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MANUAL DE

Filosofia
Polít:
2.2 EDIÇÃO REVISTA E AUMENTADA
JOÃO CARDOSO ROSAS
Organizador

MANUAL
DE
FILOSOFIA POLÍTICA

NA
ALMEDINA
MANUAL DE FILOSOFIA POLÍTICA

ORGANIZADOR

JOÃO CARDOSO ROSAS

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Biblioteca Nacional de Portugal — Catalogação na Publicação |


Manual de filosofia política / org. João Cardoso Rosas
ISBN 978-972-40-3584-0
I- ROSAS. João
CDU 33.01
l
Introdução

PRIMEIRA PARTE
Paradigmas

Utilitarismo (Pedro Galvão)

IH. Liberalismo igualitário (João Cardoso Rosas)

HI. Libertarismo (Rui Fonseca)

IV. Comunitarismo (Carlos Amaral)

Republicanismo (Roberto Merrill e Vincent Bourdeau)

VI. Democracia deliberativa (Acílio Rocha)

SEGUNDA PARTE
Problemas

VII. Pobreza absoluta (Diana Maia)

VIII. As migrações internacionais (Juan Carlos Velasco)

IX. Multiculturalidade e multiculturalismo (Conceição Moreira)

Guerra e terrorismo (Fátima Costa)

XI. Política de ambiente (Viriato Soromenho-Marques)


INTRODUÇÃO

Este manual versa sobre a Filosofia Política actual. Uma vez que há
já várias obras que cobrem a História da Filosofia Política, prescindiu-se
aqui da dimensão diacrónica. Prescindiu-se também de uma abordagem
exclusivamente por autores, dado que esta está igualmente disponível em
outras obras existentes no mercado. Em vez disso, optou-se pela apresen-
tação dos principais paradigmas teóricos da Filosofia Política no nosso
tempo, juntamente com a análise de alguns dos problemas mais prementes
que se impõem hoje à reflexão dos filósofos políticos.
Se descontarmos os estudos de carácter histórico, grande parte da
Filosofia Política na actualidade dedica-se à exploração de teorias gerais —
aquilo a que alguns chamam “Grandes Teorias” —, ou então ao exame e
tentativa de solução de casos ou temas específicos. Porém, uma filosofia
inteiramente dedicada à teorização mais abstracta, sem referência a casos
específicos, tende a descolar da realidade social e a entrar nos caminhos
pouco produtivos da auto-referenciação. Da mesma forma, uma análise
casuística dos problemas do nosso tempo, sem referência à teoria geral, só
pode degenerar em senso comum pouco esclarecido. Por isso conside-
ramos da maior importância que a Filosofia Política estabeleça um movi-
mento de vaivém entre teorias e casos específicos, entre paradigmas e
problemas.

Os paradigmas teóricos abordados na Primeira Parte neste manual


são, na sua maioria, tributários da Filosofia Política de língua inglesa. No
entanto, não se trata de fazer aqui qualquer tipo de opção linguística ou
cultural. Trata-se tão só de fazer justiça ao facto de a Filosofia Política das
últimas décadas ter tido o seu principal impulso nesse contexto, come-
8 Manual de Filosofia Política

çando pelo contraditório entre o teoria utilitarista, por um lado, e a pers-


pectiva deontológica de John Rawls, por outro.
No Capítulo I, Pedro Galvão apresenta o Utilitarismo como perspec-
tiva ética, mas também política. Embora não exista uma política única
perspectivada a partir do Princípio de Utilidade. mas antes várias aborda-
gens políticas de cunho utilitarista, por vezes bem diferentes umas das
outras. a forma utilitarista de pensar o Estado e as políticas públicas é
extremamente influente. O seu influxo é claro ao nível da argumentação
filosófica e económica, mas também no registo mais abrangente do dis-
curso comum. Também aqui não é raro. antes pelo contrário, encontrar o
apelo à utilidade, ou seja, à maximização do bem estar, como guia funda-
mental da legislação e da política.
'No Capítulo II, João Cardoso Rosas retoma a contraposição entre o
Utilitarismo e a teoria da justiça de John Rawls. O pensamento de Rawls
dá origem à constituição de um paradigma teórico alternativo ao utilita-
rismo e que aqui é designado por Liberalismo Igualitário. Ao contrário do
Utilitarismo, o Liberalismo Igualitário é uma teoria politicamente bem
definida e que vinca sempre a prevalência da justiça e das liberdades indi-
viduais. Para além do contributo de Rawls, são abordados neste capítulo
os temas da natureza da igualdade sócio-económica e da eventual exten-
são cosmopolita do liberalismo igualitário.
No Capítulo III, Rui Fonseca não deixa de recordar a crítica ao libe-
ralismo igualitário — nomeadamente a Rawls — movida pelo pensamento
libertarista de Nozick. Para os libertaristas, cada indivíduo deve ser intei-
ramente livre para fazer o que quiser consigo mesmo e com os seus bens.
Mas o Libertarismo pode ser dividido em duas vertentes básicas: uma ins-
trumental, como é o caso de Hayek, outra fundamental, que engloba o pró-
prio Nozick. O autor deste capítulo também não deixa de discutir a mais
recente corrente do «libertarismo de esquerda», protagonizado por autores
como Steiner e Otsuka.!

1 O substantivo «libertarismo» e o adjectivo «libertarista» correspondem aqui


ao inglês «libertarianism» e «libertarian». respectivamente. Noutras línguas novilatinas.
como no italiano, por vezes opta-se pelas palavras «liberismo» e «liberista». Mas esta
opção não é muito comum entre nós. Em Portugal e noutros contextos usa-se por vezes,
com um sentido aproximado. os termos «neoliberalismo» e «neoliberal». Mas estas pala-
vras têm hoje uma ambiguidade excessiva devido ao seu uso frequente no discurso
comum.
Introdução 9

No Capítulo IV, Carlos Amaral explica a outra vertente do anti-


-rawlsianismo na Filosofia Política do presente: aquilo a que se costuma
chamar, embora nem sempre com a concordância dos seus principais
protagonistas, Comunitarismo. Este Comunitarismo procura corrigir o
individualismo e o racionalismo voluntarista das perspectivas liberais-
-igualitárias, e das perspectivas libertárias. Para explicitar este ponto, o
autor do capítulo centra-se no pensamento de Michael Sandel, mas sem
deixar de referir outros autores especialmente significativos, como é o
caso de Michael Walzer.
No Capítulo V, Roberto Merrill e Vincent Bourdeau abordam o
Republicanismo tal como ele surge enquanto paradigma teórico na Filo-
sofia Política actual, ou seja, enquanto corrente que enfatiza os valores da
igualdade e da participação política. Os autores do capítulo situam a ori-
gem do Republicanismo contemporâneo na chamada «Escola de Cam-
bridge», de Skinner e Pocokc, e distinguem diferentes variantes deste
paradigma na actualidade: republicanismo neo-ateniense (inspirado em
Arendt), republicanismo político (de Philip Pettit), republicanismo crítico.
As noções de «perfeccionismo» e de «liberdade como não dominação»
são também tratadas.
No Capítulo VI, Acílio Estanqueiro Rocha analisa a principal contri-
buição do pensamento europeu para a Filosofia Política contemporânea: a
teoria habermasiana da Democracia Deliberativa. Como salienta o autor
do capítulo, este paradigma teórico conhece desenvolvimentos noutras
latitudes (J. Cohen; Fishkin, etc.), mas é no pensamento do próprio
Habermas que encontra a sua mais relevante fundamentação e articulação.
O paradigma da Democracia Deliberativa afasta-se quer dos liberalismos
(do igualitário, mas mais ainda do libertarista), quer dos republicanismos
e comunitarismos. Mas, ao situar-se num plano meta-teórico, ele permite
também uma reflexão sobre essas outras perspectivas.

Os problemas específicos abordados na Segunda Parte do manual


constituem um desafio para os paradigmas teóricos acima referidos. Em
alguns casos, é a aplicação directa de um ou mais destes paradigmas que
fornece as respostas mais incisivas aos problemas tratados. Noutros casos,
haverá ainda um largo caminho a percorrer para ligar o desafio lançado
por cada problema às formulações da teoria geral.
10 Manual de Filosofia Política

No Capítulo VII, Diana Maia aborda o importante contributo do uti-


litarismo contemporâneo, nomeadamente a partir da obra de Singer, para
o tratamento do problema da pobreza absoluta. Uma visão alternativa à
utilitarista é a que tem sido desenvolvida por discípulos de Rawls, como é
o caso de Beitz e Pogge. Ambos os autores alargam o paradigma Liberal
Igualitário de Rawls a uma perspectiva cosmopolita que procura as vias de
solução para o problema da pobreza absoluta no mundo em que vivemos.
No Capítulo VIII, Juan Carlos Velasco explora outro tema premente:
o das migrações internacionais. O autor do capítulo contrasta a perspectiva
Comunitarista de Walzer, que confere significado moral às fronteiras e
justifica o seu encerramento parcial, com a perspectiva Liberal (que pode
englobar tanto o Liberalismo Igualitário como o Libertarismo) que
defende a abertura das fronteiras e é articulada, por exemplo, por Carens.
Velasco não deixa também de explicar como os problemas levantados
pelas migrações internacionais estão também relacionadas com o combate
à pobreza — abordado no capítulo anterior — e com a multiculturalidade —
que é objecto do próximo capítulo.
No Capítulo IX, Conceição Moreira explicita o problema da multi-
culturalidade e percorre as diferentes perspectivas multiculturalistas. Se
todas as sociedades em que vivemos actualmente são, de alguma forma,
multiculturais, há diversas formas de dar sentido, de um ponto de vista
filosófico, às políticas multiculturalistas. Pode-se recorrer à categoria do
«reconhecimento» (Taylor) e até usá-la para criticar a universalidade da
cidadania, em nome da política da diferença (Young). Mas, para além
desta via Comunitarista, existe também uma via Liberal Igualitária para o
multiculturalismo. É esta última que percorre Kymlicka ao desenvolver
uma abordagem liberal aos direitos multiculturais.
No Capítulo X, Fátima Costa endereça o difícil problema da guerra
e do terrorismo. À autora do capítulo refere as perspectivas realista e paci-
fista, para depois se centrar no Utilitarismo e na Teoria da Guerra Justa na
actualidade, especialmente a partir da contribuição de Walzer (mas não
só). O tema do terrorismo é abordado nesta mesma perspectiva, enquanto
prática que desrespeita o «princípio da discriminação» e visa intencional-
mente os «não combatentes».
No Capítulo XI, Viriato Soromenho-Marques fornece o enqua-
dramento factual e teórico da política do ambiente. De um ponto de vista
filosófico, a política do ambiente tem as suas raízes numa visão conser-
vacionista e, mais tarde, numa «ética da terra» (Leopold). Mas o autor do
Introdução HM

capítulo opta sobretudo por expor as suas próprias ideias — o que é intei-
ramente justificado, uma vez que se trata de um dos principais protago-
nistas destes debates. A questão ambiental configura-se como um dos
maiores desafios à Filosofia Política do futuro, uma vez que os principais
paradigmas teóricos da actualidade não foram ainda capazes de a enqua-
drar devidamente.

O leitor pode consultar cada um dos capítulos da Primeira Parte


separadamente. Mas a leitura de vários desses capítulos permitirá uma
compreensão mais profunda, pela via comparativa. dos paradigmas em
causa. Os capítulos da Segunda Parte são igualmente autónomos. Porém,
em alguns casos, poderá ser indicado recorrer à consulta dos paradigmas
teóricos para os quais eles remetem.
Para além dos textos de cada capítulo, o leitor tem acesso às biblio-
grafias que serviram de base à elaboração dos textos, mas também a listas
bibliográficas complementares que lhe permitirão ir mais longe na explo-
ração dos paradigmas e problemas tratados. Desta forma, este manual
propicia uma introdução à Filosofia Política actual, mas também os ins-
trumentos para a aprofundar.
A presente obra não é o manual da Filosofia Política, mas antes um
manual de Filosofia Política. Não pretende — como nenhuma obra deste
tipo pode pretender — esgotar os assuntos que aborda, nem representar tudo
aquilo que alguém alguma vez poderá designar por Filosofia Política. No
entanto, fizemos o possível para que esta obra espelhasse o que a disci-
plina tem de melhor na actualidade. Ou seja, uma reflexão teoricamente
informada e conceptualmente rigorosa acerca dos temas mais fundamen-
tais da nossa vida em comum, em sociedades enquadradas por Estados.

JoÃo CARDOSO ROSAS


PRIMEIRA PARTE

PARADIGMAS
CAPÍTULO |
Utilitarismo

PEDRO GALVÃO*

O termo «utilitarismo» denota um conjunto de perspectivas que, de


algum modo, fazem da promoção imparcial do bem-estar o único padrão
ético para a avaliação de, por exemplo, actos, códigos morais ou práticas
e instituições sociais. O utilitarismo tornou-se central na filosofia moral e
política durante o século XIX, período em que sobressaem Jeremy Ben-
tham, John Stuart Mill e Henry Sidgwick, conhecidos por «utilitaristas
clássicos». Entre os filósofos que desenvolveram posteriormente a tra-
dição utilitarista, destacam-se G. E. Moore, R. M. Hare, Richard Brandt,
Derek Parfit e Peter Singer. Antes de examinarmos algumas das divergên-
cias mais significativas entre os autores desta tradição, vejamos o que os
une, definindo-os como utilitaristas.
O consequencialismo é um dos três traços essenciais de qualquer teo-
ria utilitarista. Um consequencialista é alguém que avalia pelo menos
alguns tipos de objectos unicamente em termos do valor das suas conse-
quências. Quem defende o consequencialismo pode sustentar, por exem-
plo, que o melhor acto é sempre aquele que resulta em melhores conse-
quências, ou que as melhores práticas são sempre aquelas que, se forem
aceites na sociedade, terão melhores consequências. Um acto ou uma

* Grupos LanCog e Ética. Política e Ambiente do Centro de Filosofia da Univer-


sidade de Lisboa. Trabalho realizado com o apoio da Fundação para a Ciência e a Tecno-
logia no âmbito do III Quadro Comunitário de Apoio, concedido mediante uma Bolsa de
Pós-Doutoramento (SFRH/BPD/27852/2006)
I6 Manual de Filosofia Política

prática terão melhores consequências se, comparados com os actos ou as


práticas alternativos, resultarão em estados de coisas que têm um maior
bem ou valor impessoal. Para seriar estados de coisas alternativos quanto
ao seu valor impessoal, sugere o consequencialista, devemos adoptar uma
perspectiva estritamente imparcial e maximamente abrangente, sem privi-
legiar ou ignorar determinados indivíduos ou grupos sociais.
Um consequencialista pensa, então, que a promoção do bem é o
único padrão apropriado para avaliar pelo menos alguns tipos de coisas. Se
ele for utilitarista, acrescentará que o bem ou valor a promover consiste
única e exclusivamente no bem-estar (welfare ou well-being). Entre vários
estados de coisas alternativos, o melhor será sempre aquele em que existir
um maior bem-estar, considerados imparcialmente todos os indivíduos
sencientes. O utilitarista tem assim uma concepção «welfarista» do bem, e
é este o segundo traço essencial da sua perspectiva. Um consequencialista
que sustente que o bem a promover consiste não só no bem-estar, mas tam-
bém, por exemplo, na liberdade ou na compensação pelo mérito, não será
um utilitarista — a não ser que considere essas coisas valiosas apenas na
medida em que forem constitutivas do bem-estar ou meios para ele.
Suponha-se que queremos avaliar vários actos alternativos segundo
o padrão da promoção do bem. O welfarista dirá que, para procedermos a
essa avaliação, precisamos de saber apenas que bem-estar (ou felicidade,
ou utilidade) cada um dos indivíduos afectados obterá com a realização de
cada um desses actos. E, se o welfarista for um utilitarista, dirá depois que
não interessa como bem-estar se distribui pelos diversos indivíduos em
consideração: o melhor acto será simplesmente aquele que resultar numa
maior utilidade total — ou, talvez, numa maior utilidade média. Para ava-
liar o estado de coisas que engloba as consequências de cada acto, importa
apenas agregar o bem-estar que cada indivíduo obtém nesse estado de coi-
sas — e, acrescentaria o defensor da utilidade média, dividir a utilidade
resultante da agregação pelo número de indivíduos. Este agregacionismo,
que implica uma insensibilidade à distribuição do bem-estar, é o terceiro
traço essencial do utilitarismo.

1. BEM-ESTAR

Os utilitaristas divergem entre si de muitas maneiras diferentes.


Algumas das divergências mais salientes colocam-se a respeito da con-
Untilitarismo 17

cepção de bem-estar adoptada. Os utilitaristas clássicos optaram inequivo-


camente pelo hedonismo, a perspectiva de que aquilo que faz a vida de um
indivíduo correr melhor para si mesmo é apenas a existência de experiên-
cias aprazíveis e a ausência de experiências dolorosas. Bentham (1789)
defendeu que os melhores prazeres são simplesmente os mais intensos e
prolongados. Opondo-se a este hedonismo puramente quantitativo, Mill
(1863) propôs uma versão da perspectiva em que se afirma que certos pra-
zeres — nomeadamente aqueles, como os estéticos. que decorrem do uso
das nossas «faculdades superiores» — são mais valiosos em virtude da sua
qualidade intrínseca. de tal forma que contribuem muito mais para o bem-
-estar humano do que uma quantidade similar de prazeres inferiores.
O hedonismo é uma concepção «experiencial» do bem-estar, ou seja,
diz-nos que o bem-estar de um indivíduo depende apenas de certos esta-
dos mentais, de determinadas experiências que ele tem ao longo da vida,
seja qual for a sua fonte ou veracidade. Numa crítica muito influente às
concepções deste género, Robert Nozick (Nozick: 1974, 42-45) convida-
-nos a imaginar uma «máquina de experiências», um dispositivo sofisti-
cado de realidade virtual capaz de proporcionar um vasto leque de expe-
riências aprazíveis. Se os hedonistas tivessem razão, seria irracional, pen-
sando em termos de interesse pessoal, recusarmo-nos a permanecer a vida
inteira ligados a uma máquina como essa. Porém, sugere Nozick, reco-
nhecemos razões muito fortes para repudiar tal ligação: queremos fazer
realmente certas coisas, e não ter apenas a experiência de as fazer, quere-
mos ser um determinado tipo de pessoa, e não apenas preencher o tempo
de certa maneira; por fim, queremos estar em contacto com uma realidade
mais profunda do que aquela que máquina poderia gerar. Vemos assim,
conclui, que nem só a qualidade das nossas experiências nos interessa.
Existem duas alternativas principais ao hedonismo que não estão
sujeitas à crítica de Nozick. De acordo com uma delas, aceite por utilita-
ristas como Hare ou Singer, entre muitos outros, o bem-estar consiste na
satisfação de desejos ou preferências. A segunda alternativa é-nos ofere-
cida pelas «teorias da lista objectiva», segundo as quais há uma plurali-
dade de bens (e.g., o conhecimento, a virtude ou a amizade) que têm valor
intrínseco, contribuindo para o bem-estar de um indivíduo quando estão
presentes na sua vida, independentemente de eles os desejar.
Na sua versão mais simples, que toma como referência todos os
desejos ou preferências que as pessoas têm de facto, a perspectiva da satis-
fação de desejos coloca os utilitaristas que a aceitam numa posição espe-
18 Manual de Filosofia Política

cialmente difícil. Considere-se, por exemplo, uma situação em que uma


grande maioria fanática deseja intensamente que uma minoria inofensiva
seja exterminada. Se o extermínio resultar numa maior satisfação de
preferências, o utilitarista terá de o aprovar — e, mesmo que nos convença
de que esse curso de acção não conduz à maior satisfação, terá sempre
de levar em conta as preferências fanáticas, atribuindo um peso positivo
à sua satisfação quando, numa avaliação moral, parece mais apropriado
ignorá-las.
De modo a excluir preferências eticamente condenáveis, como a
de exterminar grupos de inocentes, o utilitarista de preferências dispõe de
duas hipóteses. Uma delas consiste em defender que aquilo que importa
não é o que as pessoas desejam de facto, mas aquilo que elas desejariam
se estivessem devidamente informadas ou fossem racionais. As preferên-
cias reais só interessam na medida em que coincidem com as preferências
ideais. Porém, pelo menos enquanto não for suficientemente claro o que
caracteriza estas últimas, é duvidoso que o utilitarista evite assim a difi-
culdade apontada. Afinal, não será possível que pessoas plenamente infor-
madas e racionais tenham preferências que, de um ponto de vista ético,
devem ser ignoradas? Pondo de parte preocupações morais, encontramos
razões para suspeitar da identificação do bem-estar de um indivíduo com
a satisfação das suas preferências ideais. Pode ser verdade, por exemplo,
que qualquer pessoa que estivesse devidamente informada em matérias
estéticas preferiria música clássica a punk, mas, se um dado indivíduo tem
de facto uma preferência por este último género tão resoluta como a sua
aversão ao primeiro, é difícil acreditar que tornaremos a sua vida melhor
para si mesmo caso satisfaçamos a sua preferência ideal por ouvir Bach.
Em resposta à dificuldade da maioria fanática, o utilitarista pode
também optar pela exclusão das preferências externas. Estas dizem
respeito à atribuição de bens ou oportunidades a outros, enquanto as pre-
ferências pessoais ou internas de um indivíduo são preferências por des-
frutar, ele mesmo, de certos bens ou oportunidades. Se procurarmos maxi-
mizar apenas a satisfação das preferências internas, deixaremos de levar
em conta os desejos da maioria fanática sobre o destino a dar à minoria
pacífica, mas atenderemos aos desejos de continuar a viver dos membros
da minoria, pois estes são pessoais. Porém, há aqui um problema: dado que
o bem-estar de muitos indivíduos parece depender crucialmente da satis-
fação de algumas das suas preferências externas (e.g., o bem-estar de uma
mãe pode depender sobretudo da felicidade dos seus filhos), quem adopta
Utilitarismo 19

o desígnio utilitarista da promoção do bem-estar não se pode limitar a


ignorar todas as preferências externas. E tão-pouco pode excluir apenas as
preferências externas que julgue eticamente condenáveis, pois ao fazê-lo
teria de se basear num padrão moral distinto do utilitarismo.
Consideremos agora as teorias da lista objectiva. Além do problema
óbvio de especificar criteriosamente os bens a incluir na lista, estas pers-
pectivas enfrentam uma dificuldade semelhante à das perspectivas da
satisfação de preferências ideais: do mesmo modo que dar a um indivíduo
aquilo que ele desejaria idealmente pode não lhe proporcionar qualquer
satisfação, também é possível que uma pessoa tenha uma vida em que os
bens objectivamente valiosos estejam presentes, sem que ela os deseje
nem sinta prazer com a sua presença. Uma resposta a esta dificuldade,
proposta por Parfit (Parfit, 1984: 501-502) no final de uma das discussões
mais marcantes sobre a natureza do bem-estar, consiste em adoptar uma
perspectiva híbrida: o bem-estar depende da presença de certos bens que
têm valor independentemente de serem desejados ou de proporcionarem
prazer, mas esses bens só contribuem de facto para o bem-estar de um
indivíduo quando ele efectivamente os deseja ou obtém prazer com a sua
realização.

2. CONSEQUENCIALISMO

Os utilitaristas discordam entre si não só quanto ao modo como con-


cebem o bem-estar, mas também quanto ao tipo de conseguencialismo que
consideram mais credível. A discussão explícita de diversas versões de
consequencialismo desenvolveu-se apenas ao longo do século XX, e cen-
trou-se em grande medida na oposição entre consequencialismo dos actos
e consequencialismo das regras. (Evidentemente, o utilitarismo dos actos
e o utilitarismo das regras são espécies destes géneros de teorias.) Os par-
tidários da primeira perspectiva, que foram e são largamente maioritários,
defendem a aplicação directa do padrão consequencialista a actos parti-
culares: em todas as circunstâncias, o acto obrigatório é aquele cuja reali-
zação resultará no máximo valor impessoal. Os defensores do consequen-
cialismo das regras, entre os quais se destacam Richard Brandt, John
Harsanyi e Brad Hooker, defendem a aplicação directa desse padrão a con-
juntos de regras ou códigos morais, mas não a actos particulares. Em seu
entender, o código moral certo é aquele que, comparado com os códigos
20 Manual de Filosofia Política

alternativos, resultaria no maior bem numa situação idealizada, concebida


tipicamente em termos de aceitação social generalizada. Por outras pala-
vras, O código moral certo é aquele que maximizaria o bem se colhesse a
aceitação da grande maioria dos agentes. E os actos moralmente certos
são, por sua vez, aqueles que estão em conformidade com esse código
moral — e não aqueles que maximizam o valor impessoal. Deste modo, os
actos particulares são avaliados apenas indirectamente sob o padrão con-
sequencialista.
O consequencialismo dos actos opõe-se de diversas maneiras à deon-
tologia. Os deontologistas não negam que, se um acto (ou uma prática, ou
uma instituição) resultará nas melhores consequências, isso é uma razão
para lhe darmos a nossa aprovação — e muitas vezes essa razão pode ser
decisiva. Porém, entendem que existem outras razões a ter em conta.
Em primeiro lugar, os deontologistas defendem restrições gerais
centradas no agente, que limitam aquilo que cada pessoa pode fazer a qual-
quer outra. Maltratar seriamente os outros (matando-os, enganando-os,
torturando-os ou privando-os do que possuem legitimamente) é algo que
nunca é permissível fazer ou que só se pode fazer em circunstâncias pe-
culiares, mesmo que fazê-lo seja necessário para produzir o maior bem. Se
um acto (ou uma prática, ou uma instituição) implica desrespeitar uma res-
trição, isso é uma razão sempre ou quase sempre decisiva para o repro-
varmos. As restrições que os deontologistas têm em mente são centradas
no agente porque, em seu entender, cada um de nós não pode infringi-las
de modo a que outros agentes não as infrinjam, mesmo que de maneira
mais grave. Por exemplo, não podemos torturar uma pessoa para evitar
que outros torturem várias pessoas. As restrições são pelo menos parte da
ideia de que temos direitos morais negativos, de tal forma que se pode
dizer que infringir uma restrição deontológica consiste em violar o direito
das pessoas a não serem privadas de bens como a vida, a integridade física
ou a propriedade.
Em segundo lugar, os deontologistas sustentam que existem obriga-
ções especiais: obrigações que alguns indivíduos têm para com outros
indivíduos em virtude de manterem com eles certas relações. As relações
relevantes são muito diversas: podem ser de natureza familiar ou profis-
sional, e podem também basear-se em benefícios aceites, males infligi-
dos ou compromissos assumidos pelo agente. Como exemplos, podemos
apontar a obrigação que os agressores têm de compensar as suas vítimas,
ou a obrigação que os pais têm de cuidar dos seus filhos. Suponha-se que
Utilitarismo 21

um agente tinha de escolher entre salvar o seu filho e salvar duas crianças
com as quais não mantinha qualquer relação relevante. Um consequencia-
lista dos actos aprovaria a segunda opção, ao passo que um deontologista,
em virtude de reconhecer obrigações especiais, aprovaria a primeira.
Por fim, os deontologistas afirmam que os agentes dispõem de
prerrogativas: mesmo quando maximizar o bem não implica desrespeitar
restrições gerais ou obrigações especiais. um agente não tem sempre a
obrigação de optar pelo curso de acção que resulte nas melhores conse-
quências. Em muitos casos, é moralmente aceitável fazer menos do que
isso, pois há limites consideráveis aos sacrifícios que temos de suportar
para benefício dos outros. Enquanto o consequencialista dos actos pensa
que cada um de nós deve pôr de parte os seus compromissos e pro-
jectos pessoais sempre que isso seja necessário para produzir as melhores
consequências, o deontologista entende que podemos desenvolver com-
promissos e projectos sem atender sempre ao seu valor impessoal.
Uma das objecções recorrentes ao consequencialismo dos actos é a
de estar em conflito com as intuições morais comuns, que apoiam antes
uma perspectiva deontológica. Em virtude de não reconhecer restrições
gerais nem obrigações especiais, o consequencialismo dos actos parece
demasiado permissivo. já que permite actos intuitivamente errados. como
torturar para minimizar tortura. E, em virtude de não admitir prerrogativas,
parece também demasiado exigente, pois impõe sacrifícios que não são
obrigatórios, ainda que fosse louvável fazê-los.
Perante este conflito, alguns consequencialistas (e.g.. Hare 1981)
negam que as intuições morais tenham algum valor probatório, de onde se
segue que o facto de uma teoria moral ou política ter implicações contra-
“intuitivas não afecta a sua credibilidade. Por vezes, acrescentam que
o consequencialismo dos actos praticamente só gera veredictos contra-
“intuitivos quando consideramos situações hipotéticas muito idealizadas,
simplificadas e improváveis. (Uma situação paradigmática é esta: um
cirurgião pode salvar cinco pacientes se matar uma certa pessoa € usar Os
seus órgãos em transplantes.) Se introduzirmos um maior realismo e deta-
lhe ao descrever as situações. descobriremos que, afinal, o veredicto da
teoria não é aquele que os seus críticos lhe haviam atribuído — ou, então,
tenderemos a concordar com o juízo consequencialista, que inicialmente
nos parecera impróprio.
Também em resposta ao conflito com as intuições morais comuns, os
consequencialistas dos actos procuram clarificar o estatuto da sua teoria.
22 Manual de Filosofia Política

Esta, dizem-nos, é primariamente um critério de obrigação, e não um pro-


cedimento de decisão. Ou seja, a teoria diz-nos qual é a propriedade que
os actos obrigatórios têm em comum e que os torna obrigatórios (é a pro-
priedade de maximizar o bem), mas não nos diz que os agentes devem
sempre tomar decisões com o objectivo de maximizar o bem. Na verdade,
acrescentam os consequencialistas dos actos, um agente que estivesse per-
manente e exclusivamente motivado pela maximização do bem ficaria
desastrosamente aquém desse ideal, já que, por exemplo, perderia dema-
siado tempo a tentar determinar as consequências das várias opções dis-
poníveis. Um consequencialista sensato, em vez de recorrer sistematica-
mente ao princípio da maximização do bem para tomar decisões, adoptará
diversos «princípios secundários» — para usar o termo de Mill (Mill, 1863:
* 64-66) — fáceis de aplicar e geralmente conducentes a boas consequências.
E, ao adoptar esses princípios. acabará por agir geralmente como um deon-
tologista recomendaria, pelo que, na prática, o consequencialismo dos
actos não levará à realização de actos intuitivamente errados.
Entre os que não consideram convincentes estas respostas dos
consequencialista dos actos, contam-se os consequencialistas das regras.
Em seu entender, o código moral ideal, aquele que maximiza o bem e
determina a permissividade das acções, tem um carácter deontológico: é
um código que reconhece restrições, obrigações especiais e prerrogativas.
Por isso, as implicações desta teoria quanto aos actos que são permissíveis,
obrigatórios ou errados ajustam-se satisfatoriamente às nossas intuições.
Em vez de estar em conflito com a deontologia, o consequencialismo das
regras apoia-a. Alguns críticos da teoria sustentam que esta vantagem é
ilusória: na verdade, dizem, o código ideal não é deontológico; de uma
forma ou de outra, ele coincidirá com o princípio de que os actos permis-
síveis são sempre aqueles que maximizam o bem. Se essa coincidência não
se verificar, acrescentam, o consequencialismo das regras não será uma
teoria consistentemente consequencialista, pois sancionará a reprovação
de actos que têm as melhores consequências. (Para uma resposta porme-
norizada a esta crítica, veja-se Hooker, 2000: Cap. 4.)
Vale a pena referir outra diferença importante entre teorias con-
seguencialistas. Alguns consequencialistas (sejam eles dos actos ou das
regras) defendem uma versão objectiva ou actualista da teoria; outros
optam por uma versão subjectiva ou probabilista. Para esclarecer esta dife-
rença, imaginemos um médico que pode prescrever uma de duas substân-
cias a um certo paciente. Ambas as opções têm apenas dois resultados
Utilitarismo 23

possíveis. A substância A pode resultar numa cura extremamente rápida


(a probabilidade de isso acontecer é de 30%), mas também pode desenca-
dear uma reacção alérgica letal. A substância B pode resultar numa cura
sem sobressaltos, ainda que mais lenta (a probabilidade de isso acontecer
é de 80%), e também pode desencadear uma reacção alérgica, mas esta
envolverá apenas algum sofrimento e não comprometerá a cura. Suponha-
-se que a seguinte tabela indica o nível de bem-estar que o paciente obtém
em cada um dos quatro cenários possíveis:

O paciente não tem uma O paciente tem uma


reacção alérgica reacção alérgica

Prescrever a substância A 100 0


Prescrever a substância B 90 80

Imaginemos agora que o médico prescreve a substância À e que o


paciente não tem a reacção alérgica. De que modo um consequencialista
dos actos avaliará a conduta do médico? (Supondo, claro, que só o bem-
-estar do paciente foi afectado pela escolha em causa.) Se ele defender a
versão actualista da teoria, dirá que o médico realizou o acto certo, já que
fez aquilo que teve efectivamente as melhores consequências. Porém, se o
consequencialista optar antes pela versão probabilista, dirá que aquilo que
importa é a maximização da utilidade esperada (ou valor esperado), e
não da utilidade actual ou efectiva, pelo que o médico agiu erradamente.
Afinal, a utilidade esperada do acto de prescrever A é inferior à utilidade
esperada do acto de prescrever B. Para apurar a utilidade esperada de cada
um dos actos, multiplicamos o valor de cada resultado pela sua respectiva
probabilidade, e depois somamos os produtos obtidos desta forma. As uti-
lidades esperadas dos actos de prescrever A e de prescrever B são, res-
pectivamente, as seguintes:

(100 x 0.3) + (0 x 0.7) = 30


(90 x 0.8) + (80 x 0.2) = 88

Este exemplo parece mostrar que o consequencialismo probabilista


é mais plausível, já que, apesar do desfecho feliz, a conduta do médico
afigura-se-nos indefensável. Mas, perante este juízo, o consequencialista
actualista dirá que temos de distinguir o certo e o errado do louvável e do
censurável (ou do racional e do irracional). O médico realizou o acto certo,
24 Manual de Filosofia Política

insistirá ele, mas, por ter corrido um risco insensato, não deixou por isso
de ter feito algo profundamente censurável ou irracional.

3. CONDUTA PRIVADA E POLÍTICAS PÚBLICAS

Os fundadores do utilitarismo interessaram-se profundamente por


questões políticas — e, na verdade, parecem ter julgado que a importância
prática da teoria residia sobretudo no seu poder de justificar reformas pro-
fundas nas instituições políticas. Bentham dedicou muito do seu trabalho
à reforma de sistemas legais, e Mill empenhou-se profundamente na
defesa de causas como a igualdade das mulheres e a liberdade de expres-
são. No entanto, ao longo do século XX o utilitarismo foi discutido sobre-
tudo enquanto teoria da moralidade pessoal. Robert E. Goodin (1995)
lamenta esta situação. Em seu entender, os vícios atribuídos ao utilitarismo
na esfera da moralidade pessoal não se colocam na esfera da política ou aí
convertem-se mesmo em virtudes. Por isso, mesmo que o utilitarismo não
seja um bom guia para a conduta privada, mantém uma grande força como
«filosofia pública»: os titulares de cargos públicos, sempre que tomem
decisões nessa qualidade, devem escolher as suas políticas tendo em vista
a maximização do bem-estar.
Na esfera privada, sugere Goodin, o carácter impessoal e calculador
do utilitarismo revela-se pouco atraente. Por exemplo, esperamos que os
pais dêem mais importância aos filhos do que aos estranhos, e que se rela-
cionem com eles de forma espontânea, sem se preocuparem sistematica-
mente com os efeitos dos seus actos. No entanto, na esfera pública esses
traços do utilitarismo são desejáveis: não queremos que os titulares de car-
gos públicos definam as políticas espontaneamente, sem ponderarem com
frieza os seus efeitos expectáveis na vida dos cidadãos; tão-pouco tolera-
mos que, nas suas decisões, eles favoreçam os seus familiares ou aqueles
que os beneficiaram no passado.
Goodin sustenta também que as preocupações com a permissividade
excessiva do utilitarismo não têm razão de ser no âmbito da política:

Quando promuigam políticas, os titulares de cargos públicos têm de


reagir a condições típicas e a circunstâncias comuns. As políticas. pela sua
natureza, não podem ser ditadas caso a caso. Quando se escolhem regras
gerais para governar um conjunto amplo de circunstâncias. é extraordina-
Utilitarismo

to
tr
riamente improvável que se possa alcançar alguma vez a felicidade máxima
com a violação dos direitos. das liberdades e da integridade das pessoas.
(Goodin,1995: 69)

Além disso, defende Goodin, enquanto filosofia pública o utili-


tarismo não resultará em exigências excessivas: os titulares de cargos
públicos definirão que sacrifícios devemos fazer, colectivamente, para
promover o bem-estar geral. Como esses sacrifícios serão repartidos pelos
cidadãos, a «quota-parte» de cada um (digamos, a quantia que cada cida-
dão deverá doar aos países mais desfavorecidos) será razoável e não amea-
cará o desenvolvimento de projectos e de compromissos pessoais.

4. DEFESAS DO UTILITARISMO

Talvez as objecções ao utilitarismo sejam superáveis. Mesmo que


não o sejam, talvez o utilitarismo possa manter-se credível na esfera da
política. Contudo. por muito bem que o utilitarismo se comporte perante
as objecções, precisamos de razões para o aceitar.
Mill propôs uma «prova» do utilitarismo (Mill. 1863: 75-81), mas o
seu argumento, que foi interpretado de muitas maneiras, não é particular-
mente claro. Segundo Mill, justificar o utilitarismo é mostrar que só a feli-
cidade geral é desejável como fim. O seu ponto de partida é uma perspec-
tiva psicológica: as pessoas desejam a sua própria felicidade e, na verdade.
não desejam outra coisa como fim. Portanto, só a felicidade de uma pes-
soa é desejável (ou é um bem) para ela mesma. Logo. a felicidade geral
é um bem — na verdade, é a única coisa desejável como fim — para o agre-
gado de todas as pessoas.
Este é o conteúdo essencial do argumento de Mill. que foi muito
criticado dentro da própria tradição utilitarista. Por exemplo, Moore
defendeu que do facto de uma coisa ser desejada não podemos inferir que
ela é desejável, pois «desejável» não significa «pode ser desejado», mas
«merece ou deve ser desejado» (Moore, 1903: 66-68). E Sidgwick, além
de ter contestado (como muitos outros) o egoísmo psicológico, defendeu
que a premissa básica de Mill é incoerente com o utilitarismo (Sidgwick,
1907: xvii). Afinal, aceitar a ética utilitarista implica ter uma forte dispo-
sição para o altruísmo, o que não parece possível se as pessoas desejarem
apenas a sua própria felicidade. A «prova» de Mill parece, então, irre-
26 Manual de Filosofia Política

mediavelmente falaciosa, mas alguns autores (e.g., Crisp, 1997: 67-90)


esforçaram-se por reconstituí-la de forma isentá-la dos erros mais
grosseiros.
No século XX, tanto Hare como Harsanyi tentaram também oferecer
argumentos directos a favor do utilitarismo. O primeiro procurou mostrar
que o utilitarismo decorre de uma compreensão adequada da linguagem
moral (Hare, 1981: 87-116). Segundo Hare, os juízos morais são prescri-
tivos: não descrevem aspectos da realidade, mas exprimem preferências.
Além disso, as prescrições morais são universalizáveis: se fizermos um
certo juízo moral a respeito de uma dada situação, teremos de fazer o
mesmo juízo a respeito de quaisquer outras situações, reais ou hipotéticas,
precisamente similares, seja qual for a posição que ocupemos nessas situa-
ções. A prescritividade e a universalizabilidade são, então, «propriedades
lógicas» dos juízos morais. Ora, acrescenta Hare, para determinar o que
devemos fazer não podemos recorrer às nossas intuições sobre o que é
moralmente certo e errado. Temos de nos basear apenas na compreensão
das propriedades lógicas dos juízos morais e no conhecimento dos factos
não-morais. E esse conhecimento envolve saber como é estar no lugar dos
que serão afectados pelo que fizermos, o que implica representar fielmente
para nós próprios as suas preferências. Segundo Hare, se pensarmos cor-
rectamente - ou seja, se atendermos à exigência de universalizar as nossas
prescrições, sabendo como é estar no lugar dos outros — escolheremos
sempre o curso de acção que resultará na máxima satisfação de preferên-
cias, e isto mostra que o utilitarismo é a perspectiva ética a adoptar.
O argumento de Hare aqui esboçado é vulnerável em vários aspec-
tos. Na metaética, os cognitivistas defendem que os juízos morais não
são realmente prescrições universalizáveis: eles são verdadeiros ou falsos,
pelo que exprimem crenças, e não desejos ou preferências, que não têm
valor de verdade. Além disso, a grande maioria dos filósofos morais e
políticos considera injustificável a perspectiva segundo a qual, para se
determinar o que se deve fazer, importa pôr de parte as nossas intuições
morais. Na verdade, em grande medida devido à influência de John Rawls
(1971), o cepticismo de Hare a respeito das intuições morais costuma ser
considerado excessivo. Elas são falíveis, sem dúvida, mas isso significa
apenas que não devemos tomá-las como um fundamento inabalável do
pensamento moral. O método adequado consiste em partir de «juízos
ponderados», que captam as nossas intuições morais mais fiáveis, e tentar
depois sistematizá-los propondo princípios que os justifiquem. Veremos
Utilitarismo 27

então que algumas das nossas intuições têm de ser abandonadas por não
estarem de acordo com os princípios propostos — e que alguns princípios
precisam de ser revistos porque estão em conflito com certas intuições.
Reconsiderando e revendo intuições e princípios, procuramos atingir um
«equilíbrio reflectido» entre ambos. Se este método é aceitável, o argu-
mento de Hare não é convincente, pois baseia-se na ideia de que devemos
pura e simplesmente ignorar as nossas intuições morais e concentrarmo-
-nos nos aspectos formais da linguagem moral.
Harsanyi (1953; 1977) tentou justificar o utilitarismo mostrando que
um decisor devidamente caracterizado escolheria maximizar a satisfação
de preferências. O decisor ideal de Harsanyi tem duas características: por
um lado, é racional; por outro lado, está sob um «véu de ignorância». para
usar expressão celebrizada por Rawls. A racionalidade do decisor significa
apenas que as suas escolhas maximizam a utilidade esperada. A segunda
propriedade do decisor consiste em ele ignorar inteiramente o lugar que irá
ocupar na sociedade à qual as suas escolhas dizem respeito. É em virtude
de possuir esta propriedade que ele fará as suas escolhas com a imparcia-
lidade que a ética exige. Se soubesse qual o seu lugar na sociedade, sugere
Harsanyi, poderia limitar-se a escolher em função do seu interesse pessoal.
Imaginemos agora que um decisor ideal pretende escolher entre
dois «sistemas sociais»: uma democracia e uma ditadura. Suponhamos
que a sociedade a que essa escolha diz respeito consiste em n indivíduos.
Denotemos os níveis de bem-estar (ou utilidade) de que os indivíduos
1, 2... n desfrutariam no sistema social em causa da seguinte maneira:
Ui, U> ... Un. Sob o véu de ignorância de Harsanyi, o decisor atribuirá a
mesma probabilidade, 1/n, à situação de ocupar cada posição social espe-
cífica e, consequentemente, à situação de desfrutar cada um dos níveis de
bem-estar Ui, U> ... Ua. Sendo racional, ele escolherá o sistema social que
lhe ofereça as melhores perspectivas de bem-estar. Como poderá fazer
isso? Para simplificar, suponhamos que temos apenas quatro cidadãos e
que os níveis de bem-estar em cada sistema são os seguintes:

Democracia U,=4 U>=3 Us=3 Usu=2

Ditadura U,=6 U2=2 Ug=1 Us=]

Como não sabe que posição ocupará em qualquer dos sistemas


sociais, o decisor atribuirá uma probabilidade de !/4 à hipótese de, em cada
28 Manual de Filosofia Política

sistema, ocupar cada uma das posições possíveis. Poderá então calcular a
utilidade esperada de ambas as opções. Os cálculos para a opção da demo-
cracia e para a opção da ditadura são, respectivamente, os seguintes:

(axis 0xig+gxUg+0x9)=3
(6x!/g+2x!/g+xig+(xi/g=25

Interessado em maximizar a utilidade esperada, o decisor escolherá,


nestas circunstâncias, o sistema democrático. Ao fazê-lo, terá escolhido o
sistema que, considerados todos os indivíduos, exibe o maior bem-estar
médio. Em suma, os agentes racionais maximizam a utilidade esperada.
Sob um véu de ignorância que os leva a assumir um ponto de vista moral,
escolhem as opções que maximizam o bem-estar médio de toda a popula-
ção considerada.
O argumento de Harsanyi suscitou um debate com Rawis, que, na
sua teoria da justiça, propôs um véu de ignorância significativamente
menos «espesso» (veja-se Harsanyi, 1975; Rawis, 1971: 137-147; 1974).
O decisor de Harsanyi não sabe que lugar irá ocupar numa dada sociedade,
mas sabe que tem a mesma probabilidade de ocupar cada um dos lugares
possíveis nessa sociedade, o que lhe permite escolher aquilo que maximiza
a utilidade esperada. Um decisor rawlsiano, pelo contrário, nada sabe
sobre a probabilidade de ocupar cada um desses lugares, pelo que, em vez
de obedecer ao princípio da maximização da utilidade esperada, faz as
suas escolhas segundo o princípio maximin: escolhe a opção que tem o
melhor pior resultado possível. Se entendermos que este é o princípio ade-
quado para fazer escolhas racionais numa situação de ignorância, teremos
de rejeitar o argumento de Harsanyt a favor do utilitarismo.
Mill, Hare e Harsanyi oferecem-nos argumentos directos a favor do
utilitarismo: outros utilitaristas (ou, de um modo mais geral, outros conse-
quencialistas) optam por defesas mais indirectas da teoria: justificam-na
tentando mostrar que as teorias alternativas são muito implausíveis ou infun-
dadas. Por exemplo, Shelly Kagan (1989) defende o consequencialismo dos
actos recorrendo à seguinte estratégia: começa por pressupor que a promo-
ção do bem é um factor normativamente relevante, e depois examina a ques-
tão de saber se existem outros factores relevantes, capazes de gerar restri-
ções e prerrogativas; expõe então as dificuldades que os defensores desses
factores adicionais têm de enfrentar e, como não encontra saída para essas
dificuldades, conclui que a promoção do bem é o único factor relevante.
Utilitarismo 29

5. JUSTIÇA E LIBERDADE

Na esfera da política. a objecção mais comum ao utilitarismo diz res-


peito à justiça distributiva: o utilitarismo sanciona distribuições injustas de
bens porque nos diz que seria aceitável — ou melhor, obrigatório — canali-
zar recursos dos mais pobres para um número suficientemente vasto de
pessoas bastante abastadas, se assim se obtivesse um maior bem-estar total
ou médio. Por exemplo. se manter alguns escravos resultar numa maior
felicidade geral, deveremos aceitar a escravatura. Rawls substanciou esta
objecção. defendendo que «o utilitarismo clássico não leva a sério a dis-
tinção entre os diversos sujeitos. O princípio da escolha racional aplicável
a um sujeito é tomado também como princípio da escolha social» (Rawls,
1971: 156). Parece apropriado um indivíduo sacrificar algum bem-estar
num certo momento para obter. ele mesmo. um maior bem-estar num
momento posterior. O utilitarista. sugere Rawls, estende impropriamente
este princípio à sociedade como um todo, pelo que torna obrigatório que
alguns se sujeitem (ou sejam sujeitados) a enormes sacrifícios para bene-
fício de muitos outros. E esta extensão é inadequada porque ignora o facto
de as pessoas serem sujeitos distintos, com uma vida própria para viver.
Perante esta crítica. uma possibilidade é rejeitar o agregacionismo,
mas insistir numa teoria que preserve os outros dois traços essenciais
do utilitarismo. isto é, que seja consequencialista e welfarista. A teoria de
Hooker enquadra-se nesta possibilidade. pois diz-nos que. na avaliação
de estados de coisas. devemos atender a dois factores: o bem-estar total e
a situação dos mais desfavorecidos (Hooker, 2000: 43-66). Nesta pers-
pectiva do valor sensível à distribuição, o melhor estado de coisas será
aquele que exiba a combinação mais feliz entre o maior bem-estar e a
melhor situação para os mais desfavorecidos.
Porém, os utilitaristas sustentam que as preocupações com a justiça
não os forçam a rever a sua teoria (Mill, 1863: 83-105; Brandt, 1979: 306-
-326: Hare, 1981: 156-168). Muitos alegam que, devidamente aplicado em
circunstâncias sociais realistas. o utilitarismo sanciona um igualitarismo
moderado ou qualificado. Brandt, por exemplo, desenvolve uma defesa
utilitarista do seguinte princípio distributivo:

O rendimento real [...] depois de cobrados os impostos deve ser


igual, excepto (a) para suplementos que visem satisfazer necessidades espe-
ciais: (b) suplementos que recompensem serviços na medida em que isso for
30 Manual de Filosofia Política

necessário para proporcionar incentivos desejáveis e alocar recursos efi-


cientemente, e (c) variações para atingir outros fins socialmente desejáveis,
como o controle populacional. (Brandt, 1979: 310)

Que razões têm os utilitaristas para adoptar um «princípio secundá-


rio» como este? A razão mais preeminente é a utilidade marginal decres-
cente do dinheiro e de outros bens: cada euro adicional que uma pessoa
receber adiciona menos satisfação do que aquela proporcionada pelo euro
anterior. Outra razão é a falta de informação sobre a satisfação que cada
indivíduo obterá com o dinheiro. A estratégia ideal para dividir a riqueza
de forma a maximizar a felicidade geral, sugere Brandt, seria fazê-lo de
maneira a que a satisfação adicional obtida por cada pessoa com o seu
último euro fosse exactamente a mesma. Contudo, como não sabemos
quais são as «curvas de utilidade» dos indivíduos (a satisfação que cada
um obtém com, por exemplo, 100, 500 ou 1000 euros), a estratégia mais
racional para maximizar a felicidade é optar pela divisão equitativa, sujeita
às qualificações indicadas. Outra razão utilitarista para favorecer a igual-
dade na distribuição da riqueza é isso mitigar os efeitos nocivos da pro-
pensão humana para a inveja (Hare, 1981: 165-166).
No pensamento político utilitarista, este igualitarismo moderado coe-
xiste com a defesa de uma sociedade em que a interferência na liberdade
individual se encontra severamente circunscrita. Em Sobre a Liberdade,
Mill defende o «princípio do dano», sublinhando que a sua justificação
última reside na utilidade da sua implementação. Este princípio proíbe
toda e qualquer interferência paternalista na vida de cada um:

[O] único fim para o qual os seres humanos estão autorizados a inter-
ferir, colectiva ou individualmente, na liberdade de acção de qualquer um
dos seus semelhantes é a auto-protecção. O único propósito para o qual o
poder pode ser exercido legitimamente sobre qualquer membro de uma
comunidade civilizada, contra a sua vontade, é o de impedir que ele cause
dano a outros. O seu próprio bem, seja ele físico ou moral, não é justifica-
ção suficiente. Ele não pode ser compelido a fazer algo ou a abster-se de
algo por isso ser melhor para ele mesmo, por isso torná-lo mais feliz ou
por isso, na opinião dos outros, ser sensato ou mesmo certo. (Mill, 1859: 78)

De um modo geral, os utilitaristas aprovam políticas resolutas de


redistribuição da riqueza ao mesmo tempo que insistem na protecção de
liberdades individuais, pelo que hoje parecem aprovar o tipo de estado-
Utilitarismo 31

-providência que encontramos nas democracias liberais europeias. (Goo-


din e Singer, por exemplo, declaram-se sociais-democratas.) No entanto,
talvez seja difícil identificar as verdadeiras implicações políticas do utili-
tarismo, pois há quem defenda o estado mínimo apoiando-se em grande
medida em argumentos de carácter utilitarista, como o de que o estado-
-providência, em virtude de incentivar a desresponsabilização individual,
fomenta a ruína económica. O debate em forma de livro entre Robert
Goodin e David Schmidtz (1998) proporciona uma boa forma de com-
preender os problemas que aqui se colocam: o primeiro defende o estado-
-providência e o segundo advoga o estado mínimo, mas ambos aduzem
sistematicamente considerações utilitaristas a favor da sua posição.

6. A RELEVÂNCIA DO UTILITARISMO

Suponha-se que não consideramos convincentes os argumentos a


favor do utilitarismo e que, além disso, julgamos que todas as versões da
teoria enfrentam objecções poderosas. Ainda assim, será apropriado ter em
conta a perspectiva utilitarista quando nos ocupamos de questões normati-
vas, pois não é preciso aceitá-la para acreditar não só que um elemento
importante na avaliação de práticas, políticas e instituições é o seu impacto
no bem-estar geral, mas também que esse elemento é frequentemente deci-
sivo. Imagine-se que admitimos direitos morais e obrigações especiais, e
que não há forma de os reconciliar com o utilitarismo. Isto não nos impede
de aceitar que a perspectiva correcta sobre algumas questões importantes
seja a utilitarista. Por exemplo, se concluirmos que a discriminação posi-
tiva não infringe realmente quaisquer direitos morais e que, além disso,
tem consequências valiosas que suplantam largamente os seus efeitos
nocivos, poderemos aprová-la por essa razão; se ficar claro que a deso-
bediência civil se justifica pelo padrão utilitarista, e que praticá-la não
implica infringir qualquer obrigação especial, poderemos aceitar a justifi-
cação que esse padrão nos oferece. Inversamente, se uma prática não
envolver qualquer desrespeito por direitos ou por obrigações especiais,
mas tiver um impacto muito negativo no bem-estar geral, isso poderá ser
suficiente para a reprovarmos. O utilitarismo talvez não nos dê, em última
análise, tudo o que precisamos de levar em conta quando examinamos
questões morais e políticas, mas é difícil negar a relevância da perspectiva
utilitarista.
32 Manual de Filosofia Política

BIBLIOGRAFIA

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CAPÍTULO II
Liberalismo igualitário

JoÃo CARDOSO ROSAS*

O paradigma liberal igualitário contemporâneo surge como reacção


contra o utilitarismo dominante na política e na economia. Em vez da pers-
pectiva consequencialista, welfarista e agregativa que caracteriza as dife-
rentes formas de utilitarismo, o liberalismo igualitário é de carácter deon-
sológico, não welfarista e anti-agregativo. Ele afirma a primazia da virtude
social da justiça e do respeito por direitos individuais. Para o liberalismo
igualitário estes valores não são negociáveis em função de quaisquer
consequências antecipáveis que permitam a maximização do bem-estar
asregado. Isso mesmo é vincado por Rawls de um modo enfático:

Cada pessoa beneficia de uma inviolabilidade que decorre da justiça,


a qual nem sequer em benefício do bem-estar da sociedade como um todo
poderá ser eliminada. Por esta razão, a justiça impede que a perda da liber-
dade para alguns seja justificada pelo facto de outros passarem a partilhar
um bem maior. Não permite que os sacrifícios impostos a uns poucos sejam
compensados pelas vantagens usufruídas por um maior número. Assim
sendo, numa sociedade justa a igualdade de liberdades e direitos entre os
cidadãos é considerada como definitiva; os direitos garantidos pela justiça
não estão dependentes da negociação política ou do cálculo dos interesses
sociais. (Rawls, 1971: 27)

Ou seja, a justiça e os direitos individuais a ela associados — tanto


=1s e políticos como sociais e económicos — funcionam como uma espé-

* Universidade do Minho.
36 Manual de Filosofia Política

cie de trunfo (Dworkin, 1977). Eles têm sempre a primazia diante de


qualquer negociação ou cálculo, eventualmente conducentes a um
acréscimo de bem-estar. Nenhum acréscimo de bem-estar pode justificar
o cancelamento ou a diminuição de liberdades e direitos que decorrem da
justiça.
Esta breve comparação com o paradigma utilitarista permite tocar no
essencial do liberalismo igualitário contemporâneo. Se quisermos definir
provisoriamente esta teoria, podemos dizer que ela procura conjugar a
prioridade das liberdades básicas, civis e políticas, com a relevância da
igualdade de oportunidades e da função distributiva do Estado. Ou seja, a
justiça civil e política, com a justiça social e económica. Mas, tal como a
justiça no seu todo é prioritária em relação ao aumento do bem-estar,
também a justiça civil e política é prioritária em relação à justiça social e
económica. Isto significa que a segunda não deve ser realizada à custa do
sacrifício da primeira. Por outras palavras, o igualitarismo nunca deve ser
promovido à custa da liberdade. Daí estarmos diante de um paradigma que
é, em primeiro lugar, liberal e, depois, tendencialmente igualitário em
termos sócio-económicos.
O liberalismo igualitário conhece a sua defesa mais abrangente e
sofisticada com a obra Uma Teoria da Justiça, de John Rawls. Aí são arti-
culados os aspectos fundamentais desta corrente e, também aí, inicia-se
uma imensa produção filosófica que procura solucionar puzzles teóricos
deixados em aberto pelo próprio contributo de Rawls. Alguns desses
puzzles levarão ao desenvolvimento de outros paradigmas, como o liber-
tarismo (com Nozick), ou o comunitarismo (a partir de Sandel). Outros são
solucionados no âmbito interno do liberalismo igualitário tal como acima
definido. É o caso das questões levantadas sobre o estatuto da ideia de
igualdade ou, mais exactamente, sobre o tipo de bens que deve estar em
causa quando se trata de conseguir uma distribuição tendencialmente igua-
litária. Neste aspecto, são especialmente importantes os contributos de
pensadores liberais igualitários como Ronald Dworkin e Amartya Sen.
Uma outra vertente do pensamento liberal igualitário é aquela que tem
procurado aplicar uma visão neo-rawlsiana às questões da justiça global,
como nos casos de Charles Beitz e Thomas Pogge. Voltaremos a estes
autores no final do capítulo.
Liberalismo igualitário 37

1. A TEORIA DA JUSTIÇA DE RAWLS

Por razões que serão clarificadas mais adiante, Rawls intitula de


«justiça como equidade» a sua concepção liberal igualitária da justiça.
Esta concepção parte de uma intuição básica — a da sociedade como um
sistema de cooperação —, para depois formular os princípios da justiça,
defendendo-os de duas formas distintas. Primeiro, mediante o estabeleci-
mento de um equilíbrio reflectido provisório entre as nossas intuições
morais € OS próprios princípios da justiça. Segundo, através do recurso ao
artefacto teórico neocontratualista da «posição original». Só no final desta
dupla argumentação se pode considerar estar a concepção de justiça
devidamente argumentada.
A concepção da justiça aplica-se então à «estrutura básica da socie-
dade», ou seja, às principais instituições sociais. A visão de Rawls é insti-
tucionalista e puramente processual. Uma sociedade justa será aquela em
que a estrutura básica está ordenada segundo os princípios da justiça,
sejam quais forem os resultados obtidos por cada indivíduo ou grupo.
Rawls considera ainda que a sua teoria da justiça como equidade não
veicula nenhuma concepção específica do bem, nem nenhuma doutrina
abrangente em particular, sendo por isso a mais adequada para um con-
texto pluralista como aquele que marca indelevelmente as sociedades
democráticas.

A sociedade como sistema de cooperação

Partamos então da ideia de sociedade como um sistema de coopera-


cão que visa o bem daqueles que nele participam. Os participantes são
indivíduos, mas devemos talvez chamar-lhes «cidadãos»!. Devemos tam-
bém pressupor que eles são dotados de racionalidade e de razoabilidade. A
racionalidade instrumental permite aos cidadãos a selecção de concepções
do bem e dos meios adequados para as realizar na sua vida. A racionali-
dade. portanto, é a base do exercício da liberdade de cada um. Por sua vez,

1! Em Uma Teoria da Justiça, Rawls usava a palavra «indivíduos» (Rawls, 1971).


Mais tarde passou a preferir falar de «cidadãos» para relevar o aspecto político — e não
metafísico — da teoria. Pode-se constatar isso mesmo em Liberalismo Político (Rawils,
1993).
38 Manual de Filosofia Política

a razoabilidade permite que cada cidadão esteja disposto a chegar a termos


de entendimento com os outros, tornando possível a vida social. Neste sen-
tido, a razoabilidade permite a emergência de um sentido de justiça em
cada um. Dotados de racionalidade e de razoabilidade, os cidadãos têm as
condições para exercer a sua liberdade numa sociedade justa. Eles são
iguais nesse sentido, ou seja, enquanto dotados dessas condições de base
por igual.
À ideia de cooperação social entre cidadãos iguais assim concebidos
é uma ideia normativa e não meramente descritiva. Mas uma teoria da jus-
tiça tem sempre de ter um qualquer ponto de partida deste tipo. É certo que
existem tentativas de carácter hobbesiano, ou neo-hobbesiano, que visam
derivar a normatividade apenas de uma racionalidade instrumental ou pru-
dencial. Segundo as perspectivas deste tipo a racionalidade, só por si, pro-
duz a normatividade ética e, assim também, as condições necessárias e
suficientes para justificar a cooperação e a ordem social (é o caso de Gau-
thier, 1986). Não é esta a perspectiva de Rawls. Este é mais lockeano do
que hobbesiano. Ou seja, o ponto de partida da sua teoria é ele próprio uma
ideia moral e não a mera racionalidade, nem mesmo na versão contem-
porânea da teoria da escolha racional.2
A ideia de igualdade dos cidadãos em Rawls pode ser clarificada
mediante uma breve comparação com o utilitarismo. Este último faz
assentar a igualdade entre os indivíduos no facto de eles serem sujeitos de
utilidade ou, por outras palavras, no facto de terem desejos ou interesses.
À igualdade define-se então como igualdade na consideração dos interes-
ses individuais. Todos os indivíduos afectados pela nossa acção, ou pelas
regras da vida em sociedade, são vistos como iguais na medida em que
os seus interesses são atendidos por igual, sem discriminação. Podemos
depois introduzir uma qualquer hierarquia de interesses, mostrando que
uns são mais importantes ou urgentes do que outros. Mas essa hierar-
quização faz-se em função dos próprios interesses em causa, não dos
indivíduos que os detêm. Os indivíduos são tratados por igual, com igual
consideração dos seus interesses, em função do peso e prioridade destes.
Para Rawils, a igualdade, cobrindo tanto a racionalidade como a
razoabilidade, é antes vista como uma propriedade natural que qualifica os

2 O próprio Rawis afirmava inicialmente que a sua teoria se enquadrava na da


escolha racional. Mas depois corrigiu este ponto em Rawls (1993).
Liberalismo igualitário 39

cidadãos enquanto sujeitos morais. Isto não significa que não existam
variações entre os cidadãos e que eventuais índices de racionalidade e
razoabilidade não pudessem ser contemplados. Mas a igualdade é aqui
vista como uma «propriedade de base», atribuída a todos os que coloca-
mos dentro do círculo da cidadania, ainda que uns possam ter mais e
outros menos. Uma possível comparação é a que remete para o modo
como Thomas Hobbes encara a força corporal (Hobbes, 1651: Cap. XIII).
Hobbes chama a atenção para o facto de uns indivíduos terem menos e
outros mais (força corporal), mas também para o facto de que essas dife-
renças não são assim tão grandes que impeçam o mais fraco de vencer o
mais forte (pela astúcia). Da mesma forma, a igual racionalidade e razoa-
bilidade dos cidadãos em Rawls qualifica-os igualmente como seres capa-
zes de uma concepção do bem e de um sentido de justiça, ainda que eles
não sejam estritamente iguais nessas capacidades.
Dito isto, não podemos esquecer que a sociedade como sistema de
cooperação entre cidadãos iguais é também palco de conflitos em torno da
distribuição dos benefícios e encargos que decorrem ou estão associados a
essa mesma cooperação. Geralmente, os cidadãos têm tendência a reivin-
dicar mais benefícios e a evitar encargos excessivos. Em qualquer caso,
nenhuma sociedade humana pode, em condições normais, evitar recorrer
a princípios que, explícita ou implicitamente, estabeleçam quem tem
direito a quê. Ora, é esse o papel que desempenham os princípios da jus-
tiça. Eles visam encontrar a forma mais adequada de distribuir os benefí-
cios e encargos, ou direitos e deveres, entre os cidadãos1 iguais, racionais €
razoáveis, participantes na cooperação social.

Bens sociais primários

Na concepção rawlsiana, os princípios da justiça não dizem respeito


a todo e qualquer valor social. A justiça deve ocupar-se apenas dos valo-
res mais fundamentais em causa na cooperação social, ou seja, aquilo que
Rawis designa por «bens sociais primários». Por um lado, estes bens são
instrumentais, isto é, são aqueles de que todos necessitamos para obter
tido aquilo que queremos e podemos alcançar. Eles constituem tudo aquilo
que alguém deseja independentemente de tudo o mais que possa desejar.
Por isso são primários e não secundários. Por outro lado, estes bens são
produzidos pelas instituições sociais e não por causas naturais. O modo
40 Manual de Filosofia Política

como são distribuídos depende também da própria configuração das insti-


tuições. Por isso são sociais e não naturais.
Os bens sociais primários são as liberdades e imunidades, as oportu-
nidades e poderes, a riqueza e o rendimento e, por último, as bases sociais
do respeito próprio. De uma forma ainda mais sucinta podemos dizer que
os bens sociais primários que são directamente distribuídos pelas insti-
tuições sociais são três: liberdades, oportunidades e riqueza. Todos e cada
um de nós necessitamos de liberdades básicas (que incluem as imunidades
legais) que protegem as muitas escolhas que fazemos ao longo da vida.
As oportunidades dão-nos o poder efectivo de realizar essas escolhas. A
riqueza (juntamente com os rendimentos) permite dar maior valor às nos-
sas escolhas. As bases sociais do respeito próprio são um bem primário de
tipo diferente. O respeito que cada um tem por si mesmo € pela vida que
escolheu depende da possibilidade real de desenvolver as suas escolhas e
do facto de elas serem reconhecidas pelos outros (o respeito próprio tam-
bém depende do respeito que os outros nos prestam). Assim, o respeito
próprio é uma espécie de subproduto de uma sociedade na qual os bens
sociais primários estão correctamente distribuídos. Embora o respeito
próprio não seja directamente distribuído pelas instituições sociais, ele
decorre de uma sociedade organizada de modo a distribuir com justiça os
restantes bens sociais primários.

Princípios da justiça

À partida, pensando numa sociedade de cooperantes iguais tal como


acima definida, os bens sociais primários deveriam ser distribuídos por
igual. Daí podermos formular uma «concepção geral de justiça»:

Todos os valores sociais — liberdade e oportunidade, rendimento e


riqueza, € as bases sociais do respeito próprio — devem ser distribuídos
igualmente, salvo se uma distribuição desigual de algum desses valores, ou
de todos eles, redunde em benefício de todos. (Rawls, 1971:69)

Segundo Rawls, portanto, a intuição básica na primeira formulação da


concepção de justiça é puramente igualitária. Mas, como se pode ler nesta
passagem, existe também uma ressalva. Não seria racional não admitir uma
distribuição desigual se fosse possível demonstrar que essa desigualdade
Liberalismo igualitário 41

relativa a um ou mais bens sociais primários redundasse em benefício


de todos. Se, em algum aspecto, a desigualdade na distribuição de bens
sociais primários for benéfica para cidadãos iguais nos seus poderes
morais, não existirão com certeza boas razões para a rejeitar. Note-se que,
nesta concepção geral, não existe prioridade na distribuição de qualquer
bem social primário. A liberdade não está antes da riqueza, por exemplo.
Rawls formula também uma «concepção especial da justiça», na qual
distingue dois princípios separados:

Primeiro
Cada pessoa deve ter um direito igual ao mais extenso sistema
de liberdades básicas que seja compatível com um sistema de liberdades
idêntico para as outras.

