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LITEATUA PORTUGUESA
Hélder Garmes
José Carlos Siqueira
Hélder Garmes
José Carlos Siqueira
2009
Hélder Garmes
Gabarito .....................................................................................181
Referências................................................................................189
Anotações .................................................................................197
Apresentação
o império português;
saudade e saudosismo;
Em cada um desses itens, apresentaremos o tema em si, sua gênese histórica, cul-
tural e artística, e colocaremos lado a lado alguns dos autores mais signiicativos
da Literatura Portuguesa que deram sua contribuição ao assunto. Manteremos a
ordem cronológica na apresentação de autores e obras, mas o foco sempre recai-
rá no tema em pauta e na forma como o diálogo transtemporal se deu entre esses
escritores. Uma última parte será ainda destinada aos autores contemporâneos
ou mais próximos ao tempo presente, buscando mostrar assim como esses oito
grandes temas continuam ainda vivos e estimulantes para artistas e leitores.
Desejamos que este estudo seja não apenas proveitoso em termos acadêmicos
como ainda muito saboroso e estimulante aos nossos leitores.
Hélder Garmes
O tema de Inês
Na Europa, durante o século XVI, uma importante e poderosa parce-
la das casas reais e de aristocratas governantes descendia de uma rainha
portuguesa. Netos e bisnetos dessa mulher ocupavam tronos, dirigindo
impérios e principados. Um grande cronista e poeta da época, o portu-
guês Garcia de Resende (1470-1536), chegou mesmo a dedicar um poema
a essa insigne linhagem:
Mas, uma tão importante genealogia aristocrática não deveria ser vista
como surpreendente durante o século de ouro de Portugal, momento das
grandes navegações e descobertas, pois nesse período o país ibérico era
uma potência dentro do continente. Além do mais, os casamentos entre
as mais diversas e distantes casas reais era algo por demais corriqueiro,
servindo de instrumento da política internacional e do jogo do poder.
Acontece que essa monarca portuguesa possuía algumas peculiaridades
capazes de comover poetas e historiadores, e transformar sua descendên-
cia em um verdadeiro milagre dinástico.
Para começar, ela não era portuguesa, mas sim da Galícia, uma região ao
norte de Portugal, subordinada à Espanha. Em segundo lugar, sua origem
era controversa, pois nascera ilha bastarda (concebida fora do casamento)
Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
Eis aí, em linhas muito sumárias, a trágica vida de D. Inês de Castro, que “depois
de morta foi rainha”, nas palavras de Luís de Camões (1525-1580). Mas isso não
é tudo: por trás do que já foi relatado, há também uma história de amor que
marcou a literatura e as artes de Portugal e de toda a Europa. Uma história
que desempenhou um importante papel na modelagem do espírito português,
de sua identidade nacional, em um processo em que ao fato histórico foram
sendo agregados detalhes, situações e desdobramentos criados por artistas e
pela imaginação popular, constituindo assim um mito que acabou maior e mais
interessante que a personagem histórica propriamente dita. Para entender esse
processo, devemos conhecer a história e a formação do mito de Inês de Castro.
A história
Inês de Castro nasceu na Galícia, como
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Inês de Castro na Literatura Portuguesa
da corte. Quando Constança concebeu seu primeiro ilho com D. Pedro, convi-
dou Inês para ser a madrinha, pois pelas leis canônicas a relação carnal entre pais
e madrinhas era considerada incestuosa. Parece que a artimanha não funcionou
muito bem, já que para afastar os amantes o rei Afonso decidiu expulsar Inês da
corte e exilá-la em um castelo próximo da fronteira com a Espanha.
Em meio a esse embate, nossa Inês teve nada menos que quatro ilhinhos
com D. Pedro. O primeiro morreu ainda pequeno, mas os outros cresciam muito
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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
Tudo isso somado fez com que o rei, inluenciado por conselheiros da corte,
decidisse cortar o mal pela raiz: durante uma ausência de D. Pedro, que saíra para
caçar – um de seus hobbies favoritos –, o rei promoveu um julgamento sumário
em Montemor-o-Velho, vila próxima a Coimbra, e sentenciou Inês à morte por
traição. A execução foi realizada imediatamente, e a bela Inês, por volta dos 30
anos, com três ilhos ainda crianças, foi barbaramente degolada em 7 de janeiro
de 1355.
É claro que o príncipe reagiu com violência àquele crime bárbaro e covarde:
D. Pedro rompeu relações com o rei, seu pai, e iniciou uma verdadeira guerra
civil. As hostilidades se prolongaram por dois anos, cessando apenas graças à in-
tervenção e a diplomacia da rainha Beatriz de Castela, mãe de Pedro. Apesar de
ser um bom motivo para a guerra, considera-se que na verdade a morte de Inês
foi apenas um pretexto para o confronto com o rei Afonso. E, de fato, o acordo
obtido pela mediação da rainha mãe concedeu a Pedro poderes que o tornaram,
na prática, o verdadeiro governante do país.
Mas, no im das contas, tal acordo não foi levado a cabo, pois logo em seguida
ao pacto o rei Afonso IV morreu, a 28 de maio de 1357, com certeza muito preo-
cupado com o destino de Portugal, do ilho e de seu neto.
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Inês de Castro na Literatura Portuguesa
Por im, o gentil rei Pedro I fez uma revelação bombástica à corte: ele havia
se casado oicialmente com D. Inês de Castro. Ou seja, uma das grandes preo-
cupações de seu pai, motivo inclusive de ter optado pela morte de Inês, havia
acontecido em segredo, na região de Coimbra. É verdade que Pedro não se lem-
brava nem do mês em que isso acontecera, mas ele mandou chamar o bispo da
Guarda, na época deão do mesmo local, e mais um de seus criados para compro-
varem a história. O bispo conirmou que havia ministrado a cerimônia, e o criado,
que presenciou o casamento. Mas, por uma dessas comuns amnésias coletivas,
nenhum dos dois lembrava também quando fora... De qualquer forma, era uma
reparação que o novo rei fazia à ultrajada D. Inês e a prova de um amor que nem
a morte nem o tempo conseguiam apagar.
Dessa forma, Inês era oicialmente declarada rainha, e seus ilhos, legitimados,
podendo inclusive aspirar ao trono, caso por algum motivo o frágil infante Fer-
nando faltasse ao país. Seria possível pensar que tal reparação estava na lógica
da vingança que o rei já havia desencadeado com o lagelo dos conselheiros: de
certo modo, Portugal como um todo estaria pagando pela mesquinha desapro-
vação ao romance do príncipe e sua amante galega, bem como pelo alívio cole-
tivo sentido com a sua morte. Mas, pode-se acrescentar a essa satisfação pessoal
alguns objetivos políticos – no futuro, os descendentes de Inês poderiam se arro-
gar ao trono espanhol, quem sabe realizando a temida união dos dois países.
O translado do corpo de Inês foi feito com toda a pompa e circunstância de-
vidas a uma rainha. Por todo o trajeto de Coimbra (onde a dama fora sepultada)
a Alcobaça, a nobreza, o clero e o povo saudaram o féretro como se fosse a uma
monarca viva, e as cerimônias fúnebres passaram à memória dos portugueses
em virtude de sua suntuosidade e grandeza.
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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
O mito
A história que acabamos de narrar tem base em documentos e relatos histó-
ricos, mas diversos de seus detalhes são difíceis de comprovar com toda a exa-
tidão. Queremos dizer com isso que mesmo o fato histórico está contaminado
de incertezas, fruto da deiciente documentação, dos métodos pouco coniáveis
dos registros e crônicas, além do que muitas das possíveis fontes para esses
eventos se perderam no decorrer do tempo.
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Inês de Castro na Literatura Portuguesa
Seria esse intenso sentimento que levara D. Pedro a sua vingança tão cruel e
à construção dos túmulos majestosos, capazes de vencer o tempo e perdurar no
futuro. Presente e futuro determinados por um passado a que a saudade susten-
ta e dá poder – a saudade portuguesa.
Para dar um exemplo da ação dos poetas nesse sentido, vejamos a famosa
cena da coroação da rainha morta. Com base no dado histórico do cortejo do
cadáver de Inês para Alcobaça – uma das formas encontradas por D. Pedro para
declarar Inês rainha depois de morta –, diversos escritores desenvolveram a fan-
tástica cena em que o corpo morto de Inês era assentado sobre o trono portu-
guês e uma cerimônia de coroamento tinha lugar. Em seguida, para escárnio
da nobreza e do clero presentes, estes teriam sido obrigados a beijar a mão da
rainha morta. A força imagética e tétrica dessa cena é inquestionável. Eis aí uma
amostra do esforço humano em vencer a morte e negar as fronteiras entre o
passado e o presente, um tema mitológico.
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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
Já a história de Inês é registrada pela primeira vez por meio da pena de Fernão
Lopes (1380-1460). A importância da obra e das atividades intelectuais desen-
volvidas por esse homem pode ser medida pelo fato de que a história da Litera-
tura Portuguesa deine como data do início do Humanismo em Portugal a sua
nomeação como guarda-mor da Torre do Tombo (uma espécie de bibliotecário
chefe da documentação oicial do país). O Humanismo é a corrente cultural e li-
terária que, em terras portuguesas, vai de 1418 a 1527, substituindo a era do
Trovadorismo. O próprio nome já denuncia que o foco dessa corrente de pensa-
mento é o homem, visto agora como centro do universo, dotado de faculdades
que o diferenciam no mundo animal, principalmente a razão, e o elevam à posi-
ção de ser supremo da natureza e seu virtual senhor.
Domínio público.
Fernão Lopes é considerado o “pai da História” em
Portugal. Ele já pode ser considerado “moderno” por
haver promovido uma historiograia baseada em do-
cumentos e não mais fundamentada na tradição oral.
O que não o impede de imprimir em seus relatos uma
forte carga dramática e de intenso dinamismo narrati-
vo. Em seus textos surge o povo em suas multifacetadas
manifestações, atingindo o protagonismo em algumas
ocasiões. Seu estilo é bastante coloquial e direto, por A Crônica de Fernão Lopes.
vezes o narrador chegando a dialogar com o leitor.
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Inês de Castro na Literatura Portuguesa
A Portugal foram trazidos Álvaro Gonçalves e Pero Coelho, e chegaram a Santarém, onde el-rei
era. El-rei, com prazer de sua vinda, porém mal magoado porque Diogo Lopes fugira, os saiu
fora a receber, e, sanha cruel, sem piedade os fez por sua mão meter a tormento, querendo que
lhe confessassem quais foram na morte de Dona Inês culpados, e que era que seu padre tratava
contra ele, quando andavam desavindos por azo da morte dela. E nenhum deles respondeu a
tais perguntas coisa que a el-rei prouvesse.
E el-rei, com queixume, dizem que deu um açoite no rosto a Pero Coelho, e ele se soltou
então contra el-rei em desonestas e feias palavras, chamando-lhe traidor, à fé perjuro, algoz
e carniceiro dos homens. E el-rei, dizendo que lhe trouxessem cebola, vinagre, e azeite para o
coelho, enfadou-se deles, e mandou-os matar.
A maneira de sua morte, sendo dita pelo miúdo, seria mui estranha e crua de contar, cá
mandou tirar o coração pelos peitos a Pero Coelho, e a Álvaro Gonçalves pelas espáduas. E
quais palavras houve e aquele que lho tirava, que tal ofício havia pouco em costume, seria
bem dorida cousa de ouvir. Enim, mandou-os queimar. E tudo feito ante os paços onde ele
pousava, de guisa que comendo olhava quanto mandava fazer. (LOPES, 2009. Adaptado)
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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
Ferreira é ainda avaliado por críticos como António José Saraiva e Oscar Lopes
como o mais íntegro representante da escola clássica em seu país (SARAIVA;
LOPES, 2005, p. 255), havendo realizado com essa tragédia uma brilhante inte-
gração entre um tema moderno e a estética clássica. Sem dúvida, o dramaturgo
português retomou a ideia da defesa de Inês que está nas Trovas de Garcia de
Resende e ampliou-a no quarto ato de sua peça na forma de um julgamento em
que comparecem ainda dois dos conselheiros reais no papel de promotores.
A bela Inês questiona o rei Afonso IV – no papel de juiz – sobre seu crime (ato
IV, cena I):
CASTRO: Ouve minha razão, minha inocência./ Culpa é, senhor, guardar amor constante/ A
quem mo tem? se por amor me matas,/ Que farás ao inimigo? amei teu ilho,/ Não o matei.
Amor amor merece;/ Estas são minhas culpas: estas queres/ Com morte castigar? Em que a
mereço?
[...]
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Inês de Castro na Literatura Portuguesa
CASTRO [ainda se dirigindo ao rei]: Dou tua consciência em minha prova./ Se os olhos de teu
ilho se enganaram/ Com o que viram em mim, que culpa tenho?/ Paguei-lhe aquele amor
com outro amor,/ Fraqueza costumada em todo estado. / Se contra Deus pequei, contra ti não.
(FERREIRA, 1996, p. 148 -149)
A infeliz mulher ainda acrescenta que a injustiça não seria apenas contra ela,
mas atingiria também o ilho do rei, que ama Inês, e seus netos, que cresceriam
órfãos. Nesse momento, o rei juiz cede às súplicas e se retira de cena convencido
da injustiça que seria a morte de Inês. Mas, na cena seguinte, a sós com dois con-
selheiros, é confrontado com as razões de Estado (ato IV, cena III):
Pela segunda vez o rei sucumbe aos argumentos dos acusadores. E agora,
para evitar novo confronto com Inês, ele dá a sentença deinitiva – na verdade,
transfere aos outros a decisão (ato IV, cena II):
REI: Eu não mando, nem veto. Deus o julgue./ Vós outros o fazei, se vos parece/ Justiça, assim
matar quem não tem culpa. (FERREIRA, 1996, p. 152)
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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
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Inês de Castro na Literatura Portuguesa
Os Lusíadas
Para se ter uma ideia da difusão e do interesse suscitado por esse episódio, pode-
mos citar a tradução para o alemão por Johann Gottlieb Fichte (1762-1814), desta-
cado ilósofo do Iluminismo. Para poder ler Os Lusíadas no original, Fichte aprendeu
português e, a partir daí, procedeu a uma preciosa tradução dessa parte do poema
de Camões, respeitando tanto a métrica quanto o esquema rímico do original.
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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
No poema de Bocage ica patente que a intenção do autor foi ampliar o as-
pecto lírico, inlacionando o que Camões já havia feito em sua epopeia. Por isso,
na cantata desaparece o julgamento de Inês, sua defesa, os apelos pelos ilhos
pequenos, ou seja, as características dramáticas que os poetas iniciais haviam
privilegiado. Aqui, Bocage está interessado na interioridade da bela Inês, em
seus sonhos, nos seus profundos anseios e sentimentos. Os algozes surgem de
súbito no recitativo, despertando a mulher de seu devaneio, e em completa
mudez cumprem sua macabra tarefa: “Vós, brutos assassinos,/ No peito lhe en-
terrais os ímpios ferros./ Cai nas sombras da morte/ A vítima de amor, lavada em
sangue” (BOCAGE, 1972, p. 123).
