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ROSAS, João Cardoso (Org.) - Manual de Filosofia Política. Coimbra - Almedina, 2008
ROSAS, João Cardoso (Org.) - Manual de Filosofia Política. Coimbra - Almedina, 2008
Filosofia
Polít:
2.2 EDIÇÃO REVISTA E AUMENTADA
JOÃO CARDOSO ROSAS
Organizador
MANUAL
DE
FILOSOFIA POLÍTICA
NA
ALMEDINA
MANUAL DE FILOSOFIA POLÍTICA
ORGANIZADOR
EDITOR
EDIÇÕES ALMEDINA. SA
Av. Fernão Magalhães, n.º 584, 5.º Andar
3000-174 Coimbra
Tel.: 239851 904
Fax: 239851901
www .almedina.net
editora almedina.net
Outubro, 2008
DEPÓSITO LEGAL
283625/08
PRIMEIRA PARTE
Paradigmas
SEGUNDA PARTE
Problemas
Este manual versa sobre a Filosofia Política actual. Uma vez que há
já várias obras que cobrem a História da Filosofia Política, prescindiu-se
aqui da dimensão diacrónica. Prescindiu-se também de uma abordagem
exclusivamente por autores, dado que esta está igualmente disponível em
outras obras existentes no mercado. Em vez disso, optou-se pela apresen-
tação dos principais paradigmas teóricos da Filosofia Política no nosso
tempo, juntamente com a análise de alguns dos problemas mais prementes
que se impõem hoje à reflexão dos filósofos políticos.
Se descontarmos os estudos de carácter histórico, grande parte da
Filosofia Política na actualidade dedica-se à exploração de teorias gerais —
aquilo a que alguns chamam “Grandes Teorias” —, ou então ao exame e
tentativa de solução de casos ou temas específicos. Porém, uma filosofia
inteiramente dedicada à teorização mais abstracta, sem referência a casos
específicos, tende a descolar da realidade social e a entrar nos caminhos
pouco produtivos da auto-referenciação. Da mesma forma, uma análise
casuística dos problemas do nosso tempo, sem referência à teoria geral, só
pode degenerar em senso comum pouco esclarecido. Por isso conside-
ramos da maior importância que a Filosofia Política estabeleça um movi-
mento de vaivém entre teorias e casos específicos, entre paradigmas e
problemas.
capítulo opta sobretudo por expor as suas próprias ideias — o que é intei-
ramente justificado, uma vez que se trata de um dos principais protago-
nistas destes debates. A questão ambiental configura-se como um dos
maiores desafios à Filosofia Política do futuro, uma vez que os principais
paradigmas teóricos da actualidade não foram ainda capazes de a enqua-
drar devidamente.
PARADIGMAS
CAPÍTULO |
Utilitarismo
PEDRO GALVÃO*
1. BEM-ESTAR
2. CONSEQUENCIALISMO
um agente tinha de escolher entre salvar o seu filho e salvar duas crianças
com as quais não mantinha qualquer relação relevante. Um consequencia-
lista dos actos aprovaria a segunda opção, ao passo que um deontologista,
em virtude de reconhecer obrigações especiais, aprovaria a primeira.
Por fim, os deontologistas afirmam que os agentes dispõem de
prerrogativas: mesmo quando maximizar o bem não implica desrespeitar
restrições gerais ou obrigações especiais. um agente não tem sempre a
obrigação de optar pelo curso de acção que resulte nas melhores conse-
quências. Em muitos casos, é moralmente aceitável fazer menos do que
isso, pois há limites consideráveis aos sacrifícios que temos de suportar
para benefício dos outros. Enquanto o consequencialista dos actos pensa
que cada um de nós deve pôr de parte os seus compromissos e pro-
jectos pessoais sempre que isso seja necessário para produzir as melhores
consequências, o deontologista entende que podemos desenvolver com-
promissos e projectos sem atender sempre ao seu valor impessoal.
Uma das objecções recorrentes ao consequencialismo dos actos é a
de estar em conflito com as intuições morais comuns, que apoiam antes
uma perspectiva deontológica. Em virtude de não reconhecer restrições
gerais nem obrigações especiais, o consequencialismo dos actos parece
demasiado permissivo. já que permite actos intuitivamente errados. como
torturar para minimizar tortura. E, em virtude de não admitir prerrogativas,
parece também demasiado exigente, pois impõe sacrifícios que não são
obrigatórios, ainda que fosse louvável fazê-los.
Perante este conflito, alguns consequencialistas (e.g.. Hare 1981)
negam que as intuições morais tenham algum valor probatório, de onde se
segue que o facto de uma teoria moral ou política ter implicações contra-
“intuitivas não afecta a sua credibilidade. Por vezes, acrescentam que
o consequencialismo dos actos praticamente só gera veredictos contra-
“intuitivos quando consideramos situações hipotéticas muito idealizadas,
simplificadas e improváveis. (Uma situação paradigmática é esta: um
cirurgião pode salvar cinco pacientes se matar uma certa pessoa € usar Os
seus órgãos em transplantes.) Se introduzirmos um maior realismo e deta-
lhe ao descrever as situações. descobriremos que, afinal, o veredicto da
teoria não é aquele que os seus críticos lhe haviam atribuído — ou, então,
tenderemos a concordar com o juízo consequencialista, que inicialmente
nos parecera impróprio.
Também em resposta ao conflito com as intuições morais comuns, os
consequencialistas dos actos procuram clarificar o estatuto da sua teoria.
22 Manual de Filosofia Política
insistirá ele, mas, por ter corrido um risco insensato, não deixou por isso
de ter feito algo profundamente censurável ou irracional.
to
tr
riamente improvável que se possa alcançar alguma vez a felicidade máxima
com a violação dos direitos. das liberdades e da integridade das pessoas.
(Goodin,1995: 69)
4. DEFESAS DO UTILITARISMO
então que algumas das nossas intuições têm de ser abandonadas por não
estarem de acordo com os princípios propostos — e que alguns princípios
precisam de ser revistos porque estão em conflito com certas intuições.
Reconsiderando e revendo intuições e princípios, procuramos atingir um
«equilíbrio reflectido» entre ambos. Se este método é aceitável, o argu-
mento de Hare não é convincente, pois baseia-se na ideia de que devemos
pura e simplesmente ignorar as nossas intuições morais e concentrarmo-
-nos nos aspectos formais da linguagem moral.
Harsanyi (1953; 1977) tentou justificar o utilitarismo mostrando que
um decisor devidamente caracterizado escolheria maximizar a satisfação
de preferências. O decisor ideal de Harsanyi tem duas características: por
um lado, é racional; por outro lado, está sob um «véu de ignorância». para
usar expressão celebrizada por Rawls. A racionalidade do decisor significa
apenas que as suas escolhas maximizam a utilidade esperada. A segunda
propriedade do decisor consiste em ele ignorar inteiramente o lugar que irá
ocupar na sociedade à qual as suas escolhas dizem respeito. É em virtude
de possuir esta propriedade que ele fará as suas escolhas com a imparcia-
lidade que a ética exige. Se soubesse qual o seu lugar na sociedade, sugere
Harsanyi, poderia limitar-se a escolher em função do seu interesse pessoal.
Imaginemos agora que um decisor ideal pretende escolher entre
dois «sistemas sociais»: uma democracia e uma ditadura. Suponhamos
que a sociedade a que essa escolha diz respeito consiste em n indivíduos.
Denotemos os níveis de bem-estar (ou utilidade) de que os indivíduos
1, 2... n desfrutariam no sistema social em causa da seguinte maneira:
Ui, U> ... Un. Sob o véu de ignorância de Harsanyi, o decisor atribuirá a
mesma probabilidade, 1/n, à situação de ocupar cada posição social espe-
cífica e, consequentemente, à situação de desfrutar cada um dos níveis de
bem-estar Ui, U> ... Ua. Sendo racional, ele escolherá o sistema social que
lhe ofereça as melhores perspectivas de bem-estar. Como poderá fazer
isso? Para simplificar, suponhamos que temos apenas quatro cidadãos e
que os níveis de bem-estar em cada sistema são os seguintes:
sistema, ocupar cada uma das posições possíveis. Poderá então calcular a
utilidade esperada de ambas as opções. Os cálculos para a opção da demo-
cracia e para a opção da ditadura são, respectivamente, os seguintes:
(axis 0xig+gxUg+0x9)=3
(6x!/g+2x!/g+xig+(xi/g=25
5. JUSTIÇA E LIBERDADE
[O] único fim para o qual os seres humanos estão autorizados a inter-
ferir, colectiva ou individualmente, na liberdade de acção de qualquer um
dos seus semelhantes é a auto-protecção. O único propósito para o qual o
poder pode ser exercido legitimamente sobre qualquer membro de uma
comunidade civilizada, contra a sua vontade, é o de impedir que ele cause
dano a outros. O seu próprio bem, seja ele físico ou moral, não é justifica-
ção suficiente. Ele não pode ser compelido a fazer algo ou a abster-se de
algo por isso ser melhor para ele mesmo, por isso torná-lo mais feliz ou
por isso, na opinião dos outros, ser sensato ou mesmo certo. (Mill, 1859: 78)
6. A RELEVÂNCIA DO UTILITARISMO
BIBLIOGRAFIA
Obras citadas
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Utilitarismo 33
Outras obras
* Universidade do Minho.
36 Manual de Filosofia Política
cidadãos enquanto sujeitos morais. Isto não significa que não existam
variações entre os cidadãos e que eventuais índices de racionalidade e
razoabilidade não pudessem ser contemplados. Mas a igualdade é aqui
vista como uma «propriedade de base», atribuída a todos os que coloca-
mos dentro do círculo da cidadania, ainda que uns possam ter mais e
outros menos. Uma possível comparação é a que remete para o modo
como Thomas Hobbes encara a força corporal (Hobbes, 1651: Cap. XIII).
Hobbes chama a atenção para o facto de uns indivíduos terem menos e
outros mais (força corporal), mas também para o facto de que essas dife-
renças não são assim tão grandes que impeçam o mais fraco de vencer o
mais forte (pela astúcia). Da mesma forma, a igual racionalidade e razoa-
bilidade dos cidadãos em Rawls qualifica-os igualmente como seres capa-
zes de uma concepção do bem e de um sentido de justiça, ainda que eles
não sejam estritamente iguais nessas capacidades.
Dito isto, não podemos esquecer que a sociedade como sistema de
cooperação entre cidadãos iguais é também palco de conflitos em torno da
distribuição dos benefícios e encargos que decorrem ou estão associados a
essa mesma cooperação. Geralmente, os cidadãos têm tendência a reivin-
dicar mais benefícios e a evitar encargos excessivos. Em qualquer caso,
nenhuma sociedade humana pode, em condições normais, evitar recorrer
a princípios que, explícita ou implicitamente, estabeleçam quem tem
direito a quê. Ora, é esse o papel que desempenham os princípios da jus-
tiça. Eles visam encontrar a forma mais adequada de distribuir os benefí-
cios e encargos, ou direitos e deveres, entre os cidadãos1 iguais, racionais €
razoáveis, participantes na cooperação social.
Princípios da justiça
Primeiro
Cada pessoa deve ter um direito igual ao mais extenso sistema
de liberdades básicas que seja compatível com um sistema de liberdades
idêntico para as outras.
Segundo
As desigualdades económicas e sociais devem ser distribuídas por
forma a que, simultaneamente: a) se possa razoavelmente esperar que elas
sejam em benefício de todos: b) decorram de posições e funções às quais
todos têm acesso. (Rawls, 1971: 68)
cepção de justiça que ignore as liberdades e a sua prioridade deveria, pura e simplesmente,
ser afastada pela sua incapacidade de honrar a nossa história recente. Mas, na prática,
não é isso que acontece. São os cidadãos das sociedades livres que, muitas vezes, menor
valor atribuem às liberdades e à sua prioridade.