Segundo
As desigualdades económicas e sociais devem ser distribuídas por
forma a que, simultaneamente: a) se possa razoavelmente esperar que elas
sejam em benefício de todos: b) decorram de posições e funções às quais
todos têm acesso. (Rawls, 1971: 68)

Há duas grandes diferenças entre esta concepção e a anterior. Por uma


lado, agora distingue-se entre dois princípios e o primeiro deles ocupa um
lugar prioritário. Rawls sugere que, quando uma sociedade suplanta o está-
dio de pobreza absoluta, a distribuição da liberdade tem prioridade em rela-
ção aos outros bens sociais primários. Esta ideia faz todo o sentido na
medida em que, em circunstâncias normais de escassez moderada e não
absoluta, a liberdade fica assim salvaguardada face a qualquer política que
vise a promoção de outros valores. Não faria sentido estar a sacrificar um
bem social primário nem mesmo em nome de algum dos outros. Por outro
lado, esta concepção especial determina que as desigualdades económicas
e sociais devem ser balizadas por dois princípios: um que diz respeito às
oportunidades (a alínea b) e outro que diz respeito ao rendimento e riqueza
(a alínea a). Portanto, as desigualdades existentes na sociedade terão de ser,
de alguma forma, para benefício de todos, mas também associadas à mobi-
lidade social, isto é, ao acesso generalizado às diferentes funções e posições.
Ao contrário do que alguns leitores menos atentos de Rawls por
vezes pensam, esta não é propriamente a concepção de justiça por ele
defendida. Enquanto o primeiro princípio está aqui já razoavelmente defi-
nido, o segundo princípio é ainda muito ambíguo e só depois da clarifica-
42 Manual de Filosofia Política

ção e modificação dos termos do segundo princípio será possível chegar


à formulação básica da concepção defendida por Rawls. Assim, convém
explicar brevemente o primeiro princípio e, depois, passar a uma explici-
tação mais longa e complexa do segundo.
O primeiro princípio da justiça pode ser designado por «princípio
da liberdade», mas a sua designação mais adequada é a de «princípio das
liberdades». A liberdade não é aqui abordada enquanto problema metafí-
sico ou moral, mas apenas no seu sentido político. Tampouco importam as
distinções algo dúbias entre liberdade negativa e liberdade positiva, ou
outras do género. Assim, a liberdade é entendida como um conjunto de
liberdades, no plural. Este ponto remete para outro. Quando falamos num
conjunto de liberdades e pensamos que elas devem ser igualmente distri-
buídas, convém recorrer a uma noção de sistema. As liberdades são vistas
como um sistema na medida em que elas têm de ser compatibilizadas. Por
exemplo, a liberdade de expressão de uns tem de ser compatibilizada com
o direito ao bom nome de outros. Todas as liberdades levantam problemas
de compatibilização. A ideia de sistema de liberdade recorda este ponto.
Há duas formas de especificar o sistema de liberdades básicas para
todos: uma de natureza dedutiva, outra de natureza histórica. De um ponto
de vista dedutivo, temos de pensar quais as liberdades que devem ser atri-
buídas aos cidadãos enquanto sujeitos morais basicamente iguais. De um
ponto de vista histórico, podemos recorrer à experiência do constituciona-
lismo moderno e aos chamados direitos-liberdades, ou direitos de primeira
geração. Por uma via ou pela outra, o resultado é idêntico. As liberdades
básicas incluem a liberdade de pensamento e consciência, as liberdades da
pessoa, a liberdade de expressão e reunião, a protecção face à prisão arbi-
trária, a propriedade privada (mas não dos meios de produção: essa já não
é uma liberdade básica), ou o princípio geral do império da lei (rule of
law). Entre as liberdades básicas contam-se também as liberdades políti-
cas, como as de votar e ser eleito para cargos públicos. Todas estas liber-
dades são familiares da tradição constitucional moderna. Mas elas são
também um quesito essencial para a protecção de qualquer cidadão dotado
dos seus poderes morais básicos.3

3 A relação entre a teoria e a experiência histórica é pouco explorada por Rawls


em Uma Teoria da Justiça e apenas brevemente explorada em Liberalismo Político. No
entanto, ela parece-nos essencial. Depois da experiência histórica do constitucionalismo
liberal e, muito especialmente, da luta contra os totalitarismos no século XX, uma con-
Liberalismo igualitário 43

O segundo princípio da justiça é especialmente complexo. Um pri-


meiro ponto a notar é a aceitação da existência de desigualdades econó-
micas e sociais. Este é um facto de qualquer sociedade, mas é também
visto por Rawls como contendo pelo menos uma vantagem. À existência
de desigualdades de posição social e de remuneração ou riqueza constitui
um sistema de incentivos. Sem essas desigualdades, numa sociedade per-
feitamente igualitária (se ela existisse ou pudesse existir), os incentivos
seriam eliminados. Não haveria razões sociais e económicas para os indi-
víduos desenvolverem carreiras que implicam estudos e preparação espe-
cialmente longos, ou que requerem esforços e disciplina acima do normal.
Dessa forma, a sociedade no seu conjunto ficaria a perder.
Um segundo ponto a acentuar é a ideia de que as desigualdades
só são moralmente permitidas na medida em que estão associadas a duas
condições sine qua non e que são enunciadas nas alíneas do segundo prin-
cípio. De acordo com a alínea a), portanto, as desigualdades devem bene-
ficiar a todos. Segundo a alínea b), essas mesmas desigualdades têm de
decorrer de alguma modalidade de igualdade de oportunidades. Por razões
que ficarão mais claras adiante, a alínea b) deve ser tomada em considera-
ção antes da alínea a). É o que faremos de seguida.
Referir que as desigualdades devem decorrer de «posições e fun-
ções às quais todos têm acesso» pode significar duas coisas totalmente
diferentes. A primeira é a ideia de «carreiras abertas às competências»,
surgida com a Revolução Francesa e as revoluções liberais, no final do
século XVIII. Esta ideia rompe com a fixação do acesso às diversas fun-
ções e posições sociais em virtude do nascimento, ou seja, a ideia pre-
dominante no quadro do Antigo Regime. A abertura das carreiras às com-
petências institui um princípio de não-discriminação legal que teve largas
consequências na definição da modernidade política. Embora esta não-
-discriminação seja um ideal sempre incompletamente alcançado, ele
molda muito da política moderna, já que o combate às diversas formas
de discriminação passou progressivamente do combate à discriminação
social ao da discriminação baseada no sexo ou na raça.

cepção de justiça que ignore as liberdades e a sua prioridade deveria, pura e simplesmente,
ser afastada pela sua incapacidade de honrar a nossa história recente. Mas, na prática,
não é isso que acontece. São os cidadãos das sociedades livres que, muitas vezes, menor
valor atribuem às liberdades e à sua prioridade.
44 Manual de Filosofia Política

Apesar da importância da abertura das carreiras às competências,


Rawls nota que ela nem sempre permite um acesso efectivo às diferentes
posições e funções. Isso deve-se ao facto de os pontos de partida indivi-
duais serem muito diferentes em termos familiares. Uma vez que o meio
sócio-económico das famílias é muito diversificado, os indivíduos podem
ficar impedidos de aceder a muitas funções não apenas por falta de talen-
tos naturais, mas também por falta de acesso efectivo a uma educação e
formação adequada aos seus talentos. Portanto, para que a igualdade de
oportunidades não se restrinja à abertura das carreiras, é necessário que o
Estado garanta o acesso à educação a todos e que esta permita a pro-
moção daqueles que forem devidamente dotados e motivados. Para além
do acesso à educação, uma igualdade de oportunidades mais exigente
requer a limitação das grandes fortunas (pela via fiscal). Quando existem
grandes disparidades de fortuna, a igualdade de oportunidades tende a
manter-se, na prática, como meramente formal. Se quisermos ir para além
dessa igualdade formal em direcção a uma igualdade mais real, temos por-
tanto de ir muito para além da simples não-discriminação. Rawls chama a
esta segunda interpretação da alínea b) «igualdade equitativa de oportuni-
dades». Para além da simples não-discriminação garantida pelo princípio
de carreiras abertas, a igualdade de oportunidades no sentido equitativo
toma em conta os diferentes pontos de partida dos indivíduos e procura
rectificá-los através da própria configuração das Instituições.
À preferência pela interpretação da alínea b) enquanto «igualdade
equitativa de oportunidades» face às «carreiras abertas às competências» é
facilmente aceite pela maioria das pessoas. Por que razão? Parece intuitivo
que a mera igualdade formal não é suficiente para aproximar os pontos de
partida individuais determinados pela lotaria social. Parece igualmente
fácil de aceitar que a desigualdade que resulta da lotaria social deve ser
corrigida. Daí a igualdade de oportunidades no sentido equitativo. Mas
Rawls vai um pouco mais longe e chama a atenção para a intuição moral
fundamental que subjaz a esta preferência: os indivíduos não são moral-
mente responsáveis pelas circunstâncias do seu nascimento e, mais espe-
cificamente, por nascerem numa família de perfil sócio-económico baixo
ou de perfil alto. Este tipo de contingências é arbitrário de um ponto de
vista moral. Ora, se os indivíduos não podem ser responsabilizados por
elas, seria inaceitável nada fazer para corrigir essa desigualdade. Ao com-
paramos os princípios possíveis — neste caso as duas interpretações da
alínea b) — com as nossas intuições, somos levados a fortalecer a intuição
Liberalismo igualitário 45

aqui referida mediante a adopção do princípio da igualdade equitativa


de oportunidades. Assim, a alínea b) deverá ser modificada de modo a ser
lida da seguinte forma: «b) sejam a consequência do exercício de cargos
e funções abertos a todos em circunstâncias de igualdade equitativa de
oportunidades» (Rawls, 1971: 239).
Se retomarmos agora a alínea a) podemos verificar que, também ela,
é susceptível de pelo menos duas interpretações muito diferentes. A ideia
segundo a qual as desigualdades justificadas são aquelas que se pode espe-
rar serem «em benefício de todos» pode, numa primeira possibilidade, ser
entendida como uma aplicação do «princípio de eficiência», também cha-
mado «princípio de Pareto». Neste caso, o benefício de todos na distribui-
ção do rendimento e da riqueza consistiria em alcançar a eficiência, ou
seja, uma situação na qual é impossível melhorar a situação de alguém sem
piorar a situação de ninguém. Existe portanto espaço para beneficiar todos
enquanto for possível melhorar a situação de alguém sem piorar a situação
de ninguém. Uma estratégia comum para o fazer é a aposta no crescimento
económico. Ele permite sempre melhorar a situação de alguém sem piorar
a de ninguém. Mas o problema do princípio paretiano, segundo Rawls, é
o facto de ele ser incapaz de especificar qualquer padrão distributivo. Para
um libertarista isso será mais uma vantagem do que um defeito. Mas, do
ponto de vista de Rawls, não parece muito adequado que o benefício geral
não tenha em conta um critério distributivo.
Para tornar mais claro o defeito, por assim dizer, do princípio de efi-
ciência, podemos compará-lo com a interpretação alternativa: aquilo que
Rawls designa por «princípio da diferença». Segundo este, o-benefício de
todos alcança-se mediante a «maximização das expectativas daqueles que
estão em pior situação» à partida. O tipo de padrão distributivo fixado por
este princípio da diferença consiste pois numa atenção especial à classe
mais desfavorecida da sociedade. Esta classe é composta por aqueles a
quem costumamos chamar os «pobres relativos», cujo rendimento médio
anual é igual ou inferior a 50%, ou a 60%, do rendimento médio nacional.
Segundo o princípio da diferença as desigualdades sociais e económicas
devem servir não apenas para melhorar a situação dos mais desfavoreci-
dos, mas também para a melhorar o mais possível. Embora Rawls não o
quantifique nem o princípio em si permita tal quantificação, é claro que
esta interpretação da alínea a) requer um mínimo social muito elevado e,
nesse sentido, uma aproximação real entre os rendimentos e riqueza dos
menos favorecidos e dos mais favorecidos. Sem gerar uma situação de
46 Manual de Filosofia Política

igualdade absoluta — que o próprio Segundo Princípio, no seu conjunto,


rejeita — o princípio da diferença projecta uma certa tendência igualitária.
Uma grande parte dos cidadãos de uma sociedade livre, pelo menos
na Europa, poderá talvez aceitar com facilidade a interpretação rawlsiana
da alínea b), ou seja, a ideia de igualdade de oportunidades num sentido
equitativo. Ela corresponde um pouco àquilo que se chamou o «consenso
do pós-guerra» e que levou, depois de 1945, à construção do Estado social
na Europa. No entanto, a ideia mais igualitária veiculada pelo princípio da
diferença pode ser menos convincente. Por essa razão convém examinar
com rigor o argumento básico de Rawls. Ele é isomorfo em relação ao
argumento da igualdade de oportunidades. Esta permite compensar os
indivíduos por uma lotaria social que é, do ponto de vista moral, arbitrá-
ria. Da mesma forma, o princípio da diferença compensa os indivíduos
pelos factores igualmente arbitrários resultantes também da lotaria natural.
Ou seja, os indivíduos têm diferentes dotes naturais ou talentos e estes
são desigualmente remunerados pelo mercado. Nenhuma forma, por mais
aperfeiçoada que seja, de igualdade de oportunidades equitativa permite
rectificar essa lotaria natural. Ora, os indivíduos desfavorecidos ao nível
dos seus dotes naturais, sendo moralmente irresponsáveis por eles, devem
ser compensados por um esquema de transferências que realize na prática
o princípio da diferença, permitindo assim a manutenção de um mínimo
social elevado.
Tal como na justificação da melhor interpretação para a alínea b), a
interpretação mais adequada da alínea a) assenta numa comparação entre
os princípios sugeridos e as nossas intuições morais. Mas, desta vez, a
pressão por parte do próprio princípio é talvez ainda maior do que a da
intuição moral de base. Temos alguma facilidade em admitir a existência
de contingências sociais moralmente arbitrárias, mas experimentamos
alguma dificuldade em admitir a existência de contingências naturais
igualmente arbitrárias de um ponto de vista moral e, sobretudo, em retirar
daí as devidas consequências. Neste aspecto, o génio de Rawls consiste em
não hesitar diante de um raciocínio que é dificilmente criticável num plano
racional, mas que encontra obstáculos ao nível do senso comum. Mas a
verdade é que, se tomarmos a sério a existência de uma lotaria social, não
há nenhuma razão válida para não tomar igualmente a sério a existência
de uma lotaria natural. Daqui decorre o princípio da diferença.
Combinando as duas alíneas do segundo princípio na versão prefe-
rida por Rawls forma-se aquilo a que ele chama a concepção da «igual-
Liberalismo igualitário 47

dade democrática». Se, por outro lado, nos ativermos às duas interpreta-
ções alternativas — carreiras abertas às competências e princípio de Pareto
— estamos diante do chamado «sistema de liberdade natural» (uma expres-
são de Adam Smith). Enquanto esta última visão é libertarista porque
aceita o primeiro princípio da justiça, mas recusa-se a tomar a sério tanto
a lotaria natural como a lotaria social, a versão de Rawls é liberal iguali-
tária porque, partindo da aceitação do mesmo primeiro princípio, toma a
sério esses dois aspectos. Em termos puramente lógicos, o libertarismo
parece ser o grande adversário do Segundo Princípio da justiça.
Na sua versão definitiva, o Segundo Princípio da justiça lê-se
então assim:

As desigualdades económicas e sociais devem satisfazer duas con-


dições: em primeiro lugar, ser a consequência do exercício de cargos
e funções abertos a todos em circunstâncias de igualdade equitativa de
oportunidades; e, em segundo lugar, ser para o maior benefício dos mem-
bros menos favorecidos da sociedade (o princípio da diferença). (Rawls:
2001: 42-3)

Note-se que as alíneas anteriores são agora transformadas em dois


pontos que têm entre eles uma prioridade definida (há um primeiro ponto
e um segundo ponto, tal como há um primeiro princípio e um segundo
princípio). Esta prioridade não é fruto do acaso. Rawls considera que, tal
como os princípios da justiça são prioritários em relação a qualquer
maximização da utilidade social, também internamente os devemos pensar
como ordenados segundo prioridades. Assim, o princípio das liberdades
(primeiro princípio) é prioritário em relação ao segundo princípio e, neste,
o princípio da igualdade equitativa de oportunidades é prioritário em
relação ao princípio da diferença. Estas regras de prioridade são de tipo
lexical. Tal como as palavras de um léxico, os princípios são ordenados
logicamente. Assim se impede não só que a justiça seja sacrificada em
nome da utilidade, mas também que uns bens sociais primários sejam
sacrificados em nome de outros bens sociais primários. A liberdade não
pode ser comprometida para a criação de mais oportunidades ou riqueza
para os desfavorecidos e este último objectivo não deve comprometer a
igualdade de oportunidades em sentido equitativo.
48 Manual de Filosofia Política

Duas vias de justificação

Neste ponto da nossa exposição, o leitor pouco habituado ao estilo


da Filosofia Política contemporânea deverá estar algo surpreendido. Por
um lado, algumas das ideias apresentadas parecem mais próximas da
teoria económica do que de alguma tradição filosófica. Por outro lado, a
estrutura de justificação da concepção de justiça poderá parecer algo
indefinida. O primeiro aspecto é certamente verdadeiro e não é possível
fazer Filosofia Política depois de Rawls e de um modo sério sem pene-
trar noutras linguagens (Teoria Económica, Teoria da Constituição, etc.).
O segundo aspecto, o da estrutura justificatória, carece de algum esclare-
cimento suplementar.
Tal como apresentados até aqui, os princípios da justiça surgem jus-
tificados através de uma primeira via possível: aquilo que Rawls denomina
“eguilíbrio reflectido”. A metodologia do equilíbrio reflectido consiste
num constante vai e vem entre os nossos juízos ponderados e os princípios
sugeridos. Vimos um exemplo muito claro desta via de justificação ao
escolher as interpretações preferida por Rawls das duas alíneas iniciais do
segundo princípio da justiça. Nós partimos sempre de intuições morais e
não é possível operar de outro modo. Mas o que é essencial é a constante
comparação entre os princípios formulados e os juízos ponderados cons-
truídos com essas intuições. Por vezes, somos obrigados a modificar os
princípios para que eles estejam mais de acordo com os juízos ponderados
mais fortes. Outras vezes, somos levados a modificar esses juízos em fun-
ção de princípios que parecem racionalmente mais convincentes. O equi-
líbrio entre princípios e juízos é pois de carácter reflectido, obtido num
jogo de constante vai e vem entre teoria e intuição.
Esta metodologia do equilíbrio reflectido permitiu-nos fazer uma
apresentação muito sumária — por comparação com o texto longo e intrin-
cado de Rawls — dos dois princípios da justiça. Porém, Rawls considera
que esta via de justificação é ainda insuficiente. Por isso sugere que existe
uma outra, de carácter complementar, cuja inspiração é a teoria moderna
do contrato social. Essa outra via é o chamado “argumento da posição
original”.
À posição original é a situação mais favorecida para a escolha
dos princípios de justiça. Embora possamos considerar esses princípios já
consideravelmente bem argumentados a partir do que dissemos acima e
por comparação com alguns princípios concorrentes — sobretudo com o
Liberalismo igualitário 49

sistema de liberdade natural —, a ideia de posição original constitui um


poderoso reforço argumentativo a partir de uma via de justificação que
pode ser considerada diferente — pelo menos até certo ponto, como vere-
mos — da via do equilíbrio reflectido.
Segundo Rawls, a posição original generaliza e leva a um nível supe-
rior de abstracção a teoria moderna do contrato social, na tradição de
Locke, Rousseau e Kant.4 A referência a estes pensadores é inevitável na
medida em que a posição original é inspirada na ideia de estado de natu-
reza do contratualismo moderno, i.e., o momento prévio ao contrato social
e à constituição do Estado político. No entanto, julgamos que uma exces-
siva aproximação entre a teoria rawlsiana e esta tradição poderá ser algo
enganadora, por duas razões fundamentais.
Em primeiro lugar, os contratualistas clássicos procuravam apenas
justificar uma determinada forma de soberania e de governo. Eles estavam
interessados em responder à questão sobre a origem ou a legitimidade do
poder político. Ora, a ambição de Rawls é maior. Ele está interessado em
usar a ideia de posição original para justificar uma concepção de justiça
para a sociedade que indica a melhor forma de proteger as liberdades e um
processo político justo, mas também todos os aspectos que dizem respeito
às oportunidades e à justiça distributiva no sentido económico. Em
segundo lugar — e parece-nos ser este o aspecto mais relevante —, a posi-
ção original e o acordo a ser alcançado nessa posição são dispositivos
puramente hipotéticos. Eles são, numa linguagem mais contemporânea,
contrafactuais. Ora, no contratualismo clássico, pelo menos em Locke e
Rousseau, essas ideias não são puramente hipotéticas. Para além do facto
de o estado de natureza ser geralmente descrito com referências históricas,
o contrato social também não está no plano puramente contrafactual.
O contrato poderá não ser explícito, mas isso não lhe retira totalmente e
elemento factual. Um contrato tácito, ou um contrato baseado na mera
aquiscência, não deixam de ser também de tipo factual. Em contraste, o

4 Não confundir com a tradição que começa em Hobbes e que visa, como acima
se disse, retirar asserções morais da pura consideração dos interesses individuais e da razão
instrumental, ou seja, sem ter em conta o ponto de partida moral de uma teoria como a
rawlsiana, assente na igual consideração dos indivíduos ou cidadãos como agentes morais.
Aliás, a língua inglesa permite uma distinção clara entre estes dois tipos de teorias, usando
a palavra «contractarian» para a teoria neo-hobbesiana e a palavra «contractualist» para
teorias como a de Rawls, mais de carácter neo-lockeano.
50 Manual de Filosofia Política

argumento rawisiano da posição original e o acordo aí alcançado são


estritamente hipotéticos.
Na construção da posição original Rawis convida-nos a estabelecer
as condições necessárias e suficientes para que a escolha da concepção de
justiça melhor justificada não ofereça dúvidas. Assim, a própria constru-
ção da posição original tem de ser feita em equilíbrio reflectido. Também
nesta construção partimos da intuição para tentar chegar à melhor descri-
ção possível de uma situação de escolha através da qual se possa garantir,
para além de qualquer dúvida, que os princípios de justiça seleccionados
são aqueles que não podem deixar de ser adoptados pelos representantes
dos cidadãos racionais e razoáveis.
Desta forma, o método do equilíbrio reflectido está subjacente tam-
bém à segunda via argumentativa de Rawls, nem parece concebível que o
não estivesse. Enquanto a apresentação dos princípios da justiça pode ser
considerada uma primeira fase de aplicação do equilíbrio reflectido, só
depois do argumento da posição original e da consideração de todas as
alternativas possíveis aos princípios da justiça poderemos dizer que se pas-
sou de um equilíbrio reflectido estreito (narrow) a um equilíbrio reflectido
alargado (wide). A fase final do equilíbrio reflectido, portanto, só se atinge
com uma teoria plenamente desenvolvida e capaz de mostrar as suas
vantagens em relação às perspectivas concorrentes (para esta questão, v.
Daniels, 1996). Ao envolver o próprio argumento da posição original no
método do equilíbrio reflectido, Rawls parece situar-se claramente numa
visão coerentista e não-fundacionista, mas sem cair em qualquer forma
de relativismo ou não-justificacionismo (em contraste, por exemplo, com
Richard Rorty, nomeadamente em Rorty, 1985).

Posição original

Qualquer um de nós pode, em qualquer momento, recorrer ao con-


trafactual da posição original. Nela não se encontram pessoas de came e
Osso, como nós, mas «partes» que são nossas representantes (podemos
pensar que cada um de nós tem uma parte representante na posição origi-
nal). As partes na posição original não têm as desvantagens — para efeitos
de escolha de uma concepção de justiça — que teríamos nós enquanto pes-
soas concretas. As características dessas mesmas partes, assim como as
condições especiais em que se encontram, garantem que a escolha feita por
Liberalismo igualitário 51

elas será muito mais imparcial, muito mais equitativa, do que uma escolha
efectuada por pessoas reais. Daí que Rawls chame à concepção escolhida
na posição original «justiça como equidade».
Em primeiro lugar, as partes estão debaixo de um espesso véu de
ignorância. Isso significa que elas desconhecem as circunstâncias parti-
culares das pessoas que representam: as suas concepções particulares do
bem, os seus rendimentos, o seu status social, etc. Assim fica garantido o
afastamento daqueles circunstâncias em que cada um é guiado pelas suas
próprias inclinações e levado a escolhas puramente parciais. Deve notar-
-se que as partes não são, em si mesmas, razoáveis. Mas a existência do
véu de ignorância garante a razoabilidade da sua escolha.
Embora tenham um desconhecimento particular em relação às pes-
soas que representam e à sociedade específica — pelo menos num primeiro
momento — para a qual vão escolher a melhor concepção de justiça, as par-
tes têm alguns conhecimentos gerais sobre a vida humana. Esses conheci-
mentos visam conferir maior robustez à sua escolha. Assim, por exemplo,
as partes sabem que a justiça é necessária numa sociedade na qual os
recursos são escassos e as pessoas têm uma multiplicidade de objectivos e
benevolência limitada (as circunstâncias da justiça de Humes). Às partes
sabem que a concepção de justiça se aplica ao enquadramento institucio-
nal da sociedade, isto é, à estrutura básica. As partes também não podem
ignorar que há determinados bens sociais primários de que a justiça se
deve ocupar. As partes conhecem factos gerais sobre a psicologia humana,
como a capacidade das pessoas para um sentido de justiça.
Em segundo lugar, as partes são elas mesmas estritamente racionais,
no sentido da racionalidade meios-fins. Este facto permite que a sua
decisão não possa ser racionalmente posta em causa, ainda que ela esteja
submetida às circunstâncias especiais colocadas pelo véu de ignorância.

s Segundo David Hume existem determinadas circunstâncias que tornam as regras


da justiça necessárias e possíveis. Essas circunstâncias abarcam, grosso modo, aspectos
subjectivos e aspectos objectivos. Nos primeiros salienta-se a benevolência limitada dos
seres humanos. Se vivêssemos numa sociedade de anjos a virtude da justiça seria certa-
mente desnecessária. Entre os aspectos objectivos, releva a escassez limitada. Mais
uma vez, se existisse uma abundância absoluta de todas as coisas necessárias à vida, não
haveria necessidade de justiça. Mas também, se predominasse uma escassez igualmente
absoluta, as regras da justiça não teriam qualquer efeito. Ela não seria possível. Para estes
aspectos, v. Hume (1777: 145 segg.) Rawls retoma este tema humeano. em termos ligei-
ramente diferentes. em Rawls (1971: 822).
52 Manual de Filosofia Política

A racionalidade das partes combina-se com o seu desinteresse mútuo.


Ou seja, as partes estão interessadas em fazer avançar o seu interesse e não
o dos outros. Este aspecto garante que todas as partes ficarão satisfeitas
com a escolha feita. Mas não se trata de nenhuma forma de egoísmo. As
partes não são egoístas nem dotadas de inveja. Esses aspectos, excessiva-
mente empíricos, são completamente eliminados na construção da posição
original.
O construto da posição original é feito independentemente das alter-
nativas que possam ser colocadas às partes. Ou seja, a posição original
garante a equidade da escolha, mas ela não é, como por vezes se poderia
pensar a partir do próprio texto de Rawis, um dispositivo heurístico. As
partes não criam concepções de justiça. Eles são antes confrontadas com
uma lista de concepções a partir da qual deverão escolher a melhor. A lista
de alternativa é exterior à própria posição original. Cada um de nós pode
sempre acrescentar alternativas e tentar verificar como é que elas seria
apreciadas pelas partes. Mas a verdade é que Rawls está especialmente
interessado em «apresentar» às partes duas alternativas aos seus próprios
princípios de justiça em ordem lexical, a saber: o princípio de utilidade; e
um princípio de perfeição. Por outras palavras, Rawls usa o argumento
da posição original sobretudo para estabelecer a superioridade dos seus
princípios da justiça em relação às teorias utilitarista e perfeccionista.
Na verdade, a maior parte do tempo é dedicada à refutação do utilitarismo
e muito pouco à refutação do perfeccionismo.
Para compreendermos a escolha das partes na posição original temos
de saber como elas, por assim dizer, «pensam». O raciocínio das partes
assenta na chamada «regra maximin». Segundo a teoria da escolha racio-
nal, a estratégia maximin é a forma adequada de pensar para agentes racio-
nais numa situação de incerteza quanto aos resultados a obter. Ora, essa é
precisamente a situação das partes na posição original. Vincámos já a sua
racionalidade e a incerteza em que se encontram devido ao véu de igno-
rância. Nesta situação, portanto, as partes devem raciocinar de modo a
maximizar o mínimo de resultados que podem obter, ou seja, de modo a
maximizar o seu índice de bens sociais primários. As partes querem maxi-
mizar o mínimo que podem obter em termos de liberdades, oportunidades,
rendimento e riqueza. Elas escolherão a concepção de justiça que, uma vez
aplicada à estrutura básica, lhes garanta essa maximização do índice de
bens sociais primários. As partes não estão interessadas em concepções
que, em vez de maximizar o mínimo que podem obter, apostem, por
Liberalismo igualitário 53

exemplo, em minimizar o máximo (minimax), ou maximizar o máximo


(maximax). Esse tipo de regras de decisão não seria defensável no con-
texto da posição original.
À regra maximin, no uso que dela faz Rawls, é acompanhada de três
condições que a reforçam: a) as partes não dispõem de informação sobre
probabilidades de resultados, não podendo sequer usar o princípio da
razão insuficiente e a equiprobabilidade que dele decorre; b) as partes têm
consciência de que escolhas não guiadas pelo maximin podem levar a
resultados absolutamente inaceitáveis (por exemplo, a escolha de uma
estrutura social em que existam escravos ao serviço do bem-estar geral);
3) as partes querem garantir o mínimo, mas estão menos preocupadas com
um acréscimo do que podem obter — ou seja, elas têm aversão ao risco. Na
nossa opinião, estas condições que acompanham o uso da regra maximin
não são estritamente necessárias. A regra maximin em si mesma é já sufi-
cientemente explícita em relação à escolha a fazer diante de alternativas
colocadas às partes. Porém, é indiscutível que estas três condições confe-
rem maior força racional à própria regra maximin.
Partindo da aceitação da descrição da posição original e da própria
regra maximin, acompanhada das condições referidas, podemos agora
esquematizar o modo como as partes encaram a comparação entre os prin-
cípios da justiça em ordem lexical, por um lado, e os princípios de perfei-
ção e utilidade, por outro. Comecemos por este último caso.
O princípio de utilidade visa a maximização da utilidade média, ou
da utilidade total, medida em termos de bem-estar entendido como a
satisfação de preferências racionais. O problema deste princípio é o seu
carácter agregativo. Quer se trate da utilidade total ou da utilidade média,
o princípio não assegura garantias mínimas para ninguém. Assim, pelo
menos em teoria, é possível pensar que um conjunto de indivíduos veja
as suas liberdades sacrificadas para gerar maior bem-estar para uma
maioria. Da mesma forma, as oportunidades ou os níveis de rendimentos
e de riqueza de alguns podem ser drasticamente prejudicados em nome
do bem-estar geral. Em contraposição com este princípio de utilidade, os
princípios de justiça de Rawls não permitem nunca o sacrifício das liber-
dades básicas. da igualdade equitativa de oportunidades e da distribuição
de acordo com o princípio da diferença (note-se que este último é pratica-
mente uma paráfrase da regra maximin). É portanto claro que os princípios
da justiça permitem maximizar o mínimo que cada uma das partes pode
obter, mas que o mesmo não acontece com o princípio de utilidade.
54 Manual de Filosofia Política

Para além deste raciocínio geral e muito intuitivo, Rawls vai adian-
tando argumentos adicionais favoráveis aos princípios da justiça quando
comparados com o princípio de utilidade. Um deles pode ser designado
como o «argumento das tensões geradas pelo compromisso». Isto significa
que, numa sociedade utilitarista, as tensões individuais derivadas do apoio
ao princípio de utilidade são muito maiores do que numa sociedade justa
no sentido de Rawls. O compromisso dos cidadãos numa sociedade utili-
tarista é difícil, na medida em que ela exige demasiado a cada um com
vista a maximizar o bem-estar. A situação é especialmente difícil para
aqueles que forem sacrificados em nome do bem-estar geral. Neste caso,
os cidadãos não parecem ter motivos suficientemente fortes para cooperar.
Em contraste, parece ser muito mais fácil motivar a cooperação de todos
numa sociedade justa. Neste quadro, as tensões do compromisso são bem
menores na medida em que todos sabem que terão acesso a um índice
elevado de bens sociais primários, aos quais todos os outros têm também
acesso. Ninguém tem motivos para se sentir posto de lado e, portanto, para
não cooperar.
Um outro argumento adicional que surge na comparação entre os
princípios de justiça em ordem lexical e o princípio de utilidade é o da
estabilidade. Uma sociedade utilitarista é pouco estável. Se aqueles que se
sentem prejudicados ou sacrificados têm pouca motivação para cooperar,
poderão ter motivação para se revoltar. Pelo contrário, uma sociedade justa
é mais estável na medida em que todos sabem ter a possibilidade de desen-
volver livremente os seus projectos de vida. Desta forma, uma sociedade
justa tem capacidade para gerar o seu próprio apoio e a motivação para a
revolta é naturalmente diminuída.
Passemos agora a uma breve comparação entre os princípios de jus-
tiça e o princípio de perfeição. Segundo este, a sociedade deve ser organi-
zada de forma a favorecer uma hierarquia de concepções particulares do
bems. Assim, a sociedade pode ser estruturada para favorecer um ideal de
vida contemplativa, ou a vida artística e criativa, por exemplo. Ora, as par-
tes na posição original não sabem qual a concepção completa do bem das
pessoas que representam. Se elas tivessem esse conhecimento poderiam

6 Há, como é sabido, muitas formas de perfeccionismo. Tanto são perfeccio-


nistas as teorias aristotélica e neoaristotélica, como a teoria nietzsheniana, por exemplo.
Enquanto Aristóteles coloca a vida contemplativa no topo da hierarquia da vida boa,
Nietzshe reserva esse lugar aos grandes homens criativos.
Liberalismo igualitário 55

com certeza preferir princípios de organização social que favorecessem as


pessoas que representam em relação a outros. Mas, debaixo do véu de igno-
rância, as partes preferem os princípios da justiça em ordem lexical na
medida em que estes, graças à prioridade das liberdades básicas iguais para
todos, não permitem que algumas concepções do bem sejam discriminadas
face a outras, desde que respeitem os próprios princípios da justiça.
Assim, a preferência pelos princípios da justiça face a um princípio
de perfeição deriva do papel das liberdades fundamentais. As liberdades
protegem a diversidade de formas de vida individuais, a possibilidade de
ter uma concepção do bem, mas também de a rever ao longo da vida.
Rawls recorda que, na estrada para Damasco, Saúl de Tarso transforma-se
em Paulo, o Apóstolo. Não há provavelmente mudança mais radical numa
concepção do bem. Mas, de um ponto de vista político, podemos conside-
rar que Saúl e Paulo são o mesmo cidadão e que cabe às liberdades fun-
damentais proteger as suas escolhas de vida, na medida em que elas são
compatíveis com o mesmo sistema de protecção para os outros. Não cabe
à estrutura básica, como clamam os perfeccionistas, proteger umas formas
devida e prejudicar outras.
Optámos aqui por fazer uma comparação global entre os dois princí-
pios da justiça e as alternativas utilitarista e perfeccionista. Mas também é
verdade — e Rawls não deixa de o considerar — que é possível fazer outro
tipo de comparações, recorrendo a concepções mistas. Isto significa que é
possível, por exemplo, comparar uma concepção de justiça que tenha
como base o primeiro princípio de Rawls mas que, em vez do segundo
princípio, opte pelo princípio de utilidade. Neste caso, teríamos garantido
o respeito pelas liberdades básicas mas, a partir daí, valeria a maximiza-
ção do bem-estar em relação a qualquer outro princípio de igualdade de
oportunidades ou de distribuição da riqueza.
Não é possível aqui desenvolver as linhas de pensamento que con-
duzem à preferência pelos dois princípios da justiça em ordem lexical face
à concepção mista referida, ou a outras possíveis. Mas o que foi já dito per-
mite adivinhar a resposta de Rawls. Ainda que nos possa parecer intuiti-
vamente atraente a opção por este tipo de concepções mistas — porque
parecem menos radicais dos que a concepção rawlsiana — temos de olhar
para a questão não do nosso ponto de vista empírico, mas do ponto de vista
das partes na posição original. As partes, seguindo a regra maximin, não
poderão nunca concordar em sacrificar os seus representantes em nome de
algum acréscimo de bem-estar geral. Elas preferirão sempre a garantia das
56 Manual de Filosofia Política

oportunidades equitativas para todos, assim como a da distribuição do ren-


dimento e da riqueza para o maior benefício dos menos favorecidos. As
partes olham sempre, por assim, dizer, para a base da pirâmide e não para
o topo, ou para a média. Podemos considerar que essa atitude das partes
entra em choque com a nossa intuição. Mas, se aceitarmos que as partes
articulam melhor do que o nosso eu empírico a imparcialidade e a equi-
dade que devem presidir à decisão, então devemos aceitar o seu veredicto.

Aplicação à estrutura básica

Como referimos de passagem no início deste capítulo, os princípios


da justiça aplicam-se ao conjunto das principais instituições sociais e ao
modo como elas funcionam em conjunto para distribuir os benefícios e
encargos da vida em sociedade. Rawls chama “estrutura básica” a este
enquadramento institucional. Ele é composto pela Constituição, mas tam-
bém pelos principais instituições de tipo económico e social, como as leis
fiscais ou sobre a propriedade, ou ainda aquelas que determinam o acesso
a cargos, funções e poderes. Note-se que a estrutura básica é, em primeiro
lugar, um conjunto integrado de regras ou, mais exactamente, de leis. Elas
são determinantes para as expectativas que cada indivíduo poderá ter ao
longo de uma vida. Rawls chama a atenção para o facto de que a genera-
lidade dos indivíduos entra numa estrutura básica quando nasce e sai dela
quando morre (a excepção óbvia é a emigração).
A Justiça para Rawls consiste na existência de uma estrutura básica
ordenada de acordo com os princípios seleccionados na posição original.
À Justiça não consiste na alocação individualizada de bens sociais primá-
rios, mas antes num desenho das regras institucionais da estrutura básica
que esteja conforme aos próprios princípios de justiça. Assim, a justiça é
vista como tendo um carácter puramente processual. Se os procedimentos
adoptados na estrutura básica forem justos, então a sociedade é justa,
sejam quais forem os resultados concretos desses mesmos procedimentos.
Uma estrutura básica justaé aquela que engloba uma Constituição
Justa, i.e., uma Constituição que realiza o primeiro princípio da justiça,
assegurando o respeito por um mesmo sistema de liberdades básicas para
todos e um processo político democrático, permitindo o pleno exercício
das liberdades políticas. Se, de um ponto de vista constitucional, as liber-
dade estiverem seguras e o processo político democrático for posto em
Liberalismo igualitário 57

marcha, então toda a legislação ordinária estará de acordo com o primeiro


princípio da justiça, dada a primazia da lei constitucional face à legislação
ordinária.
Cabe então à legislação e ao governo o estabelecimento da justiça no
plano social e económico, ou seja, a realização institucional do segundo
princípio da justiça. É a este nível que tem lugar a tentativa de igualizar
as oportunidades mediante o acesso à educação e à cultura para todos os
igualmente dotados, assim como o desenvolvimento das políticas públicas
que visam a garantia de um mínimo social elevado, de acordo com o
princípio da diferença.
Na estrutura básica, portanto, está espelhada a prioridade do primeiro
princípio em relação ao segundo, o que corresponde exactamente à pers-
pectiva do liberalismo igualitário. Mas Rawls tem consciência de que a
liberdade é bem diferente do valor da liberdade. As liberdades meramente
formais são da maior relevância mas, em si mesmas, não têm valor se não
existirem as condições sociais e económicas para o seu exercício. Por isso
Rawils pensa ser importante que o valor das liberdades políticas seja garan-
tido logo ao nível do primeiro princípio, através de legislação (por exem-
plo, relativa ao financiamento dos partidos) que não permita que o pro-
cesso político seja sequestrado pelos mais ricos. Mas, quanto às restantes
liberdades, elas adquirem o seu pleno valor através da aplicação do
segundo princípio da justiça. É através de uma igualdade de oportunidades
equitativa e de uma distribuição de acordo com o princípio da diferença
que será efectivamente possível aos diferentes indivíduos perseguir os
seus fins próprios e. dessa forma, fazer uso do sistema de liberdades
básicas igual para todos.
Note-se que a estrutura básica de uma sociedade justa implica a exis-
tência de uma economia de mercado. Esta justifica-se não apenas por
razões de eficiência, mas também por razões morais. Só numa economia
de mercado é possível garantir a liberdade de escolha de ocupação — que
é. para Rawls, uma liberdade fundamental. No entanto, Rawls não diz
nada de definitivo em relação à propriedade — privada ou pública — dos
meios de produção. A propriedade privada dos indivíduos está garantida
enquanto liberdade fundamental — a liberdade de deter propriedade. Mas
outra coisa é a propriedade dos meios de produção. Ela poderá ser pública
ou privada, portanto. Se for pública, a estrutura básica justa será algo que
corresponde a um socialismo liberal, ou um socialismo de mercado. Se a
propriedade dos meios de produção for privada, a estrutura básica justa
58 Manual de Filosofia Política

corresponderá a uma democracia de proprietários, isto é, um sistema em


que a propriedade dos factores produtivos e o capital humano estão dis-
persos na sociedade (algo que nos faz pensar num capitalismo popular,
mas com preocupações de justiça).
Note-se que Rawls, no pouco que diz sobre o aspecto final de uma
estrutura básica justa, não se aproxima nunca de um modelo de Estado
Providência. Este é demasiado pesado e coexiste com sociedades extre-
mamente desiguais. A verdadeira alternativa para a construção de uma
sociedade justa, portanto, está localizada na banda estreita entre um socia-
lismo de base liberal, e aquilo que nós chamaríamos um liberalismo social,
segundo o qual a justiça consiste em garantir a todos e a cada um dos
indivíduos as liberdades básicas, mas também as condições efectivas
para desenvolverem os seus projectos de vida. O liberalismo igualitário de
Rawls tem pois duas vias possíveis de concretização.7

Liberalismo igualitário: político e não abrangente

Uma sociedade justa de acordo com a perspectiva liberal igualitária


é, necessariamente, uma sociedade pluralista. Se as liberdades fundamen-
tais estão protegidas e são prioritárias, é inevitável que os cidadãos dessa
sociedade desenvolvam, ao longo do tempo, diferentes visões religiosas,
filosóficas e morais, ou seja, uma grande diversidade de doutrinas abran-
gentes sobre o significado do mundo e da vida. A história do constitucio-
nalismo liberal na Europa, desde os séculos XVII e XVIII, demonstra isso
mesmo. A consagração constitucional das liberdades permite ultrapassar
as guerras de religião e, ao mesmo tempo, contribui para o aprofunda-
mento do pluralismo não só das visões religiosas, mas também de todas as
outras concepções do mundo e da vida, de tipo filosófico e moral.
Rawls chama a atenção para a necessidade de ter em conta este
“facto do pluralismo” como uma característica inultrapassável das demo-
cracias constitucionais em geral e, com mais razão, do ideal de uma socie-

7 No entanto, na nossa opinião, a democracia de proprietários é o sistema que


corresponde melhor à visão rawlsiana e ao liberalismo igualitário em geral. Na prática, o
socialismo de base liberal corre demasiado o risco de se tornar progressivamente mais
socialista e menos liberal. Nesse aspecto, poderá ser interessante considerar algumas
das críticas de Nozick a Rawls. V. Capítulo 3, infra.
Liberalismo igualitário 59

dade justa. Mas isso significa que a concepção da justiça como equidade
que ele defende não poderá assentar numa qualquer doutrina abrangente
em particular — de tipo religioso, filosófico ou moral —, mas antes numa
pluralidade de doutrinas compatíveis com essa concepção de justiça. Mas
se, por um lado, a justiça não tem de ser justificada a partir de uma única
perspectiva abrangente, por outro lado, nem todas as perspectivas abran-
gentes com representatividade social poderão apoiá-la. Daí Rawls fazer
uma distinção entre o “facto do pluralismo enquanto tal” e o “facto do
pluralismo racional e razoável”. A justiça deverá ser compatível com o
último, mas não obrigatoriamente com o primeiro. Vejamos como.
O facto do pluralismo racional e razoável constitui um sub-grupo do
facto do pluralismo enquanto tal. Já falámos — no início deste capítulo —
das ideias de racionalidade e razoabilidade enquanto características dos
cidadãos. Mas é preciso agora aplicá-las às doutrinas abrangentes. Existem
muitas doutrinas abrangentes - ou podem existir — que não são racionais
nem razoáveis, ou que são uma das coisas mas não a outra. O conceito de
racionalidade aqui usado é, de novo, o de racionalidade meios-fins. Poderá
haver doutrinas que, pura e simplesmente, não fazem sentido nestes ter-
mos. Mas é mais comum que algumas doutrinas socialmente relevantes
sejam racionais, mas não razoáveis. A razoabilidade implica duas coisas.
Em primeiro lugar, a disposição para encontrar termos de cooperação com
os outros e de agir de acordo com esses termos. Quando dizemos a alguém
“Sê razoável!” é precisamente neste sentido. Estamos a fazer um apelo ao
entendimento e à cooperação baseada em princípios, ainda que na manu-
tenção das diferenças. Em segundo lugar, Rawls considera que a razoabi-
lidade implica a aceitação daquilo que ele denomina como “fardos da
razão”, isto é as condições epistémicas que fazem como que pessoas racio-
nais e razoáveis no primeiro sentido da palavra não consigam, ainda assim,
convergir na adesão à mesma doutrina abrangente. Estes fardos ou ónus
da razão incluem o carácter polémico das provas, a discordância quanto à
importância relativa dos diferentes juízos, o carácter vago e sujeito a casos
difíceis dos nossos conceitos morais e políticos, a influência da experiên-
cia global de cada um no modo como avaliamos provas e ponderamos
valores, etc.

8 Este é o grande tema da reflexão de Rawls a partir de meados dos anos oitenta.
O resultado dessa reflexão - que passamos agora a resumir — surge perfeitamente arti-
culado em Liberalismo Político (Rawls. 1993).
60 Manual de Filosofia Política

Assim, a concepção liberal igualitária da justiça deverá poder ser


apoiada por todos aqueles que defendem doutrinas abrangentes racionais
e razoáveis, por muito diferentes que elas sejam umas das outras, mas não
necessariamente por qualquer doutrina (o que seria impossível e ilógico).
Rawis sugere que o apoio doutrinal à sua concepção pode ser conceptua-
lizado como um “consenso de sobreposição”. Ou seja, embora os cidadãos
discordem quanto às doutrinas abrangentes que professam, eles podem
concordar com um mesmo núcleo de valores políticos fundamentais: aque-
les que têm a ver com o apoio a uma constituição justa, mas também aos
aspectos sociais e económicos da justiça. O conceito de consenso de sobre-
posição implica também que cada uma das doutrinas abrangentes partici-
pantes no consenso pode justificar os mesmos valores políticos, ou a
mesma concepção de justiça, a partir do seu próprio ponto de vista. Assim,
uma justificação a partir de uma doutrina filosófica de tipo kantiano é cer-
tamente diferente da justificação a partir de uma perspectiva teológica
cristã, tal como esta diverge de uma justificação providenciada por um
humanismo ateu. Mas todas essas perspectivas podem coincidir no apoio
aos princípios que têm a ver com a protecção das liberdades, das oportu-
nidades e da justiça distributiva.
Esta abertura rawlsiana ao pluralismo doutrinal e o ideal de um
consenso de sobreposição implicam que a concepção liberal igualitária de
justiça deva ser apresentada como política, não abrangente. Assim, esta
concepção parte de ideias implícitas na cultura democrática (as ideias de
cidadão e de cooperação social) e não de intuições metafísicas particula-
res. À concepção é politicamente construída e, portanto, independente das
doutrinas abrangentes. As razões dadas a favor da concepção são, em pri-
meira instância, não abrangentes, embora cada uma das doutrinas abran-
gentes a possa justificar também do seu próprio ponto de vista. Por fim, a
concepção de justiça não cobre todos os aspectos da vida social e indi-
vidual, Ela aplica-se apenas à estrutura básica da sociedade, não à vida
particular das comunidades, associações ou indivíduos.
Numa sociedade justa, portanto, distingue-se entre o domínio polí-
tico, que é o domínio do Estado e da justiça social, e o domínio não polí-
tico. À razão pública é aquela que diz respeito ao domínio político. Ela
refere-se às questões básicas da Constituição e da justiça social. Neste
domínio, requer-se um exercício contido da razão, sem um constante apelo
às razões abrangentes, que criam divisão e não consenso. Por isso os fun-
cionários, juizes e políticos tendem a usar razões públicas puramente polí-
Liberalismo igualitário 61

ticas e não directamente vinculadas às doutrinas abrangentes que profes-


sam. No entanto, no domínio não político, todas as razões são aceitáveis,
fazendo apelo às diversas doutrinas abrangentes existentes na sociedade.
Isso não poderia deixar de acontecer numa sociedade pluralista.

2. NATUREZA E ALCANCE DA IGUALDADE LIBERAL

Embora os liberais igualitários estejam de acordo quanto à igualdade


das liberdades básicas, eles discordam por vezes quanto à melhor forma de
articular a ideia de igualdade num sentido mais substantivo. Vimos que
Rawls advoga a realização da igualdade democrática mediante a adopção
de um princípio de oportunidades equitativas, cruzado com uma distri-
buição de riqueza de acordo com o princípio da diferença. Porém, outros
pensadores consideram que esta não é a melhor forma de conceber a natu-
reza da igualdade em termos sócio-económicos.
Questão diferente é a do alcance, local ou universal, dessa mesma
igualdade. Para uns — incluindo o próprio Rawls — ela justifica-se ao nível
de cada Estado ou sociedade doméstica, mas não tem de ter necessaria-
mente o mesmo conteúdo ao nível global. Para outros, com uma visão
mais cosmopolita, a concepção de igualdade tem o mesmo conteúdo para
todo e qualquer ser humano, independentemente da sua pertença a uma
qualquer comunidade política. Abordaremos agora estes temas, embora
de uma forma excessivamente esquemática, por falta de espaço.

Igualdade de recursos

Segundo Dworkin, a concepção rawlsiana da igualdade democrática


falha ao não levar suficientemente a sério a responsabilidade individual
(v. Dworkin, 1981, e também Kymlicka, 1990). Vimos que a justificação
mais intuitiva da igualdade democrática assenta na ideia de que os indiví-
duos não são moralmente responsáveis pela lotaria natural e social. Dwor-
kin concorda com este ponto, mas considera que a concepção rawlsiana
apresenta dois problemas básicos. Por um lado, peca por defeito igualitá-
rio ao não ser sensível às desvantagens especiais de alguns. Por outro lado,
ela peca por excesso igualitário ao não ser sensível às ambições e esforços
dos indivíduos. Vejamos cada um destes aspectos separadamente.
62 Manual de Filosofia Política

A teoria rawlsiana não parece contemplar as desvantagens especiais


de alguns quanto aos seus dotes naturais, nomeadamente os deficientes
físicos ou mentais. Uma vez que se centra na distribuição de bens sociais
primários, a teoria visa, de acordo com o princípio da diferença, a maxi-
mização das expectativas daqueles que estão pior ao nível da riqueza. No
entanto, os que estão pior quanto à distribuição da riqueza não são neces-
sariamente aqueles que estão pior num sentido mais geral. Se alguém tem
uma deficiência grave, com a qual gasta grande parte dos recursos de que
pode dispor, estará certamente pior do que alguém que tem os mesmos
recursos mas não necessita de os gastar para acorrer à sua deficiência em
particular. Ora, parece intuitivamente convincente que a justiça deve tam-
bém eliminar as desvantagens especiais produzidas pela pura má sorte — o
que não está previsto na formulação de Rawls.
Mas, segundo Dworkin, a teoria rawlsiana é também, num outro sen-
tido, indevidamente igualitária, uma vez que não é suficientemente sensí-
vel aos gostos e ambições de cada um. Se alguém decide dedicar o seu
tempo a actividades de lazer, enquanto outros optam por trabalhos exigen-
tes e extenuantes, o princípio da diferença acabaria por premiar os primei-
ros. Com efeito, apesar das actividades de lazer a que se dedicam poderem
não ser remuneradas e colocá-los numa posição especialmente desfavore-
cida à partida, essa mesma posição deveria ser maximizada à custa dos que
escolheram trabalhos mais difíceis e mais remunerados. De novo, parece
intuitivamente difícil de contestar a ideia de que a justiça deveria ser mais
sensível aos esforços individuais e que, portanto, os que optam pelo lazer
em detrimento do trabalho já estão a ser beneficiados de certa forma e não
deveriam sê-lo ainda mais através da função de transferências do Estado.
As objecções que Dworkin erige contra a teoria da justiça de Rawls
acentuam a ideia de que os indivíduos não devem ser penalizados pelos
factores em relação aos quais não têm responsabilidade moral, mas tam-
bém que devem ser penalizados no que diz respeito às escolhas pelas quais
são responsáveis. Estas objecções levam Dworkin a sugerir uma métrica
igualitária alternativa à rawlsiana, centrada na ideia de recursos.
Em vez de conceber a igualdade sócio-económica em termos de dis-
tribuição de alguns bens sociais primários, Dworkin sugere que as pessoas
deveriam ter, à partida, recursos materiais iguais (dinheiro ou outras coi-
sas). Assim, as pessoas também devem ter uma igual possibilidade de se
segurar em relação aos riscos da má sorte, como por exemplo no caso de
nasceram ou de se tornarem deficientes. Se esse seguro social permite
Liberalismo igualitário 63

compensar os indivíduos em relação aos imponderáveis da vida — pelos


quais não são moralmente responsáveis —, uma igualdade inicial de recur-
sos materiais também deixa margem para a influência das diferentes ambi-
ções e gostos individuais. O sistema de transferências do Estado não deve
compensar as pessoas com gostos caros ou sem ambição, apenas porque
estão pior do que os outros. Mas deve compensar especialmente aqueles
que foram afectados por elementos de pura má sorte, como a deficiência.

Igualdade de «capabilidades»

Um outro liberal igualitário, Amartya Sen, não considera satisfató-


nas as abordagens da igualdade sócio-económica baseadas na ideia de
bens sociais primários, ou na ideia de recursos materiais. O conceito pre-
ferido por Sen é o de capacidades, ou «capabilidades» (capabilities) (por
exemplo em Sen, 1992). Para Sen, o mais importante é dar conteúdo às
liberdades. Mas tanto os bens sociais primários como os recursos não são
facilmente transponíveis em liberdades. Ou seja, pode existir uma igual-
dade de bens sociais primários ou de recursos materiais sem que exista
igual capacidade para os colocar ao serviço das liberdades, devido a dife-
renças no contexto cultural e ambiental dos indivíduos, a diferenças de
género, de exposição a doenças, etc. Assim, a questão fundamental é a da
capacidade para transformar os bens sociais primários ou os recursos em
efectiva liberdade de escolha. A noção de capabilidades indica precisa-
mente essa transformação.
Portanto, a métrica da igualdade preferida por Sen é a das capabi-
lidades ou capacidades para os diversos funcionamentos (functionings) ou
actividades básicas dos indivíduos, como por exemplo a mobilidade, a
procura de alimentação ou a fundação de uma família. O mais importante
é igualizar o conjunto de capabilidades básicas dos indivíduos e não sim-
plesmente os instrumentos que podem estar ao serviço dessas capabilida-
des, como os recursos ou os bens sociais primários.
O grande problema que se coloca a uma visão deste tipo é a defini-
ção do conjunto exacto de capabilidades que importa promover ou iguali-
zar. Esta questão parece requerer uma visão universalista, ou seja, uma
espécie de lista definida das capabilidades humanas que, em qualquer cir-
cunstância empírica, deveriam ser igualizadas (este aspecto foi mais tra-
balhado por Nussbaum do que por Sen; v., por exemplo, Nussbaum, 1995).
64 Manual de Filosofia Política

Igualdade local

Uma coisa é o tema da natureza e métrica da igualdade, outra muito


diferente é a do seu escopo. O último tema ver com o número de indiví-
duos que devem ser incluídos na exigência de igualdade sócio-económica.
Ora, quando teoriza a sociedade justa, Rawls está a pensar em cada Estado,
ou em cada sociedade doméstica, separadamente. Na verdade, ele pensa
em especial nas sociedades que têm alguma tradição liberal, como aquelas
que existem na Europa e na América desde finais do século XVIII. É a par-
tir da cultura pública das democracias liberais que melhor se pode cons-
truir a exigência de igualdade que está presente no seu pensamento.
Numa obra de final de carreira (Rawls, 1999), Rawls admite que nem
todas as sociedades possam desejar construir uma justiça tão igualitária
como a que ele propõe na sua teoria. Há no mundo sociedades com uma
tradição hierárquica e sem tradição liberal. Estas podem certamente res-
peitar alguns direitos humanos básicos e ser também sociedades decentes
— mas não necessariamente liberais-igualitárias no sentido da teoria da jus-
tiça como equidade. Por outro lado, ao nível internacional, existe um dever
de assistência das sociedades decentes e prósperas às sociedades especial-
mente sobrecarregadas (como aquelas que são afectadas pela fome). Mas
não existe o dever de construir uma sociedade justa global, já que há
no mundo diferentes povos, com diferentes tradições e culturas políticas.

Igualdade global

Alguns discípulos de Rawls mostraram-se profundamente insatis-


feitos com esta sua visão não-cosmopolita. Assim, Charles Beitz há muito
que vinha chamando a atenção para a existência de um sistema interna-
cional equivalente a uma estrutura básica (Beitz, 1999). Ou seja, também
a nível internacional podemos constatar a existência de um conjunto de
instituições que, funcionando em conjunto, distribuem benefícios e encar-
gos pelos diferentes habitantes do globo. Ora, nestas circunstâncias,
parece justificar-se inteiramente a generalização da teoria rawlsiana ao
conjunto dos indivíduos humanos. O local onde se nasce é tão moralmente
arbitrário como o meio social ou os dotes naturais. Por isso é injusto que
alguns tenham tantos benefícios por terem nascido em países prósperos e
outros sejam penalizados por ter nascido no seio de povos particularmente
Liberalismo igualitário 65

desfavorecidos. Para Beitz, portanto, a exigência de justiça social e eco-


nómica tal como Rawls a concebe — incluindo o princípio da diferença —
aplica-se também ao sistema internacional, pace o próprio Rawls.
No mesmo sentido, Thomas Pogge tem defendido que o sistema inter-
nacional existente não só é injusto em termos rawlsianos, como causa espe-
cial dano aos mais desfavorecidos de todos: os pobres em sentido absoluto
(v. Pogge, 2002). Assim. por exemplo, as regras do sistema internacional
permitem que governos especialmente corruptos tenham tanto um privilégio
de acesso aos recursos naturais do seu país, como um privilégio de acesso a
empréstimos da banca internacional. Desta forma, os governantes desses
países podem, com a colaboração e o benefício de todos os outros. explorar
recursos naturais para proveito próprio e endividar o seu povo para as pró-
ximas gerações, impossibilitando o seu desenvolvimento futuro. Segundo
Pogge, nós temos certamente o dever positivo de construir uma justiça
global mas, antes disso, temos pelo menos o dever negativo de não permitir
que o sistema internacional continue a causar dano aos mais pobres entre os
pobres (para as questões da desigualdade global, v. Cap. VII, infra).

BIBLIOGRAFIA

Obras citadas

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CAPÍTULO III
Libertarismo

Rui FONSECA*

O libertarismo é uma ramificação do liberalismo que coloca no cen-


tro das suas preocupações políticas o respeito pela liberdade de cada um
para fazer o que bem entende com a sua pessoa e com os seus bens (Nar-
veson, 1988: 7-12). Esta preocupação política com a liberdade negativa
está logicamente associada à recusa das ingerências governamentais nos
costumes e na economia. Os libertaristas opõem-se ao controlo político
dos estilos de vida dos indivíduos e às soluções públicas para as externa-
lidades do mercado. Contra o que classificam de “paternalismo estatal”, os
libertaristas defendem a despenalização de todos os crimes sem vítimas
(prostituição, pornografia, consumo de drogas, alcoolismo, poligamia,
homossexualidade) e a privatização integral das actividades perseguidas
pelo Estado-Providência (saúde, educação, habitação, segurança social e
acção social).
Por oposição ao Estado-Providência, o Estado descrito pelos liber-
taristas é conhecido por Estado mínimo ou Estado guarda-nocturno. Esta
designação decorre da redução das competências estatais à protecção
dos indivíduos (polícia) e à resolução dos conflitos decorrentes do funcio-
namento do mercado (tribunais). Existe, no entanto, uma tendência mais
radical do libertarismo que recusa atribuir qualquer tipo de competência ao
Estado. Murray Rothbard (1973, 1982) e David Friedman (1973) são os
exemplos mais conhecidos desta tendência mais radical. Ambos criticam

* Doutorando na Universidade do Minho.


68 Manual de Filosofia Política

o monopólio público da violência e ambos propõem a transferência


integral das atribuições estatais do sector público para o sector privado.
Os defensores do Estado mínimo são conhecidos por minarquistas,
enquanto que os defensores da privatização total da esfera pública,
incluindo polícia e tribunais, são conhecidos por anarco-capitalistas.

Libertarismo fundamental versus Libertarismo instrumental

Se a nível das implicações políticas existe relativo consenso sobre o


que caracteriza o libertarismo, o mesmo já não acontece a nível da sua fun-
damentação teórica. Ao defenderem a redução do perímetro do Estado e a
delegação ao sector privado das actividades ligadas ao Estado-Providên-
cia, OS libertaristas fazem referência, muitas vezes de maneira indistinta,
às categorias intelectuais do liberalismo clássico (eficiência do mercado,
propriedade privada, individualismo metodológico). Este facto é respon-
sável pela existência de correntes libertaristas muito diferentes. Em termos
esquemáticos, o libertarismo pode ser considerado instrumental ou funda-
mental (Van Parijs, 1991: 221-223)!. O libertarismo instrumental atribui
um valor instrumental à liberdade individual: o respeito pela liberdade
individual é um bem porque contribui para um bem maior, a saber, a efi-
ciência económica. Deste ponto de vista, a adesão ao programa normativo
do libertarismo não é incondicional, depende da verificação empírica das
vantagens comparativas do mercado livre. Em contraste, o libertarismo
fundamental considera irrelevante saber se a liberdade individual contribui
para uma maior eficiência económica. O respeito pela liberdade individual
constitui um imperativo moral de natureza deontológica. Como o mercado
livre é a única forma de cooperação social compatível com o exercício
da liberdade individual, a adesão ao programa normativo do libertarismo
é incondicional.

1 Para uma apresentação mais aprofundada das diferentes correntes libertaristas.


ver Machan/Rasmussen (1995) e Kymlicka (1997, cap. 4).
Libertarismo 69

1. LIBERTARISMO INSTRUMENTAL

A influência política do libertarismo instrumental foi signifi-


cativa durante a administração Reagan e os governos conservadores de
M. Thatcher. Depois do abrandamento do crescimento económico, a libe-
ralização da economia apresentava-se como uma alternativa credível
às políticas económicas de inspiração keynesiana que marcaram o pós-
-guerra. Na base da oposição entre políticas económicas de tendência
libertária e políticas económicas de tendência keynesiana encontra-se o
problema da promoção da eficiência económica. Em termos macroeconó-
micos, é possível identificar quatro indicadores fundamentais: emprego,
inflação, crescimento económico e balança de pagamentos. A eficiência
económica mede-se pelo desempenho positivo dos indicadores de cresci-
mento económico, pela baixa taxa de desemprego, pela estabilidade dos
preços e pelo equilíbrio da balança de pagamentos. O objectivo é natural-
mente aumentar a riqueza disponível e com isso aumentar também a pro-
babilidade de satisfação das preferências individuais. Os proponentes
do keynesianismo afirmam que o compromisso entre dirigismo estatal e
mercado (a economia mista) garante um elevado grau de eficiência eco-
nómica, enquanto que os economistas libertaristas defendem que, sem
intervenção pública na economia, o livre jogo dos actores e das forças do
mercado conduzirá à maior prosperidade do maior número. Neste con-
texto, a melhor solução é dar primazia ao mercado, à livre iniciativa, com
o mínimo possível de interferência do Estado.

1.1. Friedrich von Hayek

Juntamente com Milton Friedman, Friedrich Hayek foi um dos


economistas que mais contribuiu para o desenvolvimento do libertarismo.
É importante no entanto ter em atenção que esta filiação está longe de
ser consensual. Existem bons argumentos contra a associação de Hayek
ao libertarismo. A marca “evolucionista” do seu pensamento e a crítica
ao racionalismo político aproximam Hayek do conservadorismo?. As dife-
renças tornam-se ainda mais acentuadas quando se consideram algumas

2 Ver Roger Scruton (2006: 208-231) para uma reflexão sobre esta matéria.
70 Manual de Filosofia Política

passagens em que o programa normativo do libertarismo é claramente


rejeitados. Perante estes elementos, parece que a associação de Hayek com
o libertarismo constitui um equívoco perpetuado pela história do pensa-
mento político. No entanto, se o conceito de libertarismo for alargado o
suficiente para contemplar as diferenças específicas, e mesmo as ambigui-
dades, das teorias que mais contribuíram para o seu desenvolvimento,
torna-se clara a razão pela qual Hayek é considerado um libertarista, ou
pelo menos uma referência fundamental do libertarismo. Entre outros
argumentos, Hayek estabeleceu uma das mais consistentes defesas do
mercado livre.

O mercado livre e a gestão do conhecimento

A defesa do mercado livre de Hayek assenta na ideia de que este sis-


tema de cooperação social tem uma importante vantagem comparativa,
que lhe permite ser mais eficiente do que as economias dirigidas. No mer-
cado livre, a cooperação social não é coordenada. Os indivíduos não pre-
cisam de estar de acordo sobre os fins que devem ser perseguidos, são
livres de procurarem realizar os seus próprios fins e de utilizarem os seus
próprios conhecimentos. A cooperação não coordenada que caracteriza O
mercado livre gera maior eficiência económica porque não existem bar-
reiras burocráticas à descoberta e à inovação, mas sobretudo porque só a
acção descentralizada dos indivíduos permite tratar a quantidade total de
informação que circula no interior de uma sociedade complexa.
Este argumento é inseparável da crítica de Hayek ao dirigismo eco-
nómico e ao racionalismo construtivista que lhe é subjacente. O dirigismo
económico começa por estabelecer grandes fins comuns e procura depois
coordenar os esforços individuais de acordo com esses fins. Mas para que
a coordenação dos esforços individuais seja geradora de eficiência é pre-
ciso centralizar o conhecimento necessário à realização dos fins comuns.
O problema é que este imperativo de centralização ignora os limites do
conhecimento do humano. Não é possível a umá única pessoa conhecer

3 Por exemplo: «longe de defender (...) um “Estado mínimo”. pensamos ser


inquestionável o facto de numa sociedade avançada o Estado ser obrigado a utilizar os seus
poderes de arranjar fundos através da tributação para fornecer um número de serviços que,
por várias razões, não podem ser fornecidos, ou não podem ser fornecidos adequadamente,
pelo mercado» (Hayek, 1979: 41).
Libertarismo A

todos os factos particulares necessários a uma coordenação eficiente dos


esforços individuais. Em sociedades muito pequenas até é possível que
isso seja possível —- os membros de um grupo pequeno «terão mais ou
menos o mesmo conhecimento das circunstâncias particulares» (Hayek,
1973: 13-14). Mas em sociedades mais extensas existe um salto de com-
plexidade que impõe barreiras epistemológicas a todas as formas de coo-
peração económica dependentes do conhecimento das situações concretas
dos indivíduos: «quanto mais uma sociedade se torna complexa, mais
raros serão os factos particulares conhecidos ou os interesses partilhados
de todos os membros desta sociedade» (Hayek, 1976: 13).
Por conseguinte, o mercado livre não tem rival na utilização do
conhecimento existente. Como refere Hayek, «uma sociedade livre pode
fazer uso de muito mais conhecimento do que aquele que a mente de
um administrador esclarecido poderá alguma vez compreender» (Hayek,
1960: 31). Em vez de centralizar a informação referente à situação con-
creta dos agentes económicos, o mercado livre trata esta informação a
um nível local. Desta maneira, não existe desperdício de conhecimento.
A cada momento cada indivíduo utiliza os seus melhores conhecimentos
para atingir os seus próprios fins, contribuindo para o aumento da riqueza
produzida.
A importância deste argumento não é compreensível sem referência
aos indicadores de mercado que os indivíduos têm à sua disposição para
tomarem as suas decisões económicas: os preços e os salários. Estes indi-
cadores funcionam como sinais que permitem aos agentes económicos
ajustar o seu comportamento de acordo com o maior ou menor sucesso dos
seus esforços. Enquanto sinais, a sua função específica não é recompensar
o mérito dos esforços individuais, mas pôr em evidência a sua utilidade.
Em caso de sucesso, é do próprio interesse dos indivíduos prosseguirem
com a direcção dos seus esforços. Em caso de fracasso, é do seu próprio
interesse mudarem de direcção. No entanto, para que este sistema funcione
com eficiência é importante que os agentes económicos não sejam induzi-
dos em erro. Nenhuma medida governamental pode afectar o sistema de
sinais que serve de referência aos indivíduos na tomada das suas decisões
económicas. O controlo político dos preços ou a existência de salários
mínimos introduzem elementos de distorção nos indicadores do mer-
cado e impedem os indivíduos de tomarem as decisões económicas mais
acertadas.
72 Manual de Filosofia Política

A ordem espontânea do mercado e o conceito de justiça social

A fim de aprofundar a crítica de Hayek ao dirigismo económico, é


importante assinalar a distinção introduzida no primeiro volume de Law,
Legislation and Liberty, entre o conceito de ordem espontânea, ou kosmos,
e o conceito de ordem fabricada, ou taxis (Hayek, 1973: 35-40). Enquanto
que a ordem espontânea tem uma natureza endógena, resulta «de um equi-
líbrio desenvolvido internamente», a ordem fabricada tem uma natureza
exógena, resulta de «forças exteriores ao sistema». No contexto do pen-
samento de Hayek, o conceito de ordem espontânea explica simulta-
neamente a evolução dos sistemas naturais (biológicos e geológicos) e a
evolução dos sistemas sociais. As regularidades que observamos no fun-
cionamento destes sistemas resultam do progressivo ajustamento interno €
não de uma imposição vinda do exterior.
As consequências desta distinção são decisivas, quer a nível da aná-
lise empírica do funcionamento do mercado, quer a nível normativo. Em
primeiro lugar, de entre os sistemas de cooperação social, o mercado é o
único sistema próprio de uma sociedade complexa que resulta da interac-
ção involuntária de vários agentes individuais. Não está sujeito à reali-
zação de objectivos específicos impostos do exterior, como os que por
exemplo caracterizam a economia socialista. É um sistema aberto, sem
hierarquia de fins, cuja «ordem tem origem no ajustamento mútuo de
numerosas economias individuais» (Hayek, 1976: 108-109). À ordem
espontânea própria do mercado, Hayek dá o nome de «catalaxia». Em
segundo lugar, a sujeição do funcionamento do mercado à realização de
fins comuns constitui um fenómeno de engenharia social cujo resultado é
a transformação da ordem espontânea numa ordem fabricada e a conse-
quente diminuição da riqueza produzida.
Este último argumento é ilustrado pela crítica ao conceito de jus-
tiça socials. Para Hayek, este conceito baseia-se antes de mais num erro
conceptual. É incorrecto classificar como injusta a distribuição gerada
pela ordem espontânea do mercado para depois exigir a sua correcção
ou impor um padrão geral de distribuição. O adjectivo justo ou injusto
só é associável à vontade humana. E como não é a vontade humana
quem dirige o funcionamento global do mercado, os resultados gerados

4 Para um tratamento aprofundado desta questão. ver Espada (1996).


Libertarismo 73

pelo mercado não são justos nem injustoss. Mas mesmo partindo de
um erro conceptual, a sujeição do funcionamento do mercado à reali-
zação da justiça social poderia contribuir para a melhoria das condições
de vida das pessoas. Hayek, todavia, rejeita esta possibilidade. A sujei-
ção do mercado a um padrão geral de distribuição só pode produzir
o efeito contrário ao desejado. A explicação é relativamente simples.
A submissão dos fins individuais à realização da justiça social destrói
a ordem espontânea que caracteriza o mercado e impede os indivíduos
de utilizarem os seus melhores conhecimentos para realizarem os seus
próprios fins:

«para se satisfazerem essas pretensões, a ordem espontânea a que


chamamos sociedade teria de ser substituída por uma organização dirigida;
o cosmos do mercado teria de ser substituído por uma taxis cujos membros
teriam de fazer aquilo que lhes fosse instruído fazer. Eles não teriam per-
missão para usar o seu conhecimento para os seus próprios fins, teriam antes
de levar a cabo um plano que os seus governantes tivessem concebido
para ir ao encontro das necessidades a satisfazer» (Idem, 103).

Por conseguinte, as ingerências governamentais na economia


em nome da justiça social acabam por ser contraproducentes. Como os
benefícios da cooperação social pelo mercado resultam da possibilidade
de os indivíduos utilizarem os seus próprios conhecimentos na reali-
zação dos seus próprios fins, a interferência na ordem espontânea que
caracteriza o mercado, ao obrigar os indivíduos a fazerem aquilo que
lhes é ordenado, acaba por contribuir para a diminuição desses benefí-
cios. Hayek pode então concluir que as sociedades onde o mercado fun-
ciona livremente permitem à generalidade dos indivíduos usufruir de
melhores condições de vida do que as sociedades com uma economia

s De acordo com Hayek. «é, de facto, tentador chamar “justo” a um estado de


coisas produzido porque todos aqueles que para ele contribuíram agiram justamente (ou
não injustamente): mas isto é enganador quando, como é o caso numa ordem espontânea,
o estado resultante não foi o objectivo pretendido das suas acções individuais. Como
apenas as situações que tenham sido criadas pela vontade humana podem ser chamadas
justas Ou injustas, as particularidades da ordem espontânea não podem ser justas ou injus-
tas. Se ninguém pretendeu ou previu como resultado da sua acção que A deva receber
muito e que B pouco, esta situação não pode ser chamada de justa nem de injusta»
Hayek, 1976: 33).
74 Manual de Filosofia Política

mista. Apesar de não ser perfeita, a sociedade liberal «é a ordem social


mais desejável», é «aquela que nós escolheríamos se soubéssemos que à
nossa posição inicial nessa ordem tivesse de depender simplesmente
da sorte» (Idem, 132).

1.2. A ambivalência do libertarismo instrumental

O argumento da eficiência do mercado deu origem a uma lingua-


gem política conhecida, que procura contrapor o Estado à sociedade civil,
o peso da burocracia estatal à iniciativa privada, «o caos da planificação
central» ao «dinamismo do mercado». Esta justificação do libertarismo
apresenta, no entanto, um problema. A sua validade depende da verifi-
cação das vantagens comparativas do mercado livre. O que fazer se se
verificar que o funcionamento do mercado livre não é eficiente? Os eco-
nomistas libertaristas raramente consideram esta possibilidade. Quando
afirmam que o funcionamento do mercado não pode ser melhorado por
medidas governamentais, afirmam necessariamente que o resultado do
funcionamento do mercado livre é já o melhor possível — é impossível
melhorar a situação económica de um indivíduo sem degradar a situa-
ção de outro indivíduo (óptimo de Pareto). Mas em termos lógicos, se
se verificar que o funcionamento do mercado livre não é eficiente, será
necessária a intervenção governamental para fazer os ajustamentos neces-
sários.
Para evitar em definitivo as ingerências governamentais no mer-
cado, é necessário estabelecer uma adesão incondicional ao libertarismo.
Esta estratégia é por vezes adoptada pelos economistas libertaristas: se a
economia mista é criticável não é apenas porque os seus efeitos são con-
traproducentes do ponto de vista da eficiência, mas também porque põe
em causa a liberdade individual. Encontramos este argumento expresso,
por exemplo, por M. Friedman numa célebre entrevista à revista Playboy:
«do que nós temos falado desde o início é da liberdade. Ainda que um
certo número das minhas proposições tenham o efeito imediato de melho-
rar o nosso bem-estar económico, isso não passa, na realidade, de um
objectivo secundário quando comparado com a preservação da liber-
dade individual» (Friedman, 1973: 37). Também Hayek se exprimirá no
mesmo sentido. Paralelamente à análise crítica da economia mista ou
planificada, Hayek argumenta que o mercado livre é o único sistema de
Libertarismo 75

cooperação económica para uma sociedade complexa que não conduz


ao «caminho da servidão» (Hayek, 1944). Se for autorizado a controlar a
economia, o Estado não resistirá depois a controlar os outros aspectos
da vida das pessoas.

2. LIBERTARISMO FUNDAMENTAL

Apesar de presente nos livros de M. Friedman e F. A. Hayek, a ela-


boração mais sistemática do libertarismo fundamental deve-se a Robert
Nozick, Murray Rothbard, Eric Mack, Jan Narveson ou Tibor Machan.
Para estes autores, a justificação do libertarismo é uma tarefa puramente
conceptual, não tem de se preocupar com considerações factuais de ordem
económica. Quando se trata de estabelecer a estrutura básica da sociedade,
pouco importam os objectivos macroeconómicos fixados. Pouco importa
se o mercado livre promove o crescimento económico ou contribui para a
quebra da taxa de desemprego. O importante é respeitar a liberdade indi-
vidual. É neste sentido que o libertarismo fundamental se diferencia do
libertarismo instrumental. O respeito pela liberdade individual constitui
um imperativo moral e não um instrumento de promoção da eficiência
económica. Significativamente, isto altera a natureza da objecção dirigida
à economia mista. As ingerências governamentais no mercado já não são
censuráveis pelos efeitos negativos que produzem sobre a economia, mas
porque constituem erros morais.

2.1. Robert Nozick

O filósofo norte-americano R. Nozick ocupa um lugar de destaque


entre os principais defensores do libertarismo fundamental. Em Anarquia,
Estado e Utopia, o único livro de filosofia política que escreveu, encon-
tramos um tratamento sistemático dos principais temas do libertarismo,
entre os quais se destaca a crítica às versões igualitárias da justiça social.
Para demonstrar que as teorias da justiça igualitárias afectam negati-
vamente a liberdade individual, Nozick apresenta o famoso argumento
Wilt Chamberlain (Nozick, 1974: 160-164). Tratando-se de um dos mais
populares jogadores do campeonato norte-americano de basquetebol
(NBA) do final dos anos 70, Nozick imagina que Chamberlain tem a pos-
76 Manual de Filosofia Política

sibilidade de assinar um contrato com uma cláusula especial: a sua equipa


garante-lhe o pagamento de 25 cêntimos por cada bilhete de entrada
nos jogos em casa, montante que será depositado directamente pelos
espectadores numa caixa instalada junto às bilheteiras. A cada potencial
espectador é, por hipótese, distribuída a mesma quantidade de dinheiro,
de maneira a que o ponto de partida (D1) seja rigorosamente igualitário.
Quando a época começa, muitos dos potenciais espectadores decidem
assistir aos jogos atraídos pela presença de Chamberlain na eguipa da
casa, aceitando com satisfação depositar os 25 cêntimos do preço do
bilhete na caixa instalada à entrada do pavilhão. Se na época inteira
assistirem aos jogos 1 milhão de pessoas, Chamberlain arrecadará
250 000 dólares. Em termos esquemáticos, uma distribuição de recursos
(D1) rigorosamente igualitária deu lugar a uma nova distribuição (D2),
mais favorável a Chamberlain.
Intuitivamente, não existe nada de errado com (D2). As pessoas que
pagaram para ver Chamberlain jogar basquetebol fizeram-no voluntaria-
mente. Podiam ter ido ao cinema, doado o seu dinheiro a instituições de
caridade ou comprado literatura de esquerda sobre a exploração capitalista
e a alienação das massas. Mas todos preferiram de maneira livre e infor-
mada dar o seu dinheiro a Chamberlain. No entanto, se (D2) não coincidir
com o tipo de distribuição exigida pelos princípios de justiça igualitários,
o que é o mais provável, será necessário redistribuir o dinheiro. Por exem-
plo, de acordo com o princípio da diferença de Rawls, os 250 000 dólares
têm de afectar de maneira positiva os mais desfavorecidos, exigência que
pode obrigar à transferência compulsiva de parte do dinheiro ganho por
Chamberlain para este grupo sociológico. A alternativa à transferência
compulsiva do dinheiro é a proibição antecipada das transacções que não
contribuam para a maximização da posição dos mais desfavorecidos. Mas
também neste caso existe limitação da liberdade individual: as pessoas não
podem fazer o que desejam fazer a fim de respeitarem o que é exigido pela
justiça. Por generalização, Nozick conclui que nenhum princípio de justiça
de tipo igualitário «pode de maneira contínua ser realizado sem inter-
ferência contínua na vida das pessoas» (Idem, 163).
Para salvaguardar a liberdade individual, Nozick propõe uma teoria
da justiça alternativa, a que dá o nome de teoria do justo título (Idem, 150-
-153). Nesta teoria da justiça não existem exigências de tipo igualitário às
quais uma dada distribuição tem de se adaptar para ser considerada justa,
mas apenas algumas regras processuais referentes ao modo como a pro-
Libertarismo 77

priedade se pode constituir e transferir, regras que uma vez respeitadas tor-
nam o resultado final justo, qualquer que ele seja. As regras processuais
da teoria do justo título são as seguintes: 1) um princípio de apropriação
original, que especifica como é que um indivíduo pode tornar-se proprie-
tário de um recurso exterior (um indivíduo pode tornar-se proprietário de
algo não possuído desde que não deteriore a situação das outras pessoas);
2) um princípio de transferência, que estabelece a possibilidade de uma
pessoa tornar-se proprietária de um bem depois de um acordo com o seu
antigo proprietário; 3) um princípio de rectificação, que regula as viola-
ções de 1) e 2).
De acordo com o sentido geral da teoria do justo título, não existem
critérios independentes das regras processuais com legitimidade para ava-
liar a maior ou menor justiça de uma dada distribuição final. Se um deter-
minado bem foi adquirido sem prejudicar a situação das outras pessoas,
então toda a distribuição que resultar de troca voluntária desse bem é em
si mesma justa. Como refere Nozick, «tudo aquilo, o que quer que seja,
que nasça de uma situação justa e à qual se chega por etapas justas é em si
mesmo justo» (Idem: 151). Consequentemente, toda a interferência poste-
rior contra a livre vontade dos indivíduos é injusta. As correcções em
nome de princípios de justiça igualitários não são mais do que um roubo
institucionalizado. A ser resumida num único princípio, a teoria do justo
título teria o seguinte enunciado: «de cada um conforme escolher, a cada
um conforme escolherem dar-lhe» (Idem, 160).