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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
Domínio público.
Inês: não mais a indefesa amante, alie-
nada das demandas políticas e intrigas
palacianas, mas uma mulher arrojada,
cuja ambição pelo poder pôs em xeque
o status quo português:
Era preciso destruí-la e, se possível,
substituí-la pelo mito. [...] Ao exaltar o amor
de Pedro e Inês nesse quadro romântico da
obra tumular de Alcobaça, dá-se-lhe uma
satisfação simbólica, tornando-o assim
inofensivo para a sociedade. (BESSA-LUÍS,
1983, p. 158)
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Inês de Castro na Literatura Portuguesa
A lógica de Pero Coelho é implacável: caso ele não tivesse cometido aquele
horrendo assassinato, todos os envolvidos seriam inevitavelmente esquecidos
e o sublime amor de Pedro e Inês da mesma forma submergiria no silêncio. Do
modo como aconteceu, os participantes daquela tragédia seriam imortalizados
e, por meio da literatura, suas vidas poderiam ser oferecidas a cada era como
alimento eucarístico: “O povo só terá de receber-nos como alimento, de geração
em geração” (HELDER, 1975, p. 121), da mesma forma que Pedro comia o coração
do narrador assassino.
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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
Texto complementar
No último capítulo da Chronica de el-rei D. Pedro I, Fernão Lopes descreve a
cerimônia de translado dos restos mortais de Inês de Castro e o im do reinado
do rei D. Pedro.
Porque semelhante amor, qual el-rei Dom Pedro houve a Dona Inês, rara-
mente é achado em alguma pessoa, porém disseram os antigos que nenhum
é tão verdadeiramente achado, como aquele cuja morte não tira da memória
o grande espaço do tempo. E se algum disser que muitos foram já, que tanto
e mais que ele amaram, assim como Adriana, e Dido, e outras que não nomea-
mos, segundo se lê em suas epístolas, responde-se que não falamos em amores
compostos, os quais alguns autores abastados de eloquência, e lorescentes em
bem ditar, ordenaram segundo lhes prouve, dizendo em nome de tais pessoas
razões que nunca nenhuma delas cuidou; mas falamos daqueles amores que se
contam e leem nas histórias, que seu fundamento têm sobre verdade.
Esse verdadeiro amor houve el-rei Dom Pedro a Dona Inês, como se dela
namorou sendo casado e ainda infante, de guisa que, pero dela no começo
perdesse vista e fala, sendo alongado, como ouvistes, que é o principal azo
de se perder o amor, nunca cessava de lhe enviar recados, como em seu
lugar tendes ouvido. Quanto depois trabalhou pela haver, e o que fez por
sua morte, e quais justiças naqueles que nela foram culpados, indo contra
seu juramento, bem é testemunho do que nós dizemos.
E sendo lembrado de lhe honrar seus ossos, pois lhe já mais fazer não
podia, mandou fazer um moimento de alva pedra, todo mui sutilmente
obrado, pondo elevada sobre a campa de cima a imagem dela, com coroa
na cabeça, como se fora rainha. E este moimento mandou pôr no mosteiro
de Alcobaça, não à entrada, onde jazem os reis, mas dentro na igreja, à mão
direita, cerca da capela-mor.
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Inês de Castro na Literatura Portuguesa
muito bem corrigidas para tal tempo, as quais traziam grandes cavaleiros,
acompanhadas de grandes idalgos, e muita outra gente, e donas, e donze-
las e muita clerezia.
Pelo caminho estavam muitos homens com círios nas mãos, de tal guisa orde-
nados, que sempre o seu corpo foi, por todo o caminho, por entre círios acesos; e
assim chegaram até ao dito mosteiro, que eram dali 17 léguas, onde com muitas
missas e grande solenidade foi posto seu corpo naquele moimento. E foi esta a
mais honrada trasladação que até aquele tempo em Portugal fora vista.
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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
E diziam as gentes, que tais dez anos nunca houve em Portugal, como
estes que reinara el-rei Dom Pedro.
Dicas de estudo
Para que o estudante possa completar as informações sobre a apropriação da
história de Inês de Castro pela literatura e outras artes, sugerimos duas obras.
Estudos literários
1. Por trás da execução de Inês de Castro, pode-se detectar várias possíveis “ra-
zões de Estado” que teriam levado o rei Afonso IV a se decidir pela morte da
dama galega. Comente as principais.
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Inês de Castro na Literatura Portuguesa
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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
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O império português
— Quem tu és?
— Afonso, meu ilho – disse Cristo –, conia em tua vitória amanhã. Ex-
pulsa o iniel e leva alegria ao nosso povo. Amanhã, Afonso, serás rei.
Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
Domínio público.
O Milagre de Ourique, 1793. Domingos Sequeira.
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O império português
Quanto ao nome Portugal, vale lembrar que Portucale era o nome da provín-
cia romana fundada onde hoje é a cidade do Porto. O nome de Condado Por-
tucalense só surgiu no século IX e a designação Portugal, como vimos, com a
fundação do reino. Em meados do século XIII, portanto, a unidade territorial por-
tuguesa já estava deinida. Foi nesse momento que começou a se dar na Europa
a passagem da sociedade medieval para o Estado moderno, isto é, a centraliza-
ção do poder em torno da igura do rei e o esvaziamento do poder da nobreza,
dos senhores feudais e do clero. Portugal é considerado por muitos historiadores
como o primeiro Estado moderno da Europa – o que vale dizer que é o primeiro
Estado moderno.
Ainda no século XIII, vale destacar a ação do rei D. Dinis (1261-1325) que,
além de ser um grande trovador, criou a Universidade de Coimbra, primeira ins-
tituição dessa natureza em Portugal, e decretou o português como língua oicial
dos documentos do reino. Lembremos que até ali as línguas empregadas em
Portugal eram o português (ou proto-português, como querem alguns), o latim,
o galego-português, o moçárabe-lusitano e o árabe hispânico, sendo o latim a
língua oicial dos documentos. O que D. Dinis fez foi, portanto, institucionalizar
formal e politicamente a língua portuguesa. Além disso, tomou diversas medi-
das de cunho administrativo e econômico que muito beneiciaram o reino.
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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
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O império português
Domínio público.
Fachada do mosteiro dos Jerônimos.
Domínio público.
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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
Também a corte de seu ilho D. João III foi bastante luxuosa e cultivou forte-
mente as artes. Destaca-se pela presença de vários escritores, a começar pelo
dramaturgo Gil Vicente (1465-1536), que representou sua primeira peça, Auto
da Visitação ou Monólogo do Vaqueiro, em 1502, no quarto da rainha Maria de
Aragão (1482-1517), quando do nascimento do seu primogênito D. João. Como
o reinado de D. João III foi de 1521 a 1557, dele participaram Garcia de Resende
(1470?-1536), Sá de Miranda (1481-1558), Bernardim Ribeiro (1482?-1552?), João
de Barros (1496-1570), Luis Vaz de Camões (1524-1580), entre diversos outros
escritores hoje canônicos da Literatura Portuguesa.
É importante lembrar que, nas artes e nas ciências, esse foi o momento do
Renascimento. A vida e o conhecimento começavam a se laicizar, isto é, começa-
vam a deixar de se pautar exclusivamente pelo calendário e os saberes religiosos,
passando a se orientar por atividades não rituais e conhecimentos pragmáticos,
que hoje chamamos de conhecimentos de base cientíica. Segundo os historiado-
res da literatura António José Saraiva e Oscar Lopes:
O desenvolvimento do capitalismo comercial e de toda uma cultura ligada à sua experiência põe
em causa a síntese doutrinária lentamente elaborada pelo clero das universidades nos séculos
imediatamente anteriores, e um dos efeitos dessa situação é o alargamento da curiosidade
a outros aspectos do patrimônio cultural antigo em que, contrariamente à Escolástica, se
digniicassem as atividades civis, o saber prático ou especulativo sem diretrizes teológicas, o
lucro e a operosidade mercantil, a inteligência e até o corpo humano, a vida terrena. Pouco a
pouco o esquema teológico da Criação, Queda e Redenção serve de modelo a este outro: Luzes
greco-romanas, Trevas “góticas” e monacais, Renascer da cultura antiga. Daqui a designação
de Renascimento, que aliás só mais tarde se começou a usar explicitamente em relação ao
Quattrocento (séc. XV italiano) e a uma parte (cuja marcação é problemática) do século XVI
europeu. (SARAIVA; LOPES, 1979, p. 175)
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O império português
Apenas pelos títulos dessas obras já podemos constatar que o foco prin-
cipal do período das descobertas estava na Ásia: era a relação comercial e
marítimo-militar com o Oriente que caracterizou as narrativas elaboradas nas
cortes de D. Manuel e de D. João III. E isso não aconteceu só com as narrativas, já
que, como sabemos, Os Lusíadas, obra maior do período, é um poema épico que
aborda o mesmo tema dos textos acima, centrado na descoberta, por Vasco da
Gama, do caminho marítimo para as Índias.
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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
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O império português
Domínio público.
Camões perdeu o olho direito lutando em Marrocos.
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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
O império luso-brasileiro
Depois desse episódio que pôs im à proeminência de Portugal em relação ao
restante dos reinos europeus, o período que se seguiu não teve mais a mesma
pujança, mas ainda permitiu à corte portuguesa viver com alguma suntuosida-
de. O Brasil foi a fonte de suas grandes riquezas, em especial no século XVIII.
A nossa Sé da Bahia,
com ser um mapa de festas,
é um presépio de bestas,
se não for estrebaria:
várias bestas cada dia
vemos, que o sino congrega,
Caveira mula galega,
o Deão burrinha parda,
Pereira besta de albarda,
tudo para a Sé se agrega. (GUERRA, 1995, p. 220)
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O império português
O neo-colonialismo
No decorrer do século XIX, Portugal viveu um forte período de instabilidade,
pois, após a morte de D. João VI, houve uma guerra civil envolvendo os irmãos
D. Miguel e D. Pedro IV (ou D. Pedro I do Brasil). Quem ganhou a disputa foi D.
Pedro, que instaurou uma Monarquia Constitucional em Portugal. A partir de
então houve uma sistemática tentativa de fazer da colônia de Angola um novo
Brasil. No entanto, o reino estava muito endividado, tendo ainda como seu maior
credor a Inglaterra.
Em 1885, foi realizada uma conferência em Berlim para deinir que países eu-
ropeus tinham direitos reais sobre as regiões africanas. Portugal reivindicou toda
a região existente entre Moçambique e Angola, o que foi referendado pela confe-
rência. A Inglaterra, entretanto, não aceitou tal decisão, pois tinha interesses em
parte desses territórios. Diante da insistência do governo português em tal pro-
posta, a Inglaterra apresenta um ultimatum, em 11 de janeiro de 1890, para que
Portugal desistisse de sua pretensão, ou então à força militar. A coroa portuguesa
foi obrigada a abrir mão de seus intentos, com alto custo político. Houve uma
comoção geral entre os portugueses e uma forte reprovação do que foi entendi-
do como “covardia” da corte portuguesa. Após esse episódio, o republicanismo
ganhou mais força em Portugal e em 1908, o rei D. Carlos (1863-1908) e seu ilho
foram mortos. Em 1910, foi proclamada a República.
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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
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O império português
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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
Salazar morre em 1970, mas seu regime perdurou até 1974, quando aconte-
ceu a Revolução dos Cravos. Na sequência, as colônias africanas proclamaram
suas respectivas independências. Portugal deixou de ser uma nação que abarca
os cinco continentes, acabou circunscrita a suas fronteiras europeias, além das
ilhas da Madeira e dos Açores, mantendo como possessão apenas a cidade de
Macau, na China, que no ano de 1999 passou a reintegrar o território chinês.
O im do império
Com o im político do império colonial e o ingresso de Portugal na União
Europeia, o imaginário português sofreu grandes transformações, pois as novas
gerações passaram mais do que nunca a ter na identidade europeia uma identi-
dade concorrente com a portuguesa.
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O império português
Texto complementar
Como el-rei mandou Vasco da Gama
ao descobrimento da Índia
(BARROS, s.d., p. 2-4)
Como el-rei dom Manuel, no segundo ano do seu reinado, mandou Vasco
da Gama com quatro velas ao descobrimento da Índia.
Falecido el-rei dom João, sem legítimo ilho que o sucedesse no reino, foi
alevantado por rei (segundo ele deixará o seu testamento) o duque de Beja,
dom Manuel, seu primo co-irmão, ilho do infante dom Fernando, irmão de
el-rei dom Afonso; a quem por legítima sucessão era devida esta real heran-
ça, da qual recebeu posse pelo cetro dela, que lhe foi entregue em Alcácer
do Sal, a 27 dias de outubro do ano de nossa redenção de 1495; sendo em
idade de 26 anos, 4 meses e 25 dias (como mui particularmente escrevemos
em outra nossa parte intitulada Europa, e ali em sua própria crônica).
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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
estados não sabidos, movia já esta repartição, não tendo mais ante os olhos
que esperança deles e algumas amostras do que se tirava do bárbaro Guiné,
que seria vindo a este reino quanto se dizia daquelas partes orientais.
Porém, a estas razões houve outras em contrário que, por serem confor-
mes ao desejo de el-rei, lhe foram mais aceites. E as principais que o move-
ram, foram herdar esta obrigação com a herança do reino, e o infante dom
Fernando, seu pai ter trabalhado neste descobrimento, quando por seu
mandado se descobriu às ilhas de Cabo Verde, e mais por singular afeição
que tinha à memória das cousas do infante dom Henrique, seu tio, que fora
o autor do novo título do senhorio de Guiné que este reino houve, sendo
propriedade mui proveitosa sem custo de armas e outras despesas que
têm muito menores estados do que ele era. Dando por razão inal, aqueles
que punham os inconvenientes a se a Índia descobrir, que Deus, em cujas
mãos ele punha este caso, daria os meios que convinham à bem do estado
do reino.
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O império português
desta viagem, e disso lhe tinha mandado fazer sua instrução, pela novidade
da empresa que levava, quis usar com ele da solenidade que convém a tais
casos, fazendo esta fala pública, a ele e aos outros capitães, perante algumas
pessoas notáveis que eram presentes, e para isso chamadas:
“Depois que aprouve a Nosso Senhor que eu recebesse o cetro desta real
herança de Portugal, mediante a sua graça, assi por haver a benção de meus
avós de quem a eu herdei, os quais com gloriosos feitos e vitórias que houve-
ram de seus inimigos a tem acrescentado por ajuda de tão leais vassalos e ca-
valeiros como foram aqueles donde vós vindes, como por causa de agalardo-
ar a natural lealdade e amor com que todos me servis, a mais principal cousa
que trago na memória, depois do cuidado de vos reger e governa em paz e
justiça, é como poderei acrescentar o patrimônio deste meu reino, para que
mais liberalmente possa distribuir por cada um o galardão de seus serviços.
