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Panthéon-Sorbonne
Centro de Ciências Sociais
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas École doctorale de Philosophie
A HANTOLOGIE DE SARTRE
SOBRE A ESPECTRALIDADE EM O SER E O NADA
Directeurs de thèse :
Monsieur Marcos André Gleizer, Professeur à L’Université de l’État de Rio de Janeiro.
(UERJ- Brésil)
Monsieur Renaud Barbaras, Professeur à L’Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne.
Composition du jury :
Monsieur Franklin Leopoldo e Silva, Professeur titulaire à L’Université de São Paulo.
Monsieur Jean-Luc Amalric, Professeur en Classes Préparatoires aux Grandes Ecoles.
Monsieur Luiz Damon Moutinho, Professeur à L’Université Fédérale de São Carlos.
A Mônica e Valérie,
pelo modo singular de presença na minha vida.
AGRADECIMENTOS
Tenho muito a agradecer a Marcos Gleizer por seu verdadeiro engajamento em todos
os sentidos para que a realização deste trabalho fosse a melhor possível. Sua presença sempre
me trouxe segurança para arriscar nos caminhos imprevisíveis que surgiram durante este
percurso, tanto no sentido de poder contar com sua leitura rigorosa e com suas reflexões
essenciais, quanto no de seus posicionamentos sempre admiráveis em relação às situações
difíceis, sejam elas filosóficas ou da vida de um modo geral. Obrigada por acreditar neste
trabalho, por toda a atenção, confiança e amizade.
Às minhas amigas e meus amigos, sem os quais concluir este percurso seria
impossível.
Alvim e João Batista Ferreira pelo incentivo, força, conversas e presença, sempre. A Vanessa
Hacon, pela verdadeira amizade em todos os momentos. A Beatriz Santos com admiração e
pelas palavras de coragem. A Carlos Coelho, pela amizade e pelas inúmeras discussões
filosóficas que fazem parte deste trabalho. A Pamela Zacharias e Caroliny Pereira, pela
conexão que permite grandes saltos. A Caroline Dracxler, por estar do meu lado em momentos
importantes. Um agradecimento especial a Paulo Sergio Lima Silva.
A Carolina Mendes Campos, pelo caminho que trilhamos juntas com amizade nos
estudos sobre Sartre. A Luiz Damon Moutinho, cujos ensinamentos fazem parte desta tese,
pela amizade e por ter acompanhado e apoiado este caminho desde o início. A André Barata e
Fernando Gastal, pelo incentivo de realizar este Doutorado. A Antonio Augusto Passos
Videira, pela ajuda num momento decisivo.
A todos aqueles que compõem esta tese através de inúmeras discussões sobre a vida e
a filosofia que aconteceram ao longo deste caminho.
À minha família, em especial à minha mãe Lilian, minha irmã Carol e minha tia
Raquel, pelo apoio e amor nos momentos mais difíceis e imprevisíveis deste percurso.
Aos professores e funcionários da UERJ que, mesmo diante das maiores dificuldades,
fizeram o possível para a realização deste trabalho.
Gilles Deleuze
RESUMO
É possível afirmar hoje que, desde a publicação de L’Être et le Néant, uma leitura
desta obra se consolidou e se estabeleceu como visão dominante de interpretação da ontologia
de Jean-Paul Sartre. Os traços mais marcantes desta leitura podem ser atribuídos ao trabalho
crítico de Merleau-Ponty, cuja filosofia se desenvolveu em parte por meio de uma afinidade
que, ao mesmo tempo, clamava por uma oposição ao pensamento sartriano. Na verdade, ao
invés de se caracterizar como sendo uma simples oposição, a crítica de Merleau-Ponty conduz
a um questionamento aprofundado dos pontos de base da ontologia sartriana, sobretudo no
que diz respeito ao problema do dualismo. A presente tese coloca em questão a leitura
merleau-pontyana - e com isso a visão dominante mais geral que se formou de L’Être et le
Néant - propondo outra leitura, que não visa a oferecer simplesmente respostas às aporias
consequentes de um aparente dualismo em Sartre, mas principalmente a ampliar a
possibilidade de se retomar tal pensamento por uma via original. Assim, passar pela crítica de
Merleau-Ponty não significou uma defesa de um sentido único do texto, mas sim que as
ambiguidades do próprio Sartre podem ser trabalhadas por outros caminhos, indicando uma
riqueza pouco explorada de sua filosofia. Foi preciso então apresentar em que consiste e quais
os problemas inerentes à divisão estabelecida por Sartre entre os modos de ser para-si e em-si,
assim como, a partir de um deslocamento das argumentações de Merleau-Ponty, evidenciar os
impasses revelados quando se retoma a questão do dualismo em termos de ser e nada,
subjetividade e objetividade. Nosso trabalho consistiu em demonstrar que há elementos
implícitos no texto - ou mesmo explícitos, mas não explorados - que permitem ultrapassar as
dificuldades consequentes do dualismo. Por via de uma inspiração em algumas análises de
Jacques Derrida sobre os espectros, denominamos de espectralidade a camada implícita da
obra que, ao surgir, abala a base dualista que parecia sustentá-la. Ao fazer emergir a camada
espectral, revelamos ainda a onipresença e o caráter essencial das relações de assombramento
(hantise), a ponto de compreendermos a ontologia de Sartre como uma hantologie, no sentido
de marcar a relevância e a predominância de tais relações. A partir desta perspectiva, é
possível observar não somente como um dualismo rígido entre para-si e em-si não dá conta de
abarcar uma multiplicidade de modos de ser presente no texto sartriano, como também a
importância das relações de assombramento como aquelas que garantem a imbricação das
regiões ontológicas, por vezes tomadas como incompatíveis. Esta leitura demonstra
finalmente como um modo de presença não intuitiva dos espectros abalam a suposta “pureza”
luminosa da consciência que se estabeleceu como paradigma do sujeito sartriano, na medida
em que o assombramento demonstra um tipo singular de opacidade que finalmente inscreve o
sujeito no mundo e obscurece sua relação a si mesmo.
GARCIA, F.A.F., L’hantologie de Sartre. Sur la spectralité dans L’Etre et le Néant. 2017
450p. Thèse de doctorat de Philosophie en co-tutelle, Institut de Philosophie et Sciences
Humaines, Université de l’Etat de Rio de Janeiro (UERJ). École doctorale de Philosophie,
Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne, 2017.
GARCIA, F.A.F. Sartre’s hauntology. On the spectrality in Being and Nothingness. 2017.
450p. Doctoral dissertation (PhD in Philosophy). Institute of Philosophy and Human
Sciences, Federal University of Rio de Janeiro. École doctorale de Philosophie, Université
Paris 1 Panthéon-Sorbonne, 2017.
Today, it’s possible to affirm that, since the publication of Being and Nothingness (L’Être et le
Néant), a certain reading based on this work has consolidated and stablished itself as the
dominant interpretative view over Jean-Paul Sartre’s ontology. This reading’s most
remarkable traces can be attributed to Merleau-Ponty’s critical work, whose philosophy has
developed in part because of an affinity which, at the same time, claimed for an opposition to
Sartre’s thinking. Merleau-Ponty’s critical view, however, cannot actually be described as a
simple opposition, since it leads to the deeper questioning of aspects which form the
groundwork of Sartre’s ontology, specially concerning the problem of dualism. This thesis
calls into question Merleau-Ponty`s reading – as well as the more general dominant view that
has formed about L’Être et le Néant – while proposing another interpretation, which does not
aim at simply offering answers to the resulting aporias of Sartre`s apparent dualism, but
primarily at amplifying the possibility to return to such line of thought through an original
path. Thus, going over Merleau-Ponty’s critical view did not mean defending a text has a
single meaning; though it did suggest that Sartre’s ambiguities could be worked with in other
ways, indicating a seldom explored depth in his philosophical thinking. It was then necessary
to explain the division stablished by Sartre between the modes of being For-itself and Being-
in-itself, and its inherent problems. Moreover, after the displacement of Merleau-Ponty’s
arguments, it was essential to highlight the impasses revealed when reconsidering the issue of
dualism in terms of being and nothingness, subjectivity and objectivity. Our work consisted in
demonstrating there are implicit – or even explicit, but unexplored – elements in the text
which allow us to surpass the difficulties created by the dualism. By way of an inspiration
caused by a few analyses of specters by Jacques Derrida, we refer to spectrality as the implicit
layer, which might arise from the work, undermining the dualistic basis seemingly supporting
it. By making the spectral layer emerge, we also reveal the omnipresence and the essential
character of the haunting (hantise) relations, to the point of understanding Sartre’s ontology as
an hauntology, and stressing the significance and predominance of such relations. From this
perspective, it is possible to observe not only that a rigid dualism between the For-itself and
the in Being-in-itself cannot encompass the multiple modes of being present in Sartre’s work,
but also the relevance of the haunting relations as those which guarantee the imbrication of
the ontological regions, at times taken as incompatible. Finally, this reading demonstrates how
a spectral mode of non-intuitive presence disrupts the supposed luminous “purity” of
conscience which has stablished itself as a paradigm of Sartre’s view of the subject, insofar as
the haunting shows a unique kind of opacity which ultimately inscribes the subject in the
world and overshadows his relationship to himself.
B - Baudelaire.
CL - Cahier Lutèce.
EN - L’Être et le Néant.
I’re - L’Imaginaire.
I’on - L’Imagination.
LM - Les Mots.
N - La Nausée.
ŒR - Œuvres Romanesques.
QS - Qu’est-ce que la subjectivité ?
S.I - Situations I.
S.X - Situations X.
TC - Théâtre complet.
TE - La Transcendance de l’Ego.
V - Visages.
VE - Vérité et existence.
• Obras de M. Merleau-Ponty
PP - Le Primat de la perception.
PM - La Prose du monde.
QE - La querelle de l’existentialisme.
CF - Résumés de cours. Collège de France 1952-1960.
S - Signes.
VI - Le Visible et l’Invisible.
SUMÁRIO
- PRIMEIRA PARTE -
ONTOLOGIA E NEGATIVIDADE:
a formulação dos problemas.
- SEGUNDA PARTE -
FACTICIDADE E TEMPORALIDADE:
primeiro nível de contestação.
CAPÍTULO I - Considerações prévias: negação e facticidade. 102
§1. Nadificação e negação: as múltiplas dimensões do nada. 102
§2. A crítica de Merleau-Ponty em questão: a negligência da facticidade. 113
- TERCEIRA PARTE -
A HANTOLOGIE:
segundo nível de contestação.
CONCLUSÃO 426
REFERÊNCIAS 437
ANEXOS
Índice de nomes próprios 447
Résumé substantiel 450
INTRODUÇÃO
L’Être et le Néant tornou-se um clássico da filosofia e suas leituras são até hoje
numerosas e diversas. Nesta obra, Jean-Paul Sartre consolidou temas fundamentais de seu
pensamento, os quais de alguma forma construíram uma imagem que se propaga não somente
no campo filosófico, mas também no cenário da política, do teatro e da psicologia. O filósofo
da liberdade é, ao mesmo tempo, o da consciência transparente, da escolha que um sujeito faz
de si, da responsabilidade e do nada. Polos luminosos de uma ontologia problemática que é
acusada de instaurar um dualismo radical e definitivo entre sujeito e mundo, além de
promover um sujeito solipsista e individualista. Demasiado cartesiana, pouco husserliana,
equivocadamente heideggeriana, obscuramente hegeliana, esta ontologia sobrevive através de
suas críticas, as quais ressaltam seus problemas de modo a tornar quase indefensáveis seus
pontos principais. Dentre as críticas, uma leitura célebre se destaca: a do filósofo e amigo de
Sartre, Maurice Merleau-Ponty. Desde Phénoménologie de la perception é possível encontrar
argumentos merleau-pontyanos em contraposição às premissas de Sartre. Contraposição que
aumenta com o tempo, ao incorporar as tensões de conflitos políticos que dão origem ao
ataque frontal em textos como Sartre et l’ultra-bolchevisme (em Les Aventures de la
dialectique) e que toma sua forma mais elaborada no manuscrito Le Visible et l’Invisible. A
leitura que aí se formata se torna, ela também, clássica no interior do debate filosófico; a
ponto de vir a orientar significativamente não somente a recepção da filosofia sartriana como
um todo, mas, principalmente, a de L’Être et le Néant1. Não é incomum encontrar
desenvolvimentos de tal leitura em diversos livros sobre Sartre ou sobre Merleau-Ponty, na
função de demarcar a oposição de ambos e, geralmente, de demonstrar como este último, a
1 BREEUR, R. Autour de Sartre. La conscience mise à nu. Grenoble: Millon, 2005, p. 232.
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partir dos limites intransponíveis deflagrados na filosofia de Sartre, pôde ultrapassá-los2. Dito
isto, pensamos que esta crítica encontra-se em grande sintonia - talvez por ela ser uma de suas
origens - com a posição dominante de leitura desta obra3. Posição que Vincent de Coorebyter
resume muito bem:
Reste, malgré tout, un soupçon, voire un procès en règle, instruit dès 1943
par les marxistes et les thomistes, et qui connaîtra son apogée avec la vogue
structuraliste et la mise à mort du Sujet dans les années 60 et 70 : L’Etre et le
Néant serait un ouvrage foncièrement cartésien, reproche que Sartre lui-
même formulera à diverses reprises. L’appel au cogito, fût-il préréflexif,
comme socle heuristique ultime; le dualisme, massif, de l’en-soi et du pour-
soi, qui est sans conteste un dualisme de la matière et de la conscience; la
théorie de la liberté comme arrachement, enfin, qui postule qu’un néant vient
toujours se glisser entre deux instants de vécu et permet à la conscience de
dire « non » à tout son passé et au monde entier, de poser son acte par-delà la
pesanteur de l’être, tout cela dessine une doctrine cartésienne dans laquelle le
pour-soi joue le rôle de la pensée ou de l’âme, et l’en-soi celui de l’étendue
ou de la matière — avec la même difficulté que chez Descartes pour articuler
la conscience au corps, tous deux ayant commencé par les disjoindre4 .
Estaríamos assim fadados a uma leitura com pouco terreno de expansão, dado os
limites incessantemente demarcados pelos debates que se seguiram à publicação de L’Être et
le Néant? Seriam estas críticas um ponto final no que diz respeito às posições principais da
obra, de modo que todo retorno a esta deve se contentar em ora fazer uma defesa destes
2 Este é o gesto, por exemplo, do movimento estruturalista quando este retoma as posições de Merleau-Ponty
contra Sartre. CONTAT, M.; RYBALKA, M. Les écrits de Sartre. Chronologie et bibliographie commentée.
Paris: Gallimard, 2013, p. 370. C. Lévi-Strauss, por exemplo, busca mostrar no final de La Pensée sauvage que
Sartre é “captif de son Cogito”. LÉVI-STRAUSS, C. La Pensée sauvage. Paris: Presses Pocket, 1998, p. 297.
Fato que permanece mesmo na Critique de la raison dialectique, continua o autor, pois “en socialisant de Cogito,
Sartre change seulement de prison”. Ibid. Ironicamente ou por acaso, esta obra de Lévi-Strauss é dedicada
justamente a Merleau-Ponty, logo após sua morte. Com relação a este detalhe, no entanto, o autor procura deixar
claro que sua dedicatória nada tem a ver com a morte de Merleau-Ponty e nem com uma suposta pretensão
implícita de opor este último a Sartre. Por fim, mesmo entre os fenomenólogos a posição merleau-pontyana se
mostra mais atraente, diz Roland Breeur, pois “quel phénoménologue s’autoriserait encore quelque reserve face
au véritable progrès phénoménologique qu’accomplit une « pensée de l’ambiguïté » [celle de Merleau-Ponty] en
surmontant une doctrine encore trop marquée de cartésianisme? [celle de Sartre] ”. BREEUR, R. Autour de
Sartre, p. 232.
3 Como afirma, por exemplo, Renaud Barbaras: “C’est incontestablement Merleau-Ponty qui [...] en un premier
1-11, 2012, p. 7. V. de Coorebyter diz ainda: “Par-delà leur diversité, les critiques qui ont accueilli L’Etre et le
Néant - et qui étaient massives - s’accordaient sur un défaut majeur : Sartre aurait livré une philosophie du
sentiment, subjectiviste et irrationaliste, qui promeut des hantises personnelles au rang de vérités ontologiques.
C’est l’essor de la phénoménologie qui est visé ici, mais cette dénonciation d’une philosophie à la première
personne jette surtout les bases du malentendu qui entourera l’existentialisme”. Ibid., p. 6.
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mesmos pontos, ora em buscar momentos específicos de valor apesar das limitações? Ou
poderíamos encontrar uma via alternativa ao estreitamento entre estas duas opções? Isto é,
não somente buscar nas entrelinhas aquilo que não fora bem ressaltado, mas fazer daquilo que
surge de certo conteúdo implícito outra possibilidade de leitura que não se encaixe mais na
imagem dominante que se formou desta obra? Esta outra possibilidade se revelou para nós
fascinante, não no sentido de rebater as críticas e mostrar seus erros em nome da verdade do
texto, ou seja, não no sentido de uma defesa de um sentido único da obra, mas sim como
possibilidade de realização de outra leitura. Após as críticas, acreditamos que ler L’Être et le
Néant hoje implica um movimento de recolocação dos problemas apontados de modo a buscar
nas lacunas das críticas, e da própria obra, uma argumentação nova, um novo olhar. Isto se
torna possível se conseguirmos evidenciar aquilo que fora negligenciado, buscar as
ambiguidades, fazer dizer o não dito, ressaltar as entrelinhas ou, como dizia W. Benjamin a
respeito da História, “escovar a contrapelo”. Retomar o texto por este viés é possível na
medida em que o próprio texto contém aquilo que o desconstrói, como mostra o trabalho de J.
Derrida. Para o autor, se Descartes, Kant e Hegel postularam de alguma forma um “sujeito”,
as premissas do deslocamento de tal “fábula” se encontram de certo modo neles mesmos. “À
propos de Descartes, dit J. Derrida à J-L. Nancy, on pourrait découvrir, par exemple dans la
direction de ton travail, des paradoxes, des apories, des fictions”5 . Do mesmo modo, Deleuze
pôde identificar um “antiplatonismo” no Sofista de Platão, o que o levou a sustentar que
Platão fora o primeiro a indicar certa direção de inversão do platonismo6. Nosso objetivo se
alimenta deste espírito. O retorno crítico que fazemos aqui à obra deve levar em conta esta
“imagem dominante” de Sartre e questioná-la, - tendo em vista que tais críticas não consistem
num simples delírio que distorcem suas verdadeiras intenções, mas ressaltam aspectos mais
evidentes de suas ambiguidades -, de modo a não ignorar ou refutar as dificuldades
apresentadas, mas de alguma maneira incorporá-las, mantê-las presente a cada passo da
leitura, como algo que nos assombra (nous hante). Pois, como diz Jocelyn Benoist à respeito
da filosofia pós crítica heideggeriana da metafísica: “il est en effet difficile de raisonner
comme si un certain nombre de ruptures n’avaient pas eu lieu” 7.
5 DERRIDA, J. “Il faut bien manger” ou le calcul du sujet”. In: ______ . Points de suspension. Entretiens. Paris:
Galilée, 1992, p. 279.
6 DELEUZE, G. Simulacre et philosophie antique. In: ______ . Logique du sens. Minuit, 2012, p. 295.
7 BENOIST, J. L’idée de phénoménologie. Paris: Beauchesne, 2001, p. 12.
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Diante disso, o retorno a L’Être et le Néant encontra sua originalidade nesta tensão,
que de algum modo podemos figurar em um Sartre contra ele mesmo. Se a obra é ainda viva,
algo pode ser feito com o que foi feito dela; ela pode ainda nos dizer alguma coisa de
diferente, ou redizer o que precisa ser reforçado, acentuado, ou dizer aquilo que não é dito,
que não se encontra explicitado. Para isto, é necessário ter como contraponto uma crítica forte
e articulada, bem elaborada, como a de Merleau-Ponty. É possível encontrar em alguns de
seus textos pontos fundamentais que servirão de base para nossa releitura de L’Être et le
Néant. Esta escolha se dá ainda no intuito de delimitar um campo de problemas, visto que
seria infindável o trabalho de enumerar as críticas que compõem esta visão dominante, assim
como as leituras que escapam a esta, e não é nosso objetivo realizar uma grande resposta a
este inventário. Acreditamos que alguns pontos de certos textos de Merleau-Ponty acentuam
de tal modo problemas tão essenciais da filosofia de Sartre, que esta seleção já permite o
desenvolvimento das argumentações principais de nossa pesquisa. Isto é, não se trata
tampouco de um estudo minucioso sobre a crítica de Merleau-Ponty a Sartre - o que resultaria
em si numa tese 8 - mas sim de uma investigação que parte de alguns pontos de sua crítica a
fim de desenvolver uma leitura de modo a destacar ou explicitar outras argumentações
capazes de colocar em questão a assinatura definitiva que a escrita merleau-pontyana inscreve
em sua obra, que soa como um ponto final: “positivista”, “dualista”, “solipsista”,
“pensamento de sobrevoo” - “loucura da visão” - “idealista”, “ambivalente”, que torna
impossível a abertura ao ser e a relação ao outro (Le Visible et l’Invisible); “terrorista” e
“violenta” (Sartre et l’ultra-bolchevisme). Reforçamos que não se trata de uma simples
“resposta” aos ataques - o que nos obrigaria a enumerá-los e a rebatê-los um por um -, nem de
provar, como dizia Simone de Beauvoir9, que tal leitura consiste num pseudo-sartrismo.
Nosso objetivo se caracteriza por recolocar em questão alguns pontos da crítica merleau-
pontyana a fim de, a partir da contestação destes pontos que formatam uma leitura unilateral
da obra, podermos desenvolver uma leitura original de L’Être et le Néant. Isto significa que
estes pontos têm uma função inicial de delimitar a questão e não nos interessa aqui realizar
8 Pelo mesmo motivo de que faríamos um trabalho que nos desviaria de nosso tema, não nos concentraremos em
comentar em detalhes as rupturas pessoais e as discussões políticas que envolvem a relação de Sartre e Merleau-
Ponty. Nosso objetivo é o de selecionar pontos da crítica merleau-pontyana que interessam à discussão dos
problemas da ontologia de L’Être et le Néant. Mesmo que as acusações políticas da época de Sartre et l’ultra-
bolchevisme tomem como base as premissas ontológicas de 1943, são justamente estas e suas consequências para
os problemas filosóficos que estamos tratando que nos interessa.
9 BEAUVOIR, S. de. Merleau-Ponty et le pseudo-sartrisme. In:______ . Privilèges. Paris: Gallimard, 1955.
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de uma hantologie10. Acreditamos que somente neste plano, torna-se possível superar os
problemas provenientes de um dualismo radical, não mais entre para-si e em-si, mas entre ser
e nada, subjetividade e objetividade.
Dito isto, devemos delimitar em que medida este trabalho se inspira no movimento
filosófico de Jacques Derrida, autor do termo hantologie. Este neologismo, que encontramos
em Spectres de Marx, diz respeito, grosso modo, a uma lógica do assombramento (logique de
la hantise) “mais ampla” e “mais potente” do que uma ontologia. A hantologie, diz Derrida é
uma “catégorie que nous tiendrons pour irréductible, et d’abord à tout ce qu’elle rend
possible, l’ontologie, la théologie, l’onto-théologie positive ou négative”11. A inspiração vem
de Marx e Engels: “Un spectre hante l’Europe - le spectre du communisme”. Esta frase inicial
do Manifesto do partido comunista conduz Derrida a pensar uma hantise histórica, que marca
a própria existência da Europa, através da experiência do espectro. Dizemos isto en passant
somente no intuito de mostrar que, sem mesmo nos aprofundarmos no conceito derridiano de
hantologie, é possível observar facilmente o quanto ele se encontra distante do universo de
uma ontologia fenomenológica como o de L’Être et le Néant. Nesta obra, aquilo que podemos
identificar como assombramento não se dá em relação aos mesmos problemas colocados por
Derrida. Pois, além de Sartre não estar pensando os problemas em termos de história, ele
também não admite uma “dimension d’irrégionalité” cara a Derrida, atenta Daniel
10 O neologismo hantologie, cunhado por Derrida, é intraduzível para o português. Trata-se de uma união do
verto hanter com o termo ontologie. Encontramos as seguintes ocorrências de significados do verbo hanter em
francês: 1) “Fréquenter (un lieu) d’une manière habituelle, familière; Habiter, vivre dans (un lieu)”. 2)
“Fréquenter habituellement (qqn)”; Ex: “Dis-moi qui tu hantes, je te dirai qui tu es” 3) “Le sujet désigne un
esprit, un fantôme (angl. “to haunt”)”. Ex: “Cette maison est hantée par un esprit.” 4). “Obséder, poursuivre;
hantise. Ex: “Les rêves, les obsessions qui hantent son sommeil”. Le Grand Robert de la Langue Française.
Paris: Dictionnaires Le Robert, 2001, p. 1680-1. Na tradução brasileira de L’Être et le Néant (O ser e o nada.
Petrópolis: Vozes, 2001), Perdigão traduz “hanter” por verbos diferentes, opção que impede o leitor brasileiro de
compreender a onipresença deste verbo ao longo da obra. Na maioria das vezes, Perdigão traduz hanter por
“infestar” (cf. p. 57, p. 79, p. 96, p. 108, p. 132, p. 139, p. 141, p. 165, p. 175, p. 554, etc.); em outros momentos
por “impregnar” (cf. p. 138, p. 140-4, p. 171); e mesmo por “invadir” (p. 58). De nossa parte, optamos pela
tradução assombrar, dado que ela mantém tanto o sentido de algo que permanece ao espírito como uma
obsessão, quanto à ligação deste verbo à presença de espectros ou fantasmas (em português, dizemos, por
exemplo que uma casa é mal assombrada, assim como em francês se diz “une maison hantée”). Em segundo
lugar, optamos por manter o termo hantologie em francês, devido à impossibilidade de tradução, embora
utilizaremos a tradução de “hantise” como “assombramento”. Por fim, vale ressaltar que o termo assombramento
em português traz uma riqueza que não se encontra no francês, a saber, a ideia de “introduzir uma sombra”.
Como um dos temas centrais de nosso trabalho gira em torno das noções de translucidez e opacidade, o fato do
assombramento introduzir a ideia de sombra se mostra muito interessante. Por esta razão, optamos por manter ao
mesmo tempo: o termo hantologie em francês, no intuito de manter a riqueza do trocadilho, e o uso da tradução
da hantise por “assombramento”, já que a tradução é possível e também pelo fato de que o termo aponta para a
inserção das sombras naquilo que em Sartre podemos chamar de esfera de translucidez.
11 DERRIDA, J. Spectres de Marx. L’État de la dette, le travail du deuil et la nouvelle Internationale. Paris:
dimensão de indicernabilidade que não pode ser compreendida através de um quadro dualista.
Este modo do espectro, entrevisto no panorama da desconstrução derridiana, é o modo da
incorporação de algo que não pode ser identificado, e é neste sentido que se trata de um “non-
objet, ce présent non présent, cet être-là d’un absent ou d’un disparu”16; um não objeto,
explica Dirce Solis, “já que não se pode tocá-lo ou senti-lo fisicamente. Porém, é possível
sentir sua presença. Sabemos que ele está lá”17 . Como veremos a respeito do problema do
dualismo, esta possibilidade realizada por Derrida - de conceber aquilo que escapa às
oposições binárias da lógica clássica -, mostra-se como um ponto de inspiração importante da
presente leitura de L’Être et le Néant. Isto em razão do fato de que pesa sobre esta obra os
impasses provenientes dos problemas mais clássicos do dualismo, conforme veremos no
primeiro capítulo. Finalmente, resumimos em três pontos a influência derridiana neste
trabalho: 1) a possibilidade de encontrar no texto elementos que de alguma forma falam
contra uma leitura unívoca do mesmo, ou seja, de encontrar paradoxos e ambiguidades que
possibilitem outra leitura 2) a possibilidade de conceber modos médios e/ou para além dos
dualismos que abalam esta mesma lógica 3) a espectralidade como uma dimensão que permite
a compreensão de tais modos. Quanto ao termo hantologie, trata-se, na verdade, mais de uma
apropriação do que de uma inspiração, como viemos de mencionar.
Apropriamo-nos do termo hantologie no intuito de evidenciar o papel fundamental do
assombramento em L’Être et le Néant. No sentido de que no contexto desta ontologia não é
possível pensar o nada que não seja assombrado pelo ser e o ser que não seja assombrado pelo
nada. O assombramento mostra-se assim como uma verdadeira via de mão dupla; e a
espectralidade consiste na dimensão deste “meio”, na qual podemos identificar a
simultaneidade entre ser e nada, assim como a especificidade e a indissociabilidade de cada
termo. Além disso, esta ideia nos fornece a possibilidade de encontrar uma resposta implícita
de Sartre aos problemas apontados por Merleau-Ponty, os quais delimitamos aos seguintes
pontos: um dualismo insuperável entre ser e nada; a transparência da consciência; uma
liberdade sem raízes; a ausência de passividade e de dialética. Por fim, a partir da perspectiva
de uma hantologie, podemos não somente nos confrontar com os problemas levantados por
Merleau-Ponty, mas também realizar uma leitura que apresenta a ontologia sartriana em toda
16Ibid., p. 26.
17 SOLIS, D. Derrida e a demarcação dos espectros. Trabalho apresentado no I Congresso Internacional de
Filosofia e Saúde em 2012, p. 2.
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sua riqueza, na medida em que ela nos revela a multiplicidade de modos de ser singulares que
se dão para além das restrições rígidas de um possível dualismo entre para-si e em-si, ser e
nada, subjetividade e objetividade, translucidez e opacidade.
PRIMEIRA PARTE
ONTOLOGIA E NEGATIVIDADE:
a formulação dos problemas
Capítulo I
A aporia do dualismo
fornecer maiores explicações, que as duas regiões possam ser “placées sous la même
rubrique; o que significa que “nous ne pourrons véritablement saisir le sens de l’un ou de
l’autre que lorsque nous pourrons établir leurs véritables rapports avec la notion de l’être en
général, et les relations qui les unissent”3. A cisão entre as duas regiões deu origem a uma
espécie de dualismo que Sartre parecia ao mesmo tempo em querer reforçar e evitar. Reforçar
na medida em que ele descreve o modo de ser da consciência (para-si) como “étant
radicalement autre” que o do ser dos fenômenos (em-si), que lhe é “oposto” 4. Evitar no
sentido de que ele já antevia as possíveis consequências de um dualismo quando afirmava, na
mesma página: “Il semble que nous nous soyons fermé toutes les portes et que nous nous
soyons condamné à regarder l’être transcendant et la conscience comme deux totalités closes
et sans communication possible”5 . Entretanto, apesar desta precaução, de algum modo este
problema se mantém presente até a “Conclusão” da obra, em que Sartre revela ainda a mesma
preocupação:
Diante disto, pode-se estranhar o fato de que, após todo o trabalho de sua ontologia,
ainda na “Conclusão” Sartre se coloca a questão do dualismo. Por acaso isto atesta que após
todo o percurso da obra o autor não conseguiu de fato superar o dualismo ontológico
fundamental? Mas o que é um dualismo e qual o problema que ele engendra?
Gilles Deleuze nos fornece um quadro sintético que permite melhor situar o problema
do dualismo. A seu ver, podemos compreender esta noção em ao menos três sentidos
diferentes: 1) o verdadeiro dualismo é aquele que marca uma diferença irredutível entre duas
substâncias, como no caso de Descartes ou entre duas faculdades como em Kant; 2) um
dualismo pode ser provisório na medida em que este é ultrapassado em direção a um
3 EN, p. 30.
4 EN, p. 30.
5 EN, p. 30.
6 EN, p. 665.
!28
monismo, como para Bergson e Espinosa; 3) o dualismo pode funcionar como “une
répartition préparatoire qui opere au sein d’un pluralisme”, que é a seu ver o caso de
Foucault7. Tendo em vista estas diferenças, vale evidenciar que as definições que Sartre
oferece na “Introdução” de sua obra sobre os modos de ser para-si e em-si são consideradas
pelo autor como sendo provisórias, superficiais e incompletas8. Dado que elas são alcançadas
a partir de uma investigação que é conduzida, nas palavras do próprio Sartre, por uma
“mauvaise perspective”9. Isto significa que o dualismo provisório da “Introdução” será
abandonado, complexificado, ultrapassado? Seria esta cisão inicial apenas uma etapa em
direção a um monismo ou uma oposição que opera em meio a uma pluralidade?
Quem melhor evidenciou o caráter dualista da ontologia sartriana foi sem dúvida
Merleau-Ponty, para quem esta posição funcionou como um contraponto essencial de criação
de sua própria filosofia. Já em 1945, apenas dois anos após a publicação de L’Être et le
Néant , ele observava em La querelle de l’existentialisme, a respeito de L’Être et le Néant, que
“le livre reste trop exclusivement antithétique”10. Este posicionamento crítico permaneceu
sendo ponto-chave de contraposição da parte de Merleau-Ponty à filosofia sartriana, de modo
que seus desdobramentos se deixam entrever ainda em seus últimos trabalhos. Em Le Visible
et l’Invisible, Merleau-Ponty refina suas análises críticas ao apontar um dualismo radical não
somente entre para-si em em-si, mas também entre ser e nada, termos de base, como próprio
título da obra sartriana indica. Grosso modo, o caráter demasiado antitético do para-si e do
em-si, consistiria, para Merleau-Ponty, num dualismo de tipo cartesiano, tal como Deleuze
identificou ser próprio de um verdadeiro dualismo: há uma separação radical entre nada e ser
(que Merleau-Ponty equipara a para-si e em-si)11, que estabelece os termos como
contraditórios excludentes, que não “passam” um no outro, como diríamos em linguagem
hegeliana. Deste modo, o autor de Le Visible et l’Invisible pôde afirmar que tal base dualista
condena todo o desenvolvimento posterior da obra na medida em que “d’un bout à l’autre du
livre, on parle du même néant et du même être”12. Se assim for, mesmo que Sartre tenha
definido na “Introdução” o caráter provisório de suas análises, seu dualismo inicial não
No entanto, o modo de ser da região ontológica que Sartre denomina em-si está longe
de ser evidente à compreensão. Para Claude Romano, ele é “mal défini” 14, do mesmo modo
que para Gerd Bornheim ele permanece “estranho”15. Veremos em seguida com mais detalhes
o que a definição do em-si pode ter de problemática. No que diz respeito ainda ao método de
leitura de L’Être et le Néant centrado no dualismo que é definido na “Introdução”, Mikel
Dufrenne, por exemplo, é de outra opinião. A seu ver, pelo fato de Sartre começar, assim
como Descartes, por um dualismo, ocorre uma tendência de leitura que o restringe
demasiadamente a este ponto de partida: “on veut trop souvent enfermer Sartre dans les
premiers chapitres de L’Être et le Néant et l’on oublie qu’à sa façon, il suit un ‘nexus
rationum’”16. Seguir a ordem das razões fez com que Dufrenne enxergasse certas nuances que
a “Introdução” não apresenta, tal como a “solidariedade” dos modos de ser em-si e para-si na
medida em que “l’en-soi d’une part porte le pour-soi dans sa facticité, et d’autre part ne peut
devenir monde que par la conscience qui le reflète, et dont tout l’être est de le refléter”17. No
entanto, ele conclui mesmo assim que Sartre permanece finalmente dualista por não conseguir
estabelecer uma dialética (ponto que o aproxima, embora por diferentes caminhos, de uma das
13 CABESTAN, P. Sartre et la différence ontologique. Alter: Sartre phénoménologue, Dijon, n.10, p. 65-90,
2002, p. 76. (grifo nosso)
14 ROMANO, C. L’ontologie sartrienne: réflexions sur son archè et son télos. In: TAMBOURGI-HATEM, N.
críticas de Merleau-Ponty). Na medida em que para Sartre o para-si é desejo de ser em-si e
que neste desejo ele sempre fracassa, dado que esta síntese é impossível, a filosofia de Sartre
é a história mesma destes fracassos, de maneira que tal sucessão de fracassos do para-si não
corresponde a uma dialética, a qual implicaria efetiva superação do momento de negação.
“Ainsi, admettre une ontologie dualiste - et c’est toute la différence de Sartre à Hegel -, c’est
refuser la dialectique”, conclui Dufrenne 18.
O problema de restringir a leitura de L’Être et le Néant aos primeiros capítulos foi
colocado também por Benoist em seu curso sobre L’Être et le Néant na Sorbonne em 2014 19.
Sua leitura opera com uma divisão entre uma primeira metade do livro, onde há um
solipsismo do para-si, que ele denominou de “o triunfo da ipseidade”, até o “encontro” com o
outro que se dá a partir da segunda metade. Esta chave de leitura se baseia numa divisão entre
ontologia e metafísica, realizada pelo próprio Sartre, num sentido muito próximo ao de
Levinas em Totalité et infini20 . Benoist mostra como esta distinção atravessa L’Être et le
Néant e sustenta sua economia de um modo geral. Na “Conclusão”, Sartre tematiza esta
diferença ao dizer que as perguntas do tipo “por que surge um para-si?” ou “por que ele surge
a partir do ser?” são da ordem da metafísica, enquanto que cabe à ontologia apenas a
descrição dos modos de ser21. Neste contexto, a ontologia opera somente no plano do “tudo se
passa como se…”, enquanto que a metafísica diz respeito ao caráter de acontecimento,
daquilo que pode ou não acontecer ao para-si, como o fato mesmo de seu surgimento 22.
Benoist se apoia nesta perspectiva sartriana no intuito de demonstrar justamente a importância
da segunda metade de L’Être et le Néant, isto é, precisamente a parte do texto cuja
importância perderíamos de vista se nos restringíssemos demasiadamente aos primeiros
capítulos. Além disso, este contrapeso da segunda metade em relação à primeira se dá com o
objetivo de mostrar os problemas desta última, na medida em que, como mencionamos, esta
se revelaria como uma ontologia solipsista. O passo decisivo de ruptura se caracteriza pelo
Levinas inverte a perspectiva sartriana pelo fato de que, apesar de Sartre ter razão em sua distinção entre
ontologia e metafísica, não se pode começar pela ontologia, pois esta está sempre sob a condição da metafísica.
O que neste contexto significa que não há para-si sem para-outro, o para-si é possível como para-si a partir
daquilo que lhe acontece.
21 Para Dufrenne, Sartre utiliza os termos de ontologia e metafísica no sentido inverso ao de Kojève: “l’ontologie
est une description de l’être et de ses régions, la métaphysique pose l’ultime problème de cet être, tel que
l’ontologie l’a révélé. DUFRENNE, M., op. cit., p. 76, n. 1.
22 Cf. EN, p. 669.
!31
momento em que surge o outro como acontecimento metafísico, o que significa que, no plano
ontológico, nada na economia do para-si e do em-si o solicitava. O outro é precisamente o
elemento que vem perturbar esta economia. Em suma, para Benoist, algo acontece ao para-si -
o surgimento o outro - acontecimento que o altera em sua estrutura ontológica mesma, de
modo que ele deixa de ser uma abstração.
Em sentido próximo, Jean Wahl valoriza a parte, digamos, não ontológica de L’Être et
le Néant, a qual ele associa às análises posteriores à “Introdução”, visto que os conceitos
introdutórios devem ser revisados a fim de preservar “tout ce qu’il y a de précieux dans la
suite de l’œuvre”23. No fundo, explica Francis Janson, “M. J. Wahl, bon gré mal gré, équivaut
finalement à regretter que Sartre ait adopté la méthode phénoménologique, et, ne se soit point
contenté d’une philosophie d’emblée existentielle, du type de celle de Kierkegaard, ou de
celle de Heidegger dans ce qu’elle a de plus opposé aux perspectives husserliennes”24 . Por
fim, vale observar que também J. Hyppolite valoriza a última parte de L’Être et le Néant -
mais especificamente a parte sobre a psicanálise existencial que, a seu ver, consiste no
verdadeiro objetivo da obra de modo que “l’ontologie qui précède est seulement ce qui rend
possible cette psychanalyse”25.
Diante destas breves observações, podemos dizer que os diferentes métodos de leitura
de L’Être et le Néant indicam aquilo que é mais valorizado por cada autor em seu objetivo de
compreender a proposta ontológica sartriana e seus desdobramentos. Para alguns autores, uma
leitura demasiado centrada na “Introdução” pode levar a uma falta de consideração da
relevância dos desenvolvimentos posteriores que contestam posições rígidas. Estamos de
acordo com este último ponto, embora consideremos ser importante observar que: mesmo
para estes que não buscam tirar conclusões que condenem toda a obra a partir das análises
introdutórias, o problema do dualismo permanece. Assim, de todo modo, ao estabelecer uma
divisão entre as regiões ontológicas para-si e em-si, Sartre se situa em meio aos problemas
mais clássicos do dualismo de modo que sua ontologia se encontra em aporia. Benoist
23WAHL, J. 1946, apud JEANSON, F. Le problème moral et la pensée de Sartre. Paris: Seuil, 1965, p. 142-3.
24JEANSON, F. ibid., p. 143.
25 HYPPOLITE, J. La psychanalyse existentielle chez Jean-Paul Sartre. In:______ . Figures de la pensée
philosophique II. Paris: PUF, 1971, p. 781.
!32
acrescentou ainda o caráter solipsista desta ontologia. Ora, ao contrário de uma ontologia
solipsista, Sartre desejava apresentar um para-si como ser-no-mundo, noção a partir da qual
não seria mais possível conceber, senão abstratamente, uma consciência sem mundo ou um
mundo sem consciência (em vocabulário sartriano). Com efeito, o problema não é de solução
fácil, na medida em que não basta estabelecer uma “ligação” entre os termos sujeito-mundo,
se inicialmente eles são dados como isolados e inconciliáveis26. Do mesmo modo, se estamos
falando de um verdadeiro dualismo, isto significa, segundo a lógica clássica, que dois termos
de uma oposição binária não podem existir ao mesmo tempo. Encontramos este princípio na
Metafísica de Aristóteles, mais conhecido como princípio de não contradição:
Segundo este princípio, válido para todas as oposições binárias, para que algo tenha
legitimidade de uma verdade racional, não pode haver contradição entre os termos de uma
oposição, isto é, só se pode atribuir ser ou não ser a cada vez, pois ambos não podem ser
atribuídos a uma mesma coisa ao mesmo tempo. Disto decorre ainda o princípio do terceiro
excluído, segundo o qual “não é possível que exista um termo médio entre os contraditórios,
mas é necessário ou afirmar ou negar, do mesmo objeto um só dos contraditórios, qualquer
que seja ele”28. Sendo assim, a lógica dualista mais clássica pressupõe que tudo aquilo que
não é considerado a partir de uma oposição dual é falso e, além disso, não pode haver termo
intermediário, ou seja, um entre, algo que não seja nem um nem outro termo considerado 29.
Isto significa que se Sartre de fato estabelece um dualismo clássico entre para-si/em-si, ele
acaba por se aprisionar nos problemas mais tradicionais da filosofia em relação ao dualismo.
Mais especificamente: 1) ao definir para-si e em-si a partir de uma separação radical que
impede que ser e nada coexistam num mesmo modo de ser; 2) ao pressupor
consequentemente que tudo aquilo que não pode ser considerado estritamente como para-si ou
em-si é falso, pois não há a possibilidade de modos intermediários. É neste sentido que
26 Desenvolveremos esta questão através da crítica de Merleau-Ponty no segundo capítulo desta “Primeira parte”.
27 ARISTÓTELES, Metafísica. São Paulo: Loyola, 2002. X 5, 1061 b 33-1062 a1, 2002 (p. 499).
28 Ibid., IV 7, 1011 b 23-25 (p. 179).
29 Com isso não queremos dizer que não haja modos intermediários na filosofia grega. Basta observar a presença
nesta parte introdutória do texto, ressaltamos em primeiro lugar que o objetivo mais explícito
da “Introdução” é o de delimitar a “transfenomenalidade” destes dois modos de ser, o que
significa que nenhum deles pode se reduzir ao fenomenal, isto é, se limitar ao aparecer. Com
base nesta ideia, Sartre pretende superar os problemas de outro dualismo, desta vez entre
idealismo e realismo.
Desde seus primeiros trabalhos, sobretudo no texto “Une idée fondamentale de la
phénoménologie de Husserl : l’intentionnalité”, Sartre se apresenta como um crítico do
idealismo, o qual ele associava à metáfora do “espírito aranha” que “attirait les choses dans sa
toile, les couvrait d’une bave blanche et lentement les déglutissait, les réduisait à sa propre
substance”33. Através da crítica a tal “philosophie alimentaire”, Sartre visa a ultrapassar,
juntamente com um determinado grupo de jovens filósofos, os princípios de uma filosofia
francesa envelhecida34 , a qual associa conhecimento à “assimilation, unification,
identification”35, reduzindo a realidade do mundo aos conteúdos presentes na interioridade
“gástrica” da consciência. A seu ver, a ideia inovadora que permite repensar as premissas do
idealismo é justamente o conceito de intencionalidade proveniente da fenomenologia de
Husserl. Este é interpretado no sentido de caracterizar a consciência como puro movimento
para “fora” - “la conscience n’a pas de ‘dedans’” - como um “éclatement” que consiste num
“refus d’être substance”36. No entanto, esse “fora” não é explicitado e tampouco há aqui uma
descrição fenomenológica sobre a coisa mesma “en chair et en os”, ponto de partida
fundamental da fenomenologia husserliana. Sartre diz apenas que a consciência e o mundo
surgem simultaneamente e que o mundo aparece com suas significações objetivas37.
A ausência de questionamento da natureza deste “fora” tornou-se ponto de crítica de
parte de fenomenólogos. Levinas, por exemplo, pensa haver aí um dualismo que tem como
base um realismo ingênuo, como nos mostra V. de Coorebyter:
en traitant la conscience et son objet comme deux entités distinctes dont l’une
s’éclate vers l’autre afin d’assurer leur mise en relation, Sartre participe de
l’attitude naturelle pour laquelle le monde est toujours déjà donné dans son
objectivité, offert au regard d’une conscience qui se contentera de le viser
33 S.I, p. 29.
34 CDG, p. 469. Para um bom panorama sobre quem são os alvos diretos desta crítica ver: DE COOREBYTER,
V. Introduction. In: SARTRE, J-P. La Transcendance de l’Ego et autres textes phénoménologiques. Paris: Vrin,
2003. (TE, p. 8-19).
35 S.I, p. 29.
36 S.I, p. 30.
37 Falaremos deste ponto com mais detalhes na “Segunda parte”.
!35
Isto se deve, continua o autor, ao fato de Sartre ignorar a teoria dos perfis39 (esquisses/
Abschattung) e da temporalidade de Husserl, de modo que ele não desenvolve ou faz menção
às múltiplas análises intencionais e suas especificidades. Por esta razão, a utilização sartriana
do conceito de intencionalidade é, segundo De Coorebyter, uma apropriação “d’un résultat
comme d’un point de départ”40 de modo que “sa phénoménologie se résout en empirisme” 41.
É neste sentido também que Gadamer se pergunta: “Sartre a compris ce que Husserl voulait
dire quand il posait la question : qu’est-ce qu’un objet de perception ?” 42.
A questão do dualismo na “Introdução” de L’Être et le Néant contém alguns resquícios
dos pressupostos apresentados no artigo sobre a intencionalidade, embora Sartre tenha se
aprofundado em sua leitura da filosofia husserliana no período que separa os dois textos,
como atesta L’Imaginaire. A “Introdução” procura fornecer bases para uma ontologia que
permita a superação do idealismo e também do realismo através de uma fenomenologia de
inspiração husserliana, mas desta vez por via de uma crítica ao próprio Husserl, cuja filosofia
é considerada agora idealista. Neste segundo momento, Sartre não ignora, mas critica, a teoria
dos perfis husserliana, censurando-a de apresentar um novo dualismo entre finito e infinito.
Entretanto, ele reconhece que, ao identificar o ser ao aparecer, a fenomenologia de Husserl
permitiu superar os dualismos mais clássicos da filosofia moderna, a saber: aparência e
essência, interior e exterior, ser e aparecer, potência e ato43. Na verdade, a curta análise de
Sartre sobre a teoria dos perfis torna de algum modo obscura a compreensão de seu
argumento sobre o dualismo restante. Porém, seu intuito principal é o de mostrar que a teoria
l’Ego: “Husserl insiste sur le fait que la certitude de l’acte réflexif vient de ce qu’on y saisit la conscience sans
facettes, sans profils, toute entière (sans « Abschattungen »). C’est évident. Au contraire l’objet spatio-temporel
se livre toujours à travers une infinité d’aspects et il n’est au fond que l’unité idéale de cette infinité.” TE, p. 102.
40 DE COOREBYTER, V. Sartre face à la phénoménologie, p. 32.
41 Ibid., p. 33. Na verdade, para De Coorebyter, o fato de em L’Être et le Néant Sartre questionar justamente os
temas negligenciados no texto sobre a intencionalidade, mostra mais uma recusa do que propriamente uma
ignorância, visto que de algum modo esses temas - “la réduction phénoménologique et l’analyse constituante,
l’animation de la hylé par une visée noématique en quête de remplissement, l’attention portée aux modes
spécifiques d’implication intentionnelle qui permettent au sujet d’imposer différents sens à une même matière
[etc.] ” - se referem a uma filosofia da imanência que Sartre pretende abolir (Ibid., p. 51).
42 GADAMER, H-G. L’être et le néant de Jean-Paul Sartre. In: ______ . L’Herméneutique en rétrospective. I&II
dos fenômenos, ao substituir “la réalité de la chose par l’objectivité du phénomène”44 , funda
esta objetividade num recurso ao infinito, isto é, numa infinidade de aparições dos perfis. Para
que algo seja captado como transcendente, é necessário que o sujeito da percepção ultrapasse
o perfil e apreenda a razão da série - a essência -, mas as aparições são infinitas na medida em
que o objeto deve ser sempre ultrapassado pelo sujeito em direção à essência e este sujeito
mesmo, não sendo estático, estará sempre apreendendo novos perfis que serão ultrapassados.
A aparição finita é assim ultrapassada em direção à infinidade de aparições, de modo que o
dualismo finito/infinito substitui, para Sartre, aquele entre ser e aparecer. Disto decorre que
outros dualismos são, a seu ver, reintroduzidos, na medida em que há um “dentro” e um
“fora” da aparição como um “aparecer” e um “não aparecer” que forjam uma espécie de
“potência” do fenômeno que pode se desenvolver numa série de aparições reais ou possíveis.
Consequentemente, para Sartre, “l’essence enfin est radicalement coupée de l’apparence
individuelle qui la manifeste, puisqu’elle est par principe ce qui doit pouvoir être manifesté
par une série de manifestations individuelles”45 . Desta conclusão surgem problemas que
motivam a tarefa sartriana de pensar o modo de ser em-si. Nosso interesse se concentra
justamente neste problema de maneira que não faz parte de nosso objetivo analisar a
pertinência ou as insuficiências desta breve crítica de Sartre à teoria dos perfis de Husserl.
Dito isto, a tarefa a que Sartre se propõe é a de interrogar o ser sobre o sentido do “ser da
aparição”, verdadeiro objetivo de uma ontologia fenomenológica.
No intuito de superar a alternativa entre o idealismo e o realismo, Sartre se propõe
assim a uma investigação que se orienta, na verdade, em duas direções: a busca pelo ser do
existente que aparece e a busca pelo ser daquele para quem o existente aparece. Sua
investigação se inicia pelo ser da aparição - já que ela tem seu ser próprio - e a dificuldade que
se apresenta ao desejar escapar das alternativas acima é a de pensar não mais um ser apartado
ou mascarado pelo seu aparecer, mas ao mesmo tempo garantir que o ser do aparecer não se
reduza à aparição, isto é, busca-se estabelecer que o ser do fenômeno vá além do fenomenal, a
fim de evitar incorrer, na concepção de Sartre, na posição idealista que presume, como
Berkeley, que “esse est percipi” (ser é ser percebido) 46. Diante desta dificuldade, Sartre
estabelece uma diferença conceitual entre o ser do fenômeno e o fenômeno de ser. Este último
44 EN, p. 13.
45 EN, p. 14.
46 EN, p. 16.
!37
corresponde à própria aparição, enquanto que o primeiro diz respeito ao ser desta aparição,
embora os dois termos sejam interdependentes na medida em que “nous ne pouvons rien dire
sur l’être qu’en consultant ce phénomène d’être”47. Contudo, mesmo que a aparição seja a
única via de acesso possível ao ser dos fenômenos, não podemos com isso concluir que ela o
mascara e nem que este se limita às próprias aparições, pois “le phénomène d’être exige la
transphénoménalité de l’être”48. Mas em que consiste precisamente este ser do fenômeno?
Seria este uma dimensão apartada de seu aparecer? Seria este o sentido da aparição? Com o
objetivo de explicar o que seria o ser do fenômeno, Sartre esboça definições “negativas” a
partir do exemplo da aparição de um objeto qualquer: seu ser não seria uma qualidade do
objeto, nem um sentido - essência do objeto -; do mesmo modo ele não poderia ser definido
como presença, já que a ausência também desvela o ser, e nem como algo que o objeto possui
ou realiza qualquer participação. A única maneira positiva de definir o ser do fenômeno é
dizer que ele é: “car l’objet ne masque pas l’être, mais il ne le dévoile pas non plus”49. Em
outro texto, a definição toma a forma de condição de desvelamento: “L’être est quelque chose
que je ne peut saisir dans son être, sauf comme phénomène à partir de l’objet qui est présenté.
L’être est ce qui fait que l’objet paraît”50.
A necessidade de estabelecer uma diferença entre o ser do fenômeno e suas aparições
surge da tentativa de não reduzir o ser ao conhecimento que um sujeito possa ter dele. Em
outras palavras, dizer que uma coisa percebida não se reduz a série de suas manifestações é
dizer que ela existe independentemente do conhecimento que se tem dela, que ela não pode
ser “assimilada” pelo “espírito-aranha” do idealismo - contraponto realista da parte de Sartre.
Nesta época, o filósofo direciona essa crítica à própria fenomenologia de Husserl, pelo fato
deste ter reduzido a realidade ao polo noemático irreal, através da redução fenomenológica.
Com isso, Husserl estabelece uma equivalência entre ser e conhecimento que Sartre não pode
aceitar, se opondo assim às premissas de um idealismo transcendental assumido nas Ideen e
cuja expressão máxima encontramos nas Méditations cartésiennes, em que “le monde est non
seulement « pour moi », mais tire « de moi » toute sa validité ontologique. Le monde devient
47 EN, p. 15.
48 EN, p. 16.
49 EN, p. 15.
50 CSCS, p. 145.
!38
« monde-perçu-dans-la-vie-réflexive »”51. É neste sentido que Sartre afirma que, após ter
saído do mundo do conhecimento pela époché fenomenológica, Husserl não retorna jamais 52.
O ideia de um ser transfenomenal do fenômeno - que não se reduz à série das
aparições - é apresentada então como uma saída aos deslizes husserlianos no idealismo e uma
crítica à primazia do conhecimento. Esta mesma crítica se estende ao modo de conceber a
própria dimensão da consciência que, como veremos mais adiante, se caracteriza por ser uma
dimensão originária que é condição do próprio conhecimento e, do mesmo modo,
transfenomenal. A oposição à filosofia husserliana implica ainda a contestação da
possibilidade de existência de uma subjetividade compreendida como esfera imanente que
seria de algum modo hipostasiada. Ao invés de radicalizar o movimento intencional como
transcendência, Husserl prefere, segundo Sartre, reduzir o ser ao “não ser”, fazer dele um
noema irreal, instaurando a realidade (reel53) na plenitude subjetiva. Neste sentido, Sartre
afirma que esta subjetividade “ne saurait sortir de soi pour poser un objet transcendant en lui
conférant la plénitude impressionnelle”54 e ainda que “en fondant la réalité de l’objet sur la
plénitude subjective impressionnelle et son objectivité sur le non-être : jamais l’objectif ne
sortira du subjectif, ni le transcendant de l’immanence, ni l’être du non-être”55. De modo
semelhante, pergunta Renaud Barbaras: “Mais on se demande comment un vécu immanent
serait en mesure de faire apparaître une transcendance, c’est-à-dire finalement de faire sortir
la conscience d’elle-même. N’y a-t-il pas une difficulté à penser comme contenu de
conscience l’acte sur lequel repose le rapport de la conscience à son autre ?” 56. Vislumbramos
assim uma questão em comum, que se refere à crítica de um imanentismo da subjetividade
husserliana que acaba por admitir “conteúdos”, embora Sartre direcione a sua crítica ao
noema e Barbaras à própria vivência (le vécu). Para este último, Husserl faz da vivência um
ser positivo e não respeita a evanescência própria do aparecer, o que o leva de alguma
maneira a interiorizar empirismo e intelectualismo no “sein de la conscience transcendantale
sous la forme de la dualité et de l’unité finalement incompréhensible de la matière et de la
forme”57. No entanto, Barbaras considera que a teoria dos perfis de Husserl, ao contrário da
crítica de Sartre, é justamente aquela que legitima a transcendência:
Si tant est qu’une chose (un « quelque chose ») est bien une réalité
transcendante, autrement dit se distingue des mes vécus, elle ne sera présente
comme chose qu’à la condition de ne pas l’être tout entière, de différer une
donation adéquate, de résister à l’appropriation. Une chose n’est donné
vraiment, elle-même, qu’en ne l’étant que partiellement puisque le propre de
la chose est de s’opposer au regard, de me transcender 58 .
Sartre não vê do mesmo modo este aspecto sublinhado por Barbaras sobre a teoria dos
perfis de Husserl. Enquanto Sartre considera finalmente que a subjetividade husserliana,
assim como o “espírito-aranha”, transforma a realidade transcendente em correlatos de
consciência que compõem a vida da subjetividade pura (e que a partir de então Husserl não
retorna a esfera transcendente), Barbaras acentua que é justamente a doação por perfis que faz
com que a coisa percebida escape ao conhecimento que se pode ter dela, visto que ela “excède
toute expérience qui peut en être faite, et cet excès est sans mesure, l’écart entre la chose et sa
perception singulière ne saurait être réduit”59. De fato, se atentarmos para a seguinte
afirmação de Husserl, podemos identificar sua tentativa de pensar o noema como correlato
inseparável da consciência, mas que não pode ser considerado como seu conteúdo imanente
réel:
Il est clair en même temps que cette distinction [entre l’analyse réelle
(reeller) et intentionnelle; noétique et noématique] nous conduit ipso facto à
mettre en lumière celle de deux régions d’êtres radicalement opposées et
pourtant rapportées par essence l’une à l’autre. Nous avons souligné plus haut
que la conscience en général doit être considérée comme une région originale
de l’être. Mais nous avons reconnu ensuite que la description éidétique de la
conscience renvoie à celle de ce qui dans la conscience accède à la
conscience, que le corrélat de la conscience est inséparable de la conscience,
sans pourtant être réellement (reell) contenu en elle. Ainsi le noématique se
distingue comme une objectivité qui appartient à la conscience et qui
pourtant garde son originalité60.
O ponto que Barbaras considera ser de extrema importância na teoria de Husserl não é
compreendido deste modo por Sartre, já que este último censura não a teoria dos perfis em si,
57 Ibid., p. 72.
58 BARBARAS, R. La Perception, p. 58.
59 Ibid., p. 64.
60 HUSSERL, E. Ideen I, p. 434. (grifo nosso).
!40
mas o fato das aparições serem reduzidas a uma “matière impressionnelle subjective”61, de
modo que, se Husserl define a consciência como transcendência e faz do ser um “ser
percebido”, ele é “totalement infidèle à son principe” 62. Assim, na medida em que Sartre não
considera a teoria dos perfis como via de contestação do idealismo e legitimação da esfera
transcendente, ele busca a saída destes problemas através da “transfenomenalidade” dos
modos de ser para-si e em-si. O para-si é então engajado na transcendência no sentido de
escapar a uma filosofia husserliana contemplativa, a qual pressupõe uma concepção da
consciência como uma esfera hipostasiada da subjetividade. A este engajamento Sartre dá o
nome de “prova ontológica”, que consiste numa versão particular do princípio de
intencionalidade da consciência: “La conscience est conscience de quelque chose : cela
signifie que la transcendance est structure constitutive de la conscience ; c’est-à-dire que la
conscience naît portée sur un être qui n’est pas elle”63 . Isto significa, diz ainda Sartre, que a
consciência é “intuition révélante” de algo que não é ela, e que esta intuição não é uma
relação de conhecimento, mas de ser. A consciência só existe como revelação de algo e
implica “dans son être un être non conscient et transphénoménal” 64; ela existe apenas através
desta intuição revelante do ser, por uma relação que Sartre irá denominar, como veremos, de
negação interna, de modo que não é possível pensar uma subjetividade apartada desta relação
negativa. Por outro lado, o ser a partir do qual a consciência existe como “intuição revelante”
é o ser transfenomenal dos fenômenos que, não podendo ser imanente a consciência, deve ser
ele mesmo em-si. Neste aspecto Sartre se distancia de posições fundamentais de Husserl,
chegando a ser mesmo seu contraponto, diz Barbaras, uma vez que ele esvazia a consciência e
restitui ao objeto sua realidade: “Ainsi, Sartre oppose le vide de la conscience à la plénitude
impressionnelle des vécus, et la densité de l’en-soi au non-être de l’objet. Il attribue à la
conscience le manque par lequel Husserl définissait l’objet et à l’en-soi la plénitude par
laquelle Husserl caractérisait le subjectif”65.
Como vimos, a preocupação que motiva Sartre a elaborar as noções de ser do
fenômeno e do fenômeno de ser é a de escapar ao idealismo, ou seja, a de não reduzir a
existência das coisas ao conhecimento que se tem delas. Concomitantemente, para escapar de
61 EN, p. 27.
62 EN, p. 28.
63 EN, p. 28.
64 EN, p. 28. (grifo nosso)
65 BARBARAS, R. Désir et manque dans L’être et le néant: le désir manqué. In: ______ . (Org.) Sartre: désir et
um tipo de realismo ingênuo e para manter-se ainda sobre uma via fenomenológica, Sartre
estabelece que o ser do fenômenos, apesar de não vir a existência por causa da consciência
que o revela, é indissociável do fenômeno de ser. A consciência, por outro lado, só existe a
partir desta revelação. Mas isto não significa que ela seja originariamente conhecimento, pois
a relação evidenciada pela “prova ontológica” é uma relação de ser, constitutiva do próprio
modo de ser da consciência e não do seu modo de conhecer. O fenômeno de ser é o sentido do
ser do fenômeno, o qual é revelado e velado ao mesmo tempo. Ele caracteriza a maneira de
ser do ser em-si, que pode ganhar qualificações como passividade e atividade, por exemplo.
É por esta via finalmente que Sartre acredita poder ultrapassar também o realismo, na medida
em que o fenômeno de ser estabelece um “monismo do fenômeno” que comportaria
O problema do em-si
l’humanité européenne et la philosophie (Krisis). Édition eletronique: la Gaya Scienza, 2012, p. 31.
71 Ibid., p. 9.
72 Barbaras cita o seguinte trecho da Krisis: “tout étant se tient dans une telle corrélation avec les modes de
donnée qui lui appartiennent dans une expérience possible […] et tout étant possède ses modes de validation
ainsi que les modes de synthèses qui lui sont propres”. Apud BARBARAS, R. Désir et manque dans L’être et le
néant. p. 113.
!43
transcendente fosse concebido como algo fora desta relação com o subjetivo isto implicaria
uma transcendência sem aparecer que seria uma “contradiction phénoménologique” 73.
Resumidamente:
un étant quelconque ne peut être pensé comme tel que par référence à ses
modes de donnée subjectifs, à savoir du point de vue de sa corrélation avec
un sujet, ce qui signifie que l’apparaître est une dimension constitutive de
l’être. De même, l’être du sujet et donc de l’homme, en lequel cette
subjectivité advient, ne peut être pensé comme indépendamment de son
rapport à un étant apparaissant, ce qui revient à dire que la conscience est par
essence portée sur le monde, qu’elle est de part en part rapport à lui74.
73 Ibid.
74 BARBARAS, R. La perception, p. 44.
75 BARBARAS, R. Désir et manque dans L’être et le néant, p. 115.
!44
Diante destas constatações fica mais claro porque a concepção do ser em-si tal como
Sartre estabelece, principalmente na “Introdução”, é problemática. Sobretudo se levarmos em
conta o modo positivo, de certo modo “materialista”, que Sartre o descreve: “L’en-soi n’a pas
de secret : il est massif”; “il est pleine positivité”; ele é “rempli de lui-même”78. Mas como
Sartre chega a estas definições e qual o seu objetivo ao delimitar esta região ontológica desta
maneira? Na “Introdução” (VI. O ser em-si), o autor define três características desta região
ontológica que ele denomina de em-si (não necessariamente nesta ordem): 1) O ser é (L’être
est); 2) O ser é em-si (L’être est en-soi); 3) O ser é o que é (L’être est ce qu’il est). Qual o
ponto principal de cada uma delas?
1) O ser é
Esta primeira característica diz respeito a uma das ideias primordiais da filosofia de
Sartre: a contingência da existência. Vimos que a necessidade de postular a
transfenomenalidade do ser em-si faz parte do esforço sartriano, desde seus primeiros
trabalhos, de recusa do idealismo, isto é, de admitir que a existência de algo não possa ser
derivada ou reduzida ao seu conhecimento pelo sujeito. Do mesmo modo, a existência não é
76 Ibid., p. 135.
77 BARBARAS, R. Désir et manque dans L’être et le néant, p. 136.
78 EN, p. 32-33, passim.
!45
2) O ser é em-si
O ser é em-si significa que ele não é relação a si, como o ser para-si. Dito isto, a
denominação desta região de ser como “ser em-si” não é apropriada, visto que ela contém o
pronome reflexivo “si” na designação de um modo de ser que, ao contrário do ser para-si, não
possui nenhuma relação a si que normalmente o caracteriza 83. Sartre busca exprimir esta
ausência de relação a si através da ideia de densidade, daí suas metáforas excessivamente
materialistas, conforme citamos acima: “L’en-soi n’a pas de secret : il est massif.”, “[il est]
empâté de soi-même”; “il est pleine positivité”; “rempli de lui-même” 84. Tais metáforas
79 EN, p. 30.
80 Utilizamos a tradução de P. Perdigão na versão em português de L’Être et le Néant (O ser e o nada) para a
expressão “de trop”.
81 Este tema será desenvolvido na “Segunda parte”.
82 EN, p. 33. Veremos mais adiante, quando tratarmos do tema da contingência, que ambos os modos para-si e
em-si compartilham desta condição fundamental de existir sem fundamento, embora o para-si comporte uma
dimensão de fundação de sentidos.
83 Cf. EN, p. 112.
84 EN, p. 32-33, passim.
!46
3) O ser é o que é
85 GUENANCIA, P. “L’identité”. In: KAMBOUCHNER, D. (Org) Notions de philosophie, II. Paris: Gallimard,
2002.
86 Cf. EN, p. 32.
87 EN, p. 243.
88 EN, p. 113.
89 EN, p. 110.
90 GUENANCIA, P. op. cit., p. 563.
!47
si consigo mesmo acaba por acarretar uma ausência total de relação a si, um “rapport nul”91. É
neste sentido que Sartre caracteriza o em-si em oposição ao modo de ser do para-si, que é
relação a si. Tendo em vista o princípio de identidade, Sartre exprime esta oposição pelas
seguintes fórmulas: enquanto o em-si é o que é , o para-si é o que não é e não é o que é, ou
tem de ser seu ser. Estas fórmulas serão importantes para nossas análises posteriores. Neste
momento gostaríamos de ressaltar apenas que o princípio de identidade diz respeito à região
ontológica que não é consciente de seu próprio ser e por isso não comporta a negação
instaurada pela consciência. É por esta perspectiva que o em-si chega mesmo por vezes a ser
designado como inconsciente 92, como uma região que não seria admitida na esfera para-si,
que deve ser totalmente consciente de si. Esta última caracterização nos remete à observação
de Romano que diz que a definição do em-si é demasiado antropomórfica, sendo o negativo
de noções humanizadas. Como por exemplo quando Sartre afirma que o em-si não possui
nenhuma relação à alteridade, “car il fait comme si toute relation était de cet ordre, de sorte
que si la pierre est dépourvue de ce type de relation, alors elle est dépourvue de toute relation
en général” 93. Assim Romano conclui que, além de censurarmos Sartre de haver feito uma
oposição radical entre para-si e em-si, deve-se censurá-lo por não haver realmente
radicalizado a oposição e
d’avoir abouti ainsi à une ontologie anthropomorphique, et, pour ainsi dire,
“animiste”. On prête à l’En-soi une réflexivité, une conscience, une “relation
à l’autre”, mais pour les retirer aussitôt, on lui accorde d’une main ce qu’on
lui reprend de l’autre, et dans ce tour de passe-passe (pour employer un terme
que Sartre affectionne), on commence par placer ‘En-soi et le Pour-soi sur le
même plan pour affirmer ensuite leur “incommensurabilité” de principe94.
91 EN, p. 125.
92 Cf. EN, p. 121; p. 161.
93 ROMANO, C. L’ontologie sartrienne, p. 13.
94 Ibid., p. 16.
!48
Dissemos anteriormente que não é por acaso que L’Être et le Néant se inicia e termina
colocando em cena uma dificuldade, pois na medida em que Sartre necessita retomar o tema
do dualismo na “Conclusão”, ele não parece ter sido bem resolvido. É impressionante o fato
do autor terminar sua obra se perguntando ainda: “Qu’y a-t-il de commun, en effet, entre
l’être qui est ce qu’il est et l’être qui est ce qu’il n’est pas et qui n’est pas ce qu’il est?” 95.
Duas respostas são oferecidas a esta pergunta nesta altura do texto: 1) pensar o para-si sem o
em-si seria uma abstração, pois o para-si é um em-si que se nadifica96; 2) A união do para-si e
do em-si só se dá no plano ideal, dado que realmente ela é impossível: “S’il est impossible de
passer de la notion d’être-en-soi à celle d’être-pour-soi et des les réunir en un genre commun,
c’est que le passage de fait de l’un à l’autre et leur réunion ne se peuvent opérer”97. Sendo
assim, enquanto que na primeira resposta Sartre parece indicar um caminho interessante, mas
que talvez permita apenas a atenuar o dualismo98, na segunda ele acaba finamente por
arrematá-lo.
É inegável, portanto, que a problemática do dualismo atravessa L’Être et le Néant, de
modo que é possível compreender, a partir dela, uma série de dificuldades do texto. Nossa
hipótese é a de que estas dificuldades estão presentes na própria maneira de conceber o para-si
e o em-si. Abordamos anteriormente o estranhamento de parte dos comentadores no que diz
respeito à compreensão do modo de ser em-si, assim como a dificuldade do próprio Sartre, na
medida em que ele reforçava o caráter provisório das análises introdutórias, além de
classificar tal percurso como se tratando de uma “mauvaise perspective”99. Em seguida,
mostramos que há uma tendência de interpretar todas as análises do texto a partir deste quadro
inicial, tendência que reforça o dualismo. Para nós, no entanto, ao contrário do que poderia se
apresentar como uma consequência evidente do dualismo inicial, as análises posteriores sobre
os modos de ser que compõem L’Être et le Néant nos parecem muito mais complexas do que
este quadro dual poderia abranger. Isto porque, tendo em vista a dificuldade do próprio Sartre
em superar o dualismo, a chave principal para-si/em-si não dá conta exatamente de explicar
modos de ser que não se enquadram nas definições iniciais, seja porque eles se encontram
95 EN, p. 669.
96 Cf. EN, p. 665; p. 669.
97 EN, p. 671.
98 O que para Derrida resulta justamente no humanismo sartriano ao atribuir a totalidade do Ser ao para-si: “il va
de soi que cette unité métaphysique de l’être, comme totalité de l’en-soi et du pour-soi, c’est précisément l’unité
de la réalité-humaine en son projet”. DERRIDA, J. Les fins de l’homme. In: Marges de la philosophie. Paris:
Minuit, 1972, p. 137.
99 EN, p. 37.
!50
excluídos da oposição, seja porque os dois termos coexistem em um mesmo modo de ser,
contrariando os princípios da lógica aristotélica. A fim de exemplificar nossa posição, faremos
uma consideração prévia sobre as possíveis ambiguidades que impõem um limite ao
dualismo, sem com isso entrar em detalhes sobre as fórmulas e os exemplos que
apresentaremos neste momento, dado que estes serão aprofundados ao longo do trabalho.
100 Somente no terceiro capítulo da segunda parte de L’Être et le Néant, intitulado “A transcendência”, é que
Sartre esclarece o que entende por percepção.
101 EN, p. 29.
!51
estabelece ainda, de maneira bastante kantiana102, uma distinção entre objeto e ser em-si, de
modo a acrescentar elementos à dificuldade: “L’être est quelque chose que je ne peut saisir
dans son être, sauf comme phénomène a partir de l’objet qui est présenté. L’être est ce qui fait
que l’objet paraît” 103. De fato, em L’Être et le Néant encontramos a definição de objetidade
(objectité) como aquilo que se dá a partir de um tipo de negação denominada negação
interna, que é aquela que faz com que algo apareça como não sendo a consciência104. A
objetidade é, portanto, a maneira do em-si aparecer à consciência através da negação interna:
“C’est la négation interne qui révèle l’en-soi comme indépendant et c’est cette indépendance
qui constitue à l’en-soi son caractère de chose” 105. Porém, em outros momentos, o em-si é
empregado como sinônimo de coisa: “En un mot, le terme-origine de la négation interne, c’est
l’en-soi, la chose qui est là”106. Disto concluímos que ora o em-si é tomado como sinônimo de
coisa, ora ele é o ser da coisa que não se reduz à sua aparição objetiva. Definir o em-si não é
então uma tarefa fácil. O modo de ser em-si é certamente o modo de ser da objetivação de
algo, mas com isso concluir que o em-si é tudo que aparece como um objeto para a
consciência é um reducionismo, pois veremos que nem toda relação entre para-si e em-si é do
tipo sujeito-objeto, logo, o em-si não pode se restringir a este conceito. É o que observamos se
nos atentarmos para a definição sartriana do passado como ser em-si, por exemplo. Neste
caso, se retomarmos as metáforas demasiado materialistas que Sartre utilizava para se referir
ao em-si, como podemos aplicá-las ao passado? Como pode o passado ser definido como um
em-si se ele não consiste evidentemente numa realidade material? Por esta razão e em
oposição às metáforas materialistas, podemos dizer, juntamente com De Coorebyter, que
“l’en-soi ne correspond pas à la sphère ontique de la matière, à laquelle il faudrait opposer
102 Associação que ele busca, entretanto, evitar, na medida em que afirma na “Introdução” que a
transfenomenalidade do ser em-si não implica num mascaramento ou inacessibilidade de seu ser, mas apenas que
o ser não pode ser reduzido ao aparecer, dado que esta posição não supera o idealismo. É o que Jeanson procura
esclarecer quando afirma que “l’ontologie n’est pas un “nouménisme”, que l’en-soi n’est pas quelque fond
substantiel de l’objet, mais seulement le caractère d’être, fermé sur soi, plein de soi, inerte, de tout ce qui
apparaît”. JEANSON, F. Le problème moral et la pensée de Sartre, p. 150. De todo modo, Sartre parece instaurar
um realismo ao pressupor de algum modo uma matéria “bruta”. Quando questionado numa conferência em 1961
se, a seu ver, haveria um mundo antes dos homens e sem homens, ele responde: evidentemente. Obviamente ele
não se atinha ao conceito de “mundo” de L’Être et le Néant (que não é pensado independentemente da
consciência) em sua pronta resposta, mas sim ao fato de que o que existe não é criado pelo homem e nem por
Deus. Para afirmar este ponto, Sartre estabelece então uma diferença entre realidade e objetividade, a primeira
sendo independente da consciência; a segunda sendo uma relação de objetificação do real por uma subjetividade.
QS, p. 164-174. Ao fazer isso, Sartre reforça o argumento dos críticos quanto ao seu realismo ingênuo.
103 CSCS, p. 145.
104 Cf. EN, p. 312.
105 EN, p. 551.
106 EN, p. 212.
!52
quelque forme d’esprit : il s’agit d’un mode d’être fondamental qui échappe à ce dualisme
classique, comme en témoigne le fait que le passé relève de l’en-soi alors qu’il est
l’immatériel par excellence”107. Nota-se assim que tipos diferentes de modos objetivos são
colocados sob esta mesma rubrica em-si. No caso do passado, ele só pode ser objetificado se
tomado como tema de reflexão, enquanto que o passado como estrutura ek-stática do para-si
não pode ser objetificado e nem conhecido, ele apenas assombra (hante) o para-si, como um
“fantasma de em-si”. Assim, poderíamos fazer desde já uma distinção de planos entre o modo
em-si do objeto e o modo em-si espectral do passado, o qual seria um modo já atravessado
pela negatividade e que não se enquadraria mais na “plena positividade” da descrição inicial
de tal tipo de ser. O próprio Sartre parece sentir a dificuldade nas definições quando ele diz ao
mesmo tempo que “le passé que j’étais est ce qu’il est ; c’est un en-soi comme les choses du
monde”108, e que em certo sentido o passado é “à la fois pour-soi et en-soi [il] ressemble à la
valeur ou soi”109. Do mesmo modo, Sartre define normalmente o valor como um “em-si-para-
si” (como comentamos acima), mas por vezes ele atribui o Si ao valor e este ao em-si, como
neste trecho: “Ce que le pour-soi manque, c’est le soi - ou soi-même comme en-soi” 110; “[la
valeur] est comme l’en-soi absent qui hante l’être pour-soi” 111; para em seguida acrescentar:
“ll ne faudrait pas confondre, toutefois, cet en-soi manqué avec celui de la facticité. L’en-soi
de la facticité, dans son échec à se fonder, s’est résorbé en pure présence au monde du pour-
soi. L’en-soi manqué, au contraire, est pure absence”112. Sem entrar nos detalhes que estão em
jogo nesta afirmação, pois iremos explicitá-los ao longo de nosso trabalho, podemos apenas
levantar a questão: há diferença entre modos de ser em-si? Como se dão estas diferenças sob
uma mesma definição? Sartre irá apresentar ainda outros modos de ser que não são
exatamente “em-si”, mas são “sombras em-si”, “nada em-si”, “fantasma de em-si”. Todos
estes pertencem a uma mesma categoria? Eles podem realmente ser compreendidos se
mantivermos um dualismo rígido?
Tomemos agora o modo de ser para-si. O para-si é designado como o modo de ser da
consciência. O que isto significa em termos sartrianos? Que o para-si é um ser em-si que foi
113 Em um dado momento, Sartre chega a identificar “para-si” e “vivência”: “Concrètement, chaque pour-soi
(Erlebnis) particulier manque d’une certaine réalité particulière et concrète dont l’assimilation synthétique le
transformerait en soi”. EN, p. 132.
!54
síntese impossível das duas regiões de modo que desde já vislumbramos uma região que não
se enquadra exatamente no dualismo.
O limite do quadro dualista fica ainda mais evidente se tomarmos como base a região
ontológica “para-outro”. A respeito do “ego-para-outro”, por exemplo, Sartre chega a afirmar
que seu modo de ser não é em-si nem para-si:
Pourtant cette limite hors d’atteinte qu’est mon Moi-objet n’est pas idéale :
c’est un être réel. Cet être n’est point en-soi car il ne s’est pas produit dans la
pure extériorité d’indifférence ; mais il n’est pas non plus pour-soi, car il
n’est pas l’être que j’ai à être en me néantisant. Il est précisément mon être-
pour-autrui, cet être écartelé entre deux négations d’origine opposée et de
sens inverse114 .
Nem em-si, nem para-si, o para-outro ultrapassa o dualismo 115? Entrevemos assim a
complexidade do problema a partir de uma série de ambiguidades que indicam que se nos
ativermos a um dualismo rígido como base da ontologia sartriana, este nos limita na tarefa de
compreendê-la em sua complexidade, na medida em que encontramos em tal ontologia uma
multiplicidade de regiões ontológicas que não se restringem ao dualismo inicialmente
esboçado. Além disso, parece-nos que os termos para-si e em-si são utilizados em contextos
diversos para designar realidades diferentes. Em outras palavras, se nos restringirmos à leitura
clássica dualista, reduziremos toda complexidade dos modos de ser da ontologia sartriana a
combinações de uma mesma base que, como vimos, não é tão segura assim; se, ao contrário,
não nos apoiarmos nesta base inicial como um verdadeiro dualismo rígido, visto que ela
mesma é mal definida e cambiante, torna-se possível realizar outra leitura capaz de apreender
a multiplicidade de modos de ser. Esta outra perspectiva é justamente a hantologie. Porém, em
primeiro lugar, devemos compreender com mais detalhes a crítica que se estabeleceu ao
dualismo sartriano através de sua vertente principal, isto é, devemos nos confrontar com os
problemas levantados por Merleau-Ponty.
No cenário das críticas à filosofia sartriana encontramos muitas vezes uma resistência
imediata a tal pensamento, devido em grande medida às posições radicais do próprio Sartre:
sua rejeição do inconsciente, seu clamor excessivo pela liberdade e a consequente a primazia
da escolha, sua dicotomia insuperável entre os modos de ser para-si e em-si. No plano
político, estas posições também foram constantemente atacadas, principalmente por católicos,
escritores, comunistas, anticomunistas e, evidentemente, pela intelligentsia da direita
francesa. Em meio a este grupo heterogêneo, Merleau-Ponty se posicionou ora ao lado, ora
em oposição a Sartre. No plano estritamente filosófico sua contraposição no entanto é mais
constante, de modo que ela funcionou como ferramenta de construção de seu próprio
pensamento. Leitor atento, Merleau-Ponty não aderiu aos ataques imediatos, como sua própria
concepção de temporalidade exigia. Pelo contrário, ele se concentrou na tarefa de uma longa e
ampla discussão com uma filosofia que por vezes parecia se confundir com a sua própria,
embora revelasse ao mesmo tempo uma verdadeira distância. Devido ao fato de suas
argumentações retomarem de tal modo as premissas mais básicas da filosofia de Sartre,
sobretudo as de L’Être et le Néant, estas nos permitem realizar uma releitura minuciosa desta
obra a partir de sua crítica, isto é, diante de suas oposições aos pontos fundamentais da
ontologia sartriana, voltar a esta obra passou a significar um refinamento nas análises, uma
reconsideração dos problemas de modo a enxergar nela não somente os impasses que a
condenam, mas uma verdadeira “philosophie à discuter”. Neste sentido, estamos de acordo
!56
com Jean Bourgault quando ele diz que “lire Sartre à partir des critiques de Merleau-Ponty
permet-il bien souvent de souligner l’originalité et la profondeur de la position sartrienne” 1.
No presente capítulo, realizaremos um breve percurso de apresentação da crítica de
Merleau-Ponty a Sartre. Para tal, destacamos três períodos distintos, levando em conta
acontecimentos históricos e políticos que definem os caminhos dos dois filósofos e as suas
obras principais. Entretanto, nos concentraremos sobretudo na crítica desenvolvida em Le
Visible et l’Invisible por acreditarmos que ela engloba as anteriores e apresenta sua forma
mais bem elaborada.
L’Imagination, ele faz um compte rendu para o Journal de psychologie normal et pathologique (vol. 33, n. 9-10,
novembre-décembre 1936, p. 756-761), onde fala positivamente do livro apensar de considerar as críticas a
Bergson muito severas. CONTAT, M.; RYBALKA, M. Les écrits de Sartre. Para uma boa apresentação da
relação de Sartre e Merleau-Ponty, assim como da crítica deste último a ontologia sartriana, ver: CABESTAN, P.
L’être et la conscience: recherches sur la psychologie et l’ontophénoménologie sartriennes. Bruxelles: Ousia,
2004, p. 370-402.
!57
intelectuais, da fundação da revista Les Temps Modernes, Sartre como diretor, Merleau-Ponty
como diretor político e editorialista. No plano político, entretanto, foi Merleau-Ponty o “guia”
no caminho sartriano em direção ao marxismo, principalmente quando este último lê
Humanisme et Terreur4, de Merleau-Ponty. Tais acontecimentos, publicações e orientações
filosóficas marcam o primeiro período da relação entre Sartre e Merleau-Ponty, momento de
verdadeira amizade, intensa troca intelectual e afinidade política, embora cada um delimitasse
seu caminho individual. Sartre resume esta época da seguinte maneira:
Este trecho mostra bem a ambiguidade presente na relação entre Sartre e Merleau-
Ponty, duas filosofias que se fazem em sintonia e ao mesmo tempo em oposição. A distância
entre os dois passa a ficar mais acentuada, sobretudo no plano político, a partir de 1950, na
época da Guerra da Coréia. Em 1952, Merleau-Ponty ainda dedica a Sartre o belo texto Le
langage indirecte et le voix du silence6, mas a tensão política aumenta, levando à ruptura em
19537, no mesmo momento em que Merleau-Ponty assume a cadeira de filosofia no Collège
de France. Sartre relata o episódio da ruptura longamente em Merleau-Ponty8, texto
189-280). Este texto foi publicado em 1961, após a morte de Merleau-Ponty, no número especial de Les Temps
Modernes intitulado Merleau-Ponty vivant. Neste mesmo número, Jean Hyppolite toma para si a posição de
Merleau-Ponty contra a “filosofia do cogito sartriana”. Cf. CONTAT, M; RYBALKA, M. Les écrits de Sartre, p.
370. Ainda sobre a ruptura e o contexto político internacional no qual esta se situa, ver o excelente artigo de
Marilena Chauí “Filosofia e engajamento: em torno das cartas de ruptura entre Merleau-Ponty e Sartre.”
Disponível em: https://bibliotecadafilo.files.wordpress.com/2013/10/chaui-marilena-filosofia-e-engajamento-em-
torno-das-cartas-de-ruptura-entre-merleau-ponty-e-sartre.pdf. Este artigo, assim como o texto Merleau-Ponty de
Sartre, nos inspirou a pensar a relação de ambos em três tempos distintos. Sobre a ruptura ver ainda a introdução
de François Ewald às cartas de Merleau-Ponty e Sartre em Parcours deux (P.II). Ewald acrescenta ainda outras
referências: “Sur le context, on consultera, Annie Cohen-Solal, Sartre 1905-1980, Gallimard, 1985, p. 447-449;
coll, “Folio essais”, 116, 1991, p. 580-582 et p. 727-729; nouvelle édition, avec un postface inédit, 353, 1999,
même pagination. [édition Gallimard 1985, 447-449] -Michel-Antoine Burnier, “On ne peut pas être sartrien, on
ne peut pas être anti-sartrien”, Les temps modernes, 531-533, octobre-décembre 1990, Témoins de Sartre, vol. 2,
p. 906-950. -Myriam Revault d’Allonnes, “Le doute de Merleau-Ponty”, idem, vol. 1, p. 551-568, - Simone de
Beauvoir, La force des choses , Gallimard, 1963, p. 281-282 et p. 301-313; coll. “Folio”, 2 vol., p. 764-765,
1972, I, p. 357 et II, p. 9-25. E ainda Michel Contat et Michel Ribalka, Les écrits de Sartre, Gallimard, 1970, p.
247-248, p. 264-265 e p. 368-370, [-Denis Bertholet, Sartre, Plon, 2000, p.335,354,363-364,389,411. […]”.
8 S.IV, p. 189-280. (Cf. nota anterior)
!58
publicado após a morte repentina de seu amigo. Resumidamente, esta discordância se deu em
razão de uma defesa quase incondicional da parte Sartre - até então considerado o porta-voz
da esquerda não comunista - do Partido Comunista Francês, logo após a prisão do secretário
Jacques Duclos em uma manifestação contra a vinda do general americano Ridgway,
representante de uma nova forma de guerra que contava com o uso de armas químicas9. Nas
palavras de Sartre, que estava em Roma ao saber da notícia, este fato o levou a uma
verdadeira “conversão” e à necessidade urgente de se posicionar a favor do Partido, o que
resultou na volta à Paris para escrever passionalmente o primeiro dos três artigos intitulados
Les Communistes et la paix 10. Este posicionamento não se deu sem consequências e vem a
resultar na ruptura com Merleau-Ponty, que deixa a redação de Les Temps Modernes. Em um
primeiro momento, foi Claude Lefort que iniciou o debate, publicando na mesma revista o
texto Le Marxisme de Sartre, seguido por Réponse à Claude Lefort da parte de Sartre,
finalizando com De la réponse à la question de Lefort. A acalorada discussão não deixaria
intacto Merleau-Ponty, pois “tous les coups que nous nous portâmes, il les reçut”11 , dizia
Sartre; o que, somado a outras divergências que podem ser entrevistas nas cartas que ambos
trocaram neste ano de 1953, fez com que a conjuntura dos acontecimentos realizasse a
ruptura12. É neste contexto que Merleau-Ponty escreve finalmente o texto em que ataca
frontalmente o pensamento político e filosófico de Sartre: o extenso Sartre et l’ultra-
bolchevisme em Les Aventures de la dialectique, publicado em 1955. A relação entre filosofia
e política é tema da discórdia entre os dois, em razão de uma conferência em que Merleau-
Ponty critica Sartre publicamente, dando início a uma discussão que se prolonga nas cartas em
que Sartre escreve: “que tu [Merleau-Ponty] te retires de la politique (enfin de ce que nous,
intellectuels, appelons politique), que tu préfères te consacrer à tes recherches philosophiques,
129-169).
!59
c’est un acte à la fois légitime et injustifiable”13. Merleau-Ponty não aceita esta dicotomia
entre filosofia e política e por isso elabora uma crítica à posição política de Sartre a partir das
premissas filosóficas de L’Être et le Néant no texto que citamos de Les Aventures de la
dialectique. É Simone de Beauvoir desta vez quem responde, ainda em 1955, aos ataques
filosóficos-políticos merleau-pontyanos em Merleau-Ponty et le pseudo-sartrisme, sobre o
qual falaremos mais adiante. Este texto de alguma forma encerra o debate público e explícito
em torno deste segundo período14.
Por fim, a última fase que destacamos aqui corresponde aos escritos finais de Merleau-
Ponty, logo, anteriores a sua morte em 1961, os quais incluem a crítica derradeira merleau-
pontyana a Sartre em Le Visible et l’Invisible. Embora este período ateste, na opinião de
Sartre, uma sutil reaproximação entre eles: “En publiant nos dissentiments, il semblait que
nous dussions les rendre irrémédiables. Tout au contraire, au moment que l’amitié semblait
morte, elle commença insensiblement de refleurir”15. É neste tom que encontramos, nas
últimas páginas do “Prefácio” de Signes em 1960, uma longa discussão em torno do prefácio
de Sartre a Aden Arabie de Paul Nizan e da relação entre eles, em que Merleau-Ponty
confessa que “ll n’était […] pas facile d’être son ami [de Sartre]”16, mas ao mesmo tempo
recomendando a leitura dos escritos de Sartre17. De todo modo, a distância das posições
filosóficas é nesta época evidente e se deixa notar por uma força explícita de oposição entre
aqueles que compartilharam uma vida, algo que podemos pressentir na expressão do último
encontro, narrado por Sartre: “Je revois son dernier visage nocturne - nous nous quittions, rue
Claude-Bernard - déçu, soudain fermé; il reste en moi, plaie douloureuse, infectée par le
regret, le remords, un peu de rancœur; en elle-même changée, notre amitié s’y résume pour
toujours”18.
13 P.II, p. 134.
14 Em 1956 ocorre um debate público entre os dois filósofos, que se encontravam em Veneza por ocasião de um
colóquio organizado pela Société européenne de Culture. Segundo Contat & Rybalka, a transcrição deste debate
é o único registro textual de uma discussão entre os dois. Para os extratos do texto ver: CONTAT, M.;
RYBALKA, M. Les écrits de Sartre, p. 300-304.
15 S.IV, p. 279.
16 S, p. 45.
17 Cf. S, p. 60.
18 S.IV, p. 286.
!60
Primeiro período
As duas grandes obras que marcam este primeiro período da relação entre Sartre e
Merleau-Ponty são, sem dúvida, L’Être et le Néant e Phénoménologie de la perception.
Conforme citamos em nota, Merleau-Ponty já acompanhava atentamente o trabalho filosófico
inicial de Sartre, que data de 1936-37, com as publicações de L’Imagination e La
Transcendance de l’Ego. A sua grande obra sobre o estudo da percepção vem a público dois
!61
anos após a ontologia de Sartre, revelando já uma distância em relação a alguns pontos
principais. Desde este primeiro período, Merleau-Ponty faz uma observação que irá perdurar
como ponto de base de sua crítica a Sartre até o fim: no texto La querelle de l’existentialisme,
ainda em 1945, Merleau-Ponty afirmava sobre L’Être et le Néant que “le livre reste trop
exclusivement antithétique : l’antithèse de ma vue sur moi-même et de la vue d’autrui sur
moi, l’antithèse du pour soi et de l’en soi font souvent figure d’alternatives, au lieu d’être
décrites comme le lien vivant de l’un des termes à l’autre et comme leur communication” 19.