O argumento da propriedade de si mesmo e a objecção dos talentos

Apesar de o argumento Will Chamberlain não ser compreensível


sem a afirmação de que os indivíduos são livres, moralmente falando, de
fazerem o que bem lhes apetece consigo mesmos e com os seus bens, a
crença básica do libertarismo de Nozick não é a liberdade. Em termos
fundacionais, a liberdade é justificada por outra crença moral, a saber, a
propriedade de si mesmo (Cohen, 1995: 68). Para estabelecer as conse-
quências normativas deste princípio, é preciso esclarecer duas questões
prévias. Em primeiro lugar, pode parecer contraditório e até pouco rigo-
roso afirmar que os indivíduos são proprietários de si mesmos. Do ponto
de vista lógico, este princípio parece pressupor a existência de uma cisão
ontológica entre o «eu proprietário» e o «eu propriedade». No entanto,
o conceito de propriedade de si mesmo tem uma «natureza reflexiva»,
78 Manual de Filosofia Política

como refere G. A. Cohen — «quem possui e aquilo que é possuído são a


mesma coisa, a saber, a pessoa toda inteira» (Idem, 69). Na definição
de pessoa incluem-se todas as características passíveis de serem empi-
ricamente associadas ao «cu» (motivações, talentos, corpo, etc.). Em
segundo lugar, é necessário definir o que significa ser proprietário de
algo. Para Nozick, «o aspecto central da noção de direito de propriedade
sobre X é o direito a determinar o que deve ser feito com X» (Nozick,
1974: 171). Neste contexto, se os indivíduos são proprietários da sua pes-
soa, então isso significa que só eles têm direito a determinar o que pode
ser feito com tudo aquilo que faz parte da sua pessoa. As consequências
normativas deste princípio tornam-se agora mais claras: ninguém pode
ser impedido de consumir drogas duras, de casar com mais do que uma
pessoa, de doar um rim a um amigo ou mesmo de colocar o seu corpo no
mercado e vender-se como escravo (Idem, 331). O único limite é não
invadir a esfera de propriedade dos outros.
Mas mais decisivo, Nozick quer, com o argumento da propriedade
de si mesmo, demonstrar que a justiça redistributiva constitui um erro
moral. Em paralelo à afirmação de que cada indivíduo exerce direitos de
propriedade sobre os seus talentos naturais, é possível estabelecer um
direito de propriedade exclusivo sobre o valor produzido por estes: se a
pessoa A é proprietária de si mesma, então é necessariamente proprie-
tária de todos talentos naturais Xs; e se 4 é proprietária de Xs, então
também é proprietária do valor acrescentado por Xs (Idem, 225-226).
Nenhuma forma de cooperação social pode por isso ser considerada legí-
tima se tributar o valor relativo ao exercício dos talentos individuais. Ao
fazê-lo estará a utilizar os talentos de alguns indivíduos para proveito de
outros. Para utilizar uma fórmula célebre de Nozick, a tributação não é
mais do que «trabalho forçado»: «a apropriação do valor de n horas de
trabalho é o mesmo que a apropriação de n horas dessa pessoa: é como
se essa pessoa fosse forçada a trabalhar n horas para os fins de outra»
(Idem, 169).
A interpretação dos impostos sobre o trabalho como uma variante
contemporânea da escravatura é ilustrada pela crítica ao princípio da dife-
rença de Rawls, a exigência que as desigualdades económicas e sociais
«resultem nos maiores benefícios possíveis para os mais desfavorecidos»
(Rawls, 1971: 89-90). Ao expor este princípio, Rawls afirma que «o prin-
cípio da diferença representa, na realidade, um acordo para considerar a
distribuição dos talentos naturais como um recurso comum e para parti-
Libertarismo 79

lhar os benefícios dessa distribuição» (Idem: 101)6. A socialização dos


talentos individuais é permitida porque a sua distribuição é arbitrária do
ponto de vista moral, obedece a uma lógica própria dos jogos da sorte:
«ninguém merece a sua maior capacidade natural nem uma posição ini-
cial na sociedade mais favorável» (Idem: 102). Para Nozick, no entanto,
reconhecer que os indivíduos não merecem os talentos com que nascem,
que a sua posse é moralmente arbitrária, se não é um dado moralmente
irrelevante, não permite, pelo menos, a nenhuma forma de cooperação
social transformar os talentos individuais num recurso comum. Autorizar
em nome da justiça que os talentos individuais sejam socializados equi-
vale «a instituir a propriedade parcial de algumas pessoas sobre outras, as
suas acções e o seu trabalho. Estes princípios [de justiça] envolvem um
deslizamento da noção clássica de propriedade de si mesmo para uma
noção de direitos de propriedade (parcial) sobre outras pessoas» (Nozick,
1974: 172).
As consequências da socialização dos talentos individuais pelas
teorias da justiça de natureza igualitária são radicais. Mesmo se a socia-
lização dos talentos tem como objectivo primário a redistribuição do
valor acrescentado pelos talentos naturais, Nozick pensa que nada impede
a redistribuição dos próprios talentos (Idem, 206). O argumento é o
seguinte: é inegável que a lotaria na distribuição dos talentos naturais
deixa as pessoas portadoras de determinados tipos de deficiência (a
cegueira, por exemplo) numa situação desvantajosa quando comparada
com a situação das pessoas saudáveis. Com base nesta constatação, pode
ser exigida, em nome da justiça, a transferência obrigatória de um olho das
pessoas saudáveis para as cegas. Os prejuízos para as condições de vida da
população saudável são compensados pela melhoria substancial das con-
dições de vida da população cega. Do ponto de vista de Nozick, este tipo
de argumento demonstra os limites morais do liberalismo igualitário, mas
também de todas as teorias da justiça que envolvam a redistribuição de

6 Trata-se de uma passagem corrigida por Rawls depois da publicação original.


Como a tradução portuguesa foi feita com base na versão corrigida, o leitor português tem
acesso a um enunciado ligeiramente diferente: «o princípio da diferença representa, com
efeito, um acordo quanto ao facto de se encarar a distribuição dos talentos naturais como.
sob certos aspectos. um bem comum e quanto à partilha dos maiores benefícios econó-
micos tornados possíveis pela complementaridade dessa distribuição» (Rawls, 1971: 96
[tradução portuguesa)).
80 Manual de Filosofia Política

recursos. Não é possível garantir a integridade dos indivíduos quando a


estrutura básica da sociedade revela preocupações de ordem igualitária?. A
conclusão fundamental de Nozick é então que «apenas um Estado mínimo,
limitado a funções muito específicas de protecção contra a força, o roubo,
a fraude, aplicação dos contratos, e assim sucessivamente, é justificável;
qualquer outro Estado mais extenso violará os direitos das pessoas a não
serem forçadas a certas coisas e é injustificável» (Idem: ix).

2.2. Libertarismo de esquerda

Apesar da sofisticação dos argumentos de Nozick, a incompatibili-


dade entre a afirmação do princípio da propriedade de si mesmo e a defesa
de princípios de justiça igualitários foi rapidamente posta em causa pelo
libertarismo de esquerda. Esta teoria política contemporânea deve o seu
desenvolvimento a pensadores como Hillel Steiner, Peter Vallentyne ou
Michael Otsukas. Entre libertarismo de esquerda e libertarismo de direita
existe consenso quanto à prioridade moral atribuída ao princípio da
propriedade de si mesmo e quanto a algumas consequências normativas
que lhe estão associadas. Tal como acontece à direita, os libertaristas de
esquerda recusam toda a legislação pública condenando os crimes sem
vítimas e defendem o direito estrito dos indivíduos a controlar o valor do
produto que deriva do seu trabalho. A diferença específica é que os Jliber-
taristas de esquerda adicionam ao princípio da propriedade de si mesmo
um princípio de justiça igualitário com o objectivo de regular a distribui-
ção do valor relativo aos recursos naturais. De acordo com uma definição
abrangente (Otsuka et al, 2005: 202), o libertarismo de esquerda baseia-se
em dois princípios fundamentais: a) «completa propriedade de si mesmo

7 Ver a resposta de Rawls (2001: 75) e Dworkin (1983: 39) a este argu-
mento.
8 Os artigos mais significativos sobre o libertarismo de esquerda estão reunidos
na antologia organizada por Vallentyne e Steiner (20004). Philippe Van Parijs (1995)
também é associado a este movimento, mas considera-se um “real-libertarian” para pôr
evidência a especificidade meta-ética da sua proposta. As análises de G. A. Cohen (1995)
sobre o princípio da propriedade de si mesmo também são decisivas na formação do liber-
tarismo de esquerda, mesmo se se trata de um marxista analítico que recusa a possibilidade
de articular este princípio com princípios de justiça igualitários.
Libertarismo 81

inicial para todos os agentes»; b) «propriedade igualitária dos recursos


naturais».
O facto de o libertarismo de esquerda partilhar com o liberalismo
igualitário a crença moral de que é necessário afectar os recursos de uma
maneira equitativa não significa que exista sobreposição destas teorias
políticas. O libertarismo de esquerda é uma teoria política bem definida
e claramente distinta do liberalismo igualitário?. Os libertaristas de
esquerda têm uma concepção «restritiva» dos recursos (do ponto de vista
do libertarismo de esquerda, o problema da justiça é relativo à afectação
dos recursos naturais ou do valor do produto que deles deriva, ficando
excluídos os recursos pessoais e o valor relativo ao trabalho de um
ser humano), enquanto que os liberais igualitários têm uma concepção
«abrangente» dos recursos (não são sensíveis à diferença entre recursos
externos e recursos internos relativos ao sujeito — talentos, saúde, corpo).
A adopção da perspectiva «restritiva» por parte do libertarismo de
esquerda tem o duplo objectivo de impedir a colectivização dos talentos
(a ideia que um indivíduo é forçado a contribuir através do seu trabalho
para o bem-estar dos outros) e a redistribuição de partes do corpo
humano, por exemplo a transferência obrigatória de olhos aos cegos ou
de sangue aos hemofílicos.

Corrigir o libertarismo de direita

Para compreender a forma como o libertarismo de esquerda con-


segue pôr ao serviço de preocupações igualitárias os instrumentos con-
ceptuais do libertarismo de direita, é importante retomar a análise do
argumento da propriedade de si mesmo. Afirmar a prioridade moral do
princípio da propriedade de si mesmo implica reconhecer que os indiví-
duos são proprietários dos seus talentos naturais e daquilo que é produzido
por eles. Os libertaristas de esquerda estão de acordo com os libertaristas
de direita quanto a este ponto: o valor que deriva do exercício dos talentos
dos indivíduos a eles pertence. No entanto, é forçoso reconhecer que, com
excepção das ideias que têm valor de mercado (as invenções patenteadas,
por exemplo), a produção de bens envolve mais do que o trabalho dos

9 Sobre a distinção entre libertaristas de esquerda e liberais igualitários. ver Otsuka


et al (2005: 201-205) e Otsuka (2005. chap. 6). Esta distinção foi originalmente posta em
causa por Barbara Fried (2004).
82 Manual de Filosofia Política

indivíduos. Envolve também direitos sobre os recursos naturais de que


são feitos esses bens. H. Steiner formula este argumento da seguinte
maneira:

«nenhum objecto pode ser feito a partir de nada, e por conseguinte


todos os títulos de propriedade sobre os objectos manufacturados ou trans-
feridos livremente devem derivar na origem de títulos sobre objectos natu-
rais que não pertenciam a ninguém» (Steiner, 1977b: 151)

É neste ponto que o libertarismo de esquerda adquire a sua identi-


dade. Os libertaristas de direita reconhecem que os títulos de propriedade
sobre as coisas não dependem exclusivamente do exercício dos talentos
individuais, mesmo que alguns enunciados possam sugerir o contráriol0.
De outra maneira não faria sentido a existência de regras processuais que
regulam a apropriação e posterior transferência dos recursos externos. A
diferença é que os libertaristas de esquerda consideram as regras estabele-
cidas pelos libertaristas de direita pouco restritivas por não prevenirem os
efeitos perversos da privatização dos recursos naturais. Por exemplo, a
cláusula de apropriação original de Nozick estabelece que ninguém pode
ver a sua situação deteriorada pelo facto de não poder utilizar livremente
o que poderia utilizar no caso de não existir apropriação privada. De
acordo com esta exigência, não é legítimo que alguém se aproprie de todo
a água potável do mundo porque isso significaria deteriorar a situação
de todas as outras pessoas (Nozick, 1974: 180). Mas do ponto de vista do
libertarismo de esquerda, é possível que uma geração esgote a quantidade
total de um recurso natural não renovável, ou que a acumulação progres-
siva de recursos exteriores coloque certos indivíduos na dependência
directa de outros, sem existir violação das regras processuais de Nozick!!.
Para prevenir este tipo de consequências, é necessário adoptar uma
cláusula mais restritiva, de natureza igualitária.
Se os libertaristas de esquerda estão de acordo quanto à necessidade
de adoptar uma cláusula de apropriação original mais restritiva, o mesmo
já não acontece quanto à cláusula proposta. Os libertaristas de esquerda
dividem-se na formulação do princípio que regula os títulos de proprie-

10 Por exemplo, Nozick afirma que «as coisas vêm ao mundo já ligadas a pessoas
com direitos sobre elas» (1974: 160).
1 Ver Cohen (1995: 34) e Otsuka (2005: 23).
Libertarismo 83

dade sobre os recursos externos. Para Steiner, «cada indivíduo tem direito
a uma parte igual dos meios de produção não humanos» (Steiner, 1977a:
48-49). De acordo com este princípio, cada indivíduo é livre de utilizar a
parte dos recursos não humanos a que tem direito, quer melhore e retire
benefício dessas melhorias. quer não. Quanto a Otsuka, defende uma
cláusula igualitária com o seguinte enunciado: «podemos originalmente
adquirir recursos do mundo sem proprietário se e apenas se deixarmos o
suficiente de maneira a que qualquer outra pessoa possa adquirir uma parte
igualmente vantajosa de recursos do mundo sem proprietário» (Otsuka,
2005: 24). Por comparação com Steiner, Otsuka adopta uma cláusula com
uma especificação welfarista. A expressão «parte igual» é substituída pela
expressão «parte igualmente vantajosa» para contemplar uma concepção
da justiça como satisfação das preferências individuais.

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CAPÍTULO IV
Comunitarismo

CARLOS AMARAL*

Num trabalho publicado no início da década de noventa do último


século, Francis Fukuyama apresenta uma leitura da contemporaneidade
em que interpreta a vitória na Guerra Fria do bloco ocidental, liberal e
capitalista, sobre o Leste, comunista, como consubstanciando nada menos
do que o culminar de todo o devir histórico. A implosão da antiga União
Soviética e o ruir do muro de Berlim teriam conduzido à entronização dos
Estados Unidos como a hiperpotência única do planeta e constituiriam
igualmente as manifestações mais evidentes do triunfo final do liberalismo
sobre a alternativa comunista. E, com o fim da história, tornava-se pos-
sível igualmente descortinar o derradeiro patamar da evolução humana: o
homo liberalis (Fukuyama, 1992).
Duas décadas antes, em 1971, outro norte-americano, John Rawls,
publicou um livro intitulado Uma teoria da justiça (Rawls, 1971). Apon-
tando para o cumprimento do projecto político da modernidade, o texto
procura fundamentar o “liberalismo político” (Rawls, 1993)1, e marcou de
imediato toda a filosofia política contemporânea. Sendo certo que Rawls
jamais entendeu que a sua obra conduzisse à entronização definitiva do
liberalismo e, por essa via, anunciasse a morte da filosofia política, dis-

* Universidade dos Açores.


1 Uso aqui a expressão “liberalismo político” para recorrer ao título que Rawls
elegeu para a obra em que procura refinar o seu pensamento, respondendo às principais
críticas suscitadas por Uma teoria da Justiça.
88 Manual de Filosofia Política

pensando o forjar de projectos alternativos, é igualmente inquestionável


que, pela força e pregnância dos argumentos que apresenta, ela o pro-
Jectou para a ribalta do pensamento político. E a principal evidência da
dimensão do projecto rawlsiano radicará no facto de se ter tornado marco
incontornável da reflexão política subsequente, gerando um manancial de
reacções.
A maior parte da crítica dirigida a Rawls tem origem no próprio pro-
Jecto liberal, procurando corrigi-lo e melhorá-lo, em vez de o derrubar e
substituir. É neste contexto que se insere o comunitarismo, pelo menos
na sua dimensão contemporânea, de que aqui nos ocupamos. Não sendo
exactamente uma escola, nem uma ideologia, constitui, antes, um rótulo
utilizado de forma mais ou menos solta para classificar um dos grandes
conjuntos de críticos do projecto liberal, nomeadamente tal como estabe-
lecido por Rawls — um conjunto algo heterogéneo, ao ponto de ser inclu-
sivamente recusado por alguns daqueles a quem é aplicado2.
Acima de tudo, o pensamento comunitarista consubstancia uma crí-
tica da modernidade, das suas matrizes individualista, racionalista e volun-
tarista, bem como das visões do eu, da sociedade, da justiça, da demo-
cracia e do político que a enformam. Ao mesmo tempo, procura explicar
e corrigir o desencanto com a actividade política patente nas sociedades
liberais contemporâneas e, bem assim, encurtar o fosso que, em termos
reais, a atira para além do alcance dos cidadãos, não temendo, para o
efeito, apelar aos valores, designadamente do ideário republicano, da soli-
dariedade, do civismo e da benevolência. Trata-se, convirá sublinhá-lo, de
uma reflexão produzida maioritariamente no seio da própria concepção
liberal. Para Michael Walzer, “o comunitarismo é mais bem entendido
quando perspectivado como procurando corrigir a teoria e a prática libe-
rais, e não como uma doutrina autónoma ou como um programa político
substantivo” (Walzer, 2004: x). E Adrian Little não hesita em afirmar que
os comunitaristas “são essencialmente liberais” (Little, 2002: 30), não
tendo por objectivo substituir, mas corrigir o projecto liberal.

2 É o caso, por exemplo, de Michael Sandel, recentemente editado entre nós


pela Fundação Calouste Gulbenkian, de quem. pela riqueza e interesse do seu pensamento.
nos ocuparemos com algum pormenor ao longo deste trabalho.
Comunitarismo 89

Para a crítica comunitarista, o principal problema do liberalismo, tal


como de toda a modernidade, reside no facto de não reservar grande
espaço, seja para a nossa condição social, e política. seja para as comuni-
dades em que nos inserimos. seja para os princípios, inclusivamente
morais, que as consubstanciam. Escapam-lhe, deste modo, as exigências
impostas por esta condição humana, tal como o valor que. historicamente,
as comunidades assumem na construção da identidade e da personalidade
da pessoa concreta que é cada um de nós e, correlativamente, dos papéis
que somos convocados a desempenhar na identificação dos princípios e
dos modelos de organização social e política. E vê-se, por esta razão,
encerrado numa concepção estritamente asséptica do eu. perspectivado
estritamente como sujeito racional de direitos, da sociedade entendida
como produto artificial da vontade. e da política equiparada ao mercado.
Ao libertar os homens da trama identitária que, no antigo regime, os
fixava a uma família, a um núcleo territorial. a uma religião, a uma pro-
fissão, etc., e que acabava por determinar o seu próprio ser, o projecto da
modernidade assumiu uma dimensão emancipadora fundamental. Neste
processo, contudo, ao afirmar a igualdade fundamental entre todos, acabou
por perder de vista a pessoa concreta que é cada um de nós. Despojando
cada pessoa dos sucessivos contextos e das circunstâncias em que nasceu
e em que se constituiu, inteiramente acidentais e arbitrários do ponto de
vista do mérito, bem como do caleidoscópio de atributos com que se
depara em cada momento da sua vida, a modernidade acaba por ter apenas
lugar para um universo constituído por indivíduos, radicalmente autóno-
mos e destituídos de conteúdo e de identidade: todos iguais na medida em
que, enquanto sujeitos estritamente racionais. mais não são do que entes
capazes de direitos.
Tanto assim que, no dizer de Austin Sarat e Thomas Kearns, “os atri-
butos essenciais das pessoas são, nesta perspectiva, anistóricos e univer-
sais; daí todos os seres humanos serem iguais nos seus atributos essen-
ciais” (Sarat/Kearns, 2000: 1). E estes atributos essenciais prendem-se
com a igual dignidade de todo o ser humano, susceptível de se reconhecer
a si e aos demais como agente moral, capaz de ser livre. Todos os seres
humanos são livres e iguais, aliás, na medida em que são sujeitos de direi-
tos. Somos livres e iguais na medida em que, por um lado, todos somos
radicalmente autónomos nos projectos de vida que elegemos e, por outro,
90 Manual de Filosofia Política

transportamos connosco um elenco de direitos, os quais funcionam como


uma barreira, uma muralha intransponível que isola por inteiro o eu, o
sujeito volitivo que é cada um de nós, de toda a contingência, quer a de
índole física e material, quer a de índole social e política.
Já John Locke havia situado a liberdade no direito e na possibilidade
de escapar à arbitrariedade, em particular à vontade arbitrária dos outros.
No estado de natureza não há liberdade, porque as pessoas se encon-
tram totalmente expostas ao arbítrio. É para a propiciar que, na perspec-
tiva lockeana, se procede à transição do estado de natureza para o estado
civil e político. A liberdade está associada à protecção dos cidadãos pelo
direito, dela decorrendo. Assim, a pessoa torna-se livre a partir do mo-
mento em que dispõe de um corpo político a que pode recorrer com vista
à protecção dos seus direitos, começando pelo direito à propriedade,
entendido em sentido lato. Por isso é que, em vez de se confundir com a
libertinagem, a liberdade aponta para a autonomia enquanto capacidade de
acção. É para a protecção desta actividade volitiva fundamental do ser
humano que se procede à celebração do contrato social e, por esta via, à
instituição, pelo contrato social, da comunidade política. E é para igual-
mente para esse fim que se constitui o poder soberano: para imprimir ao
direito um carácter vinculativo e um respeito universal (Locke, 1988: esp.
Capítulo V do 4! Tratado).
A liberdade decorre, então, não do exercício concreto desta ou
daquela actividade, ou do voto neste ou naquele partido político, mas da
capacidade de eleição dos fins que nos norteiam. É para a salvaguarda da
igual liberdade de cada um de nós, enquanto sujeitos capazes de eleger
livremente o que queremos ser e como queremos viver, que o liberalismo
preconiza o respeito pelos nossos direitos, os quais funcionam, então,
como autênticas muralhas inexpugnáveis, capazes de conter todas e quais-
quer tentativas de interferência sobre a actividade volitiva fundamental do
ser humano. São, portanto, os direitos que nos constituem como sujeitos,
funcionando, na concepção de Ronald Dworkin, como trunfos políticos
capazes de se sobrepor a todo o arbítrio, quer provenha da natureza, dos
nossos concidadãos, ou dos nossos governantes, anulando-o eficazmente
(Dworkin, 1972).
Os direitos corrigem, ou, pelo menos, atenuam, a arbitrariedade com
que a natureza distribui os seus talentos pelas pessoas. Em face do carác-
ter arbitrário de que se revestem muitos dos nossos atributos, como O
nosso sexo, o estatuto € os recursos sociais, económicos ou culturais da
Comunitarismo 91]

família em que nascemos, o nosso quociente de inteligência, etc., os direi-


tos procuram não permitir que interfiram de forma substancial com a igual
dignidade ou com a liberdade de cada um. Paralelamente, colocam o ser
de cada um para além do alcance da subjectividade humana e das flutua-
ções, até mesmo democráticas, dos poderes estabelecidos.
O eu emerge, então, como razão incondicionada, capacidade formal
de eleger, protegida por um conjunto de direitos. No entanto, perspectivar
o eu como mero contentor formal de direitos, radicalmente igual a todos
os demais, salvaguarda a dignidade do ser humano, em toda a sua univer-
salidade, mas sob condição de não se lhe poder imputar qualquer conteúdo
material, isto é, de não se lhe permitir qualquer réstia de personalidade. É
o retrato traçado por Thomas Hobbes dos indivíduos, ainda no estado de
natureza, mas após terem abdicado dos seus direitos de natureza, a fim de
os depositarem nas mãos do soberano. Radicalmente destituídos de con-
teúdo e de identidade concreta, mais não são, por isso, do que conjuntos
vazios, razão pela qual se encontram aptos para receber a forma de que se
vierem a dotar no quadro do exercício do poder soberano do Estado res-
pectivo, constituído pela reunião integral dos poderes até aí dispersos entre
eles. Ou, então, o retrato traçado por John Rawls, para descrever os indi-
víduos que integram a “posição original”. Por força do “véu de ignorân-
cia” que sobre eles se abate, vêem ser-lhes sistematicamente retirados
todos os seus atributos até que, destituídos por inteiro de conteúdo, se
encontram aptos para, racionalmente, procederem à identificação dos prin-
cípios de justiça por que se deverá nortear a convivência social que vierem
a desenvolver.
Por outro lado, são estes sujeitos, todos igualmente destituídos de
identidade, que procedem à construção das unidades sociais. O social, em
vez de ínsito à condição humana, é perspectivado de forma artificial,
sendo construído com o objectivo de fornecer o quadro formal em que
indivíduos abstractos possam forjar a sua identidade e traçar os rumos que
houverem por bem imprimir às suas vidas. Por esta razão é que o ponto de
partida do processo de construção comunitária se prende com a negocia-
ção do elenco de direitos que deverá proteger a igual liberdade de cada um
para definir quem quer ser e o que quer fazer da sua vida. Conforme argu-
menta Michael Sandel, na perspectiva liberal, “nós somos eus livres e
independentes, libertos de quaisquer laços morais anteriores, capazes de
eleger os nossos fins por nós próprios. Esta é a concepção de pessoa que
encontra expressão no ideal de Estado enquanto quadro neutro. É precisa-
92 Manual de Filosofia Política

mente porque somos eus livres e independentes, capazes de eleger os nos-


sos fins, que necessitamos de um quadro que seja neutral relativamente a
esses mesmos fins. Basear os direitos numa qualquer concepção do bem
equivaleria a impor a alguns os valores de outros e, deste modo, a não
respeitar a capacidade de cada um para escolher os seus próprios fins”
(Sandel 2006: 246). Daí a precedência do justo sobre o bem.
Do social, do Estado, em particular, por força do poder soberano que
comanda, a perspectiva liberal espera que, sem se intrometer sobre os
valores e a concepção de vida boa das pessoas, assegure as condições ade-
quadas para cada indivíduo se forjar livremente e eleger os projectos de
vida que entender. Caso agisse de outro modo, o Estado estaria a violar a
igual dignidade de cada um. Aliás, é esta condição que conduz ao carácter
plural das nossas sociedades. Na medida em que cada um é responsável
por eleger o tipo de pessoa que quer ser e os valores por que quer nortear
a sua vida, encontramo-nos atirados para um universo onde uma plura-
lidade manifesta de concepções morais terá forçosamente de conviver.
Ora, a igual dignidade de cada um de nós, por outras palavras, o facto
de, no dizer de Rawls, que Sandel invoca, “sermos fontes de preten-
sões válidas que se autenticam a si mesmas” (Rawls, 1993: 32), apresenta
duas exigências nucleares. Por um lado, apenas poderá encontrar susten-
tação num quadro social e político que assuma um carácter unitário e
que, por isso mesmo, seja capaz de perspectivar a todos do mesmo modo,
independentemente das opções morais que viermos a adoptar. Por outro, o
pluralismo moral daqui decorrente exige um quadro social e político axio-
logicamente neutro, capaz de permitir a cada um cumprir a sua individua-
lidade, sem que nada, nem ninguém, a diminua ou perturbe.
Encontramo-nos, assim, atirados para uma concepção estritamente
dualista no quadro da qual emergem duas esferas distintas, delimitadas
por fronteiras impermeáveis e impenetráveis: as esferas do público e do
privado. À primeira destas esferas, subsidiária à segunda, prende-se com o
espaço de descoberta dos outros, dos membros da comunidade política de
referência, os concidadãos nacionais ou europeus e, no limite. o universal.
De descoberta e de garantia das condições capazes de assegurar o conví-
vio entre todos. À segunda, diz respeito à individualidade de cada um, ao
tipo de pessoa concreta que cada um quer ser e aos núcleos sociais de base
com os quais entende cumprir essa mesma individualidade. A primeira é,
portanto, constituída pelos cidadãos, todos caracterizados pela marca radi-
cal de igualdade; na segunda, enformada por uma pluralidade estruturante,
Comunitarismo 93

encontramos os membros desta ou daquela família, religião, sindicato,


clube desportivo. partido político, associação cultural, recreativa, etc.
A esta díade, público/privado, corresponde uma outra, consenso/
'dissenso.
O liberalismo político aponta para a construção de um “consenso
razoável”, ao nível das estruturas políticas. de modo a permitir o dissenso
e a pluralidade ao nível das opções privadas de cada um. Assim acontece
na medida em que. na argumentação liberal, o exercício prático da razão
torna possível alcançar um “consenso de sobreposição” ao nível público,
isto é, dos valores políticos e dos princípios fundamentais de organização
da comunidade de referência. No que à União Europeia diz respeito, por
exemplo, é isso que agora se procura alcançar: um consenso entre todos
os Estados-Membros sobre o respectivo quadro estrutural, independente-
mente da apelidação constitucional ou tratadista — pelo menos, assim se
espera. E será esse consenso europeu que deverá enformar o enquadra-
mento político capaz de permitir a unidade decorrente do processo de
integração europeia e de construção da Europa como sujeito político, e, ao
mesmo tempo. a diversidade decorrente do pluralismo e da autonomia dos
Estados-Membros.
Conforme argumenta Michael Sandel, “se bem que exista um facto
de um pluralismo acerca da justiça distributiva, não existe qualquer facto
de pluralismo razoável. Ao contrário das divergências acerca da moral e
da religião. as divergências acerca da validade do princípio de diferença
não são razoáveis. As teorias libertárias sobre a justiça distributiva não
seriam sustentáveis caso se reflectisse devidamente sobre elas. As nossas
diferenças acerca da justiça distributiva, ao contrário das nossas diferenças
acerca da moral e da religião, não são o produto natural do exercício da
razão humana em condições de liberdade [...] A noção de que as teorias de
justiça distributiva que não estejam de acordo com o princípio de diferença
não são razoáveis, ou a de que as teorias libertárias da justiça não sobre-
viveriam a um escrutínio adequado, não constitui uma pretensão arbi-
trária. Pelo contrário” (Sandel, 2006: 269).
Por outras palavras, os princípios que enformam as nossas opções ao
nível político são susceptíveis de ser aferidos racionalmente, tornando-se
possível, assim, alcançar um “equilíbrio reflectido” entre as múltiplas
possibilidades com que nos possamos deparar — processo pelo qual se
consegue proceder à redução da pluralidade à unidade. Já ao nível do pri-
vado, dos valores morais, religiosos, um tal consenso não é atingível. nem
94 Manual de Filosofia Política

mesmo através do exercício da razão e do debate público mais apurado.


Nem o escrutínio racional nos poderá conduzir a uma hierarquia ou a um
equilíbrio de crenças e de princípios morais, razão pela qual nos encontra-
mos condenados a conviver com o pluralismo.
Por isso é que a esfera pública, do político, tem que ser expurgada
por inteiro de considerações privadas, de índole moral, religiosa, regional,
clubística, ou outra — de modo a possibilitar o “consenso de sobreposição”
de que carece. Tanto assim que o liberalismo convoca os cidadãos a pen-
sarem a sua vida social e política, independentemente dos juízos, privados,
morais, religiosos, etc., que possam adoptar. Mais do que isso, a raciona-
lidade dos valores políticos, e, daí, a sua universalidade, não permite que,
na sua fixação, os cidadãos possam recorrer, sequer, aos seus princípios
morais. Cada um é convocado a pensar-se, a si e aos seus concidadãos,
enquanto eu, sujeito autónomo, e ao Estado como uma comunidade polí-
tica de eus livres e iguais — o que exige que, na ponderação dos parâme-
tros que deverão consubstanciar a comunidade política, ignore os atributos
concretos que o enformam, a si e aos outros.
Na nossa vida privada podemos ser deste ou daquele clube de fute-
bol. No entanto, a identificação do quadro normativo pelo qual a activi-
dade futebolística se deve reger exige que sejamos capazes de ignorar esta
circunstância concreta e que pensemos apenas naquela actividade despor-
tiva. De igual modo, enquanto pessoas privadas, podemos ser católicos,
protestantes, muçulmanos, budistas ou agnósticos. Já enquanto cidadãos,
não podemos permitir que as nossas opções políticas decorram, ou sejam
afectadas sequer, pelos princípios religiosos que adoptamos. É como se
cada um detivesse duas identidades perfeitamente distintas. Uma, en-
quanto pessoa privada, detentora de um caleidoscópio de atributos que a
individuam, e que fazem com que seja a pessoa concreta que é, e que, por
isso, detenha um elenco de afectos, obrigações, lealdade, solidariedade,
etc., por exemplo, para com os seus filhos, irmãos, pais e demais fami-
liares, os membros da sua congregação, do seu partido político, ou do
seu sindicato, os seus vizinhos, ou os seus concidadãos, etc. E a outra,
enquanto cidadão, isto é, enquanto sujeito livre e independente, integral-
mente destituído de conteúdo e liberto de todos e quaisquer laços morais
ou cívicos anteriores à actividade racional de escolha, de eleição.
O liberalismo político relega todos os princípios, valores e ideais que
possamos adoptar para o âmbito estrito da nossa vida privada, não permi-
tindo, portanto, que sejam admitidos no exercício de ponderação racional
Comunitarismo 95

conducente à adopção dos princípios responsáveis pela estruturação da


convivência social. Assim, por exemplo, um católico de modo algum
deverá pronunciar-se ou votar num referendo sobre o aborto, sobre o casa-
mento entre homossexuais, ou sobre a introdução de uma referência ao
Cristianismo no preâmbulo de uma Constituição Europeia, em função dos
ensinamentos da Igreja sobre o início da vida, sobre a família ou em maté-
ria de doutrina social, respectivamente — nem sequer invocá-los, fora da
sua casa ou da sua Igreja, isto é, para além do âmbito estritamente privado.
Nem tão-pouco um cidadão se deverá pronunciar sobre matérias como a
prostituição, os jogos de fortuna e de azar, a regionalização, o alargamento
e o aprofundamento da União Europeia, a corrupção, e, no limite, quais-
quer outras matérias que possam vir a ser introduzidas na agenda política,
a partir de uma qualquer visão prévia do bem ou ideia do que constitui a
boa sociedade, sejam elas de índole religiosa ou profana.
Deste modo, toda a vida pública deverá ser conduzida inteiramente à
margem dos valores morais, num registo de estrita neutralidade perante
todos eles. Tanto assim que a “política não deve procurar formar o carác-
ter ou cultivar a virtude dos cidadãos, fazê-lo equivaleria a «legislar sobre
a moral». O governo não deve promover, através das suas políticas ou leis,
qualquer concepção de vida boa, devendo, pelo contrário, disponibilizar
um quadro de direitos no qual as pessoas possam eleger os seus próprios
valores e objectivos” (Sandel, 2005: 9).
No limite, não são apenas os valores morais e religiosos que devem
ser expurgados do debate político, mas todos os elementos que possam ser
acoplados ao eu e utilizados para o definir e identificar como uma pessoa
concreta e individuada. Assim acontece na medida em que, agir de outro
modo, por exemplo em função dos valores que nos norteiam ou das carac-
terísticas através das quais nos identificamos, afasta-nos do ideal descrito
na posição original de sujeitos radicalmente destituídos de todo e qualquer
conteúdo, pondo em causa, portanto, o ideal liberal de construção racional
dos princípios de justiça capazes de assegurar, ao mesmo tempo, a igual
liberdade de cada um e a unidade do todo.
Por último, à perspectiva liberal corresponde também uma concep-
ção nos termos da qual o social, em vez de constituir um “dado da natu-
reza”, como na tradição aristotélica, por exemplo, emerge como uma cons-
trução artificial, como produto de um contrato que é negociado de forma
racional e celebrado pelas partes contratantes. Um contrato que, em vez de
assentar sobre a amizade, a solidariedade ou a fraternidade entre as partes,
96 Manual de Filosofia Política

encontra a sua única sustentação no cálculo utilitário que desenvolvem. E


a política resume-se ao poder e ao jogo pelo poder, entendido à maneira
hobbesiana como o conjunto dos instrumentos de que um homem, ou uma
comunidade, dispõe para servir os seus interesses, gratificando os seus
apetites e afastando as suas aversões. Perdida a dimensão do todo, do bem
comum, a política torna-se um negócio, uma actividade a que se acede e
que se exerce de forma utilitária, na exacta medida em que se espera
retirar proveitos dela.
É face a este universo conceptual que a crítica comunitarista se
desenvolve.
“Uma política que suspende a moral e a religião por inteiro [denun-
cia Michael Sandel], rapidamente gera o seu próprio desencanto. Quando
falta ressonância moral ao discurso político, o anseio por uma vida pública
que detenha um significado mais profundo encontra expressão indesejá-
vel. [...] Os fundamentalistas precipitam-se pelos caminhos que os liberais
temem trilhar. O desencanto assume igualmente características mais se-
culares. Na ausência de uma agenda política capaz de corresponder à
dimensão moral da vida pública, as atenções voltam-se para os vícios pri-
vados das autoridades. O discurso político centra-se cada vez mais no
escândalo, no sensacional e na vida privada, tal como fornecidos pelos
tablóides, pelos talk shows e, eventualmente, pela comunicação social de
referência também. Não se pode dizer que a filosofia pública do libera-
lismo contemporâneo seja inteiramente responsável por estas tendências.
Porém a visão liberal do discurso político é excessivamente frugal para
corresponder às energias morais da vida democrática. Ela cria um vazio
moral que abre o caminho para a intolerância e para moralismos desen-
caminhados.” (Sandel, 2005: 28).
À visão liberal, do cidadão, da sociedade e da vida política é exces-
sivamente frugal, acabando por encontrar tradução, neste quadro negro,
na deterioração da vida política e na crise das democracias. Perdida a
dimensão axiológica, a política é equiparada à gestão e a democracia
resvala em direcção à tecnocracia. A cidadania parece resumir-se à parti-
cipação no exercício do voto em eleições regulares e, até mesmo neste
registo, as taxas de abstenção atingem níveis assustadores. Assiste-se ao
recrudescer de nacionalismos exacerbados e de partidos fundamentalis-
tas, racistas, xenófobos e extremistas. As opções políticas tornam-se com-
plexas demais para o cidadão comum, e o poder, em vez de ser exercido
por órgãos eleitos, é atirado cada vez mais para organismos e comités téc-
Comunitarismo 97

nicos, distantes e perfeitamente insulados do controlo democrático. Tanto


o carácter representativo da democracia. como o responsivo, se esbo-
roam, estabelecendo-se um fosso cada vez maior entre a actividade polí-
tica e os cidadãos.
Curiosamente, poderá estabelecer-se um paralelo com a crítica
desenvolvida pelo italiano Norberto Bobbio.3 Em particular com aquilo
que apelida de “promessas não cumpridas” da democracia liberal con-
temporânea entre as quais sobressaem a “desforra dos interesses”, a “per-
sistência das oligarquias”. o “poder invisível”, a crescente tecnocracia, a
incapacidade e a falta de recursos e de preparação dos cidadãos e o cres-
cimento dos aparelhos de poder e da burocracia. Uma realidade contem-
porânea que, no seu conjunto, conduziu a que a actividade política fosse
atirada para além do alcance dos cidadãos, havendo, portanto, nos nossos
dias, necessidade de reforjar a própria democracia. Reforjar, não apenas
pelo cumprimento das promessas da democracia liberal, como ainda pela
redefinição dos espaços em que ela se desenvolve e pela reintrodução dos
valores na vida política.
Redefinição dos espaços em que o poder político é exercido,
trazendo-o para as unidades sociais reais e devolvendo-o aos cidadãos,
perspectivados não já de forma abstracta e destituídos de conteúdo, mas
situados nos múltiplos papéis que desempenham na sociedade, na univer-
sidade, na empresa, na região, no sindicato, nas forças armadas, nos cen-
tros de saúde, etc., etc. É um apelo à democracia social, à partilha do poder
por entre as unidades sociais enquanto instrumento para colmatar as
lacunas da democracia representativa, da democracia responsiva e da
democracia directa tradicionais. E reafirmação da importância dos valores
para a vida social e política, em particular para a mobilização de uma cida-
dania activa. Valores, causas, ideais, projectos de sociedade, capazes de
oferecer à democracia balizas e direcção, assegurando-lhe uma dimensão
que supera a condição de estrito conjunto de regras processuais para a
tomada de decisão colectiva (Bobbio, 1988: esp. 28-52).

3 Se bem que o comunitarismo seja habitualmente fixado no universo do pensa-


mento político anglo-saxónico e Bobbio não seja habitualmente referenciado sequer a este
propósito. No entanto. as preocupações. essas. são manifestamente partilhadas.
98 Manual de Filosofia Política

De entre a panóplia de variações que o comunistarismo apresenta,


Will Kymlicka identifica três grandes vertentes ou variantes (Kymlicka,
1999).
À primeira, é constituída por aqueles para quem a comunidade é
capaz, por si só, de corresponder a todas as necessidades humanas, não
sendo necessário, portanto, proceder à identificação de princípios de jus-
tiça. Nesta acepção, a comunidade apresenta-se como o dado ontológico
originário, dela decorrendo directamente os princípios de organização
social e política por que se deve reger. Por outras palavras, “a comunidade
substitui a necessidade de princípios de justiça”. Para outros, no entanto, a
comunidade não dispensa a justiça. Daí uma segunda grande vertente
comunitarista argumentar precisamente que os princípios de justiça em
vigor numa comunidade devem ser aqueles que dela brotam de forma mais
ou menos espontânea, ou que são adoptados pela maioria dos seus mem-
bros. Nestes termos, a justiça deve basear-se nos “entendimentos partilha-
dos de uma sociedade, em vez de em princípios universais e anistóricos”.
Por último, uma terceira vertente defende que a comunidade deve estar
presente na identificação do conteúdo dos princípios de justiça por que se
deverá nortear. Isto é, que a justiça deve “conceder maior peso ao bem
comum e menor aos direitos individuais” (Kymlicka, 1999: p. 367).
Trata-se de uma tríade que Lukas Sosoe, no ensaio que preparou
para a História da Filosofia Política dirigida por Alain Renaut, reduz
para dois termos. Conforme sublinha, a argumentação comunitarista é
ampla e diversificada, tendo produzido uma “amálgama de argumentos e
contra-argumentos” que apenas permite que se fale de “liberais comunita-
ristas”, ou “comunitaristas moderados”, por um lado, e "comunitaristas
liberais”, ou “comunitaristas radicais”, por outro (Sosoe, 1999). O diálogo
com o liberalismo é por vezes de tal modo intenso, que o rótulo de comu-
nitarista nem sempre é aplicável ou aceite, a não ser apenas por falta
de outro melhor, como se verifica, por exemplo, com o próprio Michael
Sandel, conforme este afirma sem deixar margem para equívocos no
prefácio que preparou para a segunda edição do seu livro O liberalismo
e os limites da justiça, sintomaticamente intitulado “Os limites do co-
munitarismo”. (Sandel, 2006: 9-18). E muitos daqueles que costumam
ser identificados com esta escola não aceitariam com facilidade uma tal
caracterização.
Comunitarismo 99

Independentemente da sistematização que se adoptar, o comunita-


rismo é, acima de tudo, uma crítica do liberalismo moderno, da sua visão
do eu, da sociedade, da política e da própria filosofia política. Representa,
antes do mais, um apelo à renovação democrática das sociedades através
de uma redistribuição do poder político por entre a panóplia de entidades
no quadro das quais nos transformamos nas pessoas concretas que somos
e elaboramos os nossos projectos de vida. Em vez de encarar o eu como
um dado detentor à partida apenas de direitos, adopta uma perspectiva his-
tórica, vendo-o como uma construção e procurando situá-lo nas unidades
sociais em que se forja e pelas quais, portanto, é responsável, detendo,
por isso, deveres para com elas.
Para Sandel, o eu liberal, destituído de conteúdo, e, por isso, de per-
sonalidade e de profundidade moral, está longe de traduzir as pessoas que
somos na realidade, ou a vasta gama de obrigações morais e políticas que
comummente reconhecemos de facto, dada a nossa condição social. Nem
é capaz de entender que possamos alguma vez ter a obrigação de agir por
motivações que não elegemos mas decorram da nossa identidade enquanto
membros de uma família, uma pátria, uma nação, uma região, uma cultura,
uma religião, etc. (Sandel, 2005: 27).
Para o paradigma liberal, a única identidade que interessa, a única a
merecer projecção política, é aquela que decorre do contrato social.
É pelo contrato social que as partes, sujeitos até então radicalmente
destituídos de conteúdo, se constituem em comunidade política, isto é,
em Estado soberano. Para além disso, é o Estado, assim criado de forma
voluntária e artificial, que forja a identidade colectiva que imprime a cada
um daqueles que integra. Por esta via, transforma-os em seus cidadãos. E
é do conjunto dos cidadãos que emerge a nação. Acresce que a nação,
organizada politicamente em Estado, se apresenta como entidade sobe-
rana, na exacta medida em que se constitui como fonte da identidade e do
próprio ser dos seus membros, reclamando o privilégio da respectiva leal-
dade absoluta. O Estado-nação exige a lealdade integral dos seus cidadãos
na medida em que é ele que imprime forma ao seu próprio sera.

4 Daí recorrermos ao verbo ser para descrever a nossa relação com a comunidade
política nacional portuguesa. Em vez de nos afirmarmos como sujeitos que detêm carac-
terísticas nacionais portuguesas, dizemos que somos portugueses. Isto é. reportamos o
nosso próprio ser à comunidade nacional portuguesa. Da mesma forma, afirmamos a igual-
dade absoluta entre todos os portugueses. Isto é, defendemos que todos somos iguais
100 Manual de Filosofia Política

Em alternativa, a crítica comunitarista questiona a validade desta


visão liberal, apresentando uma concepção distinta. Aquele em que vive-
mos não é um universo composto apenas por Estados-nação, nem aqueles
que permanecem são todos igualmente soberanos, quer a nível interno,
quer a nível externos. Antes compreende uma vastíssima gama de comu-
nidades que reclamam a nossa lealdade, sem que nenhuma delas se possa
afirmar como sendo autenticamente soberana. Neste contexto, o político,
em vez de algo artificial ou, no limite, super-estrutura alienante, emerge
como sendo ínsito à condição humana, já que é através dele que as pessoas
se constituem naquilo que são. Para além disso, em vez de prerrogativa
exclusiva do Estado, alarga-se à vasta panóplia de comunidades em que
nos situamos e nos transformamos nas pessoas concretas que somos e que
a proposta comunitarista procura valorizar.
À dimensão política estende-se para além e para aquém do Estado,
atingindo, por um lado, uma projecção europeia e internacional, e, por
outro, um carácter regional. Na medida em que perde o monopólio sobre
a vida política, o Estado perde igualmente o carácter unitário de que se
reclamava e que se traduzia no privilégio de produção soberana da justiça
com vista a enformar a vivência comunitária.
Enquanto unidade política soberana, o Estado apresenta-se como o
único produtor de justiça disponível. Tanto assim que, no dizer de Thomas
Hobbes, justo é obedecer ao Estado, e injusto desobedecer-lhe. Daí que a
questão fundamental com que a filosofia política moderna se depara se
prenda com a identificação do que fazer com este imenso poder soberano,
equiparado ao do divino, designadamente por Rousseau e por Hegel. E, no
limite, será possível situar a especulação dentro de um largo espectro
delimitado por duas grandes balizas.
Num extremo, neutralidade. Justa será a sociedade em que o Estado
recorre ao poder soberano que domina para garantir a liberdade dos cida-
dãos, isto é, para assegurar as condições que permitam a cada um investir
livremente os atributos que detém com vista ao desenvolvimento do tipo
de vida que entender. No outro, engenharia social, intervencionismo. A
justiça exige do Estado que não hesite em utilizar o seu poder soberano

precisamente na medida em que o Estado-nação que é Portugal distribuiu uma mesma


identidade política — a sua —, a cada um de nós.
s Para uma crítica da concepção moderna do Estado cf. Sandel, 2005, esp. pp. 33-
-34 e, entre nós, Amaral, 1998, esp. o capítulo I, pp. 29-111.
Comunitarismo 101

para corrigir as desigualdades sociais e, bem assim, para, por um lado,


apresentar um ideal de vida boa, ou, pelo menos, optar por um, e, por
outro, assegurar as condições que permitam a todos os cidadãos viver bem
e. desta forma, aceder às coisas boas da vida. E, entre estes dois extremos,
emerge uma panóplia de possibilidades, entre as quais sobressai a proposta
rawlsiana do “princípio de diferença”.
O comunitarismo poderá ser perspectivado, então, como uma via de
aperfeiçoamento e de correcção, na medida em que procura dar resposta às
deficiências evidentes do liberalismo moderno, corrigindo alguns dos seus
pressupostos de base. De entre eles, sobressai, a recusa liberal de reco-
nhecer quaisquer outros agentes políticos para além dos indivíduos, na
base, portadores de direitos invioláveis. e dos Estados, no topo, dotados
de soberania e, por essa via, responsáveis pela fixação da sociedade justa.
Assim, em vez de se ocupar apenas do Estado e do modo como
deverá utilizar o poder soberano que detém para a determinação da justiça,
Michael Walzer, por exemplo, procede à valorização da panóplia de outras
instâncias igualmente relevantes para a vida social e política em que nos
situamos e imprimimos significado às nossas vidas. Muitas delas, aliás,
não são produto de um qualquer contrato social mais ou menos voluntário.
Não são descartáveis e substituíveis a todo o momento por outras, alterna-
tivas. Antes, são involuntárias, o que quer dizer que não nos podemos
desembaraçar delas, pelo menos com facilidade, ou sem corrermos o risco
de deixarmos de ser as pessoas concretas que somos. O facto de perten-
cermos a elas é relevante para a definição do tipo de pessoas que somos.
Tanto assim que constituem outras tantas esferas em que situamos a con-
vivência social, as redes sociais que sustentam as nossas vidas e, por esta
via. outros tantos universos políticos nos quais desenvolvemos os nossos
projectos (Walzer, 1999).
À crítica comunitarista transporta-nos para longe, portanto, da pro-
posta moderna de separação radical das esferas do público e do privado;
reaproxima-nos da concepção aristotélica no quadro da qual o ser humano
é perspectivado como zoon politikon, ser cívico, para quem o social não é
algo de estranho, criado artificialmente, mas parte integrante do seu pró-
prio ser, já que é nas esferas sociais que integra que acaba por se consti-
tuir. Assim se entende a recuperação da tradição republicana e o duplo
apelo, por um lado de respeito pela identidade e pelos valores promovidos
pelas esferas sociais em que nos constituímos, e, por outro, de participa-
ção na vida colectiva. À política deixa de se ver reduzida ao conflito de
102 Manual de Filosofia Política

interesses e, daí, à luta pelo poder que se desencadeia quando seres pre-
viamente individuados se reúnem para conduzirem melhor as suas vidas,
cada um procurando exercer a sua vontade e servir os seus interesses, com
um mínimo de interferência do exterior.
Não sendo algo de estranho e artificial, muito menos monopólio do
Estado, a actividade política assume, então, um carácter simultaneamente
plural e situado, exigindo, em cada uma das suas esferas comunitárias, a
participação de todos aqueles que dela se reclamam, já que é através dela
que se enformam. Tanto assim que o próprio conceito de liberdade adquire
um significado renovado. Em vez de exprimir a capacidade de um sujeito
exercer a sua vontade, na eleição dos fins por que se deverá nortear e, por
conseguinte, de gratificar os seus desejos a partir do poder que comanda,
assume contornos renovados, apresentando-se como exigência de parti-
cipação.
Segundo a tradição liberal, ser detentor de direitos significa estar
devidamente protegido da vontade arbitrária e da intervenção de outros,
em particular de eventuais maiorias constituídas por via democrática. O
âmbito sobre o qual os direitos incidem encontra-se eficazmente vedado e
reservado em exclusivo aos seus detentores. E é com vista à garantia de
que assim acontece que se procede à constituição do Estado e lhe é atri-
buído o poder soberano que o caracteriza. Tanto assim que o liberalismo
coloca os direitos acima da democracia.
Já o comunitarismo procura reconciliar a liberdade com a democra-
cia, passando a primeira a decorrer da segunda, em vez de exigir imuni-
dade face a ela. Para a tradição liberal, a liberdade exige a concentração do
poder, a soberania política, com vista à garantia dos direitos dos cidadãos.
Para Michael Sandel, liberdade significa autogoverno, decorrendo “das
instituições democráticas e da dispersão do poder” por entre as múltiplas
comunidades em que nos situamos, e não da força e da extensão dos direi-
tos que nos são reconhecidos e, por esta vida, da amplitude, da nossa
esfera privada, tal como protegida pela esfera do poder público (Sandel,
2005:171). Em vez de emergir na ausência de intervenção, a liberdade
exige, pelo contrário, participação no exercício do poder político.
Wilfred McClay critica Sandel, e o comunitarismo em geral, por não
atender como deveria à ideia federal, (McClay, 1998: 103). O reparo é per-
tinente, se bem que os últimos trabalhos de Sandel lhe tenham retirado
validade. E, na verdade, num certo sentido, comunitarismo e regionalismo
partilham horizontes comuns, apontando, por um lado, para a desintegra-
Comunitarismo 103

ção das soberanias e para o ideal de autonomia das comunidades regionais,


supra e infranacionais e, por outro, recuperando as virtudes cívicas e exi-
gindo a participação democrática no forjar comum dos cidadãos. “Desde
os dias da polis aristotélica [escreve Sandel], a tradição republicana tem
vindo a perspectivar o autogoverno como uma actividade enraizada num
lugar específico e que é desenvolvida por cidadãos leais ao lugar e ao
modo de vida que incorpora. Hoje, porém, o autogoverno reclama um uni-
verso político que se desdobra numa multiplicidade de ambientes, da vizi-
nhança à nação e ao mundo como um todo. Um universo político desta
natureza exige cidadãos capazes de lidar com a ambiguidade associada à
divisão da soberania, capazes de reflectir e de agir como sujeitos multi-
plamente situados. A virtude cívica característica do nosso tempo reside
na capacidade de negociarmos o nosso caminho por entre as obrigações
sobrepostas e por vezes em conflito que reclamam que as assumamos, e de
vivermos com as tensões originadas por estas lealdades múltiplas. [...] A
principal tarefa da política nos dias de hoje é o cultivo destes recursos, o
restauro da vida cívica da qual depende a democracia” (Sandel, 2005: 34).

3.

“O tema central da filosofia política [escreve Michael Walzer]


não é a constituição do eu, mas a ligação de eus já constituídos, o padrão
das relações sociais” (Walzer 1990: 22). Porém, os sujeitos que a filosofia
política procura ligar, não se apresentam para o efeito já integralmente
constituídos. Antes, são seres cuja constituição, em boa parte, se processa
após a sua ligação a outros, decorrendo do convívio com eles. E é esta
característica que não permite a separação radical do público e do privado,
isto é, das nossas identidades pública, enquanto cidadãos, e privada,
enquanto solteiros ou casados, professores ou desportistas, católicos ou
agnósticos, açorianos ou lisboetas, etc. Pelo contrário, este dado da condi-
ção humana conduz à reunião solidária da panóplia de identidades que se
interpenetram e determinam mutuamente, acabando por produzir a pessoa
concreta que cada um de nós é.
Na medida em que as relações sociais que estabelecemos são im-
portantes para a determinação do tipo de pessoa que somos, e, correlativa-
mente, O tipo concreto de pessoa que somos é importante para a determi-
nação das opções políticas que adoptamos. o âmbito do político alarga-se,
104 Manual de Filosofia Política

tornando-se ao mesmo tempo mais complexo. Nestes termos, a liberdade


deixa de se situar no isolamento face ao exterior, que permite a cada um
deliberar como entender sobre si próprio e sobre a sua vida, sem inter-
ferências. Invocando John Dewey, Sandel situa-a, antes, na abertura aos
outros com os quais nos constituímos e na partilha com eles, em autogo-
verno. Uma vez que os destinos de uma pessoa se encontram indelevel-
mente associados a uma panóplia de comunidades em que se situa, ela será
livre, não na medida em que deliberar e eleger sem interferências dos
outros — o que seria de todo impossível, aliás, uma vez que se encontra
ligada a eles —, mas na medida em que participar na vida comum que per-
mite a cada um realizar-se e ser a pessoa concreta que é. E é esta partilha
do poder que viabiliza e enobrece a participação democrática efectiva de
cidadãos empenhados em corresponder às exigências de uma vida pública
partilhada (Sandel, 2005: 10, 189).
Aquela que se desenvolve entre comunitarismo e liberalismo não
é, assim, uma relação adversativa radical. Num certo sentido, aliás, e
segundo a perspectiva de Avital Simhony e David Weinstein, “em vez de
se oporem um ao outro, o comunitarismo e o liberalismo apoiam-se mu-
tuamente.” (Simhony/Weinstein, 2001: 1). O debate entre comunitaristas
e liberais que deflagrou, em particular no universo anglo-saxónico, na
segunda metade do último século, atingiu, por vezes, dimensões extrema-
das. Porém, em boa parte, a crítica comunitarista parte da tradição liberal
procurando o seu aperfeiçoamento, e não o seu derrube.
Quando Sandel critica o liberalismo rawlsiano e a primazia que atri-
bui à justiça, por exemplo, não é com o intuito de os derrubar. Ao subli-
nhar o “carácter terapêutico” da justiça, “cuja superioridade moral se situa
na sua capacidade de reparar as condições que se tenham degradado”, não
é para diminuir o seu valor, mas para chamar a atenção para o facto de ela
se tornar necessária perante a degradação das virtudes mais nobres da con-
vivência social, como a amizade e a solidariedade (Sandel, 2006: 59). E,
por isso mesmo, para apelar ao respectivo restauro através do reconheci-
mento da rede de comunidades em que nos constituímos nas pessoas con-
cretas que somos, dos respectivos direitos colectivos, da partilha do poder
por entre elas — da autonomia e da subsidiariedade —-, e da participação
democrática. E o facto é que a tradição liberal tem demonstrado ser capaz
de entender e de dar resposta à crítica comunitarista que lhe é dirigida,
“absorvendo muito do comunitarismo, sem com isso deixar de constituir
um liberalismo autêntico” (Weinstein, 2001: 180). E será também por isso
Comunitarismo 105

que. no dizer de Michael Walzer, (Walzer, 1990: 23) o comunitarismo


se encontrará para todo o sempre condenado a reaparecer, enquanto que o
liberalismo se encontrará igualmente condenado a assumir contornos
novos, em resposta aos desafios que lhe são dirigidos.

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CAPÍTULO V
Republicanismo

ROBERTO MERRILL* e VINCENT BOURDEAU**

Com a publicação, em 1997, de Republicanism, a Theory of Freedom


and Government, o filósofo Philip Pettit deu uma nova visibilidade a uma
corrente filosófica antiga: o republicanismo. Este termo envolve, geral-
mente, dois significados: o primeiro, corrente em teoria política, consiste
em ver no republicanismo a teoria de um regime político oposto à monar-
quia e é exemplarmente este o sentido que o termo tomou desde as revo-
luções americana e francesa do século XVIII (vide por exemplo Wood,
1992; Monnier, 2005). À república é, então, concebida como um sistema
no qual os governos são eleitos pelos cidadãos, podendo o acesso à cida-
dania variar de uma república para outra, ou de uma época para outra. O
poder não se herda, pois, mas recebe-se por mérito, ao contrário do que se
passa numa aristocracia nobiliárquica ou numa monarquia, e deve ser
colocado sob a vigilância permanente dos cidadãos a fim de se evitarem as
despesas militares ou o aumento da dívida pública. Mas o termo “republi-
canismo” não designa apenas um sistema político; ele permite também
descrever o modo das relações que os indivíduos deveriam poder esta-
belecer uns com os outros numa sociedade (Monnier, 2005). Sob este
aspecto, o republicanismo coloca a ênfase sobre a igualdade dos indiví-
duos e sobre a necessária participação destes nos assuntos públicos de

* Pós-doutorando na Universidade do Minho.


** Investigador associado no Laboratoire de Recherches Philosophiques sur les
Logiques de !' Agir. Université de Franche-Comté.
lo Manual de Filosofia Política

modo a garantir a todos os cidadãos o gozo da liberdade sem que tenham


que sofrer a dominação de um outro (dominium) ou do seu governo (impe-
rium) seja em que âmbito fôr.
Este capítulo incidirá sobre esta herança republicana, bem como
sobre as suas diferentes variações contemporâneas (comunitária, liberal e
crítica). Serão abordadas em seguida as principais críticas com que o repu-
blicanismo foi sendo confrontado, nomeadamente as que respeitam às suas
tendências paternalistas e ao carácter abstracto do seu ideal de redução da
dominação. Finalmente, será evocado um problema que se coloca nas
nossas democracias actuais — como pensar novas formas de solidariedade
social num contexto de desqualificação do Estado Providência? —, para
determinar de que modo os argumentos republicanos serão capazes de
lhe responder.

1. DUAS TRADIÇÕES REPUBLICANAS

A história do pensamento político, renovada nos seus métodos e


objectos nos anos 60 do século XX sob a influência daquela que ficou pos-
teriormente conhecida como “Escola de Cambridge”, permitiu identificar
os contornos de duas grandes correntes republicanas: o humanismo cívico,
por um lado, trazido à luz por J. Pocock, e o republicanismo neo-romano,
por outro, estudado por Q. Skinner. Em The Machiavellian Moment, J.
Pocock pôde colocar em evidência o papel desempenhado pelas doutrinas
aristotélicas na definição de um republicanismo associado às teses do
humanismo cívico (Pocock, 1975). Q. Skinner, por seu lado, revelou o
peso de uma tradição ciceroniana, em particular sobre as teorias republi-
canas inglesas dos séculos XVIl e XVII (Skinner, 1998), tentando assim
sugerir os prolongamentos de uma tradição romana, mais do que grega, no
pensamento político constitutivo da nossa modernidade. São então duas
formas de republicanismo que são reveladas pelos trabalhos destes autores
desde os anos 70 do século XX, uma neo-ateniense, outra neo-romanat.
Estas duas formas caracterizam-se por diferentes definições de liber-
dade. Na forma neo-aristotélica, a liberdade identifica-se com uma defini-

1 Sobre a importância desta corrente historiográfica, vide: Vincent (2003). Sobre a


história do republicanismo consultaremos principalmente, para além das obras já citadas:
Fontana (1994), Skinner e van Gelderen (2002) e Viroh (2004).
Republicanismo li

ção substancial da vida boa confundida com a actividade da cidadania. A


liberdade é uma liberdade de exercício político e os fins pessoais de cada
indivíduo confundem-se com os fins da Cidade ou, por defeito, são des-
qualificados na medida em que não correspondem ao critério de hierar-
quização dos fins definido pela forma de vida julgada boa pela comuni-
dade política. Esta opção é, pois, tendencialmente comunitária, já que
pressupõe uma concepção substancial da vida boa, a qual define a “forma
de vida” da comunidade (sobre este tema, cf. o capítulo sobre o comuni-
tarismo, em Kymlica, 1990; cf. também o capítulo “Comunitarismo” neste
mesmo volume). O republicanismo ligado ao humanismo cívico pode
ser então também definido como um republicanismo comunitarista, no
sentido em que sublinha a importância de valores e finalidades culturais
e éticos partilhados pela comunidade2. No modelo neo-romano, em con-
traste, “a autonomia política representa o meio essencial para a criação de
uma sociedade livre na qual cada um, sem estar submetido à vontade arbi-
trária dos outros, pode perseguir o seu próprio bem tal como o concebe”
(Larmore, 2000: 117). À primeira forma pode chamar-se “republicanismo
cívico” e à segunda “republicanismo político” (Honohan, 2002).
O republicanismo cívico parece estar ligado à crítica do desenvol-
vimento dos costumes comerciais nos séculos XVIL e XVIII e é herdeiro
directo de uma concepção aristotélica de cidadania segundo a qual uma
vida humana só pode encontrar realização na actividade política. Reservar
ao comércio a virtude de pacificar as relações entre os indivíduos significa,
segundo os republicanos deste período, cortar os cidadãos dos seus deve-
res cívicos para os encerrar na esfera dos seus interesses privados, esque-
cidos dos seus deveres em relação à Cidade e da busca do interesse geral
que devem levar a cabo em comum. O republicanismo político seria, para
o republicanismo cívico, em parte o resultado da influência do liberalismo
e da ligação cada vez mais forte aos valores individualistas, mas encon-
traria já uma espécie de caução num republicanismo antigo, por vezes des-
crito como “instrumental” (Spitz, 1995), presente em autores como Cícero
ou. mais tarde, Maquiavel (Bock et allii., 1990). Os valores republicanos
não são descritos por estes autores como fins que seriam bons em si mes-

2 Estas finalidades podem, evidentemente, ser políticas. mas neste caso a extensão
3o domínio de aplicação destas finalidades políticas transforma-as em finalidades éticas,
=o sentido em que elas modificam os comportamentos dos indivíduos substituindo-se
zs suas finalidades pessoais.
12 Manual de Filosofia Política

mos, mas antes como meios eficazes para atingir um estado de protecção
em relação à interferência arbitrária de outros (seja de um outro indivíduo,
de uma nação estrangeira ou de uma instituição pública), permitindo ao
indivíduo escolher livremente o tipo de vida que quer levar. A este repu-
blicanismo chama-se político na medida em que não põe em jogo valores
humanistas associados à cidadania ou à actividade cívica.
Nos dois casos — mas com efeitos que facilmente imaginamos opos-
tos sobre a apreensão da liberdade individual — o republicanismo valoriza
a participação política dos indivíduos nas decisões que dizem respeito ao
futuro da comunidade e ao seu futuro pessoal no interior daquela. É esta
valorização que em grande medida ocasionou o sufocamento da doutrina
republicana como doutrina política de primeiro plano no decurso do sé-
culo XIX e ao longo do século XX. Com efeito, fosse sob os golpes da crí-
tica liberal, que considerava que o direito e o mercado eram suficientes
para proteger o indivíduo, ou sob os golpes da crítica marxista, que julgava
que a emancipação política era apenas um véu lançado sobre os mecanis-
mos reais de dominação que era necessário procurar na esfera da produção
ou nas actividades económicas em geral, o republicanismo sofreu um
longo eclipse, do qual só recentemente emergiu (sobre este assunto, vide
Spitz, 1995: Cap.1: Pettit, 2004 (1997: Cap. 1).

2. AS VARIANTES CONTEMPORÂNEAS DO REPUBLICANISMO

O primeiro factor de renovação do republicanismo tem sem dúvida a


ver com o mal-estar gerado pela ausência de identificação entre os indiví-
duos que são membros de uma sociedade e o governo desta última ou, dito
de forma mais breve, entre o cidadão e a esfera política. O liberalismo, que
promove uma separação estanque entre a esfera da sociedade civil e a
esfera do Estado, parece incapaz de fazer nascer o sentimento de pertença
à comunidade política necessário para a sobrevivência política desta. Em
consequência, os regimes liberais abrem brechas por onde poderá insinuar-
-se qualquer tribuno com algum carisma e com a ambição de se apoderar
do poder. O outro factor — em muitos aspectos associado ao primeiro — diz
respeito à impotência da economia de mercado em favorecer o exercício
da liberdade para todos. Em muitos casos, as relações de mercado são
incapazes de satisfazer certas necessidades e não conseguem assegurar
uma vida decente a todos os membros da sociedade. Longe de ser tão
Republicanismo 113

inclusivo como o liberalismo esperaria, o mercado engendra formas de


exclusão tanto mais gritantes quanto um Estado Providência exausto já
nem consegue atenuá-las. O republicanismo, porque valoriza a autonomia
dos indivíduos, porque não é uma teoria dirigida contra a propriedade
privada, e porque pensa apesar de tudo no laço social e no papel das insti-
tuições públicas, pôde aparecer com uma nova actualidade num contexto
de perda de confiança em relação às duas grandes orientações políticas
que são o liberalismo e o socialismo (Pettit, 2007: 6).
Esta renovação do republicanismo tomou três formas: uma forma
comunitarista, uma forma liberal e, mais recentemente enfim, uma forma
crítica que procura evitar os escolhos encontrados em cada uma das duas
primeiras variantes mencionadas. Ilustraremos estas três variantes através
dos seus “porta-vozes” principais: Hannah Arendt para a primeira, Philip
Pettit para a segunda, e John Maynor e Cécile Laborde para a última.

2.1. Uma variante comunitarista: Hannah Arendt e o republica-


nismo neo-ateniense

À tese principal de Hannah Arendt consiste em afirmar que “a tradi-


ção filosófica (...) falseou, em vez de clarificar, a própria ideia de liber-
dade tal como ela é dada na experiência humana, transpondo-a do seu
ambito original, o domínio da política e dos assuntos humanos em geral,
para um domínio interior, o da vontade, onde ela estaria aberta à intros-
pecção” (Arendt, 1992: 189). Contra as ilusões alimentadas ao longo de
dois séculos quanto à questão da liberdade individual, H. Arendt sugere
uma nova ligação com a tradição aristotélica. Trata-se de uma certa ma-
neira de salvar a liberdade reencontrando as formas tradicionais da polí-
tica. À tese de Arendt inspira-se em Aristóteles no sentido em que o seu
republicanismo acentua a identidade entre vida cívica e liberdade. O desa-
fio do pensamento político consiste então, segundo ela, em explorar a liga-
ção, perdida na história da modernidade, entre liberdade e actividade polí-
tica: “[é] precisamente esta coincidência da política e da liberdade que
deixou de ser evidente à luz da experiência política que é hoje a nossa”,
escreve H. Arendt, a ponto de “[tJendermos a acreditar que a liberdade
começa onde a política acaba” (Arendt, 1992: 193). A experiência do tota-
litarismo no século XX serviu, evidentemente, de conforto para a tese
liberal segundo a qual a liberdade se concebe essencialmente como uma
114 Manual de Filosofia Política

liberdade pessoal de que o indivíduo goza subtraído ao olhar das institui-


ções políticas e das leis. Rejeitando firmemente o totalitarismo, H. Arendt
convida a não descartar como ultrapassada a ideia segundo a qual a vida
política de uma comunidade é o fermento de uma liberdade que o libera-
lismo encerrou demasiado depressa na esfera privada dos indivíduos. O
“credo liberal” de acordo com o qual quanto mais o espaço político for
limitado tanto maior será a liberdade dos indivíduos, é precisamente o que
H. Arendt quer contestar (1992: 194 e seguintes).
Aquilo que constitui a textura cívica do republicanismo de H. Arendt
tem, desde logo, a ver com o facto de que a liberdade do homem não
apenas é aumentada pela participação na vida da cidade, mas que ela se
encontra toda contida nessa actividade: se o homem tem por ambição
experimentar a sua liberdade nas suas acções, só pode fazê-lo através da
acção política, a tal ponto que “ser homem e ser livre são uma e a mesma
coisa” (Arendt, 1992: 217). A virtude política encarna esta possibilidade
dada ao homem de agir livremente, de ser realmente aquilo que é, entre-
gando-se completamente ao bem comum. Esta actividade política não é
concebida como a partilha de um mundo comum com vista a realizar fins
particulares, ela é, pelo contrário, uma actividade comum tornada possível
por uma cultura comum e por uma homogeneidade social, e é porque os
fins são partilhados por todos os cidadãos que uma actividade política
é possível: esta convicção de H. Arendt faz do seu republicanismo uma
teoria política comunitarista.
Na secção que se segue, evocaremos uma outra via republicana
explorada por Ph. Pettit. Este filósofo irlandês, que ensinou durante muito
tempo na Austrália antes de ocupar uma posição de Professor em Prince-
ton, defende um republicanismo político que, sem confundir os diferentes
níveis de deliberação e multiplicando os modos de intervenção dos cida-
dãos no debate público, escolhe articular mais estreitamente do que sugere
o liberalismo a sociedade civil e o Estado, sem por isso recorrer ao que
poderíamos chamar um perfeccionismo cívico presente no republicanismo
que designámos como “comunitarista”: uma vida é uma vida perfeita ou
que visa a perfeição se se submete a normas de acção consideradas como
as melhores por uma dada comunidade, sendo essas normas, para os repu-
blicanos cívicos, de natureza política. Se recusarmos esta convicção, será
possível conceber um republicanismo político sem que este se resuma
afinal às exigências de um liberalismo político?
Republicanismo 115

2.2. Uma variante liberal: o republicanismo político de Philip


Pettit

De acordo com o republicanismo político defendido por Ph. Pettit,


o primeiro de todos os valores é a liberdade como não dominação, e
não a participação política: “A participação democrática”, escreve, “é tal-
vez essencial à república, mas só o é na medida em que é necessária para
a promoção da liberdade como não dominação, e não em virtude de um
valor intrínseco, não, dito de outro modo, porque a liberdade, tal como é
sugerido por uma concepção positiva, não seria nem mais nem menos
do que o direito à participação democrática (Pettit, 2004 (1997):26). Esta
liberdade — muito arendtiana — contradiz uma concepção mais liberal
do indivíduo e dos fins que este dá a si mesmo. Pettit promove um neo-
-republicanismo no qual as próprias instituições republicanas são consti-
tutivas da liberdade dos indivíduos, mas às quais este último não está
reduzido. O poder de intervenção destas instituições, em nome do ideal da
não dominação, estende-se às actividades privadas do indivíduo na medida
em que estas sejam susceptíveis de serem minadas pela dominação.
Numa abordagem como esta, a definição de liberdade não nos diz
como deve ser o comportamento de um homem ou mulher livres, mas
antes quais são os bens (políticos) que eles devem possuir para poderem
ser considerados livres; e, mais precisamente, qual é o estatuto social que
devem ter para que a sua existência não seja controlada por outros (indi-
víduo ou instituição). Quais que sejam os efeitos de uma tal liberdade nas
mãos de um indivíduo mantém-se uma questão em aberto. No republica-
nismo político, a liberdade tem apenas um valor negativo: a definição
mantém-se aberta quanto àquilo que a liberdade possa ser substancial-
mente, ela descreve o estado de alguém que não é dominado, mas não o
estado de alguém que é isto ou aquilo. A liberdade, no singular, não define
um modo de vida mas antes a maneira como podemos garantir a cada um
que poderá escolher o seu modo de vida, com a segurança de que não será
submetido nas suas escolhas a uma dominação por parte de outros; e neste
sentido este republicanismo é liberal.
Enquanto que o republicanismo cívico define a liberdade política
como um fim ao qual todo o homem deve aderir se quer ser realmente um
homem, o republicanismo político de Pettit define a liberdade como um
meio cujo gozo garante ao indivíduo que as suas escolhas futuras serão
feitas num contexto de não dominação. Mas a definição de liberdade não
116 Manual de Filosofia Política

implica o que significa ser um homem ou uma mulher, e é provável que


nem toda a gente preencha da mesma maneira o espaço correspondente
às reticências que a liberdade negativa deixa vazio na expressão “ser um
homem ou uma mulher livres é...”.
Esta liberdade como não dominação é, ainda assim, apesar de “nega-
tiva”, de tipo republicano e não liberal. A liberdade republicana coloca
ênfase sobre o facto de não sermos dominados, enquanto que a liberdade
“liberal” acentua o facto de não sermos incomodados nas nossas acções ou
impedidos fisicamente de agir. Philip Pettit propõe, pois, uma variação — e
uma complexificação — da tipologia da liberdade proposta por B. Constant
no início do século XIX e retomada pelo filósofo I. Berlin nos anos 50 do
século XX3. Pettit propõe levar a cabo uma distinção no âmbito da liber-
dade negativa entre a “liberdade como não interferência” e a “liberdade
como não dominação”, entre a liberdade liberal, por um lado, e a liberdade
republicana, por outro.
Pettit usa frequentemente o exemplo do bom senhor e do escravo
para ilustrar aquilo que separa estas duas formas de liberdade. De acordo
com Pettit, a definição tradicional de liberdade negativa não permite des-
crever um escravo submetido ao poder de um bom senhor como estando
privado de liberdade se “ser um bom senhor” significar “não interferir nas
acções do escravo”. O bom senhor poderia mesmo ter uma atitude bene-
volente em relação ao escravo, cobri-lo de riquezas e alargar o seu campo
de acções possíveis, de tal modo que poderíamos ver nele um vector da
liberdade do escravo compreendida como não interferência. Para Ph. Pet-
tit, o facto de não haver, nas relações entre o senhor e o escravo, interfe-
rências reais, não retira nada à sua relação social que faz com que um indi-
víduo tenha um estatuto de escravo e que um outro goze de um estatuto de
senhor. A relação de dominação, ainda que não seja constantemente actua-
lizada (e ainda que nunca o fosse) em mau tratamento ou em interferências
reais, é sempre susceptível de sê-lo: está inscrito na relação senhor/escravo
que o senhor pode — o seu estatuto social a isso o autoriza — mudar de com-
portamento e revelar-se um mau senhor. O escravo não goza de um esta-
tuto social que o autorize a olhar o senhor nos olhos, o que é o teste mais

3 Vide: Berlin (1969 ), Constant (1997 (1819)). A literatura acerca da história biná-
ria liberdade positiva/liberdade negativa da modernidade política e seus impasses, é rica;
vide para uma primeira aproximação: Spitz (1995). Skinner (1998), Pettit (2004 (1997);
capítulo 1).
Republicanismo 117

simples da liberdade como não dominação, que “reenvia à posição de


que goza um indivíduo quando está em presença de outras pessoas que, em
virtude de um determinado dispositivo social, se abstêm de exercer sobre
os outros um poder de dominação” (Pettit, 2004 (1997): 95, sublinhado
nosso), e não apenas em virtude da sua boa vontade.
A liberdade republicana consiste em considerar sob um outro ângulo
a natureza das interferências: entre as interferências, algumas podem ser
vistas, com efeito, como não arbitrárias, o que não é possível no quadro de
uma liberdade compreendida como não dominação. Uma interferência que
não é acompanhada de dominação pode ser qualificada como “interfe-
rência não arbitrária” (Ibid.: 10). As interferências desta natureza — muitas
vezes materializadas nas instituições — não devem ser automaticamente
vistas de modo negativo, na medida em que, como diz Ph. Pettit, não nos
podemos “subtrair à dominação sem a ajuda de instituições de protecção
que garantam” a não dominação (Jbid.: 102). Dito de outro modo, e como
já tinham observado os republicanos neo-romanos descritos por Q. Skin-
ner. a liberdade republicana está classicamente associada ao ideal de
=civitas libera ou Estado livre” (Skinner, 1998). As instituições não arbi-
trárias que Ph. Pettit descreve são, pois, sinónimas de “liberdade comum”
ou de “Estado livre”. A liberdade republicana é tanto de natureza social
como individual.
A definição de liberdade como não dominação não pode, pois, ser
separada de uma teoria do poder político e da sua distribuição na socie-
dade; em suma, não pode ser separada de uma teoria do governo republi-
cano, aloja-se não nos silêncios da lei e dos poderes, mas no controle e
contestação destes últimos. A participação política, nesta variante do repu-
blicanismo, toma assim a forma das possibilidades dadas aos cidadãos
para contestar uma decisão ou fazer intervir as suas vozes num processo
de decisão que lhes diz respeito.