44 Manual de Filosofia Política
dade democrática». Se, por outro lado, nos ativermos às duas interpreta-
ções alternativas — carreiras abertas às competências e princípio de Pareto
— estamos diante do chamado «sistema de liberdade natural» (uma expres-
são de Adam Smith). Enquanto esta última visão é libertarista porque
aceita o primeiro princípio da justiça, mas recusa-se a tomar a sério tanto
a lotaria natural como a lotaria social, a versão de Rawls é liberal iguali-
tária porque, partindo da aceitação do mesmo primeiro princípio, toma a
sério esses dois aspectos. Em termos puramente lógicos, o libertarismo
parece ser o grande adversário do Segundo Princípio da justiça.
Na sua versão definitiva, o Segundo Princípio da justiça lê-se
então assim:
4 Não confundir com a tradição que começa em Hobbes e que visa, como acima
se disse, retirar asserções morais da pura consideração dos interesses individuais e da razão
instrumental, ou seja, sem ter em conta o ponto de partida moral de uma teoria como a
rawlsiana, assente na igual consideração dos indivíduos ou cidadãos como agentes morais.
Aliás, a língua inglesa permite uma distinção clara entre estes dois tipos de teorias, usando
a palavra «contractarian» para a teoria neo-hobbesiana e a palavra «contractualist» para
teorias como a de Rawls, mais de carácter neo-lockeano.
50 Manual de Filosofia Política
Posição original
elas será muito mais imparcial, muito mais equitativa, do que uma escolha
efectuada por pessoas reais. Daí que Rawls chame à concepção escolhida
na posição original «justiça como equidade».
Em primeiro lugar, as partes estão debaixo de um espesso véu de
ignorância. Isso significa que elas desconhecem as circunstâncias parti-
culares das pessoas que representam: as suas concepções particulares do
bem, os seus rendimentos, o seu status social, etc. Assim fica garantido o
afastamento daqueles circunstâncias em que cada um é guiado pelas suas
próprias inclinações e levado a escolhas puramente parciais. Deve notar-
-se que as partes não são, em si mesmas, razoáveis. Mas a existência do
véu de ignorância garante a razoabilidade da sua escolha.
Embora tenham um desconhecimento particular em relação às pes-
soas que representam e à sociedade específica — pelo menos num primeiro
momento — para a qual vão escolher a melhor concepção de justiça, as par-
tes têm alguns conhecimentos gerais sobre a vida humana. Esses conheci-
mentos visam conferir maior robustez à sua escolha. Assim, por exemplo,
as partes sabem que a justiça é necessária numa sociedade na qual os
recursos são escassos e as pessoas têm uma multiplicidade de objectivos e
benevolência limitada (as circunstâncias da justiça de Humes). Às partes
sabem que a concepção de justiça se aplica ao enquadramento institucio-
nal da sociedade, isto é, à estrutura básica. As partes também não podem
ignorar que há determinados bens sociais primários de que a justiça se
deve ocupar. As partes conhecem factos gerais sobre a psicologia humana,
como a capacidade das pessoas para um sentido de justiça.
Em segundo lugar, as partes são elas mesmas estritamente racionais,
no sentido da racionalidade meios-fins. Este facto permite que a sua
decisão não possa ser racionalmente posta em causa, ainda que ela esteja
submetida às circunstâncias especiais colocadas pelo véu de ignorância.
Para além deste raciocínio geral e muito intuitivo, Rawls vai adian-
tando argumentos adicionais favoráveis aos princípios da justiça quando
comparados com o princípio de utilidade. Um deles pode ser designado
como o «argumento das tensões geradas pelo compromisso». Isto significa
que, numa sociedade utilitarista, as tensões individuais derivadas do apoio
ao princípio de utilidade são muito maiores do que numa sociedade justa
no sentido de Rawls. O compromisso dos cidadãos numa sociedade utili-
tarista é difícil, na medida em que ela exige demasiado a cada um com
vista a maximizar o bem-estar. A situação é especialmente difícil para
aqueles que forem sacrificados em nome do bem-estar geral. Neste caso,
os cidadãos não parecem ter motivos suficientemente fortes para cooperar.
Em contraste, parece ser muito mais fácil motivar a cooperação de todos
numa sociedade justa. Neste quadro, as tensões do compromisso são bem
menores na medida em que todos sabem que terão acesso a um índice
elevado de bens sociais primários, aos quais todos os outros têm também
acesso. Ninguém tem motivos para se sentir posto de lado e, portanto, para
não cooperar.
Um outro argumento adicional que surge na comparação entre os
princípios de justiça em ordem lexical e o princípio de utilidade é o da
estabilidade. Uma sociedade utilitarista é pouco estável. Se aqueles que se
sentem prejudicados ou sacrificados têm pouca motivação para cooperar,
poderão ter motivação para se revoltar. Pelo contrário, uma sociedade justa
é mais estável na medida em que todos sabem ter a possibilidade de desen-
volver livremente os seus projectos de vida. Desta forma, uma sociedade
justa tem capacidade para gerar o seu próprio apoio e a motivação para a
revolta é naturalmente diminuída.
Passemos agora a uma breve comparação entre os princípios de jus-
tiça e o princípio de perfeição. Segundo este, a sociedade deve ser organi-
zada de forma a favorecer uma hierarquia de concepções particulares do
bems. Assim, a sociedade pode ser estruturada para favorecer um ideal de
vida contemplativa, ou a vida artística e criativa, por exemplo. Ora, as par-
tes na posição original não sabem qual a concepção completa do bem das
pessoas que representam. Se elas tivessem esse conhecimento poderiam
dade justa. Mas isso significa que a concepção da justiça como equidade
que ele defende não poderá assentar numa qualquer doutrina abrangente
em particular — de tipo religioso, filosófico ou moral —, mas antes numa
pluralidade de doutrinas compatíveis com essa concepção de justiça. Mas
se, por um lado, a justiça não tem de ser justificada a partir de uma única
perspectiva abrangente, por outro lado, nem todas as perspectivas abran-
gentes com representatividade social poderão apoiá-la. Daí Rawls fazer
uma distinção entre o “facto do pluralismo enquanto tal” e o “facto do
pluralismo racional e razoável”. A justiça deverá ser compatível com o
último, mas não obrigatoriamente com o primeiro. Vejamos como.
O facto do pluralismo racional e razoável constitui um sub-grupo do
facto do pluralismo enquanto tal. Já falámos — no início deste capítulo —
das ideias de racionalidade e razoabilidade enquanto características dos
cidadãos. Mas é preciso agora aplicá-las às doutrinas abrangentes. Existem
muitas doutrinas abrangentes - ou podem existir — que não são racionais
nem razoáveis, ou que são uma das coisas mas não a outra. O conceito de
racionalidade aqui usado é, de novo, o de racionalidade meios-fins. Poderá
haver doutrinas que, pura e simplesmente, não fazem sentido nestes ter-
mos. Mas é mais comum que algumas doutrinas socialmente relevantes
sejam racionais, mas não razoáveis. A razoabilidade implica duas coisas.
Em primeiro lugar, a disposição para encontrar termos de cooperação com
os outros e de agir de acordo com esses termos. Quando dizemos a alguém
“Sê razoável!” é precisamente neste sentido. Estamos a fazer um apelo ao
entendimento e à cooperação baseada em princípios, ainda que na manu-
tenção das diferenças. Em segundo lugar, Rawls considera que a razoabi-
lidade implica a aceitação daquilo que ele denomina como “fardos da
razão”, isto é as condições epistémicas que fazem como que pessoas racio-
nais e razoáveis no primeiro sentido da palavra não consigam, ainda assim,
convergir na adesão à mesma doutrina abrangente. Estes fardos ou ónus
da razão incluem o carácter polémico das provas, a discordância quanto à
importância relativa dos diferentes juízos, o carácter vago e sujeito a casos
difíceis dos nossos conceitos morais e políticos, a influência da experiên-
cia global de cada um no modo como avaliamos provas e ponderamos
valores, etc.
8 Este é o grande tema da reflexão de Rawls a partir de meados dos anos oitenta.
O resultado dessa reflexão - que passamos agora a resumir — surge perfeitamente arti-
culado em Liberalismo Político (Rawls. 1993).
60 Manual de Filosofia Política
Igualdade de recursos
Igualdade de «capabilidades»
Igualdade local
Igualdade global
BIBLIOGRAFIA
Obras citadas
Outras obras
ACKERMAN, Bruce (1980), Social Justice in the Liberal State, New Haven,
Yale University Press.
Dworkin, Ronald (2000), Sovereign Virtue: The Theory and Practice of
Equality, Cambridge, Mass., Harvard University Press.
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bridge, Cambridge University Press.
GUTMANN, Amy (1980), Liberal Equality, Cambridge, Cambridge Univer-
sity Press.
MuNoz-DARDÉ, Véronique (2000), La Justice Sociale. Le libéralisme
égalitaire de John Rawls, Paris, Nathan.
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NAGEL, Thomas (2005), “The Problem of Global Justice”, Philosophy and
Public Affairs, Vol. 33, N. 2, 2005, pp. 113-47.
CAPÍTULO III
Libertarismo
Rui FONSECA*
1. LIBERTARISMO INSTRUMENTAL
2 Ver Roger Scruton (2006: 208-231) para uma reflexão sobre esta matéria.
70 Manual de Filosofia Política
pelo mercado não são justos nem injustoss. Mas mesmo partindo de
um erro conceptual, a sujeição do funcionamento do mercado à reali-
zação da justiça social poderia contribuir para a melhoria das condições
de vida das pessoas. Hayek, todavia, rejeita esta possibilidade. A sujei-
ção do mercado a um padrão geral de distribuição só pode produzir
o efeito contrário ao desejado. A explicação é relativamente simples.
A submissão dos fins individuais à realização da justiça social destrói
a ordem espontânea que caracteriza o mercado e impede os indivíduos
de utilizarem os seus melhores conhecimentos para realizarem os seus
próprios fins:
2. LIBERTARISMO FUNDAMENTAL
priedade se pode constituir e transferir, regras que uma vez respeitadas tor-
nam o resultado final justo, qualquer que ele seja. As regras processuais
da teoria do justo título são as seguintes: 1) um princípio de apropriação
original, que especifica como é que um indivíduo pode tornar-se proprie-
tário de um recurso exterior (um indivíduo pode tornar-se proprietário de
algo não possuído desde que não deteriore a situação das outras pessoas);
2) um princípio de transferência, que estabelece a possibilidade de uma
pessoa tornar-se proprietária de um bem depois de um acordo com o seu
antigo proprietário; 3) um princípio de rectificação, que regula as viola-
ções de 1) e 2).
De acordo com o sentido geral da teoria do justo título, não existem
critérios independentes das regras processuais com legitimidade para ava-
liar a maior ou menor justiça de uma dada distribuição final. Se um deter-
minado bem foi adquirido sem prejudicar a situação das outras pessoas,
então toda a distribuição que resultar de troca voluntária desse bem é em
si mesma justa. Como refere Nozick, «tudo aquilo, o que quer que seja,
que nasça de uma situação justa e à qual se chega por etapas justas é em si
mesmo justo» (Idem: 151). Consequentemente, toda a interferência poste-
rior contra a livre vontade dos indivíduos é injusta. As correcções em
nome de princípios de justiça igualitários não são mais do que um roubo
institucionalizado. A ser resumida num único princípio, a teoria do justo
título teria o seguinte enunciado: «de cada um conforme escolher, a cada
um conforme escolherem dar-lhe» (Idem, 160).
