode compa
rar-se à glória que resulta para Ele da sua destruição, em virtude de
uma vontade livre que, para se unir somente a Deus, calca aos pés
todos os prazeres que elas lhe apresentam.
Pode, então, o plano divino em relação à humanidade compli
car-se por uma variedade infinita de influências, situações e vicissi-
tudes. Da mesma forma que a natureza do homem é incomparavel
mente mais complexa que a dos outros seres racionais, assim tam
bém a sua prova será incomparavelmente mais variada. Essa varie
dade e essa complicação tornam a sua história muito mais longa e
obscura. A história da cidade de Deus no Céu só tem um capítulo e
esse capítulo é curto. A história da cidade de Deus na terra tem tan
tos capítulos quantos os dias que decorreram desde a criação do
homem, e estamos muito longe de chegar ao fim do livro.
62
0
i
penosa, mas também mais meritória para o homem e mais gloriosa
para Deus, uma vez que, para atingir o seu fim, ele deverá ultrapas
sar incontáveis obstáculos que o pecado amontoou no seu caminho.
63
Compreendemos, então, por que motivo permitiu Deus essa
desordem. Compreendemos por que motivo, depois de ter resolvido
repará-la, permitiu entretanto que se desenvolvessem todas as suas
desastrosas consequências. Compreendemos por que motivo a nossa
regeneração não destruiu em nós nenhuma das más inclinações que
são a triste consequência da nossa queda. É que essas inclinações
devem ser a matéria da nossa prova, a fonte do nosso mérito, o ins
trumento da maior glória que devemos dar a Deus. Se Deus não des-
trói em nós os efeitos do pecado, é porque deseja dar-nos a glória de
os destruir. Falámos há pouco de uma reacção misericordiosa, feita
pelo amor de Deus contra o seu infernal inimigo; essa reacção não é
a Encarnação do Verbo, que em qualquer hipótese deveria coroar a
obra da Criação, mas é a elevação da natureza humana vencida por
Satanás a uma dignidade ainda mais alta do que aquela à qual pode
ría chegar antes da derrota. É a vitória gloriosa que obterá o vencido,
debilitado pelos seus ferimentos, contra o seu vencedor orgulhoso.
Não devemos, pois, espantar-nos com nenhuma fraqueza, com
nenhuma miséria, com nenhuma queda, com nenhuma desordem;
tudo isso são sombras que o pintor celeste permite ao seu inimigo
colocar no seu quadro, porque elas servirão para melhor realçar as
belíssimas cores com que Ele quer completá-lo. No Céu, a graça divi
na foi colocada em vasos de ouro e diamantes, cujo fulgor natural
tinha alguma proporção com a sua dignidade sobrenatural.
Louvemos essa disposição da Sabedoria eterna e bendigamos o
Altíssimo nos seus anjos. Mas vendo esse mesmo tesouro posto na
terra, colocado em frágeis vasos de barro, e esses vasos a quebrarem-
se em mil pedaços, mas vendo igualmente a força desse licor celeste
ir ao ponto de recuperar a sua integridade primitiva, não temos aí
motivos para admirar essa modo de agir de Deus e para louvá-l’O no
pecador regenerado mais ainda do que no anjo preservado?
É fácil perceber a luz fulgurante que emana destas considera
ções e que ilumina os pontos obscuros do plano divino e as páginas
mais negras da história da humanidade. Se fixássemos o olhar ape
nas no fim magnífico que a Providência busca, isto é, a divinização
do homem, podíamos persuadir-nos de que toda a existência da
64
L.
0'
65
presente, revoltando-se contra Deus, que lhes recusa essa satisfação.
Outros, aceitam o momento em que Deus quer satisfazê-los.
Está aqui o ponto de separação entre as duas sociedades inimi
gas que Santo Agostinho chamou “a Cidade de Deus” e a “Cidade
dos filhos dos homens”. A primeira é composta por aqueles que
querem ser felizes com Deus e a segunda pelos que pretendem ser
felizes sem Deus e apesar de Deus; o móvel da primeira é “o amor
de Deus até ao desprezo de si próprio” e o móvel da segunda é
“o amor de si próprio até ao desprezo de Deus”. Mas não é num só
acto que a maioria dos homens toma definitivamente o seu lugar,
numa ou noutra dessas sociedades.
O homem começa, normalmente, a agir bem ou mal, de acordo
com o modo pelo qual é educado. Obrigado a receber de fora a
maior parte dos seus conhecimentos, recebe daí também as suas
inclinações. Será, portanto, bom ou mau consoante as influências
que receba; e, seguindo-as, buscará a sua felicidade no serviço de
Deus ou na violação da sua lei.
Enquanto sofrer, docilmente, as influências estranhas, não pode
rá fixar-se, firmemente, nem no bem nem no mal. Essa fixação só lhe
virá da luta. Se a educação o tornou bom, a luta nascerá dos atracti-
vos do mal, do despertar das suas paixões, dos gozos presentes que a
solicitação delas lhe fará sentir, da satisfação imediata que a sede de
felicidade lhe exigirá. Parecer-lhe-á fascinante ser senhor do seu pró
prio destino e não depender de nenhuma autoridade superior.
Se, pelo contrário, o homem foi levado ao mal antes de conhe
cer a desordem que ele causa, as consequências amargas de tal
desordem não tardarão a fazer-se sentir. A virtude, por sua vez,
apresentará os seus encantos e a felicidade verdadeira oporá as suas
sólidas esperanças às ilusões de uma felicidade mentirosa. Nas duas
situações, haverá luta e essa luta poderá prolongar-se durante muito
tempo por uma sucessão de derrotas e de vitórias, conseguidas ora
pelo bem, ora pelo mal.
De quem será o triunfo definitivo? É somente a liberdade que
o vai dizer. Mas eis o que acontece muitas vezes: o homem que se
deixou arrastar para as desordens mais vergonhosas por um desejo
66
L
0 dk jfaüJ fâúto /za
67
Capítulo V
69
individualmente, para examinar depois as modificações que ela
sofre, em decorrência da reunião de um certo número de indivíduos
num corpo social.
A sabedoria divina, que não manifesta menos suavidade na dis
posição dos meios do que força na realização dos fins, adapta sem
pre a sua acção à natureza concreta dos sujeitos sobre os quais actua.
Para entender a acção social da Providência, é, pois, necessário
conhecer a natureza da sociedade.
1. A lei da mutualidade
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0 Sffeúw de feftáJ fârèffo /ia efâddrâz
71
Mas essas derrogações da regra geral são sempre excepcionais, não
podendo transformar-se em regra sem destruir a ordem e sem con-
vulsionar a sociedade. Podemos até dizer que, no mundo moral, as
intervenções directas de Deus são mais frequentes do que no mundo
físico. No primeiro desses dois mundos, com efeito, a Providência
deve conciliar duas ordens: a ordem individual e a ordem social. Se
a ordem social pede a transmissão da acção divina a cada homem
por meio de outros homens, a ordem individual exige que nenhum
agente livre, pela falta de outros, seja privado dos meios indispensá
veis para atingir o seu fim. Deus poderá mesmo fazer um milagre
antes de permitir que algum homem, no gozo da sua liberdade e
fazendo bom uso dela, possa, apesar disso, ser desviado do seu fim.
Mas não está obrigado a impedir por um milagre - nem a própria lei
constitutiva da sociedade o permitiría ordinariamente - que, por
culpa da sociedade, sejam tirados a muitos dos seus membros o uso
da liberdade e os socorros abundantes que Ele lhes destinou e sem
os quais, de facto, nunca atingirão o seu fim.
Esta primeira consideração tem um imenso alcance e dá-nos a
chave de questões enigmáticas do plano providencial.
Por que existe essa imensa diferença entre o mundo moral e o
mundo físico? Por que a perfeição é tão raramente conseguida no
primeiro e tão frequente no segundo? Por que são tão comuns entre
as almas os seres estultos e até os monstruosos, a ponto de parecerem
regra, enquanto que entre as plantas e os animais são apenas excep-
ção? É que, no primeiro desses dois mundos, a acção divina pede da
sociedade uma cooperação que lhe é dada muito raramente, enquan
to que no segundo nunca lhe é recusada a cooperação que ela exige.
Não poderia ser de outro modo? Sem dúvida que sim, se Deus
tivesse querido uma ordem distinta, mas uma vez escolhida esta, a
sabedoria divina não pode tornar a sua acção sobre os indivíduos
independente da acção social, porque destruiría a lei da mutualida-
de. Ora, esta lei é tão essencial para a sociedade como a organização
o é para a vida física.
72
& Sffeúw de fluuj
2. A lei da desigualdade
73
a sua liberdade, seguem em geral o movimento das inteligências
mais poderosas; quando se deixam levar para o bem, têm menos
mérito do que aqueles que lhe imprimiram o impulso para o bem,
mas também serão menos culpados e menos castigados, quando se
deixarem levar para o mal.
A lei da rnutualidade social completa-se, pois, e explica-se
melhor pela lei da desigualdade. Uma e outra concorrem maravilho
samente para esclarecer e explicar a história.
Se compreendermos bem estas duas leis, não nos surpreendere
mos ao ver tão amiúde as sociedades separarem-se ou reaproxima-
rem-se de Deus, segundo as intenções dos que as governam. Não nos
parecerão tão estranhos os atrasos sofridos na execução do plano
divino, se considerarmos a infidelidade daqueles que Deus chama
para executá-lo consigo. Saberemos onde colocar a responsabilidade
do estado deplorável em que ainda se encontra a humanidade, dois
mil anos depois da vinda do seu Salvador. Veremos o crime e a cor
rupção dominarem o poder do ceptro, o poder do gládio, o poder do
espírito, p poder da vontade, o poder corporal e todas as fontes de
influência social. Veremos, em todas as épocas, numerosos membros
activos da sociedade unirem-se para arrastá-la para fora das vias que
a Providência lhe traçou desde as origens, e que o Verbo Divino veio
iluminar com a sua palavra e exemplos. Como podemos, pois, estra
nhar que - em lugar da ordem que por definição lhe cabe - a socie
dade se apresente hoje na mais lamentável desordem?
74
L
& Sffedw de
O homem é livre na sua acção social, assim como na sua acção indi
vidual, e, se não pode impedir que Deus triunfe das suas resistências
pela força e glória da sua Justiça, pode, no entanto, impedir que
Deus execute o plano inicialmente traçado pela sua bondade.
Se não podemos conhecer o destino das sociedades humanas,
podemos todavia entrever o seu provável futuro e, de certo modo,
conhecer assim o plano divino. I
O homem, tanto em sociedade como individualmente, só procu
ra uma coisa: a felicidade, mas - quando se sente apoiado pelos seus
semelhantes, mais do que quando está entregue a si mesmo - procu
ra encontrá-la no presente e possuí-la com independência de Deus.
Logo que começou a domar a natureza, e superou o período em
que a luta contra os elementos exteriores o absorvia, deixou-se
embriagar pelo sentimento da sua força. A medida que as paixões
encontraram alimento, tornou-se-lhe mais difícil submeter os seus
apetites turbulentos à Lei de Deus.
Mas o que mais custa ao homem é reconhecer acima de si a
autoridade de alguém que, pela superioridade do talento ou pela
coragem, exerce um domínio sobre os seus semelhantes.
Não é difícil, pois, compreender a luta entre as influências
sociais e a acção divina. A primeira inclinação que experimentam
aqueles que conquistaram tais influências é revoltarem-se contra
Deus, para, de seguida, colocarem fora das vias da Providência as
sociedades que dominam.
Em certas épocas, o vento da revolta sopra com mais violência
no seio das sociedades. São as épocas de grande prosperidade mate
rial, das grandes descobertas científicas e dos grandes progressos
industriais. Nessas épocas, os homens que constituem o elemento
passivo da sociedade, deixando-se facilmente deslumbrar e vendo
acima de si os gênios a quem a natureza obediente parece entregar
todos os segredos, esquecem facilmente o Deus que reina nos Céus,
persuadindo-se de que a única felicidade é a terrena.
Mas essa ilusão durará sempre? Na sua infinita bondade, Deus t
75
quências das suas doenças. Com efeito, não há uma só ilusão das
sociedades, um só atentado dos que as governam, que não redunde
em castigo terrível para todos eles. O orgulho dos governantes con
duz facilmente à tirania, a sua ambição faz nascer guerras desastro
sas, o seu luxo impele-os a vergonhosas desordens e a loucas prodi
galidades. Essas mesmas causas produzem resultados não menos
funestos, quando agem sobre os membros principais das sociedades
e quando, a partir daí, estendem a sua influência aos membros infe
riores. Os vínculos sociais debilitam-se e diminui a subordinação -
único elo que pode unir os inferiores aos superiores - ao devota-
mento, único elemento capaz de refrear a rivalidade entre iguais,
sucede o espírito de independência e de egoísmo. Os deveres dei
xam de ser cumpridos, os direitos deixam de ser respeitados, a paz
social é continuamente perturbada pelas revoluções, apagam-se as
virtudes morais e o próprio progresso material é interrompido pela
instabilidade das instituições, acabando a sociedade por compreender
que, ao procurar o progresso e a felicidade longe de Deus, andou
atrás de quimeras.
Nessas circunstâncias, a reconciliação entre as sociedades e
Deus torna-se mais fácil e apresenta maiores garantias de duração.
Procurem-se então os homens capazes de exercer influência séria
sobre os seus semelhantes e dispostos a colocar essa influência ao
serviço da divina bondade; procurem-se escritores, oradores e poe
tas que saibam tocar as almas em todas as suas faculdades e que à
eloquência da palavra acrescentem a eloquência mais persuasiva do
exemplo; procurem-se príncipes dispostos a tornarem-se verdadei
ros pais e salvadores dos seus povos. Com tais instrumentos, não
precisará Deus de muito tempo para tirar a sociedade do mais pro
fundo abismo e para fazer nascer a ordem a partir do caos, como nos
primeiros dias.
Devemos distinguir, na vida das sociedades, à semelhança do que
se verifica na vida dos indivíduos, três períodos distintos, três épocas:
a idade da infância, em que elas ignoram ainda as suas forças, quando
têm uma consciência rudimentar das suas crenças e erros, das suas vir
tudes e do seu poder; a idade da juventude, quando têm uma violenta
16
OSffeüw de fetáj /ia Jfójfiúúz
77
Capítulo VI
79
1. Como pode a Criação manifestar a beleza divina?
80
0Sffedw de
2. As leis da variedade
81
nessa produção interior, o resultado da perfeição. Mas, a partir do
momento em que Deus agiu fora de Si, a tendência à perfeição
impôs a lei da multiplicidade.
A multiplicidade por si só, embora manifeste o poder e a
fecundidade inesgotável do Criador, não conseguiría fazer fulgurar,
suficientemente, a variedade dos atributos divinos. Se todos os seres de
que o mundo se compõe fossem semelhantes, a sua própria multiplici-
^dade seria factor de monotonia. No entanto, se à multiplicidade dos
-indivíduos^.^Jynjar.ajdíferença das naturezas, a beleza do conjunto
tomar-se-á admirável. E temos, então, aQei da variedade. Veja-se a
Criação e contem-se, se for possível, as espécies diferentes de minerais,
de vegetais e de animais. Em tal observação, apenas ficaria incluída a
Terra, que é um dos menores planetas, e entretanto já o nosso pensa
mento estaria sobrecarregado pela variedade que se oferece ao nosso
olhar. O que aconteceria se fosse possível percorrer todas as estrelas
semeadas pelo espaço como grãos de areia e se, para além do mundo
dos corpos, fosse possível contemplar o mundo dos espíritos, com o
sem número de espécies de seres inteligentes que o compõem?
ÇJy ,Ldjtosxontrastes harmônicos. A multiplicidade das cria
turas é tanto mais maravilhosa quanto a diversidade é levada até a
uma espécie de oposição. “Considera assim - diz o filho de Sirá -
elodas as obras do_ Altíssimo, sempre duas a duas, e uma oposta à
.outra” (Ecli 33,15)^O-unLvexso c um grande contraste, composto de
contras.tesjnen.Qies. O grande contraste é a oposição entre o mundo
> dos corpos e o dos e.spíritQS, tão cheios de analogias como de dife
renças. De um lado simplicidade, do outro variedade; de um lado,
poder de agir internamente pela inteligência e pela vontade; do outro,
acção exterior pela atracção ou pela repulsa. E em cada ordem de
coisas, em cada indivíduo, quantas oposições e quantos contrastes!
Nos corpos celestes, duas forças, uma centrípeta e outra centrífuga;
nos minerais, a coesão das moléculas, contrabalançada pela sua
mútua repulsão; na.eleclriçjdade, dois pólos contrários; nos seres
vivos, a riu pia organização dos sexos; nas plantas, o.dupjojnpyimen-
to das suas xaízes e dos seusjramos; nos animais, os contrastes de
estrutura e de movimento, que se conjugam em oposições bizarras de
82
0' dz> Jfauj nzz jfâjâfrúz
83
‘í Vi
84
0 de Jfaaj /uz
85
i
ção dogmática da Imaculada Conceição, é uma prova fulgurante
desta afirmação.
Poderiamos demonstrar que, em relação à santidade, a Igreja
pode ter um crescimento ainda mais glorioso do que o que resulta
da manifestação mais explícita dos seus dogmas. Mas não será
necessário para entendermos as analogias impressionantes que
neste domínio a aproximam das outras obras de Deus. Irão causar-
-nos maior espanto a lentidão do seu crescimento e os limites estrei
tos em que foi encerrada durante tanto tempo. Deus, que viu fra
cassar o seu primeiro desígnio de bondade, por causa da revolta do
homem, quis acomodar o seu segundo plano à nossa fraqueza e dar
ao gênero humano, na própria lentidão dos seus progressos, uma
dura mas necessária lição de humildade.