No entanto, este texto é, na verdade, uma defesa de Sartre diante das críticas dos católicos
(principalmente Gabriel Marcel), que o acusavam de propor uma filosofia materialista e
também da acusação de idealismo20 por parte de marxistas, como Henri Lefebvre21 . Neste
texto, Merleau-Ponty intercede a favor de Sartre em relação a posições filosóficas que ele
mesmo irá criticar futuramente, fato que pode surpreender o leitor familiarizado com as
argumentações de Le Visible et l’Invisible que se caracterizam por ser uma oposição à
concepção de negatividade da ontologia sartriana, como por exemplo: “L’Être et le Néant
montre d’abord que le sujet est liberté, absence, négativité, et qu’en ce sens le néant est. Mais
cela veut dire aussi que le sujet n’est que néant, qu’il a besoin d’être porté dans l’être, qu’il
n’est pensable que sur le fond du monde, et enfin qu’il se nourrit de l’être comme les ombres,
dans Homère, se nourrissent du sang des vivants”22 ; e ainda: “Dans la philosophie de Sartre,
écrit un autre critique « on a d’abord éteint l’esprit »23. C’est tout le contraire : on l’a mis
partout, parce que nous ne sommes pas esprit et corps, conscience en face du monde, mais
esprit incarné, être-au-monde”24 . Posteriormente, Merleau-Ponty irá repetidas vezes afirmar
que a concepção de liberdade em Sartre é abstrata, pois se trata de uma liberdade
desencarnada e “sem situação”, enquanto que nesta época ele o defende exatamente destas
mesmas acusações: a seu ver, apesar de L’Être et le Néant não fornecer uma “teoria do
social”, “il pose le problème des relations réciproques entre la conscience et le monde social
de la manière la plus vigoureuse en refusant d’admettre une liberté sans situation et en faisant
du sujet, non pas certes un reflet comme le veut l’épiphénoménisme, mais un « reflet-
refletant » comme le veut le marxisme”25 , embora Merleau-Ponty acrescente que falta a Sartre
uma “teoria da passividade”. A partir desta observação, Merleau-Ponty parece indicar o
caminho que leva o próprio Sartre a escrever quase vinte anos mais tarde o primeiro tomo da
Critique de la Raison dialectique, obra em que o autor procura integrar existencialismo e
marxismo. Neste primeiro período, que é o auge do existencialismo como movimento
filosófico, político e cultural, Merleau-Ponty se encontra, na verdade, muito próximo a Sartre.
Ambos desenvolvem um pensamento da existência como movimento de engajamento no
mundo e ambos procuram reformular o cogito cartesiano reflexivo, retomando um nível de
consciência de si pré-reflexivo, como veremos logo a seguir. “Aucun homme ne peut refuser
le cogito et nier la conscience, sous peine de ne plus savoir ce qu’il dit et de renoncer à tout
énoncé, même matérialiste26”, diz a este respeito Merleau-Ponty, numa frase que poderia ser
assinada por Sartre.
Em 1947, Merleau-Ponty escreve novamente em defesa de seu amigo, contra os
mesmos opositores e mais alguns escritores, no texto Jean-Paul Sartre: un auteur scandaleux.
Desta vez, ele o faz esclarecendo o sentido em que se pode falar de um humanismo a partir da
filosofia sartriana e qual o verdadeiro alcance de sua teoria do outro. A questão da
intersubjetividade é, contudo, um dos pontos de profundo desacordo entre os dois autores,
mas nesta época Merleau-Ponty quer enfatizar que, através da teoria do olhar, Sartre mostra
uma dimensão inalienável de nossa vida, enquanto uma dimensão de nós mesmos. A respeito
das relações intersubjetivas infernais da atmosfera sartriana, colocada em cena pela peça Huis
Clos, Merleau-Ponty esclarece que “« l’enfer, c’est les autres »27 ne veut pas dire: « Le ciel,
c’est moi ». Si les autres sont l’instrument de notre supplice, c’est parce qu’ils sont d’abord
indispensables à notre salut. Nous sommes mêlés à eux de telle façon qu’il nous faut, tant bien
que mal, établir l’ordre dans ce chaos” 28. Além disso, ele prossegue dizendo que Sartre está
longe de pensar um humanismo naturalista ou religioso e que se ele (Sartre) se reclama nesta
época de um humanismo - visto que ele mesmo critica esta ideia em La Nausée - é no sentido
de uma liberdade que “dévore l’homme constitué” 29, que presume, portanto, que o ser
humano está por se fazer.
25 QE, p. 140.
26 QE, p. 138.
27 Em referência à famosa frase proclamada pelo personagem Garcin em Huis Clos.
28 AS, p. 74.
29 AS, p. 79.
!63
30 Php, p. 430.
31 Php, p. 441.
32 Php, p. 443.
33 Php, p. 440.
!64
34 Php, p. 449-50.
35 PP, p. 34.
36 Php, p. 447.
37 Php, p. 423.
38 Cf. PP, p. 40-1.
39 MOUTINHO, L.D. Tempo e sujeito. O transcendental e o empírico na fenomenologia de Merleau-Ponty. Dois
dessous de ce que je connais, mes champs sensoriels, mes complicités primitives avec le
monde”40, diz Merleau-Ponty.
2 - Em segundo lugar, Merleau-Ponty reprova a concepção sartriana de uma liberdade
“sans racines”41 e superpotente. Deste pressuposto fundamental derivam os problemas de se
pensar um sujeito como locus de criação absoluta e a consequente negligência da sua
dimensão de passividade, constitutiva da própria atividade. Ao definir a liberdade como
consciência não substancial, Sartre atribui a ela um “pouvoir démesuré d’évasion”42 , o qual
não encontra limites. Deste modo, cai por terra não somente a possibilidade de se pensar a
relação da consciência com o mundo através de relações de causalidade - o que Merleau-
Ponty estaria bem de acordo - mas também as relações de motivação, isto é, não somente a
consciência não pode encontrar nenhuma causa para seu agir como também nenhuma
motivação efetiva, pois mesmo as motivações surgem da liberdade, que é aquilo que lhes dá
força, de maneira que não há nada que “pese” sobre uma decisão 43. Em poucas palavras, a
liberdade não encontra barreiras pois é somente através dela que os obstáculos existem e que
as motivações ganham força. As qualidades que um sujeito livre pode adquirir (por exemplo,
de feio, bonito, doente, etc..) não atingem a liberdade, visto que esta dimensão de objetividade
é sempre para-outrem e, mais uma vez, não limitam a liberdade já que ela não pode ser
determinada de fora e não pode ser atenuada44. Consequentemente, a liberdade é “égale dans
toutes nos actions”45 e todas as dimensões da existência encontram-se sob seu poder, inclusive
os sentidos e os valores. Em outros termos, a liberdade é produção de sentido e de valores
absoluta, revelando-se como “pouvoir universel de Sinngebung [doação de sentido]” 46 ativo,
unilateral e centrífugo. Por não admitir uma esfera de passividade, a liberdade se dá como
atividade pura e criadora, sem limites nem obstáculos. Enquanto Sartre pensa a passividade
como um agir causal das coisas sobre a liberdade - o que aos seus olhos é impossível - para
Merleau-Ponty ela consiste num “investissement, un être en situation, avant lequel nous
n’existons pas, que nous recommençons perpétuellement et qui est constitutif de nous-
même”47. Por não admitir esta dimensão passiva, Sartre recai na abstração do intelectualismo
40 Php, p. 487.
41 Php, p. 520.
42 Php, p. 496.
43 Php, p. 489.
44 Php, p. 498.
45 Php, p. 500.
46 Php, p. 502.
47 Php, p. 490.
!66
ao neglicenciar um “sol de coexistence”48 , isto é, ele abstrai todos os aspectos da situação que,
ao invés de serem considerados como inerência mesma da liberdade ao mundo, são vistos
como produto de uma decisão, de uma escolha fundamental, como se fosse possível, por
exemplo, “faire de la conscience de classe le résultat d’une décision et d’un choix”49. O nível
da fenomenalidade é aquele que não se restringe a alternativa do em-si e do para-si, continua
Merleau-Ponty, mas permite a ambiguidade que abrange os dois termos: “Il est donc bien vrai
qu’il n’y a pas d’obstacles en soi, mais le moi qui les qualifie comme tels n’est pas un sujet
acosmique, il se précède lui-même auprès des choses pour leur donner figure de choses” 50, e
ainda: “Il nous faut remettre en question l’alternative du pour soi et de l’en soi qui rejetait les
« sens » au monde des objets et dégageait la subjectivité comme non-être absolu de toute
inhérence corporelle”51. Esta ambiguidade é temporal e escapa à liberdade compreendida
como poder absoluto de escolha e criação. Tal concepção de liberdade, ao negligenciar a
passividade e o solo de coexistência só pode ser compreendida como “sem raízes” e, portanto,
como criação ex nihilo, o que pressupõe, na verdade, uma temporalidade do instante. Ora, se
cada momento é criação ex nihilo e escolha absoluta, cada momento anterior é desfeito para
surgir o posterior que se dá “sem raízes”. Consequentemente, não importa o fazer da
liberdade, visto que ela é desde sempre garantida, como “notre état de nature” 52, um dom,
uma natureza de não haver nenhuma natureza. Esta liberdade não é engajada, dado que “l’idée
de situation exclut la liberté absolue à l’origine de nos engagements”53, pois se trata de uma
liberdade que “sait bien que l’instant suivant la trouvera, de toutes manières, aussi libre, aussi
peu fixée”54. Para Merleau-Ponty, ao contrário, “il faut donc que chaque instant ne soit pas un
monde fermé, qu’un instant puisse engager les suivants, que, la décision une fois prise et
l’action commencée, je dispose d’un acquis, je profite de mon élan, je sois incliné à
poursuivre, il faut qu’il y ait une pente de l’esprit”55. Isto é possível através do pensamento da
ambiguidade que admite passividade e atividade e não uma exacerbação da atividade pura e a
48 Php, p. 510.
49 Php, p. 510.
50 Php, p. 504.
51 Php, p. 258.
52 Php, p. 500.
53 Php, p. 519.
54 Php, p. 500.
55 Php, p. 500-1.
!67
exclusão da passividade: “Il n’y a donc jamais déterminisme et jamais choix absolu, jamais je
ne suis chose et jamais conscience nue” 56.
3 - O caráter “trop anti-thétique” que Merleau-Ponty identifica em L’Être et le Néant
resulta em consequências maiores para se pensar a intersubjetividade. A divisão sartriana entre
as dimensões para-si e para-outro faz com que todos os atributos positivos do sujeito se
restrinjam a sua esfera de exterioridade, a qual só aparece através da mediação do outro,
radicalizando a divisão mesma entre exterioridade e interioridade. Se este princípio se
sustenta, Merleau-Ponty se pergunta, já nesta época, como é possível então haver experiência
de um alter-ego. Pois, para que haja reconhecimento do outro, esta dimensão para-outro não
pode ser excluída da dimensão para-si, ao contrário, ela deve inerente a esta dimensão de
maneira que não há experiência “pura” de si mesmo. Logo, para Merleau-Ponty, “il faut bien
que mon expérience me donne en quelque manière autrui, puisque, si elle ne le faisait pas, je
ne parlerais pas même de solitude et je ne pourrais pas même déclarer autrui inaccessible” 57.
A subjetividade transcendental não é então “pura”, ela é revelação intersubjetiva de si e do
outro, ela é solo social anterior a qualquer objetivação. Neste ponto a crítica reencontra o
problema da transparência: “L’évidence d’autrui est possible parce que je ne suis pas
transparent pour moi-même et que ma subjectivité traîne après elle son corps”58 . A
experiência do outro, pensada a partir deste solo originário, não pode ser portanto concebida
através de relações de objetivação realizadas pelo olhar, dado que o outro não aparece ao
para-si primordialmente como objeto uma vez que a experiência é corpo perceptivo, cuja
manifestação é um comportamento. Nas palavras de Merleau-Ponty: “si le corps d’autrui n’est
pas un objet pour moi, ni le mien pour lui, s’ils sont des comportements, la position d’autrui
ne me réduit pas à la condition d’objet dans son champ, ma perception d’autrui ne le réduit
pas à la condition d’objet dans mon champ”59 . Apreender o outro como objeto é despi-lo desta
manifestação originária e pré-objetiva ao observar suas ações “comme celles d’un insecte” 60.
A revelação do outro não se restringe à descoberta de minha “transcendência-transcendida”,
como se quer Sartre, “mais qu’il dise un mot, ou seulement qu’il ait un geste d’impatience, et
56 Php, p. 518.
57 Php, p. 417.
58 Php, p. 410.
59 Php, p. 410.
60 Php, p. 419.
!68
déjà il cesse de me transcender : c’est donc là sa voix, ce sont là ses pensées, voilà donc le
domaine que je croyais inaccessible”61.
Outro problema se coloca ainda a respeito da intersubjetividade com relação ao poder
de livre doação de sentido da liberdade. Se a liberdade constitui o mundo, isto é, se ela é pura
atividade de doação de sentidos, o olhar do outro que incide sobre este poder, por ser ele
mesmo fonte de constituição, inaugura uma disputa pela criação de mundo. Este cenário é o
de um sujeito solipsista, dado que cada um é sempre o único consituínte que disputa a redução
do outro a um objeto de seu mundo. Por esta razão, mais uma vez, ao afirmar que “la position
d’autrui ne me réduit pas à la condition d’objet dans son champ, ma perception d’autrui ne le
réduit pas à la condition d’objet dans mon champ”62, Merleau-Ponty se distancia radicalmente
da posição sartriana de “luta de consciências” sobre a natureza da relação com o outro.
Segundo período
61Php, p. 419.
62Php, p. 410.
63Apesar disso, é curioso notar que Merleau-Ponty não cita textualmente L’Être et le Néant em nenhum
momento. Todas as citações que encontramos neste texto são retiradas dos três artigos Les Communistes et la
paix e de Réponse à Lefort, além de uma breve alusão a L’Imaginaire e a La Transcendance de l’Ego.
!69
64 P.II, p. 164.
65 P.II, p. 161.
66 P.II, p. 163-4.
67 AD, p. 142.
68 AD, p. 143.
69 AD, p. 227.
!70
“terrorista”70. Eis que assim a “filosofia do sujeito” sartriana justifica as ações do PC como
aquelas de um “sujeito puro”: “L’autorité absolue du Parti est la pureté du sujet transcendantal
incorporé de force au monde”71. Deste modo, tal filosofia não opera uma ação efetiva no
campo político - daí a crítica ao seu “engajamento”-, mas resulta numa contemplação das
ações comunistas; ela se limita a ser um pensamento fechado que “n’est pas susceptible de
démenti”72, deixando intactos os princípios da ação pura. Pensar o Partido ou seus militantes
através das premissas da “ação pura” é ainda pensar a liberdade radical “sem raízes” já
criticada na Phénoménologie de la perception, visto que é ela - que até então era poder de
desvelamento - que, embora se pronuncie neste momento sob o signo da práxis, permanece
sendo “le pouvoir magique que nous avons de faire et de nous faire quoi que ce soit”73. A ação
pura, sendo liberdade radical, não comporta nuances (a liberdade é total ou não é), ela “est
donc dans toutes les actions et dans aucune, jamais compromise, jamais perdue, jamais
sauvée, toujours égale à elle-même”74 . Logo, o poder de fazer se equivale ao de não fazer,
dado que antes e depois da escolha ele resta o mesmo - a “distance zéro”75 de seus possíveis -,
de modo que a própria escolha serve somente de atestação a este poder virtual de fazer ou não
e por isso trata-se de uma liberdade de julgamento que não se compromete verdadeiramente e
se limita à contemplação. A filosofia da liberdade radical é, portanto, a filosofia da ação pura.
Merleau-Ponty encontra aqui o elo entre a atual posição política sartriana e suas bases
filosóficas anteriores, no sentido de que “Sartre a toujours pensé que rien ne pouvait être
cause d’un acte de conscience”76. Mesmo se ele admite motivos e características do meio
social como situação do para-si, ele os reúne somente em aparência:
Le paradoxe apparent de son œuvre est qu’elle l’a rendu célèbre en décrivant
un milieu entre la conscience et les choses, pesant comme les choses et
fascinant pour la conscience, - la racine dans La Nausée, le visqueux ou la
situation dans L’Être et le Néant, ici le monde social, - et que pourtant sa
pensée est en rébellion contre ce milieu, n’y trouve qu’une invitation à passer
outre, à recommencer ex nihilo tout ce monde écœurant.77
70 AD, p. 139.
71 AD, p. 199.
72 AD, p. 271.
73 AD, p. 185; Cf. p. 218.
74 AD, p. 264.
75 AD, p. 185.
76 AD, p. 150.
77 AD, p. 192.
!71
Sendo puro desvelamento e criação ex nihilo a ação pura impede a compreensão dos
acontecimentos como algo que se confirma na medida em que se avança, como é o caso do
movimento dialético. “Un action qui soit un dévoilement, un dévoilement qui soit une action,
bref une dialectique, voilà ce que Sartre ne veut pas considérer”78, conclui Merleau-Ponty ao
evidenciar que, para Sartre, a ação se atém a pontos de vista imediatos e isolados. Por esta
razão, a filosofia da ação pura - que representa a noção de engajamento sartriano 79 para
Merleau-Ponty - pressupõe uma temporalidade do instante, no interior da qual os
acontecimentos são compreendidos como experiências de intenções particulares e diante dos
quais é preciso fazer escolhas instantâneas para serem resolvidas em sua urgência. A simpatia
de Sartre com os comunistas se apoia nesta temporalidade de “flashes” 80, ao se justificar pelo
modo de intervenções instantâneas no mundo, o que acaba por coincidir com um fazer teórico
e não realmente com uma práxis característica do movimento dialético. Por isso Merleau-
Ponty conclui que, para Sartre, a dialética “a toujours été une illusion”81. Não há dialética,
além disso, porque nesta filosofia a consciência é “coextensive au monde”82 e não uma
transcendência que admite certa distância das coisas revelando seu grau de opacidade; a
consciência encontra as coisas imediatamente em sua transparência. A crítica à ação pura é
assim, no fundo, uma crítica ao cogito enquanto um aparecer imediato de algo à consciência e
seu aparecer a si mesma. Pensar a dimensão de opacidade é pensar a mediação no sentido de
que “c’est toujours à travers l’épaisseur d’un champ d’existence que se fait ma présentation à
moi-même”83 e é neste sentido que a crítica da transparência da consciência reencontra a
necessidade da mediação e da dialética, impossibilitadas pela ação pura.
Há ainda um aspecto fundamental ligado a esta série de temas, que já havia sido
antecipado também pela Phénoménologie de la perception: trata-se da consciência como
poder centrífugo de significação ou, simplesmente, uma consciência consitutínte. A divisão
78 AD, p. 199.
79 Vale acrescentar que termo de engajamento em Sartre é frequentemente associado à literatura visto que, a
partir em 1945, ele realiza um verdadeiro “manifesto” em torno de sua concepção de “literatura engajada” na
“Présentation de Temps Modernes”: “Je rappelle, en effet, que dans la « littérature engagée », l’engagement ne
doit, en aucun cas, faire oublier la littérature et que notre préoccupation doit être de servir la littérature en lui
infusant un sang nouveau, tout autant que de servir la collectivité en essayant de lui donner la littérature qui lui
convient” S.II, p. 226. Merleau-Ponty dirige suas críticas também para esta concepção (AD, p. 217-221),
fazendo um paralelo com a nova atitude de Sartre frente ao PC: “Hier la littérature était la conscience de la
société révolutionnaire; aujourd’hui c’est le Parti qui joue ce rôle ; dans le deux cas l’histoire, pour tout ce
qu’elle a de vivant, est une histoire de projets”. AD, p. 220-221.
80 AD, p. 268.
81 AD, p.140.
82 AD, p. 274, n. 1.
83 AD, p. 276.
!72
entre consciência e fatos, com base na qual “il n’y a que des hommes et des choses” 84
(retomando a dicotomia entre para-si e em-si) - é, novamente aqui, fundamental. Sendo a
liberdade radical, os fatos refletem somente as significações provenientes de sua criação: “Le
fait, en tant qu’il est, ne porte pas sa signification : elle est d’un autre ordre, elle relève de la
conscience et, justement pour cette raison, ne peut être en toute rigueur ni justifiée ni exclue
par les faits. Nous ne rencontrons donc jamais que des faits investis de conscience”85. A
consciência é então retratada como um “législateur souverain”86 , “le soleil d’où rayonne le
monde, le démiurge des mes purs objets”87, que impõe seu sentido às coisas justamente por
ser sua fonte absoluta; ela fabrica seus motivos, seus obstáculos e mesmo sua “passividade” 88.
Ao reabsorver tudo em sua transparência, a consciência sartriana é uma verdadeira “folie du
cogito”89, que não “laisse aucun recoin inexploré”90 , de modo que sua significação imposta
será necessariamente fechada, já que para admitirmos significações abertas e inacabadas seria
preciso abdicar da ideia de um sujeito que é pura presença a si e aos objetos. Por esta razão,
Merleau-Ponty considera a consciência constituínte em Sartre ainda mais radical que a de
Husserl, na medida em este último ainda concebe algo que já era verdadeiro anteriormente à
práxis de constituição91, no sentido de um movimento iniciado na experiência, enquanto que
em Sartre só há verdade neste fazer absoluto que é “sem raízes”. Como contraponto à esfera
“verdadeira” e certa da consciência hipercartesiana de Sartre, o mundo dos “fatos” é a esfera
do provável de modo que “le contact direct avec la chose même, c’est le rêve”92. Merleau-
Ponty retoma divisão sartriana de L’Imaginaire entre o certo e provável para afirmar que
desde então Sartre não mudou de orientação filosófica ou se mudou foi no sentido de
“attend[re] moins encore du probable”93. Tudo se passa como se o “puro fato” recebesse a
significação escolhida pela consciência soberana de modo que todo este campo significativo
84 AD, p. 278.
85 AD, p. 161.
86 AD, p. 222.
87 AD, p. 277.
88 AD, p. 196.
89 AD, p. 221.
90 AD, p. 276.
91 Para Merleau-Ponty, a diferença entre os dois é “imensa”, ainda mais se levarmos em conta a última etapa do
pensamento husserliano onde este evidencia uma gênese dos sentidos. O autor aproxima ainda Husserl do
pensamento dialético, enquanto que a consciência sartriana “ne retrouve pas dans ce qu’elle constitue un système
de signification déjà présent : elle construit ou crée. […] il y a des hommes et des choses, et rien entre eux que
des scories de la conscience”. AD, p. 193, n.1.
92 AD, p. 249.
93 AD, p. 196.
!73
permanece no âmbito do provável, o qual se torna assim “un autre nom du réel”94 . Como
alternativa ao mundo do “puro fato” “opaque et figée”, Merleau-Ponty busca apresentar,
desde a Phénoménologie de la perception , “un monde épais et qui bouge”95, uma verdadeira
“paysage de la praxis” 96.
A transparência da consciência, ligada à primazia do cogito na filosofia de Sartre,
ratifica finalmente a dicotomia entre consciência e fatos, homens e coisas, pressupondo uma
relação ao mundo onde toda possível mediação recai na ordem da probabilidade, traços
característicos de uma política da ação pura e da liberdade do instante. As consequências
maiores deste sistema para política é decisiva, na medida em que é extremamente
problemático pensar nestas condições uma relação ao outro e a concepção de social. A teoria
do olhar que sustenta o ser-para-outro sartriano, que já era objeto de ressalvas no primeiro
período, neste momento é religada à teoria da “ação pura” e à falta de mediação: “Les
relations entre personnes cessent d’être médiatisées par des choses, elles sont immédiatement
lisibles dans l’accusation d’un regard. L’ « action pure », c’est la réponse de Sartre à ce
regard; comme lui, elle atteint son but à distance”97. Merleau-Ponty evidencia novamente a
relação de uma pluralidade de consciências separadas entre si por um “mur d’être”98 , que se
objetivam imediatamente pelo olhar, numa relação face a face que pressupõe um abismo,
visto que cada consciência visa à morte do outro, pois a teoria do olhar é a teoria da luta. A
“magie du regard” passa a ser então uma resposta à “magie de l’action pure”99 , como ação de
desvelamento imediato que petrifica a consciência em seu lado de fora e, isto posto, qualquer
pensamento do social será interpretado por esta via da rivalidade do tête-à-tête entre duas
criações puras que se disputam entre si. É neste sentido que não há como não pensar em
Sartre ao ler algumas passagens da conferência de Merleau-Ponty sobre Maquiavel em 1949,
como quando ele diz, por exemplo: “Entre le pouvoir et ses sujets, entre le moi et l’autre, il
n’y a pas de terrain où cesse la rivalité. Il faut ou subir la contrainte ou l’exercer”100 . Este
terreno comum que escapa à “lutte originaire”101 - um intermundo - é assim inviabilizado pela
teoria da luta do olhar como paradigma da relação com o outro e, portanto, do social. Nesta
94 AD, p. 164.
95 AD, p. 200.
96 AD, p. 276.
97 AD, p. 214.
98 AD, p. 205.
99 AD, p. 216.
100 S, p. 344.
101 S, p. 349.
!74
filosofia, o social encontra-se sempre diante das consciências e não antes das mesmas; ele é
somente o “résidu inerte et confus de nos actions passées”102 e por isso que ele só pode sofrer
intervenção por uma “ação pura”. Se sua unidade se faz diante das consciências e não antes é
porque estas preservam sua transparência na medida em que conservam a pureza de sua esfera
para-si . “La « socialité » donnée est un scandale pour le je pense”103, exclama Merleau-
Ponty, a ação pura é aquela da “pureza” sem raízes que busca intervir nos “fatos puros”,
impondo sua significação. Esta possibilidade se sustenta na teoria do olhar e em sua
incapacidade de pensar o social visto que as consciências se dão como disputa de
objetivações, cada uma buscando preservar sua transparência. A luta instaura uma dicotomia
entre de um lado um solipsismo e de outro a perda de si, enquanto que para Merleau-Ponty,
através de uma primazia do cogito que reduz o mundo à esfera do provável - acentuando o
poder de constituição do sujeito - e reforçando a dicotomia entre “homens e coisas”; a relação
com o outro impede uma real compreensão do social e do intermundo, da opacidade e da
ambiguidade; a dialética é apenas uma ilusão, o que afasta radicalmente o pensamento
sartriano da filosofia marxista. No entanto, apesar de ser possível demarcar uma linha de
coerência crítica, que irá permanecer atuante no “terceiro período”, as constantes oposições a
Sartre se dão concomitantemente a uma reformulação de Merleau-Ponty de sua própria
filosofia. Podemos dizer que na época da Phénoménologie de la perception a proximidade
entre os dois autores é muito grande, seja pela afinidade dos temas, seja pela intenção de
“reformular” o cogito cartesiano e postular uma primazia da pré-reflexão. Porém, como
desenvolve Barbaras em seu livro De l’être du phénomène : sur l’ontologie de Merleau-
Ponty, o filósofo da percepção irá contestar os dualismos iniciais de sua própria filosofia, -
como, por exemplo, entre reflexão e pré-reflexão - de modo a caminhar em direção a uma
ontologia que não se encontra mais restrita aos moldes da consciência e do cogito. O “terceiro
período” apresenta uma crítica a Sartre a partir desta nova posição filosófica, concentrada no
capítulo Interrogation et dialectique do manuscrito Le Visible et l’Invisible. Esta crítica
retoma os pontos anteriores através de uma nova elaboração - de acordo com a própria
mudança de Merleau-Ponty - a qual consideramos de extrema importância para pensar os
pontos colocados até aqui de modo mais bem acabado. Por esta razão, nos debruçaremos de
forma mais detalhada sobre ela.
Nous voyons les choses mêmes, le monde est cela que nous voyons : des
formules de ce genre expriment une foi qui est commune à l’homme naturel
et au philosophe dès qu’il ouvre les yeux, elles renvoient à une assise
profonde d’« opinions » muettes impliquées dans notre vie. Mais cette foi a
ceci d’étrange que, si l’on cherche à l’articuler en thèse ou énoncé, si l’on se
demande ce que c’est que nous, ce que c’est que voir et ce que c’est que
chose ou monde, on entre dans un labyrinthe de difficultés et de
contradictions107 .
Ainda que compartilhem o sentimento de que “il suffit d’ouvrir les yeux et
d’interroger en toute naïveté cette totalité qu’est l’homme-dans-le-monde” 108, para Merleau-
Ponty, Sartre não consegue sair deste labirinto, cujos problemas consistem em compreender o
que significa este nós, esta coisa ou mundo e o que é ver. Apesar de se diferenciar da tentativa
moderna das filosofias do sujeito - que viam na reflexão um porto seguro para o
conhecimento de si e do mundo - o autor de L’Être et le Néant acaba por fracassar em dar
conta da experiência de abertura ao mundo ao propor uma solução que, apesar de oposta
àquela da filosofia reflexiva, resulta, na verdade, em apenas uma inversão do problema que
não somente não o resolve, mas o radicaliza. Podemos dizer que do mesmo modo que
Heidegger considerava, a respeito da máxima sartriana “a existência precede a essência”, que
“le renversement d’une proposition métaphysique reste une proposition métaphysique” 109,
Merleau-Ponty aponta
109 HEIDEGGER, M. Lettre sur l’humanisme. Paris: Gallimard, 2008, p.85. (trad. A. Préau)
110 VI, p. 120.
111 VI, p. 74.
112 VI, p. 75.
113 BARBARAS, R. De l’être du phénomène. Grenoble : Jérôme Millon, 2001, p. 143.
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l’essence”114, como era caso em Husserl. Com relação a este ultimo, aliás, Barbaras aponta
ainda para a herança sartriana das características positivista e idealista de sua fenomenologia.
Positivista no sentido de que o nada, como veremos em seguida, se caracteriza pela
positividade que encontrávamos nas “essências”: “c’est donc parce que le moment de la
phénoménalité est ressaisi contre l’essence, plutôt que contre sa positivité, qu’il est dissous
dans la néantité de la conscience” 115; idealista, no sentido de que ambas resultam num
pensamento de sobrevoo. Assim, tanto a “filosofia da essência”, quanto a “filosofia do
nada” (de Sartre) resultam em situações “simétricas”116, dado que a última restaura ou
reintroduz os problemas da primeira: “Alors qu’avec Husserl la pensée était trop fermée sur
soi pour porter l’effectivité d’un monde, le néant est trop hors de soi pour pouvoir soutenir
l’ouverture à L’Etre. L’unité de la distance et de la proximité est dans les deux cas manquée :
par réduction de la transcendance à l’immanence ; par absorption de l’immanence dans la
transcendance”117. Além disso, em ambas encontramos preservada a dicotomia entre os planos
irreflexivo e reflexivo, variando apenas o primado do segundo na filosofia reflexiva e o
primado do primeiro na filosofia de Sartre. Nenhuma das duas, portanto, supera esta divisão
de planos e consegue pensar a abertura ao mundo tendo em vista uma unidade que não
priorize ou comprometa um dos termos, ou seja, propor uma filosofia capaz “de dépasser cette
dualité abstraite au profit d’un sol où l’irréfléchi pourra apparaître comme un moment de la
réflexion, et celle-ci comme un moment de l’irréfléchi”118, tal como pretende Merleau-Ponty.
A fim de superar os impasses deste e de outros dualismos, Merleau-Ponty interroga a
experiência procurando encontrar uma alternativa para a questão, que a nosso ver pode ser
entrevista nas palavras de Gérard Lebrun, citadas acima: “comment l’“union” de ces
prédicats, de quelque façon qu’on la décrive, cesserait-elle jamais d’être contradictoire?”.
Para guiar seu pensamento, Merleau-Ponty toma como fio condutor precisamente a
problematização da ontologia sartriana da negatividade no intuito de delimitar seu fracasso no
interior do quadro maior, como veremos por fim, da filosofia dialética.
Diante desta breve introdução, podemos já de início identificar a razão pela qual o
fracasso da ontologia sartriana reside em suas bases, a saber, na forma de conceber o ser e o
nada, visto que “tout dépend ici de la rigueur avec laquelle on saura penser le négatif ”119,
como afirma Merleau-Ponty. Ao definir de maneira geral a coisa como ser-em-si, que é
descrito como “massif” 120, “plenitude absolue et pleine positivité”121, e o sujeito como ser-
para-si que é o nada, Sartre instaura, de acordo com Merleau-Ponty, uma cisão entre duas
regiões opostas - ser e não ser -, como tal irreconciliáveis. Se por um lado o ser é em-si e não
contém nenhuma negatividade, por outro lado o ser para-si é pura negatividade, puro nada.
Com efeito, desde La Transcendance de l’Ego Sartre realiza a tarefa de “esvaziar” a
consciência ao concebê-la como pura translucidez sem qualquer conteúdo ou zona de
opacidade: nenhuma imagem, nenhuma representação, tampouco um ego que poderia “habita-
la”. O sujeito é pura abertura irrefletida sobre as coisas e “pour que cette ouverture ait lieu,
pour que décidément nous sortions de nos pensées, pour que rien ne s’interpose entre nous et
lui, il faudrait corrélativement vider l’Être-sujet de tous les fantômes dont la philosophie l’a
encombré” 122. Assim, Sartre postula a relação do sujeito no mundo como uma abertura que é
um puro nada em ek-stase sobre o ser e, para possibilitar tal acesso particular, ele purifica a
noção de subjetividade a ponto desta mesma não poder ser caracterizada senão justamente
como o “nada” (rien), o “vazio”, que necessita da plenitude do mundo para existir. Para
expressar tal posição, Sartre parafraseia a definição parmenídica “l’être est et le néant n’est
pas”123, que segundo Merleau-Ponty resulta numa solução fácil que fixa o negativo numa
espécie de essência, fazendo-o recair no positivo. Em outros termos, se o nada não pode
jamais ser incorporado ao ser - que é pura positividade -, se ele é sempre “atrás”, ou subtraído
daquilo que ele desvela ou afirma - “toujours en deçà, que, comme négativité, je suis toujours
en arrière de toutes les choses, retranché d’elles par ma qualité de témoin” 124 -, isso faz com
que o sujeito como nada acabe sendo esta esfera de não aderência ao mundo. A conseqüência
disto é a de que esta esfera de negatividade, que não pode ser “sujeito”, nem “espírito”, nem
“ego”, visto que é puro nada, reintroduz, ali mesmo onde queria expulsar, um “fantasma de
realidade”, algo como uma res cogitans, “très particulière, insaisissable, invisible, mais chose
memo sentido que o filósofo grego, pois para este último o nada não pode ser nem pensado, nem dito, visto que
ele não é. Retomaremos este ponto mais adiante.
124 VI, p. 92.
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tout de même” 125. Dito isto, Sartre substancializa a subjetividade por excesso de tentativas de
dessubstancializá-la, ao postular um nada hipostasiado que interdita qualquer mistura ao ser e
ao fazê-lo, Sartre cai na armadilha de pensar o negativo radical:
Ora, se o nada pode ser concebido de tal maneira, como uma espécie de essência, de
coisa e finalmente de substância, consequentemente o dualismo que até então se estabelecia
entre ser e nada - como correspondentes a em-si e para-si -, que os postulava como dimensões
totalmente incomunicáveis, é, na verdade, um paralelismo. “C’est l’envers et l’endroit de la
même pensée”127, diz Merleau-Ponty, a partir da qual um termo “se destina”128 ao outro sem
desfazer a separação radical que os coloca face a face: “Parce que radicalement opposés, Etre
et néant ne jouent plus l’un contre l’autre et sont en même temps indiscernables”129. Neste
sentido, Merleau-Ponty demonstra a radicalidade do fato de estarmos aqui “par-delà le
monisme et le dualisme, parce que le dualisme a été poussé si loin que les opposés n’étant
plus en compétition sont en repos l’un contre l’autre, coextensifs l’un à l’autre”130. Os opostos
estão, na realidade, “em repouso” um contra o outro dado que só há a positividade, só há o
em-si que “du fond de sa primauté, tolère d’être reconnu par le Néant” 131, enquanto que cabe
ao para-si, puro nada, apenas constatar e se abster do ser positivo, deslizar em sua superfície.
Se for verdade que só há o positivo e o negativo é apenas o não ser substancializado, que tem
somente o poder de “pousser les choses jusqu’à leur vérité ou leur sens et de les saisir “telles
qu’elles sont”132, a teoria da pura negatividade é um verdadeiro positivismo. Isto porque, em
primeiro lugar, como viemos de dizer, esta teoria admite um paralelismo entre duas
positividades: ser e nada; em segundo lugar, porque se o nada é precisamente e unicamente
apenas desvelamento do ser, este não sofre nenhuma modificação por esse desvelamento, o
nada permanece em sua “superfície” sem se introduzir em seu núcleo massivo. É neste sentido
que Merleau-Ponty sublinha a descrição de Sartre em que ele afirma que o desvelamento do
ser pelo nada “n’ajoute rien” ao ser, não o afeta, não o modifica. Se isso procede, estamos
diante de uma fenomenologia aberrante que estabelece que, caso ocorra de uma coisa ser
percebida por alguém, a percepção “n’est pas constitui[ve] de son sens de chose”133; o ser é
apenas desvelado de sua noite, sem ser afetado, sem ser modificado, pois “comme la relation
entre conscience et être n’est pas une relation de constitution, mais seulement de négation,
rien de réel ne peut advenir à l’être : nier l’être ne le modifie en rien” 134. Por outro lado, vimos
que se o para-si é “puro nada”, também ele não sofre modificações já que, sendo pura
negatividade, ele acaba se definindo por ser uma coisa monstruosa cuja substância reside em
não poder ser nada. Disto resulta que nenhum dos dois polos é afetado, transformado,
misturado por este “encontro” entre estrangeiros. Tendo isto em vista, Merleau-Ponty
denominou de negintuição (négintuition) esta negação radical que é o contraponto da intuição
do ser e é esta dupla face do “encontro” que garante ao mesmo tempo a autonomia e a
coextensividade de ambas, isto é, intuir o ser é afirmar sua pura positividade, negar a si
(negintuição) é impossibilitar que o sujeito seja algo, o que faz ele ser esta impossibilidade
mesma.
Compreendidas deste modo, as dicotomias para-si/em-si e nada/ser se caracterizam
por conter uma verdadeira ambivalência que anula toda ambiguidade. Se cada polo se
mantém apartado do outro, eles se estabelecem como contraditórios um do outro e não como
contrários, segundo uma relação de oposição que permitiria a simultaneidade entre os termos
ao invés da exclusão. No artigo “O invisível como negativo do visível: a grandeza negativa
em Merleau-Ponty”, Luiz Damon Moutinho mostra que Merleau-Ponty vai buscar justamente
a ideia de oposição real do Kant pré-crítico de Essai pour introduire en philosophie le
concept de grandeur négative para se opor à divisão de ser e nada como contraditórios, tal
como postula Sartre. Esta chave de leitura é de extrema importância para compreender a
crítica de Merleau-Ponty e o porquê da filosofia sartriana ser aquela “qui met en évidence,
plus qu’aucune autre ne l’a fait, la crise, la difficulté essentielle et la tâche de la
dialectique”135, como veremos mais adiante.
136 KANT, E. Essai pour introduire en philosophie le concept de grandeur négative. Paris: Vrin, 1972, p. 23.
(trad. R. Kempf)
137 VERSTRAETEN, P. et al. Sartre/Kant/Hegel. De la contrariété à la contradiction, quelques itinéraires du né-
139 KANT, E. Essai pour introduire en philosophie le concept de grandeur négative, p. 28.
140 LEBRUN, G. Kant et la fin de la métaphysique. Paris: Armand Colin, 1970, p. 194-195.
141 Id. La patience du Concept. Essai sur le Discours hégélien. Paris: Gallimard, 1972, p. 283.
142 Tema que já havia sido introduzido pelo autor em MOUTINHO, L.D. Negação e finitude na fenomenologia
les appellerons des négatités. Kant en avait entrevu la portée lorsqu’il parlait de concepts
limitatifs”144. Todavia, aponta Moutinho, apesar de haver tais aspectos da negação que
aproximam Sartre de Kant - a definição parmenídica e o caráter posicional da negação,
enquanto delimitação de uma realidade finita afetada por negações - Sartre “não vai ao ponto
de reconhecer uma oposição efetiva, de modo que a negação posicional não implica ali uma
relação real”145. Esta ausência comporta consequências significativas uma vez que ela impede
uma oposição efetiva entre ser e nada (de modo que este último “permanece no ar”146), de
maneira que, ao invés de haver conflito entre os opostos, ocorre na verdade uma dissimetria
estabelecida entre um “ser puro” e uma radicalização da negação que é o “nada puro”. Tal
distinção, como vimos, é desfeita pela oposição real kantiana na medida em que neste tipo de
relação não é mais possível se pensar o “negativo em si” e o “positivo em si” (e nisto Lebrun
tem razão de colocar Sartre ao lado dos “dogmáticos”) 147. Uma vez que o ser em-si sartriano é
pura positividade e não admite em si qualquer negatividade, o nada só pode ser seu
contraditório, isto é, ou há ser ou nada e não a simultaneidade entre ambos conforme admite a
oposição real. Mais ainda, cabe à negação um valor abstrato, já que “ela não é mais que a
expressão idealizada da maneira pela qual o objeto aparece a um sujeito”148 , definição que
corresponde à visão de sobrevoo tão ressaltada pela crítica de Merleau-Ponty. Uma negação
que não modifica o ser, incapaz de atingi-lo por dentro - dado que a identidade do ser consigo
mesmo exclui a negatividade, pois é seu contraditório -, de modo que não há
a tarefa da dialética. Entre o “ser puro” e o “nada puro” não pode haver passagem,
imbricação, o movimento e a transformação que a dialética reclama. Entre o puro ser e o puro
nada só há conciliação “aparente”, “ils ne sont pas vraiment unis”150. Trata-se de uma coesão
“rígida” e “frágil”151 , dado que os dois termos se solicitam, mas somente enquanto opostos
absolutos: “dès que l’un est nié, l’autre est là ; chacun d’eux n’est que l’exclusion de l’autre et
rien n’empêche, en somme, qu’ils n’échangent leurs rôles : seule demeure la coupure entre
eux ; de part et d’autre, tout alternatifs qu’ils soient, ils composent ensemble un seul univers
de pensée, puisque chacun d’eux n’est que son recul devant l’autre”152. Estamos lidando mais
com uma analítica do que com uma dialética, na medida em que o nada não “passa” no ser,
ele é somente atolado (enlisé) no ser 153, o que caracteriza uma relação típica das filosofias da
visão, onde os estrangeiros encontram-se face a face. Na verdade, tratar-se-ia, além disso, de
uma “folie de la vision”154, no sentido de uma visão de sobrevoo, desencarnada, capaz de
apreender o mundo em panorama, encontrá-lo “lá onde ele está”, dominá-lo155. Para Merleau-
Ponty, o problema não é propriamente a visão, mas o fato desta ser associada ao ato de
nadificação da consciência como aquele que transforma a coisa em-si em mundo visto, de
modo que “les parties de ce monde ne coexistent pas sans moi : la table en soi n’a rien à voir
avec le lit à un mètre d’elle, - le monde est vision du monde et ne saurait être autre chose.
L’être est bordé sur toute son étendue d’une vision de l’être qui n’est pas un être, qui est un
non-être”156. Sendo um não ser, o para-si enquanto aquele que vê é aquele que
oublie qu’il a un corps et que ce qu’il voit est toujours sous ce qu’il voit, qui
essaye de forcer le passage vers l’être pur et le néant pur en s’installant dans
la vision pure, qui se fait visionnaire, mais qui est renvoyé à son opacité de
voyant et à la profondeur de l’être. Si nous réussissons à décrire l’accès aux
choses mêmes, ce ne sera qu’à travers cette opacité et cette profondeur, qui
ne cessent jamais : il n’y a pas de chose pleinement observable, pas
d’inspection de la chose qui soit sans lacune et qui soit totale157 .
Contrariamente à filosofia da visão panorâmica, que “ignore en tout cas l’épaisseur, la
profondeur, la pluralité des plans, les arrière-mondes”158, para Merleau-Ponty é necessário sair
experiência, mas sim na restrição de sua teorização a um tipo exclusivo de experiência: a da visão desencarnada,
do face a face do sujeito com o mundo. BARBARAS, R. De l’être du phénomène, p. 149.
156 VI, p. 104.
157 VI, p. 106-7.
158 VI, p. 95.
!86
l’est en effet : plus on décrit l’expérience comme un mélange de l’être et du néant, plus leur
distinction absolue est confirmée, plus la pensée adhère à l’expérience, et plus elle la tient à
distance”162. E por isso a “inversão metafísica” operada por Sartre - de se opor à distância
instaurada pela filosofia reflexiva através do desejo de uma proximidade absoluta do nada no
ser - resulta numa paradoxal conclusão, pois enquanto que “il est vrai tout autant que Sartre se
situe au plus près de l’expérience”, conclui Barbaras, “la vérité n’est pas qu’il part d’un
présupposé dualiste pour reconstruire après coup l’expérience : c’est plutôt sa volonté de
coïncider à cette expérience qui ramène une pensée dualiste”163 .
soit leur. La perception du monde par les autres ne peut entrer en compétition avec celle que
j’en ai moi-même” 167.
Em segundo lugar, a posição sartriana no que concerne à relação com o outro opera
mais uma vez a radicalização da separação entre ser e nada, só que agora através das
dimensões para-si e para-outro de modo a “assumer et radicaliser la perspective
intellectualiste”168. Isto porque, através da aparição do outro, que se dá ao para-si como um
“encontro”, o puro nada que o sujeito é sofre uma objetificação de seu ser, por via do olhar
“medusante” do outro, que faz aparecer uma dimensão que Sartre denomina de ser-para-
outro. Esta “metamorfose” é descrita por Sartre na maioria das vezes pela experiência da
vergonha, a partir da qual o para-si perde sua soberania ao ser negado pelo olhar do outro e
assim ele passa a ser visto, julgado, medido, da mesma maneira que as outras coisas visíveis
do mundo. Para Merleau-Ponty, esta relação ao outro fornece ao puro nada que é o para-si
uma dimensão de visibilidade, de modo à inscrevê-lo em uma ordem objetiva do mundo.
Assim, cada para-si, em sua relação ao outro, sofre ou opera uma objetificação pelo olhar, de
maneira que ao menos quatro termos estão em jogo: “mon être pour moi, mon être pour
autrui, le pour soi d’autrui et son être pour moi”169. Consequentemente, este tipo de
“camadas” de para-outro, ao invés de caracterizar uma experiência de alteridade, parece ao
contrário barrá-la, na medida em que cada para-si não se relaciona propriamente com o outro
mas somente o seu ser para-outro, como resume Barbaras: “Ainsi la relation à autrui se
confond avec l’expérience du pour-autrui : la conscience n’a jamais affaire à l’autre en
personne, mais seulement à elle même”170 e ainda “si l’accès à autrui se confond avec
l’épreuve de mon être-regardé, il cesse d’être une expérience, faute de révéler quelque chose
dont il soit l’expérience : il revient à la découverte de mon être-pour-autrui, c’est-à-dire d’une
structure de ma conscience”171, de modo que, conclui Merleau-Ponty, “je n’ai pas affaire aux
autres, j’ai affaire tout au plus à un non-moi neutre, à une négation diffuse de mon néant” 172.
Vislumbramos aqui a origem desse estranho solipsismo, que não é mais aquele de um sujeito
isolado do mundo duvidando da existência deste, mas é aquele de um sujeito solitário em um
mundo positivo, onde tudo o que “há” provém do poder de ontogênese da consciência. Se o
outro aparece, diz Merleau-Ponty, “[il] reste un habitant de mon monde, mais il me rappelle
très impérieusement que l’ipse est un rien”173. O outro constata então que nada pode me
atingir “por dentro”, pois seu olhar “ne fait que prolonger mon intime conviction de n’être
rien, de ne vivre qu’en parasite du monde, d’habiter un corps et une situation”174. Por esta
razão, Merleau-Ponty já em Les Aventures de la dialectique dizia que “il y a chez Sartre une
pluralité de sujets, il n’y a pas d’intersubjectivité” 175. Ora, se cada para-si é poder de
ontogênese de desvelamento do em-si, e se o sujeito é somente negado pelo olhar do outro
mas não verdadeiramente modificado - “comme il n’y a pas de degré dans le néant,
l’intervention d’autrui ne peut rien m’apprendre”176 -, resta que a intersubjetividade é pensada
como relação entre “foyers de négativité”177, que são somente “d’autres moi-même” 178, logo,
através de uma relação abstrata, lógica e essencialista179. Uma conseqüência direta de se
pensar tal isolamento plural entre os sujeitos é exatamente a concepção solipsista do mundo,
na medida em que não há propriamente um intermundo, já que “chacun n’habite que le sien,
ne voit que selon son point de vue” 180. Para aceder a este intermundo, conclui P. Cabestan “il
faudrait que la pensée du négatif abandonne sa conception négativiste du rapport à autrui
selon laquelle ce dernier surgit comme négation de ma négation, c’est-à-dire m’objective et
me réduit à l’être” 181.
Além disso, há ainda um problema quanto ao fato de se pensar esta relação em termos
de olhar (regard), o que se mostra, na verdade, como um acabamento final da filosofia da
visão no plano da experiência intersubjetiva182 . Se o outro é também puro nada e se somente
pressinto sua existência como olhar através de meu ser-visto, acaba que este olhar provém de
um outro abstrato, pois se trata de “un regard venu de nulle part et qui donc m’enveloppe, moi
et ma puissance d’ontogenèse, de toutes parts” 183 de maneira que “je sens seulement l’impact
sur mon corps”184. Este olhar torna-se finalmente equivalente a uma função: aquela de
positif pure est donc une pensée en survol, qui opère sur l’essence ou sur la pure négation de l’essence, sur des
termes dont la signification a été fixée et qu’elle tient en sa possession” VI, p. 97.
180 VI, p. 88.
181 CABESTAN, P. L’être et la conscience, p. 383.
182 BARBARAS, R. op.cit.
183 VI, p. 88.
184 VI, p. 100.
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inscrever o puro nada para-si no ser, dar-lhe uma visibilidade corporal, situá-lo nas relações
que fazem com que ele seja reconhecido em sua “humanidade”. Mas essa inscrição já é desde
o início impossibilitada pela filosofia da visão e não pode ser efetivada posteriormente pelo
olhar, pois se ser e nada são contraditórios e se excluem, logo, toda inscrição é abstrata, seja
ela pensada na relação consciência/mundo, seja no plano da intersubjetividade através da
cisão para-si/para-outro. Do mesmo modo que a relação da consciência com o mundo não
modifica ambos os termos, toda objetificação sofrida pelo para-si realiza sua “inscrição”
enquanto para-outro mas não enquanto para-si. Em outros termos, embora Sartre evidencie
que se trata de duas dimensões do próprio para-si - para-si-para-outro - este recurso de nada
adianta contanto que se mantenha aí uma contradição entre as dimensões. Com base nessa
cisão, a “encarnação” provocada pelo olhar do outro não atinge a esfera de pura negatividade
do para-si, pois, como diz Barbaras “le pour-soi s’incarne, mais ce n’est pas en tant que pour-
soi qu’il s’incarne; s’il est capable de passer dans l’extériorité, ce passage n’appartient
cependant pas à l’essence de la présence à soi”, isto é, “en tant que néantisation ou
translucidité, le pour-soi ne peut qu’être étranger à toute extériorité”185. Em suma, a partir da
contradição entre ser e nada, toda maneira de pensar a dimensão de inscrição do para-si no
mundo torna-se problemática, o que inclui principalmente a dimensão corporal do para-si, sua
relação com o outro e seu engajamento em uma situação de maneira geral.
Finalmente, se esta tentativa de pensar o para-si atolado no ser (enlisé dans l’être) se
dá por um olhar abstrato, englobante e de sobrevoo, que atinge o mundo do solus ipse, como
pensar a alteridade justamente como alteridade? Mais especificamente, não somente há aqui o
problema do solipsismo, mas há ainda a questão de como pensar o outro como este outro, em
sua singularidade, e não como outro eu ou não eu 186. Para Merleau-Ponty, “il faut donc que
quelque chose dans le regard d’autrui me le signale comme regard d’autrui, loin que le sens
du regard d’autrui s’épuise dans la brûlure qu’il laisse au point de mon corps qu’il regarde” 187.
Como Sartre permanece restrito à esfera para-outro, ele não pode alcançar este traço de
185 BARBARAS, R. Le corps et la chair dans la troisième partie de L’être et le néant. In: MOUILLIE, J-M.
(Org.) Sartre et la phénoménologie. Fontenay-aux-Roses: ENS Éditions, 2000, p. 281.
186 Em nota, Merleau-Ponty esclarece este ponto: “Le problème d’autrui est toujours posé par les philosophes du
négatif sous forme du problème de l’autre, comme si toute la difficulté était de passer de l’un à l’autre. Cela est
significatif : c’est que l’autre n’y est par un autre, il est le non-moi en général, le juge qui me condamne ou
m’acquitte, et à qui je ne pense pas même à opposer d’autres juges.” VI, p. 111, n. 1.
187 VI, p. 101.
!91
dialectique a toujours été une illusion”, uma vez que “entre l’être qui est pleine positivité et le
néant qui « n’est pas », il ne saurait y avoir de dialectique”191. Como recurso à analítica do ser
e do nada, Merleau-Ponty se pergunta: “ne pourrions-nous simplement exprimer cela en
disant qu’il faut substituer à l’intuition de l’être et à la négintuition du néant une
dialectique ?”192. Mas em que consiste o pensamento dialético?
No Résumés de cours do Collège de France, Merleau-Ponty enumera três pontos que
unem historicamente as chamadas “filosofias dialéticas” para além de suas diferenças: trata-se
de um pensamento de contraditórios, de um pensamento “subjetivo” e circular. Esta última
característica diz respeito ao movimento da dialética enquanto um eterno recomeço, como
uma experiência do pensamento que mantém uma verdade em ato de modo que não se
separam o passado e o porvir, ou melhor, como um movimento que une ao mesmo tempo
integração e destruição do conteúdo: “la pensée dialectique s’apparaît à elle-même comme
développement, en même temps que comme destruction, de ce qui était avant elle, et de même
ses conclusions garderont en elles-mêmes tout le progrès qui y a conduit. La conclusion n’est
à vrai dire que l’intégration des démarches précédentes”193. Dito isto, é essencial ao
pensamento dialético o fato de que “les étapes passées ne sont pas simplement passées” 194,
que elas sejam sempre integradas e ultrapassadas pelo mesmo movimento, de maneira que
nenhuma conclusão se apresenta como fixa e se estabiliza a título de verdade absoluta,
revelando “un équilibre difficile”195, sempre ameaçado pelos pensamentos positivista ou
negativista. Devido a este tipo de movimento, o pensamento dialético convida a uma revisão
das noções ordinárias de sujeito e objeto, já que não basta torná-las relativas ou dizer que o
objeto é subjetivo ou que o sujeito é objetivo. O pensamento dialético é “subjetivo” no sentido
que Kierkegaard ou Heidegger deram a esta palavra, continua Merleau-Ponty, “elle ne fait pas
reposer l’être sur lui-même, elle le fait apparaître devant quelqu’un, comme réponse à une
interrogation”196.
Por fim, a dialética é um “pensamento de contraditórios”. Mas, ora, não vimos até
então que é justamente a contradição que estabelece o movimento como uma analítica e não
como uma dialética? Como pode a dialética ser um pensamento de contraditórios? Se a
Admettons au contraire [de l’opposition réelle chez Kant] que chacun de ces
termes, en lui-même et pris comme tel, soit de part en part excluant de son
Autre, et seulement cela; on élaborera alors un nouveau type de relation
possible. […] Penser la contradiction, c’est d’abord poser que cette relation,
si intenable qu’elle soit, n’est pas rien et mérite d’être analysée198.
faut-il pour autant que chaque opposé ne puisse rencontrer son autre que sur
une base commune qui les rende homogènes? Ce besoin d’une identité sous-
jacente à l’opposition n’est-il pas une condition superflue? Alors qu’il devrait
s’agir de rendre compte de la relation qui constitue les opposés comme tels,
dans leur pureté, on commence par décrire ceux-ci comme deux contenus
qui, avant tout, appartiennent nécessairement à la même positivité. C’est en
raison de cette commune positivité ontologique que les termes “positif” et
“négatif” dans l’opposition réelle ne sont que des stipulations
conventionnelles202.
Para Hegel, ao contrário, deve-se pensar a alteridade dos termos através da passagem
de um no outro, coisa que não era possível na esfera ainda representativa da oposição
kantiana, onde “positivo” e “negativo” não são diferentes: “Quoi d’étonnant? On les avait
taillés dans la même étoffe”203, exclama Lebrun. Se em Kant podemos dizer que cada termo é,
em Hegel não, dizemos que cada um se suprime. Isto significa que não é mais possível pensar
uma copresença, uma simultaneidade dos dois termos, mas somente o movimento onde a
“identité de ces moments, c’est leur altérité”204. Assim, encontramos uma “présentation
vertigineuse de la contradiction”205, que não é mais aquela descrita sobre as bases da
“ontologia” kantiana, mas é pensada como termos da dialética hegeliana.
Tendo em vista esta distinção, devemos compreender que Merleau-Ponty censura
Sartre de pensar ser e nada como contradição no sentido kantiano e não no sentido
hegeliano. O que nos leva a pensar: se Merleau-Ponty se inspira no conceito de oposição real
de Kant contra Sartre, como indica Moutinho, para finalmente concluir que se deve recorrer a
dialética, não há de algum modo um salto neste caminho? Associar a possibilidade de
simultaneidade entre ser e nada como grandeza negativa à contradição hegeliana não seria
passar por cima de toda a crítica de Hegel? Qual a diferença da contradição hegeliana para a
relação de contrários pensada por Merleau-Ponty? A nosso ver, este ponto não é esclarecido
por Moutinho206, nem aventado por Merleau-Ponty e não nos cabe aqui, senão ao preço de nos
desviar de nosso caminho, mergulhar neste problema. O que nos interessa é notar que o
conceito de contradição entre positivo e negativo pode adquirir sentidos diferentes, além do
que, como toda a crítica de Merleau-Ponty se baseia neste mote principal, torna-se relevante
explicitar que ele entende a contradição sartriana em termos kantianos e que, para se opor a
ela, ele de algum modo resgata a contradição hegeliana. Todavia a posição de Merleau-Ponty
não é propriamente hegeliana207, no sentido de que mais do que uma dialética, ele propõe uma
hiperdialética, cujos contornos aparecem em contraste com o que ele denomina de uma
“mauvaise dialectique”. Vejamos.
Em primeiro lugar, quando Merleau-Ponty reivindica a dialética como possibilidade
do movimento, ele a descreve em termos próximos aos hegelianos :
la pensée dialectique est celle qui, soit dans les rapports intérieures à l’être,
soit dans les rapports de l’être avec moi, admet que chaque terme n’est lui-
même qu’en se portant vers le terme opposé, devient ce qu’il est par le
mouvement, que c’est la même chose pour chacun de passer dans l’autre ou
de devenir soi, de sortir de soi ou de rentrer en soi, que le mouvement
centripète et le mouvement centrifuge sont un seul mouvement, parce que
chaque terme est sa propre médiation, l’exigence d’un devenir, et même
d’une autodestruction qui donne l’autre208.
206 L. Damon Moutinho conclui seu artigo dizendo que toda a alternativa de Merleau-Ponty em pensar o ser e o
nada como visível e invisível “remonta a um tipo de relação bastante distinta daquela pensada por Sartre, em que
ser e nada não se imbricam, não se conjugam; é preciso pensar antes, como Kant o fizera, ‘a simultaneidade da
presença e da ausência’, uma relação real pela qual ser e nada, visível e invisível, tocável e intocável se
imbricam um no outro, pela qual um está em quiasma com o outro, em relação, segundo os termos kantianos, de
‘oposição real’”. MOUTINHO, L.D. O invisível como negativo do visível, p.17-8. O que nos leva a pensar:
como a oposição real pode garantir que os seres se “imbriquem” pela simples simultaneidade da presença e da
ausência? E como isso pode levar Merleau-Ponty a pensar uma dialética “mais radical” que a hegeliana? É
verdade que o autor conclui seu artigo dizendo que o debate com Hegel “é assunto para outro momento” e com
isso vemos que esta questão fugiria ao seu objetivo. Mas, por isso mesmo, nos fica a questão: como duas
realidades positivas que geram uma realidade negativa pensada em simultaneidade pode significar uma
imbricação dos termos?
207 Embora a crítica de Merleau-Ponty a Hegel não seja tão clara, diz Barbaras, “même aux ses propres yeux, elle
brise, s’ouvre, se nie, pour se réaliser”211, logo, é um movimento que clama pela mediação.
Esta ainda no sentido de que a imbricação dos termos que ela impõe não se dá como oposição,
como exclusão, mas a efetividade do movimento realizada pela mediação ocorre como
diferença: “Aussi, plutôt que dans la négation, est-ce dans la notion de différence que se tient
la vérité de la dialectique. Cette différence est non-identité plutôt qu’opposition”212, porque,
conclui Merleau-Ponty “en l’absence de toute différence, il n’y aurait pas médiation,
mouvement, transformation, on resterait en pleine positivité”213. O trabalho do negativo, diz
Merleau-Ponty no Résumé de cours do Collège de France, implica uma negação que não
exclui o positivo, mas que o reconstrói para além de suas limitações, ele “le détruit et le
sauve”214. “Il n’y a dialectique que dans ce type d’être où se fait la jonction des sujets et qui
n’est pas seulement un spectacle que chacun d’eux se donne pour son propre compte, mais
leur commune résidence, le lieu de leur échange et de leur réciproque insertion”, resume
Merleau-Ponty em Les Aventures de la dialectique215.
No entanto, o movimento dialético pode ser levado ao termo de uma “mauvaise
dialectique” no momento em que, como diz Barbaras, ele “s’érige en philosophie”216, ou seja,
quando ocorre que aquele movimento de “eterno recomeço”, de “genèse perpétuelle”217 se
fixa em uma posição final, “impose une loi et un cadre extérieurs au contenu”218 . Assim, a
“mauvaise dialectique” pressupõe uma volta ao positivo e destrói o próprio movimento de
inacabamento, de modo que ela “est celle qui croit recomposer l’être par une pensée thétique,
par un assemblage d’énoncés, par thèse, antithèse et synthèse”219, sublinha Merleau-Ponty.
Em contraposição à “mauvaise dialectique”, o autor propõe uma dialética que critica a si
mesma, que presume que toda tese é idealização e que não podemos jamais recair no positivo,
uma dialética sem síntese que ele denomina de hiperdialética. Enquanto a filosofia dialética
“impose une loi au contenu au lieu de saisir le mouvement du contenu comme sa propre
loi”220, a hiperdialética de Merleau-Ponty recusa-se a tematiza-la e se dispõe a acompanhar
seu movimento enquanto situação do pensamento e não posição de um todo: “c’est une
pensée qui ne se constitue pas le tout, mais qui y est située”221. No interior desta proposta,
segue-se que a negação não pode mais ser aquela da filosofia da negatividade pura, pois “ce
que nous excluons de la dialectique, c’est l’idée du négatif pur, ce que nous cherchons, c’est
une définition dialectique de l’être, qui ne peut être ni l’être pour soi, ni l’être en soi”222. Em
suma, a possibilidade de pensar o movimento como hiperdialética é uma alternativa à cisão
sartriana entre para-si e em-si, nada e ser, assim como aos impasses da filosofia dialética em
geral. Merleau-Ponty reivindica mesmo os princípios básicos do movimento dialético contra a
posição sartriana, visto que esta ultima anula a possibilidade de pensar o movimento que uma
dialética de forma geral exige. E isto porque, a seu ver, a dicotomia ser/nada típica de uma
filosofia intuitiva - puro nada em ek-stase nas coisas - é pensada pelo paradigma da
temporalidade do instante, da visão de sobrevoo que tudo vê:
221 AD, p. 282. Um pensamento situado. Também como aquele que renuncia a qualquer a priori: “Rien ne lui est
plus étranger que la conception kantienne d’une idéalité du monde qui serait lui même en tous les esprits”. AD,
p. 282.
222 VI, p. 128.
223 AD, p. 283.
224 MOUTINHO, L.D. O invisível como negativo do visível, p. 16.
!98
et de l’invisible, en répétant qu’ils ne sont pas contradictoires”225. Tudo depende do rigor com
o qual pensamos o negativo, nos dizia há pouco Merleau-Ponty, logo, a negação, não sendo
mais pura, se dá como incompleta, inseparável daquilo que nega. Em contrapartida, o visível
não é a esfera da pura positividade, simplesmente porque não há pura positividade. Tal
pressuposição consiste num “[e]rreur philosophique totale qui est de croire que le visible est
présence objective (ou idée de cette présence)”226. Se a filosofia da positividade é a mesma da
negatividade pura, o invisível não pode, do mesmo modo, ser “vu comme chose”227; ambos os
termos devem ser compreendidos como movimento da hiperdialética: “Chaque terme n’est lui
même qu’en passant dans son autre, ou plutôt, il n’y a pas deux termes mais un lieu où ils sont
destinés l’un à l’autre”228. Apesar de Sartre conferir também invisibilidade ao sentido - e neste
ponto se diferenciar das filosofias da essência -, diz ainda Barbaras, ao pensar a negação como
puro nada ele acaba por afirmar a positividade de ambos os termos e perder “l’inscription de
l’invisible dans le visible” de modo que, neste ponto e mais uma vez, “il n’y a pas de
différence entre la philosophie sartrienne et l’eidétique husserlienne”229. Pensar o invisível é
então pensar a negação como “potência” do visível, como devir e não como ser, dado que
“l’invisible donne la signification véritable du néant car jamais il n’excède le visible que
néanmoins il nie”230. Neste sentido, o “ver” da visibilidade não significa aqui um retorno a um
“oculocentrismo” de uma metafísica da presença, mas a visibilidade consiste em pensar um
sensível que é ao mesmo tempo inerência e distância 231. “Ver”, define Merleau-Ponty, “c’est
par principe voir plus qu’on ne voit, c’est accéder à un être de latence. L’invisible est le relief
et la profondeur du visible, et pas plus que lui le visible ne comporte de positivité pure” 232. O
invisível não é o outro do visível, não é seu inverso, ele é justamente aquilo que se dá nesta
possibilidade de imbricação entre os termos que não são contraditórios; possibilidade de
coexistência de separação e união, distância e proximidade. Em suma, nas palavras de Claude
Lefort:
225 S, p. 38-9.
226 VI, p. 306. (notes de travail - Mai 1960)
227 VI, p. 305. (notes de travail - Mai 1960)
228 BARBARAS, R. De l’être du phénomène, p. 192.
229 Ibid., p. 194.
230 Ibid., p. 195.
231 ALLOA, E. La résistance du sensible. Merleau-Ponty critique de la transparence. Paris: Kimé, 2008, p. 85.
232 S, p. 38. (grifo nosso)
!99
233 LEFORT C. Sur une colonne absente. Écrits autour de Merleau-Ponty. Paris: Gallimard, 1978, p. 153-4.
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FACTICIDADE E TEMPORALIDADE:
primeiro nível de contestação.
Capítulo I
Considerações prévias:
negação e facticidade
1 Sartre fala, por exemplo, em “plusieurs dimensions de la néantisation” (EN, p. 172). O que se pode observar,
por exemplo, na diferença entre o nível pré-reflexivo da consciência e o nível do circuito de ipseidade: “L’ipséité
représente un degré de néantisation plus poussé que la pure présence à soi du cogito préréflexif”. EN, p. 140.
!103
que l’être est antérieur au néant et le fonde”; “le néant […] ne saurait avoir qu’une existence
empruntée : c’est de l’être qu’il prend son être ; son néant d’être ne se rencontre que dans les
limites de l’être et la disparition totale de l’être ne serait pas l’avènement du règne du non-
être, mais au contraire l’évanouissement concomitant du néant : il n’y a de non-être qu’à la
surface de l’être”; “Le néant ne peut se néantiser que sur fond d’être : si du néant peut être
donné, ce n’est ni avant ni après l’être, ni, d’une manière générale, en dehors de l’être, mais
c’est au sein même de l’être, en son cœur, comme un ver” 2. Em suma, todas as formas de
negação devem obedecer a este princípio de anterioridade do ser em relação ao nada de modo
a estabelecer uma assimetria entre os termos que não deixa de ser alvo de críticas.
A formulação deste princípio básico surge das análises que compõem a primeira parte
de L’Être et le Néant: “O problema no nada”. No primeiro capítulo, Sartre se interroga sobre a
origem da negação a fim de explicitar sua própria concepção de não ser. Tal elaboração se dá
através de um diálogo principalmente com Hegel e Heidegger e de forma mais sutil e ambígua
com relação a Kant e a Descartes. As teorias da negação dos dois primeiros são decisivas para
a mudança que se opera no pensamento de Sartre na época em que redigia os Carnets de la
drôle de guerre (conforme veremos em seguida); momento em que ocorre uma transformação
na concepção da temporalidade e, consequentemente, na própria maneira de pensar a
consciência, a qual passa a ser considerada a partir do modo de ser para-si, como negação de
ser3. Em um primeiro momento, Sartre se opõe a Hegel e sua “concepção dialética do nada”
que, a seu ver, consiste em considerar o ser puro e o não ser puro como contemporâneos que
se uniriam na produção dos existentes. Estes dois termos se dão, para Sartre, como abstrações,
pois ambos se identificam e possuem uma contemporaneidade lógica. A esta breve análise da
Petite logique hegeliana4, que o próprio Sartre admite não ser então o momento de tomá-la em
sua complexidade 5, ele contrapõe a posição de assimetria entre ser e nada, baseada na
« L’Être est, le néant n’est pas » : il n’y a sans doute pas d’énoncé
philosophique plus pesamment immémorial. Mais Sartre, tout en le
reprenant tel quel, en bouleverse le sens. Ce séculaire axiome allait de pair
avec l’évidence d’un partage qui mettait totalité et absoluité du côté de
6 A respeito do ser parmenídico, Sartre escreve em Saint Genet (fazendo um paralelo com as implicações morais
que utiliza no contexto desta obra): “Car le Bien sans le Mal c’est l’Être parménidien, c’est-à-dire la Mort; et le
Mal sans le Bien, c’est le Non-être pur”. SG, p. 211, n. 1.
7 EN, p. 50.
8 LAURENT, J.; ROMANO, C. Le Néant: contribution à l’histoire du non-être dans la philosophie occidentale.
Sartre se diferencia assim, segundo Simont, da posição clássica que tomava primazia
do ser sobre o nada como uma maneira de privilegiar o ser. Ao passo que Sartre compreende o
nada através da estrutura “presença a si” do para-si, isto é, como consciência pré-reflexiva
descrita como absoluto não substancial15. Do mesmo modo, continua a autora, devemos
compreender neste contexto a fórmula spinozista “toute determination est négation”
diferentemente: “Non plus : toute determination est négation d’une totalité préalable et toute-
positive, qui n’est pas entamée dans sa positivité par cette négation; mais : toute determination
est négation de négation : négation est la texture même de mon être (c’est en ce sens que
Sartre l’appelle négation interne)” 16. Em suma, ao colocar o absoluto no lado do nada e não
do ser, Sartre se diferencia de posicionamentos clássicos e fornece ao nada um status de
legitimidade, ao mesmo tempo em que ao colocar o nada como dependente do ser, ele retira a
possibilidade de uma negação soberana.
Vimos anteriormente que Sartre se aproxima de Kant não somente pela alusão à
definição de Parmênides, mas também pela possibilidade de pensar realidades que são
habitadas pela negação em sua estrutura, denominadas de negatidades (négatités). No entanto,
enquanto que a negação kantiana permanece no plano judicativo, toda forma de negação para
Sartre deve ser existencial, no sentido de que se trata de realidades que “sont éprouvées,
combattues, redoutées, etc., par l’être humain, et qui sont habitées par la négation dans leur
intrastructure, comme par une condition nécessaire de leur existence”17. Estas realidades da
negação, que são as negatidades, encontram seu fundamento numa negação mais original que
13 Simont se refere a formulações como esta: “Mais le néant qui surgit au cœur de la conscience n’est pas. Il est
été”. EN, p. 114.
14 SIMONT, J. Genèse du “Néant”, genèse de L’Être et le néant (À propos de la morale et de l’ontologie de
Sartre)”. In: MOUILLIE, J-M; NARBOUX, J-P. (Org.) Sartre. L’Être et le néant. Nouvelles lectures. Paris: Les
belles lettres, 2015, p. 54.
15 “mettre l’absolu du côté du néant, précisément parce que ce dernier, ne se laissant pas saisir, mais tout au plus
exister, ne peut dès lors être relatif à l’appréhension qu’on en opère. L’absolu c’est la conscience pré-réflexive,
c’est ce néant à l’état pur, et elle n’est pas absolue bien qu’elle soit non-substantielle, mais parce que non sub-
stantielle”. SIMONT, J. Jean-Paul Sartre, p. 44.
16 Ibid, p. 47.
17 EN, p. 55.
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18 HEIDEGGER, M. Qu’est-ce que la métaphysique? (suivi d’extraits sur l’être et le temps et d’une conférence
sur Hölderlin). Paris: Gallimard, 1951, p. 27. (Trad. Henry Corbin).
19 EN, p. 51.
20 EN, p. 52.
21 HEIDEGGER, M, op.cit., p. 34.
22 EN, p. 53.
23 EN, p. 57.
24 HEIDEGGER, M, op.cit., p. 36.
25 EN, p. 56.
26 EN, p. 53.
27 EN, p. 53.
!107
28 As análises sobre a temporalidade são fundamentais para compreender o movimento de nadificação, pois
Sartre evidencia dois níveis de nadificações primordiais: 1) “la conscience n’est pas son propre motif en tant
qu’elle est vide de tout contenu. Ceci nous renvoie à une structure néantisante du cogito préréflexif” 2) “la
conscience est en face de son passé et de son avenir comme en face d’un soi qu’elle est sur le mode du n’être-
pas. Cela nous renvoie à une structure néantisante de la temporalité”. E por esta razão “il suffit de marquer que
l’explication définitive de la négation ne pourra être donnée en dehors d’une description de la conscience (de) soi
et de la temporalité”. EN, p. 69.
29 VERSTRAETEN, P. Sartre/Kant/Hegel, p. 159.
30 Ibid., p. 158.
31 EN, p. 28.
!108
negação interna. Ao contrário das negações externas, que são estabelecidas entre coisas cuja
natureza não é afetada pela negação (como por exemplo quando afirmamos que “o copo não é
a mesa”), a negação interna modifica e constitui os termos em relação, pois se trata de uma
“liaison synthétique et active des deux termes dont chacun se constitue en se niant de
l’autre” 32. Enquanto que a negação externa se caracteriza pela relação de exterioridade entre
as coisas - que não se implicam mutuamente -, o que consiste numa negação categorial e
ideal, a negação interna é um
A negação interna é sintética num sentido próximo ao que Husserl caracteriza como
síntese: uma forma de ligação pertencente exclusivamente à região da consciência34. Para
Sartre, a negação interna só diz respeito ao para-si, mesmo que ela só se dê enquanto
constitutiva da própria consciência e do termo negado enquanto fenômeno. Neste sentido, a
negação interna é uma contradição no sentido hegeliano35, visto que ela constitui os termos a
partir da relação, mantendo ao mesmo tempo a unidade e a separação de ambos.
Há ainda outras operações de negação que constituem o modo de ser do para-si. Além
da negação interna do em-si que o para-si não é, há a nadificação do em-si que o para-si é,
que é justamente o ato ontológico, nadificação ininterrupta de si cuja descrição encontramos
no capítulo “As estruturas imediatas do para-si - II: A facticidade do para-si” 36, o qual será
32 EN, p. 291.
33 EN, p. 212.
34 HUSSERL, E. Méditations cartésiennes. Introduction à la phénoménologie. Paris: Vrin, 2014, p. 75. (Trad. G.
Peiffer et E. Levinas)
35 Em nota, na p. 122 de L’Être et le Néant, Sartre estabelece este paralelo, mas indica que esta negação deve se
fundar sobre uma “negação interna primitiva” que é a falta (manque). Como veremos posteriormente, a falta
caracteriza justamente essa nadificação de si que descrevemos brevemente neste capítulo, a qual não pode ser
pensada sem a negação interna, ou como anterior a esta relação que é necessária para a aparição da consciência.
Como Sartre não explica o porquê de uma ser fundada na outra, parece-nos estranho ele ter estabelecido esta
relação de prioridade, já que, a nosso ver, é preciso que haja negação interna e nadificação de si ao mesmo
tempo. A fundamentação deve ser pensada então não por uma anterioridade temporal, mas ontológica. Como
Sartre admite para si a posição de Heidegger em Qu’est-ce que la métaphysique ? de que é do nada que vem a
negação e não ao contrário, todas as negações serão pensadas como derivadas dessa negação mais originária que
é, no contexto de L’Être et le Néant, a nadificação de si.
36 Podemos dizer que este é o ponto central de nossa tese e, por esta razão, voltaremos incessantemente a ele. Por
ora, precisamos apenas ressaltar o duplo ato negativo de negação interna e nadificação de si que caracteriza o
modo de ser do para-si.
!109
analisado mais adiante. Em outros termos, o para-si surge como negação interna do em-si
transcendente e nadificação do em-si que ele é - que Sartre denomina também de
acontecimento absoluto (événement absolu) - num duplo movimento de negação que faz
surgir o para-si a partir do ser. Voltaremos a este tema, mas vale destacar por ora que é nesta
dupla nadificação existencial originária que as negações derivadas se fundam e este é o
sentido da afirmação de que o nada “vem ao mundo” pelo para-si.
Verstraeten traz ainda um refinamento no que concerne à análise da negação em L’Être
et le Néant ao amplificar a esfera da negação interna em sua relação com a nadificação de si
para confirmar sua tese de que há simultaneamente contradição e contrariedade entre ser e
nada. Para tal, ele estabelece uma diferença entre dizer que o para-si “n’est pas” o ser pelo
fato dele “ne pas être” isto ou aquilo em particular, a partir de um recurso textual mas não
tematizado pelo próprio Sartre. A fórmula “n’est pas” corresponde à negação interna radical
do para-si enquanto ele não é o em-si como totalidade do ser, ao passo que “ne pas être” diz
respeito à negação interna em seu âmbito singular e qualificado: o para-si não é isto ou aquilo.
Ao admitir estes dois âmbitos da negação, que são interdependentes, Verstraeten mostra que
Sartre realiza uma “étrange synthèse”37 entre Kant et Hegel em seu uso do negativo: no
âmbito da negação interna radical - “n’est pas” - ser e nada não podem ser pensados
separadamente, assim como na contradição hegeliana. Sendo a negação sempre nadificação
do ser, os termos só podem ser concebidos numa relação de negação e assim “le Pour-soi, ou
le néant d’être que l’En-soi s’est fait être en tentant de se fonder, n’est rien hors son rapport à
l’être qu’il n’est pas et se définit exclusivement comme n’étant pas cet être”38; “La négation
radicale, le « n’être pas » ne bénéficie d’aucun substrat communautaire en dehors de la
relation néantisante articulant dans la séparation les deux sphères d’être. Être et néant s’y co-
constituent en divergeant l’un de l’autre” 39; enquanto que no âmbito da negação particular,
assim como a contrariedade kantiana, pressupõe-se outras negações contemporâneas para se
produzir uma afirmação - isto não é aquilo, nem aquilo, nem aquilo… -, ou seja, trata-se de
um “processus de détermination comme un parcours où se nient successivement « tous les
prédicats possibles »”40 . Em suma, a negação interna pressupõe estas duas negações que são
ligadas por um “fil ontologique”, a partir do qual cada negação particular se dá sob fundo da
negação radical e “c’est ainsi que la conscience se fait n’être pas le monde ou être non-monde
ou non-en-soi en se faisant ne pas être telle ou telle région déterminée du monde”41. Estas
negações, que dizem respeito a estrutura da negação interna que faz surgir o para-si e o
campo fenomenal como mundo e, no interior deste, a coisa qualificada - isto ou aquilo (ceci
ou cela) -, não podem se dar, como vimos, sem que se leve em conta a nadificação do em-si
que o para-si é. Além do que, vimos que esta última é contemporânea da negação interna do
em-si que o para si não é, de modo que se pode concluir, acrescentando as análises de
Verstraeten, o seguinte: o para-si é nadificação do em-si que ele é e negação interna do em-si
que ele não é nem totalmente nem particularmente. Estas nuances demostram que no plano
fenomenal da transcendência, que Sartre nomeará de o há (il y a) do mundo, ser e nada são ao
mesmo tempo contrários e contraditórios: contraditórios (no sentido hegeliano) já que os dois
só se definem a partir da relação de negação; contrários visto que, através de uma
simultaneidade de relações negativas, surge uma afirmação positiva e qualificada de algo, de
maneira que positivo e negativo são pensados a partir desta contemporaneidade. Isto posto,
Verstraeten se pergunta: “Que devient alors la revendication sartrienne de la postériorité du
néant par rapport à l’être ? Elle vaut pour l’être de l’être, mais non pour son sens, pour son
« dévoilement » ou son « il y a »”42 . Ou seja, no plano ontológico esta afirmação do néant “à
deux têtes” é possível, mesmo que haja uma prioridade metafísica do ser sobre o nada. A
nosso ver, seria realmente complicado afirmar que neste último plano Sartre é hegeliano,
devido a dissimetria entre ser e nada que estabelece que o ser não precisa do nada para existir.
Mas Verstraeten demonstra que é esta própria necessidade ontológica que é condição de
possibilidade para compreensão da transcendência tal como acabamos de expor, quando diz
que
41 Ibid., p. 159.
42 Ibid., p. 160.
43 EN, p. 38 apud VERSTRAETEN, P. Sartre/Kant/Hegel.
!111
[l]e pour-soi n’est pas le néant en général mais une privation singulière ; il se
constitue en privation de cet être-ci. Nous n’avons donc pas lieu de nous
interroger sur la manière dont le pour-soi peut s’unir à l’en-soi puisque le
pour-soi n’est aucunement une substance autonome. En tant que néantisation,
il est été par l’en-soi [nadificação do em-si que ele é] ; en tant que négation
interne, il se fait annoncer par l’en-soi ce qu’il n’est pas, et, conséquemment,
ce qu’il a à être45 .
facticidade do para-si47, ou o fato do para-si ser esta dupla - ou mesmo tripla48 - nadificação
do ser, a relação efetiva entre os termos se perde, de modo a ser possível pensá-los como
excludentes ou como unidos por via de uma contradição puramente lógica, tal como o faz
Merleau-Ponty.
Por fim, considerar o sujeito como negatividade pura apartada de sua facticidade é
justamente a crítica que Sartre faz a Descartes em seu texto La liberté cartésienne. Em
primeiro lugar, devemos dizer que Sartre faz um elogio à relação que ele encontra na filosofia
cartesiana entre negatividade e liberdade como “ce pouvoir de s’échapper, de se dégager, de
se retirer en arrière”, que seria até uma “préfiguration de la négativité hégélienne”49. Porém,
esta teoria da negatividade cartesiana, ao seu ver, não foi levada a seu termo. Ao colocar o
sujeito como negação pura, Descartes pensa uma “liberté désincarnante et
désindividualisante”, que Sartre aproxima da alma platônica, a qual se caracteriza por ser uma
visão de verdades eternas “mort à son corps, mort à sa vie” 50. A negatividade como liberdade
em Descartes, resume Sartre:
C’est que l’homme, étant cette négation pure, cette pure suspension de
jugement, peut, à condition de rester immobile, comme quelqu’un qui retient
son souffle, se retirer à tout moment d’une nature fausse et truquée; il peut se
retirer même de tout ce qui en lui est nature : de sa mémoire, de son
imagination, de son corps. Il peut se retirer du temps même et se réfugier
dans l’éternité de l’instant : rien ne montre mieux que l’homme n’est pas un
être de « nature ». Mais dans le moment qu’il atteint à cette indépendance
inégalable, contre la toute-puissance du Malin Génie, contre Dieu même, il se
surprend comme un pur néant : en face de l’être qui est tout entier mis entre
parenthèses, il ne reste plus qu’un simple non, sans corps, sans souvenir, sans
savoir, sans personne. Et c’est ce refus translucide de tout qui s’atteint lui-
même dans le cogito51 .
47 Luiz Damon Moutinho, por exemplo, acentua a dupla nadificação - de si e do em-si transcendente - mas sem
considerar as implicações da facticidade, na medida em que afirma que a negação interna “é inteiramente
tributaria de um retorno da negação sobre si mesma- o que significa dizer que ela não envolve o ser em-si”.
MOUTINHO, D. Negação e finitude na fenomenologia de Sartre, p. 144. Na verdade, o autor busca mostrar que
é esta negação voltada para si que faz com que o para-si seja “recusa em se cristalizar”, o que poderíamos
concordar. Mas afirmar que a negação voltada para si “não envolve o ser em-si” e que o depura de “todo
compromisso com o em-si” (ibid) é justamente não considerar as implicações da facticidade, o que, como
veremos ao longo de nosso trabalho, revela como uma estrutura fundamental por se tratar exatamente de uma
dimensão de em-si do para-si da qual ele não se livra jamais (tema que exploraremos na “Terceira parte” a partir
da ideia de uma hantologie).
48 Dupla negação do sentido da relação interna em simultaneidade com a nadificação de si, mas se
Toda a esfera posta entre parênteses pela dúvida metódica cartesiana transforma a
liberdade num nada (rien) que Sartre não pode aceitar. Ele acrescenta ainda que não seria
possível assim pensar a liberdade como um movimento de criação 52, visto que nada se cria
“do nada”, como vimos anteriormente a respeito da nadificação do ser. Neste breve destaque
que fazemos do texto de Sartre sobre a liberdade em Descartes53 o ponto que nos interessa é
justamente esse: Sartre elogia a ligação que ele entrevê na filosofia cartesiana entre liberdade
e negatividade, ao mesmo tempo em que se opõe a esta liberdade que não é nada (rien), que
pode suspender o corpo, o saber, a memória, entre outras estruturas da facticidade, de modo a
se caracterizar como um “refus translucide” que pode postular um cogito livre do falso e da
ilusão, como adequação a si na imanência da verdade de um instante. Contrariamente, como
diz M. Dufrenne, em Sartre, a dúvida “est plus passionné que le doute cartésien: le malin
génie, c’est moi, ou du moins l’esprit de sérieux en moi qui, pour masquer ou annuler ma
bâtardise, veut faire de moi un petit dieu - un faux dieu, - justifie et justicier”54. Tal
comparação mostra uma diferença, pois demostra que a liberdade nos termos sartrianos, por
sua finitude, seus limites, sua “face d’ombre”, se desvia do Deus cartesiano55, e por isso ela
deve ser pensada não como exclusão de toda a facticidade, mas através de um cogito
encarnado. Diante disso, pode-se curiosamente concluir que Sartre critica em Descartes o que
Merleau-Ponty aponta ser o problema de Sartre: pensar o sujeito como negatividade pura,
apartado de toda inerência ao mundo.
52 O que Sartre procura desenvolver, por exemplo, nos Cahiers pour une morale.
53 Para uma argumentação minuciosa sobre Sartre e Descartes em relação à liberdade, ver: MOUTINHO, L.D.
Negação e finitude na fenomenologia de Sartre.
54 DUFRENNE, M. Jalons, p. 170.
55 S.I, p. 300. A ideia de “face d’ombre” está presente também no título de obra sartriana sobre Mallarmé:
Mallarmé. La lucidité et sa face d’ombre. Voltaremos ao tema na “Terceira parte”, quando tratarmos das noções
de translucidez e opacidade.
56 BEAUVOIR, S. de. Merleau-Ponty et le pseudo-sartrisme, p. 206-7. Beauvoir se refere a seguinte citação de
Merleau-Ponty: “Il y a malentendu quand on croit que la transcendance chez Sartre ouvre la conscience: la con-
science chez lui, si l’on veut, n’est qu’ouverture puisqu’il n’y a nulle opacité en elle qui la tienne à distance des
choses, et qu’elle les rejoint parfaitement là ou elles sont, au dehors. Mais c’est justement pourquoi elle n’est pas
ouverte sur un monde, qui dépasse sa capacité de signification, elle est exactement coextensive au monde”. AD,
p. 274, n. 1.
!114
celle du pseudo-Sartre, elle l’est moins si on le confronte à Sartre même; car cet engrenage sans coïncidence
qu’il décrit, c’est exactement ce mélange d’expériences irréductibles que Sartre a si souvent évoqué”.
BEAUVOIR, S. de. op.cit., p. 215.
60 DUFRENNE, M. Jalons, p. 172.
61 Ibid., p. 171. (grifo nosso)
62 DE COOREBYTER, V. Sartre face à la phénoménologie, p. 97.
!115
Neste trecho encontramos uma síntese das principais teses de Merleau-Ponty contra a
filosofia de Sartre. Como vimos na “Primeira parte”, a crítica merleau-pontyana demonstra
que a liberdade soberana e sem raízes representa uma filosofia do sujeito, por vezes
voluntarista, a partir de uma consciência que impõe seu sentido às coisas a cada instante. Este
sujeito é precisamente a consciência que, por ser transparente, é radicalmente distinta das
coisas opacas, ratificando o dualismo de um para-si e um em-si coextensivos. Tal relação
imediata e frontal vale também para a teoria do olhar como via de encontro com o outro, o
que resulta não num verdadeiro encontro mas na confrontação de dois mundos solipsistas e
sem terreno comum. As consequências políticas destas posições revelam uma impossibilidade
de engajamento visto que, nas palavras de Beauvoir, “une conscience pure ne peut que tenir le
monde à distance, non se projeter concrètement en lui : donc s’engager pour Sartre, ce sera
toujours se dégager; la liberté n’apparaît que comme négativité et lorsque Sartre prétend agir,
il se borne à contempler”68. O objetivo de Beauvoir é, pelo contrário, mostrar que em Sartre a
69 Ibid., p. 255.
70 Ibid., p. 209.
71 Ibid., p. 230. “Le coup de la dichotomie” significa que o dualismo é na verdade de Merleau-Ponty, que só
conseguira enxergar em Sartre que algo é ou não é, como neste exemplo: “Aux innombrables textes de Sartre qui
décrivent concrètement l’histoire et la condition prolétarienne, Merleau-Ponty oppose un des ses habituels
dilemmes : le prolétariat est ou n’est rien. C’est oublier que dans la phénoménologie - que Merleau-Ponty
estimait naguère - l’existant ne peut être enfermé dans cette alternative : il se fait”. Ibid., p. 237. (grifo nosso).
Beauvoir lista ainda outras estratégias de leitura de Merleau-Ponty que o possibilitam criar o “pseudo-sartrismo”:
“Le coup du paradoxe” que consiste em dizer que Sartre não pensa o que ele pensa (ibid., p. 209) “Le coup de
sursignification” que consiste em isolar uma frase de seu contexto e carregá-la de um sentido de modo a fazê-la
uma chave do pensamento sartriano (ibid.) e “Le coup des affirmations gratuites”, cujo nome já deixa explicito
seu sentido (ibid., p. 230).
72 Ibid., p. 216.
73 Ibid., p. 256.
!118
médiatrices […]”74. A autora continua sua argumentação demonstrando que os sentidos são
dados pela situação e devem ser considerados através das medições do circuito da ipseidade,
no interior do qual podem ser interrogadas as significações objetivas que indicam o mundo.
As noções de escolha, liberdade e ação, neste contexto, não significam decisão no sentido de
atos de um sujeito voluntário. Aos olhos de Beauvoir, Merleau-Ponty sabe disso e, por esta
razão, age de “má-fé” ao assimilar a praxis tal como Sartre a compreende a decisões
instantâneas e arbitrárias. Por não considerar a dimensão possibilitada pelo circuito de
ipseidade em Sartre, Merleau-Ponty
da teoria da facticidade que revela que as ações não se dão ex nihilo, mas através desta
espessura temporal que não pode se livrar de seu passado78.