E considerando eu por muitas vezes qual seria a mais proveitosa e honrada
empresa e digna de maior gloria que podia tomar para conseguir esta minha
tenção, pois, louvado Deus, destas partes da Europa em as de África a poder
de ferro, temos lançado os mouros, e lá tomando os principais lugares dos
portos do reino de Fez que é a nossa conquista, achou que nenhuma outra
é mais conveniente a este meu reino (como algumas vezes convosco tenho
consultado) que o descobrimento da Índia e daquelas terras orientais. Em as
quais partes, pero que sejam mui remotas da Igreja Romana, espero na pie-
dade de vós que não somente a fé de nosso Senhor Jesus Cristo seu ilho seja
por nossa administração publicada e recebida, com que ganharemos galar-
dão ante ele, fama e louvor acerca dos homens, mas ainda reinos e novos
estados com muitas riquezas vindicada por armas das mãos dos bárbaros,
dos quais meus avós com a ajuda, e serviço dos vossos e vosso, tem conquis-
tado este meu reino de Portugal, e acrescentado à coroa dele. Porque, se da
costa da Etiópia, que quase de caminho é descoberta, este meu reino tem
adquirido novos títulos, novos proveitos e renda, que se pode esperar indo
mais adiante com este descobrimento, se não podermos conseguir aquelas
orientais riquezas tão celebradas dos antigos escritores, parte das quais por
comércio tem feito tamanhas potências como são Veneza, Gênova, Florença
e outras mui grandes comunidades de Itália. Assi que, consideradas todas
estas cousas de que temos experiência, e também como era ingratidão a
Deus enjeitar o que nos tão favoravelmente oferece, e injuria àqueles prínci-
pes de louvada memória de quem eu herdei este descobrimento, e ofensa a
vós outros que nisso fostes, descuidar-me eu dele por muito tempo; mandei
51
Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
armar quatro velas que (como sabeis) em Lisboa estão de todos prestes para
servir esta viagem de boa esperança. E tendo eu na memória como Vasco
da Gama, que está presente, em todas cousas que lhe de meu serviço foram
entregues e encomendadas, deu boa conta de si, eu o tenho escolhido para
esta ida como leal vassalo e esforçado cavaleiro, merecedor de tão honrada
empresa. A qual espero que lhe Nosso Senhor deixe acabar, e nela a ele e
a mim faça tais serviços com que o seu galardão ique por memória nele
e naqueles que o ajudarem nos trabalhos desta viagem, porque, com esta
coniança, pela experiência que tenho de todos, eu os escolhi por seus aju-
dadores para em todo o que tocar a meu serviço lhe obedecerem. E eu, Vasco
da Gama, vo-los encomendo, e a eles a vós, e juntamente a todos a paz e con-
córdia: a qual é tão poderosa que vence e passa todos perigos e trabalhos
e os maiores da vida faz leves de sofrer, quanto mais os deste caminho que
espero em Deus serem menores que os passados, e que por vós este meu
reino consiga o fruto deles.”
“Eu Vasco da Gama, que ora por mandado de vós, mui alto e muito po-
deroso rei, meu senhor, vou descobrir os mares e terra do oriente da Índia,
juro em o sinal desta cruz, em que ponho as mãos que por serviço de Deus e
vosso, eu a ponha hasteada e não dobrada, ante a vista de mouros, gentios,
e de todo gênero de povo onde eu for, e que por todos os perigos de água,
fogo, e ferro, sempre a guarde e defenda até à morte. E assi juro que na exe-
cução e obra deste descobrimento que vós, meu rei e senhor, me mandais
fazer, com toda fé, lealdade, vigia, e diligência eu vos sirva guardando e cum-
prindo vossos regimentos que para isso me forem dados, até tornar onde ora
estou ante a presença de vossa real alteza, mediante a graça de Deus em cujo
serviço me enviais”.
52
O império português
Dicas de estudo
Filme
Carlota Joaquina, Princesa do Brasil (1994), dirigido por Carla Camuratti, com
Marieta Severo no papel de Carlota Joaquina e Marco Nanini no papel de D. João
VI. É uma sátira muito divertida sobre a presença da coroa portuguesa no Brasil.
Livro
Aqueles que desejarem se aprofundar em seus estudos devem ler este que é
um dos melhores estudos já publicados sobre o assunto.
Estudos literários
1. Quando e como se deu o apogeu do império português?
53
Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
3. Que movimento literário fez forte oposição ao salazarismo? Por que torna-
ram-se referência para os escritores das colônias?
54
O império português
55
Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
56
A gênese do mito de D. Sebastião
Domínio público.
Folha de rosto da edição de 1809
das Trovas do Bandarra.
Mas podemos nos perguntar de onde Bandarra tirou tais profecias. Ele mesmo
nos responde nas duas últimas trovas do “Sonho terceiro”:
Muitos podem responder Logo quero responder,
e dizer: sem me deter:
Com que prova o sapateiro “Se lerdes as profecias
fazer isto verdadeiro, de Daniel e Jeremias,
ou como isto pode ser? por Esdras o podeis ver”. (BANDARRA apud
AZEVEDO, 1984, p. 11)
58
A gênese do mito de D. Sebastião
O mito
Domínio público.
O rei D. Sebastião (1554-1578) foi o
último rei da dinastia de Avis-Beja. Sua his-
tória é relativamente simples: único ilho de
D. João Manuel, que morrera antes mesmo
de o ilho nascer, tornou-se rei com apenas
três anos de idade, tendo sua avó e um tio
assumido a regência do trono enquanto ele
era ainda uma criança. Cresceu com o estig-
ma de ser o único a poder perpetuar a sua
dinastia e, em função disso, ganhou o codi-
nome de o Desejado. D. Sebastião, rei de Portugal.
Os reis que antecederam seu pai, D. Manuel e D. João III, portanto seu avô e
seu bisavô, reinaram no período áureo dos descobrimentos, quando Vasco da
Gama desvendou o caminho marítimo para as Índias, os portugueses chegaram
ao Brasil, a China e ao Japão. Enim, os seus antepassados diretos viveram reina-
dos de glória e fartura.
59
Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
60
A gênese do mito de D. Sebastião
É nesse contexto messiânico que, após a morte de D. João IV, será esperada
sua ressurreição. Na obra do padre Antônio Vieira intitulada De Profecia e Inquisi-
ção, na parte II das “Profecias”, subintitulada “Esperanças de Portugal, quinto im-
pério do mundo, primeira e segunda vida de el-rei D. João o quarto. Escritas por
Gonsalianes Bandarra, e comentadas pelo padre Antônio Vieira da Companhia
de Jesus, e remetidas pelo dito ao bispo do Japão, o Padre André Fernandes”,
assim se diz:
Leiam os curiosos todas as profecias do Bandarra, assim as que contêm os sucessos já passados,
como as que prometem os futuros, e em todas elas não acharão diferença individuante, sinal ou
qualidade pessoal alguma de monarca profetizado, mais que estas que aqui ielmente temos
referido, as quais todas são tão próprias da pessoa d’el-rei D. João o quarto, e lhe quadram todas
tão naturalmente, e sem violência, que bem se está vendo que a ele tinha diante dos olhos,
e não a outro, quem com cores tão vivas, e tão suas o retratava. Com que ica evidentemente
mostrado e demonstrado, que o senhor rei D. João o quarto que está na sepultura, é o rei fatal,
de que em todas as suas profecias fala Bandarra, assim das que já se cumpriram, como das que
hão de suceder ainda. E este mesmo rei está hoje morto e sepultado, e não é amor e saudade,
senão razão e obrigação do entendimento, crer e esperar que há de ressuscitar. (VIEIRA, 2009)
O que temos aqui é uma clara interpretação das profecias de Bandarra não
mais associadas a D. Sebastião e sim a D. João IV. Vieira será um dos grandes de-
fensores da ideia de que seria D. João IV e não D. Sebastião que retornaria para
instituir o quinto império. Este seria o último dos impérios na terra antes do juízo
61
Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
inal, um império cristão que teria em Portugal seu cerne e na igura de D. João
IV, seu rei. E assim argumenta, no mesmo texto acima citado, contra a hipótese
de ser D. Sebastião o rei encoberto:
E já que falamos ou tocamos nestas velhices que tanto duram, só digo a vossa senhoria que
o Bandarra não falou uma só palavra em el-rei D. Sebastião, antes todas as suas desfazem
esta esperança; porque o rei que descreve é todo composto de propriedades contrárias que
implicam totalmente com el-rei D. Sebastião, e senão façamos outra individuação às avessas
da passada.
El-rei de que tratamos chama-lhe Bandarra, rei novo: el-rei D. Sebastião é rei tão velho que
nascido de três anos começou a ser rei. Diz Bandarra que o seu nome é João. El-Rei D. Sebastião
tem outro nome muito diferente. Este rei chama-lhe Bandarra infante: el-rei D. Sebastião nunca
foi infante, porque nasceu príncipe. Este rei diz Bandarra que é bem andante e feliz: el-rei D.
Sebastião infelicíssimo, e a causa de todas as nossas infelicidades. A este diz Bandarra saia, saia:
a el-rei D. Sebastião dizia todo o povo e reino não saia, não saia. Este rei diz Bandarra que não é
de casta goleima ou da casa de Áustria: el-rei D. Sebastião tinha todo o sangue de Carlos V. Este
rei diz Bandarra que é só primo e parente de reis: el-rei D. Sebastião era neto de reis por seus
pais, e de imperadores por sua mãe. Este rei diz Bandarra, que tem um irmão bom capitão: el-rei
D. Sebastião nem teve, e não pode ter irmão; porque nem o príncipe D. João, seu pai, nem a
princesa D. Joana, sua mãe, tiveram outro ilho. Este diz Bandarra que é das terras da comarca:
el-rei D. Sebastião não é da comarca, porque nasceu em Lisboa. Este rei diz Bandarra que havia
de ter guerra com Castela no princípio do seu reinado: el-rei D. Sebastião nunca teve guerra com
Castela. Este rei diz Bandarra que da justiça se preza: el-rei D. Sebastião prezava-se das forças e
valentia. Este rei diz Bandarra, que até certo tempo lhe não hão de dar a mão os pontíices. El-rei
D. Sebastião teve grandes favores dos pontíices do seu tempo Paulo IV, Pios IV e V. Este rei
diz Bandarra que lhe não achou nenhum senão: el-rei D. Sebastião se não fora a África não nos
perdera: veja-se se foi grande senão. Finalmente, porque nos não cansemos mais em prova de
coisa tão clara, tirado somente ser el-rei D. Sebastião semente d’el-Rei D. Fernando, nenhuma coisa
diz Bandarra em todos os textos dos sinais ou qualidades do rei que descreve que possam
acomodar, nem de muito longe a el-rei D. Sebastião. (VIEIRA, 2009)
Durante o próprio reinado de D. João IV, sua ação já era tomada de forma
profética, como se tudo que izesse já estivesse escrito. Esse rei que trouxe de
volta a soberania portuguesa sempre esteve envolto em uma perspectiva his-
tórica de viés utópico segundo a qual Portugal cumpriria um grande destino na
cristandade.
62
A gênese do mito de D. Sebastião
Para João Francisco Marques, a “utopia era, pois, um poderoso motor para
impulsionar a mística da luta pela consolidação da recuperada autonomia. Na
verdade, o advento do quinto império seria o corolário da guerra contra Castela e
do reatar da expansão ultramarina de quinhentos” (MARQUES, 2009).
O fato é que no plano simbólico D. Sebastião é deposto por Vieira, mas conti-
nuará a ter seus defensores e cultuadores que, especialmente nos séculos XIX e
XX, irão revitalizar o mito. Poetas como João de Lemos (1819-1890), Luis Augusto
Palmeirim (1825-1893), Guerra Junqueiro (1850-1923), Luís de Magalhães (1859-
1935), António Nobre (1867-1900), Afonso Lopes Vieira (1878-1946), Teixeira de
Pascoaes (1877-1952), Antônio Sardinha (1888-1925) e Fernando Pessoa (1888-
1935), entre outros, retomarão o mito de D. Sebastião, identiicando ali um ar-
quétipo privilegiado para promover uma espécie de renascimento da cultura e
da identidade portuguesas.
Vale notar que também no Brasil o mito de D. Sebastião foi cultivado, geral-
mente ligado a vários movimentos messiânicos ocorridos no país. Ainda hoje,
muitos escritores portugueses e mesmo brasileiros retomam literariamente o
mito de D. Sebastião em abordagens em geral bastante originais.
Esse é um mecanismo que muito tem a ver com a história de Portugal, pois
grande e imperialista no século XVI, aquela nação perdeu seu lugar de prestígio
no cenário europeu e passou a ocupar um lugar cultural e economicamente pe-
riférico no continente a partir dos séculos XVII e XVIII, assim permanecendo até
sua inserção no que hoje conhecemos como União Europeia.
Portanto, durante o século XIX e por quase todo o século XX, as elites de Por-
tugal estiveram à margem dos grandes acontecimentos do continente, sempre
63
Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
Texto complementar
O texto abaixo, de autoria do cordelista Luar do Conselheiro (Aidner Mendez
Neves), vem demonstrar como o sebastianismo ainda vive no imaginário da lite-
ratura de cordel brasileira. Antecedendo o texto, aparece a seguinte nota:
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A gênese do mito de D. Sebastião
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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
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A gênese do mito de D. Sebastião
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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
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A gênese do mito de D. Sebastião
Dicas de estudo
QUADROS, Antônio. Poesia e Filosoia do Mito Sebastianista. Lisboa: Guima-
rães Editores, 2001.
Estudos literários
1. Que relação podemos estabelecer entre as profecias de Bandarra e o mito
sebastianista?
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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
2. Por que o padre Antônio Vieira rejeita D. Sebastião como o Encoberto e coloca
D. João IV em seu lugar?
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A gênese do mito de D. Sebastião
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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
72
O sebastianismo na Literatura Portuguesa
O tema
O dia vinha amanhecendo no acampamento daquele exército inter-
nacional que, no entanto, era formado em sua maioria por portugueses e
tinha em seu comando um rei também português. O calor já se fazia sentir
forte logo nas primeiras horas, prenunciando assim mais um dia escaldan-
te. Apesar de ter um dos climas mais quentes da Europa, os portugue-
ses não se sentiam à vontade com as temperaturas e umidades africanas.
E o que dizer então dos alemães e holandeses que estavam juntos com
eles, assim como espanhóis e italianos? Era o dia de verão de 4 de agosto
de 1578 e esses homens se encontravam próximos à fortaleza de Alcácer
Quibir, no interior do Marrocos, preparando-se para uma grande batalha.