7 Ver a resposta de Rawls (2001: 75) e Dworkin (1983: 39) a este argu-
mento.
8 Os artigos mais significativos sobre o libertarismo de esquerda estão reunidos
na antologia organizada por Vallentyne e Steiner (20004). Philippe Van Parijs (1995)
também é associado a este movimento, mas considera-se um “real-libertarian” para pôr
evidência a especificidade meta-ética da sua proposta. As análises de G. A. Cohen (1995)
sobre o princípio da propriedade de si mesmo também são decisivas na formação do liber-
tarismo de esquerda, mesmo se se trata de um marxista analítico que recusa a possibilidade
de articular este princípio com princípios de justiça igualitários.
Libertarismo 81
10 Por exemplo, Nozick afirma que «as coisas vêm ao mundo já ligadas a pessoas
com direitos sobre elas» (1974: 160).
1 Ver Cohen (1995: 34) e Otsuka (2005: 23).
Libertarismo 83
dade sobre os recursos externos. Para Steiner, «cada indivíduo tem direito
a uma parte igual dos meios de produção não humanos» (Steiner, 1977a:
48-49). De acordo com este princípio, cada indivíduo é livre de utilizar a
parte dos recursos não humanos a que tem direito, quer melhore e retire
benefício dessas melhorias. quer não. Quanto a Otsuka, defende uma
cláusula igualitária com o seguinte enunciado: «podemos originalmente
adquirir recursos do mundo sem proprietário se e apenas se deixarmos o
suficiente de maneira a que qualquer outra pessoa possa adquirir uma parte
igualmente vantajosa de recursos do mundo sem proprietário» (Otsuka,
2005: 24). Por comparação com Steiner, Otsuka adopta uma cláusula com
uma especificação welfarista. A expressão «parte igual» é substituída pela
expressão «parte igualmente vantajosa» para contemplar uma concepção
da justiça como satisfação das preferências individuais.
BIBLIOGRAFIA
Obras citadas
Outras obras
CARLOS AMARAL*
4 Daí recorrermos ao verbo ser para descrever a nossa relação com a comunidade
política nacional portuguesa. Em vez de nos afirmarmos como sujeitos que detêm carac-
terísticas nacionais portuguesas, dizemos que somos portugueses. Isto é. reportamos o
nosso próprio ser à comunidade nacional portuguesa. Da mesma forma, afirmamos a igual-
dade absoluta entre todos os portugueses. Isto é, defendemos que todos somos iguais
100 Manual de Filosofia Política
interesses e, daí, à luta pelo poder que se desencadeia quando seres pre-
viamente individuados se reúnem para conduzirem melhor as suas vidas,
cada um procurando exercer a sua vontade e servir os seus interesses, com
um mínimo de interferência do exterior.
Não sendo algo de estranho e artificial, muito menos monopólio do
Estado, a actividade política assume, então, um carácter simultaneamente
plural e situado, exigindo, em cada uma das suas esferas comunitárias, a
participação de todos aqueles que dela se reclamam, já que é através dela
que se enformam. Tanto assim que o próprio conceito de liberdade adquire
um significado renovado. Em vez de exprimir a capacidade de um sujeito
exercer a sua vontade, na eleição dos fins por que se deverá nortear e, por
conseguinte, de gratificar os seus desejos a partir do poder que comanda,
assume contornos renovados, apresentando-se como exigência de parti-
cipação.
Segundo a tradição liberal, ser detentor de direitos significa estar
devidamente protegido da vontade arbitrária e da intervenção de outros,
em particular de eventuais maiorias constituídas por via democrática. O
âmbito sobre o qual os direitos incidem encontra-se eficazmente vedado e
reservado em exclusivo aos seus detentores. E é com vista à garantia de
que assim acontece que se procede à constituição do Estado e lhe é atri-
buído o poder soberano que o caracteriza. Tanto assim que o liberalismo
coloca os direitos acima da democracia.
Já o comunitarismo procura reconciliar a liberdade com a democra-
cia, passando a primeira a decorrer da segunda, em vez de exigir imuni-
dade face a ela. Para a tradição liberal, a liberdade exige a concentração do
poder, a soberania política, com vista à garantia dos direitos dos cidadãos.
Para Michael Sandel, liberdade significa autogoverno, decorrendo “das
instituições democráticas e da dispersão do poder” por entre as múltiplas
comunidades em que nos situamos, e não da força e da extensão dos direi-
tos que nos são reconhecidos e, por esta vida, da amplitude, da nossa
esfera privada, tal como protegida pela esfera do poder público (Sandel,
2005:171). Em vez de emergir na ausência de intervenção, a liberdade
exige, pelo contrário, participação no exercício do poder político.
Wilfred McClay critica Sandel, e o comunitarismo em geral, por não
atender como deveria à ideia federal, (McClay, 1998: 103). O reparo é per-
tinente, se bem que os últimos trabalhos de Sandel lhe tenham retirado
validade. E, na verdade, num certo sentido, comunitarismo e regionalismo
partilham horizontes comuns, apontando, por um lado, para a desintegra-
Comunitarismo 103
3.
BIBLIOGRAFIA
Obras citadas
Outras obras
2 Estas finalidades podem, evidentemente, ser políticas. mas neste caso a extensão
3o domínio de aplicação destas finalidades políticas transforma-as em finalidades éticas,
=o sentido em que elas modificam os comportamentos dos indivíduos substituindo-se
zs suas finalidades pessoais.
12 Manual de Filosofia Política
mos, mas antes como meios eficazes para atingir um estado de protecção
em relação à interferência arbitrária de outros (seja de um outro indivíduo,
de uma nação estrangeira ou de uma instituição pública), permitindo ao
indivíduo escolher livremente o tipo de vida que quer levar. A este repu-
blicanismo chama-se político na medida em que não põe em jogo valores
humanistas associados à cidadania ou à actividade cívica.
Nos dois casos — mas com efeitos que facilmente imaginamos opos-
tos sobre a apreensão da liberdade individual — o republicanismo valoriza
a participação política dos indivíduos nas decisões que dizem respeito ao
futuro da comunidade e ao seu futuro pessoal no interior daquela. É esta
valorização que em grande medida ocasionou o sufocamento da doutrina
republicana como doutrina política de primeiro plano no decurso do sé-
culo XIX e ao longo do século XX. Com efeito, fosse sob os golpes da crí-
tica liberal, que considerava que o direito e o mercado eram suficientes
para proteger o indivíduo, ou sob os golpes da crítica marxista, que julgava
que a emancipação política era apenas um véu lançado sobre os mecanis-
mos reais de dominação que era necessário procurar na esfera da produção
ou nas actividades económicas em geral, o republicanismo sofreu um
longo eclipse, do qual só recentemente emergiu (sobre este assunto, vide
Spitz, 1995: Cap.1: Pettit, 2004 (1997: Cap. 1).
3 Vide: Berlin (1969 ), Constant (1997 (1819)). A literatura acerca da história biná-
ria liberdade positiva/liberdade negativa da modernidade política e seus impasses, é rica;
vide para uma primeira aproximação: Spitz (1995). Skinner (1998), Pettit (2004 (1997);
capítulo 1).
Republicanismo 117
mente defendida por John Maynor (2003) e também por Cécile Laborde
(2008).
Segundo Maynor, uma forma de demarcação clara em relação ao
republicanismo de tipo liberal como o de Pettit, consiste em aprofundar a
ideia de acordo com a qual os valores e virtudes republicanos devem ser
considerados não apenas instrumentais mas constitutivos ou intrínsecos
à liberdade republicana (2003: 57). O autor aprofunda esta ideia de uma
virtude simultaneamente instrumental e intrínseca através do desenvolvi-
mento da ideia de reciprocidade. A reciprocidade, segundo Maynor, mani-
festa-se através de certos valores e ideais, como a cidadania e a virtude
cívica, e é sustentada pelo poder constitucional. A tese defendida é, então,
a seguinte: sem certos bens substanciais que, por assim dizer, acompa-
nham a reciprocidade e permitem informar e perseguir um bem comum, os
ideais e instituições do Estado não poderão sustentar a liberdade como não
dominação (Jbid.: 64). Independentemente da avaliação da plausibilidade
desta tese, o que é importante nela é que o exercício deste poder de reci-
procidade implica um perfeccionismo menos robusto do que o domínio de
si favorecido pelas formas de humanismo cívico ou de comunitarismo, o
que torna este poder de reciprocidade compatível com um pluralismo das
concepções do bem (Jbid.: 58). Maynor reconhece, no entanto, que mesmo
admitindo que seja possível justificar que a concepção das virtudes repu-
blicanas é distinta da que é defendida pelas virtudes liberais, fica por mos-
trar em que é que esta alternativa republicana é mais atraente do que o
liberalismo. A sua estratégia consiste, então, em rejeitar o ideal da neutra-
lidade política, considerando que uma defesa das virtudes cívicas republi-
canas, mesmo que parcialmente instrumentais, implica a rejeição do ideal
da neutralidade. O seu argumento contra a neutralidade liberal repousa
sobre dois pontos: por um lado, opõe-se à ideia de que o Estado não deva
apelar ao valor intrínseco de certas versões do bem nos seus ideais e insti-
tuições, e por outro, opõe-se à ideia de que o Estado não deva promover
qualquer virtude perfeccionista (Ibid.: 64). Neste sentido, o republica-
nismo favorece, tal como o liberalismo, um contexto para a liberdade de
escolha. Mas, segundo Maynor, não é neutro porque se opõe à existência
de bens que sejam bens de dominação. A ideia é que todas as concepções
de bem compatíveis com o ideal da não dominação podem ser perseguidas
tanto quanto as escolhas de cada um sejam compatíveis com a liberdade
como não dominação dos outros. Maynor considera que é mais correcto
falar de “quasi-perfeccionismo” para caracterizar a sua teoria (Ibid.: 80).
Republicanismo 119
maneira de Ph. Van Parijs (1995), todas estas fórmulas são as dignas her-
deiras dos mecanismos imaginados pelos republicanos de finais do século
XVIII. convencidos da utilidade da redução dos fossos de riqueza para
cnar uma sociedade de iguais e permitir aos indivíduos ter os meios neces-
sários para as suas livres iniciativas. Nesta perspectiva, os argumentos
republicanos que se apoiam sobre a definição da liberdade como não
dominação são sem dúvida os mais adequados para justificar uma tal
reformulação da solidariedade social nas nossas sociedades democráticas,
onde se misturam autonomia individual e garantias sociais dessa auto-
nomia.
BIBLIOGRAFIA
Obras citadas
Outras obras
* Universidade do Minho.
130 Manual de Filosofia Política
1. A VIRAGEM PARADIGMÁTICA
dos laços da sociedade civil é concordando com outros homens em juntar-se e unir-se
zuma comunidade, para viverem confortável. segura e pacificamente uns com os outros,
zozando de modo seguro das suas propriedades contra aqueles que dela não fazem
zarte (...). Quando qualquer número de homens consentiu desse modo em formar uma
comunidade ou governo. são. por esse acto, nela incorporados e formam um corpo polí-
zco. no qual a maioria tem o direito de agir e deliberar por todos” (Locke, 1689, 530-531:
o itálico é nosso).
132 Manual de Filosofia Política
3 À teoria dos “actos de fala” tem por base doze conferências proferidas por Aus-
tin na Universidade de Harvard, EUA, em 1955, e publicadas postumamente (1962), no
livro How to do Things with Words (Austin, 1962). O título da obra resume claramente a
ideia principal defendida por Austin: dizer é transmitir informações, mas é também
(e sobretudo) uma forma de agir sobre o interlocutor e sobre o mundo circundante.