Ao unir negatividade, temporalidade e ação para pensar a dialética, Beauvoir reponde
a Merleau-Ponty por uma via que está de acordo com a interpretação de Kojève da filosofia
de Hegel. M. Dufrenne evidencia este caminho que une marxismo e existencialismo, no
interior do qual o homem é pensado como uma negatividade que é princípio de
temporalização, o que na verdade se mostra como uma interpretação antropogênica que
arrisca perder a noção mesma da dialética hegeliana, a qual não se limita ao registro do
humano79. Ao mesmo tempo, como comentamos anteriormente, ao postular a união do para-si
e do em-si como uma impossibilidade, Dufrenne acredita que Sartre impede o curso da
dialética hegeliana, pois todas as tentativas de união se revelam em L’Être et le Néant como
uma “história de fracassos”, fazendo com que os termos não ultrapassem este nível antitético
rumo à totalidade. Entretanto, isto não significa que Dufrenne esteja de acordo com Merleau-
Ponty e o seu ponto de divergência é justamente aquele que nos interessa, que é a facticidade
do para-si, que atesta a “solidariedade” das regiões ontológicas: “sans doute l’en-soi et le
pour-soi sont-ils solidaires en ce sens que l’en-soi d’une part porte le pour-soi dans sa
facticité 80; e ainda:
le pour-soi naît porté par l’en-soi: il n’est pas le fondement de son être, il ne
fonde, tout au long du temps, que son néant d'être. Il y avait là de quoi
répondre déjà aux objections qu’au nom de Merleau-Ponty ou du marxisme
on a pu opposer à un idéalisme de Sartre. Car l’affirmation de l’être est un
point de départ obligé: ‘il y a de l’être parce que le pour-soi est tel qu’il y ait
de l’être81.
78 Beauvoir chega a afirmar que “Sartre n’a jamais admis qu’un acte pût se produire sans motif ni une création
s’opérer ex nihilo”. BEAUVOIR, S. de. Merleau-Ponty et le pseudo-sartrisme, p. 233. O que é contestável, pois
em La Transcendance de l’Ego Sartre afirma esta segunda possibilidade. Este ponto ficará mais claro a partir das
análises de V. de Coorebyter. Com relação à afirmação de Beauvoir, melhor seria se ater à pergunta: “Mais quand
Sartre a-t-il pris le mot d’action pure au sens que Merleau-Ponty lui prête : une action sans racine dans les faits,
et sans prise sur le donné?”. Ibid., p. 243.
79 Cf. DUFRENNE, M. Jalons, p. 75.
80 Ibid., p. 76. (grifo nosso)
81 Ibid., p. 152.
!120
menos este ponto de partida em comum, por mais que seja impossível a união posterior e a
possibilidade de uma dialética aos olhos de Dufrenne. Assim, pelo fato de que Sartre
“souligne toujours la relation a l’en-soi qui ne lie pas seulement la conscience a son objet,
mais la liberté a la facticité”82, torna-se problemático, tal como o fez Merleau-Ponty, pensar o
para-si como “puro nada” que surge “do nada”, pois vimos que a negação é sempre um
nadificar do ser,e não pode ser pensada fora desta nadificação mesma.
Estas conclusões são válidas, no entanto, no contexto de L’Être et le Néant. Na época
de La Transcendance de l’Ego e do artigo sobre a intencionalidade em Husserl, na verdade,
Sartre admitia uma consciência nua, desencarnada, cuja temporalidade se aproxima às críticas
que ele posteriormente endereça a Descartes, no sentido de um cogito instantaneísta e de uma
criação ex nihilo. Esta mudança de posição se dá na época dos Carnets de la drôle de guerre,
que marcam justamente o período de maior influência das filosofias hegeliana e heideggeriana
no pensamento de Sartre em sua nova concepção de temporalidade, assim como em sua
reflexão sobre a facticidade. Encontramos no trabalho de V. de Coorebyter uma série de
investigações sobre estes dois períodos e ainda sobre os desenvolvimentos que decorrem desta
primeira mudança significativa do pensamento sartriano. Com base nesta periodização, o
ponto de crítica deste autor a Merleau-Ponty é exatamente o fato de sua leitura se basear nos
escritos iniciais de Sartre a ponto de não enxergar os pontos de transformação. Citando Le
Visible et l’Invisible, De Coorebyter afirma que Merleau-Ponty pretende encontrar nas
cinquenta primeiras páginas do capítulo “A transcendência”83 de L’Être et le Néant o conjunto
da obra sartriana, sendo que toda sua argumentação vale, na verdade, para os dois textos de
1934: La Transcendance de l’Ego e o texto sobre a intencionalidade. Sem acusá-lo de um
“pseudo-sartrismo” ou de falsificação, De Coorebyter diz, entretanto, que Merleau-Ponty tem
em vista
85 P.II, p. 239.
86 Ibid.
87 AD, p. 268. (grifo nosso)
!122
Néant, sendo que a primeira ressalta a importância da temporalidade, que pode até possibilitar
um pensamento dialético, enquanto que Dufrenne considera ainda um dualismo entre para-si e
em-si que impossibilita este movimento. A partir destes dois pontos de extrema importância
que destacamos nestes autores - facticidade e temporalidade - a argumentação de V. de
Coorebyter de que há uma transformação significativa no pensamento de Sartre na época da
guerra, que não é considerada pela crítica de Merleau-Ponty, mostrou-se como decisiva para
nosso caminho. Justamente porque, no intuito de realizar nossa leitura de L’Être et le Néant,
tornou-se necessário evidenciar esta mudança em torno da facticidade e da temporalidade,
que serão fundamentais para a compreensão da camada de espectralidade, objetivo de
investigação da “Terceira parte”. A nosso ver, é exatamente a estrutura da facticidade que faz
com que Sartre reformule sua concepção de temporalidade de maneira que, a partir de então,
não faz mais sentido falar de uma “consciência pura” e desencarnada tal como o fazia
Merleau-Ponty.
Capítulo II
A consciência nua diante de um mundo poético
1 Embora publicados alguns anos depois - La Transcendance de l’Ego em 1936 et “Une idée fondamentale…”
em 1939 - ambos os textos foram escritos no período de Sartre em Berlim em 1933-34 . Cf. CONTAT, M.;
RYBALKA, M. Les écrits de Sartre, p. 56; p. 71. Estes dois artigos foram objeto de estudo de V. de Coorebyter
em Sartre face à la phénoménologie.
2 Sartre volta a se referir ao seu conceito de consciência como uma tradução de Bewusstsein em L’Imaginaire,
embora desta vez de forma mais precisa : “Nous userons du terme « conscience », non pour désigner la monade
et l’ensemble de ses structures psychiques, mais pour nommer chacune de ces structures dans sa particularité
concrète […] nous inspirant d’un des sens allemands du mot Bewusstsein”. I’re, p. 13.
3 TE, p. 94, nota a.
4 S.I, p. 30.
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5 TE, p. 99.
6 HUSSERL, Ideen I, p. 190.
7 Id. Méditations cartésiennes, p. 69.
8 TE, p. 107.
9 TE, p. 104.
10 TE, p. 96.
!125
11 TE, p. 98.
12 S.I, p. 30. Grégory Cormann evidencia a semelhança entre a descrição de Sartre e uma passagem da segunda
meditação, em que Descartes compara a alma ao vento. CORMANN, G. Passion et liberté. Le programe
phénoménologique de Sartre. In: CABESTAN, P.; ZARADER, J-P. Lectures de Sartre. Paris : Ellipses, 2011, p.
99. A passagem em questão é a seguinte: “je ne m’arrêtais point à penser ce que c’était que cette âme, ou bien, si
je m’y arrêtais, j’imaginais qu’elle était quelque chose extrêmement rare et subtile, comme un vent, une flamme
ou un air très délié, qui était insinué et répandu dans mes plus grossières parties”. DESCARTES, R. Méditations
métaphysiques. Paris: Garnier-Flammarion, 1992, p. 75.
13 TE, p. 98.
14 Ibid.
!126
consciência implica uma vivência (vécu/Erlebnis)15 desta mesma aparição, na medida em que
ela é sempre acompanhada por este aparecer da consciência para si mesma16. Em suma, toda
consciência irrefletida é translúcida na medida em que é movimento não substancial em
direção ao objeto (centro de opacidade) e sua lei de existência consiste no aparecer para si
mesma ao mesmo tempo em que realiza sua estrutura intencional.
Sartre atribui a Husserl, em Leçons pour une phénoménologie de la conscience interne
du temps, a primeira elaboração filosófica desta consciência não posicional de si17. No intuito
de expor seu argumento sobre a consciência não posicional a fim de provar que “il n’y a pas
de Je sur le plan irréfléchi”18, Sartre recorre a uma “expérience concrète” para mostrar que
toda consciência irrefletida, como pensava Husserl, “laisse un souvenir non-thétique que l’on
peut consulter”19. Exatamente porque toda intencionalidade é vivida, isto é, toda apreensão de
objetos se dá por esta consciência que se autoaparece, torna-se possível a rememoração das
apreensões passadas sem perder de vista certa “épaisseur de conscience irréfléchie”20 que
fornece os resultados apreendidos de forma não tética, os quais podem posteriormente ser
objeto de uma tese. Para Sartre, este exemplo demonstra a possibilidade de apreender que
nestes momentos de pura irreflexão não há Eu na consciência, dado que ele só aparece na
reflexão, isto é, quando a cena rememorada é atribuída a um sujeito. Em Husserl, esta
possibilidade de refletir e rememorar é garantida pela estrutura temporal da retenção, que se
caracteriza pelo fato de que “avec le surgissement d’une donnée originaire, d’une phase
nouvelle, la précédente n’est pas perdue, mais « gardée en tête » (c’est-à-dire précisément
« retenue ») et grâce à cette rétention est possible un regard en arrière sur ce qui est écoulé ; la
rétention elle-même n’est pas ce regard en arrière qui fait de la phase écoulé un objet” 21. Este
“olhar para trás” é possibilitado assim pela retenção (que não é reflexão ou rememoração, mas
15 Optamos por traduzir Erlebnis, termo husserliano que a tradição fenomenológica francesa traduz por le vécu,
por “vivência”, de modo a acompanhar o sentido de vivência da palavra em alemão em concordância com o
substantivo francês e não com o particípio passado “vivido”. Em francês o substantivo le vécu diz respeito a uma
experiência vivida, uma vivência, mas a tradução por expérience não conseguiria fazer uma distinção do sentido
desta palavra neste contexto e naquele do empirismo.
16 Como demonstra De Coorebyter, só há consciência intencional de um objeto se há, ao mesmo tempo, esta
consciência não posicional de si como “condition vivante” da intencionalidade. Sem esta consciência, a
“consciência de alguma coisa” não seria vivida (vécue), no sentido de Michel Henry, “sartrien qui s’ignore
suberbement”. DE COOREBYTER, V. Notes. In: SARTRE, J-P. La Transcendance de l’Ego et autres textes
phénoménologiques. Paris: Vrin, p.167-217, 2003. p. 181-2, n. 24.
17 CSCS, p. 150.
18 TE, p. 102.
19 TE, p. 100.
20 TE, p. 101.
21 HUSSERL, E. Leçons pour une phénoménologie de la conscience intime du temps. Paris: PUF, 2013, p. 159.
a sua possibilidade) e Sartre admite do mesmo modo esta característica da consciência que é a
de reter uma “épaisseur de la conscience irrefléchie” que “laisse un souvenir non-thétique que
l’on peut consulter”, “gardée en tête”, tanto que este é o seu recurso para provar a tese de que
não há Eu no plano irrefletido22. No entanto, há outra maneira de “olhar para trás” que não a
irreflexão, desta vez para fazer da consciência um objeto de tese, modificando sua estrutura,
que é o caso da reflexão, plano derivado do primeiro e de onde surge o Eu. Neste ponto, Sartre
se apoia ainda nas premissas de Husserl que, a seu ver, demonstra muito bem como a
passagem do irrefletido ao refletido modifica a natureza da consciência de modo que “il faut
donc distinguer : l’être pré-phénomenal des vécus, leur être avant qu’on se tourne vers eux par
la réflexion, et leur être comme phénomène. Quand on se tourne attentivement vers le vécu et
qu’on le saisit, il obtient un nouveau mode d’être” 23. Porém, enquanto na fenomenologia
husserliana esta transformação é visada em termos de “perda de ingenuidade” da atitude
natural, Sartre pensa que a mudança mais essencial é exatamente a aparição do Eu (Je) para a
consciência reflexiva24 . Esta diferença é significativa uma vez que ela evidencia que Husserl
busca fazer uma distinção entre o fluxo pré-reflexivo e a reflexão tendo em vista os resultados
da reflexão, enquanto que Sartre faz o movimento contrário, ao focar sobre a natureza do pré-
reflexivo (irrefletido). É neste sentido que V. de Coorebyter afirma que o pré-reflexivo em
Husserl é “antisartrien”, pois, enquanto que “l’irréfléchie husserlien n’est rien d’autre que
cette “possibilité de la réflexion”, que cette ébauche dont toute la dignité tient à ce qu’elle
autorise et prépare la réflexion”, em Sartre é a reflexão que deve ser definida a partir do
irrefletido25. Com base nesta diferença é que podemos compreender o porquê de Sartre
designar o campo irrefletido como esfera “pura”, ao passo que a reflexão é vista como um
22 Embora Sartre não fale aqui em retenção e nem em protensão (direção ao porvir). Além disso, em La
Transcendance de l’Ego, Sartre não confronta a teoria do tempo husserliana com a sua que, como veremos, se
caracteriza nesta época como uma temporalidade instantaneísta. A respeito da teoria do tempo em Husserl, Sartre
conclui da seguinte maneira: “On dira que pourtant il faut un principe d’unité dans la durée pour que le flux
continuel des consciences soit susceptible de poser des objets transcendants hors de lui. Il faut que les
consciences soient des synthèses perpétuelles des consciences passées et de la conscience présente. C’est exact.”
TE, p. 97. Podemos observar neste trecho que Sartre sequer fala da protensão e ainda que, segundo De
Coorebyter, trata-se de uma leitura mais kantiana do que husserliana da retenção, o que sugere o uso do termo
“síntese”, ausente do §39 das Leçons. DE COOREBYTER,V. Notes, p. 179, n. 15. Já em L’Imaginaire, Sartre se
refere novamente à teoria do tempo husserliana, desta vez utilizando-se do vocabulário das Leçons, mas ainda
nos moldes da síntese: “Une conscience est tout entière synthèse, tout entière intime à elle-même : c’est au plus
profond de cette intériorité synthétique qu’elle peut se joindre, par un acte de rétention ou de protention, à une
conscience antérieure ou postérieure.” I’re, p. 57.
23 HUSSERL, E. Leçons, p. 176.
24 Cf. TE, p. 100.
25 DE COOREBYTER, V. Sartre face à la phénoménologie, p. 305.
!128
“envenenamento”: “avant d’être « empoisonnés » mes désirs ont été purs; c’est le point de vue
que j’ai pris sur eux qui les a empoisonnés”26.
A pré-reflexividade em Husserl (que não usa este termo) pode ser considerada a partir
do jogo de intencionalidades que ele descreve no §39 das Leçons, em que procura mostrar que
é o próprio fluxo da consciência que se constitui como unidade, posição que é cara a Sartre
em seu intuito de mostrar a inutilidade de um Eu como centro unificador de consciências. La
Transcendance de l’Ego dá simplesmente como resolvida a questão por Husserl e aceita esta
autounificação do fluxo da consciência, o que soluciona de um só golpe este problema e
também o de garantia de individualidade. No entanto, nesta época, o próprio Husserl não
devia estar suficientemente convencido de suas análises quando diz que “aussi choquant
(sinon même absurde au début) que cela semble de dire que le flux de la conscience constitue
sa propre unité, il en est pourtant ainsi”27. Esta posição arbitrária, que assume um
estranhamento, nos leva a suspeitar que esta falta de argumentação teórica seja um indício do
fato de que a questão da unidade teve de ser repensada em sua filosofia com a posterior
inserção do Eu transcendental, que cumpre tal função. De todo modo, em La Transcendance
de l’Ego, Sartre só acrescenta ao problema o fato de que o próprio objeto transcendente
visado pelas consciências faz o papel de garantir a unidade, com o objetivo de provar que não
há necessidade de um Eu formal.
No contexto das Leçons, a unidade do fluxo se dá por um jogo de duas
intencionalidades que operam em cada consciência do tipo “retenção” - e que se exigem
mutuamente, dado que são “deux côtés d’une seule et même chose, enlacées l’une à l’autre” 28,
de modo a permitir a apreensão do fluxo em sua duração temporal. Em outros termos, para
que haja consciência de durar, é necessário que o fluxo de consciência apareça a si mesmo
através das retenções, senão seria impossível caracterizar uma fase como “atual” ou como
“agora”29. Assim, torna-se indispensável que uma temporalidade se dê para constituir um
outro tempo, onde qualquer coisa dura. A primeira temporalidade - constituínte - é dada pela
intencionalidade longitudinal30 , enquanto que a temporalidade de algo que dura é dada pela
26 TE, p. 107.
27 HUSSERL, E. Leçons, p. 105-106.
28 Ibid., p. 108.
29 Ibid., p. 160.
30 Que Sartre chama de “transversal”. Cf. TE, p. 97. Em L’Imaginaire, Sartre fala novamente em consciência
transversal, mas desta vez para designar a consciência não posicional de si que em La Transcendance de l’Ego
era designada unicamente como irrefletida. Cf. I’re, p. 35; p. 287.
!129
31 BERNET, R. Origine du temps et temps originaire chez Husserl et Heidegger. Revue Philosophique de
Louvain. v. 85.n. 68, p. 499-521, 1987.
32 HUSSERL, E. Leçons, p. 160.
33 MONNIN, N. Une réflexion pure est-elle possible? Alter: Sartre phénoménologue. n. 10, p. 201-227, 2002, p.
207. Embora seja aqui que identificamos a tentativa husserliana de pensar uma dimensão pré-reflexiva, a
diferença de conteúdo nas elaborações de ambos os autores é significativa, conforme evidencia a própria autora.
Husserl desenvolve as descrições das intencionalidades transversais e longitudinais a fim de dar conta da
constituição do tempo, o que não parece ser o objetivo de Sartre nesta época, ao pensar uma consciência não
posicional de si; tanto que este menciona em La Transcendance de l’Ego a consciência “transversal” de Husserl
no intuito de pensar a unidade do fluxo. O ponto em comum parece ser o de que a intencionalidade longitudinal
em Husserl possui uma dimensão de “autoaparição”, mas que só pode ser apreendida por uma reflexão
objetivante. Para Monnin, é a concepção sartriana de reflexão pura que tentará dar conta deste problema.
34 BERNET, R, op.cit., p. 507.
!130
plano da humanidade. O primeiro, pura translucidez, não pode comportar nenhuma esfera
egológica35 ou qualquer outro tipo de conteúdo e por isso trata-se de um plano transcendental
sem sujeito nem objeto, como define La Transcendance de l’Ego36 . No intuito de pensar em
como se constitui o “plano da humanidade”, ou o plano pessoal, Sartre revela que segue
Husserl “dans chacune des admirables descriptions où il montre la conscience transcendentale
constituant le monde en s’emprisonnant dans la conscience empirique”37 . Este
“aprisionamento” é constituído pela esfera transcendental, mas esta última não é pensada no
sentido kantiano - como uma condição de possibilidade, somente de direito -, mas trata-se de
uma esfera “de fato”, “accessible à chacun de nous dès qu’il a opéré la « réduction »”38.
No texto em questão, Sartre demonstrará, na verdade, como se constituem os objetos
psíquicos que compõem o Ego, através de um tipo de reflexão que ele denominará de impura
ou cúmplice, conforme analisaremos na “Terceira parte”. Esta divisão entre a esfera
translúcida transcendental pura e a esfera pessoal, “niveau de l’humanité”, impura, permanece
presente pelo menos até os primeiros Carnets de la drôle de guerre, onde Sartre descreve o
que ele denomina de consciência nua (conscience nue). Dito isto, em La Transcendance de
l’Ego, Sartre atribui o Eu à esfera pessoal impura: “le Je n’apparaît qu’au niveau de
l’humanité”39. Mas esta posição suscita interrogações: se o Eu (Je) aparece somente no nível
da humanidade, isto significa que Sartre admite uma consciência que não seja humana? O que
seria esta humanidade? Como uma consciência não humana se torna consciência humana?
Estas questões não são discutidas em seu primeiro texto e nem posteriormente, mas de fato
Sartre se refere a uma consciência desumanizada ao longo do primeiro carnet como, por
35 Observamos ainda que o que o autor denomina neste texto de pessoalidade está vinculado a presença de
alguma forma de um Eu no campo transcendental da consciência. Como veremos mais adiante, há uma mudança
de posição com relação a este ponto, já que, em L’Être et le Néant, Sartre irá admitir uma concepção de
pessoalidade não mais vinculada a um Eu - dado que este continuará sendo compreendido como um objeto
transcendente para a consciência - mas através do circuito de ipseidade do para-si.
36 Ver também CSCS, p. 156. A caracterização sartriana de um campo sem sujeito nem objeto inspirou Deleuze
em suas análises sobre um puro plano de imanência, embora para ele “[...] a relação do campo transcendental
com a consciência é somente de direito”. DELEUZE, G. L’immanence: une vie… In: Deux régimes de fous:
textes et entretiens 1975-1995. Paris : Minuit, 2003, p. 359. A originalidade sartriana consiste no que J-M.
Mouillie denominou de uma “subjetividade sem sujeito”, a partir da qual se pode conceber a consciência
enquanto dimensão de aparição dos fenômenos e não um fenômeno subjetivo em si, de onde mesmo o sujeito,
enquanto fenômeno entre outros, provém. MOUILLIE, J-M. Sartre: Conscience, ego et psyche. Paris: PUF,
2000, p. 48. É ainda neste sentido que, para alguns, é possível compreender retrospectivamente esta primeira
posição sartriana, exposta principalmente em La Transcendance de l’Ego, como um primeiro sinal da “morte do
sujeito”. DE COOREBYTER, V. Introduction. In: SARTRE, J-P. La Transcendance de l’Ego et autres textes
phénoménologiques. Paris: Vrin, p. 7-76, 2003, p. 7.
37 TE, p. 95-96.
38 TE, p. 95.
39 TE, p. 96.
!131
exemplo, quando ele escreve a respeito de sua experiência na guerra: “La Guerre est une
invite à me perdre, à renoncer à moi totalement, même à mes écrits, à lâcher tout ce que je
tenais si âprement, pour n’être plus q’une conscience nue contemplant les diverses vies
interrompues de mon moi”40. A interpretação bastante peculiar que Sartre fornece à
consciência transcendental faz com que ele a considere como uma dimensão impessoal cujo
acesso permitiria um tipo de posição do olhar em relação a si mesmo que seria aquela de um
“árbitro” que julga de fora e “do alto” sua humanidade: “Ce spectateur, c’est la conscience
transcendantale, désincarnée, qui regarde “son” homme”41. A redução fenomenológica toma
aqui a forma de um desprendimento da humanidade e através dela Sartre procura se colocar
“acima do homem [em si mesmo]”42. Parece ser então neste sentido que Sartre compreende a
constituição empírica a partir da consciência transcendental como processo de “[une]
conscience transcendantale qui se fait réalité-humaine43”; e isto o leva ainda a comparar a
redução fenomenológica a uma espécie de morte que “supprime l’homme entre la conscience
et le monde […]. La mort est un événement au niveau de l’homme et non au niveau de la
conscience”44. Podemos ver claramente a partir destes trechos que a consciência nua se
caracteriza justamente por ser uma radicalização da consciência transcendental husserliana,
que se revela nesse contexto como campo sem sujeito nem objeto, impessoal, a partir do qual
a humanidade toma sua forma. Tendo em vista esta radicalização da morte como
acontecimento no nível da humanidade, conclui Sartre: “Il reste une conscience nue sans point
de vue en face d’un monde nu”45.
e husserliana. Isto porque, em Heidegger, além de não podermos compreender o Dasein com base num
paradigma da consciência, tal concepção difere radicalmente da ideia de uma “realidade-humana”, entendida
como nível da humanidade, já que a crítica heideggeriana se dirige justamente às premissas metafísicas do
humanismo.
44 CDG, p. 227.
45 Ibid.
!132
em L’Être et le Néant será criticada como uma “caricatura”46, permite pensar um mundo ao
mesmo tempo exterior à consciência - não transformado em ideias e representações pelo
“espírito aranha” do idealismo - e relativo a ela : “La conscience et le monde sont donnés d’un
même coup”47 . A seu ver, isto permite escapar também ao realismo, já que o mundo se revela
como campo fenomenal onde as coisas já aparecem à consciência contendo significações e
qualidades objetivas, conforme o exemplo aparentemente sem sentido que encontramos neste
texto: “C’est une propriété de ce masque japonais que d’être terrible, une inépuisable,
irréductible propriété qui constitue sa nature même” 48. A tarefa do autor neste breve texto
consiste em desfazer a interioridade “gástrica” do sujeito, cujos processos psicológicos ou
mentais projetariam qualidades no mundo exterior. Para tal, a consciência deve ser
movimento em direção a um mundo que já aparece com suas significações objetivas - que não
são a soma de reações subjetivas de um sujeito - mas que resultam desta maneira de “s’éclater
vers” alguma coisa; aqui Sartre conclui, em afinidade com La Transcendance de l’Ego,
dizendo que “tout est dehors, tout, jusqu’à nous-mêmes : dehors, dans le monde, parmi les
autres”49. Neste pequeno texto sobre a intencionalidade, Sartre chega a citar Heidegger e a
noção de ser-no-mundo para exprimir esta maneira intencional de se estar jogado no “fora”,
no mundo, embora ele ainda não tenha os recursos que serão essenciais para integrar esta
noção ao seu pensamento, como ocorrerá posteriormente, conforme veremos em nossas
análises de L’Être et le Néant. De todo modo, a intencionalidade permite que uma nova
concepção de mundo se desenhe aos seus olhos como campo fenomenal, onde as coisas
aparecem em sua textura mesma, mas relativas à consciência, sem que com isso sejam
interiorizadas e assimiladas por ela, pois “Husserl ne se lasse pas d’affirmer qu’on ne peut pas
dissoudre les choses dans la conscience”50. Este mundo fenomenal, referido como “le monde
des artistes et des prophètes”51 , ao ser relativo à consciência, já aparece, como dissemos,
qualificado e com suas significações próprias. A este aparecer, Sartre atribui qualidades que
seriam ligadas tradicionalmente à concepção subjetiva dos sentimentos e nisto reside seu
caráter poético: as coisas aparecem como sendo “effrayant, hostile, dangereux, avec des
46 EN, p. 145.
47 S.I, p. 30.
48 S.I, p. 32.
49 S.I, p. 32.
50 S.I, p. 29.
51 S.I, p. 32.
!133
52 S.I, p. 32.
53 TE, p. 105. (grifo nosso)
54 Ibid.
55 TE, p. 102.
!134
Diante disso, de que modo este mundo poético, de forças, colorações, “horreur et
charme dans les choses”56, pode ser comparado ao “mundo nu”, revelado pela consciência
nua? Mesmo que a formulação acima citada - il reste une conscience nue sans point de vue en
face d’un monde nu - seja feita na época do primeiro dos Carnets, ela se baseia ainda nesta
consciência desencarnada e impessoal que nos apresentam os textos do período berlinense.
Esta mesma afirmação, como vimos, se refere à visão particular sartriana da redução
fenomenológica enquanto uma consciência transcendental “qui regarde ‘son’ homme”, de
acordo com a divisão entre uma consciência transcendental impessoal - sem Eu - e o plano da
“humanidade”. O que seria então este mundo nu? Sartre não o descreve nestes textos, mas
podemos recorrer ao seu romance La Nausée para pensá-lo, assim como para investigarmos
esta divisão de planos57.
56 S.I, p. 32.
57 Pensamos a relação entre as obras propriamente filosóficas e as obras literárias de Sartre de acordo com a ideia
de Franklin Leopoldo e Silva de “vizinhança comunicante”. Segundo este autor, falar de uma vizinhança
comunicante entre as diferentes formas de produção sartriana significa ter em vista que cada meio de expressão
resguarda sua particularidade, mas acessa o outro por uma espécie de “via interna”, sem mediação exterior. Isto
que dizer que não cabe à literatura, por exemplo, concretizar a filosofia, que seria abstrata. Ambas as expressões
se dão devido à interligação abstrato-concreto/universal-particular presente na obra sartriana como um todo.
SILVA, F. L. Ética e literatura em Sartre: ensaios introdutórios. São Paulo: Unesp, 2004. Dito isto, cremos ser
legítimo e rico explorar esta interrelação em nossa investigação, tal como faremos em seguida com La Nausée.
58 O mito do “homem só” (L’homme seul) é tema de várias análises de V. de Coorebyter sobre os romances
Neste contexto, Sartre introduz aos poucos uma distinção entre o mundo que nos
aparece cotidianamente em sua familiaridade e a experiência da estranheza, numa afinidade
inesperada com o tema da inautenticidade heideggeriana que precede sua leitura mais
aprofundada de Être et Temps. Na verdade, antes mesmos dos episódios em que é tomado pela
náusea, Roquentin já vive certa estranheza por ser um “homem só”, pois ele evidencia a todo
tempo que os sentidos habituais são dados pela convenção social, como podemos observar na
famosa cena em que ele vê o próprio rosto diante do espelho:
[la chose grise] c’est le reflet de mon visage. Souvent, dans ces journées
perdues, je reste à le contempler. Je n’y comprends rien, à ce visage. Ceux
des autres ont un sens. Pas le mien. Je ne peux même pas décider s’il est beau
ou laid. Je pense qu’il est laid, parce qu’on me l’a dit. Mais cela ne me frappe
pas. Au fond je suis même choqué qu’on puisse lui attribuer des qualités de
ce genre, comme si on appelait beau ou laid un morceau de terre ou bien un
bloc de rocher61.
Aos poucos o personagem solitário vai desfazendo aos olhos do leitor a familiaridade
dos sentidos convencionais através dos quais o mundo na maioria das vezes se apresenta, por
via de uma experiência que encontrará seu auge na náusea, com o consequente desvelamento
do “mundo nu”. O mundo “dos profetas e dos artistas” sofre assim um desencantamento que
nos convida a uma desnaturalização dos sentidos, própria à reflexão fenomenológica: “C’est
donc ça la Nausée : cette aveuglante évidence?” 63, diz Roquentin. Contudo, longe de ser uma
experiência voluntária, ou um método de filósofo, a náusea é um acontecimento que nada
pode prever ou controlar; ela é uma experiência involuntária que, ainda de acordo com La
J’étais assis, un peu voûté, la tête basse, seul en face de cette masse noire et
noueuse, entièrement brute et qui me faisait peur. Et puis j’ai eu cette
illumination. Ça m’a coupé le souffle. Jamais, avant ces derniers jours, je
n’avais pressenti ce que voulait dire « exister ». J’étais comme les autres,
comme ceux qui se promènent au bord de la mer dans leurs habits de
printemps. Je disait comme eux « la mer est verte; ce point blanc, là-haut,
c’est une mouette », mais je ne sentait pas que ça existait, que la muette était
une « mouette-existante »; à l’ordinaire l’existence se cache. Elle est là,
autour de nous, en nous, elle est nous, on ne peut pas dire deux mots sans
parler d’elle et, finalement, on ne la touche pas. Quand je croyais y penser, il
faut croire que je ne pensais rien, j’avais la tête vide, ou tout juste un mot
dans la tête, le mot « être ». Ou alors, je pensais…comment dire? Je pensais
l’appartenance, je me disait que la mer appartenait à la classe des objets verts
ou que le vert faisait partie des qualités de la mer. Même quand je regardait
les choses, j’étais à cent lieues de songer qu’elle existaient : elles
m’apparaissaient comme un décor. Je les prenais dans mes mains, elles me
servaient d’outils, je prévoyais leurs résistances. Mais tout ça se passait à la
64 N, p. 38.
65 N, p. 47. (grifo nosso)
66 N, p. 46.
67 BORNHEIM, G. Sartre.
!137
68 N, p. 181-2.
69 Segundo De Coorebyter, “c’est pourquoi La nausée est un roman et non un essai ou un récit autobiographique
: le choc décrit par Roquentin n’est ni une rencontre vécue par l’auteur, ni l’exposé d’un concept, mais le seul
moyen alors accessible de « réaliser » la contingence sous les yeux du lecteur - l’expérience de l’être brut ne se
laissant décrire que comme expérience brute de l’être, et non penser en catégories, inadéquates par nature”. DE
COOREBYTER, V. Sartre avant la phénoménologie, p. 82-3.
70 Ibid., p. 85.
71 N, p. 184.
72 Mundo no qual Roquentin, como mencionamos anteriormente, já vivia com estranheza, dado que ao se manter
isolado socialmente, ele sentia que não pertencia ao “plano da humanidade”, o qual era dado somente aos outros
e não a si: “Quand je suis sorti de la brasserie Vézelise, il était près de trois heures; je sentais l’après-midi dans
tout mon corps alourdi. Pas mon après-midi : la leur, celle que cent mille Bouvillois allaient vivre en commun”.
N, p. 79.
73 N, p. 115.
!138
74 TE, p. 127.
75 TE, p. 128.
!139
que se apresenta imediatamente para a consciência num instante, pois se a cada momento há
uma criação ex nihilo que implica uma existência nova, a reflexão que ultrapassa esta doação
instantânea recai necessariamente na esfera impura. É assim que o autor compreende nesta
época a ação, por exemplo, que, pelo fato de envolver diferentes momentos de realização,
pertence ao polo dos objetos transcendentes, isto é, a ação é relegada à esfera impura. Em
suma, a espontaneidade é assim designada como um movimento incessante de criação, cuja
verdade reside nas diversas e sucessivas presenças que não devem nada ao passado, ao corpo
e a história - os quais operam somente no nível da humanidade. Sendo assim, cada pretensão
reflexiva que busca captar aquilo que se apresenta para uma consciência para além do instante
presente, escapa à evidência do cogito, pois afirma “mais do que sabe”:
Ont voit ici deux réflexions : l’une, impure et complice, qui opère un passage
à l’infini sur le champ et qui constitue brusquement la haine à travers
l’« Erlebnis », comme son objet transcendant, - l’autre, pure, simplement
descriptive, qui désarme la conscience irréfléchie en lui rendant son
instantanéité. Ces deux réflexion ont appréhendé les mêmes donnés certaines
mais l’une a affirmé plus qu’elle ne savait et elle est dirigée à travers la
conscience réfléchie sur un objet situé hors de la conscience76.
“Ça coule en moi, plus ou moins vite, je ne fixe rien, je laisse aller. La plupart du temps, faute
de s’attacher à des mots, mes pensées restent des brouillards. Elles dessinent des formes
vagues et plaisantes, s’engloutissent : aussitôt, je les oublie”78. Neste contexto, querer fixar as
próprias lembranças é sair do tempo de pura presença em busca de um “refúgio no passado”,
já que o tempo das presenças é o tempo da náusea, imersão no mundo nu, onde nenhuma
causa anuncia o acontecimento porvir e “tout pouvait arriver” 79. O passado, neste contexto, é
um “luxe de propriétaire” que Roquentin denomina de “passé de poche”, “lugar” onde se
guardam as lembranças arquivadas com a intenção de justificar, por um acúmulo de
experiências e conhecimentos, uma existência que, como pura presença, é injustificável, pura
leveza e gratuidade, por ser livre e contingente. Contra esse passado-refúgio, Roquentin
exclama: “Commode passé! Passé de poche, petit livre doré plein de belles maximes”80; e
explica: “Pour moi le passé n’était qu’une mise à la retraite : c’était une autre manière
d’exister, un état de vacance et d’inaction; chaque événement, quand son rôle avait pris fin, se
rangeait sagement, de lui-même, dans une boîte et devenait événement honoraire : tant on a de
peine à imaginer le néant. Maintenant, je savais : les choses sont tout entières ce qu’elles
paraissent - et derrière elles…il n’y a rien”81. O passado é assim visto como refúgio do tempo
nu e do mundo nu da contingência, pois é comodamente julgado e analisado por uma atitude
reflexiva, que busca a evasão do estar diante de um mundo “sem explicações”. “Pura sucessão
de acontecimentos”, é assim que Roquentin define a vida: nada acontece, os momentos se
sucedem e só. Ele diz: “Quand on vie, il n’arrive rien. Les décors changent, les gens entrent et
sortent, voilà tout. Il n’y a jamais de commencements. Les jours s’ajoutent aux jours sans
rime ni raison, c’est une addition interminable et monotone” 82. Para fugir ao massante tempo
sem sentido, La Nausée mostra que as pessoas forjam em geral aventuras, que é uma
linearidade romanceada que une acontecimentos isolados e sem razão. Na aventura, o homem
torna-se um contador de histórias, pois “il cherche à vivre sa vie comme s’il la racontait” 83.
Para Roquentin, no entanto, é preciso escolher: “viver ou narrar”, isto é, desvelar o tempo nu
da existência como pura presença se fazendo a cada instante, ou criar ilusoriamente um tempo
humano com começos e fins, onde os momentos se encadeiam como numa história literária.
78 N, p. 21.
79 N, p. 115.
80 N, p. 104.
81 N, p. 140.
82 N, p. 64.
83 Ibid.
!141
84 Daí também a crítica aos “momentos perfeitos”, colocado em cena pela personagem Anny, bem resumida por
De Coorebyter: “Puisque la vie n’offre pas d’aventures, elle [Anny] avait choisi de les provoquer, de les forcer :
le repérage inquiet de « situations privilégiées » grosses de promesses, leur métamorphoses volontaristes en
« moments parfaits » qu’un simple détail pourrait faire capoter, valent tentative de faire descendre le fatal dans le
réel”. DE COOREBYTER, V. Sartre avant la phénoménologie, p. 66. Para outras análises sobre La Nausée, ver
o capítulo - “L’épreuve du romanesque” - deste mesmo livro.
85 N, p. 86.
86 CDG, p. 185.
Capítulo III
A mudança: temporalidade e facticidade
1 CDG, p. 495.
2 CDG, p. 494; CL, p. 914.
3 CDG, p. 468.
!143
filosofia para compreender as questões históricas: “je souhaitais qu’on me procurât des outils
pour comprendre l’Histoire et mon destin”4. Ele acreditava assim, neste momento de
transição, que a filosofia heideggeriana lhe forneceria enfim recursos conceituais para o que
podemos chamar de uma primeira virada em direção à historicidade em seu pensamento,
datando uma segunda virada na integração do pensamento marxista à sua filosofia, momento
que pode ser situado em torno dos anos sessenta e cuja expressão máxima encontramos na
Critique de la raison dialectique. A influência de Heidegger, diz Sartre, “est venue
m’enseigner l’authenticité et l’historicité juste au moment où la guerre allait me rendre ces
notions indispensable”5, ou seja, no momento em que “la guerre et le Stalag6 m’avaient
disposé à comprendre l’existence”7. Esta transformação é confirmada mais tarde em uma
entrevista de 1970 como tendo sido uma mudança radical operada pela guerra que o ensinou
“a força das coisas”8. Um acontecimento histórico radical foi então essencial para a
reelaboração de sua filosofia, principalmente no que diz respeito ao conceito de “ser-no-
mundo”9, exatamente na época da redação de L’Être et le Néant. Apesar de ter lido algumas
páginas de Être et Temps anteriormente, a leitura mais aprofundada desta obra se deu durante
o período em que Sartre estava preso no Stalag 10, no momento em que elaborava sua
ontologia (1940-41). Esta leitura, muitas vezes considerada apressada e superficial, foi
responsável por transformações essenciais em seu pensamento. Por esta razão, mais do que
provar se Sartre era mau leitor de Heidegger ou justificar os possíveis erros de leitura pelo
fato de ser um pensamento ainda recente no cenário francês - levando em conta ainda a
dificuldade de unir o ideal cartesiano de clareza e a obscura profundidade da tradição
romântica alemã11 - parece-nos ser mais interessante a posição expressa por Alain Renaut,
quando ele diz: “il me semble futile, pour cerner ce qu’il a dû en être de cette relation à Sein
und Zeit, de vouloir recenser les contresens ou les mécompréhensions: plus intéressant me
paraît être de chercher à savoir comment Sartre lui-même, lisant Heidegger, se représentait
l’incidence de ce qu’il lisait (bien ou mal : c’est, en l’occurrence, secondaire) sur sa propre
4 CDG, p. 470.
5 CDG, p. 466.
6 Trata-se de um campo de prisioneiros de guerra.
7 MP1, p. 1135-6.
8 S.IX, p. 99.
9 Id. “Ser-no-mundo” é aqui referido como “être-au-monde”, enquanto que em L’Être et le Néant ele adota a
l’effet de cette lecture sera sans retour : par son ontologie du Dasein,
Heidegger fait découvrir à Sartre l’idée d’être-au-monde, le primat du futur et
l’articulation des trois dimensions temporelles, ce qui le libérera de la
psychologie phénoménologique des facultés qu’il développait jusqu’alors sur
le thème de la réflexivité et de l’image au moyen d’un cogito étroitement
instantanéiste et d’une intentionnalité limitée à la saisie d’un objet
déterminé13.
12 RENAUT, A. Sartre, le dernier philosophe. Paris: Grasset&Fasquelle, 1993, p. 44. O mesmo pode ser dito
com relação à leitura de Sartre de outros filósofos, como Husserl e Descartes, por exemplo.
13 DE COOREBYTER, V. L’Être et le néant, ou le roman de la matière, p. 4.
14 CDG, p. 606.
!145
indicam que a nova perspectiva da temporalidade conduz necessariamente para uma crítica do
modo mesmo de conceber a consciência que vingava até então: a consciência nua passa a ser
descrita como consciência-refúgio. Sartre associa suas concepções filosóficas às suas
experiências pessoais e à sua classe social nos Carnets (dado que se trata de um diário
íntimo), no sentido que a ideia de uma consciência completamente desprendida de seu
passado passa a ser interpretada como uma atitude pequeno-burguesa diante dos
acontecimentos reais da guerra. Sartre passa a identificar então um “sentimento de
irrealidade”, que ele remete à literatura de Gide, que consistia em “prende le réel pour un
décor”15, com uma postura de tomar a realidade do “haut de la tour”; atitude filosófica da
consciência transcendental sartriana que do alto “olhava seu homem”, refugiada em um plano
purificado onde qualquer signo da humanidade - como o Ego, principalmente - era
considerado como um “visitante indiscreto”16. O plano da humanidade, para onde o Ego fora
rebaixado, cindido do plano transcendental que passa a ser qualificado como refúgio, era
assim um terreno de contemplação, que poderia ser olhado “à travers la vitre en toute
tranquillité, en toute sévérité”17. Esta divisão e suas consequências políticas mostram a
pertinência da crítica de Merleau-Ponty quando este argumenta - embora tendo em vista
L’Être et le Néant - que considerar o sujeito como um “puro nada” significa fazer dele uma
coisa que nada pode atingir ou modificar, de modo que esta não comporta nem mesmo graus.
Consequentemente, as ações “puras”, fundamentadas numa liberdade “sem raízes”, visam
apenas ao instante, de maneira a realizar uma política contemplativa de conquista e violência,
como mostramos anteriormente.
A guerra faz com que Sartre se retire de seu refúgio e passe a reconsiderar sua
concepção de ação assim como a cisão entre o plano da humanidade e o plano transcendental.
Isto não significa que uma espécie de divisão de planos não permaneça de algum modo
atuante e nem que a posição crítica em relação ao Ego desapareça. O que ocorre de fato é um
verdadeiro reposicionamento dos problemas a partir do qual a consciência nua, agora vista
como consciência-refúgio, não serve mais de base para o pensamento sartriano. Neste
momento, Sartre empreende um novo vocabulário, cuja influência de Hegel e Heidegger se
deixa entrever: ser e nada, projeto, “realidade-humana”, para-si e em-si, ipseidade. Entretanto,
15 CDG, p. 614.
16 CDG, p. 615.
17 CDG, p. 615.
!146
18TE, p. 98.
19TE, p. 129.
20Cf. §5 de Être et Temps.“Le traité d’Aristote sur le temps est la première interprétation circonstanciée de ce
phénomène qui nous ait été transmise. Elle a déterminé de manière essentielle toute conception ultérieure du
temps, celle de Bergson y comprise”. HEIDEGGER, M. Être et Temps. Paris: Authentica, 1985, p. 41(Trad. E.
Martineau)
!147
originário e derivado é fundamental, dado que toda ontologia está aí enraizada. Assim, em
primeiro lugar, Heidegger estabelece que “la temporalité n’“est” absolument pas un étant. Elle
n’est pas, mais se temporalise”21. A temporalização, por sua vez, diz respeito à estrutura da
cura (souci/Sorge)22 do Dasein, mais especificamente, “la temporalité se dévoile comme le
sens du souci authentique”23 de modo que compreender o fenômeno do tempo não é tomá-lo
como objeto de conhecimento, mas sim apreender o seu sentido a partir da estrutura mesma
do Dasein. Diante deste vocabulário heideggeriano, devemos optar por ressaltar a questão que
nos é aqui fundamental, visto que explicitar todas as estruturas de Être et Temps que estão em
jogo nesta compreensão seria uma tarefa extensa que nos afastaria de nosso objetivo. O que
nos interessa na articulação heideggeriana desta questão é modo como ele evidencia o
problema da concepção instantaneísta de tempo, como por exemplo no §81 de Être et Temps.
Neste parágrafo, podemos entrever a distinção de uma temporalidade originária do Dasein e
de um tempo derivado como “tempo do mundo”, distinção que será cara a Sartre e que se
encontra de algum modo já em Husserl24. O “tempo do mundo” é também nomeado por
Heidegger como “tempo do agora” (temps du maintenant) e ele corresponde à compreensão
“vulgar” de tempo que temos cotidianamente como um fluxo de instantes que chegam e
passam num curso temporal eterno. Nesta perspectiva, o passado aparece como o “agora que
não é mais” e o futuro como um “agora que ainda não é” e assim “la compréhension vulgaire
du temps […] voit le phénomène fondamental du temps dans le maintenant, plus précisément
dans le maintenant pur, amputé de sa structure pleine, que l’on nomme « présent »”25. A partir
21 Ibid., p. 253.
22 A estrutura da cura diz respeito à unidade do Dasein que é o efeito de uma temporalização e não de um
presença subsistente no interior de um quadro externo do tempo. DASTUR, F. Heidegger et la question du
temps. Paris: PUF, 1990, p. 67. Utilizamos a tradução de Márcia de Sá Cavalcante para os termos de Ser e Tempo
em português. Colocaremos, sempre que se mostrar necessário, o termo segundo a tradução francesa de E.
Martineau visto que foi a partir deste texto que se deu nossa leitura e o termo original em alemão no intuito de
evidenciar, para o leitor familiarizado com a terminologia original, a opção da tradução para o português e a
compreensão do texto a partir da tradução de Martineau. Para além deste cuidado, não é de nossa intenção aqui
realizar uma discussão a respeito das opções de tradução no Brasil e na França, faremos somente alguns
comentários quando for necessário explicitar alguma opção com relação à tradução para o português. Quanto ao
termo Dasein, optamos por não traduzir, pelo fato de que se trata de um termo já bastante difundido no meio
filosófico, além de ser também conhecida a discussão em torno dos problemas relativos às diferentes traduções
deste termo.
23 HEIDEGGER, M. Être et Temps, p. 252.
24 Sobre as semelhanças e diferenças da temporalidade em Heidegger e Husserl ver: BERNET, R. Origine du
Husserl, le privilège du présent n’a jamais été mis en question. Il n’a pu l’être. Il est l’évidence même et aucune
pensée ne semble possible hors de son élément. La non-présence est toujours pensée dans la forme de la présence
(il suffirait de dire dans la forme tout court) ou comme modélisation de la présence. Le passé et le futur sont tou-
jours determines comme présents passés ou présents futurs”. DERRIDA, J. Ousia et grammè: note sur une note
de Sein und Zeit. In:______ . Marges de la philosophie. Paris: Minuit, 1972, p. 36-7.
!148
desta concepção temporal, toda ontologia que reside nestas bases pressupõe a presença como
modo privilegiado, visto que “l’étant, le présent, le maintenant, la substance, l’essence, sont
liés, dans leur sens, à la forme du participe présent”26. Para Heidegger, a concepção vulgar do
tempo possui sua legitimidade27, mas ela é derivada de uma temporalidade mais originária do
Dasein que é antecipação da morte, ou seja, não se trata mais de uma caracterização do porvir
como “uma presença que ainda não é”, mas de pensar uma antecipação do futuro como “la
dimension à partir de laquelle il peut y avoir un présent et un passé”28 . Assim, somente tendo
em vista o velamento da temporalidade originária do Dasein no desvelamento do tempo do
mundo que podemos compreender o tempo como sucessão de instantes presentes como tempo
derivado.
Esta “hiérarchisation de niveaux de temporalisation”29, como diz Ricœur, baseada na
divisão entre originário e derivado - que, diga-se de passagem, para Derrida30, é ainda
metafísica - não se colocava para Sartre em sua primeira concepção de temporalidade, a qual
se caracterizava justamente por uma compreensão do tempo que, neste contexto, é inautêntica.
Daí os problemas de sua primeira teoria e o motivo de seu embaraço de se ver preso numa
armadilha temporal que era, a seu ver, comum a grandes escritores: “Proust, Joyce, Dos
Passos, Faulkner, Gide, V. Woolf, chacun à sa manière, ont tenté de mutiler le temps. Les uns
l’ont privé de passé et d’avenir pour le réduire à l’intuition pure de l’instant; d’autres, comme
Dos Passos, en font une mémoire morte et close. Proust e Faulkner l’ont simplement décapité,
ils lui ont ôté son avenir, c’est-à-dire la dimension des actes et de la liberté”31. Sartre procura
justamente em Heidegger a possibilidade conceitual de abandonar sua teoria instantaneísta do
tempo ao pensá-lo como temporalização (não do Dasein, mas do ser da consciência), sob a
inspiração da ideia heideggeriana de um projeto aberto ao porvir :
26 Ibid., p. 44.
27 “Mais comme le temps-du-maintenant doit non seulement être orienté, selon l’ordre de l’explicitation possible,
sur la temporalité, mais se temporalise lui-même le premier dans la temporalité inauthentique du Dasein, il
demeure légitime, eu égard à la provenance du temps du maintenant à partir de la temporalité, d’invoquer celle-
ci comme le temps originaire”. HEIDEGGER, M. Être et Temps, p. 318.
28 DASTUR, F. Heidegger et la question du temps, p. 19.
29 RICŒUR, P. Temps et récit, tome III: le temps raconté. Paris: Seuil, 1985, p. 95.
30 DERRIDA, J. Ousia et grammè, p. 73.
31 S.I, p. 71. Os artigos de crítica literária reunidos em Situations I (redigidos entre 1938-1945), censuram em
praticamente todos os autores analisados a incompreensão do tempo como organização sintética, revelando
assim que Sartre pensa, na verdade, contra si mesmo. SIMONT, J. Jean-Paul Sartre, p. 62; p. 83-84.
!149
est-il un clou pensant? […] La conscience ne peut « être dans le temps » qu’à
la condition de se faire temps par le mouvement même, qui la fait conscience;
il faut, comme dit Heidegger, qu’elle se « temporalise ». Il n’est plus permis
alors d’arrêter l’homme à chaque présent et de le définir comme « la somme
de ce qu’il a » : la nature de la conscience implique au contraire qu’elle se
jette en avant d’elle-même dans le futur; on ne peut comprendre ce qu’elle est
que par ce qu’elle sera, elle se détermine dans son être actuel par ses propres
possibilités : c’est ce que Heidegger appelle « la force silencieuse du possible
»32.
Após adotar esta perspectiva heideggeriana, é curioso que Sartre atribua a outros
autores o que poderia ser direcionado ao seu próprio trabalho em La Transcendance de l’Ego,
quando por exemplo ele afirma do homem absurdo de Camus: “Qu’est-ce à dire sinon que
l’homme absurde applique au temps son esprit d’analyse? Là où Bergson voyait une
organisation indécomposable, son œil ne voit qu’une série d’instants. C’est la pluralité des
instants incommunicables qui rendra compte finalement de la pluralité des êtres” 33. Do
mesmo modo, Bataille “s’apparente à toute une famille d’esprits qui, mystiques ou
sensualistes, rationalistes ou non, ont envisagé le temps comme pouvoir de séparation, de
négation, et ont pensé que l’homme se gagnait contre le temps en adhérant à lui-même dans
l’instantané”34. Ora, não era precisamente esta a pretensão da reflexão pura? Apreender a
verdade de um instante? E atribuir ao homem a temporalidade do “du clou, de la motte de
terre, de l’atome” que é a do “présent perpétuel”, não era a característica principal do tempo
nu de La Nausée, do qual Roquentin só apreendia “du présent, rien d’autre que du présent” ?
Sendo assim, a mudança na concepção da temporalidade em Sartre não pode ser subestimada.
Ela rearticula toda uma ontologia, pois vimos que a concepção temporal do instante como
presente situa a investigação ontológica num plano derivado e não originário. Somente
apreendendo esta mudança na teoria do tempo sartriana podemos compreender a importância
das instâncias temporais do passado, presente e futuro em sua nova perspectiva ontológica,
isto é, na temporalidade própria do modo de ser do para-si e de suas implicações para o modo
de ser em-si. Melhor dizendo, somente através da compreensão de uma temporalidade não
mais instantaneísta mas ek-stática, podemos aprofundar nossa investigação de modo a revelar
32 S.I, p. 73.
33 S.I, p. 108. É interessante notar que as análises que Sartre faz do “homem absurdo” de Camus se assemelham
às críticas de Merleau-Ponty a Sartre. Na medida em que Camus pensa o sentimento de absurdo a partir de uma
série de “divórcios” - Ce divorce entre l’homme et sa vie, l’acteur et son décor, c’est proprement le sentiment
d’absurdité” - entre homem e mundo, postulando ao mesmo tempo uma consciência exilada ao puro presente “Le
présent et la succession des présents devant une âme sans cesse consciente, c’est l’ideal de l’homme absurde”.
CAMUS, A. Le mythe de Sisyphe. Paris: Gallimard, 2001, p. 20; p. 90. Diante disso, vale observar ainda que não
é incomum encontrar um paralelo entre os romances La Nausée e l’Étranger. O próprio Camus estabelece a
proximidade: “cette nausée, comme l’appelle un auteur de nos jours, c’est aussi l’absurde”. Ibid., p. 31.
34 S.I, p. 157. (grifo nosso)
!150
Desde o artigo “Une idée fondamentale…”, Sartre cita o termo heideggeriano ser-no-
mundo (être-dans-le-monde)35 no intuito de reforçar sua leitura da consciência intencional
husserliana como um movimento de “s’éclater vers” o mundo. Ao utilizar o termo neste
contexto, o autor demonstra que seu objetivo maior é o de pensar como a consciência pode ser
caracterizada como um nada, “un grand vent”36 , jogada na esfera transcendente. Sendo assim,
não faz parte de sua preocupação de então compreender como o ser-no-mundo implica que
esta mesma consciência não possa ser este nada desencarnado - como era o caso da
consciência nua -, ou seja, como a consciência pode existir de fato como ser-no-mundo. Sem
possuir na época os instrumentos necessários para pensar esta estrutura fundamental que
impediria a concepção de uma consciência de sobrevoo como a consciência nua - pois esta
concepção se baseia ainda numa teoria instantaneísta do tempo -, Sartre permanece prisioneiro
desta posição abstrata que, como sustenta De Coorebyter, figura como modelo paradigmático
de alvo da crítica de Merleau-Ponty. De início, as primeiras leituras que Sartre faz de
Heidegger o faz passar ao largo da importância da facticidade como ponto-chave da virada
que ocorrerá na época dos Carnets, apesar do esforço de pensar uma consciência concreta tal
como considera ser a de Husserl, conforme o início de La Transcendance de l’Ego deixa
notar. Tendo em vista tal busca de concretude - o que faz parte de um movimento vers le
concret, segundo o título da obra de Jean Wahl -, tudo se passa como se a tarefa radical de
37 I’re, p. 261.
38 ETE, p. 15.
!152
experiência empírica, o que implica adoção da orientação positivista de observação dos fatos
para deles obter leis gerais, classificações e previsões, ao inseri-los na causalidade material do
mundo. Diante da constatação deste procedimento, Husserl afirma que a psicologia é uma
ciência dos fatos (ou ciência da experiência) 46 - que são entendidos como fatos naturais
submetidos a leis objetivas e temporais - o que a tornaria uma ciência de “matters of facts”, no
sentido de Hume. Para Husserl, as ciências dos fatos são dependentes da fenomenologia na
medida em que esta oferece o método que permite aceder às essências que estão contidas no
fato individual e ainda a revelar a subjetividade pura como esfera de constituição, solo seguro
para a constituição do conhecimento rigoroso. Torna-se necessário então, para a psicologia,
realizar uma mudança de atitude - o que necessariamente implica uma mudança metodológica
- a fim de tomar por objeto não mais uma consciência naturalizada cujos fenômenos
encontram-se submetidos às leis da física, mas sim a consciência tal qual revelada pela
fenomenologia, a consciência como intencionalidade. No entanto, a distinção entre fato e
essência nas análises de Husserl não deve ser considerada como uma nova forma de
platonismo - segundo o qual haveria um mundo das essências apartado do mundo sensível -,
ela não é um “novo mundo das ideias”, como dizia Camus 47. Ambos fato e essência devem ser
considerados em conjunto, de modo que separá-los caracteriza o esforço metodológico
realizado pela redução. É Merleau-Ponty quem mais insiste nesta inseparabilidade, pois além
de celebrar a fenomenologia como “uma filosofia que recoloca as essências na existência” 48,
possibilitando um estudo sobre o homem a partir de sua facticidade, ele afirma a relevância da
redução ao permitir “se détacher de son expérience de fait, et de ne considérer son personnage
empirique que comme une possibilité”49, mas jamais ao preço de escapar a nossa situação de
fato, isto é, “la psychologie phénoménologique cherchera l’essence ou la signification des
conduites par le contact effectif ave les faits, et dans un « a priori matériel » ”50.
No Esquisse, Sartre assume a crítica husserliana à psicologia como “ciência dos fatos”
e define o “fato” como “ceci qu’on doit le rencontrer au cours d’une recherche et qu’il se
présente toujours comme un enrichissement inattendu et une nouveauté par rapport aux faits
46 Cf. § 7 de Ideen I .
47 CAMUS, A. Le mythe de Sisyphe, p. 67.
48 Php, p. 7.
49 MPS, p. 401.
50 MPS, p. 422. (grifo nosso)
!155
antérieurs” 51. Entretanto, sua crítica aos fatos compreendidos como fatos empíricos, mostra
que ele ainda não faz a distinção entre os fatos “naturais” e a facticidade, de modo que ele
oscila entre um husserlianismo desencarnado e a necessidade de se pensar o homem em
situação52. Isto no sentido de que ao mesmo tempo em que ele acaba por reforçar a cisão que
Merleau-Ponty - e em certo sentido o próprio Husserl 53, conforme citamos há pouco -, queria
a todo custo evitar: “il y a incommensurabilité entre les essences et les faits, et celui qui
commence son enquête par les faits ne parviendra jamais à retrouver les essences”54; ele
afirma mais adiante que “d’une façon générale ce qui l’intéresse [à la psychologie] c’est
l’homme en situation. En tant que telle, elles est […] subordonnée à la phénoménologie,
puisqu’une étude vraiment positive de l’homme en situation devrait avoir élucidé d’abord les
notions d’homme, de monde, d’être-dans-le-monde, de situation”55. O que falta a Sartre aqui é
justamente a dimensão da facticidade, de modo que ele permanece restrito às análises de uma
consciência que, mesmo que considerada sob a perspectiva do ser no-mundo, não apresenta de
maneira explícita as estruturas de seu engajamento.
Conforme mencionamos há pouco, Sartre começa a desenvolver e integrar à sua
argumentação a noção de facticidade a partir dos Carnets e, desde então, passa a operar com
uma distinção implícita que consiste em compreender não mais o “fato” como fato empírico e
natural, alvo de crítica da “Introdução” do Esquisse, mas sim como facticidade, um
existencial, isto é, uma estrutura imediata do para-si 56. Esta distinção pode ser melhor
compreendida a partir da diferença que Heidegger estabelece em Être et Temps entre os
conceitos de “fatualidade” (factualité/ Tatsächlichkeit) e “facticidade” (facticité/Faktizität), ao
afirmar que a “‘factualité’ du fait du Dasein propre est ontologiquement sans commune
mesure avec la survenance factuelle d’une espèce minérale. La factualité propre au fait du
51 ETE, p. 8. A crítica se estende, na verdade, às ciências positivistas como um todo, como, por exemplo, a
sociologia de Durkheim, que trataria “les faits sociaux comme des choses”. Diz Sartre: “la Sociologie de
Durkheim est morte : les faits sociaux ne sont pas des choses, ils ont des significations et, comme tels, il
renvoient à l’être par qui les significations viennent au monde, à l’homme, qui ne saurait à la fois être savant et
objet de science”. S.I, p. 173.
52 Com relação a estas afirmações da “Introdução” do Esquisse, a “Conclusão” já demonstra uma reflexão
Dasein, ce mode en lequel tout Dasein est à chaque fois, nous l’appelons sa facticité”57 ; e
ainda: “la facticité du Dasein se distingue essentiellement de la factualité d’un sous-la-main 58.
Embora Sartre não explicite, tal como o fez Heidegger, a distinção entre fatualidade e
facticidade, a partir dos Carnets ele já parte da concepção de facticidade como um existencial,
como uma estrutura imediata do para-si que não pode ser comparada ao “fato”, no sentido de
algo que pode ser conhecido, observado, mensurado. Mesmo não tendo sido tematizada, esta
distinção é fundamental, pois somente assim podemos compreender com mais clareza de que
modo Sartre pôde integrar a dimensão fática nas elaborações de uma consciência encarnada 59,
inscrita no mundo por seu passado, seu corpo e sua dimensão intersubjetiva. Na verdade,
Sartre tematiza este pertencimento fático do para-si no mundo - que não pode ser considerado
como fato natural, mas sim como um existencial -, por meio de uma distinção entre os termos
ser-no-mundo (être-dans-le-monde) e ser-no-meio-do-mundo (être-au-milieu-du-monde):
Ainsi mon être-dans-le-monde, par le seul fait qu’il réalise un monde, se fait
indiquer à lui-même comme un être-au-milieu-du-monde par le monde qu’il
réalise et cela ne saurait être autrement, car il n’est d’autre manière d’entrer
en contact avec le monde que d’être du monde. Il me serait impossible de
réaliser un monde où je ne serais pas et qui serait pur objet de contemplation
survolante60 .
não opera no quadro da consciência e para quem tampouco faria sentido falar em encarnação.
60 EN, p. 357. (grifo nosso)
!157
soi la facticité (être-jeté), l’existence (projet) et l’échéance. Étant, le Dasein est jeté — il n’est
pas porté à son Là par lui-même”61. O que nos interessa neste trecho é justamente a
característica de jogado na existência do Dasein - que Sartre denomina de l’être-là62 do para-
si - como tudo aquilo que ele não escolheu, mas desde sempre já se encontra em seu aí e que
ele é encarregado de assumir. Em segundo lugar, destacamos a importância do papel da
facticidade no modo de ser temporal do Dasein, na medida em que este é a cada momento seu
passado:
Le Dasein est à chaque fois en son être factice, comme et « quel » il était
déjà. Expressément ou non, il est son passé, et il ne l’est pas seulement en ce
sens que son passé se glisserait pour ainsi dire «derrière» lui, qu’il
posséderait du passé comme une qualité encore sous-la-main qui parfois
manifesterait ses effets en lui. Le Dasein « est » son passé sur le mode de son
être, lequel, pour le dire grossièrement, « provient » à chaque fois à partir de
son avenir63 .
É importante notar neste trecho que o Dasein é o passado “a cada momento meu”, na
estrutura unitária da temporalidade que privilegia sua relação com o porvir. Isto é, a
facticidade implica o ter-de-ser do “a cada momento meu” (mienneté/Jemeinigkeit) e o poder-
ser do Dasein, já que ser o seu passado “provém” a cada vez do porvir (avenir). Este aspecto é
acentuado por Heidegger também em Ontology: the Hermeneutics of Facticity quando afirma
que “‘Facticity’ is the designation we will use for the character of the being of “our” “own”
Dasein. More precisely, this expression means: in each case “this” Dasein in its being-there
for a while at the particular time”64. Voltaremos em breve ao tema do “a cada momento meu”.
Em terceiro lugar, como dissemos acima, o fato da facticidade não diz respeito a um “factum
brutum” que pode ser conhecido: “le « que » de la facticité n’est jamais trouvable dans un
intuitionner”65.
Estas três características - o “ser a cada momento meu” passado e futuro, o ser-jogado,
e a impossibilidade de ser conhecido - são importantes para compreendermos a teoria da
facticidade sartriana. O ser “a cada momento meu” demonstra a ligação da facticidade com a
temporalidade ek-sática e a impossibilidade de pensar, como fizera Sartre até então, uma
temporalidade instantanéista sem passado e sem futuro. Existir fáticamente é assumir a cada
momento as dimensões temporais de seu ser. O caráter de jogado na existência é explorado
por via do tema da contingência, por sua vez em estreita relação com a facticidade. Esta
dimensão está relacionada ao passado, como passado individual, mas também ao passado
histórico, na medida em que o para-si não escolhe as estruturas de sua situação - seu lugar,
seus arredores, seus próximos e sua morte - as quais devem ser mesmo assim assumidas:
“j’existe ma place, sans choix, sans nécessité non plus, comme le pur fait absolu de mon être-
là. Je suis là : non pas ici mais là. […] Fait de pure contingence - fait absurde” 66. Por último,
também para Sartre trata-se de uma dimensão que não pode ser conhecida, apreendida, mas,
neste caso, uma dimensão que assombra (hante) o para-si de diferentes maneiras - o passado,
o corpo como ser-no-meio-do-mundo, o ser para-outro. A facticidade, conclui Sartre, não
pode ser descrita em termos de “dentro” e “fora”, “passividade” ou “atividade” do para-si, ela
é somente o fato da existência sem fundamento do para-si67. É neste ponto que a facticidade,
em sua estreita ligação e diferença, nos remete a um dos temas mais importantes e
propriamente sartrianos: a contingência da existência.
O tema da contingência da existência pode ser considerado como um fio condutor que
de algum modo une toda a obra sartriana68. Diferentemente da facticidade, que vimos ser um
66EN, p. 536.
67CDG, p. 394.
68Nossa afirmação pode parecer ousada, até porque, como evidencia V. de Coorebyter, depois de 1943 o tema da
contingência se torna discreto nas análises sartrianas. DE COOREBYTER,V. Sartre avant la phénoménologie, p.
100. Contudo, na medida em que até sua última obra sobre Flaubert, Sartre se baseia na noção de projeto
fundamental e que esta mesma depende da condição contingente da existência para se dar como “busca de ser”,
no sentido de uma “busca de fundamento”, esta afirmação nos parece pertinente. De todo modo, é no conjunto
dos trabalhos de juventude até La Nausée que encontramos a versão mais original e explícita de sua teoria da
contingência, a qual, segundo De Coorebyter, levou 14 anos para tomar sua forma: “d’un exposé sur Nietzsche
présenté à l’Ecole normale supérieure en 1924 à la parution de La Nausée en 1938”. DE COOREBYTER, V.
L’Être et le néant, ou le roman de la matière, p. 2.
!159
recurso conceitual que precisou ser integrado à filosofia de Sartre a fim de operar uma
mudança a partir da qual seria possível pensar o ser-no-mundo, a reflexão sobre a
contingência data de seus escritos de juventude. Em 1929, na época em que conheceu Simone
de Beauvoir, Sartre já discorria sobre sua “teoria da contingência” que, segundo Beauvoir,
continha em germe suas principais ideias sobre o ser, a existência, a necessidade e a
liberdade69. Isto significa que o tema da contingência já se mostra como principal no conjunto
de ideias originais do pensamento sartriano antes mesmo de seu encontro com a
fenomenologia70.
A noção de contingência significa tradicionalmente o oposto de necessidade e pode ser
compreendida também como sinônimo de acaso. Dizer que a existência é contingente é dizer
que aquilo que existe não tem nenhuma necessidade de existir e existe por acaso. Este tema é,
segundo Verstraeten, ateu por excelência, pelo fato de rejeitar todo fundamento integrador da
existência humana71. Neste sentido, a existência não pode ser considerada como derivada ou
criada por Deus e tampouco pode ser derivada de qualquer princípio essencialista (mesmo que
ateu) que traga consigo a ideia de uma natureza humana, como é o caso em Diderot, Voltaire e
Kant72, conforme exemplifica Sartre em L’Existentialisme est un humanisme a fim de
demonstrar sua máxima “a existência precede à essência”. Partir de uma existência
contingente é então se contrapor a qualquer teoria criacionista, universalista ou que
pressuponha uma natureza humana, o que faz com que a existência contingente coloque em
questão a ideia mesma de fundamento. É neste sentido que podemos afirmar que a concepção
da existência em termos de contingência vai de encontro às exigências do princípio de razão
suficiente segundo o qual “Nada é sem razão” (Nihil est sine ratione). Em Le principe de
raison, Heidegger mostra que este princípio, após um longo período de incubação na historia
do pensamento ocidental, adquire sua legitimidade e sua forma “completa e rigorosa” com
Leibniz, que o elevou a um princípio supremo: “Si le principe de raison est un principe
déterminant dans le système de Leibniz, c’est uniquement parce que ce principe concerne tout
ce qui est”73. Assim, tudo o que existe está submetido ao princípio de razão, o que significa
dizer que tudo clama por um fundamento:
69 BEAUVOIR, S. de. Mémoires d'une jeune fille rangée. Paris: Gallimard, 2013, p. 451.
70 V. de Coorebyter realiza um trabalho de análise minucioso do conjunto do pensamento sartriano desta época
em Sartre avant la phénoménologie.
71 VERSTRAETEN, P. Sartre/Kant/Hegel, p. 150.
72 EH, p. 27-28.
73 HEIDEGGER, M. Le principe de raison. Paris: Gallimard, 1978, p. 86. (Trad. André Préau)
!160
Dans tout ce qui nous entoure, nous concerne, se trouve sur notre route, nous
cherchons des raisons. L’un de nous affirme-t-il quelque chose, nous en
demandons la raison. Nous exigeons que tout comportement soit fondé sur
une raison. […] Toutes les fois que nous voulons fonder ou approfondir
quelque chose, nous sommes déjà en quête d’un fond, c’est-à-dire d’une
raison74 .
Dito isto, se nos perguntarmos pelo sentido da existência, somos conduzidos pelo
princípio de razão a buscar um fundamento. Mas o fundamento só alcança aquilo que a razão
pode dizer que é, o que para Heidegger se restringe ao plano do ente e não do ser, dado que o
ser não pode ter uma razão que o fundamente, já que ele é “sem-fundo” ou abissal75. Isto não
significa um escape ao principio de razão, diz David Lapoujade, pois “toute la méditation
heideggérienne sur le principe de raison n’a pas d’autre but : remonter au-delà de tout
fondement rationnel, vers le sans-fond, au nom même du principe de raison”76. Sobre o que
nos interessa nestas afirmações, podemos dizer que é justamente o fato da contingência em
Sartre dizer respeito a uma dimensão da existência que escapa ao princípio de razão no
sentido de que todo fundamento deve se apoiar num “sem-fundo”, que é a existência mesma.
Isto não significa que toda a esfera da existência escape à necessidade e ao fundamento, mas
há um solo de onde provém os sentidos que é ele mesmo “sem-fundo”. Sendo assim, toda a
ontologia sartriana é atravessada por esta condição ou, melhor dizendo, assombrada pela
contingência original. Esta conclusão nos remete a três consequências maiores: 1) a
contingência é o terreno mesmo da ontologia, terreno comum que escapa ao dualismo entre as
duas regiões fundamentais do para-si e do em-si, pois ambas as regiões são compreendidas a
partir desta condição; 2) este terreno faz com que o para-si seja atravessado pela náusea do
abismo, dado que seu movimento se caracteriza por uma busca de fundamento, isto é, o para-
si busca escapar do “sem-fundo” e deseja sua autofundação 3) a busca por fundamento do
para-si se desenvolve ainda no plano moral, como busca pelo direito de existir.
Em primeiro lugar, enquanto solo da ontologia sartriana, o terreno contingente é ele
mesmo “sem-fundo”. Esta condição vale tanto para o para-si quanto para o em-si (e isto na
medida em que próprio para-si é um em-si nadificado, como veremos a seguir). Neste sentido,
a contingência é a única categoria capaz de apreender todo o conjunto das regiões ontológicas,
74 Ibid., p. 247.
75 Ibid., p. 131.
76 LAPOUJADE, D. Deleuze, les mouvements aberrants. Lonrai: Minuit, 2014, p. 32. (grifo nosso)
!161
sendo que cada uma delas tem sua própria maneira de existir ou manifestar sua
contingência77. La Nausée é a obra que mais revela esta condição fundamental, dado que a
existência das coisas e do próprio Roquentin é desvelada como gratuidade absoluta, termo
que Sartre utiliza para expressar a contingência. Este romance nos mostra que a contingência
não é para Sartre uma categoria intelectual, como algo que se alcança por um tipo de razão
representativa própria do princípio de razão leibniziano, ou seja, para Sartre “la contingence
n’était pas une notion abstraite, mais une dimension réelle du monde : il fallait utiliser toutes
les ressources de l’art pour rendre sensible au cœur cette secrète « faiblesse » qu’il apercevait
dans l’homme et dans les choses”78. “La catégorie de la contingence, dit François Rouger,
comme échec du fameux « Principe de Raison » - que dénonce par ailleurs Heidegger-, n’est
pas chez Sartre une détermination prédicative, mais comme un Référentiel ultime, et la vérité
même de l’être” 79. Esta dimensão real do mundo é desvelada pela experiência da náusea ao
longo do romance, a qual leva o personagem a uma intuição fundamental: “L’essentiel c’est la
contingence. Je veux dire que, par définition, l’existence n’est pas la nécessité. Exister, c’est
être-là, simplement; les existants apparaissent, se laissent rencontrer, mais on ne peut jamais
les déduire”80. A existência contingente abrange assim homens e coisas - “Tout est gratuit, ce
jardin, cette ville et moi-même”81- e a náusea é a experiência de apreensão da gratuidade total
da existência contingente. O mundo revelado pela náusea, como vimos, é o “mundo nu”, o
mundo onde “tudo podia acontecer”, pois não há necessidade que mascare sua
imprevisibilidade, dado que estamos fora do plano de causas e efeitos e é essa a vertigem do
acaso, como demonstra L. Agostinho em sua investigação sobre o acaso em Mallarmé: “Tout
ce qui est, l’est par hasard, tout ce qui est l’est parce qu’il peut aussi être autre. C’est très
différent d’affirmer que “rien n’a de raison d’être” ou que “tout doit sans raison pouvoir être
autre”, car l’univocité du hasard ou son caractère absolu est ce qui fait être”82. Ainda segundo
a autora, o acaso transforma o ente numa multiplicidade instável e aberta, na medida em que é
ele que assegura que algo possa ser, mas possa ser sob múltiplas formas. É assim que em La
Nausée o verniz de necessidade das coisas se esvai e deixa apenas “des masses monstrueuses
et molles, en désordre - nues, d’une effrayante et obscène nudité”83, que podem se transformar
em qualquer coisa.
Apesar de La Nausée demonstrar melhor que qualquer outra obra a “teoria da
contingência” sartriana, vimos que este romance se atém ao quadro da consciência nua onde o
“tempo da contingência”, como denomina De Coorebyter, se restringia ao tempo
instantaneísta, que pressupõe um puro presente. Porém, a inserção da facticidade que
transforma a filosofia do tempo sartriana, ao contrário de diminuir, irá reforçar o papel
fundamental da contingência como condição existencial dos modos de ser, agora no contexto
da ontologia. Veremos adiante como Sartre estabelece outra relação entre contingência e
necessidade a partir da noção mesma de facticidade. Por ora, podemos observar que as
consequências desta condição no modo de ser do para-si não podem ser negligenciadas. Isto
porque o próprio modo de ser do para-si se dá como fuga da contingência que o assombra de
todos os lados, isto é, o para-si é um projeto de busca de fundamento para escapar à sua
condição de “sem-fundo”. Este aspecto remete aos outros pontos, que, na verdade, encontram-
se interligados: o para-si é busca por fundamento e pelo direito de existir.
A partir de uma orientação kantiana da divisão entre fato e direito, Sartre desenvolve
sua teoria da contingência no sentido de compreender esta divisão em relação à própria
condição da existência. Em outras palavras, Sartre busca fazer uma distinção entre existência
de fato e existência de direito. A existência de fato é a condição mesma da contingência na
medida em que existir é o fato de simplesmente estar aí, como gratuidade total, sem nenhuma
justificativa. A existência de direito seria a retomada desta existência de fato por uma razão e
por uma justificativa. Na medida em que a existência do para-si é contingente, a partir de um
mundo também contingente, esta condição é vivida como absurdidade. La nausée já mostrava
esta condição, assim como La Transcendance de l’Ego, em que, como vimos, falava-se da
angústia diante da “fatalidade da espontaneidade”, que era então caracterizada como uma
liberdade que é criação ex nihilo. Em L’Être et le Néant, este fato é infraestrutural do modo de
ser projetivo do para-si, como veremos a seguir em detalhes, dado que este modo de ser é fuga
da angústia diante do sem-fundo ou, poderíamos dizer, do abismo. Sendo assim, o para-si é
caracterizado como projeto de busca de fundamento, o que pode também ser compreendido
como busca de uma existência de direito a fim de justificar a existência de fato, de modo que
83 N, p. 182.
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84 N, p. 187.
85 DELEUZE, G. Simulacre et philosophie antique, p. 296-7.
86 LAPOUJADE, D. Deleuze, les mouvements aberrants, p. 24.
87 Ibid.
!164
Au lieu que, avant d’être aimés, nous étions inquiets de cette protubérance
injustifiée, injustifiable qu’était notre existence ; au lieu de nous sentir « de
trop », nous sentons à présent que cette existence est reprise et voulue dans
ses moindres détails par une liberté absolue qu’elle conditionne en même
temps - et que nous voulons nous-mêmes avec notre propre liberté. C’est là le
fond de la joie d’amour, lorsqu’elle existe: nous sentir justifiés d’exister89 .
88 Recorremos a Deleuze nesta discussão a fim de mostrar a relação entre fundamento e legitimidade na sua
relação com uma existência de fato e uma existência de direito. Este paralelo se restringe somente ao ponto em
que a análise deleuziana auxilia a compreender essa afinidade entre os termos e temas. Dito isso, não
pretendemos transpor um quadro deleuziano - não fenomenológico, e que não parte da consciência (tampouco do
desejo como falta) - ao quadro sartriano, onde estas características são essenciais. Nosso objetivo é mostrar, em
suma, que a partir das análises de Deleuze, podemos compreender como um fato se dá em relação às exigências
do princípio de razão, isto é, como ele é imediatamente convocado a se posicionar diante da questão quid juris?.
Este ponto nos interessa na medida em que a contingência que assombra o para-si faz com que esta questão seja
a principal via de sua busca por legitimidade.
89 EN, p. 411.
90 CPM, p. 103.
91 Ibid.
92 EN, p. 530.
!165
está condenado a ser sempre esta dissimilitude, esta diferença de seu ideal, própria aos
simulacros. Podemos compreender então que a existência é “injustifiable”93 e ilegítima, ou
seja, não fundada. Nossa aproximação com as análises de Deleuze sobre os simulacros e as
boas cópias se restringe a este ponto, que é o que nos interessa a respeito da existência sem
fundamento: neste quadro, a existência de fato abre uma lógica dos pretendentes à
legitimidade. Na medida em que o para-si é um ser de possíveis, ele está sempre “à distância”
de si, pois “il y a possibilité lorsque, au lieu d’être purement et simplement ce que je suis, je
suis comme le Droit d’être ce que je suis. Mais ce droit même me sépare de ce que j’ai le droit
d’être”94. O para-si, por seu próprio modo de ser como busca de fundamento, insere-se na
lógica dos pretendentes ao direito, ao legítimo, de modo que cada manifestação é motivada
por esta pretensão. No entanto, sua condição primordial o faz ser esta diferença própria ao
simulacro, dado que a existência é injustificável, é sem-fundo.
Em Pour une morale de l’ambiguïté, Simone de Beauvoir desenvolve o tema da
justificação da existência contingente através de uma perspectiva que poderíamos qualificar
de “positiva”. Enquanto que em La Nausée a busca por justificativas era considerada como
mascaramento da existência contingente - como uma espécie de “mentira” e de ilusão para si
mesmo que irá caracterizar posteriormente a noção sartriana de má-fé (mauvaise fois) -, no
estudo de Beauvoir, “justifier positivement son existence” 95 corresponde ao plano mesmo de
uma moral da liberdade: “C’est dans ce moment de la justification […] que l’attitude de
l’homme se situe sur un plan moral ; la spontanéité contingente ne saurait être jugée au nom
de la liberté”96. Para Beauvoir, a moral é o triunfo da liberdade sobre o mundo nu da
facticidade, onde “rien n’arrive jamais, rien ne mérite un désir ou un effort”97 ; a liberdade é o
desejo mesmo de viver, de manter um “attachement à l’existence”, pelo qual a vida se
justifica98. Assim, Beauvoir não considera a busca por uma existência de direito um aspecto
negativo do modo de ser do para-si, como pode sugerir a ideia sartriana de fracasso (o para-si
como fracasso em ser Deus). Na medida em que “c’est à travers l’échec assumé que
[l’homme] s’affirme comme liberté”99, desejar ser este “fracasso” é um “sucesso”, pois “sans
93 EN, p. 348.
94 EN, p. 136.
95 BEAUVOIR, S. Pour une morale de l’ambiguïté. Paris: Gallimard, 2013, p. 40.
96 Ibid., p. 54.
97 Ibid., p. 59.
98 Ibid., p. 195.
99 Ibid., p. 171.
!166
échec, pas de morale”100, nem liberdade. Isto não significa, complementa Beauvoir, que
devemos consentir ao fracasso, mas “on doit consentir à lutter contre lui sans repos” 101. A
partir desta posição pode-se estabelecer uma distinção entre a busca pela justificativa do
existir como criação de sentidos pela liberdade e a tentativa de naturalização do direito de
existir como mascaramento da condição contingente do para-si, própria do espírito de
seriedade. Existir de fato é querer existir de direito, e a moral da liberdade, segundo Beauvoir,
se dá em manter este “querer”, sem mascarar jamais esta condição. Na linguagem que
utilizávamos há pouco, podemos dizer: assumir a condição da contingência é manter-se
enquanto pretendente e jamais adquirir os direitos das boas cópias.
“Vouloir être nécessaire” é assim caracterizado como próprio do movimento mesmo
do para-si, e isto se dá somente porque o para-si é atravessado, ou melhor, assombrado pela
contingência original. Do mesmo modo, o desvelamento do mundo se dá sempre em relação à
condição contingente original, e daí vem a sua multiplicidade: “mundo nu”, “mundo dos
profetas e dos artistas”, “das razões e explicações”, “imaginário”, etc. Em outras palavras, a
contingência é o terreno mesmo da ontologia, a partir do qual devemos compreender os
modos de ser para-si e em-si. A necessidade de legitimidade da existência de fato não
atravessa somente as motivações do para-si em seu desejo de reconhecimento, mas o modo
mesmo como o mundo aparece102.
sartriana da temporalidade como estrutura do ser para-si em sua relação com a facticidade,
neste contexto tematizada sob a forma do passado. O terceiro ponto, que consiste nas análises
sobre a reflexão, será abordado posteriormente, no momento de nossa discussão sobre este
tema. Dado este esclarecimento, nos voltamos para os desenvolvimentos de Sartre sobre a
temporalidade, que encontram-se divididos em: 1) uma investigação fenomenológica das ek-
stases temporais; 2) uma ontologia da temporalidade que consiste numa análise sob as
perspectivas estática e dinâmica, inspirada na divisão kantiana entre ordem e curso do tempo.
A investigação fenomenológica das ek-stases se desenvolve a partir de questões orientadoras
direcionadas a cada uma das dimensões do tempo, a saber, passado, presente e futuro. Como
vimos, Sartre recorre a Heidegger a fim de conceber uma estrutura temporal global e sintética,
onde cada dimensão implica necessariamente as outras. Sendo assim, o fenomenólogo Sartre
se propõe a interrogar cada ek-stase sobre seu ser e sobre o sentido de seu ser, isto é, trata-se
de interrogar passado, presente e futuro sobre seu ser sem perder de vista a dimensão da
totalidade temporal a partir da qual cada ek-stase pode ser compreendida. Neste sentido, as
análises das três dimensões do tempo se caracterizam como um “trabalho provisório” cujo
objetivo é justamente “aceder à intuição da temporalidade global” 103.
Podemos entrever o modo de ser temporal do para-si nas próprias fórmulas descritivas
que Sartre lhe atribui: enquanto o em-si “é o que é”, duas definições são fornecidas para o
para-si: ele “é o que não é e não é o que é” e ele “tem de ser” seu ser. Poderíamos acrescentar
ainda que, para o para-si, “a existência precede à essência”. Estas definições nos remetem
diretamente à temporalidade. Como afirmamos acima, ao abandonar a perspectiva
instantaneísta do tempo, Sartre reconfigura toda sua base ontológica: as regiões para-si e em-
si devem agora devem ser compreendidas a partir da temporalidade ek-stática. A fim de
precisão, observamos que a região em-si não se temporaliza, já que ela corresponde ao
princípio de identidade, que não admite a negatividade própria à temporalização, enquanto
que a região para-si é aquela que existe no tempo e cujo sentido é o de ser temporal104 . Dizer
que o para-si “é o que não é e não é o que é” significa dizer que seu modo de ser é aquele que
nadifica seu ser, conforme veremos com detalhes a respeito da estrutura imediata da
facticidade. Dissemos anteriormente que Sartre denominou de ato ontológico esta perpétua
nadificação de si que caracteriza o movimento temporal da existência que faz com que o para-
si tenha de ser seu ser. Novamente a influência heideggeriana se faz presente, através de sua
reconfiguração propriamente sartriana, na medida em que em Être et Temps o Dasein tem de
ser “a cada momento” o ser que ele é, o que em termos de para-si se dá através do ato
incessante de nadificação. A temporalidade ek-stática é justamente este modo de ser “a cada
momento” que diz respeito a uma existência que mantém uma relação a si que não pode mais
ser compreendida como uma relação de identidade ou de continuidade de uma substância.
Em seu livro À chaque fois mien, François Raffoul105 explora o tema do “a cada
momento meu” (mienneté/Jemeinigkeit) em Heidegger e mostra que devemos diferenciar dois
tipos de relação: uma relação a si como condição de possibilidade do Dasein de designar-se
na primeira pessoa; e uma relação a si que pressupõe um Eu sempre idêntico a si mesmo. Em
outros termos, existem diferentes modos de compreender aquilo que estaríamos pressupondo
como uma “relação a si”, visto que o próprio termo si já indica uma individualização que deve
ser esclarecida em seu modo de doação. Ricœur, por exemplo, explica em Soi même comme
un autre que há variadas formas de compreender esta relação a si. Embora ele mantenha o
termo identidade para falar das diferentes relações, ele opera com uma distinção entre os
conceitos de identidade-idem, que é aquela que pressupõe uma permanência no tempo de um
núcleo da personalidade, e identidade-alter, a qual não se baseia neste tipo de pressuposto,
mas, ao contrário, escapa a uma lógica do si como relação com o mesmo, pois se faz sob uma
dialética de si mesmo onde a alteridade é parte constitutiva106. Mostramos este ponto no
intuito de demarcar que a relação a si pode ser compreendida de maneiras distintas e ainda
que o que costuma estar em jogo nesta definição é a pressuposição ou não de um eu
substancial como ponto de partida. É neste sentido que a relação a si como ipseidade,
colocada em cena por Heidegger, pretende, em contrapartida ao pensamento lógico-metafísico
do sujeito, indicar “ce qui au fond de nous-mêmes, au-delà de toute figuration imparfaitement
substantialiste, nous fait « sujet »”107.
Se a permanência de um Eu não é mais a base para se pensar o “sujeito”, a
temporalidade torna-se o fio condutor para se conceber a relação a si diferentemente, sob a
forma da ipseidade. Para Raffoul, o tempo é agora um princípio mesmo de individuação de
105RAFFOUL, F. À chaque fois mien: Heidegger et la question du sujet. Paris: Galilée, 2004.
106RICŒUR, P. Soi même comme un autre. Paris: Seuil, 1996, p .12-13.
107BENOIST, J. La subjectivité. In: KAMBOUCHNER, D. (Org) Notions de philosophie, II. Paris: Gallimard,
1995, p. 540.
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uma existência “a cada momento” individuada, a cada vez “minha”: “Il n’y a pas d’existence
dépourvue d’ipséité, l’exister est à chaque fois un « j’existe », dans la mesure où l’exister
n’est pas la particularisation d’une essence universelle, mais la mise en jeu de l’être à la
première personne” 108. Com relação a este quadro maior, Sartre se baseia na concepção ek-
stática da temporalidade para pensar o para-si como ipseidade e projeto, a fim de escapar à
concepção do sujeito como substância e identidade, isto é, a ipseidade não tem nenhuma
equivalência ao Eu 109. Este é o sentido da ideia de que o para-si tem de ser seu ser, visto que
ele não o é - identidade, substância, - mas “être soi, c’est venir à soi”110 , o que significa que o
para-si se temporaliza e que tal movimento é singular: ele é a cada vez o seu passado, o seu
presente e o seu futuro e seu existir é um perpétuo estar em jogo de todo o seu ser.
Ter de ser seu passado, presente e futuro, leva em conta a maneira de cada ek-stase
temporal se dar neste processo. Resumidamente, a presença é descrita como fuga: o para-si
presente é nadificação do em-si que ele era e negação do em-si presente que ele não é. De
acordo com a prova ontológica, o para-si se constitui a partir do ser que ele não é, através
justamente da negação interna. Sartre chama de presentificação o movimento temporal a cada
vez desta negação e o seu sentido é a “fuga”: “Le pour-soi est présent à l’être sous forme de
fuite ; le présent est une fuite perpétuelle en face de l’être” 111. Na verdade, a fuga é
movimento duplo de nadificação - e por isso o presente não é compreendido como repouso
diante do ser que ele não é - mas a fuga é presentificante “car en fuyant l’être qu’elle n’est
pas, la présence fuit l’être qu’elle était” 112. O futuro é um modo do para-si ter de ser seu ser
ao invés de ser seu ser sob o modo da identificação. Por último, não sendo o presente uma
soma de instantes, tampouco o futuro é uma série homogênea e cronológica de instantes por
vir, isto é, como um “agora” que ainda não é, conforme a concepção tradicional de tempo que
expomos anteriormente. Acrescenta-se ainda que futuro não é uma representação, pelo
contrário, quando tomado como objeto de tese, tal fato, diz Sartre, “cesse d’être mon
avenir”113. Em suma, o futuro, assim como o passado, é meu, de acordo com a característica
do “a cada momento meu” do ter de ser do para-si, pois a ligação de “a cada momento meu”
do para-si com o seu futuro é instaurada pela dupla negação. Por fim, a ek-stase passado
indica o modo de ser era (était) do para-si, o qual é de extrema importância, dado que é a ek-
stase que indica o ponto crucial de mudança a partir da inserção da facticidade em sua relação
com a temporalidade. Por esta razão, abordaremos a seguir de forma mais detalhada este
ponto, ao passo que as outras ek-stases - presente e futuro - serão retomadas nas descrições
das estruturas imediatas do para-si e sob a perspectiva da hantologie.
anteriormente a subestimar seu papel nas ações presentes (como em La Nausée, conforme
analisamos anteriormente). Ao passo que, em L’Être et le Néant, sendo o passado uma
estrutura da facticidade e assim constitutivo do para-si, não basta pensar os momentos anterior
e atual através de uma radical separação, mas deve-se dar conta do modo pelo qual este
passado “permanece” no para-si, mesmo que este não tenha a mesma “força” de outrora.