Aqui levanta-se uma questão: na terra, a lei do declínio acom
panha sempre a lei do progresso. Tudo o que atinge a sua perfeição
por graus, dela se afasta por graus semelhantes. Acontecerá o
mesmo com a Igreja? Para responder a essa pergunta, é necessário
distinguir na Igreja vários elementos, como já fizemos atrás: o ele
mento divino, que é a sua alma, e o elemento criado, que forma o
seu corpo. Como o elemento divino em nada está sujeito à lei do
progresso, não pode, do mesmo modo, ser sujeito à lei do declínio.
A Igreja ensinará sempre a mesma verdade e conferirá sempre a
mesma graça.
Porém, o elemento criado - o corpo da Igreja - será susceptível de
declínio, já que também é susceptível de progresso? Isso dependerá da
vontade livre das almas que constituem esse corpo divino. Se elas qui
serem unir-se inviolavelmente ao Espírito que as anima, e aceitar com
docilidade a sua influência, participarão da sua inviolabilidade e da sua
imutabilidade; e, depois de terem atingido o crescimento pleno, passa
rão à morada da imortalidade onde o declínio não existirá.
Mas as almas que, por voluntária infidelidade, colocarem obs
táculos ao domínio do Espírito Santo, poderão, depois de ter pro
gredido algum tempo, entrar em declínio e chegar assim até à morte.
3
Todos os dias se verifica em muitas almas esta triste sorte, que foi
também na história o destino de muitas sociedades. Aceitai am com
86
0 &eâw de fejuí fê/veto /ia
4. As leis da unidade
87
esteja vazio da existência e da acção da Igreja. A história de todas as
seitas conduz-nos a um momento em que elas começaram a existir,
havendo entre esse começo e o início do mundo um abismo. A Igreja
Católica, pelo contrário, começa com o próprio acto de Deus e
nunca sofreu interrupção. Criada com os anjos, antes da criação do
mundo material, desceu à Terra, logo que a Terra foi preparada
para a receber. Encheu os séculos com os seus combates e o último
dia do mundo será o do seu triunfo. E quem nos revelará o entre-
cruzamento de influências que nesse imenso corpo fazem circular a
vida divina de um membro para outro? Em cada graça que, nos nos
sos dias, um cristão recebe, quem poderá detectar a parte das épo
cas passadas que cabe a outros cristãos? Que bem podemos fazer,
hoje, que não possa e não deva ter influência até ao fim dos séculos?
2 - A segunda das leis relativas à unidade é a lei das transições.
E o complemento da lei da continuidade. Entre as diferentes partes
que se tocam, reina uma perfeita harmonia que exclui os choques
violentos. Nos climas, assim como nas estações, o calor sucede ao
frio e o frio ao calor, por acréscimos ou diminuições suavemente
dispostos. Entre a noite e o dia interpõe-se a aurora, tal como o cre
púsculo se interpõe entre o dia e a noite. O progresso e a decadên
cia, que vemos em tudo o que está na Terra, realizam-se de forma
igualmente gradual. Nem sequer a doença, embora desordenada na
sua essência, escapa a esta lei. A hierarquia dos seres apresenta-nos
uma gradualidade igualmente impressionante. Desde o macaco, cuja
estrutura orgânica se assemelha à do homem, até ao zoófito, que
tem de vegetal quase tanto como de animal, os gêneros e as espécies
sucedem-se numa gradação perfeita. Natura nihil facií per saltum
(a natureza não procede por saltos), disse um grande naturalista.
Quanto mais se fazem descobertas no campo da história natural,
mais fácil fica preencher os vazios que deixam entre eles os gêneros
anteriormente conhecidos.
Aplicam-se essas leis também à Igreja? Quem poderia duvidar?
Desde Adão até Jesus Cristo, a progressão na marcha da verdade foi
lenta mas ininterrupta. Enquanto as promessas feitas aos patriarcas
se tornavam cada vez mais claras, as virtudes que eles piaticavam
88
& &edw de JeMJ mz effzj/dzdz
—
1) A lei das transições e a lei dos contrastes, foram desenvolvidas de maneira notá
vel pelo P. Blanc na sua introdução à História Eclesiástica. Utilizamos aqui
várias das suas considerações. Contudo, julgamos não dever dar a tais leis a
importância que ele lhes atribui. Cremos que são apenas aplicações das duas leis
gerais da unidade e da variedade, as quais se unem à lei primeira da imitação da
beleza divina pela Criação.
89
vida comunicada por um ser vivo é proporcional ao vigor de quem a
dá; a alma forte difundirá a força em torno dela como a lareira
difunde o seu calor...
A aplicação dessa lei à Igreja exige, evidentemente, certos cui
dados, pois sendo Deus a única causa dos efeitos sobrenaturais pro
duzidos pela pregação e pelos sacramentos, quer que os seus minis
tros se consciencializem de que são simples instrumentos das mara
vilhas que realizam. Um sacerdote pecador poderá perdoar pecado
res, um infiel poderá validamente baptizar outro infiel. Mas o referi
do cuidado não impede que a lei das proporções tenha na Igreja uma
ampla aplicação. Os sacramentos têm o poder de conferir a graça,
mas conferem-na segundo o grau das disposições de quem os recebe.
4 - A lei da simetria é tão visível como a da proporção.
Vemo-la em todas as ordens dos seres a acompanhar a lei dos con
trastes. No reino mineral, vemos, por exemplo, como os ângulos
opostos uns aos outros são perfeitamente iguais. Os ramos e folhas
da planta, as pétalas da flor, os matizes da corola, a estrutura do animal,
as próprias faculdades da alma - na qual a inteligência e a vontade,
apesar da sua diferença, se correspondem tão admiravelmente - as
propriedades dos membros e dos rostos, numa palavra, toda a
ordem do Universo mostra-nos o Criador por assim dizer a brincar
no meio das coisas, fazendo-as proclamar a sua unidade; ludens in
orbe terrarum. Era impossível que uma característica tão importante
da obra divina não se encontrasse na Igreja. Basta um pouco de
atenção para a descobrirmos tanto no conjunto como nos episódios
da sua história. Poderemos, quiçá, deduzir mesmo dessa característica
tão visível no passado da Igreja um argumento poderoso para pres-
sagiar o seu futuro. Jesus Cristo surge no meio dessa história como
o centro com o qual se relaciona tudo o que O precedeu e tudo o que
O seguiu. Assim como a Sinagoga recebeu a missão de representar,
pelas vicissitudes que atravessou, as diversas etapas da vida terrena
do Salvador, assim também a Igreja tem a missão de reproduzir em
grande escala essa mesma vida, nas suas principais circunstâncias.
A Sinagoga, Jesus Cristo, a Igreja, três partes de uma mesma história;
em cada uma dessas partes, divisões análogas que corresponderão
90
&S/Zeâw fejzzj /za ^jtórzà
91
Jfártri ^iartuère
92
0 de fejaj /uz Jfójfo/úz
93
Capítulo VII
O plano satânico
O estudo que fizemos do plano divino facilitará o conhecimento
do plano satânico, pois este é simplesmente a contraposição daquele.
O chefe dos espíritos rebeldes esforça-se por vingar na Terra a
derrota que sofreu no Céu. Quis colocar-se no lugar de Deus e ser
adorado pelas legiões angélicas. Colocado acima delas pela perfeição
superior da sua natureza e pela excelência dos seus dons naturais,
acreditou poder utilizar, contra Deus, essa dignidade que d’Ele tinha
recebido. A sua tentativa insensata fracassou. A maior parte dos
anjos preferiu submeter-se ao seu Criador, em vez de se revoltar.
Em lugar do trono que tinha ambicionado no Céu, Lúcifer
obteve apenas a lúgubre realeza dos infernos. O poder que tinha
sobre o resto da criação foi-lhe retirado, e só a Terra não ficou
inteiramente fora do seu domínio. Foi-lhe permitido vir provar os
seus habitantes. É por aí que o arcanjo maldito espera poder vin
gar-se do seu vencedor. Se não pôde reinar sobre os anjos, pelo
menos tentará reinar sobre os homens, e não quer que os filhos de
Adão subam aos Céus para preencher os lugares que a sua rebe
lião deixou vazios. O objectivo de Satanás consiste, pois, em des
truir o plano divino e perturbar toda a economia da Providência
relativa à humanidade.
E o que indica o nome Satanás, que significa adversário. Depois
que o nome de Lúcifer, que tinha no Céu, se tornou para ele a mais
humilhante das contra-verdades, não mereceu outro nome senão o
que deriva da sua revolta. Só tem luz, energia e poder para se opor
ao Bem, e lutar contra o divino Amor. Ele é somente Satanás.
95
Contudo, só por etapas consegue aproximar-se da destruição do
plano divino. Procura degradar a natureza humana, tanto quanto
Deus se esforça por exaltá-la. Uma vez obtido esse resultado, nada
mais poderia impedir Satanás de realizar completamente as suas
metas e de receber, no lugar de Deus, a adoração dos homens.
Entravar o plano divino, destruir esse plano e executar uma con-
trafacção do mesmo, são as três fases em que se resume o plano satâ
nico, que devemos conhecer, se quisermos compreender a história.
96
0 dó' flw.f
97
s
A Deus nada custa realizar maravilhas em favor do homem, e
mediante ele. Contudo, quer Deus que tais maravilhas possam ser
atribuídas apenas a Ele e que o instrumento se apague para deixar
toda a glória da obra ao celeste operário. A partir do momento em
que o instrumento começa a confiar nas próprias forças e a desejar
uma acção independente, o poder divino abandona-o à sua fraque
za. Satanás conhece bem essa realidade e, por isso, utiliza diaria
mente o veneno da presunção para paralisar os servidores de Deus,
infelizmente quase sempre com êxito.
Tanto mais se esforça ele por lhes insuflar esse apego às próprias
luzes e à própria acção, quanto mais facilidade encontra em fazer
germinar dessa raiz amarga um fruto ainda mais amargo, ou seja, as
invejas, as murmurações e as ilusões, com o objectivo de precipitar o
homem na escravidão dos prazeres brutais. A natureza humana
encontra-se num tal declive que um ligeiro estímulo dos apetites é
quanto basta para, rapidamente, a fazer mergulhar nessa lama.
Temos aqui o primeiro e o mais fácil de todos os triunfos que
Satanás obtém contra os que conseguiu afastar de Deus. Leva-os a
mancharem-se de crimes que fazem corar a natureza e sujar a imagem
de Deus com as mais vergonhosas abominações. O que a natureza das
coisas já nos deixa adivinhar, confirma-o a história pelo seu testemu
nho. Veremos a sociedade dos filhos dos homens, antes de cair na ido
latria, entregar-se aos excessos da devassidão. A igreja de Satanás,
antes do Dilúvio, parecia ter como símbolo apenas a mais monstruosa
lubricidade. Mais tarde, acrescentou erros especulativos à mencionada
desordem prática, mas nunca abandonou as suas tradições infames.
Para manter os homens no seio da sua igreja, o espírito do mal tem um
recurso seguro. Utiliza o próprio instrumento que os devia elevar até
Deus, isto é, a necessidade do infinito. O animal, que não experimen
ta essa necessidade, pára, logo que os seus apetites estão saciados.
Nunca ultrapassa os limites colocados pela natureza. Mas o homem,
impossibilitado de satisfazer fora da volúpia sensível a imensa necessi
dade de felicidade que o atormenta, nunca conseguirá contentar-se
com os prazeres terrenos. Satanás serve-se, então, do próprio desejo
que devia unir o homem a Deus para acorrentá-lo ao pecado.
98
Mas o triunfo desse espírito mau ainda está longe de ser com
pleto. O corpo está manchado e as faculdades sensíveis pervertidas.
No entanto, são, sobretudo, as faculdades racionais que se asseme
lham a Deus. Portanto, é especialmente à perversão delas que o
demônio vai dedicar-se.
O desenvolvimento excessivo da actividade dos sentidos facili
ta-lhe a tarefa, pois o amor aos objectos inferiores, faz diminuir as
energias para alcançar os bens espirituais, os únicos que têm pro
porção com a sua dignidade.
A desordem dos sentidos começa por obscurecer a inteligên
cia e impede-a de compreender a linguagem eloquente pela qual
a criação inteira proclama a glória de Deus. Ao invés de subir até
ao operário, chega-se apenas até à obra, ou só às aparências que
tal obra oferece aos sentidos. Assim, quem explorará, em proveito
próprio, a tendência, naturalmente religiosa, da alma humana não
será o Deus omnipotente que fez todas as coisas; serão poderes
múltiplos, e, por isso, mesmo imperfeitos, cujo culto enche a alma
de temor e impede os sentimentos virtuosos. Esses poderes são os
próprios demônios, que se fazem adorar sob o disfarce de forças
da natureza, para impor aos seus adoradores absurdas crenças e
práticas criminosas.
Daí nasce o fetichismo - a religião dos povos primitivos - que
se torna sedutora para a imaginação, sem ser capaz de iluminar a
inteligência e aperfeiçoar a vontade. Tais erros decorrem da desor
dem dos sentidos.
Nas sociedades cristãs, habituadas à vida intelectual, o espírito
de mentira faz com que o erro nasça do orgulho e do espírito de
independência. A razão presunçosa pretende submeter às suas sen
tenças a revelação divina, parecendo-lhe contrário à sua dignidade
acreditar sem compreender. O jugo do mistério incomoda-a e pro
cura escapar-lhe, tanto no que se refere à Revelação como às ver
dades naturais. Daí os mil sistemas que substituem afirmações divi
nas por hipóteses contraditórias, experimentadas num dia e repu
diadas no outro. Para evitarem o mistério, desembocam no absurdo
e, sob o pretexto de libertarem a razão, escravizam-na ao erro.
99
Existe, porém, um meio que o demônio emprega com o mesmo
sucesso para desviar as inteligências humanas. É a arte da adivinhação.
A sêde de conhecer é tão grande no homem, que ele tem muita difi
culdade em resistir ao oferecimento que lhe é feito - em nome do espí
rito da mentira - no sentido de lhe ser revelado o futuro ou de lhe
serem mostradas as coisas ocultas. Satanás só pode prever o futuro de
forma conjectural, mas conhece uma multidão de coisas que nos são
ocultas. Desde o começo do mundo, faz brilhar aos olhos dos impru
dentes mortais, como uma miragem enganadora, o conhecimento des
ses segredos. Muitos correm como cegos atrás dessas aparências vãs e,
ao invés das verdades que esperavam conhecer, saciam-se com ilusões.
100
todas as faculdades do homem? Não o cremos. Até aqui, com efeito,
só vimos a acção da sua malícia sobre os indivíduos. Ora, à semelhan
ça de Deus, ele não se contenta com o triunfo sobre algumas almas
isoladas, mas, sobretudo, com o triunfo sobre as sociedades, pois é aí
que vê a chave para a destruição do plano divino. Depois da destrui
ção do Império Romano, Jesus Cristo adquiriu na Europa e, depois,
noutras partes do mundo, uma realeza social. Os povos, na sua exis
tência pública,- e os indivíduos, na sua conduta privada, reconheceram
a sua soberania, e nem as violações frequentes da sua lei impediram
que a autoridade dessa lei fosse universalmente reconhecida.
Satanás viu com furor o estabelecimento do direito cristão que tan
tas garantias preciosas ofereceu à acção benéfica da Igreja. Envidou,
pois, todos os esforços para o substituir pelo direito novo. Este propõe a
constituição de uma sociedade sem Deus, fundada, unicamente, sobre a
vontade livre dos homens e unida apenas pelos interesses temporais.
Para pôr esse direito no lugar do direito de Jesus Cristo, Satanás utilizou
todos os artifícios. Lisonjeou o orgulho dos governantes e, ao mesmo
tempo, o dos povos pela sedução da sua independência em relação aos
governantes. Seduziu os jurisconsultos, pela majestade do direito roma
no; os cientistas, pela independência da ciência; os escritores, pela liber
dade de expressão; e todos os homens, indistintamente, pelo deleite de
só dependerem de si próprios e de não reconhecerem outra autoridade
senão aquela que tiverem criado e que poderão destruir quando enten
derem. No momento em que - com a ajuda de todos essas ilusões reu
nidas - for possível colocar Jesus Cristo fora da lei e privar a Igreja de
todas as garantias exteriores, espera Satanás que as sociedades não con
sigam resistir à sua influência. Terá então chegado o momento de dar à
sociedade divina o último assalto e de realizar o seu plano.
101
Por muito degradadas que estejam as almas ou as sociedades,
elas não satisfarão o orgulho de Satanás enquanto a sua autoridade
não for reconhecida em lugar da de Jesus Cristo, e enquanto nas
almas a sua imagem não substituir a de Deus. O sonho do seu ódio
é arrastar os filhos de Deus como escravos, para poder na pessoa
deles insultar Aquele que o venceu. Contudo, precisa de mais.
Precisa, como Jesus Cristo, de apóstolos, de soldados, de confesso
res, de padres e até de mártires. Ele disse: “Serei semelhante ao
Altíssimo'’. Quer a qualquer preço saciar na Terra essa ambição,
que não pôde satisfazer no Céu. Tudo o que Jesus Cristo fez pela
verdade e pela caridade, pretende ele fazer pela mentira e pelo ódio.
Antes da vinda do Salvador, tinha sido possível executar esse
desígnio apenas de forma muito imperfeita, já que o plano divino
não era ainda bastante conhecido pelo demônio. Já tinha ele, é
claro, à imitação do Deus verdadeiro, templos de sacrifícios, orácu
los, mistérios, sacerdotes e adoradores. Mas, assim como a Igreja
verdadeira estava ainda apenas em esboço, também a igreja diabó
lica não tinha recebido a sua última organização. Por outro lado,
nessa época os homens ainda não estavam suficientemente esclare
cidos para chegar ao grau de perversidade necessário a Satanás para
a execução completa dos seus pavorosos objectivos. Os adeptos do
fetichismo e os idólatras só o reconheciam como deus porque não
conheciam o Deus verdadeiro e, por isso, o tirano infernal necessi
tava de aderentes que se unissem a ele com inteiro conhecimento de
causa e que, conhecendo perfeitamente a Jeová, preferissem aderir
ao mal, devotando-se a ele de corpo e alma, para combater Aquele
que reina nos Céus. Até Jesus Cristo, ele reinou quase só pelo
temor, mas agora pretende ser servido com devoção e com ofereci
mento de sacrifícios pela sua causa.