Democracia deliberativa 137
que são proferidos, realizam a acção denotada pelo verbo; não servem para
descrever nada, mas sim para executar actos (acto de prometer, de abrir
uma sessão, etc.). Neste sentido, dizer algo é fazer algo; dizer, por exem-
plo, Declaro aberta a sessão, não é informar sobre a abertura da sessão, é
“abrir a sessão”; são os enunciados performativos que concitaram o maior
interesse de Austin.
No entanto, o simples facto de proferir um enunciado performativo
não garante a sua realização; se é uma condição necessária, não constitui
condição suficiente para a realização de um acto de fala; requer-se, pois,
para que possa ser considerado “feliz” (felicitous) ou bem-sucedido, isto é,
para que a acção por ele designada seja de facto realizada, que as circuns-
tâncias sejam adequadas. Um enunciado performativo pronunciado
em circunstâncias inadequadas não é falso, mas sim nulo, sem efeito;
simplesmente fracassa. Assim, por exemplo, se o recepcionista (e não o
presidente da câmara) diz Declaro aberta a sessão, o performativo não se
realiza (isto é, a sessão não é aberta), porque o recepcionista não tem poder
ou autoridade para abrir a sessão; o enunciado é, portanto, nulo, sem efeito
(ou, nas palavras de Austin, “infeliz”).
Austin denominou “condições de felicidade” os critérios requeridos
para que um enunciado performativo seja bem-sucedido; as principais são:
1a) o falante deve ter autoridade para executar o acto (como no exemplo
anterior); (b) as circunstâncias em que as palavras são proferidas devem
ser apropriadas (se o presidente da câmara declara aberta a sessão, sozinho,
em sua casa, O performativo não se realiza, porque não é enunciado nas
circunstâncias apropriadas). Posteriormente, ao tentar fixar um critério
gramatical para os enunciados performativos (inicialmente, o critério do
verbo na primeira pessoa do singular do presente do indicativo, etc.), Aus-
un deparou com muitos problemas, pois constatou, entre outras coisas: (1)
nem todo enunciado performativo tem o verbo na primeira pessoa do
singular do presente do indicativo na forma afirmativa e na voz activa; eis
alguns exemplos: Proibido fumar; Vocês estão autorizados a sair; Todos os
funcionários estão convidados para a reunião de hoje. Nesses exemplos, os
actos de proibição, autorização e convite, realizam-se sem o emprego de
proíbo, autorizo e convido; por outro lado, (2) nem todo enunciado na pri-
meira pessoa do singular do presente do indicativo na forma afirmativa e
na voz activa é performativo; eis alguns exemplos: Eu jogo futebol, Eu
corro; Eu estudo inglês; nesses exemplos, os actos de jogar futebol, correr
e estudar inglês, não se realizam ao enunciarem-se tais sentenças.
138 Manual de Filosofia Política
8 Já na sua obra sobre A Lógica das Ciências Sociais Habermas faz a análise da
teoria de Luhmann, bem como dessa capacidade que os sistemas sociais possuem para
a sua própria reprodução, que se designa de “autopoiética” (do grego poiesis, produção).
Na Teoria do Agir Comunicativo, revisita essas posições, bem como as análises de
Marx, Weber, Parsons. Luhmann, etc.
150 Manual de Filosofia Política
a aparência de autarquia desse mundo, têm, por assim dizer, que esconder-
-se nos poros da acção comunicativa. O resultado disso é uma força estru-
tural que, sem se tornar como tal manifesta, se apodera da forma da inter-
subjectividade do entendimento possível” (Habermas, 1981b: 264). A
universalização das relações capitalistas, abafando gradualmente todas as
formas comunicativas — o amor e a verdade não se desenvolvem no mundo
sistémico —, constituiria o fenómeno distintivo da modernidade, na medida
em que se ampliam os âmbitos sociais que se regem por mecanismos
que o dinheiro e o poder impõem, estiolando as dimensões da racionali-
dade comunicativa; o mundo da vida vai ficando comprimido num último
reduto, que acaba por caracterizar-se negativamente, quer dizer, aquele que
ainda não está por completo submetido por mecanismos sistémicos: “Para
a análise do processo de modernização resulta disso a suposição global de
que o mundo da vida progressivamente racionalizado, fica desacoplado
dos âmbitos de acção formalmente organizados e cada vez mais complexos
que são a economia e a administração estatal e cai sob a sua dependência.
Esta dependência, que provém de uma mediatização do mundo da vida por
imperativos sistémicos, adopta a forma patológica de uma colonização
interna à medida que os desequilíbrios críticos na reprodução material (isto
é, crises de controlo acessíveis à análise de uma teoria dos sistemas) só
podem evitar-se com o preço de distorções da reprodução simbólica do
mundo da vida (isto é, de crises de identidade e patologias “subjectiva-
mente” experienciadas)” (Habermas, 1981h: 532-433).
Se é isto que ocorre, não é também possível avançar um prognóstico:
será que o processo de dissolução das esferas do mundo da vida prosse-
guirá indefinidamente nesse reducionismo, em que as relações humanas se
monetarizam e as decisões se burocratizam, atingindo a barbárie, exau-
rindo a comunicabilidade porque diluída em meios não-verbais — essas
teias do mercado e esses mecanismos do poder burocrático? Habermas
limita-se a sublinhar que não deve presumir-se um desenvolvimento linear
do que foi até agora a tendência geral da modernidade. De certo modo,
Habermas, com a sua análise da evolução organizacional das sociedades,
inverte a consideração do Marx, para quem, “na produção social da sua
existência, os homens entram em relações determinadas, necessárias, inde-
pendentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a um
determinado grau de desenvolvimento das suas forças produtivas mate-
riais”, sendo que “o conjunto dessas relações de produção constitui a estru-
tura económica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma
Democracia deliberativa 151
diálogo entre todos os afectados por essas normas. Assim, para Habermas,
o critério para saber se uma norma é correcta há-de fundar-se em dois prin-
cípios: o princípio de universalização <U>, que reformula dialogicamente
o imperativo kantiano da universalidade, expressando-se assim: “Uma
norma será válida quando todos os afectados por ela possam aceitar livre-
mente as consequências e efeitos secundários que se seguiriam, previsi-
velmente, do seu cumprimento geral para a satisfação dos interesses de
cada um”; por outro lado, o princípio discursivo <D> estipula: “Só podem
pretender validez as normas que concitarem (ou que poderiam concitar) a
aceitação por parte de todos os afectados, como participantes num dis-
curso prático” (Habermas, 1983: 85-86). Então, a racionalidade inerente
ao diálogo é comunicativa e deve satisfazer interesses universalizáveis;
como tal, a ética do discurso não pretende só fundamentar racional e
dialogicamente a moral, mas busca também a sua aplicação na vida quoti-
diana, impregnando também os meandros da política deliberativa; actual-
mente, encontramo-la ainda na “ética aplicada” a diversos âmbitos do
social — bioética ou ética médica, genética, ética da ciência e da tecnolo-
gia, ética económica, ética da empresa, ética da informação, ética ecoló-
gica; todas atravessam um contínuo processo de fundamentação e reela-
boração devido a que os valores próprios de cada actividade e a própria
actividade não estão fechados mas desenvolvem-se progressivamente.
que advêm de uma cultura e tradição comuns dos membros dessa comu-
nidade.
Habermas, e em geral os teóricos da democracia deliberativa, con-
frontam dois modos de tomadas de decisões, patentes no liberalismo e no
republicanismo. Por um lado, temos a agregação de preferências como a
soma dos diferentes interesses; por outro, a deliberação como debate
acercas de diferentes posições, até chegar a um acordo susceptível de ser
compartilhado por todos. Neste contexto, se é verdade que Habermas se
situa entre liberalismo e republicanismo, aproxima-se mais deste último,
mas dele se afasta, “pelo estreitamento ético a que são submetidos
os discursos políticos” (Habermas, 1996: 238), circunscritos a questões
de identidade colectiva pela identificação republicana entre sociedade e
comunidade política, que Habermas, como veremos, não compartilha.
tade e da opinião políticas no ponto central, mas sem entender como algo
secundário a constituição em termos de Estado de direito; mais ainda, con-
cebe os direitos fundamentais e os princípios do Estado de direito como
uma resposta consequente à questão sobre como podem ser institucionali-
zados os exigentes pressupostos comunicativos do procedimento demo-
crático” (Habermas, 1996: 95-96).
Deste modo, o ideal democrático habermasiano orienta-se no sen-
tido de uma conversação irrestrita entre cidadãos livres e iguais, em con-
dições de igualdade entre os intervenientes e em que a legitimidade brota
da autoridade do melhor argumento. A hipótese assenta numa pragmática
da linguagem, que potencia recursos para superar formas de dominação
e de coerção. diferentemente do comunitarismo, cujo horizonte prévio
carece do horizonte hermenêutico da comunidade, e de Rawls, para quem
é a preexistência de uma cultura compartilhada que permite o exercício
da capacidade crítica dos cidadãos. Ora, para Habermas, não se remete
para referências externas que legitimem as decisões democráticas, mas
tão-somente para um meio plural que torne possível as vias discursivas
que permitam a deliberação; e. se é verdade que esta posição se inscreve
na senda kantiana, que distingue a ética da moral, é nesta última que
radicam as exigências discursivas básicas que levam ao entendimento
intersubjectivo, cuja validez, ao invés dos comunitaristas, é susceptível
de alcance universal. E, se a polémica com Rawls pouco se afasta de uma
“disputa de família” (Vallespín, in Habermas/Rawls, 1996: 1iss.)10,
todavia Habermas afasta-se dessa perspectiva nomológica, não dialógica,
do liberalismo político, que parte do construto mental privado ilustrado
pela “posição original” orientadora de cada um dos cidadãos. Habermas,
afastando-se da pertinência da consciência subjectiva como via esclare-
cedora, denegada hoje pela linguística, atribui maximamente ênfase à
intersubjectividade, que se desenvolve mediante o diálogo e a permuta
de razões.
11 Habermas é, neste assunto. tributário da posição de Agnes Heller. bem como das
orientações de John Rawis, Ronald Dworkin ou Peter Singer. ao tipificar essas acções deli-
tivas em que, não rejeitando em bloco o ordenamento constitucional, o infractor da norma
prescinde da violência, motivado por razões político-morais; tais dissidências, mover-
-se-ão num incerto umbral situado entre a legalidade rejeitada e a legalidade reivindicada:
tais actos de transgressão simbólica e não violenta das normas, compreendem-se, segundo
Habermas, como expressão do protesto contra decisões vinculativas e que, apesar da sua
génese, são, segundo os actores. ilegítimas, à luz dos princípios constitucionais (1992:
464); além disso, adoptando-se uma visão não essencialista da constituição, a desobe-
diência civil apoia-se “numa compreensão dinâmica da Constituição como um projecto
inacabado. Vista a longo prazo, o Estado de direito democrático não se apresenta como
Democracia deliberativa 169
uma imagem acabada, mas como um empresa frágil. delicada, e sobretudo falível e
carecida de revisão” (1992: 465-466): então, tais actores poderão ser um género de
activos colaboradores do sistema constitucional. enquanto actuariam na sua defesa, dado
que normas legais. decisões governamentais e actos jurisdicionais poderão infringir os
mandatos constitucionais.