Assim, o que nos perguntamos a partir de tal afirmação é exatamente como uma decisão pode
ser e não ser a resolução anterior através do fluxo temporal. Dito de outro modo, como o fluxo
temporal do projeto permite este ser e não ser simultaneamente seu passado? Sartre prossegue
em seu exemplo do jogador para demonstrar esta relação:
Este trecho nos indica uma série de pontos importantes, ainda que estes não sejam
aprofundados neste momento do texto sartriano: 1) A preocupação do autor parece ser a de se
opor ao determinismo, ou seja, a relação entre uma vivência passada e a vivência presente não
pode ser do tipo causa e efeito 2) A vivência passada só adquire o valor de motivação de um
ato a partir de sua assunção atual pelo para-si 3) Esta assunção é descrita como sendo livre e
criação ex nihilo, o que nos coloca um problema a ser investigado 4) de que modo o para-si
pode não ser o passado que ele é? Estes pontos são fundamentais para nossa investigação e de
algum modo toda a “Terceira parte”, a hantologie, é uma forma de respondê-los. O que
podemos dizer neste instante é que este trecho traz uma ambiguidade na medida em que o
autor afirma ao mesmo tempo uma criação ex nihilo e uma impossibilidade de não ser o
próprio passado simplesmente, isto é, o para-si se cria livremente sendo e não sendo o seu
próprio passado. De todo modo, não podemos mais compreender o para-si como não sendo
totalmente o seu passado. Se o projeto é temporalização ek-stática, passado, presente e futuro
fazem parte de uma totalidade temporal que só pode ser decomposta abstratamente para fins
de análise, tal como Sartre o faz em seu capítulo sobre a temporalidade. A solução oferecida
neste capítulo, a fim de dar conta da relação do para-si como o passado que ele é, consiste no
recurso de dizer que “o para-si era (était) seu passado”. Vejamos.
Em L’Être et le Néant, Sartre aborda a questão do ser do passado em três níveis
distintos: o passado enquanto ek-stase que compõe o processo temporizador do para-si117; o
passado como tempo do mundo - enquanto estrutura da temporalização própria do modo de
desvelamento do em-si transcendente118 -; e o passado enquanto estrutura da situação do para-
si119. Os três níveis distintos são concebidos, na verdade, a partir uma mesma dimensão ek-
stática de temporalização, que é a estrutura originária do modo de ser do para-si. Somente por
esta estrutura é possível compreender o tempo do mundo - que será abordado na “Terceira
parte” como tempo fantasma - e o caráter fático da situação que o para-si encontra-se desde
sempre inserido em sua existência concreta. Diante deste breve panorama sobre as análises do
ser do passado em L’Être et le Néant, nos concentraremos neste momento sobre o primeiro
aspecto: a ek-stase passado no modo de ser temporal originário do para-si.
Na investigação sobre o ser do passado, Sartre apresenta duas perspectivas frequentes:
a primeira caracteriza justamente o privilégio do presente que presume que o passado não é
mais e somente o presente existe; a segunda atribui ser ao passado: ele existe, mas a título de
algo isolado, que perderia a eficiência sem, no entanto, deixar de existir. Segundo Sartre, se
nos ativermos à primeira perspectiva, além de nos restringirmos ao problemas que
descrevemos anteriormente do privilégio do presente, teremos dificuldades de pensar o
fenômeno da lembrança, no sentindo de que não teríamos meios de compreender como uma
consciência poderia transcender o presente e apreender uma consciência passada. Por outro
lado, também não seria uma solução atribuir ser a um passado isolado. Sartre reconhece este
recurso em Bergson, que a seu ver pensa que um evento passado pode deixar de agir, embora
permaneça “à sa place, à sa date, pour l’éternité” 120; e também à “consciência popular”, sobre
a qual ele não entra em detalhes mas informa que esta seria a visão de que um evento passado
continua existindo “lá atrás”, esvaziado da “força do presente”. Disto decorre que mesmo
atribuindo ser ao passado, este se encontra dissociado da ek-stase presente, como um tipo de
existência autônoma. Do modo semelhante, a concepção husserliana das retenções, que
permite pensar um elo entre presente e passado, não escaparia a esta lógica, pois estabeleceria
ainda uma espécie de permanência e autonomia metafísica das consciências passadas em
relação às presentes. Como a própria investigação já demonstra, a compreensão do passado
envolve uma compreensão do presente (e do futuro), dado que atribuir ou não ser ao passado
revela os pressupostos implícitos na concepção do presente que, se tomado como separado de
seu passado, só pode ser compreendido como uma soma de instantes, conforme a concepção
instantaneísta da temporalidade. Em suma, Sartre conclui: “Que le passé soit, comme le
veulent Bergson et Husserl, ou ne soit plus, comme le veut Descartes, cela n’a guère
d’importance si l’on a commencé par couper les ponts entre lui et notre présent”121.
Conforme podemos vislumbrar em tais críticas, as pontes entre o passado e o presente
não podem ser cortadas, sob o risco de recairmos em concepções metafísicas do privilégio da
presença e na concepção instantaneísta do tempo. Há de haver assim um modo de ligação, que
não pode ser o de relações externas (e nisto a metáfora da ponte não é apropriada, pois ela
indica um modo de ligação entre duas instâncias autônomas e independentes, entre dois
modos de ser em-si), mas que deve ser o de relações internas, que unem de forma sintética a
estrutura global da temporalidade. Por esta razão, Sartre afirma que o para-si ao invés de “ter
um passado”, como se diz comumente, revelando uma relação de posse, “tem de ser seu
próprio passado” (avoir à être son propre passé), o que indica uma relação de ser. Entretanto,
o fato de ser um passado também pode ser mal interpretado se fizermos uma equivalência do
passado com o presente, não levando em conta a “heterogeneidade entre o passado e o
presente”122. A relação ontológica que une as ek-stases passado e presente consiste na
nadificação de si, que é melhor caracterizada pela conjugação do verbo ser no pretérito
imperfeito do indicativo: era (était)123. O modo temporal era se caracteriza por ser
intermediário entre o passado e presente na medida em que ele “n’est lui-même ni toute à fait
présent ni tout à fait passé”124; ele indica justamente a lei ontológica do para-si de ser seu
próprio passado, na síntese original das ek-stases passado, presente e futuro. Ser seu próprio
passado significa ainda a especificidade da relação interna que se realiza pelo modo era que é
a de ter de ser seu passado ao invés de ter um passado. O para-si é responsável pelo seu
passado no sentido deste ter de ser a cada momento seu, pois a existência do para-si consiste
neste estar em jogo a cada vez, onde o passado é estrutura ontológica constitutiva, de modo
que assim “le passé n’est justement que cette structure ontologique qui m’oblige à être ce que
je suis par-derrière. C’est là ce que signifie « était »”125. Em outras palavras, o modo de
temporalização do para-si faz com que ele tenha de ser a cada vez seu passado (assim como
seu futuro) sob o modo do era, o que Sartre expressa figurativamente como “ser por detrás”.
Este caráter de ser a cada momento do para-si, de estar em jogo em seu ser, implica o estar em
jogo do passado que ele era. Isto revela ainda duas características fundamentais deste aspecto
da temporalidade, que consistem numa abertura e em um fechamento:
Le passé que je suis, j’ai à l’être sans aucune possibilité de ne l’être pas. J’en
assume la totale responsabilité comme si je pouvais le changer et pourtant je
ne puis être autre chose que lui. Nous verrons plus tard que nous conservons
continuellement la possibilité de changer la signification du passé, en tant que
celui-ci est un ex-présent ayant eu un avenir. Mais au contenu du passé en
tant que tel je ne puis rien ôter ni ajouter. Autrement dit le passé que j’était
est ce qu’il est ; c’est un en-soi comme les choses du monde. Et le rapport
d’être que j’ai à soutenir avec le passé est un rapport du type de l’en-soi.
C’est-à-dire de l’identification à soi126 .
123 Existe aqui uma dificuldade de tradução visto que o verbo être em francês pode designar em português os
verbos ser e estar. No caso das análises sobre o ser do passado, optamos por traduzir était por era, dado que
Sartre estabelece a ligação do ser do passado com o presente como uma ligação ontológica, logo, necessária. Por
esta razão, optamos pela tradução era, já que estava pode indicar uma situação ou um estado provisório e
contingente. Nos Carnets, “era” - no intuito de indicar a relação com o passado - é denominado como “est été”,
dado a inspiração numa tradução da frase de Hegel Wesen ist was gewesen ist: “l’essence, c’est ce qui a été”,
conforme veremos mais adiante.
124 EN, p. 150.
125 EN, p. 153. E por isso a decisão que deve ser retomada ex nihilo no exemplo do jogador não é propriamente
o passada, mas uma nova decisão - assombrada por seu passado - diante da anterior que aparece agora como tese
para a consciência, daí sua inconsistência de não ter mais a “força do vivido”.
126 EN, p. 151.
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o passado ao modo de ser em-si. Tudo aquilo que o para-si é, neste contexto, é equivalente ao
que ele foi, isto é, há uma objetificação em em-si do modo de ser do para-si, da qual ele
escapa pela nadificação de seu ser. Conforme veremos a respeito da estrutura da facticidade, o
para-si é nadificação do em-si que ele é - por isso a temporalidade toma o aspecto de uma
fuga - e esta nadificação é precisamente aquilo que impede que o para-si seja alguma coisa,
sob o modo da identidade: “Le pour-soi ne peut être qu’en échappant à l’être qu’il est et cette
fuite du néant devant l’en-soi constitue la temporalité”127. A descrição deste modo de ser
como “é o que não é e não é o que é” indica o processo de nadificação de ser que o caracteriza
e que faz com que o presente seja nadificação do ser que ele é, o que equivale a dizer que o
para-si é o seu passado sob o modo de o não ser. Se o nada (néant) só pode ser nadificação de
ser, este ato negativo que o para-si é se caracteriza justamente pela nadificação do passado, ou
seja, a cada momento, o para-si nadifica seu passado como passado de seu presente: “En ce
sens, tout présent se donne comme passé nié, mon présent c’est la négation de ce que je
suis”128. Da responsabilidade de ter de ser seu passado ocorre então um fechamento e uma
abertura: o fechamento do em-si e a abertura da temporalidade - nadificação do em-si -; a
possibilidade de se escolher a cada vez a significação do passado que está em jogo neste
processo129. O processo temporal de se escolher a cada momento é estruturado pelo ser em-si
do passado, já que é neste que a nadificação incide. Por esta razão, não é possível, a não ser
por um recurso de má-fé130, se “dessolidarizar” de seu próprio passado. A este respeito
acrescentamos que a negação de ser que caracteriza o para-si (nadificação), é distinta da
negação no sentido de não assumir, não se responsabilizar por algo, neste caso por seu
passado. Esta segunda descrição caracterizaria o que Sartre considera ser uma negação de má-
fé, que se traduz na ideia de que o para-si “não é o que ele era”, no interior de uma concepção
do tempo em que “o passado não é mais”. A negação no sentido da nadificação, ao contrário,
127 CDG, p. 499. Citamos as análises do caderno XI dos Carnets de la drôle de guerre em que os
desenvolvimentos sobre a temporalidade encontram-se em afinidade com os de L’Être et le Néant, isto é, logo
após a mudança da concepção de temporalidade apontada neste mesmo caderno (ibid., p. 495-496), sobre a qual
comentamos anteriormente.
128 CDG, p. 499.
129 Bento Prado Jr. resume bem e em poucas palavras este fechamento da passadificação, em sua relação com a
abertura da transformação de significação do passado: “Os meus gestos passados inscreveram-se definitivamente
no universo dos objetos. O meu presente vivido, ao tornar-se passado, cristaliza-se e ganha a inércia da
exterioridade A minha história atual pode - através do jogo da ilusão retrospectiva - transformar-lhe a
significação, sem nunca apagar a sua efetividade”. PRADO JR., B. Presença e campo transcendental.
Consciência e negatividade na filosofia de Bergson. São Paulo: Edusp, 1989, p. 104.
130 O tema da má-fé será abordado na “Terceira parte”.
!176
é a assunção do passado - “jamais négation sans racines”131 - o que quer dizer que o para-si só
pode existir como processo de nadificação a cada momento de tudo que ele é, numa
concepção do tempo onde o passado é estrutura da própria existência. Disto decorre a tensão
da abertura e do fechamento do modo do para-si de ao mesmo tempo ser seu passado - o que
se revela na impossibilidade de não sê-lo e na impossibilidade de sê-lo, sob o modo de
identificação. Apesar do modo de ser do para-si com o seu passado ser uma relação de
identificação (conforme o trecho acima), a realização desta operação não é possível, devido ao
processo temporal de nadificação de si que caracteriza o para-si, que se consiste justamente
num escape incessante que impede a identificação a si. Por isso, Sartre se utiliza do termo
solidariedade para com o passado, para evidenciar o aspecto da tensão entre não poder não
ser seu passado e não poder sê-lo como ser em-si.
No primeiro caderno dos Carnets, que data de outubro de 1939, ou seja, antes de sua
mudança em direção à historicidade no ano seguinte, Sartre descreve exatamente o que neste
contexto posterior poderia ser caracterizado como má-fé, neste caso como uma recusa de
“solidariedade consigo mesmo”:
Il m’est arrivé, après avoir eu des torts, dans une dispute, de les reconnaître
volontiers et de m’étonner profondément ensuite en voyant que mon
interlocuteur, malgré cet aveu, m’en voulait encore. J’avais envie de lui dire :
« Mais, voyons, ça n’est plus moi ; ça n’est plus le même ». Certainement
c’est ce qui me rend si évidente ma théorie de la liberté, qui est en effet une
manière de s’échapper à soi-même, à tout instant. Jamais je n’ai de remords.
[…] Et si, devant autrui, j’assume la responsabilité de mes actes - et cela du
moins, j’en suis sûr, je le fait toujours - c’est avec l’impression de payer
généreusement pour un autre132.
Este trecho é muito interessante, já que ele concentra uma série de aspectos que estão
envolvidos na concepção da temporalidade e do modo de ser do para-si. A falta de
solidariedade com o que o para-si foi traz implicitamente uma forma de conceber a duração,
isto é, de que modo Sartre concebe a espontaneidade da consciência como criadora de si
mesma e qual a relação das novas consciências com as consciências passadas. Esta relação é
constatada no trecho agora citado com base num plano reflexivo, que é o momento em que a
consciência nua “julga” seu homem, como se fosse uma relação com o outro. A fala: “Mais,
voyons, ça n’est plus moi; ça n’est plus le même” nos remete à espontaneidade da consciência
de La Transcendance de l’Ego, que a cada instante produzia uma existência nova a partir de
uma criação ex nihilo e não é a toa que neste texto Sartre parafraseia o “Je est un autre”133 de
Rimbaud. Tratava-se assim de uma existência nova a cada instante, dessolidarizada com seu
passado, a cada instante outra, como não sendo o seu passado. A mudança na concepção da
temporalidade, que permite as novas elaborações em torno do tema em L’Être et le Néant,
ocorre justamente no que tange à encarnação do para-si em sua historicidade e na
impossibilidade de não ser o seu próprio passado134. Mas isso não significa que as posições
anteriores que encontramos nestes trechos sejam rejeitadas por completo: a espontaneidade
como maneira de ser da duração se mantém, embora este criar-se a si mesmo não seja mais
compreendido como um simples desprendimento do passado. Mesmo porque, dizer que o
para-si não é mais o seu passado é conceber uma separação entre passado e presente como
estes se fossem instâncias independentes e não estruturas temporais interligadas entre si. A
partir desta premissa, como vimos, dizer que o para-si não é o seu passado é agir de má-fé.
Entretanto, a tensão do era mostrou que também não é possível dizer que ele é o seu passado:
“me perdre en lui sous la forme de l’identification : ce qui m’est refusé par essence” 135.
Parece-nos que ao invés de considerar as posições anteriores como ultrapassadas, após as
mudanças na perspectiva temporal, podemos dizer que elas são constitutivas da tensão mesma
de “ser o que não se é e não ser o que se é”. Tudo se passa como se a questão do “ça n’est plus
moi; ça n’est plus le même” estivesse mal colocada, como se Sartre ainda não tivesse os
recursos para pensar de que modo ele não é mais o mesmo. Uma das chaves de mudança de
seu pensamento neste sentido parece ter vindo da posição hegeliana de que “a essência é
aquilo que foi” (Wesen ist was gewesen ist)136, a partir da qual Sartre afirma que “toute
jugement que je porte sur moi est déjà faux quand je le porte, c’est-à-dire que je suis devenu
autre chose”137. É neste sentido que ele associa neste contexto a “essência” ao passado: “mon
essence est au passé, c’est sa loi d’être”138. Esta modificação é fundamental para compreender
a duração, no sentido de “passagem” do para-si presente ao passado (que Sartre nomeia de
passadificação), através da qual o para-si modifica-se como para-si para o modo de ser em-si.
“Le passé se donne, conclut Sartre, comme du pour-soi devenu en-soi”139, assim tudo que o
para-si pode dizer que ele é, só pode ser passado: “le passé c’est ce que je suis sans pouvoir le
vivre. Le passé, c’est la substance. En ce sens le cogito cartésien devrait se formuler plutôt :
« Je pense donc j’étais »”140. Entretanto, não podemos compreender o passado que o para-si é
como um “em-si que ele foi”, pois o para-si jamais é em-si, dado que é sempre nadificação de
seu próprio ser. Dizer que o passado é em-si só tem sentido se o passado for compreendido a
partir do processo de modificação que ocorre no modo de ser do para-si que se torna passado;
o passado só é em-si para um para-si que não pode jamais ser em-si. Caso contrário,
recairíamos no problema identificado por Sartre na perspectiva heraclitiana do devir
qui insiste uniquement sur ce que je ne suis déjà plus ce que je dis être. Sans
doute, tout ce qu’on peut dire que je suis, je ne le suis pas. Mais c’est mal dit
d’affirmer que je ne le suis déjà plus, car je ne l’ai jamais été, si on entend
par là « être en soi »; et d’autre part il ne s’ensuit pas non plus que je fasse
erreur en disant l’être, puisqu’il faut bien que je le sois pour ne pas l’être : je
le suis sur le mode du « étais »141 .
O modo do era significa justamente a síntese das ek-stases temporais que faz com que
o passado seja o em-si nadificado pelo para-si presente rumo ao futuro. Sartre descreve este
processo de temporalização através dos termos fuga e perseguição. Como mencionamos, a
fuga é o modo de ser da presença do para-si, como fuga da força objetificadora da
136 Sartre traduz Wesen ist was gewesen ist por “l’essence, c’est ce qui a été” nos Carnets (CDG, p. 496) e em
L’Être et le Néant (p. 155), embora em outro momento ele traduza por “être c’est avoir été” (EN, p. 541).
Segundo Simont em nota dos Carnets, (CDG, p. 1461, n. 66), a fonte de Sartre é provavelmente Kierkegaard,
que cita a mesma frase no Conceito de angústia. De todo modo, Simont nos indica a citação original de Hegel na
Ciência da Lógica, acrescentando o seguinte trecho (que torna mais clara a ideia): “La langue a conservé dans le
verbe sein le Wesen dans le participe passé gewesen; car l’essence est l’être passé, mais intemporellement passé”.
Ibid.
137 EN, p. 151.
138 EN, p. 155.
139 EN, p. 154.
140 Ibid.
141 EN, p. 153. (grifo nosso)
!179
142 Sempre que o “si” significar a completude do para-si, sinônimo de valor, para-si-em-si e Deus, utilizaremos a
letra maiúscula.
143 EN, p. 161.
144 Cf. por exemplo: EN, p. 585.
145 EN, p. 150.
146 RICŒUR, P. Temps et récit III, p. 101.
147 EN, p. 579.
148 Sartre parece censurar em Heidegger uma espécie de “subjetivação da morte”. Seu argumento é longo e não é
nosso objetivo desenvolvê-lo aqui, assim como comparar sua crítica ao texto heideggeriano para ver se ela
procede. Nosso intuito é o de considerar alguns aspectos das análises de Sartre sobre a morte que ofereçam
elementos importantes para a compreensão da temporalidade.
!180
terme ceux qui l’attendent à telle ou telle date”149, diz Sartre. A morte não estrutura o projeto
exatamente porque ela é o acontecimento metafísico de aniquilação de todos os projetos; ela
não pode ser “esperada” visto que é ela mesma que confere o caráter de absurdidade a toda
espera. Trata-se, portanto, de um fato da ordem da exterioridade, que atinge o para-si em seu
ser e o transforma em exterioridade pura: “La mort est un pur fait, comme la naissance ; elle
vient à nous du dehors et elle nous transforme en dehors. Au fond, elle ne se distingue
aucunement de la naissance, et c’est l’identité de la naissance et de la mort que nous
nommons facticité”150.
A morte, o nascimento e o passado são, portanto, da ordem da facticidade do para-si.
Porém, os dois primeiros são acontecimentos que se dão externamente, enquanto que o
passado é a facticidade do próprio para-si, que é nadificação interna de seu ser. Mais
precisamente, a morte e o nascimento são acontecimentos contingentes que o para-si assume
como facticidade. Como veremos em seguida, a estrutura imediata da facticidade consiste
precisamente no em-si que o para-si é enquanto nadificação e o passado é uma das figuras do
em-si que o para-si nadifica no processo temporalizador, neste caso sob o modo do era. É
neste sentido que “facticité et passé sont deux mots pour désigner une seule et même chose.
Le Passé, en effet, comme la Facticité, c’est la contingence invulnérable de l’en-soi que j’ai à
être sans aucune possibilité de ne l’être pas”151. É contingente que o para-si tenha tal ou tal
passado, mesmo que as significações de seu passado estejam em jogo a cada vez.
Por fim, o fato de o passado ser tudo o que o para-si foi - que ele nadifica como fuga
da contingência - pode nos fazer pensar na questão do nascimento como o momento inicial do
para-si “sem passado”. Se isso fosse possível, o passado não seria uma estrutura ontológica do
para-si e a estrutura imediata da facticidade tampouco. Nesta linha de interpretação, nossa
tendência seria a de compreender este processo de fuga do para-si como uma duração linear,
como algo se solidifica constantemente por detrás. O próprio Sartre dá margem a esta
interpretação na medida em que usa os termos “par derrière”, “fuga” e “perseguição”, para se
referir ao passado, em direção ao futuro que “ainda não é”. No entanto, se assim fosse,
recairíamos no problema do instantaneísmo que comentamos anteriormente, visto que
estaríamos numa perspectiva segundo a qual só o presente existe, relegando ao passado um
modo daquilo que “não é mais” e ao futuro um “ainda não é”. Por esta razão, o nascimento,
evento absurdo e contingente, é mais um problema metafísico que ontológico152 , isto é, desde
que o para-si surge, o passado, presente e futuro são constitutivos de seu modo de ser, e o
projeto de ser, que é a estrutura temporal do para-si, se dá desde sempre como nadificação da
facticidade e fuga da contingência.
Inspirado na divisão kantiana entre ordem e curso do tempo, Sartre se propõe a pensar
uma estática e uma dinâmica da temporalidade. Esta divisão ocorre a título de organização,
dado que uma “ordem” do tempo fora de seu “curso” constituiria uma temporalidade
instantaneísta sob o modo do em-si, onde os diferentes tempos de uma ordem do “antes” e
“depois” não seriam compreendidos através das relações internas de nadificação do para-si,
mas como momentos isolados de uma sucessão. A dinâmica da temporalidade é, portanto, a
análise da temporalidade originária, processo temporalizador que se dá pelo que Sartre chama
de metamorfose. As análises sobre este processo procuram dar conta da questão da duração,
no sentido de um processo que compreende a dinâmica do devir, através do qual o para-si
presente se torna passado e com base no qual podemos compreender o que significaria o
“surgimento” de um novo presente. Revelado este processo originário, pode-se compreender
em seguida as questões relativas à “ordem” do “antes e depois” da sucessão, assim como a
questão da mudança e da permanência.
O próprio da dinâmica temporalizadora é a síntese promovida pelas relações internas
do para-si de modo que “la temporalité n’est pas, mais le pour-soi se temporalise en
existant”153, diz Sartre, parafraseando à sua maneira Heidegger. O ser projetivo do para-si é
uma unidade temporal composta de dimensões múltiplas de nadificação, multiplicidade de
maneiras de ser instauradas pela “force dissolvante”154 da temporalidade incidindo sobre
modo de ser da identidade. O para-si é o modo de ser ambíguo da simultaneidade entre coesão
e dispersão, identificado por Sartre ao movimento da “diáspora”155 do povo judeu. O para-si é
diaspórico, no sentido que “il faut toujours chercher la signification d’une dimension
temporelle ailleurs, dans une autre dimension […] c’est la nécessité de réaliser la diaspora en
se faisant conditionner là-bas, dehors, dans l’unité de soi”156.
A relação entre as múltiplas dimensões possíveis de nadificação e a unidade temporal
projetiva do para-si não se equivalem a uma relação do tipo multiplicidade de mudanças em
relação à permanência. Sartre diz ser o argumento favorito de Leibniz a ideia de que “le
changement implique de soi la permanence”, ou a premissa da “subsistance d’un élément
permanent à côté de ce qui change”157 . Neste caso, identificaríamos temporalidade à mudança
e a permanência seria um elemento intemporal atravessado pelo tempo; por conseguinte, a
unidade da permanência e da mudança teria que ser dada por um terceiro termo de modo que
ela não seria inerente à mudança. Mesmo que isso fosse possível, tratar-se-ia de uma unidade
exterior entre os termos e não de uma relação de ser, que é própria do modo temporal ek-
stático. Assim, “cette unité d’être revient à exiger que le permanent soit ce qui change ; et, par
là, elle est ek-statique par essence; en outre elle est destructrice du caractère d’en-soi de la
permanence et du changement”158. Eis que reencontramos aqui a questão da unificação que
desde La Transcendance de l’Ego permanecia pouco explorada, visto que Sartre, ao retirar o
papel unificador do Ego, não desenvolveu como seria este movimento autounificador da
consciência. Sob a perspectiva da temporalidade ek-stática, a unificação é dada pelo próprio
processo temporalizador, enquanto nadificação do em-si, tendo de ser seu futuro e seu
passado. O movimento temporalizador não é multiplicidade de uma unidade já dada -
permanência - mas processo interunificado, pelas relações internas, que faz com que toda
mudança seja mudança global, isto é, uma metamorfose de “tout entier à la fois, forme et
contenu” um “changement pur e absolu qui peut fort bien d’ailleurs être changement sans rien
qui change et qui est la durée même”159. Diante desta duração que é metamorfose de ser, é a
própria permanência que se torna um problema a explicar:
moins comme changement par rapport à un état antérieur qu’il sera au passé
sur le mode du « était »160 .
160 Ibid.
161 EN, p. 166.
162 EN, p. 168.
!184
que quer dizer que a duração não se dá por uma unidade que é imposta de fora, de um
intemporal, mas ela é o próprio modo de ser diaspórico do para-si. O “antes” e “depois” só
são inteligíveis a partir de relações internas do para-si onde qualquer anterioridade e
posterioridade só faz sentido em relação. Assim, sendo a ordem e o curso do tempo
inteligíveis somente a partir do modo de ser ek-stático do para-si, podemos compreender
como Sartre desenvolve sua própria concepção da duração, que é o que pode ser caracterizado
de processo de metamorfose.
que impedia a identidade, completando a apreensão do para-si pelo ser. O para-si “ex-
presente”, sendo presente de seu passado, se junta ao bloco de tudo que o para-si era, mas
como um presente que ele foi, uma ex-presença diante de um mundo ex-presente no qual o
para-si era. Nas palavras de Sartre:
168 Sartre equipara para-si e espontaneidade, esclarecendo que se trata de uma questão de linguagem: A
espontaneidade seria um termo “mais familiar ao leitor” do que o termo para-si. EN, p. 184.
169 EN, p. 182.
170 SEEL, G. La dialectique de Sartre. Lausanne: L’âge d’Homme, 1995, p. 181. (Trad. E. Müller, P. Muller, &
M. Reinhard).
171 EN, p. 181.
!187
que o presente atual se transforma imediatamente em futuro para o presente que passou. O
exemplo que Sartre oferece é o de uma espera que foi realizada, como no caso de quando
dizemos: “Ce que j’attendais, le voici”172. Assim, compreendemos que quando o ex-presente
era presente, havia uma espera de algo que se realizaria no futuro. Após a modificação do
presente em passado, a espera se realizou e somente numa relação com o ex-presente esta
realização pode ser compreendida como um futuro anterior que se sucedeu. Entretanto, isto
não significa que o “novo” presente de fato realiza o futuro anterior do ex-presente de
maneira a coincidir com aquilo que era esperado no futuro, o que seria um tipo de
determinismo dos acontecimentos. Pelo contrário, Sartre busca ressaltar o caráter de
irrealização do futuro anterior, que ele expressa como sendo um ideal que permanece
copresente ao “novo” presente: “le futur primitif n’est point réalisé : il n’est plus futur par
rapport au présent, sans cesser d’être futur par rapport au passé. Il devient le coprésent
irréalisable du présent et conserve une idéalité totale […]. Il demeure futur idéalement
coprésent au présent, comme futur irréalisé du passé de ce présent”173. A impossibilidade de
realização do futuro do ex-presente no “novo” presente expressa uma “decepção
ontológica”174 já que o futuro imediato é uma modificação do futuro do ex-presente em
relação ao novo presente, ou, se preferirmos, ele é o caráter de idealidade copresente ao
“novo” presente do futuro anterior que ele tinha de ser. Nas palavras de Sartre: “Le futur tout
entier du pour-soi présent tombe au passé comme futur avec ce pour-soi lui-même. Il sera
futur passé d’un certain pour-soi ou futur antérieur. Ce futur ne se réalise pas. Ce qui se
réalise, c’est un pour-soi désigné par le futur et qui se constitue en liaison avec ce futur” 175.
Outro modo de relação da ek-stase futuro com o “novo” presente, além do futuro
imediato, é o futuro distante. Este modo de relação não sofre a modificação no sentido de que
o “novo” presente é futuro para o ex-presente, mas ele permanece sendo futuro para o “novo”
presente. Isto significa que o futuro distante indica a relação do “novo” presente e suas
possibilidades com as possibilidades anteriores, e isto se dá de duas maneiras: sendo o
possível um possível que ainda se “possibiliza”, ou sendo um possível que perdeu seu caráter
de “possibilização”. No primeiro caso, trata-se de meu possível; no segundo, trata-se de um
possível indiferente. Desde que surge um “novo” presente, este é desde sempre relação com os
seus possíveis e relação com os possíveis do presente que se tornou passado. O presente que
se tornou passado se realizava na presença como fuga do em-si passado e como falta de um
faltante futuro e esta falta pode permanecer como falta em relação ao “novo” presente ou não.
Se a falta do “novo” presente não se constitui mais em consonância com a falta do ex-
presente, o possível anterior se tornou insignificante. Por outro lado, se essa falta constitui
ainda o “novo” presente em seu futuro, o possível resta como seu possível e continua a se
“possibilizar”. Sartre oferece o seguinte exemplo: “Hier, il a été possible - comme mon
possible - que je parte lundi prochain à la campagne. Aujourd’hui ce possible n’est plus mon
possible, il demeure l’objet thématisé de ma contemplation à titre du possible toujours futur
que j’ai été ”176. O ex-possível se define assim pela relação com o novo presente: ele pode ser
ainda seu possível - estruturado pela falta atual do para-si - ou ele pode se tornar um possível
indiferente como “possible donné, c’est-à-dire possible en soi d’un pour-soi devenu en-
soi”177.
A nadificação de si, os possíveis, a falta e o desejo de ser Deus, são temas que já foram
citados até aqui. Eles compõem um percurso que evidencia a mudança que ocorreu no
pensamento sartriano em relação à sua concepção de temporalidade e a inserção da estrutura
da facticidade. Este caminho nos mostrou que não podemos simplesmente equiparar as noções
que valiam para a consciência nua ao para-si, o que redefine a maneira de compreender a
forma de aparição do mundo, a estrutura da reflexão, etc. A partir da facticidade e da
temporalidade ek-stática, vimos que o para-si não pode mais ser concebido como puro nada,
pois a nadificação é sempre um ato que se dá no ser. Por esta mesma razão, a temporalidade
ek-stática indica que o processo de metamorfose só pode ser compreendido a partir da relação
com o passado e o futuro, e assim a “dessolidarização” do passado passou a ser considerada
como um ato de má-fé. Isto posto, veremos em seguida como estas condições são dadas nas
próprias estruturas imediatas do “sujeito” para-si.
A mudança que se opera na filosofia de Sartre em torno dos anos 1939-40 consiste
principalmente, como viemos de analisar, na passagem de uma temporalidade instantaneísta à
temporalidade ek-stática, assim como na inserção da facticidade na estrutura mesma do modo
de ser da consciência. A consciência nua passou a ser considerada como consciência refúgio a
partir das novas formulações que se tornaram a base de L’Être et le Néant. Nesta obra, a
estrutura da consciência é complexificada: esta última não é mais um nada que se cria ex
nihilo, mas um para-si cujo modo de ser é nadificação do seu ser. Mesmo assim, como vimos,
essas mudanças não suprimiram por completo as posições inicias de Sartre como, por
exemplo, a condição de contingência da existência. Neste sentido, podemos acrescentar ainda
que Sartre procura pensar a consciência ainda através das características iniciais de
translucidez, pré-reflexividade e intencionalidade. Sendo assim, estes aspectos devem ser
retomados agora pelo novo prisma, isto é, pela perspectiva conceitual das regiões ontológicas
do para-si e do em-si e da temporalidade ek-stática.
a) cogito e pré-reflexão.
Merleau-Ponty, Signes
estrutura da facticidade, Sartre permanece fiel a herança cartesiana de que a filosofia deve
partir do cogito. Vimos que em La Transcendance de l’Ego o cogito cartesiano fora descrito
como uma operação reflexiva que faz surgir o Eu para uma consciência que é originariamente
irrefletida e sem Eu. Sartre mantém essa posição, mas agora nomeia de cogito pré-reflexivo
esta esfera que até então era designada como consciência irrefletida. Mais do que uma
simples mudança de nomenclatura, Sartre introduz, na verdade, uma nuance nas suas
descrições anteriores. No contexto de L’Être et le Néant, a irreflexão continua sendo pensada
como plano primeiro e autônomo em relação à reflexão; e a intencionalidade continua do
mesmo modo a caracterizar a estrutura da consciência irrefletida como consciência de alguma
coisa que não é ela. No entanto, surge uma nuance neste novo contexto no que diz respeito ao
aparecer da consciência a si mesma, característica que neste momento é atribuída ao cogito
pré-reflexivo. Isto significa que, ao invés de modificar sua organização para compreender os
diferentes graus de consciência, Sartre complexifica a divisão anterior, que pode ser resumida
do seguinte modo: toda consciência de alguma coisa, seja de um objeto transcendente
(irreflexão), seja dela mesma (reflexão), deve ser consciente de si de forma não posicional.
Assim, através do conceito de cogito pré-reflexivo, Sartre descreve de forma mais rigorosa a
distinção dos modos de consciência, uma vez que não podemos dizer que a consciência
reflexiva é irrefletida, mas certamente ela é pré-reflexiva em sua estrutura. Além disso, há ao
mesmo tempo uma complexificação na própria estrutura de pré-reflexividade. Não basta a
Sartre apenas constatar que a consciência aparece a si mesma, agora ele busca pormenorizar o
como ocorre esta aparição a si a partir de uma descrição da estrutura da consciência pensada
como um jogo de reflexos, conforme veremos a seguir em nossa análise da estrutura imediata
presença a si.
Nesta nova configuração, Sartre passa a usar assim o termo cogito para designar a pré-
reflexividade. Este termo evidencia sua filiação à tradição cartesiana no sentido de que mais
do que abdicar deste ponto de partida fundamental, trata-se de pensá-lo de outro modo, como
uma espécie de cogito alargado (cogito élargi), com base na temporalidade ek-stática. Em
outros termos, a posição filosófica de Sartre em relação ao cogito cartesiano se mostra mais
como uma tentativa de reformá-lo do que de ultrapassá-lo, embora esta filiação tenha se dado
desde o início de seu percurso filosófico por uma via bastante crítica. Por estas razões, a
!191
relação de Sartre ao cogito é difícil de ser definida 1, visto que ela não se resume à maior ou
menor aderência da parte de Sartre aos pressupostos cartesianos mas, além disso, ela se
caracteriza pela dificuldade mesma de traçar a coerência de tal filiação, devido à fluidez das
posições do próprio Sartre2.
Na conferência de 1947, Conscience de soi et connaissance de soi, Sartre enumera as
críticas mais comuns dirigidas até então ao cogito cartesiano: 1) o cogito isolado de seu
cogitatum é uma abstração; 2) por ser instantâneo, o cogito não pode fundar a temporalidade e
nem mesmo a verdade, se esta for compreendida como um devir, no sentido hegeliano; 3) ele
se torna então uma contemplação intemporal de um sistema de meios e fins; 4) ele não
informa nem sobre seu ser, nem sobre o ser do mundo, pois este se encontra reduzido a um
perceptum; 5) ele não permite sair do solipsismo a não ser por um recurso a Deus. Poderíamos
acrescentar ainda um último ponto que consiste na crítica sartriana à substancialidade do
cogito cartesiano.
Na tentativa de reforma do cogito, Sartre busca salvaguardá-lo ao liberá-lo de todos
estes problemas, o que seria possível por via dos recursos provenientes da fenomenologia de
Husserl, como a intencionalidade e a dimensão de pré-reflexão da consciência. Estas duas
características permitem a Sartre fazer uma distinção crucial entre consciência, como
dimensão de existência do sujeito, e conhecimento, como estrutura derivada que caracteriza a
consciência que se volta sobre si. Desde La Transcendance de l’Ego, a dimensão de pré-
reflexividade (mesmo que ele não utilize ainda o termo) permite a Sartre escapar do problema
maior dos autores que pensaram o cogito como reflexão3. Se “toda consciência é consciência
de alguma coisa”, tal como mostra o princípio de intencionalidade da consciência, a reflexão
cosiste na aplicação deste princípio à autoposição da consciência. Desta forma, o “penso, logo
existo” (je pense, donc je suis) caracteriza, na realidade, a estrutura do conhecimento onde há
um “Eu” (Je) que se volta sobre si para apreender a certeza de sua existência, ou seja, há uma
reflexão que permite a um “Eu” dizer sobre si que pensa e existe. Tendo em vista tal estrutura,
Sartre se pergunta como a consciência reflexiva (a que posiciona), que se volta sob a
consciência refletida (a que é posicionada) para afirmar um “Eu” que pensa, pode ser ela
1 Como afirma De Coorebyter: “Il y a presque autant d’interprétations sartriennes du cogito cartésien que de
textes portant sur ce thème”. DE COOREBYTER, V. Notes, p. 204 n. 21.
2 Basta comparar a mudança de tom nos argumentos de textos como: La Transcendance de l’Ego, L'Être et le
Néant, La liberté cartésienne e nas conferências Conscience de soi et connaissance de soi e L’Existentialisme est
un humanisme.
3 Cf. La Transcendance de l’Ego. Parte 1 b) O cogito como consciência reflexiva.
!192
mesma certa de sua existência4. Seria necessário então um novo ato de reflexão que
posicionasse dessa vez a consciência reflexiva para afirmar sua existência. Todavia, este novo
ato, além de manter a consciência de si sempre nos moldes da relação de conhecimento -
consciência posicional de alguma coisa -, geraria inevitavelmente um recurso ao infinito: para
que toda consciência seja consciente de ser consciente de alguma coisa é necessário que uma
consciência anterior a posicione. Enquanto que, na verdade, Sartre mostra que o recurso ao
infinito não procede, dado que há uma dimensão da consciência que é anterior a estrutura
reflexiva de autoposição, que é o cogito pré-reflexivo não posicional, anterior ao cogito
cartesiano reflexivo. Em outros termos, para que uma consciência seja consciente de si não é
necessário que ela se apreenda pela reflexão, já que o “saber” de si da consciência já é
garantido pela própria pré-reflexividade. Assim, a consciência, sendo sempre “de alguma
coisa”, surge a partir de algo que não é ela, mas deve ainda ser consciente de si enquanto
consciência de alguma coisa; a dimensão de ser consciência (de) si é imediata (utilizando-se
dos parênteses para demarcar uma diferenciação para com a consciência posicional de
consciência que caracteriza a reflexão) de modo que ela não pode ser considerada como
reenvio ao infinito da estrutura do conhecimento de uma consciência anterior por consciências
posteriores. Além disso, a relação (de) si a si não diz respeito a duas consciências em tempos
distintos – a consciência posicional do objeto e a consciência (de) si – mas sim a uma
estrutura dada na unidade e na imanência de uma mesma consciência que indica uma relação
a si não posicional, como explica Sartre: “Cette conscience (de) soi, nous ne devons pas la
considérer comme une nouvelle conscience, mais comme le seul mode d’existence qui soit
possible pour une conscience de quelque chose”5. A consciência é ainda um absoluto não
substancial, o que significa que a consciência é pura translucidez - como em La
Transcendance de l’Ego - no sentido de não comportar conteúdos ou representações. Ela é um
“vazio total”, um puro aparecer e “c’est à cause de cette identité en elle de l’apparence et de
l’existence qu’elle peut être considérée comme absolu”6. Em suma, Sartre não pensa o cogito
pela estrutura da reflexão mas como pré-reflexividade. Esta dimensão, por sua vez, se dá
somente através da consciência intencional, pelo fato de que o aparecer a si da consciência é
Podemos identificar desde o Esquisse este desejo de unir os dois filósofos na tentativa
de pensar uma transcendência que se “autoaparece”, através do sentido particular que Sartre
dá ao conceito heideggeriano de compreensão: “En effet exister pour la réalité-humaine c’est,
selon Heidegger, assumer son propre être dans un mode existentiel de compréhension ; exister
pour la conscience c’est s’apparaître, d’après Husserl” 10. Sartre realiza esta síntese à sua
maneira, ou seja, ele não se aprofunda em toda a dimensão temporal que o conceito de
7 Conforme já demonstrava Husserl quando dizia que “rien d’autre que cette particularité foncière et générale
qu’a la conscience d’être conscience de quelque chose, de porter, en sa qualité de cogito, son cogitatum en elle-
même”. HUSSERL, E. Méditations cartésiennes, p. 65. Ou seja, não é mais possível conceber a separação entre
cogitatione e cogitatum, a percepção é sempre de um percebido, o julgamento do julgado, o desejar do desejado,
entre outras vivências da consciência. Cf. §34 §35 Ideen I.
8 EN, p. 122.
9 CSCS, p. 164.
10 ETE, p. 15. No que diz respeito à relação de Sartre com os dois filósofos, Jeanson pensa que é Heidegger que
fornece a Sartre em última instância os elementos para se pensar o “objeto de investigação”, neste caso, a
“realidade-humana”: “pour autant qu’on puisse séparer méthode et objet, Husserl lui fournit plutôt la méthode
d’investigation, et que c’est à Heidegger qu’il demande de lui définir l’objet de cette investigation”. JEANSON,
F. Le problème moral et la pensée de Sartre, p .111.
!194
compreensão exige em Être et Temps 11 ao se limitar à ideia de “assunção de seu próprio ser”,
“c’est-à-dire en être responsable [de son être] au lieu de le recevoir du dehors comme fait une
pierre”12. Em L’Être et le Néant, a necessidade de recorrer a Heidegger é maior, ao passo que
Husserl é visto então como “enfermé dans le cogito” 13 devido à sua concepção “contemplative
et non dialectique” da consciência (conforme citação acima). O recurso a Heidegger consiste
em pensar que o projeto existencial ek-stático é dotado de compreensão de si14, só que sob a
perspectiva de uma consciência de si de forma não posicional. É através da noção de projeto
como temporalização ek-stática que Sartre procura “partir do cogito” - não no sentido de uma
apreensão instantânea de si da consciência -, mas “partir do cogito” no sentido de direcionar
uma interrogação ao próprio movimento de transcendência como temporalização 15.
É possível mesmo afirmar que a temporalização ek-stática é o ponto de apoio de Sartre
para praticamente todos os problemas apontados acima com relação ao cogito cartesiano,
assim como para os limites da fenomenologia de Husserl. Esta nova maneira de compreender
o para-si como projeto ek-stático fornece ainda instrumentos mais precisos para combater a
noção de sujeito substancial, preocupação que é presente, como vimos, desde o início de seu
caminho filosófico. A este respeito, é certo que desde os primeiros escritos até L’Être et le
Néant, a consciência não pode ser compreendida como substância, tanto que não há
contradição maior a seu ver que a ideia de uma “coisa pensante”, chegando mesmo a afirmar
que fazer da consciência uma coisa é “refuser le cogito”16. Em primeiro lugar, como vimos,
colocar o “Eu” no mesmo plano do “penso”, como o fez Descartes, é passar do cogito à ideia
de substância, já que o Eu é compreendido por Sartre em La Transcendance de l’Ego como
um centro de opacidade. Mesmo Husserl, em sua opinião, acaba por recair de algum modo na
substancialização da consciência ao introduzir o Eu puro a partir das Ideen: “Husserl, quoique
uma maneira de escapar ao instantaneísmo cartesiano e ao idealismo husserliano (pela ideia de transcendência),
embora ele não diga exatamente o que entende por compreensão. Conforme apontamos em nota anteriormente,
este conceito exige uma análise aprofundada no interior da dinâmica de Être et Temps, que não nos interessa
realizar aqui. De todo modo, Sartre parece concordar com a ideia de um “saber implícito de si” que, assim como
a compreensão heideggeriana, “n’est pas une connaissance acquise, née d’un acte cognitif, mais un mode d’être
originairement existential qui rend tout d’abord possible l’acte de connaître et la connaissance” (HEIDEGGER,
M. Être et Temps, p. 113) e este “saber de si” é a própria temporalização do Dasein: “saisi de manière
originairement existentiale, le comprendre signifie : être-projetant pour un pouvoir-être en-vue-de quoi le Dasein
existe à chaque fois.” (ibid., p. 258)
15 EN, p. 110.
16 EN, p. 17-18.
!195
plus subtilement, tombe au fond sous le même reproche [de Descartes]. J’entends bien qu’il
reconnaît au Je une transcendance spéciale qui n’est pas celle de l’objet et qu’on pourrait
appeler une transcendance « par en dessus ». Mais de quel droit?”17. Em face de qualquer
possibilidade de substancialização, Sartre é categórico: “En aucun cas, ma conscience ne
saurait être une chose”18 . No entanto, a “substancialização” do cogito feita por Descartes é
relativizada em sua conferência de 1947, em que ele afirma: “S’il est vrai que Descartes est
substantialiste - ce qu’il n’est pas prouvé”; atribuindo esta substancialização não ao próprio
Descartes, mas ao seus comentadores19 (dentre os quais poderíamos certamente incluí-lo, se
assim for). De todo modo, o problema maior consiste, segundo Sartre, em aplicar uma noção
de ser válida tanto para as coisas quanto para o cogito - problema também apontado por
Heidegger, conforme sublinha Dastur20 - o que também levou Husserl a considerar Descartes
como “le père de ce contresens philosophique qu’est le réalisme transcendental”21 . Com
efeito, é verdade que a substância pensante cartesiana é bem particular, dado que se trata de
uma substância imaterial “qui transforme le sens même de cette notion de substance, dans la
mesure où celle-ci est désormais interprétée dans l’horizon original de la subjectivité comme
rapport immédiat à soi, indépendant de toute autre donnée”, conclui J. Benoist22. O autor
afirma ainda que, neste contexto, substância significa “ce qui est par soi, sans avoir besoin
d’autre chose pour être”23, de modo que o cogito adquire os valores de autonomia e
fundamento.
Tendo em vista esta nuance sobre a substancialidade do cogito cartesiano, pode-se
perguntar: se nos ativermos às características do conceito de substância como autonomia e
fundamento, a reelaboração do cogito feita por Sartre pode, neste sentido, escapar da
substancialidade, isto é, o cogito sartriano é de fato não substancial? Ou ainda: mesmo que
não façamos o erro de Descartes de considerar sob a mesma noção de “res” consciência e
extensão, escaparemos à definição de substância da consciência como autonomia e
fundamento? A questão envolve, a nosso ver, alguns detalhes importantes e nos direciona ao
mesmo tempo para o papel essencial da dimensão fática da consciência no interior de L’Être
17 TE, p. 103.
18 I’on, p. 1.
19 CSCS, p. 141; p. 147.
20 DASTUR, F. Heidegger. Paris: Vrin, 2007, p. 88.
21 HUSSERL, E. Méditations cartésiennes, p. 52.
22 BENOIST, J. La subjectivité, p. 517.
23 Ibid., p. 518.
!196
et le Néant. Em primeiro lugar, a consciência não pode ser considerada autônoma se por isso
entendermos que ela existe por si, independente de toda realidade que não seja da
consciência. A estrutura da intencionalidade, que Sartre reescreve sob forma de “prova
ontológica”, mostra que a consciência nasce a partir de algo que ela não é, o que implica que a
consciência pré-reflexiva seja sempre consciência de si de forma não posicional enquanto ela
é consciência posicional de algo que ela não é. Além disso, como vimos, para haver ato de
nadificação de si - ato ontológico - há de haver um ser que sustenta a própria nadificação, ou
seja, o nada é sempre nada de ser. Esta nadificação, conforme mostramos, mas voltaremos a
este ponto mais de uma vez, devido à sua importância, é dupla: a consciência nadifica o ser
que ela não é, ao mesmo tempo em que nadifica o ser que ela é, o que Sartre denominou de
dupla negação. O ser nadificado é justamente a estrutura imediata da facticidade, e é este
aspecto que nos permite compreender uma nuance do segundo ponto, a saber, a questão do
fundamento. Esta nuance consiste precisamente no fato de que Sartre não rejeita por completo
a questão do fundamento. Talvez o traço mais cartesiano (e também husserliano) de sua
filosofia seja exatamente o de querer fundamentar toda sua ontologia no cogito, mesmo que
este seja pré-reflexivo e no-mundo. Por outro lado, o cogito como fundamento de si não dá
conta de toda a dimensão da existência no quadro de L’Être et le Néant, visto que a
facticidade é justamente a estrutura do para-si que diz respeito ao fato do para-si ter de ser
infundado e contingente, fazendo com que o papel do cogito se restrinja à possibilidade de
apreensão da condição de não ser o seu próprio fundamento. Mais detalhadamente, o para-si é
fundamento da nadificação de seu ser, mas não de seu próprio ser, ele funda as maneiras de
ser, mas não sua própria existência. Neste sentido, podemos afirmar que o cogito nas mãos de
Sartre perde sua autonomia - pela prova ontológica e pela dupla nadificação - e limita a
questão do fundamento pela razão de que não se pode negligenciar toda a dimensão da
contingência da existência, que consideramos ser o terreno mesmo de sua ontologia: “il y a en
lui [le pour-soi] quelque chose dont il n’est pas le fondement : sa présence au monde. Cette
saisie de l’être par lui-même comme n’étant pas son propre fondement, elle est au fond de tout
cogito”24.
A fim de dar conta dessa dimensão, o cogito deve ser então alargado. Neste sentido,
ele ganha a dimensão da própria existência e não do conhecimento, dado que a consciência
24 EN, p. 115.
!197
“n’est pas une connaissance retournée sur soi, mais la dimension d’être du sujet”25 . Heidegger
dizia que “Descartes, à qui l’on attribue la découverte du cogito sum comme point de départ
du questionnement philosophique moderne, a examiné — dans certaines limites — le cogitare
de l’ego. En revanche, il laisse le sum totalement inélucidé, quand bien même il le pose tout
aussi originellement que le cogito”26. Para Sartre, questionar o “sum” do cogito, significa
elucidar a dimensão da existência fática a partir de uma reconfiguração da noção mesma de
consciência que, de início, ele acreditava encontrar em Husserl. Posteriormente, em L’Être et
le Néant, a posição husserliana é classificada ao lado do “intelectualismo” de Descartes:
25 CSCS, p. 136.
26 HEIDEGGER, M. Être et Temps, p. 56.
27 EN, p. 483. Sartre faz referência a Le Cogito chez Husserl et Descartes de G. Berger.
28 CSCS, p. 150. (grifo nosso)
29 BORNHEIM, G. Sartre.
!198
uma apreensão reflexiva do pensamento. Além disso, a paródia do cogito cartesiano que
encontramos aí retrata um círculo vicioso pela cena do personagem que tenta, na verdade, se
abster de pensar: “Je suis, j’existe, je pense donc je suis ; je suis parce que je pense, pourquoi
est-ce que je pense? je ne veux plus penser, je suis parce que je pense que je ne veux pas être,
je pense que je… parce que… pouah!”30. Ao mesmo tempo, tal círculo vicioso em nada
contribui com a tentativa do personagem Antoine Roquentin de apreender sua existência
reflexivamente, pelo contrário, esta parece sempre lhe escapar: “l’existence prend mes
pensées par-derrière et doucement les épanouit par derrière ; on me prend par-derrière, on me
force par-derrière de penser, donc d’être quelque chose, derrière moi qui souffle en légères
bulles d’existence”31. Na atmosfera de gratuidade de La Nausée, o pensamento reflexivo
aparece como fonte de angústia, na medida em que, ao invés de fornecer uma “certeza de si”,
ele afasta aquele que pensa desta certeza. O beau monsieur, figura do homem sério retratado
no romance, no sentido inverso de tal experiência, tem certeza de que existe exatamente por
não viver a angústia da dúvida que assombra Roquentin: “Le beau monsieur existe Légion
d’honneur, existe moustache, c’est tout ; comme on doit être heureux de n’être qu’une Légion
d’honneur et q’une moustache […] je ne pense pas donc je suis une moustache”32. Neste
contexto, é a experiência da náusea que revela a Roquentin a prova de sua existência de modo
que esta prova, ao invés de fornecer um solo seguro para a construção de um sistema, como
em Descartes, revela, ao contrário, uma “evidência desestabilizante”33. É por esta razão que,
para De Coorebyter, La Nausée consiste numa verdadeira “subversion” do cogito cartesiano,
na medida em que o romance mostra como Sartre se distancia de Descartes através de um
“cogito sensualista”, que se revela a partir de uma experiência involuntária que é ela mesma
corporal e que se impõe ao personagem em todas as suas dimensões. Esta subversão é dada ao
menos de quatro maneiras, que ele resume através das seguintes fórmulas anticartesianas: “Je
sens, donc je suis”, “De l’âme, et qu’elle est moins aisée à connaître que le corps”; “Je suis
une chose qui désire” ou “de la réelle indistinction entre l’âme et le corps de l’homme” e,
finalmente, “de Dieu, qu’il n’existe pas”34 . Assim, De Coorebyter demonstra a maneira pela
30 N, p. 146.
31 N, p. 148. Observamos que “par derrière” é justamente a expressão que Sartre utiliza em L’Être et le Néant
para descrever o assombramento do para-si por sua dimensão fática, conforme veremos na “Terceira parte”.
32 N, p. 147.
33 DE COOREBYTER, V. La petite Lucienne et le jardin public: la subversion du cogito dans La Nausée. Alter:
qual, em La Nausée, como dizia Ricœur, “la parenthèse qui protégeait la description pure est
levée ; le « je suis » ou « j’existe » déborde infiniment le « je pense »” 35. Diferentemente do
cogito alcançável via dúvida metódica em Descartes, a experiência da náusea se impõe
involuntariamente:
[na cena do jardim público] Roquentin est sidéré, fasciné, surpris par une
illumination qui échappe à toutes les catégories de la pensée; l’Existence en
personne le prend à la gorge, s’impose à lui. La rencontre avec l’être est si
intense qu’elle ne laisse pas place au doute, car il s’agit d’une expérience et
non d’une déduction: Roquentin ne s’en remet pas à la lumière de l’esprit
mais aux données sensibles les plus vulgaires, ce qui déplace le lieu et mode
d’évidence36.
35 RICŒUR, P. Philosophie de la volonté. Tome 1 : Le Volontaire et l’Involontaire. Paris: Points, 2009, p. 117.
36 DE COOREBYTER, V. La petite Lucienne et le jardin public, p. 100.
37 RICŒUR, P. Philosophie de la volonté, p. 118.
38 DESCARTES, R. Méditations métaphysiques, p. 81.(grifo nosso)
39 Este assunto é aprofundado na “Terceira parte”.
!200
40 EN, p. 378.
!201
41 CSCS, p. 137.
42 CSCS, p. 147.
43 CSCS, p. 150.
44 Com o cogito pré-reflexivo, Sartre mantém uma dimensão consciente sem sujeito nem objeto, pura “relação
imediata e não cognitiva de si a si”. EN, p. 19. Dimensão que até então valia para a consciência transcendental,
embora Sartre em 1943 afirme - em contraste com o trecho do primeiro dos Carnets de la drôle de guerre citado
anteriormente - de uma consciência que “julga” seu homem -, que a dimensão pré-reflexiva é justamente aquela
que “ne me permet ni de juger, ni de vouloir, ni d’avoir honte. Elle ne connaît pas ma perception, elle ne la pose
pas : tout ce qu’il y a d’intention dans ma conscience actuelle est dirigé vers le dehors, vers le monde”. Ibid.
!202
“vazio total”45, Sartre complexifica a estrutura da consciência que passa a ser compreendida
como uma dualidade na unidade, nomeada de díade reflexo-refletidor (dyade reflet-reflétant).
Este modo de ser é elaborado no intuito de dar conta da estrutura de pré-reflexividade não
substancial da consciência e de pôr em evidência a característica de toda consciência que é a
de “existir para um testemunho” 46: “le pour-soi est l’être qui existe sous forme de témoin de
son être”47. A fim de compreendermos o que isto significa, iniciaremos colocando em questão
o significado mesmo de presença a si, que adquire, no interior das análises de L’Être et le
Néant, um aspecto peculiar. Neste contexto, a presença a si é descrita como estrutura que faz
com que o para-si seja “questão” para si e não si, isto é, a presença a si é condição de
impossibilidade de que o para-si exista sob o modo do em-si, o que leva Sartre a afirmar que
“l’homme est libre parce qu’il n’est pas soi mais présence à soi”48. Assim, Sartre interpreta a
presença a si como não identidade a si e em termos de “separação”:
45 EN, p. 23.
46 EN, p. 111.
47 EN, p. 157.
48 EN, p. 485.
49 EN, p. 113.
50 “la néantisation de l’en-soi en pour-soi n’est pas un recul en face de l’en-soi: c’est plutôt en effondrement, une
relação de nadificação de ser que faz com que o para-si não possa coincidir consigo mesmo e
que ele exista sob a forma relacional. Por esta razão, a “separação” instaurada pela presença a
si não pode ser uma separação de fato - entre dois termos em-si -, a “separação” da presença
é, na verdade, uma estrutura ambígua de “dualidade na unidade”, onde cada termo da díade
reflexo-refletidor é e não é o outro. No intuito de oferecer um recurso que auxilie ao
pensamento a figurar tal estrutura de consciência, Sartre fala da consciência (de) si como um
“jogo de reflexos” (jeu de reflets), um jogo de “reenvio perpétuo de si a si do reflexo ao
refletidor e do refletidor ao reflexo”53. A imagem especular nos auxilia a pensar três aspectos
da estrutura pré-reflexiva: 1) a não substancialidade; 2) a estrutura de esboço de dualidade na
unidade; 3) a característica de “existir para um testemunho”.
Se o cogito pré-reflexivo é um jogo de reflexos, o que exatamente ele reflete? Ele é
reflexo infinito de si mesmo? Como vimos, Sartre nos mostra que o para-si se caracteriza pela
dupla negação: nadificação do em-si que ele é (tema que retomaremos em seguida para
descrevermos a estrutura da facticidade), negação interna do em-si que ele não é. Disto
decorre que a consciência, para existir, é dependente do em-si que ela nadifica. Não sendo
substância, a consciência é pura aparência, pois, como falamos anteriormente, a consciência é
um absoluto devido à equivalência, em seu modo de ser, entre ser e aparecer. A consciência é
o jogo de reflexos do aparecer do em-si que ela não é e do em-si que ela é54: o reflexo “se
reflète en tant que relation à un dehors qu’il n’est pas. Ce qui définit le reflet pour le reflétant,
c’est toujours ce à quoi il est présence”55. O reenvio incessante de reflexos pela díade reflexo-
refletidor assegura finalmente a não substancialidade da consciência, fazendo com que ela
escape a toda objetivação56.
A díade permite ainda compreender o aspecto contraditório da “separação” instaurada
pela presença a si de “dualidade na unidade”. Dado que a consciência não pode ser pensada de
maneira substancial, os dois termos da díade não podem ter o modo de ser do em-si, logo, não
se trata de uma separação entre duas instâncias autônomas, mas de uma relação dual entre
dois termos de uma mesma unidade de consciência. O reflexo é justamente este modo de ser
53 EN, p. 112.
54 No artigo “L’être du néant” V. de Coorebyter mostra com detalhes como o reflexo qualifica o para-si a partir
da negação interna do ser em-si que ele não é. Cf. DE COOREBYTER, V. L’être du néant. p. 356.
55 EN, p. 209.
56 Este reenvio incessante, diz Sartre, tampouco é um movimento infinito: “il est donné dans l’unité d’un seul
acte : le mouvement infini n’appartient qu’au regard réflexif qui veut saisir le phénomène comme totalité et qui
est renvoyé du reflet au reflétant, du reflétant au reflet sans pouvoir s’arrêter”. EN, p. 114-115.
!204
não substancial que é dependente do outro termo em seu ser - do qual ele é reflexo -,
compondo a unidade: “Le reflétant n’est que pour refléter le reflet et le reflet n’est reflet qu’en
tant qu’il renvoie au reflétant. Ainsi, les deux termes ébauchés de la dyade pointent l’un vers
l’autre et chacun engage son être dans l’être de l’autre”57. Além disso, o “jogo de reflexos” diz
respeito à característica da consciência de “existir para um testemunho”:
nous croyons avoir montré que la condition première de toute réflexivité est
un cogito préréflexif. Ce cogito, certes, ne pose pas d’objet, il reste
intraconscientiel. Mais il n’en est pas moins homologue au cogito réflexif en
ce qu’il apparaît comme la nécessité première, pour la conscience irréfléchie,
d’être vue par elle-même ; il comporte donc originellement ce caractère
dirimant d’exister pour un témoin, bien que ce témoin pour qui la conscience
existe soit elle-même. Ainsi, du seule fait que ma croyance est saisie comme
croyance, elle n’est plus que croyance, c’est-à-dire qu’elle n’est déjà plus
croyance, elle est croyance troublée60 .
57 EN, p. 209.
58 EN, p. 158. (grifo nosso)
59 CDG, p. 499. “Les miroirs, ces consciences à l’envers” SG, p. 89. A expressão “jogo de espelhos” nos auxilia
a compreender o sentido “físico” do refletir que Sartre atribui a este nível pré-reflexivo. V. de Coorebyter nos
indica que houve uma substituição do termo “réflection” por “réflexion” na edição de L’Être et le Néant
corrigida por Arlette Elkaïm Sartre, que é a nossa edição (Cf. EN, p. 112). Para o autor, Sartre escolhe
deliberadamente o termo “réflection” - que não figura em nenhum dicionário - devido à sua proximidade com o
sentido físico de reflexo que encontramos em aparelhos “reflecteurs” de calor ou luz. Assim, torna-se mais
evidente a relação puramente de reenvio de reflexos do nível pré-reflexivo, que não é o da reflexão. Falaremos
assim em “refletidade” para nos referirmos ao nível pré-reflexivo e reflexividade quando se tratar do nível
reflexivo. Cf. DE COOREBYTER, V. Les paradoxes du désir dans L’Être et le Néant. In: BARBARAS, R. (Org)
Sartre. Désir et liberté. Paris: PUF, 2005.
60 EN, p. 110-111. (grifo nosso). O exemplo da crença não deve ser interpretado como sendo de ordem
psicológica, adverte De Coorebyter, pois se trata de algo que pode ser aplicado a todo fenômeno consciente, logo
ele possui um estatuto propriamente ontológico. DE COOREBYTER, V. , op.cit., p. 88-89.
!205
61 Sartre fala ainda em termos de “autodestruição” da consciência de crença: “Ainsi, la conscience non-thétique
(de) croire est destructrice de la croyance […] la croyance est un être qui se met en question dans son propre
être, qui ne peut se réaliser que dans sa destruction, qui ne peut se manifester à soi qu’en se niant ; c’est un être
pour qui être, c’est paraître, et paraître, c’est se nier”. EN, p. 104.
62 EN, p. 111.
!206
seu ser, dado que o para-si é um “en-soi néantisé63”: “C’est cette facticité qui permet de dire
qu’il [pour-soi] est, qu’il existe, bien que nous ne puissions jamais la réaliser et que nous la
saisissions toujours à travers le pour-soi”64, diz Sartre. Tudo se passa como se o em-si, pelo
“acte sacrificiel” que é a nadificação de si, se “degradasse” em para-si a partir de um esforço
em ser seu próprio fundamento e a fim de escapar de sua contingência original65. Se o nada é
necessariamente “nada de ser”, vale repetir, há de haver um ser que, em seu bojo, sustenta o
ato de perpétua nadificação (ato ontológico) - “la facticité c’est l’être soutenant le Néant à
L’Etre” 66 - que caracteriza um “acontecimento absoluto”. O ser para-si é assim, segundo
Sartre, um ser que é a própria nadificação de si mesmo, como um em-si corroído pelo nada
que se degrada em para-si. Neste sentido, a facticidade do para-si se revela como uma
estrutura que de alguma forma contesta o dualismo radical que presume o em-si como sendo
outro ou oposto ao para-si. A este respeito, escreve De Coorebyter:
Cela signifie que le pour-soi n’est pas l’Autre de l’en-soi, son exact opposé,
bien au contraire : le pour-soi, c’est l’en-soi lui-même qui se fait autre que soi
en son sein, qui s’affecte de néant en son cœur, « comme un ver », par un
geste inexpliqué et contingent que Sartre appelle l’acte ontologique et qui
dépressurise l’en-soi de l’intérieur […] la facticité consacre l’indépassable
appartenance du pour-soi au monde commun de l’en-soi67. Le pour-soi,
certes, apparaît au cœur de l’en-soi par un geste de différenciation radicale :
du simple fait de n’être plus l’en-soi lui-même, mais conscience (de) soi
comme conscience de l’en-soi, le pour-soi fait apparaître l’en-soi sous son
regard et se découvre autre que lui, révélant plutôt que révélé. Mais il reste
que le pour-soi, qui est ainsi à l’origine de son propre néant, n’est jamais à
l’origine de son être, sans quoi il serait causa sui et échapperait à la
facticité68.
63 EN, p. 118-9.
64 EN, p. 119.
65 EN, p. 118.
66 CPM, p. 167.
67 Este mesmo ponto, conforme citamos anteriormente, é também ressaltado por Dufrenne quando ele afirma :
“sans doute l’en-soi et le pour-soi sont-ils solidaires en ce sens que l’en-soi d’une part porte le pour-soi dans sa
facticité”. DUFRENNE, M. Jalons, p. 76. E também por Romano “Sartre veut pouvoir définir le Pour-soi
comme se détachant de l’En-soi par l’opération d’une négativité, comme “jaillissant” à partir de lui, ce qui sup-
pose entre eux une espèce de connivence, une “continuité” ontologique”. ROMANO, C. L’ontologie sartrienne:
réflexions sur son archè et son télos, p. 15. Embora Dufrenne ressalte o caráter de descrição “provisória” do em-
si e para Romano, como o em-si é mal definido, sendo o para-si um modo de ser que dele depende, é toda a on-
tologia de Sartre que se torna “aporética”. Ibid., p. 16.
68 DE COOREBYTER, V. L’Être et le néant, ou le roman de la matière, p. 8. (grifo nosso). Ver também: DE
elucida este “permanecer” nesta altura do texto, ele diz apenas que há a permanência de algo
que não pode ser apreendido pelo para-si, pois se trata de uma dimensão de seu ser - como um
“souvenir d’être”70 - não passível de ser conhecido e que o assombra (hante) a todo momento.
A facticidade é a estrutura que revela que o para-si, enquanto presença ao mundo - isto
é, ser-no-mundo (être-dans-le-monde) -, só pode sê-lo na medida em que é um ser-no-meio-
do-mundo (être-au-milieux-du-monde), na medida em que ele possui uma dimensão objetiva
que diz respeito às suas relações com as coisas e com os outros, como escreve Sartre nas notas
do Cahiers pour une morale: “Le Pour-soi, En-soi néantisé, reste en-soi par rapport à l’En-
soi”71. Esta característica corresponde ao aspecto de ser jogado do para-si que Sartre expressa
através do termo ser-aí (être là)72, que implica a posição do para-si. Em suas palavras: “Il
convient de noter que mon être-là ne peut aucunement déterminer le dépassement qui va fixer
et situer les choses, puisqu’il est pur donné, incapable de projeter”73. O “ser-aí” é descrito
então como puro dado e não como ultrapassagem projetiva; este puro dado contingente indica
a posição de cada um como ser jogado no meio do mundo, enquanto que a “ultrapassagem
que vai fixar e situar as coisas” indica, na dependência desta mesma posição, sua situação, de
modo que “aucune situation n’est jamais subie. Si l’homme était un être “au milieu du
monde”, il n’y aurait jamais de situation, il n’y aurait que des positions” 74. Assim, só há
situação a partir da apreensão da posição contingente pelo projeto consciente do para-si,
fazendo com que a situação seja o “produit commun de la contingence de l’en-soi et de la
liberté”75. O para-si é em situação no sentido em que ele não é capaz de escolher a posição de
seu engajamento no mundo, mas somente a maneira de ser no-meio-do-mundo dada pela
nadificação:
70 Ibid.
71 CPM, p. 57. (grifo nosso)
72 A influência da noção de facticidade em Heidegger para pensar o aspecto de “ser jogado” do para-si é clara,
conforme vimos anteriormente. Vale destacar que, neste contexto, Sartre se utiliza da expressão “être-lá” cuja
tradução literal seria “ser-aí”, a mais utilizada em francês -e também em português - para se referir ao Dasein
heideggeriano somente para se referir ao aspecto de jogado do para-si e não como uma simples tradução. Seu
uso da expressão “être-là” é assim bastante peculiar ao afirmar apenas a posição do para-si como “ser-no-meio-
do-mundo”, como podemos observar na seguinte frase: “Être, pour la réalité-humaine, c’est être-là ; c’est-à-dire
« là sur cet chaise », « là à cette table », « là au sommet de cette montagne, avec ses dimensions, cette orienta-
tion, etc. ». C’est une nécessité ontologique”. EN, p. 347.
73 EN, p. 537.
74 CDG, p. 586.
75 EN, p. 533.
!208
n’est pas cet être au sens d’être-en-soi. Mais elle fait qu’il y a cet être qui est
sien derrière elle, en l’éclairant dans ses insuffisances à la lumière de la fin
qu’elle choisit : elle a à être derrière elle cet être qu’elle n’a pas choisi et,
précisément dans la mesure où elle se retourne sur lui pour l’éclairer, elle fait
que cet être qui est sien apparaisse en rapport avec le plenum de l’être, c’est-
à-dire existe au milieu du monde76 .
76 EN, p. 531.
77 DE COOREBYTER, V. L’Être et le néant, ou le roman de la matière, p. 8.
78 EN, p. 117.
79 FLAJOLIET, A. Ipséité et temporalité. In: BARBARAS, R. (Org.) Sartre: désir et liberté. Paris: PUF, 2005, p.
61.
!209
Este aspecto se tornará mais claro a partir da terceira estrutura imediata, a do para-si
como ser do valor, e da última seção sobre o circuito de ipseidade, mas vale atentar ainda para
um derradeiro aspecto sobre a facticidade, retomando a distinção entre situação e posição.
Sartre afirma: “[le pour-soi] est en tant qu’il est jeté dans un monde, délaissé dans une
« situation »”80 para em seguida esclarecer que “le pour-soi, tout en choisissant le sens de sa
situation et en se constituant lui-même comme fondement de lui-même en situation, ne choisit
pas sa position”81. A distinção entre posição e situação pode ser compreendida à luz dos
argumentos iniciais sobre o “fenômeno de ser” e o “ser em-si dos fenômenos”. Tal divisão, na
verdade, já nos atentava para o caráter problemático do em-si, que existe de forma
independente de seu desvelamento por uma consciência. Entretanto, como vimos, o em-si se
revela na aparição como fenômeno para a consciência intencional, a qual, por sua vez,
depende desta relação para existir. Vimos que o para-si, como ser da consciência, estrutura-se
como em-si nadificado pela consciência (de) si pré-reflexiva. Logo, se o para-si é nada de ser,
há um ser contingente que ele é, a partir do qual o ato de perpétua nadificação de si o
transforma em para-si. Este aspecto foi descrito por Sartre como a facticidade do para-si e
define assim a assunção da posição deste modo de ser enquanto um ser-jogado-no-meio-do-
mundo. Como fundamento de seu nada e não de seu ser, o para-si se funda, - em outros
termos, poderíamos dizer, “se escolhe livremente” -, como maneira de ser, mas não como
origem de seu ser, como já foi dito. Por esta razão, sendo o modo de ser do para-si equivalente
em Sartre à ideia de liberdade, podemos dizer que a liberdade não pode escolher não existir e
não ser livre. Daí o sentido da famosa afirmação “somos condenados à liberdade”82, sentença
que revela justamente a facticidade da liberdade. A posição no-meio-do-mundo diz respeito
então ao ser jogado que o para-si é, enquanto existente bruto e contingente, porém esta
posição só se revela como situação. Em outras palavras, assim como “o ser dos fenômenos”
só pode ser apreendido como “fenômeno de ser”, a posição só pode ser apreendida por uma
liberdade como situação. Como na quarta parte de L’Être et le Néant (a qual estamos nos
referindo), Sartre já pode se valer das descrições do para-si como um projeto de ser, que
ilumina todo fenômeno através dos fins que persegue, a situação é justamente esta aparição
singular de uma condição dada e é pelo movimento temporal do para-si rumo aos seus
80 EN, p. 115.
81 EN, p. 119.
82 EN, p. 530.
!210
possíveis que aparece o mundo como horizonte de significações: “Nous choisissons le monde
- non dans sa contexture en-soi, mais dans sa signification - en nous choisissant”83 . A situação
nos indica assim a relação da liberdade com a contingência através da estrutura do para-si
como projeto.
Vislumbramos alguns aspectos sobre a situação presentes na quarta parte para melhor
compreendê-la por conta da estrutura da facticidade. No entanto, não fica claro ainda, levando
em conta uma espécie de orientação descritiva, como o para-si, da instantaneidade do cogito
pré-reflexivo, se estende a ponto de tornar-se uma transcendência projetiva. É certo que não
podemos pensar a presença a si que não seja pelo para-si como projeto, mas, para fins de
análise das estruturas imediatas, Sartre pretende mostrar aos poucos as estruturas que fazem
do para-si um ser que existe temporalmente, como as estruturas dos seres do possível e do
valor.
A necessidade de partir do cogito se dá, para Sartre, somente sob a condição de deixá-
lo: “A vrai dire, il faut partir du cogito, mais on peut dire de lui, en parodiant une formule
célèbre, qu’il mène à tout à condition d’en sortir”84 . Isto não quer dizer que Sartre abandonará
o cogito pré-reflexivo, mas sim que ele busca escapar à instantaneidade da presença a si, que
ele crê ser um problema do cogito cartesiano. Neste contexto, “deixar o cogito” significa sair
das análises da “instantaneidade” do jogo de reflexos da presença a si e compreender o para-si
em seu modo temporal como projeto. As duas primeiras estruturas imediatas do para-si
consistem, portanto, no cogito pré-reflexivo da presença a si como um esboço de dualidade
reflexo-refletidor e na facticidade como assunção da impossibilidade de autofundação do ser
da consciência. Agora, podemos descrever brevemente as últimas estruturas do para-si, que
são aquelas que permitem justamente romper os limites das análises feitas até então que
pressupunham uma artificial “instantaneidade” do cogito pré-reflexivo. Evidentemente, as
estruturas anteriores permanecem sendo consideradas na descrição do para-si, mas, a partir da
análise do “ser do valor”, Sartre se se pergunta se é possível, após haver tomado o cogito em
83 EN, p. 508.
84 EN, p. 110.
!211
sua instantaneidade, “ampliá-lo sem perder as evidências reflexivas”85, ainda sem abrir mão
deste ponto de partida 86.
A principal característica que surge nas análises do “ser do valor” é a afirmação do
modo de ser do para-si como falta (manque) de ser. Apesar de já haver se referido ao ato
ontológico como “descompressão” e “fissura” - o que marca o caráter de “insuficiência” de
ser e a não coincidência consigo mesmo do para-si - somente agora Sartre lança mão destas
características como uma falta. Tal termo nos revela que o para-si não somente é um ser
“esburacado”, estático, mas que esta característica se equivale, na verdade, a uma carência
que motiva uma busca, como um movimento em direção àquilo que lhe falta. É assim que o
movimento intencional descrito desde os primeiros trabalhos adquire uma concepção
negativa, como diz De Coorebyter: “à partir de 1939-40, Sartre conçoit l’intentionnalité
comme manque, “désir” de…, non pas ouverture sereine à une plenitude d’être mais
recherche désespérée de cette plenitude” 87.
A estrutura da falta, que implica tal movimento, se dá por uma tríade: o existente que é
falta (manque), o faltante (manquant) que é aquilo que falta ao existente, e o faltado (manqué)
que é a totalidade em relação ao qual algo pode aparecer como uma falta. Sartre nos fornece
um exemplo bem simples pra demonstrar a existência deste último termo, o faltado. Para que
possamos dizer que a lua é crescente, ou que há um “pedaço de lua”, é necessário um projeto
que ultrapasse o dado presente em direção à totalidade da lua diante da qual a lua crescente é
considerada como um “pedaço de lua”. Isto é, uma falta só aparece como tal tendo como
fundo a totalidade da qual ela é falta e esta mesma totalidade, por sua vez, indica a síntese
possível do existente com aquilo que lhe falta para suprimir esta condição. Isto posto, o
faltante e o existente devem ser da mesma natureza visto que o primeiro é aquilo que falta ao
segundo para completar-se, ou seja, é um pedaço de lua que falta à lua crescente para realizar-
se como lua cheia. Tais considerações podem ser resumidas da seguinte maneira:
85 EN, p. 121.
86 Cf. EH, p. 57.
87 DE COOREBYTER, V. Les paradoxes du désir dans L’Être et le Néant, p. 96.
88 EN, p. 123.
!212
A partir de então se torna mais claro o fato de que este modo de ser é caracterizado
como para-si, no sentido de “em direção a si”, a algo que ele ainda não é. Este movimento
rompe com a instantaneidade do cogito e estabelece a estrutura do para-si como
transcendência, no sentido de que “la réalité-humaine est son propre dépassement vers ce
qu’elle manque, elle se dépasse vers l’être particulier qu’elle serait si elle était ce qu’elle
est”89. A falta adquire assim um aspecto positivo, pois é a partir dela que Sartre compreende
este movimento de ultrapassamento como desejo90 de ser aquilo que o para-si ainda não é.
Desejo e falta se implicam mutuamente na estrutura da transcendência. O desejo não é um
estado psíquico - conforme sua concepção mais comum -, ele é um movimento intencional em
direção ao desejado 91. Tal ênfase sartriana na intencionalidade como desejo é para Barbaras de
suma importância e consiste no ponto central de compreensão da relação mesma de Sartre
com a fenomenologia92 . Para o autor, a caracterização do para-si como falta permite
compreender o fundamento da abertura do para-si ao em-si que é o próprio movimento
intencional93. Dito isto, o para-si é desejo de ser Si, um si absoluto, que não seria mais falta e
que fosse fundamento não somente de seu nada, mas também de seu ser. Sartre se apoia em
certa medida na segunda prova cartesiana de Deus da terceira meditação 94 – o ser imperfeito
se ultrapassa em direção ao ser perfeito - porém, “l’être vers quoi la réalité-humaine se
dépasse n’est pas un Dieu transcendant : il est au cœur d’elle-même, il n’est qu’elle-même
comme totalité”95. É neste sentido que Sartre estabelece que o desejo do para-si consiste em
“ser Deus”, expressando seu desejo de ser Si e fundamento de si, causa sui96. O para-si seria
Deus se pudesse ao mesmo tempo ser o fundamento de seu nada e de seu ser, de maneira que
89 EN, p. 125.
90 Nos Carnets, Sartre definia a falta em seu aspecto positivo e negativo. A forma negativa é a da falta como
intencionalidade, enquanto que desejo era definido como sendo “o aspecto positivo da falta”, que o autor
igualava, nesta época, à vontade. CDG, p. 519. Esta última equivalência não é mantida em L’Être et le Néant.
91 Do mesmo modo, o desejo deve ser compreendido como não sendo da ordem da necessidade (besoin), mas
Sartre não realiza esta distinção. BARBARAS, R. Désir et manque dans L’être et le néant:, p. 127, n. 3.
92 Ibid., p. 116.
93 Ibid., p. 128. Na verdade, Barbaras afirma a importância desta relação entre intencionalidade e desejo ao
mesmo tempo em que realiza uma crítica à equivalência entre desejo e falta. A seu ver, “l’analyse sartrienne est
marquée par un écart entre une intuition particulièrement féconde - l’essence de l’intentionnalité est désir - et une
conceptualisation qui ne parvient à en restituer la signification véritable car elle l’identifie au manque”. Ibid., p.
134. Ver também: Id. Désir et totalité. Alter: Sartre phénoménologue. n. 10, 2002.
94 Cf. CSCS, p.116; EN, p. 125. “Car comment serai-t-il possible que je pusse connaître que je doute et que je
désire, c’est-à-dire qu’il me manque quelque chose et que je ne suis pas tout parfait, si je n’avais en moi aucune
idée d’un être plus parfait que le mien, par la comparaison duquel je connaîtrais les défauts de ma nature?”
DESCARTES, R. Méditations métaphysiques, p. 117.
95 EN, p. 126.
96 “Mais cette appréhension de l’être comme un manque d’être en face de l’être est d’abord une saisie par le
cogito de sa propre contingence. Je pense donc je suis. Que suis-je? Un être qui n’est pas son propre fondement,
qui, en tant qu’être, pourrait être autre qu’il est dans la mesure où il n’explique pas son être”. EN, p. 116.
!213
97 EN, p. 131.
98 EN, p. 132.
!214
pode faltar ao “pedaço de lua” um “pedaço de pedra”, mas sim um ser da mesma natureza
daquele de quem ele é o complemento. Neste sentido, o faltante é o possível e o possível é
também para-si, ou ainda “être sa propre possibilité, c’est-à-dire se définir par elle, c’est se
définir par cette partie de soi-même qu’on n’est pas, c’est se définir comme échappement-à-
soi vers...”99.
Por fim, Sartre denomina de circuito de ipseidade a relação do para-si com o possível
que ele é e a totalidade de ser que é atravessada por este circuito de ipseidade é justamente o
mundo. Resta-nos finalmente abordar a última estrutura do circuito de ipseidade para
finalmente concluirmos com as análises das estruturas imediatas que caracterizam em seu
conjunto o para-si como projeto de ser no mundo.
99 EN, p. 137.
100 Cf. EN, p. 510.
!215
transcendental puro e “nu”. Em outras palavras, abstrair a dimensão fática do ser para-si,
como ocorria com a consciência nua/refúgio, acarreta na impossibilidade de se pensar a
consciência como um modo de ser-no-mundo ou, em outros termos, uma liberdade em
situação. Vejamos como Sartre procura resolver, a partir da noção de ipseidade, de um só
golpe o problema do instantaneísmo, do ser-no-mundo fático e da singularidade de cada para-
si.
Apesar das mudanças ocorridas desde La Transcendance de l’Ego até L’Être et le
Néant, Sartre permanece fiel ao seu argumento primeiro de que o Ego é um objeto
transcendente para a consciência reflexiva e não pode pertencer à esfera consciente pré-
reflexiva. No entanto, essa consciência é agora pensada como transcendência, isto é, como um
processo temporalizador que é projeto rumo aos possíveis e assombrado pelo valor, conforme
viemos de descrever. Este projeto envolve a estrutura de refletidade, não no sentido
tradicional da reflexão - de uma consciência que posiciona ela mesma - mas no sentido de um
reenvio a si não posicional que ocorre em dois graus distintos: 1) no nível pré-reflexivo, a
consciência é reenvio a si como jogo de reflexos; trata-se da estrutura da presença a si, que só
se dá a partir da dupla negação; 2) no plano do movimento que se dá pela relação entre o para-
si presente com o para-si possível. Este segundo movimento caracteriza o circuito de
ipseidade, que não pode ser compreendido no quadro teórico da temporalidade do instante
presente, no interior do qual um para-si instantâneo e presente se relacionaria com o para-si
possível que seria um instante presente que ainda não aconteceu. Ao contrário, o para-si
possível, como uma presença-ausente, estrutura o próprio para-si presente.
Como Sartre utiliza o termo “para-si” para caracterizar uma região ontológica,
algumas estruturas imediatas do para-si “sujeito” são também designadas de “para-si” por
possuírem as características de tal região (como a característica de translucidez da presença a
si, por exemplo, em contraponto à opacidade e à identidade do em-si). Em suma, o “sujeito”
para-si é caracterizado por todas as suas estruturas imediatas: presença a si, facticidade, valor,
possíveis e circuito de ipseidade. Sendo que a presença a si e os possíveis existem sob o modo
“para-si”, enquanto que a facticidade é um em-si nadificado e o valor, como vimos,
corresponde à totalidade “para-si-em-si”. Estas especificações demasiado técnicas nos
auxiliam, na realidade, a compreender que o para-si, como “modo de ser do sujeito”, deve ser
tomado como um processo temporal que envolve todas estas estruturas imediatas no quadro
!216
de um mesmo circuito: o circuito de ipseidade. É nesta configuração que Sartre se apoia para
demonstrar que sua ontologia escapa à instantaneidade do cogito - pois há um segundo
movimento de refletidade —, e que o para-si é um ser-no-mundo e não pode ser definido
como um sujeito fechado em si.
Diante disso, um detalhe se torna importante: a estrutura da ipseidade é estabelecida
nas análises do para-si presente com o para-si possível e não com o valor. Como vimos
anteriormente, o para-si é fuga de sua contingência original e busca de fundamento no futuro,
o que pode ser descrito em termos de busca de ser “para-si-em-si”, Deus ou causa sui. No
entanto, esta estrutura ontológica ainda é abstrata e não revela a singularidade de cada para-si
em sua busca de plenitude, já que ela indica apenas que todo para-si é esta busca. Sendo
assim, Sartre se utiliza, em um primeiro momento, da falta e do possível como maneiras de
singularizar cada projeto, como historialização presente nas próprias estruturas imediatas; e,
em um segundo momento, das noções de escolha original e projeto fundamental para dar
conta da situação empírica de uma liberdade em situação. Dito isso, abordaremos a
necessidade de singularização que se apresenta no circuito de ipseidade nestes dois
momentos: a singularização do modo de ser estrutural do para-si que, por sua vez, permite
compreender a singularização empírica. Não se trata, entretanto, como anteriormente, de uma
divisão entre os planos transcendental e humano, uma vez que a falta, os possíveis, a escolha e
o projeto originais dizem respeito ao modo de ser mesmo do para-si, como estruturas
ontológicas que indicam diferentes graus de singularização.
Nos Carnets de la drôle de guerre, Sartre revela que a experiência da guerra e a noção
de projeto em Heidegger o fizeram compreender a ipseidade ou a “totalidade do para-si”,
termos que se tornam equivalentes ao de pessoa (personne). “Je suis en train d’apprendre, au
fond, à être une personne”101, diz Sartre, sem explicar o termo para além da correspondência
à ipseidade. Mas em Baudelaire, o autor narra o momento da descoberta da existência pessoal
(existence personnelle) do poeta como uma “apparition fortuite et bouleversante de la
conscience de soi”102, em sentido próximo ao que S. de Beauvoir descreve em Pour une
morale de l’ambiguité como sendo a descoberta pelo adolescente de sua própria
subjetividade103. Descoberta da consciência de si, da subjetividade ou da pessoa significa aqui
101CDG, p. 616.
102B, p. 20.
103“c’est là sans doute la cause la plus profonde de la crise de l’adolescence : c’est que l’individu doit enfin
assumer sa subjectivité”. BEAUVOIR, S. Pour une morale de l’ambiguïté, p. 52.
!217
descoberta do para-si que como projeto de possibilidades: “Et comment définir en effet la
personne sinon comme libre rapport à soi?”104. A noção de pessoa é assim empregada a fim de
singularizar o que até então era campo transcendental impessoal. Sartre quer reforçar, a partir
de todas estas mudanças, o enraizamento da consciência no mundo possibilitado pela estrutura
da facticidade. Cada para-si viverá seu passado, seu corpo e sua constituição subjetiva a partir
dos outros, de maneira singular, o que na linguagem sartriana, a partir de agora, passa a ser
designado como maneira pessoal. Logo, a pessoalidade que antes era atribuída ao Ego e que
aparecia somente no plano da humanidade a partir da reflexão impura, é agora admitida na
própria dimensão pré-reflexiva da consciência, o que indica que a facticidade trouxe uma
mudança fundamental em termos de ancoragem histórica do para-si. Mesmo que L’Être et le
Néant seja uma obra normalmente considerada como carente de uma abordagem histórica
para a compreensão do “sujeito” como para-si, este ponto revela a intenção de Sartre de
historicizar o próprio campo transcendental. Além de sinônimo de pessoalidade, a ipseidade
em Sartre é também equivalente a historialização (historialisation). Mais precisamente, o
para-si historializa sua ipseidade: “le processus d’historialisation est indivisible. C’est lui qui
s’écoule, qui s’appelle du fond de l’avenir, qui s’alourdit du passé qu’il était, c’est lui qui
historialise son ipséité et nous savons qu’il est, sur le mode primaire ou irréfléchi, conscience
du monde et non de soi”105. O processo de metamorfose é assim um processo que historializa
a ipseidade. Isto significa que, sendo o circuito de ipseidade a forma projetiva da relação da
presença a si ao para-si possível um processo temporal que historializa o para-si, isto faz com
que necessariamente o para-si pertença à sua época histórica, ou seja, este pertencimento à
época histórica é dado pelas próprias estruturas imediatas do para-si. É assim que, enquanto
projeto historializante - “le projet que le Pour-soi fait de lui-même dans l’Histoire” - o para-si
é dotado de historicidade (historicité) enquanto “appartenance objective à une époque” 106.
O pertencimento histórico de cada para-si à sua época é dado pelo circuito de
ipseidade que consiste na relação do para-si com o possível que lhe falta e não em sua relação
com o valor, de modo que Sartre pensa a ipseidade em termos mais concretos e singulares ao
104EN, p. 140.
105EN, p. 194.
106VE p. 135. “Ainsi je m’historialise en me revendiquant comme conscience libre d’une époque en situation
dans cette époque, ayant son avenir dans l’avenir de l’époque et ne pouvant manifester que cette époque, ne
pouvant dépasser l’époque que si je l’assume et sachant que ce dépassement même de l’époque est d’époque et
contribue à la faire. Dès lors l’époque est mienne : en l’assumant, je m’assume; je ne me perçois de tâche que
dans cette époque et par rapport à elle”. CPM, p. 506.
!218
fazer o circuito na relação do para-si presente com o para-si possível ao invés de estabelecê-la
na relação mais geral entre o para-si e o valor. Se a singularidade é aqui a marca fundamental,
esta opção se justifica da seguinte maneira: enquanto que todo para-si é busca de ser “para-si-
em-si” (valor), estrutura mais abstrata do projeto de ser, cada projeto concreto é assombrado
por esta busca de maneira particular107. Isto porque, como vimos anteriormente (fazendo
abstração do teor substancialista de tal exemplo), não poderia faltar ao “pedaço de lua” um
“pedaço de pedra”, de modo que o possível que falta ao para-si é sempre meu possível 108,
único, singular, embora histórico, pertencente a uma época. Não somente, vimos que o
possível se dá através da falta, que é o aspecto motor do desejo de plenitude do para-si, e isto
na medida em que ele é nadificação do em-si que ele é e negação interna do em-si que ele não
é (negação interna da totalidade e de um em-si particular, como vimos com P. Verstraeten).
Disto decorre que a singularização histórica dada nas próprias estruturas imediatas é possível
graças a estrutura da facticidade e da consequente relação do para-si com seu possível,
assombrado pelo valor que, em conjunto, formam o circuito de ipseidade.
Tendo em vista estas considerações, podemos dizer que, através da estrutura da
facticidade, Sartre introduz justamente uma dimensão de historicidade no campo
transcendental que até então era desencarnado e impessoal. Veremos em seguida como esta
introdução pôde efetivamente se dar no quadro de L’Être et le Néant se, como diz Merleau-
Ponty, ser e nada se excluem e não “passam” um no outro, fazendo com que este
“enraizamento” seja superficialmente colocado. Porém, o que ressaltamos por enquanto é
apenas o aspecto de historização garantida pelo circuito de ipseidade. Nos termos que estamos
apresentando aqui, este gesto presente em L’Être et le Néant - passando pelos detalhes
conceituais de interiorização e exteriorização centrais na Critique de la raison dialectique que
não desenvolveremos aqui - se aproxima da ideia de subjetividade apresentada quase vinte
anos depois em uma conferência em Roma, onde Sartre diz que “la subjectivité, c’est vivre
son être, on vit ce qu’on est, et ce qu’on est dans une société, car nous ne connaissons pas
d’autre état de l’homme, c’est précisément un être social, un être social qui, dans le même
107 Apesar de Sartre afirmar que “Le soi est individuel, et c’est comme son achèvement individuel qu’il hante le
pour-soi” (EN, p. 127), acreditamos que é de fato o possível que aparece como estrutura mais concreta de
singularização do para-si, uma vez que ele é sempre particular e datado, enquanto que o valor é
“irrealizável” (Falaremos sobre a característica de “irrealizável” do valor mais adiante). Este aspecto fica mais
claro quando Sartre afirma que o o projeto de ser Deus é o sentido do desejo, mas o desejo nunca é constituído
por este sentido pelo fato de que ele representa sempre uma invenção particular de seus fins, e estes serão
sempre visados a partir de uma situação empírica. Cf. EN, p. 612.