2.3. Republicanismo crítico

Um terceiro tipo de teoria republicana, por vezes chamada “republi-


canismo crítico” (Laborde, 2008), pretende representar uma terceira via
que possa ser, diferentemente do republicanismo defendido por Pettit, cla-
ramente distinta do liberalismo sem por isso cair na versão comunitarista
do republicanismo cívico. Esta variante do republicanismo é exemplar-
18 Manual de Filosofia Política

mente defendida por John Maynor (2003) e também por Cécile Laborde
(2008).
Segundo Maynor, uma forma de demarcação clara em relação ao
republicanismo de tipo liberal como o de Pettit, consiste em aprofundar a
ideia de acordo com a qual os valores e virtudes republicanos devem ser
considerados não apenas instrumentais mas constitutivos ou intrínsecos
à liberdade republicana (2003: 57). O autor aprofunda esta ideia de uma
virtude simultaneamente instrumental e intrínseca através do desenvolvi-
mento da ideia de reciprocidade. A reciprocidade, segundo Maynor, mani-
festa-se através de certos valores e ideais, como a cidadania e a virtude
cívica, e é sustentada pelo poder constitucional. A tese defendida é, então,
a seguinte: sem certos bens substanciais que, por assim dizer, acompa-
nham a reciprocidade e permitem informar e perseguir um bem comum, os
ideais e instituições do Estado não poderão sustentar a liberdade como não
dominação (Jbid.: 64). Independentemente da avaliação da plausibilidade
desta tese, o que é importante nela é que o exercício deste poder de reci-
procidade implica um perfeccionismo menos robusto do que o domínio de
si favorecido pelas formas de humanismo cívico ou de comunitarismo, o
que torna este poder de reciprocidade compatível com um pluralismo das
concepções do bem (Jbid.: 58). Maynor reconhece, no entanto, que mesmo
admitindo que seja possível justificar que a concepção das virtudes repu-
blicanas é distinta da que é defendida pelas virtudes liberais, fica por mos-
trar em que é que esta alternativa republicana é mais atraente do que o
liberalismo. A sua estratégia consiste, então, em rejeitar o ideal da neutra-
lidade política, considerando que uma defesa das virtudes cívicas republi-
canas, mesmo que parcialmente instrumentais, implica a rejeição do ideal
da neutralidade. O seu argumento contra a neutralidade liberal repousa
sobre dois pontos: por um lado, opõe-se à ideia de que o Estado não deva
apelar ao valor intrínseco de certas versões do bem nos seus ideais e insti-
tuições, e por outro, opõe-se à ideia de que o Estado não deva promover
qualquer virtude perfeccionista (Ibid.: 64). Neste sentido, o republica-
nismo favorece, tal como o liberalismo, um contexto para a liberdade de
escolha. Mas, segundo Maynor, não é neutro porque se opõe à existência
de bens que sejam bens de dominação. A ideia é que todas as concepções
de bem compatíveis com o ideal da não dominação podem ser perseguidas
tanto quanto as escolhas de cada um sejam compatíveis com a liberdade
como não dominação dos outros. Maynor considera que é mais correcto
falar de “quasi-perfeccionismo” para caracterizar a sua teoria (Ibid.: 80).
Republicanismo 119

Este quasi-perfeccionismo distingue-se do perfeccionismo tout court por-


que o objectivo do Estado quasi-perfeccionista é contribuir para tornar
possível uma pluralidade de fins compatíveis com a não dominação, e não
realizar uma concepção do bem em detrimento de outras. Esta perseguição
de fins compatíveis com a não dominação não é um simples meio para
agir de acordo com a justiça social, é também um fim em si mesmo que,
segundo Maynor, permite enriquecer a vida dos indivíduos, porque os
benefícios de ser não dominado aumentam as opções de vida de cada um.
A diferença entre liberalismo e republicanismo não reside, então, na ques-
tão de saber se o Estado deve ter um papel regulador, já que em ambas as
teorias o Estado tem esse papel. O que separa as duas teorias tem a ver
com as razões que justificam este papel e o seu campo de aplicação (Ibid.:
82). O Estado liberal regula o mercado cultural de duas maneiras: 1) pela
confiança no perfeccionismo social 2) mantendo-se neutro e assegurando-
-se da autonomia dos indivíduos. O Estado republicano, por seu lado,
intervém promovendo os valores que constituem o ideal da reciprocidade
e regulando as escolhas de vida através do poder constitucional. No cora-
ção deste perfeccionismo reside o ideal da não dominação segundo o qual
certas interferências não são arbitrárias uma vez que visam defender os
interesses dos indivíduos. Ora, segundo Maynor, o Estado republicano está
dotado de mecanismos para conseguir evitar a interferência arbitrária que
são interditos ao liberalismo neutralista (Ibid.: 77), mecanismos que o
republicanismo baseado numa concepção das virtudes políticas como
intrínsecas permite apreender mais claramente.

3. AS CRÍTICAS DIRIGIDAS AO REPUBLICANISMO

3.1. Perfeccionismo republicano: paternalista?

Uma diferença teórica importante entre as teorias liberais e as


teorias republicanas reside no lugar que elas atribuem ao paternalismo
político: dito de modo sucinto, as teorias liberais, mesmo as mais per-
feccionistas, são normalmente mais reticentes do que as republicanas em
considerar legítimo um paternalismo de Estado. De acordo com o perfec-
cionismo político, uma das finalidades legítimas do Estado é a de promo-
120 Manual de Filosofia Política

ver certos modos de vida ética e a de desencorajar outros. De acordo


com alguns perfeccionistas por vezes chamados “radicais”, o Estado pode
legitimamente restringir a liberdade dos indivíduos para impedi-los de
levar vidas consideradas degradantes e forçá-los a levar vidas melhores.
É consensual considerar que os perfeccionistas radicais são paternalistas,
porque normalmente o paternalismo é definido como tendo por finalidade
o bem de outra pessoa limitando a sua liberdade. Outros perfeccionistas
tentam com sucesso desigual dissociar perfeccionismo e paternalismo.
É o caso dos perfeccionistas por vezes chamados “moderados” » para os
quais o Estado não deve usar métodos coercivos para promover ou desen-
corajar certos modos de vida. Os perfeccionistas moderados parecem,
assim, estar a salvo da objecção paternalista, se partilharmos da definição
de paternalismo como limitação da liberdade de um indivíduo para o seu
próprio bem.
Mas se, pelo contrário, considerarmos que a definição de pater-
nalismo não implica necessariamente a limitação da liberdade, como por
exemplo na definição proposta por Sunstein e Thaler (2003), então até os
perfeccionistas moderados são paternalistas. Admitindo que o paterna-
lismo não implica limitação da liberdade, teríamos uma escolha entre
considerar o perfeccionismo político (sempre então necessariamente
paternalista) como inaceitável, ou aceitar que o paternalismo político
pode ser legítimo, por exemplo, desde que não implique um limite coer-
civo da liberdade dos indivíduos. Dito de outro modo, se admitirmos que
uma definição correcta do paternalismo não implica necessariamente
um ataque à liberdade, então, nesse caso, certas políticas perfeccionistas
podem ser consideradas como paternalistas sem serem inaceitáveis, ou
pelo menos sem serem tão inaceitáveis como as políticas paternalistas
coercivas.
Ainda que as teorias republicanas estejam mais expostas à objecção
do paternalismo do que outras, se, por um lado, tivermos o cuidado de dis-
tinguir bem as três variantes republicanas em competição e, por outro,
tivermos presente que certas políticas paternalistas não são necessaria-
mente coercivas, então tornar-se-á mais fácil compreender em que sentido
uma teoria republicana paternalista não é necessariamente ilegítima.
É o caso das variantes liberal e crítica do republicanismo, que permitem
justificar políticas estatais com carácter paternalista sem no entanto
serem coercivas. Se, então, um paternalismo político pode ser considerado
legítimo, seria apenas na condição de que fosse um “paternalismo
Republicanismo 121

brando”, por exemplo, através da promoção da autonomia dos cidadãos


por métodos não coercivos, o que permite evitar o paternalismo duro na
sua variante republicana comunitarista, ao mesmo tempo que não se
abandona os indivíduos a eles mesmos quando confrontados com a domi-
nação social e isto de um modo provavelmente mais eficaz do que o libe-
ralismo, porque mais vigilante no que respeita às formas de dominação
menos visíveis.

3.2. Liberdade como não dominação: indeterminada?

Uma outra crítica dirigida à teoria republicana foi formulada por


Christopher McMahon (2005) e diz respeito à definição de liberdade como
não dominação. Esta crítica considera que o republicanismo é incapaz de
orientar as decisões de um governo: promover a liberdade como não domi-
nação numa sociedade é um objectivo mal definido, demasiado amplo
e. em resumo, “indeterminado”. A crítica de McMahon dirige-se contra o
projecto de Pettit que, pelo contrário, vê no projecto republicano uma dou-
trina suficientemente sólida para determinar se é justo levar a cabo uma
dada política num dado momento graças ao critério fornecido pela promo-
ção da liberdade como não dominação. Este objectivo é simultaneamente
suficientemente preciso para orientar as decisões e suficientemente geral
para permitir aderir a um amplo espectro de causas, o que permite evitar o
escolho das políticas perfeccionistas e/ou paternalistas.
O argumento de McMahon, que se apoia numa leitura cerrada dos
textos de Pettit, incide sobre a dificuldade em determinar, numa sociedade
pluralista, o que é ou não arbitrário. Segundo McMahon, o carácter arbi-
trário de uma interferência decorre de uma interpretação normativa: o
facto de poder proteger os indivíduos deste tipo de interferências, fim
visado pelo republicanismo, põe em jogo “um poder normativo, o poder
de fazer de tal modo que aconteça apenas aquilo que deve acontecer”
(McMahon 2005: 70). Ora é perfeitamente possível imaginar que um desa-
cordo razoável possa manifestar-se em relação ao “que deve acontecer”.

4 Para um exemplo aplicado de “paternalismo brando” republicano. cf. as análises


de Laborde (2005: 2006) quanto à interdição dos símbolos religiosos ostensivos nos esta-
belecimentos públicos de ensino em França.
122 Manual de Filosofia Política

Nesta perspectiva, as intervenções do Estado poderão ser consideradas,


aos olhos de certos cidadãos, como necessárias para impedir as interferên-
cias arbitrárias que alguns indivíduos fazem sofrer a outros, enquanto que
outros cidadãos julgarão essas intervenções arbitrárias.
Uma primeira resposta consiste em dizer que estas intervenções
visam 0 bem comum ou os interesses comuns geralmente reconhecidos
como tais. Mas o problema parece ser eliminado mais do que resolvido
com uma tal resposta, na medida em que é ainda necessário designar
este bem comum. É preciso, então, imaginar um procedimento que possa
permitir determinar e revelar o bem comum, em definitivo, o que é e o
que não é arbitrário, o que é e o que não é dominação. É neste ponto que
o republicanismo parece ser uma teoria indeterminada: aquilo que deve
servir para “guiar” as políticas e decisões públicas (o conceito de não
dominação) torna-se precisamente aquilo que deve resultar das políticas e
decisões públicas. A não dominação deixa de ser um critério e passa a ser
um resultado, e uma política republicana deixa de estar garantida nestas
condições.
À resposta de Pettit (2006) a esta crítica é dada em três pontos:

19 Uma interferência não arbitrária é uma interferência no decurso


da qual aquele que interfere é levado a ter em conta os interesses
daqueles em cuja existência interfere, interesses que não são
“comuns” mas bem definidos como sendo interesses particulares
daqueles que são sujeitos à interferência, logo não há aqui lugar
a apelo a um “interesse comum” para determinar o que é uma
interferência arbitrária.
2º) Mais ainda, a acção do governo, para Pettit, não pode “legiti-
mar” uma interferência pelo simples facto de que esta é validada
por um procedimento formal que o governo respeita escrupulo-
samente, antes é porque o governo é ele próprio legítimo, ou
seja, controlado por aqueles que são tributários do seu poder, que
ele pode interferir de maneira não arbitrária.
3º) Finalmente, é necessário distinguir dois tipos de interferência:
as interferências dos indivíduos privados e as do Estado não são
da mesma natureza, contrariamente ao que sugere McMahon.
O Estado está obrigado a perseguir interesses comuns, os dos
cidadãos enquanto cidadãos, a saber, o facto de ter permitido
aos cidadãos serem os agentes — em algum grau — da decisão que
Republicanismo 123

se lhes aplica. No caso da interferência de um indivíduo, a título


privado, na esfera privada de outro indivíduo, já não se trata de
pôr em cena a mesma capacidade de cidadania do “interferido”
para “dominar” a interferência: a interferência, para ser não arbi-
trária, deve ter em conta os interesses particulares do indivíduo
“interferido”.

Em resumo, McMahon não mede a que ponto o republicanismo


de Pettit pode ser acolhedor em relação aos interesses particulares
dos indivíduos, e a que ponto o seu republicanismo liberal se preocupa
em protegê-los.
Sejam ou não justas estas críticas, uma outra maneira de pôr à prova
o republicanismo consiste em medir a sua capacidade de se articular com
soluções concretas, e é o que faremos na última parte deste capítulo, onde
expomos o contributo do republicanismo para o debate sobre o rendimento
de cidadania.

4. UM EXEMPLO DE REPUBLICANISMO APLICADO: O RENDI-


MENTO DE CIDADANIA

Podemos atribuir o eclipse do republicanismo à sua falta de interesse


pelas questões económicas, em particular à sua indiferença face à sorte
dos mais carenciados ou “excluídos” (sobre o carácter inclusivo do neo-
-republicanismo, vide Pettit, 2004). No plano económico e social, o repu-
blicanismo seria uma doutrina ultrapassada, na medida em que herdaria
um ideal arcaico, o do cidadão desafogado, proprietário, gozando do lazer
necessário para se ocupar dos assuntos públicos e defender a sua Cidade
quando solicitado. Esta visão do republicanismo, largamente construída e
difundida pelos seus detractores, é em parte falsa: desde logo porque, his-
toricamente, cedo o republicanismo (desde o século XVIII) manifestou
uma consciência aguda das dificuldades que as desigualdades econó-
micas ocasionariam numa república (é o caso de Rousseau em O Contrato
Social); em seguida, porque há numerosos pensadores que se debruçaram
sobre a questão da compatibilidade entre o republicanismo e a nova reali-
dade das economias de mercado (para os desenvolvimentos contemporá-
neos da economia política republicana, vide: Politics, Philosophy & Eco-
nomics 2006, Vol. 5 (N.º 2)). Assim, a doutrina republicana não deixou de
124 Manual de Filosofia Política

propor mecanismos económicos concretos de luta contra essas desigual-


dades, ainda que essas soluções possam ter sido negligenciadas historica-
mente (vide Stedman Jones, 2004): Thomas Paine, republicano inglês
apoiante de todas as revoluções do final do século XVIII, na América e em
França, imaginou um sistema de distribuição igualitária de um “capital” de
partida; Condorcet, por seu lado, contava com os progressos do cálculo
das probabilidades (e, mais geralmente, da matemática social) para insti-
tuir políticas fiscais e sociais igualitárias. Nos nossos dias, estas aborda-
gens em termos de economia política republicana concentram-se sobre a
possibilidade de um rendimento de cidadania aberto a todos, que permita
a cada um gozar uma liberdade real e subtrair-se às formas de dominação
decorrentes das relações de mercado.
Esta abordagem considera que a propriedade privada não deve ser
condenada mas, pelo contrário, que ela deve ser objecto de uma melhor
repartição na sociedade, na medida em que o título de propriedade reforça
o controlo que os indivíduos podem ter sobre a sua capacidade de se
governarem a si mesmos (Sunstein, 1997). Acontece que o acesso à pro-
priedade privada não passa de boas intenções se os indivíduos entram no
mercado completamente desprovidos de capital. Se queremos privilegiar a
responsabilidade dos indivíduos e aumentar a sua autonomia, é necessário
poder simultaneamente abrir o campo das possibilidades económicas (por
exemplo, não trabalhar apenas por necessidade) e permitir aos indivíduos
ter um peso nas trocas que fazem com os outros nos diferentes mercados
(mercado de bens, certamente, mas também mercado de trabalho). O ren-
dimento de cidadania é a garantia de uma certa autonomia em relação
às relações de mercado ou, pelo menos, de uma capacidade de resistência
face aos termos desvantajosos que algumas pessoas com quem somos
levados a fazer contratos poderiam querer impor; é uma resposta a uma
exigência de “reciprocidade honesta” entre os cidadãos (White, 2003) e a
melhor via de acesso à apropriação justa dos bens.
Várias opções foram delineadas para defender esta concepção da
economia e da cidadania, todas elas reclamando-se do ideal da autonomia
individual que, segundo os autores, só pode exprimir-se através de uma
forma de igualação material do ponto de partida: quer se trate da sociedade
de accionistas (stakeholder society) descrita por B. Ackerman e A. Alstot
(1999), que prevê uma dotação inicial de 80.000$ para cada cidadão, ou
do “mínimo cívico” proposto por S. White (2003), ou de um rendimento
básico (basic income, vide também o site: www.basicincome.org) à
Republicanismo 125

maneira de Ph. Van Parijs (1995), todas estas fórmulas são as dignas her-
deiras dos mecanismos imaginados pelos republicanos de finais do século
XVIII. convencidos da utilidade da redução dos fossos de riqueza para
cnar uma sociedade de iguais e permitir aos indivíduos ter os meios neces-
sários para as suas livres iniciativas. Nesta perspectiva, os argumentos
republicanos que se apoiam sobre a definição da liberdade como não
dominação são sem dúvida os mais adequados para justificar uma tal
reformulação da solidariedade social nas nossas sociedades democráticas,
onde se misturam autonomia individual e garantias sociais dessa auto-
nomia.

Tradução do francês de Alexandra Abranches.

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CAPÍTULO VI
Democracia deliberativa

AcíLIO DA SILVA ESTANQUEIRO ROCHA*

Se o século XX será recordado por uma panóplia de ocorrências trá-


gicas para a Humanidade — guerras mundiais, genocídios étnicos, terro-
rismo, em que a acção humana atingiu níveis de niilismo inimagináveis —,
a verdade é que rasgou também perspectivas propulsoras sobre a aptidão
dos povos para viver a democracia; se no século XIX, e inícios do século
passado, era corrente, mesmo entre os politólogos, a interrogação sobre a
preparação de um povo para a democracia, a viragem no século XX
inscreve-se num novo plano: “Um país não está maduro para a democra-
cia, mas torna-se maduro precisamente através da democracia"(A. Sen,
apud Velasco: 36).
A democracia teve, nas últimas décadas, uma dupla sedução. Por um
lado, o fracasso do comunismo tornou o modelo democrático vitorioso e
apetecível; no entanto, concomitantemente com este fenómeno, surgiram
interrogações sérias, a vários níveis, acerca do seu funcionamento; isto é,
ao mesmo tempo que a democracia detém a legitimidade como o melhor
regime possível, apresentando-se como compromisso com os mais eleva-
dos valores democráticos, aumenta a desconfiança da actuação das insti-
tuições e da classe política, e com ela, a apatia, senão mesmo o desdém,
para com uma certa oligarquia dos partidos políticos. A crescente despoli-
tização das sociedades ocidentais coexiste com o afã de um novo modo de
entendimento da política, quer no desejo de participação e de uma cidada-

* Universidade do Minho.
130 Manual de Filosofia Política

nia mais activa, quer na vontade de um outro modo de fazer política.


No fundo, a democracia liberal e representativa, baseada no sistema de
mercado, manifesta-se imperfeita e carece de completude. Uma teoria da
democracia não pode deter-se no nível normativo, devendo também
avançar propostas sobre o modo de inscrever uma participação na praxis
democrática.
É neste contexto que surge o ideal de uma “democracia discursiva”
(deliberativa): nesta, são o diálogo, o debate e a argumentação, os vecto-
res nucleares de um processo que almeja o escopo de uma cidadania par-
ticipativa e a melhoria da qualidade das decisões colectivas. Note-se que a
ideia de deliberação não é inteiramente nova e remonta longe no tempo;
na verdade, já na Atenas de Péricles! e muito mais tarde, no surgimento da
democracia moderna2, o debate e a reflexão que precediam as actuações
políticas ocupavam um lugar central.

t Péricles, na oração fúnebre em homenagem aos primeiros mortos da guerra de


Peloponeso, e em que elogiava o regime democrático de governo, expressava-se assim:
“Vivemos sob uma forma de governo que não se baseia nas instituições de nossos vizi-
nhos; ao contrário, servimos de modelo a alguns ao invés de imitar outros. O seu nome,
como tudo depende não de poucos mas da maioria, é democracia. Nela, enquanto no
tocante às leis todos são iguais para a solução das suas divergências privadas, (...) não é
o facto de pertencer a uma classe, mas o mérito que dá acesso aos postos mais honrosos;
inversamente, a pobreza não é razão para que alguém, sendo capaz de prestar serviços à
cidade, seja impedido de o fazer pela obscuridade da sua condição (...). Somos amantes
da beleza sem extravagâncias e amantes da filosofia sem indolência. Usamos a riqueza
mais como uma oportunidade para agir que como um motivo de vanglória; entre nós não
há vergonha na pobreza, mas a maior vergonha é não fazer o possível para a evitar. Ver-
-Se-á numa mesma pessoa ao mesmo tempo o interesse em actividades privadas e públi-
cas. e em outros entre nós que dão atenção principalmente aos negócios não se verá falta
de discernimento em assuntos públicos, pois olhamos o homem alheio às actividades
públicas não como alguém que cuida apenas dos seus próprios interesses, mas como um
inútil; nós, cidadãos atenienses, decidimos as questões públicas por nós mesmos, ou pelo
menos esforçamo-nos por compreendê-las claramente, na crença de que não é o debate
que é empecilho à acção, e sim o facto de não se estar esclarecido pelo debate antes de
chegar a hora da acção. Temos também em alto grau esta peculiaridade: somos ousados
para agir, mas ao mesmo tempo gostamos de reflectir sobre os riscos que pretendemos cor-
rer; para outros, ao contrário, ousadia significa ignorância e reflexão traz hesitação” (Tuci-
dides, Livro II, caps. 37, 40, pp. 98, 99; o itálico é nosso).
2 Segundo John Locke, é partindo das relações sociais naturais que os homens
têm a capacidade de erigir, mediante o contrato, as posteriores estruturas sociais: “A única
maneira pela qual uma pessoa qualquer renuncia à sua liberdade natural e se reveste
Democracia deliberativa 131

1. A VIRAGEM PARADIGMÁTICA

1.1. Para uma racionalidade do “agir comunicacional”

Actualmente, o modelo deliberativo surge a partir da crítica dos


modelos tradicionais de democracia, baseados especialmente na agregação
de preferências e na negociação entre diferentes interesses, que reduzem a
democracia a um processo de decisões colectivas a partir dos interesses
individuais. Com efeito, é num contexto onde proliferam opiniões, que o
modo de proceder ante várias e diversificadas crenças, interesses e valo-
res. deve ter em conta que a sociedade hodierna se caracteriza por uma
pluralidade de formas de vida preferenciais. Ora, neste contexto, a pers-
pectiva dominante tem ditado o modo de conciliação e o processo de deci-
são. fazendo prevalecer o interesse maioritário e a negociação pertinente
para chegar a um acordo entre os sectores sociais com interesses em con-
flito. Na base deste modelo tradicional está o símile do mercado, que, não
excluindo o debate, redu-lo a uma panóplia que faz confluir na avaliação
entre as partes a congruência dos interesses privados. Ora, o modelo deli-
berativo de democracia projecta-se na busca colectiva da melhor proposta
para todos; parte também desse contexto de pluralidade de formas de vida
e da existência de diferentes preferências políticas, mas o processo de
decisões colectivas deve basear-se no intercâmbio de razões e argumentos
até alcançar um acordo entre todos os interessados; se o escopo está mais
aa obtenção de decisões que favoreçam o bem comum que as preferências
privadas, desencadeia também no próprio processo um âmbito muito mais
alargado de informação, maior disponibilidade para a cooperação, melhor
qualidade das decisões e, portanto, uma maior legitimidade democrática.
Um princípio básico da democracia é que o exercício do poder polí-
nico só é legítimo quando resulta da vontade conjunta dos cidadãos; esta

dos laços da sociedade civil é concordando com outros homens em juntar-se e unir-se
zuma comunidade, para viverem confortável. segura e pacificamente uns com os outros,
zozando de modo seguro das suas propriedades contra aqueles que dela não fazem
zarte (...). Quando qualquer número de homens consentiu desse modo em formar uma
comunidade ou governo. são. por esse acto, nela incorporados e formam um corpo polí-
zco. no qual a maioria tem o direito de agir e deliberar por todos” (Locke, 1689, 530-531:
o itálico é nosso).
132 Manual de Filosofia Política

força do vínculo entre deliberação e legitimidade das decisões políticas


tem sido um dos principais argumentos em favor da democracia delibera-
tiva. Neste sentido, Bernard Manin opõe este processo de deliberação à
ideia rousseauniana de vontade geral (Manin, 1987: 338-368); esta parece
pré-existir aos cidadãos, carecendo apenas de apreensão por parte dos
indivíduos; ora, a vontade configura-se durante o processo de deliberação,
que é precisamente a fonte de legitimidade.
No entanto, as virtualidades da deliberação não se esgotam na maior
amplitude de legitimidade política, mas gera uma profusão de corolários
consequenciais de melhoria da democracia: desde logo, a permuta de opi-
niões, ideias e razões, aumenta a informação disponível, fazendo prolifi-
car alternativas que de outro modo poderiam não surgir, ao mesmo tempo
que permite analisar as consequências de cada proposta; além disso, a
deliberação reforça a orientação das deliberações para o interesse geral
em detrimento dos interesses privados, permitindo assim a obtenção
do bem comum; ademais, os interesses em apreço tornam-se princípios
defendidos publicamente e as deliberações assim geradas, pelos ciclos
contínuos do dizer e do escutar, ocasionam uma melhoria das faculdades
intelectuais e morais dos cidadãos, promovendo as virtudes cívicas de
tolerância e cooperação; e, necessariamente, as decisões assim obtidas
são mais racionais e justas; se a imparcialidade não está garantida, em
termos absolutos, está sem dúvida melhor alcançada que mediante a
mera negociação e votação.
Nesta perspectiva, a ideia de uma democracia deliberativa surge no
pensamento filosófico e político, como o mostram alguns autores como
Joshua Cohen, James S. Fishkin, Carlos Santiago Nino, para referir apenas
alguns. Neste esforço é indispensável referir a figura que projectou este
paradigma democrático, Jirgen Habermas, herdeiro da Escola de Frank-
furt, que, através de uma obra complexa e proteiforme, em constante aper-
feiçoamento, desenvolveu a noção de “política deliberativa” e caracterizou
as consequências que daí advêm, com o fim de preencher as carências que
manifestam quer o pensamento liberal quer o republicano, quando se trata
de erigir o sistema democrático. É sem dúvida a teoria da democracia deli-
berativa que melhor dá conta dessa necessidade de articulação do partici-
pativo e do representativo, em especial porque exige uma estrita igualdade
de acesso ao debate público e imparcialidade do tratamento das questões,
possibilitando maior capacidade regeneradora do espaço comum a siste-
mas representativos em crise.
Democracia deliberativa 133

Ora, no nosso tempo parece ter-se abandonado um diálogo autêntico


e pessoal, bem como um debate público racional e verdadeiro, num clima
de desorientação e de insegurança pessoais e colectivos. Uns refugiam-se
no cinismo ou no psicologismo, tornando-se habilidosos agentes de rela-
ções públicas ou manipuladores interessados da imagem que projectam;
outros refugiam-se nalguma forma de positivismo, buscando a segurança
na esterilidade da mera descrição, quais meros funcionários de uma
ordem estabelecida ou de uma nova espécie de “intelectuais orgânicos”
(para usar a expressão de Gramsci) ou de burocratas tecnocráticos; outros
refugiam--se no silêncio, ou no agressivo e explosivo silêncio da violên-
cia, da cega actividade não mediada pela racionalidade, outros no silên-
cio privado e passivo do sonho, da experiência das drogas e de uma vida
sem palavras.
Torna-se, pois, crucial, indagar quer uma teoria da acção (praxeolo-
gia) capaz de explicar em que sentido os vários tipos de acções humanas
são susceptíveis de serem racionais, quer uma epistemologia (teoria do
conhecimento) que permita dar conta da racionalidade dessas actividades.
Se a praxeologia é complexa, elucidando as várias formas de racionali-
dade da acção (como veremos mais adiante), entre elas demora-se no “agir
comunicacional” (acção comunicativa), cuja modalidade não somente
recorre à linguagem mas que verdadeiramente a constitui.
Por outro lado, defende também uma acepção complexa da raciona-
lidade, apta a dar conta da diversidade das condutas humanas sem as redu-
zir à eficácia operatória nem à prossecução calculada de interesses egoís-
tas: desse modo pretende apartar-se de duas vias simétricas e errantes de
análises das civilizações, quer seja o absolutismo quer seja o relativismo:
a primeira, que sustém a sua sociedade como modelo particular de destino
universal da humanidade, numa atitude etnocêntrica; a segunda, nela não
lobrigando desafios ou possibilidades de universalidade, fechando-se no
quadro estreito da respectiva cultura.
No “agir comunicacional” radicarão os fundamentos de integração
social: nessa relação intersubjectiva constitui-se o sujeito, ao mesmo
tempo como sujeito epistémico (portador de um conjunto de conhecimen-
tos e de representações), como sujeito ético (que adere a normas sociais) e
como sujeito pático (realizando-se segundo a imagem da sua personali-
dade). Em consequência, o “agir comunicacional” é também um conceito
político, isto é, um núcleo em torno do qual se organiza a ideia de demo-
cracia, que não se resume, segundo Habermas, nem a um equilíbrio de
134 Manual de Filosofia Política

poderes, nem a um mecanismo de negociação de interesses, nem apenas à


salvaguarda das liberdades, mas que implica uma mudança de paradigma
político: uma situação cuja legitimidade se funda na discussão isenta de
dominação. Ora, o “agir comunicacional” apenas se manifesta e desen-
volve através da linguagem.

1.2. Prolegómenos para uma democracia discursiva

O “agir comunicacional” “refere-se à interacção de, pelo menos, dois


sujeitos, capazes de linguagem e de acção, que (seja por meios verbais ou
por meios extra-verbais) estabelecem uma relação interpessoal. Os actores
buscam entender-se sobre uma situação de acção a fim de coordenarem de
comum acordo os seus planos de acção e com isso as respectivas acções”
(Habermas, 1981a: 124). Habermas, por “entendimento”, pretende expres-
sar o “processo de obtenção de um acordo entre sujeitos, linguística e
interactivamente competentes” (Habermas, 198la: 368). Assim, obter um
acordo é a possibilidade de fazer uso de razões através das quais chegamos
a um reconhecimento intersubjectivo de exigências de validade, susceptí-
veis de crítica; é possível desse modo corrigir erros e aprender com eles;
os processos de entendimento têm como meta um acordo, racionalmente
motivado, que satisfaça as condições de um assentimento. Um acordo
alcançado comunicativamente deve ter uma base racional, sem recorrer a
outro tipo de razões que não sejam as racionais; como tal, o acordo assenta
em convicções comuns € o êxito de um “acto de fala” pressupõe que o
interlocutor aceite a oferta inerente a esse acto linguístico.
É desde o quadro conceptual de acção orientada ao entendimento que
se projecta o conceito de racionalidade e que se faz referência ao “mundo
da vida” como um saber de fundo compartilhado. A experiência comu-
nicativa faz-se sempre numa situação de diálogo, dado que os actores
sociais têm as mesmas capacidades interpretativas. Neste contexto, é o
diálogo que constitui a via paradigmática através da qual se põe em mar-
cha e se mantém o processo de intersubjectividade; neste intuito, Haber-
mas apoia-se em Hegel, na sua crítica à possibilidade de um “eu transcen-
dental” constituído com anterioridade aos processos de conhecimento e
de interacção social, que é, em Kant, o pressuposto de superação entre
razão teórica e razão prática. Apoia-se, por outro lado, e decisivamente, na
filosofia linguística do nosso tempo.
Democracia deliberativa 135

1.3. Por uma concepção complexa de racionalidade

Diferentemente da posição estruturalista, que se baseia na considera-


ção da língua como entidade autónoma, possibilitando uma visão sincró-
nica como via analítica da realidade social, irredutível aos indivíduos e
possuindo as suas próprias leis, Habermas adopta como base a pragmática
da linguagem, que designa de “pragmática universal” ou “formal”, como
via interpretativa da realidade social. Trata-se afinal de apreender a
expressão linguística não como a reprodução de representações mentais
pré-existentes, mas como um acto criativo e intersubjectivo original
(Habermas, 2001: 128ss.). É, portanto, menos a linguagem compreendida
como conjunto de significações que preexistem às actualizações concretas
da fala, que esta mesma enunciação efectiva apreendida no contexto de
uma interacção social, que vem a constituir o ponto de partida para uma
teoria da linguagem pertinente para a elucidação social.

1.3.1. 4 “mudança pragmática”: linguagem e acção

Foi Wittgenstein quem enfatizou o carácter linguístico da existência


do ser humano, em conjunção com o ponto de vista de que não há descri-
ções da realidade unívocas ou eternas. Além disso, se essa concepção da
prática humana vem esclarecer grande parte dos problemas filosóficos que
a tradição nos legou, à luz de uma interpretação gramatical dos enuncia-
dos apresentados, mostrando, pelas suas análises linguísticas, que existe
uma variedade admirável de “jogos de linguagem” para descrever o
mundo, tal não nos permite concluir que o autor defendesse a ideia de que
os usos que diferentes pessoas e comunidades dão à linguagem, se equi-
valem entre si. Há jogos de linguagem (e chega-se a essa conclusão pela
análise do uso das regras da gramática) que são melhores que outros, isto
é. em que a expressão de um determinado jogo de linguagem é usado de
forma mais correcta relativamente ao contexto em causa, isto é, desde
que o significado do enunciado (o seu uso linguístico) tenha sentido numa
(e para uma) determinada forma de vida; porém, pode concluir-se, se-
gundo creio, que nenhum jogo de linguagem tem o privilégio de reclamar
para si a figura de exclusividade no que concerne à verdade; nenhum
sistema linguístico (ou sistema de saber ou de acção) pode assumir para si
a condição de descrever a realidade com mais propriedade, de modo mais
136 Manual de Filosofia Política

adequado ou da forma mais radical, que qualquer outra descrição; a lin-


guagem é usada de forma mais adequada ou inadequada tendo em conta
as circunstâncias dessa utilização.
Nesta Óptica, o entendimento é o fim para que tende a linguagem
humana; todavia, casos há em que os meios linguísticos são instrumenta-
lizados para o êxito da própria acção, desacreditando, deste modo, o acto
de fala como modelo de acção assim orientada. É perscrutando tal objec-
tivo que levou Habermas a fazer referência à teoria dos “actos de fala”
(speech acts), surgida no âmbito da pragmática da linguagem, especial-
mente com John Langshaw Austin e John Searle, que entendiam a lingua-
gem como uma forma de acção — “todo o dizer é um fazer”. Até então,
filósofos e linguistas pensavam que as afirmações serviam apenas para
descrever um estado de coisas, sendo, portanto, ou verdadeiras ou falsas.
Austin3 contesta essa visão descritiva da língua, mostrando que certas
afirmações não servem para descrever mas sim para realizar acções;
foram os diversos tipos de acções humanas que se realizam através da
linguagem, isto é, os actos de fala, que passaram a ser especialmente
tema de reflexão.
Inicialmente, Austin (1962) distinguiu dois tipos de enunciados: os
constativos e os performativos: os constativos são aqueles que descrevem
ou relatam um estado de coisas, e que, por isso, se submetem ao critério
de verificabilidade, isto é, podem ser verdadeiros ou falsos; na prática, são
os enunciados comummente denominados de asserções, descrições ou
relatos, tais como: Eu jogo futebol; A terra gira em torno do sol, etc. Por
sua vez, Os enunciados performativos são os que não descrevem, não
relatam, nem constatam nada, e, portanto, não se submetem ao critério de
verificabilidade (não são verdadeiros nem falsos); mais precisamente, são
enunciados, que, quando proferidos na primeira pessoa do singular do pre-
sente do indicativo, na forma afirmativa e na voz activa, realizam uma
acção (daí o termo “performativo”, do verbo inglês, to perform, realizar),
tais como: Prometo; Sim, quero; Declaro aberta a sessão; Ordeno que
você saia; Declaro-vos casados. Tais enunciados, no preciso momento em

3 À teoria dos “actos de fala” tem por base doze conferências proferidas por Aus-
tin na Universidade de Harvard, EUA, em 1955, e publicadas postumamente (1962), no
livro How to do Things with Words (Austin, 1962). O título da obra resume claramente a
ideia principal defendida por Austin: dizer é transmitir informações, mas é também
(e sobretudo) uma forma de agir sobre o interlocutor e sobre o mundo circundante.
Democracia deliberativa 137

que são proferidos, realizam a acção denotada pelo verbo; não servem para
descrever nada, mas sim para executar actos (acto de prometer, de abrir
uma sessão, etc.). Neste sentido, dizer algo é fazer algo; dizer, por exem-
plo, Declaro aberta a sessão, não é informar sobre a abertura da sessão, é
“abrir a sessão”; são os enunciados performativos que concitaram o maior
interesse de Austin.
No entanto, o simples facto de proferir um enunciado performativo
não garante a sua realização; se é uma condição necessária, não constitui
condição suficiente para a realização de um acto de fala; requer-se, pois,
para que possa ser considerado “feliz” (felicitous) ou bem-sucedido, isto é,
para que a acção por ele designada seja de facto realizada, que as circuns-
tâncias sejam adequadas. Um enunciado performativo pronunciado
em circunstâncias inadequadas não é falso, mas sim nulo, sem efeito;
simplesmente fracassa. Assim, por exemplo, se o recepcionista (e não o
presidente da câmara) diz Declaro aberta a sessão, o performativo não se
realiza (isto é, a sessão não é aberta), porque o recepcionista não tem poder
ou autoridade para abrir a sessão; o enunciado é, portanto, nulo, sem efeito
(ou, nas palavras de Austin, “infeliz”).
Austin denominou “condições de felicidade” os critérios requeridos
para que um enunciado performativo seja bem-sucedido; as principais são:
1a) o falante deve ter autoridade para executar o acto (como no exemplo
anterior); (b) as circunstâncias em que as palavras são proferidas devem
ser apropriadas (se o presidente da câmara declara aberta a sessão, sozinho,
em sua casa, O performativo não se realiza, porque não é enunciado nas
circunstâncias apropriadas). Posteriormente, ao tentar fixar um critério
gramatical para os enunciados performativos (inicialmente, o critério do
verbo na primeira pessoa do singular do presente do indicativo, etc.), Aus-
un deparou com muitos problemas, pois constatou, entre outras coisas: (1)
nem todo enunciado performativo tem o verbo na primeira pessoa do
singular do presente do indicativo na forma afirmativa e na voz activa; eis
alguns exemplos: Proibido fumar; Vocês estão autorizados a sair; Todos os
funcionários estão convidados para a reunião de hoje. Nesses exemplos, os
actos de proibição, autorização e convite, realizam-se sem o emprego de
proíbo, autorizo e convido; por outro lado, (2) nem todo enunciado na pri-
meira pessoa do singular do presente do indicativo na forma afirmativa e
na voz activa é performativo; eis alguns exemplos: Eu jogo futebol, Eu
corro; Eu estudo inglês; nesses exemplos, os actos de jogar futebol, correr
e estudar inglês, não se realizam ao enunciarem-se tais sentenças.
138 Manual de Filosofia Política

Apesar disso, Austin não abandona, logo de início, a ideia de encon-


trar um critério gramatical para definir os enunciados performativos, mas
encontrou mais problemas que soluções. Um deles é a constatação de que
podem haver enunciados performativos sem nenhuma palavra relacionada
com o acto que executam; é o caso, por exemplo, de enunciados, tais
como: Curva perigosa e Virei amanhã, que podem equivaler, respectiva-
mente, a: Eu te advirto que a curva é perigosa e Eu prometo que virei
amanhã. É o caso também dos imperativos, como Feche a porta, cuja
performatividade pode ser assim explicitada: Eu ordeno que você feche
a porta.
Há, porém, uma diferença entre esses dois tipos de performativo: Eu
ordeno que você saia é uma frase que tem uma indicação muito precisa
do acto que realiza: trata-se de uma ordem e nada mais. Já Saia é vago
ou ambíguo: pode ser uma ordem, um pedido, um conselho, etc.; ante tal
constatação, Austin passa a propor a distinção de performativo explícito
(para enunciados com performatividade explícita, como Eu ordeno que
você saia), em oposição a performativo implícito, ou primário (para enun-
ciados sem performatividade explícita, como quando diz Saia); o perfor-
mativo primário seria uma espécie de forma reduzida do performativo
explícito. A partir dessa distinção, Austin considera que a denominação de
performativo primário também se aplica aos enunciados constativos, e
acaba admitindo que a distinção constativo-performativo se desfaz, já que
é possível transformar qualquer enunciado constativo em performativo,
bastando antecedê-lo de verbos como declarar, afirmar, dizer, etc. Por
exemplo, /Eu afirmo que] A mosca caiu na sopa; [Eu digo que] Vai
chover; [Eu afirmo que] A terra é redonda, etc.
Ao concluir que todos os enunciados são performativos (porque, no
momento em que são enunciados, realizam algum tipo de acção), Austin
retoma o problema em novas bases, e identifica três actos simultâneos que
se realizam em cada enunciado: o locutório, o ilocutório e o perlocutório.
Assim, quando se enuncia a frase, Eu prometo que estarei em casa hoje à
noite, há o acto de enunciar cada elemento linguístico que compõe a frase
(produção de sons, o 'fazer físico” envolvido na linguagem); tais são os
actos enunciativos através dos quais dizemos algo, nos referimos ao seu
conteúdo; o emissor expressa estados de coisas, diz algo: é o acto locutó-
rio. Paralelamente, no momento em que se enuncia essa frase, realiza-se
o acto de promessa; é aquele através do qual o agente realiza a acção
dizendo algo: é o acto ilocutório, isto é, o acto que se realiza na linguagem
Democracia deliberativa 139

(fazer com palavras, como prometer, pedir, ordenar). Quando se enuncia


essa frase, o resultado pode ser de ameaça, de agrado ou de desagrado
(produção de efeitos psicológicos específicos); o falante procura causar
um efeito sobre o ouvinte, isto é, um acto que não se realiza na linguagem,
mas pela linguagem: é o acto perlocutório.
Todas essas noções são retomadas e sistematizadas por John Searles,
quem sistematizou a teoria dos “actos da fala” e para quem o aspecto
fundamental da competência linguística é a componente ilocutória da
linguagem; segundo Searle, enunciar uma sentença é executar um acto
proposicional e um acto ilocutório. Searle chama a atenção ainda para
o facto de que não há uma correspondência biunívoca entre conteúdo
proposicional e força ilocutória, na medida em que um mesmo conteúdo
proposicional pode exprimir diferentes valores ilocutórios: a proposição
João, estude bastante, por exemplo, pode ter força ilocutória de ordem,
pedido, conselho, etc.
Para a caracterização dos diferentes tipos de actos ilocutórios, e con-
siderando, como vimos, que a funcionalidade de uma frase no discurso não
está claramente associada a um tipo particular de frase (declarativa, inter-
rogativa, exclamativa e imperativa) a partir de uma relação unívoca, a tra-
dição descritiva distingue entre forma e conteúdo de uma frase, fazendo
realçar nessa distinção que a intenção com que um enunciado é produzido
está intimamente ligada à função assumida por esse mesmo enunciado no
contexto da sua enunciação. A intenção denomina-se “objectivo ilocutó-
rio” do enunciado ou acto, a função denomina-se “força ilocutória” desse
mesmo enunciado ou acto; o objectivo ilocutório é parte integrante da
força ilocutória, mas é ele que a regula, o que torna possível a exis-
tência de enunciados com o mesmo objectivo ilocutório, mas com forças
ilocutórias distintas. Searle assume que a forma geral de um acto ilocutó-
ro é: F(p), em que F é a força e p o conteúdo proposicional, com o que
caracteriza as várias categorias de actos de falas.

4 Primeiramente em Speech acts (Searle. 1969) e depois em Expression and


Meaning: studies in the theory of speech acts (Searle, 1979).
5 Searle distingue cinco grandes categorias de actos de linguagem (“taxonomia
dos actos ilocutórios”):
— Os assertivos (constativos). mostram a crença do locutor quanto à verdade
expressa no seu enunciado (afirmar, argumentar, informar. admitir. testemunhar):
Comprei o bilhete para Paris: Concordo com a tua opinião.
140 Manual de Filosofia Política

O aspecto essencial da teoria dos actos de fala para a filosofia da lin-


guagem pode assim condensar-se: para além do conteúdo proposicional,
analisável em termos de representação e condições de verdade quando
ocorre linguagem, há algo que é praticado com palavras — a força ilocutó-
ria -, e que não constitui representação mas acção (seja bem ou mal suce-
dida). Por outro lado, a apresentação dessa tipologia permite-nos concluir
que o número de coisas básicas que podemos fazer com a língua é limi-
tado, se adoptarmos a noção do objectivo ilocutório como critério classifi-
cador. Independentemente da multiplicidade de actos ilocutórios que cada
um de nós possa realizar no seu quotidiano, tudo se resumirá, no fim, a
dizermos aos nossos interlocutores como é a realidade (actos ilocutórios
assertivos), tentar levá-los a realizar acções (actos ilocutórios directivos),
comprometermo-nos nós próprios com a realização de uma acção (actos
ilocutórios compromissivos), expressarmos os nossos sentimentos e atitu-
des face ao mundo (actos ilocutórios expressivos) e provocar nesse mundo
algumas alterações por meio dos nossos enunciados (actos ilocutórios
declarativos).

1.3.2. Por uma praxeologia multidimensional

O escopo habermasiano não é propriamente uma elucidação da


linguagem como tal, mas articular a pragmática da linguagem, isto é, uma
teoria da acção linguística com uma teoria sociológica da acção. Neste
sentido, entende que a forma primária da interacção social é aquela em que

— Os directivos, tentam levar o ouvinte a realizar a acção expressa no enun-


ciado (ordenar, pedir, solicitar, sugerir, recomendar): Passa-me esse livro;
Queres acompanhar-me?
— Os compromissivos, comprometem o locutor com a realização da acção (futura)
expressa no seu enunciado (prometer, ameaçar, garantir, aceitar): Trago-te o livro
amanhã, Asseguro-te que amanhã te envio os resultados. Enquanto os “actos
directivos” colocam o interlocutor sob uma obrigação, os “actos compromissivos”
exercem essa obrigatoriedade sobre o locutor.
— Os expressivos, expressam o estado psicológico do locutor acerca da realidade
expressa no seu enunciado (felicitar, desculpar, agradecer): Parabéns pelo
prémio, Agradeço-te sinceramente o apoio que me deste.
— Os declarativos, produzem uma situação externa nova, por meio da realização
do acto (declarar, nomear, fórmulas de baptismo ou matrimónio): Está aberta a
sessão: Declaro-vos marido e mulher.
Democracia deliberativa 141

a acção vem coordenada pelo uso da linguagem com vista ao entendi-


mento — a “acção comunicativa”: “O conceito de agir comunicativo desen-
volve a intuição de que à linguagem é inerente o telos do entendimento. O
entendimento é um conceito repleto de sentido normativo que ultrapassa o
âmbito da compreensão de uma expressão gramatical. Um locutor coloca-
se com outros de acordo sobre um assunto. Ambas as partes só podem
alcançar um tal consenso se aceitarem os enunciados como adequados aos
factos em apreço. O consenso acerca de alguma coisa é aferido pelo reco-
nhecimento intersubjectivo da validade de um enunciado em princípio
criticável” (Habermas, 1988: 89-90). Outros usos possíveis da linguagem,
como o instrumental ou estratégico, seriam parasitários por relação ao uso
orientado para o entendimento. Ao servir-se da linguagem, o indivíduo
participa necessariamente da perspectiva social e sai assim da “lógica
egocêntrica”s. Então, a linguagem não é um simples meio referencial, mas
é através dela que os indivíduos se constituem como sujeitos, quer porque
a linguagem possibilita o desenvolvimento cognitivo e práxico, quer por-
que por ela se age normativa e socialmente.
Karl-Otto Apel, que havia considerado a obra de Austin como uma
-viragem pragmática”, entendia com tal mudança não apenas uma especial
atenção à linguagem, mas a própria “transformação da filosofia”7, assim, a
pergunta kantiana pelas condições de possibilidade e validade do conheci-
mento terá de ser compreendida e respondida desde a linguagem, isto é,
tendo em conta o paradigma da pragmática transcendental. O escopo é
transformar o ponto supremo e unitário da teoria kantiana do conheci-
mento, substituindo reflexivamente a síntese transcendental da apercepção,
entendida como unidade da consciência do objecto, pela síntese transcen-
dental da mediação linguística, entendida como unidade do consenso sobre
algo numa comunidade de comunicação. Tal síntese, segundo Apel, funda-
mentaria em última instância o carácter público do conhecimento; deste
modo, a “transformação da filosofia” não assenta doravante numa metafí-

6 “Só ao agir comunicativo se aplica que as limitações estruturais de uma lingua-


sem partilhada a nível intersubjectivo levam os actores — no sentido de uma necessidade
transcendental débil — a abandonarem o egocentrismo de uma orientação pautada pelo fim
racional ao êxito próprio e a submeterem-se aos critérios públicos da racionalidade
do entendimento” (Habermas, 1988: 94-95).
7 A obra fundacional intitula-se precisamente Transformation der Philosophie
(Apel. 1976).
142 Manual de Filosofia Política

sica do “eu penso” mas numa metafísica crítica da formação do consenso


numa comunidade real de comunicação; com esse intuito, desenvolveu
uma teoria da significação com incidência numa teoria da “razão ética”.
Também, para Habermas, a teoria dos actos da fala constitui o susten-
táculo dinâmico duma teoria da acção comunicativa, que ele acolhe e reela-
bora, e que lhe permitirá esclarecer os fundamentos normativos de uma
teoria da sociedade. A questão, para Habermas, versa também sobre as
condições de possibilidade da comunicação: esta questão, de sabor kantiano,
significa perguntar pelos pressupostos de toda a comunicação, ou seja,
implica uma análise da pragmática universal da comunicação. Com Searle,
sustém que, na comunicação, existe uma dupla dimensão, isto é, uma dupla
estrutura da fala: proposicional (acto locutório), isto é, aquilo que é dito, e a
força com que é dito (acto ilocutório), isto é, “eu afirmo/prometo/ordeno....”.
Tal reelaboração faz-se com vista à sua inserção numa teoria da
acção social; apesar da grande variedade de usos a que os falantes recor-
rem, Habermas classifica-os de acordo com o efeito ilocutório que é pre-
viamente desejado pelo falante, considerando três casos puros ou idealiza-
dos de actos de fala (Habermas, 1981a: 395) — constativos, expressivos e
regulativos: os constativos são enunciados elementares sobre factos; os
expressivos são enunciados acerca de vivências elementares; os regulati-
vos expressam requisitos elementares ou declarações de intenções ele-
mentares. Cada um desses tipos de acção linguística implica pretensões
de validade específicas: o acto de fala “constatativo” pretende captar fiel-
mente os acontecimentos do mundo objectivo, cuja pretensão de verdade
visa um acordo intersubjectivo sobre a relação adequada entre os enun-
ciados e os factos; o acto de fala “expressivo” reflecte uma situação do
mundo interior (subjectivo) e a pretensão de veracidade assente nas boas
razões pelas quais pode considerar-se a acção como sincera; o acto de fala
“Tegulativo” adequa-se às normas e regras do mundo social, com o qual se
pretende expressar a sua pretensão de rectidão (Boladeras, 1996: 57ss.).
Habermas insiste nos três tipos de pretensão de validade: “O falante pre-
tende, pois, verdade para os enunciados e pressuposições da existência,
rectidão para as acções legitimamente reguladas e para o seu contexto nor-
mativo e veracidade no que concerne à manifestação das suas vivências
subjectivas” (Habermas, 198l1a: 493).
Com a sua teoria da acção comunicativa, que se inscreve na via kan-
tiana, Habermas pretende também integrar os três âmbitos de acções e das
respectivas racionalidades, que Kant separara na Crítica da Razão Pura — a
Democracia deliberativa 143

instrumental relativa ao mundo dos objectos, a normativa ao das normas, a


reflexiva à das vivências subjectivas; se a acção comunicativa visa integrar
esses três mundos, não é já segundo o paradigma da filosofia da consciência
(reflexiva), mas segundo a óptica da interacção comunicativa. Deste modo,
a racionalidade implicada numa teoria da acção pode haurir-se também pela
competência comunicativa das estruturas gerativas do entendimento lin-
guístico, que se desenvolve no âmbito das determinações contingentes
sócio-históricas, cujo carácter universal já foi antecipado na filosofia trans-
cendental kantiana; contudo, os actos de fala envolvem ambas as determi-
nações, seja a condição de inteligibilidade associada a uma gramática gera-
tiva universal (Chomsky), sejam as pretensões de validade dos enunciados
expressos nessas condições contingentes: pela intersubjectividade, conec-
tam-se a significação dos enunciados e as interpretações da acção.
Por outro lado, importa clarificar como se entende o trânsito de um
conhecimento fundado na experiencia como evidência a um conhecimento
discursivo, que, parecendo prescindir de relação com a experiência, na
verdade não se corresponde com ela. Este hiato, Habermas encontra-o na
formulação dos três mundos de conhecimento de Karl R. Popper. Às três
pretensões fundamentais — verdade, veracidade, rectidão —, ligam-se pri-
meiramente “três mundos”, que apenas pela linguagem se configuram
como totalidades. Habermas desenvolve essa sua teoria dos três mundos —
objectivo, subjectivo e social — em paralelismo com os conceitos de
mundo propostos por Popper, para quem o conhecimento só progride pela
crítica e são os argumentos que constituem a sua força propulsora; a
filosofia é assim uma actividade necessária pelo exame crítico dos pressu-
postos, das proposições, das teorias — as entidades linguísticas mais impor-
tantes do “mundo 3”; é no seu livro Conhecimento Objectivo, que estabe-
lece esse pluralismo com a tese dos três mundos — o mundo 1 (o da física
ou dos estados materiais), o mundo 2 (o dos estados mentais, dos senti-
mentos, das experiências subjectivas), o mundo 3 (o âmbito dos pensa-
mentos, das obras de arte, dos valores éticos, das instituições sociais, dos
“inteligíveis” ou das ideias no sentido objectivo, na acepção do lógico
alemão Frege). As relações causais entre os três mundos têm o segundo
mundo como mediador, que estabelece um elo indirecto entre os outros
dois; o primeiro e terceiro mundos são externos, só percebidos pelo
segundo, e só se pode entender o primeiro e segundo mundos por meio do
terceiro mundo, apreendendo-se os conteúdos de pensamentos objectivos
(Popper, 1972: 117ss.). Os humanos detêm essa faculdade maravilhosa da
144 Munual de Filosofia Política

crítica e, portanto, de modificar as teorias constitutivas do mundo 3; este


existe “na realidade”, possibilitando a “obra criativa” e “original”: esta ac-
tividade pode ser representada por um esquema geral de solução de pro-
blemas pelo método de conjecturas imaginativas e da crítica —- o denomi-
nado método das “conjecturas e refutações” (Popper, 1963).
De acordo com Habermas, de entre as teorias de acção sociológicas
conhecidas, não é comum articular a acção com o “mundo” no qual o actor
age; uma excepção é precisamente a de Ian G. Jarvie, “num interessante
uso da teoria popperiana dos três mundos” (Jarvie, 1972: 147ss.); por isso,
Habermas recorre à concepção da teoria de três mundos de Popper, na ver-
são de Jarvie, encontrando aí um significado especial para a sua teoria da
acção comunicativa (Habermas, 1981a: 111). Assim, Habermas critica o
conceito dos três mundos de Popper, sobretudo a sua concepção do mundo
3, que é uma interpretação sobretudo cognitivista, dado que considera
principalmente as componentes culturais e científicas. O intento de Jarvie,
de transpor a “teoria dos três mundos” de Popper da “teoria do conheci-
mento” para a “teoria da acção”, representa um interesse acrescido para
Habermas; segundo este, porém, constatam-se três debilidades na proposta
de Jarvie: (1) não diferencia entre a vida quotidiana não-científica e a
vida quotidiana científica; (2) descuida as componentes culturais no con-
ceito do mundo 3, tendo em conta que essas componentes não se podem
reduzir somente aos pensamentos e aos problemas científicos *em si”; (3)
finalmente, Jarvie não distingue entre os valores culturais e as normas
institucionais da sociedade (Habermas, 1981a: 116-123).
Então, segundo Habermas, a racionalidade comunicativa é mediada
por actos de fala relativos a três mundos, segundo uma teoria da acção que
não se encerra no enfoque de uma única racionalidade da acção: esta
não é, pois, nem linear nem uniforme. É desde a perspectiva dos actores
em situação de fala, que Habermas alude a esses mundos, que se sobre-
põem e interagem: o mundo objectivo (o das coisas existentes), o mundo
subjectivo (das vivências internas exteriorizadas), o mundo social (das
relações intersubjectivas reguladas normativamente), quais supostos onto-
lógicos que não pré-existem à consciência intersubjectiva — à excepção do
primeiro —, mas que se constituem e diferenciam ao longo da experiência
humana, como resultado da cooperação social, em função das capacidades
progressivamente acumuladas pela linguagem.
Nesta sequência, Habermas articula as estruturas e regras universais
que possibilitam um novo reconhecimento intersubjectivo com base no
Democracia deliberativa I45

qual se desenvolve o consenso social sem deformações nem alienações;


esse consenso depende de uma variedade de acções, que podem conden-
sar-se em quatro tipos: acção teleológica-estratégica, acção regulada por
normas, acção dramatúrgica e acção comunicativa. À acção teleológica,
que ocupa desde Aristóteles o centro da teoria filosófica da acção, na qual
-o actor realiza um fim ou faz que se produza o estado de coisas desejado,
escolhendo, numa dada situação, os meios mais congruentes e aplicando-
-os de maneira adequada; o conceito central é o de uma decisão entre alter-
nativas de acção, com vista à realização de um fim, dirigida por máximas
e apoiada numa interpretação da situação” ((Habermas, 1981a: 122). A
acção teleológica “amplia-se e converte-se em estratégica, quando no cál-
culo que o agente faz para o seu êxito intervém a expectativa de decisões
de pelo menos outro agente que por sua vez actua também em ordem aos
seus propósitos”(Habermas, 1981a: 122-123); em termos utilitaristas, visa
a maximização da utilidade (verificável na teoria da decisão e na teoria dos
jogos estratégicos por Neumann e Morgenstern). A acção regulada por
normas “concerne aos membros de um grupo social que orientam as suas
acções por valores comuns” (Habermas, 1981a: 123), em que “as normas
expressam acordos existentes no grupo social” (analisado por Durkheim e
Parsons) e em que o conceito central de observância de uma norma signi-
fica o cumprimento de uma expectativa de comportamento generalizada.
O conceito de acção dramatúrgica não refere “um actor solitário nem o
membro de um grupo social, mas os participantes numa interacção que
constituem um público ante o qual se põem a si mesmos em cena (expla-
nado por Erving Goffman): “na acção dramatúrgica, os implicados apro-
veitam esta circunstância e governam a sua interacção regulando o recí-
proco acesso à própria subjectividade, a qual é sempre exclusiva de cada
um”, movida mediante uma estilização da expressão das próprias vivên-
cias perante espectadores. Por fim, a acção comunicativa, elucidada
primeiramente por Mead e depois por Garfinkel, “refere-se à interacção de
pelo menos dois sujeitos capazes de linguagem e de acção que (seja por
meios verbais ou extra-verbais) entabulam uma relação interpessoal. Os
actores buscam entender-se sobre uma situação de acção para assim
poderem coordenar de comum acordo os seus planos de acção e com isso
as suas acções. O conceito aqui central, o de interpretação, refere-se
primordialmente à negociação de definições da situação susceptíveis de
consenso. Neste modelo de acção, a linguagem desempenha uma função
proeminente” (Habermas, 1981a: 124).
146 Manual de Filosofia Política

1.3.3. Pluridimensionalidade do “mundo da vida”

No que se refere a pressupostos ontológicos, a acção teleológica,


bem como a acção estratégica, pressupõem um só mundo, que neste caso
é o mundo objectivo; estas relações entre actor e mundo permitem mani-
festações que podem avaliar-se segundo critérios de verdade e de eficácia.
Outro tanto ocorre na acção estratégica, que pressupõe pelo menos dois
sujeitos, que actuam com vista a alcançar um fim, no intuito de influenciar
as decisões dos outros actores, cada um dos quais se orienta também para
a consecução do seu próprio êxito; esta acção, enquanto diferenciação da
acção teleológica, e quanto a pressupostos ontológicos, tão pouco exige
mais que um mundo. A acção regulada por normas pressupõe relações
entre um actor e dois mundos, o mundo objectivo e o mundo social. A
acção dramatúrgica pressupõe também dois mundos, um interno e um
outro externo, isto é, o mundo subjectivo dos desejos, necessidades e
sentimentos e a referência a um mundo exterior (o mundo objectivo e o
mundo social). Na acção comunicativa, opera sobretudo o entendimento
linguístico como meio de coordenação da acção (Habermas, 198la:
125-138).
Se “o modelo teleológico de acção concebe a linguagem como um
meio através do qual os falantes, que se orientam para o seu próprio êxito,
podem influir uns nos outros com o fim de mover o oponente a formar as
opiniões e a conceber as intenções que lhes convêm para os seus propó-
sitos”, se “o modelo normativo da acção concebe a linguagem como um
meio que transmite valores culturais e que é portador de um consenso que
fica simplesmente ratificado em cada novo acto de entendimento”, se “o
modelo da acção dramatúrgica pressupõe a linguagem” como pressão esti-
lística “em que o significado cognitivo dos componentes proposicionais e
o significado interpessoal dos significados ilocutórios são ofuscados pelas
funções expressivas”, somente a “acção comunicativa pressupõe a lingua-
gem como meio de entendimento em que falantes e ouvintes, a partir do
horizonte pré-interpretado que o seu mundo da vida representa”, se refe-
rem simultaneamente a algo no mundo objectivo, social e subjectivo, para
negociar definições da situação que possam ser compartilhadas por todos,
seja um conteúdo proposicional, uma oferta de relação interpessoal ou
uma expressão intencional (Habermas, 1981a: 137-139).
Temos, desde logo, este contributo relevante da Teoria do Agir
Comunicativo: para o entendimento intersubjectivo é fundamental o
Democracia deliberativa 147

desenvolvimento da comunicação dialógica sem coacção nem dominação


da parte de um falante num ouvinte. Esta comunicação evolui por meio da
aplicação das pretensões de validez, mediante critérios de validade — ver-
dade, rectidão e veracidade; a pretensão de verdade refere-se a enunciados
verdadeiros. no sentido de que todas as entidades enunciadas sejam ver-
dadeiras; a pretensão de rectidão, refere-se a que os actos de fala são cor-
rectos em relação com o seu contexto: esta pretensão, transposta para O
“mundo social” exige que todas as relações sociais estejam legitimamente
reguladas; neste caso, é importante que a coincidência das intenções
expressas com os pensamentos se origine no terreno do “mundo subjec-
tivo”, onde se desenrolam as vivências do falante, exigindo com isso vera-
cidade no sentido que expressa.
Cada um dos tipos de acção linguística busca, portanto, uma deter-
minada garantia de validade. Assim, os primeiros (constativos) têm pre-
tensão de verdade — verdade proposicional na captação de mundo objec-
tivo; os segundos (expressivos) pretendem a veracidade ao reflectirem
sobre uma situação subjectiva: os regulativos, por sua vez, pretendem a
rectidão ao adequarem-se às normas do mundo social. Assim, enquanto a
verdade é um elemento importante para o desenvolvimento da capacidade
cognitiva, a rectidão e a veracidade são também relevantes para as inte-
racções que permitem a vida em comum dos sujeitos. A interacção e a
coordenação das condutas individuais, características do mundo social,
impelem os sujeitos que querem comunicar entre si, a satisfazer deter-
minados requisitos, que podem assim enunciar-se: uso de expressões
linguísticas compreensíveis para os seus interlocutores, adequação às
exigências de verdade, veracidade e rectidão; acordo dos interlocutores
sobre as garantias da pretensão de validade.
Sintetizando o que foi dito, pode afirmar-se, que, para Habermas, a
utilização da linguagem orientada ao entendimento constitui o modo ori-
ginal de utilização da linguagem; outros usos possíveis, como o instru-
mental ou estratégico, são, como dissemos, parasitários por relação ao uso
orientado para a compreensão (Habermas, 1981a: 370); o entendimento —
como telos inerente à linguagem no seu uso comunicativo — representa um
fim susceptível de ser ou não alcançado; as condições constitutivas do
entendimento possível são simplesmente constituintes; não são, estrita-
mente, condições transcendentais: ao clarificar assim a sua “pragmática
universal”, distingue-a explicitamente da “pragmática transcendental”
proposta por Apel.
148 Manual de Filosofia Política

Então, a “razão comunicativa” exprime uma racionalidade teórica


que se abre à prática, culminando numa concepção de verdade como con-
senso, numa filosofia que se inscreve numa teoria da sociedade que
requer a atitude crítica: trata-se de uma racionalidade que não recai no
universalismo metafísico, porque é não somente relativa, mas céptica e
intersubjectiva, superando o reducionismo cognoscitivo da razão instru-
mental.