Quem poderia imaginar que uma expedição militar que havia sido ini-
ciada de maneira muito festiva e cheia de grandes expectativas em Por-
tugal, cujas escalas em portos espanhóis e africanos também tinham sido
marcadas por festas e celebrações, pudesse começar o dia com tamanha
angústia de morte. Durante a noite, e nos dias anteriores, os comandantes
portugueses e estrangeiros se debateram com a decisão de manter ou
suspender a operação militar, bater em retirada, a im de se reorganizarem
e avaliarem a situação. O dilema era imenso. Um recuo desses antes de
qualquer batalha (sim, por que ainda não havia ocorrido nenhum comba-
te) traria uma enorme humilhação aos europeus, bem como perdas pesa-
das durante a retirada, que não seria assistida passivamente pelos inimi-
gos, os mouros do Marrocos.
reunindo e treinando uma grande massa de recrutas portugueses. Até uma inu-
sitada aliança com o sultão Moulay Mohammed, deposto rei mouro do Marrocos
que se dispusera a lutar ao lado dos europeus a im de retomar o trono perdido
para Muley Moluco, o líder mouro a ser batido pelos portugueses. Por tudo isso, o
jovem rei não podia acreditar no conselho de seus generais: – Debandar? Fugir?
Porventura os próprios que aqui estais, não sois aqueles que me dissestes em Portugal, que todas
as diiculdades, que agora nos parecem grandes, estavam fáceis? Que diziam que os mouros
não eram homens que ousassem a esperar meu campo, com o qual poderia sem risco algum
apoderar-me de África? E agora que me vedes aqui dizeis o contrário, parece-vos que sentis
bem de minha reputação em dizer que me retire e perca a artilharia, ou que aguarde a perder
esta gente deixando-a morrer de fome, perdendo com seu valor honra e vida? (apud LOUREIRO,
1989, p. 232 – atualizamos a ortograia e um pouco do texto para melhor compreensão)
A batalha
Enim, o dia da grande ba- Domínio público.
74
O sebastianismo na Literatura Portuguesa
Como terrível ironia da história, os três reis presentes à batalha foram mortos:
ao que tudo indica, o rei português foi cercado pelos mouros e não acei-
tou se render;
Tal esperança se fez ainda mais presente e aguda dois anos após a batalha,
quando faleceu o cardeal D. Henrique (1512-1580), tio-avô de D. Sebastião e
herdeiro do trono, sem deixar nenhum outro sucessor direto para o trono lu-
sitano. Apesar da fé popular depositada no oportuno retorno do rei derrotado
na África, isso não se concretizou e o trono português passou às mãos do rei
espanhol D. Filipe II (1527-1598), iniciando-se então um período de 60 anos em
que Portugal icou sem autonomia política.
A lógica do sebastianismo
O episódio narrado acima é apenas o núcleo histórico daquilo que se con-
vencionou chamar de sebastianismo, havendo a necessidade de se entender
os antecedentes e as consequências da derrota em Alcácer Quibir para que se
possa ter uma visão mais completa do sebastianismo em Portugal. Antes, é pre-
ciso alertar o leitor de que os detalhes de nosso relato acerca da batalha não
são indiscutíveis, pois a documentação e as fontes sobre o que de fato ocorreu
naquele dia são controversas – os historiadores ainda se debatem com o escla-
recimento desse evento. No entanto, em sua formulação geral, a nossa descrição
é tão bem fundamentada como qualquer outra.
75
Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
76
O sebastianismo na Literatura Portuguesa
Como se vê, tais profecias foram compostas antes de Alcácer Quibir, antes
mesmo de D. Sebastião nascer, mas caíram como uma luva para as esperanças
portuguesas depois do desastre no Marrocos e passaram a ser interpretadas
como se referindo ao rei desaparecido e à sua futura volta para revigorar os
destinos da nação. As trovas de Bandarra passaram a ser cultuadas tanto pelas
camadas mais humildes como por patriotas e nacionalistas de todas as classes,
conigurando assim as “escrituras” dessa nova seita messiânica.
77
Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
Domínio público.
único editado em vida pelo poeta Fernando Pessoa,
e é uma obra ortonímica. Trata-se de um conjunto
de poemas que retoma a história das navegações
e tem como seu horizonte literário Os Lusíadas, de
Camões, mas de uma perspectiva sebastianista.
Tais poemas foram muito inluenciados pelo sau-
dosismo de Teixeira de Pascoaes.
1
Conforme um de seus mais conhecidos poemas: “O poeta é um ingidor./ Finge tão completamente/ Que chega a ingir que é dor/ A dor que
deveras sente” (PESSOA, 1983, p. 98).
78
O sebastianismo na Literatura Portuguesa
A estrutura de Mensagem
O livro Mensagem foi composto durante pouco mais de 20 anos (1913-1934).
Diferentemente de Os Lusíadas, não se trata de uma narrativa, um poema épico,
mas sim de composições poéticas individuais que vão se reportando a eventos e
personagens históricos, em uma sequência predeterminada, a im de contar a his-
tória de Portugal desde sua fundação até chegar às grandes navegações e ao rei D.
Sebastião. Mensagem possui ao todo 44 poemas e é dividido em três partes:
Brasão
1. Os Campos
Primeiro: O dos castelos
Segundo: O das quinas
2. Os Castelos
Primeiro: Ulisses
Segundo: Viriato
Terceiro: O conde D. Henrique
Quarto: D. Tareja
Quinto: D. Afonso Henriques
Sexto: D. Dinis
Sétimo (I): D. João o primeiro
Sétimo (II): D. Filipa de Lencastre
3. As Quinas
Primeira: D. Duarte, rei de Portugal
Segunda: D. Fernando, infante de Portugal
Terceira: D. Pedro, regente de Portugal
Quarta: D. João, infante de Portugal
Quinta: D. Sebastião, rei de Portugal
4. A Coroa
Nun’Álvares Pereira
79
Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
5. O Timbre
A cabeça do grifo: o infante D. Henrique
Uma asa do grifo: D. João o segundo
A outra asa do Grifo: Afonso de Albuquerque
Mar português
I. O infante
II. Horizonte
III. Padrão
IV. O mostrengo
V. Epitáio de Bartolomeu Dias
VI. Os colombos
VII. Ocidente
VIII. Fernão de Magalhães
IX. Ascensão de Vasco da Gama
X. Mar Português
XI. A última nau
XII. Prece
O encoberto
1. Os Símbolos
Primeiro: D. Sebastião
Segundo: O quinto império
Terceiro: O desejado
Quarto: As ilhas afortunadas
Quinto: O encoberto
2. Os Avisos
Primeiro: Bandarra
Segundo: António Vieira
Terceiro: (‘Screvo meu livro à beira-mágoa)
80
O sebastianismo na Literatura Portuguesa
3. Os Tempos
Primeiro: Noite
Segundo: Tormenta
Terceiro: Calma
Quarto: Antemanhã
Quinto: Nevoeiro
Domínio público.
corresponde ao início da história de
Portugal. A primeira pergunta que nos O timbre
surge é: o que signiica o título dessa
parte? O autor se refere ao escudo
A coroa
heráldico de Portugal, o brasão que
representava a coroa portuguesa. Ob-
servando a igura do brasão ao lado, As quinas
podemos entender como essa parte se
subdivide: Os castelos
Os campos; Os campos
Os castelos;
As quinas;
A coroa; e
O timbre.
Ao todo, esta parte conta 19 poemas, na sua maioria sobre iguras da história
portuguesa.
81
Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
O mito da fundação de Lisboa diz que em seu retorno para Ítaca, Ulisses, o
grande herói da Guerra de Troia, passou pela foz do rio Tejo e lá construiu uma
magníica cidade. Pessoa aproveita o tema para, contrariando o senso comum,
insistir na superioridade da lenda em relação aos fatos reais: é o mito que cria o
mundo, enquanto a vida é apenas uma sombra.
Nesse ponto, destaca-se o poema “A última nau”, uma das mais preciosas
chaves do livro:
82
O sebastianismo na Literatura Portuguesa
Ah, quanto mais ao povo a alma falta, Não sei a hora, mas sei que há a hora,
Mais a minha alma atlântica se exalta Demore-a Deus, chame-lhe a alma embora
E entorna, Mistério.
E em mim, num mar que não tem tempo Surges ao sol em mim, e a névoa inda:
ou ’spaço,
A mesma, e trazes o pendão ainda
Vejo entre a cerração teu vulto baço
Do Império.
Que torna.
(PESSOA, 1983, p. 16)
Os símbolos;
Os avisos; e
Os tempos.
Nesta terceira parte, são 13 poemas ao todo, ainda aparecendo iguras histó-
ricas, mas predominando os temas abstratos. Trataremos desses últimos poemas
na seção seguinte.
83
Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
A segunda parte, como vimos, termina com o poema “A última nau” (em que
D. Sebastião parte, ainda representando o grande império português, e não re-
torna mais) e uma outra composição chamada “Prece” (em que é feito uma sú-
plica a Deus para que a “chama do esforço” lusíada, quase apagada pelas cinzas
da história, seja reavivada e novamente a “Distância – do mar ou outra” seja
conquistada). Esses dois poemas coniguram assim a decadência do país após a
partida de D. Sebastião e a necessidade de Portugal se superar para retomar sua
grandeza. Nesse sentido, a terceira parte, “O encoberto”, vai se concentrar nos
sinais e profecias que estariam indicando o momento do renascimento.
Mas os sinais, “Os símbolos”, não estão apenas dispersos na história, pois há
“Os avisos”, os profetas e os poetas (um dos bons sinônimos de poeta é vate, cuja
etimologia o liga a vaticínio, “profecia”) que ao longo dos séculos foram reunindo
esses símbolos e, de forma oracular, revelaram o futuro:
84
O sebastianismo na Literatura Portuguesa
Terceiro
‘Screvo meu livro à beira-mágoa.
Meu coração não tem que ter.
Tenho meus olhos quentes de água.
Só tu, Senhor, me dás viver. (PESSOA, 1983, p. 20)
Trata-se do próprio autor, do vate Fernando Pessoa, que assim assume a más-
cara de profeta e se inscreve na ilustre corrente de oráculos sebastianistas. É ele
quem indaga: “Quando virás, ó encoberto,/ Sonho das eras português” (PESSOA,
1983, p. 21). A resposta é... o próprio livro Mensagem.
Nem rei nem lei, nem paz nem guerra, Ninguém sabe que coisa quer.
Deine com peril e ser Ninguém conhece que alma tem,
Este fulgor baço da terra Nem o que é mal nem o que é bem.
Que é Portugal a entristecer — (Que ânsia distante perto chora?)
Brilho sem luz e sem arder, Tudo é incerto e derradeiro.
Como o que o fogo-fátuo encerra. Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro...
O sebastianismo na contemporaneidade
O mito sebástico continua estimulando o talento de poetas e outros artistas
portugueses. Para citar apenas um exemplo, o romancista Almeida Faria, no seu
título mais recentemente publicado, O Conquistador (1990), retoma D. Sebastião
em uma paródia de múltiplas possibilidades interpretativas. Mas, nessa subse-
ção, para variar, não abordaremos literatura iccional contemporânea e sim a
crítica literária.
86
O sebastianismo na Literatura Portuguesa
O quinto império concebido por Pessoa, em suma, pode ser entendido como regresso às
origens – as origens autenticamente cristãs e pagãs da nossa civilização. [...] Como seria essa
nova civilização? [...] Podemos imaginar que o quinto império resultaria da criação de uma
sociedade formada por homens capazes de realizar a plenitude de suas potencialidades; quer
enquanto indivíduos, quer enquanto ser coletivo. Uma sociedade em que o acúmulo de bens
materiais deixasse de ser o ideal supremo buscado pela maioria; em que não houvesse lugar
para a superstição e a ignorância, em que o conhecimento racional regesse todas as relações;
em que o povo não fosse mais a massa de manobra obscurecida e fanatizada, manipulada pelas
elites econômicas, políticas ou religiosas; em que as pessoas fossem realmente indivíduos, na
plena posse de sua consciência e vontade; uma sociedade, em suma, onde houvesse menos
“cadáveres adiados que procriam” e mais, muito mais “heróis, santos e gênios” – a exceção
tornada regra. (MOISÉS, 1996, p. 81)
Eis aqui uma breve amostra de como o sebastianismo pessoano continua pro-
vocando críticos e estudiosos, produzindo assim novas e diversas interpretações
de sua grande obra Mensagem. Fica, portanto, o convite ao leitor que se deixou
apaixonar pelo sebastianismo de Pessoa que procure outros intérpretes de nosso
vate, a im de talvez vir a propor também novos signiicados a essa Mensagem.
87
Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
Texto complementar
Este excerto é a última parte de um artigo em que Pessoa analisa a moderna
poesia portuguesa (o artigo foi publicado originariamente no quarto número da
revista A Águia, em 1912), sendo mantida a ortograia do português europeu. Além
disso, há neste trecho duas coisas interessantes: a antecipação do espírito sebas-
tianista que inspira o livro Mensagem, a ideia (defendida por alguns intérpretes) de
que o supra-Camões previsto no artigo se trate do próprio Fernando Pessoa.
88
O sebastianismo na Literatura Portuguesa
Pode objectar-se, além de muita coisa desdenhável num artigo que tem
de não ser longo, que o actual momento político não parece de ordem a
gerar génios poéticos supremos, de reles e mesquinho que é. Mas, é precisa-
mente por isso que mais concluível se nos aigura o próximo aparecer de um
supra-Camões na nossa terra. É precisamente este detalhe que marca a com-
pleta analogia da actual corrente literária portuguesa com aquelas, francesa e
inglesa, onde o nosso raciocínio descobriu o acompanhamento literário das
89
Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
Que o mal e o pouco do presente nos não deprimam nem iludam: são eles
que conirmam o nosso raciocínio. Tenhamos a coragem de ir para aquela
louca alegria que vem das bandas para onde o raciocínio nos leva! Prepara-se
em Portugal uma renascença extraordinária, um ressurgimento assombroso.
O ponto de luz até onde essa renascença nos deve levar não se pode dizer
neste breve estudo; desacompanhada de um raciocínio conirmativo, essa
previsão pareceria um lúcido sonho de louco.
Tenhamos fé. Tornemos essa crença, ainal, lógica, num futuro mais glo-
rioso do que a imaginação o ousa conceber, a nossa alma e o nosso corpo,
o quotidiano e o eterno de nós. Dia e noite, em pensamento e acção, em
sonho e vida, esteja connosco, para que nenhuma das nossas almas falte à
sua missão de hoje, de criar o supra-Portugal de amanhã.
Dicas de estudo
Nossa sugestão vai para a leitura na íntegra dos textos críticos comentados
na subseção “O sebastianismo na contemporaneidade”.
DAL FARRA, Maria Lúcia. Notas para uma futura compreensão. In: IANNONE,
Carlos Alberto; GOBBI, Márcia V. Zamboni; JUNQUEIRA, Renata Soares (Orgs.).