108 EN, p. 141.
!219
temps, vit la société entière de son point de vue”109 . Como vimos, os Carnets demonstram a
mudança em direção à facticidade e historicidade e eles já nos apresentam afirmações como a
seguinte: “Il n’y a d’histoire que lorsqu’il y a assomption du passé et non pure action causale
de celui-ci”110. Isto significa que a ideia de projeto como assunção do passado é a
historialização mesma do para-si. Fenômeno cuja compressão será o objetivo do método de
psicanálise existencial esboçado já nos Carnets. Em outros termos, tal método visa a
apreender “comment l’homme historique s’historialise librement dans le cadre de certaines
situations111”. Aliás, neste primeiro esboço de psicanálise existencial, a atenção de Sartre ao
movimento de historialização é tão predominante a ponto de ele afirmar, numa breve análise
de Guillaume II, que o seu ser é um ser-para-reinar (être-pour régner), e que o próprio reino
“c’est lui”112.
As observações precedentes nos orientam em direção ao segundo nível de
singularização, já antecipado pela historialização, que é justamente a singularidade que se dá
como assunção da facticidade através das experiências empíricas, introduzindo as noções de
escolha original e projeto fundamental. No capítulo de L’Être et le Néant sobre a psicanálise
existencial, Sartre estabelece três graus na “arquitetura simbólica” do desejo de ser Si: 1) uma
estrutura abstrata et significante que é o desejo de ser em geral, válida para todo para-si e que
Sartre exprime como sendo “a realidade humana na pessoa”; 2) o nível de singularização
pessoal que é o desejo fundamental e que consiste na maneira singular escolhida por cada um
de viver a estrutura ontológica desejo de ser 3) os desejos empíricos em geral que pertencem a
uma camada simbólica do desejo fundamental, que será interrogada pela psicanálise
existencial113. Em outros termos, considerando esta divisão, podemos esclarecer que todo
para-si é um projeto de ser - estrutura ontológica abstrata - que se dá sob a forma de uma
particularidade e generalidade em Sartre. Para o autor, Sartre estabelece um desejo ontológico de ser Si do para-
si em geral para em seguida pensar como esse projeto se “particulariza”, do mesmo modo que a substância
espinozista se exprime somente em seus modos particulares. Este “essencialismo” sartriano (bem peculiar, pois é
o de não ter nenhuma essência) leva Hyppolite a se perguntar se o que ocorre não é o contrário, isto é, se Sartre
não acaba por generalizar algo que seria da ordem de um projeto particular: “ce projet universel n’est-il lui-
même qu’un certain projet empirique, sinon singulier, du moins particulier ?”. É assim que o autor conclui que
“il est curieux de remarquer que, quand Sartre parle de Baudelaire ou de Jean Genet, il retrouve toujours les
mêmes thèmes directeurs, ceux qui expriment son ontologie propre”. A seu ver, Sartre é mais um moralista do
que um filósofo, pois ele se apoia sobre uma experiência subjetiva ao invés de realizar de fato uma ontologia.
HYPPOLITE, J. La psychanalyse existentielle chez Jean-Paul Sartre, p. 800; p. 799.
!220
125 Termo emprestado da tradução de Henri Corbin do Dasein heideggeriano. Tradução que, para Derrida, é uma
“monstruosité aux conséquence illimitées que les quatre premiers paragraphes de Sein und Zeit avaient
prévenue”. DERRIDA, J. L’écriture et la différence. Paris: Seuil, 1979, p. 405, n. 2. Isto porque tal tradução
atribui ao Dasein um caráter humanista que, para Heidegger, pertence às concepções metafísicas do sujeito que
ele busca ultrapassar. Segundo Derrida, é significativo que Sartre adote a tradução de Corbin na medida em que
seu existencialismo é ainda um humanismo: “Malgré cette neutralisation prétendue des présuppositions
métaphysiques [par le concept de réalité-humaine], il faut bien reconnaître que l’unité de l’homme n’est pas en
elle-même interrogé. Non seulement l’existentialisme est un humanisme, mais le sol et l’horizon de ce que Sartre
appelle alors son “ontologie phénoménologique” […] restent l’unité de la réalité-humaine. En tant qu’elle décrit
les structures de la réalité-humaine, l’ontologie phénoménologique est une anthropologie philosophique”. Id. Les
fins de l’homme, p. 136-7.
126 No Esquisse, por exemplo, a conduta emotiva define o modo de aparição do mundo como “mágico” . Cf.
ETE, p. 62.
127 EN, p. 606.
!223
stases temporais - passado, presente e futuro a cada momento. Por isso cada escolha presente
se dá como ligada por uma estrutura de significação a seu passado e seu futuro singular, dado
que “un choix qui serait choix à partir de rien, choix contre rien ne serait choix de rien et
s’anéantirait comme choix”128. Daí a importância cada vez maior que Sartre atribui à infância,
como momento primeiro onde ocorre uma escolha de si que será denominada de escolha
original. Esta concepção aproxima Sartre da psicanálise. Ele chega mesmo a comparar a
escolha original com a noção de “complexo”, no sentido de que se trata de um “centre de
références d’une infinité de significations polyvalentes”129, neste caso sem ser da ordem do
inconsciente. Assim, após L’Être et le Néant, Sartre realiza seus trabalhos de psicanálise
existencial mostrando como o momento da escolha original é revivido em diferentes níveis de
significação ao logo da vida de um sujeito, como o movimento de uma espiral: “une vie se
déroule en spirales; elle repasse toujours par les mêmes points mais à des niveaux différents
d’intégration et de complexité”130. A escolha original consiste assim numa escolha da maneira
de ser o ser que se é. Mas esta escolha não pode ser compreendida por uma perspectiva
instantaneísta da temporalidade, pois ela só se dá como projeto fundamental que é processo
temporal. No entanto, ela parece ser um momento decisivo de determinação de todos os níveis
de complexidade de significação que o projeto não cessa de reviver. É o que podemos
observar quando Sartre diz, por exemplo, que:
Adopter une attitude mentale, c’est se donner une prison sans barreaux. Il
semble à tout moment qu’on puisse s’en évader et, par le fait, il n’est pas de
mur ni de grille qui puissent empêcher la pensée d’aller aussi loin qu’elle le
veut. Simplement, à l’instant précis où cette pensée croit dépasser l’attitude
choisie et déboucher dans le monde par une voie nouvelle, avec un point de
vue neuf comportant de nouveaux engagements, elle s’aperçoit qu’elle est
revenue à son point de départ131 .
Flaubert é a de escolher a irrealidade, ele retoma a imagem da espiral: “Mais ce que nous devons nous demander
avant toute chose - puisque cet élément demeure dans chaque révolution de la spirale et qu’on le trouve dès la
première -, c’est que signifie le choix de l’irréel”. IF.I, p. 660.
131 SG, p. 85.
132 EN, p. 512.
!224
seja incessante retomada da escolha fundamental de ser e que esta retomada seja livre. A
escolha original não pode assim determinar aquilo que é incessantemente retomado e
escolhido no movimento em espiral. Do mesmo modo, não se trata de uma escolha
intemporal, ou que se dá a partir do nada, como a “escolha do caráter inteligível” em Kant: a
escolha deve ser sempre no-mundo e em-situação133. Daí surge a dificuldade em delimitar os
tipos de relações que podem haver entre a escolha original e as escolhas particulares, entre o
projeto original e os projetos particulares, tendo em vista que entre eles há uma espécie de
hierarquia. A saída de Sartre é a de dizer que é o para-si mesmo que escolhe a hierarquia de
significações e que, para compreender o tipo de relação entre os diferentes níveis de
hierarquização, deve-se pensar como fazem os gestaltistas: “[ils] nous ont montré que la
prégnance des formes totales n’exclut pas la variabilité de certaines structures secondaires” 134.
Este princípio é utilizado como analogia para se estabelecer a relação entre “possíveis
secundários” (leia-se também “escolhas secundárias”) e projeto fundamental, no intuito de
esclarecer que estes primeiros não são dedutíveis do segundo, mas são caracterizados a partir
de uma ligação entre totalidade e estrutura parcial. Assim, os possíveis secundários são em
certa medida contingentes - eles poderiam ser outros -, e em certa medida necessários: eles
indicam a totalidade como forma a partir da qual eles são compreendidos. Do mesmo modo,
os projetos parciais do para-si não são determinados pelo projeto global: “ils doivent être eux-
mêmes des choix et une certaine marge de contingence, d’imprévisibilité et d’absurde est
laissée à chacun d’eux, encore que chaque projet, en tant qu’il se projette, étant spécification
du projet global à l’occasion d’éléments particuliers de la situation, se comprend toujours par
rapport à la totalité de mon être-dans-le-monde”135.
Por fim, a imprevisibilidade compõe a continuidade ontológica do projeto fundamental
a partir de uma liberdade que corrói a si mesma136; porque cada escolha, por ser precisamente
uma escolha, designa outras escolhas como possíveis. O para-si vive esta absurdidade da
escolha como experiência de sua contingência, pelo sentimento que Sartre nomeia de
injustificabilidade. Assim, cada escolha é um absoluto, mas este absoluto é “frágil”, pois há
sempre a possibilidade de escolher-se outro, de tornar-se outro. O projeto fundamental é então
sempre ameaçado pelo acontecimento do que Sartre denomina neste contexto do instante: um
ele retira, com exceção de uma pequena citação da parte “concepção dialética do nada”,
praticamente todas as citações de L’Être et le Néant4. Disto decorre que esta estratégia de
leitura merleau-pontyana é problemática e entenderemos brevemente o porquê. Em primeiro
lugar, é certo que no capítulo em questão de L’Être et le Néant, há afirmações que a princípio
fornecem provas textuais à interpretação de Merleau-Ponty. Como quando Sartre diz coisas do
tipo: “En un mot, le terme-origine de la négation interne, c’est l’en-soi, la chose qui est là ; et
en dehors d’elle il n’y a rien, sinon un vide, un néant qui ne se distingue de la chose que par
une pure négation dont cette chose fournit le contenu même”5 ; “le pour-soi n’est rien d'autre
que le vide où se détache l’en-soi”6; “En ce sens tout dévoilement d’un caractère positif de
l’être est la contrepartie d’une détermination ontologique du pour-soi dans son être comme
négativité pure”7. No entanto, tais afirmações dizem respeito a um tipo de ser que Sartre
denomina de conhecimento (connaissance), que é caracterizado como a contrapartida positiva
da negação interna do para-si ou como aquilo que podemos chamar de intuição. Sartre
demonstra assim, pelas análises do conhecimento, que a intencionalidade possui um aspecto
positivo - tematização do em-si que a consciência não é - e negativo - negação interna que faz
a consciência surgir como não sendo este em-si que ela não é. Este duplo aspecto do
conhecimento encontra-se na base das análises de Merleau-Ponty sobre a teoria da
negatividade pura em Sartre, uma vez que ele põe em evidência o duplo movimento de
intuição do ser e de negação interna (denominado neste contexto de negintuição). Segue-se
que, como Merleau-Ponty negligencia ou mesmo abstrai a facticidade do para-si, ele toma
para-si como sinônimo de conhecimento, o que é um reducionismo. Em outros termos, como
Merleau-Ponty não apreende o caráter duplo da negação que faz surgir o para-si8, ele
confunde este modo de ser com a especificidade do “tipo de ser” do conhecimento, que é o
âmbito puramente negativo da presença. Contudo, como marcamos em vários momentos, a
4 As citações encontram-se nas seguintes páginas da edição que utilizamos de L’Être et le Néant: p. 219; p.
234-235; p. 252; p. 254-255. (Cf. VI, p. 79; p. 80-1) A única referência que aponta para outro capítulo da
ontologia sartriana consiste numa definição do ser em-si como “plénitude absolue et entière positivité”, na p. 49
de EN. (Cf. VI, p. 77).
5 EN, p. 212-213. (grifo nosso)
6 EN, p. 213. (grifo nosso)
7 EN, p. 215. (grifo nosso). Não somente neste capítulo, como podemos observar, por exemplo, nesta frase
problemática que encontramos no capítulo sobre a temporalidade “Le pour-soi n’est rien de plus que ce rien
translucide qui est négation de la chose perçue”. EN, p. 176. No capítulo sobre a transcendência, o que ocorre é
que este aspecto aparece ressaltado e frequente, visto que nele Sartre descreve o modo de ser do conhecimento.
8 De Coorebyter diz que Merleau-Ponty passa ao largo do conceito de “negação interna”. DE COOREBYTER,
V. Sartre face à la phénoménologie, p. 99. A nosso ver, o que Merleau-Ponty não considera não é propriamente a
negação interna, mas o caráter “duplo” da negação, isto é, ele considera somente que o para-si não é o em-si que
ele não é e não considera que ele não é o em-si que ele é.
!228
presença é apenas uma das estruturas ek-státicas do para-si, que não pode ser concebida
separadamente das outras, senão para fins de análise. Voltaremos ao assunto com mais
detalhes posteriormente, mas, no intuito de concluirmos este primeiro nível de contestação,
devemos desde já afirmar que, ao confundir a estrutura da presença com o modo geral do
para-si, Merleau-Ponty reduz seu modo de ser e se baseia em um “tipo de ser” específico para
desenvolver sua crítica a uma concepção de negatividade pura em Sartre. É por esta razão que
ele pôde definir o para-si como “puro nada”, enquanto que em L’Être et le Néant este modo
de ser é inúmeras vezes descrito pela fórmula é o que não é e não é o que é, e não
simplesmente: não é. Em suma, esta estratégia de leitura faz com que Merleau-Ponty
generalize os resultados de sua argumentação sobre o conhecimento para a ontologia sartriana
como um todo, enquanto que, se compreendermos detalhadamente a negação e as estruturas
imediatas do para-si, não é possível pensá-lo como um puro nada. Isto posto, a maior parte
das argumentações merleau-pontyanas sobre L’Être et le Néant não procede, na medida em
que elas se sustentam na concepção do para-si como “puro nada”. Dizemos “a maior parte”
porque ele parece ter razão em alguns pontos, que serão explicitados adiante como sendo os
dualismos que permanecem valendo, mesmo após este primeiro nível de contestação. No
entanto, é importante considerar minimamente as consequências desta concepção do para-si
como “puro nada” já que ela é a base para se pensar a filosofia da negatividade sartriana como
um pensamento de sobrevoo, não engajado e que não encontra aderência ao mundo. A
liberdade considerada “sem raízes” seria aquela cindida do seu passado, criação ex nihilo de si
mesma e dos sentidos que ela projeta no em-si por seu poder de Sinngebung, poder de
ontogênese. Esta concepção só faria sentido se Sartre permanecesse vítima da ilusão de uma
temporalidade do instante, pois a temporalidade ek-stática do para-si implica a
indissociabilidade das ek-stases passado, presente e futuro. Assim, o sujeito sartriano só seria
um “sujeito puro” da “ação pura” - que apenas sobrevoa os fatos como “événement-chose” -
caso ele não fosse considerado como projeto temporalisador ek-stático.
Como Sartre pensa a noção de “passividade” no sentido de uma relação de “causa e
efeito” - o que não é o caso em Merleau-Ponty, como comentamos anteriormente -, o fato dele
não admitir a consciência como passiva levou à interpretação de que o sujeito sartriano é um
“legislador soberano”, desprendido de sua dimensão fática. Mas se a facticidade é uma
estrutura imediata do para-si, não é possível fazer abstração de tudo aquilo que o para-si é,
!229
ou melhor, é nadificando seu ser. Em outras palavras, o fato de Sartre não admitir que algo
incida sobre a consciência em termos de atividade e passividade, não significa que a
facticidade do para-si não atue de algum modo nesta tensão do modo de ser para-si que
consiste em ser o que não se é e não ser o que se é. Acentuar a estrutura da facticidade é ainda
tentar compreender em que medida o para-si pode ser ao mesmo tempo uma liberdade que é,
por exemplo, uma paixão, ou seja, qual o caráter problemático de se pensar uma paixão
livre?9 Isto porque, do grego pathos - “o sofrimento, affecção, paixão”10, este termo remete à
ideia de passividade, que é incompatível com a pura espontaneidade de uma liberdade. Se a
obra de Sartre é aquela que busca descrever “la passion de la conscience incarnée”, como
disse Beauvoir11, que é a história de uma “passion inutile”12 - busca fracassada de
autofundamento -, falar da existência livre em termos de paixão aponta para a relevância da
facticidade como condenação da liberdade à fuga da contingência: “Toute réalité-humaine est
une passion, en ce qu’elle projette de se perdre pour fonder l’être et pour constituer du même
coup l’en-soi qui échappe à la contingence en étant son propre fondement, l’En causa sui que
les religions nomment Dieu”13. Neste projeto de autofundação o para-si “se perde” para que
“haja um mundo”: “Mais notre surgissement est une passion en ce sens que nous nous
perdons dans la néantisation pour qu’un monde existe”14. Projeto, por sua vez, condenado ao
fracasso: “c’est en vain que j’aurai tenté de me perdre dans l’objectif : ma passion n’aura servi
de rien: l’autre m’a renvoyé - soit par lui-même, soit par les autres - à mon injustifiable
subjectivité”15. A paixão é dramática pois se identifica com a condenação da liberdade:
“condamné à être libre”16. “Toute passion est malheureuse, dit Ricœur, […] le rien projeté
entraîne l’âme dans une poursuite sans fin et inaugure le « mauvais infinit » de la passion” 17.
A paixão introduz um infinito, da perseguição condenada ao fracasso, uma desmedida que se
identifica com o “sofrimento”, neste caso o drama do para-si de ser perpétua busca de ser seu
próprio fundamento, ou totalidade “em-si-para-si”: “La réalité-humaine est souffrante dans
son être, parce qu’elle surgit à l’être comme perpétuellement hantée par une totalité qu’elle est
sans pouvoir l’être, puisque justement elle ne pourrait atteindre l’en-soi sans se perdre comme
pour-soi”18. Sartre une assim liberdade e paixão no sentido de que o para-si é uma aventura -
“mon être-aventurier, en tant que j’ai à être l'événement qui m’arrive du dehors” 19-, um
projeto de autofundamento que ele vive sem poder dirigir, sem domínio de si (maîtrise sur
soi), mas que deve ser responsável por tudo que lhe acontece pelo simples fato de que existir é
ser o fundamento da maneira de não ser o seu próprio fundamento: “tout ce qui m’arrive est
mien”20; “tout ce qui m’arrive a un double caractère : d’une part cela m’est donné, en vertu de
ma facticité et de ma gratuité […] et d’autre part j’en suis responsable puisque je me motive
moi-même à le découvrir […]. En conséquence je n’ai aucun droit à ce que cela ne m’arrive
point. Par exemple, pour la guerre”21. Isto significa que Sartre não associa paixão e vontade,
nem a um determinismo psicológico; a paixão se identifica ao projeto de ser do para-si22. A
facticidade do para-si evidencia justamente que o para-si nadifica o em-si que ele é de modo a
instaurar o fundamento da maneira de ser do ser que ele é, do qual não pode ser o
fundamento, de modo que a “réalité-humaine demeure prisonnière de son injustifiable facticit,
avec elle-même à l’horizon de sa quête, partout”23. Na “Introdução”, Sartre afirma que as
ideias de passividade e relatividade só podem se referir a maneiras de ser e não ao próprio ser,
ao definir a passividade do seguinte modo: “je suis passif lorsque je reçois une modification
dont je ne suis pas l’origine - c’est-à-dire ni le fondement ni le créateur. Ainsi mon être
supporte-t-il une manière d’être dont il n’est pas la source” 24. Ora, a paixão do para-si, na
medida em que instaura uma condenação de ter de ser tudo que lhe acontece (arrive) não
atesta certa dimensão de passividade? Além disso, quando Sartre descreve a dimensão ser-
para-outro da facticidade, não estaria ele de algum modo apontando para uma dimensão que
faz com que o para-si seja de fora (dehors) de modo que ele “[reçoit] une modification dont
[il n’est] pas l’origine - c’est-à-dire ni le fondement ni le créateur”? Não estaríamos aqui
justamente no âmbito da escravidão, da condenação à liberdade? No sentido em que
je suis esclave dans la mesure où je suis dépendant dans mon être au sein
d’une liberté qui n’est pas la mienne et qui est la condition même de mon
être. En tant que je suis objet de valeurs qui viennent me qualifier sans que je
18 EN, p. 126.
19 S.IX, p. 187.
20 EN, p. 598.
21 CDG, p. 399.
22 Cf. EN, p. 485-7.
23 CDG, p. 296.
24 EN, p. 24 (grifo nosso)
!231
Sartre não explora esta ligação entre paixão e escravidão, nem mesmo de que modo
esta vinculação admitiria um aspecto de passividade. L. Husson diz que a facticidade, sendo
um conceito provisório em Sartre, assim como em Heidegger, é retomada nos Cahiers pour
une morale justamente pelo viés da passividade, o que é questionável26 . O autor leva em conta
uma passagem onde Sartre afirma que “il y a un point de vue de l’en-soi sur le pour-soi : c’est
la passivité” e Sartre complementa ainda que “la passivité est très exactement ma liaison avec
l’En-soi; ma liaison ontologique e pratique à la fois”27, logo, podendo ser interpretada em
termos de facticidade. Mas Sartre parece manter ainda nestas anotações a ideia de passividade
de L’Être et le Néant enquanto maneira de ser que vem ao mundo pelo para-si quando diz que
“je suis celui par qui passivité et activité viennent au monde pour l’En-soi et pour moi-
même”28. Se atentarmos precisamente para esta passagem de L’Être et le Néant - “la passivité
ne saurait concerner l’être même de l’existant passif : elle est une relation d’un être à un autre
être et non d’un être à un néant” 29 - vemos que aqui a equivalência entre passividade e
facticidade não se sustenta, dado que esta última não é uma relação de um ser a outro ser. De
todo modo, vimos que há uma dimensão do para-si como ser-no-mundo que Sartre denomina
de ser-no-meio-do-mundo (être-au-milieu-du-monde), que diz respeito justamente ao modo
objetivo que o para-si é enquanto é ao mesmo tempo nadificação de seu ser. Este aspecto diz
25 EN, p. 307.
26 HUSSON, L. De la contingence à la situation: dimensions et configurations de la facticité dans L’Être et le
Néant, p. 165. Husson observa em nota que o termo “facticidade” não aparece no index dos Cahiers pour une
morale e afirma que mesmo que Sartre retome a ideia de um em-si nadificado, ele o faz sem referência ao termo.
Ibid. p. 174; n. 57. Apesar de Husson citar três ocorrências do termo “facticidade” ao longo dos Cahiers (p.
123-4; p. 167), acreditamos que ele se restringiu a poucas páginas para tal afirmação, visto que podemos
encontrar o termo “facticidade” ao longo desta obra de acordo ainda com as análises adquiridas em L’Être et le
Néant (Além das páginas citadas pelo autor, podemos acrescentar: p. 102; p. 106; p.134; p. 144; p. 159; p.
182-184; p. 187; p. 193; p. 212; p. 217-219; p. 224-225; p. 235; p. 238; p. 240; p. 268; p. 272; p. 296; p. 298; p.
300…entre outras). Além disso, o autor afirma que a facticidade é um conceito transitório que “disparaîtra de la
plume de Sartre après L’être et le néant (pour être repris - au sein de Cahiers pour une morale - dans les notions
de contingence et de passivité)”. É verdade que tal conceito se encontra praticamente ausente da Critique de la
raison dialectique Tome I. Mas vale notar que no Tome II da Critique ele é mencionado como sendo ainda válido
e operante, conforme pode-se observar neste trecho: “Mais ce n’est pas tout, et le caractère essentiel de la
facticité, je l’ai montré ailleurs [dans L’Être et le Néant], c’est, pour chaque individu, la nécessité de sa
contingence : par là il faut entendre que chacun d’eux n’est pas en situation de fonder sa propre existence,
qu’elle lui échappe dans la mesure même où il l’ek-siste, qu’elle se caractérise enfin par un engagement singulier
dans le monde, qui exclut a priori tout survol : il n’y a d’individu que par cette finitude, que par la singularité de
ce point de vue; et tous les dépassements ultérieurs, loin de supprimer les facticités originelles, les conservent en
eux comme l’exigence même qui qualifie l’action et préesquisse le contenu des changements”. CRD.II, p. 214.
27 CPM, p. 57.
28 Ibid.
29 EN, p. 25.
!232
respeito à dimensão do para-si enquanto um ser do mundo, que sofre tudo o que lhe acontece
de modo a ultrapassar esta mesma passividade por sua paixão, o que se traduz na escravidão.
Para Ricœur, a paixão indica do mesmo modo a escravidão de uma liberdade por um viés não
determinista: “Le principe des passions réside dans un certain esclavage que l’âme se donne à
elle-même : l’âme se lie elle-même. Cet esclavage n’a rien à voir avec le déterminisme qui
n’est que la règle de nécessité qui lie des objets pour une conscience théorique. L’esclavage
de passions est quelque chose que arrive à un sujet, c’est-à-dire à une liberté”30. Pelo fato de
não poder admitir que algo de fora determine mesmo a escravidão da liberdade, Sartre não
adota uma perspectiva da passividade no sentido determinista, embora descreva toda uma
dimensão sofrida do para-si, como algo que lhe acontece e da qual ele não é o fundamento. A
saída contra o determinismo da passividade encontra-se no fato de que o para-si sempre vai
além daquilo que ele é, ou seja, tudo que o para-si sofre é ao mesmo tempo assumido: “Ce
que signifie : « Nous sommes condamnés à être libres. » On ne l’a jamais bien compris. C’est
pourtant la base de ma morale. Partons du fait que l’homme est-dans-le-monde. C’est-à-dire
en même temps une facticité investie et un projet-dépassement. En tant que projet il assume
pour la dépasser sa situation”31. A paixão é então a assunção daquilo que o para-si sofre, de
modo que não podemos anular sua dimensão sofrida: “venir au monde comme liberté en face
des autres, c’est venir au monde comme aliénable. Si se vouloir libre, c’est choisir d’être dans
ce monde-ci en face des autres, celui qui se veut tel voudra aussi la passion de sa liberté” 32.
Finalmente, nos Cahiers pour une morale essa assunção é descrita como uma reflexividade
que se revela como um consentimento do para-si em “ser homem”: “Par la réflexivité, je
consens à être homme c’est-à-dire à m’engager dans une aventure qui a les plus fortes chances
de finir mal, je transforme ma contingence en Passion”33.
Quais seriam então estas dimensões? Isto é, a dimensão sofrida do para-si e a que ele
tem de ser, que faz dele uma paixão e um projeto fundamental? A nosso ver, a “teoria da
facticidade” consiste justamente em evidenciar esta dimensão que o para-si tem de ser sem ser
seu próprio fundamento; uma dimensão experimentada (éprouvé), que consiste na assunção
das dimensões fáticas como uma paixão. Esta conclusão nos leva a vislumbrar dois eixos
fundamentais: a dimensão que o para-si tem de ser e a dimensão que o para-si é. Duas
dimensões que apontam para dois dualismos ainda atuantes: os dualismos entre ser e nada e
entre subjetividade e objetividade.
Em nossa introdução levantamos dois pontos importantes que devem ser retomados
agora, pois temos as condições de precisá-los: 1) Merleau-Ponty não tem razão no que diz
respeito aos princípios de suas argumentações, o que não impede que, após certo
deslocamento, elas ainda sejam válidas para problematizarmos a presença de dualismo
específicos 2) O próprio texto sartriano apresenta ambiguidades que devem ser exploradas.
Após o percurso do primeiro nível de contestação, podemos afirmar, com relação ao primeiro
ponto, que Merleau-Ponty se equivoca ao negligenciar a facticidade e a temporalidade ek-
stática, o que o leva a conceber o para-si como puro nada e criação ex nihilo. Mostramos que,
em L’Être et le Néant, o para-si surge a partir de uma dupla negação, isto é, não somente da
negação interna do em-si que ele não é, mas da nadificação de ser do em-si que ele é (ato
ontológico), pois o ele só pode ser-no-mundo como sendo ao mesmo tempo “no-meio-do-
mundo”. Nisto consiste a “solidariedade ontológica”, como diz Dufrenne, ou “comunidade de
ser” como diz Verstraeten e também De Coorebyter: “La différenciation ontologique du pour-
soi par rapport à l’en-soi n’annule pas leur communauté d’être originelle : le pour-soi est de
l’en-soi devenu pour-soi, mais qui reste marqué d’en-soi” 34. Isto implica que não podemos
identificar o “dualismo” para-si/em-si ao “dualismo” nada/ser. Em primeiro lugar porque não
o para-si equivalente ao nada; em segundo lugar dado que não há dualismo entre para-si e em-
si se admitirmos a “comunidade ontológica” que impede de considerá-los como radicalmente
separados. Este último caso atestaria um verdadeiro dualismo, a partir do qual não seria
possível compreender o próprio modo de ser do para-si. A característica de ser e não ser do
para-si “sujeito” está em jogo em seu próprio modo de ser de maneira que, se o definirmos
como “puro nada”, não poderemos compreender a sua dimensão de ser do dilema ser e não
34DE COOREBYTER, V. L’Être et le néant, ou le roman de la matière, p. 9. Ver também: Id. Sartre et l’être du
néant, p. 359.
!234
ser35. A questão é ainda mais complexa, daí o nosso segundo ponto, se admitirmos que as
definições de “para-si” e “em-si” não se encontram isentas de ambiguidades, como vimos
incialmente quando falávamos dos limites do dualismo. Por isso fizemos uma distinção entre
para-si como “sujeito” e da região ontológica “para-si”, assim como entre o “em-si” como
objeto transcendente e o em-si como região ontológica. Em seguida, observamos que o
próprio para-si “sujeito” possui estruturas imediatas que são “para-si” (região ontológica) e
outras que não o são em sentido estrito - como a facticidade e o valor -, e que o em-si não
pode ser sinônimo de objeto. Em suma, dado que para-si e em-si podem aparecer no texto de
Sartre com o significado de “sujeito” e “coisa”, isto não quer dizer que possamos reduzi-los a
este par e concluir a partir daí um dualismo, já que a própria realidade do para-si deve ser
compreendida levando em conta as regiões ontológicas para-si e em-si.
Isto posto, Merleau-Ponty poderia ainda argumentar: “sim, podemos então abrir mão
desta equivalência sujeito = para-si = nada, objeto = em-si = ser, mas ainda assim restaria o
dualismo entre ser e nada, isto é, entre as regiões de ser e nada no próprio para-si e também o
problema da pureza do em-si que não admite negatividade”. A questão nestes termos nos
parece melhor colocada, na medida em que Sartre teria que mostrar que não há exclusão entre
ser e nada no próprio para-si e ainda resolver o problema da pura positividade do em-si
transcendente. Na verdade, o fato de o para-si ser negação do em-si não significa que a partir
deste “acontecimento absoluto” que é o surgimento do para-si como nadificação do em-si que
ele é, que ele “se livrou” do em-si que ele é e virou um “puro nada”, pois Sartre afirma que
“cet en-soi englouti et néantisé dans l’événement absolu qu’est l’apparition du fondement ou
surgissement du pour-soi demeure au sein du pour-soi comme sa contingence originelle” 36. O
problema é que Sartre não explicitou o como este em-si nadificado permanece no para-si de
modo que toda a questão de como um termo “passa” no outro, como dizia Merleau-Ponty em
linguagem hegeliana, precisa ainda ser elucidada. Por outro lado, com relação ao em-si
transcendente, é certo que Sartre o define como “pura positividade”, identidade e não
consciente de si. Porém, parece-nos que Sartre não explicita os modos intermediários que
surgem a partir de um em-si que sofre nadificação, ou seja, os modos deste em-si que
permanece no para-si que, não sendo mais um em-si no senso estrito do termo, não pode ser
35 É assim que o para-si modifica o dilema de Hamlet, comenta J. Ireland a partir de uma ideia de D. Hollier,
não mais o de “ser ou não ser” mas o de “ser e não ser”. IRELAND, J. Notice: Kean. In: TC, p. 1448.
36 EN, p. 118.
!235
pura e simplesmente definido como um para-si. Do mesmo modo, seria necessário mostrar
como o em-si pode ser pensado como pura positividade, já que conceber o ser dos fenômenos
sem o fenômeno de ser é pura abstração. Se quisermos pensar o fenômeno devemos pensar a
simultaneidade entre ser e nada, condição indispensável para compreendermos as estruturas
de desvelamento do mundo. Assim, Merleau-Ponty fez bem em problematizar a “pura
positividade” do em-si, dado que se nos mantivéssemos restritos a esta definição não
poderíamos compreender o mundo como campo fenomenal e, além disso, a dimensão de “em-
si nadificado” do para-si. Consequentemente, o problema do mundo deve ser recolocado,
dado que ao fazer um recorte no capítulo sobre a transcendência, concentrando-se no aspecto
intuitivo do conhecimento, Sartre minimiza pontualmente a facticidade e dá margem à
interpretação solipsista de sua ontologia. Concluímos indicando que o primeiro dos dualismos
que poderíamos chamar de residuais, tendo em vista o percurso do primeiro nível de
contestação, não é mais um dualismo entre para-si e em-si, mas sim entre ser e nada, devido
ao fato de que Sartre não demonstra explicitamente como se dá a simultaneidade dos termos,
seja para compreender o modo de ser do para-si “sujeito”, seja para compreender o mundo
como campo fenomenal.
Desde que contestamos o dualismo entre para-si e em-si e sua equivalência a ser e
nada, concluímos que Merleau-Ponty não tem razão em afirmar essa paridade mas tem razão
em problematizar uma exclusão lógica entre ser e nada, caso não seja possível mostrar como
!236
um termo “passa” no outro ou como é possível haver simultaneidade entre eles. Isto significa
que Merleau-Ponty formulou mal o problema ao reduzir o para-si ao puro nada, mas, se
deslocarmos sua crítica para um possível dualismo entre ser e nada, a mudança no
pensamento sartriano a partir da facticidade, por si só, ainda não é capaz de resolvê-lo. Assim,
nos deparamos com a situação de compreender um problema pertinente, porém colocado em
termos impróprios. O mesmo ocorre quando consideramos a crítica merleau-pontyana à
divisão para-si/para-outro em L’Être et le Néant.
Como vimos, Merleau-Ponty estende sua crítica ao sujeito sartriano como pura
negatividade à teoria do olhar desenvolvida em L’Être et le Néant que estabelece que,
somente pela mediação do outro, o para-si adquire visibilidade e objetividade. De fato, Sartre
estipula que, através do olhar do outro, o para-si ganha uma dimensão nova de ser37 que
corresponde à sua objetivação, também denominada por vezes de seu lado de fora (son
dehors). Para Sartre, “autrui est d’abord pour moi l’être pour qui je suis objet, c’est-à-dire
l’être par qui je gagne mon objectité”38, o que quer dizer que a aparição do outro faz surgir no
para-si uma dimensão de ser-olhado que Sartre nomeia de ser-para-outro. Esta nova
dimensão, o autor deixa claro, não é uma “imagem” que o outro faz de mim, mas é o meu
próprio ser na medida em que eu sou este ser-para-outro39. Contudo, se a lei de ser do para-si
é a de “ser e não ser”, como ele pode ser este para-outro ? Isto é, “avec cet être que je suis
[…], quelle sorte de rapport puis-je entretenir?”40.
Sartre estabelece uma divisão entre o “sujeito” tal como ele é “para-si” e tal como ele
é “para-outro” e se pergunta sobre o modo de relação entre estes dois “planos ontológicos”
que ele postula como sendo “différents et incommunicables, […] irréductibles l’un à
l’autre” 41. Podemos formular o problema em outros termos sartrianos específicos: enquanto o
para-si “tem de ser” seu ser, o para-outro “é”, de modo que se deve pensar como é possível “le
fait que je ne suis rien sans avoir à être ce que je suis et que pourtant, en tant que j’ai à être ce
que je suis, je suis sans avoir à être” 42. Mas esta dupla necessidade de ter de ser seu ser e ser
sem ter de ser é compreendida por Sartre, como viemos de comentar, por uma separação
radical de planos: “je ne puis mettre en rapport ce que je suis dans l’intimité sans distance,
37 EN, p. 568.
38 EN, p. 309.
39 Cf. EN, p. 325.
40 EN, p. 301.
41 EN, p. 344.
42 EN, p. 348-349.
!237
sans recul, sans perspective du pour-soi avec cet être injustifiable et en-soi que je suis pour-
autrui”43. Neste sentido, a dimensão para-outro é uma dimensão de ser do ser-para-si que é e
permanece sendo estrangeira ao para-si, e que tende de ser vivida como tal.
Merleau-Ponty apoiou-se neste ponto para mostrar como a contradição excludente
entre ser e nada é válida para se pensar o problema do ser-para-outro em Sartre. Como para
Merleau-Ponty o para-si é um puro nada, o outro é aquele que dá a este puro nada uma
dimensão objetiva que permanece estrangeira ao sujeito, na medida em que ela não “toca” sua
esfera “interior”. O nada é então hipostasiado em coisa invisível, que não pode ser modificada
e permanece isolada. Segue-se que, somente pela dimensão objetiva, o para-si encontraria sua
inscrição no mundo, uma vez que o outro fornece ao para-si um “ser coisa”, uma visibilidade
corporal. Isto resultaria numa concepção cartesiana que divide uma res cogitans e uma res
extensa, verdadeiro sentido das dimensões para-si/para-outro. R. Barbaras resume o problema
da seguinte maneira:
Isto não significa que o corpo seja um em-si. Sartre mostra em L’Être et le Néant a
diferença entre os planos ontológicos de um corpo-para-si e um corpo-para-outro. No entanto,
ao defini-los como incompatíveis, ele acaba por admitir que o para-si só adquire objetividade
corporal pelo olhar do outro, o que traz como consequência o fato de que esta esfera para-si,
mesmo sendo ela também “corpo”, é colocada no fim das contas como uma subjetividade
isolada e apartada do mundo, como uma esfera solipsista e de sobrevoo. Porém, dissemos há
pouco que o problema está mal colocado visto que Merleau-Ponty parte de uma concepção do
para-si como “puro nada” enquanto que pela facticidade ele é engajado no mundo. Isto se dá
imediatamente pelo seu corpo e seu passado e, mediatamente, pelo seu ser-para-outro. Nestes
termos, o problema verdadeiro não consiste mais em considerar o para-si como uma
subjetividade de sobrevoo, mas em estabelecer uma incompatibilidade dos planos ontológicos
subjetivo e objetivo no próprio para-si “sujeito”. Em outras palavras, como pode o para-si ser
43 EN, p. 260.
44 BARBARAS, R. Le corps et la chair dans la troisième partie de L’être et le néant, p. 281.
!238
e não ser este estrangeiro que é o seu ser-para-outro ao mesmo tempo? Se Sartre estabelece
tais regiões como incompatíveis, ele não tem como explicar rigorosamente esta coexistência.
Os dois planos ontológicos do para-si “sujeito” - para-si e para-outro -, podem ser
então interpretados em termos de subjetividade e objetividade. Segundo Sartre, a
subjetividade é “l’obligation où nous sommes d’avoir à être notre être, et non pas simplement
à l’être passivement”45. Isto significa que o para-si é um movimento de assunção de seu ser,
na medida em que é sempre nadificação de ser, de maneira que a facticidade é a dimensão
existencial, assumida, vivida, de sua contingência original. Isto posto, poderíamos esboçar
então uma divisão de planos entre
Neste contexto, o drama de “ser e não ser” do para-si traduz-se em termos de assunção
da contingência pelas estruturas de engajamento da facticidade. S. de Beauvoir denomina esta
condição de existir como assunção livre da facticidade de ambiguidade. Entretanto, ao
mostrar que para o existencialismo a condição da existência é a ambiguidade, ela tende a
radicalizar o par liberdade/facticidade a fim de provar que a moral é “le triomphe de la liberté
sur la facticité”47. Este triunfo não implicaria na supressão da facticidade - tal como nas
filosofias que negam a ambiguidade -, mas num gesto da vontade de assumir a condição fática
de uma liberdade, o que coloca o para-si numa situação de escolha moral. Grosso modo,
Beauvoir radicaliza a separação entre liberdade e facticidade, embora o faça no intuito de
mostrar que não há separação, já que a ambiguidade é a condição do humano. Mesmo assim,
ao usar esta estratégia ela acaba interpretando a ambiguidade a partir de um dualismo -
esboçado no próprio Sartre - entre as dimensões de ser e de nadificação de ser inerentes ao
para-si, o que nos remete ao primeiro dualismo residual que é aquele entre ser e nada. Ao
separar, mesmo que seja para pensar a união, os dois planos - fático e livre - do para-si, e além
45 QS, p. 77.
46 DE COOREBYTER, V. L’Être et le néant, ou le roman de la matière, p. 9.
47 BEAUVOIR, S. de. Pour une morale de l’ambiguïté, p. 58.
!239
disso não mostrar como um “passa” no outro, Beauvoir enfraquece a ambiguidade por causa
de tais princípios48.
Dito isto, se conseguirmos resolver o problema do dualismo entre ser e nada, a
separação entre os planos fático e livre do para-si é abstrata. Em segundo lugar, na medida em
que a dimensão fática é aquela que permite a inscrição do para-si no mundo, segue-se que não
levá-la em conta colabora para o mal-entendido que está na origem da crítica de Merleau-
Ponty do para-outro. O que ocorre nesta leitura é uma confusão entre a facticidade do para-si
e sua dimensão objetiva, a qual é adquirida através do olhar do outro. No intuito de
compreendermos este ponto, operemos com uma distinção presente no vocabulário do próprio
Sartre: enquanto o para-si é engajado no mundo (inscrito pela estrutura imediata da
facticidade), o para-outro, como objetivação do engajamento, é enraizado no mundo. Isto
significa que o olhar do outro não provoca uma inscrição do para-si no mundo, mas ele
objetiva esta inscrição, que é o que Sartre vai denominar de transcendência-transcendida, que
consiste na alienação das estruturas do para-si. O olhar do outro fornece um caráter objetivo
ao movimento de transcendência do para-si de maneira que suas “estruturas para-si” adquirem
uma forma degradada: o engajamento se torna enraízamento (um “engagement-objet”49), as
possibilidades se tornam probabilidades, etc. “Existir-no-meio-do-mundo-em-presença-dos-
outros”, diz Sartre, consiste num aprofundamento do engajamento de fato do para-si
provocado pela “visibilidade” desta inscrição original:
Il est hors de doute que mon appartenance à un monde habité a la valeur d’un
fait. Elle renvoie, en effet, au fait originel de la présence d’autrui dans le
monde, fait qui, nous l’avons vu, ne peut être déduit de la structure
ontologique du pour-soi. Et, bien que ce fait ne fasse que rendre plus profond
l’enracinement de notre facticité, il ne découle pas non plus de notre facticité,
en tant que celle-ci exprime la nécessité de la contingence du pour-soi; mais
plutôt, il faut dire : le pour-soi existe de fait, c’est-à-dire que son existence ne
peut être assimilable ni à une réalité engendrée conformément à une loi, ni à
un libre choix ; et, parmi les caractéristiques de fait de cette « facticité »,
c’est-à-dire parmi celles qui ne peuvent ni se déduire ni se prouver, mais qui
se « laissent voir » simplement, il en est une que nous nommons l’existence-
dans-le-monde-en-présence-d’autres50 .
48 É neste sentido que compreendemos que a noção de facticidade pode designar ainda empiria, como comenta
Barbaras em De l’être du phénomène, p. 273.
49 EN, p. 331.
50 EN, p. 557. (grifo nosso)
!240
O ser-olhado é assim uma característica que surge ao para-si a partir do olhar do outro,
contanto que este para-si já seja desde sempre engajado no mundo. O outro é a “condição
concreta e transcendente”51 da objetividade do para-si e não de sua facticidade.
Pelo fato de haver negligenciado a estrutura fática de engajamento do para-si,
Merleau-Ponty confunde facticidade e objetividade, fazendo do para-si um puro nada que não
encontra aderência ao mundo. Segue-se que se o para-outro é uma dimensão do para-si que
não é constitutiva de seu modo de ser, mas provém apenas de um “encontro” contingente com
o outro, a confusão entre facticidade e objetividade resulta ainda em atribuir a um
acontecimento contingente o fato do para-si ter um corpo, um passado, uma
intersubjetividade. No que diz respeito ao corpo, por exemplo, Sartre esclarece que sua
dimensão objetiva não deve ser confundida com sua dimensão fática, embora uma dependa da
outra: “le corps d’autrui ne doit pas être confondu avec son objectivité. L’objectivité d’autrui
est sa transcendance comme transcendée. Le corps est la facticité de cette transcendance. Mais
corporéité et objectivité d’autrui sont rigoureusement inséparables”52. Veremos na “Terceira
parte” a particularidade do que Sartre denomina de carne (chair), que é um tipo de apreensão
da contingência do corpo do outro que não passa pela objetivação: “la chair est contingence
pure de la présence. Elle est ordinairement masquée par le vêtement, le fard, la coupe de
cheveux ou de barbe, l’expression, etc.”53. Assim, a distinção entre facticidade e objetividade
se mostra relevante não somente para combater a crítica de Merleau-Ponty de ver a inscrição
do para-si no mundo através do para-outro, mas também para compreender uma série de
regiões ontológicas em L’Être et le Néant.
Por outro lado, resta ainda um dualismo entre subjetividade e objetividade que é o que
deve ter contribuído para o acento de Merleau-Ponty numa divisão radical entre os lados de
“dentro” e de “fora” do para-si. Pois é certo que, ao estabelecer uma divisão entre uma região
de estruturas para-si e sua dimensão alienada, que é a do para-outro, Sartre estabelece ao
mesmo tempo uma incompatibilidade tais planos ontológicos, como mencionamos acima.
Tendo esclarecido a distinção entre facticidade e objetividade, podemos afirmar então que,
embora a dimensão para-si seja engajada, ela se dá como um tipo de “interioridade” -
subjetividade - separada da “objetividade” - que o outro lhe fornece -, e nesse ponto Merleau-
51 EN, p. 313.
52 EN, p. 391.
53 EN, p. 384.
!241
Ponty tem razão em considerá-la como uma esfera que é de algum modo “intocável”.
Comentamos ainda que Sartre não esclarece como o para-si pode ser e não ser ao mesmo
tempo este estrangeiro para si mesmo se há uma incompatibilidade de planos. Em Saint
Genet, ele esquematiza minimamente esta divisão, a qual serve para pensar este dualismo no
próprio para-si:
54 SG, p. 77. Retiramos do quadro as categorias que dizem respeito ao esquema simbólico vivido por Genet e
deixamos aquelas que acreditamos valer para o para-si de modo geral.
55 CPM, p. 101.
!242
Diante destas perguntas, concluímos o primeiro nível de contestação, que teve como
fio condutor a crítica de Merleau-Ponty, enumerando a reformulação dos problemas da
seguinte maneira: 1) se há uma contradição lógica entre ser e nada, de modo que um termo
não passa no outro, não podemos compreender como o para-si “é e não é” ao mesmo tempo;
2) do mesmo modo, se há um dualismo entre uma subjetividade transparente “para-si” e uma
objetividade opaca “para-outro”, também não sabemos a rigor como pode haver esta
coexistência no sujeito; 3) o dualismo entre ser e nada consiste ainda num problema referente
à concepção de mundo, na medida em que o em-si como “pura positividade” - separado das
estruturas objetivas de desvelamento, que são negatividades -, é uma abstração 4) o dualismo
entre ser e nada não permite compreender como um em-si pode ser afetado de negatividade e
“permanecer” no para-si; 5) por fim, ao estabelecer a alteridade por via de objetificações do
olhar, Sartre não mostra como pode haver uma experiência efetiva de alteridade já que o
“encontro” se dá na realidade com um ser-para-outro do para-si e não com o outro 6) se o
para-si de fato não é solipsista, é preciso mostrar como a intersubjetividade está presente na
própria esfera subjetiva - através da facticidade - antes mesmo do encontro que o transforma
para-si em objeto.
Para responder a estes problemas resultantes do primeiro nível de contestação é
preciso passar a hantologie. Isto significa que será necessário realizar uma leitura de L’Être et
le Néant a partir de outro plano, a fim de apreender uma camada implícita que possibilite
repensar estas questões sob outra perspectiva. Se nos restringíssemos a uma leitura clássica da
obra, que não faz ressaltar o plano implícito da espectralidade, seria difícil, senão impossível,
ultrapassar os problemas que ainda restam após este primeiro percurso. Em suma, acreditamos
que somente a partir desta mudança de perspectiva torna-se possível confrontar, através de
argumentos do próprio Sartre, não somente os problemas levantados por Merleau-Ponty e que
ainda restam, mesmo que deslocados, mas de certa maneira, Sartre ele mesmo.
TERCEIRA PARTE
A hantologie:
segundo nível de contestação.
Capítulo I
Por uma hantologie em Sartre.
Ao iniciarmos a terceira parte deste trabalho, que trata da hantologie, optamos por
evidenciar o caráter de uma proposta de leitura: “Por uma hantologie”. Isto significa que de
algum modo iremos além das análises sartrianas propriamente ditas, no sentido de que nestas
não encontramos qualquer referência a uma possível hantologie e nem mesmo uma
tematização sobre o tema da espectralidade. Sendo assim, evidenciar os espectros, assim
como identificar modos de ser da ontologia sartriana como espectrais, a ponto de falar de uma
hantologie, consiste em um movimento nosso. Esta proposta de leitura vai portanto além do
comentário da obra, embora de maneira a não abrir mão do rigor no estudo do texto sartriano.
A fim de caracterizar tal movimento, podemos dizer que se trata de ao mesmo tempo manter
uma fidelidade ao texto e uma distância criativa, tarefa motivada pela necessidade de
responder aos problemas levantados anteriormente. Dito isto, sublinhamos a respeito de nosso
percurso o fato de que, até aqui, as questões foram delimitadas e os problemas confrontados a
partir de temáticas explícitas do texto de Sartre. A partir de agora, este nível explícito se
mantém, como ficará claro no que se segue, mas há um acento na tentativa de evidenciar uma
camada implícita, o que pode ser compreendido em termos de fazer dizer o não dito, ou não
tematizado pelo próprio Sartre. Sobre este gesto, poderiam nos questionar: se tal movimento
faz-se necessário, isto quer dizer que de algum modo Sartre não conseguiu resolver os
problemas referentes ao dualismo em seu pensamento, dado que é preciso propor esta outra
leitura? Ao que respondemos que em certo sentido esta observação procede, em outro não.
Esta resposta se deixa entrever no fato de que procuramos constantemente demarcar a
ambiguidade do autor de modo a evidenciar os pontos em que ele reforça dualismos, ao
mesmo tempo em que ele mesmo fornece ferramentas, mesmo explícitas, que os contestam.
Dissemos ainda que, devido a tal ambiguidade, o problema do dualismo não somente
atravessa, mas assombra L’Être et le Néant. Concluímos ainda que na medida em que Sartre
!245
não mostra como ser e nada, subjetividade e objetividade - o que chamamos de “dualismos
residuais” - podem coexistir numa mesma realidade e “passar” um no outro, ele finalmente
não consegue, neste sentido, superá-los. Por outro lado, o fato dele não evidenciar
suficientemente não impede que possamos achar em seu próprio texto este como, de modo
que é o próprio Sartre que de alguma maneira responde a tais problemas. Se a hantologie
consiste em uma leitura nossa e num movimento nosso de explicitação do implícito, isto só é
possível, por sua vez, graças às possibilidades inerentes ao texto sartriano. Dito isto, podemos
dizer que a hantologie é uma leitura da ontologia sartriana de modo a evidenciar seu caráter
espectral, o qual não somente nos permite ir além dos enquadres dualistas, mas funciona de
maneira a colocar estes mesmos enquadres em questão1. Finalmente, é certo que para realizar
nossa leitura evidenciamos os aspectos mais relevantes da ontologia de Sartre em relação aos
problemas levantados anteriormente. O que quer dizer que não pretendemos esgotar todos os
temas ali presentes - uma tarefa um tanto ingênua dado à infinidade de temas que podem
surgir de uma obra, sobretudo nas dimensões de L’Être et le Néant -, mas sim de nela ressaltar
aquilo que não somente melhor responde aos problemas, mas também aquilo que pode nos
dar um verdadeiro panorama do que a proposta de uma leitura pode abarcar.
Até agora nosso percurso se definiu por um confronto com a crítica de Merleau-Ponty.
Não simplesmente por uma oposição a todos os pontos levantados por ele, mas
principalmente por uma contestação de alguns pontos - digamos, as bases ontológicas de
Sartre - tendo em vista uma reelaboração dos problemas a partir de sua crítica. Neste sentido,
pode-se afirmar a constante “presença” de Merleau-Ponty como opositor no diálogo que
possibilitou o percurso e os desenvolvimentos teóricos da “Segunda parte”. Com relação a
isto, o que dizer desta “Terceira parte” que se inicia, evidenciada por nós como um segundo
nível de contestação? Algumas observações se fazem necessárias, sobretudo no que diz
respeito à ideia de hantologie, termo cunhado por Derrida.
1E nisto outros textos de Sartre podem nos auxiliar, desde que demarcadas suas diferenças e aproximações com
L’Être et le Néant.
!246
Por fim, mais um movimento derridiano de algum modo serviu de grande inspiração
para a elaboração de nossa própria hantologie. Trata-se da possibilidade de inverter os termos
de um dualismo onde um polo prevaleceu como dominante no pensamento filosófico. Neste
sentido, podemos dizer, com base principalmente nas críticas de Merleau-Ponty, que na
filosofia sartriana valoriza-se frequentemente aquilo que poderíamos chamar de “polo
luminoso”, a saber, a ideia de pureza, de translucidez da consciência, de liberdade, etc. Não há
dúvidas, como dissemos anteriormente a respeito das ambiguidades do próprio Sartre, de que
ele mesmo reforçou o pertencimento a tal campo filosófico, sobretudo através de seu
declarado cartesianismo. Por outro lado, se vimos em nossa “Segunda parte” que a facticidade
impossibilita justamente a concepção de algo como uma “subjetividade pura”, restou ainda,
sob o efeito da presença espectral de Merleau-Ponty, o problema da separação dos polos, da
exclusão entre os termos e, por fim, do dualismo. A “Terceira parte” vem, portanto, contestar
em um segundo momento e em um segundo plano, o problema do dualismo. E em tal intuito
podemos identificar um gesto desconstrutivo, no sentido de que no plano da hantologie
visamos a evidenciar as zonas de sombreamento, em contraposição à leitura “luminosa” de
Sartre. Este primeiro gesto, na verdade, não se dá sem consequências e já nos abre a
possibilidade de ir além do quadro dualista, na medida em que ao fazer surgir as sombras em
sua legitimidade própria, a espectralidade se revela como o plano mesmo da multiplicidade de
modos de ser da ontologia sartriana. E isto no sentido de que ela coloca em questão a própria
“presença a si” do para-si “sujeito”. Sendo esta presença espectral, sempre assombrada, de
que modo ela pode se fazer substância isolada, relação a si adequada e transparente, tal como
o dualismo parecia exigir? Todas estas questões estão em jogo no objetivo de ler L’Être et le
Néant a partir do privilégio das sombras, do assombramento e dos espectros.
Dito isto, já é possível entrever de que modo Merleau-Ponty se faz presente neste
segundo nível de contestação, pois é certo que, após todo este percurso de oposição à sua
crítica, sua “presença espectral” permanece. Sobre esta ressaltamos uma questão importante:
ao longo das análises que se seguem é possível observar que, ao responder as críticas de
Merleau-Ponty, a filosofia de Sartre acaba, por esta outra leitura, por se aproximar dela. Há
uma aproximação no instante mesmo da inversão dos polos citada acima, já que esta nos
remete a um lugar privilegiado que a filosofia de Merleau-Ponty dá à opacidade, por
exemplo. Entretanto, o risco de tal aproximação é aquele de que Merleau-Ponty assombre a
!248
possible de dire non, c’est que le non-être soit une présence perpétuelle, en nous et en dehors
de nous, c’est que le néant hante l’être”2 . Assim, neste primeiro momento, o filósofo coloca
como condição necessária de toda negação o assombramento do ser pelo nada, cujo
significado ele busca esclarecer mais adiante:
Cela signifie que l’être est antérieur au néant et le fonde. Par quoi il faut
entendre non seulement que l’être a sur le néant une préséance logique mais
encore que c’est de l’être que le néant tire concrètement son efficace. C’est ce
que nous exprimions en disant que le néant hante l’être. Cela signifie que
l’être n’a nul besoin de néant pour se concevoir et qu’on peut inspecter sa
notion exhaustivement sans y trouver la moindre trace du néant3 .
Com base nestes trechos, apreendemos então que a afirmação “o nada assombra o ser”
significa em primeiro lugar uma condição de toda negação. Isto na medida em que, para que
haja negação, é preciso haver anterioridade do ser sobre o nada, pois, como mostramos
anteriormente, o nada é sempre nadificação de ser e nunca um nada puro ou algo que surge
“do nada”. De acordo com estas primeiras descrições, podemos identificar então que o
primeiro sentido de assombramento entre ser e nada é o da dependência do nada em relação
ao ser e segue-se que a recíproca não é verdadeira, pois o ser não depende do nada para
existir. Se nos restringíssemos a este ponto, poderíamos dizer apenas que o termo
“assombramento” indica tal dependência e que, se em certo sentido ele nos faz contestar o
dualismo - visto que o nada só pode ser pensado como nadificação de ser e não como uma
instância separada -, ele mostra ao mesmo tempo uma assimetria e uma noção problemática
de ser como pura positividade, tal como apontava, por diversas vezes, Merleau-Ponty.
Acontece que a relação de assombramento aparece em múltiplos contextos das
análises sartrianas e não somente como condição da negação. É isto que torna difícil de
precisar o seu sentido, mas, ao mesmo tempo, é o que nos permite explorar sua riqueza e
constatar sua importância. Ao longo desta terceira parte do trabalho iremos percorrer temas
importantes de L’Être et le Néant tendo em vista o papel fundamental das relações de
assombramento e de que modo elas nos remetem para além dos enquadres dualistas. Com
relação ao dualismo entre ser e nada, veremos que não somente a condição necessária de toda
2 EN, p. 46.
3 EN, p. 50-51. É curioso observar que nos Cahiers pour une morale, Sartre se utiliza da fórmula inversa - o ser
assombra o nada - para dizer a mesma coisa: “Ainsi l’absence d’Etre qui est au fond de la preuve ontologique
c’est un Non-être hanté par l’Etre et défini par lui : il est le Non-être de cet Etre et existe pour lui comme néant
de cet Etre. Mais comme précisément le Néant doit être été, il convient que le Néant d’être s’enlève sur le
fondement d’un être”. CPM, p. 159.
!250
negação é a de que o nada assombre o ser, mas também que, apesar da afirmação sartriana da
pura positividade de um ser que não seria assombrado pelo nada, encontramos esta
contrapartida no próprio texto.
Em primeiro lugar, tomemos o caso do modo de ser do “sujeito” para-si, que vimos
existir como tensão entre ser e não ser. O para-si surge do “acontecimento absoluto” de
nadificação de seu ser como fuga da contingência, mas esta fuga só continua a ser fuga se a
contingência original da qual ele foge permanece de algum modo motivando a própria
estrutura da fuga, caso contrário, não haveria mais nada a fugir. Esta “permanência” da
contingência original no para-si é dada pelo assombramento próprio à estrutura da facticidade
do para-si, como mostra Sartre:
mesmo tempo ser e nada. Deste modo, o assombramento é não somente uma característica
estrutural do modo de ser do para-si “sujeito”, mas também do mundo, ou seja, do campo
fenomenal. A relação de assombramento nos mostra então que se nos ativermos ao dualismo
entre ser e nada não compreenderemos de fato o modo de ser do para-si como ser-no-mundo e
nem mesmo o modo de aparição de um mundo.
Tendo em vista agora o segundo dualismo residual - entre subjetividade e objetividade
-, podemos perguntar: de que modo o assombramento opera para nos fazer sair deste quadro
de oposição? Novamente encontramos nas análises de Sartre sobre o assombramento uma
resposta aos seus próprios impasses, pois é verdade que ele coloca estes dois planos como
incompatíveis, e por isto nos perguntávamos anteriormente de que modo o para-si pode existir
ao mesmo tempo como ser-para-outro e ser-para-si se estas regiões são realmente
incompatíveis ou, em outras palavras, como o para-si pode ser e não ser este estrangeiro que é
o seu ser-para-outro ao mesmo tempo? O que para Sartre, como citamos, se resume na
pergunta “avec cet être que je suis […], quelle sorte de rapport puis-je entretenir?”7 Como um
possível caminho para uma resposta a tal questão, citamos ainda um trecho dos Cahiers pour
une morale, em que Sartre dizia: “Ainsi suis-je sur le même plan objet spécifique et sujet libre
mais jamais les deux à la fois et toujours l’un hanté par l’Autre”8. O assombramento aparece
então novamente como um modo de relação entre os termos que, no quadro dualista,
apareciam como separados, seja por serem sem relação, seja por se “unirem” a partir de uma
relação puramente lógica. Neste momento, esta questão encontra-se diretamente relacionada à
intersubjetividade, por tratar do modo como Sartre pensa o outro e ainda este “outro” em si
mesmo. Disto decorrem dois níveis de assombramento: o assombramento da presença
espectral do outro em geral, através de seu poder de objetificar o para-si, e o assombramento
da própria objetividade fornecida pelo outro que passa a assombrar o para-si como um
estrangeiro que ele ao mesmo tempo é e não é. Mesmo colocando como incompatíveis os
planos ontológicos para-si e para-outro, Sartre estabelece que “un être-pour-autrui hante ma
facticité non-thétiquement vécue”9, ou seja, trata-se de uma subjetividade assombrada por sua
facticidade: seja por sua contingência original, seja pela objetividade adquirida pela mediação
do olhar do outro, seja ainda, como veremos, pela quase-objetividade que o para-si busca
7 EN, p. 301.
8 CPM, p. 101.
9 EN, p. 397.
!252
adquirir pela reflexão cúmplice ou impura. Em Saint Genet, obra em que o assombramento
pelo outro em si mesmo, fundado no olhar dos outros, se mostra de forma exemplar - “Genet,
hanté par cet Autre qui est lui-même”10 -, Sartre chega a falar em termos de “hantise
ontologique”11. Nesta obra, o autor discorre sobre os modos de relação de Genet com este
outro que é ele mesmo em momentos diferentes da sua vida, utilizando-se frequentemente da
noção de assombramento. Além disso, ao falar (de maneira crítica e irônica) da relação de
identificação das “pessoas honestas” com seus respectivos Egos, Sartre pergunta “s’ils sont
bien sûrs d’être eux-mêmes”12, para em seguida concluir que “je n’aime pas les âmes
habitées”13. Neste e em outros momentos a relação de assombramento se aproxima da ideia de
“ser possuído” (être possédé) por algo: possuído pelo Outro14; “Genet sacré hantant l’âme
quotidienne de Genet profane” 15; “il est possédé dans l’imaginaire par son comportement
fondamental”16; “Voici l’argument de ce drame liturgique : un enfant meurt de honte, surgit à
sa place un voyou; le voyou sera hanté par l’enfant”17. Estas considerações nos remetem à
rede de significados do termo hanter em francês, que retomamos aqui: 1) “Fréquenter (un
lieu) d’une manière habituelle, familière; Habiter, vivre dans (un lieu)”. 2) “Fréquenter
habituellement (qqn)”; Ex: “Dis-moi qui tu hantes, je te dirai qui tu es” 3) “Le sujet désigne
un esprit, un fantôme (angl. “to haunt”)”. Ex: “Cette maison est hantée par un esprit.” 4).
“Obséder, poursuivre; hantise. Ex: “Les rêves, les obsessions qui hantent son sommeil” 18.
Tendo em vista estes significados, o que podemos concluir da relação de assombramento?
A nosso ver, é bastante significativo que Sartre fale nestes termos, pois tendo em vista
os sentidos enumerados acima, especialmente aquele ligado ao habitar de um fantasma, pode-
se observar o quanto o termo “assombramento” diz respeito a um modo de presença que não é
localizável, mas ainda assim está “presente” e produz efeitos reais. A ideia de habitar indica
este estar presente, ao mesmo tempo em que se trata de um presença não substancial: a
presença de uma ideia fixa ou a presença de um fantasma, por exemplo. O sentido de
frequentação também pode encontrar-se ligado a este habitar de um fantasma, que não é algo
10 SG, p. 79.
11 SG, p. 88. O que neste contexto significa o momento em que Genet decide fazer o mal para ser o malvado e
assim ser o que os outros fizeram dele.
12 SG, p. 100.
13 Ibid.
14 SG, p. 167.
15 Ibid.
16 SG, p. 142.
17 SG, p. 10.
18 Le Grand Robert de la Langue Française. Paris: Dictionnaires Le Robert, 2001, p. 1680-1681.
!253
que está presente e perdura no tempo, mas que frequenta no sentido de uma temporalidade
singular que é da ordem da repetição, do ir e voltar, como veremos em seguida com Derrida.
Quando Sartre descreve que “être-dans-le-monde, c’est hanter le monde”, ele complementa:
“non pas y être englué”; isto é, não podemos compreender este estar no mundo como uma
presença física (como já mostrava Heidegger), mas um habitar, um frequentar característico
do modo de ser para-si.
Finalmente, há em Sartre outro aspecto do assombramento que escapa às definições do
dicionário: a relação entre assombramento e olhar, este último em sua concepção
propriamente sartriana. Desde nossas análises sobre o cogito pré-reflexivo, vimos que o fato
da consciência “existir para um testemunho” faz com ela seja consciência perturbada
(conscience perturbée). O olhar, como ficará claro nas análises sobre o outro, é justamente
aquilo que perturba, que altera - no caso do olhar do outro, que objetifica, - aquele que é
olhado; assim como no mito da Medusa, no qual o olhar tem o poder de transformar em pedra
quem o encara. O assombramento do olhar no contexto de L’Être et le Néant consiste no fato
deste poder de objetificação vir ao para-si através de um outro não localizável, o que significa
que ele se dá por uma relação de ser olhado sem poder ver quem o olha:
Tout d’abord, il [autrui] est l’être vers qui je ne tourne pas mon attention. Il
est celui qui me regarde et que je ne regarde pas encore, celui qui me livre à
moi-même comme non-révélé, mais sans se révéler lui-même, celui qui m’est
présent en tant qu’il me vise et non pas en tant qu’il est visé : il est le pôle
concret et hors d’atteinte de ma fuite, de l’aliénation de mes possibles et de
l’écoulement du monde vers un autre monde qui est le même et pourtant
incommunicable avec celui-ci. Mais il ne saurait être distinct de cette
aliénation même et de cet écoulement, il en est le sens et la direction, il hante
cet écoulement, non comme un élément réel ou catégoriel, mais comme une
présence qui se fige et se mondanise si je tente de la « présentifier » et qui
n’est jamais plus présente, plus urgente que lorsque je n’y prends pas garde.
Si je suis tout entier à ma honte, par exemple, autrui est la présence immense
et invisible qui soutient cette honte et l’embrasse de toute part, c’est le milieu
de soutien de mon être-non-révélé19 .
Retomaremos esta citação mais adiante, talvez mais de uma vez, pois ela é
fundamental para nossas análises sobre o assombramento do olhar do outro. Por ora, nossa
intenção é a de acentuar as características do assombramento. Dito isto, podemos destacar
neste trecho que o assombramento do olhar do outro consiste exatamente neste poder de
objetificação vindo de algo não localizável, algo que por sua vez não é olhado. Sartre
descreve o outro em termos de presença invisível, cuja presença é ainda maior “lorsque je n’y
prends pas garde”. Esta impossibilidade de olhar aquele ou aquilo que assombra de frente
aparece em outras descrições de relações de assombramento, como por exemplo, o passado,
“qui hante sans être remarqué”20: “le passé est ce qui est hors d’atteinte et qui nous hante à
distance, sans que nous puissions même nous retourner en face pour le considérer”21. Do
mesmo modo, o ser do valor “transit [la conscience] de sa présence fantôme”22 de maneira
que ele “n’est pas posé par et devant la conscience ; il n’y a pas conscience de cet être,
puisqu’il hante la conscience non-thétique (de) soi” 23. Voltaremos a estas citações com mais
detalhes, mas neste momento já podemos observar as principais características do
assombramento. Elas dizem respeito ao caráter deste modo paradoxal de uma presença não
localizável e que, no entanto, estrutura o modo de ser do para-si. O assombramento
corresponde assim a esta presença das estruturas fáticas do para-si no próprio plano
translúcido, não tético, de modo que podemos afirmar que não há translucidez que não seja
assombrada. Como Sartre não admitia pensar esta presença em termos de passividade - que
para ele consiste num conceito próprio à descrição de relações causais -, ele acaba por
conferir ao assombramento esta função de mostrar de que modo o para-si pode “ser e não ser”
ao mesmo tempo seu passado, seu ser-para outro, etc. Se o para-si é e não é o seu passado,
como descrevemos anteriormente, é porque este o assombra: “Le passé peut bien alors être
conçu comme étant dans le présent, mais on s’est ôté les moyens de présenter cette
immanence autrement que comme celle d’une pierre au fond de la rivière. Le passé peut bien
hanter le présent, il ne peut pas l’être; c’est le présent qui est son passé”24 .
Assombramento do passado, do valor, do outro, dos possíveis; uma presença
“assombrante” num mundo ele mesmo assombrado pelas ausências, pelas qualidades, pelo
valor em sua forma concreta; tendo o para-si seu projeto original assombrado pelo espectro do
instante que tudo pode mudar, assombrado pela morte, que assombra o “cœur même de
chacun de […] projets [du pour-soi] comme leur inéluctable envers”25, L’Être et le Néant nos
apresenta uma verdadeira hantologie. Ao acentuar as relações de assombramento, podemos ler
a ontologia sartriana para além dos dualismos, de modo que podemos investigar como ser e
20 EN, p. 176.
21 EN, p. 541.
22 EN, p. 127.
23 Ibid.
24 EN, p. 148. (grifo nosso)
25 EN, p. 592.
!255
nada, subjetividade e objetividade estão implicados justamente por esta relação peculiar. Não
obstante, este modo de presença-ausente não localizável, característico do assombramento,
nos revela ao mesmo tempo um plano de investigação de modos de ser intermediários entre
ser e nada que denominamos de plano da espectralidade. Somente a partir da perspectiva da
hantologie, podemos considerar os modos espectrais da ontologia sartriana que revelam, na
realidade, toda sua riqueza.
§3. A espectralidade.
a) Espectros de Derrida.
O que nos interessa investigar, parafraseando Derrida, é “qu’est-ce que l’être-là d’un
spectre? quel est le mode de présence d’un spectre ?” 26. Dissemos no início deste trabalho que
Derrida caracteriza o espectro como uma incorporação paradoxal, um “algo” difícil de ser
nomeado: nem alma, nem corpo, e alma e corpo, que consiste num “devenir-corps, une
certaine forme phénoménale et charnelle de l’esprit” 27. Em uma entrevista intitulada
Spectrographies, Derrida acentua ainda o modo de visibilidade de um espectro:
Os espectros, portanto, não se dão, como diria Husserl, “em carne e osso” à intuição,
dado que se trata de uma aparição não intuível, que só adquire visibilidade justamente quando
não é visada, uma “visibilité de nuit”. Para Derrida, a lógica do espectro desconstrói a divisão
mesma entre visível e invisível, fenomenal e não fenomenal: “à la fois visible et invisible, à la
fois phénoménal et non phénoménal : une trace qui marque d’avance le présent de son
absence”29. Já podemos entrever nestas afirmações que a lógica espectral vem colocar em
questão aquilo que Derrida identifica como metafísica da presença, aqui em sua versão
husserliana, na medida em que esta última se atém ao motivo da presença plena, ao
imperativo intuicionista a partir do qual o projeto de conhecimento comanda o conjunto da
descrição30. Em outros termos, Derrida evidencia que o princípio dos princípios da
fenomenologia “signifie d’abord la certitude, elle-même idéale et absolue, que la forme
universelle de toute expérience (Erlebnis) et donc de toute vie, a toujours été et sera toujours
le présent. Il n’y a et il n’y aura jamais que du présent. L’être est présence ou modification de
présence”31. Voltaremos a este ponto, mas já podemos observar que, em contraposição ao
privilégio do presente vivo do intuicionismo, Derrida pensa o modo de “presença” do espectro
como uma presença daquilo que não pode ser intuído, pois se trata de um não objeto, de um
presente não presente: “être-là d’un absent ou d’un disparu ne relève plus du savoir. Du moins
plus de ce qu’on croit savoir sous le nom de savoir. On ne sait pas si c’est vivant ou si c’est
mort”32. Esta indiscernibilidade entre presente e não presente, vivo e morto, própria ao
espectro, coloca em questão lógicas binárias (e também dialéticas) que opõem a “presença
efetiva” a seu outro, como diz Derrida:
Disto decorre uma temporalidade própria ao espectro, que não é mais a do eterno
presente, como na temporalidade instantaneísta que demarcamos anteriormente, mas a de um
tempo que escapa à identidade a si do presente, um tempo desajustado, intempestivo, não
contemporâneo a si, “out of joint”, como diz Derrida, a partir de uma fala de Hamlet. O autor
demarca assim o caráter de acontecimento da aparição dos espectros, que se deixa notar pela
ideia de visitação: os espectros frequentam, visitam. Trata-se da “fréquence d’une certaine
visibilité”34, uma visibilidade invisível que não pode ser tematizada mas que visita (rend
visite) frequentemente sem propriamente habitar, ou habita sem habitar, sem residir35: “voilà
le lieu hors lieu des fantômes partout où ils feignent d’élire domicile”36. Isto significa que os
espectros assombram, pois o assombrar é próprio desta visitação, desse modo de aparição de
algo que não está presente “em carne e osso”, mas que frequenta; como um ir e vir repetitivo,
mas a cada vez provido do caráter inusitado de uma primeira vez. Um dos efeitos mais
perturbadores dos espectros, mostra Derrida, é justamente esta possibilidade de reaparecer, de
ir e voltar, de forma surpreendente, não esperada, não controlada37 . “Um espectro (Gespenst)
ronda a Europa” diziam Marx e Engels no início Manifesto do partido comunista. Nada mais
personagem se refere ao espectro como “esta coisa” (this thing), perguntando a Barnardo se “isso” tinha voltado
na noite anterior. Cf. ibid., p. 26.
!258
38 Ibid., p. 26. A “viseira” é a parte que cobre os olhos na armadura que porta o fantasma do rei em Hamlet. Na
cena em questão, ela estaria levantada, mas isto não muda nada, diz Derrida, “même quand elle est levée, enfait,
sa possibilité continue de signifier que quelqu’un, sous l’armure, peut à l’abri voir sans être vu ou sans être
identifié” ibid., p. 28.
39 Ibid., p. 35.
40 DERRIDA, J. & STIEGLER, B. Spectrographies, p. 135.
41 Ibid., p. 137.
42 DERRIDA, J. Spectres de Marx, p. 164.
43 Ibid., p. 165.
!259
normalmente compreendida por vias misteriosas ou místicas, mas que pode ser observada em
procedimentos analíticos e raciocínios argumentativos e mesmo em traduções. É o que
Derrida chama de exorçanalyse, que consiste numa tentativa de retirar precisamente o caráter
espectral dos espectros, ou de negar que um morto pode ser mais potente que um vivo e com
isso a necessidade de repetir e garantir incessantemente que o morto está realmente morto 44.
Esta atitude se encarna na interessante figura daquilo que Marcellus, personagem de Hamlet,
chama de scholar. Vale mostrar este trecho de Spectres de Marx sobre isso:
existente. Por isso, em sua breve participação no filme Ghost dance, Derrida diz “vive les
fantômes” ao invés de responder com um sim ou um não à pergunta se ele acredita ou não em
fantasmas48. Atuar num filme, continua Derrida, é como deixar falar em si um fantasma, como
um ventríloquo que deixa parasitar a voz de outro; não de outro qualquer, mas de “seu próprio
fantasma”. Assim, o fantasma diz respeito a este outro em si, que perturba a identidade de um
sujeito: “il n’y a pas de Dasein du spectre mais il n’y a pas de Dasein sans l’inquiétante
étrangeté, sans l’étrange familiarité (Unheimlichkeit) de quelque spectre”49. O espectro vem
surgir nesta quebra da identidade da presença a si, nesta disjuntura que abre um espaço e
“c’est dans cet espace, ce chez-soi hors de chez-soi, que le spectre arrive”50.
b) Espectros de Sartre.
48 The Science Of Ghosts - Derrida In 'Ghost Dance’. Direção: Ken McMullen. (5’23). Disponível em: <https://
www.youtube.com/watch?v=0nmu3uwqzbI> . Acesso em junho de 2016.
49 DERRIDA, J. Spectres de Marx, p. 165. Em “Spectrographies” Derrida traduz Unheimlichkeit como
“inquiétante étrangeté” se referindo não somente à Freud, referência mais clássica com relação ao termo, mas
também a Heidegger em Être et Temps como “l’élément de la hantise (autre chez soi, le réapparition des spectres,
etc.).” DERRIDA, J. & STIEGLER, B. Spectrographies, p. 146.
50 Ibid., p. 147.
!261
insuperável entre ser e nada. Entretanto, o que dizer destes modos contraditórios se os
considerarmos de forma legítima, assim como Derrida o fez para com os espectros? Qual a
importância de tais modos de ser na ontologia sartriana? Ora, é impressionante que Sartre
tenha se dedicado a descrever tal diversidade de modos de ser “contraditórios”, apenas para
demonstrar sua falsidade diante de uma consciência “pura” e de um ser que é pura
positividade. Mesmo que pensemos rapidamente nas análises sobre o psíquico, sobre o
imaginário, sobre a afetividade original, sobre o ser-para outro, sobre as relações mágicas,
entre outros, já é possível observar que a predominância de modos de ser em L’Être et le
Néant é justamente a dos modos “contraditórios”. Em outros termos, como já mencionamos
inicialmente, talvez o mais difícil seja apreender ao longo da obra os modos “para-si” e “em-
si” em toda sua pureza. Sendo assim, de duas uma: ou afirmamos que há um dualismo
insuperável entre ser e nada, subjetividade e objetividade e encerramos a questão; ou, ao
contrário, saímos dos dualismos a fim de realizar um estudo sobre a multiplicidade dos modos
de ser. Este segundo movimento nos parece mais rico e mais interessante de modo que aquilo
que era visto como contraditório para um olhar centrado no dualismo, mesmo que este seja
por vezes do próprio Sartre, passa a ser espectral para um olhar que se desprende deste quadro
reducionista. Isto é, também em nosso contexto, o espectral vem abalar a lógica dualista e os
espectros surgem neste espaço de quebra.
É importante demarcar que neste segundo caminho de leitura, que é o nosso, a escolha
pelo espectral não é, entretanto, arbitrária. A linguagem sartriana para se referir aos modos
“contraditórios”, como veremos ao longo desta “Terceira parte”, é marcada
predominantemente pelo termo fantasma (fantôme)51 . Sartre fala em “presença fantasma”,
“díade fantasma”, “escoamento fantasma” de uma “temporalidade fantasma”, “em-si
fantasma”, entre outros. Em alguns casos, como na descrição do psíquico, trata-se também de
um modo intermediário com relação a um dualismo: os objetos psíquicos são sombras, nem
translúcidos, nem opacos; enquanto que os objetos imaginários são “objetos-fantasmas”.
Outro aspecto predominante no texto sartriano, como dissemos há pouco, é o assombramento.
Ora, o assombramento é próprio de um espectro, de uma presença de algo não localizável, que
visita e frequenta um campo, perturbando-o por via de seus efeitos espectrais.
51Sartre fala em fantasma (fantôme) e não em espectro. Falaremos em espectro dado que a inspiração da leitura
partiu das análises de Derrida, que utiliza os termos como sinônimos. Basta verificar sua tradução de Gespenst,
do Manifesto do partido comunista, por espectro.
!262
É neste sentido que a consideração sobre os espectros feita por Derrida nos remete ao
assombramento intrínseco a L’Être et le Néant. Os modos que denominamos espectrais nesta
obra, assim como os espectros derridianos, perturbam aquilo que é assombrado. Esta
proximidade fica ainda mais nítida na relação entre assombramento e olhar. Quem, senão
Sartre, falou de modo emblemático do assombramento próprio ao sentir-se olhado pelo outro?
E, além disso, de uma assimetria do olhar, isto é, do fato de não poder olhar aquele que olha?
Veremos assim que aquilo que Derrida denominou de efeito de viseira corresponde de algum
modo ao assombramento pelo olhar do outro em Sartre, indicando-nos de forma interessante a
espectralidade própria ao modo de presença do outro.
Diante disso, concluímos que a hantologie consiste numa leitura que faz surgir os
espectros de Sartre. Derrida mostrou bem que é próprio ao espectro surgir das sombras, numa
“visibilidade da noite” e é exatamente os planos de sombra e de opacidade que buscamos
priorizar a fim de poder falar dos espectros. Isto significa que a hantologie não privilegiará a
translucidez, mas sua face sombria (sa face d’ombre), e ainda de que maneira esta última
perturba a própria translucidez.
Capítulo II
A translucidez e sua face sombria
Sarraute, Tropismes.
significa que tudo o que diz respeito à região ontológica “para-si” deve ser translúcido1, como
reforça Sartre ainda em L’Être et le Néant: “Introduire dans l’unité d’un cogito préréflexif un
élément qualifié extérieur à ce cogito, ce serait en briser l’unité, en détruire la translucidité; il
y aurait alors dans la conscience quelque chose dont elle ne serait pas conscience, et qui
n’existerait pas en soi-même comme conscience” 2. A região ontológica para-si, que é a da
consciência pré-reflexiva, deve ser caracterizada então pela translucidez, que é o plano da
relação imediata da consciência (de) si, também compreendida como presença a si ou jogo de
reflexos.
Ao dotar a consciência da característica de translucidez, Sartre se inscreve numa
tradição filosófica em torno da ideia de luminosidade, a qual Derrida, em seu texto La
mythologie blanche, identifica como sendo “le cercle de l’héliotrope”3. Podemos dizer que
desde Platão é à luz do sol que se contempla às verdades, no momento em que o olhar se
habitua a não mais estar nas sombras da caverna, e que daí em diante as metáforas do círculo
e do sol são utilizadas de maneiras distintas pelos mais diversos filósofos. Para Descartes,
ressalta Derrida, é a “lumière naturelle [que] constitue l’éther même de la pensée et de son
discours propre”4. O cogito cartesiano passa a ser então um novo paradigma não somente do
lugar de luminosidade divina, mas também da transparência do sujeito a si mesmo,
atravessado por tal luminosidade. Desde então, na tradição idealista clássica pós-cartesiana,
resume Badiou, “le sujet désigne ce point d’être transparent, en posture de donation
immédiate à lui-même, par où passe tout accès à l’existence comme telle” 5. Ao falar de
luminosidade, translucidez, sombras, opacidade e, principalmente, ao “partir do cogito”,
Sartre se inscreve na herança desta tradição filosófica, pois Bataille tem razão ao dizer que “la
subjectivité est claire à ses yeux, elle est ce qui est clair!”. Para Badiou, o não ser da
consciência livre sartriana é o verdadeiro nome da transparência, de modo que seria até
excessivo dizer que aquilo que se dá a si mesmo em transparência é. O cogito sartriano é
“transparence de sa transparence”6 , e o que o cogito nos dá, neste caso, e que torna uma
1 Transparência e translucidez, neste contexto, são sinônimos, embora Sartre utilize o segundo termo mais
frequentemente. Translucidez indica ainda o caráter de lucidez da consciência, como comentaremos adiante.
2 EN, p. 114.
3 DERRIDA, J. La mythologie blanche. In: Marges de la philosophie. Paris: Minuit, 1972, p. 318.
4 Ibid., p. 319.
5 BADIOU, A. Théorie du sujet. Paris: Éditions du Seuil, 1982, p. 294.
6 Ibid.
!265
ontologia possível, é o nada (rien), conclui Badiou. Quais seriam então as implicações da
posição sartriana ao afirmar uma consciência transparente?
Tendo em vista as notas de Vérité et existence, pode-se fazer uma distinção mais
precisa entre subjetividade e claridade. Nestas, Sartre se refere ao conhecimento intuitivo em
termos de iluminação: “connaître, c’est tirer l’Être de la nuit de l’Être sans pouvoir l’amener à
la translucidité du Pour-soi. Connaître, c’est malgré tout conférer une dimension d’être à
l’Être : la luminosité”7. Mais adiante no texto, ele afirma ainda que “l’Être se dévoile toujours
à un point de vue et l’on est tenté de faire de ce point de vue la subjectivité. Mais cela n’est
pas. La subjectivité, c’est seulement l’éclairement” 8. A subjetividade é definida então como
possibilidade de iluminar um campo temático, este último designado em L’Être et le Néant
como aquilo que se encontra “devant lui [le pour-soi] comme ce qu’il éclaire”9. Todavia,
pode-se perguntar: a translucidez é ela mesma a luminosidade projetada no mundo? Pois a
qualidade de translúcido é a de algo que deixa passar a luz e não a luz ela mesma. Como
Sartre, diferentemente de Descartes, não admite uma fonte divina de luminosidade, tal
iluminação é brevemente descrita em termos de intuição e o que nos interessa é que ela diz
respeito à relação da consciência com o mundo e não com ela mesma. A relação da
consciência com ela mesma é o meio pelo qual uma luz a atravessa, é a dimensão ontológica
da translucidez. Sendo assim, quais são as consequências deste posicionamento sartriano em
relação à histórica aproximação metafórica entre verdade, conhecimento, luz e consciência de
si? Na realidade, tal pergunta é demasiado ampla e poderia por si só consistir numa
investigação à parte; por isto devemos recolocá-la, não somente restringindo sua amplitude,
mas também com o objetivo de apontar os problemas que daí decorrem, isto é, qual a
consequência de pensar a consciência em termos de translucidez?
Ricœur, nas análises sobre o inconsciente em Philosophie de la Volonté I, faz algumas
considerações sobre no que consiste o “fracasso da doutrina da transparência da
consciência”10. Seus argumentos, grosso modo, nos fazem compreender que uma filosofia da
consciência transparente se baseia num preconceito simétrico ao do “realismo do
inconsciente”. Este último problema, F. Worms nos esclarece, foi explorado não somente por
Ricœur, mas também por outros, incluíndo Sartre, a partir da influência da crítica feita por
7 VE, p. 19.
8 VE, p. 25.
9 EN, p. 176.
10 RICŒUR, P. Philosophie de la volonté I, p. 471.
!266
11 WORMS, F. Le problème de l’inconscient dans le moment de l’existence. Les Temps Modernes. Sartre avec
Freud. n. 674-675, p. 4-15, 2013.
12 RICŒUR, P. Philosophie de la volonté I, p. 473.
13 Ibid., p. 275.
14 Php, p. 441.
!267
qui se définit par la “possession de soi” et qui ne trouve jamais au-dehors que ce qu’il y a
mis”15. Por esta razão toda “percepção interior” é inadequada, pois tal coincidência a si é
impossível, e por isso na Phénoménologie de la perception o cogito só continua válido se
invertido, isto é, “ce n’est pas mon existence qui est ramenée à la conscience que j’en ai, c’est
inversement le Je pense qui est réintégré au mouvement de transcendance du Je suis et la
conscience à l’existence”16. Ao seguir esta linha de pensamento, pressupor uma consciência
transparente significa ao mesmo tempo conceber uma filosofia idealista e uma ideia solipsista
de sujeito, na medida em que tal apreensão de si só ocorreria caso a consciência pudesse se
apreender apartada de sua facticidade. Sendo assim, se colocarmos estas questões à luz de
nossa argumentação até aqui, levando em conta que a mudança ocorrida na filosofia de Sartre
se deu precisamente nos pontos que são neste momento cruciais - facticidade e temporalidade
- como a consciência pode manter ainda sua característica de translucidez? Acreditamos que
só podemos responder a esta perguntas se atentarmos para o que significa tal característica no
contexto de L’Être et le Néant, assim como seus limites.
15 Php, p. 431-432.
16 Php, p. 443.
!268
susceptibles d’intervenir que l’on ne peut ignorer” 17. Trata-se de uma breve fala de entrevista
que é muito genérica para que possamos tirar conclusões. Contudo, pode-se entrever aí a ideia
de que a filosofia de Sartre, que é uma filosofia da consciência, suporia um “domínio de si”
do sujeito, um controle completo do homem sobre as suas ações e sua vida, em razão de não
haver espaço para o inconsciente. O ponto fundamental deste tipo de constatação nos remete
ao problema da transparência da consciência dado que a recusa do inconsciente, somada a
ideia de uma consciência transparente, resultariam na impossibilidade de um
desconhecimento de si (méconnaissance de soi) do sujeito, ou na impossibilidade de erro ou
ilusão na relação a si. Merleau-Ponty resume bem a ligação entre estes pontos: “Celui devant
qui tout paraît ne peut être dissimulé à lui-même, il s’apparaît tout le premier, il est cette
apparition de soi à soi, il surgit de rien, rien ni personne ne peut l’empêcher d’être soi, ni l’y
aider. Il fut toujours, il est partout, il est roi dans son île déserte” 18.
Solipsismo, domínio de si, idealismo, identidade, seriam estas as consequências do
conceito de translucidez na filosofia de Sartre? A mudança na concepção de temporalidade e a
inserção da facticidade não abalariam de algum modo tal translucidez? Translucidez e
opacidade seriam termos de mais um dualismo sartriano? Eis algumas questões que devemos
abordar minimamente a fim de pensar de que modo compreendemos as características de
translucidez e opacidade na perspectiva da hantologie.
Em primeiro lugar, sabemos que em L’Être et le Néant a definição do “sujeito” como
para-si é desenvolvida como uma crítica à identidade. Colocamos sujeito entre aspas
precisamente por esta razão, pois, se como diz Descombes, “de façon générale, on appelle
sujet (subjectum) le terme que l’on retrouve identique à lui-même en différentes
circonstances”19, este, definitivamente, não é o caso do modo de ser para-si. Sendo o para-si
17 FOUCAULT, M. Conversation sans complexes avec le philosophe qui analyse les « structures du
pouvoir » (entretien avec J. Bauer, 10, octobre 1978). In:______ . Dits et écrits 1954-1988. II (1976-1988).
Paris : Gallimard, 2001, p. 671. (grifo nosso). Em outra entrevista, Foucault inclui Merleau-Ponty em sua crítica
à recusa do inconsciente: “Le problème, c’était précisément l’inconscient, l’inconscient qui ne pouvait pas entrer
dans une analyse de type phénoménologique. La meilleure preuve qu’il ne pouvait pas entrer dans la
phénoménologie, au moins telle que les Français le concevaient, c’est que Sartre, ou Merleau-Ponty – je ne parle
pas des autres – n’ont pas cessé d’essayer de réduire ce qui était pour eux le positivisme, ou le mécanisme, ou le
chosisme de Freud au nom de l’affirmation d’un sujet constituant.” Id. Structuralisme et poststructuralisme.
Entretien avec G. Raulet. In: ______ . Dits et écrits 1954-1988. II (1976-1988). Paris : Gallimard, 2001, p.
1.254.
18 S, p. 27. Afirmação que nos remete a de V. de Coorebyter: “en évitant ainsi l’opacification de la conscience
Sartre la menace de substantialisation par narcissisme, par inhérence à soi ou fascination sur soi, au risque d’une
rechute dans l’abîme autocentré du sens interne”. DE COOREBYTER, V. Sartre face à la phénoménologie, p.
255.