170 Manual de Filosofia Política
BIBLIOGRAFIA
Obras Citadas
Outras Obras
PROBLEMAS
CAPÍTULO VII
Pobreza absoluta
DIANA MAIA*
deramos que matar é pior do que evitar uma morte. Podemos defender que
existem diferenças entre envenenar crianças na Somália e não contribuir
com alguma ajuda para a UNICEF. A motivação do agente é muito dife-
rente. O envenenador quer matar, o que não contribui para a ajuda inter-
nacional não. A maioria de nós não tem que fazer um grande esforço para
não matar pessoas, o mesmo não se verifica quando se trata de salvar
vidas. Salvar todas as vidas que dependem da minha ajuda até ao nível da
utilidade marginal (isto é, até ao ponto em que, se dermos mais, ficaremos
pior do que aqueles que ajudamos) exigir-me-ia um grande sacrifício e,
conscientes dessa diferença, normalmente consideramos que os que sal-
vam vidas são heróis mas não vemos nenhum acto de heroísmo no facto
de não matarmos as crianças inocentes que brincam no jardim da nossa
rua. Por outro lado, se eu envenenar crianças na Somália sou capaz de
identificar as minhas vítimas, o mesmo não acontece com aqueles que
optei por não ajudar num país distante. Posso também defender que não
sou causador directo das mortes causadas pela pobreza; se eu não existisse
a pobreza continuaria a existir. O mesmo não se pode dizer se eu decidir
matar alguém. Neste caso sei que a minha existência e os meus actos cau-
saram, de facto, dano. Peter Singer não nega que matar seja diferente de
deixar morrer tal como podemos constatar pelos exemplos apresentados,
contudo, considera estas diferenças extrínsecas e moralmente irrelevantes,
“são diferenças extrínsecas, isto é, diferenças normalmente associadas,
mas não necessariamente, à diferença entre matar e deixar morrer” (Sin-
ger, 2000:245). Para Singer o relevante é o modo como as minhas decisões
afectam os outros num quadro consequencialista de igualdade na conside-
ração dos interesses2. Argumentando a favor de um utilitarismo das prefe-
rências3, são boas as decisões que maximizem os interesses dos afectados
pessoa prefere” (Singer, 2000:114). Estas preferências devem ser imparciais e universabili-
záveis, aquelas a que chegamos após informação completa e esforço de reflexão, rejeitando,
assim, as preferências irracionais baseadas em falsas informações ou crenças sem funda-
mento. Um acto que vai de encontro às preferências racionalmente esclarecidas de um indi-
víduo é um bem. a menos que esta preferência seja superada por preferências contrárias.
Pobreza absoluta 183
ONG, fiz algo para diminuir alguma pobreza, mas, posso considerar que
cumpri o meu dever moral? Para Singer este padrão é demasiado baixo,
mas, então, qual o nível que devemos defender? Singer concorda que qual-
quer número seria arbitrário “mas poderíamos propor uma percentagem
redonda do rendimento de cada um, como, digamos, 10% — mais do que
um donativo simbólico, mas não tão elevado que só esteja ao alcance dos
santos.” (Singer, 2000: 267).
Alguns podem considerar que o argumento de Singer implica que a
minha vida, ou pelo menos uma parte dela, se deve transformar num ins-
trumento ao serviço do bem-estar dos outros. Se aceitarmos como máxima
que nunca devemos usar os outros como meio para os nossos fins, porque
é que a minha vida se deve transformar num instrumento para benefício
dos outros? Para Colin McGinn, “não devemos usar-nos a nós próprios
como meios para os fins dos outros (...) não devo ver a minha vida ape-
nas como um meio para as outras pessoas aumentarem o seu bem-estar”
(McGinn, 1999:157). Para o autor, este é um pressuposto inevitável do
argumento de Singer na medida em que este defende que o meu dever é
abdicar de uma parte do meu bem-estar para aumentar o bem-estar dos
outros. Este princípio levaria a “uma renúncia à autonomia pessoal, ao
direito de viver a nossa vidas como nossa, desenvolvendo os nossos talen-
tos e potencialidades” (Ibidem), isto é, não só poria em causa o nosso
direito de propriedade em geral como, em particular, o nosso direito à pro-
priedade de nós próprios, fazendo com que, em nome da obrigação moral
de maximizar o bem-estar, eu tivesse que desistir de fazer filosofia, ou ler,
ou gastar dinheiro em férias, ou de colocar os meus filhos na universidade
para lhes garantir uma boa educação, aumentando o meu sofrimento para
diminuir o dos outros. Ainda que as nossas decisões sejam moralmente
condenáveis se prejudicarmos activamente alguém isso não implica que
tenhamos qualquer obrigação positiva de ajudar. Usando o exemplo de
McGinn, sei que doando os meus órgãos posso salvar a vida de seis pes-
soas, abdicando da minha. Sendo que seis vidas são um bem maior do
que só uma e o sofrimento das seis mortes que evitarei não é moralmente
comparável ao sofrimento da minha morte singular, com a minha
acção maximizarei o bem-estar. Agir deste modo é uma obrigação moral?
O princípio utilitarista que sustenta a maximização do bem-estar global
conduz inevitavelmente a níveis absurdos de sacrifício pessoal, o que, para
McGinn leva as pessoas, não a aumentar a sua ajuda, mas a deixar de aju-
dar, uma vez que a obediência a tal princípio as obrigaria, não só a sacri-
184 Manual de Filosofia Política
são necessidades comuns a todos os seres humanos e, como tal, não existe
motivo para que não sejam igualmente consideradas. Toda a acção que
permita a satisfação destes interesses conduz à satisfação das preferências,
isto é, à realização daquilo que, após reflexão esclarecida, qualquer indi-
víduo preferiria. Ora, a satisfação das preferências maximiza o bem-estar,
logo, deve ser feito uma vez que é moralmente bom. A universalizabili-
dade dos juízos éticos exige que não pensemos apenas nos nossos interes-
ses ou naqueles com os quais partilhamos uma cultura, uma religião ou
uma nacionalidade. O ponto de vista ético deve ser universal e, como tal,
imparcial. Instintivamente preferimos ajudar os que estão próximos. Se
virmos uma criança a afogar-se num lago não hesitamos em salvá-la, sacri-
ficando as nossas roupas e o nosso tempo para o fazer. O nosso sacrifício
tem uma importância moral insignificante relativamente ao mal que evitá-
mos. No entanto, é sem grande remorso que deitamos fora o envelope da
UNICEF ainda que o sacrifício que nos é pedido seja tão insignificante
como o do exemplo anterior e o mal que evitaríamos (a morte de uma
criança) seja o mesmo. Embora seja o que de facto fazemos, dificilmente
encontraremos uma justificação moral sólida para que a distância geográ-
fica ou a condição de membro de uma determinada comunidade implique
uma qualquer diferença nas nossas obrigações. Desde que consideremos
que todos os seres humanos pertencem à mesma comunidade moral sendo
sujeitos de interesses, discriminar esses interesses em função da naciona-
lidade, da proximidade, da cultura ou da religião é tão infundado como
basear essa mesma discriminação no sexo, na filiação partidária ou na cor
de pele. No mundo contemporâneo em que, como consequência da globa-
lização, a interdependência ente os seres humanos é maior do que nunca,
onde, como nunca no passado, as nossas decisões podem afectar o bem-
estar de tantas e tão distantes pessoas, onde a tecnologia tornou as distân-
cias insignificantes, a ética não pode ser travada pelas fronteiras e estas
mostram-se irrelevantes em termos morais quando está em causa a consi-
deração de interesses.
Uma perspectiva utilitarista como a de Peter Singer colide com uma
teoria dos direitos, nomeadamente com o direito de propriedade individual
tal como é defendido por autores como Robert Nozick. Para este, desde que
alguém tenha adquirido uma propriedade em conformidade com o princí-
pio de justiça (justiça de justo título), isto é, sem o uso de meios injustos,
como o roubo, a fraude ou o uso da força, tem direito aos seus bens e, como
tal, pode fazer deles o que quiser. Qualquer interferência externa neste pro-
186 Manual de Filosofia Política
cesso viola os direitos naturais dos indivíduos e como tal é imoral. Será
meritório se eu decidir voluntariamente distribuir uma parte dos meus bens
contribuindo assim para a diminuição da pobreza, mas tal acto não pode
constituir uma obrigação. Nem os ricos têm o dever de ajudar, nem os
pobres o direito à ajuda, uma vez que não possuem qualquer direito sobre
a propriedade dos outros. Qualquer obrigação redistributiva violaria os
direitos do indivíduo, nomeadamente a sua liberdade. Deste ponto de vista,
a distribuição da riqueza tal como existe, desde que adquirida sem fraude,
é a mais justa. O processo histórico que legitima o direito de cada indiví-
duo aos seus bens não pode ser violado por um qualquer critério extrínseco
de imposição social, uma vez que a justiça está no modo como se adquire
a riqueza e não naquilo que se faz com ela. Qualquer obrigação redistribu-
tiva constitui mesmo um entrave ao exercício voluntário da benevolência
uma vez que o altruísmo “obrigatório” não é um verdadeiro altruísmo.
Podemos também considerar que satisfazer os interesses dos mais
pobres pode conduzir, não à maximização do bem — estar, mas ao aumento
do sofrimento geral. Defendendo uma perspectiva consequencialista Sin-
ger não pode deixar de aceitar que, se a ajuda aos pobres conduzir ao
aumento e não à diminuição da pobreza, não o devemos fazer. Tal argu-
mento é defendido por Garrett Hardin através da sua metáfora do “bote
salva-vidas”. Para este autor “os ricos devem deixar os pobres morrer de
fome, porque, de outro modo, os pobres arrastarão os ricos com eles para
a miséria”(Hardin, 1974). O seu pensamento neomaithusiano considera a
pobreza como algo de natural e inevitável. A fome é uma consequência
incontornável do aumento populacional e esta constitui uma estratégia do
processo de selecção natural. À pobreza de alguns deve ser encarada como
uma catástrofe natural e qualquer tentativa para a eliminar não só se revela
inútil mas também prejudicial. Estando os ricos bem instalados num “bote
salva-vidas” contemplando a restante população pobre que se afoga à sua
volta, existem duas opções. Se os ajudarmos, transportando os pobres para
dentro do bote, corremos o risco de nos afogarmos todos, uma vez que o
bote não aguenta mais tripulantes. Se os deixarmos morrer pelo menos sal-
vamo-nos nós. Ainda que considere esta uma objecção séria ao seu argu-
mento, Singer não encontra factos que corroborem a relação ente dimi-
nuição da pobreza, aumento populacional e escassez alimentar. Não só o
problema da pobreza não resulta da escassez alimentar como a erradicação
da pobreza, se bem que limite as taxas de mortalidade, limita ainda mais
as taxas de natalidade, como se pode constatar nos países mais desenvol-
Pobreza absoluta 187
3.
4.
4 Tal como é definida em 1971 na obra Uma Teoria da Justiça, para Rawis, a jus-
tiça é a virtude principal das instituições sociais. A estrutura básica da sociedade, enquanto
objecto primário da justiça, na medida em que determina a forma como os direitos e deve-
res fundamentais e os benefícios da cooperação social são distribuídos, deve orientar-se
por dois princípios de justiça que devem ser aplicados no interior de cada sociedade.
(Rawis, 2001). Beitz irá alargar a aplicação desses princípios de justiça distributiva às
relações de interdependência entre nações num mundo cosmopolita.
Pobreza absoluta I91
5.
cidadãos dos países ricos. À sua proposta é moderada até porque, do seu
ponto de vista, a erradicação da pobreza não exige. de facto, sacrifícios
radicais por parte dos países ricos. O que ele nos propõe é que os que mais
usam e beneficiam dos recursos globais devem compensar aqueles que
involuntariamente os usam pouco. Esta ideia não propõe uma mundializa-
ção dos recursos, nem a sua partilha igualitária. Cada governo continuaria
a ter o controlo dos recursos existentes no seu território. Teria apenas
que compensar os países pobres pelo uso e lucros obtidos com o usufruto,
isto é, teria que distribuir uma parte dos dividendos. Do ponto de vista de
Pogge, podemos erradicar a pobreza com um pequeno contributo, desde
que cumprido por todos.