Sobre as Naus da Iniciação: estudos portugueses de literatura e história. São
Paulo: Fundação Editora da Unesp, 1998.
90
O sebastianismo na Literatura Portuguesa
Estudos literários
1. Segundo cronistas e historiadores, quais teriam sido as causas da fragorosa
derrota do exército do rei D. Sebastião na Batalha de Alcácer Quibir?
91
Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
92
O sebastianismo na Literatura Portuguesa
93
Saudade e saudosismo
na Literatura Portuguesa
A saudade
Floresce entre os Portugueses a saudade por duas causas, mais certas em nós que em
outra gente do mundo; porque de ambas estas causas têm o seu princípio. Amor e ausên-
cia são os pais da saudade; e como o nosso natural é, entre as mais nações, conhecido por
amoroso, e as nossas dilatadas viagens ocasionam as maiores ausências; de aí vem que
donde se acha muito amor e ausência larga, as saudades sejam mais certas, e esta foi sem
falta a razão por que entre nós habitassem, como em seu natural centro.
1
Neste caso, sensualidade signiica “sensibilidade, sensação”.
2
Neste caso, nojo signiica “sofrimento”.
3
Dar prazer.
Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
96
Saudade e saudosismo na Literatura Portuguesa
Menina e Moça é uma longa narrativa em prosa cuja característica mais desta-
cada é o fato de o narrador, em primeira pessoa, ser uma mulher, algo incomum
nas novelas da época. Muitos estudiosos fazem um paralelo entre Menina e Moça
e as cantigas de amigo – da época trovadoresca –, que também apresentavam
um eu poético feminino. Nessa novela de Bernardim – assim como em seus
poemas –, o amor é sempre sinônimo de insatisfação, os desejos se mantêm ir-
realizados e o sofrimento é a tônica da vida. A narradora passa os dias sozinha, à
beira de um regato, a chorar. E é nesse estado que ela conta eventos de sua vida
e as histórias que ouviu contar.
97
Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
De saudade quisera eu dizer ainda alguma coisa. – Saudade, palavra, cuido que vem, por
derivação oblíqua, do latino solitudo. Oblíqua digo, porque direitamente derivaram os nossos
de solitudo, solidão, soidão e depois soledade, soidade, inalmente saudade. De modo que,
por esta síntese (ou pela análise, que é óbvia), se vem a entender claramente que o verdadeiro
sentido de saudade é – os sentimentos ou pensamentos da soledade ou solidão ou soidão; o
desejo melancólico do que se acha na solidão, ausente, isolado de objectos por que suspira,
amigos, amante, pais, ilhos etc. – E tanto por saudade se deve entender este desejo do ausente
e solitário, que os Latinos, à míngua de mais próprio termo, o expressavam pelo seu desiderium.
(GARRETT, s/d, p. 189, 191)
98
Saudade e saudosismo na Literatura Portuguesa
A estrofe de abertura do canto primeiro de Camões surge para nós como uma
síntese de tudo o que até agora discutimos sobre a saudade. Seguindo a forma
épica, esse texto seria a invocação às musas, que no caso não é nenhuma das
deusas gregas, mas sim a Saudade. O narrador é o próprio Garrett que, depois
de anos de ausência de seu país e de muitas aventuras, suplica então à nova
musa Saudade que lhe inspire a dor, o prazer e a beleza causadas pela distância
de Portugal, dos amigos e amados, e pela solidão – para que então possa com
talento cantar Camões, que como ele fora poeta, guerreiro, aventureiro, solitário
etc. e padecera de saudades.
99
Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
É nesse quadro de solidão, ausência e desejo que nosso autor vai enquadrar
Camões: há a saudade de Camões pela pátria (durante sua peregrinação pela
Ásia e a redação de Os Lusíadas) e a saudade dos portugueses oitocentistas pelas
glórias do século XVI, das quais o autor da grande epopeia lusitana se revelaria
o símbolo máximo.
100
Saudade e saudosismo na Literatura Portuguesa
A essa atmosfera crepuscular, Nobre vai adicionar uma visão infantil, vendo
o mundo de uma perspectiva aparentemente ingênua. A seleção de palavras
simples indica uma aproximação com o povo e, o pessimismo dos versos não é
propriamente individual, pois a situação de miséria que se sente nesses versos
tem na verdade um sentido nacional – é de todo o país.
Saudade
bem na sentiste,
101
Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
Galeões e andorinhas
No seu enxoval.
Saudades! e canta, na Torre deu a hora
Da sua novena: Olhai-a ! dá
ares de Nossa Senhora,
Quando era pequena. [...] (NOBRE, 1979, p. 69)
102
Saudade e saudosismo na Literatura Portuguesa
Pascoaes, grande poeta desse período. Junto com outros, eles fundaram uma or-
ganização de cunho sociocultural chamada Renascença Portuguesa (1912). Entre
outras atividades, essa organização publicou uma revista mensal de literatura e
cultura, A Águia, que seria o grande veículo do saudosismo. Sua proposta era:
Dar um sentido às energias intelectuais que a nossa Raça possui: isto é, colocá-las em condições
de se tornarem fecundas, de poderem realizar o ideal que, neste momento histórico, abrasa
todas as almas sinceramente portuguesas: – Criar um novo Portugal, ou melhor, ressuscitar a
Pátria Portuguesa. (apud DAUNT, 2006, p. 225-226)
Para se ter uma ideia da validade de tais propósitos, vamos assinalar que, não
obstante todo o esforço desse grupo e de outros empenhados em prol do novo
regime político, a instabilidade social e econômica de Portugal não se resolveu,
possibilitando que partidos e facções conservadores e reacionários ganhassem
força dentro da sociedade lusa e conseguissem dar um golpe de Estado em 1926,
instaurando uma ditadura fascista que durou longos 48 anos. Foi o período do
Estado Novo do ditador António de Oliveira Salazar (1889-1970).
103
Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
104
Saudade e saudosismo na Literatura Portuguesa
Talvez alguns possam achar tudo isso muito absurdo ou fantasioso, mas essa
relexão e argumentação estão muito bem calcadas na melhor tradição ilosóica
do Ocidente, não podendo ser simplesmente descartadas assim sem mais nem
menos. Só para se ter uma boa ideia disso, o pensamento saudosista seduziu
grandes poetas e pensadores, como Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro,
nomes maiores do modernismo português, e entre os melhores da língua por-
tuguesa. E as bases desse pensamento ainda continuam inluenciando a ilosoia
e as artes contemporâneas.
O que nos interessa agora é como tal parafernália ilosóica vai instrumenta-
lizar a poética saudosista e como será essa poesia. Em uma de suas vertentes,
Pascoaes vai buscar no passado glorioso de Portugal a fonte para revigorar a sua
sociedade. É o próprio poeta que formula essa busca: “A Saudade procurou-se no
período quinhentista, sebastianizou-se no período da decadência, e encontrou-
se no período atual” (apud BELCHIOR, 1973, p. 14).
105
Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
Painel
Num cerro do Marão
Estranha luz meus olhos deslumbrou;
E em corpo de lembrança divaguei
Além dos horizontes,
E toda a pátria terra percorri,
E o mar e o céu azul,
Onde os anjos da velha Lusitânia
Voam como através da nossa fantasia. (PASCOAES, 1973, p. 9)
106
Saudade e saudosismo na Literatura Portuguesa
Domínio público.
quentar a universidade e assumir proissões até
então exclusivas dos homens. Ela estudou Direi-
to em Lisboa, sendo uma das primeiras mulheres
portuguesas nesse curso. Por esse arrojo e deter-
minação, ela é vista como uma ativista feminis-
ta, o que nem sempre parece ser algo líquido e
certo: a poeta nunca demonstrou muito interes-
se político ou social, mostrando-se, ao contrário,
bem integrada à vida pequeno-burguesa em
Florbela Espanca.
suas condições socioculturais. Semelhante ati-
tude contrasta com o comportamento de uma
ativista do feminismo.
Outra faceta de sua vida que também contribuiria para a imagem de feminis-
ta é o fato de ter se casado três vezes, havendo se divorciado dos dois primeiros
maridos – algo de muito signiicativo no começo do século XX, e em uma socie-
dade bastante patriarcal e conservadora.
107
Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
sos eróticos, sua poesia se apresenta como um verdadeiro relato íntimo. Seria
uma forma de poesia confessional, com a angustiante experiência sentimental
de uma mulher inteligente e emancipada em busca de uma relação amorosa
que transcendesse as convenções sociais de sua época.
Por im, vamos ver como Florbela se apropria do tema e o transforma em uma coisa
muito própria. Demonstrando sua inserção no mundo saudosista, o título do último
livro publicado em vida o denuncia de forma literal: O Livro de Sóror Saudade.
Esse é o soneto que abre o livro e ele traz de imediato uma forte carga con-
fessional, uma forma autobiográica. Em seus versos, o eu poético se reporta a
alguém muito querido – tudo indica uma igura masculina – que, EM um mo-
mento de ternura, deu-LHE o apelido de Sóror Saudade. Na vida real, Sóror Sau-
dade foi a designação que um colega da faculdade, o poeta Américo Durão (a
quem o poema é dedicado) havia dado a Florbela em um soneto publicado por
ele um pouco antes.
108
Saudade e saudosismo na Literatura Portuguesa
Em seus poemas, Florbela também expõe sem escrúpulos seus desejos amo-
rosos e eróticos, cuja impossibilidade de realização – em parte pelas restrições
sociais, em parte por não encontrar uma alma gêmea que a satisizesse – leva
a poeta, em certos momentos de sua obra, a sublimar tais intensos sentimen-
tos em uma nostálgica volta à infância, aos locais de sua meninice (em especial
Évora) e a uma natureza idealizada. Isso tudo é algo muito parecido àquilo que
Teixeira de Pascoaes dizia ser a saudade do ser por uma plenitude passada que
fora perdida.
Precursores do Modernismo
O saudosismo de Teixeira de Pascoes foi o viveiro literário em que grandes
nomes do Modernismo germinaram e se desenvolveram. Fernando Pessoa pu-
blicou vários de seus poemas na revista A Águia, o órgão oicial do movimento.
Mas, não foi só de publicações que se deu a ligação de Pessoa com o saudosismo:
ele foi fortemente tocado por essa doutrina, da qual deriva uma parte inicial de
sua poesia, em especial o conjunto de poemas de Mensagem (1934) o único livro
que o poeta publicou em vida.
109
Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
Prece
Senhor, a noite veio e a alma é vil.
Tanta foi a tormenta e a vontade!
Restam-nos hoje, no silêncio hostil,
O mar universal e a saudade. [...] (PESSOA, 1983, p. 17)
Depois das grandes façanhas, a decadência (“a noite veio”), e o que sobrou
foram as marcas deixadas pelas navegações (“o mar universal”) e a saudade dos
grandes tempos. Mas, embaixo das cinzas da decadência ainda há a chama do
heroísmo e da competência, que é a alma lusitana, e pode haver um vento que
espalhe as cinzas e reavi essa brasa:
Dá o sopro, a aragem — ou desgraça ou ânsia —
Com que a chama do esforço se remoça,
E outra vez conquistaremos a Distância —
Do mar ou outra, mas que seja nossa! (PESSOA, 1983, p. 17)
um grupo publicará Orfeu, uma revista da qual Fernando Pessoa fez parte,
e que resultará no movimento Orismo;
110
Saudade e saudosismo na Literatura Portuguesa
Texto complementar
Eduardo Lourenço é um dos intelectuais portugueses mais respeitados na
atualidade. Filósofo e ensaísta, boa parte de sua obra é dedicada a uma “psicaná-
lise” da alma portuguesa.
111
Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
112
Saudade e saudosismo na Literatura Portuguesa
Talvez não seja por acaso que devamos a Teixeira de Pascoaes, o poeta
que, melhor do que ninguém, mitiicou o sentimento da saudade, a recolha
intitulada Regresso ao Paraíso. Esse “regresso” é obra da saudade, que sub-
trai a nostalgia ao sentimento da pura perda ou ausência, coniando-lhe a
missão de transmudar a perda em vitória de sonho. Muitos duvidam de que
tanto baste para distinguir verdadeiramente a saudade da nostalgia, mas po-
demos compreender onde se situa a linha divisória. No seu sentido primordial,
a nostalgia inscreve-se no horizonte da espacialidade humanizada e nele toma
forma. Nessa medida, pode mesmo indar se reintegrarmos o espaço humano
cujo afastamento a provocou. Só em princípio, porém, porque pode acontecer
(como sempre acontece) que o “tempo” – que é mais, nesse caso, que ação
humana ou medida exterior – tenha desigurado o lugar de origem de que sen-
timos nostalgia. Se assim for, experimentamos perante o lugar revisitado uma
nostalgia saudosa, o que mostra bem que a saudade se enraíza numa outra
experiência, mais radical ainda que a do espaço afetivo. Experiência que é ao
mesmo tempo a mais universal e a mais pessoal das experiências, porquanto
não tem outro conteúdo que não seja o vivido temporal, nós próprios, nou-
tras palavras, como ilhos nascidos no coração do tempo e expulsos do seu
113
Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
Dicas de estudo
LOURENÇO, Eduardo. O Labirinto da Saudade. 3. ed. Lisboa: Dom Quixote,
1988.
Estudos literários
1. D. Francisco Manuel de Melo é considerado o primeiro teórico da saudade
portuguesa. Como ele a deiniu?
115
Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
116
Saudade e saudosismo na Literatura Portuguesa
117
Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
118
O anticlericalismo
na Literatura Portuguesa
O anticlericalismo
A piedosa cidade de Lisboa amanhecera em festa em razão de um dos
seus muitos feriados religiosos. Era o dia 1.º de novembro de 1755, Dia de
Todos os Santos, e boa parte de seus habitantes se encontrava nas muitas
igrejas que sempre pontilharam a capital portuguesa. A manhã era ensola-
rada e o clima, ameno. Podemos imaginar que Lisboa estava silenciosa em
virtude das celebrações que substituíam o burburinho dos dias de semana
pelos sons de sinos e ladainhas. Por volta das 9h30, o chão começa a tremer,
as paredes das casas, prédios e igrejas passaram a desmoronar e o caos se
abateu sobre a tranquila cidade, vitimada por um dos maiores terremotos já
registrados na história da humanidade. Os sismólogos contemporâneos
avaliam que o tremor tenha atingido 9 graus na escala Richter.
Domínio público.
cipal, que se acredita
tenha durado seis minutos
(mas houve outros abalos
por mais de duas horas), o
grosso da população que
se achava na parte baixa da
cidade correu para as mar-
gens do rio Tejo, em busca
de lugar aberto e seguro.
Essa massa de pessoas
presenciou com espanto
quando as águas começa- O terremoto de Lisboa em gravura da época.
ram a recuar em direção ao
mar. Foi possível ver o leito do Tejo e reconhecer durante vários minutos
embarcações e cargas naufragadas há muito tempo. Em seguida, uma
onda gigantesca, que se calcula entre seis a dez metros de altura, voltou a
cobrir não só o leito do rio como toda a parte baixa de Lisboa, avançando
mais de 250 metros cidade adentro. Foi um dos maiores tsunamis registra-
dos no Atlântico.
Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
Enquanto isso, na parte alta da cidade, onde as águas do tsunami não che-
garam, as velas dos altares das igrejas, os fogões nas cozinhas das casas, assim
como as lareiras acessas por causa do inverno, principiaram um devastador
incêndio que se prolongou por diversos dias, incontrolável em virtude de não
haver pessoas e equipamentos disponíveis para o combate ao fogo. Ou seja,
quem não morreu soterrado, acabou afogado pelo avanço do mar ou quei-
mado no grande incêndio que se seguiu. Ao todo, morreram cerca de 12 mil
pessoas, entre homens, mulheres e crianças, mas muitos estudiosos elevam
essa cifra para até 100 mil almas. Parecia um castigo divino.
Semelhante história não poderia deixar de sugerir uma nação tomada por
certo fanatismo religioso, beirando quem sabe à superstição e ao obscurantismo.
Na realidade, essa era a imagem que a Europa iluminista fazia de Portugal (lem-
bremos que o Iluminismo ou Era das Luzes foi um movimento intelectual que
loresceu no século XVIII e defendia o emprego da razão em todas as esferas da
vida humana, condenando a religião como um fator de alienação dos homens).
A partir dessa visão, seria de se esperar que, como resultado de um cataclismo
de proporções tão surpreendentes, rebentasse pelo país, depois do terremoto,
uma histeria religiosa coletiva, com multidões saindo em procissões interminá-
veis, autolagelando-se ao som de plangentes litanias e preces de contrição.
120
O anticlericalismo na Literatura Portuguesa
Em virtude de, durante o resgate dos sobreviventes, Pangloss ter feito algu-
mas considerações sobre o caráter natural do terremoto e sua adequação aos
desígnios divinos em um sentido ilosóico, ele e o discípulo Cândido são “esco-
lhidos” para servirem de bode expiatório no auto-de-fé. Tratava-se de uma ceri-
mônia religiosa em que os condenados pelo Tribunal de Inquisição eram senten-
ciados e castigados, algumas vezes mortos na fogueira depois de cruéis suplícios.
No caso, os dois personagens
foram levados em procissão [...] e ouviram um sermão patético, seguido de uma bela música
em cantochão. Cândido foi açoitado em cadência, enquanto se cantava, [...] e Pangloss,
contrariamente ao uso, foi enforcado. No mesmo dia, a terra tremeu de novo com um ruído
espantoso. (VOLTAIRE, 1973, p. 31)
Domínio público.
taire e desapontamento de alguns leitores –
que talvez também nutram o mesmo tipo de
imagem da cultura portuguesa demonstrada
pelo ilósofo francês –, não foi nada disso o
que aconteceu na Lisboa destruída. Graças à
extraordinária visão e a capacidade de ação
de um dos maiores estadistas portugueses, o
Marquês de Pombal (Sebastião José de Car-
valho e Melo, 1699-1782), as regiões devasta-
das pelo sismo foram socorridas com preste- O Marquês de Pombal.
za e Lisboa foi reconstruída em pouquíssimo
tempo, sendo a primeira cidade do mundo a contar com edifícios construídos com
estrutura à prova de terremotos. E, ainda, vários estudiosos atribuem às iniciativas
de Pombal e dos cientistas portugueses o nascimento da sismologia.
sa. Desde a Idade Média, a Igreja de Roma havia angariado grande poder político
e econômico. Sua atuação por toda a cristandade sempre teve como objetivo
manter seus privilégios e garantir seus interesses (como ocorreu e ocorre com
qualquer religião oicial ou hegemônica), o que muitas vezes se chocava com
os interesses de grupos políticos e estamentos sociais, e principalmente com o
grupo dos pensadores e cientistas. Desses conlitos surgiu, da parte dos oponen-
tes da Igreja, uma forma de pensamento e ação que no século XIX se denominou
anticlericalismo.
Apesar de essa noção ter sido deinida nos oitocentos, sua manifestação
é muito mais antiga, sendo encontrada já no período medieval. Embora para
muitos deva ser uma surpresa, em Portugal se diz que o anticlericalismo nasceu
junto com a própria língua portuguesa, sendo que uma de suas primeiras ex-
pressões literárias se apresenta no trovadorismo, o movimento literário inaugu-
ral de nossa língua.
O anticlericalismo em Portugal
Vamos conigurar o que designamos como anticlericalismo português dei-
nindo as suas peculiaridades.
A crítica ao clero pode ocorrer em qualquer tipo de religião, mas no caso por-
tuguês estamos falando especiicamente da Igreja Católica, de seus sacerdotes
e principais lideranças, bem como de seus iéis. E, a partir do século XVI, o an-
ticlericalismo lusíada se dirige em particular à ordem dos jesuítas, às políticas
da Contrarreforma e à Santa Inquisição, pois, pode-se dizer, essas três instâncias
sumarizam o esforço do Vaticano por manter sua primazia sobre a Europa e suas
colônias, em uma tentativa de impedir o progresso da Reforma Protestante.
122
O anticlericalismo na Literatura Portuguesa
O ilósofo francês era um inimigo declarado dos jesuítas, cuja atuação nos
vários países europeus e demais domínios ele considerava nefasta e retrógra-
da, impedindo o desenvolvimento das potencialidades racionais desses povos.
Quando Voltaire escolheu Lisboa e seu terremoto para exempliicar um com-
portamento social impregnado de superstição e fanatismo religioso, por certo
ele tinha em mente retratar uma sociedade dominada pela doutrina e a políti-
ca dos jesuítas.
O Brasil está muito ligado à biograia de Malagrida: durante décadas, ele ca-
tequizou principalmente as regiões Norte e Nordeste brasileiras. Sua ação mis-
sionária e empreendedora em nosso país lhe valeu o epíteto de “apóstolo do
Brasil”, que era dividido com José de Anchieta (1534-1597). Durante o período
do terremoto, Malagrida, já bem idoso, encontrava-se em Lisboa. Sacerdote de
características místicas e proféticas, grande pregador, o jesuíta não teve dúvidas
em proclamar que a tragédia sísmica era um castigo divino.
Ora, isso era tudo que Pombal não queria ouvir, pois abateria ainda mais o
moral da população, servindo de um empecilho adicional à recuperação do
país. Então, o primeiro-ministro encarrega um padre aliado a escrever um fo-
lheto em que explicava o caráter natural do terremoto, negando a ideia de
castigo dos céus.
123
Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
Esse texto não apenas reforçava a tese da punição divina como ainda con-
denava violentamente todos os planos de ajuda aos sobreviventes, além dos
esforços de reconstrução e reorganização da cidade.
Então, o que os portugueses deveriam fazer para dar uma solução àquele
estado de coisas? Preces, procissões e... autos-de-fé, é claro.
124
O anticlericalismo na Literatura Portuguesa
Para sermos ainda mais exatos, o galego-português foi a língua franca da li-
teratura em toda a Península Ibérica, sendo utilizada por poetas dos reinos de
Castela, Leão e outros que compõem a Espanha atual.
Foi, portanto, no inal da Idade Média, utilizando como língua literária o gale-
go-português, que surgiu o Trovadorismo (1198-1418) na Península Ibérica. Esse
movimento cultural restringiu-se apenas à poesia, que por sinal não era somente
declamada ou lida, mas também cantada. Sua temática favorita – o amor cortês –
desenvolveu-se em duas vertentes líricas:
cantiga de amor e
cantiga de amigo.
125
Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
Original Paráfrase
Quand’eu passei per Dormã Quando passei por Dormã (ou Dormea)1
preguntei por mia coirmã, perguntei por minha prima,
a salva e paçãã. a pura e nobre (educada no paço).
Disserom: - Nom é aqui essa, Disseram-me: não está aqui,
alhur buscade vós essa; deveis buscá-la em outro lugar,
mais é aqui a abadessa. mas aqui está a abadessa.
1
Segundo a estudiosa Carolina Michaëlis, o poema se refere ao convento de S. Cristóvão de Dormea, na região de Santiago de Compostela, Galícia
(cf. LOPES, 2002, p. 30).
126
O anticlericalismo na Literatura Portuguesa
Original Paráfrase
Se me graça fezesse este Papa de Roma! O Papa de Roma poderia me fazer um favor!
Pois que or’os panos da mia reposte toma, Já que está levando os panos da minha casa,
que levass’el os cabos e dess’a mi a soma; que levasse os tecidos e trouxesse as roupas;
mais doutra guisa me foi el vendê’la galdrapa. no entanto leva tudo para vender às escondidas.
Quisera eu assi ora deste nosso Papa Queria portanto que esse nosso Papa
que me talhasse melhor aquesta capa. cortasse melhor esta capa.
Se m’el graça fezesse com os seus cardeaes, Ele e seus cardeais poderiam me fazer um favor,
que me lh’eu dess’e que mos talhasse iguaaes! que me trouxessem as roupas cortadas direito!
Mais vedes em que vi em el[e] maos sinaes: Mas vejam, como eu, os seus maus sinais:
que do que me furtou, foi cobri-l[o] a sa capa. aquilo que me roubou cobriu com a sua capa.
Quisera eu assi ora deste nosso Papa Queria portanto que esse nosso Papa
que me talhasse melhor aquesta capa. cortasse melhor esta capa.
Se cõn’os cardeaes com que fará seus conselhos Se, com os cardeais que formam seus concílios,
posesse que guardasse nós de maos trebelhos, ele nos livrasse de más encrencas,
fezera gram mercêê, ca nom furtar com elhos faria um grande favor se juntos não furtassem
e [os] panos dos cristãos meter só sa capa. e os panos dos cristãos pusessem sob a capa.
Quisera eu assi ora deste nosso Papa Queria portanto que esse nosso Papa
que me talhasse melhor aquesta capa. cortasse melhor esta capa.
(apud LOPES, p. 2002, p. 53)
127
Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
Antes de falar sobre o aspecto anticlerical da obra de Gil Vicente, seria inte-
ressante retornar às histórias de terremoto em Lisboa. O sismo de 1755 não foi
o único a castigar aquela região. Na verdade, o fenômeno se repete com uma
periodicidade de 200 anos. Os terremotos de que há registro
ocorreram em 1344 (provavelmente ao redor de 7 ou 8 graus na escala Richter), em 1531
(provavelmente de 7 a 9 graus, que também produziu um tsunami), em 1755 (aproximadamente
9 graus, com três abalos posteriores e um tsunami) e, mais recentemente, em 1969 (6 graus).
(MAXWELL, 2003)
Já no inal de sua vida e muito prestigiado junto à corte, Gil Vicente fez uma
censura pública aos frades de Santarém (alguns estudiosos julgam que se trata
de um auto teatral). Em uma carta ao rei, Gil Vicente manifestou seu desacordo
diante da perseguição aos judeus, e ao que tudo indica o gesto encontrou aco-
lhida no rei D. João III. Essa corajosa manifestação pública do grande poeta em
um momento de grave crise e na defesa de uma minoria odiada pelo povo, em
geral revela o seu espírito humanista.
128
O anticlericalismo na Literatura Portuguesa
Vem um Frade com uma Moça pela mão, e um broquel e uma espada na outra, e um casco
debaixo do capelo; e, ele mesmo fazendo a baixa, começou de dançar, dizendo:
Quando o clérigo percebe para onde a barca vai, ele se mostra muito
espantado:
129
Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
Por im, há ainda uma personagem controversa, o Judeu, que não é aceito
nem na barca do Anjo nem na do Inferno, sendo assim condenado a permane-
cer errante. Claro que seu destino parece melhor que o daqueles que vão para o
inferno, mas também representa a falta de lugar dos judeus na sociedade cristã
da época.
130
O anticlericalismo na Literatura Portuguesa
131
Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
Em O Crime do Padre Amaro, nosso autor ataca a Igreja Católica de uma forma
bastante crua e chocante – como mandava o igurino realista. Na verdade,
Amaro, o padre do título, não é o único criminoso da história. Quando o cônego
Dias, um sacerdote mais velho e hierarquicamente superior ao jovem padre, des-
cobre que Amaro seduzira Amélia e a mantinha como amante, desmascara e
acusa Amaro, que se defende:
132
O anticlericalismo na Literatura Portuguesa
Mas, no caso de Eça, diferentemente dos autores antes analisados, não está
em jogo apenas a conduta do clero e dos iéis católicos: de forma sutil, mas me-
tódica, por todo o romance o autor vai revelando os mecanismos de doutrinação
e dominação da Igreja romana. De maneira inteligente, o narrador eciano vai
expondo os principais dogmas católicos – a inquisição, o auto-de-fé, a excomu-
nhão etc. – e demonstrando como tais elementos são usados pelo clero como
instrumentos de poder e opressão. De fato, essa estrutura eclesiástica de domi-
nação se ligava fundamentalmente ao Concílio de Trento (1545-1563), respon-
sável pela instauração da Contrarreforma e principal incentivador das atividades
jesuíticas. O concílio e sua legislação são citados repetidamente em O Crime do
Padre Amaro (cf. BUENO, 2005, p. 18-21) como base canônica para os desman-
dos dos padres. Com isso, o autor demonstrava que a própria estrutura da Igreja
trazia em si mesma os fatores corrosivos que desaguavam no comportamen-
to impróprio de sua clerezia. Segundo a estudiosa Fátima Bueno, o romancista
punha em funcionamento literário as ideias expressas por Antero de Quental em
seu seminal ensaio “Causas da decadência dos povos peninsulares nos últimos
três séculos” (1871), uma das Conferências do Casino (série de palestras apresen-
tadas pelos escritores realistas). Nesse ensaio, Antero relaciona a Contrarreforma
como uma das causas da decadência portuguesa (cf. BUENO, 2002 e 2005).
133
Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
No entanto, Eça de Queirós não para por aí. Em outro de seus mais importan-
tes textos iccionais, ele é ainda mais impiedoso e ataca o próprio cerne do cris-
tianismo, a vida de Jesus e os dogmas de sua divindade e ressurreição. Estamos
falando de A Relíquia (1887). Nessa novela, narrada em primeira pessoa por Teo-
dorico Raposo, um burguês abjeto cujo propósito de vida era se passar por um
sincero iel católico apenas para obter a herança de uma tia riquíssima, o autor
cria um blasfemo paralelo entre a falsiicação de relíquias religiosas (objetos que
pertenceram ou tocaram santos cristãos) e a vida de Jesus, conforme transmitida
pela tradição cristã e assumida como dogma pela Igreja.