19 DESCOMBES, V. L’inconscient malgré lui. Paris : Gallimard, 2004, p. 22.
!269
20 A este respeito é curioso observar novamente uma afirmação de Foucault que atribui identidade ao sujeito
sartriano: “Dans une philosophie comme celle de Sartre, le sujet donne sens au monde. Ce point n’était pas remis
en question. Le sujet attribue les significations. La question était : peut-on dire que le sujet soit la seule forme
d’existence possible ? Ne peut-il avoir des expériences au cours desquelles le sujet ne soit plus donné, dans ses
rapports constitutifs, dans ce qu’il a d’identique à lui-même ? N’y aurait-il donc pas d’expériences dans
lequelles le sujet puisse se dissocier, briser le rapport avec lui-même, perdre son identité ?”. Entretien avec
Michel Foucault. Avec D. Trombadori, 1980. In: FOUCAULT, M. Dits et écrits 1954-1988 II, p. 869. Que o
sujeito sartriano dê sentido ao mundo é de fato uma questão a ser discutida, como veremos no capítulo sobre o
mundo, mas no que diz respeito ao fato de “perder sua identidade”, em que sentido ele poderia perder algo que
não tem, já que o para-si é definido como negação de identidade? Em outra entrevista, entretanto, Foucault
esclarece este ponto ao observar que ele enxerga a identidade do sujeito nas análises de Sartre através da noção
de autenticidade, e não do próprio “si” do sujeito: “Du point de vue théorique, je pense que Sartre écarte l’idée
de soi comme quelque chose qui nous est donné, mais grâce à la notion morale d’authenticité, il se replie sur
l’idée qu’il faut être soi-même et être vraiment soi-même”. À propos de la généalogie de l’éthique : un aperçu du
travail en cours. Entretien avec H. Dreyfus et P. Rabinow, 1983. In: FOUCAULT, M. Dits et écrits 1954-1988. II,
p. 1.212.
21 EN, p. 113.
22 DERRIDA, J. La voix et le phénomène, p. 3.
23 “le principium renvoie toujours, dans la phénoménologie, à ce “point-source”. Ibid, p. 73.
24 DERRIDA, J. La voix et le phénomène, p. 73.
!270
proximidade do sujeito a si mesmo que o permite apreender a própria vivência, como mostra
Derrida:
O ponto que nos interessa nestas análises de Derrida é justamente o fato da noção de
“presença a si” acarretar de algum modo nesta identidade do sujeito consigo mesmo, já que há
possibilidade de apreensão da própria vivência pela reflexão, o que presume ser possível
posicionar e apreender a si mesmo no presente. Diante disso, se para Sartre a temporalidade
não é mais instantaneísta, como ele pode falar em “presença a si”, já que é a temporalidade
que faz com que “contrairement à l’assurance que nous en donne Husserl […] “le regard” ne
peut pas “demeurer”26? Evidentemente, ao pensar a consciência como “presença a si”, Sartre
se inscreve então no quadro mais clássico da metafísica da presença. No entanto, esta
inscrição não é identificação, considerando que se trata de uma presença que, como viemos de
citar, não se refere mais a uma plenitude ou a um imanentismo e nem mesmo é descrita
através dos moldes da reflexão, visto que é pré-reflexiva. Nosso objetivo neste momento é o
de mostrar que a “presença a si” sartriana não envolve um sujeito pleno, idêntico a si, e que
esta presença é na verdade um “escape” a si, uma diferença, uma “ausência”, uma presença
finalmente estranha às definições tradicionais do termo. Christina Howells, em Sartre and the
deconstruction of the subject27, chega mesmo a ver nesta “presença” sartriana - onde
“presence is precisely what prevents identity”28 -, uma antecipação da desconstrução do
sujeito husserliano realizada por Derrida em La voix et le phénomène29. Sem entrar no mérito
25 Ibid., p. 8.
26 Ibid., p. 122.
27 HOWELLS, C. Sartre and the deconstruction of the subject. In:______ . (Org). The Cambridge Companion to
enxerga este potencial em Sartre, o que permitiria mesmo a estabelecer um diálogo com sua filosofia: “But in the
case of Sartre, Derrida focuses on selected terminology of existentialism and contrives to ignore its real emphasis
on negation. His rejection of Sartre’s humanism relegates Sartre’s own critique of humanism in La Nausée to a
footnote. Such a representation of his predecessor’s thinking brings in its wake a refusal to recognize basic
analogies between Sartre’s philosophy and his own”. Ibid., p. 334.
!271
se esta afirmação procede, pensamos que se torna assim importante, a partir do que foi
exposto até aqui, mostrar em que sentido a presença a si em Sartre não implica adequação a si
ou identidade a si de um sujeito, características que normalmente são atreladas às filosofias da
consciência, sobretudo à consciência compreendida como transparência. Vimos na “Segunda
parte” que a estrutura pré-reflexiva da consciência é descrita por Sartre como um jogo de
reflexos e que isto faz com que a consciência nunca seja plenitude, mas que, desde que
“olhada”, ela é “déjà contestation en elle-même”30 no plano pré-reflexivo, ela é consciência
perturbada (troublée). A consequência desta descrição é a de que o ser da consciência “ne
coïncide pas avec lui-même dans une adéquation plénière”31 ; dado que a consciência é “une
façon de ne pas être sa propre coïncidence, d’échapper à l’identité”32. Cada termo da díade
reflexo-refletidor (que vimos ser a estrutura intraconsciencial da pré-reflexão) se dá nesta
tensão paradoxal típica de uma contradição hegeliana onde cada termo “renvoie à l’autre et
passe dans l’autre, et pourtant chaque terme est différent de l’autre”33. A existência da
consciência como tensão neste jogo de reflexos, como “un jeu perpétuel d’absence et de
présence”34, faz com que seu modo de ser adquira - ao contrário de uma plenitude que pode
ser intuída - um caráter espectral que veda qualquer tipo de intuição. Assim, a “díade
fantasma” (dyade fantôme)35 consiste num tipo de ser que, se quisermos apreendê-lo, “il glisse
entre les doigts” 36. Do mesmo modo, se quisermos apreender o nada (néant) que “separa” um
termo do outro isto não seria possível, pois “ce néant n’est pas saisissable”. Se pensarmos na
consciência de crença, por exemplo,
30 CSCS, p. 156.
31 EN, p. 110.
32 EN, p. 113.
33 EN, p. 111.
34 CSCS, p. 156. “Autrement dit, on ne trouvera jamais la conscience non thétique comme mode d’être qui ne
soit, en même temps, en quelque sorte, absence à elle-même, précisément parce qu’elle est présence à elle-
même”. Ibid.
35 EN, p. 209.
36 EN, p. 112.
37 EN, p. 114. (grifo nosso)
!272
A citação acima introduz nosso segundo ponto, que consiste num suposto domínio
sobre si do sujeito, dado que a consciência é translúcida de ponta a ponta, sem deixar espaço
para o inconsciente. Como mencionamos brevemente, esta posição de maîtrise sur soi, ratifica
um verdadeiro “império sobre si”, como diz Ricœur40, de modo que a transparência da
consciência impediria de algum modo que o sujeito pudesse desconhecer a si mesmo
(méconnaître soi-même). Se, como diz Derrida, “la conscience est la présence à soi du vivre,
de l’Erleben, de l’expérience. Celle-ci est simple et n’est jamais, par essence, affecté par
l’illusion puisqu’elle ne se rapporte qu’à soi dans une proximité absolue”41, como manter
então, ao mesmo tempo, a possibilidade do cogito e da ilusão sobre si? Merleau-Ponty, por
exemplo, ao falar da opacidade inerente à percepção, instaura o desconhecimento de si no
nível pré-reflexivo, na medida em que “la perception est opaque, elle met en cause, au-
dessous de ce que je connais, mes champs sensoriels, mes complicités primitives avec le
monde”42. Para Ricœur, é o desconhecimento de si no nível consciente mais imediato que
38 Ibid.
39 DE COOREBYTER, V. Sartre face à la phénoménologie, p. 259.
40 RICŒUR, P. Philosophie de la volonté I.
41 DERRIDA, J. La voix et le phénomène, p. 69.
42 Php, p. 487.
!273
46 CSCS, p. 150.
47 DE COOREBYTER, Sartre face à la phénoménologie, p. 275.
48 Ibid., p. 261. (grifo nosso)
49 Ibid., p. 275.
50 TE, p. 126.
!275
ombre, sans recoins, sans microbes, sous une lumière froide”51, desde que ele sentia o olhar
do outro em si mesmo obrigando-o, em suas palavras, “à m’éclairer au plus vite, à
pourchasser la pénombre en moi et, dès qu’une pensée m’appartenait en toute transparence,
du même coup elle leur appartenait aussi [aux autres]”52.
A partir destas últimas observações, podemos concluir dizendo que esta primeira
característica - a invisibilidade própria à translucidez - aparece desde o início das reflexões
filosóficas de Sartre significando a impossibilidade de objetivação da consciência, no fundo,
de substancializa-la. Tudo o que for da ordem do objeto - neste vocabulário, do opaco -, diz
respeito a uma visibilidade que só é possível adquirir por um olhar externo. Sendo assim, tudo
se passa como se em cada tentativa de olhar para si, o sujeito ou tenta fazer-se outro para
apreender algo de visível em si - o que caracterizará o plano das sombras produzido pela
reflexão impura, como veremos mais adiante -, ou realiza aquilo que Sartre chama de reflexão
pura, comparável a um clarão, onde a consciência apenas se experimenta, sem poder
conhecer a si mesma.
Vous savez bien que cette réflexion je ne l’ai jamais décrite, j’ai dit qu’elle
pourrait exister mais je n’ai montré que des faits de réflexion complice. Et
par la suite j’ai découvert que la réflexion non complice n’était pas un regard
51 CDG, p. 560.
52 Ibid.
53 B, p. 110.
!276
différent du regard complice et immédiat mais était le travail critique que l’on
peut faire pendant toute une vie sur soi, à travers une praxis54.
Tendo em vista esta afirmação, podemos ressaltar três pontos importantes: o primeiro
consiste na dificuldade presente no percurso filosófico sartriano em oferecer uma descrição
suficiente da reflexão pura; o segundo se refere ao fato de que pensar sobre a reflexão foi uma
tarefa que acompanhou seu percurso desde o início, ao longo do qual o ponto de diferenciação
de um modo de reflexão para outro varia um pouco (ora uma mudança de atitude, ora de
motivação; no trecho acima ele afirma que não é uma mudança de olhar); o terceiro: como a
reflexão pura pode ser um trabalho crítico a ser feito durante toda uma vida? Este último não
parece ser muito claro até os rascunhos dos Cahiers pour une morale.
Com relação à dificuldade na descrição ou mesmo no desenvolvimento teórico sobre a
reflexão pura, a primeira questão que se apresenta é muito bem colocada por N. Monnin:
une réflexion, c’est d’abord une connaissance qui, en cela, respect la scission
entre connu et connaissant. […] Mais, autant la réflexion impure a tout le
caractère d’une réflexion classique, visant une connaissance objectivante de
soi, autant la réflexion pure peut nous faire douter, par la distance minimale
qu’elle instaure entre réfléchi et réflexif, qu’il s’agisse encore bien d’une
réflexion55.
54 S.X, p. 104-5.
55 MONNIN, N.Une réflexion pure est-elle possible?, p. 205.
56 Cf. HUSSERL, E. Méditations cartésiennes, p. 66.
57 HUSSERL, E. Ideen I, p. 252.
!277
implica mais estes resultados seria ainda uma reflexão. Por esta razão, também para De
Coorebyter, tendo em vista a proximidade entre consciência pré-reflexiva e a reflexão pura, há
uma dificuldade de diferenciação entre estes dois modos de consciência, dado que seus
“objectifs sont identiques, de sorte que, idéalement, rien ne devrait les distinguer” 58.
No entanto, a descrição mais refinada da reflexão introduzida em L’Être et le Néant –
a díade reflexo-refletidor -, nos permite notar a diferença estrutural entre a consciência pré-
reflexiva e a reflexão pura. Esta última é então caracterizada como sendo a apreensão da
consciência refletida pela reflexiva na pureza do jogo de reflexos, ou seja, ambas se revelam
como sendo a mesma consciência que se reflete em duas faces reflexo-refletidor, na unidade
da consciência intencional em sua pura transparência. Em outras palavras, a reflexão pura é a
revelação da consciência refletida como díade reflexo-refletidor, que é a face refletida da
consciência reflexiva, isto é, na dualidade-unidade. Logo, enquanto na pré-reflexividade a
consciência é díade reflexo-refletidor, na reflexão pura a díade é duplicada, de modo a esticar
a distância inicial: a consciência reflexiva reflexo-refletidor apreende a consciência refletida
como reflexo-refletidor e não como se fosse um em-si (reflexão impura, como veremos mais
adiante). A este respeito De Coorebyter diz que
Não é possível assim, na reflexão pura, adotar um “ponto de vista” com relação ao
refletido de modo que, por esta razão, ela se caracteriza mais como um reconhecimento do
que como conhecimento, diz Sartre. Reconhecimento pelo fato de que ela revela o refletido
como para-si e não como esboço de alteridade (reflexão impura); já que “elle le découvre
comme le « réfléchi », par excellence, l’être qui n’est jamais que comme soi et qui est toujours
ce « soi » à distance de lui-même, dans l’avenir, dans le passé, dans le monde”60. A reflexão
pura consiste então numa apreensão angustiante da consciência em sua pura translucidez e a
ausência de sombras faz com que esta apreensão seja “intuition fulgurante et sans relief, sans
point de départ ni point d’arrivée”61. A reflexão cúmplice ou impura, por outro lado, é aquela
que se coloca na estrutura sujeito-objeto do conhecimento, que supõe “des reliefs, des plans,
un ordre, une hiérarchie”62 , de modo que a captação da consciência refletida pela reflexiva
não revela a estrutura translúcida da consciência pré-reflexiva reflexo-refletidor, mas o
refletido como se fosse um em-si, sob a forma de objeto psíquico 63.
Neste contexto, com relação ao segundo ponto da afirmação que destacamos, podemos
compreender a necessidade de pensarmos sobre a motivação das diferentes reflexões, já que a
motivação de má-fé da impura parece ser mais clara - num primeiro momento como fuga da
angústia própria à fatalidade da espontaneidade (La Transcendance de l’Ego) e num segundo
como fuga da contingência e tentativa de autofundação (L’Être et le Néant) -, do que a
motivação da reflexão pura. Isto porque não fica claro quais seriam o papel e a vantagem
desta reflexão se a pré-reflexividade já possuía a transparência não substancial da consciência.
Além do que, cabe perguntar, se a reflexão não adquire finalmente um papel relevante,
estaríamos então num impasse diante da inutilidade da reflexão? Isto é, entre a má-fé (que
veremos ser característica da reflexão impura) e a constatação de uma transparência já
existente? Sobre essa questão, De Coorebyter afirma ainda que “la réflexion au sens classique
est au rouet, tantôt inacceptable car, opacifiant le translucide, elle barre l’accès au vécu et
signe la mort de la phénoménologie, tantôt inutile parce que, respectant l’invisible
transparence de l’irréfléchi, elle reproduit une situation déjà acquise” 64.
Diante deste possível impasse, pensamos que o movimento de purificação da reflexão
é mais importante do que a “reprodução de uma situação já dada” por duas razões. Em
primeiro lugar, dado que, de acordo com a própria estrutura do projeto, tendemos à fuga da
contingência e busca de autofundamento. Se as tentativas de objetivação de si são inevitáveis,
a reflexão pura aparece como uma quebra possível do movimento de tentativas de
substancialização. Em segundo lugar, a pura transparência a si é, como vimos, invisibilidade
total. Neste sentido, diz De Coorebyter, o campo pré-reflexivo sartriano, para ter seu papel,
deve tornar o trabalho fenomenológico possível e necessário: “la connaissance qu’il autorise
61 EN, p. 190. Descrição que se assemelha muito àquela sobre a reflexão husserliana em A transcendência do
Ego: “Husserl insiste sur le fait que la certitude de l’acte réflexif vient de ce qu’on y saisit la conscience sans
facettes, sans profils, toute entière (sans « Abschattungen »)” TE, p. 102, embora Sartre afirme que a reflexão
pura “n’est cependant pas forcément la réflexion phénoménologique”. TE, p. 110.
62 EN, p. 191.
63 Este tema será desenvolvido no capítulo IV desta “Terceira parte”.
64 DE COOREBYTER, V. Sartre face à la phénoménologie, p. 320.
!279
doit être requise par la méconnaissance qu’il enveloppe” 65. Para o autor, enfim, “le
translucide invisible du fait même qu’il s’éprouve, entre dans la lumière à la faveur de cette
intentionnalité autocentrée : Sartre y insistera dans L’Idiot de la famille, voir “réaliser” ce que
l’on est”66.
Vislumbra-se, portanto, que a questão da realização de si oferece um papel à reflexão
pura em meio à primazia do que veremos ser a má-fé. Mas é nas notas dos Cahiers pour une
morale que a questão da motivação parece ficar mais clara, assim como a ideia de que a
reflexão pura deve ser uma práxis, nosso terceiro ponto. Neste texto, Sartre afirma que a
reflexão não é contemplativa, uma vez que ela é projeto de realização prática da liberdade.
Como práxis, o projeto escolhe empreender aquilo que Sartre entende como conversão moral,
que consiste na passagem de um plano inautêntico ao autêntico, motivada pela vontade de
realização e não de apropriação de si. Sartre estabelece neste momento uma oposição entre
uma decisão de autonomia ou de heteronomia segundo os projetos de reflexão cúmplice ou
purificante. A autonomia é o regime da reflexão pura em sua vontade de acordo e aliança do
para-si consigo próprio, isto é, momento onde o para-si assume sua unidade não através de
uma identidade, mas sim através de uma aliança moral67. A unidade é dada pela vontade, o
que significa que o para-si, não podendo afirmar o que ele é, afirma o que ele quer: “La
réflexion pure et authentique est un vouloir de ce que je veux. C’est le refus de me définir par
ce que je suis (Ego) mais par ce que je veux”68. Esta assunção é autônoma na medida em que
o para-si decide não mais buscar sua legitimidade e justificação em sua face objetiva para-
outro, ao reconhecer-se como um “absoluto subjetivo”, pura “contingência vista de fora”, que
não tem nenhuma justificação69. A reflexão pura comporta assim a assunção da
injustificabilidade da existência a partir de sua impossibilidade de síntese consigo mesma sob
a modalidade da identidade. A unidade acordada é então de outra ordem, já que ela reside na
revelação do abismo do para-si em relação a si, de modo que a existência pode apreender-se
como sendo “em questão”. Dizer que a reflexão é projeto significa dizer que a reflexão é
escolha de si como reflexivo no intuito de não apenas existir enquanto questão para si mesmo,
mas de querer existir como tal. É neste sentido que a reflexão pura é uma práxis de
recuperação do projeto por si mesmo, ao mesmo tempo em que renuncia que esta recuperação
seja sob o modo da identificação ou apropriação, conforme a motivação da reflexão impura.
Sartre conclui: “En un mot l’existant est projet et la réflexion est projet d’assumer ce
projet”70.
Tendo em vista estas considerações sobre a reflexão pura nos Cahiers, podemos dizer
que Sartre a pensa, em tempos diferentes, como tendo pelo menos três formas: além desta
assunção voluntária que acabamos de descrever, também como um “acidente” e como
“catarse”. Em La Transcendance de l’Ego, ao se opor à ideia de que a épochè seria um
método intelectual, Sartre pensa que reflexão está relacionada à angústia própria à “fatalidade
da espontaneidade” da consciência, o que faz dela “à la fois un événement pur d’origine
transcendantale et un accident toujours possible de notre vie quotidienne”71. Também em La
Nausée, Sartre fala em súbita “iluminação”72, pela qual Roquentin vivencia a contingência da
existência diante da raiz do castanheiro. Em L’Être et le Néant, por sua vez, ele fala em
termos de uma experiência de catarse, secundária com relação à reflexão impura. Trata-se,
portanto, nestes últimos casos, de uma experiência involuntária e não de um procedimento
metodológico deliberado. Para que haja conhecimento de tal experiência, conclui Sartre em
seu capítulo sobre a psicanálise existencial, é preciso que um outro venha dar objetividade à
invisibilidade total, mesmo reflexiva. Sendo assim, pela noção de reflexão pura, Sartre mostra
que o saber de si próprio à lucidez do para-si é um experienciar-se que impossibilita o
autoconhecimento graças a invisibilidade da consciência, seja no nível pré-reflexivo, seja no
nível reflexivo puro. Segundo os Cahiers, resta à reflexão pura somente assumir e querer a
condição de desconhecimento de si.
70 CPM, p. 495.
71 TE, p. 130.
72 N, p. 181.
!281
73 S.IX, p. 112. Entrevista publicada em 1970. A noção de vivência é desenvolvida a partir de conceitos da Cri-
tique de la raison dialectique, como o de totalização: “Ce que j’appelle le vécu, c’est précisément l’ensemble du
processus dialectique de la vie psychique, un processus qui reste nécessairement opaque à lui-même car il est
une constante totalisation, et une totalisation qui ne peut être consciente de ce qu’elles est.” S.IX, p.111
74 Cf. QS, p. 123-124.
!282
Segundo esta fala, onde o interlocutor nos esclarece mais do que do próprio Sartre o
que está em jogo, este último prefere chamar de “não saber” esta realidade objetiva em nós,
que consiste numa espessura de obscuridade. Não se trata portanto de uma concepção de
inconsciente psicanalítico, aquele que Deleuze e Guattari diziam ser um teatro, mas algo da
realidade objetiva interiorizada na própria subjetividade, um tipo de “não saber”.
A rejeição de Sartre ao inconsciente psicanalítico é marcante e tornou-se um fato
conhecido e por diversas vezes criticado. Todavia, sua relação com a psicanálise é, na
verdade, bastante paradoxal, de modo que para Pontalis, “il faudra un jour écrire l’histoire du
rapport ambigu, fait d’une attirance et d’une réticence également profondes, que Sartre
entretient depuis trente ans avec la psychanalyse, et peut-être même relire son œuvre dans
cette perspective” 76. No Esquisse, Sartre faz uma breve e bem resumida apresentação da sua
posição com relação à teoria psicanalítica, onde conclui que o paradoxo é, na verdade,
constitutivo desta própria teoria, a qual busca ao mesmo tempo explicar os fenômenos por
relações causais e compreender seus sentidos. Duas atitudes que, segundo Sartre, seguindo os
passos de Dilthey e Jaspers, são incompatíveis77. Não há como negar assim a importância já
citada da crítica de Politzer à psicanálise em Critique des fondements de la psychologie sobre
o “realismo do inconsciente”, sobre a qual A. Tomès identifica uma proximidade com as de
Sartre, embora ele se pergunte qual foi de fato a sua influência. Segundo o autor, “sans utiliser
la terminologie de Politzer, Sartre part exactement du même constat : la fascination des
psychologies pour le modèle des sciences de la nature est précisément ce qui leur interdit de
comprendre ce qui fait la spécificité de la vie psychique humaine”78, embora para Politzer isto
não signifique um retorno a uma filosofia da consciência. Em L’Être et le Néant, Sartre
desenvolve alguns pontos de sua crítica à psicanálise freudiana (que ele chama por vezes de
psicologia empírica), mas esboça ao mesmo tempo uma afinidade com relação ao caráter
75 QS, p. 127-8.
76 Réponse à Sartre par J.-B. Pontalis. In: S.IX, p. 360.
77 Cf. ETE, p. 37.
78 TOMÈS, A. Sartre et la critique des fondements de la psychologie : Quelques pistes sur les rapports de Sartre
79 Método que posteriormente irá ser cada vez mais relevante para Sartre na medida em que ele permite realizar o
estudo da “manière dont l’enfant vit ses relations familiales à l’intérieur d’une société donnée” QM, p. 47.
80 EN, p.620. Sobre a relação entre psicanálise existencial e prática clínica, ver o artigo: Alt, F.; Barata, A.;
quem a seu ver lhe “esclareceu o que é o inconsciente” S.IX, p. 97. À dificuldade em relação a Freud, Sartre
atribui à cultura cartesiana francesa “imbu de rationalisme, que l’idée d’inconscient choquait profondément”
S.IX, p. 105. É curioso pensar ainda sobre o episódio que envolve a produção do filme de John Huston - Freud,
the secret passion -, cujo roteiro fora encarregado a Sartre. O projeto finalmente deu errado, pois, segundo
Sartre, “on ne choisit pas quelqu’un qui ne croit pas à l’inconscient pour faire un filme à la gloire de Freud”. VP,
p. 42; porém, Sartre diz em outro momento que foi Huston que não compreendeu o que é o inconsciente! Cf.
S.IX, p. 103.
83 BADIOU, A. L’aventure de la philosophie française : Depuis les années 1960. Paris: La fabrique, 2012, p. 21.
84 Cf. CABESTAN, P. L’inconscient est structuré comme un langage. Sartre et le primat lacanien du signifiant.
Les Temps Modernes. Sartre avec Freud. n. 674-5, p. 34-50, 2013, p. 36; Id. Qui suis-je?. Sartre et la question du
sujet. Paris: Hermann, 2015, p. 204; p. 234.
85 Cf. CABESTAN, P. Qui suis-je?, p. 204-205.
!284
invisibilidade que destacávamos acima, ou seja, para o fato de que a translucidez indica a
impossibilidade de tomar-se a si mesmo como objeto de conhecimento, o que corresponde a
um tipo de “não saber” - para usar o termo de Sartre - próprio da relação a si. A questão é que
este não saber não é pensado como sendo uma instância à parte da compreensão de si do
sujeito, isto é, Sartre acredita ser um problema Freud ter “scindé en deux la masse
psychique”86, dotando a consciência de um caráter passivo com relação ao inconsciente. Para
Sartre, tal separação substancializa o psíquico ao hipostasiar os termos que se encontram
separados, o que ele não pode admitir. Como vimos anteriormente a respeito da pré-reflexão,
Sartre busca realizar uma ousada síntese entre o “aparecer a si” próprio da consciência
husserliana com o saber implícito de si caraterístico do existencial compreensão em
Heidegger. Isto significa que, aos seus olhos, não é possível haver uma cisão efetiva, na
medida em que o para-si é projeto e, logo, assunção de todo o seu ser (característica ressaltada
no Esquisse, como vimos). Deste modo, se há autoengano do sujeito por si mesmo, as duas
funções - a do enganador e a do enganado - devem ser integradas no mesmo movimento
projetivo, o que em outras palavras pode-se dizer que o sujeito é ao mesmo tempo e sem
duplicidade efetiva aquele que engana e aquele que é enganado. Segue-se que a coexistência
destas duas posições no para-si é característica do fenômeno que Sartre denomina de má-fé
(mauvaise fois), por sua vez possibilitado pela sua própria estrutura “semi-dual” de “ser o que
não se é e não ser o que se é”. Em outros termos, sendo o para-si esta tensão entre “ser e não
ser”, ele encontra-se sempre diante da possibilidade de fazer-se de má-fé, isto é, de negar que
ele seja esta própria tensão.
Dito isto, é importante fazer uma distinção neste momento entre o não saber que é o
desconhecimento de si da invisibilidade pré-reflexiva e a má-fé, visto que não são sinônimos.
No caso da má-fé, a consciência se motiva a não saber, enquanto que, no primeiro caso, trata-
se de uma característica do modo ontológico da pré-reflexão, embora a presença a si, como
esboço de dualidade na unidade, seja condição de possibilidade para o para-si “sujeito”
realizar este esboço sob a forma de autoengano. Para explicar este fenômeno, Sartre se utiliza
da estrutura da mentira - alguém que sabe a verdade engana alguém que a desconhece - como
paradigma desta relação dual e unitária da relação a si: o para-si engana a si mesmo. Em
contraposição a algo que pudesse ludibriar a consciência “de fora”, a má-fé “ne vient pas du
86 EN, p. 85.
!285
dehors […]. On ne subit pas sa mauvaise foi , on n’en est pas infecté, c’est n’est pas un
état”87. Este fenômeno consiste portanto num fazer-se de má-fé, com o objetivo de “masquer
une vérité déplaisante ou de présenter comme une vérité une erreur plaisante”88. Podemos
dizer de outra maneira, e resumidamente, que a má-fé é uma fuga da angústia própria ao
modo de ser sempre em questão, em sursis, negação da identidade ou simplesmente,
liberdade. No entanto, o modo deste fazer-se da fuga de má-fé é bastante peculiar, dado que
ele não é da ordem da deliberação. Sartre o compara a um adormecimento:
Este é o verdadeiro problema da má-fé, o fato dela ser um tipo de fé, ou seja, de
crença. Não se trata de um ato reflexivo voluntário, mas de um querer pré-reflexivo que
decide sobre a natureza da fé, como uma “foi qui se veut mal convaincu”90. Fazer-se de má-fé
é assim um modo de estar no mundo, de desvelar um mundo da má-fé, assim como dormir
revela um “mundo” imaginário 91. Acontece que esta escolha pré-reflexiva é uma decisão que
“n’ose pas dire son nom, elle se croit et ne se croit pas de mauvaise foi. Et c’est elle qui, dès
le surgissement de la mauvaise foi, décide de toute l’attitude ultérieure et, en quelque sorte, de
la Weltanschauung* de la mauvaise foi”92. O projeto de má-fé decide (pré-reflexivamente,
pois vimos que ser para-si é equivalente a escolher-se) sobre a natureza insatisfatória das
verdades, a menor exigência nas evidências, não se colocar à prova, etc. Entretanto, sendo a
crença sempre consciência (de) crença, a consciência é sempre olhada, de modo que por mais
que ela se encontre cativa de sua própria armadilha - que é o caso na má-fé -, não há como
escapar do paradoxo de ser ao mesmo tempo aquela que se engana e aquela que é enganada e
ainda ser o testemunho do próprio autoengano. Se esse não fosse o caso, não haveria como
87 EN, p. 83.
88 Ibid.
89 EN, p. 103-104. (grifo nosso)
90 EN, p. 104.
91 “Mundo” num sentido metafórico e não de acordo com a ideia de mundo de L’Être et le Néant. Sobre a
realizar toda esta metamorfose a fim de mascarar o próprio modo de ser liberdade, pois só há
como fugir de algo na medida em que se se sabe de algum modo do que se deve fugir. Em
outros termos,
É neste ponto que as análises sartrianas sobre a má-fé convergem com a crítica ao
inconsciente freudiano, ou talvez encontrem aí a própria razão de sua formulação. Isto em
dois sentidos. Primeiro porque, ao pensar sobre a concepção de censura em Freud, Sartre
encontra argumentos para afirmar seu ponto sobre a dualidade na unidade própria ao
autoengano; em segundo lugar, pela razão de que ele acaba atribuindo a pressuposição mesma
da hipótese do inconsciente freudiano a uma conduta de má-fé, isto é, no sentido de que
conceber tal inconsciente pode servir aos fins de mascaramento da liberdade. Sendo assim, se
a versão sartriana de oposição ao “realismo do inconsciente” ou ao biologismo da psicanálise
não é assim tão original, pode-se dizer que o fato dele ter considerado o inconsciente
freudiano como possibilidade de justificativa de má-fé é realmente uma peculiaridade de sua
filosofia. Esta consiste na discussão propriamente sartriana das consequências morais e
políticas da hipótese do inconsciente freudiano, que é o fato de que tal hipótese pode servir
como fuga da responsabilidade da existência.
No conto L’Enfance d’un chef, Sartre já esboçava esta crítica em prosa. Neste, o
personagem Berliac, um jovem típico da Paris dos anos vinte, imbuído de psicanálise e
surrealismo, diz desejar sua mãe. Para além do traço excessivamente caricatural de tal
crítica94, é na construção do personagem principal, Lucien Fleurier, que identificamos o ponto
mais relevante: Lucien não suporta a contingência do existir e encontra na explicação
psicanalítica proposta por Berliac uma razão para o seu mal, um tipo de resolução de seu
“estar em questão”:
93 EN, p. 78-79.
94 Assim como na já famosa afirmação em Les Mots : “je n’ai pas de Sur-moi”. LM, p. 8.
!287
« C’est donc ça, se répétait Lucien, en marchant au hasard par les rues,
c’est donc ça! » […]. Cette impression étrange de ne pas exister, ce
vide qu’il y avait eu longtemps dans sa conscience, ses somnolences,
ses perplexités, ses efforts vains pour se connaître, qui ne
rencontraient jamais qu’un rideau de brouillard… « Parbleu, pensa-t-
il, j’ai un complexe » […]. Le véritable Lucien était profondément
enfoui dans l’inconscient; il fallait rêver à lui sans jamais le voir,
comme à un cher absent 95.
O romance deixa claro este aspecto da posição sartriana que consiste em enxergar na
psicanálise uma tendência que seria típica dos “ídolos explicativos”96 de nossa época. Estes
são precisamente as teorias que funcionam como apaziguadoras da angústia própria à
existência, que oferecem um meio de legitimar a existência, tornando-a de direito, com fins de
fuga do caráter contingente de fato. Em suma, Sartre não critica somente o biologismo ou
mecanicismo da psicanálise, mas ainda de que modo esta teoria pode ser utilizada para fins de
má-fé, ou seja, como maneira de legitimar a existência através de explicações deterministas
que desresponsabilizam o sujeito. “Être sujet, dit Sartre, c’est si fatigant et, sur le divan, tout
invite à remplacer l’angoissante responsabilité d’être un seul par la société anonyme des
pulsions”97. Porém, como mencionamos a respeito da contradição intrínseca à psicanálise
apontada por Sartre no Esquisse, o caso não é tão simples assim. Em L’Être et le Néant, Sartre
reconsidera posições de Freud na medida em que seja possível sair da “langage et [de] la
mythologie chosiste de la psychanalyse”98. Desta vez, o psicanalista existencial acredita
encontrar na própria concepção freudiana de censura razões que evidenciam a relação
compreensiva a si do pré-reflexivo, na medida em que “la censure, pour appliquer son activité
avec discernement, doit connaître ce qu’elle refoule. Si nous renonçons en effet à toutes les
métaphores représentant le refoulement comme un choc de forces aveugles, force est bien
d’admettre que la censure doit choisir et, pour choisir, se représenter”99 . Sartre pretende
então, através da análise da censura, mostrar que o fenômeno da má-fé não presume mais uma
cisão entre aquele que engana e aquele que é enganado - “un mensonge sans menteur”100 -
mas um autoengano do sujeito por ele mesmo, com a finalidade de fuga da existência
contingente.
95 ŒR, p. 339.
96 “hérédité, éducation, milieu, constitution physiologique” EN, p. 604.
97 S.IX, p. 334.
98 EN, p. 87.
99 Ibid.
100 EN, p. 86.
!288
101Para De Coorebyter, não se pode nem mesmo assimilar translucidez e opacidade a um dualismo do tipo
espírito e matéria: “Sartre ne tient pas l’opaque pour une catégorie sui generis de l’objet matériel, mais pour le
mode d’être du phénomène en général”. DE COOREBYTER, V. Sartre face à la phénoménologie, p. 262.
!289
É a liberdade sartriana de fato sem sombras? Se não, no que consistiria sua face
sombria? A esta altura de nossas argumentações, já sabemos que nenhum objeto, nenhuma
opacidade (neste último sentido), pode pertencer à região ontológica translúcida denominada
para-si. Mas isto não significa que esta mesma região não seja assombrada por suas faces
objetivas. O assombramento, ao se caracterizar justamente por esta ligação entre os planos
subjetivo e objetivo do para-si, faz com que toda translucidez seja atravessada, e por isso
mesmo perturbada, pelos espectros. Estes, por sua vez, se caracterizam pelo modo de
presença, de “habitação”, do polo objetivo no subjetivo, de maneira a contestar esta divisão
mesma. Por isso, trata-se de um plano de sombras, pois não pode haver densidade material a
ponto de substancializar o plano translúcido - sentido sartriano de opacidade - mas há de
algum modo zonas de sombreamento que perturbam a translucidez já fantasmática do para-si.
Em Mallarmé, como citamos, Sartre fala da face sombria como “finitude
interiorizada”102. Já em La liberté cartésienne, a finitude é comparada ao poder de negação, e
é ainda pelo nada que Sartre escapa ao Deus de Descartes: “par ma finitude et mes limites, par
ma face d’ombre, je me détourne de lui” 103. Finitude interiorizada e facticidade atestam o
engajamento do para-si no mundo e fazem da face sombria uma dimensão que assombra
constantemente o para-si, atravessando sua translucidez. Em Sartre, a transparência da
consciência não corresponde, portanto, a uma subjetividade pura, “sem sombras”, visto que a
consciência não é mais nua e é agora encarnada. O para-si adquire assim uma espessura em
seu modo de ser que inclui a translucidez e sua face sombria.
Por esta razão, pode-se falar em graus de clareza e opacidade na realidade do para-si, o
que possibilita o trabalho da psicanálise existencial. Desde o Esquisse, Sartre admite que dizer
que para a consciência ser e aparecer se equivalem, não é o mesmo que dizer que suas
significações são explícitas, pois “il y a bien de degrés possibles de condensation et de
clarté”104. Em um momento mais tardio do seu pensamento, como vimos, a obscuridade que
habita o para-si é manifestamente tematizada a partir da noção de vivência (vécu), a qual de
102 Descrição que lembra aquela de Sartre a respeito Kierkegaard: “Kierkegaard nous ensine que le Moi, l’acte et
l’œuvre, avec leur face d’ombre et leur face de lumière, sont parfaitement irréductible à l’une ou à l’autre […] la
face d’ombre est déjà lumière parce qu’elle est le moment de l’intériorisation des hasards extérieurs” S.IX, p.
181.
103 S.I, p. 300. Assim, Sartre abre as portas do cogito ao gênio maligno: “si je me considère comme participant en
quelque façon du néant ou du non-être, c’est-à-dire en tant que je ne suis pas moi-même le souverain être, je me
trouve exposé à une infinité de manquements, de façon que je ne me dois pas étonner si je me trompe” S.I, p.
135-136.
104 ETE, p. 36.
!290
alguma forma substitui a de consciência. Com o emprego desta noção, Sartre sai de uma
postura de “rejeição do inconsciente”, a fim de mostrar como ele mesmo pensa o que seria um
modo “conscient-inconscient”105, termo que anteriormente atestaria a seus olhos uma
contradição absurda. Ele descreve então a vivência como “un ensemble dont la surface est
tout à fait consciente et, sans être de l’inconscient, vous est caché” 106; o que torna possível
mostrar, por exemplo, “comment Flaubert ne se connaît pas lui-même et comment en même
temps il se comprend admirablement”107 . Esta ideia encontra-se portanto em continuidade
com aquela de dez anos antes (1961), momento em que Sartre diz que “il est nécessaire qu’il
y ait une espèce d’épaisseur obscure qui est la façon dont on se comprend soi-même”108, que é
a do não saber do desconhecimento de si que comentamos acima. Tudo indicaria assim um
possível abandono progressivo da ideia de transparência da consciência dado que esta não
admite zonas de obscuridade. No entanto, é curioso notar que, ainda em 1966, embora de
forma mais discreta, Sartre diz que “la subjectivité apparaît comme l’unité d’une entreprise
qui renvoie à elle-même, qui est dans une certaine mesure translucide à elle-même, et qui se
définit à travers sa praxis”109, isto é, sem abrir mão por completo da ideia de translucidez.
Além disso, outro ponto mostra certa continuidade sobre o tema, quando Sartre, ao falar da
vivência como “la vie en compréhension avec soi-même, sans que soit indiquée une
connaissance, une conscience thétique” 110, nos faz pensar na distinção entre consciência e
conhecimento já dada em L’Être et le Néant, conforme comentário de Cabestan que
mencionamos anteriormente.
Tais observações nos levam a tomar então em conjunto, e não em relação de exclusão
entre os termos, a translucidez e sua face sombria. As conclusões destas análises nos mostram
ainda, em oposição ao sentido de “domínio de si” normalmente atribuído a uma consciência
transparente, três níveis de desconhecimento de si: a invisibilidade pré-reflexiva translúcida, o
plano das sombras que assombram esta mesma dimensão e a invisibilidade que é desvelada
pela angústia do fazer-se reflexivo purificante. Quando Sartre fala das intuições fulgurantes,
dos clarões de Flaubert, por exemplo, ele nos diz em seguida que este se encontra “na
O mundo assombrado:
o campo fenomenal do “há” como campo prático.
*
!293
Or ce mode doit bel et bien montrer cet étant en ce qu’il est de prime abord et
le plus souvent, dans sa quotidienneté moyenne. Et sur la base de celle-ci, ce
ne sont pas des structures arbitraires et fortuites qui doivent être dégagées,
mais des structures essentielles, qui se maintiennent, à titre de déterminations
de son être, dans tout mode d’être du Dasein factice. C’est donc dans la
perspective de la constitution fondamentale de la quotidienneté du Dasein
colocar em questão a própria “coisidade” da coisa, visto que a concepção de algo como
“coisa” já se encontra dotada de preconceitos que obscurecem o seu desvelamento. No intuito
de interrogar o ser do ente da coisa, Heidegger resgata o significado grego da coisa enquanto
pragmata. Esta se refere àquilo que se faz uso na ocupação, embora, ao seu ver, os gregos não
desvelaram justamente o caráter pragmático das coisas, determinando-as por fim numa
concepção metafísica que se tornou dominante desde então, que é aquela das coisas como
presença, dotadas de substância e propriedades. Se é a partir da lida prática que as coisas se
revelam como pragmata, isto significa que é pelo Dasein, em seu caráter prático da ocupação,
no qual ele se encontra de início e na maioria das vezes, que os entes se desvelam como tal.
A primazia da ocupação como modo de ser cotidiano do Dasein e sua relação com a
praxis grega foram aspectos explorados por Franco Volpi em seu artigo Dasein as praxis:
Heidegger and Aristotle6, em que o autor busca mostrar que Heidegger faz o movimento de
tornar os conceitos aristotélicos, principalmente da Ética a Nicômaco, em conceitos
ontológicos, dentre estes o de práxis, além de theoria e poiésis. Segundo Volpi, na verdade
Heidegger identifica em Aristóteles um duplo emprego do conceito: uma concepção ôntica,
indicando praxis particulares, e uma concepção ontológica onde praxis designa uma
modalidade de ser. Mas como em Aristoteles o termo praxis é compreendido a partir daquilo
que será considerado por Heidegger como uma concepção metafísica - do homem como
animal rationale e das coisas como presença substancial -, torna-se necessária uma visão
purificada dos preconceitos metafísicos a fim de compreender a práxis como determinação
ontológica. Assim, para Volpi, Heidegger não só retoma os conceitos aristotélicos, mas “in
taking them up, he profoundly modifies the structure, the character and the connection of
these determinations”7. Isto feito, a partir do Dasein enquanto práxis a coisa se revela como
pragmata, o que no contexto de Être et Temps se traduz pelo conceito de utensílio (outil/
Zeug)8. O utensílio é justamente o ente que faz encontro ao Dasein na ocupação cotidiana, no
seu uso prático, como aquilo que é utilizado para a realização de tarefas. Isto significa que o
utensílio em si não existe, pois seu ser consiste num “para…”, desde sempre no interior de um
6 VOLPI, F. Dasein as praxis: Heidegger and Aristotle. In: MACANN, C. Martin Heidegger: Critical
assessments. New York: Routledge, 1992.
7 Ibid., p. 104.
8 Para o termo “Zeug” não utilizaremos a tradução “instrumento” em português feita por M. Cavalcante.
Traduziremos por utensílio pela única razão desta estar mais próxima ao uso do termo “ustensile” por Sartre.
Martineau traduz Zeug por “outil” e Werkzeug por “ustensile”, e também M. Cavalcante traduz este último termo
por “utensílio”.
!296
complexo de utensílios, a partir do qual ele pode aparecer como tal. Nas palavras de
Heidegger:
Esta diferença não dualista, entre uma práxis da ocupação e a interrupção do modo
pré-teórico, é o ponto que nos interessa neste momento, no que se refere ao problema do
conhecimento. Por esta razão, nos concentraremos no §13, no qual Heidegger evidencia o
caráter derivado do conhecimento relativamente ao modo cotidiano de ser-no-mundo do
Dasein. Neste parágrafo, com efeito, dois pontos importantes são elucidados: 1) o caráter
derivado do conhecimento como comportamento que faz cessar a praxis da ocupação 2) o
problema do conhecimento em sua concepção clássica, que consiste na relação entre um
sujeito e um objeto. Na verdade, este último ponto é problemático já que, se para Heidegger
“sujet et objet […] ne coïncident point avec Dasein et monde”12 , o problema de saber como
um sujeito pode sair de sua “esfera interior” para conhecer o objeto “fora dele”, resulta, como
diria Bergson, num “falso problema”. No sentido de que, nas palavras de Deleuze, “le
problème a toujours la solution qu’il mérite en fonction de la manière dont on le pose, des
conditions sous lesquelles on le détermine en tant que problème, des moyens et des termes
dont on dispose pour le poser” 13. Em outras palavras, empenhar-se na busca de uma solução
para o problema do conhecimento de um objeto por um sujeito, na medida em que este
problema pressupõe a existência de duas instâncias separadas e preexistentes, consiste num
falso problema dado que ele é formulado a partir de premissas inquestionadas, como afirma
ainda Deleuze: “La notion même de faux problème implique en effet que nous n’avons pas à
lutter contre de simples erreurs (fausses solutions), mais contre quelque chose de plus profond
: illusion qui nous entraîne, ou dans lesquelles nous baignons, inséparable de notre condition.
Mirage, comme dit Bergson”14. Neste sentido, Heidegger considera ainda insuficiente a crítica
da fenomenologia de Husserl, via conceito de consciência intencional, a uma concepção de
consciência entendida como uma espécie de caixa e reservatório; pois se é possível ainda na
filosofia husserliana falar de uma esfera de imanência de um sujeito transcendental, as
questões permanecem:
En fait, de quelque manière que cette sphère intérieure soit interprétée, dès
l’instant qu’est posée la question de savoir comment le connaître peut réussir
à en « sortir » et à conquérir une « transcendance », il apparaît avec éclat que
l’on ne peut que trouver le connaître problématique tant que l’on n’a point
d’abord clarifié la modalité et l’essence de ce connaître si riche en énigmes.
En adoptant un tel point de départ, on demeure aveugle à ce que la
por sua vez, ocorre quando o ente se apresenta não mais a partir do uso manual, mas como um
ser simplesmente dado, isto é, como uma coisa presente diante do sujeito, cujo caráter de
derivado, desde Aristóteles, foi obscurecido pela tese de “realidade”. Em outros termos, a
coisa que desde então se apresentava como substância presente e cujo modo de ser se tornou
paradigma de realidade ao longo da história da metafísica, é desvelada por Heidegger em seu
aparecer para o comportamento teórico do Dasein como tal, sendo que neste surgimento
mesmo vela-se o modo mais originário de aparição da coisa que se dá na ocupação cotidiana.
Além disso, o problema do conhecimento não consiste mais na questão de como o sujeito
pode “sair de si” a fim de conhecer o objeto “lá fora”, dado que tudo está “fora”, o uso ou o
conhecimento da coisa ocorrem ambos no comportamento no-mundo do Dasein; a mudança
não é tampouco de “ponto de vista”, mas é uma mudança de situação, do modo de ser-no-
mundo do Dasein.
phénoménologie française sera une phénoménologie du sujet ou elle ne sera pas”-, ainda para
encontrar nesta obra as linhas fundamentais do esboço de uma teoria do sujeito17. Movimento
paradoxal em razão de que a obra de Heidegger realiza um questionamento radical da
subjetividade e suas propriedades. O que se caracteriza por aquilo que Badiou chama de
“operação alemã” da filosofia francesa contemporânea, que diz respeito ao uso de “armas”
provenientes da filosofia alemã no campo de batalhas francês, muitas vezes para fins
estranhos a esta última18.
De todo modo, as questões de Être et Temps se revelam neste sentido incontornáveis.
No que nos concerne neste momento, mesmo que a fenomenologia (pelo menos anterior aos
anos 60) tente ainda se inscrever num debate que de algum modo conserva uma tentativa de
pensar o sujeito, isso se dá por via de um reposicionamento de todas as questões, tendo em
vista não mais o privilégio do conhecimento do tipo sujeito-objeto, mas, ao contrário, um
primado da existência sob o sujeito do conhecimento. Disto decorre que o caráter ocupacional
faz com que seja necessário questionar aquilo que se compreende como subjetivo ou objetivo,
já que o sujeito não pode mais ser pensado como esfera monádica fechada em si e a coisa em
seu aparecer não pode mais ser pensada como objeto de conhecimento, a não ser a partir de
atitudes secundárias e derivadas do modo de ser mais fundamental de ser-no-mundo.
Estas considerações são relevantes se quisermos compreender o que está em jogo na
concepção sartriana de ser-no-mundo e sue posicionamento com relação ao problema do
conhecimento. Em primeiro lugar, Sartre se insere de algum modo na herança heideggeriana
de crítica à primazia do conhecimento compreendido como relação entre um sujeito que
posiciona um objeto para fins de contemplação teórica, embora ainda pela via da consciência
(já mencionamos o quanto essa “herança” não é uma filiação). A reflexão, por exemplo, é uma
atitude de recuo do sujeito em relação a si com o objetivo de tomar-se como objeto. Esta
atitude é possibilitada e, portanto, derivada, da pré-reflexividade. Do mesmo modo, a
irreflexão é pré-reflexiva e consiste numa relação imediata de negação interna do para-si com
o em-si que ele não é. O problema é que Sartre denomina, no capítulo “A transcendência”,
esta relação originária de conhecimento, sem fazer a distinção entre os dois sentidos do termo.
Iremos explicitar em seguida o que Sartre entende por conhecimento neste segundo sentido,
mas por ora devemos deixar claro que o conhecimento como “modo de relação originário
entre o para-si e o em-si” não é um modo epistemológico do conhecimento. Isto porque, assim
como Heidegger, Sartre busca mostrar que é pela lida prática do para-si que as coisas se
revelam - anteriormente a qualquer olhar de teorização sobre elas - como utensílio: “La chose
n’est point d’abord chose pour être ensuite ustensile ; elle n’est point d’abord ustensile pour
se dévoiler ensuite comme chose: elle est chose-ustensile”19. E é somente para o olhar teórico
que ela aparece como coisa objetivada: “Il est vrai, toutefois, qu’elle [la chose] se découvrira
à la quête ultérieure du savant comme purement chose, c’est-à-dire dépouillée de toute
ustensilité”20. Como veremos em seguida, Sartre concebe, neste momento do texto, o
conhecimento em termos de intuição, mas sua preocupação é a de pensar uma intuição não
contemplativa e constituinte como a de Husserl21, mas como processo de temporalização ek-
stática do para-si, estabelecendo deste modo uma indissociabilidade entre conhecimento
intuitivo e ação: “Toute action est connaissance (encore qu’il s’agisse dans la plupart des cas
d’un dévoilement non intellectuel) et toute connaissance, même intellectuelle, est action” 22.
Sendo assim, a relação originária do para-si com o em-si em termos de conhecimento não é
aquela de um sujeito que posiciona um objeto teórico, mas é aquela de um sujeito que é ação
para a qual a coisa se desvela como pragmata. A ação torna possível pensar a intencionalidade
num sentido alargado, como mostra Ricœur, na medida em que aquilo que é o “objeto” do
agir não é o movimento da ação, mas “c’est la transformation même de mon environnement,
c’est le factum réciproque du facere, le « fait » comme parfait passif, le « étant fait par moi »,
le pragma”23. Tal afirmação é válida para o para-si, dado que o projeto temporalizador que o
caracteriza faz com que sua “intencionalidade prática” desvele um mundo como campo
prático:
19 EN, p. 236.
20 Ibid.
21 Como se pode observar nestas notas de Vérité et existence: “Et si la connaissance se fonde sur le contact
immédiat ou intuition, qu’est-ce donc qu’une intuition qui n’est pas contemplative (passive) sans être l’intuition
constitutive de Husserl?”. VE, p. 20 ; “l’intuition n’est pas instantanée : toute intuition se temporalise” Ibid., p.
63.
22 VE, p. 39.
23 RICŒUR, P. Philosophie de la volonté I, p. 264.
24 EN, p. 361.
!301
Utilizando-se ainda da Gestalttheorie para pensar tal campo prático, Sartre mostra que
toda aparição de algo para um sujeito será a aparição de uma forma sob um fundo, o que é
estrutural do desvelamento prático do mundo. Ao pensar o para-si como ser-no-mundo,
através da primazia da ação pré-reflexiva, mas ainda em termos de consciência e coisa, Sartre
se inscreve na herança heideggeriana paradoxal da fenomenologia francesa de ainda se pensar
uma filosofia do sujeito, de acordo com o que comentamos acima. Entretanto, não se trata
mais de um sujeito do conhecimento, protagonista de postura teórica, mas sim de um sujeito
que não sobrevoa o mundo (contrariamente às críticas de Merleau-Ponty), um sujeito
engajado. A ação é projeto temporalizador, que é a forma originária daquilo que Sartre
denomina de “presença ao mundo”. A ideia de presença, por sua vez, deve ser compreendida
em sua dimensão de assombramento, ou seja, não um como um sujeito estático presente a um
objeto também presente, mas como um sujeito “ek-stático” que faz com que tanto o sujeito
quanto a coisa apareçam como “presentes” através das demais estruturas de temporalização.
Neste momento de nosso trabalho, iremos, portanto, demonstrar como o capítulo “A
transcendência” de L’Être et le Néant - descrito por Sartre como um “rapide esquisse du
concepção sartriana do mundo como campo fenomenal prático. Ao nos situarmos no plano da
hantologie, iremos considerar as análises sartrianas de modo a ressaltar que o mundo deve ser
compreendido através das relações de assombramento e de seus modos espectrais. Assim,
trata-se de um mundo assombrado, que é o mundo do há (il y a), dotado de uma ambiguidade
fundamental. Esta consiste no fato de que, , ao mesmo tempo que somente pelo projeto
temporalizador do para-si“há” um mundo, este campo possui suas estruturas próprias de
desvelamento que não são “subjetivas” e não pertencem ao para-si, mas ao próprio mundo.
25 EN, p. 253.
!302
[u]n étant quelconque ne peut être pensé comme tel que par référence
à ses modes de donnée subjectifs, à savoir du point de vue de sa
corrélation avec un sujet, ce qui signifie que l’apparaître est une
dimension constitutive de l’être. De même, l’être du sujet et donc de
l’homme, en lequel cette subjectivité advient, ne peut être pensé
comme indépendamment de son rapport à un étant apparaissant, ce qui
revient à dire que la conscience est par essence portée sur le monde,
qu’elle est de part en part rapport à lui26.
pura positividade -, mas como região ontológica própria a certos modos de ser espectrais nos
quais convergem ser e nada. Por esta razão, não podemos denominar este modo de ser
propriamente de em-si, mas trata-se de um em-si fantasma, de um modo espectral.
Com o objetivo de apresentar sua concepção da transcendência, Sartre inicia suas
análises descrevendo, como comentamos, um tipo de ser que ele denomina de conhecimento
(connaissance). Este gesto está na origem do mal-entendido que se tornou a base da crítica de
Merleau-Ponty, dado que, como dissemos anteriormente, é neste capítulo que o autor de Le
Visible et l’Invisible se baseia para afirmar sua oposição à filosofia da negatividade em Sartre.
O que ocorre é que Merleau-Ponty toma o tipo de ser que Sartre chama de conhecimento
como paradigma do sujeito em L’Être et le Néant e assim generaliza para toda a obra os
resultados que derivam desta descrição localizada. Por esta razão, é importante atentarmos
para a especificidade deste tipo de ser em relação ao modo de ser do para-si, a fim de
delimitarmos o problema de tal reducionismo e simultaneamente compreendermos, ao logo de
nosso trabalho, a pertinência de uma “épaisseur existentielle du pour-soi”27.
O conhecimento é sinônimo em Sartre de presença ao mundo. A nosso ver, o texto
sartriano mostra que a ideia de “presença” deve ser pensada em termos espectrais: a “presença
a si” como díade fantasma, a presença ao ser como assombramento e, como ficará claro mais
adiante, a presença ao outro como assombramento de ser visto. Se ser-no-mundo é “assombrar
o mundo”, isto se dá pela presença que é o movimento temporalizador ek-stático do para-si
que vimos surgir de uma dupla negação. Logo, a facticidade é parte integrante do
desvelamento do mundo, dado que ela é uma estrutura imediata do para-si. Porém, se nos
ativermos ao âmbito puro da presença, poderemos compreender isoladamente a especificidade
deste “tipo de ser” ou “modo de ser” que é o conhecimento, descrito por Sartre como “un
néant qui ne se distingue de la chose que par une pure négation”28 . Trata-se assim de uma
breve abstração provisória da presença das outras ek-stases, com o objetivo de compreender o
modo de ser do conhecimento; breve abstração que se restringe às primeiras páginas do
capítulo, nas quais Sartre se refere ao para-si como “conhecedor” e não como “para-si”,
indicando deste modo a sutileza da diferença entre os dois termos29. O modo de ser do
negação seja qualificada. Por esta razão, dissemos que a abstração é provisória.
!304
Le connaître n’est ni un rapport établi après coup entre deux êtres, ni une
activité de l’un de ces deux êtres, ni une qualité ou propriété ou vertu. C’est
l’être même du pour-soi en tant qu’il est présence à…, c’est-à-dire en tant
qu’il a à être son être en se faisant ne pas être un certain être à qui il est
présent32.
30 “dans sa négation interne le pour-soi affirme ce qui ne peut s’affirmer, connaît l’être tel qu’il est alors que le «
tel qu’il est » ne saurait appartenir à l’être. En ce sens, à la fois le pour-soi est présence immédiate à l’être et, à la
fois, il se glisse comme une distance infinie entre lui-même et l’être”. EN, p. 254.
31 EN, p. 210
32 EN, p. 210. (grifo nosso)
!305
33 Evidentemente, nos apropriamos do termo de Claudel para nossos fins, ou seja, para demonstrar o caráter
originário do que Sartre denomina de conhecimento na medida em que este próprio termo dificulta esta
compreensão por razões que já mencionamos acima. É neste sentido que observamos uma força expressiva no
jogo que Claudel faz com a palavra connaissance, o que nos permite ligá-lo a este caráter “originário”. Para isso,
devemos ter em vista que Sartre não pensa em termos de “nascimento”, mas sim de um surgimento que é sempre
uma nadificação de ser e nunca uma criação “do nada”. Dito isto, vale transcrever a bela frase de Claudel: “Nous
ne naissons pas seuls. Naître, pour tout, c’est co-naître. Toute naissance est une connaissance”. CLAUDEL, P.
Art Poétique. Paris : Gallimard, 2002.
34 S.I, p. 30.
!306
definido apenas como a relação do para-si com o em-si que ele não é, de modo a não abordar
temporariamente o fato de que a facticidade do para-si encontra-se implicada nesta negação
mesma. Sartre descreve apenas este “não ser a coisa” pela via da estrutura de refletidade da
díade reflexo-refletidor: o para-si em seu caráter de refrator daquilo que ele não é de maneira
que “cela signifie que le pour-soi ne peut être que sur le mode d’un reflet se faisant refléter
comme n’étant pas un certain être”35. Neste tipo de ser que Sartre descreve como
conhecimento,
35 EN, p. 210.
36 EN, p. 213. (grifo nosso)
!307
reduzido a uma simples projeção das estruturas do para-si e nem pode ser pensado como
apartado destas mesmas estruturas37. Em suma, uma vez que “le surgissement du pour-soi fait
se dévoiler la chose avec la totalité de ses structures” 38, segue-se que “le monde m’apparaît
comme objectivement articulé ; il ne renvoie jamais à une subjectivité créatrice mais à l’infini
de complexes ustensiles”39. É neste sentido que podemos compreender o caráter espectral
revelado pelo conhecimento, o qual é por sua vez definido como um modo “intermédiaire
entre l’être et le non-être, [que] me renvoie à l’être absolu si je la veux subjective et me
renvoie à moi-même quand je crois saisir l’absolu”40.
A ambiguidade fundamental do mundo como o há deu origem a mal-entendidos. Isto
se manifesta, principalmente, numa leitura subjetivista ou solipsista do campo transcendente
descrito por Sartre. Talvez haja uma dificuldade dele próprio em explicitar a ambiguidade da
espectralidade: pois em que sentido ele pode dizer ao mesmo tempo que o mundo é “meu” e
que ele “nous renvoie exactement, par son articulation même, l’image de ce que nous
sommes”41 e que, desde que o mundo aparece, ele possui regras de aparição que “ne doivent
pas être considérées comme subjectives et psychologiques : elles sont rigoureusement
objectives et découlent de la nature des choses”42? A nosso ver, Sartre diz que o mundo é
“meu” em dois sentidos: em primeiro lugar, dado que é pelo surgimento do para-si que se abre
um mundo e como o para-si é projeto temporalizador, as estruturas de desvelamento do
mundo, embora sejam “objetivas”, se dão como correlativas às estruturas ek-státicas do para-
si. Em segundo lugar, visto que como o para-si é separado de si pelo circuito de ipseidade -
para-si presente em relação ao para-si possível -, a aparição do mundo se dá como sua
“imagem” na medida em que seus possíveis são sempre singulares, e daí o risco da
interpretação solipsista (o mundo seria reduzido a um espelho de Narciso). Neste último
sentido, Sartre procura mostrar que o mundo aparece orientado em utensílios ao para-si a
partir de suas possibilidades, que é o sentido da afirmação de que o para-si encontra-se
“engagé dans son image” 43, mas esta afirmação é imprecisa. Isto porque a imaginação, como
37 Nos Carnets, Sartre usa o recurso do “nem…, nem…” para se referir ao mundo: “Le monde n’est ni subjectif
ni objectif : il est l’en-soi investissant la conscience et en contact avec elle, tel qu’elle le dépasse dans son
néant”. CDG, p. 465.
38 EN, p. 234.
39 EN, p. 362.
40 EN, p. 255. (grifo nosso)
41 EN, p. 507.
42 EN, p. 356.
43 EN, p. 332.
!308
veremos, deve ser considerada ou como o contrário da percepção - que realiza o mundo,
enquanto a primeira o irrealiza -, ou como intrínseca ao real e nunca como imaginação
“pura”, como veremos no próximo capítulo. Além disso, tal afirmação “subjetiviza”
demasiadamente o campo fenomenal, na contramão do esforço de apresentação das estruturas
objetivas do desvelamento do mundo, com a consequente supressão da ambiguidade. No
entanto, o aspecto ressaltado por Sartre neste tipo de afirmação é o de que a apreensão ek-
stática do em-si implica uma projeção pré-temática das possibilidades do para-si que compõe
o sentido do campo fenomenal de modo a estabelecer, com efeito, uma relação de
dependência entre mundo e ipseidade, na medida em que Sartre postula que “sans monde pas
d’ipséité, pas de personne; sans l’ipséité, sans la personne, pas de monde”44. Em outras
palavras, como o para-si é projeto de ser causa sui, o mundo aparece com suas estruturas
objetivas próprias, mas sempre assombrado pelo projeto fundamental de um para-si que busca
completude.
Tendo em vista tais observações, podemos distinguir dois níveis do assombramento: 1)
a negatividade que abre um mundo faz com que o próprio mundo se desvele como ser e nada,
e não como “pura positividade”, embora o nada mundano seja correlativo da negação original
do para-si; 2) a singularidade de um projeto fundamental acrescenta uma camada justamente
singular na “imagem” pela qual o mundo aparece ao para-si, pois neste os entes se desvelam
como sendo ora obstáculos ora facilitadores no caminho do projeto individual do sujeito que
busca ser Si. A relação de assombramento não é assim uma relação de um sujeito diante de
um mundo objetivo, mas é a presença ao mundo do para-si, modo pré-reflexivo de
assombramento que faz o mundo ser “meu”: “Il serait absurde de dire que le monde en tant
qu’il est connu, est connu comme mien. Et pourtant cette « moiïté » du monde est une
structure fugitive et toujours présente que je vis. Le monde (est) mien parce qu’il est hanté
par des possibles dont sont consciences les consciences possibles (de) soi que je suis et ce
sont ces possibles en tant que tels qui lui donnent son unité et son sens de monde”45. Se o
mundo é o há o ser, que por sua vez caracteriza o que Sartre entende por “realidade”, é neste
sentido que podemos entrever o uso sartriano da tradução de Henri Corbin, “realidade-
humana”. O há é propriamente o mundo humano, no sentido de que aquilo que existe aparece
relativamente a um sujeito que se projeta para além do mundo. Ciente do que pode significar
44 EN, p. 141.
45 Ibid. (grifo nosso)
!309
Donc les choses sont humaines, nous n’y pouvons rien. Elles
annoncent l’homme à l’homme. Mais il ne faut pas entendre par là que
leur sens humain s’est déposé sur elles par couches successives, au fil
de générations, au fil de la vie individuelle. Il suffit d’exister, de se
jeter dans le monde une fois, par une trouée de néant, et de jeter à
l’horizon de l’existant notre réalité-humaine comme un idéal à fonder,
pour que chaque chose nous renvoie, nous annonce cette réalité-
humaine, mais en la réfractant avec son indice propre 47.
46 VE, p. 83.
47 CDG, p. 432-433.
48 BEAUVOIR, S. de. Pour une morale de l’ambiguïté, p. 90.
!310
de monde révélé par les autres hommes” [e que] aucun projet ne se définit que pas son
interférence avec d’autres projets”49. Por esta razão, abordaremos em seguida as estruturas de
desvelamento do mundo de modo a levar em conta não somente o papel do passado e do
outro, mas também do corpo no movimento temporal de desvelamento do mundo.
49 Ibid.
!311
apreendido como totalidade, como todo o ser que é fundo para o “isto” específico que aparece
ao para-si como a coisa que ele não é. O para-si desvela o ser como totalidade que é o mundo
de maneira que ele só apreende seu caráter de “totalidade destotalizada” no mundo, como algo
que se mostra “fora” de si. A realidade-humana é totalidade-destotalizada na medida em que
ela escapa a negação concreta atual de um ente específico por outras negações que o
ultrapassam em direção ao “fundo total”. Assim, o mundo aparece como totalidade - fundo - a
partir de uma negação concreta do em-si transcendente que, por sua vez, aparece como forma
em relação ao fundo e que consiste juntamente no isto. Voltaremos a este ponto em seguida,
pois nos resta apresentar a última característica do projeto temporalizador do para-si como
presença ao mundo que é a abstração. Sartre adverte que não devemos compreender este
termo no sentido de que abstrair significaria separar aquilo que se encontra unido, mas a
abstração neste contexto está relacionada ao sentido futuro de um isto concreto. Sendo o para-
si um projeto temporalizador, seu movimento no mundo faz com que o ser se revele a partir
de estruturas que são “para-além-do-ser” (par-delà-l’être). A dimensão “para-além-do-ser” é
constitutiva da aparição do isto, no sentido de que um ente sempre aparece como tendo uma
dimensão futura implicada em seu aparecer. Dimensão que é da ordem de uma negação que
não é originária - que “vem ao mundo” pelo para-si -, mas de uma negação “figée en en-soi”,
algo como um nada intramundano. Como o próprio para-si-desvelador assombra o mundo
com suas estruturas temporais, consequentemente o desvelamento do mundo se dá como
desvelamento de um mundo que tem um passado e um futuro próprios. Porém, as dimensões
de passado e de futuro do mundo não são equivalentes à temporalidade do para-si, que é ek-
stática; enquanto que a temporalidade mundana adquire uma substancialização própria da
temporalidade instantaneísta. Voltaremos a este ponto. A abstração é assim a dimensão das
estruturas de desvelamento de um “para-além” do concreto, o que significa que ela consiste
em tudo aquilo que dá ao concreto uma dimensão de porvir. Esta dimensão de porvir,
caracteriza, por sua vez, o modo de ser da aparição, dado que ela é justamente a essência da
aparição: “L’existant ne possède pas son essence comme une qualité présente. Il est même
négation de l’essence : le vert n’est jamais vert. Mais l’essence vient du fond de l’avenir à
l’existent, comme un sens qui n’est jamais donné et qui le hante toujours” 53. A essência do
existente é uma negação correlativa da relação do para-si com seus possíveis, mas ideal, pois
Por outro lado, enquanto a dimensão futura ek-stática encontra seu correlativo na
dimensão para-além-do-ser do mundo, a ek-stase passado atua no desvelamento do isto
através do saber (savoir). Estas duas características concentram a dupla dimensão de
assombramento na aparição do isto presente: o assombramento pelas ausências da dimensão
para-além-do-ser futura e o assombramento “por detrás”, que faz com que cada negação seja
negação qualificada. Por via deste segundo aspecto, Sartre afirma que não há “négation sans
racines”58, pelo contrário, dizer que a negação é qualificada é dizer que ela “traîne sa
qualification derrière elle comme l’être qu’elle a à ne pas être sous la forme du « étais ». La
54 EN, p. 230.
55 Este ideal de completude que aparece como um irrealizável no mundo é caracterizado por Sartre como sendo o
“belo” (beau). A relação deste ideal com o mundo é a de assombramento: “le beau n’est pas plus une potentialité
des choses que l’en-soi-pour-soi n’est une possibilité propre du pour-soi. Il hante le monde comme un
irréalisable”. EN, p. 231.
56 EN, p. 225.
57 EN, p. 235. (grifo nosso)
58 EN, p. 238.
!314
59 EN, p. 238.
60 EN, p. 231.
61 Ibid.
62 I’re, p. 29.
63 I’re, p. 201.
64 I’re, p. 200.
65 Ainda não tendo o recurso conceitual da temporalidade ek-stática, Sartre pensa o saber em L’Imaginaire numa
savoir”67 de modo que todo desvelamento implica em sua estrutura o saber enquanto ek-stase
que permite o desvelar do isto como presente, dotado de potencialidades e qualidades.
Tendo em vista que Sartre aponta o saber como característica estrutural do modo de
aparição da coisa, podemos dizer que ele não comete o erro nestas análises de abstrair
completamente a facticidade do para-si, apesar de deixar de lado um de seus aspectos mais
fundamentais: a posição corporal do para-si no mundo. No entanto este aspecto é
extremamente relevante, pois ele situa a aparição que deve se dar sob o modo da orientação, a
partir de um ponto de vista que é “assimilable à la facticité, est qualification ek-statique de la
négation comme rapport originel à l’en-soi” 68. Na verdade, Sartre apenas comenta, e não
desenvolve neste capítulo, que o para-si é sempre um ponto de vista, pelo fato de ser corpo-
no-mundo. Posteriormente, no capítulo em que Sartre descreve o corpo-para-si - versão
sartriana do corpo próprio (Leib) -, ele deixa bem claro que o corpo, dimensão fática do para-
si, é estruturante da percepção: “La perception, en effet, ne peut se faire qu’à la place même
où l’objet est perçu et sans distance. Mais en même temps elle déploie les distances et ce par
rapport à quoi l’objet perçu indique sa distance comme une propriété absolue de son être,
c’est le corps”69 . Veremos ainda que Sartre estabelece uma associação entre corpo e passado
que não pode ser negligenciada, já que ambos são dimensões da facticidade, o que faz do
para-si um “ser-no-meio-do-mundo”: “Dans chaque projet du pour-soi, dans chaque
perception, le corps est là, il est le Passé immédiat en tant qu’il affleure encore au Présent qui
le fuit70”. Se o corpo é o passado imediato que “emerge” no para-si - o que poderíamos
caracterizar como assombramento -, corpo e passado adquirem em certos contextos do texto
sartriano uma equivalência. Sendo o corpo uma dimensão fática do para-si, isto é, um em-si
nadificado e não um em-si no para-si, o corpo é todo para-si. E o ser-no-mundo corporal não é
simplesmente o fato de ter um corpo (no sentido de ter estas mãos, estes órgãos, etc.), mas é o
desvelamento que se dá por um ponto de vista, em relação ao qual o mundo se abre a partir de
uma orientação. Se o corpo é para-si, ele é presença ao mundo e o mundo assombrado é o
campo fenomenal que se desvela orientado. É neste sentido que Sartre diz que
mon corps est partout sur le monde: il est aussi bien là-bas, dans le fait que le
bec de gaz masque l’arbuste qui croît sur le trottoir, que dans le fait que la
67 EN, p. 494.
68 EN, p. 238.
69 EN, p. 365.
70 EN, p. 366. (grifo nosso)
!316
mansarde, là-haut, est au-dessus des fenêtres du sixième ou dans celui que
l’auto qui passe se meut de droite à gauche derrière le camion, ou que la
femme qui traverse la rue paraît plus petite que l’homme qui est assis à la
terrasse du café. Mon corps est à la fois coextensif au monde, épandu tout à
travers les choses et, à la fois, ramassé en ce seul point qu’elles indiquent
toutes et que je suis sans pouvoir le connaître71.
71 EN, p. 357-358.
72 EN, p. 345.
!317
73 CDG, p. 520.
74 EN, p. 219.
75 EN, p. 241.
!318
Esta potencialidade, por sua vez, apesar de aparecer como sendo inerente ao ser da mesa,
pertence ao desvelamento temporal do isto. O para-si, como vimos na descrição da ek-stase
futuro, existe diante de suas possibilidades, mas o em-si, sendo atemporal, não pode abrir
possibilidades, e nem mesmo potencialidades, afinal o dualismo ato e potência deve ser
superado, conforme a afirmação de Sartre na “Introdução”. As potencialidades são as
ausências que estruturam a presença do isto no desvelamento temporal, o que significa que o
para-si não desvela o em-si como se fosse ele também processo temporalizador ek-stático,
mas o desvela como tendo uma temporalidade própria, projetada sobre o em-si e hipostasiada
em potencialidades, o que Sartre exprime pela ideia de exterioridade: “Mon surgissement
dans le monde fait surgir corrélativement les potentialités. Mais ces potentialités se figent
dans leur surgissement même, elles sont rongées par l’extériorité” 76. O isto aparece assim
cercado de potencialidades, pelas quais ele adquire um aspecto de permanência em
exterioridade, mas ele indica ao mesmo tempo tarefas a cumprir e exigências a realizar. Estas
últimas potencialidades estão relacionadas à ek-stase futuro do para-si em seu caráter de
aberto às possibilidades, visto que seu modo de ser é caracterizado pela falta. Em outros
termos, isto significa que a ausência que aparece como “algo a ser realizado por mim”
encontra-se em relação direta com minha falta de ser na medida em que ela é o “corrélatif de
l’être-possible dont je manque” 77. O ser da ausência como correlativo no mundo da relação
não tética do para-si que é falta com os seus possíveis que lhe faltam, aparece como
potencialidades objetivas do próprio isto. Assim, o isto exige a realização de suas
potencialidades como tarefas a cumprir, algo que Sartre explicita bem no Esquisse, ao dar o
exemplo de um processo de escrita:
les mots que j’écris sont des exigences. C’est la façon même dont je les saisis
à travers mon activité créatrice qui les constitue comme tels : ils apparaissent
comme des potentialités devant être réalisées. Non pas devant être réalisées
par moi. Le moi n’apparaît point ici. Je sens simplement la traction qu’ils
exercent. Je sens objectivement leur exigence. Je les vois se réaliser et en
même temps réclamer de se réaliser davantage. Et je puis bien penser les
mots que trace mon voisin comme exigeants de lui leur réalisation : je ne sens
pas cette exigence. Au contraire, l’exigence des mots que je trace est
directement présente, pesante et sentie. Ils tirent et conduisent ma main. Mais
non pas à la manière de petits démons vivants et actifs qui la pousseraient et
tireraient en effet: ils ont une exigence passive78.
76 EN, p. 232.
77 EN, p. 240.
78 ETE, p. 41. (grifo nosso)
!319
79 Embora para De Coorebyter não se trata realmente de falar aqui em passividade, mas sim em receptividade e
sensibilidade da consciência. DE COOREBYTER, V. Le corps et l’aporie du cynisme dans l’Esquisse d’une
théorie des émotions », Bulletin d’analyse phénoménologique, VIII, n° 1, 2012, p. 275.
80 EN, p. 566. Em Saint Genet, por exemplo, Sartre fala que um objeto manufaturado no interior de uma
sociedade de consumo “se révèle à la fois comme une chose dans le monde et comme une exigence; il réclame
dans son être d’être consommé”. SG, p. 222.
81 DE COOREBYTER, V., op.cit., p. 276. (grifo nosso). Para Coorebyter, como o Esquisse fala na realidade da
emoção, Sartre deveria demonstrar que é justamente este ser-no-mundo prático que se “quebra” no momento em
que a emoção aparece, fenômeno que consiste num “décentrement de la conscience pratique”. Ibid., p. 277.
82 TE, p.105. Exemplo apresentado acima, no capítulo II da “Segunda parte”.
83 EN, p. 434. Vale observar que já em La Nausée o “mundo nu” aparece quando se esvai o véu que o recobre
com sua função. É ainda esta a ideia que entrevemos na seguinte afirmação de Sartre em Baudelaire: “Une
réalité naturelle, lorsqu’elle est travaillée et passée au rang d’ustensile, perd son injustifiabilité. L’ustensile a une
existence de droit pour l’homme qui le considère”. B, p. 99.
!320
prático no mundo e não uma relação de conhecimento de um sujeito que tematiza um objeto.
A percepção, diz Sartre, “ne peut se dévoiler que dans et par des projets d’action […] ce que
je saisis objectivement dans l’action, c’est un monde d’instruments qui s’accrochent les uns
aux autres et chacun d’eux, en tant qu’il est saisie dans l’acte même par quoi je m’y adapte et
le dépasse, renvoie à un autre instrument qui doit me permettre de l’utiliser”84 . O engajamento
pressuposto na ação significa que o para-si, tendo de ser a cada momento, realiza o mundo
que lhe aparece a partir de “tarefas a cumprir” e solicitado pelas exigências. Sendo assim,
podemos observar novamente que são as ausências - neste caso as exigências e “as tarefas a
cumprir” - que estruturam a presença:
l’appréhension perceptive d’un objet quelconque [se fait] sur fond de monde.
Nous entendions par là que ce que le psychologues ont coutume d’appeler
« perception » ne pouvait pas se limiter aux objets proprement « vus » ou
« entendus », etc., à un certain instant, mais que les objets considérés
renvoient par des implications et de significations diverses à la totalité de
l’existent en soi à partir de laquelle ils sont appréhendés […] je ne puis
percevoir une chose-ustensile quelconque, si ce n’est à partir de la totalité
absolue de tous les existants car mon être-premier est être-dans-le-monde85 .
Há, portanto, um “mundo de instrumentos” (ou utensílios), que se manifesta pela ação.
Este trecho nos indica ainda mais uma das características próprias do aparecer do isto no
interior do circuito de ipseidade: a utensilidade. Como vimos anteriormente com relação as
análises de Heidegger em Être et Temps, principalmente no §15, o modo cotidiano do Dasein
é, na ocupação, lida “prática” com os entes manuais (être-à-porté-de-la-main/Zuhandenheit),
na qual o Dasein se encontra de início e na maior parte das vezes. Ressaltamos anteriormente
ainda que o ponto de extrema importância desta elaboração conceitual heideggeriana é
justamente o caráter pragmático do utensílio como relação primeira e cotidiana, enquanto que
a relação teórica com os entes acarreta na interrupção do manual e aparição do ente como ser
simplesmente dado (être-sous-la-main/Vorhandenheit). Nas palavras de Sartre: “dans le
monde heideggérien, l’existant est d’abord « Zeug », ustensile. Pour voir en lui « das Ding »,
la chose temporo-spatiale, il convient de pratiquer sur soi-même une neutralisation. […].
Alors apparaît la chose, qui n’est, en somme, qu’un aspect secondaire de l’ustensile - aspect
qui se fonde en dernier recours sur l’ustensibilité, - et la Nature, comme collection de choses
inertes”86. Em Sartre, mutatis mutandis, o para-si existe como projeto engajado prático que
84 EN, p. 362.
85 EN, p. 505.
86 S.I, p. 237.
!321
faz com que o mundo se desvele como um “mundo de instrumentos”. Dito isto, podemos
afirmar que a relação imediata do para-si com as coisas no mundo é também pensada sob o
primado da práxis, e a coisa, antes de ser objeto para um sujeito, é um utensílio no interior das
“tarefas a cumprir”. Neste sentido, a filosofia da consciência em Sartre não significa a
primazia da percepção na perspectiva de uma relação temática de um objeto diante de um
sujeito, nem mesmo no sentido de uma faculdade psicológica; a percepção é o engajamento
que faz com que um “campo perceptivo”87 se revele concretamente, como campo de ação do
para-si estruturado pelas ausências. Em suma, na apreensão antepredicativa do campo prático,
estruturada pelas ausências, o isto se revela como coisa-utensílio indicando “tarefas a
cumprir”. Mas esta aparição do isto não se dá a uma consciência desencarnada, ela é
polarisada em direção a um ponto de vista que faz com que o desvelamento do mundo seja
desde sempre desvelamento para um para-si situado, isto é, “un complexe d’ustensilité ne peut
se dévoiler que par la détermination d’un sens cardinal de ce complexe et cette détermination
est elle-même pratique et active - planter un clou, semer des graines”88. Por esta razão,
compreender o desvelamento do mundo como campo prático, significa compreender o papel
do corpo, enquanto ponto de vista fático a partir do qual a totalidade mundana se manifesta
como orientação. O corpo não é um ponto de vista no sentido de uma posição teórica, mas de
algo como “un médium en transe”, como um meio pelo qual se realiza certa potencialidade
das coisas89. Há uma relação intrínseca entre o corpo e utensilidade como modo de
desvelamento, uma vez que
mon corps s’étend toujours à travers l’outil qu’il utilise : il est au bout du
bâton sur lequel je m’appuie, contre la terre ; au bout des lunettes
astronomiques qui me montrent les astres ; sur la chaise, dans la maison tout
entière, car il est mon adaptation à ces outils […] Nous avons renoncé à nous
doter d’abord d’un corps pour étudier ensuite la façon dont nous saisissons
ou modifions le monde à travers lui. Mais, au contraire, nous avons donné
pour fondement au dévoilement du corps comme tel notre relation originelle
au monde, c’est-à-dire notre surgissement même au milieu de l’être. Loin que
le corps soit pour nous premier et qu’il nous dévoile les choses, ce sont le
choses-ustensiles qui, dans leur apparition originelle, nous indiquent notre
corps. Le corps n’est pas un écran entre les choses et nous : il manifeste
seulement l’individualité et la contingence de notre rapport originel aux
choses-ustensiles90.
91 EN, p. 356.
92 CDG, p. 318. (grifo nosso)
93 EN, p. 505.
!323
le pour-soi surgit dans un monde qui est monde pour d’autres pour-soi. Tel
est le donné. Et, par là même, […] le sens du monde lui est aliéné. Cela
signifie justement qu’il se trouve en présence de sens qui ne viennent pas au
monde par lui. Il surgit dans un monde qui se donne à lui comme déjà
regardé, sillonné, exploré, labouré dans tous le sens et dont la contexture
même est déjà définie par ces investigations95.
Surgir neste “mundo comum” dado significa que a própria aparição do utensílio
contém “propriedades laterais e secundárias” que dizem respeito a orientação das coisas em
direção a outros centros de referência, que é o corpo de outrem. Como o para-si transcende
este centro de referência que é o outro em direção a seus fins - metamorfoseando-o em
transcendência-transcendida - segue-se que ele apreende esta transcendência a partir de seu
mundo, onde a disposição das coisas-utensílios se organiza indicando este centro de referência
secundário, isto é, o outro se torna um “indicateur de fins”96. São as coisas, portanto, que
indicam lateralmente o outro como centro de referência objetificado (corpo-objetificado) 97.
Pode-se acrescentar ainda que é contingente que estas propriedades laterais sejam relativas a
tal outro ou se organizem de tal maneira, mas é necessário que o para-si surja num mundo
“qui est monde pour d’autres pour-soi”, e que o mundo “se donne à lui comme déjà
regardé” (conforme citação acima). Por esta razão, a coisa-utensílio comporta sempre um
“para quem” (pour qui/Worumwillen98 ) que “apparaît constamment derrière les
instruments”99. Um instrumento x serve para algo, a ser feito por alguém, e esta função - e a
indicação a alguém - compõem a própria aparição das coisas-utensílios na medida em que elas
94 EN, p. 230. Para Sartre, é o desejo de integração a partir das coisas que motiva a filosofia idealista, “filosofia
alimentar”, a associar o conhecimento à apropriação e assimilação. Cf. EN, p. 223; p. 624-5.
95 EN, p. 565.
96 Ibid.
97 Cf. EN, p. 379-380.
98 O termo é de Heidegger, traduzido por Sartre como “para quem”.
99 EN, p. 237.
!324
Or, il est évident - bien que mon appartenance à telle classe, à telle nation ne
découle pas de ma facticité comme structure ontologique de mon pour-soi -
que mon existence de fait, c’est-à-dire ma naissance et ma place, entraîne
mon appréhension du monde et de moi-même à travers certaines techniques.
Or, ces techniques que je n’ai pas choisies, elles confèrent au monde ses
significations. Ce n’est plus moi, semble-t-il, qui décide à partir de mes fins
si le monde m’apparaît avec les oppositions simples et tranchées de l’univers
« prolétarien », ou avec les nuances innombrables et retorses du monde
« bourgeois ». Je ne suis pas seulement jeté en face de l'existant brut, je suis
jeté dans un monde ouvrier, français, lorrain ou méridional qui m’offre ses
significations sans que j’aie rien fait pour les déceler101 .
A fim de evidenciar o que entende por técnicas, Sartre mostra que estas consistem em
desde um saber elementar e geral, como saber falar, andar, etc. - que denota o pertencimento a
algo como uma “espécie humana”, à coletividade nacional, ao grupo familiar, entre outros -
até um saber típico de uma cultura local: falar um dialeto, por exemplo. Na verdade, é
somente pelo fazer particular - maneira singular de uma pessoa falar, andar, etc., que podemos
pensar neste pertencimento à generalidade. Isto significa que não devemos pressupor uma
existência prévia de técnicas gerais que seriam em seguida aplicadas ao particular, mas é o
fazer singular que desvela o mundo através de técnicas coletivas: “c’est le coup de hache qui
révèle la hache, c’est le marteler qui révèle le marteau”102. Sendo as técnicas sempre situadas,
elas localizam socialmente e historicamente a aparição do mundo para o para-si, indicando
seu pertencimento a uma época onde tais técnicas e não outras são possíveis de serem
aplicadas. As técnicas são, portanto, produtos intersubjetivos na medida em que se trata de
uma objetivação da conduta de um para-si por outro para-si com relação a um co-
pertencimento a uma época histórica; elas são ainda o meio pelo qual o mundo se revela com
100 A inserção em uma coletividade diz respeito à “alienação coletiva”, que é a experiência de pertencimento de
um para-si a um “nós-objeto” (nous-objet). Cf. EN, p. 461.
101 EN, p. 558-559. (grifo nosso)
102 EN, p. 563.
!325
significações práticas e objetivas que não são simples projeções do para-si, dado que elas se
formam a partir de uma conduta objetificada de outrem - que se revela como técnica a um
para-si - de modo que este pode interiorizá-las pela sua própria práxis. No entanto, a partir
deste movimento de interiorização, a técnica perde seu caráter de técnica e se integra ao
movimento projetivo livre do para-si de maneira que Sartre retoma novamente sua oposição
entre subjetividade e objetividade, ao colocar a técnica na esfera da objetivação da conduta de
outrem e a reapropriação desta objetividade pela subjetividade de um para-si como dissolução
de seu caráter objetivo pela assunção do projeto: “du fait qu’elle est intériorisée, la technique,
qui était pure conduite signifiante et figée d’un quelconque autre-objet, perd son caractère de
technique, elle s’intègre purement et simplement au libre dépassement du donné vers les fins;
elle est reprise et soutenue par la liberté qui la fonde”103.
Devido a esta última divisão sartriana entre subjetividade e objetividade em relação à
técnica, devemos, por motivos já explicitados, retomar esta análise particular pela perspectiva
da hantologie. Pois somente ultrapassando o dualismo entre ser e nada, podemos compreender
em que medida uma técnica, que se transforma novamente em práxis do para-si, pode manter
de algum modo seu caráter geral. Em outros termos, se cada para-si singular fala uma língua
particular, com seu sotaque, gírias e maneirismos próprios, seria absurdo dizer que a
linguagem perde sua relação geral ao ser assumida por um projeto. Se há infinitos modos de
falar português, por exemplo, há algo em comum que nos permite dizer que tal grupo de
pessoas fala português. Neste sentido, é somente pela compreensão de como essa assunção
das técnicas pelo para-si não faz com que ele se livre se sua situação de fato, ou seja, é apenas
pela apreensão de seu pertencimento a uma época, que podemos compreender finalmente a
relação do geral com o particular no próprio para-si, de tudo que ele é e não é, não é e é,
enfim, de como ser e nada se imbricam pela relação de assombramento. É então
significativamente em termos de assombramento que Sartre pensa a “existence-dans-le-
monde-en-présence-des-autres”104:
Vivre dans un monde hanté par mon prochain, ce n’est pas seulement pouvoir
rencontrer l’autre à tous les détours du chemin, c’est aussi se trouver engagé
dans un monde dont les complexes-ustensiles peuvent avoir une signification
que mon libre projet ne leur a pas d’abord donnée. Et c’est aussi, au milieu
de ce monde pourvu déjà de sens, avoir affaire à une signification qui est
mienne et que je ne me suis pas donnée non plus, que je me découvre comme
« possédant déjà »105 .
Sendo assim, podemos concluir que, além do próprio mundo se manifestar através de
suas estruturas de desvelamento, sua significação não é simplesmente um produto do “poder
de ontogênese” de uma consciência. Pelo contrário, a significação do mundo é dada pelo fato
mesmo da co-presença (que Sartre chama de simultaneidade106) do para-si a um mundo
comum. É o que fica claro, por exemplo, na experiência do nós-sujeito (nous-sujet), que
poderíamos chamar de o “impessoal” sartriano. Trata-se da experiência de impessoalidade que
fazemos ao utilizar um objeto manufaturado, por exemplo. Este foi feito para “todos” e ele
mesmo indica seu uso, o gesto a fazer, etc. Neste caso, um fim do para-si é do mesmo modo
um fim do mundo, pois se quero me apoiar no objeto, me sentar, ou empurrá-lo, por exemplo,
este fim já foi previsto na própria fabricação do objeto, de modo que ele “appartient à présent
à l’objet comme sa potentialité la plus propre. Ainsi, est-il vrai que l’objet manufacturé
m’annonce comme « on » à moi-même, c’est-à-dire me renvoie l’image de ma transcendance
comme celle d’une transcendance quelconque”107. É neste sentido que podemos compreender
a afirmação de Sartre nos Cahiers pour une morale de que “l’artisan, l’ingénieur, le technicien
me regardent à travers l’outil qu’ils ont fait pour moi”108. Trata-se assim da revelação de um
“ser-indiferenciado” que pode ser alargada na experiência do nós-sujeito. Esta última, é um
tipo de experiência de grupo onde um projeto singular aparece de forma indiferenciada em
meio a outros projetos, que buscam os mesmos fins. Porém, Sartre repete algumas vezes, o
nós-sujeito é de ordem psicológica e não une efetivamente os sujeitos numa unidade
ontológica do tipo Mit-sein. Dado que esta experiência subjetiva e não originária - de ser
“religado” a uma coletividade por um nós comum, um ritmo comum (pensemos num grupo de
pessoas marchando ritmicamente, seguindo as placas indicativas das estações de metrô, que já
determinam de alguma forma seus caminhos) -, é possibilitada constantemente pelas próprias
coisas:
gaz, leur électricité, en passant par les moyens de transport, les magasins, etc.
Chaque devanture, chaque vitrine me renvoie mon image comme
transcendance indifférenciée. En outre, les rapports professionnels et
techniques des autres avec moi m’annoncent encore comme quelconque:
pour le garçon de café, je suis le consommateur ; pour le poinçonneur de
tickets, je suis l’usager du métro109 .
amarelo do limão é sua acidez - “[il] n’est pas un mode subjectif d’appréhension du citron : il
est le citron”112. Não havendo necessidade de uma consciência que uniria sinteticamente cor e
forma, é a coisa que se apresenta qualificada por inteiro. Esta posição indica uma proximidade
com a de Merleau-Ponty em sua visão da coisa que se apresenta em “carne e osso”, quando
ele diz:
tampouco um suporte da coisa, mais a coisa aparece qualificada: “la qualité, c’est l’être tout
entier se dévoilant dans les limites du « il y a »”116. Sendo mais uma característica objetiva da
coisa desvelada no interior do circuito da ipseidade, a qualidade assombra o para-si — “elle
« est là », elle nous hante”117.