2. A DEMOCRACIA EXERCIDA COMUNICATIVAMENTE

2.1. A Modernidade como projecto inacabado

No pensamento habermasiano, a sociedade é vista desde o enfoque


do mundo da vida, sem esquecer o lado do sistema que também a enforma:
“Ao aumentar a complexidade de um e a racionalidade do outro, sistema
e mundo da vida não só se diferenciam internamente, como “sistema” e
“mundo da vida”, mas também se diferenciam simultaneamente um do
outro” (Habermas, 1981b: 216). Trata-se de uma teoria da modernidade,
que, não sendo meramente apologética, se desenvolve na denúncia das for-
mas patológicas que a entorpeçam no seu devir, cujo potencial emancipa-
tório impede que se renegue a modernidade como esgotada: “Quanto mais
se diferenciam os componentes estruturais do mundo da vida e os compo-
nentes que contribuem para a sua manutenção, tanto mais submetidos
ficam os contextos de interacção às condições de um entendimento racio-
nalmente motivado, isto é, às condições de formação de um consenso que
em última instância se baseie na autoridade do melhor argumento” (Haber-
mas, 1981b: 205-206). É assim que Habermas, operando essa “viragem
paradigmática”, entende dar sequência ao inacabado projecto da moderni-
dade, vislumbrando, a partir daí, uma alternativa político-institucional.
Cada um desses conceitos básicos — mundo da vida e sistema — pro-
vêm de uma tradição diversa: “mundo da vida” (Lebenswelt) inspira-se em
Husserl, que Habermas conecta com a intersubjectividade que Mead e
Durkheim desenvolveram, e que evocam as dimensões próprias da razão
prática, onde a compreensão, o sentido e o consenso têm lugar; “sistema”
procede, entre outros, dos intentos analíticos de Max Weber, Talcott Par-
Democracia deliberativa 149

sons e de Niklas Luhmanns, em que predomina a razão instrumental. Eco-


nomia e Estado explicam-se na dimensão sistémica, na lógica expansiva
do capital, apartada da vontade individual, logrando autonomia sisté-
mica, quais plexos sistémicos tornados meios anónimos de integração; ao
invés, no mundo da vida — onde “cultura”, sociedade” e “personalidade”
são componentes estruturais —, o mundo simbólico, as normas e os valores
daí emergem como daí brota a racionalidade discursiva, que orienta afinal
para os temas primordiais da liberdade e da democracia. Se no horizonte
do mundo da vida a acção se orienta segundo um sentido, segundo a pers-
pectiva do participante, no sistémico é o plano das conseguências deseja-
das ou não na acção que se coloca segundo a perspectiva do observador.
À integração social faz-se segundo critérios de harmonização interna, isto
é, construindo e conservando a identidade do indivíduo ou do grupo,
mediante acções comunicativas que permitem a produção e reprodução de
valores, normas e instituições; a integração sistémica faz-se por estabili-
zação externa, isto é, num quadro de manutenção de pendor monológico
que se alastra numa malha técnico-funcional. A falha, no primeiro caso,
gera crise de identidade; no segundo, crise da governabilidade.
Com efeito, mundo da vida e sistema são conceitos axiais que per-
mitem elaborar a crítica do capitalismo complexo, com vista a uma con-
cepção da modernidade aplicada à sociedade hodierna, que se caracteriza
cada vez mais pela desarticulação entre mundo da vida e sistema; este vai
penetrando os interstícios daquele, impondo-lhe a sua lógica: as relações
de mercado rompem o seu âmbito próprio, inoculando a subjectividade e
penetrando também na família e no Estado. Assim, “(...) quando a inte-
gração sistémica irrompe nas formas de integração social (...) a não per-
cepção subjectiva das coacções sistemáticas que instrumentalizam a estru-
tura comunicativa do mundo da vida adquire o carácter de ilusão, de uma
consciência objectivamente falsa. As incidências do sistema sobre o
mundo da vida, que transformam na sua estrutura os contextos de acção de
grupos socialmente integrados, têm que permanecer ocultos. As necessi-
dades de reprodução que instrumentalizam o mundo da vida, sem diminuir

8 Já na sua obra sobre A Lógica das Ciências Sociais Habermas faz a análise da
teoria de Luhmann, bem como dessa capacidade que os sistemas sociais possuem para
a sua própria reprodução, que se designa de “autopoiética” (do grego poiesis, produção).
Na Teoria do Agir Comunicativo, revisita essas posições, bem como as análises de
Marx, Weber, Parsons. Luhmann, etc.
150 Manual de Filosofia Política

a aparência de autarquia desse mundo, têm, por assim dizer, que esconder-
-se nos poros da acção comunicativa. O resultado disso é uma força estru-
tural que, sem se tornar como tal manifesta, se apodera da forma da inter-
subjectividade do entendimento possível” (Habermas, 1981b: 264). A
universalização das relações capitalistas, abafando gradualmente todas as
formas comunicativas — o amor e a verdade não se desenvolvem no mundo
sistémico —, constituiria o fenómeno distintivo da modernidade, na medida
em que se ampliam os âmbitos sociais que se regem por mecanismos
que o dinheiro e o poder impõem, estiolando as dimensões da racionali-
dade comunicativa; o mundo da vida vai ficando comprimido num último
reduto, que acaba por caracterizar-se negativamente, quer dizer, aquele que
ainda não está por completo submetido por mecanismos sistémicos: “Para
a análise do processo de modernização resulta disso a suposição global de
que o mundo da vida progressivamente racionalizado, fica desacoplado
dos âmbitos de acção formalmente organizados e cada vez mais complexos
que são a economia e a administração estatal e cai sob a sua dependência.
Esta dependência, que provém de uma mediatização do mundo da vida por
imperativos sistémicos, adopta a forma patológica de uma colonização
interna à medida que os desequilíbrios críticos na reprodução material (isto
é, crises de controlo acessíveis à análise de uma teoria dos sistemas) só
podem evitar-se com o preço de distorções da reprodução simbólica do
mundo da vida (isto é, de crises de identidade e patologias “subjectiva-
mente” experienciadas)” (Habermas, 1981h: 532-433).
Se é isto que ocorre, não é também possível avançar um prognóstico:
será que o processo de dissolução das esferas do mundo da vida prosse-
guirá indefinidamente nesse reducionismo, em que as relações humanas se
monetarizam e as decisões se burocratizam, atingindo a barbárie, exau-
rindo a comunicabilidade porque diluída em meios não-verbais — essas
teias do mercado e esses mecanismos do poder burocrático? Habermas
limita-se a sublinhar que não deve presumir-se um desenvolvimento linear
do que foi até agora a tendência geral da modernidade. De certo modo,
Habermas, com a sua análise da evolução organizacional das sociedades,
inverte a consideração do Marx, para quem, “na produção social da sua
existência, os homens entram em relações determinadas, necessárias, inde-
pendentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a um
determinado grau de desenvolvimento das suas forças produtivas mate-
riais”, sendo que “o conjunto dessas relações de produção constitui a estru-
tura económica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma
Democracia deliberativa 151

superstrutura jurídica e política e à qual correspondem formas de cons-


ciência sociais determinadas”, pelo que “o modo de produção da vida
material condiciona o processo de vida social, política e intelectual em
geral”; então, “não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é,
inversamente, o seu ser social que determina a sua consciência” (Marx,
1859: 4). Para o autor de Teoria do Agir Comunicativo, não são as estru-
turas do mundo da vida que dependem, em suas mutações, dos incremen-
tos da complexidade do sistema, mas ao invés: são os aumentos das com-
plexidades sistémicas que dependem da diferenciação e racionalização
estrutural do mundo da vida. Neste sentido, cada novo mecanismo de dife-
renciação sistémica que consiga primazia na organização social tem,
necessariamente, que ficar ancorado no mundo da vida.
Aliás, esse fenómeno de desarticulação entre ambos os mundos per-
mite divisar tendências numa outra direcção: a conexão das relações no
mundo da vida tem permitido a racionalização do sistema, e ambos os pro-
cessos, de certo modo opostos, avançam sem que se possa diagnosticar
um vencedor, capaz de suprimir completamente o outro; certas tendências
confirmam a primazia dos mecanismos sistémicos no mundo da vida,
enquanto outras manifestam, em certos âmbitos, a limitação de penetração
do poder e do capital, fazendo retrair a “colonização do mundo da vida”:
“A consciência vê-se remetida para tradições cuja pretensão de validez há
muito tempo que ficou em suspenso, e, finalmente, quando logra escapar
do círculo mágico do tradicionalismo, permanece desintegrada e dispersa
sem remédio. A falsa consciência foi hoje substituída por uma consciência
fragmentada que ilude toda a ilustração sobre o mecanismo da reificação.
Só então se realizam as condições para uma colonização do mundo da
vida: os imperativos dos subsistemas autonomizados, enquanto ficam des-
pojados dos seus véus ideológicos, penetram desde fora no mundo da vida
— como senhores coloniais numa sociedade tribal — e impõem a assimila-
ção; e as perspectivas dispersas da cultura nativa não podem coordenar-se
suficientemente que permitam perceber e penetrar desde a periferia o jogo
das metrópoles e do mercado mundial”9, Habermas analisa em seguida,
como exemplificação desta “colonização interna do mundo da vida”,

9 Note-se, para contextualização da constelação conceptual em referência, que


Habermas está não só a inquirir posições de teorias sistémicas. quer posições de pensa-
dores. como Marx e Lukács.
152 Manual de Filosofia Política

“as tendências para a juridicização (Verrechtlichung)”, isto é, “à tendência


que se observa nas sociedades modernas a um aumento do direito escrito”
(Habermas, 1981b: 504). No mundo moderno, moral e direito desconec-
tam-se e perdem a qualidade de controlo interno do comportamento dos
indivíduos. “Na etapa em que a consciência moral se rege por princípios,
a moral fica desinstitucionalizada a ponto de só ficar ancorada já no sis-
tema da personalidade como controlo interno do comportamento. Nessa
mesma medida, o direito se transforma num poder externo, imposto desde
fora, até ao ponto em que o direito coactivo moderno, sancionado pelo
Estado, se converte numa instituição desconectada dos motivos éticos
daqueles para quem o sistema jurídico rege, e necessitada só de uma
obediência abstracta ao sistema de normas” (Habermas, 1981b: 246-247).
À grande e premente questão é a da conservação e do reforço do hori-
zonte comunicacional que permita desenvolver as formas democráticas de
convivência no actual quadro constringente: preservar um âmbito público
não coarctado pelas imposições do mercado e do poder burocrático, isto é,
pondo limites ao mundo sistémico, sem cair na ilusão que o possa desfa-
zer; frente ao sentimento trágico weberiano do desenlace da modernidade,
que desembocaria na supressão da questão do sentido e da liberdade indi-
vidual, Habermas inquire a contemporaneidade, não já movido pelo velho
ideal de emancipação que julgava ilusoriamente poder inverter as rela-
ções de dominação, e rejeitando qualquer saída decisionista, empirista ou
holista, para repensar a teoria da democracia no contexto da última moder-
nidade, quer dizer em sociedades altamente complexas.

2.2. A discursividade, entre ética e política

Os trabalhos de Jiirgen Habermas, mormente a Teoria do Agir Comu-


nicativo, edificaram os pilares em que assenta o paradigma deliberativo de
democracia, inquirindo os esteios do tipo de acção orientada meramente
para a consecução dos próprios interesses, isto é a acção estratégica, e um
outro tipo de acção social que busca o entendimento entre os cidadãos,
isto é, o agir comunicacional; a primeira, tem por mero objectivo o próprio
êxito na consecução dos interesses em causa, gizando os meios mais efi-
cazes (racionalidade de meios-fins) para satisfazer as suas preferências; o
outro tipo de acções orienta-se para um aprofundamento da democracia
que vincula os cidadãos e a prática política, prosseguindo-se uma nova
Democracia deliberativa 153

interpretação dos conteúdos de participação democrática, na medida


em que está orientada para o entendimento.
Contrapondo-se às éticas não cognitivistas, decorrentes do cepti-
cismo e do empirismo moderno anglo-saxónico, Habermas, numa linha
cognitivista, pretende mostrar que é possível fundar de modo argumenta-
tivo os juízos morais através do discurso, uma vez que esses juízos morais
possuem um teor cognitivo. Preocupado com a questão da universalidade
das normas, com vista a instaurar uma ética racional com pretensões de
validade universal, inspira-se em Kant e reelabora a sua filosofia da “razão
prática”. Enquanto para Kant a questão moral se resolvia pelo imperativo
categórico, para Habermas o critério de moralidade situa-se no plano do
debate argumentativo: é pelo discurso que se questionará a justeza das
normas que regulamentam a vida social. Tal como opina Cooke, a ética
discursiva, porque orientada para a universalidade movida pela racionali-
“dade comunicativa que emerge da intersubjectividade, está dotada de uma
força crítica ante a situação circundante (Cooke, 1994: 150).
Na sua Crítica da Razão Prática, Kant parte do Faktum moral, que
é um facto da razão: todos temos consciência de certos mandatos que
experimentamos como incondicionados ou como imperativos categóricos,
que revestem a forma — “deves fazer x”. Este imperativo é uma lei univer-
sal a priori da razão prática que não manda fazer nada em concreto, nem
prescreve nenhuma acção: não nos diz que devemos fazer (ética material),
mas como devemos agir (ética formal), para que o nosso comportamento
possa ser universalizável e converter-se em lei para todo o ser racional;
deste modo, a ética formal kantiana busca a sua justificação na própria
humanidade do sujeito, e ao que obriga, excluindo toda a condição: a for-
mulação kantiana do imperativo categórico como critério para saber se
uma máxima (e uma acção) é ou não moral, é: “age de tal modo que a
máxima da tua vontade possa ter sempre o valor de uma lei universal”.
Como se sabe, a ética kantiana influiu enormemente em todas as teo-
rias éticas posteriores, podendo-se considerar como formais as éticas de
Hare, o procedimentalismo dialógico de Kohlberg, as propostas de Apel,
e as de Habermas ou Rawils.
Ora o procedimentalismo ético não recomenda também nenhum
conteúdo moral concreto, mas procura descobrir os procedimentos que
permitem legitimar todas aquelas normas que provêm da vida quoti-
diana: como procedimentos válidos, só serão os que manifestem a praxis
racional desde uma perspectiva de igualdade e universalidade, através do
154 Manual de Filosofia Política

diálogo entre todos os afectados por essas normas. Assim, para Habermas,
o critério para saber se uma norma é correcta há-de fundar-se em dois prin-
cípios: o princípio de universalização <U>, que reformula dialogicamente
o imperativo kantiano da universalidade, expressando-se assim: “Uma
norma será válida quando todos os afectados por ela possam aceitar livre-
mente as consequências e efeitos secundários que se seguiriam, previsi-
velmente, do seu cumprimento geral para a satisfação dos interesses de
cada um”; por outro lado, o princípio discursivo <D> estipula: “Só podem
pretender validez as normas que concitarem (ou que poderiam concitar) a
aceitação por parte de todos os afectados, como participantes num dis-
curso prático” (Habermas, 1983: 85-86). Então, a racionalidade inerente
ao diálogo é comunicativa e deve satisfazer interesses universalizáveis;
como tal, a ética do discurso não pretende só fundamentar racional e
dialogicamente a moral, mas busca também a sua aplicação na vida quoti-
diana, impregnando também os meandros da política deliberativa; actual-
mente, encontramo-la ainda na “ética aplicada” a diversos âmbitos do
social — bioética ou ética médica, genética, ética da ciência e da tecnolo-
gia, ética económica, ética da empresa, ética da informação, ética ecoló-
gica; todas atravessam um contínuo processo de fundamentação e reela-
boração devido a que os valores próprios de cada actividade e a própria
actividade não estão fechados mas desenvolvem-se progressivamente.

2.2. Habermas, entre liberais e republicanos

Como tal, o agir comunicativo é uma forma de cooperação social


particular, em que “os planos de acção dos actores implicados não se coor-
denam através de um cálculo egocêntrico de resultados, mas mediante actos
de entendimento. Na acção comunicativa, os participantes não se orientam
primariamente ao próprio êxito, antes prosseguem os seus fins individuais
sob a condição de que os seus respectivos planos possam harmonizar-se
entre si na base de uma definição compartilhada da situação” (Habermas,
1981a: 367). Deste modo, quer-se desenvolver nas nossas sociedades plurais
e complexas uma comunidade auto-organizada de cidadãos livres e iguais,
pela via operativa da teoria do discurso. Esta posição, ao invés dos modelos
tradicionais do liberalismo e do republicanismo, surge como um género de
terceira via, que não somente evita os inconvenientes de cada uma deles,
mas transcende-os num novo patamar de exigência e proficuidade.
Democracia deliberativa 155

Como sabemos, o modelo liberal de democracia parte da separação


entre Estado e Sociedade, em que a função daquele é garantir que os cida-
dãos possam prosseguir nesta os seus interesses privados: os direitos sub-
jectivos naturais dos indivíduos, mormente a liberdade e propriedade,
carecem de protecção ante as possíveis ingerências quer de outros indiví-
duos quer do próprio Estado; os direitos políticos constituem aquele domí-
nio de interesses e preferências individuais que os levam a agregar-se com
outros indivíduos na trama social com vista a conformar a vontade polí-
tica. Neste sentido, a democracia caracteriza-se como o processo que per-
mite alcançar compromissos entre os diferentes interesses e que garante
que as decisões sejam justas enquanto baseadas em direitos fundamentais.
Decorre destas premissas que o processo político é uma luta por posições
de poder entre actores que se comportam estrategicamente; os eleitores,
através do voto, expressam as suas preferências, e o conjunto total dos
votos determina o interesse geral prevalecente, que deve ser exercido
pelos representantes a quem foi outorgado esse poder: é verdade que o
poder procede do povo, mas foi delegado, através dos votos, a represen-
tantes a quem é confiado temporariamente o exercício do poder político;
por sua vez, compete à formação democrática da opinião pública a finali-
dade de legitimar esse exercício.
Ao invés, o modelo republicano de democracia assenta numa
concepção de sociedade entendida como comunidade política de cidadãos
livres e iguais. A cidadania coexiste com o ideal de pertença a essa comu-
nidade, donde decorrem os direitos de participação política, e não apenas,
como no modelo liberal, de protecção perante ingerências alheias;
note-se que o processo político já não se circunscreve aqui a uma função
de mediação entre Sociedade e Estado, mas de constituição da própria
comunidade política; e a política é o meio pelo qual os cidadãos se
tornam simultaneamente conscientes da sua dependência mútua e do
estabelecimento de relações recíprocas, não se orientando apenas para a
competência mas para o diálogo e o entendimento. Neste sentido, é
verdade que o poder reside no povo, mas não é delegável: são os pró-
prios cidadãos quem exerce o poder (auto-governo), num processo
que tem por finalidade um acordo com vista a desenvolver formas
de “vida boa” — adoptando uma expressão aristotélica —, no sentido da
democracia radical; decorre também, neste modelo, que a formação da
opinião e da vontade política se configura de um modo deliberativo na
base de um entendimento ético-político, isto é, com base em consensos
156 Manual de Filosofia Política

que advêm de uma cultura e tradição comuns dos membros dessa comu-
nidade.
Habermas, e em geral os teóricos da democracia deliberativa, con-
frontam dois modos de tomadas de decisões, patentes no liberalismo e no
republicanismo. Por um lado, temos a agregação de preferências como a
soma dos diferentes interesses; por outro, a deliberação como debate
acercas de diferentes posições, até chegar a um acordo susceptível de ser
compartilhado por todos. Neste contexto, se é verdade que Habermas se
situa entre liberalismo e republicanismo, aproxima-se mais deste último,
mas dele se afasta, “pelo estreitamento ético a que são submetidos
os discursos políticos” (Habermas, 1996: 238), circunscritos a questões
de identidade colectiva pela identificação republicana entre sociedade e
comunidade política, que Habermas, como veremos, não compartilha.

2.3. A legitimidade mediante o procedimentalismo

Quando se faz do conceito procedimental da política deliberativa o


cerne normativamente consistente da teoria sobre a democracia, resultam
daí diferenças, como Habermas mostra em Factidade e Validez, quer em
relação à concepção republicana do Estado, como uma comunidade ética,
quer em relação à concepção liberal do Estado, como defensor de uma
sociedade económica. Segundo a concepção liberal, esse processo efectua-
se na forma de compromissos entre interesses, cujas regras de formação e
acordos se erigem através da composição representativa dos órgãos parla-
mentares, do modo de decisão, etc., fundando-se em última instância a
partir dos direitos fundamentais liberais. Segundo a concepção republi-
cana, por outro lado, a formação democrática da vontade efectua-se sob
forma de um auto-entendimento ético-político; neste caso, a deliberação
apoia-se, quanto ao conteúdo, num consenso no fundo inculcado pela pró-
pria cultura, cuja pré-compreensão sócio-integradora pode renovar-se
mediante a rememoração ritualizada de um acto republicano fundacional
(Habermas, 1992: 372).
À teoria do discurso, que enforma o processo democrático com
dimensões normativas mais fortes que o modelo liberal, mas mais débeis
que o modelo republicano, associa elementos de ambas as partes e arti-
cula-os de uma maneira nova: em concordância com o republicanismo,
confere uma posição central ao processo de formação da opinião e da von-
Democracia deliberativa 157

tade políticas, sem, no entanto, entender a constituição própria do Estado


de direito como algo secundário; mais que isso, a teoria do discurso con-
cebe os direitos fundamentais e princípios do Estado de direito como uma
resposta consequente à questão sobre como institucionalizar as exigentes
formas de comunicação do procedimento democrático (Habermas, 1992:
374). Deste modo, “segundo esta concepção, a razão prática retrai-se dos
direitos humanos universais, em que insiste o liberalismo, ou da eticidade
concreta de uma determinada comunidade, em que insiste o republica-
nismo, para firmar-se nas regras de discurso e nas formas de argumenta-
ção que tomam o seu conteúdo normativo da base de validez da acção
orientada ao entendimento e, em última instância, da estrutura da comuni-
cação linguística e da ordem insubstituível de uma socialização por meio
da comunicação” (Habermas, 1992: 372-373).
A teoria do discurso não condiciona o sucesso da política delibera-
tiva à existência de um conjunto de cidadãos capazes de acção colectiva,
mas da institucionalização dos procedimentos e das condições apropriadas
à comunicação, assim como da interacção de deliberações institucionali-
zadas e das opiniões públicas que informalmente se desenvolveram. Esta
concepção de democracia já não pode operar com o conceito de um todo
social centrado no Estado, concebido como um macro-sujeito que actua
em função de um objectivo preciso; nem tão pouco representa a totalidade
social sob a forma de um sistema de normas constitucionais que a regu-
lam, na ausência de uma instância consciente — conforme ao modelo do
mercado —, o equilíbrio dos poderes e dos interesses.
A teoria do discurso afasta as figuras de pensamento da filosofia da
consciência, que nos sugerem, ou imputar a prática da autodeterminação
dos cidadãos a um sujeito social global, ou referir a dominação anónima
das leis aos sujeitos individuais concorrentes entre si. No primeiro caso, os
cidadãos são considerados como um único actor colectivo, reflexo do con-
junto e actuando em seu nome; no segundo, os diferentes actores funcio-
nam como variáveis dependentes no interior dos processos de poder que
se efectuam cegamente; com efeito, para além das escolhas individuais,
pode, certamente, haver aí decisões associadas, mas não decisões colecti-
vas que sejam tomadas de maneira consciente (Habermas, 1992: 3774-375).
À teoria do discurso conta, portanto, com a intersubjectividade superior de
entendimento mútuo que se realizam através de processos democráticos ou
na rede comunicacional dos espaços públicos políticos; tais comunicações,
não atribuíveis a nenhum sujeito global, internas e externas às corporações
158 Manual de Filosofia Política

políticas e programadas para tomar decisões, que se produzem dentro e


fora do complexo parlamentar e dos seus órgãos constituídos para adoptar
resoluções, constituem as arenas nas quais se pode desenvolver uma
formação mais racional da opinião e da vontade acerca de assuntos rele-
vantes para a sociedade no seu conjunto e que convém regulamentar.
O fluxo de comunicação entre a formação da opinião pública, os
resultados eleitorais institucionalizados e as resoluções legislativas, têm
por fim garantir que a influência produzida no espaço da opinião pública
e do poder gerado por via comunicativa se transformem em poder aplicá-
vel administrativamente. Como no modelo liberal, respeitam-se os limites
entre Estado e sociedade; aqui, porém, a sociedade civil, como base social
dos espaços públicos autónomos, distingue-se tanto do sistema econó-
mico como da administração pública. “Desta compreensão de democracia,
segue-se a exigência normativa de um deslocamento do centro de gravi-
dade que se aplica a cada um dos elementos na relação desses três recur-
sos, a saber, o dinheiro, o poder administrativo e a solidariedade, com os
quais as sociedades modernas satisfazem a sua necessidade de integração
e a sua necessidade de regulação e controlo. As implicações normativas
são evidentes: a força de integração social inerente à solidariedade, que já
não pode extrair-se somente da fonte que representa a acção comunicativa,
é reclamada a expandir-se através dos espaços públicos autónomos ampla-
mente abertos e dos processos de formação democrática da opinião e da
vontade, institucionalizados em termos de Estado de direito; e através do
meio que representa o direito, deve poder afirmar-se também contra os
outros dois mecanismos de integração da sociedade, que são o dinheiro e
o poder administrativo” (Habermas, 1992: 375-376).

2.4. A “co-originalidade” entre as esferas privada e pública

Sobre a questão entre a primazia da autonomia privada (direitos indi-


viduais fundamentais) e o predomínio da autonomia pública (soberania
popular), ela revela-se uma questão superável, atendendo ao seu carácter
bifronte, que exige a realização simultânea e complementar dessas auto-
nomias, “que, consideradas normativamente, são co-originais e se pres-
supõem mutuamente porque uma permanece incompleta sem a outra”
(Habermas, 1992: 392): se é verdade que a garantia da participação alar-
gada dos cidadãos no processo político depende da institucionalização de
Democracia deliberativa 159

determinados direitos e de garantias fundamentais, é verdade também que


é o próprio exercício do discurso público, igual e livre, que permite a efec-
tiva realização dos direitos fundamentais que as sociedades adoptam.
No que concerne ao alcance da deliberação, Habermas sustém que
deve estender-se a todos os assuntos que possam regular-se no sentido de
um igual interesse de todos, ainda que isso não signifique uma equipara-
ção com a clássica separação entre esfera pública e privada. As teorias
liberais desconfiam deste tipo de posições, pois temem que se debilite a
protecção jurídica da esfera privada; quer dizer, consideram que, podendo
ser debatidas politicamente todas as questões, haverá uma invasão da
esfera de liberdade individual que constitui um dos seus princípios bási-
cos. Habermas replica a isto que a separação entre a esfera do privado
e do público não está estabelecida per se, mas é sempre construída, e
nessa medida, é susceptível de ser tratada publicamente; portanto, o que é
público e o que é privado pode também ser objecto de debate: “delimitar
entre um âmbito de prossecuções dos próprios interesses em termos de
autonomia privada, e uma esfera pública da “realização do bem comum”,
não é algo que possa efectuar-se de uma vez por todas, como tão pouco
pode delimitar de uma vez por todas o âmbito da intimidade dentro dessa
esfera diferenciada em termos de direito privado. O traçado de tais limites
que é tão difícil de realizar, como mostra o debate sobre a pornografia,
aá-de poder ser objecto de discussões políticas” (Habermas, 1992: 392).
Assim, qualquer decisão política deve vir precedida pela discussão
pública; mas falar sobre algo não significa necessariamente a sua regu-
lação. O importante é que no debate não existam restrições temáticas
estabelecidas a priori que minem a autonomia pública. Os participantes na
deliberação serão os encarregados em decidir quando e como o exercício
da autonomia pública socava a autonomia privada; nesse caso, estabelecer-
-se-á que um determinado assunto não deve ser regulado. Assim, tanto
Habermas como Cohen se opõem a qualquer tipo de hierarquização entre
Hberdades dos antigos e liberdade dos modernos: direitos políticos e direi-
tos fundamentais não concorrem entre si mas promovem-se mutuamente,
Dois “são idênticas as condições constitutivas de uma prática de formação
giscursivo-pública da opinião e da vontade que se restringe a si mesma”
Habermas, 1989: 589-619).
Com efeito, a história da humanidade — com o seu perpétuo tecer e
destecer de prévios consensos rompidos pelo dissenso e restaurados logo
zoutras bases distintas, para voltarem a ser fendidos por outras dissenções
160 Manual de Filosofia Política

— assemelha-se um tanto à descrição da história da ciência apresentada por


Thomas Kuhn, com a sua característica alternância de períodos de “ciên-
cia normal” e de “revoluções científicas” (Rocha, 2001: 7-8). Pode tam-
bém dizer-se que Habermas pretende a condição de universalidade para
este sistema de direitos, sem contudo afirmar um conjunto pré-estabele-
cido de direitos naturais. O sistema de direitos deve ser desenvolvido de
forma politicamente autónoma pelos cidadãos no contexto de suas pró-
prias e particulares tradições e história; os direitos que garantem a autono-
mia pública, como aqueles que defendem a autonomia privada, devem
assumir a forma de liberdades individuais do sujeito. Isto significa que
compete aos próprios cidadãos a escolha sobre o exercício de sua liber-
dade comunicativa. Neste ponto, note-se que a juridicização da liber-
dade comunicativa pode manifestar-se desde que a liberdade legal esteja
garantida não apenas pela lei, mas tenha emergido das suas fontes e sob o
seu controlo; em suma, que esteja condicionada por processos de forma-
ção racional da opinião pública e da vontade no seio da esfera pública
autónoma.

2.5. Do mercado ao fórum

Importa delimitar cuidadosamente as distintas esferas do espaço


público, que, na fórmula de Elster, são o mercado e o fórum, e as distintas
modalidades de acção política, que envolvem a negociação, a deliberação,
a decisão (Elster, 1986). Com Habermas almeja-se o ideal de comunicação
não distorcida, porque é aí onde desponta o projecto de recuperação da
legitimidade democrática; democracia é essencialmente isso: comuni-
cação não distorcida com vista à deliberação; todavia, encontramos uma
análise das condições discursivas da legitimidade democrática e, por con-
traste, dos imensos obstáculos que bloqueiam o avanço da democracia
numa sociedade mediática e mediatizada pelas distintas formas de poder
ilegítimo. Habermas retoma alguns temas da tradição republicana, em
especial a ideia de uma cidadania participativa e empenhada na busca coo-
perativa da verdade. “A teoria discursiva, que associa ao processo demo-
crático conotações normativas mais fortes que o modelo liberal, mas mais
débeis que o modelo republicano, toma por isso elementos de ambos para-
digmas e articula-os de uma maneira distinta. Em concordância com o
republicanismo, a teoria discursiva coloca o processo de formação da von-
Democracia deliberativa 161

tade e da opinião políticas no ponto central, mas sem entender como algo
secundário a constituição em termos de Estado de direito; mais ainda, con-
cebe os direitos fundamentais e os princípios do Estado de direito como
uma resposta consequente à questão sobre como podem ser institucionali-
zados os exigentes pressupostos comunicativos do procedimento demo-
crático” (Habermas, 1996: 95-96).
Deste modo, o ideal democrático habermasiano orienta-se no sen-
tido de uma conversação irrestrita entre cidadãos livres e iguais, em con-
dições de igualdade entre os intervenientes e em que a legitimidade brota
da autoridade do melhor argumento. A hipótese assenta numa pragmática
da linguagem, que potencia recursos para superar formas de dominação
e de coerção. diferentemente do comunitarismo, cujo horizonte prévio
carece do horizonte hermenêutico da comunidade, e de Rawls, para quem
é a preexistência de uma cultura compartilhada que permite o exercício
da capacidade crítica dos cidadãos. Ora, para Habermas, não se remete
para referências externas que legitimem as decisões democráticas, mas
tão-somente para um meio plural que torne possível as vias discursivas
que permitam a deliberação; e. se é verdade que esta posição se inscreve
na senda kantiana, que distingue a ética da moral, é nesta última que
radicam as exigências discursivas básicas que levam ao entendimento
intersubjectivo, cuja validez, ao invés dos comunitaristas, é susceptível
de alcance universal. E, se a polémica com Rawls pouco se afasta de uma
“disputa de família” (Vallespín, in Habermas/Rawls, 1996: 1iss.)10,
todavia Habermas afasta-se dessa perspectiva nomológica, não dialógica,
do liberalismo político, que parte do construto mental privado ilustrado
pela “posição original” orientadora de cada um dos cidadãos. Habermas,
afastando-se da pertinência da consciência subjectiva como via esclare-
cedora, denegada hoje pela linguística, atribui maximamente ênfase à
intersubjectividade, que se desenvolve mediante o diálogo e a permuta
de razões.

10 Quer Habermas quer Rawls inscrevem-se na tradição contratualista e o escopo


subjacente gravita sempre em torno das possibilidades de acordo quanto aos fundamentos
da associação política. De igual modo, ambos compartilham uma concepção de justiça de
carácter procedimental que se torna possível em condições de pluralismo social: neste
ponto. Rawils insiste mais na prioridade da justiça sobre as concepções privadas de bem,
enquanto Habermas se orienta por uma eminentemente via procedimental (e não substan-
tiva) de democracia (Greppi, 2005: 100).
162 Manual de Filosofia Política

É verdade que, no enfoque rawlsiano, os cidadãos das democracias


liberais são pessoas racionais e razoáveis (Rawls, 1993: 7Iss.): racionais,
porque são capazes de aferir uma concepção de bem; razoáveis, porque
estão dotadas de um sentido da justiça; além disso, essas pessoas reconhe-
cem as dificuldades de juízo, quer dizer, os limites da razão (Idem, 76ss.),
indispensável para uma cooperação no quadro do pluralismo ideológico.
No entanto, para Habermas, as condições de democracia deliberativa são
mais amplas e ambiciosas: referem-se às pretensões implicadas na comu-
nicação humana nas sociedades plurais modernas.
A problemática das condições de possibilidade da democracia deli-
berativa pode ser quase empírica (Rawls) ou quase transcendental (Haber-
mas). Se o ponto de partida é que as democracias modernas funcionam,
trata de saber-se quais são as condições de possibilidade do exercício da
razão num espaço público com vista ao estabelecimento e extensão da
democracia deliberativa. Do mesmo modo que a partir do funcionamento
da língua se pode reconstruir uma competência gramatical universal, como
o fez Chomsky, pode-se, a partir do funcionamento da discussão delibera-
tiva, reconstruir as pretensões inevitáveis à validade aí implícitas; ora estas
pretensões pressupõem, por sua vez, competências cognitivas, teóricas
e práticas, que tornam operativas as virtualidades comunicacionais no
espaço público (Berten, 2001: 114).
A concepção de democracia deliberativa que Habermas defende está
centrada principalmente no processo de formação da opinião e da vontade
política, diferentemente da posição de outros (Cohen, 1989), centrada
sobretudo no processo de decisão. Segundo o Filósofo da Escola de Frank-
furt, na política combinam-se três diferentes dimensões. Primeiramente, a
pragmática, que se refere à necessidade de encontrar os meios mais ade-
quados para alcançar determinados fins, buscando portanto os mecanis-
mos de negociação e de compromisso não só sobre os fins mas sobre o
modo de os alcançar; a eficácia é o critério que predomina: trata-se de
encontrar a solução mais racional para o problema em questão. Depois, a
dimensão ética, que tem a ver com a ideia de bem e da correspondente
“vida boa” que a comunidade prossegue; o objecto em análise é acerca da
adequação de determinada medida política com o bem comum. Por fim,
uma dimensão moral, cujo âmbito de avaliação é a justiça, isto é, a equi-
dade na regulação das relações entre pessoas e na tomada de decisões;
trata-se, pois, de inquirir acerca da imparcialidade de diferentes propostas
políticas e da justificação moral das várias soluções. Em suma, a delibera-
Democracia deliberativa 163

ção deve desenvolver-se atendendo às distintas formas da comunicação


através das quais se forma a vontade comum: escolha racional dos meios
por relação aos fins, compromissos e equilíbrio entre vários interesses,
exigências éticas e justificações morais.
A inclusão na deliberação destas três dimensões constitui um dos
principais pontos de diferença entre Rawls e Habermas. Durante a década
de 90, ambos os autores mantiveram um interessante debate, no âmbito da
filosofia política: se Rawls também elabora um modelo deliberativo de
democracia baseado no uso público da razão, em que as decisões políticas
estão baseadas em razões que todos os participantes possam aceitar, toda-
via considera que, na deliberação, as únicas razões aceitáveis são as que se
referem aos princípios da justiça, devendo ficar de fora do debate qual-
quer consideração relativa à ideia do bem; deste modo, as questões éticas
não fazem parte de uma deliberação circunscrita à dimensão moral.

2.6. Circulação social do poder político

Com Habermas, sociedade e sistema político permitem actuações


diversificadas: a sociedade não se identifica com a comunidade política
republicana e a democracia radical pressupõe a prática do auto-governo
por parte do conjunto dos cidadãos. Habermas conjuga ambos os princí-
pios estabelecendo uma dupla via para a formação democrática da opinião
e da vontade política: uma via formal, que se corresponde com o sistema
político — a esfera institucional —, e uma via informal que se cultiva na
sociedade — a esfera pública (intuição que lhe veio de Hannah Arendt) —
que se desenvolve auscultando e elucidando problemas e necessidades
sociais: aí, o labor está em perceber, identificar, articular e transmitir à
esfera institucional as questões que afectam os cidadãos na sua vida
quotidiana e que requerem uma solução colectiva, portanto política.
À esfera institucional, por seu turno, compete tomar decisões polí-
ticas, que Habermas equipara a um contexto de justificação, enquanto
deve recolher o testemunho da esfera pública e dar razões da selecção
feita desses problemas e das decisões tomadas entre propostas de solu-
ção alternativas. Esta diferenciação de esferas e de funções faz que
Habermas, ao invés de Cohen, centre a deliberação no processo de for-
mação da vontade política e não directamente na tomada de decisões
(Sancho, 2003: 222-223).
164 Manual de Filosofia Política

No que se refere à esfera institucional, Habermas recolhe o proce-


dimento deliberativo ideal de Cohen: quando o processo de tomada de
decisões satisfaz as características de raciocínio público, de liberdade, de
igualdade e da busca de consenso, os resultados são legítimos. O acordo a
que se chega com a deliberação não é um compromisso entre preferências
diversas e preexistentes à deliberação nem tão pouco o resultado de uns
valores e de uma tradição comum compartilhada; ao invés, é um consenso
construído durante o processo em que se debatem razões e argumentos; e
o resultado dessa deliberação é o bem comum, isto é, representa aquilo que
colectivamente é considerado bom para todos.
Assim, qualquer tomada de decisões implica uma resolução e por
isso é necessário estabelecer um limite no tempo que ponha termo à deli-
beração e permita dar o passo para a realização prática; se não se conse-
guiu um acordo, a fórmula maioritária será válida para tomar uma decisão.
À importância em institucionalizar um procedimento para a tomada de
decisões está em que permite introduzir no debate público o elemento dis-
cursivo; nesta via formal, Habermas segue o modelo de Cohen e circuns-
creve a sua aplicação às instituições encarregadas de tomar as decisões
políticas, nas quais os cidadãos não participam directamente.
Importa, contudo, analisar o papel que a sociedade civil desempenha
neste processo. O paradigma que se configura denomina-se de modo ade-
quado de política deliberativa, pois não só se assumem os processos de
formação discursiva da vontade comum, mas o próprio processo se cons-
titui como uma rede de discursos e negociações, que vão desde discursos
pragmáticos (como alcançar o que queremos), discursos éticos-políticos (o
que queremos ser colectivamente), negociações e compromissos (acordos
entre interesses particulares), discursos morais (estabelecendo os critérios
de validez dos demais discursos) e discursos jurídicos (vertendo em leis os
resultados da formação discursiva da vontade política), onde a pertinência
da exigência moral de universalidade se faz dialogicamente, na óptica do
que é “bom para todos”, sobre o que é correcto ou justo, e não de modo
individual ou separado (Habermas, 1992: 225ss.).
Um dos requisitos da democracia deliberativa é que as razões apre-
sentadas neste processo devem ser acessíveis a todos os cidadãos interes-
sados; para justificar uma imposição sobre a sua vontade, os seus conci-
dadãos devem apresentar razões que sejam compreensíveis: tal tipo de
reciprocidade significa que as razões devem ser públicas. Uma justifica-
ção deliberativa nem sequer se inicia se aqueles a quem se dirige não esti-
Democracia deliberativa 165

verem em condições de entender o seu conteúdo essencial. Assim, a demo-


cracia deliberativa define-se como uma forma de governo através da qual
os cidadãos livres e iguais (e os respectivos representantes) justificam
decisões através de um processo em que trocam razões que sejam mutua-
mente aceitáveis e geralmente acessíveis, com o objectivo de chegar a con-
clusões que sejam vinculativas para todos os cidadãos, mas que estejam
abertas a reavaliação futura (Gutmann/Thompson, 2004: 6-7); com isto se
manifesta o carácter procedimental da democracia deliberativa ou da polí-
tica deliberativa, dando lugar à pluralidade e diferenças existentes nas
sociedades complexas e, ao mesmo tempo, reconhecendo a legitimidade
do processo de formação colectiva da vontade no âmbito dos espaços
informais, isto é, da periferia por relação a um centro político estatal orga-
nizado.
Portanto, a garantia de racionalidade das decisões tomadas funda-se
no processo discursivo, a partir do exercício da razão prática, e com base
num procedimento deliberativo democrático, realizado entre pessoas
livres e iguais, e dentro de regras — também elas mesmas “construídas” —,
em que é assegurada a maior amplitude possível de debate. Convergem,
então, quer a importância da liberdade e da igualdade de oportunidade
na participação no debate como pressupostos de um discurso legítimo
(Habermas), quer o imperativo de cunho liberal relativo à observância dos
direitos fundamentais (Rawls), quer a limitação substantiva do resultado
obtido pelo processo político democrático (Cohen).
Se com Rawls se busca um ponto de equilíbrio estável num mundo
caracterizado pela irreconciliável disparidade de crenças e valores, os
comunitaristas e os neo-republicanos posicionam-se a partir das raízes éti-
cas de uma cultura cívica democrática. Habermas esforça-se por encontrar
os esteios não contaminados de comunicação entre as instituições — eco-
nómicas, políticas e culturais — e um espaço informal de comunicação
irrestrita, em que se inscreve a experiência quotidiana dos cidadãos, tendo
em conta as peculiares condições culturais de uma dada sociedade; por
outras palavras, trata-se de perscrutar as brechas que hodiernamente se
abrem entre a política formal e os processos comunicativos básicos donde
emergem a opinião e vontade política (Greppi, 2005: 95).
Para ilustrar esse modelo de circulação do poder, Habermas recorre
ao símile de Bernard Peters (1992: 434ss.), em que os processos de comu-
nicação e de decisão do sistema político se ordenam no sentido de um
eixo centro-periferia, conforme à metáfora de um “sistema de comportas”,
166 Manual de Filosofia Política

segundo duas formas de tratar os problemas (uma ordinária e outra


extraordinária). No âmbito medular do sistema político estão instituições
bem conhecidas, v.g., a administração (incluindo o governo), a justiça, ins-
tituições de formação democrática da opinião e da vontade (organismos
parlamentares, eleições, emulação entre partidos, etc.). Este centro distin-
gue-se de uma periferia ramificada, ao mesmo tempo em função da sua
competência formal em tomar decisões e em função das suas prerrogativas
efectivas, estruturado de maneira “poliárquica”. No entanto, no interior
deste âmbito nuclear, a “capacidade de agir” varia com a “densidade”
da complexidade organizacional. O sistema parlamentar é o que mais
amplamente colhe a percepção e a formulação dos problemas sociais;
porém, o preço desta sensibilidade é uma capacidade mais reduzida em
tratar os problemas em comparação com o sistema administrativo. Nas
margens da administração, forma-se uma espécie de periferia interna de
diversas instituições dotadas de direitos de auto-gestão ou de funções de
controlo ou de competências delegadas pelo Estado (universidades, siste-
mas de segurança social, representações corporativas, câmaras de comér-
cio, associações de beneficência, fundações, etc.). O centro, no seu con-
Junto, dispõe de uma periferia externa, que se divide, simplificando, em
“consumidores” e “fornecedores” (1992: 434-435).

2.7. Fluxos e refluxos do poder

A dialéctica entre periferia externa e periferia interna permite


ilustrar a ideia de uma circulação de poder, vital e móvel, a qual possibi-
lita um fluxo e refluxo permanente entre sociedade civil e Estado e uma
reconversão por uma dupla via entre o poder comunicativo e o poder
administrativo da sociedade. No entanto, tudo isto supõe uma redefinição
da sociedade civil, da opinião pública e do poder comunicativo, com vista
a interpretar integralmente as estruturas internas da esfera pública numa
sociedade complexa.
À esfera institucional compete tomar as decisões políticas a partir de
problemas identificados e transmitidos pela esfera pública; é nesta que se
constitui a opinião pública, que é, como tal, um espaço social, civil, não
político. À ideia de uma esfera social como espaço situado entre o público
e o privado é plenamente moderna; o pensamento clássico é alheio à dife-
renciação entre Estado e Sociedade, unificados pela noção de comunidade
Democracia deliberativa 167

política. Nesta tradição, convém salientar os ensinamentos que já vêm de


Hegel, Tocqueville e Arendt.
Hegel é considerado o teórico mais representativo da sociedade civil,
pois é o primeiro que teoriza a relação entre Estado (sociedade política) e
sociedade civil: esta, como espaço de mediação entre a esfera pública
(o universal) e a esfera privada (o particular), é o âmbito da integração
social na qual Hegel busca reconciliar a liberdade positiva dos antigos e a
liberdade negativa dos modernos. Tocqueville, por seu lado, encontra nas
associações da nascente democracia americana a forma de fazer frente
às tendências despóticas de um governo centralizado e burocratizado; as
associações secundárias (tanto civis como políticas) constituem corpos
intermédios que permitem a descentralização do poder político, alargando
o espaço de participação cidadã. No extremo contrário, está Hannah
Arendt, quem, remontando no tempo e olhando para a Grécia clássica, fir-
mado no pensamento aristotélico, sustém uma outra visão da esfera social:
uma esfera híbrida do público e do privado em que interesses e activida-
des privadas assumem papéis públicos, ao mesmo tempo que instituições
públicas assumem funções propriamente domésticas; o desenvolvimento
da esfera social fez desaparecer o sentido clássico da esfera privada e
sobretudo dessa esfera pública que tanto admira e que nas repúblicas anti-
gas era o espaço da liberdade política e da igualdade, da virtude e da “vida
boa” (Sancho, 2003: 224ss.).
À esfera pública habermasiana — diferente da esfera institucional —
não está regulada por procedimentos mas configura-se como uma rede
com limites flexíveis, abertos e porosos, onde se comunicam e formam
ideias, opiniões, atitudes e discursos, sobre diferentes temas que preo-
cupam os indivíduos e que os afectam na sua vida privada. É um espaço
linguisticamente constituído e compartilhado intersubjectivamente, que se
amplia e se vai generalizando, desde as interacções mais simples, donde
surge, até âmbitos mais generalizados; nessa ampliação, os processos de
formação da opinião desprendem-se da presença física das pessoas, dos
contextos de interacção e da obrigação em actuar (que fica reservada às
instituições).
Nesta ambiência compartilhada da opinião pública, onde se veiculam
informações e razões, vão-se elaborando os vários temas que se convertem
em opiniões focalizadas em torno de questões e aspectos concretos; toda-
via, O que outorga a estas opiniões o carácter de opinião pública é a forma
como se produzem: o que é verdadeiramente relevante para a estruturação
168 Manual de Filosofia Política

da opinião pública são as regras de uma prática de comunicação pública


mantida e seguida em comum, o assentimento a temas e contribuições só
se forma como resultado de uma controvérsia mais ou menos exaustiva em
que as propostas, as informações e as razões podem elaborar-se de formas
mais ou menos racionais. É de notar que esta concepção de opinião pública
se alheia da representatividade estatística das sondagens de opinião como
agregação de preferências individuais; as sondagens não são opinião
pública, pelo simples facto de serem matéria para reflexão ou decisão
relevante politicamente; as sondagens unicamente podem ser reflexo da
opinião pública, e somente quando são antecedidas de debate e da refle-
xão, que culminará na formação dessa opinião já vinculada a um tema
específico.
A opinião pública elaborada de forma discursiva não toma decisões,
mas influi no poder e controla o seu exercício: esse é o âmbito da esfera
pública, que vai para além de percepcionar e dar voz aos problemas dos
cidadãos; mais propriamente, a deliberação democrática exige que esse
espaço público não só identifique e perceba os problemas, mas os elabore
e reinterprete de forma convincente, gerando então influência na esfera
institucional; por isso, o processo de formação da opinião e da vontade é
mais que legitimação do poder, mas menos que a constituição da comuni-
dade política. Cohen, na sua proposta de participação directa dos cidadãos,
afasta-se desta interpretação da democracia radical como mera influência
sobre o poder. A concepção de democracia deliberativa exige que a ins-
tância parlamentar se complemente na esfera pública, que tem na socie-
dade civil a sua base social; ademais, Habermas insiste em que o Estado
democrático não se esgota no seu ordenamento jurídico, e uma das provas
disso está na sua posição sobre a desobediência civil.

11 Habermas é, neste assunto. tributário da posição de Agnes Heller. bem como das
orientações de John Rawis, Ronald Dworkin ou Peter Singer. ao tipificar essas acções deli-
tivas em que, não rejeitando em bloco o ordenamento constitucional, o infractor da norma
prescinde da violência, motivado por razões político-morais; tais dissidências, mover-
-se-ão num incerto umbral situado entre a legalidade rejeitada e a legalidade reivindicada:
tais actos de transgressão simbólica e não violenta das normas, compreendem-se, segundo
Habermas, como expressão do protesto contra decisões vinculativas e que, apesar da sua
génese, são, segundo os actores. ilegítimas, à luz dos princípios constitucionais (1992:
464); além disso, adoptando-se uma visão não essencialista da constituição, a desobe-
diência civil apoia-se “numa compreensão dinâmica da Constituição como um projecto
inacabado. Vista a longo prazo, o Estado de direito democrático não se apresenta como
Democracia deliberativa 169

A base organizativa da esfera pública é, pois, a sociedade civil; dife-


rentemente da visão liberal, que vê a sociedade como um conglomerado de
indivíduos, ou da marxista, que a vê como expressão superstrutural da
base económica, agora, mais próximo mas indo além de Hegel, interpreta-
se a sociedade civil como constituída pelas associações, organizações e
movimentos que emergem mais ou menos espontaneamente e, atentos à
ressonância dos problemas sociais nas esferas da vida privada, geram e
transmitem essas reacções de uma maneira amplificada na esfera pública.
O seu núcleo institucional não é estatal nem económico, mas é formado
“por esse enredo de associações não-estatais e não-económicas, de base
voluntária, que fundeia as estruturas comunicativas da opinião pública na
componente do mundo da vida, que (com a cultura e a personalidade), é
a sociedade. A sociedade civil compõe-se dessas associações, organiza-
ções e movimentos, surgidos de forma mais ou menos espontânea, cujo
núcleo institucionaliza os discursos que permitem solucionar problemas
que se referem a questões de interesse geral, no marco dos espaços públi-
cos mais ou menos organizados” (Habermas, 1992: 447). Além disso, essa
acepção de sociedade civil rompe também com a dicotomia entre demo-
cracia representativa e democracia directa.
A existência institucional da sociedade civil fica garantida quando
coexiste esse conjunto de características que a tornam autónoma por rela-
ção ao Estado, à economia e a outros subsistemas funcionais sociais, mas
em que essa mesma sociedade civil está imbricada em âmbitos privados
básicos do “mundo da vida”, que Habermas toma de Cohen e Arato:
“A pluralidade: famílias, grupos informais e associações voluntárias cuja
pluralidade e autonomia permitem uma variedade de formas de vida; a
publicidade: instituições da cultura e da comunicação; a privacidade: um
domínio reservado ao desenvolvimento individual e à escolha moral indi-
vidual; enfim, a legalidade: estruturas de leis gerais e direitos básicos
necessários para delimitar a pluralidade, a privacidade e a publicidade,
pelo menos por relação com o Estado e, tendencialmente, também por
relação à economia. Todas juntas, estas estruturas asseguram a existência

uma imagem acabada, mas como um empresa frágil. delicada, e sobretudo falível e
carecida de revisão” (1992: 465-466): então, tais actores poderão ser um género de
activos colaboradores do sistema constitucional. enquanto actuariam na sua defesa, dado
que normas legais. decisões governamentais e actos jurisdicionais poderão infringir os
mandatos constitucionais.
170 Manual de Filosofia Política

institucional de uma sociedade civil moderna e diferenciada” (Cohen/


/Arato, apud Habermas, 1992: 448). A sociedade civil actua, pois,
segundo uma dupla direcção: exerce influência no sistema político, espe-
cialmente na tomada de decisões, e sobre si mesma, reflexivamente, por-
que molda e amplia a sua própria identidade e capacidade de acção.
Neste afã, a sociedade civil defronta-se ainda com um tipo de acto-
res provenientes de outros sistemas, que não surgem da esfera pública mas
que podem usurpar esse espaço, como o estatal (os partidos políticos) ou
o económico (grupos de interesse), que concorrem com a sociedade civil
para exercer influência na esfera institucional, e que, além disso, não se
empenhando na consolidação do espaço público, limitam-se a usá-lo (San-
cho, 2003: 226-228). Outrossim, a presença dos meios de comunicação
pode ocasionar distorções no espaço da opinião pública, na medida em que
seleccionam as mensagens, permitem ou denegam o acesso a temas e orga-
nizam a informação; em suma, apropriam-se das funções da sociedade
civil. Os meios de comunicação deveriam ser entendidos, segundo Haber-
mas, “como mandatários de um público ilustrado, cuja disponibilidade à
aprendizagem e capacidade de crítica pressupõem, invocam, e ao mesmo
tempo reforçam: tal como a justiça, deveriam preservar a sua independên-
cia relativamente aos actores políticos e sociais: deveriam fazer seus de
forma imparcial as preocupações, interesses e temas do público e, à luz
desses temas e contribuições, expor o processo político a uma crítica refor-
çada e a uma impulsão que os leve a legitimar-se; assim, é possível tentar
neutralizar a amplitude desses meios e a eficácia do poder administrativo
ou do poder social em exercer influência político-publicista (Habermas,
1992: 460).
Se estes são alguns dos escolhos, susceptíveis de superação pela
transposição dos problemas dos cidadãos na esfera pública, essa capa-
cidade de influência tem sido notória e eficaz em momentos específicos
de mobilização, alguns dos quais Habermas compraz-se em referenciar,
desde os movimentos estudantis, o feminismo, aos “novos movimentos
sociais”, como o ecologismo, a solidariedade com povos em situação de
pobreza à escala planetária, ou a capacidade activa de intervenção em prol
de uma outra globalização.
Democracia deliberativa 171

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SEGUNDA PARTE

PROBLEMAS
CAPÍTULO VII
Pobreza absoluta

DIANA MAIA*

Milhares de seres humanos vivem, hoje, em situação de pobreza


absoluta. Por pobreza absoluta podemos entender a situação de todos
aqueles que possuem menos do que quaisquer outros, seja qual for o refe-
rencial com que os comparemos, vendo-se assim privados dos mínimos
imprescindíveis para garantir a sobrevivência. Esta situação traduz-se em
realidades crónicas de subnutrição, analfabetismo. doença, elevada morta-
lidade infantil e baixa esperança de vida. Quando não conduz à morte, a
pobreza absoluta determina uma vida abaixo de qualquer limiar mínimo de
dignidade humana sendo causa de um sofrimento inimaginável. Sabendo
que muitos seres humanos vivem em situação de abundância absoluta!
algumas questões se levantam. Quais as implicações morais desta situa-
ção? Podemos ficar indiferentes perante este tipo de sofrimento? Esta
situação é evitável? Como? Temos alguma obrigação moral de contribuir
para minorar este sofrimento?
Para responder a estas questões apresentaremos os argumentos de
Peter Singer que considera, não só, que a pobreza absoluta é evitável como
também que nós, ao nada fazer para a diminuir, somos de certa forma res-
ponsáveis por ela, defendendo assim que a nossa ajuda é um dever e não
um acto superrogatório. Mostraremos também como este autor refuta

* Mestre em Filosofia pela Universidade do Minho.


| “Significa isto que têm mais rendimento do que aquele de que necessitam para
proverem adequadamente a todas as necessidades básicas da vida.”. (Singer. 2000: 242)
180 Manuul de Filosofia Política

alguns dos principais argumento que se apresentam à sua perspectiva.


Apresentaremos também as propostas de Thomas Pogge que considera a
desigualdade contemporânea, no que respeita à distribuição da riqueza,
uma consequência da ordem económica mundial e a sua proposta (Global
Resourses Divided) para a erradicação da pobreza. Será igualmente refe-
rida a proposta de uma justiça distributiva global defendida por Charles
Beitz, bem como a tese de Nigel Dower que relaciona a distribuição equi-
tativa de recursos mundiais com a noção de justiça social e parte do pres-
suposto de que a pobreza é resultado de uma injustiça activa.

A pobreza absoluta existe e é um mal. Temos ou não a obrigação


moral de contribuir para a eliminar? O filósofo australiano Peter Singer
diz-nos que essa obrigação existe. Como fundamenta a sua posição? Sin-
ger é um utilitarista e é sob esta perspectiva que responde ao problema.
Para Singer, uma decisão moral é boa quando as suas conseguências o são
e as consequências são boas quando maximizam o bem-estar de todos os
afectados por essa mesma decisão.
Independentemente da perspectiva ética que adoptemos é pacífico
aceitar que a existência da pobreza absoluta é um mal. Esta torna impos-
sível a realização de qualquer uma das potencialidades humanas. Os abso-
lutamente pobres esgotam a sua existência numa infrutífera e dolorosa luta
pela sobrevivência. Esta situação é uma das principais causas de morte
evitável e de extremo sofrimento. O que torna a pobreza absoluta um pro-
blema moral? O facto de ser causadora de um sofrimento imenso que
podia ser evitado. Logo, agir no sentido de a combater é uma obrigação.
As condições materiais para acabar com esta situação existem. A abun-
dância em que vivem os cidadãos dos países ricos é suficiente, desde que
convenientemente distribuída, para eliminar substancialmente esse sofri-
mento. Todos nós podemos ajudar e, se podemos, devemos. Se não o fizer-
mos somos responsáveis pelas mortes que não evitámos. Mas, como
podemos ser responsáveis pela morte daqueles que não matamos nem
desejamos que morressem? Não salvar alguém é moralmente equivalente
a matar? Para Peter Singer é. Desde que as consequências sejam as mes-
mas não há diferenças moralmente relevantes entre as minhas acções e as
minhas omissões. No entanto, normalmente, não pensamos assim. Consi-
Pobreza absoluta 181

deramos que matar é pior do que evitar uma morte. Podemos defender que
existem diferenças entre envenenar crianças na Somália e não contribuir
com alguma ajuda para a UNICEF. A motivação do agente é muito dife-
rente. O envenenador quer matar, o que não contribui para a ajuda inter-
nacional não. A maioria de nós não tem que fazer um grande esforço para
não matar pessoas, o mesmo não se verifica quando se trata de salvar
vidas. Salvar todas as vidas que dependem da minha ajuda até ao nível da
utilidade marginal (isto é, até ao ponto em que, se dermos mais, ficaremos
pior do que aqueles que ajudamos) exigir-me-ia um grande sacrifício e,
conscientes dessa diferença, normalmente consideramos que os que sal-
vam vidas são heróis mas não vemos nenhum acto de heroísmo no facto
de não matarmos as crianças inocentes que brincam no jardim da nossa
rua. Por outro lado, se eu envenenar crianças na Somália sou capaz de
identificar as minhas vítimas, o mesmo não acontece com aqueles que
optei por não ajudar num país distante. Posso também defender que não
sou causador directo das mortes causadas pela pobreza; se eu não existisse
a pobreza continuaria a existir. O mesmo não se pode dizer se eu decidir
matar alguém. Neste caso sei que a minha existência e os meus actos cau-
saram, de facto, dano. Peter Singer não nega que matar seja diferente de
deixar morrer tal como podemos constatar pelos exemplos apresentados,
contudo, considera estas diferenças extrínsecas e moralmente irrelevantes,
“são diferenças extrínsecas, isto é, diferenças normalmente associadas,
mas não necessariamente, à diferença entre matar e deixar morrer” (Sin-
ger, 2000:245). Para Singer o relevante é o modo como as minhas decisões
afectam os outros num quadro consequencialista de igualdade na conside-
ração dos interesses2. Argumentando a favor de um utilitarismo das prefe-
rências3, são boas as decisões que maximizem os interesses dos afectados

2 Singer refere-se à igualdade na consideração dos interesses da seguinte forma,


“Ao aceitar que os juízos éticos devem ser formulados de um ponto de vista universal,
estou a aceitar que os meus próprios interesses, só porque são os meus interesses pessoais,
não podem contar mais do que os interesses de qualquer outra pessoa. Assim, a minha
preocupação natural em defender os meus interesses tem de se alargar, quando penso
eticamente, aos interesses alheios.” (Singer, 2000:28-29)
3 Ao contrário do utilitarismo clássico, esta forma de utilitarismo, defendida por
Singer, considera a bondade de uma acção pelo contributo que as conseguências dão, não à
felicidade ou ao prazer, mas à maximização da satisfação dos interesses dos indivíduos,
com a condição que estes sejam imparcialmente considerados. Por interesse Singer
considera “aquilo que, ponderadas as alternativas e após reflexão sobre todos os factos, a
182 Manual de Filosofia Política

ora, deste ponto de vista, os interesses de uma pessoa em situação de


pobreza absoluta são igualmente afectados negativamente quer esta morra
porque lhe dei um tiro, quer ela morra porque não lhe prestei a assistência
que lhe salvaria vida e que eu lhe poderia dar. Em ambos os casos a con-
sequência é a mesma. O valor moral da decisão deve ser o mesmo. Assim,
as diferenças normalmente apontadas para explicar as nossas atitudes, não
são, para Peter Singer, suficientes para justificá-las.
Partindo destes pressupostos, Peter Singer fundamenta a obrigatorie-
dade moral de ajudar a combater a pobreza absoluta com o seguinte argu-
mento:

Primeira premissa: Se pudermos impedir que algum mal aconteça


sem sacrificar nada de importância moral comparável, devemos fazê-lo;
Segunda premissa: A pobreza absoluta é um mal;
Terceira premissa: Há alguma pobreza absoluta que podemos im-
pedir que aconteça sem ter que sacrificar nada de importância moral com-
parável;
Conclusão: Temos o dever de impedir alguma pobreza absoluta.
(Singer, 2000:252)

O argumento não é excessivamente exigente uma vez que não nos


obriga a eliminar toda a pobreza absoluta mas apenas aquela que poder-
mos combater sem que tenhamos que sacrificar algo de importância moral
comparável. Cabe a cada um de nós justificar o que considera ser de valor
moral comparável ao sofrimento causado pela pobreza absoluta. O pro-
blema é que, poucas coisas são moralmente comparáveis com o sofri-
mento e morte causados pela pobreza absoluta. Para levarmos até às últi-
mas consequências a primeira premissa teríamos, não só, que abdicar das
idas ao cinema, mas de quase tudo o resto que faz com que a nossa vida
seja mais do que a mera sobrevivência. A quantificação da parte da
pobreza que estamos dispostos a minorar é problemática, bem como a
definição daquilo de que estamos dispostos a abdicar em nome dessa obri-
gação moral. Se eu prescindir de um café por ano para contribuir para uma

pessoa prefere” (Singer, 2000:114). Estas preferências devem ser imparciais e universabili-
záveis, aquelas a que chegamos após informação completa e esforço de reflexão, rejeitando,
assim, as preferências irracionais baseadas em falsas informações ou crenças sem funda-
mento. Um acto que vai de encontro às preferências racionalmente esclarecidas de um indi-
víduo é um bem. a menos que esta preferência seja superada por preferências contrárias.
Pobreza absoluta 183

ONG, fiz algo para diminuir alguma pobreza, mas, posso considerar que
cumpri o meu dever moral? Para Singer este padrão é demasiado baixo,
mas, então, qual o nível que devemos defender? Singer concorda que qual-
quer número seria arbitrário “mas poderíamos propor uma percentagem
redonda do rendimento de cada um, como, digamos, 10% — mais do que
um donativo simbólico, mas não tão elevado que só esteja ao alcance dos
santos.” (Singer, 2000: 267).
Alguns podem considerar que o argumento de Singer implica que a
minha vida, ou pelo menos uma parte dela, se deve transformar num ins-
trumento ao serviço do bem-estar dos outros. Se aceitarmos como máxima
que nunca devemos usar os outros como meio para os nossos fins, porque
é que a minha vida se deve transformar num instrumento para benefício
dos outros? Para Colin McGinn, “não devemos usar-nos a nós próprios
como meios para os fins dos outros (...) não devo ver a minha vida ape-
nas como um meio para as outras pessoas aumentarem o seu bem-estar”
(McGinn, 1999:157). Para o autor, este é um pressuposto inevitável do
argumento de Singer na medida em que este defende que o meu dever é
abdicar de uma parte do meu bem-estar para aumentar o bem-estar dos
outros. Este princípio levaria a “uma renúncia à autonomia pessoal, ao
direito de viver a nossa vidas como nossa, desenvolvendo os nossos talen-
tos e potencialidades” (Ibidem), isto é, não só poria em causa o nosso
direito de propriedade em geral como, em particular, o nosso direito à pro-
priedade de nós próprios, fazendo com que, em nome da obrigação moral
de maximizar o bem-estar, eu tivesse que desistir de fazer filosofia, ou ler,
ou gastar dinheiro em férias, ou de colocar os meus filhos na universidade
para lhes garantir uma boa educação, aumentando o meu sofrimento para
diminuir o dos outros. Ainda que as nossas decisões sejam moralmente
condenáveis se prejudicarmos activamente alguém isso não implica que
tenhamos qualquer obrigação positiva de ajudar. Usando o exemplo de
McGinn, sei que doando os meus órgãos posso salvar a vida de seis pes-
soas, abdicando da minha. Sendo que seis vidas são um bem maior do
que só uma e o sofrimento das seis mortes que evitarei não é moralmente
comparável ao sofrimento da minha morte singular, com a minha
acção maximizarei o bem-estar. Agir deste modo é uma obrigação moral?
O princípio utilitarista que sustenta a maximização do bem-estar global
conduz inevitavelmente a níveis absurdos de sacrifício pessoal, o que, para
McGinn leva as pessoas, não a aumentar a sua ajuda, mas a deixar de aju-
dar, uma vez que a obediência a tal princípio as obrigaria, não só a sacri-
184 Manual de Filosofia Política

fícios demasiado exigentes como também a abdicar da sua vida colo-


cando-se ao serviço dos outros. Contudo, Singer não pretende com o seu
argumento sacrificar até ao limite o bem-estar de cada um para maximizar
o bem-estar geral da humanidade, chamando a atenção para a existência
de um “sistema de responsabilidades especiais” no que diz respeito, por
exemplo, às relações de parentesco, “daí que seja absurdo propor que
daqui para a frente nos consideremos igualmente responsáveis pelo bem
estar de toda a gente em todo o mundo”(Singer, 2000:255). É também por
razões utilitaristas que o devemos fazer, uma vez que, se todos nós negli-
genciássemos as nossas obrigações especiais, por exemplo para com os
nossos filhos, as consequências seriam negativas no que respeita à maxi-
mização do bem-estar geral. Assim, mesmo sem abdicar da arte, da filo-
sofia, das férias, do dinheiro gasto na educação dos nossos filhos, ou da
ajuda que podemos dar aos nossos familiares e amigos, ainda nos sobra
muito para poder partilhar com os mais pobres e, nesse sentido, não tere-
mos que fazer sacrifícios absurdos. O argumento de Singer não nos diz que
devemos abandonar os nossos filhos para nos dedicarmos a erradicar a
fome no mundo. Não defende que devemos abdicar dos nossos bens ou do
nosso tempo em benefício dos mais desfavorecidos até ao nível da utili-
dade marginal, mas sim, como nos propõe Dower “devemos assistir os
outros o mais que pudermos e que seja compatível com uma preocupação
razoável com a nossa qualidade de vida.” (Dower, 1995:389), isto porque,
“temos uma obrigação significativa de contribuir para aliviar a pobreza
mundial e não uma obrigação implacável e desmesurada.” (Ibidem) Con-
tudo, determinar a fronteira entre ajuda suficiente e um padrão demasiado
baixo continua por esclarecer.
Mesmo que conseguíssemos resolver o problema da quantificação da
ajuda, porque é que nos devemos importar com o sofrimento de pessoas
que não conhecemos, que vivem em sociedades, culturas e países tão dis-
tantes? Porque é que as nossas obrigações não abrangem apenas aqueles
com os quais temos relações de proximidade, sejam estas relações de
nacionalidade, religião ou cultura? Para Singer devemo-nos importar com
o sofrimento de todos porque a igualdade na consideração de interesses a
tal obriga. Ainda que os seres humanos sejam, de facto, muito diferentes
em muitos aspectos o interesse de um francês em evitar o sofrimento deve
merecer a mesma consideração que o mesmo interesse quando este se
refere a um etíope. Para Singer, evitar a dor, desenvolver as suas capaci-
dades, satisfazer as necessidades básicas de alimentação, saúde e abrigo,
Pobreza absoluta 185

são necessidades comuns a todos os seres humanos e, como tal, não existe
motivo para que não sejam igualmente consideradas. Toda a acção que
permita a satisfação destes interesses conduz à satisfação das preferências,
isto é, à realização daquilo que, após reflexão esclarecida, qualquer indi-
víduo preferiria. Ora, a satisfação das preferências maximiza o bem-estar,
logo, deve ser feito uma vez que é moralmente bom. A universalizabili-
dade dos juízos éticos exige que não pensemos apenas nos nossos interes-
ses ou naqueles com os quais partilhamos uma cultura, uma religião ou
uma nacionalidade. O ponto de vista ético deve ser universal e, como tal,
imparcial. Instintivamente preferimos ajudar os que estão próximos. Se
virmos uma criança a afogar-se num lago não hesitamos em salvá-la, sacri-
ficando as nossas roupas e o nosso tempo para o fazer. O nosso sacrifício
tem uma importância moral insignificante relativamente ao mal que evitá-
mos. No entanto, é sem grande remorso que deitamos fora o envelope da
UNICEF ainda que o sacrifício que nos é pedido seja tão insignificante
como o do exemplo anterior e o mal que evitaríamos (a morte de uma
criança) seja o mesmo. Embora seja o que de facto fazemos, dificilmente
encontraremos uma justificação moral sólida para que a distância geográ-
fica ou a condição de membro de uma determinada comunidade implique
uma qualquer diferença nas nossas obrigações. Desde que consideremos
que todos os seres humanos pertencem à mesma comunidade moral sendo
sujeitos de interesses, discriminar esses interesses em função da naciona-
lidade, da proximidade, da cultura ou da religião é tão infundado como
basear essa mesma discriminação no sexo, na filiação partidária ou na cor
de pele. No mundo contemporâneo em que, como consequência da globa-
lização, a interdependência ente os seres humanos é maior do que nunca,
onde, como nunca no passado, as nossas decisões podem afectar o bem-
estar de tantas e tão distantes pessoas, onde a tecnologia tornou as distân-
cias insignificantes, a ética não pode ser travada pelas fronteiras e estas
mostram-se irrelevantes em termos morais quando está em causa a consi-
deração de interesses.
Uma perspectiva utilitarista como a de Peter Singer colide com uma
teoria dos direitos, nomeadamente com o direito de propriedade individual
tal como é defendido por autores como Robert Nozick. Para este, desde que
alguém tenha adquirido uma propriedade em conformidade com o princí-
pio de justiça (justiça de justo título), isto é, sem o uso de meios injustos,
como o roubo, a fraude ou o uso da força, tem direito aos seus bens e, como
tal, pode fazer deles o que quiser. Qualquer interferência externa neste pro-
186 Manual de Filosofia Política

cesso viola os direitos naturais dos indivíduos e como tal é imoral. Será
meritório se eu decidir voluntariamente distribuir uma parte dos meus bens
contribuindo assim para a diminuição da pobreza, mas tal acto não pode
constituir uma obrigação. Nem os ricos têm o dever de ajudar, nem os
pobres o direito à ajuda, uma vez que não possuem qualquer direito sobre
a propriedade dos outros. Qualquer obrigação redistributiva violaria os
direitos do indivíduo, nomeadamente a sua liberdade. Deste ponto de vista,
a distribuição da riqueza tal como existe, desde que adquirida sem fraude,
é a mais justa. O processo histórico que legitima o direito de cada indiví-
duo aos seus bens não pode ser violado por um qualquer critério extrínseco
de imposição social, uma vez que a justiça está no modo como se adquire
a riqueza e não naquilo que se faz com ela. Qualquer obrigação redistribu-
tiva constitui mesmo um entrave ao exercício voluntário da benevolência
uma vez que o altruísmo “obrigatório” não é um verdadeiro altruísmo.
Podemos também considerar que satisfazer os interesses dos mais
pobres pode conduzir, não à maximização do bem — estar, mas ao aumento
do sofrimento geral. Defendendo uma perspectiva consequencialista Sin-
ger não pode deixar de aceitar que, se a ajuda aos pobres conduzir ao
aumento e não à diminuição da pobreza, não o devemos fazer. Tal argu-
mento é defendido por Garrett Hardin através da sua metáfora do “bote
salva-vidas”. Para este autor “os ricos devem deixar os pobres morrer de
fome, porque, de outro modo, os pobres arrastarão os ricos com eles para
a miséria”(Hardin, 1974). O seu pensamento neomaithusiano considera a
pobreza como algo de natural e inevitável. A fome é uma consequência
incontornável do aumento populacional e esta constitui uma estratégia do
processo de selecção natural. À pobreza de alguns deve ser encarada como
uma catástrofe natural e qualquer tentativa para a eliminar não só se revela
inútil mas também prejudicial. Estando os ricos bem instalados num “bote
salva-vidas” contemplando a restante população pobre que se afoga à sua
volta, existem duas opções. Se os ajudarmos, transportando os pobres para
dentro do bote, corremos o risco de nos afogarmos todos, uma vez que o
bote não aguenta mais tripulantes. Se os deixarmos morrer pelo menos sal-
vamo-nos nós. Ainda que considere esta uma objecção séria ao seu argu-
mento, Singer não encontra factos que corroborem a relação ente dimi-
nuição da pobreza, aumento populacional e escassez alimentar. Não só o
problema da pobreza não resulta da escassez alimentar como a erradicação
da pobreza, se bem que limite as taxas de mortalidade, limita ainda mais
as taxas de natalidade, como se pode constatar nos países mais desenvol-
Pobreza absoluta 187

vidos. À diminuição da pobreza não conduz inevitavelmente ao desastre e


se assim não for o argumento de Hardin deixa de fazer sentido. Existindo
alternativas credíveis ao controlo demográfico conseguido pelas elevadas
taxas de mortalidade associadas à pobreza, devemos preferi-las. Não faz
sentido apoiar meios terríveis para nos defendermos de consequências
improváveis.
É muito comum justificar a nossa recusa em ajudar alegando que
essa responsabilidade é dos governos e não dos indivíduos e que, se os
cidadãos individualmente considerados contribuírem, a consequência será
negativa, levando os governos a contribuir menos. Singer considera que a
responsabilidade colectiva não pode fazer desaparecer a responsabilidade
individual e contra-argumenta alegando que, pelo contrário, “se ninguém
contribuir voluntariamente, o governo partirá do princípio que os seus
cidadãos não aprovam a ajuda internacional e reduzirá, em conseguência,
o seu programa.” (Singer, 2000:263).

3.

Nigel Dower expande o argumento de Singer introduzindo a noção


de desenvolvimento e destacando a importância da justiça na implementa-
ção do bem-estar. Se a ajuda é um dever é um acto de justiça e não de cari-
dade. Se é um acto de justiça não é apenas uma forma de maximizar O
bem. Para Dower o problema da fome não pode ser separado do problema
do desenvolvimento em geral. Assim, a questão não se pode reduzir à
ajuda monetária dos cidadãos individuais, ainda que a necessidade de
mudanças políticas e institucionais gerais não elimine de todo as nossas
responsabilidades individuais. Para Dower,

(...) o facto de os problemas ligados à fome envolverem comple-


xos problemas de desenvolvimento, mudanças políticas e outros, reduz em
alguma medida a importância do que os indivíduos nos países ricos estão
dispostos a fazer? De modo nenhum. Se sustentarmos que cada um de nós
tem obrigações significativas, então as nossas obrigações não são negligen-
ciáveis. Temos que garantir que as mudanças políticas nacionais e interna-
cionais são o que precisamos, o que isto significa é que, enquanto cidadão
activo, eu devo tomar parte na política do meu próprio país para poder pres-
sionar as mudanças internacionais ou juntar-me a uma ONG para tratar
disso. (Dower, 2003: 645-6).
188 Manual de Filosofia Política

Numa economia global, o que os indivíduos dos países ricos consi-


deram ser eticamente relevante é fundamental para o sucesso de todas as
iniciativas de ajuda. Para Dower a justiça é entendida como justiça social
global não se limitando às interacções entre as pessoas da mesma comuni-
dade. Tal como uma sociedade, um mundo justo será aquele que estiver
“organizado de tal modo que garanta a satisfação das necessidades básicas
dos seus membros” (Dower, 1995:379). Como é que tal situação de justiça
social se pode alcançar? Através da distribuição equitativa dos recursos
mundiais. O problema reside no modo como se entende a noção de distri-
buição equitativa de recursos. A assistência é um dever que implica uma
exigência de justiça. Para que essa distribuição seja possível é necessário
eliminar muitas das causas actuais de injustiça, nomeadamente ao nível
das relações económicas internacionais. Assim, a exigência de justiça que
é concretizada pela assistência propõe não só a satisfação das necessida-
des elementares da humanidade, mas também o fim da injustiça activa
compensando os povos injustiçados pela exploração a que foram sujeitos
pelos países mais ricos e que constitui uma das causas do seu persistente
estado de pobreza. A assistência é um dever porque todos nós somos, de
alguma forma, beneficiários deste estado de coisas. O nosso dever de
assistência e ajuda ao desenvolvimento é o equivalente ao dever de pagar
uma dívida, uma exigência de justiça. A eficácia da ajuda passa por pro-
porcionar condições para a promoção do desenvolvimento e os problemas
de desenvolvimento que conduzem à pobreza absoluta são muitas vezes
políticos e institucionais mais do que apenas alimentares. As guerras, a
desigualdade, os regimes totalitários são tão responsáveis pela pobreza
como a fome.
À questão não se deve centrar apenas na nossa obrigação de ajudar
mas também no modo como devemos ajudar. Quando o problema da fome
não reside na falta de alimentos mas no facto de os pobres não terem
acesso a eles, as nossas obrigações vão para além da ajuda alimentar ou
monetária em situações de emergência e implicam a necessidade de esti-
mular a justa distribuição pressionando politicamente os governos. Esta
distribuição passa pela criação da possibilidade de acesso aos alimentos
por parte da população e isso faz-se, não distribuindo comida, mas desen-
volvendo a educação, a tecnologia, os cuidados de saúde, os transportes,
as reformas agrárias, promovendo a igualdade de direitos e deveres e
apoiando a criação de instituições capazes de implementar e controlar o
processo no terreno. Para que estas mudanças ocorram é necessário o con-
Pobreza absoluta 189

tributo activo dos indivíduos. É particularmente importante que as pessoas


considerem essas mudanças eticamente desejáveis.
Dower alarga o nosso campo de responsabilidade. Uma vez que a
pobreza absoluta resulta de uma radical desigualdade fruto de uma injus-
tiça activa e não só de catástrofes naturais ou escassez endémica de recur-
sos alimentares (alguns dos países mais pobres possuem um grande poten-
cial de exploração de riqueza), as nossas obrigações não são só de cariz
monetário. Enquanto consumidores podemos, com a modificação dos nos-
sos hábitos, contribuir para a alteração das relações económicas inter-
nacionais. Como eleitores, podemos influenciar as decisões políticas do
nosso país. Independentemente dos meios usados, a assistência para O
desenvolvimento é uma obrigação. Dower concebe o desenvolvimento
como um “processo de mudança socioeconómica que deve acontecer”
(Dower, 1995: 381) e não apenas como desenvolvimento económico.
Mas, o que é que “deve acontecer”? A sua definição é determinante para
o sucesso da nossa acção e depende do nosso sistema de valores. O que é
mais desejável? O desenvolvimento económico ou o desenvolvimento
com equidade que supõe, para além do desenvolvimento material a justa,
isto é, equitativa, distribuição da riqueza? Tudo depende do modo como
substanciamos a noção de bem-estar e do papel que damos à justiça na
prossecução desse objectivo.