Mas como poderá suscitar devoção aquele que é o ódio perso
nificado? Não é fácil compreender isto. Só o excesso de orgulho
pode explicar tal mistério. Quando o homem chega ao ponto de con
siderar a obediência voluntariamente prestada a Deus como a pior
das infelicidades, fica capaz de se ligar a um amor aparente por
aquele que o leva à revolta e que procura ajudá-lo com todo o seu
102
k.
& a/íatoa aí Jfaai <êrtifto /za affíftorta
i
Este exército também aprendeu hoje uma disciplina que antes
lhe era desconhecida. Obedece, de facto, com espantosa pontuali
dade a palavras de ordem, ora ficando imóvel, ora retrocedendo, ora
avançando com ímpeto furioso. Todos os meios de que dispõe dis
param ao mesmo tempo e atacam sem descanso os alvos que lhes
sào designados. De onde vêm os recursos imensos de que dispõe
esse exército? Quem poderá revelá-lo? Esses recursos, porém, não
nos devem surpreender, se nos lembrarmos que, em todos os luga
res onde se desfralda o estandarte da revolta contra os direitos
humanos e divinos, houve no passado, e auspiciamos que haja tam
bém agora, homens a acudir em massa, determinados a dar anima-
damente as suas vidas pelo triunfo de Satanás. Se este tem, portan
to, os seus mártires, por que não haveria de ter também homens
devotados para lhe fazer - como os religiosos a Jesus Cristo - o
sacrifício dos bens materiais?
Quando o espírito da mentira obtém tal dedicação, não tem
motivos para poupar os direitos da verdade. Ele pode deixar agir as
suas inclinações e permitir que os princípios falsos desenvolvam
todas as suas consequências. Podemos então esperar que a marcha
do erro se acelere, sem o uso de paliativos. Ao mesmo tempo que
Jesus Cristo dá a conhecer melhor ao mundo os segredos do seu
Coração, Satanás, por seu lado, proclama, ousadamente, a sua últi
ma palavra. O panteísmo já não lhe basta: precisa do ateísmo, mas
tem que ser o mais abjecto ateísmo, o que mais se aproxima do nii-
lismo. E do nada que tudo procede; o nada é inseparável do ser; o
nada é o próprio ser. O mal não é diferente do bem, nem o erro da
verdade, nem o feio do belo. Destruído o princípio de contradição,
desaparece a moral, desaparece a liberdade, a alma, o Céu, o
Inferno, e o próprio Deus. Só é real o que se pode tocar com a mão,
a matéria. O resto é ilusão.
Eis o que Satanás ousa proclamar pela boca dos seus adeptos
nas épocas nefastas em que ele se julga senhor da situação. E o que
sucede actualmente. Mas ainda não é tudo.
Um sintoma ainda mais nítido é a facilidade com que, nesta
sociedade saturada de incredulidade e materialismo, se difunde a
104
0 Stfe/7w fefaj 7/77 JfâjtóTTTZ
105
Podemos, ainda, desmascarar os seus artifícios e acelerar a comple
ta manifestação do seu ódio, à qual se seguirá a sua derrota comple
ta. Cumpre-nos, enfim, levar adiante, no interior da sociedade dos
eleitos, a realização do plano divino com um zelo ainda maior do
que aquele que manifestam os sequazes de Satanás, na execução dos
desígnios do seu amo.
106
Capítulo VIII
107
governo dos povos e controlar pela experiência a aplicação de tais leis.
Essas leis, é verdade, deduzem-se muito mais das verdades revela
das do que dos dados racionais, pelo que a ciência da História é mais
teológica do que filosófica. E igualmente verdadeiro que a aplicação
das leis impostas aos seres livres não é susceptível do mesmo rigor
existente na aplicação das leis às quais obedecem os agentes mate
riais. A ciência da História difere, portanto, também neste ponto,
das ciências exactas, mas tem, entre os seus princípios e conclusões,
a conexão suficiente para merecer o nome de ciência.
Tais são as deduções que, a partir dos princípios anteriormente
estabelecidos, nos parecem legítimas. Contudo, antes de estudar
mais a fundo tais deduções, parece-nos indispensável examinar as
principais teorias que apareceram, até hoje, sob o nome de Filosofia
da História.
Neste ponto, estamos perfeitamente de acordo com Roux-
Lavergne. Os erros e enormes carências destas teorias impedem que
se lhes.possa atribuir idoneamente tal qualificação.
Algumas colocam Deus completamente fora da história, e pro
curam na própria humanidade o princípio e o termo dos seus desti
nos. São as teorias ateias, cujo absurdo radical aparece já no próprio
enunciado.
Outras teorias, não menos absurdas, vêem na humanidade a
manifestação ou o desenvolvimento necessário do infinito. São as teo
rias panteístas, às quais é preciso acrescentar todas as que impõem à
humanidade a necessidade fatal de um progresso contínuo.
Finalmente, há ainda outras teorias que admitem algumas leis
verdadeiras, impostas pela Providência divina à humanidade, mas
que não consideram o princípio capital - non tenent caput - como
disse São Paulo, e, ao desconsiderar o princípio que dá a todos os
outros princípios inferiores a sua verdade e medida, exageram a
importância de alguns, ao mesmo tempo que omitem outros igual
mente importantes.
O exame ao qual iremos sucessivamente submeter essas dife
rentes teorias, a partir das mais absurdas, para chegar às menos falsas,
permitir-nos-á estabelecer, finalmente, como conclusão desta primeira
108
& &eàw de jfauJ
1. Considerações prévias
109
único Deus), da nossa vida comum (enquanto incorporada ao
Homem-Deus) e do nosso fim comum (a fruição da mesma felicida
de), é uma concepção tão grande e bela que o próprio ateísmo não
a pôde dispensar quando procurou construir uma base científica.
Encontramos, pois, essa verdade nos dois sistemas que resumem
todas as correntes ateias modernas, mas encontramo-lo corrompido
e desfigurado.
Os dois sistemas que pretendemos analisar são o ateísmo meta
físico de Hegel 1 e o ateísmo positivo de Augusto Comte 2. Opostos
na aparência, constituem, na verdade, um só sistema, como não é
difícil demonstrar.
110
0 Sfyúw dk /za Jfâdtóna
111
aptos para servir de elo aos desenvolvimentos.da ideia. Muitos con
tinuam imóveis no^estado-.de.,tes.e_e_ de isolamento. Entre os povos
mais felizes, os que passam da tese à antítese e da antítese à síntese,
apenas um representa cada um desses momentos, do mesmo modo
que, nesse povo privilegiado, um sóJndivíduo resume em si os des-
_tirios.de uma raça?
3) N.T: A dialéctica hegcliana obteve uma das suas mais importantes e nefastas
projecções no “materialismo histórico” de Karl Marx (depois desenvolvido e
aplicado à Rússia , por Lenine), o qual, por meio da tese, antítese e síntese, ou
seja, sobre o fundamento da luta de classes, explica toda a história da huma
nidade como caminho irreversível para uma repartição, cada vez mais iguali
tária da riqueza e para um prometido “paraíso comunista” de bem-estar eco
nômico. A aplicação desta doutrina ao rumo político dos numerosos Estados
socialistas, mais ou menos totalitários, produziu uma das maiores catástrofes
da História, com mais de 84 milhões de mortos, (Cfr. Le livre noir du commu-
nisme, Ed. Robert Laffont, 846 pág.. Paris, 1997) e repercussões gravíssimas,
e muitas vezes irreparáveis, nos mais variados campos da existência humana.
Por causa dela, o século XX poderá ficar, para sempre, conhecido como o
século da guerra, da morte e do pecado.
112
0 Sffedw de jfaaJ
113
Quando os homens se recusam a aceitar a verdade plena, cedo ou
tarde, acabam por ser atraídos, irresistivelmente, por este sistema.
Afirmámos acima que entre este sistema e o de Hegel não havia diferen
ças substanciais. Se dermos crédito a Littré, a filosofia positivista recusa
tão energicamente as especulações hegelianas como todos os outros sis
temas metafísicos. Mas isso é a aparência, pois a afinidade entre as duas
doutrinas é muito estreita. São diferentes pólos do mesmo ateísmo.
Çom efeito, ambas negam a existência da causa primeira e, em
consequência, do. pxincipio.de.causalidade. De facto, embora os positi
vistas evitem tratar claramente este tema, deixam entretanto escapar
declarações que manifestam o fundo do seu pensamento, como Littré,
quando dizia que o dogma novo oferecia uma concepção geral do
mundo. E§saj:oncepção, eliminando definitivamente todas as vontades
Sobrenaturais, conhecidas sob o nome de deuses, anjos, demônios ou
.Providência, mostrava,.segundo o autor,_que tudo obedece a leis natu
rais, qt^pQden^nws^chamar as propriedades imanentes das coisas.
Sem dúvida jp. sistema positivista é tao ateu como o idealismo de Hegel.
Nestes dois sistemas, o desenvolvimento do universo em geral e
da humanidade em particular faz-se segundo um método semelhan
te. Qs positivistas, assim como os discípulos de Hegel, admitem um
progresso fatal e contínuo em guejj_homem e a,sociedade sêsüjêí-
tam a leis tão necessárias como as que regem os corpos. JD homem é
produto de um estado dgpura,animalidade, proveniente da espécie
vegetal, ajquaLpor .sua vez,, proyém.da ordem mineral. O universo
leria nascido do nada pela energia nativa desse nada fecundo.
114
0 ak Jfaaj ff/táfo /ia jffijfo/ãz
115
entào se julgava ateu, recebe, sem mudar de crença, um atestado de
homem religioso. Com efeito, seria preciso ter muito ódio a Deus
para lhe recusar essa realidade ideal e tão pouco incômoda que
Vacherot lhe confere.
Contudo, temperando com uma habilidade incontestável as
fantasmagorias de Hegel, de maneira a torná-las menos repugnantes
para o espírito francês, Vacherot, no fundo, não muda nada ao sis
tema hegeliano. Para ele, assim como para o seu mestre, o universo
em geral e a humanidade em particular obedecem, irresistivelmen
te, à lei do progresso, passando sucessivamente pelos três períodos
hegelianos, que Vacherot qualifica como do envolvimento, do
desenvolvimento e da organização. Não julgou oportuno, porém, a
aplicação dessa teoria aos acontecimentos da história, da qual se
contentou em enunciar a fórmula.
116
0 jfa/zJ zzzz Jfójfo/üz
117
ela está em contradição manifesta com os factos da história. Nem
falemos da tese, antítese e síntese de Hegel. Ocupemo-nos, somen
te, do sistema de Littré e perguntemos-lhe: onde encontrou ele esta
sucessão- necessária que estabeleceu entre a idade teológica e a
idade metafísica, em que povos viu ele o politeísmo sair do fetichis-
mq e conduzir ao monoteísmo? Pelo contrário, o que a história nos
mostra são povos que acreditaram, inicialmente, num único Deus e
que^a seguir, s_e_tornaram politeístas ou mesmo fetichistas, quando
a decadência dos costumes começou a obscurecer neles as luzes da
razão, bem como o<ensinamentos da Revelação primitiva. O que a
história nos mostra, ainda, é um povo que conservou desde as suas
origens a fé tradicional num só Deus e a expansão dessa fé no
mundo, não como desenvolvimento natural do politeísmo, mas
como resultado de uma epopeia de três séculos, escrita pelo sangue
de incontáveis mártires, contra esse mesmo politeísmo. Eis o que
testemunha a verdadeira História. Ou seja, ela apresenta o mais for
mal e solene desmentido à teoria histórica da escola positivista.
118
&de jfaacf 'ó/vz^ /ia
119
Céu_é_ap,enasaiiiLjdeal e de que o único Deus real é o próprio indi
víduo, fica^est,eJiv-Fe-para-£azer--tude-o-que-deseja. Infelizmente, são
muito numerosos os homens para os quais essa independência é o
argumento mais forte.
Por outro lado, o argumento que serve de pretexto lógico a esse
erro e que os seus defensores insistem em repetir não passa de um
fraco sofisma. Do facto de as ciências físicas terem progredido e de
as leis dos corpos serem obtidas por observação, deduz-se que não
se pode conhecer da alma senão o que as leis físicas dizem dela.
Ora, o método indutivo é incapaz de propiciar ao homem tudo
o que lhe é necessário saber sobre ele mesmo e sobre a sociedade.
Que serei eu depois da morte? Que devo esperar, se fizer o bem
e que devo temer se fizer o mal? Eis algumas questões que a Biologia
e a Sociologia, apoiadas unicamente na experiência, não podem
resolver, nem suprimir. Este^sistema c.onfunde, pois, duas ordens de
coisas, completamente diferentes. Quando se trata da ordem física,
posso^sjperarjazer .descobertas interessantes, aplicando aos factos
dessa ordem novos instrumentos e meios de observação inacessíveis
ao .comum das pessoas. Ma^quando se trata do mundo moral, não
há.instrumento-novor.a.inyentar nem.nieio de observação a aplicar.
Há, portanto, poucas descobertas a fazer. Mas também essa ordem se
presta, muito mais do que o mundo dos corpos, à análise metafísica.
Examinámos as bases e o conteúdo da filosofia da história que a
escola positivista contrapõe à divina Filosofia do Evangelho e vimos os
absurdos em que incorre. O juízo é severo e a palavra absurdo é um
termo que a filosofia deve pronunciar raramente, mas, quando se trata
de uma doutrina baseada na identidade do ser e do nada, seria deso
nesto procurar uma qualificação mais suave. Mantemos, portanto, esse
juízo e estamos persuadidos de que será confirmado por todos aqueles
em que o senso da verdade não esteja completamente obliterado.
Quanto àqueles que estabeleceram um divórcio eterno com a luz, seria
inútil tentar esclarecê-los. Para eles, jLÍilQsofia poskivista^ofej.eçe a
satisfação, completa dos seus,desejos. A filosofia do nada não podejjei-
xar-de.terjdisçípulos. SAo.^QS.que^exnbpra exj^tjndo, preferem o nada, e_.
em lugar de.se.unjr^aQ-Cnad.or preferem identificar-se com a matéria.
120
b) Teorias panteístas
Sob este título queremos reunir todas as teorias que impõem à x
.humanidade e ao universo a lei de um progresso necessário e indefini-
jdo. Incluiremos também, aqui, as teorias que possuam características
semelhantes, muito embora os seus autores possam recusar o panteís-
mo. Tal recusa é incoerente. O progresso universal só seria necessário
.S£_a_existência do universo fosse necessária. Mas esta só o seria na
medida em que se relacione com Deus, ou pelo menos com alguma
_£.ojsa que vem de Deus. Supor o universo necessário a Deus é uma
£Q.ntradição nos termos. A Deus só é necessário o seu próprio ser. Das
duas, uma: ou supomos queTTá maísjpérféf^^ em criar do
que em não criar,;6u^supomos que essas duas hipóteses lhe são perfei-
tamente indiferentes. Na segunda suposição, a Criação não pode ser
necessária, porque é absurdo considerar necessário aquilo que é indi
ferente. A liberdade da criação activa e a indiferença da criação passi
va são, em relação à Deus, uma só e mesma coisa. Mas, se supusermos
que há para Deus mais perfeição em criar, como todas as perfeições
pertencem à essência dé Deus, será necessário dizer que a criação se
relaciona coma.sua essência. Mas tudo o que se relaciona com a essên
cia de Deus é o próprio Deus. Assim, nessa hipótese, a Criação será ao
mesmo tempo Deus e obra de Deus. Ele ter-se-ia criado a Si mesmo,
e o que Lhe é essencial não teria existido desde a eternidade. Absurdos
obviamente notórios. Os propagandistas do progresso necessário e
indefinido da humanidade e do universo são assim obrigados (a menos
que neguem a doutrina que defendem) a afirmar a identidade entre o
universo e Deus e, assim, podemos justificadamente colocar todas as
suas doutrinas sob a denominação comum de teorias panteístas.
121
do séculoÇxvjlj^só encontramos algumas afirmações isoladas e
não sistematizadas em autores considerados como precursores
desta doutrina.
No seu livro De dignitate et augmentis scientiarum (livro VIII,
af. 97^jjjacoiy refere “a propriedade inseparável da duração em vir
tude da qual a verdade cresce continuamente”. Mas, logo a seguir,
confessa que U14imgEesso_p.Q.de_serjjQteirompido, e muitas vezes foi,
por diversas causas que chegaram a fazer da sociedade humana um
grande deserto. Exprime, é certo, a esperança de que as ciências
haveríam de escapar a tais devastações, mas não funda tal esperan
ça nas forças da natureza, mas sim na imprensa, que contribui para
salvar os monumentos científicos das causas locais de destruição.
Embora acreditasse no_progresso das ciênciasC.Pascar ; negou
formalmente que a Humanidade pudesse esperar, errTrelação à
moral e à religião, uma perfeição superior à que lhe oferece o cris
tianismo. E, pois, sem qualquer fundamento que os qjrogressistãs)
pretendem fazer do autor de Pensées o patrono das suas doutrinas.
Charles Perrault3, na sua célebre obra Parallèles des Anciens et
desJM&demes sustentou, é verdade, que o gênero humanp deveria ser
jcomparado.a um homem que adquire experiêncieuao longo dos anos.