134
O anticlericalismo na Literatura Portuguesa
O anticlericalismo contemporâneo
de Saramago
Com o inal do século XIX, assistimos a uma grande mudança na relação entre
os Estados e as igrejas no Ocidente. O término da maioria das antigas monar-
quias na Europa, a consolidação dos regimes democrático-liberais e do princí-
pio de separação entre Estado e religião exigiram das lideranças religiosas maior
lexibilidade em sua relação com a sociedade civil e uma sensível diminuição na
interferência eclesiástica em assuntos políticos, econômicos e sociais. Diminuin-
do a tensão entres esses dois polos, a atitude e a literatura anticlericais perderam
proporcionalmente sua intensidade e sua aspereza.
O que não quer dizer que nos países ocidentais as diversas igrejas tenham dei-
xado totalmente de tentar interferir na vida secular. Numerosas questões que não
faziam parte da pauta do século XIX e início do XX surgiram com intensa urgência
e gravidade depois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Assuntos polêmicos
como o aborto, a eutanásia, os anticoncepcionais, os direitos das mulheres (em
especial nas igrejas), o casamento entre homossexuais, as políticas públicas em
relação às doenças sexualmente transmissíveis, o ensino religioso nas escolas, o
ensino das doutrinas evolucionistas, o uso cientíico de embriões humanos etc.
colocaram mais uma vez as igrejas no primeiro plano do debate público.
135
Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
Eis que de forma até surpreendente, a questão religiosa volta a ser o centro das
atenções no inal do século XX e início do novo milênio. Tanto é assim que José Sa-
ramago (nascido em 1922), prêmio Nobel de literatura de 1998, escreveu um polê-
mico artigo em seu blog com o instigante título de “Deus como problema” (2008),
que transcrevemos na íntegra na seção Texto complementar, desse capítulo.
2
O Evangelho de Mateus relata que o rei Herodes, avisado pelos magos do Oriente de que em Belém havia nascido o rei dos judeus, manda
matar todos os meninos com menos de dois anos que fossem encontrados naquela cidade, a im de que seu reino não viesse a ser usurpado (cf.
Mt 2:13-18).
136
O anticlericalismo na Literatura Portuguesa
Disse o anjo, Tu, nada, que o soubeste tarde de mais, mas o carpinteiro podia ter feito tudo,
avisar a aldeia de que vinham aí os soldados a matar as crianças, ainda havia tempo para que
os pais delas as levassem e fugissem. [...] Disse Maria, Perdoa-lhe. Disse o anjo, Já te disse que
não há perdão para este crime, mais depressa seria perdoado Herodes que o teu marido, mais
depressa se perdoará a um traidor que a um renegado. (SARAMAGO, 1999, p. 115-116)
Uma vaidade muito humana e cruel é o que leva Deus a sacriicar aquele a
quem diz ser seu próprio ilho. Mas, o pior ainda estava por vir: a im de expandir
essa religião, milhares de outros homens seguidores do Cristo martirizado serão
torturados e mortos por seus opositores, ou serão martirizados por suas próprias
mãos, acreditando estar fazendo a vontade divina, ou ainda irão torturar e matar
outros milhares pelo mesmo motivo (cf. SARAMAGO, 1999, p. 377-389). Assim,
o jovem judeu, torturado pela culpa de dezenas de crianças mortas por ele não
haver dado sua vida em troca das vidas dessas crianças, iria morrer de forma
cruel e infame a im de que muitos outros milhares de homens, por gerações e
gerações, viessem a se matar e morrer em seu nome, em nome de Jesus. Eis a
síntese da cruel ironia que Saramago põe em movimento em seu romance.
Um ano após a publicação desse romance, Saramago foi indicado para con-
correr a um prêmio europeu de literatura, mas sua indicação foi revogada pelo
governo português, pois, segundo a avaliação oicial, o livro ofendia a religião
católica e, portanto, não deveria representar a nação lusitana. Em resposta a essa
proibição governamental, o escritor se retirou de Portugal, mudando sua resi-
dência para as Ilhas Canárias (Espanha). Foi sua forma de protesto pela volta da
censura a Portugal. Como se vê, a literatura anticlerical mostra sua necessidade
e agudeza quando é capaz de despertar reações como essas por parte de uma
sociedade que se diz livre e tolerante.
Texto complementar
Deus como problema
(SARAMAGO, 2009)
Não tenho dúvidas de que este arrazoado, logo a começar pelo título, irá
obrar o prodígio de pôr de acordo, ao menos por esta vez, os dois irredutíveis
irmãos inimigos que se chamam islamismo e cristianismo, particularmente
na vertente universal (isto é, católica) a que o primeiro aspira e em que o
segundo, ilusoriamente, ainda continua a imaginar-se. Na mais benévola das
hipóteses de reacção possíveis, clamarão os bem-pensantes que se trata de
uma provocação inadmissível, de uma indesculpável ofensa ao sentimento
religioso dos crentes de ambos os partidos, e, na pior delas (supondo que
pior não haja), acusar-me-ão de impiedade, de sacrilégio, de blasfémia, de
profanação, de desacato, de quantos outros delitos mais, de calibre idênti-
co, sejam capazes de descobrir, e portanto, quem sabe, merecedor de um
castigo que me sirva de escarmento para o resto da vida. Se eu próprio per-
tencesse ao grémio cristão, o catolicismo vaticano teria de interromper os
espectáculos estilo cecil b. de mille em que agora se compraz para dar-se
ao trabalho de me excomungar, porém, cumprida essa obrigação discipli-
nária, veria caírem-se-lhe os braços. Já lhe escasseiam as forças para proezas
mais atrevidas, uma vez que os rios de lágrimas choradas pelas suas vítimas
empaparam, esperemos que para sempre, a lenha dos arsenais tecnológicos
da primeira inquisição. Quanto ao islamismo, na sua moderna versão funda-
mentalista e violenta (tão violenta e fundamentalista como foi o catolicismo
na sua versão imperial), a palavra de ordem por excelência, todos os dias
138
O anticlericalismo na Literatura Portuguesa
139
Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
Portanto, quer se queira, quer não, Deus como problema, Deus como
pedra no meio do caminho, Deus como pretexto para o ódio, Deus como
agente de desunião. Mas, desta evidência palmar não se ousa falar em ne-
nhuma das múltiplas análises da questão, sejam elas de tipo político, econó-
mico, sociológico, psicológico ou utilitariamente estratégico. É como se uma
espécie de temor reverencial ou a resignação ao “politicamente correcto e
estabelecido” impedissem o analista de perceber algo que está presente nas
malhas da rede e as converte num entramado labiríntico de que não tem
havido maneira de sairmos, isto é, Deus. Se eu dissesse a um cristão ou a um
muçulmano que no universo há mais de 400 mil milhões de galáxias e que
cada uma delas contém mais de 400 mil milhões de estrelas, e que Deus, seja
ele Alá ou o outro, não poderia ter feito isto, melhor ainda, não teria nenhum
motivo para fazê-lo, responder-me-iam indignados que a Deus, seja ele Alá
ou o outro, nada é impossível. Excepto, pelos vistos, diria eu, fazer a paz entre
o islão e o cristianismo, e, de caminho, conciliar a mais desgraçada das espé-
cies animais que se diz terem nascido da sua vontade (e à sua semelhança),
a espécie humana, precisamente.
140
O anticlericalismo na Literatura Portuguesa
de estrelas existentes em cada uma. Ninguém faz nascer o Sol cada dia e a
Lua cada noite, mesmo que não seja visível no céu. Postos aqui sem sabermos
porquê nem para quê, tivemos de inventar tudo. Também inventámos Deus,
mas esse não saiu das nossas cabeças, icou lá dentro como factor de vida
algumas vezes, como instrumento de morte quase sempre. Podemos dizer
“Aqui está o arado que inventámos”, não podemos dizer “Aqui está o Deus
que inventou o homem que inventou o arado”. A esse Deus não podemos
arrancá-lo de dentro das nossas cabeças, não o podem fazer nem mesmo
os próprios ateus, entre os quais me incluo. Mas, ao menos discutamo-lo. Já
nada adianta dizer que matar em nome de Deus é fazer de Deus um assassino.
Para os que matam em nome de Deus, Deus não é só o juiz que os absolverá,
é o Pai poderoso que dentro das suas cabeças juntou antes a lenha para o
auto-de-fé e agora prepara e ordena colocar a bomba. Discutamos essa in-
venção, resolvamos esse problema, reconheçamos ao menos que ele existe.
Antes que nos tornemos todos loucos. E daí, quem sabe? Talvez fosse a ma-
neira de não continuarmos a matar-nos uns aos outros.
Dicas de estudo
MAXWELL, Kenneth. Lisboa reinventada. Folha de S. Paulo, 12 jan. 2003.
141
Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
Estudos literários
1. Como o anticlericalismo se manifesta na literatura em geral?
142
O anticlericalismo na Literatura Portuguesa
143
Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
144
O Mar Português na literatura
O Mar Português
O ano de 1453 é considerado por muitos historiadores como o marco
primeiro da Idade Moderna na história ocidental. Não deixa de ser uma
ironia o fato de o evento que determina essa data ser precisamente a
causa de um entrave no desenvolvimento da Europa – região e povos que
na época deiniam o tal Ocidente –, sendo o agente dessa crise os turcos,
uma civilização “oriental”, do ramo asiático e islâmico. A data marca a
Tomada de Constantinopla, cidade dividida entre a Europa e a Ásia, e que
se tornou a capital do Império Otomano, dos turcos. A conquista deine
ainda o apogeu do império turco, que naquele momento incluía todo o
norte da África, o Oriente Médio, e ainda avançava pela Ásia.
instrumentos de navegação.
Foi assim que, em 1498 (45 anos depois da Tomada de Constantinopla), o al-
mirante português Vasco da Gama (1464-1524) atingiu a Índia cruzando o Cabo
da Boa Esperança e criando uma nova rota de comércio com o Oriente. Durante
o século seguinte, essa rota traria a Portugal enormes lucros, um grande desen-
volvimento socioeconômico e um lugar de destaque na política internacional.
146
O Mar Português na literatura
Havia alguns cientistas airmando que a terra era redonda, vagava pelo espaço
e girava em torno do sol, mas para o nosso homem comum, pessoas como esses
cientistas desfrutavam da mesma credibilidade que hoje damos aos lunáticos
que, nas praças, anunciam o im do mundo.
Dentro dessa visão de mundo, o senso comum com toda a razão deduzia que,
chegando aos limites dessa superfície chata que era a Terra, encontraríamos um
abismo, possivelmente sem fundo, onde uma queda fatal se prolongaria pela...
eternidade. O Oceano Atlântico, limite extremo ocidental da Europa, guarda-
va em suas águas profundas e sem im visível esse terrível segredo. Essa ideia
deve ter sido, em parte, responsável pelo nome com que o Atlântico era mais
conhecido no início das grandes navegações: Mar Tenebroso. E ele era tenebro-
so também porque escondia seres monstruosos, tormentas terríveis, assombra-
ções etc. Portanto, navegava-se pelo Atlântico só perto do litoral, onde ao menor
susto se poderia logo voltar para a segurança da terra irme.
147
Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
perdidas nesse jogo de tentativa e erro foi imenso. Os fracassos e as tragédias ini-
ciais pareciam conirmar a cosmovisão e os temores do nosso homem comum,
ratiicando sua prudência em manter-se em terra, coniando nas antiquíssimas
doutrinas que recebera da tradição escolástica. Mesmo assim, a coragem e o en-
genho daqueles que retornavam com vida e que, apesar de tudo, queriam con-
tinuar tentando, izeram com que novas técnicas fossem criadas, as experiências
acumuladas se transformassem em conhecimento e ciência, possibilitando por
im o sucesso.
[...] e perderam-lhe tanto medo, que nem a grande quentura da tórrida zona, nem o
descompassado frio da extrema parte do sul, com que os antigos escritores nos ameaçavam, lhes
pode estorvar; que, perdendo a estrela do norte e tornando-a a cobrar, descobrindo e passando
o temeroso cabo da Boa Esperança, o mar da Etiópia, de Arábia, de Pérsia, puderam chegar à
Índia. Passaram o rio Ganges, tão nomeado, a grande Taprobana, e as ilhas mais orientais.
Tiraram-nos muitas ignorâncias e amostraram-nos ser a terra maior que o mar, e haver antípodas,
que até os santos duvidaram, e que não há região que, nem por quente, nem por fria, se deixe de
habitar. E que em um mesmo clima, e igual distância da equinocial, há homens brancos e pretos
e de mui diferentes qualidades. (apud MARTINS, 2008)
148
O Mar Português na literatura
Com uma linguagem trôpega, mas com uma impressionante capacidade ex-
pressiva, Fernão Mendes nos dá a conhecer em detalhes a sociedade e a cultura
de países dos quais o público europeu mal sabia da existência, como o Japão e
a China. Muitas vezes, as informações são incorretas, e se considera que grande
parte dos eventos é fantasiosa, o que levou alguns comentaristas a propor o
trocadilho com o nome de nosso autor – “Fernão: Mentes? Minto!” (MONTEIRO,
1983, p. 751). Mas, como disse o citado Casais Monteiro, isso é problema para
historiadores e outros especialistas (cf. MONTEIRO, 1983, p. 755). Para nós, leito-
res de hoje, ica uma obra que nos revela o olhar de um europeu quinhentista
com um grande respeito pelas culturas estrangeiras e uma enorme disposição
de tentar compreendê-las e com elas interagir.
Gaspar Correia
Entre outros títulos, Gaspar Correia (c.1495-c.1561) nos legou as Lendas da
Índia, obra volumosa só publicada entre 1858 e 1866. Esse escritor viveu 50 anos
na Índia, onde exerceu diversas funções no governo português, o que lhe permi-
tiu testemunhar muitos dos fatos que relatou, além de haver convivido com as
diversas iguras citadas.
Assim como Fernão Mendes, Correia também apresenta uma linguagem es-
crita defeituosa, muito próxima de um relato oral, apesar de também se exprimir
com grande vivacidade, o que confere à obra um interesse ainda presente.
150
O Mar Português na literatura
Domínio público.
o Classicismo (1527-1580), um movimento artístico da
Renascença (séc. XV-XVI) cujo princípio estético era a
retomada dos padrões da cultura greco-romana. Por
isso, Camões adotou como modelo as clássicas epo-
peias gregas Ilíada e Odisseia, além do famoso poema
romano Eneida, para criar Os Lusíadas, um poema épico,
ou epopeia, que conta a história do descobrimento do
caminho marítimo para as Índias pelo comandante por- A primeira edição
de Os Lusíadas (1572).
tuguês Vasco da Gama.
ria de Vasco da Gama em dez cantos (os cantos são uma espécie de capítulos),
constituídos de, em média, 110 estrofes de oito versos. Os versos são decassíla-
bos heroicos, uma métrica que em português se aproxima da forma clássica.