Há ainda um aspecto próprio do aparecer da coisa que Sartre elabora a partir da crítica
que Bachelard faz às fenomenologias de Heidegger e Husserl. Segundo a leitura sartriana
inspirada em Bachelard, ambos os fenomenólogos não refletiram sobre o que seria o
coeficiente de adversidade das coisas e a significação própria de sua materialidade. Para
Sartre, este conceito é útil para se pensar um tipo de resistência das coisas-utensílios em meio
ao mundo de instrumentos, como aquela que faz com que um utensílio seja mais ou menos
resistente no objetivo de cumprir sua função no campo prático. Em L’Imaginaire, Sartre fazia
alusão à “carne dos objetos” como sua “contextura íntima”118, o que a partir de sua
interpretação do conceito de Bachelard passa a ser considerado como coeficiente de
adversidade, “un residuum innommable et impensable qui appartient à l’en-soi considéré et
qui fait que, dans un monde éclairé par notre liberté, tel rocher será plus propice à l’escalade
et tel autre non”119. O coeficiente de adversidade seria assim um “quid insaisissable”120 que só
se revela através da rede de utensílios e não como uma propriedade material. Como vimos, o
projeto do para-si faz como que “haja” ser no sentido de abrir o campo fenomenal como
mundo, de maneira que o mundo indica a própria “imagem” do projeto que, por sua vez, se
conhece “fora” de si. Em seguida observamos mais de uma vez que a situação paradoxal do
para-si é justamente a de ser aquele pelo qual o mundo se abre como mundo, mas somente na
medida em que o mundo possui suas próprias regras de desvelamento. Sendo assim, o mundo
revela o para-si a si mesmo de uma maneira que é própria ao seu desvelamento e não como
obedecendo ao seu desejo de completude de si mesmo. Disto decorre que o mundo não é uma
projeção do para-si no sentido subjetivo, isto é, como se os isto aparecessem em sua rede de
referencialidade de acordo com suas condições psíquicas ou com seus sentimentos ou
disposições interiores. O projeto existencial indica que o mundo é desvelado a partir de um
ponto de vista que revela as próprias significações do ponto de vista do para-si. Como as
Voilà que, tout d’un coup, ces fameuses réactions “subjectives”, haine,
amour, crainte, sympathie, qui flottaient dans la saumure malodorante de
l’Esprit s’en arrachent; elles ne sont que des manières de découvrir le monde.
Ce sont les choses qui se dévoilent comme haïssables, sympathiques,
horribles, aimables. C’est une propriété de ce masque japonaise que d’être
terrible, une inépuisable, irréductible propriété qui constitue sa nature même -
et non la somme de nos réactions subjectives à un morceau de bois sculpté123.
121 Worms ressalta que se trata de uma crítica de Sartre a Bachelard, no sentido de apontar o aspecto subjetivista
deste último, que estaria ainda presente em sua psicanálise material. WORMS, F. Le problème de l’inconscient
dans le moment de l’existence. A nosso ver, não se trata propriamente de uma crítica, mas do gesto filosófico de
ser ainda mais radical do que o próprio autor. É interessante notar ainda que Badiou, ao selecionar três textos
principais que mostram a relação de cumplicidade e rivalidade entre filosofia francesa e psicanálise, coloca
justamente a proposta da “psychanalyse des éléments” de Bachelard em La Psychanalyse du feu seguida da
psicanálise existencial de Sartre em L’Être et le Néant (e ainda a “squizo-analyse” de Deleuze e Guattari no
quarto capítulo de L’Anti-Œdipe). Todos estes, conclui Badiou, “ont proposé de remplacer la psychanalyse par
autre chose”. BADIOU, A. L’aventure de la philosophie française, p. 20-21.
122 EN, p. 657. Este tema é detalhado no §4 do capítulo IV desta “Terceira parte”.
123 S.I, p. 32.
124 EN, p. 646.
!331
reenvio dos isto pode ser interrogada “sans recours à la subjectivité qui l’a établi”125, na
medida em que se trata de um “symbole objectif de l’être et du rapport de la réalité-humaine à
cet être” 126. Sartre distingue ainda o “coeficiente de adversidade” da “sensation d’effort” de
Maine de Biran, a qual, a seu ver, seria ainda pensada nos moldes subjetivos das sensações, ao
invés de ser uma experiência de resistência da própria coisa. Se quisermos trazer um copo à
boca, diz Sartre, sentimos mais seu peso e sua resistência no interior do complexo de
utensílios do que a sensação de nosso esforço127.
Resumidamente, o desvelamento que ocorre pela negação originária que inaugura o
há, faz com que o isto apareça dotado de potencialidades, exigências, apelo de integração,
qualidade e coeficiente de adversidade no interior de um mundo de instrumentos e “tarefas a
cumprir”. O fato do para-si ser busca de completude assombra ainda o mundo como valor,
onde o campo fenomenal se mostra como apelo e via de realização da ipseidade do para-si.
Mas estes não são os únicos elementos que estruturam o campo da aparição, pois há ainda os
modos de relação próprios do campo prático do há, que possui um tempo e um espaço
característicos.
O para-si, enquanto projeto temporalizador, encontra-se num mundo que possui uma
espacialidade e uma temporalidade peculiares. Do mesmo modo que as estruturas objetivas de
desvelamento, o espaço e tempo do mundo128 “vêm ao mundo” pelo para-si, mas adquirem
autonomia e modo de ser próprios. O para-si, embora ele seja a “fonte” temporal, não se
encontra “de início e na maior parte das vezes”, como diria Heidegger, reflexivamente voltado
para esta característica de seu modo de ser, de maneira que a apreensão irrefletida da
temporalidade se dá “sur l’être, c’est-à-dire dehors”129 . Ambos espaço e tempo, neste
contexto, são, a nosso ver, da ordem da espectralidade, já que se caracterizam por ser um
medium entre ser e nada; algo como um contraditório “nada em-si” - em linguagem sartriana
aquele que “je détermine avec la montre et le chronomètre […] que je fixe par rapport à la terre et au soleil”.
Este tempo vem abaixo com a redução fenomenológica, que revela, por sua vez, o tempo pré-empírico ou
fenomenológico. HUSSERL, E. Leçons, p. 168.
129 EN, p. 240.
!332
permanência, que é uma potencialidade, de forma que apreendemos a coisa como algo que já
estava lá e que continuará sendo no futuro, a não ser que algo externo a destrua. Esta estrutura
temporal própria à ação perceptiva de desvelamento do isto, no entanto, não aparece como
temporalidade da própria coisa, pois “c’est ainsi que se révèlent à moi ce verre ou cette table :
ils ne durent pas, ils sont ; et le temps coule sur eux” 136. Há, portanto, um passado e um futuro
universais, correlativos às ek-stases temporais passado e futuro do para-si, que estruturam a
presença da coisa, mas estes não se revelam como temporalidade do isto, já que este se mostra
como estando em repouso no interior do tempo universal. Sendo assim, o caráter dinâmico da
temporalidade mundana só pode se revelar a partir do movimento, ou seja, “c’est le
mouvement qui sera chargé de réaliser le temps universel, en tant que le pour-soi se fait
annoncer son propre présent par le présent du mobile”137 , e ainda, “la dimension présente du
temps universel serait […] insaisissable s’il n’y avait le mouvement”138. Movimento e
repouso, no entanto, não são da ordem da temporalidade original, mas são duas maneiras de
desvelamento do isto. É importante ressaltar que, com isso, o movimento nada tem a ver com
o devir ou com qualquer termo que significaria um processo original e temporal do sujeito.
Compreender o movimento no contexto da temporalidade mundana e universal é compreendê-
lo como uma maneira pela qual algo é desvelado como sendo um mesmo que passa de uma
unidade temporal anterior - um “agora” no passado -, para um “agora” no futuro, sem que
haja transformação qualitativa. Como viemos de dizer, a própria coisa não aparece em
repouso como sendo antes e depois a mesma - sem mudança qualitativa -, ela simplesmente é
desvelada como sendo no presente, representando a atemporalidade do em-si, o que faz dos
“mouvements des choses inertes […] des curieux mélanges de néant et d’éternité”139. Dito de
outro modo, o movimento da coisa faz aparecer a temporalidade universal como “antes” e
“depois” da passagem de um ponto a outro fazendo com que ela se revele como um mesmo
que passa. Segue-se que esta passagem, não sendo uma mudança na qualidade daquilo que
passa, se dá como relação intrínseca à espacialidade, pois passar, é passar de um lugar a
outro. O ser que passa, na verdade, está e não está em um lugar, diz Sartre, já que não
podemos dizer que ele não está em lugar nenhum ou alhures, mas se dissermos que ele está,
seu “l’être-de-passage” se esvai e ele volta ao repouso140, traço que acentua o caráter
espectral. É por isso que o movimento, além de “realizar o tempo universal”, faz surgir
também o espaço, embora este esteja do mesmo modo implicado na concepção do repouso. A
diferença é que “quand le ceci est en repos l’espace est ; quand il est en mouvement, l’espace
s’engendre ou devient”141.
Sartre denomina trajetória esta união entre movimento e espaço, no sentido de que ela
é o engendramento do espaço no tempo universal. É por ela que podemos “medir” o tempo
como algo espacial, calcular um “lapso de tempo” que separa a realização de projetos projetos
como “la trajectoire de mon acte”142, por exemplo. A trajetória é fantasmática, pois ela é “la
forme d’un devenir évanescent”, “une fantôme d’unité temporelle de l’espace” 143. Se o tempo
universal é uma unidade fantasma de unidades temporais também elas fantasmáticas (“em-si
fantasma”), a trajetória estabelece, por sua vez, uma relação entre o isto e o espaço.
Considerando que o isto não aparece como temporal, sua relação ao espaço e aos outros isto é
uma relação de exterioridade. Em outros termos, o isto é “exterior a si” e “l’exteriorité-à-soi
n’étant nullement ek-statique, en effet, le rapport du mobile à soi-même est pur rapport
d’indifférence et ne peut se découvrir qu’à un témoin”144. Reencontramos aqui a relação entre
espectralidade, olhar e assombramento, pois a “exterioridade a si” do isto só aparece com
relação a um testemunho, e neste sentido é uma exterioridade olhada. Ser olhado no contexto
da hantologie não é equivalente a ser um objeto de uma teorização que interromperia a
relação prática ao mundo, mas a um tipo de apreensão não objetiva das ausências que se dá
pela presença que assombra o mundo que é o para-si. Neste caso particular, a ausência
consiste numa falta de relação efetiva que é ela mesma um tipo especial de relação, pois se
trata de “rapport-d’absence-de-rapport”145 que Sartre define como relação externa e que se
caracteriza por ser um “pur lien d’extériorité établi entre deux êtres par un témoin” 146. Este
“pur lien d’extériorité”, contrariamente às relações internas, é uma relação entre os seres que
140 Sartre conclui com isso que a relação do ser que passa com o lugar não é de “ocupação” EN, p. 248.
141 EN, p. 249.
142 EN, p. 252. Ainda sobre o “lapso de tempo”, Sartre diz: “c’est en étant mes possibilités par delà l’être
coprésent, que je découvre le temps objectif comme le corrélatif, dans le monde, du néant qui me sépare de mon
possible. De ce point de vue le temps apparaît comme forme finie, organisée, au sein d’une dispersion indéfinie;
le laps de temps est comprimé de temps au sein d’une absolue décompression est c’est le projet de nous-même
vers nos possible qui réalise la compression”. Ibid.
143 EN, p. 250.
144 EN, p. 249.
145 EN, p. 244.
146 EN, p. 211.
!335
quantidade e espacialidade nos dois filósofos, dado que ambas são definidas como “esquemas de organização em
que o conteúdo é indiferente, em que a totalidade é apenas o fruto de uma totalização finita sempre ameaçada de
desagregação”. Ibid. p. 95
151 Sartre explicita no seguinte trecho a influência ao mesmo tempo de Heidegger e da Gestalttheorie em sua
concepção de espaço: “Nous admettrons volontiers avec Heidegger que la réalité-humaine est « déséloignante »,
c’est-à-dire qu’elle surgit dans le monde comme ce qui crée, et, à la fois, fait s’évanouir les distances (ent-
fernend). Mais ce déséloignement, même s’il est la condition nécessaire pour « qu’il y ait » en général un
éloignement, enveloppe l’éloignement en lui-même comme la structure négative qui doit être surmontée. En vain
tentera-t-on de réduire la distance au simple résultat d’une mesure : ce qui est apparu, au cours de la description
qui précède, c’est que les deux points et le segment qui est compris entre eux ont l’unité indissoluble de ce que
les Allemands appellent une « Gestalt »”. EN, p. 55.
152 EN, p. 220.
153 EN, p. 234.
!336
ambiguidade, contanto que ele “se dévoile à la foi comme totalité synthétique et comme
collection purement additive de tous les ceci”154. Isso mostra, como diz ainda B. Prado Jr, que
o espaço e a quantidade estão constantemente, de algum modo, em sursis155.
Por fim, acrescentamos que o espaço em sua dimensão de “totalidade sintética” se
aproxima, para Sartre, do que Kurt Lewin nomeava de “espaço hodológico”. Trata-se de um
modo de espacialização próprio à intuição sartriana do “mundo dos profetas e dos artistas”,
que vimos ser, a partir de L’Être et le Néant, o da aparição de um campo prático correlativo a
ação do para-si, que só pode ser situada. Sartre começa a desenvolver esta concepção de
espaço já no Esquisse. Ao tentar definir o que entende por “le monde agi”, ele nos indica que
podemos “dresser une carte « hodologique » de notre umwelt, carte qui varie en fonction de
nos actes et de nos besoins”156, de acordo com as exigências e as tensões do mundo que nos
rodeia. Tal é a interpretação sartriana do conceito alemão Umwelt: “le monde de nos désirs, de
nos besoins et de nos actes apparaît comme sillonné de chemins étroits et rigoureux qui
conduisent à tel ou tel but déterminé”157. Esta concepção permanece em L’Être et le Néant,
desta vez através do refinamento conceitual dado pelas estruturas de desvelamento. É o
espaço hodológico, portanto, que está em jogo no mundo assombrado pelas ausências, com
suas exigências, qualidades e tarefas a cumprir. A semelhança das descrições do Esquisse com
as de L’Être et le Néant a este respeito se deixa notar quando Sartre diz, por exemplo, nesta
última obra, que “l’espace originel qui se découvre à moi est l’espace hodologique ; il est
sillonné de chemins et de routes, il est instrumental et il est le site des outils. Ainsi le monde,
dès le surgissement de mon pour-soi, se dévoile comme indication d’actes à faire, ces actes
renvoient à d’autres actes, ceux-là à d’autres et ainsi de suite”158. O espaço é uma totalidade
frágil pronta a se desagregar e a se reformar de acordo com a ação situada do para-si, e é por
isso que sua composição é sempre singular. Trata-se assim de uma relação de espacialização
ligada aos sentidos que surgem do processo temporalizador do para-si no mundo e por esta
razão, Sartre afirma que “[un] être n’est pas situé par son rapport avec les lieux, par son degré
de longitude et son degré de latitude : il se situe dans un espace humain, entre le « côté de
O acontecimento:
espectros de em-si enquanto zonas de opacidade.
Beckett, poèmes.
Nos Carnets de la drôle de guerre, Sartre faz uma descrição interessante daquilo que
ele nomeia então de acontecimento (l’événement). Tal descrição mostra-se rica em elementos
importantes para nossa leitura de L’Être et le Néant. Por esta razão, iremos retomá-la
brevemente no intuito de situar o tema do capítulo que se inicia, que diz respeito à
espectralidade própria ao que caracterizamos como “zonas de opacidade”.
A descrição do para-si como um “em-si nadificado”, que vimos ser a da estrutura
imediata da facticidade em L’Être et le Néant, tem início nos Carnets. Nas notas de 19 de
janeiro do caderno XI, Sartre se refere ainda à facticidade do para-si como “le dehors du pour-
soi”1. A facticidade é então descrita em termos de uma reapreensão do para-si pelo em-si, após
seu surgimento como nadificação do em-si. Segue-se que este em-si que “ressaisit le pour-soi
par contrecoup”2, diz Sartre, não pode ter a consistência do em-si, sob o risco de
substancializar o para-si. O autor procura então descrever as características deste em-si que
reapreende o para-si em termos que, a nosso ver, remetem ao que é próprio da espectralidade.
A facticidade é então descrita como um “réflet nécessaire de l’en-soi sur le pour-soi”3, que
consiste num “fantôme inconsistant d’en-soi”4. Além disso, esta reapreensão do para-si por tal
1 CDG, p. 498.
2 Ibid.
3 Ibid.
4 Ibid.
!339
fantasma é apresentada por Sartre como uma condição necessária: “En un mot: pour se faire
néantisation de l’en-soi, au-dedans de lui-même et au-dehors, il ne suffit pas que le pour-soi
ait avec l’en-soi le seul rapport synthétique de la négation; il faut qu’il soit ressaisi par cet en-
soi sous la forme d’une unité synthétique venant cette fois de l’en-soi”5. Segue-se que o modo
do em-si que se dá após nadificação é descrito em termos espectrais:
O acontecimento é assim o termo utilizado nos Carnets para descrever de algum modo
esta reapreensão do para-si pelo em-si após o seu surgimento, o que é ainda colocado em
termos de uma condição necessária. Este “em-si fantasma” que é aqui chamado de
acontecimento nos remete à espectralidade própria deste reflexo que, apesar de ser
inconsistente e inapreensível pelo olhar - pois o para-si é reapreendido pelo em-si por detrás 7
- é aquilo que permite dizermos que o para-si é. Isto significa que o fato do acontecimento ser
“indescritível” não denota que ele seja uma ilusão, ou algo da ordem do imaginário, pois é
esta condição necessária da facticidade que faz com que o para-si tenha um “lado de fora”,
que ele se localize como um ser-no-meio-do-mundo. Assim, diz Sartre, a facticidade é o
“limite à la transparence de la conscience. Non pas qu’il y ait rien derrière cette transparence
mais simplement le fait d’être-comme-pour-soi est la limite opaque de cette translucidité.
Autrement dit, c’est un fait en soi, échappant à toute néantisation, qu’il existe en ce moment
un pour-soi qui est néantisation de l’en-soi” 8. Se a consciência busca apreender
reflexivamente a facticidade que é o acontecimento, acrescenta Sartre, “elle ne le voit pas, elle
ne voit que la liberté infinie et néantisante de ses propres motivations”9, e é por isso que ele a
assombra por detrás.
5 CDG, p. 498.
6 Ibid.
7 CDG, p. 491; p. 587.
8 CDG, p. 492.
9 Ibid.
!340
Podemos dizer que esta breve descrição sobre o acontecimento nos indica um caminho
a seguir nas análises de L’Être et le Néant. Nesta obra, Sartre não se refere a esta reapreensão
do para-si pelo em-si em termos de acontecimento, mas este assombramento “por detrás”
continua a ser condição necessária para o para-si. O que a descrição anterior sobre o
acontecimento nos mostra é que este “retorno do em-si” é da ordem de um “retorno do
espectro” e não de algo que finalmente substancializaria o para-si. Se vimos que este retorno
não é mais de um em-si opaco - no sentido da materialidade das coisas -, mas de um “em-si
fantasma”, ocorre que o que é chamado agora de “acontecimento absoluto”, que é o
surgimento do para-si a partir do em-si, envolve aquilo que chamamos de “passagem ao
espectral”, o que indica que aquilo que “resta” de em-si no para-si só pode ter um modo de ser
bastante peculiar, tal como o acontecimento. Se este em-si que permanece no para-si, de modo
a habitá-lo como um espectro, não pode ser equivalente ao modo de ser “opaco” das coisas,
devemos ter em vista um outro plano, que chamaremos agora de “zonas de opacidade”, este
último termo em seu sentido espectral. Veremos a seguir no que consistem tais zonas e de que
modo elas assombram o para-si em seu modo mais imediato.
O para-si não tem um passado e nem um corpo: o para-si era o seu passado e existe
seu corpo. A ligação existencial que substitui uma concepção possessiva com relação ao corpo
e ao passado é de extrema importância para compreendermos estas figuras da facticidade do
para-si. Já abordamos este tema antes: a facticidade é uma estrutura imediata do para-si
“sujeito” que atesta o fato de sua existência contingente, isto é, o fato de que o para-si é. No
entanto, se fossemos considerar simplesmente sua existência contingente, o para-si existiria
sob o modo do ser em-si e não como “acontecimento absoluto”, que é o surgimento do para-si
a partir da nadificação do em-si que ele é. Abordamos este aspecto algumas vezes acima.
Nosso objetivo agora consiste em voltar a atenção para aquilo que “reste de l’en-soi dans le
pour-soi comme facticité”10 . Em outras palavras, veremos em que medida este em-si, após
10 EN, p. 120.
!341
11 EN, p. 153.
12 EN, p. 173.
13 Ibid.
!342
uma fissura de negatividade”?14. Se assim fosse, o para-si não seria mais o seu passado, o que
não é possível por motivos que já explicitamos acima. Qual é então o modo de relação
interna que une as ek-stases temporais passado e presente por via da nadificação? Sartre
responde: “Le passé peut bien hanter le présent, il ne peut pas l’être ; c’est le présent qui est
son passé. Si donc on étudie les rapports du passé au présent à partir du passé, on ne pourra
jamais établir de l’un à l’autre des relations internes”15. O assombramento consiste assim
neste tipo de relação interna que une passado e presente de uma maneira peculiar, devido ao
fato de que não se trata de uma instância que “contém” outra - como “ter um passado” -, mas
do fato do que o passado “ainda está lá” - e por isso ele era - embora não possa ser localizado
e descrito como tal. Em outros termos, trata-se de uma presença espectral16. O trecho a seguir
resume todos estes pontos:
Reste à étudier la façon même dont le pour-soi « était » son propre passé. Or
on sait que le pour-soi paraît dans l’acte originel par quoi l’en-soi se néantise
pour se fonder. Le pour-soi est son propre fondement en tant qu’il se fait
l’échec de l’en-soi pour être le sien. Mais il n’est pas parvenu pour autant à
se délivrer de l’en-soi. L’en-soi dépassé demeure et le hante comme sa
contingence originelle. Il ne peut jamais l’atteindre, ni se saisir jamais
comme étant ceci ou cela, mais il ne peut non plus s’empêcher d’être à
distance de soi ce qu’il est. Cette contingence, cette lourdeur à distance du
pour-soi, qu’il n’est jamais mais qu’il a à être comme lourdeur dépassée et
conservée dans le dépassement même, c’est la facticité, mais c’est aussi le
passé17 .
14 PRADO JR., B. Presença e campo transcendental, p. 107. “Para Sartre, com efeito, a liberdade é solidária à
possibilidade, para a consciência, de distanciar-se de seu passado, de separar-se dele através da negação. Mais do
que isso, essa ruptura - essa separação através da intromissão de uma fissura de negatividade - reproduz-se em
todas as dimensões da temporalidade. Se a consciência está separada irremediavelmente de seu passado e de seu
futuro, é porque ela é separação entre ela e ela mesma”. Id. Esta afirmação encontra-se em sintonia com a
seguinte afirmação de Sartre: “si la négation vient au monde par la réalité-humaine, celle-ci doit être un être qui
peut réaliser une rupture néantisante avec le monde et avec soi-même”. EN, p. 483. (grifo nosso). No entanto, a
ideia de ruptura é questionável, pois vimos que a presença a si consiste numa “separação” que não separa de
fato, tendo em vista a paradoxal característica de “dualidade na unidade” e ainda devido a relação interna entre
as ek-stases que atesta que o para-si não pode não ser o seu passado.
15 EN, p. 148. (grifo nosso)
16 Ao falar do em-si nadificado que permanece no para-si, Sartre se utiliza do termo “souvenir d’être”: “Le pour-
soi correspond donc à une destruction décomprimante de l’en-soi et l’en-soi se néantit et s’absorbe dans sa
tentative pour se fonder. Il n’est donc pas une substance dont le pour-soi serait l’attribut et qui produirait la
pensée sans s’épuiser dans cette production même. Il demeure simplement dans le pour-soi comme un souvenir
d’être, comme son injustifiable présence au monde.” EN, p. 120. No entanto, não é em termos de uma
“lembrança” que compreendemos esta presença espectral da facticidade que assombra o para-si. A lembrança é
um ato intencional específico, cuja estrutura é distinta do assombramento que ocorre no bojo mesmo da
consciência pré-reflexiva. Assim, como vimos a respeito do espectro, trata-se de um modo de ser peculiar que
vem a estruturar o para-si “sujeito”.
17 EN, p. 153.
!343
assombrar, seus efeitos são produzidos a partir de algo que não se intui, que não se encontra
diante do campo temático da consciência: “[le passé] n’est pas l’objet du regard du pour-soi.
Ce regard translucide à lui-même se dirige, par delà la chose, vers l’avenir” 18.
Consequentemente, o assombramento do passado vem perturbar a translucidez da
consciência, na medida em que ele é “chose qu’on est sans la poser, en tant que ce qui hante
sans être remarqué, [il] est derrière le pour-soi, en dehors de son champ thématique, qui est
devant lui comme ce qu’il éclaire”19. O campo luminoso é, portanto, o da intuição, enquanto
que o assombramento atinge o para-si “por detrás”, fazendo-se presente na própria dimensão
translúcida. Para compreendermos isto, devemos precisar ainda o que significa neste contexto
o movimento do projeto como um ultrapassar (dépasser), já que este pressupõe, pela
facticidade, o engajamento do para-si no mundo: “dépasser le monde, c’est précisément ne
pas le survoler, c’est s’engager en lui pour en émerger, c’est nécessairement ce faire cette
perspective de dépassement”20 . Tal impossibilidade de sobrevoo é dada pela facticidade, que
atesta o aspecto de “ser-no-meio-do-mundo” do para-si, definindo, como vimos, um centro de
referência corporal. O engajamento do para-si é corpo, visto que ele é situado no mundo como
sendo ao mesmo tempo “no-meio-do-mundo” e ultrapassamento desta condição a cada vez.
Ultrapassamento que, tal como a Aufhebung hegeliana, supera e conserva aquilo que é
ultrapassado - “dépassé et conservée dans le dépassement même”-, conforme citação acima.
Porém, o que temos sublinhado é que este modo de “conservação” é dado como passagem ao
espectral, o que se revela finalmente como fator característico da facticidade sartriana. Nos
termos de Sartre:
le pour-soi est soutenu par une perpétuelle contingence qu’il reprend à son
compte et s’assimile sans jamais pouvoir la supprimer. Nulle part le pour-soi
ne la trouve en lui-même, nulle part il ne peut la saisir et la connaître, fût-ce
par le cogito réflexif, car il la dépasse toujours vers ses propres possibilités et
il ne rencontre en soi que le néant qu’il a à être. Et pourtant elle ne cesse de le
hanter et c’est elle qui fait que je me saisisse à la fois comme totalement
responsable de mon être et comme totalement injustifiable21 .
O mesmo que vale para o passado, vale para o corpo em sua dimensão para-si
(veremos outros planos corporais mais adiante), mais uma figura da facticidade imediata de
18 EN, p. 176.
19 EN, p. 176. (grifo nosso)
20 EN, p. 366.
21 EN, p. 348. (grifo nosso)
!344
seu modo de ser. Vimos o aspecto deste modo corporal em sua relação com a percepção e a
necessidade do desvelamento orientado do mundo, agora podemos nos concentrar sobre a
espectralidade própria à facticidade corporal.
Do mesmo modo que o passado, “le corps est perpétuellement le dépassé”22, e o
ultrapassamento se dá novamente como assombramento. O corpo é para-si, mas o em-si
nadificado relativo ao “acontecimento absoluto” que estrutura o modo de ser para-si
assombra-o não mais como um em-si, mas como um espectro. Isto porque, contra uma
possível interpretação do tipo cartesiana de que o corpo seria um em-si no para-si, Sartre
afirma que “[le corps] n’est rien d’autre que le pour-soi ; il n’est pas un en-soi dans le pour-
soi, car alors il figerait tout”23. No plano do corpo para-si, o corpo não pode tampouco ser
objetificado. Por esta razão, dizer que o corpo é uma dimensão da facticidade, enquanto em-si
nadificado, não significa dizer que o em-si que é nadificado é o corpo e que o para-si é o nada
- “car alors il figerait tout” -, mas trata-se de um modo espectral de corporeidade. Somente
assim podemos compreender a dimensão corporal pré-reflexiva em toda sua amplitude, como
o fato de que o corpo “est partout : la bombe qui détruit ma maison entame aussi mon corps,
en tant que la maison était déjà une indication de mon corps. C’est que mon corps s’étends
toujours à travers l’outil qu’il utilise […] il est mon adaptation à ces outils”24. Por isso, “le
corps dans l’action, en tant que corps pour-soi, s’évanouit, il est le dépassé : l’action révèle le
marteau et les clous non la main que martèle”25. Trata-se então de um “insaisissable corps” 26,
na medida em que “ce donné que je suis sans avoir à l’être - sinon sur le mode du n’être-pas -
je ne puis ni le saisir ni le connaître, car il est partout repris et dépassé, utilisé pour mes
propres projets, assumé”27. Como estrutura da facticidade, o corpo é ultrapassamento do
mesmo modo que o passado28. Ambos dizem respeito à facticidade como estrutura imediata
de nadificação do em-si que o para-si é a cada vez, que adquire nestes casos o aspecto de
ultrapassamento de seu ser-no-meio-do-mundo. Na perspectiva do corpo, este
22 EN, p. 365.
23 EN, p. 348.
24 EN, p. 365.
25 CABESTAN, P. Qui suis-je?, p. 163. Cabestan ressalta a originalidade da teoria sartriana sobre o corpo em
relação a Husserl e Heidegger, dois anos antes da Phénoménologie de la perception de Merleau-Ponty. Segundo
Cabestan, Heidegger chega a afirmar no Séminaire de Zurique que está de acordo com a crítica de Sartre sobre o
silêncio desta questão em Être et temps. O autor aponta, por fim, uma apropriação por parte de Sartre das
análises heideggerianas sobre a espacialidade do ser-no-mundo e como aparição do mundo orientado ao corpo-
para-si. (Cf. Ibid., p. 155; p. 160).
26 EN, p. 368.
27 EN, p. 366.
28 “Ainsi le, corps étant le dépassé, est le Passé”. Ibid.
!345
29 EN, p. 368.
30 EN, p. 348.
31 Não confundir com o Dasein heideggeriano, como dissemos anteriormente. Ser-aí, neste contexto, indica a
posição do para-si.
32 “Ponto de vista” que, como vimos, não é uma relação diante de um mundo, mas um engajamento prático.
33 EN, p. 345.
34 EN, p. 349.
!346
Tudo isto posto, segue-se que a descrição do corpo-para-si não se resume a uma
relação objetiva com os instrumentos a partir de um ponto de vista, se reconhecermos que,
citando Cabestan, “le corps tel qu’il a été décrit jusqu’ici manque singulièrement de
‘chair’”35. Com relação a este ponto, podemos dizer inicialmente que, como Sartre não foi
leitor das Ideen II tal como o foi Merleau-Ponty, ele não parte das descrições husserlianas
sobre a encarnação do sentir desenvolvida a partir do exemplo da mão que toca e da que é
tocada, de modo que seu caminho de elaboração das características do corpo próprio (Leib) se
constrói de outra maneira 36. Sartre se concentra na ideia de uma afetividade original
(originelle) própria ao existir seu corpo do para-si, que diz respeito a sua maneira peculiar de
ser afetado por sua própria contingência. Uma relação a si que se assemelha ao que
conhecemos como tonalidade afetiva (Stimmung) em Heidegger, afirma Cabestan, enquanto
abertura ao mundo e a si, anterior a todo conhecimento e todo querer37.
O corpo-para-si identifica-se à facticidade, que é uma estrutura imediata. Esta, por sua
vez, corresponde ao que há que espectral em meio à própria dimensão translúcida, que é desde
sempre perturbada pelo assombramento. Na relação de ultrapassamento que é a facticidade
corporal, a consciência assume, ao mesmo tempo, sua contingência original, agora em seu
aspecto de afetividade original. Se a consciência existe seu corpo, esta ideia não pode ser
interpretada, como vimos, como união de duas instâncias autônomas. Ela significa que esta
relação imanente da presença a si com sua própria facticidade corporal é um modo de
autoafetação, que Sartre descreve em termos de uma “conscience latérale et rétrospective de
ce qu’elle est [la conscience] sans avoir à l’être” 38. Neste tipo de descrição, o assombramento
ganha um papel privilegiado, enquanto revelador de uma espécie de experiência constante
desta presença espectral comparada pelo autor a um “gosto de si” que é a náusea: “Cette
saisie perpétuelle par mon pour-soi d’un goût fade et dans distance qui m’accompagne jusque
dans mes efforts pour m’en délivrer et qui est mon goût, c’est ce que nous avons décrit
ailleurs sous le nom de Nausée. Une nausée discrète et insurmontable révèle perpétuellement
39 EN, p. 378. Para De Coorebyter, La Nausée antecipa a tese de L’Être et le Néant de que a consciência existe
sua facticidade como corpo, ao explorar por diversas vezes a dimensão cinestésica e passiva deste. DE
COOREBYTER, Sartre face à la phénoménologie, p. 546.
40 EN, p. 371.
41 EN, p. 369-370.
42 CABESTAN, P. Qui suis-je?, p. 165.
43 Ibid., p. 165, n. 29.
44 ROUGER, F. Le monde et le moi, p. 135.
!348
monde”49. Nesta segunda descrição, chama a atenção o fato de Sartre descrever a afetividade
original em termos de “matière translucide” e ainda de “contexture” 50, designações no
mínimo surpreendentes caso se mantenha o dualismo entre o conceito de translúcido como
correspondente a algo da ordem da consciência e opaco como qualidade própria à dimensão
dos objetos. Por esta razão, só podemos compreender a afetividade original no plano da
espectralidade, em virtude da opacidade característica deste modo de ser. Neste sentido, a
contingência original que assombra o para-si encontra na náusea sua expressão máxima:
“Nulle part ailleurs nous ne toucherons de plus près cette néantisation de l’en-soi par le pour-
soi et le ressaisissement du pour-soi par l’en-soi qui alimente cette néantisation même” 51,
conclui Sartre. A reapreensão pelo em-si que vimos ser o acontecimento nos Carnets, ocorre
produzindo o efeito do retorno do espectro: “Par ailleurs - et c’est le propre de l’existence
corporelle - l’ineffable qu’on veut fuir se retrouve au sein de cet arrachement même, c’est lui
qui va constituer les consciences qui le dépassent, il est la contingence même et l’être de la
fuite qui veut le fuir”52. O passado e o corpo-para-si correspondem, portanto, à primeira
dimensão de assombramento do para-si, próprias ao acontecimento absoluto de seu
surgimento e à incessante nadificação de si do ato ontológico. A afetividade original, por fim,
vem ainda atribuir uma textura à facticidade da dimensão corporal pré-reflexiva do para-si.
a) O psiquismo.
se dá por atos cujas essências podem ser descritas pelo fenomenólogo, o que mostra sua
relevância. Não é o caso, portanto, de subestimar a importância da constituição psíquica e sua
presença cotidiana na vida do sujeito, nem tampouco de desvalorizar a psicologia, mas sim de
apresentar uma concepção fenomenológica que pode servir de base à psicologia, na medida
em que esta não pressuponha mais o psíquico como um fato natural, mas como um fenômeno
derivado, constituído pela reflexão.
Este posicionamento, diferentemente da teoria da temporalidade instantaneísta de La
Transcendance de l’Ego, permanece válido em L’Être et le Néant. Por esta razão, ambos os
textos são importantes para o nosso próprio desenvolvimento da teoria do psíquico em Sartre,
sobretudo na medida em que o primeiro é extremamente rico sobre o tema - o qual será em
certa medida dado como já trabalhado na ontologia sartriana -, de modo que nesta
encontramos apenas alguns aspectos diferenciais que serão apontados ao longo das análises
seguintes. Dito isto, podemos considerar ainda a importância deste plano ontológico que é a
psychè no contexto da hantologie, pelo fato desta evidenciar um plano espectral de forma
exemplar. Em nenhuma parte da ontologia sartriana pode-se vislumbrar com mais clareza um
modo intermediário entre as regiões para-si e em-si, expresso muitas vezes no texto sartriano
pela ideia do “quase”: quase-conhecimento, quase-objeto, quase-fora, etc. Transpondo em
termos de translucidez e opacidade, trata-se do plano das sombras, figuras que são como uma
matiz intermediária entre o claro e o escuro. É importante ressaltar que, de imediato, tal
característica do objeto psíquico não é apontada por Sartre como uma possível superação
deste último dualismo, pelo fato deste objeto ter sido relegado a um “fora” da consciência,
como objeto transcendente no mundo, que em nada perturbaria a translucidez. Mas é
exatamente este ponto que salta aos olhos quando se considera atentamente que a relação do
para-si com os objetos psíquicos não é a mesma da consciência irrefletida com as coisas no
mundo. Dito isto, quais seriam então as consequências deste modo de relação de um “quase-
fora”, “quase-outro” para um para-si que se relaciona intimamente (veremos este conceito
mais adiante) com os produtos de sua própria reflexão? Responder a esta questão torna-se
extremamente importante para que possamos ter em vista a relevância do assombramento no
que diz respeito ao plano das sombras.
53 EN, p. 195.
54 EN, p. 195.
55 Cf. EN, p. 190; p. 195.
56 TE, p. 129.
57 Ibid.
58 EN, p. 196 . Ver também: CPM p. 18-19.
!352
da consciência de tomar-se como objeto, embora nesse caso seja através de um voltar sobre si
reflexivo e não um fazer-se de má-fé pré-reflexivo. Para compreendermos rigorosamente as
consequências deste tipo de decisão, devemos passar então à estrutura reflexiva para em
seguida voltarmos à motivação.
No contexto de La Transcendance de l’Ego, como comentamos brevemente em outro
capítulo, os dois tipos de reflexão são caracterizados no quadro da temporalidade
instantaneísta: as duas reflexões apreendem os mesmos dados de consciência, mas uma -
impura - vai além da vivência atual e visa a um objeto transcendente através da consciência
refletida59. Em L’Être et le Néant não se admite mais a ideia de apreensão de um instante
(veremos adiante as características do modo ek-stático da reflexão), mas a reflexão impura
continua sendo um movimento de intencionar um objeto através da consciência refletida.
Outra mudança significativa entre os textos, também já comentada acima, diz respeito à
própria estrutura da pré-reflexão como “jogo de reflexos”, o que traz uma conceitualização
mais refinada do fenômeno reflexivo. Vejamos esta modificação estrutural em detalhes.
Sartre caracteriza em 1943 o cogito pré-reflexivo como uma díade reflexo-refletidor,
na qual cada termo encontra-se separado e unido ao outro, o que vimos ser um esboço de
dualidade na unidade. Do mesmo modo, a reflexão se estrutura por uma díade - não mais
reflexo-refletidor (reflet-reflétant), mas reflexivo-refletido (réflexif-réfléchi) - que possui a
mesma característica de dualidade na unidade, embora num segundo grau. Ocorre então que
ao fazer-se reflexivo - pois se trata de um ato motivado do para-si - esta distância de nada
(néant) entre os termos da díade pré-reflexiva originária aumenta sem, no entanto, separá-los
efetivamente. Em outros termos, o para-si que até então era consciência (de) si enquanto
consciência posicional dos objetos na irreflexão volta-se para si a fim de posicionar-se e
tomar-se como objeto, de modo a esticar a distância de nada da primeira estrutura reflexo-
refletidor60. O que antes era dualidade evanescente, onde os termos “avaient une telle
incapacité à se présenter séparément […] que chaque terme, en se posant pour l’autre devenait
l’autre” 61, agora é quase-alteridade, embora nada (rien), de fato, os separe. Sartre adverte em
seguida que não devemos pensar esta mudança como sendo um surgimento de uma
que la réflexion puisse s’orienter par rapport à elle, il faudrait que le réflexif ne fût pas le
réfléchi, sur le mode de n’être pas ce qu’il n’est pas : cette scissiparité ne sera réalisée que
dans l’existence pour autrui”65. A terceira ek-stase efetiva então uma separação dada por um
“fantôme d’extériorité”66, que vem a realizar aquilo que até então era impossível à reflexão:
ela só podia apreender um “quase-objeto”, o que faz dela “un stade de néantisation
intermédiaire entre l’existence du pour-soi pur et simple et l’existence pour autrui”67. Diante
destes três níveis de nadificação, podemos observar que enquanto a primeira ek-stase se refere
a um desprendimento da identidade do ser em-si que o para-si é, as duas outras mostram, ao
contrário, uma tendência à objetivação (sendo que pela reflexão tal tendência é motivada
próprio para-si, enquanto que pelo olhar do outro ele sofre a objetivação). O que nos interessa
nestas análises é o fato de que a motivação da reflexão - de fazer-se objeto para si - se opõe de
algum modo à estrutura da fuga do em-si contingente do ato ontológico, revelando uma
situação paradoxal. A diferença entre a identidade de base e a identidade desejada reside no
fato de que no ato ontológico o para-si surge como nadificação de seu ser contingente, ao
passo que o projeto se define pela busca de fundamento não somente de sua maneira de ser
mas também de seu ser. A reflexão é então uma “tentative de reprise d’être”, um “deuxième
effort pour se fonder”, com o intuito de fazer da fuga um dado (donné) ao “ramasser en l’unité
d’un regard cette totalité inachevée”, ao “dominer sa propre fuite” 68. Esta motivação estrutural
e pré-reflexiva do para-si como desejo de ser é retomada pela reflexão que, por ser
constituinte de novos objetos, oferece a possibilidade para o para-si de se identificar com o
objeto que ele mesmo produz de modo a realizar o desejo de ser seu próprio fundamento.
Neste contexto, a reflexão adquire um papel privilegiado ao realizar um recuo da consciência
sobre si mesma para se fundamentar não somente como maneira de ser, mas também como ser
total, causa sui e não mais gratuito e contingente. Dito de outro modo, a reflexão surge da
motivação do para-si em recuperar-se, ao colocar-se como objeto para si de maneira a adotar
um ponto de vista a partir de uma distância, de onde ele pode afirmar aquilo que ele é. Por
esta razão, torna-se paradoxal o fenômeno reflexivo, já que ele aumenta ainda mais a distância
a si (já dada na estrutura reflexo-refletidor) na tentativa da recuperação de si, logo, ambição
de suprimir a distância a si. Assim, a reflexão tem a mesma estrutura ontológica do para-si, de
65 EN, p. 190.
66 EN, p. 338.
67 EN, p. 190. (grifo nosso)
68 EN, p. 188-189.
!355
69 EN, p. 187.
70 EN, p. 189.
71 B, p. 79.
72 EN, p. 189.
73 CPM, p. 18.
74 CPM, p. 578.
!356
Constituição psíquica
75 “la réflexion impure, [...] est le mouvement réflexif premier et spontané (mais non originel)”. EN, p. 195.
!357
pour-soi”76, que se dá como um tipo especial do modo de ser em-si. Um em-si sui generis,
visto que “son être n’est point d’être mais d’être été, comme le néant”77, o qual Sartre
denomina significativamente de sombra. Se o em-si em geral é o modo de ser do objeto e
possui sua opacidade característica, eis que surge aqui um modo de ser que não é nem para-si
translúcido nem em-si opaco, mas é um “quase-objeto” 78, uma sombra.
Quando o reflexivo toma um ponto de vista sobre o refletido, ele faz aparecer,
portanto, uma sombra do refletido projetada atrás deste como um em-si, que pode ser
qualificado e determinado, embora seja algo que “le langage à peine à nommer”79. O ato
objetivante, de tomar um ponto de vista, aprofunda a distância de nada presente na estrutura
reflexo-refletidor de modo a colocar o refletido como se não fosse o reflexivo. Com isso, a
consciência busca alcançar uma separação de fato na estrutura da díade reflexiva para se
conhecer como objeto, visto que “connaître, c’est se faire autre”80. Esta separação, como
vimos, não é possível na estrutura una da consciência, senão como esboço de dualidade.
Consequentemente, o refletido só pode aparecer também como esboço de objetividade, logo,
como uma sombra de objetividade que, na verdade, não perde sua estrutura reflexo-refletidor,
mas a mantém transformada. Caso o refletido se transmutasse efetivamente em em-si, a
unidade do para-si seria cindida entre para-si e em-si no interior da estrutura do projeto, o que
faria desmoronar toda sua estrutura global temporal, além de substancializá-la. Por esta razão,
o refletido não pode ser transformado em em-si pela reflexão cúmplice, de modo que ocorre
apenas a projeção de uma sombra por detrás dele, a qual aparece como se fosse um em-si. Em
outras palavras, apesar da reflexão cúmplice visar à apreensão do refletido como não sendo o
reflexivo, o primeiro não pode deixar de ser para-si na unidade da consciência, de modo que
somente sua sombra lhe aparece como se não fosse si e por isso que Sartre conclui que “la
réflexion impure est un effort avorté du pour-soi pour être autrui en restant soi”81.
Acrescenta-se a isto que esta sombra de ser é ainda um “corrélatif nécessaire et
constant de la réflexion impure, que le psychologue étudie sous le nom de fait psychique” 82.
Os fatos, na verdade, são sombras, e estas possuem ainda uma peculiaridade: elas retêm “les
76 EN, p. 195.
77 Ibid.
78 EN, p. 190.
79 EN, p. 202.
80 EN, p. 190.
81 EN, p. 196.
82 Ibid.
!358
caractères du réfléchi réel, mais dégradés en en-soi ” 83. Assim, no fenômeno reflexivo há
projeção de objetos virtuais a partir do refletido, movimento que faz com que todas as
estruturas imediatas deste último encontrem-se degradas em em-si. O mesmo vale para o
modo da temporalidade ek-stática original que se encontra degradada em temporalidade
psíquica. As três dimensões ek-státicas da temporalização do para-si - passado, presente e
futuro - são agora apreendidas sob o modo de ser do em-si, tal como eram concebidas no
instantaneísmo dos primeiros textos sartrianos: uma sucessão de “agoras” isolados, de modo
que “la cohésion intime du psychique n’est rien autre que l’unité d’être du pour-soi
hypostasiée dans l’en-soi”84, pois “l’unité ek-statique se morcelle en une infinité de
« maintenant »”85 e assim “ils sont dans la tranquille indifférence de la juxtaposition” 86. A
sombra em-si do refletido que é o objeto psíquico possui então suas estruturas temporais
degradadas, isto é, há um presente, um passado e um futuro do refletido que sofrem a
perturbação da objetificação. As três ek-stases degradadas se encontram, no entanto, sob o
privilégio do passado, modo típico de objetivação: “Le réflexif projette un psychique pourvu
des trois dimensions temporelles, mais il constitue ces trois dimensions uniquement avec ce
que le réfléchi était”87 . Com isso os objetos psíquicos se dão à reflexão como “já feitos”, “já
estando lá”, como uma “totalité achevée et probable”88 e não em seu caráter de constituído.
Não obstante, os objetos psíquicos povoam permanentemente uma temporalidade particular
que se dá, por sua vez, como duração. Tal temporalidade fornece ao para-si um tipo de
“permanência” no tempo que não vem de um modo de ser substancial - visto que ele se
caracteriza por ser negação da identidade -, mas provém de sua reflexão sobre si. Segue-se
que com o privilégio da reflexão cúmplice em nossa vivência mais cotidiana, o que captamos
frequentemente é justamente a duração psíquica que acontece no interior do tempo do mundo
como tempo universal. Dito de outro modo, a temporalização do para-si é projetada no mundo
onde há um Eu que dura em meio às coisas, no contexto do tempo dos relógios, nomeado pela
linguagem. Tomando a si como uma mesmidade que dura, o para-si em sua vida cotidiana se
resume a um ser que apenas realiza uma trajetória no interior do tempo do mundo e a
temporalidade psíquica, assim como a temporalidade universal, é uma temporalidade
83 EN, p. 197.
84 EN, p. 201.
85 EN, p. 202.
86 EN, p. 200.
87 Ibid.
88 Ibid.
!359
Um psiquismo espectral
Desde que a reflexão impura projeta sombras por detrás do refletido, diz Sartre, “un
monde entier apparaît, qui peuple cette temporalité. Ce monde, présence virtuelle [...] il est
« mon ombre », il est ce qui se découvre à moi quand je veux me voir”93. Resta-nos entender o
estatuto ontológico deste “mundo virtual”, deste plano de sombras que é fantasmático, mas
não por isso uma ilusão94. Dissemos anteriormente que ele evidencia a espectralidade de
forma exemplar e agora devemos compreender o porquê desta afirmação.
O psiquismo é composto de objetos psíquicos onde “coexistent deux modalités d’être
contradictoires” 95, a partir de uma temporalidade também contraditória com relação a uma
base dualista, visto que “participant à la fois de l’en-soi et du pour-soi, la temporalité
psychique recèle une contradiction qui ne se surmonte pas”96, isto é, trata-se de “un dehors
esquissé dans l’immanence”97. Nem translúcido, nem opaco, o plano das sombras possui suas
características próprias de doação ao olhar reflexivo cúmplice. O espectral não é uma ilusão,
mas um modo concreto de ser dos objetos psíquicos - os quais “quoique virtuels, ne sont pas
des abstraits”98 - de modo que “ce monde fantôme existe comme situation réelle du pour-
soi”99. O caráter de assombramento neste momento não é contudo tão explícito, pois Sartre
não explicita se estes objetos assombram de fato o plano translúcido pré-reflexivo para-si.
Porém, consideramos ser muito importante compreender qual é a relação entre o para-si e suas
próprias sombras e desde já nos chama a atenção a descrição de que tais objetos estão
presentes ao para-si como “une sorte de visitation”100. Neste contexto, é difícil pensar que
tratar-se-ia de uma relação de indiferença, na medida em que as sombras assombram o para-si
como miragem e promessa de autofundamento. Além do que, elas estão presentes como um
“cortège permanent”101 e cotidiano - através ainda de uma temporalidade que é “un être
virtuel dont l’écoulement fantôme ne cesse d’accompagner la temporalisation ek-statique du
pour-soi”102 -, desde que ocorra o fazer-se reflexivo.
Apreender o modo de aparição do psiquismo é tomá-lo como o plano das sombras e
não como fatos naturalizados. A investigação deste plano, portanto, deve seguir seu caráter de
constituído e compreender o modo de aparição dos fenômenos psíquicos. Sendo o psíquico
um plano contraditório para uma divisão rígida entre para-si e em-si, devemos apreendê-lo a
partir de suas contradições mesmas e não como uma ilusão que deve ser descartada ao longo
da investigação; se o mundo psíquico existe como situação constante do para-si, é de suma
importância descrever seus modos de aparição na vida cotidiana do sujeito. Tal relevância do
papel do psíquico na vida cotidiana se deixa notar ainda quando Sartre diz que a
temporalidade psíquica “apparaît à la fois comme incompatible avec le mode d’être de notre
être et comme une réalité intersubjective, objet de science, but des actions humaines” 103, e
também que “c’est au niveau du fait psychique que s’établissent les rapports concrets entre les
hommes, revendications, jalousies, rancunes, suggestions, luttes, ruses, etc.”104. Assim, para
Sartre, o psíquico diz respeito a uma realidade intersubjetiva e ele é ainda o objeto da
97 EN, p. 193.
98 Ibid.
99 EN, p. 205.
100 EN, p. 193.
101 EN, p. 198.
102 EN, p. 205.
103 EN, p. 194.
104 Ibid.
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psicologia. Esta ciência, por sua vez, ao partir da fenomenologia husserliana via Sartre, pode
ter em vista a realidade espectral do psíquico de maneira a abrir mão de pressupostos
naturalistas - os quais estão na base de uma interpretação substancial - ao reorientar seu
trabalho e pesquisa. O tipo de interpretação substancialista do psíquico tem como
consequência uma análise mecanicista da relação de tais objetos entre si, que agiriam
conforme leis gerais (como a de causa e efeito, por exemplo), o que para Sartre é o modelo de
uma “psicologia do inerte” e não fenomenológica. A nosso ver, se o psíquico é o objeto da
psicologia e se este plano é espectral, o psicólogo que parte da fenomenologia - sartriana -
deve se ater às características justamente espectrais deste plano ontológico. Dito de outro
modo, o psicólogo estudará o fato psíquico como sombra projetada da reflexão e não como
fato em-si substancial e, com isso, a psicologia se dirige à exterioridade da sombra com
relação à consciência que a produz, abrindo mão de considerar a reflexão como um tipo de
“introspecção” (como uma forma de aceder à interioridade) e, do mesmo modo, das
interpretações mecanicistas. Se os objetos psíquicos são sombras, faz-se necessário outro
modo de interpretação da relação entre eles a partir da maneira pela qual eles aparecem ao
olhar reflexivo cúmplice, isto é, se os objetos podem aparecer como fatos naturais à
consciência reflexiva, isto não significa que eles efetivamente o são. Cabe à reflexão
fenomenológica mostrar este “se revelar como”, esta maneira também “contraditória” - que
identificamos como espectral - de relação entre objetos também espectrais. Estas relações de
tipo especial, “étranges relations presque interhumaines”105, Sartre denomina de
irracionalidade mágica. Enquanto que a “interprétation mécaniste du psychique qui, sans être
plus intelligible, déformerait complètement sa nature” 106, a compreensão das relações entre os
objetos como mágicas revela, ao mesmo tempo, o caráter de sombra projetada de tais objetos
e o modo de relação entre eles tal como se apresentam à reflexão. A partir de então, “le
psychologue doit décrire ces liens irrationnels et les prendre comme une donnée première du
monde psychique”107 . O modo mágico de relações entre os espectros é próprio a este tipo de
realidade virtual, ele define tipos de relações que se dão no “écoulement fantôme” da duração
psíquica. O caráter mágico é o que permite compreender as especificidades do psíquico na
medida em que se trata de uma “psychè striée, organisée, dynamique : malléable et perméable
dans ses couches de constitution les plus fraîches, figée dans ses couches plus anciennes” 108.
Segundo J.-M. Mouillie, “distinguer conscience et vie psychique ne ramène pas celle-ci au
déterminisme - fût-il déterminisme spécial. Il y a refonte incessante, réorganisation dans de
nouvelles synthèses”109.
Para compreendermos os modos de relações mágicas, devemos passar aos tipos de
objetos psíquicos que, desde La Transcendance de l’Ego, Sartre definiu como sendo os
estados, as ações e as qualidades, que encontram-se unificados no Ego. Tais objetos são
transcendentes para a consciência e constituem a trama da vida psíquica com a qual ela tem de
se relacionar. O texto mais rico a este respeito é sem dúvida La Transcendance de l’Ego, cujas
análises sobre o psíquico continuam sendo válidas ao longo do percurso filosófico sartriano,
apesar das diferenças que já demarcamos acima.
Para Sartre, o estado é a unidade transcendente das vivências da consciência. Como
tal ele é objeto de uma intuição concreta, isto é, ele é “présent devant le regard de la
conscience réflexive, il est réel”110. O estado é formado por uma espécie de substancialização
dos sentimentos, os quais adquirem uma forma inerte e passiva, podendo ser nomeados, como
o amor e a raiva, por exemplo. Em La Transcendance de l’Ego, Sartre faz uma distinção entre
os estados e as vivências, as quais são posteriormente unificadas pela reflexão impura,
compondo os estados. Também no Esquisse d’une théorie des émotions, Sartre comenta a
diferença entre a vivência emocionada e os estados, acrescentando que o erro dos psicólogos é
justamente a confusão entre eles, já que enquanto as emoções se dão como uma maneira da
consciência irrefletida se relacionar com o mundo, os estados são produtos reflexivos. Neste
tipo de constituição, ocorre que a consciência reflexiva cúmplice unifica as diversas vivências
irrefletidas num estado, o qual, por sua vez, adquire permanência e vai além das próprias
vivências, embora apareça através delas. Se o estado adquire permanência, isto ocorre
justamente porque, a partir desta constituição de um objeto, a consciência realiza uma cisão
entre ser e aparecer, de modo que o estado se dá como “continuant d’être même lorsque je
suis absorbé dans d’autres occupations et qu’aucune conscience ne la révèle”111. Isto significa
intuito de mostrar que não se trata de uma ilusão, o autor busca acentuar sua realidade e a possibilidade dele ser
apreendido pela consciência reflexiva. Entretanto, como o amor ou a raiva, por exemplo, podem se apresentar de
maneira a serem descritos pela reflexão? Parece-nos que a dificuldade que aí se apresenta se dá justamente pelo
modo de presença que é de algum modo indescritível, próprio à espectralidade.
111 TE, p. 109.
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estados. É o que ocorre quando dizemos, por exemplo, que “minha irritação provém da minha
crise habitual”. Este tipo de interpretação causal, para Sartre, se dá sobre um fundo de
irracionalidade total e diante disso “il faut renoncer à réduire l’irrationnel de la causalité
psychique : cette causalité est la dégradation en magique, dans un en-soi qui est ce qu’il est à
sa place, d’un pour-soi ek-statique qui est son être à distance de soi. L’action magique à
distance et par influence est le résultat nécessaire de ce relâchement des liens d’être.” 115
Do mesmo modo, as qualidades aparecem na lida natural como atualizações de
potencialidades inerentes do sujeito, mascarando o caráter de indeterminação do para-si.
Como o próprio nome indica, sua função é a de qualificar reflexivamente a si mesmo a partir
da apreensão dos estados como provenientes de uma “disposição psíquica”. A título de
exemplo, podemos dizer “sou rancoroso” ou “sou capaz de odiar” com base na experiência
em relação a diversos estados como ódio e raiva. Em La Transcendance de l’Ego, Sartre
coloca as qualidades como sendo um intermediário entre os estados e as ações, dado que seu
grau de virtualidade é mais evidente. Isto porque ela aparece como uma potencialidade (e não
como uma possibilidade) que pode ou não ser atualizada, mas nem por isso deixa de ser um
objeto psíquico. A participação da qualidade na composição da trama psíquica é então
facultativa, dado que a qualidade só existe ao “se atualizar” em estados e ações, enquanto que
estes não possuem esta dependência essencial. Sartre define em La Transcendance de l’Ego
estes tipos de “ser em potência” como sendo “les défauts, les vertus, les goûts, les talents, les
tendances, les instincts, etc.”116, para concluir em seguida, sem maiores explicações, que a
influência de ideias preconcebidas e de fatores sociais é neste caso preponderante. Somente
em L’Être et le Néant ele acrescenta, embora também de forma muito breve, um tipo de
qualidade que tem a história pessoal por origem, como as características que são adquiridas
com o tempo, que são os hábitos117.
Além disso, as ações podem ser também objetos transcendentes para a consciência. No
entanto, não se trata aqui da ação irrefletida enquanto projeto de ser-no-mundo, mas sim da
ação orquestrada, sob a forma de um empreendimento que demanda tempo, momentos. A
reflexão impura apreende neste caso uma gama de consciências ativas sob a forma de uma
115EN, p. 204-205.
116TE, p. 113.
117Cf. EN, p. 197. Sartre acrescenta ainda um tipo intermediário entre estados e qualidades, mas a este respeito
ele oferece somente um pequeno exemplo que, a nosso ver, não esclarece esta nova forma psíquica. Ver: EN, p.
197-198.
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ação total, como “tocar piano”, ou mesmo “construir um argumento”. Em L’Être et le Néant,
como Sartre evidencia o caráter prático de ser-no-mundo do para-si, a distinção entre a ação
pré-reflexiva e o ato psíquico (aqui o autor fala em atos ao invés de ação) torna-se ainda mais
importante. Desde o texto inicial sobre o Ego, Sartre assume que estabelecer uma distinção
entre a consciência ativa e a consciência espontânea parece ser “un des problèmes les plus
difficiles de la phénoménologie” 118. No contexto de sua ontologia, o ato mantém as mesmas
características das ações nas descrições anteriores, mas de modo a ressaltar esta diferença: o
ato psíquico não é equivalente ao projeto de ser do para-si rumo às suas possibilidades, ele se
apresenta como “la face objective du rapport du pour-soi avec le monde”119.
Atos, qualidades e estados são os objetos que compõem a psychè sartriana. Veremos a
seguir que eles encontram unidade no Ego psíquico, o qual, por sua vez, aparece ao olhar
cúmplice como produtor de tais objetos.
Uma última observação sobre o psiquismo antes de nos concentrarmos na
especificidade do papel do Ego psíquico: qual é afinal a diferença entre La Transcendance de
l’Ego e L’Être et le Néant a respeito dos objetos psíquicos, já que houve uma mudança da
teoria do tempo em Sartre? A este respeito, é possível afirmar em primeiro lugar que a
temporalidade instantaneísta inicial é agora atribuída à temporalidade psíquica. Com efeito,
Sartre já falava em duração psíquica anteriormente, tanto que a crítica à substancialidade da
multiplicidade de interpenetração da duração em Bergson permanece. Mas neste momento
soma-se a esta crítica o caráter degradado e mágico do instantaneísmo psíquico. De todo
modo a questão é bem sutil, dado que Sartre mantém a ideia de que a consciência reflexiva
cúmplice visa um objeto através da consciência refletida. Mas, o importante a ser ressaltado é
que, neste momento posterior, o objeto psíquico não é simplesmente descrito como opaco em
referência às coisas do mundo, ele agora é caracterizado como sombra. Além disso, o
refletido, não sendo mais instantâneo, é ek-stático. Ocorre então que a reflexão impura, ao
projetar sua sombra, projeta do mesmo modo as características originais ek-státicas agora
degradas em em-si, como podemos observar nesta afirmação sobre o futuro: “l’ombre projetée
du pour-soi comme pour-soi réfléchi possède naturellement un futur dégradé en en-soi et qui
fait corps avec elle en déterminant son sens” 120. Há, portanto, um presente, um passado e um
futuro do objeto psíquico, degradados das ek-stases originárias, que compõem sua aparência
de substancialidade e que sustentam sua condição de permanência no tempo.
O Ego psíquico
das qualidades. Enquanto os estados são formados como unidade de vivências e as ações
como unidade de momentos de ação, o Ego é unidade daquilo que já se encontra unificado, o
que significa que nele a unificação incide sobre outros objetos psíquicos e não sobre as
vivências. No entanto, apesar do Ego ser constituído pela reflexão cúmplice, este não é o
modo pelo qual ele aparece ao olhar reflexivo, o qual o apreende como produtor e não como
produto. O Ego aparece assim, diz Sartre, como aquele que produz os objetos psíquicos, num
tipo de “produção poética”125 mágica, assim como a emanação era atribuída aos estados e a
atualização às qualidades. O que acontece é que no modo de apreensão do Ego ocorre, mais
uma vez, uma inversão da ordem de constituição, a qual corresponde ao processo de
objetificação e unificação das vivências em estados e ações até por fim serem atribuídas ao
Ego. Este processo de objetificação e unificação, que vai encontrar seu auge no Ego, não faz
dele posteriormente um simples “suporte” abstrato de seus produtos. O Ego é criador ao
mesmo tempo em que se encontra “comprometido” com seus produtos126, de modo que ele
sofre uma dimensão de passividade, no sentido de que ele “est susceptible d’être affecté”; “[il]
subit le choc en retour de ce qu’il produit”127. Sendo o Ego na verdade composto pelos
objetos psíquicos que aparecem como dependentes dele, ele é constantemente feito e refeito
pelas novas unificações e pelo efeito de seus produtos. Por isso, ressalta De Coorebyter, “son
mode de composition annonce son incessante recomposition”128 e “son identité est
récapitulative donc précaire, incessamment révisée, soumise à la loi du devenir” 129.
Através da inversão na ordem de constituição, a consciência projeta sua
espontaneidade no Ego, como se fosse ele o polo de constituição e não a própria reflexão
impura. É o que Sartre chama de “pseudo-espontaneidade” do Ego, que é apenas uma
aparência na medida em que a consciência “projette sa propre spontanéité dans l’objet Ego
pour lui conférer le pouvoir créateur qui lui est absolument nécessaire. Seulement cette
spontanéité, représentée et hypostasiée dans un objet, devient une spontanéité bâtarde et
ne dit pas ‘Peut-être que j’ai un ego’, comme je peux me dire ‘Peut-être que je hais Pierre’” TE, p. 116.
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Outra característica diferencia ainda o Ego dos demais objetos do mundo e reforça a
ideia de que não somente ele não pode ser definido simplesmente como um “objeto” ou um
“em-si” mas, além disso, seu modo de ser é espectral: sua maneira de aparecer é
especialmente fugidia às pretensões do conhecimento. Sartre estabelece uma analogia entre os
modos de aparição do Ego e do mundo - “L’Ego est aux objets psychiques ce que le Monde
est aux choses”141 - no intuito de evidenciar o caráter de “horizonte” deste último, na medida
em que ele ultrapassa e engloba os objetos psíquicos. F. Rouger esclarece o sentido desta
analogia: “En son ordre propre l’Ego, comme le Monde, « se donne » pour assumant un
double rôle de Fond et d’Horizon. A titre de Fond , il est une profondeur inépuisable qui se
déploie et n’en a « jamais fini » de se déployer” 142. Mas o mundo, acrescenta Sartre, aparece
raramente como horizonte das coisas enquanto que o Ego aparece sempre como horizonte dos
estados, no sentido que “chaque état, chaque action se donne comme ne pouvant être sans
abstraction séparée de l’Ego”143. O ponto importante em tal analogia é o de que o Ego aparece
mais como horizonte do que como objeto de uma intuição específica, o que acarreta no fato de
que ele não pode ser conhecido. Como dizia Camus, “si j’essaie de saisir ce moi dont je
m’assure, si j’essaie de le définir et de le résumer, il n’est plus qu’une eau qui coule entre mes
doigts”144.
A impossibilidade de conhecimento deste tipo especial de objeto é o ponto que revela
seu caráter propriamente espectral. Vimos ser próprio do espectro este modo de “presença”
particular não localizável e, portanto, impassível de ser apreendida pela intuição. Ora, tal é o
modo de existência do Ego psíquico, este “fantôme de la transcendance”145 que não se deixa
conhecer já que “une visée directe, ou frontale, de l’Ego, susciterait sa dissolution
radicale”146. Para Sartre, o Ego não somente é fugidio por natureza mas ele possui este modo
de aparição que a nosso ver é próprio do assombramento de um espectro: “En effet, l’Ego
n’apparaît jamais que lorsqu’on ne le regarde pas” 147; o Ego só pode ser pressentido “« du
coin de l’œil »”, por uma visada lateral e, desde que o olhar se dirige para apreendê-lo, “il
O corpo psíquico
148 Ibid.
149 TE, p. 121. (grifo nosso)
150 DE COOREBYTER, V. Sartre face à la phénoménologie, p. 515.
151 MOUILLIE, J-M. Sartre, p. 67-68.
152 EN, p. 377. (grifo nosso)
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153 Ibid.
154 EN, p. 377.
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corpo como dor nos olhos, vem a realizar, pela reflexão, uma cisão: ela distingue o mal da dor
vivida. A partir de então, o mal ganha uma espécie de autonomia e a assombra: “il vient et
s’en va”155, diz Sartre, que fala ainda de um “animisme du mal : il se donne comme un être
vivant qui a sa forme, sa durée propre, ses habitudes” 156. O mal é um espectro. E isto tanto
pelo seu caráter de sombra, quanto pela maneira pela qual ele assombra o para-si: “il apparaît
et disparaît autrement que les objets spatio-temporels : si je ne vois plus la table c’est que j’ai
détourné la tête ; mais si je ne sens plus mon mal, c’est qu’il « est parti »” 157. Assim, o
assombramento é neste caso a relação íntima entre o para-si e suas próprias sombras, pois
como pode, ao mesmo tempo, o mal encontrar-se “hors de la conscience”158 - visto que é
sombra projetada - e ser dela? Sartre responde a esta questão da seguinte maneira: “le mal est
transcendant mais sans distance. Il est hors de ma conscience, comme totalité synthétique, et
déjà tout près d’être ailleurs, mais d’un autre côté il est en elle, il pénètre en elle, par toutes
ses dentelures, par toutes ses notes, qui sont ma conscience”159. Podemos dizer então que o
mal habita, assombra, a consciência de modo que ela o sofre. O mal é da consciência na
medida em que o psíquico é sombra projetada não no sentido de uma imagem, mas como
corpo psíquico, o que significa que ele é produzido com a própria “matéria translúcida” da
afetividade original. É esta textura que sofre objetivação e sustenta corporalmente toda a
produção psíquica, criando uma dimensão de passividade sofrida pela própria consciência já
que ela não se separa de seus quase-objetos. Sartre resume da seguinte maneira todos estes
pontos:
Tendo em vista estas afirmações, podemos concluir que, pela dimensão do corpo
psíquico, Sartre estabelece o tipo de relação das sombras com o para-si, na medida em que
estas são compostas da própria textura da afetividade original. Com isso, Sartre faz com que o
para-si seja atravessado pelas próprias sombras, de modo a sofrer seus efeitos. Se não fosse
assim, não haveria como compreender a relação íntima do para-si com o seu mal, cuja
frequentação ocorre como uma espécie de visitação. É a camada espectral do corpo psíquico -
“ce milieux [qui] n’est pas saisi pour lui-même […] et pourtant il est là” - que estabelece
finalmente a ligação do para-si reflexivo com suas próprias sombras, as quais, ao ganhar
autonomia, passam a assombrar o próprio plano irrefletido.
b) O assombramento do imaginário.
Após o trabalho crítico realizado em torno das teorias sobre a imagem dos “grandes
sistemas metafísicos” filosóficos desde Descartes e da psicologia experimental em
L’Imagination, Sartre conclui que, por via da fenomenologia de Husserl, “la voie est libre
pour une psychologie phénoménologique de l’image”161. Neste primeiro trabalho, Sartre
anuncia o programa do que virá em seguida em L’Imaginaire: “On doit chercher à constituer
une eidétique de l’image […] [Puis] il faudra passer du certain au probable et demander à
l’expérience ce qu’elle peut nous apprendre sur les images telles qu’elles se présentent dans
une conscience humaine contemporaine”162. Esta segunda obra, publicada em 1940 (quatro
anos após a primeira), consistia, segundo Contat & Rybalka, numa parte da primeira que fora
descartada para fins de publicação163. De fato, é possível notar claramente um tom de
continuidade entre as duas obras, embora, como vimos anteriormente, esta seja a época em
que Sartre reconfigura as bases de sua filosofia164. Certa descontinuidade pode ser entrevista,
entretanto, com relação à parte final de L’Imaginaire, mais precisamente a partir do capítulo
intitulado de “Vida imaginária” e, principalmente, na “Conclusão”. Enquanto que a primeira e
saurait rien apprendre, et l’intuition n’est que du savoir alourdi, dégradé”170 , ou seja, posso
formar uma imagem de um livro, olhar suas linhas e suas frases, “mais je ne lis pas. Et, au
fond, je ne regarde même pas, car je sais déjà ce qui est écrit”171. Esta característica leva
Sartre a identificar um “empobrecimento” próprio à imaginação, devido a uma espécie de
isolamento do mundo (por isso sem aprendizagem), enquanto que na percepção algo só se dá
como uma coisa através de infinitas relações. No “mundo” das imagens “nada acontece”, “pas
une seconde de surprise : l’objet qui se meut n’est pas vivant, il ne précède jamais
l’intention”172. Diferentemente da relação ao psíquico, a consciência neste caso não se
apreende como produto de seus objetos, mas, ao contrário, ela se sabe criadora, “comme une
spontanéité qui produit et conserve l’objet en image”173.
A clivagem entre percepção e imaginação se mantém até a “Conclusão” de
L’Imaginaire174. Em contraposição a esta divisão anterior, no momento final da obra Sartre
define como condição de possibilidade da imaginação o modo essencial da consciência como
negação. A dimensão do nada (néant) adquire aqui um papel fundamental, próprio a esta
época de primeiras elaborações do que virá a ser L’Être et le Néant, razão pela qual o
imaginário ocupa um papel importante nesta ontologia. Ao colocar a estrutura da negação
como condição de possibilidade da imaginação, Sartre chega a afirmar que “l’imagination
[…] s’est dévoilée comme une condition essentielle et transcendantale de la conscience” 175.
Tendo em vista esta última posição, há um contraste entre a postulação de uma clivagem entre
real e imaginário e a decisão final de colocar a imaginação como condição essencial e
transcendental da consciência. Este ponto é evidenciado por Giovannangeli em seu artigo
“Imaginaire, monde, liberté”, em que ele mostra justamente que no final de L’Imaginaire
Sartre “va même renvoyer toute négation à l’imagination”176, o que o leva a concluir que “pas
d’imagination sans négation; mais pas davantage de négation sans imagination”177 . A partir de
considerações sobre o livro Phénoménologie de l’expérience esthétique de Mikel Dufrenne,
Giovannangeli pontua, entre outras coisas, uma distinção entre o aspecto transcendental da
I’re, p. 346. Este ponto é ainda mencionado em L'Être et le Néant. Cf. EN, p. 298; p. 646.
175 I’re, p. 361.
176 GIOVANNANGELI, D. Imaginaire, monde, liberté. In: BARBARAS, R. (Org.) Sartre: désir et liberté. Paris:
de uma constituição feita por uma “espontaneidade” que pode adquirir um caráter voluntário,
mas que em si mesma não é voluntária, podendo chegar ao caso em que a consciência se vê
prisioneira de seu próprio imaginário. O ponto que pretendemos evidenciar é o caráter
espectral dos objetos irreais, ou seja, temos em vista um objeto que “est présent mais, en
même temps, […] hors d’atteinte”194 e isto porque “il apparaît, disparaît, revient et ce n’est
plus le même”195. Na descrição do objeto irreal, Sartre ressalta seu caráter ambíguo e, por
vezes, “híbrido”, como na imitação gestual, por exemplo, cujo modo de ser não é “ni tout à
fait perception ni tout a fait image, qui vaudrait d’être décrit pour lui seul”196. Uma
ambiguidade que “constitue la seule profondeur de l’objet en image. Elle représente en lui
comme un semblant d’opacité”197, que Sartre chega a comparar a uma sombra, que aparece
em um espaço e tempo também “sombras”: “C’est une ombre de temps qui convient bien à
cette ombre d’objet, avec son ombre d’espace”198. Como é próprio dos modos de ser que
possuem a característica da magia, estes “objetos-fantasmas”, continua Sartre, “sont ambigus,
fuyants, à la fois eux-mêmes et autre chose qu’eux-mêmes, ils se font les supports de qualités
contradictoires” 199; eles são “[des] êtres étranges qui échappent aux lois du monde. Ils se
donnent toujours comme des totalités indivisibles, des absolus. Ambigus, pauvres et secs en
même temps, apparaissant et disparaissant par saccades, ils se donnent comme un perpétuel
« ailleurs », comme une évasion perpétuelle”200. Segue-se que tais objetos assombram a
consciência como possibilidade de evasão do mundo, de enclausuramento em uma vida
imaginária, caracterizando um “anti-mundo”, no qual a consciência só pode agir se se tornar
ela também imaginária, irrealizando-se. O anti-mundo imaginário é visto então como uma
fuga do mundo real, mas uma fuga assombrada, pois ao contrário de uma percepção clara e
distinta, que é “tranquilizadora”, o imaginário é perturbador: “Si nous avons peur dans la nuit,
dans la solitude, c’est que les objets imaginaires qui nous hantent sont, par nature, louches”201.
A natureza de tais objetos nos remete ao terceiro ponto listado acima, que se referia
aos espectros como superação da clivagem entre real e irreal. É próprio do espectro, que não é
nem vivo nem morto, nem existente nem não existente, surgir nestas zonas intermediárias.
Assim, ao colocar o imaginário como intrínseco ao real, Sartre espectraliza aquilo que era
dado como real, de forma que os objetos-fantasmas imaginários passam a habitar
constantemente o mundo. É o que podemos observar na famosa descrição de L’Être et le
Néant onde o autor relata a situação imaginária de um encontro de seu amigo Pierre num café.
O excesso de plenitude que poderia ser entrevisto na cena é quebrado pelo fato de que Pierre
“não está” lá. Mas esta ausência de Pierre não é localizável em alguma parte do café, ele “est
absent de tout le café”. Acontece ainda que é esta ausência mesma que organiza o café em
fundo indiferenciado em torno de uma forma; mas esta forma é um nada, um “évanouissement
perpétuel, c’est Pierre s’enlevant comme néant sur le fond de néantisation du café”202. Se a
consciência imaginante se estrutura pelo posicionamento de um nada, seja como inexistente,
como ausente, como existindo em outro lugar, ou como “neutralizado”, o fato de haver
intuição de Pierre como não estando no café mostra bem o papel constitutivo do imaginário na
percepção. Este exemplo acentua este aspecto ao falar de uma “dupla nadificação”: a do café
como fundo e a da ausência de Pierre como forma, de modo que a negação “Pierre não está no
café” não é judicativa, ela é a própria organização da percepção em fundo e forma. O caráter
imaginativo da percepção faz então com que a realização seja ao mesmo tempo uma
realização irrealizante, dando margem a aparição do espectral como simultaneidade de ser e
nada. Neste caso, a presença-ausente de Pierre “hante ce café”203 pelo fato dele estar ausente
de todo o café e não de um ponto localizável, e ainda de modo de que este assombramento é a
própria condição da organização concreta do café em fundo.
Por fim, diante destas breves posições anteriores a L’Être et le Néant, nos
perguntamos, após identificar a dimensão imaginária intrínseca ao real e ainda a distinção
entre a imaginação empírica e a transcendental, qual é o papel do imaginário no modo de ser-
no-mundo do para-si? Já mencionamos a espectralidade própria do mundo assombrado e
também o papel cotidiano do plano de sombras que é o psíquico na existência do para-si, de
modo que podemos abordar agora o assombramento relativo a mais um plano de sombras que
ocorreria nos momentos do que foi aqui chamado de “imaginação empírica”. L’Être et le
Néant não fornece muitas respostas neste sentido talvez por Sartre considerar como já
resolvida a questão em L’Imaginaire, do mesmo modo que La Transcendance de l’Ego fez
sua tarefa em relação ao psíquico. No entanto, se adotarmos a tese explicitada acima da
imaginação transcendental e empírica, podemos fazer valer para o para-si o plano de sombras
de L’Imaginaire. Em outros termos, podemos identificar não somente o psíquico como uma
zona de sombreamento que assombra constantemente o para-si, mas também que a
consciência “est constamment entourée d’un cortège d’objets-fantômes”204, que é o
imaginário. É este o ponto que Sartre vai explorar em trabalhos de psicanálise existencial
posteriores à sua ontologia, principalmente em Saint-Genet e L’Idiot de la famille, obras onde
o caráter de fuga pelo imaginário se expressa de forma tão acentuada a ponto de cumprir um
papel de alienação do sujeito.
Na terceira parte de L’Être et le Néant, ocorre uma passagem para o que Benoist
denominou, a partir dos referenciais do próprio Sartre, de momento propriamente metafísico
da obra. Isto no sentido de que o outro (autrui) vem ao encontro do para-si como “algo que
lhe acontece”, revelando-lhe sua dimensão para-outro (pour-autrui)205. Este encontro,
continua Benoist, perturba toda economia da ontologia precedente, a qual se restringia ainda
às análises das regiões ontológicas para-si e em-si, o que resultava numa teoria formal de um
sujeito solipsista caracterizada pelo “triunfo da ipseidade”. A partir do encontro com o outro,
que é da ordem de um “acontecimento”, ocorre uma mudança no centro de gravidade da obra,
visto que se até então “rien dans l’économie dialectique de l’en-soi et du pour-soi ne requiert
autrui”206, enquanto que agora “on thématise un pour soi dont il est devenu essentiel qu’il soit
un pour autrui”207. Segue-se que, a seu ver, deveríamos fazer o gesto de Levinas que consiste
em privilegiar tal caráter metafísico de modo que “l’ontologie est toujours sous condition de
la métaphysique, il n’y a pas de pour-soi sans pour autrui, le pour-soi est rendu possible
comme pour-soi par ce qui lui arrive”208. Conforme já comentamos inicialmente, Benoist
realiza um corte radical entre as duas primeiras partes da obra - correspondentes à ontologia -
e a parte que se inicia com o capítulo do para-outro, metafísica. No entanto, como
evidenciamos anteriormente, este corte não acentua suficientemente a estrutura da facticidade
do para-si, que é fundamental para compreendermos a inserção fática intersubjetiva do para-si
enquanto movimento de historialização 209. De todo modo, Benoist destaca de fato um
momento capital da obra, revelando claramente o quão absurda seria a visão de um para-si
sem os outros.
A divisão entre um para-si solipsista no quadro de uma ontologia e a aparição do outro
como um acontecimento que torna essencial a dimensão para-outro do para-si nos remete à
descrição de Sartre em Saint Genet : comédien et martyr da saída de Jean Genet da inocência
através da descoberta de sua singularidade. A partir de uma imersão em temas míticos que
são próprios ao quadro simbólico que melhor permite a compreensão dos temas fundamentais
de Genet, carregado de figuras religiosas, Sartre descreve o momento de um acontecimento
que é a “aparição do outro” como operador de uma metamorfose 210. Assim como na obra de
Kafka não há nada que anteceda ou explique a metamorfose de Gregor Samsa em uma
criatura monstruosa, a transformação de Genet em ladrão se dá, do mesmo modo, por um fato
contingente, num instante fatal211, que tudo muda e que o arranca da inocência: “A l’instant
s’opère la métamorphose : il n’est rien de plus que ce qu’il était, pourtant le voilà
méconnaissable. Chassé du paradis perdu212, exilé de l’enfance, de l’immédiat, condamné à se
voir, pourvu soudain d’un « moi » monstrueux et coupable, isolé, séparé, bref, changé en
vermine”213. Sartre identifica assim, a partir do encontro com o outro que produz a
metamorfose, a aparição do “eu” com a quebra da imediaticidade. E isto de tal modo que a
208 Id.
209 Cf. “Segunda parte”, capítulo IV, §1, e).
210 Neste contexto não se trata mais (ou apenas) do processo de metamorfose que descrevemos na “Segunda
Parte” (Cap.III, §3, b), como a tentativa sartriana de descrever uma espécie de “duração”, mas de um
acontecimento que modifica inteiramente a maneira de ser que o precedia.
211 “Or qui dit « instant » dit instant fatal : l’instant c’est l’enveloppement réciproque et contradictoire de l’avant
par l’après; on est encore ce qu’on va cesser d’être et déjà ce qu’on va devenir; on vit sa mort, on meurt sa vie;
on se sent soi-même et un autre, l’éternel est présent dans un atome de durée; au sein de la vie la plus pleine on
pressent qu’on ne fera plus que survivre, on a peur de l’avenir”. SG, p. 9.
212 Sartre identifica a inocência infantil ao paraíso perdido: “Le mythe de l’innocence enfantine est une forme
inocência se assemelha ao para-si solipsista apontado por Benoist: “A présent il n’y a plus
personne dans la pièce : une conscience abandonnée reflète des ustensiles”214; “Jusqu’à la
« crise », il vivait dans la « douce confusion » de l’immédiat, il ignorait qu’il fût personne : il
apprend et, du même coup, que cette personne est un monstre” 215. De maneira diferente, mas
também como uma quebra causada por um acontecimento que promove a descoberta da
alteridade, Sartre indica a metamorfose provocada pela “crise” de Baudelaire, a qual o revela
sua “existência pessoal”: ele que vivia até então numa fusão com a mãe - “il se sentait uni au
corps et au cœur de sa mère par une sorte de participation primitive et mystique” 216 - foi “jeté
sans transition dans l’existence personnelle”217 no momento em que sua mãe se casa
novamente, provocando uma ruptura na relação fusional que a psicanálise de um modo geral
denomina de simbiose. Este episódio foi vivido por Baudelaire como uma experiência de
separação que o fez descobrir uma profunda solidão, ao mesmo tempo em que “il a éprouvé
qu’il était un autre, par le brusque dévoilement de son existence individuelle”218.
Diante destes exemplos extraídos de textos sartrianos de psicanálise existencial,
podemos confirmar o caráter da descoberta do outro como um acontecimento que provoca
uma metamorfose no projeto de ser do para-si de modo a instaurar uma ruptura entre: um
estado de inocência, sem eu, puro reflexo imediato do mundo, e a existência pessoal, que
nasce a partir de uma separação, de onde surge um “eu” e um “outro”, através do que em
L’Être et le Néant é descrito como sendo a apreensão do para-si de seu ser ser-olhado (être-
regardé).
Neste contexto, pode-se observar a presença de temas bíblicos do Gênesis não
somente em relação a Genet, mas também nas descrições sobre o surgimento do ser olhado
em geral. Até porque, a figura de Deus, além de ser identificada ao ser do valor, é aquela que
representa um olhar onipresente e “invasivo”, motivo pelo qual Sartre ainda jovem resolve
com ele “romper relações”: “Il ne me regarda plus jamais”219, diz o autor em tom de decisão.
A ausência de um Deus morto não é o mesmo que sua simples não existência, como ele
mostra longamente em Mallarmé. Neste caso, há o trabalho do luto e o vazio do lugar de
testemunho, de modo que a condição de ser-olhado passa a ser atribuída aos homens. A
La honte pure n’est pas sentiment d’être tel ou tel objet répréhensible
mais, en général, d’être un objet, c’est-à-dire de me reconnaître dans
cet être dégradé, dépendant et figé que je suis pour autrui. La honte est
sentiment de chute originelle, non du fait que j’aurais commis telle ou
telle faute, mais simplement du fait que je suis « tombé » dans le
monde, au milieu des choses, et que j’ai besoin de la médiation
d’autrui pour être ce que je suis224.
220 O seguinte trecho mostra bem o tema da inocência e da queda no caso de Gustave Flaubert: “la Chute, c’est la
découverte de la « différence » à travers le jugement des autres. […] un enfant monstrueux connaît, malgré tout,
l’âge d’or de la petite enfance : il n’est pas encore appris sa « nature » puisque nul n’exige rien de lui […] Et
puis, un jour, à sept ans, un juge souverain découvre sa particularité et la lui désigne : le voilà autre. Autre que
l’homme” IF.I, p. 188. No caso de Gustave, a Queda é a descoberta não somente de seu ser visto mas de uma
diferença vivida como “anomalia”, o que o separa de todos os outros homens. Cf. Ibid., p. 337.
221 Deus seria este outro elevado a máxima potência de sujeito, como um sujeito que não pode jamais ser objeto.
www.academia.edu/2764856/Vida_temporal_comum_-_O_carácter_temporal_da_intersubjectiva_afectiva.
Acesso em: Agosto de 2016. Acrescentamos que em Mallarmé, por exemplo, é possível compreender como a
religião ou a falta dela, em diferentes épocas, revelam tais experiências existenciais. O tema pode ser investigado
ainda nos outros trabalhos de psicanálise existencial.
223 Se o para-si vive num mundo onde há outros, e se a vergonha é a experiência de revelação do para-outro, é
pertinente falar em uma hontologie, como faz Stéphane Dawans se referindo a Lacan. Para o autor, a vergonha é
“un fil conducteur qui relie l’ontologie, la morale et l’esthétique [chez Sartre], mais qui se noue et se resserre,
rendant le démêlage difficile autant que nécessaire” DAWANS, S. Sartre: le spectre de la honte. Une
introduction a la philosophie sartrienne. Liège : Ulg, 2001, p. 12 . Dawans chega mesmo a afirmar, no final de
seu trabalho, que “l’hontologie est une hantologie”, sem no entanto explicar o que isto significa ou desenvolver
esta relação. Ibid., p. 118. Ver também: p. 40.
224 EN, p. 328.
!386
Sartre, “chacun reconnaîtra, dans cette description abstraite, cette présence immédiate et
brûlante du regard d’autrui qui l’a souvent rempli de honte”225.
Por se tratar de um acontecimento, a aparição do outro é melhor descrita por via de
exemplos concretos: em L’Être et le Néant pelo exemplo de alguém que olha uma cena
proibida através do buraco de uma fechadura; em Saint Genet pela situação em que Genet,
ainda com dez anos de idade, é flagrado “roubando”226. Na verdade, o que mais importa para
análise é a cena, não sua comprovação empírica datada: “Cela s’est passé ainsi ou
autrement”227, diz Sartre, embora seja importante considerar que o rótulo de “ladrão” foi dado
a Genet quando criança, ou seja, no momento em que ele não tem “la ressource de se défendre
en accusant : les adultes sont de dieux pour cette petite âme religieuse”228. A cena é a
descrição concreta do acontecimento da revelação súbita do ser-olhado como uma nova
dimensão do para-si “sujeito”.
No que estes exemplos podem nos auxiliar frente ao problema do solipsismo?
Analisemos as duas cenas: Em L’Être et le Néant, a cena de alguém que olha pelo buraco da
fechadura é reveladora do sentido do olhar do outro e da dimensão para-outro que surge
mediada pelo olhar. Sartre inicia uma descrição na primeira pessoa, baseada em uma situação
imaginária: o ato de olhar pelo buraco de uma fechadura motivado por “jalousie, intérêt, ou
vice”229. Este primeiro momento da cena se assemelha à descrição da inocência de Genet, que
vimos estar de acordo com o para-si solipsista apontado por Benoist: “Je suis seul et sur le
plan de la conscience non-thétique (de) moi. Cela signifie d’abord qu’il n’y a pas de moi pour
habiter ma conscience. […] Je suis pure conscience des choses et les choses, prises dans le
circuit de mon ipséité, m’offrent leurs potentialités comme répliques de ma conscience non-
fictive”, que é apenas lembrada por Flaubert como sendo um instante fatal: “Mais qui peut affirmer que cette
métamorphose a eu lieu en un moment précis ? come il arrive souvent - et en des domaines tout différents -
l’enfant a pu vivre longtemps avant l’intuition totalisante puis continuer sa vie après elle sans qu’il y ait eu
jamais l’instant de foudre qui l’eût fait vivre pendant l’illumination. En d’autres termes, le plus vraisemblable est
qu’il n’y ait jamais eu d’actualisation brusque de l’archétype et que, dans la continuité du vécu, Gustave s’y soit
référé comme à quelque chose qui s’est déjà produit, et que, de ce point de vue, le vécu lui-même n’ait jamais eu
la fraîcheur saisissante de la nouveauté”. IF.I, p. 482.
228 SG, p. 31.
229 EN, p. 298.
!387
thétique (de) mes possibilités propres”230. Sartre prossegue afirmando que neste plano seus
atos não possuem “um lado de fora” (aucun dehors), são inteiramente vividos e não
conhecidos, uma maneira de se perder no mundo, de ser absorvido pelas coisas que aparecem
organizadas em complexos de utensílios de acordo com o fim projetado pelo para-si. E isso a
ponto de que “il n’y a là aucune contrainte, puisque ma liberté ronge mes possibles et que
corrélativement les potentialités du monde s’indiquent et se proposent seulement”231; “il n’y a
rien là qu’un pur néant entourant et faisant ressortir un certain ensemble objectif se découpant
dans le monde”232. Ao descrever a “inocência” desta maneira, Sartre acentua a solidão da
imediaticidade que motivou as críticas de Merleau-Ponty e que Benoist aponta como sendo o
mundo da “ipseidade triunfante”, ou seja, o fato de que “le solus ipse […] donne son sens au
monde”233.
O elemento que perturba o sistema é o olhar, o surgimento do outro e o consequente
desvelamento do ser-olhado. Sartre descreve a cena reforçando seu caráter de acontecimento
surpreendente: “Or, voici que j’ai entendu des pas dans le corridor: on me regarde”234; Genet:
“Pris la main dans le sac : quelqu’un est entré qui le regarde. Sous ce regard l’enfant revient à
lui. Il n’était encore personne, il devient tout à coup Jean Genet”235. Este acontecimento, que
pode ter se passado assim ou de outra forma, provoca uma verdadeira metamorfose no modo
de ser do para-si e faz com que este veja a si mesmo a partir de uma perspectiva exterior, que
era vedada ao para-si em pura ipseidade: “Que s’est-il produit? Presque rien en somme : une
action entreprise sans réflexion, conçue et menée dans l’intimité secrète et silencieuse où il se
réfugie souvent, vient de passer à l’objectif. Genet apprend ce qu’il est objectivement”236.
Antes de adentramos nos detalhes das descrições sobre as transformações que ocorrem
no ser do para-si, uma questão se coloca que nos remete ao problema do solipsismo: antes de
tal acontecimento, era possível de fato conceber um para-si que seria “sozinho no mundo”?
Vivia o para-si num mundo sem outros? A nosso ver, ao se concentrar demasiadamente nas
descrições sobre as implicações da metamorfose a partir do olhar, Sartre não evidencia
suficientemente estas questões e suas repercussões, de modo que precisamos de alguma forma
230 Ibid.
231 EN, p. 299.
232 Ibid.
233 Notas pessoais do curso de J. Benoist.
234 EN, p. 299.
235 SG, p. 26.
236 SG, p. 27.
!388
resgatar outros elementos de L’Être et le Néant, mesmo que implícitos, a fim de podermos
respondê-las.