Mas nada há aí que se pareça com o progresso <fatal dos panteístas>
--------- k
1) Francis Bacon (1561-1626). Político, ensaísta e filósofo inglês. Foi chanceler da
Inglaterra, sob Jaime II. Tornou-se famoso no campo das ciências, com o seu
“Advancment of Learning”, de 1605, em que preconiza a reorganização das
ciências naturais- Opos-seÀ filosofia aristotélica, e defendeu o sistema üidutLv.o
^de.çonhecipient.o.^O seu empirismo exerceu uma profunda influência no pensa
mento inglês durante mais de dois séculos.
2) Blaise Pascal (1623-1662). Matemático, físico e escritor francês, nascido em
Clermont-Ferrand._Aderiu ao jansenismo em 1646. Para além da sua obra cien
tífica, tonou-se especialmente conhecidopelo livro póstumo “Pensées”, onde se
recolhem diversos escritos inéditos de Pascal.’A sua obra filosófica teve grande
influência em pensadores como Kierkgaard, Dostoievski, Nietzsche e na cor
rente existencialista. “ '
3) "Charles Perrault (1*628-1703). Literato e poeta francês. Membro da Academia
Francesa. Serviu como controlador geral dos Edifícios, sob o ministério de
Colbert, no reinado de Luís XIV. A sua obra literária, muito marcada pela futi
lidade do século, caiu facilmente no esquecimento, não porém os seus contos de
fadas para crianças, que se tornaram universalmente famosos.
122
/ia Jfójfá/Tzz
123
Este sistema difere pouco do de Maquiavel.6 Segundo o famoso
escritor florentino, as sociedades fazem, inintermplamente, as mes
mas^ revolugões. Ocupando-se apenasjjojado político da história,
Maquiavel dá^Ü££Lominações puramente políticas, às..diversas fases
so.çiais. A monarquia, degenerando effr^espotismo, é substituída
pela aristocraciâA Por sua vez, esta última çlc.gcnéfa em tirania oligár-
quica e é suB^ituída pelã^âemocràciâ^Quando a democracia deixa de
respeitar as leis da justiça, t.orna-se oclocracja e cai por culpa dos seus
próprios excessos. Renasce então a monarquia e o ciclo recomeça.
As revoluções ocorridas no fim do século XVIII propiciaram a
eclosão da doutrina do progresso que surge, quase simultaneamen
te, na França, Suíça e Alemanha, adquirindo nesta elaboração
simultânea a forma científica que antes lhe faltava.
Em França, Condorcet7 vale-se de certas indicações dadas por
Turgot, nos seus discursos da Sorbonne, para esboçar, sob a ameaça
dos punhais da Convenção, um quadro histórico dos progressos do
espírito humano. Segundo^ele, a história éuma progressão dividida
em dez períodos. Os (nove prímeirõs“sa^: 1o) o período dos povos
pescadores e caçadores: 2o) o perfõdoTfos povos pastores, um pouco
menos absorvidos pelas necessidades físicas; 3°) o período da agri-
c^ítnra, que permite’ desenvolver algumas artes nos .tempos livres;
4o) a civilização grega, que atinge o seu apogeu com Epicuro; 5o) a
124
& &ezyw de jfaad /ia
125
Jffê/írt'^amtere
126
Um pouco antes de Herder, o seu amigo Lessing " tinha formu
lado um sistema semelhante, embora menos completo. Segundo ele,
o gênero humano é um ser colectivo cuja educação se faz gradual
mente. Os diferentes graus dessa educação progressiva devem-se às
revelações. Frutos da espontaneidade da razão humana, as revela
ções aperfeiçoaram-se gradativamente de Moisés a Jesus Cristo.
Restar-nos-ia agora receber o novo evangelho, que elevará a huma
nidade muito acima do ponto em que o cristianismo a colocou.
No entanto, na mesma ocasião em que Lessing e Herder escre
viam, uma nova filosofia começava a difundir-se na Alemanha. Kant12
acabava de colocar o problema da realidade objectiva das idéias e
abalava, com a sua crítica, tudo o que antes se julgava certo. As hipó
teses mais ou menos aventurosas que ostentavam o augusto nome de
Filosofia, desde que se abandonou a grande Filosofia católica, não
puderam resistir a esse choque. Iria igualmente cair a teoria do pro
gresso? Pelo contrário, iria receber das mãos de Fichte 13 e de
Schelling 14 a sua sistematização definitiva. O próprio Kant deu algu
mas indicações que os seus discípulos aproveitaram. Segundo ele, a
127
Jfâ/írí<fíaj/uère
128
0 d? JeMJ /az Jfâtáí/úz
129
sucesso; eis um sistema que exerceu perniciosa influência mas que
veio a desvanecer-se, tal como o de Schelling, que o inspirou.
Benjamin Constant 16 não é muito inovador na sua teoria do
progresso. Para este publicista, a escala dos aperfeiçoamentos suces
sivos da humanidade compõe-se de sete graus: o estado selvagem, a
teocracia, o governo dos guerreiros e a escravidão, o feudalismo e a
servidão da gleba, o domínio da nobreza, o domínio da burguesia e
o domínio da plebe.
Saint-Simon17 conseguiu fazer da doutrina do progresso neces
sário e indefinido, não só o programa de uma escola, mas o símbolo
de uma religião. E verdade que este pensador soube evitar o grande
obstáculo contra o qual se chocam geralmente as religiões novas.
Não deu uma formulação completa à sua. Contentou-se, como
Lessing, em anunciar o novo evangelho e a organização definitiva da
sociedade. Segundo ele, essa organização deve ser o resultado da
verdadeira ciência social, que se tornará uma fisiologia verdadeira
quando, deixando de proceder apenas com a ajuda da análise, veri
ficará, pela observação e pela indução, as suas deduções analíticas.
A finalidade prática dessa ciência é a felicidade de todos pelo tra
balho de todos. No estágio definitivo da humanidade, só haverá traba
lhadores, divididos em três classes: sábios, industriais e artistas. Numa
perfeita igualdade de sexos, não haverá entre os homens outras distin
ções que não sejam as decorrentes das diferentes aptidões e serviços.
130
0 de fefaJ zzz J&tórâz
131
.tâewí&am&v
132
0 d? jfauJ
133
a condição da mulher foi dignificada? Foi espontaneamente que os
direitos do escravo passaram a ser reconhecidos ao lado dos do seu
senhor, e que os reis aprenderam que eram apenas os servidores dos
seus povos? Será possível esquecer os milagres de Jesus Cristo e dos
apóstolos? Será possível esquecer o sangue que dezoito milhões de
mártires tiveram que derramar para fazer aceitar, pelo mundo
pagão, todos estes progressos espontâneos?
Há um desmentido que estas teorias aplicam a si mesmas.
Porque, depois de terem erigido em princípio a necessidade do pro
gresso, todas admitem épocas de retrocesso. Todas estão, de. acordo
em amaldiçoar a Idade Média e em glorjficar a Renascença. Das
duas, uma: ou a humanidade da Idade Média não era humanidade,
ou essa humanidade em retrocesso, durante cinco séculos, não era
essencialmente progressiva. Q que é essenciaLdeye,ser, constante e
um-vorsal. Para fugir a esta contradição, alguns imaginam figuras
mais ou menos poéticas, para falar de umÇprogresso em espiral; ou
para comparar a caminhada da humanidade à de um barco. São figu
ras, não são razões, e apesar dessas comparações, os factos conti
nuam a opor-se manifestamente a tais princípios.
Mas estas teorias, além de absurdas nos seus princípios e con
traditórias nas suas conclusões especulativas, negam a evidência dos
factos históricos e acarretam consequências morais funestas.
Não há moral &ejn, estesJtês.elementos:liberdade como con-
djção.çãJ^ejjtpmoJundamento e a<sanção da lei como complemento.
Se não sou livre, não poderei ser obrigado a realizar alguns actos e
proibido de realizar outros; não poderei ser louvado ou censurado,
ser recompensado ou punido; para mim deixará de existir o bem e o
mal, porque o bem moral é a conformidade à lei, assim como o mal
é a sua violação. Enfim, se a lei moral não tem sanção, para mim é
como se não existisse, porque, impulsionado a buscar a felicidade
pela propensão irresistível da minha natureza, fico também indife
rente àquilo que não altera a minha felicidade.
Ora, a teoria do progresso panteísta destrói radicalmente estes
três elementos de qualquer moral.
Destrói a liberdade, pois afirma que a humanidade e, por con-
134
k
seguinte, os indivíduos que a compoenKobede.ce.,na suaJLÇÇão, a um
impulso irresistível e necessariamente progressivo.
Destrói a lei moral,zppissó pode haver lei obrigatória ng medi-
da em que emane de um poder superior. Na teoria que agora consi
deramos, não há poder superior ao homem, já que o homem é Deus.
O homem não quer, portanto, ser submetido a qualquer lei. No
máximo, pode ver em certas acções maior conveniência à sua natu
reza. Mas, se as suas paixões lhe sugerirem ignorar tais conveniên
cias, não ficará facilmente persuadido de que as paixões, constituin
do também um elemento da sua natureza divina, merecem ser tão
acatadas como a razão?
Enfim, qual a sanção que a teona^doprogresso panteísta.pode
oferecer à violação da lei moral? Para aqueles que admitem tal teo
ria, é preciso escolher entre duas hipóteses: ou se admite que os indi
víduos (manifestações passageiras do ser universal) perdem com a
morte a sua individualidade; ou se supõe que passam de um estágio
menos perfeito para um estágio mais perfeito.
Em nenhuma hipótese, porém, se poderia admitir para as
almas, que são parcelas da substância divina, um lugar de tormen
tos onde elas expiam as faltas cometidas durante a vida. A ideia
de uma sanção penal, depois da morte, é incompatível com o pan-
teísmo. Mas a sua falta precipita a sociedade na completa degra
dação moral.
Chegámos assim ao termo no qual desembocam necessaria
mente todas as tentativas de fazer progredir o homem e a socieda
de sem Deus e apesar de Deus. Elas conduzem à degradação do
homem e à desorganização social. A primeira coisa a fazer a favor
do progresso verdadeiro é combater, na geração presente, essas ilu
sões que a desencaminham. Quando abandonar essa quimera fu
nesta, poderá entrar na via do progresso verdadeiro que o cristia
nismo lhe abre.
135
c) Sistema de Jean Reynaud
1. Exposição desta doutrina
136
0 aí?fatáj fâúfo x/z
das almas pela qual cada uma delas é levada no começo de cada
nova existência e por virtude da atracção espiritual, até a um
meio análogo ao do seu estado. Assim, todos nascemos mancha
dos pelo pecado original, pecado que não é o de Adão, mas que
é uma falta cometida por nós numa existência anterior e pela
qual recebemos a punição de nascer da raça decaída de Adão. A
força maior ou menor das inclinações más que temos ao nascer é
apenas o resultado da gravidade, maior ou menor, das faltas ante
riores ao nascimento.
A hipótese da transmigração, segundo Jean Reynaud, explica
igualmente a reparação do mal e a sua origem. As almas que se
abandonaram aos seus instintos inferiores, durante uma das suas
existências, são levadas a um mundo mais doloroso do que aquele
que acabam de deixar. A sua condição torna-se mais infeliz à medi
da que as suas faltas se multiplicam. Se elas persistem nas suas
desordens durante a eternidade, poderão tornar eterno o seu casti
go, o que não é plausível. Pelo contrário, tudo nos leva a esperar
que, esclarecidas enfim pelas consequências funestas da sua perver
sidade, serão tocadas pelo arrependimento, e subirão - de purgató
rio em purgatório e de terra em terra - a encosta do progresso, até
finalmente poderem ser admitidas nos mundos superiores.
Ali, as almas não serão certamente imutáveis, pois devem pro
gredir durante a eternidade. Contudo, tal será a repulsa sentida pelo
mal experimentado, que já não estarão expostas ao perigo de cair.
Cada vez mais perfeitas, possuindo a lembrança de todas as existên
cias passadas, dotadas de um poder progressivamente maior para
mover a matéria e para fazer bem às outras almas, aproximar-se-ão
cada vez mais da visão de Deus, mas essa visão é apenas um ideal
que se vislumbra mas nunca se atinge.
Somente o Homem-Deus goza da visão de Deus. Ele é o ideal
divino da humanidade. Do mesmo modo que no espaço infinito do
universo há diferenças infinitas na perfeição dos mundos, assim tam
bém há graus infinitos na perfeição dos espíritos.
Reynaud só reconhece a dualidade druídica da Terra e do Céu.
O Inferno não existe.
137
^a/ruère
2. Análise crítica
138
d? fâwto /uz JfóitáúYzz
139
decorrem do fim. Retirado o fim, a vontade fica sem objectivo e, em
consequência, deixa de ter necessidade de agir de um modo em vez
de outro. Não há hábitos morais, não há progresso rumo a um objec
tivo, só há um poder físico. Os direitos, os deveres, as virtudes, os
méritos, tudo isso desaparece e dá lugar ao desenvolvimento brutal
da força física. É a imoralidade erigida em sistema. É, em conse
quência, a moralidade ultrajada muito mais gravemente do que o
poderia ser pela propaganda do vício.
Esta negação do fim último constitui o fundo do sistema de Jean
Reynaud. Como nós, ele afirma que o objectivo do homem é a visão
da essência divina, isto é, o conhecimento da verdade infinita e a
posse do bem infinito, mas afirma ao mesmo tempo que esse fim não
pode ser atingido. Ora, um fim que não pode ser atingido, é um fim
inexistente. O Céu, diz-nos Reynaud, não é uma morada, é um cami
nho, ou seja, durante toda a eternidade, as almas racionais experi
mentarão desejos cada vez mais intensos que nunca poderão satisfa
zer. É o que Reynaud chama manter as almas em actividade e pre
servar nelas a imagem de Deus. Como se a perfeição de Deus não
fosse sobretudo a posse da sua verdade e da sua bondade, e como se
Ele pudesse dar-nos o poder e o desejo de conhecê-l’O e amá-l’O,
para outro fim que não fosse o de saciar completamente tal aspiração.
Não podemos seguir Jean Reynaud em todas as hipóteses gra
tuitas que apresenta como dogmas da ciência moderna. A sua teoria
do infinito criado é uma hipótese não só gratuita, mas absurda.
Porque quem diz infinito, afirma uma grandeza à qual nada pode ser
acrescentado. Ora, é absurdo conceber uma quantidade criada e
múltipla à qual nada se pode adicionar, pois sempre será possível
acrescentar uma das unidades de que já é composta. As ciências
matemáticas raciocinam sobre o infinito, mas raciocinam perfeita-
mente, porque o número de que se ocupam é o número abstracto, a
quantidade possível. Ora, a própria razão que demonstra o absurdo
de uma grandeza criada infinita, demonstra também a necessidade
de admitir uma grandeza possível infinita. Porque se é absurdo que
um número infinito exista, é precisamente porque sempre é possível
acrescentar alguma coisa a qualquer número existente, o que equi-
140
0 Sfàdw de /ia Jfójtáwz
141
Capítulo IX
143
Châteaubriand 2 ou Frederico von Schlegel3. Embora os seus êxitos
possam não ter sido completos, devemos reconhecer o valor dos
esforços que empreenderam e fazer-lhes justiça. Mas, ao destacar os
pontos com os quais cada um deles enriqueceu a Filosofia da
História, devemos, de forma concomitante, indicar as deficiências
das suas teorias. Os que semeiam no campo da ciência muito dificil
mente podem produzir a verdade sem alguma mistura de erro. Fica,
quase sempre, para os que vêm depois deles, a necessidade de sub
meter os seus ensinamentos a um trabalho de depuração.
sua “Palingenesia social”. Em todas essas obras a sua filosofia da História, liga
da a Vico, alia-se a uma sentimentalidade vaga, eivada de esoterismo.
2) François-René Auguste de Châteaubriand (1768-1848). Famoso escritor e políti
co francês. Nascido na antiga família bretã dos viscondes de Châteaubriand.
Depois de uma juventude agitada, acabou por alistar-se no exército realista que
lutou contra a Revolução Francesa. Converteu-se ao catolicismo, escrevendo
duas obras que se tornaram célebres: “Atalie”(1801) e “Le génic du christianis-
me” (1802). Foi. durante o regime de Carlos X. ministro dos Negócios
Estrangeiros. Possuidor de um estilo literário brilhante, com riqueza de imagi
nação, eloquência e poder descritivo. Exerceu grande influência sobre o desen
volvimento da literatura romântica. O livro “Mémoires d’outretombe”.é a sua
obra prima, com carácter autobiográfico.
3) (Karl Wilhclm) Friedrich von Schlegel (1772-1829). Escritor e crítico alemão.
Figura chave, juntamente com o seu irmão August, do primeiro Romantismo
germânico. Estudou em Gõttingen e Leipzig, onde se interessou, sobretudo,
pela filologia clássica. Converteu-se ao catolicismo em 1808. Leccionou na
Universidade de Viena, cidade onde ocupou funções oficiais na chancelaria de
Estado. Terminou a sua carreira como alto funcionário do Governo Imperial. E
autor de uma importante obra literária e filosófica.
144
■
145
nou-se, na pena de Ballanche, aquilo que deve ser para a humani
dade, ou seja, um laborioso retorno a uma situação melhor (de onde
decaímos por falta nossa) e o resultado da misericordiosa condes
cendência do Criador, que opõe o instinto celeste da sua graça às
tendências retrógradas de uma natureza corrompida.
Devemos, pois, agradecer a Ballanche ter relembrado certas
verdades luminosas indispensáveis para construir a Filosofia da
História. Ballanche, levantando-a da ruína, prestou a esta ciência um
serviço notável. Contudo, não compreendeu - coisa surpreendente
num espírito tão elevado - que as idéias de queda e reabilitação serão
sempre obscuras, se não forem iluminadas por uma ideia superior: a
ideia do plano primitivo. Como compreender uma queda se não se
conhece a altura de onde se caiu? Como compreender a restauração
de um desígnio subvertido, se não se conhece o próprio desígnio?