BIBLIOGRAFIA
Obras citadas
Outras obras
! Num trabalho já clássico que apesar dos anos que tem não perdeu qualquer
actualidade, os sociólogos Stephen Castles e Mark J. Miller (1993) identificaram quatro
tendências que viriam a caracterizar as pautas migratórias dos anos que se seguiram, e
que se verificaram todas até esta data: 1) aceleração: as pessoas que passam as frontei-
ras para mudar de lugar de residência são em maior número do que antigamente;
2) diversificação: face ao que acontecia em épocas anteriores, a maior parte dos países
recebe ao mesmo tempo vários tipos de imigrantes (trabalhadores, refugiados. etc.);
3) globalização: os movimentos migratórios são cada vez mais globais, afectando um
número cada vez maior de países que tanto são emissores como receptores; 4) feminili-
zação: aumento do número de mulheres que emigram, aumento esse que está estrita-
mente relacionado com as mudanças no mercado global de trabalho, com destaque, entre
outras coisas, para o aumento da procura de trabalhadores domésticos e para o “tráfico
de mulheres”.
As migrações internacionais 199
2 As migrações têm uma história relativamente curta como objecto de estudo cien-
tífico. pois só a partir da segunda metade do século XIX é que começaram a estudar-se de
modo sistemático os processos migratórios. Para ser mais exacto, até à publicação, em
1885 e em 1889. dos influentes artigos de E.G.Ravenstein sobre as leis das migrações
nunca tinha sido formulada qualquer explicação teórica séria sobre esta questão. Este geó-
grafo germano-britânico estabeleceu um modelo em forma de lei que relacionava em ter-
mos causais os ciclos económicos. a densidade populacional e as deslocações dos seres
humanos. Este modelo não continha referências à dimensão política, chegando ao ponto
200 Manual de Filosofia Política
grar é fruto de uma decisão racional tomada em última instância por indi-
víduos que procuram maximizar as suas oportunidades vitais, existem
outros factores que não são desprezíveis: por exemplo, as políticas de
admissão desenvolvidas por um considerável número de países a partir do
século XIX e cuja importância para o encaminhamento ou desvio das cor-
rentes migratórias nunca se pode negligenciar. Os Estados são actores
sumamente influentes nos processos migratórios e as formas como actuam
configuram um corpus normativo e político que afecta a maneira como
decorrem as deslocações das pessoas entre fronteiras. Num mundo como
o contemporâneo, que em termos políticos está organizado «em Estados
legalmente soberanos e que se excluem uns aos outros», o alcance político
dos fluxos populacionais é evidente, porque, por definição, eles implicam
a transposição de fronteiras estatais, quer dizer, a transferência de uma
pessoa «da jurisdição de um Estado para a de outro» (Zolberg, 2006:
26-27) e isto implica ainda uma mudança transitória ou, em muitos casos,
definitiva, «de pertença a uma comunidade social e política nacional»
(López Sala, 2005: 14). Mais ainda, a forte marca deixada pelas migrações
é perceptível no núcleo sensível do poder político e da convivência social,
inclusive nos elementos que articulam o Estado moderno: a noção tradi-
cional de soberania nacional, o sentido de cidadania ou as manifestações
culturais da identidade colectiva e da lealdade política. Se a soberania
nacional já sofreu a profunda erosão provocada pelos processos de globa-
lização (como se torna patente na crescente incapacidade da maior parte
dos Estados nacionais, para não dizer de todos, para gerir os fluxos exó-
genos que perturbam o seu próprio ciclo económico), a impossibilidade de
manter a integridade das fronteiras face à pressão migratória nada mais fez
do que ampliar este processo. Por seu lado, a cidadania foi posta em ques-
tão como mecanismo de inclusão social e aferidor da pertença política. Em
consequência das migrações, a identidade colectiva tornou-se muito mais
complexa e plural, o que veio a repercutir-se nas fontes da lealdade dos
cidadãos em relação ao poder constituído. Porém, o alcance político e nor-
mativo das migrações não fica por aqui: com a entrada em vigor de deter-
minadas políticas migratórias, as bases normativas das sociedades também
podem ser afectadas e, por fim, a própria concepção de justiça que elas
sustentam. A seguir analisam-se sumariamente alguns dos diversos desa-
fios de carácter político que o fenómeno das migrações internacionais
apresenta.
2. IMIGRAÇÃO E CIDADANIA
sociedade integrada, embora não seja uma condição suficiente: «Uma pes-
soa pode gozar de todos os direitos inerentes à cidadania e inclusive pode
ser formalmente membro de uma comunidade e, mesmo assim, sentir-se
um estrangeiro incapaz de se ajustar bem a um ethos cultural que parte de
uma autodefinição na qual não há lugar para a sua comunidade de origem»
(Parekh, 2005: 350).
Em contrapartida, a maneira mais comum de impedir ou pelo menos
de dificultar a integração dos imigrantes e, assim, proteger a integridade
cultural nos países de acolhimento «tem sido limitar a acção dos imigran-
tes ao seu papel estritamente económico, tornando mais difícil o acesso à
cidadania, um mecanismo legal que, numa perspectiva sociológica, pode
ser considerado como uma barreira interna que compensa os efeitos
da entrada» (Zolberg, Idem: 40-41). Em todo o caso, não pode negar-se a
relevância da cidadania como instrumento de exclusão social aplicado ao
mundo das migrações: «A questão da exclusão dos imigrantes do espaço
Jurídico, político e simbólico que é Nosso, constituído pelo conjunto dos
sujeitos que são plenos titulares dos direitos de cidadania, tem uma impor-
tância estratégica tanto na teoria como na prática» (Mezzadra, 2005: 99).
Nas democracias liberais ocidentais, o status de cidadania representa, de
algum modo, o equivalente moderno do antigo privilégio feudal: é um
estatuto herdado que amplia as nossas oportunidades na vida (cf. Carens,
1987). A cidadania, que adquirimos ao nascer, quer seja de acordo com a
dos nossos pais, quer seja de acordo com o lugar onde nascemos, é um
elemento contingente, pois de nenhum modo depende de nós e tem conse-
quências tremendas nas nossas oportunidades de vida. Como numa corrida
de obstáculos, o acesso à cidadania representa de facto a terceira e última
barreira que os imigrantes têm de superar até conseguirem a sua plena
inserção legal na nova sociedade: primeiro, têm de aceder ao território, a
seguir têm de conseguir a autorização definitiva de residência (que não é
susceptível de qualquer revisão motivada por decisão arbitrária das auto-
ridades administrativas). Vejamos a seguir e com maior detalhe como se
desenrola este processo.
Os imigrantes devidamente regularizados têm uma posição um tanto
peculiar na estrutura normativa dos direitos de cidadania, pois, embora
sejam membros de facto das sociedades de acolhimento, em sentido
estrito, não são sujeitos de pleno direito dessas sociedades. Mesmo assim,
na maioria dos países democráticos, o reconhecimento efectivo dos seus
direitos civis e sociais aproxima-os muito, sobretudo em termos práticos,
204 Manual de Filosofia Política
O que começa por ser uma teoria da igualdade moral das pessoas,
acaba por ser uma teoria da igualdade moral dos cidadãos. Os direitos
básicos que o liberalismo confere aos indivíduos acabam por ser reservados
só para alguns indivíduos, principalmente para aqueles que são cidadãos
do Estado. (Kymlicka, Idem: 36)
isto provoca em relação aos valores do país que os acolheu. Estes autores
dão como exemplos concretos o dos hispânicos nos Estados Unidos e o
dos muçulmanos na Europa e consideram que em alguns casos eles podem
constituir um risco para a identidade nacional e para as sociedades de aco-
lhimento. Embora este diagnóstico possa ser acertado, a terapia proposta
não o é tanto. Assim, Huntington (Idem: 216) reduz a três as possíveis
estratégias políticas para fazer face à imigração: «uma imigração escassa
ou nula, uma imigração sem assimilação ou uma imigração com assimila-
ção». Tendo em conta que a primeira opção não é possível, mas que é ape-
nas um pio desejo ou uma missão impossível (dado que é tão impossível
blindar hermeticamente as fronteiras quanto proceder à deportação em
massa dos imigrantes irregulares), a alternativa seria a assimilação ou a
não assimilação. Só que esta é uma falsa disjunção. Segundo a concepção
de Huntington, que se assim fosse teria mais honestidade intelectual, a
alternativa seria simplesmente entre a assimilação dos imigrantes e o
caos social.
O debate sobre a imigração, que está repleto de cambiantes de tão
variados matizes, presta-se ao simplismo e à demagogia. Como acabámos
de ver, cai-se nestes dois erros quer no meio académico quer também, tal-
vez ainda com maior frequência, no mundo da política. Além de ser vista
como um possível perigo para a manutenção dos traços característicos da
identidade da sociedade receptora, a questão das migrações irrompe fre-
quentemente nos debates públicos, nos quais é estigmatizada como um
factor duplamente conflituoso: como risco para o bem-estar económico do
país anfitrião e como ameaça para a segurança urbana. Com demasiada
ligeireza, a imigração é apresentada como sinónimo de ilegalidade, misé-
ria, conflitualidade e delinquência. Não há dúvida de que os meios de
comunicação contribuíram para forjar esta imagem negativa no sub-
consciente colectivo e para difundi-la. Porém, os problemas derivados da
imigração não se resolvem através de uma passagem para o pólo oposto,
isto é, angelizando os estrangeiros por serem diferentes ou adocicando os
actos criminosos eventualmente cometidos por eles.
A política migratória é um campo de intervenção pública submetido
a múltiplas tensões; na origem destas tensões encontra-se quase sempre
um grande desajustamento entre o número de candidatos à emigração e
as expectativas das sociedades receptoras. Estruturar uma política neste
campo pressupõe a tentativa de conciliar valores e interesses por vezes
antagónicos e que são representados por uma pluralidade de actores indi-
212 Manual de Filosofia Política
contemporâneo: «ao mesmo tempo que mais e mais questões exigem cada
vez mais soluções globais, diminui a capacidade de qualquer Estado para
determinar por si mesmo o seu futuro» (Singer, Idem: 211). Se os diversos
Estados procuram individualmente soluções para os conflitos e os proble-
mas gerados pela imigração, essas soluções acabarão por ficar encalhadas
dentro do reduzido âmbito de actuação do Estado nacional. Há já algum
tempo que não existe nenhum Estado verdadeiramente isolado, o que
acontece apesar do progressivo aperfeiçoamento do controlo das frontei-
ras. À porosidade das fronteiras é mais uma manifestação da progressiva
erosão da soberania estatal: o nexo político e jurídico entre soberania
e território foi posto em questão pela multiplicação de poderes e de orde-
namentos supranacionais, assim como pelos novos circuitos globais de
produção e de troca de capitais. O mundo converteu-se num só mundo de
um modo quase irrevogável e, consequentemente, os problemas têm de
ser definidos como conflitos globais, ou pelo menos em código transna-
cional, pois essa é a única maneira de fazer com que as possíveis soluções
incidam no âmbito de actuação real dos conflitos.