O enigma deste episódio está no fato de a epopeia ter sido escrita com o im
de gloriicar as navegações portuguesas: haveria espaço em tal obra para uma
crítica tão demolidora quanto a desse velho? Seria ela expressão do pensamen-
to do próprio autor? Ou ela reportaria uma parte da opinião pública da época,
contrária ao desperdício de capitais e vidas humanas para ampliar o comércio do
país? Independentemente de se poder concluir com exatidão os propósitos de
Camões, o certo é que tal estratégia literária indica a modernidade da obra, que
assim rompia os limites do padrão clássico.
153
Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
Assim, parece icar mais claro que o grande herói dessa epopeia não é Vasco
da Gama, apesar de ele ser seu porta-voz privilegiado, e sim uma geração de
portugueses destemidos, tomando Gama o lugar de um representante coletivo
daquela nação e mesmo da humanidade que, valendo-se de sua razão, de sua
fé e de sua cobiça, foi capaz de vencer a natureza e alargar o mundo terreno e o
cosmo. Por isso o nome do poema épico é um coletivo – Os Lusíadas – e não o
nome de um indivíduo, como na Odisseia (a viagem de Odisseu, ou Ulisses, no
latim) e na Eneida (a viagem de Eneias).
154
O Mar Português na literatura
O inal é apoteótico e os heróis são gloriicados, mas não deixa de ser irônico
ao bom leitor que as várias passagens negativas, que foram meticulosamente
colocadas ao longo do poema, deixem um travo amargo na boca. Será que todo
o empenho, toda a ambição, todo esse sofrimento valeram a pena?
Seguindo esse raciocínio, a obra Os Lusíadas retoma valores clássicos, mas trata
de uma situação ímpar na história humana. Tal contradição vai ter repercussões
no conteúdo e na forma do poema. As mais marcantes são as críticas ao empre-
endimento marítimo português, os lashbacks históricos e o lirismo de numerosas
passagens. Também devem ser ressaltados como uma ruptura com o paradigma
épico os trechos em que o eu poético representa o próprio autor do poema, o que
fugia à norma clássica. Nesses momentos, além de mostrar suas vicissitudes pesso-
ais, Camões ainda condena seus compatriotas pelo mau tratamento que lhe têm
dedicado, criticando sua pátria pela grosseria e a baixa valorização da literatura.
Tudo isso nos indica que, mais do que retomar os padrões literários clássicos,
Camões rompe certos princípios fazendo com que a originalidade e singulari-
dade de sua época sejam também representadas. Ou seja, ele cria uma épica
moderna, em que os elementos antigos são valorizados na medida em que sua
negação abre espaço para a representação da modernidade que surgia.
155
Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
156
O Mar Português na literatura
Esse poema coroa uma série de outras composições em que o poeta enaltece
o homem que não se acomoda, que deseja sempre ir além e obter aquilo que pa-
recia impossível. Para tanto, o herói deve aceitar a dor e o sofrimento como seus
companheiros de viagem sabendo que, por mais grandioso que seja, o resultado
não trará consigo a felicidade, mas tão-somente a glória. Nesse antepenúltimo
poema da segunda parte, o autor consigna o prêmio do sofrimento dos portu-
gueses: a partir daquele momento (o fastígio da expansão marítima), os oceanos
passavam a ser propriedade da pátria lusíada. E, ao dominar o perigo do abismo
oceânico, Portugal enim obteve o paraíso, o céu – que aqui signiica apenas o
inatingível e não um lugar de bem-aventurança.
Fernando Pessoa é sem dúvida uma das iguras mais importantes e mais sig-
niicativas da Literatura Portuguesa graças a uma magníica obra, sua e de seus
heterônimos, um fenômeno ímpar na literatura ocidental. Mas, se tivesse nos
legado apenas o livro Mensagem, Pessoa já entraria para o panteão dos poetas
de primeira grandeza, ao lado de Camões, graças à grande travessia que realizou
ao atualizar o tema do Mar Português na poesia modernista.
Texto complementar
Selecionamos o trecho inal de um artigo de Oliveira dedicado à Literatura
Portuguesa que expressa o desalento pela perda do Mar Português.
Naufrágios do império:
poéticas de um mar não mais português
(OLIVEIRA, 2003, p. 153-155)
157
Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
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O Mar Português na literatura
159
Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
Dicas de estudo
PINTO, Fernão Mendes. Peregrinação. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda,
1983.
Estudos literários
1. Em conjunto com expedições de outros países, as navegações portuguesas
do século XIV e XV descobriram novas rotas de comércio, novos continentes,
mas também tiveram uma outra importância que transcende muito tais rea-
lizações comerciais e militares. Do que estamos falando?
160
O Mar Português na literatura
161
Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
162
Escrita e reinvenção literária
da história de Portugal
Literatura e história
Por serem dois gêneros narrativos, a literatura e a história sempre se
cruzaram na cultura letrada ocidental. Em alguns momentos, a proximi-
dade entre elas se tornou muito estreita e em outros momentos foram
feitos recortes distintos. O fato é que as próprias noções de literatura e de
história jamais foram ixas, mudando juntamente com a sociedade.
A crônica real
De origem burguesa, Fernão Lopes (c.1380-c.1459) era guarda-mor da
Torre do Tombo (nome dado ao arquivo documental do reino) e cronista
oicial de vários reis de Portugal. Nascido no reinado de D. João I (1357-
1433), ele passou a servir a casa real já com D. Duarte (1391-1438). Passou
pela regência do infante D. Pedro (1392-1449) e ainda chegou a servir no
reinado de D. Afonso V (1432-1481). Escreveu as crônicas de D. João I, de
D. Fernando (1345-1383) e de D. Pedro I (1320-1367).
Mas, no século XIV essa questão nem se colocava: o cronista era um iel servo
do rei e não iria contrariá-lo. Ainda assim, o compromisso ao menos com a ideia
de verdade era uma exigência. No prólogo da Crônica de D. João I, o historiador
airma que:
Se outros porventura nesta crónica buscam formosura e novidade de palavras e não a certidão
das histórias, desprazer-lhes-á nosso razoado, muito ligeiro a eles de ouvir, e não sem grande
trabalho a nós de ordenar. Mas nós não curando de seu juízo, deixados os compostos e
enfeitados razoamentos, antepomos a simples verdade à aformosentada falsidade. Nem
entendais que certiicamos cousa salvo de muitos aprovada, e por escrituras vestidas de fé. De
outro modo, antes nós calaríamos do que escreveríamos cousas falsas. (LOPES, 1960, p. 2)
Frei João Álvares (?-1484), que escreveu a Crônica do Infante Santo D. Fernando;
1
Mateus de Pisano foi um famoso poeta, ilósofo e orador chamado da Itália pelo regente D. Pedro para educar o rei D. Afonso V e escrever as
crônicas dos reis de Portugal em latim. De sua obra, somente se conhece hoje o texto De Bello Septensi, (1460). Alguns historiadores airmam que o
De Bello Septensi é uma versão resumida da Crônica da conquista de Ceuta, de Gomes Eanes de Zurara.
164
Escrita e reinvenção literária da história de Portugal
A literatura romântica
e uma nova concepção de história
Alexandre Herculano propagou em Portugal a ideia de uma historiograia
fundamentada na documentação, escrita objetivamente, sem enaltecimento ou
gloriicação das personagens históricas, com imparcialidade e distanciamento
crítico, sem o intuito de servir a propósitos religiosos, políticos ou pessoais. Além
disso, devia ser uma história na qual fossem considerados todos os grupos que
constituem a sociedade, não apenas a aristocracia ou o clero. Assim, temos a
história vista como o resultado de um conjunto de forças e interesses de grupos
sociais distintos.
166
Escrita e reinvenção literária da história de Portugal
Domínio público.
a Monarquia Lusitana de Frei Bernado de Brito
era, no mínimo, risível. Mas, o próprio Herculano
também mesclou história e imaginação, só que já
nos moldes do século XIX. É importante lembrar
que somente com o movimento romântico vai se
sedimentar a distinção entre narrativa iccional e
outros gêneros narrativos. Foi nesse período que
a palavra literatura, empregada sozinha, passa
a designar todo gênero de texto iccional. Para
empregá-la com o sentido de texto não-iccional, Alexandre Herculano.
passa a ser necessário incluir um adjetivo: litera-
tura médica, literatura jurídica, literatura ilosóica. Portanto, literatura e história
estão, no século XIX, devidamente separadas pelas noções de verdade, de rea-
lidade, de fato. Assim, enquanto o texto histórico trabalha com a verdade dos
fatos ocorridos, o texto iccional trabalha com a verossimilhança, isto é, com a
imitação – em graus distintos – da realidade (basta lembrar que enquanto um
romance realista imita a realidade de maneira muito idedigna, uma fábula imita
somente o comportamento humano, pois mescla-o com características de ani-
mais, por exemplo).
Assim acontece com Eurico, o Presbítero (1844), por exemplo, um dos roman-
ces históricos mais conhecidos de Herculano. A história se passa no início do
século VIII, na Espanha ainda dominada pelos visigodos. É o ambiente em que
se dá a história de amor entre Eurico e Hermengarda. Note-se que os nomes são
de época. Eurico não tinha posses e Hermengarda era ilha do duque de Fávila.
Após vencer uma difícil batalha em favor do imperador Vitiza, Eurico se viu em
condições de pedir a mão de sua amada em casamento. No entanto, o duque de
Fávila se recusou a entregar sua ilha a Eurico por o rapaz ser pobre, e ainda o fez
acreditar que era ela que o rejeitara.
167
Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
Assim, essa trama amorosa se constrói sobre o fundo histórico das invasões
árabes na Península Ibérica. No texto, a história de amor entre Eurico e Hermen-
garda é sistematicamente ofuscada pela descrição histórica. Vejamos, por exem-
plo, como o texto se inicia:
A raça dos visigodos, conquistadora das Espanhas, subjugara toda a Península havia mais de
um século. Nenhuma das tribos germânicas que, dividindo entre si as províncias do império
dos césares, tinham tentado vestir sua bárbara nudez com os trajos despedaçados, mas
esplêndidos, da civilização romana soubera como os godos ajuntar esses fragmentos de
púrpura e ouro, para se compor a exemplo de povo civilizado. Leovigildo expulsara da Espanha
quase que os derradeiros soldados dos imperadores gregos, reprimira a audácia dos francos,
que em suas correrias assolavam as províncias visigóticas d’além dos Pireneus, acabara com a
espécie de monarquia que os suevos tinham instituído na Galécia e expirara em Toletum depois
de ter estabelecido leis políticas e civis e a paz e ordem públicas nos seus vastos domínios, que
se estendiam de mar a mar e, ainda, transpondo as montanhas da Vascônia, abrangiam grande
porção da antiga Gália narbonense. (HERCULANO, s.d. b, p. 12)
Entretanto, essa miscelânea entre história e literatura não pode ser comparada
ao que fazia Frei Bernardo de Brito, pois aqui o texto não se pretende histórico, mas
iccional. A história funciona como uma forma de atribuir verossimilhança à trama
amorosa. No entanto, podemos ver ali também uma crítica a um aspecto da con-
168
Escrita e reinvenção literária da história de Portugal
169
Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
Domínio público.
O convento de Mafra em nossos dias.
170
Escrita e reinvenção literária da história de Portugal
Sabe-se que D. João V e D. Maria Ana Josefa demoraram para ter o primeiro
ilho e, quando este veio, o convento de Mafra foi construído como pagamento
da graça alcançada. Também é fato que, em 1719, o compositor italiano Dome-
nico Scarlatti, mestre da capela Giulia, no Vaticano, estabeleceu-se em Lisboa
como mestre-de-capela de D. João V. Todavia, por ter sido nomeado professor
de cravo da infanta Maria Bárbara, Scarlatti foi com ela para Madri.
No entanto, existe uma outra história pitoresca sobre a passarola que foi
incorporada por Saramago. Joaquim Francisco (1695-1756), futuro conde de
171
Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
Domínio público.
A passarola conforme imaginada por Joaquim Francisco.
172
Escrita e reinvenção literária da história de Portugal
Texto complementar
Os desaios teóricos da história e a literatura
(MENDONÇA; ALVES, 2009)
[...] Na medida em que deixa de ter sentido uma teoria geral de interpre-
tação dos fenômenos sociais, apoiada em ideias e imagens legitimadoras do
presente e antecipadoras do futuro (o progresso, o homem, a civilização),
173
Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
174
Escrita e reinvenção literária da história de Portugal
[...]
175
Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
Pautada por uma ótica interdisciplinar, esta linha de relexão vem acom-
panhando a propensão de se interrogar as fronteiras de conhecimento que
a tradição institucional construiu. [...]
Nesse caso, não se trata de substituir a icção pela história, mas de possi-
bilitar uma aproximação poética em que todos os pontos de vista, contradi-
tórios, mas convergentes, estejam presentes, formando o que Steenmeijer
chamou de representação totalizadora. Assim, a literatura pode ser conside-
rada como uma leitora privilegiada dos acontecimentos históricos.
Dicas de estudo
Hans Staden (1999), de Luiz Alberto Pereira.
Filme que narra a história verídica de um alemão que foi capturado pelos
tupinambás no século XVI.
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Escrita e reinvenção literária da história de Portugal
Estudos literários
1. Como, nos dias de hoje, distinguimos literatura e história?
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3. Por que podemos dizer que José Saramago reinventa a história de Portugal?
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Gabarito
3. Camões criou para esse tema um padrão lírico que, em Portugal, re-
percutiu nas gerações seguintes, como as composições de Bocage
acerca de Inês podem conirmar. Em termos internacionais, o épico
camoniano contribuiu para a divulgação da história de Inês, sendo
esse episódio um dos trechos da epopeia mais traduzidos e publica-
dos individualmente.
O império português
1. Na passagem do século XV para o XVI, o império português ganhou
maior força e grandeza. Isso se deu por causa da precoce unidade
nacional que propiciou um forte investimento nas técnicas de nave-
gação, com a consequente descoberta do caminho marítimo para o
Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
2. Camões toma por motivo central de seu poema a viagem de Vasco da Gama
para as Índias e a partir dessa primeira instância narrativa, conta toda a his-
tória dos portugueses. Já em um outro plano, narra a luta entre os deuses do
panteão greco-romano e sua intervenção na história de Portugal, demons-
trando com isso a predestinação dos portugueses para aquele presente glo-
rioso. Finalmente, também alerta os portugueses para o perigo que ronda os
povos gananciosos.
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Gabarito
Seguindo essa mesma lógica, pode-se airmar que esse esquema represen-
taria a ascensão, o apogeu e o declínio do império português.
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Gabarito
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2. Por que a Monarquia Lusitana é um texto que tem seus pressupostos teóricos
na concepção medieval de história, em que o elemento religioso pode apa-
recer como causa dos fatos. Portanto, milagres, aparições, predestinações
– todos esses aspectos que eram rejeitados pela historiograia do século XIX –
foram empregados no texto de Brito, fazendo-os, aos olhos de Herculano,
um tanto fantasioso e sem qualquer valor histórico.
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Gabarito
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Anotações
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Anotações
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Cultura e Memória na
LITEATUA PORTUGUESA