Como compreender uma ordem qualquer sem conhecer o seu fim?
Há um outro ponto, importantíssimo, ao qual Ballanche não con
cedeu a importância devida: é a Encarnação do Filho de Deus. Este é o
verdadeiro eixo da história - aquele que oferece à unidade dos povos e
do gênero humano uma base incomparavelmente mais sólida do que a
paternidade carnal de Adão - Ballanche reconhece-o, mas não lhe dá o
lugar devido no corpo imenso que deve a Jesus Cristo a unidade e a vida.
2. Châteaubriand
146
0 £/?edw de /za
147
tãs por algumas concessões de parte a parte, e o Papado torna-se,
então, a fonte pura na qual se conservará o princípio da fé, no seu
sentido mais racional e mais amplo.
A história confirma, sob o prisma dos tempos e das sociedades,
essa reabilitação da humanidade por Cristo, que a religião apresen
ta sob o ângulo do indivíduo e da eternidade. Uma sociedade é uma
família que caminha para um mesmo fim e que, guiada pelo cristia
nismo, tende a uma perfeição infinita. Então, mesmo que pareça
regredir, ela segue uma linha progressiva na civilização e não cessa
de subir as encostas desse Sinai desconhecido, no topo do qual ela
verá Deus mais uma vez.
Segundo Châteaubriand, a era filosófica em que estamos, é o
cume mais alto da montanha de Deus.
De passagem, convém lembrar que na construção do seu siste
ma, assim como na maioria dos seus trabalhos, Châteaubriand foi
muito mais poeta do que filósofo ou teólogo. Não podemos encon
trar melhor desculpa para atenuar a gravidade dos erros em que
caiu. O conhecimento do catecismo seria suficiente para lhe fazer
compreender que a sua teoria da constituição primitiva da Igreja
cristã e da mutabilidade do dogma (teoria evidentemente bebida em
Guizot4), era inteiramente protestante. E, entretanto, a linguagem
que Châteaubriand emprega no seu livro, em relação ao protestan
tismo, não permite atribuir ao autor dos “Estudos históricos” uma
vontade deliberada de tomar partido contra a fé católica.
Nada impede, com efeito, de se considerar o progresso da
humanidade como decorrente da influência da doutrina cristã na
ordem social e na ordem científica. Nada impede de se ver na orga
nização social da Europa medieval o esboço, infelizmente incom-
148
/ia Jfójáfrüz
149
recentemente criado é atestado, em todas as tradições primitivas, e
a história antiga é apenas a história das alterações sucessivas que
essa Revelação foi sofrendo pela acção da palavra humana. Sob a
influência funesta dessa acção, as crenças reveladas deram sucessi
vamente lugar à tríplice idolatria da natureza sensível, das virtudes
supra-sensíveis e do poder social do Estado.
Quando essas alterações se tornaram tão profundas, ao ponto
de o homem ter ficado incapaz de encontrar o seu caminho. Deus
manifestou-se outra vez. Desta feita, já não como palavra, mas como
força, pois o homem tinha, efectivamente, necessidade de uma gran
de força para vencer as influências que o arrastavam para o mal.
Todas as forças humanas do carácter, do gênio e das armas tinham
sido, em vão, postas em actividade pelos persas, gregos e romanos.
Quando a sua insuficiência ficou completamente demonstrada, o
Verbo de Deus apareceu e inaugurou a segunda época histórica: a
era da força divina.
A partir daí, a Igreja - ao mesmo tempo depositária da palavra
primitiva e da força sobrenatural, cujo princípio é a graça de Jesus
Cristo - tende a introduzir essa dupla influência em todos os ele
mentos que constituem a vida da sociedade. Ela esforça-se por ligar
todas as idéias ao foco divino que as irradia e por compor, com elas,
um só feixe luminoso, que seria a base da grande ciência, verdadei
ramente una e verdadeiramente católica. Mas o espírito humano,
com as suas concepções orgulhosas e com a sua resistência ao domí
nio da graça sobrenatural, prejudica a expansão da luz divina, ao
mesmo tempo que as forças humanas lutam contra o império e a
graça sobrenatural. De um lado, a tirania dos imperadores pagãos e
de um grande número de monarcas cristãos de Constantinopla, da
Alemanha, da França e da Inglaterra, que paralisaram e depois des
truíram completamente o reino da política cristã. De outro lado, a
heresia e a seguir o racionalismo, que combateram violentamente o
reino da verdade cristã. Dos dois lados, foi o absolutismo: o absolu-
tismo de um só ou o absolutismo das massas, da razão ou das pai
xões. Foi a adoração da criatura, colocada no lugar do Altíssimo,
com a pretensão de se tornar independente d’Ele.
150
!
/za Jfâjâfrâz
151
&amere
152
Segunda Parte
A verdadeira ciência
da História
I
r
Capítulo I
155
Os séculos anteriores ao nosso, só nos mostram'duas obras que
tiveram como objectivo estruturar, sobre princípios gerais, a ciência
cristã da História. Mas também é certo que elas constituem verda
deiras obras-primas. Referimo-nos à “Cidade de Deus” de Santo
Agostinho e ao “^Discurso sobre a História Universal” de Bossuet.
O filósofo cristão que deseja escrutinar com humildade os
desígnios da Providência, relativos à Igreja e ao Mundo, não pode
dispensar-se de entrar como discípulo na escola destes dois ilustres
doutores. Talvez possamos, sem presunção excessiva, dar mais
alguns passos na via que eles abriram, sempre com a condição de os
tomar por guias e de chegar, sob a sua conduta, ao ponto a que o seu
gênio os levou, assistidos pelo Espírito de Deus. Começaremos por
Santo Agostinho.
1. Um livro apologético
156
■
2. Conteúdo da obra
157
Jfféwi &a#uere
158
&de feíZZJ
159
encontra toda a sua glória em Deus, que sonda os corações (XIV, 28).
Nada de mais correcto, do ponto de vista filosófico, do que esta divisão
dos homens em duas grandes classes, segundo a natureza do amor que
domina o seu coração. De facto, apenas a tendência livre da vontade dá
aos seres racionais o seu valor moral. O resto pode não estar no poder
do homem, excepto a boa ordenação do seu amor, que está ao alcance
de qualquer um. Se ele ordenar bem esse amor, será virtuoso e perten
cerá à sociedade dos que tendem ao seu verdadeiro fim, com a certeza
de possuí-lo. Se o ordenar mal, cairá nos vícios e pertencerá à socieda
de dos que se afastam, simultaneamente, da lei divina e da sua felicida
de verdadeira. Poderá haver graus infinitamente variados quanto à pro
ximidade ou quanto ao distanciamento do bem verdadeiro, mas, nessa
variedade, haverá, nos dois lados, uma semelhança capital que consti
tuirá a unidade de cada uma das duas cidades. Num lado, existe o pre
domínio da caridade; no outro, o predomínio do egoísmo.
Temos o direito de concluir daí que Santo Agostinho reserva,
na Cidade de Deus, um lugar mesmo para os que não pertencem a
Jesus Cristo? E que, segundo ele, o homem pode chegar à salvação
pelo uso recto das suas faculdades sem o concurso da graça? Seria
um erro e uma contradição ao mais constante ensinamento do santo
doutor. No seu livro, ele mostra a Cidade de Deus a viver, desde o
início, na expectativa do Redentor e a trabalhar para Lhe preparar
os caminhos, aguardando o dia em que possa seguir as suas pegadas.
Para Santo Agostinho, Deus não recusa o conhecimento do Divino
Salvador a ninguém que faça um bom uso do seu livre arbítrio. Daí
se segue que nenhum homem que ame a Deus sobre todas as coisas
ficará, até ao fim da sua vida, no desconhecimento de Jesus Cristo,
mesmo que a sociedade dos servidores de Jesus Cristo não seja efec-
tivamente distinta da sociedade dos servidores de Deus.
Quase não seria necessário ressaltar que, em consequência da
oposição dos seus princípios constitutivos, as duas sociedades estão,
necessária e continuamente, em luta. Desde o princípio, os que andam
segundo a carne perseguem os que vivem segundo o espírito e aumen
tam, com essas perseguições, o mérito e a glória das suas vítimas.
No entanto, a oposição das duas cidades não é de tal forma
160
0 de JeMí
absoluta que elas não possam ter interesses comuns, como sejam a
paz e a segurança temporal (XIX, 17). A cidade dos filhos de Deus
sacrifica tudo a esse interesse, menos os direitos de Deus (XIX, 26),
e, só luta contra a cidade terrestre, quando esta quer obrigá-la a vio
lar a lei divina. Longe de ser naturalmente hostil às sociedades tem
porais, a sociedade celeste é a única que nelas pode estabelecer uma
igualdade verdadeira e uma ordem constante (XIX 21, 24, 25).
Unidas por essa comunidade de interesses, as duas cidades tam
bém o estão pela partilha, mais ou menos igual, de bens e males da vida.
A Providência divina manifesta-se certamente com fulgor, em mais de
uma ocasião, pelas bênçãos temporais que concede aos seus servidores
e pelos flagelos temporais com que atinge os seus inimigos. Mas essas
manifestações necessárias para sustentar a fé, tirar-lhe-iam todo o méri
to, se não fossem excepções raras. Pelo próprio facto de a Cidade de
Deus estar ainda in via, não pode esperar a sua recompensa nesta terra.
A provação é a sua contingência presente. Sofrerá, então, os mesmos
males que a Cidade dos Homens, e partilhará, com ela, os bens sensí
veis. Mas esses males, que são um castigo para os inimigos de Deus,
serão para ela uma razão de méritos; e os bens, que são o fim exclusivo
do amor e da ambição dos maus, são desprezados por ela (I, 7). Se ela
se apegar excessivamente a eles, Deus a purificará lirando-lhos (XV, 6).
Enfim, os limites das duas cidades não estão definitivamente
demarcados na terra. Quis Deus, pelo contrário, que, até ao último dia,
cada homem pudesse passar de um lado para outro. Para isso, basta
uma mudança no coração. Os castigos que Deus destina aos seus ini
migos visam causar essa mudança salutar. Quantas vezes não acaba o
perseguidor por se transformar em perseguido e quantas vezes aquele
que antes atormentava os filhos de Deus não passa a ser atormentado
por aqueles com quem antes compartilhava orgulho e ódio!...
161
primeiros pais. Todos os anjos começaram por pertencer à Cidade de
Deus, mas, a partir do momento em que alguns pretenderam atribuir
a si a sua perfeição, foram banidos dessa sociedade de amor e come
çaram a formar entre eles a sociedade do ódio (XI1, 6). Adão e Eva,
ligados pela criação à sociedade dos anjos bons, caíram logo nas
armadilhas do anjo mau. Pecaram por uma vaidade secreta, antes de
transgredir o preceito do seu Deus (XIV, 13). Tornaram-se assim,
sucessivamente, os pais das duas cidades; uma, imita a sua inocência
e o seu arrependimento; a outra, reflecte a sua prevaricação.
A separação deu-se na própria família dos primeiros pais do
gênero humano. Caim e os seus filhos só deram ouvidos às suas pai
xões e só pensaram em se estabelecer na terra, onde fundaram cida
des e inventaram as artes. Pelo contrário, Set e os seus descendentes
fizeram do culto de Deus a sua actividade principal (XIV, 21). Com
o tempo, essas tradições santas foram-se perdendo. Os filhos de Deus
deixaram-se seduzir pelos filhos dos homens, as duas cidades mistu
raram-se, a Terra inteira ficou maculada pelo crime e, para purificá-
la, foi preciso que Deus enviasse as águas do dilúvio (XV, 22).
Essa é a origem das duas cidades que marcam toda a história. A
arca que salva do Dilúvio os restos da Cidade de Deus é a figura de
Jesus Cristo, por cujo coração entreaberto passaram todos os que
não pereceram nas águas (XV, 26).
162
0&eõa> aí Jfaaj Cfâtáfo 707 JfátáÓ‘07
163
6. Fim das duas cidades
7. Conclusão
164
0 &eàw de
165
fatória para um leitor contemporâneo. Santo Agostinho ofereceu
tudo o que poderia oferecer na época em que escrevia, isto é, os
princípios e as suas primeiras aplicações. O estudo dos factos poste
riores revelaria o resto.
Reconheçamos, entretanto, que - mesmo em relação aos factos
anteriores - a teoria de Santo Agostinho contem uma lacuna consi
derável. Não fala da lei que preside os destinos colectivos dos povos.
A fórmula que apresenta para distinguir ás”dúãs cidades é perfeita,
quando se trata de marcar o lugar de cada homem no grande plano
da Providência. Mas, fora dessa acção individual que determina o
valor moral de cada homem, há uma acção colectiva, que ele exerce,
conjuntamente, com os que fazem parte da mesma sociedade políti
ca. Do mesmo modo, fora dos bens e dos males, de cuja sucessão se
compõe a existência individual de cada homem, há prosperidades e
adversidades que são comuns a povos inteiros. As obras sociais, as
calamidades e as adversidades colectivas são, muito mais do que as
acções individuais, o objecto da História propriamente dita. Sendo
assim, a atenção do historiador-filósofo deve fixar-se, principalmen
te, sobre esse tema, consistindo a sua tarefa principal em determinar
as leis que regem a acção colectiva dos povos e a sanção providencial
dessas leis. Mas esse pormenor não escapou à clarividência de Santo
Agostinho. Ele afirma, com efeito, numa das mais eloquentes passa
gens do seu livro, que a evolução das nações é, muito mais do que os
factos isolados, o objecto dos cuidados da Providência. A explicação
do crescimento do Império Romano pode ajudar-nos a compreender
a sua ideia da acção providencial sobre as sociedades, embora em
parte alguma, ele ofereça sobre isso uma teoria completa. No seu
livro vemos bem as duas cidades a desenvolverem-se juntas e a cami
nhar para rumos opostos, mas talvez não vejamos, claramente, a
influência que uma pode exercer sobre a outra e a unidade do plano
divino que regula o seu desenvolvimento.
Lembremos, por fim, a observação que fizemos no início e que
nos permitirá descobrir uma qualidade relativa, sem a qual poderia
mos estar perante um defeito grave. Ao escrever o seu livro ”A
Cidade de Deus”, Santo Agostinho tinha em vista a refutação dos
166
0 e/e sfaaj
í
inimigos do cristianismo. A sua obra é, pois, mais polêmica do que
didáctica. Não devem surpreender-nos, assim, as interrupções que o
santo doutor faz à história das duas cidades para discutir as questões
de filosofia ou de exegese bíblica que davam, aos filósofos pagãos, o
pretexto para levantar objecções contra os dogmas do cristianismo.
Certamente, era ele o primeiro a compreender que essas contínuas
digressões prejudicavam a unidade e o encadeamento metódico da
sua doutrina, não hesitando, mesmo assim, em sacrificar a perfeição
da obra em benefício dos leitores. Quem poderia censurá-lo por isso?
Graças a essa preocupação, podemos hoje verificar que os erros
por ele refutados há quinze séculos têm o mais estreito parentesco
com os que hoje atacam o dogma cristão, conforme verificámos no
rápido resumo feito no começo do presente capítulo. O facto com
preende-se, ainda melhor, quando lemos no livro do Bispo de
Hipona a refutação das teorias de Porfírio. Em nenhum lugar se
aplica melhor do que aqui a palavra do Eclesiastes: “Ninguém pode
dizer: ‘Eis, aqui está uma coisa nova’, porque ela já existia nos tem
pos passados” (Ecle 1, 10). Com efeito, ainda hoje não se encontra
nada melhor para opor à verdade cristã do que os sofismas pulveri
zados, há quinze séculos, por Santo Agostinho. Um deus que se limi
ta a ser a alma do mundo e que se revela a nós pelas forças da natu
reza; espíritos superiores com os quais nos relacionamos mediante
certos ritos e que misturam certas verdades úteis com revelações
mentirosas; um inferno temporário; a indiferença das crenças reli
giosas. Enfim, os dogmas do paganismo, combatidos por Santo
Agostinho não são também os principais artigos do credo professa
do pelo paganismo moderno? O que acrescentou Jean Reynaud ao
sistema de Porfírio senão algumas elucubrações de pouca importân
cia? Tal é o “progresso” do erro: depois de tanto se mexer, volta afi
nal ao ponto de partida... quinze séculos depois! E aquilo que apre
senta como conquista das sociedades modernas é apenas o refugo
dos tempos passados...
167
I
Capítulo II
Doutrina de Bossuet
Encarregado de dirigir a educação do delfim, filho de Luís XIV,
Jacques Benigne Bossuet ', Bispo de Meaux, compreendeu que ela
não ficaria completa se, além de relatar os factos históricos, não
explicasse as respectivas causas ao seu real pupilo. Decidiu, pois, que
o delfim, após estudar, separadamente, a história dos diversos povos,
considerasse numa visão de conjunto os quadros que observara.nos
detalhes, para compreender a relação entre des^ penetrar os motivos
secretos que determinaram a acção dos homens e estudar a causa.pri-
meira que dispõe dos corações bem como das acções exteriores. J4ão
V Qxistia nenhum livro em que a história fosse tratada sob esse ponto
de vista. Se o delfim fosse um novo Carlos Magno, poder-se-ia espe
rar que a leitura de “A Cidade de Deus” tivesse, sobre o seu espíri
to, um efeito análogo ao que teve sobre o fundador do império do
Ocidente. Mas o herdeiro de Luís XIV não tinha a idade, nem os
horizontes que lhe permitissem entender um livro tão profundo.
Bossuet resolveu, então, compor uma obra adequada a tal fim. Feliz
necessidade que nos valeu uma das maiores obras do gênio humano!
Este objectivo inicial não foi o único que Bossuet teve em vista.