Entre outros factores, a própria natureza internacional dos fluxos de
pessoas, a inter-relação das sociedades nacionais e a conveniência de com-
parar experiências de gestão da imigração impulsionam a mudança da
mentalidade dominante. No que diz respeito às migrações, é cada vez mais
urgente a necessidade de dispor de um quadro normativo adaptado a um
mundo globalizado. Se em certa medida esta mudança de orientação já se
verificou nas ciências sociais (cf. Beck, 2005), não se pode dizer o mesmo
no que respeita ao campo da teoria da justiça, que até há muito pouco
tempo continuava a padecer de uma orientação fundamentalmente cen-
trada no interior das margens do Estado. A teoria da justiça que hoje em
dia goza de maior prestígio e que foi oportunamente proposta por John
Rawls contém enormes lacunas que se tornam evidentes quando se tenta
aplicá-la fora dos limites dos Estados constituídos. Apesar disso, a partir
dos textos pioneiros de Charles Beitz (1979), nos últimos anos houve des-
tacados filósofos políticos e pensadores sociais que, apesar de maiorita-
riamente se situarem na esteira de Rawls, mostraram a sua insatisfação
com as reflexões dele acerca das relações internacionais e defendem uma
aplicação mais coerente do seu pensamento político neste campo. Entre
estes autores liberais-igualitaristas e cosmopolitistas, é possível citar
Brian Barry, Henry Shue, Martha Nussbaum e Thomas Pogge. Todos estes
autores, mas especialmente o último (Pogge, 2005), que procura encontrar
As migrações internacionais 215
BIBLIOGRAFIA
Obras Citadas
Outras Obras
ConcEIÇÃO MOREIRA*
Liberalismo e cultura
que não são escolhidas» e que «as desigualdades relativas à pertença cul-
tural são precisamente aquelas com as quais Rawls diz que devemos preo-
cupar-nos, visto que têm efeitos “profundos, penetrantes e presentes desde
o nascimento”.» (idem: 109) É por isso que, para Kymlicka, os princípios
do liberalismo são adequados para fundamentar o reconhecimento de
direitos minoritários e que os direitos liberais têm de pressupor e de reflec-
tir a «culturalidade» dos indivíduos. Assim, em vez de se respeitar o
indivíduo como membro de uma comunidade política comum deve-se res-
peitá-lo como membro de uma comunidade cultural distinta, o que legiti-
maria a protecção da cultura, e impediria a redução das exigências da
pertença cultural às da cidadania (Kymlicka, 1991: 150-152).
Em suma, Kymlicka assume-se como liberal, porque acredita
que todos os indivíduos têm capacidade e direito de reflectirem sobre
os seus fins e de os reverem e porque subscreve uma concepção não-
-perfeccionista do Estado, ao qual atribui apenas as funções de proteger
a capacidade dos seus cidadãos para avaliarem o mérito de diferentes
concepções da vida boa e de fazer a justa distribuição dos direitos e dos
recursos que permitem a cada indivíduo seguir a sua própria concepção
do bem. Mas, sendo liberal, situa-se à esquerda, pois crê que os Estados
devem rectificar as desigualdades moralmente arbitrárias que vitimam
muitos dos seus cidadãos (Kymlicka, 2001a: 328-331), nomeadamente
aquelas que têm a ver com a pertença cultural. Por conseguinte, os di-
reitos das minorias não são «privilégios injustos ou formas detestáveis
de discriminação», mas «compensações por desvantagens injustas, por-
tanto, podemos considerá-los consistentes com a justiça e exigidas por
ela.» (idem: 33)
No entanto, o reconhecimento de direitos minoritários tem de respei-
tar a regra da distinção entre dois tipos de exigências que os grupos podem
fazer: restrições internas e protecções externas. As restrições internas refe-
rem-se às relações intragrupais e podem levar um grupo a restringir a
liberdade dos seus membros em nome da solidariedade, da tradição cultu-
ral ou da ortodoxia religiosa. Em contrapartida, as protecções externas
referem-se às relações intergrupais e visam limitar o impacto negativo das
decisões de uns grupos sobre outros e reduzir a vulnerabilidade das mino-
rias. Kymlicka rejeita totalmente as restrições internas, porque constituem
limitações dos direitos políticos e civis das minorias (Kymlicka, 2003:
35ss). Por sua vez, também admite que as protecções externas, além de
poderem ter custos para os membros da sociedade mais vasta, podem redu-
230 Manual de Filosofia Política
tica da construção da nação. Mais uma vez, ele rejeita a concepção per-
feccionista do Estado, ao mesmo tempo que se distancia do princípio libe-
ral da neutralidade do Estado. E demonstra grande confiança na capaci-
dade do Estado multiétnico e multinacional para promover a superação da
indiferença, da desconfiança e até do ressentimento que os membros de
algumas minorias demonstram em relação às maiorias que os tentam assi-
milar e para reforçar o exercício da autonomia individual e a importância
das práticas liberais. Mas é duvidoso que, por si só, esses modelos origi-
nem sentimentos de pertença, especialmente no que respeita a certas mino-
rias nacionais: há que ver que Kymlicka propõe que cada minoria nacio-
nal possa desenvolver toda a sua vida usando a sua língua materna,
mantendo as suas instituições tradicionais e beneficiando de direitos que
os restantes cidadãos não possuem. Todavia, ele nada diz sobre a criação
de valores comuns ou sobre o desenvolvimento de competências demo-
cráticas no interior dos grupos não democráticos. E, em contrapartida, pelo
menos sob determinadas condições, admite a possibilidade e o direito à
secessão de algumas minorias nacionais (Kymlicka, 2001a: 113-116).
Minorias nacionais
Minorias étnicas
4. CONCLUSÃO
ralismo com base em princípios liberais, por outro lado, Taylor, Kymlicka
e Young têm consciência de que um dos riscos do multiculturalismo é a
«balcanização» das sociedades e desenham projectos políticos que consi-
deram aptos para a evitar. A formação de um horizonte fundido de crité-
rios facilitador do diálogo intercultural, a criação de Estados multinacio-
nais e multiétnicos e a defesa das políticas da diferença no âmbito da
democracia deliberativa são mecanismos que podem eventualmente redu-
zir as tentações fragmentárias. Porém, podem também trazer consigo o
gérmen separatista: ao fortalecerem as identidades culturais específicas,
em vez de evitarem a fragmentação política, quando postos em prática aca-
bam por fortalecer grupos secessionistas e grupos iliberais que se opõem
à Democracia e aos Direitos Humanos.
BIBLIOGRAFIA
Obras Citadas
Outras Obras
FÁTIMA COSTA*
lizada pelos Estados, quer contra os inimigos, na guerra, quer contra a sua
própria população civil.
1. AS ÉTICAS DA GUERRA
1.1. O realismo
VA. J. CoATES, The Ethics of War, Manchester and New York, Manchester
University Press. 1997. pp. 99-102.
Guerra justa e terrorismo 243
1.2. O pacifismo
geral, mas contra uma determinada guerra, fazem-no apenas como estraté-
gia persuasiva e, na prática, nunca são favoráveis a nenhuma. O pacifismo
é uma realidade complexa e heterogénea, reunindo correntes religiosas e
laicas, deontologistas e consequencialistas, abolicionistas e apologistas da
resistência não-violenta. Segundo Jan Narveson, o que as une é a «crença
não só de que a violência é má, mas também que é moralmente errado usar
a força para resistir, punir ou prevenir a violência».7 Aliás, as principais
críticas ao pacifismo centram-se na sua oposição absolutista à guerra e no
seu excessivo optimismo acerca da natureza humana. Segundo A. J. Coa-
tes, a principal debilidade do pacifismo reside na «tendência para consi-
derar qualquer defesa da guerra e gualguer recurso às armas como ma-
nifestações de militarismo. Esta associação de tudo o que é militar ao
militarismo suprime distinções autênticas e importantes e qualquer tenta-
tiva de subordinar a guerra a limites morais».8
Algumas correntes pacifistas possuem inspiração religiosa. Segundo
Elisabeth Anscombe, estes pacifistas acreditam que a guerra contraria os
ensinamentos cristãos de amor ao próximo, de compaixão e de respeito
pela vida dos inocentes.? Por oposição aos projectos mais laicistas do abo-
licionismo e da não-violência, os pacifistas religiosos, essencialmente cris-
tãos e budistas, que podem chegar a viver em comunidades isoladas, afas-
tadas da mundaneidade e do materialismo das sociedades contemporâneas,
sustentam a natureza sagrada da vida e o carácter absoluto do mal de
matar. A defesa das comunidades políticas e dos valores do Estado não se
pode sobrepor à lei divina, e configura em si uma idolatria. O pacifismo
deontologista, tanto de inspiração religiosa como laica, baseia a sua opo-
sição à guerra na inviolabilidade dos direitos, nomeadamente dos inocen-
tes, e na obrigação moral de não matar outros seres humanos. Só há uma
forma de evitar a morte na guerra, que é não fazer a guerra de todo. O paci-
fismo pode também radicar nas chamadas «éticas das virtudes», tal como
a de Aristóteles, e que Brian Orend designa de pacifismo teleológico.10
1.3. O utilitarisno
11 Michael WALZER, Just and Unjust Wars: A Moral Argument with Historical
Hlustrations, 4h ed., New York, Basic Books, 2006, p. 334.
12 Ihid.
248 Manual de Filosofia Política
utilitarismo tenta superar aquela que é uma das objecções que mais insis-
tentemente lhe é levantada, a de que obrigaria o agente a cálculos, muitas
vezes complexos, nada condicentes com a urgência das situações.
Segundo o utilitarismo das regras, as regras da guerra teriam sido criadas
por legisladores competentes, e como já provaram a sua utilidade noutras
situações, devem ser sempre respeitadas, mesmo quando os nossos cir-
cunstancialismos apontam para outro lado.14
À teoria da guerra justa rejeita a análise das regras e das acções béli-
cas à luz de critérios utilitaristas, porque, segundo Walzer, «a derradeira
tirania da guerra»!5 é o facto de, havendo nela um conflito imanente entre
os direitos e a utilidade, entre a indispensabilidade de bem combater e a
necessidade de vencer, a questão da nobreza (real ou imaginária) dos fins
tender a sobrepor-se totalmente à questão da legitimidade dos meios,
anulando limites morais essenciais à guerra justa, tais como os princípios
da justa proporcionalidade e da imunidade dos não-combatentes. Existe o
risco de legitimar o sacrifício das vidas dos inocentes, desde que esse
sacrifício pareça propiciar mais felicidade para o maior número, e isto é
tanto mais grave quanto a validade dos cálculos de utilidade só pode ser
apreciada retrospectivamente. Segundo Walzer, porque na guerra existe
um conflito insanável entre a utilidade e os direitos, estes devem preva-
lecer sempre, à excepção, como veremos, das situações de emergência
suprema.
16 Ibid., p. 53.
Guerra justa e terrorismo 251
17 Cf, G.E.M. ANSCOMBE. «The Justice of the Present War Examined», in Ethics,
Religion and Politics: Collected Philosophical Papers, Volume Il, Minneapolis. Univer-
sity of Minnesota Press. 1981, pp. 74-75.
ig Cf. Michael WALZER, «Political Action: The Problem of Dirty Hands», Philo-
sophy & Public Affairs (1972/73), pp. 160-180; Cf. Michael WALZER, Obligations:
Essays on Disobedience, War, and Citizenship, Cambridge. Harvard University Press,
1970, pp. 46-73.
19 Michael WALZER. Just and Unjust Wars. op. cit.. p. 62.
20 Ibid. p. 51.
Guerra justa e terrorismo 253
Por isso mesmo Santo Agostinho e Vitoria defendiam que a guerra nunca
poderia ser objectivamente justa para todas as facções implicadas, uma
vez que havendo um agredido tem de haver sempre um agressor.2!
Na medida em que as casuts belli justas se prendem com a defesa de
direitos. entre eles. os direitos de soberania, de autodeterminação política
dos povos e de integridade territorial, a teoria do jus ad bellum assume,
sobretudo em Walzer, um pendor acentuadamente comunitarista. Segundo
Walzer, e por oposição a uma perspectiva liberal, os direitos dos indiví-
duos não são defendidos indiferentemente por qualquer tipo de sociedade.