4.

À ética cosmopolita é uma resposta à globalização, uma forma de


encará-la e de responder aos problemas morais e políticos que coloca. Um
cosmopolita vê o mundo, no seu todo, como uma comunidade moral. Diz
que nos devemos preocupar fundamentalmente com os indivíduos e com
o seu bem-estar e que é irrelevante a parte do mundo em que esses indiví-
duos se encontram, a tribo, país ou comunidade religiosa a que pertençam,
a sua etnia, a sua herança cultural ou as suas tradições. Todos os indiví-
duos devem ser considerados de modo igualitário em termos morais. Esta
igualdade supõe que todos se devem preocupar com todos e tê-los em con-
sideração. Politicamente, estes pressupostos implicam a consideração de
um mundo global de interdependências em que todos possuem os mesmos
direitos e deveres básicos como cidadãos do mundo. Nas palavras de Kok-
-Chor Tan, “a justiça cosmopolita é uma justiça sem fronteiras” (Kok-Chor
190 Manual de Filosofia Política

Tan, 2004:1). O realismo, de fundo Hobbesiano, onde os estados-nação


totalmente independentes entre si se preocupam apenas com a manutenção
do poder e com a segurança das suas fronteiras face aos restantes estados
é cada vez mais irrealista. A defesa do interesse nacional exige, hoje, ao
contrário do passado, a cooperação e não a separação entre nações. Esta-
mos longe de um pensamento contratualista que restringe as obrigações
mútuas ao interior de uma comunidade onde os mesmos cidadãos parti-
lham a mesma concepção de justiça. As obrigações mútuas devem ser
aplicadas globalmente e tal obrigação resulta da interdependência (e não
independência, como no passado) entre os diferentes estados, que resuita
do facto de nenhuma nação ser, hoje, auto-suficiente e de que aquilo que
uns decidirem fazer acabar por ter consequências para todos os outros.
As “razões do mundo” terão que se sobrepor às “razões de estado”. Se as
sociedades actuais são sistemas interdependentes, o esquema de coopera-
ção social bem como os princípios de justiça, tal como são definidos por
Rawls4, devem, segundo Charles Beitz, ser aplicados a um nível global.
À face mais visível deste mundo global é a interdependência econó-
mica, resultado do comércio e mercados financeiros internacionais, inter-
dependência essa que, do ponto de vista de Beitz “nos fornece o suporte
para um princípio de justiça distributiva global” (Beitz, 1999:144). Ora, tal
interdependência, ao invés de promover a igualdade, promove uma cada
vez maior desigualdade distributiva, ainda que os seus benefícios sejam
consideráveis. O que promove a desigualdade? O investimento estrangeiro
em países pobres sob a forma de multinacionais, ao invés de beneficiar o
país de acolhimento, explora a mão-de-obra barata ou os seus recursos
naturais, transferindo os lucros da sua actividade para outros locais. A dis-
tribuição dos lucros do comércio e investimento internacionais dependem
do poder negocial dos governos locais que, na maioria das situações é
fraco, uma vez que a desigualdade no plano económico conduz ao dese-
quilíbrio equivalente no plano político. Os governos dos países pobres

4 Tal como é definida em 1971 na obra Uma Teoria da Justiça, para Rawis, a jus-
tiça é a virtude principal das instituições sociais. A estrutura básica da sociedade, enquanto
objecto primário da justiça, na medida em que determina a forma como os direitos e deve-
res fundamentais e os benefícios da cooperação social são distribuídos, deve orientar-se
por dois princípios de justiça que devem ser aplicados no interior de cada sociedade.
(Rawis, 2001). Beitz irá alargar a aplicação desses princípios de justiça distributiva às
relações de interdependência entre nações num mundo cosmopolita.
Pobreza absoluta I91

simplesmente não possuem poder negocial para fazer frente às multina-


cionais e, muitas vezes, também não estão interessados em fazê-lo. Os
governos têm grandes dificuldades em controlar as suas próprias econo-
mias uma vez que estas se encontram dependentes dos desenvolvimentos
da economia mundial que é controlada pelos mais fortes. Por outro lado,
os governos locais frequentemente concentram os ganhos com o investi-
mento estrangeiro no seu país nas classes privilegiadas minoritárias. As
grandes companhias financiam governos corruptos e ditatoriais uma vez
que, desta forma, defendem com mais facilidade os seus interesses. Tais
governos não mostram qualquer preocupação com a distribuição equita-
tiva dos eventuais benefícios obtidos com o investimento estrangeiro no
seu país. |
Como é possível modificar este estado de coisas? A obrigação de jus-
tiça exige um esforço de reforma institucional em larga escala. Beitz pro-
põe a criação de um conjunto de instituições que funcionassem como uma
estrutura constitucional da economia mundial (Beitz, 1999:149). Algumas
destas instituições já existem e influenciam, ainda que de modo insufi-
ciente, a distribuição da riqueza mundial.s A existência desta legislação
internacional mostra-nos que as fronteiras nacionais não podem constituir
um limite para a cooperação social e a cooperação social é, para Beitz, O
fundamento da justiça distributiva. Assim, “num mundo interdependente,
confinar os princípios de justiça social às sociedades domésticas tem como
efeito taxar as nações mais pobres para que as outras possam beneficiar
dos seus regimes justos” (Beitz, 1999:149). Se, como Beitz, defendermos
que os países são interdependentes e não auto-suficientes, então,

(...) se a participação em relações económicas com os países pobres


contribui para a riqueza de um regime mais justo, a sua justiça doméstica
parece perder significado moral. Nessas circunstâncias, os princípios de jus-
tiça doméstica só serão genuínos princípios de justiça se forem consistentes
com princípios de justiça para a globalidade do esquema de cooperação
social (Idem, 150).

5 “por exemplo, os direitos de propriedade internacionais restringem a posse exclu-


siva bem como o controlo do território e dos seus recursos naturais aos governos reco-
nhecidos de cada sociedade ou reservam o controlo parcial ou total de áreas comuns (mar
e ar) à comunidade internacional. Existem também convenções estabelecidas ou codifica-
das por tratados (...) que protegem o investimento estrangeiro privado contra a expropria-
ção sem compensação.” (Beitz. 1999:149)
192 Manual de Filosofia Política

A interdependência mundial exige princípios globais. As fronteiras


nacionais não podem marcar os limites da cooperação social e da obriga-
ção de ajudar. A ser assim, o que é que impede a aplicação global de um
princípio de justiça distributiva? Beitz refere dois dos principais obstá-
culos: a inexistência de instituições globais que permitam aplicar e obrigar
a aplicar esse princípio uma vez que não existe uma constituição ou uma
política mundial; a inexistência de um sentido de pertença a uma comuni-
dade global e, como tal, as pessoas não se sentirem comprometidas com
um sentido global de justiça. A inexistência de condições para a sua apli-
cação no presente, não implica que essa aplicação seja impossível. Mas,
mesmo que não sejam impossíveis, serão desejáveis? As instituições
mundializadas poderiam ser ineficazes ou tirânicas. Como controlá-las”?
Beitz vê neste problema um desafio, uma vez que instituições mundiais
não podem ser uma réplica ampliada das instituições nacionais. Há que
inventar instituições novas. Os ideais sociais, propondo uma ordem mun-
dial justa, têm como função descrever os objectivos e finalidades que
orientarão a política num mundo real (não ideal), nomeadamente ao cha-
mar a atenção para a necessidade de criar as instituições justas que
actualmente não existem.

5.

Para Thomas Pogge o nosso dever de aliviar a pobreza no mundo


fundamenta-se no facto de, até certo ponto, a pobreza extrema em que
muitos vivem ser uma consequência da ordem mundial que o ocidente
impõe ao mundo. Para Pogge, todos os seres humanos possuem o direito
a um estilo de vida capaz de lhes proporcionar bem-estar. Assim, não só
temos a obrigação de não violar esses direitos como temos o dever de criar
uma ordem institucional capaz de os promover. Os direitos humanos
implicam, em primeiro lugar, a protecção contra certas instituições sociais
coercivas e, em segundo lugar, contra os indivíduos que sustentam e bene-
ficiam dessas instituições. Actualmente, não só não estamos a ajudar os
pobres como devíamos, como estamos a mantê-los na pobreza através da
imposição de uma ordem mundial à qual os mais fracos não se podem
opor, da qual somos beneficiários e que é responsável pelas maiores injus-
tiças. Os cidadãos dos países ricos têm a obrigação de fazer todos os esfor-
ços para promover reformas institucionais que conduzam a uma ordem
Pobreza absoluta 193

mundial mais justa. Na medida em que vivemos em regimes democráticos


somos sempre responsáveis pela actuação dos nossos governos uma vez
que a pressão da opinião pública os pode influenciar de modo determi-
nante.
Podemos considerar duas razões para nos sentirmos responsáveis
pela erradicação da pobreza: ou porque temos falhado o nosso dever posi-
tivo de ajudar os mais pobres, ou por termos falhado o nosso dever nega-
tivo de não compactuar com a injustiça, não contribuir ou não tirar pro-
veito das injustiças que conduzem os outros à pobreza. No que respeita aos
deveres positivos, Pogge recorre à argumentação de Singer. A pobreza é
um mal, nós vivemos incomparavelmente melhor, logo temos a obrigação
de ajudar a minorar o sofrimento dos mais pobres uma vez que não sere-
mos significativamente prejudicados por essa ajuda. Resta-nos determinar
em que medida a existência da pobreza absoluta mostra que violamos os
nossos deveres negativos, em que medida a pobreza absoluta é produto de
uma injustiça que nós ajudamos a manter.
A pobreza mundial resulta da mais radical desigualdade. Essa desi-
gualdade é, fundamentalmente, consequência da violação dos nosso dever
negativo de não causar dano ou de beneficiar do dano causado e é neste
sentido que é uma injustiça. A ordem mundial da qual usufruímos torna-
nos causas objectivas da pobreza na medida em que:

(...) Afectamos as circunstâncias dos pobres através dos investimen-


tos, empréstimos, comércio, subornos, ajuda militar, turismo sexual, expor-
tação cultural e muito mais. A sua própria sobrevivência depende muitas
vezes das nossas opções de consumo que podem determinar o preço
dos seus alimentos e as suas oportunidades de arranjar trabalho. (Pogge,
2002: 199)

Não podemos ignorar as causas locais da pobreza, mas, muitas


destas causas são, por sua vez, fruto de acções internacionais. É porque,
directa ou indirectamente, todos nós, enquanto habitantes de países ricos,
contribuímos para a pobreza mundial que esta se torna algo da nossa res-
ponsabilidade, uma vez que o nosso modo de vida depende de uma ordem
mundial injusta da qual nós somos beneficiários. As instituições interna-
cionais que determinam a ordem mundial actual são moldadas pelos mais
ricos em seu benefício e impõem-se aos mais pobres criando e mantendo
a mais radical desigualdade, condenando os mais pobres à miséria da qual,
194 Manual de Filosofia Política

mantendo o actual estado de coisas, não se podem libertar. Pogge pretende


demonstrar que existem alternativas à organização económica actual pro-
pondo uma divisão global dos recursos. Esta proposta supõe que os esta-
dos não possuem plenos poderes de propriedade sobre os recursos exis-
tentes no seu território e que sejam compelidos a partilhar uma pequena
parte dos benefícios que retiram deles (a Global Resources Dividend).
Pogge chama a esta partilha dividendo pois supõe que todos os pobres do
mundo têm direito a uma parte dos recursos naturais limitados. Esse divi-
dendo deve ser usado para assegurar que todos os seres humanos possam
ver satisfeitas as suas necessidades básicas e viver com dignidade:

O objectivo não é apenas melhorar a alimentação, cuidados médicos


e as condições sanitárias dos pobres, mas também tornar possível que eles
possam por si próprios defender e concretizar os seus interesses básicos.
Esta capacidade pressupõe que estão libertos da escravidão ou de quaisquer
outras relações de dependência pessoal, que sejam capazes de ler e de escre-
ver e de aprender uma profissão, que possam participar como iguais na polí-
tica e no mercado de trabalho e que o seu estatuto seja protegido por direi-
tos legais apropriados que possam compreender e efectivamente defender
através de um sistema legal justo e aberto. (Pogge, 2002:197)

A pobreza existente só podia ser justificada,

(...) se não existisse nenhuma alternativa institucional sob a qual a


miséria pudesse ser evitada. Ora, tal como a proposta da distribuição global
de dividendos mostra, essa alternativa existe, assim, temos que atribuir a
causa da pobreza à ordem global existente e, em última análise, a nós pró-
prios. (Idem, 201)

Os cidadãos dos países ricos usufruem da maior parte dos recursos


mundiais retirando daí inúmeros benefícios sem que exista qualquer con-
trapartida ou compensação dos países pobres que são sistematicamente
excluídos dessa partilha. Ao agir deste modo, os países ricos violam o dever
negativo de justiça. As desigualdades de hoje resultam de injustiças siste-
máticas praticadas ao longo de séculos. Conquistas, colonização, escrava-
tura, genocídio. De todos estes actos imorais saímos beneficiados. Mais um
motivo para a existência de razões morais para erradicar a pobreza.
No entanto, Pogge não é irrealista. Qualquer alteração às circuns-
tâncias que mantêm a pobreza não pode acarretar o empobrecimento dos
Pobreza absoluta 195

cidadãos dos países ricos. À sua proposta é moderada até porque, do seu
ponto de vista, a erradicação da pobreza não exige. de facto, sacrifícios
radicais por parte dos países ricos. O que ele nos propõe é que os que mais
usam e beneficiam dos recursos globais devem compensar aqueles que
involuntariamente os usam pouco. Esta ideia não propõe uma mundializa-
ção dos recursos, nem a sua partilha igualitária. Cada governo continuaria
a ter o controlo dos recursos existentes no seu território. Teria apenas
que compensar os países pobres pelo uso e lucros obtidos com o usufruto,
isto é, teria que distribuir uma parte dos dividendos. Do ponto de vista de
Pogge, podemos erradicar a pobreza com um pequeno contributo, desde
que cumprido por todos.

BIBLIOGRAFIA

Obras citadas

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CAPÍTULO VII
As migrações internacionais

JUAN CARLOS VELASCO*

As migrações, prática tão antiga como a própria condição humana,


converteram-se num factor estrutural de primeira ordem, num dos macro-
fenómenos que melhor definem o nosso tempo e num complexo desafio
para as sociedades contemporâneas. Em quase todos os países do mundo,
tudo aquilo que diz respeito ao complexo fenómeno das migrações ocupa
lugar de destaque na agenda política. A gestão, o controlo e a integração
dos movimentos internacionais de pessoas apresentam-se como um policy
field de importância crescente. Não se trata, porém, de uma simples moda:
é realmente difícil encontrar algum Estado que não seja um país de imi-
gração ou um país de emigração, ou ambas as coisas; e, com efeito, esta
última possibilidade é a mais frequente. Não se estranha portanto que a
maioria dos governos tenha tomado consciência da necessidade de dar res-
posta política e jurídica a este fenómeno que tem carácter permanente e
que pode vir a alterar a estrutura demográfica, social, cultural, económica
e laboral de um país. O tema das migrações converteu-se assim em Polí-
tica de Estado e em objecto iniludível de análise para a filosofia moral e
política.

* Instituto de Filosofia do CSIC (Madrid). Este trabalho foi realizado no âmbito


do Projecto de Investigação Políticas migratorias, justicia y ciudadania (HUM2006-
-1703/FISO). financiado pelo Plano Nacional I+D+i do Ministério da Educação e da
Ciência de Espanha.
198 Manual de Filosofia Política

1. O SIGNIFICADO POLÍTICO DAS MIGRAÇÕES INTERNA-


CIONAIS

Nas duas últimas décadas, deu-se um espectacular aumento não só


do volume mas também do grau de mundialização do sistema migratório,
no seu duplo sentido: aumento da diversidade das regiões receptoras e
alargamento das áreas de origem. Em consequência, os imigrantes apre-
sentam uma variedade demográfica, social, cultural e económica cada vez
maior e praticamente inédita no passado.! Dada a dimensão planetária
alcançada pelos fluxos migratórios, torna-se bastante plausível concebê-
-los como parte integrante e como um relevante efeito do recorrente e
contraditório fenómeno da globalização, aqui entendida num sentido me-
ramente descritivo, a saber: como a crescente inter-relação entre as dife-
rentes partes do planeta em consequência dos diversos processos através
dos quais os bens e os serviços, mas também as ideias e a informação,
transpõem as fronteiras dos Estados a uma velocidade sem precedentes. A
intensificação das migrações internacionais seria um efeito da globaliza-
ção apesar de esta, na sua fase histórica mais recente, se caracterizar pela
fluidez das correntes financeiras e comerciais e, simultaneamente — e de
forma extremamente paradoxal —, pelas restrições impostas à mobilidade
internacional da mão-de-obra. Por outras palavras: uma liberdade quase
absoluta dos capitais coexiste com entraves contínuos à circulação das
pessoas. Seja como for, o que é certo é que esta flagrante contradição de
uma globalização assimétrica, mutilada e imperfeita, serve de cenário
para uma série de interrogações e de incertezas que afectam os actuais

! Num trabalho já clássico que apesar dos anos que tem não perdeu qualquer
actualidade, os sociólogos Stephen Castles e Mark J. Miller (1993) identificaram quatro
tendências que viriam a caracterizar as pautas migratórias dos anos que se seguiram, e
que se verificaram todas até esta data: 1) aceleração: as pessoas que passam as frontei-
ras para mudar de lugar de residência são em maior número do que antigamente;
2) diversificação: face ao que acontecia em épocas anteriores, a maior parte dos países
recebe ao mesmo tempo vários tipos de imigrantes (trabalhadores, refugiados. etc.);
3) globalização: os movimentos migratórios são cada vez mais globais, afectando um
número cada vez maior de países que tanto são emissores como receptores; 4) feminili-
zação: aumento do número de mulheres que emigram, aumento esse que está estrita-
mente relacionado com as mudanças no mercado global de trabalho, com destaque, entre
outras coisas, para o aumento da procura de trabalhadores domésticos e para o “tráfico
de mulheres”.
As migrações internacionais 199

fluxos migratórios e se reflectem nas condições de irregularidade, de dis-


criminação e de vulnerabilidade que hoje sofrem com muita frequência
as pessoas que migram.
Os efeitos deste fenómeno também se fazem notar nos mais variados
aspectos da vida social, tanto dos países receptores como dos emissores;
entre outros efeitos, ele provoca mudanças substanciais na demografia e
consideráveis alterações na estrutura do mercado de trabalho. Resultante
dos fluxos migratórios globais seria também, para dar outro exemplo nada
despiciendo, o aumento do pluralismo religioso das sociedades de acolhi-
mento: como em muitos casos as leis amparam as opções religiosas, os
imigrantes difundem e implantam os seus próprios modelos de compreen-
são da religião nos países onde fixam nova residência. Por seu lado, as
representações religiosas trazidas pelos imigrantes também se modificam
e também se adaptam à nova realidade social, o que, por sua vez, dinamiza
as religiões em migração ou transnacionais. Em questões religiosas, como
em muitos outros aspectos do sistema cultural dos países de imigração, a
vida quotidiana é cada vez mais influenciada pelas crenças, práticas e pro-
dutos de outras partes do mundo. O intercâmbio cultural de massas é um
fenómeno habitual em quase todas as sociedades contemporâneas.
À enumeração das dimensões da vida social que de uma ou de outra
forma se encontram abaladas pelos movimentos em massa de pessoas por
certo poderia ser mais ampla, mas ficaria sempre mutilada se as suas reper-
cussões na esfera política fossem omitidas. Tratar-se-ia de um esqueci-
mento indesculpável, por mais que, com algumas notáveis excepções, a
dimensão política nem sempre tenha sido abordada com o devido rigor e
intensidade no âmbito dos estudos académicos sobre migrações. Na ver-
dade, até há pouco tempo, as abordagens académicas tendiam a subestimar
o facto de quase todos os Estados intervirem no controlo e na regulação
dos movimentos migratórios. Mesmo que se aceite que a opção de emi-

2 As migrações têm uma história relativamente curta como objecto de estudo cien-
tífico. pois só a partir da segunda metade do século XIX é que começaram a estudar-se de
modo sistemático os processos migratórios. Para ser mais exacto, até à publicação, em
1885 e em 1889. dos influentes artigos de E.G.Ravenstein sobre as leis das migrações
nunca tinha sido formulada qualquer explicação teórica séria sobre esta questão. Este geó-
grafo germano-britânico estabeleceu um modelo em forma de lei que relacionava em ter-
mos causais os ciclos económicos. a densidade populacional e as deslocações dos seres
humanos. Este modelo não continha referências à dimensão política, chegando ao ponto
200 Manual de Filosofia Política

grar é fruto de uma decisão racional tomada em última instância por indi-
víduos que procuram maximizar as suas oportunidades vitais, existem
outros factores que não são desprezíveis: por exemplo, as políticas de
admissão desenvolvidas por um considerável número de países a partir do
século XIX e cuja importância para o encaminhamento ou desvio das cor-
rentes migratórias nunca se pode negligenciar. Os Estados são actores
sumamente influentes nos processos migratórios e as formas como actuam
configuram um corpus normativo e político que afecta a maneira como
decorrem as deslocações das pessoas entre fronteiras. Num mundo como
o contemporâneo, que em termos políticos está organizado «em Estados
legalmente soberanos e que se excluem uns aos outros», o alcance político
dos fluxos populacionais é evidente, porque, por definição, eles implicam
a transposição de fronteiras estatais, quer dizer, a transferência de uma
pessoa «da jurisdição de um Estado para a de outro» (Zolberg, 2006:
26-27) e isto implica ainda uma mudança transitória ou, em muitos casos,
definitiva, «de pertença a uma comunidade social e política nacional»
(López Sala, 2005: 14). Mais ainda, a forte marca deixada pelas migrações
é perceptível no núcleo sensível do poder político e da convivência social,
inclusive nos elementos que articulam o Estado moderno: a noção tradi-
cional de soberania nacional, o sentido de cidadania ou as manifestações
culturais da identidade colectiva e da lealdade política. Se a soberania
nacional já sofreu a profunda erosão provocada pelos processos de globa-
lização (como se torna patente na crescente incapacidade da maior parte
dos Estados nacionais, para não dizer de todos, para gerir os fluxos exó-
genos que perturbam o seu próprio ciclo económico), a impossibilidade de
manter a integridade das fronteiras face à pressão migratória nada mais fez
do que ampliar este processo. Por seu lado, a cidadania foi posta em ques-
tão como mecanismo de inclusão social e aferidor da pertença política. Em
consequência das migrações, a identidade colectiva tornou-se muito mais
complexa e plural, o que veio a repercutir-se nas fontes da lealdade dos
cidadãos em relação ao poder constituído. Porém, o alcance político e nor-
mativo das migrações não fica por aqui: com a entrada em vigor de deter-
minadas políticas migratórias, as bases normativas das sociedades também

de negar ao Estado qualquer papel na dinâmica dos movimentos migratórios e de omitir


o papel das fronteiras. Apesar destas limitações, a sua influência manteve-se até à segunda
metade do século XX.
As migrações internacionais 201

podem ser afectadas e, por fim, a própria concepção de justiça que elas
sustentam. A seguir analisam-se sumariamente alguns dos diversos desa-
fios de carácter político que o fenómeno das migrações internacionais
apresenta.

2. IMIGRAÇÃO E CIDADANIA

Os processos migratórios dificilmente podem ser pensados sem a


análise das mutações e das tensões que marcam actualmente o conceito e
a prática institucional da cidadania. E o contrário também não seria exe-
quível. Por um lado, a reformulação geral da cidadania nas sociedades oci-
dentais constitui o contexto no qual tem de ser lido o significado político
das migrações contemporâneas; por outro lado, as exigências relativas à
cidadania que são formuladas pelos imigrantes a título individual, assim
como aquelas que são formuladas pelas organizações que os representam,
incidem directamente na compreensão actual da cidadania.
Entre o conjunto de medidas que têm de ser incluídas em qualquer
política coerente para as migrações nunca poderá faltar um instrumento
crucial, a saber: a regulamentação da aquisição da cidadania. As leis de
cidadania e as políticas de naturalização são as ferramentas normativas
com as quais os Estados determinam quem fica dentro ou fora do círculo
de pertença formal. A aquisição da cidadania, também conhecida como
naturalização, é o processo através do qual uma pessoa de outro país se
torna membro legal de determinado Estado. A atribuição da cidadania
concebe-se como um poder exclusivo dos Estados soberanos e os trâmites
variam de país para país, embora, de uma forma geral, obedeçam a dois
princípios básicos: o jus in soli e O jus sanguinis.3 Do ponto de vista do

3 A naturalização costuma ser obtida em função de um destes princípios: o jus san-


guinis. que concede a cidadania aos filhos de um homem ou de uma mulher que já são
cidadãos, e o jus soli. que concede a cidadania a pessoas nascidas dentro do território do
Estado. A maior parte dos Estados-nação baseia as suas leis da cidadania na combinação
entre ambos os princípios (cf. Brubaker 1992). Em consequência da progressiva erosão
destes princípios, há Estados que reconhecem a condição de cidadão por opção, isto é,
mediante o princípio do jus domicilii. que concede a cidadania a pessoas que residem
num país por um determinado período de tempo. O que importa já não é o lugar onde
se nasce. ou de quem se é filho. mas o lugar que se escolheu para viver (cf. Baubóck
2006: 158-159).
202 Manual de Filosofia Política

país de acolhimento, as normas relativas a esta matéria representam um


dispositivo fundamental que a comunidade política tem nas suas mãos
para definir os seus próprios limites internos; do ponto de vista do imi-
grante que chega, essas normas são cruciais, porque marcam o horizonte
de expectativas que o país receptor lhe oferece como indivíduo que neces-
sita de planear a sua vida. A articulação de um procedimento transparente
para a aquisição da cidadania — e com esta, a condição de membro de
pleno direito da sociedade de acolhimento — ajuda bastante a reduzir as
margens de incerteza existencial. Neste aspecto, essas normas de regula-
mentação são um poderoso instrumento de integração que é colocado à
disposição das autoridades do país de acolhimento. No entanto, não deve
esquecer-se que também é possível utilizar essas mesmas normas com
objectivos opostos. Como diriam os Romanos, a condição de cidadão
optimo iure, isto é, a condição de membro de pleno direito, desempenha
com demasiada facilidade o ambíguo papel de mecanismo de inclusão/
fexclusão social: princípio de inclusão que gera exclusões colaterais. A
condição discriminatória do status de cidadania revela-se em toda a sua
plenitude quando é esgrimida contra os imigrantes, os exilados e os estran-
geiros em geral.
A questão da utilização da cidadania como mecanismo de coesão
social está, no entanto, aberta a debate. A tese de que conceder a cidada-
nia é equivalente a integrar nem sempre é confirmada pela prática social,
por mais que isso seja recomendável em termos normativos. É evidente
que a implementação de políticas de inclusão cívica, orientadas no sentido
de estender a cidadania aos imigrantes já estabelecidos, possui uma indu-
bitável vantagem em prol da sua integração social e política: impede a
consolidação de uma categoria, perpetuada de pais para filhos, a dos resi-
dentes que não são cidadãos, os metecos. Não se trata porém de um ins-
trumento milagroso, pois o simples facto de se conceder o status de cida-
dania aos imigrantes que já estão estabelecidos há um período de tempo
considerado razoável não equivale à sua integração automática. Inversa-
mente, é igualmente verdade que mantê-los apartados da participação polí-
tica e excluídos da função pública, isto para mencionar apenas dois aspec-
tos onerosos habitualmente implicados na privação da cidadania, também
não ajuda nada à sua integração. Porém, não pode negar-se que atribuir um
determinado estatuto de direitos e deveres evita formas flagrantes de
marginalização (laboral, civil, fiscal, etc.). Melhor ainda, o acesso dos imi-
grantes à cidadania é uma condição necessária à constituição de uma
As migrações internacionais 203

sociedade integrada, embora não seja uma condição suficiente: «Uma pes-
soa pode gozar de todos os direitos inerentes à cidadania e inclusive pode
ser formalmente membro de uma comunidade e, mesmo assim, sentir-se
um estrangeiro incapaz de se ajustar bem a um ethos cultural que parte de
uma autodefinição na qual não há lugar para a sua comunidade de origem»
(Parekh, 2005: 350).
Em contrapartida, a maneira mais comum de impedir ou pelo menos
de dificultar a integração dos imigrantes e, assim, proteger a integridade
cultural nos países de acolhimento «tem sido limitar a acção dos imigran-
tes ao seu papel estritamente económico, tornando mais difícil o acesso à
cidadania, um mecanismo legal que, numa perspectiva sociológica, pode
ser considerado como uma barreira interna que compensa os efeitos
da entrada» (Zolberg, Idem: 40-41). Em todo o caso, não pode negar-se a
relevância da cidadania como instrumento de exclusão social aplicado ao
mundo das migrações: «A questão da exclusão dos imigrantes do espaço
Jurídico, político e simbólico que é Nosso, constituído pelo conjunto dos
sujeitos que são plenos titulares dos direitos de cidadania, tem uma impor-
tância estratégica tanto na teoria como na prática» (Mezzadra, 2005: 99).
Nas democracias liberais ocidentais, o status de cidadania representa, de
algum modo, o equivalente moderno do antigo privilégio feudal: é um
estatuto herdado que amplia as nossas oportunidades na vida (cf. Carens,
1987). A cidadania, que adquirimos ao nascer, quer seja de acordo com a
dos nossos pais, quer seja de acordo com o lugar onde nascemos, é um
elemento contingente, pois de nenhum modo depende de nós e tem conse-
quências tremendas nas nossas oportunidades de vida. Como numa corrida
de obstáculos, o acesso à cidadania representa de facto a terceira e última
barreira que os imigrantes têm de superar até conseguirem a sua plena
inserção legal na nova sociedade: primeiro, têm de aceder ao território, a
seguir têm de conseguir a autorização definitiva de residência (que não é
susceptível de qualquer revisão motivada por decisão arbitrária das auto-
ridades administrativas). Vejamos a seguir e com maior detalhe como se
desenrola este processo.
Os imigrantes devidamente regularizados têm uma posição um tanto
peculiar na estrutura normativa dos direitos de cidadania, pois, embora
sejam membros de facto das sociedades de acolhimento, em sentido
estrito, não são sujeitos de pleno direito dessas sociedades. Mesmo assim,
na maioria dos países democráticos, o reconhecimento efectivo dos seus
direitos civis e sociais aproxima-os muito, sobretudo em termos práticos,
204 Manual de Filosofia Política

da condição de cidadãos. Tal circunstância marca uma autêntica ruptura


entre estes imigrantes e aqueles que estão em situação irregular (os
chamados «sem papéis»). Esta situação específica de muitos residentes
estrangeiros e imigrantes de longa duração foi descrita por Tomas Ham-
mar (1990) com a ajuda do neologismo denizens, termo que obteve grande
aceitação na literatura especializada. No entanto, este status não está com-
pletamente de acordo com a versão canónica da cidadania que foi formu-
lada por Thomas H. Marshall (1950). Partindo do princípio de que a cida-
dania constitui uma plataforma para o exercício de uma ampla gama de
direitos, este sociólogo britânico distinguiu nela três dimensões que são
configuradas pelos respectivos conjuntos de direitos, de carácter civil,
político e social. De acordo com este esquema, o desenvolvimento histó-
rico desses direitos obedeceria a uma lógica de condensação geográfica e
de separação funcional das instituições políticas do Estado moderno,
lógica essa que no seu todo poderia ser descrita como um processo de
inclusão. Apesar de muitos dos princípios que estruturaram as lógicas de
desenvolvimento cívico ao longo do século XIX terem sido invertidos no
século XX, a discussão em torno da definição dos limites da cidadania e
da forma de integrar os indivíduos na comunidade dos cidadãos continua
a ser central na actualidade, tal como evidenciam os debates sobre a
imigração.
No caso dos denizens, o esquema de Marshall teria de ser inver-
tido: a cidadania social dos imigrantes antecede e detém-se no limiar
da cidadania política. Este facto, que é cada vez mais frequente, viria
a mostrar não só que a cidadania perdeu grande parte da sua antiga
densidade como princípio regulador de direitos, como também que,
para realizar essa missão, ela foi substituída pela residência legal. Por
isso, em vez de proporem um conceito fechado, alguns autores propu-
seram a redefinição da pertença social (ou qualidade de membro) como
um continuum de direitos que, numa determinada comunidade, flui
entre os indivíduos quase totalmente privados desses direitos e os seus
membros de pleno direito (cf. Benhabib, 2005). A residência legal seria
um novo suporte legal que facilitaria a aquisição de direitos num mundo
cada vez mais transnacional (cf. Soysal, 1994; Sassen, 2003). Segundo
a optimista tese de Yasemin Soysal (1994), que na realidade mais
parece uma hipótese de trabalho do que uma tendência real, um esta-
tuto pós-nacional da personalidade baseado na universalidade dos di-
reitos humanos viria substituir a cidadania como origem dos direitos.
As migrações internacionais 205

As declarações dos direitos humanos constituiriam assim uma antecipa-


ção da cidadania universal. Em qualquer dos casos, o certo é que a pro-
gressiva configuração de formas pós-tradicionais de cidadania não é
uma mera elucubração de mentes utópicas mas uma realidade observada
com indisfarçável espanto por intelectuais conservadores. Assim, Hun-
tington (2004: 241) constata como se foi abrindo caminho para uma
«nova concepção de cidadania, concepção essa segundo a qual a cida-
dania não é um estatuto de carácter nacional conferido pelo Estado aos
indivíduos, mas um direito transnacional dos indivíduos face aos Esta-
dos e que esses indivíduos transportam consigo para onde quer que
decidam ir residir».
Outro sintoma desta progressiva metamorfose seria a proliferação
do fenómeno da dupla cidadania e, por vezes, da cidadania múltipla. À sua
aceitação por parte de um número cada vez maior de países, que mudaram
as respectivas leis, é crucial para muitos imigrantes; para eles, esta fórmula
é a melhor maneira de reconhecer as suas múltiplas filiações e identidades.
Qualquer que seja a situação, a análise dos diversos modelos de aquisição
da cidadania constitui um passo prévio a todos os debates acerca dos
critérios de integração social e política dos imigrantes. Sem terem de
confinar-se às categorias de Marshall, a natureza jurídica dos direitos
civis, sociais e políticos e os correspondentes deveres, assim como a sua
vinculação às políticas de cidadania são questões que afectam directa-
mente a posição dos imigrantes, mas que não os afectam apenas a eles. Os
contornos e a composição da comunidade política também dependem
das respostas que se possam dar a estas questões e, indiscutivelmente, das
políticas migratórias adoptadas. Em suma, tal como foi assinalado, o
fenómeno da imigração tem de ser entendido como o detonador social
da profunda transformação experimentada pela noção de cidadania
(cf. Baubóck, 2004).

3. O PAPEL DAS FRONTEIRAS ENTRE OS ESTADOS

As migrações internacionais são deslocações de pessoas, de carác-


ter relativamente permanente, através de linhas fronteiriças reconhecidas.
Na história das migrações, este cruzamento das fronteiras está associado
a imagens ambivalentes, como o deslumbramento perante a terra prome-
tida ou o cenário de não poucas histórias pessoais trágicas. Fronteira e
206 Manual de Filosofia Política

vida nova, fronteira e experiência de exclusão. Apesar do carácter deci-


sivo que isso pudesse ter na trajectória vital de muitas pessoas, a ciência
e a filosofia política, para nem sequer falar da política real, aceitaram as
linhas de fronteira como um dado, como se elas fossem praticamente um
facto natural inalterável cuja legitimidade em caso algum se questiona.
Até mesmo as teorias da justiça mais complexas têm guardado um signi-
ficativo e inquietante silêncio perante a existência de fronteiras em geral,
embora não o façam em relação a determinado traçado das linhas de
fronteira entre dois Estados soberanos (cf. Kymlicka, 2006). Ainda que os
critérios de justiça sejam em princípio postulados para todas as pessoas,
os filósofos que os estudaram, com especial destaque para John Rawils,
não repararam que os Estados limitam os efeitos da justiça de forma
quase exclusiva às pessoas que reconhecem como seus cidadãos. Na
doutrina liberal, inclusivamente naquela que tem perfil igualitarista, é
costume fazer-se uma profunda inversão dos destinatários das teorias da
justiça, operando uma mudança de linguagem que habitualmente passa
desapercebida:

O que começa por ser uma teoria da igualdade moral das pessoas,
acaba por ser uma teoria da igualdade moral dos cidadãos. Os direitos
básicos que o liberalismo confere aos indivíduos acabam por ser reservados
só para alguns indivíduos, principalmente para aqueles que são cidadãos
do Estado. (Kymlicka, Idem: 36)

O facto, completamente contingente, de se ter nascido de um lado ou


de outro de uma linha de fronteira determina, em muitas ocasiões, a pos-
sibilidade de se gozar ou não de determinados direitos. Se uma certa socie-
dade apresenta este factor circunstancial como justificação do tratamento
discriminatório ou desigual dos imigrantes, então ela põe em questão a
noção de justiça que adoptou, na medida em que isto implica a sua renún-
cia expressa à aplicação de critérios de justiça homogéneos. Para evitar as
incongruências mais evidentes, as sociedades costumam jogar com suben-
tendidos que acabam por só prejudicar aqueles que não são nacionais. As
restrições que impedem amplos sectores da população de origem imi-
grante de gozar de facto dos direitos (assim como dos deveres que lhes
correspondem) que tradicionalmente estão associados à condição de cida-
dão implicam uma violação grave do princípio da igualdade de todos os
seres humanos.
As migrações internacionais 207

Na prática, as fronteiras territoriais possuem uma enorme relevância


jurídico-política, pois é com elas que se assinala o direito a que está sub-
metida uma população, elas indicam que pessoas e que instituições exer-
cem a autoridade sobre um determinado território e, no fim de contas,
definem o corpo de cidadãos que integra a comunidade política (cf.
Kymlicka, Idem: 45). Se as fronteiras delimitam o território sobre o qual
um Estado pode legitimamente exercer a sua jurisdição, a sua soberania ou
o seu poder supremo, a cidadania é o mecanismo legal que o Estado uti-
liza para fazer a distinção entre os membros da sua associação política e
os que não pertencem a essa associação. Além disso, os Estados modernos
arrogam-se o direito de monopolizar a regulamentação da mobilidade das
populações, determinando quem e com que documentação pode entrar e
sair do seu território (cf. Torpey, 2006). Fronteiras e cidadania desempe-
nham juntas uma missão constitutiva em relação ao Estado e à comuni-
dade política. Mas as suas funções não acabam aqui, pois elas desempe-
nham ainda uma função policial, que se torna manifesta no controlo dos
fluxos migratórios, dado que as fronteiras são como verdadeiros muros
erguidos na tentativa de conter aqueles que desejam imigrar e não pos-
suem a documentação que os autorizaria a fazê-lo. Fronteiras e cidadania
também dão as mãos para travar a liberdade de passagem e de residência
(reconhecida, por exemplo, no art. 12.º do Pacto Internacional dos Direi-
tos Civis e Políticos, adoptado em 1966).
As fronteiras são reforçadas com a justificação de controlar novas
formas de delinquência e só conseguem oculta a sua função de barreiras
daqueles que fogem da miséria e da guerra. A sua manutenção implica
apostar na persistência de modelos de exclusão e de contenção que se
revelaram tão ineficazes quanto injustos (cf. Cole, 2000). As fronteiras
vigiadas e os muros militarizados são instrumentos de uma política de
exclusão, de uma política de rejeição e de discriminação que se contrapõe
às correntes e aos fluxos que são gerados pelos processos de globalização.
Os muros e as cercas são a expressão paradigmática de uma concepção
política que, paradoxalmente, foi lançada num mundo que pretende ser
cada vez mais aberto e mais global. Por seu lado, a cidadania figura neste
contexto como um princípio não universalista e constitutivo de cada
comunidade política; como figura legal, ela indica a plena pertença a uma
determinada comunidade política e, ao mesmo tempo, também representa
a garantia dos direitos vinculados a essa pertença. Por tudo isto, não é de
estranhar que cidadania e fronteiras, enquanto instituições sociais e histó-
208 Manual de Filosofia Política

ricas cruciais na configuração de uma identidade política particularista,


tenham voltado a aparecer na esfera pública:

Através das práticas de pertença, o Estado controla a identidade sin-


crónica e diacrónica da nação. Mas a nacionalidade e as normas de cidada-
nia de todos os povos são somas e misturas de contingências históricas, de
lutas territoriais, de choques culturais e de actos burocráticos. Em algumas
conjunturas históricas, estas normas e as lutas em torno delas tornam-se
mais transparentes e visíveis do que noutras. Encontramo-nos numa con-
juntura histórica em que o problema das fronteiras políticas se torna nova-
mente visível (Benhabib, Idem: 24).

Apesar da notória contingência das fronteiras nacionais, a ideia de


que as políticas migratórias têm de se perfilar de acordo com os seus limi-
tes geográficos continua a gozar de ampla aceitação. O seu cenário natu-
ral seria presumivelmente o rigoroso marco estatal. Os motivos que se
aduzem a favor do encerramento e do controlo das fronteiras nacionais
costumam ser de três tipos: argumentos económicos (v.gr. evitar correr ris-
cos que ponham em perigo o bem-estar económico da sociedade de aco-
lhimento), culturais (v.gr. assegurar a identidade e a integridade da cultura
da sociedade em questão) e políticos (v.gr. salvaguardar os processos polí-
ticos internos de intromissões que possam afectar o seu desenvolvimento).
Apesar da sua diversidade, os motivos de natureza cultural são aqueles que
na praxis política se tornam mais populares e cujo profuso emprego per-
mite ocultar outros interesses, nem sempre confessáveis. Michael Walzer
(1983: cap. 2) encontra-se entre os mais conhecidos defensores contem-
porâneos do encerramento das fronteiras (embora parcial e condicionado)
e, sobretudo, de que se impeça ou dificulte muito o acesso dos estrangei-
ros à cidadania; tem o mérito de ser um dos poucos filósofos da justiça que
pensou com certa profundidade a questão das migrações. Walzer argu-
menta que para manterem a sua cultura política, que é uma coisa à qual
todos os povos organizados têm direito, as sociedades devem ter o poder

4 Até o grande filósofo contemporâneo da justiça, John Rawls, demonstra uma


olímpica falta de atenção em relação a este assunto. Só num dos seus últimos livros, A Lei
dos Povos. é que alude ao fenómeno da imigração, ainda que o faça simplesmente para
asseverar que a necessidade de imigrar desapareceria se todas as sociedades se organizas-
sem de acordo com uma estrutura interna liberal ou decente (cf. Rawls 1999, 9).
As migrações internacionais 209

de limitar a imigração. Em todo o caso, para este autor, uma política de


recepção de imigrantes deve corresponder aos interesses da sociedade em
questão, ou expressar preceitos caritativos amplamente aceites por essa
sociedade, mas essa política nunca constitui uma obrigação articulada
em termos de justiça.
Na posição contrária à de Walzer encontramos autores como Joseph
H. Carens (1987), Rainer Baubóck (2006) e Seyla Benhabib (2005). Em
particular, Carens denuncia que nenhuma das fundamentações contempo-
râneas do liberalismo propõe razões morais para restringir os direitos dos
estrangeiros a entrar num país ou a fixar residência nesse país e, todavia,
procedem como se elas existissem. Ele, porém, pretende manter-se fiel às
bases filosóficas do liberalismo e por isso empenha-se na criação de fron-
teiras abertas (open borders), como forma de garantir o direito funda-
mental de cada indivíduo a sair do seu próprio país (reconhecido pelo
art. 13.2.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos). E alega que,
se a liberdade de saída é consubstancial aos regimes liberal-democráticos
é completamente óbvio que esta liberdade não teria qualquer conteúdo real
se não existisse a correlativa liberdade ou direito de entrada (o qual, no
entanto, não é reconhecido pela legislação internacional).s Concepções
colectivistas da política, distanciadas da ideia de primazia do indivíduo, e
ataques frontais contra a vigência dos direitos humanos escudam-se, com
muita frequência, por detrás da defesa da política das fronteiras fechadas.
Em geral, todos aqueles que, como os três autores que foram mencionados
atrás, se manifestam a favor de alargar o direito à imigração, também se
mostram favoráveis a uma concepção mais ampla de cidadania transna-
cional, enquanto aqueles que defendem a manutenção das limitações à
imigração pelos governos baseiam-se, sobretudo, numa contracção comu-
nitarista (ou até abertamente nacionalista) da ideia de cidadania.

5 A fidelidade aos princípios liberais leva Carens a denunciar também a incompa-


tibilidade que a divisão em Estados e a subsequente dicotomia entre nacional e estrangeiro
mantêm com os princípios de igualdade de tratamento e de interdição da discriminação.
Estas contradições constituem uma ferida de morte no coração de qualquer democracia
liberal: «Os princípios democráticos podem ser interpretados de diversas maneiras, mas,
qualquer que seja a sua interpretação, contêm um compromisso sólido de tratar as pessoas
sujeitas à autoridade do Estado de forma imparcial e igualitária. Por conseguinte, a pri-
meira regra é que o tratamento diferencial exige uma justificação. Por esse motivo, não é
moralmente aceitável que se utilizem dois blocos de medidas nos trâmites legais, um para
os cidadãos e outro para os não-cidadãos» (Carens 2004, 398).
210 Manual de Filosofia Política

4. A GESTÃO POLÍTICA DA IMIGRAÇÃO E DO PLURALISMO


EMERGENTE

Nos países de imigração, assiste-se a um acelerado processo de cons-


tituição de sociedades de perfil multicultural, impulsionado precisamente
pela chegada de pessoas que têm as mais variadas proveniências. Neste
contexto, o pluralismo cultural especificamente gerado pelos fluxos
migratórios, melhor ainda do que um ideal a alcançar já é uma realidade
e um processo que as sociedades receptoras e as suas instituições têm
que gerir. Assumir este efeito palpável da imigração e as transformações
sociais e culturais que ela acarreta implica ter de enfrentar politicamente a
articulação da convivência entre grupos e comunidades com múltiplos
tipos de identidade colectiva. A relevância alcançada por este aspecto do
processo migratório entronca numa das derivas mais características dos
debates políticos contemporâneos: uma vez terminado o conflito bipolar
fortemente ideologizado que caracterizou a guerra-fria, uma grande parte
dos conflitos políticos gira actualmente em torno da organização e da ges-
tão política da diversidade de sentimentos de pertença e da convivência
entre diferentes formas de vida e concepções do mundo. Até o indecliná-
vel debate social em torno da arbitrária persistência de desigualdades eco-
nómicas entre os indivíduos foi injustificadamente absorvido e substituído
pelas tensões de índole identitária e cultural.
A multiculturalidade e a multietnicidade, que têm origem nas migra-
ções, provocaram respostas políticas que se repercutem nas estruturas ins-
titucionais dos sistemas democráticos, não só devido à criação de novos
organismos administrativos encarregados especificamente da sua gestão,
mas também devido às mudanças que foram induzidas nas formas de com-
preender a identidade colectiva e, inclusivamente, a própria noção de cida-
dania. Estas alterações simbólicas, culturais e políticas das sociedades
de acolhimento foram analisadas, por vezes com algum nervosismo, por
diversos autores, entre os quais cumpre destacar Giovanni Sartori (2001)
e, numa perspectiva abertamente conservadora, Samuel Huntington
(2004). Ambos bradam aos céus perante os problemas de integração gera-
dos pelas recentes vagas de imigrantes, sobretudo devido à facilidade com
que estes vizinhos mantêm vínculos afectivos com a sua cultura de origem
(facilitados pela proliferação de canais de televisão que operam no seu
idioma, pelas chamadas telefónicas e pelas mensagens electrónicas, além
dos bilhetes de avião a custo muito baixo) e devido ao distanciamento que
As migrações internacionais 211

isto provoca em relação aos valores do país que os acolheu. Estes autores
dão como exemplos concretos o dos hispânicos nos Estados Unidos e o
dos muçulmanos na Europa e consideram que em alguns casos eles podem
constituir um risco para a identidade nacional e para as sociedades de aco-
lhimento. Embora este diagnóstico possa ser acertado, a terapia proposta
não o é tanto. Assim, Huntington (Idem: 216) reduz a três as possíveis
estratégias políticas para fazer face à imigração: «uma imigração escassa
ou nula, uma imigração sem assimilação ou uma imigração com assimila-
ção». Tendo em conta que a primeira opção não é possível, mas que é ape-
nas um pio desejo ou uma missão impossível (dado que é tão impossível
blindar hermeticamente as fronteiras quanto proceder à deportação em
massa dos imigrantes irregulares), a alternativa seria a assimilação ou a
não assimilação. Só que esta é uma falsa disjunção. Segundo a concepção
de Huntington, que se assim fosse teria mais honestidade intelectual, a
alternativa seria simplesmente entre a assimilação dos imigrantes e o
caos social.
O debate sobre a imigração, que está repleto de cambiantes de tão
variados matizes, presta-se ao simplismo e à demagogia. Como acabámos
de ver, cai-se nestes dois erros quer no meio académico quer também, tal-
vez ainda com maior frequência, no mundo da política. Além de ser vista
como um possível perigo para a manutenção dos traços característicos da
identidade da sociedade receptora, a questão das migrações irrompe fre-
quentemente nos debates públicos, nos quais é estigmatizada como um
factor duplamente conflituoso: como risco para o bem-estar económico do
país anfitrião e como ameaça para a segurança urbana. Com demasiada
ligeireza, a imigração é apresentada como sinónimo de ilegalidade, misé-
ria, conflitualidade e delinquência. Não há dúvida de que os meios de
comunicação contribuíram para forjar esta imagem negativa no sub-
consciente colectivo e para difundi-la. Porém, os problemas derivados da
imigração não se resolvem através de uma passagem para o pólo oposto,
isto é, angelizando os estrangeiros por serem diferentes ou adocicando os
actos criminosos eventualmente cometidos por eles.
A política migratória é um campo de intervenção pública submetido
a múltiplas tensões; na origem destas tensões encontra-se quase sempre
um grande desajustamento entre o número de candidatos à emigração e
as expectativas das sociedades receptoras. Estruturar uma política neste
campo pressupõe a tentativa de conciliar valores e interesses por vezes
antagónicos e que são representados por uma pluralidade de actores indi-
212 Manual de Filosofia Política

viduais e colectivos, bem como de instituições públicas e privadas. Em


todo o caso, uma política migratória coerente e digna desse nome deveria
apoiar-se pelo menos sobre três eixos: um modelo de gestão dos fluxos
(regulamentação do acesso e condição de permanência dos imigrantes);
uma gestão da integração e, por fim, mas não menos importante, uma polí-
tica de desenvolvimento conjunto com os países emissores de emigração.
Esta caracterização ideal quase não tem correspondência nas práticas habi-
tuais: em muitos casos, a política migratória fica reduzida a um conjunto
de medidas jurídicas e administrativas que pretendem regular as condições
de entrada e de permanência dos estrangeiros num determinado território.
Às sociedades que num curto intervalo de tempo passaram de socie-
dades de emigrantes para sociedades de imigrantes, como acontece nos
Estados do Sul da Europa (especialmente, em Espanha e Itália e, com
menor intensidade, também em Portugal e na Grécia) têm de reinventar os
seus padrões de integração e, enfim, a sua própria autoconsciência como
comunidades políticas. Até agora, a resposta destes países ao desafio colo-
cado pela imigração sofre da «ausência de mecanismos institucionais e da
inexperiência administrativa em questões de planificação, regulação e ges-
tão interna da imigração» (López Sala, Idem: 172). Estas carências podem
parecer explicáveis porque os processos de acomodação têm um percurso
longo e não admitem improvisos. O facto de até há muito pouco tempo a
imigração não ter um impacto real na vida de algumas sociedades poderia
ter tido pelo menos uma vantagem, que deveria ter sido aproveitada pelos
políticos e pelos gestores desses países, a saber: a vantagem de se verem
no espelho daquilo que já tinha sido feito em latitudes não muito distantes
e analisarem as causas dos erros cometidos e dos sucessos alcançados.
Contudo, o certo é que não existe, em nenhum lugar, um modelo de trata-
mento dos fluxos migratórios que seja completamente exemplar, de modo
que, na hora de desenhar € executar propostas futuras, será sempre neces-
sário inovar. Mesmo algumas sociedades com uma notável tradição de
gestão da imigração ainda não acabaram de processar estas mudanças,
como revelam os múltiplos problemas de adaptação e de integração que
experimentam, com maior ou menor intensidade, quase todos os países da
Europa Central e do Norte, onde é frequente que as segundas e terceiras
gerações de imigrantes ponham em dúvida modelos de gestão da imigra-
ção que até há pouco tempo pareciam consolidados.
As migrações internacionais 213

5. AS MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS E A DIMENSÃO GLOBAL


DA JUSTIÇA
Tal como Saskia Sassen (2001: 73) advertiu, por vezes a gestão
política da imigração tem o estranho efeito de renacionalizar a política
quotidiana: «quando se trata de imigrantes e de refugiados [...] o Estado
readquire todo o seu antigo esplendor e declara o seu direito soberano de
controlar as suas fronteiras». Em grande medida, as políticas migratórias
são o recurso que muitos Estados utilizam para convencer os seus cidadãos
de que têm poder, quando na verdade o estão a perder. Ao tratar estas
questões volta-se àquela concepção política tradicional segundo a qual a
missão de definir quem pertence ao corpo político é uma competência
privativa e irrenunciável da soberania estatal. No entanto, num mundo
cada vez mais globalizado, esta tendência renacionalizadora só pode ser
entendida como paradoxal, principalmente, tal como se indicou no início
deste trabalho, se se tiver em conta que o sistema migratório internacional
está cada vez mais mundializado e que os seus efeitos se fazem sentir em
qualquer região do planeta, por muito remota que pareça.
Perante a dimensão mundial alcançada pelos fluxos migratórios
torna-se premente a necessidade de recuperar uma perspectiva global e
complexa dos processos por eles desencadeados. A insistência de certos
sectores sociais e grupos de pressão para forçar a aplicação de políticas
migratórias restritivas, que em última análise se tornam num projecto de
encerramento e até de blindagem de fronteiras que é impossível controlar,
corresponde a uma compreensão dos fluxos migratórios como se eles fos-
sem inteiramente obedientes a uma dinâmica unilateral procedente do
exterior e não a uma complexa rede de relações multilaterais de carácter
não só económico mas também sociocultural.
A oportunidade e mesmo a necessidade de ampliar o ponto de vista
a partir do qual se examinam as questões sociais na sua complexidade e
multiplicidade foi paulatinamente desabrochando entre aqueles que culti-
vam as ciências sociais e a filosofia moral e política. Por exemplo, hoje é
difícil que se rotule de excêntrica a ideia de que os problemas ecológicos
dizem respeito a toda a humanidade. Tomou-se consciência de que todos
habitamos um só mundo, tal como o filósofo moral Peter Singer (2003)
intitulou o seu contundente e provocador ensaio sobre uma ética adequada
à era da globalização. A adopção de uma perspectiva meramente estado-
cêntrica é inadequada para abordar os complexos problemas do mundo
214 Manual de Filosofia Política

contemporâneo: «ao mesmo tempo que mais e mais questões exigem cada
vez mais soluções globais, diminui a capacidade de qualquer Estado para
determinar por si mesmo o seu futuro» (Singer, Idem: 211). Se os diversos
Estados procuram individualmente soluções para os conflitos e os proble-
mas gerados pela imigração, essas soluções acabarão por ficar encalhadas
dentro do reduzido âmbito de actuação do Estado nacional. Há já algum
tempo que não existe nenhum Estado verdadeiramente isolado, o que
acontece apesar do progressivo aperfeiçoamento do controlo das frontei-
ras. À porosidade das fronteiras é mais uma manifestação da progressiva
erosão da soberania estatal: o nexo político e jurídico entre soberania
e território foi posto em questão pela multiplicação de poderes e de orde-
namentos supranacionais, assim como pelos novos circuitos globais de
produção e de troca de capitais. O mundo converteu-se num só mundo de
um modo quase irrevogável e, consequentemente, os problemas têm de
ser definidos como conflitos globais, ou pelo menos em código transna-
cional, pois essa é a única maneira de fazer com que as possíveis soluções
incidam no âmbito de actuação real dos conflitos.
Entre outros factores, a própria natureza internacional dos fluxos de
pessoas, a inter-relação das sociedades nacionais e a conveniência de com-
parar experiências de gestão da imigração impulsionam a mudança da
mentalidade dominante. No que diz respeito às migrações, é cada vez mais
urgente a necessidade de dispor de um quadro normativo adaptado a um
mundo globalizado. Se em certa medida esta mudança de orientação já se
verificou nas ciências sociais (cf. Beck, 2005), não se pode dizer o mesmo
no que respeita ao campo da teoria da justiça, que até há muito pouco
tempo continuava a padecer de uma orientação fundamentalmente cen-
trada no interior das margens do Estado. A teoria da justiça que hoje em
dia goza de maior prestígio e que foi oportunamente proposta por John
Rawls contém enormes lacunas que se tornam evidentes quando se tenta
aplicá-la fora dos limites dos Estados constituídos. Apesar disso, a partir
dos textos pioneiros de Charles Beitz (1979), nos últimos anos houve des-
tacados filósofos políticos e pensadores sociais que, apesar de maiorita-
riamente se situarem na esteira de Rawls, mostraram a sua insatisfação
com as reflexões dele acerca das relações internacionais e defendem uma
aplicação mais coerente do seu pensamento político neste campo. Entre
estes autores liberais-igualitaristas e cosmopolitistas, é possível citar
Brian Barry, Henry Shue, Martha Nussbaum e Thomas Pogge. Todos estes
autores, mas especialmente o último (Pogge, 2005), que procura encontrar
As migrações internacionais 215

forma de solucionar o grave problema moral da desigualdade em todo o


planeta, são os cajados com os quais se foram dando passos significativos
para a elaboração de uma teoria cosmopolita da justiça. Esta teoria irá per-
mitir que assuntos como aqueles que são relativos aos fluxos migratórios
sejam pensados a partir dessa perspectiva, que é muito mais integral. A
divisão política do planeta serve frequentemente de suporte normativo
para distribuições injustas dos recursos e das oportunidades básicas que os
indivíduos podem aproveitar. Esta escandalosa repartição dos bens e dos
recursos entre os diversos povos do planeta não é, de modo algum, uma
questão alheia à intensidade que as migrações internacionais alcançaram
no nosso tempo. Nesta matéria, pela sua própria natureza supranacional,
são cada vez mais urgentes a definição e a criação de mecanismos de coo-
peração inter-governamental, assim como a articulação de medidas que
sejam verdadeiramente redistributivas. Dado que tudo isto é sumamente
importante, existe uma questão central que nenhuma teoria da justiça pode
ignorar, nem sequer dar por certa, e que é a pergunta sobre quem são os
sujeitos cujo bem-estar tem de ser assumido como critério determinante
em último caso. E a esta pergunta sobre os sujeitos está também associada
aquela que se refere às fronteiras físicas que os delimitam. É por isso que
a cidadania e as fronteiras também têm de ser reformuladas de acordo com
a perspectiva de uma noção global de justiça.

Tradução do espanhol de Conceição Moreira.

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CAPÍTULO IX
Multiculturalidade e multiculturalismo

ConcEIÇÃO MOREIRA*

Confundir multiculturalidade com multiculturalismo é um erro fre-


quente que, à custa de tanta repetição, se tem vindo a impor como verdade.
Não se discute aqui a multiculturalidade. Ela é um facto. Analisam-se os
fundamentos filosóficos e discute-se a viabilidade de algumas políticas
multiculturalistas.
O multiculturalismo decorre, evidentemente, da multiculturalidade: a
sua emergência tem a ver com a tomada de consciência de que as socie-
dades são constituídas por uma enorme diversidade de grupos. O termo
refere-se às práticas políticas (por exemplo, acção afirmativa, representa-
ção parlamentar e acesso à educação na língua materna) e às isenções de
natureza jurídica (por exemplo, isenções relativas às folgas semanais e aos
feriados nacionais e isenções relativas aos uniformes de certos funcioná-
rios públicos) que pretendem promover o respeito pela diversidade cultu-
ral e étnica, garantir a igualdade de tratamento e de oportunidades entre as
maiorias dominantes e as minorias históricas e culturais, enfim, favorecer
a integração dos grupos minoritários.
Historicamente, o multiculturalismo surgiu no Canadá, país que
Pierre-Eliott Trudeau, primeiro-ministro durante toda a década de 1970 e
parte da década de 1980, definiu como uma nação multicultural, consti-
tuída por comunidades históricas e culturais diversas, nomeadamente, os

* Mestre em Filosofia — área de especialização em Ética e Filosofia Política.


pela Universidade do Minho.
220 Manual de Filosofia Política

Povos Indígenas, os Quebeguenses e os imigrantes. Em 1982, o Canadá


inscreveu o multiculturalismo na Constituição, reconhecendo que o res-
peito pelas diferenças culturais é compatível com a igualdade entre todos
os cidadãos.
Em termos teóricos, o multiculturalismo teve origem no debate, ini-
ciado em finais da década de 1970, entre comunitaristas e liberais, no
âmbito da discussão da teoria liberal da cidadania e despoletado pela obra
Uma Teoria da Justiça, de John Rawls. Para os liberais, só o indivíduo é
detentor legítimo de direitos e o Estado deve ser neutro em relação às dife-
rentes concepções de bem dos seus cidadãos e às diferentes concepções de
vida boa das comunidades que o constituem; pelo contrário, para os comu-
nitaristas, a comunidade é a principal fonte da identidade pessoal e o
Estado deve reconhecer-lhe direitos específicos, de modo a garantir a sua
sobrevivência e a potenciar o seu enriquecimento, para que ela possa con-
tinuar a ser a base do respeito do indivíduo por si próprio e da sua auto-
estima. Portanto, grosso modo, as primeiras políticas multiculturalistas
eram aceites pelos comunitaristas e rejeitadas pelos liberais. A alteração
da posição dos liberais foi tardia e deveu-se sobretudo a uma série de fac-
tos que originaram profundas mudanças na organização dos Estados: as
migrações, a multiplicação do número de Estados poliétnicos, o fracasso
de algumas políticas liberais de neutralidade e, mais tarde, o fim dos regj-
mes comunistas, antagónicos a qualquer modelo de Estado que não o de
uma sociedade uniforme, sem classes e sem pertenças culturais específi-
cas. Lentamente, alguns Estados liberais do Ocidente começaram a seguir
o exemplo do Canadá e o multiculturalismo começou a ser entendido
como uma solução política para os inúmeros problemas surgidos em torno
da multiculturalidade.
Apresentam-se neste capítulo alguns dos aspectos mais relevantes do
pensamento dos filósofos políticos que mais se têm destacado na defesa
das políticas multiculturalistas: Charles Taylor, Will Kymlicka e Iris
Marion Young. Enquanto Taylor defende a necessidade de um diálogo
intercultural potenciador de «políticas de reconhecimento igualitário»
extensíveis à sociedade como um todo, Kymlicka defende uma reinter-
pretação do liberalismo e propõe-se apresentar uma «justificação liberal
do reconhecimento de direitos diferenciados de grupo» para as minorias
nacionais e étnicas. À originalidade do contributo de Young consiste em
propor «políticas da diferença», destinadas a compensar certos grupos
minoritários transversais da opressão de que alegadamente são vítimas.
Multiculturalidade e multiculturalismo 221

1. TAYLOR: AS POLÍTICAS DA DIGNIDADE E DO RECONHE-


CIMENTO

Taylor aborda a questão dos fundamentos do multiculturalismo em


termos históricos, explicando que a sua emergência histórica está rela-
cionada com a substituição da honra pela dignidade. Assim, no Antigo
Regime existia uma ordem social hierárquica assente na honra, sendo a
identidade determinada pela posição social dos indivíduos e não pelos seus
méritos ou por qualquer qualidade intrínseca. A queda do Antigo Regime
provocou o declínio da ideia de que alguns homens merecem preferência
sobre outros e a ascensão da dignidade, o que originou um conjunto de
mudanças no plano íntimo e no social (Taylor, 1994: 47).
No plano íntimo, a identidade individual passa a compreender-se
como identidade individualizada e articula-se com a noção de autentici-
dade, porque pressupõe a necessidade de «ser verdadeiro para comigo
mesmo e para com a minha maneira própria de ser» (idem: 48). A identi-
dade já não se enraíza em Deus nem nas Ideias, mas na natureza dialógica
do homem: o seu processo de definição da identidade não é solitário, pres-
supõe o diálogo e, por vezes, «a luta com as identidades que os nossos
outros-significativos querem reconhecer em nós.» (Taylor, 1991: 69) As
relações sentimentais têm portanto um papel central: elas «são os crisóis
da identidade gerada a partir de dentro.» (idem: 84) Definir-me é encon-
trar tudo o que é significativo em mim, tudo o que prova e revela a minha
especificidade relativamente àqueles que me cercam. Definir-me pressu-
põe o outro e pressupõe a autenticidade.
A autenticidade é o contacto do indivíduo com a sua natureza inte-
rior e que lhe permite resistir às pressões para se ajustar às exigências exte-
riores e, assim, descobrir a sua originalidade. Porém, o eu só se descobre
em função do outro. O ideal da autenticidade não consiste em rejeitar as
exigências da sociedade ou da natureza nem em voltar as costas à História
ou aos laços de solidariedade. Antes pelo contrário, são esses os horizon-
tes que tornam o mundo inteligível e sem os quais não existe autenticidade
(idem: 75-76). Por conseguinte, as relações entre os homens não podem
ser entendidas como meros instrumentos de realização individual e não
são prescindíveis nem substituíveis, formam a identidade de cada um e são
fundamentais para o significado que dá à sua vida (idem: 86-87).
No plano social, esta concepção acerca da identidade individual
manifesta-se na importância crescente que as sociedades democráticas têm
222 Manual de Filosofia Política

vindo a atribuir às políticas de reconhecimento igualitário. A identidade do


indivíduo já não depende da sua posição social nem é elaborada isolada-
mente, depende da relação dialógica com outros, é elaborada no âmbito
desse diálogo e exige igualdade de oportunidades. O reconhecimento igua-
litário é crucial, pois pensa-se que o não reconhecimento ou o reconheci-
mento incorrecto «podem ser uma forma de agressão, reduzindo a pessoa
a uma maneira de ser falsa, distorcida, que a restringe» (Taylor, 1994: 45),
pois implicam a projecção de uma imagem inferior que é interiorizada e
que, consequentemente, se torna opressora, porque fomenta o ódio da pes-
soa contra si mesma. Assim, reconhecer a diferença é «reconhecer igual
valor a modos diferentes de ser» (idem: 85), sabendo-se no entanto que a
igualdade de valor não decorre da mera diferença, também se baseia nas
propriedades comuns e complementares que existem apesar da diferença,
como as capacidades de pensar, de amar, de recordar e de reconhecimento
dialógico. Baseia-se ainda na partilha de valores. Enfim, baseia-se na.
partilha de um horizonte de significação, o que pressupõe a pertença à
mesma sociedade política (idem: 86).
Taylor defende que só a política de reconhecimento igualitário per-
mitirá que as sociedades contemporâneas superem a sua maior dificul-
dade: o progressivo fortalecimento da postura atomista e instrumental em
relação aos outros e ao mundo. Esta postura articula-se com os sentimen-
tos de desencanto dos homens face a si mesmos, face uns aos outros e face
à natureza (idem: 122) e é reforçada pelo funcionamento do mercado e do
Estado burocrático, que tendem a debilitar a iniciativa e a participação
democráticas, a fomentar o aparecimento de agrupamentos parciais que se
organizam em função de interesses particulares e a fomentar uma espécie
de judicialização da política, caracterizada pelo recurso aos tribunais para
conseguir a revisão de determinadas leis por processos não políticos
(idem: 137-140). Outra dificuldade é a crescente alienação dos eleitores
em relação aos mecanismos próprios do processo democrático, alienação
essa que torna muito difícil formar maiorias que apoiem programas políti-
cos exequíveis e construir consensos em relação a políticas que imponham
sacrifícios (idem: 140-142).
Estas dificuldades têm vindo a contribuir para a fragmentação das
sociedades. Os seus membros não têm projectos comuns, têm poucas
afinidades e «consideram cada vez mais difícil identificar-se com a sua
sociedade política como comunidade» (idem: 142). Nestas sociedades há
excesso de individualismo e a razão é entendida em sentido puramente ins-
Multiculturalidade e multiculturalismo 223

trumental, Excesso de individualismo, porque se parte do princípio de


que cada pessoa tem o direito de escolher as convenções que deseja adop-
tar, a configuração a dar à sua vida (idem: 38). Concepção instrumental
da razão, porque toda a leitura da realidade é feita em função da relação
entre custos e benefícios, calculando-se a aplicação mais económica dos
meios disponíveis para atingir um determinado fim. Consequentemente, as
sociedades também são vistas em termos puramente instrumentais, agora
despidas da sua antiga estrutura sagrada, porque as convenções sociais
são relativas e estão ao serviço da felicidade e do bem-estar individuais.
Os outros homens e as coisas são «instrumentos dos nossos projectos.»
(idem: 40)
O papel da política do reconhecimento igualitário é vencer essas
dificuldades. Para Taylor, ela é a única capaz de pôr fim à opressão e de
promover a criação de uma «sociedade democrática saudável» (idem: 56).
Esta política tem uma vertente universalista e uma vertente que se vai
designar por «singularista». A vertente universalista é baseada no princí-
pio da igual dignidade de todos os cidadãos e visa a igualdade de direitos
e de privilégios, procurando evitar a existência de cidadãos de primeira e
de segunda classes (idem: 58), o que exige a neutralidade do Estado face
às diferentes concepções de bem existentes na sociedade e o obriga a igno-
rar as diferenças entre os cidadãos. A vertente «singularista» é relativa à
política da diferença e também tem uma base universalista, pois consiste
em defender a tese de que «todas as pessoas devem ser reconhecidas pelas
suas identidades únicas.» (ibidem) Partindo do pressuposto de que a sin-
gularidade é universal, esta política pretende preservá-la contra todas as
formas de discriminação e impedir que ela seja assimilada pela identidade
dominante. Neste sentido, pode afirmar-se que a política da diferença é
idêntica às políticas que visam criar iguais oportunidades e que desenvol-
vem medidas de compensação socioeconómica para os mais pobres. É por
isso que, em nome do princípio da igual dignidade, a política da diferença
tem sido objecto do mesmo tipo de contestação que aquelas outras políti-
cas: argumenta-se que ela viola o dever da não-discriminação, porque ao
reconhecer que algumas minorias podem ter direitos e poderes especiais
impõe um tratamento diferenciado dos cidadãos (idem: 59-60). Mas tam-
bém se pode criticar as políticas da igual dignidade por ignorarem as dife-
renças e assim potenciarem a discriminação, na medida em que os princí-
pios liberais supostamente neutros que as regem são meros reflexos de
uma cultura hegemónica (idem: 63); neste caso, os defensores das políti-
224 Manual de Filosofia Política

cas da diferença acusam o liberalismo de ser «um particularismo disfar-


çado de universalismo.» (idem: 64)
As duas vertentes da política do reconhecimento são, portanto,
incompatíveis: uma tende a ignorar as diferenças, a outra encoraja a parti-
cularidade. Consciente desta incompatibilidade, Taylor procura superá-la,
afirmando que alguns modelos liberais de sociedade defendem a compati-
bilidade entre os direitos individuais e o reconhecimento de determinados
objectivos colectivos; em teoria, esses modelos não são hostis à diferença;
no âmbito da prática política, eles assentam na distinção entre os direitos
fundamentais e um conjunto de imunidades e de pressupostos de trata-
mento uniforme. Geralmente, tais modelos dão prioridade ao tratamento
uniforme sobre as imunidades e sobre objectivos colectivos como o da
sobrevivência cultural. No entanto, outras vezes dão prioridade à sobre-
vivência cultural, porque se «fundamentam bastante em juízos de valor
sobre o que constitui uma vida boa — juízos esses em que a integridade das
culturas ocupa um lugar importante.» (idem: 81)
Deste modo, segundo Taylor, já não se podem acusar todas as políti-
cas liberais do igual respeito de pretenderem anular a diferença. Aliás,
como é necessário definir limites para os comportamentos aceitáveis, é
necessário fazer distinções substantivas, portanto, «o liberalismo não pode,
nem deve, pretender uma neutralidade cultural completa» (idem: 83).
Ora, grande parte das políticas multiculturalistas que têm vindo a ser
desenvolvidas pelas sociedades liberais assentam no pressuposto de que
todas as culturas merecem igual respeito, pois «têm algo de importante
a dizer sobre todos os seres humanos.» (idem: 87) Em consequência,
segundo este ponto de vista, todos os produtos culturais têm igual valor.
É por isso que em vez de estimularem a aquisição de uma cultura alargada
a todos os membros da sociedade, as políticas multiculturalistas investem
apenas nos chamados grupos subjugados, tentando incentivá-los a criar
produtos culturais, na convicção de que assim estão a ajudá-los a superar
a opressão (idem: 86).
Paradoxalmente, segundo Taylor, estas políticas caem no erro de tra-
tar os grupos culturais subjugados com paternalismo e condescendência,
ao declararem que os grupos culturais dominantes têm de pressupor e
defender o valor de produtos culturais que desconhecem. Assim, em vez
de respeitarem e defenderem os grupos subjugados humilham-nos (idem:
90-91). Taylor explica que se evita este problema se a formulação de juí-
zos de valor sobre os produtos das outras culturas se basear num «hori-
Multiculturalidade e multiculturalismo 225

zonte fundido de critérios» (idem: 91), isto é, num conjunto de critérios


valorativos que, ao serem aplicados mostrem que «já fomos transformados
pelo estudo sobre o outro, de forma que não estamos só a julgar através
dos nossos critérios originais.» (ibidem) Caso contrário, a política da
diferença acaba por ser homogeneizante e por negar-se a si própria, pois
o desconhecimento do outro e a inexistência de um horizonte fundido
implica o recurso aos mesmos critérios valorativos de sempre, os da
cultura dominante.
Taylor não rejeita completamente as políticas multiculturalistas que
têm vindo a ser seguidas nos países liberais do Ocidente, apenas considera
que elas têm públicos-alvo inadequados, porque são dirigidas aos grupos
minoritários em vez de visarem toda a sociedade. Na realidade, em última
análise, identifica-se com elas no que respeita à crença no princípio da
igual dignidade de todos os homens e aos seus objectivos centrais, o reco-
nhecimento da diferença e o fim da opressão. Mas, ao mesmo tempo, ele
rejeita o liberalismo processual que, na sua perspectiva, é a teoria política
que está na base do multiculturalismo e que será o principal responsável
pela homogeneização resultante das políticas multiculturalistas. Taylor
apresenta-se como um liberal de tipo substantivo. Todavia, o modelo de
sociedade que propõe quase parece orgânico e está bastante distante dos
modelos liberais, na medida em que defende: a) a aceitação de objectivos
colectivos, o que apenas parece ser concretizável através do reconheci-
mento de direitos colectivos; b) a necessidade de fazer distinções substan-
tivas, o que, contra aquilo que o próprio Taylor afirma, parece implicar
não a redução do âmbito da neutralidade do Estado, mas a sua anulação e
consequente substituição por uma concepção perfeccionista do mesmo.
Segundo Taylor, o ideal e a cultura da autenticidade pressupõem que
a comunidade política é o espaço de construção da identidade individual e
que é na comunidade política que se geram os horizontes de inteligibili-
dade do mundo. Daí a necessidade de a preservar, não através de políticas
exclusivamente dirigidas às minorias mas através de políticas dirigidas a
todos os membros da sociedade e destinadas a criar um horizonte fundido
de critérios. O conhecimento do outro, o conhecimento de todos os que
partilham o mesmo espaço público levará à sua transformação e à criação
de critérios valorativos comuns que, por vezes, irão sobrepor-se aos crité-
rios específicos. Ficaria assim assegurada a compatibilidade entre as duas
vertentes da política do reconhecimento igualitário. Mas este é outro dos
aspectos problemáticos da teoria política de Taylor: o horizonte fundido
226 Manual de Filosofia Política

constituiria um terceiro conjunto de critérios valorativos, diferente dos cri-


térios valorativos da maioria dominante e dos das minorias; este terceiro
conjunto seria constituído por critérios valorativos resultantes da síntese
entre os critérios valorativos da maioria e os das minorias, síntese essa que
seria operada através do diálogo entre todos os membros da comunidade.
Ora, se se pensar que a criação de critérios valorativos absolutamente
novos é muito improvável, então tem de se perguntar: quem definiria as
regras de selecção dos critérios valorativos que iriam formar o terceiro
conjunto? Como se faria essa selecção? Parece haver aqui um excesso de
optimismo: Taylor presume que todos os indivíduos e grupos são capazes
de dialogar e querem conhecer-se; presume que todos aceitariam transfor-
mar-se e partilhar critérios valorativos; presume também que o terceiro
conjunto de critérios não acusaria o peso excessivo de um dos grupos
envolvidos; e presume a tolerância mútua e a inexistência de comporta-
mentos e de valores intoleráveis. Na ausência de sociedades culturalmente
homogéneas, só resta imaginar que ele acredita que a racionalidade argu-
mentativa do homem é capaz de superar as inúmeras barreiras que foram
sendo erguidas ao longo da História (conflitos religiosos, competição pela
propriedade de recursos preciosos, conflitos raciais, nacionalismos ...) e
de gerar uma vontade colectiva de vida em comum.