A segunda parte do seu livro denota a sua preocupação com a incre-
169
^a//uerc
1. Conteúdo da obra
170
0 Sfat/w d? fen/d na ^íftárâz
171
mudanças consideráveis na sucessão dos impérios. Entre a quarta e
a quinta, coloca a conquista de Tróia; entre a quinta e a sexta, põe a
fundação de Roma; a destruição de Cartago fica entre a sexta e a
sétima; e já que, segundo ele, a história antiga se estende para além
de Jesus Cristo, acrescenta ainda (depois do começo da sétima
idade) mais_d.uas épocas: a de Constantino, ou da paz da Igreja, e a
de Carlos Magno, ou do estabelecimento do império novo.
3. A Igreja Católica
172
■
173
JTfcnrí Sffanuère
174
Todas essas qualidades, porém, não bastam para colocar os per
sas em condições de resistir aos ataques dos gregos, incomparavel
mente menos numerosos, porém mais disciplinados. O que fez a
força dessa nação pequena foi, sobretudo, o amor da liberdade e do
bem público que animava todos os seus membros. Entre eles, a lei
era soberana, e todos os cidadãos se estimavam iguais diante dela.
A Grécia — que teria sido invencível se estivesse unida - dividia-se
em repúblicas que se guerreavam. Essas divisões favoreceram os
persas e fizeram-na cair em poder dos macedónios. Alexandre apro
veitou esse poderio para vencer os persas, mas o seu extensíssimo
império, de bases pouco sólidas, não sobreviveu ao fundador.
Na terceira parte, Bossuet põe em relevo as causas do cresci
mento e da ruína do Império Romano. O poder alcançado por esse
império, explica-se, segundo ele, pelo amor à liberdade e à pátria
que estava enraizado nos romanos; pela j.abedoria do Senado, cuja
orientação o povo seguia nas grandes crises; pelo segredo das deli
berações e nobreza da conduta; pela antecedência com que prepa
rava os empreendimentos e que evitava o aparecimento simultâneo
de vários inimigos a combater; pela resolução inquebrantável de
nunca ceder à força nem se deixar abater pelos reveses; pela gene
rosidade em relação aos povos vencidos e a preocupação de com
pensar a perda da sua liberdade; pela.equidade dos seus magistrados
na administração da justiça; enfim, pela admirável disciplina do
exército. A essas qualidades juntava-se, porém, um grande vício
que, depois de ter por muito tempo prejudicado a república romana,
acabou por destruí-la. O vício capital era a rivalidade entre as duas
ordens da república: os plebeus e os patrícios. Logo que os reis
foram expulsos, as discórdias apareceram. Inicialmente reduzidas I
pelas concessões dos patrícios e pelas guerras exteriores, agravaram-
se depois da destruição de Cartago, geraram a sedição dos Gracos,
as guerras de Mário e Sila, acabando por sujeitar o povo romano a esse
tirano que foi o precursor de César e de Augusto. Desapareceu, então,
a república para surgir uma ditadura militar. O imperador concentra
na sua pessoa o poder do Senado e do povo, mas ele mesmo fica à
mercê do exército. À medida que este toma consciência do seu poder,
175
impõe os seus caprichos e desestabiliza o império. Este divide-se em
facções e perde o seu vigor. O prestígio romano dissipa-se, os bár
baros invadem o império pelo norte, enquanto os persas o desmem
bram pelo oriente, caindo tudo em ruínas.
Bossuet termina o livro lembrando ao seu real aluno que o
encadeamento das causas particulares depende das ordens secretas
da Providência divina, que dirige sempre os acontecimentos para
os seus fins.
5. Observação crítica
176
cé/üfo /za
História Universal” não encontramos isso. Temos ali uma certa uni
dade no desenvolvimento da Religião, que é o objecto da segunda
parte. Jesus Cristo aparece como o elo de ligação entre o povo antigo
e o povo novo. Ele é, sempre, a consolação e a esperança dos filhos de
Deus, tanto quando era esperado, como depois de nos ser dado.
Por outro lado, a sucessão dos impérios liga-se a esse centro
divino, mas por pontos meramente acidentais. Bossuet não formula
uma lei geral que permita compreender o conjunto do plano provi
dencial. Prova, magnificamente, que a causa primeira dirige, segun
do a sua livre disposição, a acção das causas segundas, mas nada diz
sobre o fim para que o faz. Completa o edifício construído por Santo
Agostinho, conclui, com mão de mestre, as suas diversas partes, mas
faz-lhes perder o seu mérito principal, ou seja, a unidade e a simpli
cidade do plano. Parece-nos que, se tivesse desenvolvido o princípio
fundamental que lhe dava unidade, isso bastaria para preencher as
eventuais lacunas de Santo Agostinho.
Essa falta de unidade na teoria histórica de Bossuet não se mostra,
apenas, na falta de uma fórmula geral que esclareça e domine as três par
tes do seu trabalho, mas manifesta-se, também, na divisão do livro.
Ninguém ignora que, para ajuizar a unidade de um plano, o meio mais
simples consiste em verificar a sua divisão. Noto, inicialmente, que
Bossuet estabeleceu o ponto de separação entre o mundo antigo e o
novo, não na vinda do Salvador, mas na fundação do Império do
Ocidente. Jesus Cristo não aparece, pois, como a união entre os dois
mundos e o fulcro de toda a história religiosa. Terá Bossuet querido que
a História Universal tivesse como centro a história da Cidade de Deus?
Enfim, procuro, em vão, nessa primeira parte da obra de
Bossuet, algum dado que me permita adivinhar o que escrevería na
segunda. Em qualquer plano bem concebido, as partes simétricas
atraem-se e manifestam-se de tal maneira que, vendo a primeira,
certamente não se fica a conhecer a segunda, mas pode-se imaginar
o conjunto. Mas aqui nada há de semelhante. Que diferença existe,
com efeito, entre a acção da Providência na Nova Aliança e na
Antiga? Que influência produzirá a Encarnação nos destinos dos
impérios? Bossuet nada diz a esse respeito.
vn
E, entretanto, ele não poderia conceber o conjunto do seu plano
sem ter a respeito dele um pensamento delineado, e as conclusões a
que deveria chegar não poderíam deixar de modificar o dado funda
mental da sua teoria. Como foi possível que não tenha deixado explí
cito o seu desígnio? Como explicar que tenha tanto tempo sobrevivi
do à sua obra-prima sem pensar em completá-la? Como pôde (segun
do testemunho do Padre Ledieu), empregar tanto tempo, nos últimos
anos da sua vida, ao aperfeiçoamento de detalhes desse edifício
incompleto em vez de colocar, pelo menos, os alicerces da parte que
tinha, há tempos, prometido construir? A acção de Deus na Igreja
era então mais difícil de entender do que a conduta da Providência
na Sinagoga. Mas não encontraria o talento de um Bossuet, nos des
tinos gloriosos do povo novo, mais firme apoio para a sua eloquência
do que nos destinos ainda obscuros do povo antigo?
Para essas questões que, naturalmente, se apresentam diante da
sua obra-prima mutilada, só encontramos uma resposta. Os infelizes
preconceitos que o cegaram em relação ao Papado obstaram a que
entendesse a acção da Providência na Igreja. Basta ler a “Declaração
do Clero da França”2, escrita em grande parte pelo Bispo de Meaux -
e que é um veemente requisitório contra os maiores papas da Idade
Média - para compreender que o seu autor se tornara incapaz de
interpretar os desígnios de Deus sobre a Igreja e sobre as sociedades
modernas. A época tão grande, embora tão convulsionada, em que o
Papado trabalhou com tanta intrepidez e constância na educação dos
povos bárbaros e na formação da Cristandade, era, aos olhos de
Bossuet, apenas um grande eclipse durante o qual Deus permitiu que
os seus vigários, e com eles a Igreja inteira, caíssem em erros deplorá
veis dos quais só escaparam pelas doutrinas nascidas do cisma do
Ocidente. É triste dizê-lo. Bossuet não compreendeu essa grande ideia
da Cristandade - tão bem compreendida pela Idade Média, embora
por ela realizada de forma imperfeita - que conseguiu associar os
povos cristãos sob a direcção não política, mas moral, do vigário de
178
I
de fátíJ ZUZ
179
Capítulo III
A Teologia da História
Logo no início deste estudo, formulámos duas questões: 1)
Existe uma Filosofia da História?; 2) Se existe, a que leis obedece?
Para responder com pleno conhecimento de causa a estas duas
questões, começámos por analisar o âmago do nossoi tema.
Acompanhámos a acção dos agentes históricos: JD.eus, o homem e o
demônio. Estudámos os respectivos fins, e os meios que esses agen
tes podem empregar para os atingir. Feito isso, já estaríamos aptos
para tirar conclusões, mas pareceu-nos necessário, a fim de evitar
possíveis erros, examinar ainda as diversas teorias, verdadeiras ou
errôneas, que têm sido apresentadas para resolver as duas questões
que apresentámos. Neste momento, esclarecidos pelos ensinamen
tos dos grandes mestres, e até mesmo pelos erros dos nossos prede-
cessores na matéria, podemos, sem temeridade excessiva, explicitar
a nossa própria opinião.
181
completa dos factos da História, estruturando-os segundo princípios
racionais, mas sem ter em conta a Revelação? Se assim se entender
a Filosofia da História, não hesitamos em concordar com os que
negam a viabilidade de uma tal ciência. Afirmar que é possível
encontrar uma explicação completa dos factos da História, sem
recorrer à Revelação, equivale a negar a própria Revelação. Com
efeito, nada há de mais absurdo do que afirmar que o Filho de Deus
se fez homem, para, seguidamente, negar a sua influência sobre a
humanidade. Não há meio-termo: ou se nega a Encarnação do
Verbo de Deus, ou se reconhece que ela é o próprio fulcro da
História e a verdadeira solução de todos os enigmas sociais.
Só podemos conceber uma situação na qual a ciência da
História poderia ser uma simples filosofia. Se Deus quisesse deixar
o homem na sua condição natural, então não haveria outra luz para
explicar o seu destino além da que vimos nos capítulos anteriores.
Provámos que o fim essencial de Deus, em todas as obras que reali
za fora de Si, consiste em reflectir nas suas criaturas a imagem das
suas perfeições divinas. Mostrámos como essa semelhança divina
pode produzir-se em cada homem, nas sociedades e até na humani
dade inteira. E, em conformidade com esses princípios, que os fac
tos deviam ser explicados numa história puramente natural. A expli
cação talvez não fosse inteiramente satisfatória, e a ligação dos prin
cípios com as suas conclusões chegaria com dificuldade para que a
História pudesse ser considerada uma verdadeira ciência. Não o
negamos. Mas não haveria então outra teoria geral dos factos histó
ricos. Relacionar as acções individuais com as leis da moral, os
movimentos das sociedades com as leis da política, as vicissitudes da
humanidade com o fim essencial da Providência, tal seria então a
tarefa do historiador-filósofo.
Mas isso deixou de ser assim, a partir do momento em que, por
uma sublime aliança, a humanidade foi unida à Divindade. O seu
destino ganhou incomensurável amplitude e a missão do historiador
enobreceu-se imensamente. O fim essencial da Providência apare
ceu com clareza extraordinária. As leis da moral e da política trans
formaram-se, juntamente com os destinos dos indivíduos e dos povos.
182
1
183
os seus princípios - sejam eles racionais ou revelados. Aceitamos
essa definição, que não nos parece oferecer qualquer dúvida.
O próprio Roux-Lavergne, no livro em que combate a Filosofia da
História, segue esta opinião.
2. As leis da História
184
& Sffeâw t/e fáaJ /i/z jffútáràz
185
mento do Modelo celeste. Essas duas espécies de sanções, embora
igualmente infalíveis, nào são, porém, igualmente imediatas: a per
feição e a degradação moral seguem sempre, inevitável e imediata
mente, a imitação e a recusa do Modelo divino. Pelo contrário, a
felicidade ou a perturbação nem sempre serão sentidas num primei
ro momento de submissão ou de revolta. Se essa recompensa e essa
punição fossem sempre instantâneas, a bem dizer, não haveria liber
dade nem mérito. Continua a ser verdade, no entanto, que para os
indivíduos, para os povos e para a humanidade inteira, o Reino de
Jesus Cristo é, em si mesmo, um princípio de felicidade, que come
ça já nesta Terra, e a revolta contra Jesus Cristo, o princípio das
maiores infelicidades.
Aqui se apresenta, porém, uma questão mais difícil: o Reino de
Jesus Cristo, que é o fim da acção providencial, depende muito da
vontade livre do homem. Nesta perspectiva, não deveria Deus esta
belecê-lo na Terra de alguma maneira, mais cedo ou mais tarde,
apesar de todas as resistências? Não nos parece possível responder
a priori e com segurança a esta pergunta.
Mesmo que Deus tenha dado à humanidade o poder de pôr, até
ao fim dos tempos, obstáculos ao triunfo completo do Verbo
Encarnado, nem por isso a Providência faltaria a uma promessa sua.
Parece, entretanto, mais conforme à dignidade do Homem-Deus e à
sabedoria de seu Pai, que esse triunfo completo não seja adiado para
a eternidade. Se o Homem-Deus é o Rei da Terra e do Céu, por que
não haveria o seu Reino de se estabelecer na Terra e no Céu? Essa
glória, que Ele recebería de todos os povos livremente submetidos
ao seu império, não Lhe será devida sob todos os aspectos? E se ela
Lhe é devida, poderia Deus-Pai recusá-la, quando a sua sabedoria
Lhe dá todos os meios para a realizar, sem lesar em nada a liberda
de dos homens? Haverá conveniência em que a Providência se veja
frustrada até ao fim, na consecução do objectivo supremo que ela
busca na direcção das coisas humanas?
A liberdade dos homens permite-lhes contrariar ou protelar
esse objectivo divino. Admitir, porem, que tal realizaçao possa sei
definitivamente impedida, nao seria dar excessiva vantagem à mal-
186
dade do demônio sobre a bondade divina? Parece-nos evidente que
sim. Mas vejamos o que dizem, sobre isso, as Sagradas Esciituras.
Deus pronunciou-se. Prometeu ao seu Filho dar-lhe as nações em
herança. Anunciou, por todos os profetas, que, um dia, todas as revol
tas acabariam para dar lugar a uma grande paz, que a montanha de
Sião seria elevada sobre todas as alturas da Terra, e que o reino, o
poder e a grandeza, não apenas no Céu, mas em tudo que está debai
xo do Céu, pertenceríam um dia ao povo dos santos do Altíssimo.
É o que já demonstrámos noutro lugar e a que voltaremos mais
adiante. Na expectativa de virmos a conhecer provas peremptórias
contra as razões que apresentámos, é normal a nossa adesão aos
motivos de conveniência que tendem a persuadii-nos de que a ei
suprema da História não será ineficaz para sempre e que o Reino de
Jesus Cristo na Terra deixará um dia de ser apenas um reino e
direito, para se tornar um reino de facto.
187
sua lei ou de violar as suas prescrições. Mas Jesus Cristo, tendo ins
tituído a Igreja para ocupar o seu lugar na Terra, deve a Si mesmo
manter sempre o conjunto dessa sociedade na via recta e não per
mitir que ela deixe de reflectir no mundo o ideal divino.
Ííesta forma, o Reino de Jesus Cristo na Igreja será sempre um
Reino de facto, embora nem sempre alcance toda a plenitude que
seria de desejar]
Antes de mais, Jesus Cristo reinará sempre nalgumas almas que
se Lhe submeterão e que se esforçarão por serem semelhantes a Ele.
As almas em que o Reino de Jesus Cristo está inteiramente estabele
cido, são as almas dos santos, cuja raça nunca poderá extinguir-se
completamente no seio da Igreja. Cada uma dessas almas constitui
uma imagem parcial do ideal divino, cada uma é chamada a reprodu
zir um dos aspectos da sua beleza, e a beleza da Igreja no seu conjun
to resulta, em grande parte, da variedade infinita dessas imagens. São
incontáveis espelhos a reflectir aspectos do Homem-Deus, formando
em justaposição um retrato magnífico da sua fisionomia adorável.
Jesus Cristo reina ainda no seio das sociedades religiosas da
Igreja. O fim destas é a imitação, tanto na vida colectiva, como na
individual dos seus membros, dos exemplos do Homem-Deus e a
realização plena dos desejos do seu Coração. Tal como sucede aos
indivíduos, essas sociedades particulares não poderão abarcar, em
toda a sua extensão, a perfeição do Modelo divino. Cada uma esco
lherá um aspecto que O reproduzirá muito mais perfeitamente do
que um só homem poderia fazê-lo. Algumas ordens serão contem
plativas, outras serão pregadoras da palavra divina, outras cuidarão
dos doentes. Não haverá uma só função do Mediador divino que não
seja realizada por uma dessas santas famílias. O seu conjunto for
mará, assim, uma nova imagem do ideal celeste, mais vasta nas suas
proporções do que a beleza admirável das almas dos santos.
Mais ampla ainda é a imagem do Homem-Deus apresentada pela
Igreja inteira. Nela encontramos as prerrogativas do Mediador divi
no constantemente reproduzidas; as suas virtudes constantemente
praticadas; as suas funções constantemente exercidas; e a sua vida
constantemente renovada. Como Ele, a Igreja é una, embora abrigue
188
fáaJ 'fíntâ na Jfá/áína
5. A questão de direito
189
explicar todas as suas vicissitudes. Mas realizar-se-á também essa
mesma lei na história das nações? Não somos obrigados a reconhe
cer que um grande número de povos ficou durante toda a sua exis
tência, privado de conhecer Jesus Cristo e fora da sua influência? Se
fosse uma influência directa, poderiamos sentir-nos embaraçados
em responder. Mas existem influências muito reais que agem de
forma indirecta e até negativa. Além disso, nos destinos das nações,
mais ainda do que nos da Igreja, podemos distinguir questões de
direito e questões de facto. Essa distinção permite entender, sem
cair em exageros, a unidade do plano providencial. Sim, o estabele
cimento do Reino de Jesus Cristo - ousamos afirmá-lo - é o fim que
busca a Providência, tanto no governo das nações, como no governo
da Igreja, embora de forma diferente.