As comunidades e os seus membros têm o direito de viver sob as insti-
tuições políticas que constituíram, livres de qualquer imposição externa,
mesmo em situações de conflito interno violento. Para garantir este direito
impõe-se o respeito internacional pela soberania e pelas fronteiras, assim
como o reconhecimento de que a legitimidade do poder político decorre do
consentimento dos governados. Walzer sustenta assim a presunção da
legitimidade dos governos perante a comunidade internacional, pois os
estrangeiros raramente estão em posição de avaliar a legitimidade de um
governo. Neste sentido, a teoria do jus ad bellum de Walzer tem no prin-
cípio da não-intervenção e no princípio de auto-ajuda de J. S. Mill22 a sua
pedra angular. Segundo Mill, assim como a liberdade ou a virtude não
podem ser conquistadas por interpostas pessoas, também a liberdade dos
povos não pode ser conquistada por imposição externa. Para Walzer, há
pois que evitar paternalismos políticos, ainda que o façamos em nome da
democracia, da justiça social ou dos direitos humanos. As relações inter-
nacionais devem-se pautar pela não-intervenção, pois «[eJmbora os Esta-
dos sejam fundados com vista à protecção da vida e da liberdade, não
podem ser desafiados em nome da vida e da liberdade por qualquer outro
Estado».23
O princípio da não-intervenção é objecto de forte contestação pelos
realistas que, por razões prudenciais, temem os efeitos dos conflitos arma-
dos na segurança dos outros Estados, especialmente quando estes obede-
cem a programas ideológicos e religiosos de pendor universalista. Mas o
princípio da não-intervenção também tem sido contestado por visões
21 O que não impede que uma guerra seja travada entre agressores, logo. que seja
objectivamente injusta para todas as facções envolvidas.
22 Cf. ibid.. pp. 87-91.
23 Ihbid.. p. 61.
254 Manual de Filosofia Política
légio» que não lhe é concedido na vida civil, mas não o faz a título
pessoal, mas sim enquanto instrumento político da sua comunidade. Além
disso, a ausência de igualdade entre combatentes implicaria a condenação
daqueles que, vítimas de acidentes históricos, tivessem sido confrontados
com a decisão de combater, tanto mais que a maioria teve de tomar essa
decisão quando ainda era muito jovem. A igualdade moral dos combaten-
tes não é consensual, na medida em que parece pôr em causa o princípio
de que a violência só é justa como resposta a uma agressão, e convidar à
desresponsabilização dos militares. Por exemplo, Jeff McMahan defende
que só o soldado que combate por uma causa justa tem legitimidade para
matar. Os restantes apenas podem recorrer à violência em legítima
defesa.27 Mas, para Walzer, muitas são as razões que levam alguém a
combater. Os soldados podem ser forçados a lutar ou ser sujeitos a doses
maciças de propaganda, podem-se deixar conduzir por medos, sentimen-
tos patrióticos, pressões familiares, ou simplesmente acreditar que a guerra
é justa. Nesse caso, o seu crime pode ter sido apenas o de fazer juízos dife-
rentes daqueles que a história e os vencedores instituíram como sendo
«os correctos».
Decorrentes da igualdade moral dos combatentes estão os princípios
que estabelecem o modo de matar e a natureza das vítimas: o princípio da
proporcionalidade e o princípio da discriminação. Só estes permitem dis-
tinguir um acto de guerra legítimo de um massacre. O primeiro supõe o
requisito da força mínima e obriga a que a violência empregue seja a estri-
tamente necessária para alcançar os objectivos militares, condenando toda
a violência inútil e gratuita. Em caso de represália, a resposta militar não
deve infligir danos desproporcionais aos sofridos. Independentemente da
força usada, a teoria da guerra justa proíbe também certo tipo de arma-
mento, como o nuclear e o biológico, assim como o recurso a meios mala
in se, tais como a violação, a tortura, o genocídio, as limpezas étnicas, a
simulação da rendição com o fito de matar o inimigo, ou, ainda, forçar
soldados prisioneiros a combater ou usá-los como escudos humanos.
O princípio da discriminação reconhece a natureza dos que podem
ser atacados e mortos na guerra. Elisabeth Anscombe, Thomas Nagel e
Michael Walzer postulam a imunidade dos não-combatentes. A perda de
27 Cf. Jeff MCMAHAN, «Guerra y Paz», in Peter SINGER (ed.). Compendio de Ética,
Madrid. Alianza Editorial, 1995, p. 526.
Guerra justa e terrorismo 257
28 Thomas NaGEL. «War and Massacre», Philosophy & Public Affairs (1971/72),
p. 140.
258 Manual de Filosofia Política
dado e não «com a sua existência enquanto ser humano».29 O próprio sol-
dado recupera o direito à vida e à segurança assim que retorna à vida civil,
é feito prisioneiro, se encontra doente ou de qualquer modo impedido de
provocar danos.
Contudo, como é mais do que provável que, na guerra, ocorra a
morte de não-combatentes, a doutrina do duplo efeito (DDE), de S. Tomás
de Aquino, permite identificar as condições em que a morte de inocentes
pode constituir um acto de guerra legítimo. Segundo a DDE, uma acção só
é legítima se (1) a acção for boa em si; (2) se a intenção do agente for boa,
ou seja, se o agente não desejar os eventuais efeitos negativos da sua
acção; (3) se os prováveis efeitos negativos da acção não constituírem um
meio para atingir os fins do agente; (4) se os efeitos benéficos da acção
superarem e compensarem os seus malefícios. Assim, o acto de matar ino-
centes só é aceitável, primeiro, se a morte não for intencional, segundo, se
não for um meio para o agente alcançar os seus fins, terceiro, se os efeitos
benéficos dessa acção para o agente não forem desproporcionais quando
comparados com o mal provocado às vítimas. Walzer levanta uma ressalva
à DDE, pois a intenção de não matar inocentes não terá qualquer valor se
não for acompanhada das «diligências devidas» para evitar essas mortes.
Na medida em que as teorias do jus ad bellum e do jus in bello cons-
tituem «a versão militar do problema dos fins e dos meios»,30 Walzer con-
sidera fundamental que estas sejam logicamente independentes. A inde-
pendência destas teorias tem sido muito contestada por aqueles que julgam
que a consideração da justiça na guerra tem de estar subordinada ao facto
de a guerra ser ou não justa. Mas Walzer vê na autonomia destas teorias o
único meio para evitar a escala móbil, que se exprime pela máxima
«quanto mais justa for a causa, mais direitos ela confere».31 O grande
risco da escala móbil reside no facto de, «quando o desfecho do combate
é concebido em termos de justiça»,32 se tender a julgar que todos os meios
necessários são legítimos, mesmo as violações dos direitos dos inocentes.
Vão-se relaxando as regras da guerra, de modo a conceder aos «soldados
justos» uma liberdade de conduta quase ilimitada, tanto maior quanto mais
justos parecerem os fins pelos quais combate. Contudo, a universalidade e
29 Ibid., p. 141.
30 Michael WaLZzER, Just and Unjust Wars, op. Cit.. p. XXV.
31 Ibid., pp. 228-232 e 239-240.
32 Ibid., p. 226.
Guerra justa e terrorismo 259
2. O TERRORISMO
36 Ibid.. p. 197.
262 Manual de Filosofia Política
3 Ibid.
38 Ibid.. p. 203.
39 Ihid.. p. 200.
Guerra justa e terrorismo 263
BIBLIOGRAFIA
Obras citadas
KEOHANE, Robert (ed.), Neorealism and its Critics, New York, Columbia
University Press, 1986.
MCMAHAN, Jeff, «Guerra y Paz», in Peter SINGER (ed.), Compendio de
Ética, Madrid, Alianza Editorial, 1995.
NAGEL, Thomas, «War and Massacre», Philosophy & Public Affairs
(1971/72), pp. 123-144.
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CAPÍTULO XI
Política de ambiente
VirIATO SOROMENHO-MARQUES*
* Universidade de Lisboa.
268 Manual de Filosofia Política
3. PARADIGMAS E TAREFAS
S. Kuhn para o campo mais vasto de uma análise cultural e societal prati-
camente sem limitações muito precisas (Kuhn, 1962). Podemos e devemos
fazê-lo sim, mas com a modéstia de um exercício, simultaneamente, heu-
rístico e hermenêutico. Com efeito, a escolha do ambiente como a catego-
ria que nos permite definiro que é crucial ou axial, para usarmos um termo
caro a Karl Jaspers, na nossa época obriga-nos a uma atitude necessa-
riamente humilde, pois coloca-nos perante o carácter gigantesco, diria
titânico, das tarefas que temos, como sociedades e como indivíduos, diante
de nós (Martins, 2000).
Toda a crise implica uma dupla constatação. Em primeiro lugar, a
consciência de uma via que deixou de permitir o abrir de horizontes, uma
estrada que se cerrou, tornando-se aporética. Em segundo lugar, a cons-
ciência de que urge fundar uma nova rota, caso não queiramos estiolar e
sucumbir. Quando se fala na emergência de um novo paradigma ambien-
tal é a isto que se alude, mas nem sempre com o devido rigor. Na verdade,
a tomada de consciência da crise ambiental obriga a profundas deslo-
cações e metamorfoses no corpo das ciências, nos seus conceitos opera-
tórios e nas suas alianças disciplinares. As alterações, de uma profundi-
dade telúrica, percorrem as ciências sociais e humanas no seu conjunto
bem como o entendimento mais tradicional das ciências da natureza, já
não falando nos sintomas da insegurança e incerteza crescentes que a
todas avassala.
Contudo, a crise ambiental não é um mero itinerário para pro-
fessores e cientistas. Acima de tudo o que nela se pode considerar
decisivo é o volumoso caderno de encargos prático que o seu enfrentar
acarreta. No fundo, o que está em causa é, nada mais, nada menos, do
que o reinventar radical do relacionamento humano com e na natureza.
A crise do ambiente obriga-nos, usando uma sugestiva terminologia de
Nietzsche, à transmutação de todos os valores. Desde a ética à economia,
passando pelas formas de governo e governância, não esquecendo os
nossos hábitos como produtores e consumidores. Os desafios são de uma
magnitude tal que o conceito de novo paradigma só não será leviano se
o usarmos para designar os trabalhos hercúleos que aguardam, pelo
menos, as três ou quatro próximas gerações, estendendo-se mesmo para
além do século XXI (Porter, 1991; Jânicke et a!., 1995; Young, 1997;
OECD/UNDE, 2002).
276 Manual de Filosofia Política
3 — Alterações climáticas:
* JPCC: 1988
* UN Framework Convention on Climate Change (1992)
* 2.º relatório do IPCC (1995)
* Protocolo de Quioto (1997)
* 3.º Relatório (2001)
* 16.02.2005: entrada em vigor do Protocolo de Quioto
* EUA rompem com o Protocolo de Quioto (2001).
* 4.º Relatório do IPCC (2007)
* Iniciativa da União Europeia para uma nova política de energia e alterações
climáticas, visando novas metas climáticas para depois de 2012.
5 — Comércio e Ambiente:
* Aprofundamento da clivagem Norte-Sul
* World Trade Organisation (1995)
* Resistência à coordenação entre as regras da WTO e os Acordos Multilaterais
de Ambiente.
* Necessidade de integrar a WTO no sistema das N.U.
* Protesto de Seattle contra a globalização (1999).
5.1. O nascimento
9. CONCLUSÃO
BIBLIOGRAFIA
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294 Manual de Filosofia Política
ALDO LEOPOLD
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CAPÍTULO L. Utilitarismo...........ccttsissieereerereemereeareerereeereereereserseraca 15
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