2. KYMLICKA: DEFESA LIBERAL DE DIREITOS MINORITÁRIOS

Liberalismo e cultura

Kymlicka trata o tema do multiculturalismo como uma questão de


teoria política liberal e defende que o multiculturalismo é a resposta
normativa adequada à diversidade e à falta de fundamentação teórica de
algumas práticas políticas já adoptadas por muitos dos Estados liberais do
Ocidente. Partindo do princípio de que a cultura é uma realidade dinâmica
e plural, Kymlicka tenta demonstrar que a dimensão cultural é constitutiva
dos indivíduos, o que o leva a problematizar o princípio liberal da neutra-
lidade do Estado e a consequente atitude de negligência benigna face às
diferentes culturas que coexistem no interior das fronteiras do Estado. Tal
atitude define-se como uma tentativa de tratar todos os indivíduos da
mesma forma e de não apoiar, proibir ou inibir nenhuma cultura, manifes-
Mutticulturalidade e multiculturalismo 227

tando-se juridicamente através da aprovação de leis colour-blind, redigi-


das de modo a serem aplicadas uniformemente a todos os cidadãos e com
os objectivos de pôr termo a todas as formas de discriminação e de pro-
mover a integração de todos no Estado.
Ora, Kymlicka está convencido de que os liberais do pós-guerra,
como Rawls e Dworkin, interpretam incorrectamente os princípios do pró-
prio liberalismo, porque partem sempre do pressuposto de que os Estados
são homogéneos em termos culturais e defendem que as diferenças cultu-
rais entre os indivíduos são questões meramente privadas. Estas convic-
ções levam-nos a defender que apesar de as diferenças culturais poderem
colocar problemas à sociedade, as soluções desses problemas já estão
acauteladas nas declarações de direitos humanos, o que torna dispensáveis
os direitos minoritários, até porque estes constituiriam uma violação do
princípio da igualdade de tratamento. O problema é que nas últimas déca-
das, se foi tornando cada vez mais evidente que os «direitos humanos
tradicionais são pura e simplesmente incapazes de resolver algumas das
mais importantes e controversas questões relativas às minorias culturais:
que línguas devem ser reconhecidas nos parlamentos, nos serviços buro-
cráticos e nos tribunais? Deverá cada grupo étnico ou nacional ter acesso
à educação financiada na sua língua materna?» (Kymlicka, 2003: 4)
É neste contexto que Kymlicka se propõe reinterpretar os princípios
básicos do liberalismo, fazendo-o à luz da influência da cultura como con-
texto de escolha, pois pensa que a pertença cultural tem um estatuto mais
importante dentro do liberalismo do que aquele que os liberais lhe reco-
nhecem e que muitas minorias culturais sofrem injustiças relativas ao bem
da pertença cultural cuja rectificação requer e justifica o reconhecimento
de direitos específicos (Kymlicka, 1991: 162ss). O que Kymlicka não
explica claramente é o motivo por que é necessário proteger a cultura ori-
ginal de cada grupo: se interessa garantir que cada indivíduo disponha de
um contexto de escolha que lhe permita exercer a sua liberdade, não seria
lógico admitir que quanto melhor e mais rico fosse esse contexto de esco-
lha, mais ampla e significativa seria a sua liberdade? O próprio Kymlicka
o afirma, quando pretende subalternizar o argumento do valor da diversi-
dade cultural como argumento favorável ao reconhecimento de direitos
específicos para as minorias nacionais: a diversidade dentro da cultura
maioritária é menor quando essas minorias têm direitos específicos do
que quando os Estados impõem a sua integração na cultura maioritária
(Kymlicka, 2003: 121ss).
228 Manual de Filosofia Politica

Nesse caso, a promoção da integração de todos os grupos minori-


tários na sociedade, com a consequente disseminação de muitos dos aspec-
tos das suas culturas por toda a sociedade contribuiria para um enri-
quecimento mútuo de todos os cidadãos e evitaria a promoção do conser-
vadorismo cultural e moral. Seria antinatural defender a preservação de
culturas como se fossem espécies em extinção, porque a História está car-
regada de exemplos de indivíduos que migram e que ao fim de alguns anos
têm dificuldade em falar a sua língua materna e não saberiam como voltar
a viver na sua terra natal. E essa preservação até pode ser moralmente
errada, porque prende os indivíduos a instituições e comportamentos que
partilham apenas com um número muito reduzido de indivíduos, que lhes
dificultam o acesso à informação e que lhes criam barreiras profissionais,
económicas e políticas.
Apesar destas objecções, Kymlicka mantém a defesa de direitos des-
tinados a preservar a pertença cultural e alega que não pretende defender
a inalterabilidade das culturas, mas garantir que continuem a funcionar
como contexto de escolha. Argumenta que não se pode apagar a educação
de uma pessoa, pois ela afecta o seu sentido de identidade e de capacidade
pessoal; por isso, forçar a assimilação de uma cultura estranha é desres-
peitar a identidade do indivíduo e origina enormes injustiças e desigualda-
des (Kymlicka, 1991: 175ss).
Tentando justificar a sua reinterpretação do liberalismo, Kymlicka
observa que «o ideal da “negligência benigna” é um mito», pois muitas
minorias são frequentemente vítimas de desigualdades que não afectam os
restantes membros da sociedade e são prejudicadas pelo processo maiori-
tário de tomada de decisão, que as impede de fazer opções relativas a ques-
tões económicas e políticas que podem ser essenciais para a sua identidade
cultural e para a sua sobrevivência como grupos (idem: 183). Mesmo ten-
tando, o Estado não consegue deixar de apoiar certas culturas, gerando
injustiças que devem ser rectificadas, porque são arbitrárias em termos
morais, visto não resultarem das escolhas dos indivíduos mas das suas cir-
cunstâncias sociais ou dos seus dotes naturais. Isto acontece porque «as
decisões do governo sobre as línguas, as fronteiras internas, os feriados
nacionais e os símbolos do Estado, inevitavelmente envolvem o reconhe-
cimento, a acomodação e o apoio das necessidades e identidades de gru-
pos étnicos e nacionais particulares.» (Kymlicka, 2003: 115)
Kymlicka tenta reforçar este argumento, dizendo que Rawls e Dwor-
kin também destacam «a importância da rectificação das desigualdades
Mutticulturalidade e multiculturalismo 229

que não são escolhidas» e que «as desigualdades relativas à pertença cul-
tural são precisamente aquelas com as quais Rawls diz que devemos preo-
cupar-nos, visto que têm efeitos “profundos, penetrantes e presentes desde
o nascimento”.» (idem: 109) É por isso que, para Kymlicka, os princípios
do liberalismo são adequados para fundamentar o reconhecimento de
direitos minoritários e que os direitos liberais têm de pressupor e de reflec-
tir a «culturalidade» dos indivíduos. Assim, em vez de se respeitar o
indivíduo como membro de uma comunidade política comum deve-se res-
peitá-lo como membro de uma comunidade cultural distinta, o que legiti-
maria a protecção da cultura, e impediria a redução das exigências da
pertença cultural às da cidadania (Kymlicka, 1991: 150-152).
Em suma, Kymlicka assume-se como liberal, porque acredita
que todos os indivíduos têm capacidade e direito de reflectirem sobre
os seus fins e de os reverem e porque subscreve uma concepção não-
-perfeccionista do Estado, ao qual atribui apenas as funções de proteger
a capacidade dos seus cidadãos para avaliarem o mérito de diferentes
concepções da vida boa e de fazer a justa distribuição dos direitos e dos
recursos que permitem a cada indivíduo seguir a sua própria concepção
do bem. Mas, sendo liberal, situa-se à esquerda, pois crê que os Estados
devem rectificar as desigualdades moralmente arbitrárias que vitimam
muitos dos seus cidadãos (Kymlicka, 2001a: 328-331), nomeadamente
aquelas que têm a ver com a pertença cultural. Por conseguinte, os di-
reitos das minorias não são «privilégios injustos ou formas detestáveis
de discriminação», mas «compensações por desvantagens injustas, por-
tanto, podemos considerá-los consistentes com a justiça e exigidas por
ela.» (idem: 33)
No entanto, o reconhecimento de direitos minoritários tem de respei-
tar a regra da distinção entre dois tipos de exigências que os grupos podem
fazer: restrições internas e protecções externas. As restrições internas refe-
rem-se às relações intragrupais e podem levar um grupo a restringir a
liberdade dos seus membros em nome da solidariedade, da tradição cultu-
ral ou da ortodoxia religiosa. Em contrapartida, as protecções externas
referem-se às relações intergrupais e visam limitar o impacto negativo das
decisões de uns grupos sobre outros e reduzir a vulnerabilidade das mino-
rias. Kymlicka rejeita totalmente as restrições internas, porque constituem
limitações dos direitos políticos e civis das minorias (Kymlicka, 2003:
35ss). Por sua vez, também admite que as protecções externas, além de
poderem ter custos para os membros da sociedade mais vasta, podem redu-
230 Manual de Filosofia Política

zir a liberdade dos membros da comunidade minoritária e produzir-lhes


custos económicos: por exemplo, a protecção das terras dos Índios através
do sistema de propriedade comunal impede que elas sejam compradas ou
expropriadas por membros da sociedade mais vasta, mas simultaneamente,
e sem violar os direitos civis e políticos dos Índios, restringe a sua liber-
dade, porque os impede de vender terras (idem: 42-44). Por conseguinte,
as protecções externas apenas são legítimas se contribuírem para promo-
ver a igualdade entre grupos, o que implica a necessidade de se fazer
uma avaliação caso a caso.

Cidadania, direitos diferenciados e construção da nação

Um dos aspectos centrais do pensamento de Kymlicka é a tese de que


diferentes grupos têm diferentes tipos de legitimidade para exigir o reco-
nhecimento de direitos minoritários, o que implica que os direitos minori-
tários sejam direitos diferenciados de grupo.
Embora os princípios liberais de igual respeito pelas pessoas e de
iguais direitos individuais sugiram que todos os indivíduos têm o direito
de entrar num país, participar da sua vida política e usufruir dos seus recur-
sos naturais, os Estados também têm o direito de limitar a cidadania a
determinadas pessoas ou grupos e de distribuir os seus benefícios de modo
diferenciado. A cidadania é, portanto, um direito diferenciado de grupo,
pois implica um tratamento diferencial, baseado na pertença do indivíduo
a um grupo (idem: 124-125).
Cada um dos principais grupos que compõem a enorme diversidade
das sociedades liberais deve dispor de um conjunto de direitos específicos,
nomeadamente, direitos poliétnicos para os imigrantes, direitos de se
governarem a si próprias para as minorias nacionais e direitos de repre-
sentação política. Estes últimos aplicam-se a todos os grupos, (étnicos e
não étnicos) que se encontrem em desvantagem no que respeita à partici-
pação no processo de decisão política, por exemplo, as mulheres, os defi-
cientes e os mais pobres. Eles visam garantir procedimentos equitativos de
tomada de decisão, permitindo que os interesses e as perspectivas da mino-
ria sejam levados em consideração. Por conseguinte, complementam os
direitos políticos individuais, são uma extensão lógica dos princípios e dos
mecanismos de representação democrática e são compatíveis com o libe-
ralismo (idem: 131-134).
Multiculturalidade e multiculturalismo 231

Como a cidadania é diferenciada, como o acesso à cidadania é limi-


tado e como existem fronteiras, a organização dos Estados liberais tem de
implicar a inclusão democrática de todos os seus grupos, embora existam
diferentes níveis de inclusão, para diferentes tipos de grupos. É por isso
que esses Estados se envolvem em complexos processos de construção da
nação, que nos países democráticos são limitados pelos direitos das mino-
rias (Kymlicka, 2001b: 49). A relação entre o processo de construção da
nação e o reconhecimento de direitos das minorias é dialéctica: o Estado
utiliza múltiplas ferramentas de construção da nação, como políticas edu-
cativas e de cidadania, leis relativas à língua e ao funcionalismo público,
centralização do poder, manutenção de meios de comunicação social
estatais, existência de serviço militar e institucionalização de símbolos e
de feriados nacionais; por sua vez, as minorias exigem direitos, como o
multiculturalismo para os imigrantes e o federalismo multinacional, que
respondem às políticas de construção da nação, ao mesmo tempo que a
justificam e protegem as minorias de injustiças que o Estado possa
cometer contra elas, impedindo-o de as assimilar, excluir ou enfraquecer
(idem: 49-50).
Mas, e se admitirmos, com Taylor, a tese de que o diálogo intercul-
tural é desejável e que constitui uma boa forma de levar todos os membros
de uma sociedade a partilharem os mesmos critérios valorativos e uma boa
alternativa à assimilação forçada das minorias? Neste caso, Kymlicka não
poderia argumentar que as minorias estavam a ser vítimas de qualquer
desigualdade arbitrária. A igualdade de tratamento estaria assegurada e
também não se poderia opor a objecção de que lutar pela preservação das
culturas é idêntico a tratá-las como se fossem espécies em extinção. Toda-
via, ele prefere uma concepção de sociedade constituída por unidades cul-
turalmente diversas (unidas não tanto por valores partilhados ou por uma
identidade comum, mas principalmente pelo sentido da posse de uma
diversidade profunda) nas quais o exercício de uma cidadania diferenciada
dentro de instituições comuns iria desenvolver laços de confiança e soli-
dariedade e faria com que os indivíduos provenientes de diferentes grupos
culturais se sentissem igualmente respeitados pelo Estado (Kymlicka,
2003: 187-191). Em vez de um diálogo intercultural de carácter substan-
tivo que acabaria por promover uma única (e nova) cultura societal (um
horizonte fundido de critérios), Kymlicka defende a manutenção e o
reforço de diferentes culturas societais, articuladas entre si pelo papel inte-
grativo desempenhado pela cidadania diferenciada, no quadro da dialéc-
232 Manual de Filosofia Política

tica da construção da nação. Mais uma vez, ele rejeita a concepção per-
feccionista do Estado, ao mesmo tempo que se distancia do princípio libe-
ral da neutralidade do Estado. E demonstra grande confiança na capaci-
dade do Estado multiétnico e multinacional para promover a superação da
indiferença, da desconfiança e até do ressentimento que os membros de
algumas minorias demonstram em relação às maiorias que os tentam assi-
milar e para reforçar o exercício da autonomia individual e a importância
das práticas liberais. Mas é duvidoso que, por si só, esses modelos origi-
nem sentimentos de pertença, especialmente no que respeita a certas mino-
rias nacionais: há que ver que Kymlicka propõe que cada minoria nacio-
nal possa desenvolver toda a sua vida usando a sua língua materna,
mantendo as suas instituições tradicionais e beneficiando de direitos que
os restantes cidadãos não possuem. Todavia, ele nada diz sobre a criação
de valores comuns ou sobre o desenvolvimento de competências demo-
cráticas no interior dos grupos não democráticos. E, em contrapartida, pelo
menos sob determinadas condições, admite a possibilidade e o direito à
secessão de algumas minorias nacionais (Kymlicka, 2001a: 113-116).

Minorias nacionais

As minorias nacionais são povos que habitavam nos territórios dos


Estados actuais antes da sua constituição e que perderam a luta pela inde-
pendência (por exemplo, os Catalães) ou que foram colonizados (como os
Povos Indígenas da América). Assim, ao longo da História, os territórios
que antes pertenciam exclusivamente a esses povos foram ocupados e eles
foram privados à força das suas culturas e obrigados a respeitar leis e ins-
tituições alheias. A progressiva assimilação (e mesmo o desaparecimento)
das comunidades culturais minoritárias deve-se a políticas de imposição
de uma única cultura, embora muitas vezes oficialmente adoptadas em
obediência ao princípio da não-intervenção e de acordo com o critério
democrático. Assim, por exemplo, o facto de cada Estado promover a uti-
lização de uma única língua (a do grupo dominante) prejudica os grupos
cuja língua materna é diferente da língua falada pela maioria, pois conduz
à sua marginalização em relação às principais instituições económicas,
académicas e políticas.
Em nome do respeito pelo princípio da igualdade, Kymlicka defende
a rectificação dessas injustiças através do reconhecimento dos direitos das
Multiculturalidade e multiculturalismo 233

minorias nacionais a governarem-se a si próprias, à autonomia territorial,


à representação nas instituições centrais, à propriedade da terra e à protec-
ção da sua língua materna. Segundo esta perspectiva, tais direitos são pro-
tecções externas justas, pois embora limitem alguns direitos (por exemplo,
liberdade de movimentação, de propriedade da terra e de utilização da sua
língua materna) dos membros dos grupos dominantes dentro dos territó-
rios das minorias, reduzem a vulnerabilidade das minorias nacionais em
relação às decisões das maiorias e evitam que as primeiras sofram maio-
res injustiças do que os custos que essas limitações têm para as segundas,
como a injustiça da perda da sua cultura (Kymlicka, 2003: 109).
É evidente que a defesa do reconhecimento de direitos minoritários
implica a substituição do princípio liberal da neutralidade do Estado pelo
modelo de construção da nação. Kymlicka justifica esta substituição com
base no argumento de que o liberalismo é compatível com a promoção de
mais do que uma cultura societal dentro do mesmo Estado: como nas
sociedades liberais do Ocidente o sentido de partilha de uma cultura
comum é muito “fino”, ele não anula diferenças religiosas, de valores pes-
soais, de relações familiares ou de estilos de vida (Kymlicka, 200la: 25);
por outro lado, grande parte das minorias culturais do Ocidente é liberal e
tem líderes favoráveis à liberalização das respectivas sociedades (idem:
209). Portanto, ao concederem às suas minorias nacionais o poder de se
governarem a si próprias os Estados multinacionais garantem o desenvol-
vimento e a manutenção das respectivas culturas societais e reforçam o
exercício da autonomia individual e a importância das práticas liberais
(ibidem). Note-se que a relação dialéctica entre construção da nação e
direitos minoritários se duplica dentro dos territórios das minorias nacio-
nais: o direito de construírem as suas nações não pode implicar violações
dos direitos das respectivas minorias internas, direitos esses que condi-
cionam e legitimam a construção da nação a nível subestatal (Kymlicka,
2001b: 50-51).
Em última análise, estas políticas de reconhecimento de direitos
específicos para as minorias nacionais têm vindo a conduzir à formação
de federações multinacionais constituídas por unidades de matriz nacional
e por unidades de matriz regional. As primeiras procuram poderes dife-
rentes e mais extensos do que aqueles que são desejados pelas segundas,
originando o chamado federalismo assimétrico: o governo federal tem
poder reduzido dentro dos territórios das minorias e estas também devem
ter representação e influência limitadas a nível federal, pois «uma assi-
234 Manual de Filosofia Política

metria de poderes implica uma assimetria na representação.» (Kymlicka,


2003: 108)
Debruçando-se especialmente sobre as unidades governadas pelos
Povos Indígenas, John Tomasi observa que o reconhecimento de direitos
culturais específicos tem de afectar a estrutura dos seus direitos indivi-
duais, porque as liberdades liberais destroem as suas culturas e modos tra-
dicionais de viver e porque certas liberdades liberais são «irrelevantes»
(Tomasi, 1995: 599) para essas culturas. Segundo Tomasi, Kymlicka situa
estes povos fora do liberalismo e, consequentemente, defende os seus
direitos culturais a partir de uma perspectiva exterior à do liberalismo
(idem: 599-600). Mas admitir a crítica de Tomasi exige a distinção entre
os dois tipos de minorias nacionais, os Povos Indígenas e as Nações sem
Estado. Kymlicka não o faz. Embora analise muito mais detalhadamente a
situação dos Povos Indígenas, no que respeita às soluções políticas que
indica para o problema da sobrevivência cultural não os diferencia das
Nações sem Estado, integrando todos em federações multinacionais.

Minorias étnicas

As minorias étnicas são grupos formados por imigrantes e por peque-


nas seitas etnoreligiosas. Dado o objecto deste trabalho, só vai abordar-se
a questão do reconhecimento de direitos específicos para os imigrantes.
Eles diferem das minorias nacionais, porque abandonaram voluntaria-
mente os seus países e abdicaram dos seus direitos políticos; portanto,
não têm legitimidade para exigir o direito de se governarem a si próprios
(Kymlicka, 2003: 63). Todavia, em nome do argumento da igualdade, os
Estados liberais devem reconhecer-lhes direitos específicos: ao facilitarem
a integração, a obtenção de direitos comuns de cidadania e, consequente-
mente, a igualdade de oportunidades e de acesso à cultura dominante e às
principais instituições tais direitos dotam os imigrantes dos conhecimen-
tos necessários para viverem e trabalharem na sua nova sociedade e per-
mitem combater a discriminação e os preconceitos de que por vezes são
vítimas (idem: 114ss). Estes direitos ajudam as minorias étnicas «a expres-
sarem a sua particularidade e orgulho culturais sem que isso obstrua o seu
sucesso nas instituições económicas e políticas da sociedade dominante»
(idem: 31), facilitam a aprendizagem da língua em que funciona a socie-
dade de acolhimento, isentam os seus beneficiários do cumprimento de
Mutticulturalidade e multiculturalismo 235

algumas leis e regras da sociedade mais vasta, e permitem práticas cultu-


rais e religiosas específicas, como as que são relativas às folgas semanais,
aos feriados nacionais e aos uniformes dos funcionários públicos (idem:
38, 97). São admissíveis desde que não se tornem restrições internas, ou
seja, se não impuserem limitações aos direitos civis e políticos dos mem-
bros do grupo (idem: 41-42).
Em sentido restrito, as políticas de reconhecimento de direitos poliét-
nicos chamam-se políticas multiculturalistas e possuem uma dupla dimen-
são: por um lado, «a promoção da integração linguística e institucional, de
modo a que os grupos de imigrantes tenham iguais oportunidades dentro
das principais instituições educativas, políticas e económicas da socie-
dade»; por outro lado, «a reforma dessas instituições comuns, de maneira
a acomodar as práticas etnoculturais específicas dos imigrantes, para que
a integração linguística e institucional não exija a negação das suas iden-
tidades etnoculturais» (Kymlicka, 200la: 54). Os direitos poliétnicos são,
portanto, direitos de acomodação e não meros direitos simbólicos ou de
reconhecimento (idem: 51 n. 3); eles visam uma integração justa dos imi-
grantes na sociedade mais vasta, admitindo que ela é demorada e difícil,
muitas vezes intergeracional e exigente em relação às instituições comuns,
na medida em que as obriga a reformar-se e a dar aos imigrantes o mesmo
nível de respeito e de acomodação das suas identidades etnoculturais que
dá às da maioria (idem: 162). Estes direitos constituem «uma resposta justa
à construção da nação pela maioria» (Kymlicka, 2001b: 33), impedindo
que a integração dos imigrantes seja uma mera assimilação e fazendo com
que a cidadania seja uma componente dessa integração, porque implicam
participação activa nas principais instituições da sociedade de acolhimento
(Kymlicka, 2001a: 170).
Note-se porém que, segundo Kymlicka, as políticas multiculturalis-
tas são apenas um dos aspectos das políticas desenvolvidas nas sociedades
liberais em relação aos grupos de imigrantes: há ainda «políticas relativas
à naturalização, educação, preparação profissional e acreditação de profis-
sões, aos direitos humanos e às leis contra a discriminação, ao emprego na
função pública, à saúde e à segurança, até à defesa nacional» (idem: 155)
e que são «os principais motores da integração»; elas inserem-se no con-
Junto de todas as políticas de construção da nação e têm muito mais
influência sobre os imigrantes do que o multiculturalismo, pois abrangem
um leque muito mais vasto de actividades quotidianas. É por isso que o
reconhecimento de direitos poliétnicos não deve ser visto como um foco
236 Manual de Filosofia Política

de separatismo ou de balcanização das sociedades, até porque «a lógica do


multiculturalismo envolve a aceitação do princípio da integração prescrita-
-pelo-Estado, mas renegociando os termos da integração» (idem: 169); ela
favorece a progressiva identificação psicológica dos imigrantes com o seu
novo país e contribui para a pluralização da sociedade e dos grupos
étnicos: ao fazer com que os diferentes grupos étnicos se interinfluen-
ciem esbate as identidades étnicas; e ao promover a interinfluência entre
grupos e sociedade mais vasta impede a mera assimilação (idem: 168-
-169). Kymlicka argumenta que os direitos poliétnicos geram maior diver-
sidade da cultura dominante sem exigirem sacrifícios aos seus membros
(Kymlicka, 2003: 123). No entanto, tal como para as minorias nacionais,
este argumento é limitado também para os imigrantes, pois não justifica a
promoção da diversidade cultural especificamente através da difusão das
suas culturas, sendo um mero complemento do argumento da igualdade
(idem).
O cruzamento das opções teóricas de Kymlicka com algumas das
suas propostas de acção política concreta revela coerência mas coloca pro-
blemas teóricos que cumpre identificar: Kymlicka assume-se como liberal
de esquerda mas distancia-se de princípios-base do liberalismo, como o
princípio da neutralidade do Estado, e rejeita a interpretação do princípio
da igualdade como princípio da uniformidade de direitos de todos os cida-
dãos. Em consequência, argumenta contra o ideal liberal de cidadania uni-
versal, contrapondo-lhe um ideal de cidadania diferenciada e argumenta
contra a legislação colour-blind e as políticas de negligência benigna, con-
trapondo-lhes o reconhecimento de direitos específicos de grupo. Final-
mente, também rejeita o modelo de Estado-nação que serve de inspiração
aos liberais do pós-guerra e contrapõe-lhe um modelo de Estado multina-
cional e multiétnico. Sem dúvida que o modelo de Estado defendido por
Kymlicka é mais adequado à actual realidade política do que o modelo
tradicional. No entanto, Daniel Weinstock observa que existe um desequi-
líbrio entre a base justificativa da teoria de Kymlicka e as suas conse-
quências normativas. Este desequilíbrio revela-se na tese de que apenas os
grupos que têm uma cultura societal viável podem ter o direito de se
governarem a si próprios; neste caso, em nome da preservação do contexto
de escolha dos indivíduos, Kymlicka deveria admitir a dissolução e a assi-
milação pela cultura societal maioritária de algumas culturas (de Povos
Indígenas) que não cumprem aquela condição e deveria admitir o reco-
nhecimento de direitos políticos específicos para todos os grupos (como os
Multiculturalidade e multiculturalismo 237

Afro-americanos) que cumprem a referida condição. Ora, Kymlicka não


admite nenhuma destas hipóteses (Weinstock, 2002: 380-384).
Um dos motivos que pode estar na base deste desequilíbrio é o papel
que ele atribui à cultura: por afirmar que o acesso à cultura é fonte de desi-
gualdades, Kymlicka tem de defender que o Estado deve proporcionar aos
cidadãos direitos que permitam a reparação dessas desigualdades. Brian
Barry objecta que a defesa de uma cidadania diferenciada colide com a
concepção liberal de construção de uma cidadania igual (Barry, 2001: 136)
e que a cultura não é a única causa das desigualdades, pois existem mui-
tas desigualdades que nada têm a ver com o grupo cultural a que os indi-
víduos pertencem (idem: 307-308). No entanto, Kymlicka insiste que as
desigualdades arbitrárias relativas ao não reconhecimento das especifici-
dades culturais são as mais penalizadoras em termos de respeito do indi-
víduo por si próprio e declara que pretende evitar o erro de liberais como
Rawls e Dworkin, que negam qualquer destaque à cultura, quer como con-
dição para o exercício da autonomia do indivíduo quer como fonte de desi-
gualdades, muito menos como fonte de direitos específicos para grupos e
de obrigações para os Estados. Todavia, em vez de assumir o corte com o
liberalismo, Kymlicka declara-se devedor da tradição liberal e propõe-se
fundar um novo tipo de liberalismo, desenhado a pensar nos Estados
multinacionais multiétnicos (idem: 135).

3. YOUNG: A POLÍTICA DA DIFERENÇA

As obras de Taylor e de Kymlicka, embora fundamentais, não esgo-


tam a riqueza do campo teórico do multiculturalismo. Iris Marion Young
é uma referência fundamental neste campo de estudo, pois alarga o crité-
rio de identificação dos grupos com necessidade de reconhecimento,
defendendo que, além das minorias nacionais e culturais, como os Índios,
os Hispânicos e os Asiáticos, existem também grupos transversais como as
mulheres, os velhos, os trabalhadores, os deficientes e grupos que se defi-
nem em termos de opções sexuais (Young, 1990: 40). Todos estes grupos
são frequentemente vítimas de alguma forma de opressão: exploração,
marginalização, perda de poder, imperialismo cultural e violência ou assé-
dio sexual. Segundo Young, essa opressão é gerada pelo princípio liberal
do universalismo abstracto que trata todos os indivíduos da mesma forma,
que os in-diferencia e avalia segundo o critério da “normalidade”; este cri-
238 Manual de Filosofia Política

tério corresponde às características do grupo dominante e, consequente-


mente, é incapaz de garantir a igualdade entre indivíduos que possuem
diferentes identidades e diferentes modos de vida. Assim, além dos cam-
pos da redistribuição e do reconhecimento, a opressão abrange os restan-
tes processos sociais, inclusive a cultura (idem: 152) e só pode ser supe-
rada através das políticas da diferença, desenhadas especialmente para
aqueles grupos e com o objectivo de lhes permitir alcançar estatuto igual
ao dos restantes cidadãos. Contra a indiferença, Young propõe a represen-
tação política dos grupos dominados, para que as suas perspectivas sejam
tidas em conta no processo deliberativo de tomada de decisão (idem: 187).
Na nossa opinião, o processo de diferenciação defendido por Young
acaba por conduzir a um novo tipo de indiferenciação: se todas as formas
de ser e todos os modos e estilos de vida são válidos e merecem reconhe-
cimento, então nenhum é melhor. É forçoso pensar-se em relativismo e
questionar o processo de tomada de decisão. Representação igual e diá-
logo entre iguais mais parecem ameaçar as liberdades do que garanti-las:
a existência de opiniões inconciliáveis e irredutíveis seria mais do que pro-
vável; os grupos de influência iriam exercer fortes pressões; as tentações
iliberais de alguns conquistariam terreno. E, inevitavelmente, o Estado
teria de assumir funções de organização e de direcção, pois teria de adop-
tar legislação específica para os grupos oprimidos, teria de alterar as regras
de funcionamento das suas instituições e poderia ter de proibir alguns dos
costumes e práticas tradicionais da sociedade civil. Assim, paradoxal-
mente, o multiculturalismo, que tem origem em preocupações de ordem
liberal, acabaria por impor a intervenção do Estado em múltiplas esferas
da vida social, violando não só o princípio liberal da neutralidade do
Estado, mas também o pressuposto de que o Estado deve orientar-se pelo
princípio do justo e não pelo do bem.

4. CONCLUSÃO

A reflexão filosófica sobre a multiculturalidade tem sido fértil em


propostas teóricas mas tem vindo a gerar inúmeros problemas. Não cabe
aqui esgotar a análise dos mesmos, mas dois foram objecto de maior
destaque neste trabalho: um problema de natureza teórica, a dificuldade de
compatibilizar o multiculturalismo com o liberalismo; e um problema rela-
tivo à unidade do Estado. Se por um lado, é difícil justificar o multicultu-
Multiculturalidade e multiculturalismo 239

ralismo com base em princípios liberais, por outro lado, Taylor, Kymlicka
e Young têm consciência de que um dos riscos do multiculturalismo é a
«balcanização» das sociedades e desenham projectos políticos que consi-
deram aptos para a evitar. A formação de um horizonte fundido de crité-
rios facilitador do diálogo intercultural, a criação de Estados multinacio-
nais e multiétnicos e a defesa das políticas da diferença no âmbito da
democracia deliberativa são mecanismos que podem eventualmente redu-
zir as tentações fragmentárias. Porém, podem também trazer consigo o
gérmen separatista: ao fortalecerem as identidades culturais específicas,
em vez de evitarem a fragmentação política, quando postos em prática aca-
bam por fortalecer grupos secessionistas e grupos iliberais que se opõem
à Democracia e aos Direitos Humanos.

BIBLIOGRAFIA

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240 Manual de Filosofia Política

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CAPÍTULO X
Guerra justa e terrorismo

FÁTIMA COSTA*

A guerra consiste num conflito armado e violento entre duas ou


mais comunidades políticas. Assume, por isso, frequentemente a forma
de agressão de um Estado à soberania e à integridade territorial de outro
Estado. Mas a guerra também pode ser um recurso de comunidades
políticas que aspiram à independência e ao exercício livre da soberania,
assim como de grupos organizados, partidos ou facções de um Estado que
pretendem influenciar decisivamente a sua orientação política. No pri-
meiro caso estamos perante guerras pela autonomia ou pela secessão, no
segundo, perante guerras civis.
A guerra distingue-se, assim, de outras formas de violência armada,
como aquela que ocorre, por exemplo, entre indivíduos, entre famílias ou
grupos de marginais. A guerra pressupõe sempre o recurso à violência com
fins políticos, o que, aliás, levou Clausewitz a considerá-la como a conti-
nuação da política por outros meios. Por isso, as questões éticas suscitadas
pelo terrorismo não recaem tanto sobre a legitimidade do recurso à luta
armada como forma de combate político, mas mais sobre o facto de o ter-
rorismo constituir uma estratégia ilegítima de combate, que viola as regras
da própria guerra. O terrorismo não é, assim, uma estratégia exclusiva de
grupos ideologicamente orientados, e cuja legitimidade ou representativi-
dade podem ser questionadas, mas antes uma estratégia profusamente uti-

* Mestre em Filosofia — área de especialização em Ética e Filosofia Política.


pela Universidade do Minho.
242 Manual de Filosofia Política

lizada pelos Estados, quer contra os inimigos, na guerra, quer contra a sua
própria população civil.

1. AS ÉTICAS DA GUERRA

Nenhuma outra actividade humana nos parece pôr em causa e sub-


verter os códigos morais de modo mais categórico e sistemático do que a
guerra. À guerra é vista como um período excepcional, no qual a destrui-
ção e a crueldade campeiam, e falar de ética neste contexto, parece ser um
contra-senso e mesmo um ultraje. Assim, e antes de mais, interessa anali-
sar a própria possibilidade da regulação moral dos conflitos e do discurso
moral acerca da guerra. Embora sejam teorias opostas, quer o realismo,
quer o pacifismo negam essa possibilidade, o primeiro defendendo a amo-
ralidade da guerra, o segundo a sua imoralidade. Pelo contrário, como
veremos, o utilitarismo e a teoria da guerra justa admitem que a guerra,
como qualquer outra actividade protagonizada, planeada e executada por
seres humanos implica escolhas, tomadas de decisão, condutas que são
passíveis de avaliação e de regulação ética.

1.1. O realismo

O realismo político pressupõe um profundo cepticismo quanto à


moralidade da e na guerra, assim como nas relações internacionais. À
guerra é uma situação de excepção, à qual não se aplicam os conceitos
morais. No fundo, a consideração da amoralidade da guerra obedece a
duas razões fundamentais. À primeira destas razões é apresentada pelo
realismo descritivo, teoria dominante entre os actores e os teóricos das
relações internacionais e da Ciência Política, que postula a incompatibili-
dade da ética e da política, nomeadamente na guerra, e a «natureza instru-
mental e subordinada da guerra»! à política. Para Robert O. Keohane, o
realismo político prefere «a linguagem do poder e dos interesses à lingua-

VA. J. CoATES, The Ethics of War, Manchester and New York, Manchester
University Press. 1997. pp. 99-102.
Guerra justa e terrorismo 243

gem dos ideais ou das normas».2 Entende-se, na linha de Thomas Hobbes,


que a moralidade é incapaz de descrever a realidade das relações entre
Estados, vivendo estes numa espécie de estado natural de guerra. Segundo
Kenneth N. Waltz, os Estados são as unidades de um sistema competitivo,
marcado pela ausência de uma soberania comum com força para impor a
legalidade, estando por isso «condenados» a obedecer aos imperativos da
realpolitik, a lutar pela sua sobrevivência e pela defesa dos seus interesses
vitais. As interacções entre Estados são consideradas racionais quando
visam a distribuição e a maximização do poder político e, por isso, os rea-
listas consideram que a guerra é um instrumento, não só legítimo como
necessário, para conquistar a hegemonia ou manter o equilíbrio de pode-
res, ou seja, para garantir e forçar a paz. Qualquer alteração no equilíbrio
de poderes vigente só é desejada por um Estado caso maximize o seu
poderio político e militar e impeça a sua subjugação ou a perda de influên-
cia internacional. À privação da soberania política é vista como o pior dos
males. Assim, e na medida em que todas as acções que visam a protecção
da comunidade política e o reforço da soberania do Estado são legítimas,
o realismo é uma perspectiva acentuadamente consequencialista, parti-
cularista e estatista.
A segunda razão, característica do realismo prescritivo, é a de que as
normas e as determinações morais aplicadas à guerra e ao sistema interna-
cional atraem consequências trágicas. Aqueles que defendem que a guerra
pode estar sujeita a preceitos «idealistas» ou «legalistas» são pura e sim-
plesmente «irrealistas». Embora possam ser pessoas bem intencionadas,
movidas por ideais elevados, levantam graves entraves à capacidade das
comunidades políticas se defenderem. Para o realismo prescritivo não se
trata da mera defesa de interesses, mas sim de necessidade militar. A des-
valorização dos interesses egoístas que movem os Estados e dos benefícios
do equilíbrio geoestratégico apenas contribuem para a submissão dos
povos. À própria moderação na guerra é a chave para a sua radicalização.
Em caso de conflito, não utilizar, hoje, toda a força disponível, e quando
esta parece oferecer boas probabilidades de sucesso, é apenas uma forma
de fortalecer o inimigo e de aumentar a possibilidade de um conflito pro-
longado e mortífero. Tal facto é atestado pela política de apaziguamento

2 Robert O. KEOHANE. «Realism, Neorealism and the Study of World Politics», in


Robert O. KEOHANE (ed.), Neorealism and its Critics, New York, Columbia University
Press. 1986. p. 9.
244 Manual de Filosofia Política

da França e da Inglaterra antes da II Guerra Mundial. A contenção na


guerra, segundo um dos maiores representantes do realismo, Carl von
Clausewitz, é uma irracionalidade e «um absurdo»,3 subverte a lógica da
guerra, já que esta «é um acto de violência planejado com o objectivo de
forçar o adversário a executar o nosso desejo».4 Para Clausewitz, apenas a
necessidade militar deve presidir às decisões em caso de guerra. Deste
modo, os realistas acreditam que os dirigentes políticos são obrigados a
sujar as suas mãos em prol da segurança e da sobrevivência do Estado.
Embora seja verdade que o realismo sustenta uma posição generica-
mente pró-guerra, favorecendo por exemplo as guerras preventivas, A. J.
Coates considera que não se deve confundir realismo com militarismo,
pois os realistas podem não ser entusiastas da guerra.S Ao contrário do
militarismo, típico dos totalitarismos, o realismo não glorifica a guerra
nem a vê como um fim em si mesma. Os realistas podem mesmo defender
a guerra como último recurso, devido aos elevados riscos e custos mate-
riais € humanos comportados, e nem sempre sustentam, tal como Clause-
witz, que a guerra implica uma escalada contínua de violência. Por razões
prudenciais, opôem-se ao uso excessivo e gratuito da violência, uma vez
que este é um obstáculo à paz futura. Segundo A. J. Coates, o realismo, tal
como a teoria da guerra justa, receia a intromissão da moralidade e do
idealismo na guerra, já que esta tanto pode conduzir à recusa total da
guerra, impossibilitando a defesa, como lançar as comunidades políticas
em guerras infindáveis e totais, guiadas por fanatismos políticos ou reli-
giosos, configurando cruzadas morais.6

1.2. O pacifismo

O pacifismo é a teoria inversa do realismo. Não considera que a


guerra seja amoral, mas sim imoral, pois, devido ao grau de violência e à
quantidade de mortes envolvidos, a guerra é sempre contrária a todos os
preceitos morais. O pacifismo defende uma posição antiguerra e favorá-
vel à paz. Mesmo aqueles que afirmam não serem contra a guerra em

3 Carl von CLAUsEWITZ, Da Guerra, São Paulo. Martins Fontes, 1996, p. 9.


4 Ibid., p. 7.
5 Cf. A. J. COATES. op. cit., pp. 40-76.
6 Cf. ibid.. pp. 23 e 101.
Guerra justa e terrorismo 245

geral, mas contra uma determinada guerra, fazem-no apenas como estraté-
gia persuasiva e, na prática, nunca são favoráveis a nenhuma. O pacifismo
é uma realidade complexa e heterogénea, reunindo correntes religiosas e
laicas, deontologistas e consequencialistas, abolicionistas e apologistas da
resistência não-violenta. Segundo Jan Narveson, o que as une é a «crença
não só de que a violência é má, mas também que é moralmente errado usar
a força para resistir, punir ou prevenir a violência».7 Aliás, as principais
críticas ao pacifismo centram-se na sua oposição absolutista à guerra e no
seu excessivo optimismo acerca da natureza humana. Segundo A. J. Coa-
tes, a principal debilidade do pacifismo reside na «tendência para consi-
derar qualquer defesa da guerra e gualguer recurso às armas como ma-
nifestações de militarismo. Esta associação de tudo o que é militar ao
militarismo suprime distinções autênticas e importantes e qualquer tenta-
tiva de subordinar a guerra a limites morais».8
Algumas correntes pacifistas possuem inspiração religiosa. Segundo
Elisabeth Anscombe, estes pacifistas acreditam que a guerra contraria os
ensinamentos cristãos de amor ao próximo, de compaixão e de respeito
pela vida dos inocentes.? Por oposição aos projectos mais laicistas do abo-
licionismo e da não-violência, os pacifistas religiosos, essencialmente cris-
tãos e budistas, que podem chegar a viver em comunidades isoladas, afas-
tadas da mundaneidade e do materialismo das sociedades contemporâneas,
sustentam a natureza sagrada da vida e o carácter absoluto do mal de
matar. A defesa das comunidades políticas e dos valores do Estado não se
pode sobrepor à lei divina, e configura em si uma idolatria. O pacifismo
deontologista, tanto de inspiração religiosa como laica, baseia a sua opo-
sição à guerra na inviolabilidade dos direitos, nomeadamente dos inocen-
tes, e na obrigação moral de não matar outros seres humanos. Só há uma
forma de evitar a morte na guerra, que é não fazer a guerra de todo. O paci-
fismo pode também radicar nas chamadas «éticas das virtudes», tal como
a de Aristóteles, e que Brian Orend designa de pacifismo teleológico.10

7 Jan NARVESON. «Pacifism: A Philosophical Analysis», in Richard A. Wassers-


trom (ed.). War and Moraliry, Belmont. Wadsworth, 1970, p. 63.
s A. J. COATES. op. cit.. p. 40.
9 Cf. Elisabeth ANscomBE. «War and Murder». in Richard A. Wasserstrom (ed.),
op. cit.. pp. 46-50.
1 Cf. Brian OREND, The Morality of War. Ontario. Broadview Press. 2006.
pp. 243-250.
246 Manual de Filosofia Política

Para o ser humano, o telos, o objectivo da sua vida é o pleno desenvolvi-


mento das suas faculdades, nomeadamente da excelência moral. Neste
sentido, a guerra surge como a realidade menos apropriada para o exercí-
cio das verdadeiras virtudes, tais como a caridade, o amor, a honestidade,
a tolerância e o perdão. Já o pacifismo consequencialista opõe-se à guerra
pelo facto de esta ser contraproducente, uma vez que, devido às elevadas
doses de sofrimento que comporta, os benefícios da guerra nunca superam
os seus custos. Julga-se que a violência é geradora apenas de mais violên-
cia e responsável pela maximização da infelicidade do maior número. Para
Robert Holmes e Richard Norman, dois dos mais destacados pacifistas, a
consideração da intencionalidade da acção, questão central na doutrina do
duplo efeito e na teoria da guerra justa, não faz qualquer sentido quando
se trata do acto de matar.
De facto, o pacifismo considera que a guerra moderna liquidou
a possibilidade da guerra justa. A guerra biológica, a guerra nuclear, O
recurso à devastação estratégica retiraram todo o sentido aos dois princí-
pios do jus in bello, o da justa proporcionalidade e o da discriminação
entre combatentes e não-combatentes. No fundo, a guerra moderna denun-
cia a natureza intrínseca da guerra, destruindo todas as ilusões de justiça e
de restrição moral, pois consideram existir uma relação directa entre o
desenvolvimento tecnológico na guerra e a sua desumanidade crescente.
Além disso, o pacifismo considera que o principal risco da teoria da guerra
Justa é o de, ao tentar estabelecer os limites morais dos conflitos armados
e limitar a violência que neles se pode exercer, mais não fazer do que legi-
timar a guerra. O abolicionismo, que conta com Erasmo, Abade de Saint-
-Pierre e Kant como precursores, sustenta que a humanidade se deve
empenhar em pensar a paz e não a guerra. Prefere a elucidação das condi-
ções para abolir a guerra (0 que supõe a transformação de toda uma cul-
tura centrada na apologia da guerra e dos feitos guerreiros) e a criação de
uma nova ordem internacional, na qual domine a legalidade, a justiça, a
cooperação e a paz. Segundo Michael Walzer, embora o abolicionismo, tal
como a teoria da guerra justa, tenha o mérito de aspirar a um futuro sem
guerra, tem o demérito de nos privar de critérios que permitam fazer dis-
tinções morais cruciais. Quando não somos capazes de discriminar a jus-
tiça da injustiça, na guerra como noutras actividades, facilmente caímos
na indiferença, equiparando a legítima defesa a ataques cegos a inocentes.
Ao julgarem todas as guerras injustas, impossibilitam a defesa das comu-
nidades, pelo que Michael Walzer os acusa de facilitarem o maior dano à
Guerra justa e terrorismo 247

paz, o triunfo da agressão, enquanto Elisabeth Anscombe os acusa de atri-


buírem o mesmo valor ao derramamento do sangue do agressor e da sua
vítima inocente. Os pacifistas convidam ao sacrifício da vítima, que Wal-
zer considera só ser legítimo a nível pessoal. Santo Agostinho considerava
que o soldado, enquanto instrumento de defesa de uma comunidade, não
se pode abster de usar a violência. Para os pacifistas, este carácter abs-
tracto, colectivo e impessoal da guerra, o facto de levar pessoas normais a
cometer actos que na vida civil seriam incapazes de perpetrar, por ferirem
os seus valores morais, é uma prova acrescida da imoralidade da guerra.
A estratégia da não-violência aparece como uma resposta do paci-
fismo às críticas de incapacidade para resistir à agressão militar ou à
repressão política na sociedade interna. A orquestração de campanhas
maciças de desobediência civil e de não-cooperação com o invasor ou o
tirano impediriam o normal funcionamento das instituições, tornando o
país ingovernável. Como nunca foi verdadeiramente tentada, nem o grau
de preparação neste tipo de estratégia pode ser equiparado à intensidade do
treino militar, Robert Holmes considera que a não-violência não pode ser
declarada ineficaz. Porém, para Walzer, este tipo de estratégia, usada com
relativo sucesso por Gandhi e Martin Luther King, Jr., esbarra num óbice
fundamental: o seu sucesso «está inteiramente dependente das convicções
e das sensibilidades morais dos soldados inimigos»!! e «conta com a imu-
nidade dos não-combatentes».!2 Tal como foi salientado por George
Orwell, esta estratégia convive bem com regimes democráticos, mas não
tem quaisquer hipóteses de sucesso frente a regimes ditatoriais e cruéis,
como o nazi.

1.3. O utilitarisno

Ao contrário das correntes anteriores, o utilitarismo, tal como a


teoria da guerra justa, admite que a guerra tem uma natureza moral e que
as acções que aí decorrem podem ser sujeitas à normatividade ética. O
utilitarismo institui como critério de moralidade na guerra o princípio da
utilidade. Assim, admite que a guerra pode ter um carácter moral, desde

11 Michael WALZER, Just and Unjust Wars: A Moral Argument with Historical
Hlustrations, 4h ed., New York, Basic Books, 2006, p. 334.
12 Ihid.
248 Manual de Filosofia Política

que contribua para a maximização da felicidade para o maior número,


avaliada com base em cálculos de probabilidade e de felicidade expectá-
vel. O utilitarismo pressupõe a imparcialidade ética, pelo que a felicidade,
entendida como prazer e ausência de dor, dos membros de uma das fac-
ções de um conflito armado não pesa mais do que a felicidade dos das
outras. O utilitarismo não considera que uma acção seja justa ou injusta
em si, nem que a intencionalidade do agente ou o merecimento do desti-
natário sejam moralmente relevantes. Como a guerra implica sempre
danos humanos e materiais avultados, é provável que a utilidade cal-
culada conduza à rejeição da guerra ou de actos de força desproporcio-
nada e de excessiva crueldade, devido à quantidade de sofrimento impli-
cada. Assim, matar, segundo a moralidade utilitarista, não é um mal em
si, mas um mal na medida em que provoca sofrimento àquele que morre,
aos seus familiares e amigos, além de o privar de toda a sua felicidade
futura. Isto torna-se especialmente gravoso quando muitos dos mortos
num conflito militar, nomeadamente soldados, são demasiado jovens.
Contudo, os mesmos cálculos de utilidade que servem para condenar
moralmente algumas acções militares podem ser usados para legitimar
outras e este tem sido o grande ponto de conflito com a teoria da guerra
justa. Os utilitaristas, em nome da maximização da felicidade para o maior
número, podem admitir a violação de direitos e das regras da guerra,
nomeadamente da imunidade dos não-combatentes. Admitem, por isso, o
sacrifício de certos indivíduos, desde que seja expectável o benefício para
um maior número, e muitas têm sido as acções moralmente problemáticas,
como os ataques nucleares a Hiroxima e Nagasáqui, sustentadas em argu-
mentações de tipo utilitarista.
Contudo, para R. B. Brandt, o utilitarismo não pressupõe a violação
das regras da guerra (cuja expressão máxima são as Convenções de Haia
e de Genebra), pois estas têm, de facto, natureza utilitarista. O carácter
universal destas regras garante, por um lado, a imparcialidade ética e, por
outro lado, a sua observância maximiza «as expectativas de utilidade a
longo prazo para as nações em guerra»,!3 minimiza os estragos produzidos
pelas guerras, protegendo os soldados e os civis de sofrimentos cruéis
e supérfluos que tornem a paz uma empresa impossível. Desta forma, o

3 R, B. BRANDT. «Utilitarianism and the Rules of War». Philosophy & Public


Affairs (1971/72). p. 150.
Guerra justa e terrorismo 249

utilitarismo tenta superar aquela que é uma das objecções que mais insis-
tentemente lhe é levantada, a de que obrigaria o agente a cálculos, muitas
vezes complexos, nada condicentes com a urgência das situações.
Segundo o utilitarismo das regras, as regras da guerra teriam sido criadas
por legisladores competentes, e como já provaram a sua utilidade noutras
situações, devem ser sempre respeitadas, mesmo quando os nossos cir-
cunstancialismos apontam para outro lado.14
À teoria da guerra justa rejeita a análise das regras e das acções béli-
cas à luz de critérios utilitaristas, porque, segundo Walzer, «a derradeira
tirania da guerra»!5 é o facto de, havendo nela um conflito imanente entre
os direitos e a utilidade, entre a indispensabilidade de bem combater e a
necessidade de vencer, a questão da nobreza (real ou imaginária) dos fins
tender a sobrepor-se totalmente à questão da legitimidade dos meios,
anulando limites morais essenciais à guerra justa, tais como os princípios
da justa proporcionalidade e da imunidade dos não-combatentes. Existe o
risco de legitimar o sacrifício das vidas dos inocentes, desde que esse
sacrifício pareça propiciar mais felicidade para o maior número, e isto é
tanto mais grave quanto a validade dos cálculos de utilidade só pode ser
apreciada retrospectivamente. Segundo Walzer, porque na guerra existe
um conflito insanável entre a utilidade e os direitos, estes devem preva-
lecer sempre, à excepção, como veremos, das situações de emergência
suprema.

1.4. A teoria da guerra justa

Santo Agostinho, S. Tomás de Aquino, Hugo Grócio, Francisco


Suárez e Francisco de Vitoria são nomes destacados da tradição da teoria
da guerra justa, enquanto Michael Walzer, Elisabeth Anscombe, John
Rawls, Thomas Nagel e James Turner Johnson se destacam nos nossos

4 Segundo Brandt, são três as regras ou restrições humanitárias da guerra: não


devem ser causadas mais baixas do que as que são rigorosamente necessárias para asse-
gurar a vitória, nem submeter os prisioneiros a tratamentos indignos: o ataque deliberado
a inocentes só é admissível se obedecer ao critério da estrita necessidade militar: só
se podem provocar baixas superiores ao inimigo se tal for necessário para pôr fim à guerra
e se não potenciar o reinício das hostilidades. Cf. ibid., pp. 145-165.
15 Michael WALZER. Just and Unjust Wars, op. cit., p. 325.
250 Manual de Filosofia Política

dias. Embora a origem do pensamento da guerra justa radique no cristia-


nismo, a argumentação contemporânea é maioritariamente laica. Os teóri-
cos da guerra justa, contrariamente ao que o nome da teoria poderia suge-
rir, não se ocupam da legitimação de toda e qualquer guerra. Ao contrário
do realismo e do pacifismo, admitem que a guerra pode ter natureza moral,
mas por isso mesmo dedicam-se a procurar critérios morais universais €
imparciais para lhe impor limites. Acreditam que a guerra é um recurso
legítimo das comunidades políticas, embora extremo, para forçar o res-
peito pelos seus direitos políticos na esfera internacional. A protecção da
vida e da liberdade dos cidadãos é uma das obrigações e prerrogativas
essenciais do Estado, estabelecendo um paralelismo entre a função das
polícias no plano interno e a dos exércitos no plano externo. Assim, a
guerra não só pode ser moralmente legítima, como ser um imperativo
moral, na medida em que a agressão coage, «moral e fisicamente»,16 Os
indivíduos e as comunidades a lutar em defesa das suas liberdades e das
suas vidas.
No entanto, esta teoria afasta-se dos critérios realistas ou militaris-
tas e nada tem a ver com a glorificação da guerra e das suas virtudes. A
guerra só pode ser travada por razões morais e como via necessária para
a paz. Os teóricos da guerra justa consideram que a guerra nunca pode ser
um prolongamento natural dos interesses políticos, económicos ou reli-
giosos, nem ser travada em nome da expansão do império ou da fé. Na
realidade, as guerras justas são essencialmente defensivas, e limitadas nos
seus objectivos e na força empregue. Segundo Walzer, a guerra não é um
fenómeno regulado por leis naturais nem por sistemas de relações abs-
tractas tão ao gosto do estruturalismo e do neorealimo. Tal como outras
actividades humanas, a guerra é intrinsecamente moral. As decisões rela-
tivas a combater ou não combater, relativas ao momento de dar início ou
de terminar as hostilidades, relativas ao modo como devem decorrer os
combates, à força e ao tipo de armamento empregues são da responsa-
bilidade de agentes morais concretos e dotados de livre-arbítrio. Se na
guerra estão em causa valores como a vida e a liberdade individual e polí-
tica, não há como não ter implicações morais. Assim, temos mais a
ganhar se não rejeitarmos a guerra liminarmente, e se procurarmos dis-
criminar as acções justas da violência intolerável. O grande erro do paci-

16 Ibid., p. 53.
Guerra justa e terrorismo 251

fismo reside no seu excessivo optimismo. As políticas de apaziguamento


e as intenções declaradas de não-violência não são suficientes para demo-
ver um agressor determinado e podem abandonar as vítimas à sua sorte.
Por outro lado, a incapacidade para discriminar a justiça da injustiça,
leva-nos a atribuir igual valor tanto a um acto de legítima defesa como ao
massacre de inocentes. A teoria da guerra justa é uma corrente deontolo-
gista e por isso rejeita os cálculos de utilidade, uma vez que podem con-
duzir, em nome da grandeza dos fins, à violação dos direitos e à permis-
são de meios considerados mala in se.
Esta teoria opera algumas distinções fundamentais, dando origem a
três outras teorias, relativas ao justo recurso à guerra (jus ad bellum), à
justa conduta na guerra (jus in bello) e à justiça após a guerra (jus post
bellum). Na medida em que é o autor da obra mais sistemática e repre-
sentativa da guerra justa na actualidade, Just and Unjust Wars, Michael
Walzer será a nossa principal referência, quer em matéria de guerra justa,
quer em matéria de terrorismo.

1.4.1. O jus ad bellum

A teoria do jus ad bellum identifica, tradicionalmente, seis princípios


ou condições da justiça da guerra. São eles a boa intenção, a autoridade
competente, a causa justa, O último recurso, a probabilidade de sucesso e
a justa proporcionalidade.
Uma guerra não pode ser justa se não for comandada por boas inten-
ções, ou seja, só é justa se visar a defesa de direitos, essencialmente, os
direitos à vida, à liberdade individual e à liberdade política das comunida-
des. Uma guerra é injusta se as intenções forem a violação da soberania e
da integridade territorial de outros Estados, a delapidação de recursos, a
expansão do império ou da fé, a submissão ou o massacre dos povos.
Embora as verdadeiras intenções que norteiam o recurso às armas possam
ser escamoteadas e muitas vezes apenas sejam reveladas a posteriori pelos
juízos da história, a verdade é que as acções das partes em conflito são
reveladoras das suas intenções. Nunca se poderá falar de boas intenções se
um Estado promove, por exemplo, campanhas sistemáticas de extermínio.
Embora Elisabeth Anscombe exija que a guerra justa seja comandada ape-
nas por intenções justas, condenando, por exemplo, a acção britânica em
auxílio da Polónia no início da II Guerra Mundial por não ter sido total-
252 Manual de Filosofia Política

mente desinteressada,17 Walzer sustenta que em política não há intenções


puras, admitindo por isso um misto de razões, um misto de interesses e de
valores. Por exemplo, em caso de crise humanitária, é preferível a acção
do que permitir o extermínio de inocentes.
O princípio da autoridade competente assenta num outro princípio, de
natureza contratualista, o de que o Estado detém o monopólio do uso legí-
timo da força para imposição da legalidade. Nesse sentido, a guerra seria
uma extensão desse monopólio na esfera internacional. Este princípio é
muito contestado por grupos anarquistas ou marxistas, que vêem no Estado
uma fonte de opressão, reclamando assim o direito do povo de recorrer à
luta armada. Mais recentemente, estruturas como a Al-Qaeda parecem vio-
lar directamente este princípio. Apesar de ser muito crítico face ao terro-
rismo e ao recurso à violência por parte de grupos de duvidosa representa-
tividade ou de representatividade meramente virtual,!8 Walzer desvaloriza
este princípio, uma vez que uma guerra pode ser injusta e ser declarada por
uma autoridade competente (como Hitler, na II Guerra Mundial). Além
disso, considera que o «patrocínio» do Conselho de Segurança da ONU não
confere, só por si, legitimidade às guerras, porque esta organização fun-
ciona como uma oligarquia, não tem meios próprios de combate, e mais não
faz do que defender os interesses dos seus Estados-membros.
A guerra deverá obedecer também a uma causa justa. «Apenas a
agressão pode justificar a guerra»,19 seja ela uma guerra de legítima
defesa, seja ela uma intervenção estrangeira. No fundo, a guerra é justa
quando se impõe como o único meio, esgotados todos os outros, de defesa
de direitos e de resistência à agressão. Segundo Walzer, a guerra é um
crime quando o agressor força «os homens e as mulheres a arriscarem as
suas vidas para defender os seus direitos. No fundo, confronta-os com a
seguinte escolha: os vossos direitos ou (para alguns) as vossas vidas!»20

17 Cf, G.E.M. ANSCOMBE. «The Justice of the Present War Examined», in Ethics,
Religion and Politics: Collected Philosophical Papers, Volume Il, Minneapolis. Univer-
sity of Minnesota Press. 1981, pp. 74-75.
ig Cf. Michael WALZER, «Political Action: The Problem of Dirty Hands», Philo-
sophy & Public Affairs (1972/73), pp. 160-180; Cf. Michael WALZER, Obligations:
Essays on Disobedience, War, and Citizenship, Cambridge. Harvard University Press,
1970, pp. 46-73.
19 Michael WALZER. Just and Unjust Wars. op. cit.. p. 62.
20 Ibid. p. 51.
Guerra justa e terrorismo 253

Por isso mesmo Santo Agostinho e Vitoria defendiam que a guerra nunca
poderia ser objectivamente justa para todas as facções implicadas, uma
vez que havendo um agredido tem de haver sempre um agressor.2!
Na medida em que as casuts belli justas se prendem com a defesa de
direitos. entre eles. os direitos de soberania, de autodeterminação política
dos povos e de integridade territorial, a teoria do jus ad bellum assume,
sobretudo em Walzer, um pendor acentuadamente comunitarista. Segundo
Walzer, e por oposição a uma perspectiva liberal, os direitos dos indiví-
duos não são defendidos indiferentemente por qualquer tipo de sociedade.
As comunidades e os seus membros têm o direito de viver sob as insti-
tuições políticas que constituíram, livres de qualquer imposição externa,
mesmo em situações de conflito interno violento. Para garantir este direito
impõe-se o respeito internacional pela soberania e pelas fronteiras, assim
como o reconhecimento de que a legitimidade do poder político decorre do
consentimento dos governados. Walzer sustenta assim a presunção da
legitimidade dos governos perante a comunidade internacional, pois os
estrangeiros raramente estão em posição de avaliar a legitimidade de um
governo. Neste sentido, a teoria do jus ad bellum de Walzer tem no prin-
cípio da não-intervenção e no princípio de auto-ajuda de J. S. Mill22 a sua
pedra angular. Segundo Mill, assim como a liberdade ou a virtude não
podem ser conquistadas por interpostas pessoas, também a liberdade dos
povos não pode ser conquistada por imposição externa. Para Walzer, há
pois que evitar paternalismos políticos, ainda que o façamos em nome da
democracia, da justiça social ou dos direitos humanos. As relações inter-
nacionais devem-se pautar pela não-intervenção, pois «[eJmbora os Esta-
dos sejam fundados com vista à protecção da vida e da liberdade, não
podem ser desafiados em nome da vida e da liberdade por qualquer outro
Estado».23
O princípio da não-intervenção é objecto de forte contestação pelos
realistas que, por razões prudenciais, temem os efeitos dos conflitos arma-
dos na segurança dos outros Estados, especialmente quando estes obede-
cem a programas ideológicos e religiosos de pendor universalista. Mas o
princípio da não-intervenção também tem sido contestado por visões

21 O que não impede que uma guerra seja travada entre agressores, logo. que seja
objectivamente injusta para todas as facções envolvidas.
22 Cf. ibid.. pp. 87-91.
23 Ihbid.. p. 61.
254 Manual de Filosofia Política

menos estatistas e mais cosmopolitistas das relações internacionais.


Richard Wasserstrom, Gerald Doppelt, Charles Beitz e David Luban24
acusam Walzer de privilegiar a integridade comunitária e os sentimentos
nacionalistas em detrimento dos direitos humanos, premiando os governos
que forjam o consentimento popular à custa da repressão mais sangrenta e
da denegação de direitos. Para estes autores importa antes de mais deter-
minar a legitimidade de um Estado, que deveria ser aferida pela justiça
das suas instituições e pelo respeito pelos direitos humanos fundamentais.
Porém, Walzer teme o «utilitarismo dos direitos», receia que o ideal res-
peito universal pelos direitos humanos transforme a guerra numa espécie
de acto superrogatório até à eliminação total das injustiças. Apenas admite
as intervenções estrangeiras em situações muito restritas em que existe
uma quebra notória dos laços de consentimento entre governados e gover-
nantes, como nas guerras de secessão, nas guerras civis, ou quando o
Estado se envolve em campanhas de deportação ou assassinatos em massa
(o que legitima as chamadas intervenções humanitárias).25
«O critério do último recurso sublinha a primazia da paz sobre a
guerra no pensamento da guerra justa».26 Os conflitos devem ser resolvi-
dos de forma pacífica, recorrendo por exemplo à diplomacia e a sanções,
e só depois de esgotados todos os recursos, e em casos extremos, se pode
dar início às hostilidades. Não há aqui uma rejeição absoluta da guerra,
mas considera-se que uma guerra «antes do tempo», tal como a guerra pre-
ventiva, é um erro. No prefácio à 4.º edição de Just and Unjust Wars,
datado de 2006, Waizer defende a extensão deste princípio do jus ad bel-
lum ao jus ad vim, à teoria dos usos justos e injustos da força. Segundo
Waizer, a recente experiência do Iraque atesta a legitimidade do recurso a
uma «força preventiva», a uma força que fica aquém-da-guerra (não se
trata de guerra preventiva), e que se materializa na imposição de um sis-
tema de contenção (que pode ir da imposição de sanções económicas à
criação de zonas de exclusão aérea). Esta será uma forma de prevenir
simultaneamente a guerra e os massacres, de dar resposta às reivindica-

24 Walzer responde às críticas destes autores em «The Moral Standing of States:


A Response to Four Critics», Philosophy & Public Affairs, vol. 9, n.º 3 (Spring 1980),
pp. 209-229.
25 Ver as «regras de desacatamento» in Michael WaLZER, Just and Unjust Wars.
op. cit., pp. 86-108.
26 A, J. COATES, op. cit., p. 189. O itálico é nosso.
Guerra justa e terrorismo 255

ções de autonomia dos povos, de forçar a mudança de regime e de respei-


tar O princípio da não-intervenção. Para Walzer. basta comparar a situação
no Iraque antes e após a invasão americana para saber que vale a pena
insistir na força-aquém-da-guerra.
Uma guerra para ser justa tem também de respeitar o critério da pro-
babilidade de sucesso. Este critério visa prevenir desastres anunciados, o
recurso à guerra quando a desproporção de forças é tão elevada que não
faz sentido ter esperança na vitória, quando os custos prováveis de uma
guerra ultrapassam grandemente os benefícios esperados. Tal seria o caso
de uma guerra nuclear. No entanto, a história está repleta de exemplos
em que povos mais pequenos ou com menor potencial bélico se lançaram
com sucesso em campanhas militares, pelo que este critério, de natureza
prudencial, pode ser falível e acabar premiando os Estados agressores
mais poderosos.
À Justiça de um conflito armado depende também da observância do
princípio da justa proporcionalidade, ou seja, do equilíbrio entre o bem a
alcançar e o mal provocado. Para promover tais cálculos há que atribuir
igual valor aos benefícios e custos de todas as partes envolvidas. No
fundo, trata-se de saber antes de se recorrer à guerra se vale a pena todo o
sofrimento e morte nela potencialmente implicados. A guerra pode ser
uma resposta muito arriscada e desproporcionada face às ofensas ou danos
sofridos. Este critério é muitas vezes usado para sustentar a impossibili-
dade da guerra justa, nomeadamente da guerra moderna.

1.4.2. O jus in bello

Chama-se jus in bello à teoria que se ocupa da justiça do combate e


dos meios nele empregues, pelo que está menos orientada para questões
políticas e mais para questões estratégicas e tácticas, assim como para os
limites morais do acto de matar. Segundo Walzer, as regras da guerra, sem
a observância das quais não é possível haver justiça nos conflitos armados,
organizam-se em torno de um princípio central, o da igualdade moral de
todos os combatentes. Esta é essencial para a justiça da guerra, porque, tal
como afirmava Vitoria, apesar de uma guerra não poder ser objectiva-
mente justa para todas as facções, pode ser subjectivamente sentida como
tal por todos os intervenientes. A igualdade moral dos combatentes
decorre da igualdade moral das suas comunidades e das vidas inocentes
que têm como função proteger. O soldado tem o direito de matar, «privi-
256 Manual de Filosofia Política

légio» que não lhe é concedido na vida civil, mas não o faz a título
pessoal, mas sim enquanto instrumento político da sua comunidade. Além
disso, a ausência de igualdade entre combatentes implicaria a condenação
daqueles que, vítimas de acidentes históricos, tivessem sido confrontados
com a decisão de combater, tanto mais que a maioria teve de tomar essa
decisão quando ainda era muito jovem. A igualdade moral dos combaten-
tes não é consensual, na medida em que parece pôr em causa o princípio
de que a violência só é justa como resposta a uma agressão, e convidar à
desresponsabilização dos militares. Por exemplo, Jeff McMahan defende
que só o soldado que combate por uma causa justa tem legitimidade para
matar. Os restantes apenas podem recorrer à violência em legítima
defesa.27 Mas, para Walzer, muitas são as razões que levam alguém a
combater. Os soldados podem ser forçados a lutar ou ser sujeitos a doses
maciças de propaganda, podem-se deixar conduzir por medos, sentimen-
tos patrióticos, pressões familiares, ou simplesmente acreditar que a guerra
é justa. Nesse caso, o seu crime pode ter sido apenas o de fazer juízos dife-
rentes daqueles que a história e os vencedores instituíram como sendo
«os correctos».
Decorrentes da igualdade moral dos combatentes estão os princípios
que estabelecem o modo de matar e a natureza das vítimas: o princípio da
proporcionalidade e o princípio da discriminação. Só estes permitem dis-
tinguir um acto de guerra legítimo de um massacre. O primeiro supõe o
requisito da força mínima e obriga a que a violência empregue seja a estri-
tamente necessária para alcançar os objectivos militares, condenando toda
a violência inútil e gratuita. Em caso de represália, a resposta militar não
deve infligir danos desproporcionais aos sofridos. Independentemente da
força usada, a teoria da guerra justa proíbe também certo tipo de arma-
mento, como o nuclear e o biológico, assim como o recurso a meios mala
in se, tais como a violação, a tortura, o genocídio, as limpezas étnicas, a
simulação da rendição com o fito de matar o inimigo, ou, ainda, forçar
soldados prisioneiros a combater ou usá-los como escudos humanos.
O princípio da discriminação reconhece a natureza dos que podem
ser atacados e mortos na guerra. Elisabeth Anscombe, Thomas Nagel e
Michael Walzer postulam a imunidade dos não-combatentes. A perda de

27 Cf. Jeff MCMAHAN, «Guerra y Paz», in Peter SINGER (ed.). Compendio de Ética,
Madrid. Alianza Editorial, 1995, p. 526.
Guerra justa e terrorismo 257

imunidade pelos soldados é paralela à conquista dos direitos de comba-


tente. O direito à imunidade é universal e a perda deste direito pelo sol-
dado só pode ser explicada com base na natureza da sua acção. Ao con-
verterem-se em soldados, transformam-se em homens perigosos, passam a
deter o direito de matar, e efectivamente são preparados para o fazer com
eficácia, mas na medida em que o fazem em nome da segurança e da liber-
dade dos membros da sua comunidade, e não a título pessoal, não podem
ser tratados como criminosos (salvo se cometerem crimes de guerra) e têm
direito a uma quarentena benevolente (não malevolente) caso sejam feitos
prisioneiros (tal como prevê a Convenção de Genebra de 1949). O direito
de matar é, de facto, um «presente envenenado», pois ao portarem armas
e ao envergarem uniformes passam a ser alvos preferenciais dos inimigos.
Mas é precisamente neste sentido, segundo Nagel, que se pode compatibi-
lizar o comportamento hostil para com o soldado com o facto de o tratar
como pessoa, com dignidade, ou seja, num sentido muito kantiano, como
um fim em si mesmo e não como um meio. Assim, os soldados podem ser
objecto de comportamento hostil e mortos, tanto para Nagel como para
Anscombe, por serem «nocentes», isto é, por estarem armados e empe-
nhados em causar dano, em matar. Os civis estão desarmados, não estão
empenhados em combater, nada na sua acção pode pôr em risco a vida dos
soldados e por isso são considerados inocentes. Matá-los intencionalmente
é estritamente proibido, quaisquer que sejam as consequências. Nada
fizeram para perder a sua imunidade, atacá-los equivale a tratá-los como
meios para alcançar um fim. O soldado tem a obrigação de tomar todas
as «diligências devidas» para evitar a sua morte, mesmo que com isso
aumente os seus próprios riscos.
No entanto, nem todos os civis possuem imunidade. Os que traba-
lham em fábricas de armamento, que dão apoio financeiro ou logístico às
operações militares, contribuem objectivamente para o esforço de guerra e
podem ser atacados. Estão isentos de ataque «aqueles que apenas servem
as necessidades dos combatentes enquanto seres humanos, tal como os
camponeses e os fornecedores de alimentos, ainda que a sobrevivência
enquanto ser humano seja uma condição necessária para o funcionamento
eficiente como soldado».28 Para Nagel, estamos em conflito com o sol-

28 Thomas NaGEL. «War and Massacre», Philosophy & Public Affairs (1971/72),
p. 140.
258 Manual de Filosofia Política

dado e não «com a sua existência enquanto ser humano».29 O próprio sol-
dado recupera o direito à vida e à segurança assim que retorna à vida civil,
é feito prisioneiro, se encontra doente ou de qualquer modo impedido de
provocar danos.
Contudo, como é mais do que provável que, na guerra, ocorra a
morte de não-combatentes, a doutrina do duplo efeito (DDE), de S. Tomás
de Aquino, permite identificar as condições em que a morte de inocentes
pode constituir um acto de guerra legítimo. Segundo a DDE, uma acção só
é legítima se (1) a acção for boa em si; (2) se a intenção do agente for boa,
ou seja, se o agente não desejar os eventuais efeitos negativos da sua
acção; (3) se os prováveis efeitos negativos da acção não constituírem um
meio para atingir os fins do agente; (4) se os efeitos benéficos da acção
superarem e compensarem os seus malefícios. Assim, o acto de matar ino-
centes só é aceitável, primeiro, se a morte não for intencional, segundo, se
não for um meio para o agente alcançar os seus fins, terceiro, se os efeitos
benéficos dessa acção para o agente não forem desproporcionais quando
comparados com o mal provocado às vítimas. Walzer levanta uma ressalva
à DDE, pois a intenção de não matar inocentes não terá qualquer valor se
não for acompanhada das «diligências devidas» para evitar essas mortes.
Na medida em que as teorias do jus ad bellum e do jus in bello cons-
tituem «a versão militar do problema dos fins e dos meios»,30 Walzer con-
sidera fundamental que estas sejam logicamente independentes. A inde-
pendência destas teorias tem sido muito contestada por aqueles que julgam
que a consideração da justiça na guerra tem de estar subordinada ao facto
de a guerra ser ou não justa. Mas Walzer vê na autonomia destas teorias o
único meio para evitar a escala móbil, que se exprime pela máxima
«quanto mais justa for a causa, mais direitos ela confere».31 O grande
risco da escala móbil reside no facto de, «quando o desfecho do combate
é concebido em termos de justiça»,32 se tender a julgar que todos os meios
necessários são legítimos, mesmo as violações dos direitos dos inocentes.
Vão-se relaxando as regras da guerra, de modo a conceder aos «soldados
justos» uma liberdade de conduta quase ilimitada, tanto maior quanto mais
justos parecerem os fins pelos quais combate. Contudo, a universalidade e

29 Ibid., p. 141.
30 Michael WaLZzER, Just and Unjust Wars, op. Cit.. p. XXV.
31 Ibid., pp. 228-232 e 239-240.
32 Ibid., p. 226.
Guerra justa e terrorismo 259

a inviolabilidade dos direitos dos inocentes exige que estes permaneçam


intactos mesmo perante «soldados justos».
Walzer apenas admite a subordinação do jus in bello ao jus ad
bellum nas situações de emergência suprema, em que existe um perigo
grave e iminente, tal como a vivida pelo Reino Unido nos primeiros anos
da II Guerra Mundial. Quando uma comunidade se vê ameaçada de
extinção e os seus membros condenados ao genocídio ou à escravidão,
dá-se um conflito insanável entre os direitos humanos e os direitos das
comunidades. Apenas neste caso, e porque os riscos são terríficos e
cruéis, se vêem os dirigentes políticos obrigados a sujar as mãos, vio-
lando a imunidade dos não-combatentes inimigos, em prol da segurança
dos seus cidadãos e da sobrevivência do Estado. Walzer considera que
em tais situações, paradoxalmente, se tem de violar a moralidade para
impor o seu respeito.