Se examinarmos a questão de direito, não parece haver lugar
para dúvidas. Em que consiste a perfeição e, consequentemente, o
destino das nações? Não é pela ordem que nelas reina que se salva
guardam os direitos e interesses legítimos, que se garante o devota-
mento dos chefes e a livre submissão dos súbditos, a união dos mem
bros entre si, a generosidade que leva os ricos a socorrerem os que
sofrem, e a busca dos verdadeiros bens sociais? Não se poderá dizer
que uma nação realiza o seu fim quando nela reinam a verdade e a
justiça e os interesses materiais estão subordinados, no seu desen
volvimento, aos interesses morais?
Mas essas condições de perfeição das sociedades não serão as
próprias condições do Reino de Jesus Cristo? Em vão se procuraria
na História, fora da influência de Jesus Cristo, a realização desse
ideal. Apenas o divino Salvador ensinou a verdade de forma a torná-
la acessível a todas as classes da sociedade humana. Os legisladores
mais astutos julgaram poder dominar as inteligências dos seus povos
enganando-as com fábulas e ficções mentirosas nas quais apoiaram
o edifício da sua moral. Apenas Jesus Cristo revelou verdadeira
grandeza, abaixando-se voluntariamente e colocando a sua glória ao
serviço dos seus súbditos. Apenas Ele elevou a dignidade da obe
diência ao nível da dignidade do comando. Apenas Ele provou aos
ricos que o seu interesse verdadeiro deve levá-los a despojarem-se
190
0 Sfyàw d? na Jfâjfona
os seus bens em favor dos pobres. Apenas Ele provou aos pobres
que podiam encontrar, na sua miséria, o princípio dos bens mais pre
ciosos. Nas virtudes de que deu um perfeito exemplo, o Homem-
eus apiesentou aos povos a única defesa eficaz contra os vícios que
os arruinam e corrompem. Dessa forma, por uma consequência tão
verdadeira como aparentemente paradoxal, a renúncia tornou-se,
sob a sua influência, a fonte das verdadeiras riquezas e dos prazeres
puros. E, sob a sua influência benfazeja, quanto podem desenvolver-
se as faculdades superiores do homem, nos campos da ciência e da
criação artística! Jesus Cristo é o Homem modelo, o Homem eleva-
o à dignidade divina, é o elo que une todas as perfeições criadas
com a perfeição incriada. É o Ideal plenamente realizado pela mão
do Omnipotente, vindo das regiões do invisível para se tornar visí-
Vel e palpável. Como poderia tamanha grandeza deixar de atrair a
Si, irresistivelmente, os amantes das ciências e das artes?
Mas a imitação desse ideal divino tornou-se ainda mais fácil às
sociedades por causa da sua realização na Igreja. A Igreja é a socie-
dade-modelo, do mesmo modo que Jesus Cristo é o Homem-mode-
lo. A sua missão não poderia limitar-se a formar imagens de Jesus
Ci isto em cada uma das almas e em cada uma das sociedades reli
giosas de que é composta. Ela apresenta, ainda, uma imagem colec-
tiva desse Redentor divino às sociedades temporais para as quais a
imitação do Modelo divino se torna, assim, muito mais fácil. Todas
as formas sociais se encontram na constituição da Igreja, sem
nenhum dos defeitos que, noutras situações, tenderíam a alterá-las e
a torná-las prejudiciais.
A autoridade do monarca não tem limites quando se trata de
fazer observar a lei divina, mas é nula, fora dessa lei. E quem dirige
todas as almas, deve gloriar-se de ser o servidor de todos. Os prínci
pes dessa Igreja santa só são pastores em relação aos povos, na con
dição de serem ovelhas em relação ao primeiro dos pastores. Os que
ocupam os últimos lugares podem chegar aos primeiros postos,
sendo o mérito a medida dos cargos. Todos os sofrimentos são nela
aliviados; todas as dedicações praticadas; as ciências honradas; as
artes encontram nela o seu mais sublime exercício; todas as riquezas
191
S/Hanuese
6. A questão de facto
192
k
0 (&üá> na
193
> e de tudo sacrificar antes de se submeterem à opressão. Todavia,
quem não percebe que essa pobreza preferida às riquezas, esta obe
diência até à morte, esta renúncia ao interesse próprio, são virtudes
essencialmente cristãs? Pois não têm elas a sua razão de ser no cris
tianismo? Entre os romanos, tais virtudes, privadas da ratificação
eterna que lhes deu Jesus Cristo, foram como plantas sem raízes.
Secaram com o sopro da prosperidade.
Mas, enquanto floresceram entre eles, deram frutos e esses fru
tos estavam em proporção exacta com o grau de semelhança que
essas virtudes tinham produzido na sociedade romana. Imitadas por
razões puramente terrenas, só puderam dar recompensas terrenas
aos seus imitadores. Essa regra pode ser aplicada a todos os outros
povos. Sempre veremos o progresso verdadeiro ser proporcional ao
grau de perfeição moral e a perfeição moral ser proporcional ao
grau de semelhança com o Modelo divino. A certos povos Deus dá
todos os elementos humanos de prosperidade e, quando assim é,
realmente gozam de um progresso durável, embora continuem
estranhos à influência directa do Homem-Deus. Tal é o caso das
grandes civilizações orientais. A nossa regra é válida para todos as
nações, mas ali a Providência parece ter querido ainda dar outra gló
ria a Jesus Cristo. Permitindo que aquelas nações se elevassem ao
mais alto ponto de prosperidade que as sociedades humanas podem
naturalmente atingir, quis também mostrar-nos a distância imensa
que separa essa perfeição humana da perfeição divina, da qual Jesus
Cristo foi o nosso Modelo. Com efeito, toda a influência que alcan
çaram, por exemplo, os sábios da China e toda a perfeição do meca
nismo social que, efectivamente, regeu esse império, não foram sufi
cientes para o preservar de manifestações assustadoras e requinta
das de crueldade e de degradação moral.
7. A Cristandade
194
&de fltíad
195
O que parece ser uma impossibilidade manifesta, quando nos
detemos na ordem puramente natural, torna-se fácil a partir do
momento em que consideramos os desígnios da Providência. Basta
que o Rgino moral de Jesus Cristo se estabeleçamo.interior de cada
-p.QYfi^eJogo, pela força das coisas, se formará uma grande sociedade
de povos sob a direcção moral da Igreja. QL£ap.ado_, essencialmente
desinteressado e benevolente em relação aos membros dessa grande
família será, em todas as suas disputas, um intermediário benfazejo,
cuja intervenção amortecerá os choques, acalmará as paixões e fará
pender, para o lado do direito, a balança da força. O que os congres
sos internacionais não conseguem fazer, porque os interesses têm
neles influência preponderante, o que as alianças de nações são
impotentes para realizar, porque causam o aparecimento de outras
coligações, será fácil a partir do momento em que se encontrar, de
novo, o eixo em torno do qual, outrora, a ordem se movia. Se, no
meio das paixões ardentes que agitaram a Idade Média e no seio dos
povos ainda semi-bárbaros, a Igreja conseguiu tantas vezes impedir
as guerras, desarmar a tirania e imprimir à actividade da Europa uma
direcção útil, o que não fará ela, quando as nações modernas aban
donarem a desconfiança e aceitarem de bom grado a sua arbitragem?
Poderá então o Reino de Jesus Cristo estabelecer-se completa
mente, realizando-se, assim, as profecias que anunciam na Terra
uma paz duradoura.
8. Conclusão
196
L
objectivo de todos os desígnios da Providência, parecendo-nos que
o seu triunfo será o termo de todos os acontecimentos da História.
Mas afastamo-nos, um pouco, desse grande Doutor, quando damos
a essa cidade o seu nome específico e o único fundamento sobre o
qual pode ser construída. Em segundo lugar —e isto é mais impor
tante— não relacionamos os destinos dessa cidade santa somente
com a vida futura, mas também com a vida presente, a qual perten
ce ao domínio da História. Em terceiro lugar, procuramos definir a
relação dos destinos da Cidade de Deus com os destinos colectivos
dos Estados, aspecto que Santo Agostinho deixou na sombra. Numa i
197
Capítulo IV
O autêntico progresso
à luz da Teologia da História
No capítulo anterior, estudámos, até às suas últimas conse
quências lógicas, os princípios da Teologia da História desenvolvi
dos por Santo Agostinho e por Bossuet. Seguindo estes grandes
mestres, procurámos completar a teoria de um com a do outro e, ao
tirar as referidas consequências, fomos apenas um pouco mais longe
do que eles foram.
Comparando, agora, essa doutrina com os sistemas errôneos
que refutámos anteriormente, encontramos divergências profundas.
Há, contudo, um ponto em que coincidimos com os nossos antago
nistas e em que eles também estão de acordo entre si. É o ponto cul !
minante dos seus diferentes sistemas, o único que lhes pode dar
algum crédito, isto é, a doutrina do progresso.
O progresso tão celebrado nos nossos dias, procurado por todas
as sociedades e que todas as escolas inscrevem nas suas bandeiras, não
é recusado pela Filosofia cristã da História. Pelo contrário, esta ofe
rece uma teoria racional e verdadeiramente prática sobre esse tema.
Entre os muitos defensores do progresso, poucos são capazes
de definir exactamente o significado dessa palavra. Nada nos dizem,
na verdade, sobre as metas a alcançar pelo progresso, sobre a manei
ra de o realizar, sobre os obstáculos a vencer, ou sobre os meios a
empregar. Persuadem os homens de que ele se realizará fatalmente
- o que, se fosse verdade, não se coadunaria com a liberdade dos
agentes chamados a realizá-lo - e, fazem com que estes, para alcançá-lo,
199
acabem por afastar-se dele. Muito se fala de progresso, para invia
bilizar. afinal, o verdadeiro progresso...
O conceito de progresso que a Filosofia cristã da História ofe
rece à humanidade é perfeitamente compreensível, tanto nos seus
objectivos como nos meios que oferece. Ela mostra os obstáculos
que podem afastá-lo e os meios de vencer tais obstáculos. Sem negar
inteiramente a sua necessidade, deixa incólume a liberdade humana;
proclamando-o indefinido, define claramente o ponto de onde ele
parte e os graus pelos quais ele se aproxima do seu objectivo.
1. Fins do progresso
200
0' &eàw de fefad /ta efârfd/üz
2. Condições do progresso
201
último plano ou nem sequer se pensa nisso. O desenvolvimento da
indústria e das suas ciências auxiliares são o único progresso aceite.
A Filosofia cristã tem uma visão mais objectiva e justa da nossa
natureza. Em Jesus Cristo, modelo do verdadeiro progresso, ela ofe
rece à nossa admiração uma beleza física e um poder sobre a maté
ria, superiores a tudo o que já foi visto e que ainda está por ver. Em
consequência, não nos proíbe desejar o desenvolvimento indefinido
das condições secundárias da nossa perfeição. Mas quer que nos
preocupemos, sobretudo, com as condições essenciais, as que estão
sempre em nosso poder e que constituem o nosso mérito pessoal. Ela
apresenta-nos Jesus Cristo a ocultar a sua beleza corporal, durante a
sua existência terrestre, e a evitar o uso habitual do seu poder sobre
a matéria, para nos oferecer um modelo mais perfeito das virtudes
morais e para nos ensinar a dar à perfeição da nossa alma a impor
tância que lhe é devida. Ela obriga-nos a reconhecer, na generosida
de do sacrifício de Cristo, o princípio da sua glória e, na humildade
do seu túmulo, a fonte dos esplendores da sua Ressurreição.
Eis a grande lei de qualquer progresso, incluindo o progresso
material. Procurar antes de tudo a perfeição moral, não recuar diante
dojs.ofrirnentQ e do trabalho, que sãCLas.cQndições da nossa prova, tudo
sacrificar ao^seryiço de Deus, esse é o meio de tudo obter d’Ele. ÇLpro-
^resso-material. não .dará os seus frutos e não evitará os seus .perigos
^^^Q-^medida..ern.que.estiver subordinado, ao progresso moral. E a
riqueza, por sua vez, será duradoura e benfazeja para todos, apenas na
proporção em que for santificada pelo espírito de renúncia.1
7} 3 * (' *-<*•*“• k. -O f •» *O KC» \ c C* q
202
pode, igualmente, ser admirada quando ele nos aponta os obstácu
los que se opõem a tal progresso e as medidas que devem ser adop-
jadas para vencê-los.
Todas as outras doutrinas se precipitam em excessos. Ora exal
tam a nossa natureza, até a fazer esquecer-se das suas misérias, ora
a rebaixam até lhe arrancar todas as suas grandezas e esperanças.
Dos dois lados, o perigo é o mesmo. Há entre as nossas grandezas e
misérias uma diferença: as primeiras só nos pertencem na medida
em que soubermos conquistá-las; as segundas pegam-se a nós e delas
só nos livramos por esforços perseverantes. Não faremos nem uma
coisa nem outra, se apenas virmos, na nossa natureza, grandes exem
plos de misérias, ou misérias sem nenhuma grandeza. O esqueci
mento das nossas grandezas fará com que seja impossível conquistá-
las. O esquecimento das nossas misérias torna-nos impotentes para
as combater. A ideia exagerada que fizermos da nossa baixeza,
impedir-nos-á de subir; a falsa elevação que atribuirmos a nós pró
prios, não nos deixará atingir a dignidade sublime, à qual só pode
mos chegar por esforços heróicos.
A Filosofia cristã da História preserva o homem desses dois
perigos. Não lhe dissimula a profundidade do abismo em que caiu,
nem a elevação do objectivo para o qual deve tender. Não atenua a
gravidade dos obstáculos que encontrará no caminho do progresso,
nem o poder dos meios que lhe são oferecidos para vencê-los. Pelo
pecado dos nossos primeiros pais, mostra a nossa natureza despoja
da de todas aquelas prerrogativas que a bondade divina lhe tinha gra
tuitamente concedido e entregue à condição nativa da sua ignorância
e às tendências animais que sempre colocam obstáculos ao despertar
das nossas faculdades superiores. Mas, por outro lado, apresenta
Jesus Cristo descido do Céu para expiar a falta original, esclarecer a
nossa ignorância e dar-nos forças para vencer a concupiscência.
i
Assim, não podemos enganar-nos a respeito d^nossa baixeza
natural, nem da nossa grandeza sobrenatural. Não criemos ilusões
sobre uma absoluta impotência do nosso carácter, nem sobre a sua
força invencível. Saibamos que, por nós mesmos, nada podemos,
mas que em Deus podemos tudo. Tenhamos consciência de que nos
203
r
&a//uere
204
0&eàw de Jfovj Yvvjfo zt/z jfâjMráz
205
O que nào significa que cada membro da Igreja, considerado sepa
radamente, nào possa afastar-se da perfeição e perder-se. Mas a
Providência, que vela sem cessar sobre a Esposa do Verbo
Encarnado, não poderia permitir que essas defecções internas a des
truíssem ou interrompessem o seu crescimento. Independentemente
dos esforços dos seus inimigos internos ou externos, a Igreja conti
nuará sempre a crescer até ao fim dos séculos. Crescerá em exten
são, pelos elementos novos que assimilará sem cessar; crescerá em
luz, pelas afirmações cada vez mais explícitas que oporá aos erros;
crescerá em graça e em méritos, pelos actos de virtude que os seus
membros novos produzirão continuamente, sob a influência do
Espírito de Deus. O momento em que cessar esse tríplice progresso,
o momento em que o corpo de Jesus Cristo atinja o seu crescimen
to pleno, será o momento em que ele será elevado à glória, para par
ticipar na felicidade do seu Chefe divino. Assim, no ápice da huma
nidade, realizar-se-á, apesar de todos os obstáculos, um progresso
real e um progresso autenticamente divino.
Nas regiões inferiores, nas sociedades temporais que forrriam o
çprpn dq humanidade, não temos os mesmos motivos para afirmar a
necessidade do progresso. Tudo^ojjuejjodemos dizerjjq.ue.o.pro-
gress€>")hes- será-sempxQ..ppssíy.el e até relativamente fácil, pois a
Igreja oferecerá, continuamente, todos os elementos que são,impres
cindíveis à sua realização. Finalmente, podemos afirmar que o pro
gresso dessas sociedades será condicionalmente necessário, se for
deixada à Igreja uma libèrdade plena para desenvolver no interior
delas a sua fecundidade divina. O declínio de algumas nações católi
cas não contradiz esta asserção, pois esse declínio coincidiu sempre
com entraves colocados à acção da Igreja pelos poderes temporais.
.O_que é efectivamente necessário é a fidelidade dos governan-
Jfís^e_dos.povos -aos_,ensinamentos da igreja, e a submissão deles à
sua viyificante influência. JO que é necessário é que não se deixem
persuadir pela ideia de que encontrarão na revolta um maior grau
de liberdade, de prosperidade e de poder político. Os povos têm as
suas provações, como os indivíduos; e, como estes, podem preferir
um bem presente à perfeição duradoura; deixam então as vias do
206
à
0/z/z
207
■
Jffwt &a//uère
5. Limites do progresso
208
0 Sffedw de fewj
209
Excluindo essas catástrofes capazes de devorar nações inteiras,
cada operário que acrescenta alguma riqueza nova à herança social
recebida dos seus antecessores, pode estar certo de que as suas con
quistas não serão perdidas. Ao largar o seu campo de trabalho e a
esfera do tempo para ir repousar na eternidade, deixa atrás de si
operários mais jovens. Assim cresce a riqueza intelectual e moral da
sociedade, sem que a tal crescimento seja possível marcar um limite
que não venha a ser depois ultrapassado.