1.4.3. O jus post bellum

A terceira teoria, o jus post bellum. trata «da restauração da paz, da


ocupação militar e da reconstrução política»33 e é talvez, de todas, a teoria
mais ignorada. No entanto, a reconstrução política a que foram submetidas
as potências do Eixo na II Guerra Mundial e as mais recentes crises que
conduziram a intervenções humanitárias deram-lhe um forte alento. Antes
de mais, O jus post bellum reflecte sobre o momento adequado para dar por
terminado um conflito armado. O critério mais consensual é o do statu
quo ante bellum, embora, para Walzer, não deva ser entendido em sentido
muito literal, pois a situação anterior à guerra foi precisamente a que a
ela conduziu. No fundo, considera-se que o conflito deve ser terminado
quando é possível restaurar os direitos de soberania e de integridade ter-
ritorial violados, e garantir a segurança física e a liberdade política dos
membros de uma comunidade. Para que tal seja possível, um Estado
vítima de agressão pode exigir compensação financeira pelos danos sofri-
dos, o desarmamento total ou parcial do Estado agressor, como prevenção
contra futuras agressões. Pode ainda exigir a condenação dos criminosos
de guerra, de acordo com o estipulado no art. 6.º da Carta de Londres, pela

33 Michael WALZER. «Introdução». in A Guerra em Debate, trad. Luísa Feijó.


Lisboa. Edições Cotovia. 2004. p. 16.
260 Manual de Filosofia Política

qual se regeu o Tribunal de Nuremberga.34 Além da definição de crimes


de guerra, de crimes contra a paz e de crimes contra a humanidade, o Tri-
bunal de Nuremberga teve o mérito de inaugurar um tempo em que os
estadistas e os militares podem ser responsabilizados individualmente
pelas suas acções em tempo de guerra. Os membros de um Estado agres-
sor não perdem os seus direitos, pelo que também aqui deve imperar a dis-
criminação entre os verdadeiros agentes da guerra e os cidadãos em geral,
excluindo as condenações colectivas.
Walzer defende também a independência lógica desta teoria face às
restantes teorias da guerra justa. Com a autonomia do jus post bellum,
Walzer pretende evitar a predominância do jus ad bellum, ou seja, pretende
evitar que um Estado vítima de agressão, aproveitando uma vantagem
militar, se possa sentir no direito de promover ocupações injustas e de pri-
var os agressores dos seus direitos individuais e colectivos. Apesar de ser
avesso às interferências políticas estrangeiras, admite-as em casos extre-
mos, como o da Alemanha nazi. Como forma de garantir a paz, e devido
à natureza dos crimes perpetrados, impunha-se a substituição do regime, a
deposição dos governantes, a reestruturação das instituições e a educação
dos cidadãos para a democracia. As ocupações justas devem ser temporá-
rias, não podem ocultar um programa de anexação territorial ou de delapi-
dação de recursos, pois os agressores mantêm o direito «a continuarem a
existir enquanto nações e, excepto em circunstâncias extremas, [mantêm
as] prerrogativas políticas da nacionalidade».35

2. O TERRORISMO

Apesar de o terrorismo poder ser analisado à luz do realismo, do uti-


lítarismo e do pacifismo, centraremos a nossa atenção na teoria da guerra
Justa, pois somente esta permite atribuir ao terrorismo um carácter distin-
tivo. O terrorismo é muitas vezes conotado com a violência revolucioná-
ria, a violência praticada por grupos políticos. Muitas organizações terro-
ristas lutam pela secessão e pela autonomia política de uma determinada

34 Ver o “Estatuto e Julgamento do Tribunal de Nuremberga: História e Análise”,


anexo II — Assembleia Geral das Nações Unidas - Comissão de Direito Internacional 1949
(A/CN, 4/5 de 3 de Março de 1949).
35 Michael WALZER, Just and Unjust Wars, op. cit., p. 123.
Guerra justa e terrorismo 261

comunidade, ou ainda pela transformação da sociedade, tentando promo-


ver ideais políticos ou religiosos. Neste sentido, e porque os membros das
organizações terroristas podem ser representantes das suas comunidades
políticas, recorrendo à violência em nome delas, é possível enquadrar o
terrorismo nos princípios do jus ad bellum. Nada parece obstar que a causa
que move os terroristas seja justa, do mesmo modo que nada impede que
a causa seja injusta e que, tal como os Estados, as organizações terroristas
se comportem como agressores. No entanto, não deixa de ser verdade que
é bastante mais problemático o reconhecimento da autoridade competente
a estes grupos. Segundo Walzer, o terrorismo viola também o princípio da
boa intenção (matar inocentes é um acto mau em si), O do último recurso
(é muitas vezes um recurso primeiro, sustentado por ideais revolucio-
nários) e o da probabilidade de sucesso (como estratégia, raramente tem
sucesso e apenas potencia maior hostilidade do inimigo). Pela mesma
razão, dificilmente se ajusta ao critério da justa proporcionalidade.
Mas as razões pelas quais o terrorismo é moralmente condenável
prendem-se essencialmente com os critérios do jus in bello. O terrorismo
desrespeita o princípio da discriminação e por isso é sempre injusto à luz
da teoria da guerra justa. Por um lado, porque o terrorista goza de um
papel duplo, pretendendo usufruir dos direitos de combatente, escapando
aos seus riscos devido à natureza clandestina da sua actividade. Por outro
lado. porque o que distingue o terrorismo de um acto de guerra legítimo,
e mesmo de guerrilha, é o facto de não visar combatentes, instalações mili-
tares ou interesses económicos, mas sim de visar intencionalmente não-
-combatentes. Para Walzer, O terrorismo é pois uma «estratégia civil» vio-
lenta que visa «[a]terrorizar sistematicamente populações inteiras (...). O
seu propósito é a destruição do moral de uma nação ou de uma classe, o
de minar a sua solidariedade».36 O ataque das populações é um meio
eficaz para pressionar os governos e os militares e apressar a rendição. E
como uma função primordial do Estado é a garantia da segurança, a vio-
lência terrorista volta muitas vezes as suas vítimas contra o Estado, que se
manifesta impotente para as defender, mais do que contra os perpetrado-
res da violência. Mas o terrorismo não é exclusivo de grupos revolucioná-
rios. Segundo Walzer, o terrorismo assume duas outras faces, a do terro-
rismo de Estado, quando um Estado exerce violência contra as suas
populações civis, de modo a anular a contestação política ou promovendo

36 Ibid.. p. 197.
262 Manual de Filosofia Política

limpezas étnicas, ou, ainda, a do terrorismo de guerra, quando na guerra


são atacadas deliberadamente as populações civis, tal como ocorreu em
Dresden, Hiroxima ou Nagasáqui.
O método do terrorismo «é o homicídio aleatório de vítimas inocen-
tes. O ataque cego é a característica essencial da actividade terrorista».37
O carácter aleatório da selecção das vítimas é crucial para a actividade ter-
rorista. Na medida em que qualquer um pode ser visado, independente-
mente do grupo de pertença, o efeito é o sentimento de terror gerado pela
«vulnerabilidade geral». O terrorismo viola a DDE, uma vez que existe
não só a intenção de matar não-combatentes, como a acção terrorista é
acompanhada de um esforço real no sentido de potenciar os seus efeitos
nocivos. Segundo uma perspectiva deontologista, tal como a de Walzer e
de Nagel, poderíamos dizer que o terrorismo trata as suas vítimas como
um meio e não como um fim em si mesmo. Segundo Walzer, o terrorismo
encerra um profundo menosprezo pelas vidas e pelos direitos das vítimas,
configurando «[nJas suas manifestações modernas, (...) a forma totalitária
da guerra e da política. Arruína a convenção da guerra e o código polí-
tico».38 O terrorismo é uma forma de totalitarismo na medida em que
rejeita os processos de luta democrática, e em que as pessoas não são visa-
das «por coisas que elas fizeram, ou fazem», mas sim «por aquilo que elas
são»39 e a que não podem escapar.
O desrespeito pela imunidade dos não-combatentes é de tal forma
essencial ao terrorismo, que o argumento fundamental apresentado em sua
defesa se centra na possibilidade e na legitimidade da discriminação entre
combatentes e não-combatentes. Segundo Virginia Held, esta discrimi-
nação não faz sentido, pois esquece que muitos soldados são forçados a
combater, elidindo por exemplo o fenómeno das crianças-soldado, e não
tem em conta o facto de muitos civis serem fervorosos entusiastas da
guerra, e por isso maximamente responsáveis. O terrorismo surge como o
único recurso à disposição de certas comunidades para lutar contra a
opressão (os terroristas lutam usualmente contra exércitos convencionais
mais fortes), para promover as suas causas e impor uma distribuição mais
equitativa dos direitos. Aliás, Held considera moralmente justificada uma
partilha transitória de violações de direitos para pôr fim a uma situação em

3 Ibid.
38 Ibid.. p. 203.
39 Ihid.. p. 200.
Guerra justa e terrorismo 263

que os direitos de alguns são profunda e extensamente violados.40 Con-


tudo, Walzer considera ilegítimas todas as formas de responsabilização e
de punição colectivas, defendendo antes a identificação dos verdadeiros
responsáveis pela opressão. Aliás, Walzer faz questão de distinguir o ter-
rorismo dos assassinatos políticos, que embora possam ser questionáveis,
têm o mérito de discriminar os alvos, de distinguir entre os agentes polí-
ticos, os militares, os apoiantes de regimes opressores e os cidadãos
comuns.
Walzer, de facto, desvaloriza a maior parte dos argumentos favorá-
veis ou desculpabilizantes do terrorismo. Enquanto a direita faz a apologia
do terrorismo branco, que é praticado em nome da ordem e do Estado, a
esquerda especializa-se na apologia do terrorismo vermelho, que se pratica
em nome da liberdade e da luta contra a opressão. Walzer considera que
a esquerda é responsável pela cultura da apologia e da desculpa. Esta cul-
tura apresenta a teoria da guerra justa como uma fabulação ao serviço dos
opressores e dos imperialistas, já que o terrorismo é a única e última arma
ao serviço dos oprimidos, é a resposta natural e universal contra os opres-
sores e Os tiranos, sempre escudados por exércitos mais fortes. Mas para
Walzer a violência terrorista não é apenas uma reacção contra a opressão
e a tirania, porque senão os terroristas seriam originários das sociedades
mais pobres, como as de África ou da América Latina. Além disso, a sua
acção é muitas vezes exercida em sociedades democráticas, nas quais exis-
tem outras possibilidades de luta, e só acontece porque as organizações
terroristas se revelam incapazes de convencer a maioria ou de mobilizar
a população para formas de combate democrático. O terrorismo não é o
último, mas O primeiro, recurso para grupos que encarnam uma «interpre-
tação totalitária do mundo»,41 que consideram que todas as formas de vio-
lência são legítimas, quando estão em jogo fins políticos considerados
«justos». O terrorismo comprova os riscos da escala móbil. Além disso,
Walzer constata que a esquerda vive na ilusão de que todos aqueles que
erguem a bandeira da liberdade e da justiça contra a opressão combatem
pelos valores da esquerda, contra o capitalismo, a desigualdade social e a
sociedade de classes. Esta ilusão conduz à contemporização com projec-

40 Cf. Virginia HELD. «Terrorism, Rights, and Political Goals». in R. G. Frey e


Christopher W. Morris (eds.). Violence, Terrorism, and Justice. Cambridge. Cambridge
University Press. 1991. p. 81.
at Albert CAMUS. Carnets. Paris. Gallimard. 1964. p. 224.
264 Manual de Filosofia Política

tos, que sob a capa do anti-americanismo e do anti-sionismo, mais não são


do que projectos fascistas e antiliberais, defensores de um nacionalismo
exacerbado ou de fundamentalismos religiosos.
De modo que, para Walzer, o terrorismo não é fruto da opressão, mas
antes um instrumento da opressão, não é a arma dos fracos, mas sim a
arma contra os fracos, na medida em que visa os mais vulneráveis, os mais
fáceis de atacar. Walzer considera que os argumentos típicos da cultura da
apologia e da desculpa são fruto de uma espécie de má consciência do
mundo rico, da necessidade de identificação com as classes mais desfavo-
recidas, destacando Sartre como o exemplo paradigmático da associação
entre terrorismo e libertação, ao serviço dos ideais revolucionários do
marxismo. Walzer só admite campanhas terroristas nas emergências supre-
mas, mas estas são, por definição, situações «excepcionais e terríficas»,
nas quais um povo está perante a iminência do aniquilamento e da escra-
vização.

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CAPÍTULO XI
Política de ambiente

VirIATO SOROMENHO-MARQUES*

É surpreendente como foi necessário que as alterações climáticas se


tivessem transformado numa realidade empírica e visível para que a crise
global do ambiente ganhasse o estatuto de fenómeno crucial para a huma-
nidade contemporânea. O nosso modelo de civilização, as nossas institui-
ções políticas, o que designamos como sistema internacional — apesar da
sua acelerada entropia em curso -, a nossa tecnologia e os nossos saberes,
todas essas dimensões estão envolvidas no complexo e espesso manto de
uma crise que com inteira justeza se poderá designar como crise global
e social do ambiente. Se há 35 anos, aquando da publicação do relatório
do Clube de Roma, produzido pela equipa do MIT dirigida por Dennis
e Donella Meadows, com o título de Os Limites do Crescimento (1972),
choveram as críticas ao que parecia ser uma catastrófica especulação, com
base científica, mas apesar de tudo uma especulação, agora a leitura dos
mais recentes relatórios e trabalhos científicos, por exemplo, sobre o
estado do clima e os cenários da sua evolução. são de molde a causar fun-
dadas e irrecusáveis inquietações.

1. FORMAÇÃO E NATUREZA DA POLÍTICA DE AMBIENTE


As preocupações ambientais nasceram sob o signo de uma interpre-
tação redutora de um problema cujos contornos globais se encontravam
ainda muito longe de uma avaliação plena.

* Universidade de Lisboa.
268 Manual de Filosofia Política

Foi em 1872 que surgiu nos EUA o primeiro parque nacional


(o Yellowstone National Park), embora já em 1864 o Yosemite Valley, na
Califórnia, tivesse recebido um estatuto de protecção para recreio público.
A concepção reitora destas iniciativas era essencialmente conserva-
cionista: tratava-se de preservar, face às ameaças predatórias da acção
humana, determinados valores naturais, da fauna e da flora — dos bisontes
às sequóias — que de outra forma estariam ameaçados de extinção. Para O
cumprimento desse objectivo delimitaram-se as primeiras áreas de conser-
vação da Natureza, autênticos santuários perante a acometida do cresci-
mento industrial e demográfico incontrolado. Indispensável para a trans-
formação em realidade dessas primeiras áreas protegidas foi, sem dúvida,
o contributo das primeiras associações, a um tempo cívicas e científicas,
que souberam dar o necessário impulso político a esse objectivo. De entre
elas destacamos, ainda no século XIX, na Grã-Bretanha: Commons, Open
Spaces and Footpaths Preservation Society (1865); East Riding Associa-
tion for the Protection of Sea Birds (1867).
Nos EUA, para além da influência literária de autores como Ralph
Waldo Emerson e Henry David Thoreau, salienta-se ainda a marca política
de George Perkins Marsh, autor de uma obra visionária para o tempo (Man
and Nature, 1864), e a fundação do Sierra Club (1892). Ao persistente tra-
balho do seu dirigente John Muir ficam a dever-se muitos dos primeiros e
decisivos passos da política de conservação nesse país.
Em 1939, existiam em todo o mundo cerca de 1481 territórios
gozando de um qualquer estatuto de protecção, totalizando uma área de
440 565 km2 (Flores, 1939: 36-37). No ano da Conferência do Rio, as
áreas protegidas abrangiam quase 5% da área emersa do globo. Trata-se,
contudo, de um reflexo defensivo face ao mais intenso surto de destruição
de ecossistemas registado em toda a história humana, iniciado após o
termo da Segunda Guerra Mundial.
Em paralelo com as preocupações conservacionistas, a “arqueologia”
da intervenção política de cariz ambiental desenvolveu-se em duas outras
linhas de rumo:

a) o combate contra as ameaças para a saúde pública representadas


pelas diversas modalidades de poluição;
b) as inquietações, de foro dominantemente económico, causadas
pela perspectiva de um acelerado esgotamento dos recursos mate-
riais e energéticos.
Política de ambiente 269

Os exemplos mais precoces da auto-organização dos cidadãos para a


luta contra os efeitos perniciosos da poluição industrial ocorreram no meio
urbano dos países que mais cedo sofreram as consequências complexas da
industrialização.
Não admira que tenha sido no berço da Revolução Industrial que
tenham sido criadas a primeira legislação e a primeira instituição destina-
das a combater alguns efeitos perniciosos, sanitários e ambientais, da acti-
vidade económica, respectivamente o Alkali Act e o Alkali Inspectorate
(1863). Desse modo, será também na Grã-Bretanha que se assiste, já em
1843, à criação da Manchester Association for the Prevention of Smoke,
seguida, em 1898, pela formação de uma outra associação cívica de espec-
tro mais vasto, igualmente destinada a pugnar contra o desastroso impacte
sobre a qualidade de vida urbana da poluição atmosférica resultante da
abundante combustão de carvão. Tratava-se da Coal Smoke Abatement
League of Great Britain, a qual se fundiria, em 1929, com a Smoke Aba-
tement League of Great Britain, fundada em 1909. Por outro lado, na Bél-
gica a evolução da legislação conducente à drástica redução das emissões
atmosféricas poluentes ocorreria na sequência de catástrofes ambientais,
como a de Dezembro de 1930, na qual, em virtude de uma inversão tér-
mica numa região fortemente industrializada, se registaram milhares de
vítimas, sessenta das quais mortais (Batta et al, 1933: 8 e 426).
Quanto à inquietação com o esgotamento dos recursos, num hori-
zonte geracional não demasiado distante, ela é perfeitamente identificável
nas actas da Conferência de Governadores de Estados, dos EUA, que se
realizou em Washington, em Maio de 1908 (sessenta e quatro anos antes
da publicação do Relatório Meadows sobre Os limites do crescimento...)
Aí se encarava com pessimismo o desaparecimento do carvão, do petró-
leo, do gás natural, de alguns minerais de interesse estratégico, entre
outros recursos, ao longo dos dois séculos seguintes (Clerget, 1912: 6 ss.).
Infelizmente, esse Congresso (White House Conference of Conservation)
marcava o declínio, e não o início, de um dos mais notáveis surtos de aten-
ção pública na América do Norte com a problemática ambiental, de que
foram obreiros o Presidente Theodore Roosevelt e Gifford Pinchot, tor-
nado num autêntico 'Secretário de Estado” para a política pública de con-
servação da Natureza e protecção dos recursos naturais estratégicos.
Preocupações semelhantes só se voltariam a repetir nos EUA, em
1952, com a criação de uma comissão de nomeação presidencial, desig-
nada por Materials Policy Commission, mas mais conhecida como comis-
270 Manual de Filosofia Política

são Paley (a partir do nome do seu presidente, William S. Paley), encarre-


gue de analisar a evolução das tendências de eventual depleção de recur-
sos estratégicos. O principal fruto do labor dessa entidade seria a publica-
ção em 1963 do livro de Harold Barnett e Chandler Morse, Scarcity and
Growth, cujas conclusões se podem considerar bastante optimistas, em-
bora não isentas de interessantes e úteis recomendações no sentido da pre-
caução e da sustentabilidade (Barnett e Morse, 1963: 247-253).
Nas profundas alterações, ocorridas desde há três décadas, o que
mudou não foi tanto a importância das acções de conservação da natureza
e de defesa fragmentar da qualidade de vida, talvez ainda mais indispen-
sáveis hoje do que ontem, mas o seu lugar, que deixou de ser exclusivo,
para se tornar somente num dos elos de uma cadeia mais vasta, num ele-
mento de uma estrutura mais complexa, portadora de um dinamismo, que,
para ser bem sucedido tem de pretender atingir alvos mais extensos e pro-
fundos comparativamente à simples conservação do património natural.
Para a formação de um novo paradigma ambiental, mais integrado
e pluridisciplinar, na base do qual seria erguida a moderna política de
ambiente, muito contribuíram alguns autores e obras que nos anos sessenta
e setenta vieram agitar profundamente os meios académicos e as institui-
ções políticas, constituindo, simultaneamente, um alimento teórico para
um novo movimento social, ligado à multiplicidade das causas ecológicas
e ambientais, que entretanto se formou e consolidou, com particular ex-
pressão na América do Norte, na Europa Ocidental, Japão € Austrália.
O verdadeiro alcance de uma intervenção no domínio mais clássico
da conservação da natureza requer, assim, para a sua própria eficácia, O
enquadramento no seio de uma série de modalidades e instrumentos de
intervenção política e social de cariz ambiental, visando estrategicamente
objectivos de transformação mais ambiciosos.
Ensaiando uma via de exposição sistemática poderemos afirmar que
a política de ambiente deve ser entendida como o conjunto de medidas e
operações, tanto estruturais como conjunturais, conducentes à identifica-
ção, diagnóstico e promoção de mecanismos resolutivos dos problemas
ambientais, considerados como problemas emergentes, por isso reque-
rendo soluções inovadoras.
As principais vertentes da política de ambiente são, deste modo:

a) organização da administração pública central, regional e local


face aos novos problemas;
Política de ambiente 2

b) definição de estratégias nacionais e internacionais para desafios


de âmbito local, regional, supranacional e global. Nesse sentido,
a criação de regimes internacionais, com esquemas abertos a uma
rigorosa monitorização de cumprimento. surge como um instru-
mento fundamental;
criação de novos instrumentos de intervenção política, quer no
plano partidário e institucional, quer no âmbito da sociedade civil.
O reconhecimento dos limites da intervenção clássica do Estado
e a promoção de instrumentos políticos com reduzida partici-
pação deste é, aliás, um dos traços distintivos mais flagrantes da
especificidade da política ambiental;
produção e execução de uma política de ordenamento do terri-
tório, integrando o ordenamento rural, urbano e a conservação da
natureza. À interacção entre ordenamento e ambiente exige uma
elevada articulação dos órgãos governamentais respectivos;
promoção de medidas conducentes a uma reestruturação no
curto, médio e longo prazo do sistema produtivo, em particular
do sector industrial e da rede de transportes e comunicações, das
suas tecnologias, assim como da política energética no seu con-
junto;
implementação de dispositivos de defesa, não só dos ecossis-
temas naturais mais ameaçados, mas das populações humanas
no seu conjunto, contra as consequências negativas do actual
modelo de crescimento económico, baseado no uso intensivo e
insustentável de energia e recursos, assim como na saturação do
meio para além da sua capacidade de carga. Grande parte da
crescente conflitualidade social associada à gestão das diversas
classes de resíduos encontra-se associada a esta complexa
vertente de mitigação das consequências sanitárias negativas do
industrialismo moderno;
fl.) protecção dos trabalhadores através da regulamentação
dos limites de risco dos seus locais e condições de trabalho.
Importa notar que as organizações representativas dos traba-
lhadores acompanharam as organizações patronais no consi-
derável atraso com que as novas questões ambientais foram
sendo integradas na esfera das relações laborais;
f.2.) defesa do consumidor através do controlo da qualidade dos
produtos e da reformulação dos processos que afectam todo
272 Manual de Filosofia Política

o ciclo de vida do produto. A introdução de regulamentação


relativa à rotulagem e identificação do impacte ambiental
dos produtos tem-se revelado como um importante instru-
mento no desenvolvimento de novas atitudes por parte dos
consumidores, esclarecidas por opções de cidadania;
f3.) salvaguarda dos principais componentes do ambiente atra-
vés da regulamentação da quantidade máxima de efluentes
gasosos, líquidos e sólidos, assim como do seu modo de
tratamento e deposição final. Mesmo numa fase mais avan-
çada, dominantemente preventiva, não se podem descurar
as medidas políticas e técnicas relativas às operações de
fim-de-linha (end of pipe);

A política de ambiente atravessa, por consequência, transversal-


mente todo o tecido social, tornando-se inseparável do tipo e modo de
funcionamento do sistema político e das linhas de força da política eco-
nómica de um dado país ou bloco. É esse horizonte de totalidade política
integrada que, geralmente, recebe a designação de desenvolvimento
sustentável.

2. ENTRE A DESMESURA E O RISCO

Onde estamos, afinal? Encontramo-nos no limiar de uma viragem


radical do processo de civilização. As raízes dessa viragem foram inicia-
das na alvorada da modernidade, através da complexa combinação entre a
primeira globalização levada a cabo pelas caravelas de Vasco da Gama e a
fundação do moderno espírito científico, com Copérnico, Brahe, Kepler,
Galileu, Bacon e Descartes. A entrada em cena de uma nova mentalidade,
que olhava para a Natureza como objecto de domínio e conquista, foi
acompanhada, a partir da Revolução Industrial inglesa (iniciada na década
de 1750) com a efectivação concreta dessa intenção de apropriação do
mundo natural. Durante 250 anos a industrialização do mundo prosseguiu
sem tréguas, com o seu surto de destruição ecológica, e a eclosão de sinais
contraditórios de esperança e sofrimento entrou nesta transição milenar
num período decisivo.
Entre 1950 e 1998 o PIB mundial aumentou 6 vezes e a expor-
tação de mercadorias foi multiplicada por 17 vezes. Ao longo de suces-
Política de ambiente 273

sivas décadas tornou-se dogmática a tese segundo a qual a qualidade


de vida implicava o crescimento económico contínuo, medido através da
inevitável trindade constituída pela intensificação do consumo de energia,
pelo aumento da utilização de matérias-primas (não renováveis ou explo-
radas acima da taxa de renovação natural, no caso das renováveis), e pela
explosão nos volumes de resíduos (com diferentes graus de perigo-
sidade).
A questão fundamental é que já atingimos um ponto em que a insus-
tentabilidade desse dogma se revelou em toda a sua crueza. Mesmo no
seio do pensamento económico a ideia de que não poderíamos separar a
economia das leis gerais da física (e os sistemas ecológicos são sistemas
biofísicos) fez o seu caminho. Em 1966, Kenneth Boulding chamava
a atenção para o facto de o nosso planeta poder ser comparável a uma
grande nave espacial, sendo, sob certos aspectos, um sistema fechado, não
podendo por isso ter qualquer realismo prático o mito peregrino de um
crescimento exponencial perpétuo, baseado em recursos naturais finitos,
subordinados aos princípios fundamentais da termodinâmica, incluindo o
princípio da entropia.
Antes mesmo de Boulding, já em 1920, o economista Arthur Cecil
Pigou (1877-1959) recusava a cegueira dos grandes indicadores macro-
económicos (como é o caso daquele que se tornaria o sacrossanto Produto
Interno Bruto, PIB), que são incapazes de tomar em boa conta aquilo que
o autor britânico designava como “prejuízos não compensados” (uncom-
pensated disservices), e que nós hoje poderíamos cunhar como externali-
dades negativas, um conceito que integra bem todos os atentados que, para
benefícios parciais e de curto prazo, são feitos ao ecossistema global em
que estamos todos embarcados. Em alternativa, Pigou propunha um novo
macro-indicador, o “produto social bruto” (social net product), onde todas
as externalidades positivas e negativas fossem incluídas e avaliadas. Por
outras palavras, para Cecil Pigou o bem-estar e a qualidade de vida das
pessoas não eram indiferentes à ciência económica.
Mais perto de nós são imensos os trabalhos que procuram unir eco-
nomia e ecologia, demonstrando com rigor o carácter insustentável de um
estilo de vida assente na degradação ambiental. Salientaria, nesse vasto
domínio, a importância dos contributos de Daly e Cobb (1990) na deter-
minação de um ISEW, um índice de bem-estar sustentável (integrando
aspectos sociais, ambientais e culturais associados à qualidade de vida
das pessoas), destinado a corrigir a miopia do PIB (Diefenbacher, 1994;
274 Manual de Filosofia Política

Jackson, 1994; Costanza, 1997). Numa linha de orientação semelhante,


Max-Neef (1991) avançou com a sua “hipótese limiar”, baseada num es-
tudo de vários anos desenvolvido em 19 países, ricos e pobres. De acordo
com essa investigação ficaria demonstrada a incorrecção da concepção
que associa melhoria ambiental ao puro aumento do PIB. Pelo contrário,
a partir de um determinado limiar o PIB pode continuar a subir, não dei-
xando a qualidade ambiental e o bem-estar humano de continuar a sofrer
uma progressiva degradação.
As narrativas auto-descritivas da nossa civilização começaram sob o
signo das esperanças luminosas do progresso e do esclarecimento ilimita-
dos. A aliança entre a técnica e a ciência, por um lado, e o Estado e o poder
económico, por outro, transformavam as expectativas, aparentemente mais
improváveis e prometeicas, em utopias que o engenho e a acumulação
construtiva do trabalho social poderiam fazer emergir com nitidez no hori-
zonte do espaço e do tempo. A economia de mercado transformou-se no
palco onde as grandes mutações se poderiam plasmar no concreto. A crise
global do ambiente constitui, inversamente, um profundo revés nessas
esperanças. A teologia laica do progresso sem limites esbarra, finalmente,
com a resistência, a fragilidade e a finitude de um mundo material dema-
siado exíguo para poder ser compatível com uma sede tão incomensurável
de expansão e crescimento. Os alicerces da ideologia do crescimento
exponencial tremem e a mesma sociedade que se pensava indefinidamente
plástica e adaptável descobre-se inteiramente vulnerável perante as pri-
meiras catástrofes com ressonância planetária. Depois de Chernobil, toda
a gente percebe a mensagem de Ulrich Beck quando identifica o risco, e já
não a esperança, como o traço mais apropriado para caracterizar a nossa
sociedade (Beck, 1986).

3. PARADIGMAS E TAREFAS

Ainda é muito cedo para vislumbrar, com antecipação, os caminhos


de saída. O que é seguro, todavia, é a face poderosa, e por vezes horrenda,
dos riscos e dos perigos. Há meio século Bertrand Russell alertava para a
grandeza do que estava em jogo: a própria sobrevivência de uma socie-
dade planetária orgulhosa do seu poderio técnico (Russell, 1952). É ainda
prematuro falarmos de modo demasiado seguro em mudanças de para-
digma, transferindo o conceito da reflexão epistemológica de Thomas
Política de ambiente 275

S. Kuhn para o campo mais vasto de uma análise cultural e societal prati-
camente sem limitações muito precisas (Kuhn, 1962). Podemos e devemos
fazê-lo sim, mas com a modéstia de um exercício, simultaneamente, heu-
rístico e hermenêutico. Com efeito, a escolha do ambiente como a catego-
ria que nos permite definiro que é crucial ou axial, para usarmos um termo
caro a Karl Jaspers, na nossa época obriga-nos a uma atitude necessa-
riamente humilde, pois coloca-nos perante o carácter gigantesco, diria
titânico, das tarefas que temos, como sociedades e como indivíduos, diante
de nós (Martins, 2000).
Toda a crise implica uma dupla constatação. Em primeiro lugar, a
consciência de uma via que deixou de permitir o abrir de horizontes, uma
estrada que se cerrou, tornando-se aporética. Em segundo lugar, a cons-
ciência de que urge fundar uma nova rota, caso não queiramos estiolar e
sucumbir. Quando se fala na emergência de um novo paradigma ambien-
tal é a isto que se alude, mas nem sempre com o devido rigor. Na verdade,
a tomada de consciência da crise ambiental obriga a profundas deslo-
cações e metamorfoses no corpo das ciências, nos seus conceitos opera-
tórios e nas suas alianças disciplinares. As alterações, de uma profundi-
dade telúrica, percorrem as ciências sociais e humanas no seu conjunto
bem como o entendimento mais tradicional das ciências da natureza, já
não falando nos sintomas da insegurança e incerteza crescentes que a
todas avassala.
Contudo, a crise ambiental não é um mero itinerário para pro-
fessores e cientistas. Acima de tudo o que nela se pode considerar
decisivo é o volumoso caderno de encargos prático que o seu enfrentar
acarreta. No fundo, o que está em causa é, nada mais, nada menos, do
que o reinventar radical do relacionamento humano com e na natureza.
A crise do ambiente obriga-nos, usando uma sugestiva terminologia de
Nietzsche, à transmutação de todos os valores. Desde a ética à economia,
passando pelas formas de governo e governância, não esquecendo os
nossos hábitos como produtores e consumidores. Os desafios são de uma
magnitude tal que o conceito de novo paradigma só não será leviano se
o usarmos para designar os trabalhos hercúleos que aguardam, pelo
menos, as três ou quatro próximas gerações, estendendo-se mesmo para
além do século XXI (Porter, 1991; Jânicke et a!., 1995; Young, 1997;
OECD/UNDE, 2002).
276 Manual de Filosofia Política

4. UMA CRISE CADA VEZ MAIS GLOBAL

Não terá existido outra década na história humana em que mais se


tenha avançado no conhecimento dos problemas ambientais, como os dez
anos que separam o Rio (1992) de Joanesburgo (2002). Por outro lado,
mais do que nunca a humanidade tem hoje uma consciência clara do carác-
ter global da maioria esmagadora das grandes questões da agenda am-
biental (ver Quadro n.º 1). Porém, a gravidade em crescendo da situação
ambiental continua a ser a nota dominante. Ainda não atingimos um ponto
que possamos considerar como de viragem e recuperação em relação ao
presente rumo de derrapagem em que nos encontramos. Os êxitos nas
reduções drásticas dos responsáveis pela depleção da camada de ozono
(os clorofluorcarbonetos, CFC), ou dos poluentes responsáveis pela
chuvas ácidas, não são suficientes para colmatar os insucessos em matéria
de alterações climáticas e de destruição da biodiversidade, assim como os
crescentes receios associados à proliferação de organismos geneticamente
modificados (OGM) (Tolba, 1998).
Politicamente, acentuou-se o abismo entre os países desenvolvidos
e em vias de desenvolvimento (PNUD, 2003; The World Bank, 2003).
Estiolou-se a promessa de novas respostas em matéria de instituições
que permitissem uma governância global em matéria de ambiente, em
grande parte devido à relativamente recente opção dos EUA, contrariando
a sua tradição fundada em compromissos de cunho federal, por uma
gestão da sua agenda externa, exclusivamente orientada por uma es-
treita interpretação realista do seu “interesse nacional” (Soromenho-
-Marques, 2003).

QUADRO N.º 1: A Globalização ambiental nas últimas duas décadas

1 — Oceanos e zonas costeiras:


* Convenção das N.U. para o Direito do Mar (1982>1994)
* Directiva-Quadro da Água (2000)
* Degradação crescente dos ecossistemas marinhos.

2 — Protecção da camada de ozono («a história de sucesso»)


* Convenção de Viena (1985)
e Protocolo de Montreal (1987)
Política de ambiente 21

3 — Alterações climáticas:
* JPCC: 1988
* UN Framework Convention on Climate Change (1992)
* 2.º relatório do IPCC (1995)
* Protocolo de Quioto (1997)
* 3.º Relatório (2001)
* 16.02.2005: entrada em vigor do Protocolo de Quioto
* EUA rompem com o Protocolo de Quioto (2001).
* 4.º Relatório do IPCC (2007)
* Iniciativa da União Europeia para uma nova política de energia e alterações
climáticas, visando novas metas climáticas para depois de 2012.

4 — Diversidade biológica. agricultura e recursos alimentares:


* Convention on Biological Diversity (1992)
* Nova Red List of Endangered and Threatened Species. do IUCN (World Con-
servation Union) (1994)
* Convenção das Nações Unidas de Combate à Desertificação (1994)
* Conferência do Cairo sobre População e Desenvolvimento (1994)
Protocolo de Cartagena (Biosafety Protocol!) sobre OGM (2000)
Resultados do Human Genome Project (2001).

5 — Comércio e Ambiente:
* Aprofundamento da clivagem Norte-Sul
* World Trade Organisation (1995)
* Resistência à coordenação entre as regras da WTO e os Acordos Multilaterais
de Ambiente.
* Necessidade de integrar a WTO no sistema das N.U.
* Protesto de Seattle contra a globalização (1999).

A globalização de muitos dos mais cruciais problemas ambien-


tais (alguns dos quais estão inscritos no Quadro n.º 1) não esvazia a
necessidade das agendas nacionais em matéria de política pública de am-
biente. O abastecimento em água potável, o saneamento básico, a redução,
reciclagem e destino final de resíduos, o ordenamento do território e a
conservação da natureza, entre outros temas capitais. são matérias que
continuam não só a ser uma forte competência dos governos nacionais,
como devem, até, ser consideradas, de acordo com o princípio da subsi-
diariedade, como atribuição a ser desempenhada, pelo menos parcial-
mente, a uma escala regional e até municipal.
Todavia, a globalização da crise ambiental é, assim o sustentamos, o
tema central de clivagem da nossa época. É em seu torno que se desenham
278 Manual de Filosofia Política

e se constituirão os principais desafios que exigirão a mobilização do


melhor da nossa inteligência, imaginação e forças morais, pois é a própria
sobrevivência da possibilidade de uma civilização humana altamente
complexa que está em causa. Para a resposta a esse repto de múltiplas
dimensões existirão, certamente, instrumentos científicos, tecnológicos e
financeiros. Serão convocadas forças éticas, estéticas e religiosas. Mas o
cadinho unificador destas diferentes linhas de força passará pelo plano da
política, e em particular pela nossa capacidade de construir instituições
que melhorem os sistemas de governação e de governância em todos os
domínios e em todas as latitudes. A política internacional de ambiente é
uma das áreas onde se joga, criticamente, a possibilidade de sermos, ou
não, bem sucedidos nessa construção vital e indispensável (Haas, 1998;
Elliott, 1998; Pureza, 1998; Liftin, 1999).

5. PARA UMA HIPÓTESE TEÓRICA CÍCLICA DA POLÍTICA


INTERNACIONAL DE AMBIENTE

Desde o final da guerra fria que se registou uma verdadeira explosão


nas perspectivas teóricas e doutrinárias sobre o papel do ambiente —
incluindo-se aí as questões da água e dos seus respectivos regimes — na
reconstrução da ordem internacional, na alteração do papel do Estado, na
recomposição das relações entre o Estado e a sociedade civil. Contudo,
uma análise mais ampla e rigorosa da evolução da política internacional do
ambiente exige que se incluam as mais de quatro décadas que nos separam
da publicação da obra Silent Spring, de Rachel Carson (1962), bem como
as notícias menos promissoras provenientes dos resultados das eleições
federais norte-americanas de Novembro de 2000. Semelhante análise
deverá contribuir para separar o trigo do joio, as esperanças fundamenta-
das e legítimas da mera projecção de desejos e ilusões.
Se quisermos compreender os limites da política internacional de
ambiente teremos de aceitar a necessidade de se considerar as diferentes
texturas e características dos acontecimentos e tendências que compõem
as quatro décadas dessa nova política, cada vez mais importante na mode-
lagem do nosso futuro comum. Muito longe de se poder falar em linhas de
força contínuas e progressivas, as quatro décadas de diplomacia ambiental
podem ser, na hipótese de trabalho que aqui se apresenta, integradas em
quatro grandes períodos, como se pudéssemos falar, usando como expe-
Política de ambiente 279

diente uma analogia algo grosseira, numa oscilação cíclica semelhante à


que alguns autores do século XVIII, como Vico e Herder, propuseram para
as suas filosofias da história (ver Quadro n.º 2).

QUADRO N.º 2: Ciclos na política de ambiente

Períodos Ano de Acontecimento Ano de Acontecimento


início relevante mudança relevante

1º período 1962 Rachel Carson: 1973 Guerra


crescimento Silent Spring Yom Kippur

1º período 1973 1º crise 1983 Die Griinen


declínio 1974 petrolífera no Bundestag

2º período 1984 Acidente Bhopal> 1997 Protocolo


crescimento 1985 Convenção Viena Quioto

2º período 1998 Bloqueio ” n


declínio ambiental
nos EUA

5.1. O nascimento

O primeiro ciclo foi claramente expansivo e estendeu-se de 1962


(data da publicação da obra já referida de Rachel Carson) a 1973, tendo
sido interrompido pela guerra do Yom Kippur (Outubro de 1973), a que se
sucederam as duas crises petrolíferas dos anos 70. Essa década foi carac-
terizada pelo lançamento das primeiras infra-estruturas das políticas nacio-
nais de ambiente. As primeiras leis-quadro ambientais surgem nesta altura
(em 1967 no Japão, e em 1969 nos EUA e na Suécia), assim como os pri-
meiros ministérios ou, pelo menos, os seu embriões (a EPA nos EUA, em
1970, ou o ministério do ambiente nipónico, em 1971). Para além dos hori-
zontes legal e administrativo, o contributo da ciência convergiu, igual-
mente, na produção dos primeiros relatórios sobre o estado do ambiente
(em 1969 no Japão, em 1970 nos EUA). Portugal não passou incólume a
este padrão genético: sob a dinâmica e esclarecida direcção de José Cor-
reia da Cunha, é fundada em 1971, no âmbito da Presidência do Conselho
de Ministros, a Comissão Nacional do Ambiente (CNA). Também nesse
280 Manual de Filosofia Política

ano é publicado o primeiro relatório sobre o estado do ambiente, visando


Portugal e os seus antigos territórios ultramarinos. Deve salientar-se,
ainda, que a fundação de uma política pública hídrica para Portugal, aberta
à vertente ambiental, antecede mesmo a criação da CNA, pois foi já em
1970 que se formou o Núcleo de Estudos de Problemas da Água (Correia
da Cunha, 2000). O tema da água seria objecto, igualmente, de importan-
tes publicações por parte da CNA e da Secretaria de Estado do Ambiente
na fase inicial da política ambiental portuguesa (Rego, 1977; Peixoto,
1979; Veiga da Cunha, 1982; Peixoto, 1989).
No auge deste primeiro período assiste-se à consagração da indis-
pensável dimensão internacional das questões ambientais. A Conferência
das Nações Unidas sobre Ambiente Humano, realizada em Estocolmo
(1972), criou um estilo de intervenção que a Cimeira de Joanesburgo
parece ter acabado, provavelmente, por esgotar.

5.2. O primeiro recuo

O segundo período estende-se de 1973 até 1983, data em que pela


primeira vez um partido reclamando-se da ecologia política (os Die Grii-
nen) consegue constituir um grupo parlamentar, num país europeu tão vital
como o é a Alemanha. Este período de recuo da agenda ambiental, substi-
tuída pelas prioridades do combate ao desemprego, à recessão económica,
às crises energéticas, não foi, contudo, completamente negativo. À neces-
sidade de aumento da eficiência e conservação energéticas, sentidas parti-
cularmente na Europa e no Japão, acabaram por trazer alguns ganhos gra-
tuitos e indirectos para o ambiente. É neste cenário algo deprimido que,
não obstante, é assinada em 1982 a Convenção das Nações Unidas sobre
Direito do Mar (Jânicke, 1999).

5.3. Um novo ímpeto

A terceira fase da política de ambiente é a mais longa de todas, esten-


dendo-se de 1983 até 1997, data da assinatura do Protocolo de Quioto. É
caracterizada por uma crescente internalização do discurso ambiental na
actuação dos governos e das próprias empresas. A legislação ambiental,
tanto interna como internacional, sofre avanços vigorosos. No final da
Política de ambiente 281

década de 80 a totalidade dos países desenvolvidos apresentava ministérios


do ambiente. Em meados da década de 90, após, a realização da Conferên-
cia das Nações Unidas sobre Ambiente e Desenvolvimento, no Rio de
Janeiro (1992), muitas dezenas de Estados desenvolveram planos nacionais
de política ambiental, destinados a traduzir ao nível da acção estratégica o
carácter horizontal e integrador inerente à política pública de ambiente.
Também na esfera internacional, antes e depois do Rio, são dados
passos gigantescos. A Convenção de Viena (1985) e o seu Protocolo de
Montreal (1987) iniciam o longo combate à depleção da camada de ozono;
a Convenção de Basileia (1989) disciplina o movimento transfronteiriço
de resíduos perigosos; no Rio assinam-se Convenções para enfrentar os
problemas das alterações climáticas, da destruição da biodiversidade, da
desertificação. Portugal não escapa a este movimento. A partir de 1987, 0
país beneficia do grande impulso na política ambiental europeia, tornada
numa das vanguardas no esforço de maior integração política do Velho
Continente. A Lei Quadro do Ambiente de 1987 é um marco fundamental
de referência (Soromenho-Marques, 1998).

5.4. Um novo refluxo

O Protocolo de Quioto marcou, de certa forma, o completar agónico


deste longo ciclo virtuoso. O traço mais marcante da nova fase de refluxo,
em que agora nos encontramos mergulhados, reside na posição recalci-
trante dos Estados Unidos. Mesmo nos últimos anos da administração
Clinton-Gore era possível sentir a nova vaga de demissionismo crescente
na política norte-americana de ambiente. Programas como o da “justiça
ambiental”, destinado a combater a forte externalização ambiental sobre as
comunidades de afro-americanos e hispânicos, foram praticamente liqui-
dados. O Superfund, verba anual votada pelo Congresso para reduzir o
passivo ambiental de mais de um século de industrialização foi fortemente
reduzido. O rasgar do Protocolo de Quioto, por George W. Bush, em
Março de 2001, está longe de poder ser considerado como um evento iso-
lado e sem precedentes. Tanto no plano interno como internacional a nova
administração norte-americana defende uma agenda ambiental reduzida à
sua mínima expressão, não sendo por isso de estranhar o medíocre desem-
penho da mais poderosa potência internacional na última Cimeira interna-
cional de ambiente realizada em Joanesburgo.
282 Manual de Filosofia Política

6. UM MÉTODO DE AVALIAÇÃO DA POLÍTICA INTERNACIONAL


DE AMBIENTE
Se é verdade que as grandes cimeiras internacionais de ambiente pro-
movidas pelas Nações Unidas assinalam os momentos mais elevados das
intensas negociações multilaterais e bilaterais entre Estados e outros agen-
tes activos da política internacional de ambiente, então uma parte rele-
vante da avaliação do grau de (in)sucesso dessa política passará pela nossa
capacidade de exercer uma adequada monitorização, e um rigoroso escru-
tínio crítico dos resultados oferecidos por essas magnas assembleias.
O modelo de análise que agora se propõe — para imediata aplicação
numa perspectiva comparativa às três grandes cimeiras até hoje realizadas
— assenta numa identificação de quatro tipos distintos de resultados, a
saber: a) declarações; b) regimes; c) instituições; d) acções.
As Declarações podem considerar-se como um elemento fortemente
retórico, mas com uma capacidade de influência posterior, ética e política,
que não deve ser negligenciada. Elas marcam uma vontade de consenso
entre países e actores com capacidades económicas e estruturas de mobi-
lização política e administrativa muito diversas. A sua expressão tende,
progressivamente, a ser vertida na política interna, modelando o discurso
e a prática de muitas instituições nacionais. Não sendo assimilável a uma
norma jurídica imperativa, o conteúdo das declarações, quando é resultado
de ampla discussão, pode funcionar como um catalisador significativo na
mudança de valores e práticas tanto por parte dos Estados como por parte
das empresas e outras esferas relevantes da sociedade civil.
Os Regimes constituem compromissos entre Estados e entidades
deles dependentes, que entram com inteira e plena dignidade no corpo
do direito internacional público. Os regimes visam, geralmente, objectos
temática e/ou geograficamente localizados. Seja a protecção da camada de
ozono, ou a boa gestão de uma bacia hidrográfica internacional. Os regi-
mes podem comprometer toda a comunidade internacional, ou uma parte
dela, quando a sua incidência é regional. A assinatura de uma Convenção
resulta de um longo e complexo processo negocial onde, cada vez mais, os
argumentos científicos têm um papel importante a desempenhar, embora
seja prudente considerar que a argumentação científica continua a ser uma
razão necessária, mas não suficiente para a produção de regimes. Entre a
assinatura e a ratificação de um regime, em condições que permitam a sua
plena entrada em vigor pode mediar um longo intervalo, que geralmente é
Política de ambiente 283

acompanhado pela polémica elaboração de protocolos que vão permitir


calibrar com mais precisão a verdadeira eficácia prática dos regimes em
causa (Weiss e Jacobson, 1998).
As Instituições procuram ser uma resposta política da comunidade
internacional ao desajustamento cada vez maior entre a escala onde se
colocam os problemas e a escala onde se procuram encontrar as decisões.
A primeira cada vez mais global e a última ainda fortemente marcada
pelas fronteiras de Estados cada vez mais limitados em recursos e instru-
mentos (Hooghe e Marks, 2003). Há trinta anos, desde a Cimeira de Esto-
colmo em 1972, que as Nações Unidas têm seguido o mesmo caminho de
multiplicação das agências internacionais para enfrentar as novas dificul-
dades que a problemática ambiental vai introduzindo na agenda política,
perante as quais os clássicos mecanismos de «comando e controlo» do
Estado nacional se têm revelado impotentes. A multiplicação de agências
era, aliás, a solução teórica que David Mitrany, Karl Deutsch e outros teó-
ricos das relações internacionais encontravam para tentar dar uma resposta
a um mundo cada vez mais interdependente e complexo, mas incapaz,
contudo, de optar pela construção de instituições mais densas, passando,
por exemplo, pela partilha de soberania própria dos modelos federais
(Rosamond, 2000).
As Acções constituem o tipo de resultado mais pragmático e ime-
diato. Residem na boa vontade dos Estados para a mobilização rápida de
recursos humanos, materiais e financeiros organizados com o fito da rea-
lização de objectivos tangíveis e integrados na agenda perseguida pela
grandes cimeiras internacionais, Na maioria dos casos, as acções obe
decem a um mínimo de planificação e a dispositivos multilaterais de
transferência de recursos, incluindo tecnologia. Noutros casos, as acções
podem limitar-se a ser o mero prolongamento de relações bilaterais entre
Estados, assentes em parcerias, fundadas na história e interesses comuns,
embora sob o abrigo dos objectivos mais ecuménicos abordados nas gran-
des conferências internacionais.
À aplicação deste modelo no sentido do estabelecimento de uma
análise comparativa do desempenho das três grandes cimeiras até hoje
realizada (Estocolmo, 1972: Rio de Janeiro, 1992; Joanesburgo, 2002)
revela-se particularmente negativa para o saldo desta última (ver Quadro
n.º 3)
284 Manual de Filosofia Política

QUADRO N.º 3: Três Cimeiras em Perspectiva

Cimeiras Resultados: Resultados: Resultados: Resultados:


Declaratório Regimes Instituições Acções

UNCHE Declaração Nenhum United Nations Plano de Acção


Estocolmo Estocolmo Environment para o Desen-
(1972) (26 princípios) Programme volvimento
(UNEP) Humano (109
recomendações)

UNCED Declaração Rio >Biodiversidade >Comissão Agenda 21


Rio (1992) | de 27 princípios >Alterações Desenvolvimento 40 capítulos
(em vez da Carta Climáticas Sustentável (CDS) | (US$ 625 mil.
da Terra) (FCCC) >Consolidação milhões anuais)
> Semente da Global
Convenção da Environment
Desertificação Facility (GEF)
(1994)

WSSD 37 pontos Nenhum Nenhum Plano de


Joanesburgo) Inócuos Implementação
(2002) (ou de Acção)

Na verdade, se percorrermos os quatro tipos de resultados constantes


no modelo proposto, depressa constatamos o carácter decepcionante do
que (não) se conseguiu em Joanesburgo. Não foi criado nenhum novo
regime. Não foi avançada nenhuma reestruturação institucional. Não foi
produzida qualquer Declaração digna de suscitar qualquer reflexão ética
ou mobilização cívica. Mesmo o Plano de Implementação limitou-se, na
maioria dos casos, a retomar estradas antigas. Tal foi o caso das metas em
matéria de política hídrica, no tocante à redução para metade, até ao ano
de 2015, das pessoas sem acesso a água potável e saneamento básico, que,
depois de longas e pesadas negociações, se limitaram a retomar o estabe-
lecido na Declaração do Milénio das Nações Unidas.
Política de ambiente 285

7. BALANÇO E PERSPECTIVAS DA POLÍTICA INTERNACIONAL


DE AMBIENTE

Embora a interpretação cíclica que aqui apresentámos da evolução


ocorrida nos últimos quarenta anos da política internacional de ambiente
contenha, em si mesma, a chave da superação, mais tarde ou mais cedo, da
actual fase de refluxo, a verdade é que os custos ambientais e sociais da
presente situação de impasse e relativa paralisia não devem ser subesti-
mados.
Deixemos um breve enunciado crítico das quatro principais dificul-
dades com que nos debatemos nesta abertura do século XXI, que parece
teimar em assumir a sua vocação de “século do ambiente” (Weizsãcker,
1990):

a) À inquietante ruptura da indispensável cumplicidade estratégica


entre os EUA e a União Europeia em matéria ambiental. O pre-
sente conflito em torno da ratificação do protocolo de Quioto
ilustra, dramaticamente, o crescente isolacionismo ambiental dos
EUA. Ao recusarem assumir as suas responsabilidades planetá-
rias no domínio ambiental os EUA parecem abdicar do papel
de liderança planetária, em sentido amplo, no quadro do que se
poderia designar como um modelo de “hegemonia benévola”
(Gore, 2006).
b) Regista-se, de modo generalizado, entre os diversos actores da
“constelação ambiental”, o sentimento de que o modelo preva-
lecente ao longo das últimas décadas, de produção de grandes
Convenções-Quadro, atingiu um ponto de saturação e esgota-
mento. O seu desempenho parece não apresentar um nível sufi-
cientemente satisfatório para responder, com a indispensável
celeridade, às ameaças mais urgentes. Os tempos de ratificação
das Convenções parecem, em muitos casos, excessivos, os
meios para monitorizar o seu efectivo cumprimento e punir os
infractores revelam-se claramente desajustados. O tempo da soft
law e das soft institutions parece ter atingido o auge, sem que se
vislumbrem alternativas teóricas e práticas, que não sejam uma
mera repetição retocada dos ensaios funcionalistas e integracio-
nistas, que, geralmente, levantam mais perguntas do que aquelas
a que deveriam responder.
286 Manual de Filosofia Política

Cc) O método de tentativa e erro prevalecente na procura de políticas


públicas ambientais mais integradas (por exemplo: planos nacio-
nais na década de 1990, estratégias de desenvolvimento sustentá-
vel na actual década) acaba por trair uma sensação de impotência
e inadequação das burocracias e lideranças políticas face à com-
plexidade crescente dos problemas ambientais. O resultado con-
duz, inevitavelmente, ao refúgio em políticas de curto prazo, uma
espécie de navegação de cabotagem onde se abandonam as medi-
das de verdadeira prevenção e combate às causas dos problemas,
externalizando para a geração seguinte os custos decorrentes de
opções estritamente voltadas para a mera adaptação/mitigação de
base regional e numa óptica que, em vez de um olhar amplo e soli-
dário, se situa num quadro do simples cálculo do custo-benefício.
d) Verifica-se uma visível assimetria entre o incremento do conheci-
mento científico e a(s) resposta(s) do(s) sistema(s) político(s). A
aparente inércia destes sistemas é escudada num debate acerca do
efectivo valor e papel da ciência na fundamentação dos processos
de tomada de decisão em políticas públicas. A diferente aprecia-
ção do significado do “princípio da precaução”, uma peça funda-
mental na diplomacia ambiental, por parte dos representantes dos
EUA e da União Europeia é, a esse respeito, muito esclarecedora.
e) Apesar das dificuldades acima apontadas, o caminho das Con-
venções continua a ser a única pista segura a trilhar, como o caso
do futuro da Convenção-Quadro das Alterações Climáticas bem o
demonstra. A União Europeia tem sobre os seus ombros a gigan-
tesca responsabilidade de preparar o quadro mundial de referên-
cia para a continuação do processo de combate às emissões de
gases com efeito de estufa. Depois de 2012 precisamos de um
segundo Protocolo de Quioto, com metas mais ambiciosas. Só a
União Europeia parece estar em condições de fazer regressar os
EUA às suas responsabilidades planetárias, envolvendo também
os grandes países emergentes como a China, a Índia, ou o Brasil.

8. REPRESENTANDO OS PRÓXIMOS TRINTA ANOS

Em 2002 o Programa das Nações Unidas para o Ambiente (UNEP,


na sigla inglesa) publicou um relatório tendo como horizonte de referên-
Política de ambiente 287

cia as actuais fragilidades e vulnerabilidades, bem como a esperança de


se poder caminhar em direcção a um modelo de desenvolvimento sus-
tentável.
Nesse relatório são identificadas quatro grandes barreiras que frag-
mentam a humanidade, conferindo à crise contemporânea as tonalidades
de violência, conflito e tensão social, que caracterizaram todas as crises
fundamentais que estabelecem clivagens indeléveis na história:

> A barreira ambiental. Trata-se do profundo divórcio que se


regista entre países desenvolvidos e países em desenvolvimento no
que diz respeito às tendências de evolução da degradação ambien-
tal nos respectivos territórios soberanos. Enquanto décadas de
políticas públicas de ambiente na Europa e Estados Unidos per-
mitiram alguns êxitos significativos na recuperação regional do es-
tado do ambiente, em muitos países do Sul o ambiente e os recur-
sos naturais continuam a ser delapidados a um ritmo catastrófico.
> A barreira política. Diferentes desempenhos dos sistemas políti-
cos e administrativos traduzem-se, igualmente, numa maior ou
menor capacidade para implementar estratégias de desenvolvi-
mento sustentável. Muitos países, sobretudo em vias de desenvol-
vimento, padecem, não só (e já seria muito) dos custos enormes da
injustiça social e da pobreza, como da existência de sistemas polí-
ticos caracterizados pela falta crónica de legitimidade democrática
e pela corrupção endémica
> A barreira da vulnerabilidade. O risco ambiental e tecnológico
está hoje disseminado por uma linha de demarcação mais com-
plexa do que a divisão entre o Norte e o Sul. Os diferentes níveis
de exposição ao perigo não coincidem com as fronteiras dos paí-
ses, estendem-se pelo interior das sociedades, ao nível das regiões
e dos municípios, colocando graves problemas de tensão social e
de (in)justiça ambiental.
> A barreira dos estilos de vida. É a escalada da pobreza na
sua face mais cruel. Como será possível mobilizar a humanidade
numa luta comum pela sustentabilidade de modos de vida, produ-
ção e consumo, se continuamos a admitir que 1,2 mil milhões de
seres humanos vivam com menos de US$] diário, ou que apenas
um quinto da população planetária seja responsável por 90% do
consumo pessoal? (UNEP, 2000).
288 Manual de Filosofia Política

À estas barreiras temos de juntar os cenários que se podem desenhar


para os próximos trinta anos (ver Quadro n.º 4). Facilmente se compreende
que existe uma proximidade entre os cenários números 1 e 3 e os cenários
números 2 e 4. Na verdade, o primado dos mercados está longe de poder
ser vislumbrado como algo que se pudesse manter por si próprio, numa
espécie de equilíbrio homeostático. Pelo contrário, a sua viabilidade fu-
tura exigirá uma crescente militarização das sociedades e uma verdadeira
regressão da política internacional a uma idade inadequadamente securitá-
ria. Uma afinidade de sentido inverso pode e deve estabelecer-se entre o
primado da política e o primado da sustentabilidade. Sem uma imaginação
política e institucional verdadeiramente produtiva e operativa o modelo de
uma sociedade sustentável, que restabeleça um novo equilíbrio entre a
Humanidade e a Terra, capaz de garantir o futuro, não passará de uma diá-
fana miragem.

QUADRO N.º 4: Quatro cenários para 2002-2032

I. O PRIMADO DOS MERCADOS: Globalização e liberalização de fluxos


comerciais e financeiros em aceleração: estilos de vida e valores ocidentais tornados
incontestáveis: reacção com potencial limitado por parte de investidores com preo-
cupações éticas e ONG; diminuição da capacidade de desempenho das políticas públi-
cas e dos Estados.

2. O PRIMADO DA POLÍTICA: Alargamento da rede multilateral de combate


à crise ambiental e à pobreza; internalização dos custos ambientais nos processos eco-
nómicos e nas políticas fiscais; aperfeiçoamento das políticas nacionais e da coopera-
ção regional. visão global com espaço para a subsidiariedade.

3. O PRIMADO DA SEGURANÇA: A planetarização do modelo da «sociedade


de condomínio fechado»; reforço das funções repressivas (militares e policiais) dos
Estados; falência das políticas sociais num quadro do império das leis de mercado:
aumento dos conflitos civis, internacionais e da degradação ambiental.

4. O PRIMADO DA SUSTENTABILIDADE: Um novo paradigma de desen-


volvimento num quadro de novas instituições e valores; justiça intergeracional; respon-
sabilidades dos indivíduos e das empresas: gestão social e partilhada dos riscos e das
soluções; aprofundamento e qualificação das práticas democráticas.

Fonte: UNEP, 2002


Política de ambiente 289

9. CONCLUSÃO

A política de ambiente é hoje uma designação que envolve a intran-


quilidade fundamental da nossa época: habitamos na clivagem entre o
colapso e o desenvolvimento sustentável (Diamond, 2004; Soromenho-
Marques, 2005). As alterações climáticas são uma síntese da crise global
do ambiente, do modo como a nossa civilização tecnocientífica se trans-
formou numa força ontológica, numa entidade construtora de mundos. Na
verdade, a nossa época não pode ser acusada de se limitar a interpretar o
mundo sem o transformar. Bem pelo contrário, a nossa época carece de um
excesso de acção, e de um profundo défice de reflexão e imaginação, a
todos os níveis.

A crise da imaginação crítica projecta-se, também, nas limitações e


insuficiências das políticas públicas de ambiente, tanto no plano nacional
como internacional. Nunca como no nosso tempo a sobrevivência de todos
e de cada um dependeu da combinação entre a fertilidade criativa e a tena-
cidade moral. As metamorfoses na política de ambiente serão, sem dúvida,
um dos campos onde o (in) sucesso dessa combinação vital se jogará de
forma definitivamente visível.

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ANEXO 1

ALDO LEOPOLD

No dia 21 de Abril de 1948, ao ajudar os seus vizinhos a combater um


incêndio na pradaria, morria de ataque cardíaco o engenheiro silvicultor Aldo
Leopold (nascido a 11 de Janeiro de 1887, no Estado de Iowa).
Apesar da sua obra especializada nos temas da política florestal e da gestão
de recursos cinegéticos ser de uma dimensão e qualidade consideráveis — mais de
350 artigos — não foi esse o factor preponderante para transformar Aldo Leopold,
com segurança, na segunda figura mais influente, ao lado de Rachel Carson, do
ambientalismo do século XX.
O que nós devemos a Leopold é uma radical mudança do olhar sobre as
relações entre o Homem e a Natureza. Retomando a inspiração de outras duas
grandes figuras do pensamento norte-americano do século XIX, Emerson e Tho-
reau, Leopold oferece ao leitor uma visão subtil e delicada da frágil teia dos equi-
líbrios naturais, criticando, de uma forma pedagógica e sem arrogância moral ou
científica, o modo desastrado e destruidor de que se revestem a maioria das inter-
venções humanas sobre os ecossistemas, em nome de um duvidoso conceito de
“progresso”.
O essencial da herança de Leopold, que perdurará como semente com fru-
tos abundantes ao longo do século XXI, está presente em duas obras Round River
e a Sand County Almanac (ver a edição portuguesa, na bibliografia supra). Neste
última obra está contida a proposta filosófica mais profunda deste engenheiro dos
bosques e das planícies, que soube ver mais fundo que a esmagadora maioria dos
filósofos profissionais do seu tempo: a “ética da terra” (land ethic).
Na ética da terra de Leopold está incluído praticamente tudo aquilo que nós
hoje ainda estamos a aprender quando queremos transformar o conceito de desen-
volvimento sustentável em algo mais do que num emblema retórico: o respeito
pelos valores intrínsecos dos ecossistemas; a capacidade de apreciação pelo
sagrado e sublime que se manifesta na natureza; a urgência de uma economia eco-
lógica, que não externalize os custos ambientais e seja capaz de dar um valor ao
*capital natural”, promovendo sensatas políticas de conservação das espécies e das
paisagens. Mas sobretudo, Leopold recorda-nos que o grande sentido da palavra
ética é o de comunidade, de partilha, de simbiose. Ora, a humanidade tem histo-
296 Manual de Filosofia Política

ricamente traçado uma fronteira entre si e as outras criaturas, como se os seres


humanos pudessem subsistir sem o concurso das forças naturais, de que depende-
mos como a parte depende o todo.
A ética da terra faz um apelo ao alargamento da comunidade ética a todas
as criaturas. Paz na terra e com a terra, entre os homens e todas as criaturas. Esse
é o desafio e a tarefa da humanidade no próximo século.
Na Europa, e rumando na mesma direcção teórico-prática, embora a partir
das tradições da filosofia europeia, e sobretudo alemã, merece destaque a obra do
filósofo Hans Jonas (1903-1993). Em 1979, no seu livro Das Prinzip Verantwor-
tung (O princípio da responsabilidade), ele demostrou que a luta pela defesa do
ambiente constituía o novo imperativo ético e o horizonte ecuménico que deveria
unir a humanidade inteira.
ANEXO 2

JOSÉ CORREIA DA CUNHA

No distante dia 27 de Abril de 1971 subia à tribuna da Assembleia Nacio-


nal um deputado de 44 anos. integrado na chamada Ala Liberal da Primavera
marcelista, e com um currículo académico e profissional impressionante. De seu
nome José Correia da Cunha.
Antes de ser eleito deputado. em 1969, Correia da Cunha tinha-se licen-
ciado duplamente, sempre com as mais elevadas classificações, primeiro em
Agronomia (1949) e depois em Geografia (1963). Esta última licenciatura tinha-
o colocado em íntimo contacto com o grande mestre da Geografia portuguesa
Orlando Ribeiro, primeiro como aluno, e depois como colega, entre 1963 e 1967.
Será na combinação entre estes diversos saberes, e sob a concepção holística de
Geografia perfilhada por Orlando Ribeiro, que Correia de Cunha se abre para a
obra da sua vida: tornar-se no pioneiro mais relevante da introdução da política
pública de ambiente em Portugal.
Ligado ao Ministério da Agricultura, desde 1951, Correia da Cunha foi,
como docente, o introdutor em Portugal dos estudos de Geografia aplicada, e
como técnico de planeamento do Secretariado Técnico da Presidência do Conse-
lho de Ministros o responsável pela definição geográfica das primeiras Regiões de
Planeamento do país (1967).
Em 19 de Junho de 1971 foi publicada a portaria 316/71 que dava existên-
cia legal à Comissão Nacional do Ambiente — presidida da sua fundação até à sua
extinção (1971-1983) por José Correia da Cunha — que pode ser considerada como
a primeira instituição portuguesa responsável pela orientação de uma política
pública de ambiente.
Com efeito, e apesar de algumas referências a questões ambientais, nomea-
damente as constantes no III Plano de Fomento (1968-1973), o primeiro órgão
governamental, com vocação interministerial, dedicado à coordenação dos pro-
blemas ambientais só seria criado na sequência da recepção pelo Ministério dos
Negócios Estrangeiros, em Março de 1969, da Nota do Secretário-Geral da ONU
dando conta da resolução 2398. aprovada na 23º sessão da Assembleia Geral, que
dera início ao processo que conduziria à Conferência das Nações Unidas sobre
Ambiente Humano. que teria lugar em Estocolmo, em Junho de 1972.
298 Manual de Filosofia Política

O Governo de Marcelo Caetano, isolado na cena internacional, levou a sério


o convite. Portugal não só se faria representar por amplas e qualificadas delega-
ções, tanto na Conferência de Estocolmo (sete elementos, incluindo o ministro da
Marinha), como nas diversas reuniões preparatórias entretanto realizadas. No
âmbito da preparação da referida conferência foi, igualmente, redigido o primeiro
relatório sobre o estado do ambiente, que seria publicado também no ano de 1971.
Há um quarto de século, Portugal seguia a tendência mundial para a criação
de estruturas que progressivamente tornariam o ambiente num horizonte integra-
dor de políticas públicas, anteriormente omissas ou fragmentadas por outros orga-
nismos executivos.
Por exemplo: em 1970 a Grã-Bretanha criaria o seu Department of the Envi-
ronment, que obrigaria à aglutinação de competências antes dispersas por três
ministérios. Também no mesmo ano seria criada a Environmental Protection
Agency (EPA) nos Estados Unidos, que, embora sem a categoria de um departa-
mento de Estado (o equivalente americano aos ministérios europeus), respondia
directamente junto do Presidente pela condução da política no âmbito federal.
Pela mesma senda, e já no final da década de 1960, seguiriam o Japão e a Suécia.
Não surpreende, dado este percurso rico e variado, que a intervenção de
José Correia da Cunha fosse esperada com natural expectativa nesse dia de Abril,
há mais de trinta anos. O discurso tinha o seguinte título: “O Ordenamento do Ter-
ritório, Base de uma Política de Desenvolvimento Económico e Social”. A
Assembleia Nacional não se limitou a aplaudir a iniciativa do deputado, pois a sua
discussão estender-se-ia até 30 de Abril.
Ão longo dos últimos trinta anos, as questões ambientais têm sido objecto
de várias metamorfoses tanto em Portugal como no resto do mundo. No registo de
tentativa e erro a que todas as experiências de inovação humana se têm de sub-
meter, as políticas públicas de ambiente não têm passado imunes a modismos e
ciclos temáticos com duração efémera.
Ora, o que é notável nessa intervenção proferida em 1971 por José Correia
da Cunha foi a capacidade por ele demonstrada para captar os aspectos essenciais
e estruturais das fundações da política de ambiente, depurando as facetas conjun-
turais e secundárias também envolvidas, inevitavelmente, na definição de qual-
quer política. Nesse discurso identificam-se centros nevrálgicos de pensamento e
acção que continuam válidos: a necessidade de conjugar ambiente com ordena-
mento do território; a imprescindibilidade do planeamento estratégico (o hori-
zonte temporal de Correia da Cunha nesse discurso era de 30 anos!); a importân-
cia vital dos contributos da ciência para o processo de tomada de decisão política;
o papel decisivo da educação na tarefa de mobilização dos cidadãos na senda do
desenvolvimento; o imperativo de preparar as fundações físicas e institucionais de
uma urbanização equilibrada do país; a urgente (e sempre adiada) reforma admi-
nistrativa do Estado.
Política de ambiente 299

Ao ler esse discurso de Correia da Cunha ficamos divididos entre, por um


lado, a admiração suscitada pela capacidade de antecipação por ele manifestada,
e a tristeza das oportunidades perdidas, por outro. No entanto, a figura singular do
homem permanece intocada pelo curso posterior dos acontecimentos que procu-
rou modelar pela positiva. Apesar de nunca ter ocupado o lugar que deveria ter
sido o seu se este mundo fosse regido pela justiça e imparcialidade, isto é, o de
primeiro responsável pela política ambiental da nova democracia, a verdade é que
Correia da Cunha jamais voltou as costas aos desafios do serviço público, fosse
como membro do Governo da Região Autónoma dos Açores, no período crítico
do terramoto que arrasou Angra do Heroísmo em 1 de Janeiro de 1980, seja como
Presidente da Comissão de Saneamento Básico do Algarve (1981-1987).
ÍNDICE

aereeam
ee rearecrereereereeas
INTRODUÇÃO ............ci trteiteeeereer eeta
eacearenmseaseratos 7

PRIMEIRA PARTE: Paradigmas

CAPÍTULO L. Utilitarismo...........ccttsissieereerereemereeareerereeereereereserseraca 15

....c
ss sermneeeerene
CAPÍTULO II. Liberalismo Igualitário .............. res 35

CAPÍTULO II. Libertarismo..............ciucsscseeereeerremeermererererereentrereressaro 67

CAPÍTULO IV. Comunitarismo .........ceeeeseeeeeaerimsermeereereereresenereeno 87

CAPÍTULO V. Republicanismo ...............cceeeeemeeeesesescermeerneeeereemeesem 109

CAPÍTULO VI. Democracia Deliberativa... rsieceeeeseereeeees 129

SEGUNDA PARTE: Problemas

CAPÍTULO VII. Pobreza absoluta... einer eeeereecereeaeem 179

CAPÍTULO VIII. As migrações internacionais.................eeeeereeeees 197

CAPÍTULO IX. Multiculturalidade e multiculturalismo............................. 219

CAPÍTULO X. Guerra € terrorismo..............ceeeeeeeatessererreneenrerseremreners 241

CAPÍTULO XI. Política de ambiente ............cieeemereerenceneeseeseeetens 267

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