O mundo físico poderá sempre revelar segredos novos aos cien
tistas, as verdades racionais poderão sempre fornecer aos filósofos
matéria para novas especulações, as Sagradas Escrituras e a
Tradição poderão sempre ser mais aprofundadas e melhor com
preendidas; sobretudo, em qualquer época, os indivíduos e as socie
dades poderão sempre aproximar-se mais do ideal de perfeição ensi
nado pelo Homem-Deus.
O homem terá sempre a possibilidade de decair, se quiser. Mas
também poderá sempre aperfeiçoar-se. Para esse progresso indefinido
da natureza só haverá realmente um limite, que será posto pelo anjo
que, no último dia, vier anunciar, em nome de Deus, o fim dos tempos.
6. O progresso autêntico
210
fetád fâúfa/za efffotóràz
da passagem da escada santa em que São João Clímaco sustenta a opinião aqui
levantada. Está no XXVI grau, artigo 155 “Deus regulamentou a ordem de
todas as coisas criadas e Ele mesmo marcou o seu fim. Mas a virtude não tem
fim que não seja sem fim”. Ou seja, ela avança sempre mais e o progresso que
nela se pode fazer não tem limites. “Vi - disse David - que há um limite em toda
a perfeição; mas a vossa lei é ilimitada” (SI 118,96). É verdadeiramente, pois
alguns servidores de Deus passam das virtudes da vida activa para as da con
templativa, já que a caridade nunca cessa de agir no coração que a possui, pois
o Senhor, segundo o profeta-rei (SI 120,8) “guarda a tua entrada” (que é a do
temor dos seus juízos) “e a tua saída” (que é a do teu amor pela sua bondade).
A posse desse amor é sem limite e sem fim, pois não cessamos nunca de nele
fazer progressos, nem no tempo presente nem no tempo que há-de vir, em que
a luz dos nossos conhecimentos receberá sempre um crescimento novo. E ainda
que o que direi possa parecer ao espírito de muitos um paradoxo, não recearei
entretanto, bem-aventurado Pai, de tirar essa consequência do raciocínio que
fiz. Os próprios anjos não permanecem num mesmo estado, mas a sua glória e
os seus conhecimentos crescem sempre (XXVIo grau, art. 155).
211
vosso Pai celeste’’ (Mt 5, 48). O princípio do progresso foi mesmo
enunciado nos primeiros dias do mundo, quando Deus ao criar os
seres humanos, disse: “Façamos o homem à nossa imagem e seme
lhança” (Gn 1, 26). Reivindiquemos, com ufania, essa doutrina que
nos pertence. Não permitamos que outros ofereçam um subproduto
adulterado à sociedade. Progressos, luzes, liberdade, igualdade, fra
ternidade, todas as palavras mais belas do vocabulário cristão foram
roubadas à Igreja para servirem interesses muitas vezes inconfessá
veis. Façamos todos os esforços para desenganar as nações e espere
mos que elas terminem por perceber a diferença que existe entre a
verdade e o erro. Onde os sequazes do erro oferecem à humanidade
apenas palavras sempre desmentidas pela realidade, a Igreja Católica
oferece realidades garantidas por uma experiência de dois mil anos.
2YL
Capítulo V
Relações da Teologia da
História com outras ciências
Para se adquirir uma noção completa da Filosofia cristã da
História, não basta estudar esta ciência em si mesma. É preciso
ainda considerá-la nas suas relações com as outras ciências. Não
poderiamos, pois, concluir este estudo sem lançar uma visão de con
junto sobre o domínio inteiro do saber humano, o que nos permiti
rá fixar o lugar exacto que ocupa nesse vasto império a ciência da
qual acabámos de expor as leis.
Não será difícil perceber que esse lugar é dos mais nobres. A
Teologia dajjbstória cede a primazia às ciências matemáticas e físi-
_cas, no que respeita acuiigor das deduções. t Ela ocupa uizL-lugar
UQodesto em relação à Teologia e mesmo à Filosofia, no sentido em
quejhes pede .todos os princípios e não dá um so passo-sern se^apoiar
pelas. _Mas tem, em relação a todas as_cjencias, a vantagem de mos-
trar a realização das suas teorias. Preçjsamente porque supõe todas
as outras ciências, ^Teologia da História ultrapassa-as. Parte do
ponto onde as outras chegará m;~para estudar e alcançar o fim últi
mo dos seus agentes, cuja natureza e faculdades são estudadas pelas
outras ciências. ■
Ao indicar este objectivo, a Teologia da História dá-nos a
conhecer a unidade suprema da ciência, unidade preciosa que os
cientistas verdadeiros sempre procuraram e que os cientistas não-
cristãos não conseguiram encontrar.
213
1. A Filosofia
214
de fâúfo /?£ efârtdtáz
2. A Teologia
215
A Tradição eclesiástica fornece à Teologia da História esclare
cimentos que lhe são de grande valia para entender bem as passa
gens mais difíceis da Bíblia e compreender os desígnios de Deus. A
legislação e a disciplina da Igreja ajudam a Teologia da História a
compreender melhor as condições desse Reino social de Jesus
Cristo, que ela considera o objectivo final para o qual convergem
todos os acontecimentos.
Mas. de todas as disciplinas teológicas, a que oferece à Teologia
da História o alicerce mais sólido é, sem dúvida, a Teologia Esco-
lástica. E nos ensinamentos dessa ciência que ela encontra o comple
mento dos dados preciosos que lhe forneceu a Filosofia. É, aí. que ela
aprende a conhecer melhor os atributos de Deus e a ordem dos seus
misteriosos desígnios relacionados com a salvação e reprovação dos
homens. E. aí. que a origem das duas cidades - inicialmente no Céu
e depois na Terra - lhe é mostrada completamente. É, aí, que forma
as idéias precisas sobre a primeira prevaricação, que tão grande
repercussão teve em toda a história. É, aí, sobretudo, que se apre
senta, na sua luz verdadeira, a Encarnação do Homem-Deus, esse
facto imenso que é o eixo da história, e é, aí, que se manifestam tam
bém. na sua ordem, todos os outros factos que explicam o caminho
da humanidade para Deus e as suas vicissitudes: a fundação da Igreja,
a missão do Espírito Santo, a efusão da graça nas almas, a instituição
dos sacramentos. E aí, enfim, que são mostrados os objectivos últi
mos, aos quais todos devem chegar, necessariamente, bons e maus,
os servidores de Jesus Cristo e os seus inimigos.
Acabámos de indicar, pelo menos nas suas características prin
cipais, os ensinamentos da Teologia Escolástica que servem para ilu
minar o caminho da Teologia da História. Mas, também, não é
necessário mais para compreender como o estudo da Teologia da
História é útil para esclarecer os ensinamentos da Teologia Esco
lástica. A Teologia da História permite-nos tocar, por assim dizer,
com as nossas próprias mãos, nos efeitos da Providência, da Encarnação,
da graça, da Igreja e de todos os dogmas que a Escola demonstra e
explica tão bem. Depois de subir, com a ajuda da primeira, até às
altas regiõés do pensamento e da abstracção, descemos, guiados
216
0
3. A História
217
Quando reunimos um certo número de factos para os rela
cionar com um princípio único; quando estudamos a vida de um
homem e nela procuramos a causa do seu rumo; quando, nos fac
tos que compõem a história de um povo, descobrimos a influên
cia das inclinações que dominam o seu temperamento moral;
quando, num encadeamento de acontecimentos históricos, pro
curamos compreender a aplicação das leis morais e vemos os
resultados funestos da sua transgressão, aproximamo-nos da
ideia de ciência. Mas ainda falta aquilo que constitui propria
mente uma ciência: a unidade. Temos verdades esparsas e múlti
plas, mas não temos o princípio. Temos diversos raios, mas o foco
está oculto. Temos conquistas úteis, no âmbito científico, mas
falta-nos a fórmula superior que, sem destruir a unidade dos fac
tos, lhes dá a unidade. Ora, essa fórmula, já o vimos, em vão será
procurada fora da Teologia da História. Os verdadeiros historia
dores caminham sob a sua luz. Fora daí, teremos eruditos, com
piladores mais ou menos engenhosos, mais ou menos pacientes,
escritores mais ou menos eloquentes, cronologistas, orientalistas,
geógrafos, mestres nas várias especialidades. Mas em relação à
ciência geral, à ciência orgânica, à verdadeira ciência, esses mes
tres serão apenas auxiliares. Tal como os operários de Tiro, que
Salomão empregou na construção do Templo, eles fornecerão ao
filósofo cristão os materiais que necessita para edificar o monu
mento que ele resolveu construir.
Ficaremos sempre gratos a esses homens pelos serviços que
prestam à ciência. Não lhes recusaremos nenhuma glória mere
cida. Mas há um mérito que não lhes poderemos conceder, e
que a maioria deles nem sequer ambiciona (e os que o ambicio
nam são os que menos têm razões para tal): é a visão da unida
de, a concepção verdadeiramente científica da História. Falta-
lhes o principal fundamento em que se apoia a ciência da
História, bem como a ordem do mundo, isto é, o conhecimento
de Jesus Cristo.
218
0 SffeÚM de J/eJtzJ
4. A Moral
219
se aplica igualmente aos indivíduos e à sociedade e que constitui o
fundamento comum da Moral e da História. Difere, apenas, na apli
cação e, mesmo aí, a diferença é puramente acidental, pois o que
Deus busca na glorificação do seu Filho não é tanto o número dos
que O imitam, mas, sobretudo, a perfeição das imagens. Ora, uma só
alma pode imitar mais perfeitamente o Modelo divino, e realizar
melhor os desígnios de Deus, do que um povo inteiro.
Desta forma, a Teologia da História não nos permite contem
plar, como simples críticos, as vicissitudes da humanidade. Os que
foram esclarecidos pela sua luz não se colocam, no estudo da histó
ria, como espectadores estranhos, sentados nos degraus de um anfi
teatro, a contemplar as peripécias da luta. Pelo contrário, são solda
dos da mesma luta. Perante os acontecimentos mais distantes, tanto
no tempo como no espaço, têm um interesse capital que os faz seguir
o seu desenrolar com uma emoção palpitante. Em todos os lugares,
vêem agitar-se duas causas que consideram como próprias: a causa
de Deus e a causa da humanidade. Não se limitam a dizer como o
poeta “sou homem e nada do que é humano me é alheio”1, mas dese
jam pertencer ao Reino de Cristo e não são indiferentes a nada do
que interessa a esse Reino.
220
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de tz/z Jffzjztf/za
221
6. A ajuda de Deus
222
OSfteàM de feíai fâúto zzzz efâjtáda
223
—
224
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índice
Prefácio 7
1. A história descritiva é ciência histórica?.. 9
2. Crítica histórica e ciência histórica 11
3. A ciência histórica propriamente dita 14
4. A ciência histórica em toda a sua grandeza 16
Primeira Parte
O Reino de Jesus Cristo considerado nos seus elementos 21
Capítulo I
A acção divina 23
1. A intervenção divina demonstrada pela História 24
2. A ordem moral e a ordem física 28
3. A intervenção da Providência impede a liberdade humana? . 30
4. Milagres: os excessos da credulidade e da incredulidade 33
Capítulo II
O plano divino estudado na natureza de Deus. 35
1. O universo tem um só fim: a glória de Deus 36
2. O mal e o bem nos planos de Deus 38
3. A natureza do plano divino . 40
4. A perfeição divina reflectida nas criaturas . . 42
225
Capítulo UI
O plano divino estudado à luz da Revelação 45
1. O fim sobrenatural do plano de Deus. . . 46
2. O Reino de Jesus Cristo 48
Capítulo IV
O plano divino estudado na natureza do homem 57
1. A natureza decaída do homem 58
2. As provas a que o homem é submetido .... 60
3. O pecado original e o plano divino 62
4. A procura da verdadeira e da falsa felicidade 65
Capítulo V
O plano divino estudado na natureza da sociedade . . 69
1. A lei da mutualidade 70
2. A lei da desigualdade 73
3. A próxima reconciliação entre as sociedades e Deus 74
Capítulo VI
O plano divino estudado no conjunto da Criação . . 79
1. Como pode a Criação manifestar a beleza divina? 80
2. As leis da variedade 81
3. As leis da variedade aplicadas à Igreja 83
4. As leis da unidade 87
Capítulo VH
O plano satânico 95
1. Entravar o plano divino 96
2. Destruir o plano divino 100
I 3. Executar a contrafacção do plano divino
Capítulo Vm
As falsas filosofias da história
A. Teorias ateias 107
1. Considerações prévias ... 109
226
!
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Capítulo IX
Teorias incompletas de alguns escritores católicos 143
1. A palingenesia social de Ballanche ................... 144
2. Châteaubriand...................................................... 146
3. Frederico von Schlegel ..................................... 149
Segunda Parte
A verdadeira ciência da História 153
Capítulo I
Doutrina de Santo Agostinho ....................... 155
1. Um livro apologético ................................. 156
2. Conteúdo da obra ..................................... 157
3. A Cidade de Deus e a Cidade dos Homens 159
4. Origem e destino das duas cidades .......... 161
5. A preparação da vinda do Salvador.......... 162
6. Fim das duas cidades................................... 164
7. Conclusão .................................................... 164
227
Capítulo n
Doutrina de Bossuet 169
1. Conteúdo da obra 170 i
2. As épocas históricas, segundo Bossuet 171
3. A Igreja Católica 172
4. O destino dos impérios 174
5. Observação crítica 176
Capítulo IH
A Teologia da História 181
1. Filosofia ou Teologia da História? . . 181
2. As leis da História 184
3. A lei suprema da História 185
4. Principais aplicações dessa lei 187
5. A questão de direito 189
6. A questão de facto 192
7. A Cristandade 194
8. Conclusão 196
Capítulo IV
O autêntico progresso à luz da Teologia da História . . . 199
1. Fins do progresso 200
2. Condições do progresso 201
3. Obstáculos ao verdadeiro progresso 202
4. Sobre a necessidade do progresso 205
5. Limites do progresso 208
6. O progresso autêntico 210
Capítulo V
Relações da Teologia da História com as outras ciências 213
1. A Filosofia 214
2. A Teologia 215
3. A História 217
4. A Moral 219
5. O Reino de Cristo é obra de todos nós 220
6. A ajuda de Deus 222
7. “Venha a nós o Vosso Reino!” 223
228
escritor e professor, exerceu o
seu ministério sacerdotal como
pregador, director espiritual e
organizador de retiros. r
Promoveu a unidade política
dos católicos franceses, na base
de um programa prático de
defesa da liberdade religiosa.
As páginas escritas por fe
Henri Ramière contam-se por
1
dezenas de milhares, entre
livros e artigos. A sua capacida
de de trabalho era verdadeira
mente prodigiosa. A sua
■T
espiritualidade baseia-se
amplamente nos Exercícios |
Espirituais de Santo Inácio, que
punha cuidadosamente em
1 O 'T' 1 \ •1 IO —
M
prática, assim como nos escritos \ «j
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de Santa Teresa de Ávila e de São
Francisco de Sales. jj
Nutriu, durante toda a
vida, uma filial e ardente
devoção à Mãe de Deus.
Publicou uma revista mensal
com o título “Pequeno mensage
iro do Coração de Maria”.
Fez época o seu curso “de
Teologia e de História” proferi
do no Seminário de Vais, entre
1862 e 1863, litografado, na
altura, sob o título “Le Royaume
de Jésus Christ dans FHistoire”,
que traduz o profundo cristo-
centrismo do autor, e que agora é
publicado em português.
Henri Ramière marcou a
fundo a história do catolicismo.
Para ele, o principal fim da
oração, do apostolado e da acção
social e política, era a glória de
Deus e o amor a Jesus Cristo,
simbolizado no seu Sagrado
Coração.
mbora venha de muito longe, o interesse pela Filosofia da História
incrementou-se notoriamente nos últimos séculos, numa tentativa
incessante de racionalizar a sucessão dos factos históricos e dar um sentido >i
ao caminho da humanidade através dos tempos. Para os antigos, a história
era simples crônica, não tinha um sentido, nem unidade. A procura do
sentido &à história, e da sua unidade, aparece logo no início do pensamento
cristão, tornando-se tema recorrente na literatura patrística, que culminou
na genial síntese de Santo Agostinho, compendiada na “Cidade de Deus”.
Bossuet, no seu famosíssimo “Discurso da História”, e outros autores das
épocas moderna e contemporânea, procuraram desenvolver e actualizar a
teologia agostiniana da História.
No século XVIII, em oposição a esta escola, surge, com Voltaire, uma
corrente filosófica laica, que, num esforço articulado para expulsartãcus
da História, afirma-se no idealismo dialécticoáe Hegel, no positivismo de
Augusto Comte, no materialismo histórico de Marx, e em tantos outros
filósofos, que divergem apenas no grau que conferem àquela expulsão.
No decurso do século XX, a humanidade, pela mão desses filósofos, foi
conduzida a desastres, revoluções e guerras de proporções nunca antes
vistas. Estas calamidades contribuíram para que, na aurora do século XXI,
um número crescente de pessoas se interroguem sobre a coerência
científica desses pensadores, e procurem ansiosamente na Filosofia da
História, e muito particularmente na Teologia da História, a
sistematização unitária e coerente de todos aqueles dados que decorrem da
Revelação e que podem iluminar a história humana e os seus problemas.
Henri Ramière retoma, numa abordagem surpreendente, mas com
rigor lógico, poder de síntese e clareza de linguagem, as teses de Santo
Agostinho e Bossuet, provando que a Providência não é uma ficção piedosa,
mas que Deus conduz, efectivamente, a humanidade, apesar das aparentes
derrotas, para “reunir sob a chefia de Jesus Cristo todas as coisas que há no
Céu e na Terra” (Ef 1,10).
ISBN: 972-26-2055-X
fl. .1.
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