Neste intuito, destacamos três características implícitas que contestam o estado da
“inocência” como um mundo solipsista: a afetividade, a linguagem e as significações
intersubjetivas. Em primeiro lugar, mesmo a inocência de Genet, afirma Sartre, “lui vient
d’autrui : tout nous viens d’autrui même l’innocence”237 ; dado que a inocência é
compreendida a partir de uma situação, é absurdo pensar em uma condição apartada das
relações que configuram o modo de ser mesmo de tal condição. Em segundo lugar, na
situação imaginária do exemplo do “buraco da fechadura”, Sartre aponta como motivação de
sua ação os sentimentos de “jalousie, intérêt, ou vice”, o que nos leva a pensar como seria
possível o ciúme, por exemplo, sem alguém de quem se tem ciúme, ou seja, ciúme de quem
ou do que em relação a quem? Como o para-si solipsista pode agir motivado por ciúme?
Mesmo que seja ciúme de “alguma coisa” e não de alguém, o ciúme só faz sentido na relação
desta coisa com algum outro diante de quem o ciúme se faz ciúme. É evidente que, para
Sartre, esta vivência não aparece imediatamente ao para-si como ciúme, pois o para-si é todo
inteiro “consciência (de) ciúme de algo ou de alguém” em direção à cena a ser vista pelo
buraco da fechadura, mas de alguma forma a relação pré-reflexiva com o outro deve
configurar esta motivação afetiva. Em terceiro lugar, a linguagem estrutura a metamorfose:
“on me regarde”238. A metamorfose de Genet é dada por “un mot vertigineux”, pois “son
aventure, c’est d’avoir été nommé”239: “Une voix déclare publiquement : « Tu es un
voleur »”240. A partir de então,
Ser ladrão passa a ser, através da palavra, a verdade objetiva de Genet, algo como um
princípio que passa a orientar seu projeto fundamental no interior das relações sociais. A
linguagem, que é relação ao outro, não surge, obviamente, no momento da metamorfose, mas
participa deste último como um operador crucial: “Le tour est joué : de l’enfant truqué nous
avons fait un poète; il est hanté par un mot, un seul mot qu’il contemple à l’envers et qui
contient son âme. Il cherche à s’y mirer comme en une glace sans tain, il passera sa vie à
méditer sur un mot”242.
Finalmente, como vimos a respeito do mundo como campo prático, o para-si surge
num mundo que é mundo para os outros, o que Sartre diz ser o dado (le donné). Isto posto,
como pensar a “inocência” fora deste mundo intersubjetivo? Vimos que as coisas-utensílios
são compostas por propriedade laterais e secundárias que reenviam a outros centros de
referência e que cada utensílio revela ao mesmo tempo seu “para quem” (Worumwillen);
dissemos ainda que o para-si age através de técnicas coletivas e surge num mundo
assombrado pelo seu próximo, o que significa surgir “au milieu de ce monde pourvu déjà de
sens”243. Sendo assim, ao descrever a metamorfose, Sartre coloca o acento na experiência que
revela a existência do outro de maneira privilegiada, mas isto não significa que não havia o
outro anteriormente a este instante fatal. Por esta razão, distinguir certa presença do outro
anterior à metamorfose e a cena que faz surgir o ser-olhado como uma nova dimensão do ser-
para-si nos parece um gesto de investigação essencial.
O foco de Sartre na experiência privilegiada do ser-visto se deve ao fato deste ser o
seu recurso para escapar ao solipsismo, no sentido de uma prova indubitável da existência do
outro. Neste ponto Sartre é mais uma vez cartesiano, ao exigir que esta prova pertença à
esfera de evidência do cogito. Enquanto que o outro como objeto no campo perceptivo pode
ser apenas provável, é o ser-olhado que comprova que este outro no campo perceptivo é um
outro sujeito e não um mero autômato244. De todo modo, o risco a evitar é o de fazer da
relação ao outro uma relação epistemológica. Husserl, por exemplo, é compreendido por
Sartre como estando preso a este último tipo de relação, na medida em que ele, a partir da
divisão entre o empírico e o transcendental, pensa a intersubjetividade restrita a este primeiro
plano. E isto a ponto de Sartre identificar a posição husserliana como sendo próxima a de
Kant, no sentido de promover uma espécie de solidão do sujeito transcendental. Para Sartre,
do outro que inspira o desenvolvimento da “dialética do outro” em L’Être et le Néant. Cf. EN, p. 324; p. 401-
453.
250 EN, p. 276.
!391
do sujeito251. Em segundo lugar, ele constata que Hegel permanece finalmente restrito ao
plano do conhecimento ao se posicionar num ponto de vista teórico sobre a consciência de si,
próprio ao idealismo que identifica ser e conhecimento. Neste sentido, a distância de Sartre
com relação à filosofia hegeliana se caracteriza pela crítica da possibilidade de
ultrapassamento do particular rumo à totalidade de conhecimento que o absorve. Tal como a
oposição kierkegaardiana a Hegel que, nas palavras de Sartre, afirma que “l’homme existant
ne peut être assimilé par un système d’idées”252, na medida em que “la vie subjective, dans la
mesure même où elle est vécue, ne peut jamais faire l’objet d’un savoir”253 ou, simplesmente,
tratar-se-ia de um “faux savoir”254. Ao adotar o ponto de vista da totalidade e não partir do
cogito (o que para Sartre é um problema), Hegel age como se pudesse anular sua própria
existência a fim de apreender a existência do outro pelo ponto de vista do conhecimento
absoluto.
Concluindo esta linha de argumentação, Sartre acaba por atribuir a Heidegger o passo
decisivo em direção a uma concepção ontológica da relação ao outro. O motivo não consiste,
evidentemente, em “partir do cogito”, mas no fato de que em Être et temps a relação com o
outro é um existencial do Dasein e não uma relação de conhecimento. Entretanto, logo se
impõe um ponto de discordância quando Sartre critica a noção heideggeriana de Mit-Sein (ser-
com) como pressupondo uma “solidariedade ontológica” que, a seu ver, é uma estrutura
abstrata que não permite compreender um “ser-com” concreto, perdendo de vista a dimensão
ôntica da relação do para-si com o outro, logo, a luta por “reconhecimento”. Sartre pensa o ser
com o outro tal como Heidegger descreveu em termos de uma experiência do nós (nous), o
que seria um enriquecimento empírico da relação para-outro e, portanto, derivada deste tipo
de relação ontológica. Segundo Sartre, Heidegger corre ainda o risco de recair no solipsismo
se o ser-com significar que é pelo Dasein que se deduz de alguma forma a existência dos
251“la conscience est un être concret et suis generis, non une relation abstraite et injustifiable d’identité, elle est
ipséité et non siège d’un Ego opaque et inutile […] On conçoit mal en effet que la lutte ardente et périlleuse du
maître et de l’esclave ait pour unique enjeu la reconnaissance d’une formule aussi pauvre et aussi abstraite que le
« Je suis je »” EN, p. 278. Posição contestada, por exemplo, por Vladimir Safatle que vê na consciência de si
hegeliana um conceito renovado de identidade. Para o autor, na verdade, “a consciência-de-si hegeliana é o locus
de uma experiência fundamental de não identidade que se manifesta através das relações materiais do sujeito ao
outro” SAFATLE, V. O amor é mais frio que a morte: negatividade, infinitude e indeterminação na teoria
hegeliana do desejo. Kriterion, n. 117, p. 95-125, 2008, p. 98. O que Sartre não pode aceitar é que este “retour en
soi-même à partir de l’être-autre” da consciência de si resulte num “mouvement par lequel son égalité avec soi-
même vient à l’être”. HEGEL, F. La Phénoménologie de l’esprit. Paris : Aubier, 1947, p.146-7. (Trad. J.
Hyppolite) (Embora Sartre cite a Propedeutik. Cf. EN, p. 277).
252 QM, p. 19.
253 Ibid. Ver ainda: EN, p. 278.
254 S.IX, p. 156.
!392
outros, o que na linguagem sartriana significaria deduzir o outro de uma estrutura imediata do
para-si.
Por fim, tendo em vista esta breve análise do problema do outro em Husserl, Hegel e
Heidegger, Sartre estabelece suas condições, organizadas e enumeradas da seguinte maneira
por Barbaras255: 1) a relação ao outro é interna e não externa (como no conhecimento), trata-
se de uma relação de ser; 2) o único ponto de partida possível é a interioridade do cogito; 3) a
relação a outrem não pode ser de constituição; o outro não pode ser deduzido de uma estrutura
ontológica. Esta última condição é importante pelo fato de que se o outro não provém de uma
estrutura do para-si, “c’est comme fait - comme fait premier et perpétuel -, non comme
nécessité d’essence que nous étudierons l’être-pour-autrui”256. Por isso a relação com o outro
é um encontro, ela é da ordem de um acontecimento, como resume Benoist:
255 BARBARAS, R. Le corps et la chair dans la troisième partie de L’être et le néant, p. 285-286.
256 EN, p. 322.
257 Notas pessoais do curso de J. Benoist.
258 BARBARAS, R., op.cit., p. 286.
!393
podendo ser o outro deduzido das estruturas do para-si, o modo de ser para-outro, em
contrapartida, é uma estrutura ontológica:
A titre de conscience, autrui est pour moi à la fois ce qui m’a volé mon
être et ce qui fait « qu’il y a » un être qui est mon être. Ainsi ai-je la
compréhension de cette structure ontologique ; je suis responsable de
mon être-pour-autrui, mais je n’en suis pas le fondement ; il
m’apparaît donc sous forme d’un donné contingent dont je suis
pourtant responsable, et autrui fonde mon être en tant que cet être est
sous la forme du « il y a »; mais il n’en est pas responsable, quoiqu’il
le fonde en toute liberté, dans et par sa libre transcendance259.
O Ego-para-outro
Na cena acima citada, de alguém que olha no buraco de uma fechadura, Sartre mostra
que um “barulho de passos no corredor” é suficiente para operar a metamorfose. Logo em
seguida, ele diz o seguinte sobre o momento posterior à transformação: “voici que j’existe en
tant que moi pour ma conscience irrefléchie”262. Esta afirmação chama a atenção se
considerarmos que, desde La Transcendance de l’Ego, o Ego é caracterizado como sendo um
produto da reflexão impura, que surge através do esforço do para-si em apreender a si mesmo.
Agora, eis que por meio da metamorfose produzida pelo olhar do outro, o Ego aparece não
mais à reflexão, mas à estrutura mais imediata de um para-si engajado no mundo, isto é, trata-
se neste momento de um objeto para a consciência irrefletida: “Le moi existe donc pour elle
[la conscience irréfléchie] sur le plan des objets du monde ; ce rôle qui n’incombait qu’à la
conscience réflexive : la présentification du moi, appartient à présent à la conscience
irréfléchie” 263. Disto decorre uma diferença importante entre o Ego-para-outro (Ego-olhado) e
o Ego psíquico, já que enquanto o segundo era constituído pela reflexão impura, o primeiro
afeta o para-si desde que ele sofre a objetificação264. Resta ao para-si somente escolher o
sentido e a maneira pela qual ele vive sua objetificação, não a metamorfose em si. Em outras
palavras, enquanto o Ego psíquico se caracteriza pela autoalienação reflexiva, o Ego-para-
outro é uma figura da facticidade da própria estrutura pré-reflexiva do para-si, embora ele não
seja o seu fundamento265. Ou seja, não se trata mais de um Eu (Moi) que o para-si constitui
via reflexão, mas de um Eu que ele é, que compõe seu ser mais imediato.
O modo de ser do Ego-para-outro é contraditório se levarmos em conta a cisão das
regiões ontológicas diretrizes de L’Être et le Néant, visto que Sartre o define como um modo
de ser que não é para-si nem em-si:
Cet être n’est point en-soi car il ne s’est pas produit dans la pure
extériorité d’indifférence; mais il n’est pas non plus pour-soi, car il
n’est pas l’être que j’ai à être en me néantisant. Il est précisément mon
être-pour-autrui, cet être écartelé entre deux négations d’origine
opposée et de sens inverse […] produit par l’un et assumé par l’autre,
[ce moi] tire sa réalité absolue de ce qu’il est la seule séparation
possible entre deux êtres foncièrement identiques quant à leur mode
d’être et qui sont immédiatement présents l’un à l’autre, puisque, la
conscience pouvant seule limiter la conscience, aucun terme moyen
n’est concevable entre eux266 .
265 Por esta razão, nem mesmo uma reflexão pura poderia dissipar esta figura ligada à facticidade do para-si.
CPM, p. 18. Sobre a relação entre os dois Egos, De Coorebyter mostra que o Ego recebido pela objetificação
pode suplantar o Ego constituído e eles podem realizar uma espécie de combate. Além disso, o Ego psíquico
aponta a seu ver para uma alternativa para além da alienação: “Cette distinction de plans permet de comprendre
que, loin d’être toujours aliénant ou réifiant, l’Ego psychique puisse servir à rétablir la vérité, à restaurer la
lucidité du sujet face à son Ego-pour-autrui”. DE COOREBYTER, V. Sartre face à la phénoménologie, p. 599.
266 EN, p. 326. (grifo nosso)
267 EN, p. 304.
268 EN, p. 301.
269 EN, p. 326.
270 EN, p. 300.
!396
localizável de uma espectralidade: “La présence d’autrui ne fait donc pas « apparaître » le
moi-objet : je ne saisis rien qu’un échappement à moi vers…”271; pois “mon moi-objet n’est
ni connaissance ni unité de connaissance, mais malaise, arrachement vécu à l’unité ek-statique
du pour-soi, limite que je ne puis atteindre et que pourtant je suis. Et l’autre, par qui ce moi
m’arrive, n’est ni connaissance ni catégorie, mais le fait de la présence d’une liberté
étrangère”272. O para-si, não podendo apropriar-se de seu ser-para-outro, o vive como mal-
estar (malaise), dado que este Ego-olhado não foi “produzido por si mesmo”, mas deve ser
assumido como uma dimensão fática de seu ser. Esta assunção revela então que embora o
para-si sofra a transformação, esta não se dá como pura passividade e sim como uma
metamorfose vivida, um lado de fora que se torna seu lado de fora 273, sua “natureza”. O ser
para-outro está presente como um espectro que introduz, pela dimensão da objetidade, uma
zona de opacidade na existência translúcida do para-si-no-mundo. Sartre o compara a uma
sombra que “se projetterait sur une matière mouvante et imprévisible et telle qu’aucune table
de références ne permettrait de calculer les déformations résultant de ces mouvements. Et
pourtant, il s’agit bien de mon être et non d’une image de mon être”274. Por esta razão, o ser-
para-outro conserva os aspectos de indeterminação e imprevisibilidade que constituem a
condição de “estar em perigo” diante do outro, uma “structure permanente de mon être-pour-
autrui”275.
Existir o corpo-para-outro
conjunto pelo para-si na medida em que ele deve existir seu corpo-para-outro, que é o que
Sartre denomina de “terceira dimensão ontológica do corpo”.
Uma esclarecedora descrição da metamorfose corporal e a assunção desta nova
dimensão pelo para-si encontra-se no conto sartriano L’Enfance d’un chef na cena em que o
personagem Lucien Fleurier descobre seu corpo-para-outro. Tal metamorfose é desencadeada
por uma frase escrita no banheiro da escola do adolescente Lucien, a qual dizia ser ele um
“grande aspargo”. Neste momento, Lucien se dá conta pela primeira vez de que todos os seus
colegas são menores do que ele e as cenas que se sucedem mostram suas tentativas
desesperadas de ora apropriar-se deste corpo-para-outro, ora de livrar-se dele. A partir de
então, todos os seus movimentos são sentidos como movimentos do “grande aspargo”, seu
corpo vivido é permanentemente marcado pelo olhar. Embora seja este um corpo que só exista
para outro, trata-se de seu corpo, o que pode ser observado nesta passagem:
qual os outros tomam um ponto de vista. O para-si vive assim uma dimensão de seu corpo que
lhe escapa constantemente e por todos os lados, daí o mal-estar e a apreensão de si como
“irremediável”.
O que o trecho acima mostra com clareza é, em primeiro lugar, justamente o aspecto
irremediável da facticidade corporal: Lucien está condenado a existir o seu “ser alto”. Em
segundo lugar, o trecho mostra a necessidade da mediação do outro para que haja apreensão
do corpo para-outro no nível para-si: não basta a Lucien o espelho, ele precisa fazer um
exercício imaginário para se apreender como “alto” (outras cenas do conto retratam este
mesmo ponto); sua vivência é apenas o sentir escapar-se. É o que revela de forma geral,
segundo Sartre, a experiência da timidez. Trata-se de uma experiência de viver seu corpo tal
como ele é para-outro, em sua dimensão espectral. O para-si tenta em vão apropriar-se deste
corpo de modo a apreender concomitantemente o seu caráter de “inapreensível”, ou seja, o
fato de que por princípio ele encontra-se fora de alcance. Com isso “l’effort du timide, après
qu’il aura reconnu la vanité de ces tentatives, sera pour supprimer son corps-pour-l’autre.
Lorsqu’il souhaite « n’avoir plus de corps », être « invisible », etc., ce n’est pas son corps-
pour-lui qu’il veut anéantir, mais cette insaisissable dimension du corps-aliéné”280 . É o que se
passa com diversos personagens dos romances sartrianos que desejam ser invisíveis, como
Ève de La Chambre, cujo corpo lhe faz mal por ser muito vivo e indiscreto, por não saber o
que fazer com as mãos281.
O mundo para-outro
O outro é o polo de escoamento do mundo do para-si, que até então revelava sua imagem, em
direção a seu avesso. Uma direção imprevisível que escapa por princípio ao para-si e que
revela uma gestalt híbrida - espectral -, que constitui a situação para-outro como uma
“synthèse qui possède à la fois la cohésion ek-statique et le caractère de l’en-soi” 287. Segundo
Sartre, a imprevisibilidade da situação ressaltada por Gide é também aquela demonstrada por
Kafka em O processo e O castelo. Nestas obras este autor apresenta o escape constante do
sentido dos atos dos personagens, impossíveis de serem conhecidos. A atmosfera processual
“dolorosa e fugidia” do Processo é a do para-si alienado: “cette ignorance qui, pourtant, se vit
comme ignorance, cette opacité totale qui ne peut que se pressentir à travers une totale
translucidité, ce n’est rien d’autre que la description de notre être-au-milieu-du-monde-pour-
autrui”288. A alienação lança o para-si como “coisa” no meio do mundo, como transcendência-
transcendida, ao transformar suas possibilidades em probabilidades e em utensiliaridade para-
outro; define sua inserção no tempo universal; situa-o a partir dos espaços que outros
estendem ao redor dele; transforma seu engajamento no mundo em enraizamento289. A partir
de então, a “parte do diabo” transforma a situação em atmosfera processual, composta por
zonas de opacidade das sombras de si, reveladas pela dimensão para-outro: “Par le regard
d’autrui, je me vis comme figé au milieu du monde, comme en danger, comme irrémédiable.
Mais je ne sais ni quel je suis, ni quelle est ma place dans le monde, ni quelle face ce monde
où je suis tourne vers autrui”290.
c) O assombramento do olhar.
1990, p. 18. A este respeito, Lefort diz o seguinte: “N’est-ce pas Platon déjà, comme le relève Heidegger, qui
force le mot eidos pour lui faire nommer l’essence, alors qu’il désignait l’aspect sensible de la chose; qui fait
surgir pour un pur regard ce qui n’apparaît pas aux yeux du corps? Avec lui ne s’inaugure-t-il pas un mouvement
qui, jusqu’à Husserl, soutiendra l’élection du voir, et au cœur des plus amples variations conservera le lien de la
vérité, et à l’intuitus mentis ou à la Wesenschau?”. LEFORT, C. Sur une colonne absente, p. 145.
294 LEFORT, C. Ibid., p. 152.
295 RAFFOUL, F. A chaque fois mien, p. 153.
296 EN, p. 624.
297 Cf. S.I, p. 29.
!403
argumentações encontra-se limitada a uma chave do tipo sujeito-objeto, como Sartre se situa
finalmente em relação ao problema da visão, já que ele insistentemente afirma que a relação
originária com o outro não pode ser uma relação epistemológica? Ou sua posição recai por
fim naquilo que ele gostaria de evitar, ou devemos fazer uma distinção entre a visão como
conhecimento apropriativo e o olhar em seu sentido particularmente sartriano. Dado que falar
da visão em si não conduz necessariamente à posição filosófica tradicional, como mostra
Lefort a respeito de Merleau-Ponty, que a seu ver é “celui qui interroge la vision comme nul
autre ne l’a fait”298, de maneira que ele “bouleverse déjà l’idée que nous nous faisions de la
vision et de l’ouverture”299. Neste sentido, devemos compreender a relação ao outro em Sartre
a partir da concepção do olhar em sua peculiaridade, a qual reside, a nosso ver, no fato desta
ser uma relação de assombramento.
Derrida, Spectrographies
“On me regarde”. Vimos a força que esta constatação tem enquanto produtora de uma
metamorfose. Quem me olha? Alguém, todos ou ninguém, pois o olhar transcende um sujeito
localizável, isto é, a experiência do ser-olhado em Sartre é mais fundamental que a presença
dos olhos de uma pessoa particular em meu campo perceptivo. O olhar é a “présence immense
et invisible”300 do outro para além do mundo, transmundana, extramundana, nas palavras de
Sartre. Esta presença, que o autor chama de outro-sujeito ou totalidade-sujeito, é para nós um
dos modos de presença espectral do outro, uma vez que ela não é localizável e nem passível
de conhecimento. Trata-se de uma “transcendance omniprésente et insaisissable, posée sur
moi sans intermédiaire en tant que je suis mon être-non-révélée, et séparée de moi par l’infini
de l’être, en tant que je suis plongé par ce regard au sein d’un monde complet avec ses
distances et ses ustensiles : tel est le regard d’autrui, quand je l’épreuve d’abord comme
regard”301. A única possibilidade de apreender tal presença é a experiência transformadora de
ser olhado; a presença espectral do outro como tal não pode ser conhecida, é algo que está lá
mas que não se mostra a um olhar intuitivo. Aqui reencontramos o efeito de viseira do qual
falava Derrida, como “regard dissymétrique, échangé au-delà de tout échange possible…” 302,
que neste contexto pode ser compreendido como a condição mesma de ser-no-mundo-com-o-
outro do para-si. Para Derrida, “le regard est la spectralité même”303 , dado que ele instaura
uma heteronomia própria a esta relação que é a de ser olhado sem poder ver quem olha. Em
Sartre, esta heteronomia espectral é a condição de todo tipo de objetividade do para-si, na
medida em que “[l’autre-sujet] est toujours là, hors de portée et sans distance lorsque j’essaie
de me saisir comme objet”304. Neste sentido o outro assombra o para-si, ele está presente por
todos os lados de modo que ele não está presente diante do para-si, como um objeto, pois ele
é “l’être vers qui je ne tourne pas mon attention” 305. A presença espectral do outro-sujeito,
pela dissimetria que ela comporta, não é nunca uma presença frontal, assim como para
Merleau-Ponty, para quem a presença do outro é lateral ou “chega por detrás”: “Autrui n’est
nulle part dans l’être c’est par-derrière qu’il se glisse dans ma perception…”306. A descrição
de Merleau-Ponty em La prose du monde desta presença do outro em meu campo perceptivo,
aliás, comporta um caráter significativo do assombramento de um espectro, quando ele diz
que “tout autre est un autre moi-même. Il est comme ce double que tel malade sent toujours à
son côté, qui lui ressemble comme un frère, qu’il ne saurait jamais fixer sans le faire
disparaître, et qui visiblement n’est qu’un prolongement au dehors de lui-même, puisqu’un
peu d’attention suffit à le réduire”307. Sartre, por outro lado, ao qualificar a presença espectral
do outro como extramundana, parece de algum modo tornar esta presença independente do
campo perceptivo. No entanto, ele diz que “toute regard dirigé vers moi se manifeste en
liaison avec l’apparition d’une forme sensible dans notre champ perceptif, mais contrairement
à ce qu’on pourrait croire, il n’est lié à aucune forme déterminée”308. É neste sentido que a
309 LACAN, J. Le séminaire I. Les écrits techniques de Freud. Paris : Seuil, 1975, p. 241.
310 EN, p. 316.
311 “il ne saurait être question de s’opposer à l’autre par une pure détermination numérique. Il n’y a pas ici deux
ou plusieurs consciences: la numération suppose un témoin externe en effet et elle est pure et simple constatation
d’extériorité. Il ne peut avoir d’autre pour le pour-soi que dans une négation spontanée et prénumérique”. EN, p.
324
312 EN, p. 321.
313 EN, p. 317. (grifo nosso)
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transcendental” 314, concluímos que a metamorfose que diz respeito a uma transformação
datada é possibilitada pela condição de um para-si já assombrado pelo outro, isto é, há na
“inocência” a condição de “já olhado”.
A experiência datada da metamorfose pode ser revelada principalmente, como vimos,
pela vergonha, pelo orgulho, pelo medo, etc., mas é certo que o para-si já se encontra desde
sempre no-mundo, imerso na linguagem, numa história passada, existindo seu corpo, imerso
nas significações intersubjetivas, de forma que seria de fato absurdo pensar um para-si fora
desta imersão, o que para Sartre seria pensar um para-si abstraído de sua “humanidade”.
Assim, mesmo que a relação com o outro seja da ordem de um encontro, desde o surgimento
do para-si como ser-no-mundo, ele é lançado nesta condição de “vivre dans un monde hanté
par mon prochain” 315. Dito isto, a metamorfose significa, a nosso ver, o paradigma da
experiência reveladora não somente da condição de ser-olhado, mas da aparição de um Eu-
olhado. Isto nos leva a crer que a experiência de objetificação se dá em vários níveis, até
porque a cena de alguém que é flagrado ao olhar pelo buraco da fechadura não irá
necessariamente se cristalizar como uma “crise original”, tal como foi para Genet ser rotulado
de ladrão e para Flaubert a descoberta de que era o idiota da família. Dito de outro modo, nem
toda objetificação, que é própria ao ser no mundo com os outros, faz surgir o polo norteador
de um projeto original. No mesmo sentido, seria absurdo pensar que qualquer objetivação do
para-si seria vivida como “traumática”, para usar um termo da psicanálise. Como Sartre não
faz a distinção entre as objetificações da condição de já-olhado com a objetificação mais
potente da metamorfose, ele corre o risco teórico de reduzir toda a relação com o outro a este
instante fatal.
Isto posto, podemos constatar que há o assombramento próprio à presença espectral do
outro e o assombramento que se dá a partir da metamorfose, isto é, próprio ao Eu-para-outro.
Assim como há experiências de objetivação (estando o outro presente efetivamente ou não no
campo perceptivo) que oferecem um “lado de fora” ao para-si sem que isto represente uma
“crise original” a ponto de orientar um projeto fundamental. A presença invisível do outro
assombra cotidianamente e incessantemente o plano translúcido para-si, e a experiência
concreta da metamorfose se sustenta nesta condição, além de levá-la ao limite. Isto porque, a
314 Fazemos uso das aspas dado que em Sartre não se trata, como vimos anteriormente, de um sujeito
transcendental. O uso destes termos aqui é para mostrar o ponto de discordância para com Husserl.
315 EN, p. 554.
!407
A presença espectral do outro se dá, portanto, nestes dois níveis. Podemos observar
este segundo nível pelo exemplo de Jean Genet, que é assombrado pela frase “tu est un
voleur”. A frase se cristaliza e habita permanentemente seu ser de modo que ele passa a
desejar existir como um “objeto sagrado” - seu ser objetivo para os outros - para um
testemunho fictício. Porém, diz Sartre, “le témoin n’est personne”318: “il est un monstre, il sent
passer sur sa nuque le souffle de ce monstre, il se retourne et ne trouve personne”319. Do
mesmo modo Baudelaire, que deseja se sentir “culpado” diante de um Bem absoluto,
necessita de um Bem que se dá pelo olhar: “Un regard qui commande et qui condamne […] le
regard qui le transperce, qui le remet à sa place et qui « l’objective », le grand regard « porteur
de Bien et de Mal », est-il celui de sa mère, du général Aupick ou de Dieu « qui voit tout »?
C’est tout un” 320. Um olhar, não no sentido numérico - pois vimos que se trata de uma
realidade pré-numérica - mas no sentido da condição de objetividade que não é em si mesma
objetificável, pois “un œil, l’œil-un, le monocle, n’est jamais un objet”321 , como diz Derrida.
E é neste sentido que Sartre afirma que “par le regard d’autrui, la société tout entière
(institution, organisme, classe) me hante”322.
Há ainda um modo distinto de presença espectral do outro, que consiste num tipo de
presença corporal de um outro que está ausente do campo perceptivo. Neste caso,
identificamos que se trata ainda de uma presença espectral só que desta vez correspondente a
uma modalidade que Sartre identifica ser a do outro como objeto (não mais como totalidade-
sujeito). Veremos em seguida as especificidades da relação com o outro como objeto na
presença deste outro no campo perceptivo de um para-si, ou seja, na relação do para-si com o
outro que se apresenta “em carne e osso”. Porém, nesse momento, falamos ainda de uma
presença espectral no sentido de que se trata de uma presença pré-numérica dos outros como
ausentes. A ausência, diz Sartre, é um modo de relação com a existência concreta de alguém
em algum lugar, isto é, trata-se de uma modalidade de copresença, de modo que a morte, por
exemplo, não é uma ausência. Neste sentido, a ausência é um componente ativo da situação
de cada para-si no mundo, a partir de uma “presença originária” cujas distâncias não se dão
somente por estradas e continentes, mas também por línguas e condições sociais:
Sendo assim, podemos dizer que a ausência do outro “em carne e osso” no campo
perceptivo não significa, neste contexto, que o outro não está de algum modo presente como
componente da situação de cada para-si. Este modo particular de presença do outro é descrito
por Sartre como sendo a facticidade implícita do ausente indicada pelas coisas-utensílios 324.
Falamos anteriormente desta característica em termos de “propriedades laterais” dos
utensílios ou de significações intersubjetivas. A nosso ver, esta facticidade do outro ausente
indicada pelas coisas-utensílios é também um modo de presença espectral na medida em que
“elle m’est donnée dès là qu’autrui existe pour moi dans le monde, la présence d’autrui ou
son absence n’y change rien” 325. A diferença para com o modo de presença espectral que
viemos de descrever acima - do outro-sujeito - é que agora se trata da presença espectral do
outro como facticidade corporal e não como olhar desencarnado. Na presença espectral do
outro como sujeito, os objetos assombravam enquanto indicação de um olhar capaz de
objetificar o para-si, ao passo que, neste outro modo de assombramento, os objetos apenas
indicam outro centro de referência de orientação dos utensílios, que é o corpo de outrem,
mesmo ausente do campo perceptivo.
Isto posto, pensamos que tais condições trazem como consequência justamente a
problematização da ideia do outro neste contexto como “objeto”, dado que não há um outro
“em carne e osso” sendo objetificado, mas uma indicação lateral dos isto da presença fática do
outro no mundo. De todo modo, trata-se da facticidade do outro como objeto no meio do
mundo, logo, como transcendência-transcendida, e não da facticidade vivida pelo outro como
sujeito. Esta facticidade do outro objeto se espectraliza ao se fazer presente sobre o modo da
ausência como uma facticidade corporal implícita nas coisas. Ela é “partout présent” 326, em
razão de que sua corporeidade não é objetivável, como se pode observar neste exemplo: “Dès
que je reçois une lettre de mon cousin d’Afrique, son être-ailleurs m’est donné concrètement
par les indications mêmes de cette lettre, et cet être-ailleurs est un être-quelque-part : c’est
déjà son corps”327. Assim, a aparição do outro no campo perceptivo do para-si parece vir
enriquecer, prolongar ou confirmar sua presença espectral que já se fazia anunciar ou indicar
pelos objetos assombrados. É sobre esta última modalidade que iremos nos concentrar em
seguida.
possibilité permanente qu’on le fasse éclater et que, avec cet éclatement, j’éprouve soudain la
fuite hors de moi du monde et l’aliénation de mon être”331. A dialética do outro, que é a
estrutura conflitual de consciências que mencionamos anteriormente, é uma tentativa
incessante de lidar com esta objetividade “explosiva” do outro, justamente pela
impossibilidade de reduzir o outro a um objeto332 . Do mesmo modo, se há níveis de
objetivação, esta nunca se dá por completo, ou seja, o outro, para ser puramente e
completamente um objeto, deve ser abstraído de sua dimensão de transcendência, como no
caso do cadáver. A apreensão do outro no campo perceptivo é assim uma apreensão imediata
do outro como corpo-em-situação: uma forma contingente sob um fundo corporal organizado
pela inserção fática do outro no mundo, como um outro centro de referência de orientação dos
isto. Um corpo vivo, que estende suas distâncias e revela seus sentidos a cada momento, de
modo que é este corpo que aparece como transcedência-transcendida e não o cadáver.
Outro ponto importante é o fato de que Sartre não distingue, no que diz respeito à
apreensão imediata do corpo do outro, as dimensões psíquica e corporal para-outro, tal como
ele o faz entre o plano das sombras e a dimensão para-si. Em outros termos, o corpo não é
uma dimensão exterior ao psíquico, como se seu papel fosse o de expressar uma interioridade
psíquica; o corpo em sua dimensão para-outro é, segundo Sartre, “un objet psychique par
excellence, le seul objet psychique”333. Ao definir o corpo-para-outro como objeto psíquico,
Sartre estabelece então que, devido a um golpe de objetivação, o psíquico se encarna
finalmente, de modo que o corpo para-outro é corpo psíquico. Porém, não fica clara a
diferença entre o corpo psíquico como corpo-para-outro e o corpo psíquico constituído
reflexivamente e sofrido pelo para-si, tal como apresentamos em nossas análises sobre o plano
de sombras. Por isso, devemos por nossa parte distinguir finalmente que, para o para-si, o
corpo psíquico é o suporte da sua dimensão de sombras, e que para-outro o para-si aparece
como corpo psíquico, sem haver diferença entre a dimensão para-si e a dimensão de sombras.
Neste sentido, o para-si nunca irá apreender o outro em sua vivência de repulsa, por exemplo,
mas somente como corpo que é a própria raiva, ou seja, para o olhar objetivo, o corpo é ação
significante. É como se o olhar do outro só pudesse apreender o conjunto, e por isso ele é
objetificador, de toda a dimensão fática do para-si. Tentar descrever essa dimensão fática em
conjunto, por exemplo, é ainda apontar no outro um caráter, como uma unidade fática, sem
distinguir os níveis de assombramento.
Já para o para-si, a integração das dimensões para-outro e psíquica só ocorre
reflexivamente, no momento em que ele toma em relação a si mesmo a atitude objetivante.
Pela reflexão impura o para-si integra agora - a partir da mediação do outro - uma nova
camada de constituição aos objetos psíquicos: uma “couche aliénante cognitive”334, que
consiste num saber proveniente do conhecimento dos outros sobre si, transmitidos pela
linguagem. Isto faz com que o para-si reflexivamente se volte para si mesmo numa intenção
cognitiva, no intuito de apreender o psíquico como objeto de conhecimento, integrando as
significações provenientes do conhecimento dos outros. Forma-se assim um novo objeto
psíquico, intersubjetivo, que tem como suporte corporal o corpo psíquico sofrido - o qual “sert
de noyau, de matière aux significations aliénantes”335 - e que passa a assombrar o para-si. O
psíquico que era a constituição em estado da dor nos olhos, segundo exemplo já citado, passa
a ser agora um objeto para outro: o médico pode diagnosticar uma doença, passa-se a falar
desta doença, a organizar as ações de acordo com o tratamento. Eis aqui então um “novo
objeto” mágico, que possui os “caractères de spontanéité magique, de finalité destructrice, de
puissance mauvaise, sur sa familiarité avec moi et sur ses rapports concrets avec mon être (car
c’est, avant tout, ma maladie)” 336. Este novo objeto, que poderíamos chamar de psíquico-
para-outro, passa a assombrar o para-si pela sua dimensão de corpo psíquico, para além do
assombramento imediato do para-outro: “Ainsi, de même qu’un être-pour-autrui hante ma
facticité non-thétiquement vécue, de même un être-objet-pour-autrui hante, comme une
dimension d’échappement de mon corps psychique, la facticité constituée en quasi-objet pour
la réflexion complice”337, diz Sartre.
Na apreensão imediata do corpo do outro no campo perceptivo o que se apresenta é
então um corpo psíquico, em situação. Se o corpo pode ser descrito pelo funcionamento de
seus órgãos pelo médico, ou como caráter pelo psicólogo, estes níveis de objetivação não
suprimem a condição de corpo-em-situação do corpo-para-outro, visto que a apreensão pode
variar em maior ou menor grau a dimensão de objetividade do corpo do outro sem transformá-
A noção de carne, por fim, tem ainda uma função fundamental no conjunto das
condições sartrianas da relação com o outro. A este respeito, Barbaras mostra como a divisão
sartriana entre a transmundaneidade do outro (o outro-sujeito) e sua aparição no campo
perceptivo é problemática. Isto porque, além de ser uma divisão abstrata que crava um abismo
entre o empírico e o transcendental, ela revela uma tensão entre as condições que Sartre havia
estabelecido de início no que concerne relação com o outro: entre a caracterização desta
relação como um encontro e do outro como condição permanente da situação humana do
para-si. Ao desenvolver a ideia de carne, segundo Barbaras, Sartre torna inútil e até
inadequada a condição de que a relação com o outro deva se dar pela negação interna, que é a
experiência do ser-olhado. No sentido de que ela coloca em questão a divisão entre
subjetividade e objetividade, transposta para as dimensões de um corpo para-si (o que, para o
autor, Sartre não desenvolve) e de um corpo objetivo para outro. Em suas palavras:
o sentido propriamente sartriano do olhar. O encontro com o outro, como vimos, se dá por um
olhar não localizável, por uma presença espectral. Mas esta só faz sentido na medida em que
no campo perceptivo há algo que indique um outro, cuja existência é experienciada pela
carne. Se há uma divisão entre os momentos anterior e posterior à metamorfose, esta divisão
diz respeito aos níveis de objetificação e não marcam um “primeiro encontro com o outro”.
Por outro lado, como pensar esta presença espectral do outro como primeira em relação à
presença do outro no campo perceptivo se sem a experiência da carne do outro nada teria o
poder de indicá-lo como olhar? A condução do problema por Sartre nos revela então um
verdadeiro labirinto, do qual só podemos sair ao desfazer os possíveis dualismos que por
vezes se apresentam. É neste sentido que a relação de assombramento mostra: 1) que a
presença espectral do outro e a carne são dois aspectos da experiência do outro e não podem
ser pensados separadamente, pois sem o segundo a primeira não teria o poder de assombrar;
2) que o corpo-para-outro sendo corpo-em-situação não pode ser considerado como pura
objetividade, o que viria a instaurar um dualismo entre subjetividade e objetividade; 3) que a
experiência da metamorfose dota o para-si de um grau máximo de objetividade, cristalizando
uma dimensão que passa a assombrá-lo em seu nível mais imediato, isto é, a “terceira
dimensão ontológica” do corpo é a assunção e integração deste Eu-para-outro pelo para-si,
que consiste numa segunda dimensão de assombramento. A partir desta reorganização das
condições finais, concluímos dizendo que o para-si é duplamente assombrado pelo outro: pela
carne e pela presença espectral em sua dimensão mais imediata; pelo seu Eu-para-outro, que é
o grau limite de objetivação (que não a morte), a ponto de se cristalizar num espectro que,
desde então, passa a assombrá-lo.
Sartre nos mostra o papel de uma dimensão simbólica do mundo em sua relação com o
assombramento do valor, mas também em relação a um assombramento em direção contrária
e não menos importante: o assombramento daquilo que veremos ser um antivalor342.
a) O assombramento do valor
Vimos na “Primeira parte” que o valor é uma estrutura imediata do para-si e que ele
corresponde à totalidade “faltada” em relação à qual o para-si se constitui como falta de ser.
Esta totalidade é também, na maioria das vezes, denominada de “para-si-em-si” ou
simplesmente Deus, o que faz do para-si um “pur effort pour devenir Dieu”343. Sobre o modo
de ser do valor, citamos em outro momento que, segundo Sartre, “il ne faudrait pas confondre
[…] cet en-soi manqué avec celui de la facticité. L’en-soi de la facticité, dans son échec à se
fonder, s’est résorbé en pure présence au monde du pour-soi. L’en-soi manqué, au contraire,
est pure absence”344 . Trata-se então de um modo de ser distinto do em-si nadificado da
facticidade e que é definido como um “em-si ausente”, que assombra constantemente e
imediatamente o para-si 345. O argumento que legitima o ser do valor como uma estrutura
imediata, como vimos, é o de que se o para-si fracassa em sua incessante tentativa de
autofundação e se isto se apresenta como um fracasso é porque o para-si “se saisit lui-même
comme échec en présence de l’être qu’il a échoué à être”346. Sendo assim, o para-si é falta em
presença de um em-si ausente, o qual, por sua vez, o atravessa de sua “présence fantôme” 347
constituindo-o como falta. Segue-se que o modo de presença-ausente do valor na dimensão
para-si é o assombramento, a ponto de Sartre definir o próprio cogito como “cogito hanté par
l’être” 348. Como é típico do assombrar de um espectro, este “em-si” presente-ausente que é o
valor, ou esta síntese impossível entre para-si e em-si, nunca é objeto de tese do para-si, isto é,
ele não se encontra em face do para-si, mas “il hante la conscience non-thétique (de) soi” 349,
342 Neste momento analisaremos alguns aspectos das seções II. e III. do capítulo “Faire e avoir” na quarta parte
de L’Être et le Néant. Nossa intenção não é a de trabalhar exaustivamente as argumentações sartrianas no
referido capítulo, mas sim a de ressaltar o caráter de assombramento do valor e do antivalor, assim como indicar
um traço de opacidade próprio à dimensão simbólica do mundo.
343 EN, p. 621.
344 EN, p. 125.
345 “[la valeur] elle est comme l’en-soi absent qui hante l’être pour soi” EN, p. 130.
346 EN, p. 125.
347 EN, p. 127.
348 EN, p. 125.
349 EN, p. 127.
!418
“au cœur du rapport néantisant « reflet-reflétant »”350, de modo que em toda consciência de
alguma coisa, “il est là”351, porém, inapreensível como tal. Este modo de ser é, portanto,
estrutural do para-si - “[i]l n’y a point de conscience qui ne soit hantée par sa valeur”352 -,
mas o assombramento indica que a consciência não é idêntica ao valor, de maneira que este
possui suas especificidades.
Sartre diz que a consciência “é e não é” ao mesmo tempo o valor, sendo que este modo
de ser é ele mesmo definido em termos de “ser e não ser”. Se não há consciência que não seja
assombrada pelo valor - vide os exemplos da sede assombrada, do sofrimento assombrado353 -
este, por sua vez, está presente à consciência como um ideal irrealizável e não como algo que
ela é. Por outro lado, “dirons-nous qu’il n’existe pas ?” 354, pergunta Sartre. Ele só nos
responde que se trata de um ser que não pode ser realizado, para em seguida demostrar a
dificuldade própria à descrição do valor no quadro de uma simples oposição entre ser e não
ser: “La valeur semble donc insaisissable : à la prendre comme être, on risque de méconnaître
totalement son irréalité […] Mais, inversement, si on n’a d’yeux que pour l’idéalité des
valeurs, on va à leur retirer l’être et, faute d’être, elles s’effondrent”355. Além disso, é próprio
do ser do valor subverter posições contraditórias: ele encontra-se ao mesmo tempo no coração
do para-si e “fora de alcance”; “partout et nulle part […], présente et hors d’atteinte”356; é uma
estrutura imediata do para-si, mas comporta características do em-si; sua relação ao para-si é
a de “une immanence totale qui s’achève en totale transcendance”357, ou seja, trata-se de um
modo de ser cuja natureza é a de “enfermer en soi-même sa propre contradiction”358. Tais
características reforçam o modo espectral do valor que “peut à la foi être et ne pas être”, que
se dá como presença fantasmática perpétua e evanescente.
Se o valor é uma estrutura imediata do para-si, isto significa, segundo uma formulação
frequente no texto sartriano, que ele “vem ao mundo” pelo para-si. Porém, como vimos, sua
possibles propres” EN, p. 133; “La fusion idéale de ce qui manque avec ce à quoi manque ce qui manque,
comme totalité irréalisable, hante le pour-soi et le constitue dans son être même comme néant d’être. C’est,
disions-nous, l’en-soi-pour-soi, ou la valeur. Mais cette valeur n’est pas, sur le plan irréfléchi, saisie
thétiquement par le pour-soi, elle est seulement condition d’être”. EN, p. 230. (grifo nosso)
353 Cf. EN, p. 125-129; p. 138.
354 EN, p. 127.
355 EN, p. 129.
356 EN, p. 131.
357 EN, p. 127.
358 Ibid.
!419
“presença” indica de algum modo aquilo que o para-si não é e deseja ser e é neste sentido que
o desejo “est hanté en son être le plus intime par l’être dont il est désir”359. O valor diz
respeito a um “para-além” do ser que instaura uma promessa de completude nas relações do
para-si no mundo e este aspecto faz parte das estruturas de desvelamento dos isto. Em outros
termos, o mundo se desvela através do circuito de ipseidade que se estabelece entre o para-si e
o que lhe falta para realizar seu valor. Mas as estruturas de desvelamento presentes no interior
de tal circuito são próprias ao “há” (il y a), de modo que o para-si surge num mundo dotado
de significações. Estas, por sua vez, contêm seu caráter de “promessa” de uma fusão ideal que
completaria o para-si: a promessa de que, ao possuir aquilo que aparece com a solidez do em-
si, o para-si suprimiria a falta e realizaria seu desejo fundamental. Nesta perspectiva, o projeto
de ser adquire o aspecto de um projeto de apropriação do mundo, dotando os entes
intermundanos de um coeficiente simbólico.
uso dos objetos e se esvai desde que se pretende contemplá-la: “si je veux la contempler, le
lien de possession s’efface” 361. O para-si só pode então usufruir (jouir) da relação de ser si
mesmo nos objetos possuídos, sem jamais conhecer tal relação. A relação de posse é espectral
ainda a ponto de adquirir certa autonomia de um desvelamento datado de um para-si, na
medida em que é possível apreender a relação de posse nos próprios objetos desde que estes
se revelem como sendo de alguém. O melhor exemplo, oferecido pelo próprio Sartre, é o do
que conhecemos como uma “casa mal-assombrada”. Nos objetos mal-assombrados “le spectre
n’est rien que la matérialisation concrète de l’« être possédé », de la maison et des meubles.
Dire qu’une maison est hantée, c’est dire que ni l’argent ni la peine n’effaceront le fait
métaphysique et absolu de sa possession par un premier occupant”362. Além deste tipo de
posse de um simples pertencimento pelo uso, algumas atividades criam objetos assombrados
“autônomos”, como é o caso de uma obra de arte, ou de um artefato qualquer. Na criação, o
para-si usufrui de seu ser exteriorizado, mas enquanto “l’objet soit totalement moi et
totalement indépendant de moi” 363, uma independência a tal ponto que Sartre diz, em outro
momento, que um acontecimento na obra de arte é “un ouvrage en train de créer son
auteur”364. A criação, diz Sartre, “n’est pas une pensée, c’est un acte : elle produit un objet
qui se retourne contre elle et dont le sens, s’il en a un, émane de lui seul”365. Na relação
mágica de posse, portanto, “le terme fort c’est la chose possédée”366 e é por isso que o ato de
criação de uma obra é um “desvelamento-encontro”, o que define a particularidade neste
contexto do pronome possessivo meu ou minha. Assim como o termo “era” (était) significava
um modo intermediário entre passado e presente para exprimir que o para-si “tem de ser” o
seu passado, o termo “meu” é utilizado por Sartre para se referir a “une relation d’être
intermédiaire entre l’intériorité absolue du moi et l’extériorité absolue du non-moi. C’est, dans
un même syncrétisme, le moi devenant non-moi et le non-moi devenant moi”367. A síntese
impossível da relação mágica de posse se revela por fim como a melhor “solução” para a
questão ontológica que é o para-si, caso fosse possível realizá-la. Já que, enquanto seu ser-
para-outro encontrava seu fundamento em um outro para-si - evidenciando sua
vulnerabilidade ontológica -, na relação de posse o para-si usufrui de seu “eu não subjetivo”
que encontra seu fundamento em sua própria criação. Mas, desde que a posse não realiza
verdadeiramente o usufruir apropriativo e possui um valor somente “encantatório”, o objeto
possuído é apenas promessa ao para-si de existir como seu próprio fundamento, através deste
objeto. Isto não significa que estamos aqui no plano da ilusão e nem de que se trata de uma
fabricação imaginária. Trata-se de uma relação mágica, para além do real e irreal, que faz com
que o para-si surja num mundo dotado de uma dimensão simbólica.
A conduta de posse se define como ação simbólica do desejo de fusão do para-si com
o mundo. Concretamente, cada para-si opera uma cristalização368 particular em torno do
objeto desejado, que funciona como via de alcance da totalidade do mundo. Mas a dimensão
simbólica que se estabelece no interior do circuito entre o para-si e seu ideal, não é decifrável
pelo próprio para-si. A camada espectral simbólica que é inerente ao desvelamento do mundo
traz uma opacidade intrínseca à relação imediata do para-si no mundo de modo que “le circuit
de l’ipséité étant non-thétique et, par suite, l’annonciation de ce que je suis demeurant non-
thématique, cet « être-en-soi » de moi même que le monde me renvoie ne peut qu’être masqué
à ma connaissance. Je ne puis que m’y adapter dans et par l’action approximative qui la fait
naître”369. Cabe à psicanálise existencial interrogar as condutas simbólicas sobre o projeto
fundamental singular de cada para-si em sua relação com o desejo de ser em geral. Tarefa que
para o para-si é impossível, visto que, sendo a conduta de posse mágica e espectral, “elle
s’évanouit sans révéler sa structure profonde et sa signification dès que nous voulons prendre
du recul par rapport à l’objet et le contempler”370.
A dimensão simbólica não se restringe a uma “simbólica a cada vez singular”371 que
diz respeito a cada projeto fundamental particular que surge no interior do circuito de
ipseidade. Sartre procura pensar uma dimensão simbólica alargada, situada no plano da
ontologia, servindo de base para a psicanálise existencial. É neste ponto que, como
368 Processo nomeado e descrito por Stendhal sobre o amor, utilizado neste contexto por Sartre para falar do
objeto possuído. Cf. EN, p. 642.
369 EN, p. 641. (grifo nosso)
370 Ibid.
371 Cf. EN, p. 618-620.
!422
busca mostrar, através de breves análises, o que seria nesta dimensão uma “psicanálise das
coisas”. Dentre os exemplos citados, o que nos chama mais atenção é a descrição do
viscoso, dramaticamente caracterizado como simbolizando “a revanche do em-si”375.
Ao falar do viscoso, Sartre estabelece que a experiência de um sujeito com a
viscosidade de certos elementos do mundo revela uma significação ontológica ligada ao
risco de uma metamorfose metafísica. Entrar em contato com uma substância viscosa pela
fascinação, nojo ou repulsa, não é indiferente ao psicanalista existencial, dado que esta
maneira particular de se relacionar com a viscosidade possui sua verdade na ontologia, na
medida em que é ela que esclarece o modo de ser do para-si como fuga do em-si e desejo
do valor. Somente neste contexto, o viscoso, com seu coeficiente metafísico próprio, será
interpretado à luz de cada projeto. Além disso, Sartre se empenha em mostrar que o
coeficiente metafísico do viscoso não é simplesmente uma projeção subjetiva de um
sujeito, pois ele se encontra, na verdade, “par delà la distinction du psychique et du non-
psychique”376 e corresponde a uma simbólica própria à significação material das coisas.
Dito isto, o viscoso é um bom exemplo deste “entre” que é o há, o mundo, e que cada para-
si vive como situação. Isto porque ele diz respeito a um assombramento fundamental a
todo e qualquer para-si que é aquele próprio ao risco de ser absorvido pela substância. É
neste sentido que “la viscosité est hantée”377, ou melhor, “il y a, dans l’appréhension même
du visqueux, substance collante, compromettante et sans équilibre, comme la hantise d’une
métamorphose. Toucher du visqueux, c’est risquer de se diluer en viscosité”378. Num plano
metafórico-simbólico, Sartre nos fala como a água, por exemplo, já foi pensada por
filósofos como símbolo da fluidez da consciência. Nesta mesma linha, é interessante
observar que ele mesmo se utiliza com frequência da imagem da pedra como densidade
material e símbolo do em-si como “pura positividade”. O viscoso, neste contexto, é o
símbolo do “entre”. Nem líquido, nem sólido, “un fluide aberrant”379, que se apresenta
como “dócil” ao desejo de posse, mas que acaba por se colar ao para-si: “le visqueux est
docile. Seulement, au moment même où je crois le posséder, voilà que, par un curieux
renversement, c’est lui qui me possède. C’est là qu’apparaît son caractère essentiel : sa
mollesse fait ventouse” 380. Por ser assombrado pelo valor, o para-si se vê fascinado pelo
viscoso como promessa de fazer-se “em-si-para-si”, mas eis que o viscoso “inverte os
termos” e compromete o para-si, ameaçando-o de perder sua transcendência, logo, sua
liberdade. O para-si é assim assombrado pela possibilidade de se metamorfosear
completamente em coisa por “[u]n type d’être non réalisé, mais menaçant, qui va hanter
perpétuellement la conscience comme le danger constant qu’elle fuit et, de ce fait,
transforme soudain le projet d’appropriation en projet de fuite”381. Enquanto que o valor é
promessa ao para-si de livrar-se de sua contingência e ser seu próprio fundamento, o
viscoso é a ameaça em direção oposta: através dele o para-si se resumiria à sua
contingência e perderia a dimensão de fundamento do seu nada. Por esta razão, o viscoso é
um antivalor - “un être idéal que je réprouve de toutes mes forces et qui me hante comme
la valeur me hante” 382 - correspondente à contrapartida do assombramento do valor no
para-si. Em outros termos, o para-si é duplamente assombrado em direções contrárias:
cada assombramento visando a suprimir uma de suas dimensões fundamentais. Por isso
mesmo, podemos compreender por esta breve análise do viscoso, como, por este duplo
assombramento, uma dimensão passa na outra e ultrapassa o dualismo entre ser e nada na
dimensão para-si. O para-si encontra-se exatamente neste “entre” dois assombramentos
contrários. Precisamente, enquanto o valor é uma estrutura imediata do para-si, o antivalor
é revelado por uma experiência metafísica, ou seja, é um assombramento que provém da
sua relação com o mundo, por via de experiências com as coisas viscosas. O viscoso vem
então finalmente simbolizar o “acontecimento”, este último no sentido que explicitamos no
início deste capítulo e que retomamos aqui : “En un mot: pour se faire néantisation de l’en-
soi, au-dedans de lui-même et au-dehors, il ne suffit pas que le pour-soi ait avec l’en-soi le
seul rapport synthétique de la négation; il faut qu’il soit ressaisi par cet en-soi sous la
forme d’une unité synthétique venant cette fois de l’en-soi”383. O viscoso simboliza,
portanto, este assombramento próprio à reapreensão do para-si pelo em-si, nos revelando
deste modo a interligação de suas duas dimensões fundamentais. Além disso, estas análises
mostram que a dimensão simbólica é uma estrutura de desvelamento do mundo que não se
assim, podemos dizer que enquanto o primeiro nível contesta a crítica de Merleau-Ponty, o
segundo nível contesta o próprio Sartre, a partir de seus argumentos. Esta afirmação, por sua
vez, não tem por objetivo mostrar que a ambiguidade do autor anula ou enfraquece suas teses
ou sua proposta filosófica. Pelo contrário, acreditamos que são justamente as afirmações
dualistas que aparecem enfraquecidas quando confrontadas com uma elaboração refinada
sobre os modos de ser de sua ontologia. Além disso, identificamos que enquanto uma leitura
clássica de L’Être et le Néant ressalta apenas um lado dessa ambiguidade - o que chamamos
de “polo luminoso” -, faz-se necessário realizar o movimento contrário, que é o de ressaltar o
polo das sombras, não no intuito de apenas inverter os termos de mais um dualismo, mas com
o objetivo de mostrar como este movimento abala a própria lógica dualista. Esta última
consequência corresponde ao efeito de espectralidade, que Derrida dizia ser aquilo que desfaz
lógicas dualistas e mesmo dialéticas. No nosso caso, vale perguntar quais são os abalos
provocado pelo surgimento da camada implícita espectral no quadro da ontologia sartriana, a
partir dos problemas apresentados por uma dimensão específica da crítica de Merleau-Ponty.
Antes de organizarmos os pontos conclusivos e mostrarmos as consequências do
surgimento da camada espectral, vale apontar para alguns breves exemplos da abertura
permitida pela hantologie que mencionamos acima. Com isso, pretendemos indicar caminhos
possíveis de investigação “hantológica” presentes ainda em L’Être et le Néant e em outros
trabalhos. A noção de irrealizável é um bom exemplo. Esboçada ainda nos Carnets a partir de
uma ideia de Simone de Beauvoir, cuja relevância fora apontada em L’Être et le Néant, os
irrealizáveis dizem respeito a uma noção que, segundo De Coorebyter, “est resté pratiquement
inaperçu” 1 nas leituras da obra sartriana. Este autor define o irrealizável da seguinte maneira:
“l’irréalisable désigne un destin qui m’est imposé par autrui et que je ne peux ni récuser [...]
ni réaliser [...] : ce destin restera un « irréalisable-à-réalizer », un impératif intériorisé par ma
liberté comme limite indépassable car il révèle mon incapacité à devenir ce que je suis censé
être”2. Neste sentido, o irrealizável é uma espécie de assunção do ser-para-outro com o
objetivo de realizar uma identidade e de transformar o próprio ser numa espécie de
“personagem social”. Nas palavras de Sartre: “Pour-moi, je ne suis pas plus professeur ou
garçon de café que beau ou laid, Juif ou Aryen, spirituel, vulgaire ou distingué. Nous
appellerons ces caractéristiques des irréalisables”3. Mesmo se tratando de tal tipo de ser, os
irrealizáveis são compreendidos por Sartre como limites que são obrigatoriamente
interiorizados, já que não há como não assumir o ser-para-outro. Isto faz com que nós sejamos
“entourés à l’infini d’irréalisables”, que se apresentam como “d’irritantes absences” 4.
Ausências concretas, reais (que Sartre diferencia dos objetos imaginários), descritas em
termos espectrais: “Il s’agit d’objets existants que nous pouvons penser de loin et décrire mais
jamais voir. Pourtant ils sont là, à portée de la main ; ils sollicitent notre regard, nous nous
tournons vers eux et nous ne trouvons rien”5; “Ils sont réels, ils sont partout, mais hors de
portée”6. Na verdade, Sartre estende este conceito para além do sentido de uma identidade
social a ser realizada pelo sujeito, quando ele afirma que o belo, por exemplo, “hante le
monde comme un irréalisable”7. Seria interessante investigar o assombramento dos
irrealizáveis nas relações intersubjetivas, tanto no que diz respeito ao desejo do sujeito de
aderir ao personagem social que lhe é atribuído, quanto no que se refere às relações que
buscam atingir um ideal (como pode ocorrer no amor, por exemplo, quando este é assombrado
por um ideal que “hante mon projet de moi-même en présence d’autrui” 8). Este tema está
diretamente relacionado à noção de má-fé e de sua vertente social denominada por Sartre de
espírito de seriedade; assim como à compreensão das relações sociais no sentido sartriano de
comédia, o que significa justamente a arrumação de papéis identitários que assombram o
sujeito como identidades a realizar. Em L’Idiot de la famille, por exemplo, seria interessante
investigar a trama que interliga todos estes pontos ao assombramento particular de Gustave
Flaubert em relação ao meio social-familiar que o constitui. Nesta obra, Sartre explora o
assombramento do ser-para-outro de Gustave sob forma de alienação na relação deste com
seu pai, Achille-Cléophas. Este caminho de investigação mostra claramente como o caráter
passivo das vivências provém do assombramento de modos espectrais, como se pode observar
neste trecho: “chez Gustave, ce qui était praxis en Achille-Cléophas devient nécessairement
pathos; c’est une activité fantôme qu’il ne peut même pas concevoir et qui hante - comme une
inquiétude, comme un remords, comme une sollicitation permanente et irréalisable - l’inerte
3 EN, p. 572.
4 EN, p. 572.
5 CDG, p. 483. (grifo nosso)
6 CDG, p. 484.
7 EN, p. 231.
8 EN, p. 406.
!429
9 IF.I, p. 352.
!430
na outra; 2) há uma multiplicidade de modos de ser que não se encaixa nas definições (dadas
por Sartre, mesmo que não rigorosas) de para-si e em-si, que são modos que chamamos de
espectrais, por razões já explicitadas ao longo da “Terceira parte”. Com relação ao primeiro
ponto, ao definir o para-si como em-si que se nadifica, Sartre precisa dizer que o para-si é,
para que ele tenha de ser o que ele é. Em alguns momentos, esta distinção parece separar as
dimensões “contingente em-si” - que o para-si é - e “translúcida-subjetiva”, que o para-si tem
de ser. Essa separação é problemática e é ela que está na base do dualismo entre ser e nada.
Todavia, ela não pode ser totalmente anulada no sentido em que dizer que o para-si é um em-
si nadificado é dizer que ele é contingente e é do mundo, mas somente enquanto ele existe
como nadificação incessante de seu ser. A nadificação corresponde ao que chamamos de
passagem ao espectral, que é o movimento incessante do ato ontológico. Ao mostrar que há
essa passagem, nos interessamos por aquilo que “resta” de em-si no para-si, que é o espectro
da facticidade, já que a facticidade é caracterizada como a assunção da contingência. Se a
facticidade não é a dimensão contingente em-si mas justamente o ter de ser, ela abala esta
divisão mesma entre as duas dimensões fundamentais, na medida em que a dimensão
“translúcida-subjetiva” é o campo de presença dos espectros provenientes do ato ontológico,
dualidade na unidade que é expressa pela definição do para-si como “é o que não é e não é o
que é”. Em poucas palavras: a facticidade é o campo espectral que coloca em questão a “pura
subjetividade” do para-si. Veremos mais adiante as consequências disto. O outro dualismo
apontado como fundamental e de algum modo derivado do primeiro, corresponde à divisão
sartriana entre para-si e para-outro, que identificamos à cisão entre subjetividade e
objetividade. Com relação a esta divisão entre uma dimensão subjetiva e uma dimensão
objetiva do para-si, mostramos que o assombramento é novamente o modo de relação entre as
dimensões e que o “eu-para-outro” habita o para-si de maneira a orientar radicalmente seu
modo de ser-no-mundo. Além disso, mostramos que o para-outro não pode ser associado a
uma “pura objetividade” na medida em que ele corresponde justamente a um modo de ser
difícil de ser definido, nem para-si nem em-si e espectral (esboço-fantasma). O corpo-para-
outro, por exemplo, é sempre em-situacão, e a “objetidade” do outro é sempre “explosiva”.
A divisão entre para-si e em-si finalmente não dá conta de uma série de modos de ser
presente na ontologia sartriana. Se esta base é rígida, o olhar centrado no dualismo entre para-
si e em-si tende a menosprezar os modos ditos “contraditórios”. Nossa tese é a de que a
!431
predominância dos modos de ser nesta obra é justamente a dos modos que não se encaixam no
dualismo, seja por serem definidos como “nada em-si”, “para-si-em-si”, seja por serem
referidos como “sombra”, “intermediários” “nem para-si, nem em-si”, “mágico”, etc. Isto vale
tanto para modos fantasmáticos como a unidade temporal e espacial do mundo e as
temporalidades mundana e psíquica, quanto para os modos “sombra” - como o psíquico e os
objetos imaginários -, quanto para modos de desvelamento do mundo como o espaço, o
“mundo-para-outro”, assim como para modos de relações - como as relações externas e,
sobretudo, mágicas. No entanto, identificamos uma região ontológica comum a tal
multiplicidade de modos de ser que é a espectralidade. Procuramos mostrar que esta escolha
argumentativa não é arbitrária em virtude das descrições carregadas de elementos espectrais,
os quais o trabalho de Derrida auxilia a identificar. A indicação ao espectral no texto sartriano
é por vezes explícita: como no caso do uso constante do verbo assombrar (hanter) e do uso
significativo da palavra fantasma (fantôme); e por vezes implícita: como aquilo que está
presente sem ser passível de intuição, que assombra “por detrás”, que visita, que perturba, que
retorna, etc. Assim, cada modo que chamamos de espectral tem sua especificidade mas todos
escapam de algum modo à plena positividade do ser ou à plena negatividade do nada. Além
disso, são os próprios modos espectrais que surgem no espaço de quebra da rigidez dualista,
contestando esta divisão mesma.
Outra questão que deve ser ressaltada a título de conclusão se refere a uma espécie de
tensão entre os elementos que Sartre qualifica como sendo da ordem da “metafísica” e as
análises propriamente ontológicas da obra. Sem entrar em uma discussão maior entre a
divisão que o autor estabelece entre metafísica e ontologia, o ponto que acreditamos ser
importante na crítica de Merleau-Ponty consiste em sua oposição teórica à concepção do em-
si como “pura positividade”. Identificamos esta questão ao falarmos do “problema do em-si”,
ligado à divisão antifenomenológica entre ser do fenômeno e fenômeno de ser. Se tomarmos
estas questões a partir de um plano metafísico - que trata do surgimento, do “por que há o
ser?” - caímos no dualismo entre ser e nada no que se refere ao em-si, já que ele pode ser
considerado como “puro ser do fenômeno”, mesmo que o para-si não seja “puro nada”.
Assim, é com relação ao em-si que o plano metafísico é problemático, dado que, de fato, o
que seria este em-si que é pura positividade? Qual o sentido de falar de um em-si anterior ao
surgimento do mundo? A hantologie, por sua vez, se situa num plano ontológico-
!432
10 EN, p. 337.
!433
11 EN, p. 111.
!434
Le désir est défini comme trouble. Et cette expression de trouble peut nous
servir à mieux déterminer sa nature : on oppose une eau trouble à une eau
transparente ; un regard trouble à un clair regard. L’eau trouble est toujours
de l’eau; elle en a gardé la fluidité et les caractères essentiels; mais sa
translucidité est « troublée » par une présence insaisissable qui fait corps
avec elle, qui est partout et nulle part et qui se donne comme un empâtement
de l’eau par elle-même13.
12 Ibid., p. 147.
13 EN, p. 427. (grifo nosso)
14 EN, p. 427. (grifo nosso)
!435
própria a um adormecimento. Por outro lado, é significativo que Sartre permita a analogia
através do termo que é utilizado justamente para caracterizar a consciência pré-reflexiva. No
caso do desejo, a ideia de trouble é a de que há “la présence d’un quelque chose d’invisible
qui ne se distingue pas d’elle-même [la conscience]”, de algo “insaisissable qui fait corps
avec elle”, que perturba e obscurece o nível translúcido sem com isso substancializa-lo:
“L’eau trouble est toujours de l’eau; elle en a gardé la fluidité et les caractères essentiels; mais
sa translucidité est « troublée »”15. Neste sentido, sem forçar uma equivalência entre o plano
do desejo sexual e da consciência pré-reflexiva, podemos nos ater a analogia proposta no
intuito de compreender como o assombramento dos espectros perturba e “turva” (trouble) o
plano pré-reflexivo espectral. As figuras espectrais são figuras da facticidade, já que
correspondem à passagem ao espectral da dimensão contingente que o para-si é. Em outros
termos, a facticidade do para-si é esta maneira particular de existir seu ser contingente, é o
plano dos espectros, onde o dualismo entre ser e nada não faz mais sentido já que o espectro
não pode ser caracterizado simplesmente como ser ou como nada. Se a facticidade
corresponde ao fato da consciência escolher pré-reflexivamente sua maneira de ser, o
assombramento dos espectros perturba este próprio movimento por ser algo da ordem
contingente de alguma forma presente na dimensão escolhida, algo que chega “por detrás”.
Como vimos a respeito das zonas de opacidade da dimensão para-si do para-si “sujeito”,
este se encontra constantemente assombrado não somente por sua contingência original, mas
também por uma série de figuras espectrais. Dentre elas é significativo que Sartre se utilize do
termo sombra (ombre) para se referir ao psíquico e por vezes aos objetos imaginários. Se o
assombramento é a relação entre estes objetos e o nível pré-reflexivo, como um tipo particular
de presença e visitação, podemos concluir que as sombras vêm obscurecer a dimensão até
então considerada “subjetiva-translúcida”. É o corpo psíquico, neste contexto, o meio passivo
que faz com que a consciência sofra a ação dos objetos psíquicos, intimamente ligados à
dimensão pré-reflexiva pela afetividade original que é a textura da facticidade corporal.
Curiosa liberdade a que se apresenta finalmente sob a perspectiva da espectralidade. O
nível pré-reflexivo é invisibilidade, logo, desconhecimento de si, opacidade espectral. Ao
fazer-se reflexivo o para-si pode apenas experienciar a reflexão pura pela angústia ou
constituir quase-objetos pela reflexão impura, que passam em seguida a assombrá-lo. Além
15 EN, p. 427.
!436
disso, o olhar do outro dota o para-si de uma dimensão alienada que assombra constantemente
e provoca uma metamorfose corporal que ele existe a cada vez. O assombramento acaba por
questionar os poderes da liberdade, dado que ela sofre o efeito de espectralidade que acentua
finalmente a contingência que a habita. Contingência que, embora adquira uma dimensão de
necessidade ao passar à facticidade, não cessa nunca de assombrar como contingência
original. Ou seja, o assombramento evidencia que nem tudo se transforma ao passar ao campo
de fundação do nada, há sempre um resto, um traço de infundado que atravessa a existência
de cada sujeito de sua própria absurdidade, constantemente vivida como náusea. Fazer
emergir a camada espectral é acentuar outros modos de presença, a partir de outro regime de
visibilidade, uma “visibilidade da noite”. Legitimar o espectral é ainda se contrapor à busca
pelos direitos de uma identidade, seja de um sujeito, seja de polos dualistas que não
comportam movimentos16. Os espectros perturbam (troublent) o domínio de si do sujeito. A
partir desta constatação, as noções de escolha, de projeto fundamental, de má-fé, a relação
com a psicanálise e com a ideia de inconsciente, entre outros lugares-comuns do pensamento
sartriano, merecem um novo olhar.
16 Uma ideia que nos inspira no sentido de ser possível pensar ainda uma ontologia, mas em conjunto com uma
crítica aos modos indentitários, consiste no que Safatle chama de ontologia subtrativa. Ontologia que “não visa
fornecer determinações normativas sobre o ser, descrevendo o regime de sua substancialidade, seus atributos de
permanência e estabilidade nocional”, visto que é “crítica das formas atuais de determinação e apresentação de
“formas gerais de movimento” que desarticulam o campo das identidades”. SAFATLE, V. O circuito dos afetos.
Corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. São Paulo: Cosac Naify, 2015, p. 37. É próprio do espectral
tal desarticulação.
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L’HANTOLOGIE DE SARTRE
Sur la spectralité dans L’Être et le Néant
Résumé substantiel
L’Être et le Néant est devenu un classique en philosophie. Les lectures qui portent sur
cet ouvrage sont aujourd’hui nombreuses et diversifiées. Jean-Paul Sartre y a consolidé des
thèmes fondamentaux de sa pensée, faisant de ce travail un objet d’inspiration forte, tant dans
le champ philosophique, que dans ceux de la politique, du théâtre et de la psychologie. Le
philosophe de la liberté est en même temps celui de la conscience transparente, du choix
qu’un sujet fait de lui-même, de la responsabilité et du néant. On pourrait dire des pôles
lumineux d’une ontologie problématique qui est accusée d’avoir instauré un dualisme radical
et définitif entre le sujet et le monde, ainsi que d’avoir proposé une conception solipsiste et
individualiste du sujet. Trop cartésienne, pas assez husserlienne, heideggerienne à tort,
obscurément hégélienne, cette ontologie survit aux critiques qui rendent quasi insoutenables
ses points principaux.
En vue de se confronter à ces problèmes de base, notre travail propose donc une autre
lecture possible de l’ontologie sartrienne, par le biais d’une reprise de cette pensée selon une
voie originale. Nous appelons hantologie cette autre lecture que nous avons réalisée, en raison
du fait qu’elle met en évidence les relations de hantise omniprésentes, mais non thématisées,
dans L’Être et le Néant. À travers la perspective de l’hantologie, il a surtout été possible de
surmonter le problème du dualisme, en montrant qu’il y a en réalité, une pluralité de modes
d’être au lieu, selon une division plus répandue entre l’être du pour-soi et de l’en-soi. Cette
pluralité correspond à un plan implicite de l’œuvre que nous avons nommé, à partir de
certaines idées de Jacques Derrida, spectralité. Cette lecture démontre finalement qu’un mode
de présence non intuitive des spectres ébranle la supposée “pureté” lumineuse de la
conscience qui s’est établie comme paradigme du sujet sartrien, dans la mesure où la hantise
!2
démontre un type singulier d’opacité qui finalement inscrit le sujet dans le monde et obscurcit
sa relation à soi.
Parmi les critiques qui portent sur L’Être et le Néant, une lecture est devenue célèbre :
celle du philosophe et ami de Sartre, Maurice Merleau-Ponty. Depuis la Phénoménologie de
la perception, on retrouve fréquemment les arguments merleau-pontyens en opposition aux
prémisses de Sartre. Opposition qui devient de plus en plus évidente par les tensions et les
conflits politiques qu’elle incorpore, qui sont à l’origine de textes comme l’attaque frontale
dans Sartre et l’ultra-bolchevisme (dans Les Aventures de la dialectique) et, d’une forme plus
élaborée, dans le manuscrit Le Visible et l’Invisible. Cette lecture devient, elle aussi, classique
à l’intérieur du débat philosophique, de manière à orienter la réception de la philosophie
sartrienne comme un tout, plus particulièrement dans L’Être et le Néant. Il n’est pas rare de
trouver des développements de cette lecture dans des livres sur Sartre ou sur Merleau-Ponty,
montrant généralement comment ce dernier, à partir des limites insurmontables identifiées
dans la philosophie de Sartre, a su les dépasser. Cela dit, on croit que cette critique se trouve
en syntonie - peut-être parce qu’elle en est une de ses origines - avec la position dominante de
lecture qui s’est établie sur L’Être et le Néant1.
La critique de Merleau-Ponty à Sartre est vaste et parfois minutieuse. En raison de
cela, il faut choisir un point spécifique de cette critique qui soit suffisamment important pour
conduire la réflexion. Le problème majeur que nous avons identifié dans la philosophie de
Sartre, via la lecture de Merleau-Ponty, est, justement le problème du dualisme. En effet, les
risques du dualisme traversent L’Être et le Néant. Ses toutes premières lignes affirment que la
pensée moderne a réalisé un véritable progrès qui aurait permis la suppression d’un certain
nombre de dualismes classiques, pour présenter ensuite une division de modes d’être qui a été
considérée par la plupart des critiques comme la base d’un nouveau dualisme, cette fois-ci
sartrien : à savoir la scission entre les régions ontologiques du pour-soi et de l’en-soi.
Dans l’« Introduction » de L’Être et le Néant, Sartre affirme avoir divisé le « concept
d’être » en « deux régions d’être absolument tranchées » et « incommunicables », même s’il
1 D’après Renaud Barbaras, “c’est incontestablement Merleau-Ponty qui [...] en un premier temps, à contribué à
renforcer l’occultation de la phénoménologie sartrienne, dans la mesure où Merleau-Ponty se construit en partie
contre elle”. BARBARAS, R. Introduction. In: _____ . (Org.) Sartre: désir et liberté. Paris: PUF, 2005, p. 11.
Pour Vincent de Coorebyter, “Même si elle [la critique de Merleau-Ponty] n’est pas unanimement partagée, cette
critique fait aujourd’hui autorité dans de nombreux cercles de lecteurs tant elle traduit en termes saisissants ce
qui semble bien être la leçon ontologique ultime de Sartre”. DE COOREBYTER, V. Sartre et l’être du néant.
Cahiers de philosophie de l’Université de Caen : Dire le néant, Caen, n. 43, 2007, p. 347.
!3
envisage que les deux régions « puissent être placées sous la même rubrique »2, sans pourtant
nous expliquer ce qu’il voudrait dire par là. Il nous dit seulement que « nous ne pourrons
véritablement saisir le sens de l’un ou de l’autre que lorsque nous pourrons établir leurs
véritables rapports avec la notion de l’être en général, et les relations qui les unissent 3 ».
Encore dans l’« Introduction », Sartre semblait à la fois renforcer et éviter le dualisme entre le
pour-soi et l’en-soi. Renforcer, lorsqu’il dit que le pour-soi est « radicalement autre » que
l’en-soi, qui lui est « opposé »4. Et éviter, au sens où il était attentif au danger d’avoir « fermé
toutes les portes et que nous nous soyons condamné à regarder l’être transcendant et la
conscience comme deux totalités closes et sans communication possible5 ». Cependant,
malgré cette précaution, ce qui est frappant c’est que l’on peut encore retrouver ce problème
dans la « Conclusion » de l’ouvrage : « Mais après description de l’en-soi et du pour-soi, il
nous avait paru difficile d’établir un lien entre eux et nous avions craint de tomber dans un
dualisme insurmontable6 ». Il s’agit ainsi d’une question qui traverse L’Être et le Néant, en
posant un problème auquel Sartre était attentif, mais qu’il n’a pas forcément réussi à résoudre.
Notre travail a donc consisté à reprendre la question du problème du dualisme dans la
philosophie de Sartre à travers la critique de Merleau-Ponty. Dans un premier temps, il a fallu
identifier en quoi consiste ce problème et quelles sont ses conséquences philosophiques. Dans
un deuxième temps, nous avons questionné l’idée de Merleau-Ponty selon laquelle il y aurait
un dualisme entre les modes d’être pour-soi et en-soi, ainsi que l’équivalence entre ces deux
modes d’être et les notions d’être et de néant. Nous avons appelé premier niveau de
constestation le parcours que nous avons réalisé pour montrer comment un changement
théorique dans la philosophie de Sartre vers la fin des années trente met en question la critique
merleau-pontyenne en ce qui concerne spécifiquement L’Être et le Néant, en reprenant une
position de Vincent de Coorebyter. Ce changement s’illustre dans la transition d’une
conception instantanéiste de la temporalité à une conception ekstatique liée à l’introduction de
la structure de facticité dans la conception du mode d’être du sujet ; changement que Merleau-
Ponty semble avoir négligé dans sa lecture de l’ontologie de Sartre. Toutefois, en déplaçant
quelques éléments de la critique merleau-pontyenne, on a pu identifier ce qu’on a appelé les
2 SARTRE, J.-P. L’Être et le Néant, Paris, Gallimard, 2012, p. 30. (Désormais EN)
3 EN, p. 30.
4 Ibid.
5 Ibid.
6 EN, p. 665.
!4
dualismes résiduels, face auxquels le premier niveau n’avait pas été capable de proposer des
solutions. La troisième partie de la thèse, deuxième niveau de contestation que nous avons
appelé l’hantologie, pour des motifs que nous allons exposer brièvement dans ce qui suit, a
finalement pour vocation de dépasser les problèmes résultants du dualisme, à partir des
éléments implicites ou peu travaillés dans le texte de Sartre.
7 MERLEAU-PONTY, M. Le Visible et l’Invisible / Notes de travail. Paris: Gallimard, 2013, p. 48. (Désormais
VI)
8 VI, p. 47.
!5
Pour Merleau-Ponty, l’échec de l’ontologie sartrienne réside dans ses bases mêmes,
alors que « tout dépend ici de la rigueur avec laquelle on saura penser le négatif 9 ». En
définissant de manière générale la chose comme l’être en-soi qui est décrit comme « massif »,
« plénitude absolue et pleine positivité »10, et le sujet comme l’être pour-soi qui est le néant,
Sartre instaure, selon Merleau-Ponty, une scission entre deux régions opposées – être et non-
être – et comme telles irréconciliables. Si d’un côté, l’être est en-soi et ne contient en lui-
même aucune négativité, de l’autre l’être pour-soi est pure négativité, pur néant. En effet,
depuis La Transcendance de l’Ego, Sartre travaille à « vider » la conscience en l’affirmant
comme pure translucidité sans aucun contenu ou zone d’opacité, aucune image, représentation
ou ego qui puissent « habiter » la conscience. Le sujet est pure ouverture irréfléchie sur les
choses et « pour que cette ouverture ait lieu, pour que décidément nous sortions de nos
pensées, pour que rien ne s’interpose entre nous et lui, il faudrait corrélativement vider l’Être-
sujet de tous les fantômes dont la philosophie l’a encombré »11. Ainsi, Sartre postule le
rapport du sujet et du monde comme une ouverture qui est pur néant en ek-stase sur l’être, et
pour rendre possible cet accès particulier il purifie la notion de subjectivité au point qu’elle ne
peut être caractérisée précisément que par le rien, le vide, qui a besoin de la plénitude du
monde pour exister. Pour Merleau-Ponty cette solution « facile » transforme le négatif en une
sorte d’essence, en retombant sur le positif. En d’autres termes, si le néant ne peut jamais être
incorporé à l’être – qui est pure positivité –, s’il est toujours « derrière », ou soustrait à ce
qu’il dévoile ou affirme, le sujet comme néant finit par être cette sphère de non-adhérence au
monde. Il en résulte que cette région de négativité, qui ne peut être ni « sujet » ni « esprit », ni
« ego », vu qu’elle est pur néant, réintroduit à la place même où l’on voudrait l’expulser, un
« fantôme de réalité » du type d’une res cogitans « très particulière, souligne Merleau-Ponty,
insaisissable, invisible, mais chose tout de même »12. Ce faisant, Sartre substantialise la
subjectivité par excès de tentatives de la désubstantialiser, en postulant un néant hypostasié
qui interdit tout mélange à l’être. Dans ces conditions, être et néant sont, en réalité, « en
repos » l’un contre l’autre du fait qu’il n’y a que de la positivité ; et, pour cela même il n’y a
que de l’en-soi qui « du fond de sa primauté, tolère d’être reconnu par le Néant »13, alors qu’il
9 VI, p. 77.
10 EN, p. 32.
11 VI, p. 76.
12 Ibid.
13 VI, p. 126. (nous soulignons).
!6
14VI, p. 76.
15MOUTINHO, L.D., « O invisível como negativo do visível : a grandeza negativa em Merleau-Ponty », Trans/
Form/Ação, vol. 1, n° 27, 2004, p. 12. (Traduit librement du portugais.)
!7
trouve dès lors empêchée d’accéder effectivement à l’altérité, parce que si on part de la
division néant/être comme identique au couple conscience/monde, un tel rapport de survol est
nécessairement solipsiste. En premier lieu, cette conséquence résulte de ce que Merleau-Ponty
appelle le « pouvoir d’ontogenèse » de la conscience sartrienne, qui consiste en un pouvoir du
sujet de donner sens au monde. Le rapport conscience-monde forme ainsi une « sphère
close16 », de sorte que le monde se dévoile dans une dimension « pour-soi » du sujet qui est
« seul témoin d’ontogenèse »17. En ce sens, autrui est celui qui apparaît comme un deuxième
témoin du monde du pour-soi, ce qui revient à dire que « ce sont toujours mes choses que les
autres regardent et le contact qu’ils prennent avec elles ne les incorpore pas à un monde qui
soit leur. La perception du monde par les autres ne peut entrer en compétition avec celle que
j’en ai moi-même »18.
En second lieu, la position sartrienne concernant le rapport à autrui est développée
comme une radicalisation de la séparation entre être et néant, mais à présent dans la
perspective du pour-soi en rapport avec sa dimension pour-autrui, étant donné que le néant
que je suis et la dimension positive qui vient au monde par l’autre sont contradictoires et sans
mélange. Pour comprendre les grandes lignes de cette dimension, nous pouvons résumer la
position sartrienne de la manière suivante : l’apparition d’autrui est pour Sartre de l’ordre
d’une rencontre, où il arrive au pour-soi de souffrir d’une objectivation de son être qui fait
apparaître ce que Sartre nomme le « pour-autrui ». Cette « métamorphose » est souvent
décrite par Sartre comme ce qui s’opère à partir d’une expérience de la honte dans laquelle, à
travers le regard d’autrui, le pour-soi peut être vu, jugé, mesuré de même que les choses du
monde. Pour Merleau-Ponty, cette relation à autrui donne au pur néant qu’est le pour-soi une
dimension de visibilité, de manière à l’inscrire dans un ordre objectif du monde. Ainsi, chaque
pour-soi, dans son rapport à autrui, subit ou opère une objectification de l’autre, de façon
qu’au moins quatre termes sont en jeu : « mon être pour moi, mon être pour autrui, le pour soi
d’autrui et son être pour moi » 19. Par suite, il semble que cette sorte de « couche » de pour-
autrui, au lieu de caractériser une expérience d’altérité, empêche cette expérience même, dans
la mesure où chaque pour-soi ne se trouve pas en rapport avec l’autre proprement dit mais
avec soi-même, avec son pour-autrui. Bref, comme le dit Merleau-Ponty, « je n’ai pas affaire
16 VI, p. 84.
17 Ibid.
18 Ibid.
19 VI, p. 110.
!8
aux autres, j’ai affaire tout au plus à un non-moi neutre, à une négation diffuse de mon
néant »20. Nous pouvons constater ainsi l’origine de cet étrange solipsisme qui n’est plus celui
d’un sujet isolé du monde en doutant de son existence, mais celui d’un sujet solitaire dans un
monde plein et positif, où tout ce « qu’il y a » vient du pouvoir d’ontogenèse de la conscience.
Si autrui apparaît, dit Merleau-Ponty, « [il] reste un habitant de mon monde, mais il me
rappelle très impérieusement que l’ipse est un rien21 ». Autrui constate ainsi que rien ne peut
m’atteindre du « dedans », puisque son regard « ne fait que prolonger mon intime conviction
de n’être rien, de ne vivre qu’en parasite du monde, d’habiter un corps et une situation22 ».
C’est pourquoi déjà dans Les Aventures de la dialectique, Merleau-Ponty disait que s’« il y a
chez Sartre une pluralité de sujets, il n’y a pas d’intersubjectivité »23. Or, si chaque pour-soi
est pouvoir d’ontogenèse de dévoilement de l’en-soi, et que le sujet est seulement nié à travers
le regard d’autrui mais pas vraiment modifié en tant que négativité, il reste que
l’intersubjectivité est pensée comme une relation entre « foyers de négativité »24, qui ne sont
que « d’autres moi-même »25, donc comme une relation abstraite, logique et essentialiste.
20 VI, p. 99.
21 VI, p. 85.
22 VI, p. 88.
23 MERLEAU-PONTY, M. Les Aventures de la dialectique, Paris, Gallimard, 2000, p. 284.
24 VI, p. 85.
25 VI, p. 100.
!9
problèmes majeurs, qui sont internement liés : en premier lieu, la négation dans L’Être et le
Néant est toujours un acte de négation de l’être et jamais une négation pure, ou ex nihilo.
Voici quelques passages : « l’être est antérieur au néant et le fonde » ; « le néant […] ne
saurait avoir qu’une existence empruntée : c’est de l’être qu’il prend son être » ; « Le néant ne
peut se néantiser que sur fond d’être : si du néant peut être donné, ce n’est ni avant ni après
l’être, ni, d’une manière générale, en dehors de l’être, mais c’est au sein même de l’être, en
son cœur, comme un ver»26. La lecture que fait Sartre de Qu’est-ce que la métaphysique ? de
Heidegger a été là encore décisive pour sa conception de négativité. À partir de là, il
interprète à sa manière l’idée heideggérienne du néantir du néant (das Nichten des Nichts)
comme un acte de néantisation de l’être. C’est pourquoi on peut comprendre que toute
négation est existentielle, ce qui revient à dire que la négation est toujours un acte
ontologique. Cet acte de négation pour Sartre est l’être même du sujet qui est néantisation de
son être et sur ce point l’accord est total avec Hegel « lorsqu’il déclare que l’Esprit est négatif
»27 . Cette caractéristique ontologique nous amène au deuxième point.
2) Dans la deuxième partie de L’Être et le Néant – lorsque Sartre décrit les structures
immédiates du pour-soi –, le mode d’être du pour-soi est défini à partir de la structure de la
facticité comme un « en-soi néantisé » : « C’est cette facticité qui permet de dire qu’il [le
pour-soi] est, qu’il existe, bien que nous ne puissions jamais la réaliser et que nous la
saisissions toujours à travers le pour-soi »28. Tout se passe comme si l’en-soi – à partir d’un
effort pour échapper à sa contingence pour être son propre fondement ou causa sui –, se
néantisait en faisant surgir le pour-soi. Si le néant est nécessairement « néant d’être », comme
nous venons de le dire, il faut qu’il y ait un être qui soutient en son sein l’acte incessant de
néantisation. Or, si l’être pour-soi est un en-soi néantisé, nous ne pouvons pas négliger une
« communauté ontologique » entre les deux modes d’être qui va mettre en question l’idée
d’un dualisme entre le pour-soi et l’en-soi. Car, comme nous dit Vincent de Coorebyter:
le pour-soi n’est pas l’Autre de l’en-soi, son exact opposé, bien au contraire :
le pour-soi, c’est l’en-soi lui-même qui se fait autre que soi en son sein, qui
s’affecte de néant en son cœur, « comme un ver », par un geste inexpliqué et
contingent que Sartre appelle l’acte ontologique et qui dépressurise l’en-soi
de l’intérieur. Le pour-soi, c’est de l’en-soi conscient (de) soi, motif pour
lequel il est affecté de la contingence propre à l’en-soi […] C’est là, très
exactement, ce que Sartre appelle la facticité, qui est propre au pour-soi car
elle désigne la prise en charge existentielle de la contingence et non la
contingence elle-même. Définie de la sorte, la facticité consacre
l’indépassable appartenance du pour-soi au monde commun de l’en-soi.29
29 DE COOREBYTER, V. « L’Être et le néant, ou le roman de la matière », Les Temps Modernes, n° 667, 2012,
p. 1-11, p. 8 pour la citation (nous soulignons).
30 DUFRENNE, M. Jalons, La Haye, Martinus Nijhoff, 1966, p. 76.
31 ROMANO, C. « L’ontologie sartrienne : réflexions sur son archè et son télos », dans N. TAMBOURGI-
HATEM (Org.), Sartre sans frontières, Beyrouth, Université Saint-Joseph, 2007, p. 15.
32 VERSTRAETEN, P. « Sartre/Kant/Hegel. De la contrariété à la contradiction, quelques itinéraires du
33 EN, p. 28.
34 Cf. DUFRENNE, M. Jalons, p. 172 ; BEAUVOIR, S. de « Merleau-Ponty et le pseudo-sartrisme », dans Priv-
ilèges, Paris, Gallimard, 1955, p. 206-207.
!12
Compte tenu de ces trois points, il nous est possible d’envisager les limites de la
critique de Merleau-Ponty. À cet égard, on peut ajouter encore une conséquence d’une lecture
dualiste de L’Être et le Néant : à savoir l’impossibilité de rendre compte de la richesse des
modes d’être qu’on y trouve. Autrement dit, si on fait une lecture qui prend en considération
les divers modes d’être décrits tout au long de l’ontologie sartrienne, celle-ci se révèle
beaucoup plus complexe que l’on ne pourrait l’imaginer à partir d’une lecture dualiste. En
premier lieu, parce que c’est n’est pas si simple de définir de manière rigoureuse – non
seulement en ayant en vue l’« Introduction », mais aussi la suite de l’ouvrage –, les modes
d’être du pour-soi et de l’en-soi. Ce couple de termes est souvent compris comme la version
sartrienne de la dichotomie sujet-objet, comme nous pouvons l’observer à partir d’une
affirmation d’Alain Badiou : « la conscience et son objet, l’idéation et l’idéat, le pôle noétique
et le pôle noématique, ou, dans la variante sartrienne, le pour-soi et l’en-soi » 36. Une telle
réduction tient au fait que Sartre lui-même a choisi ladite « mauvaise perspective » en partant
d’un paradigme perceptif (l’être du percipere et l’être du percipi) pour présenter ces deux
régions d’être au début de l’ouvrage. Dans l’« Introduction » donc, l’en-soi nous est d’abord
présenté comme étant « l’être de cette table, de ce paquet de tabac, de la lampe, plus
généralement l’être du monde qui est impliqué par la conscience » 37. En effet, le mode d’être
de l’en-soi est sûrement un mode objectif parce que sa loi d’être c’est le principe d’identité,
mais on ne peut pas en conclure pour cela que l’en-soi soit toujours un objet qui apparaît à la
conscience perceptive, car il y a bien des modes d’être en-soi qui ne se donnent pas à travers
ce type de relation entre un sujet et un objet. C’est ce qu’on peut observer par rapport à la
définition sartrienne du passé – il est un en-soi et son mode d’être ne peut pas être perçu, par
exemple. À la différence de l’en-soi perçu, l’en-soi passé n’est pas un objet pour la
conscience :
Ainsi n’y a-t-il pas thèse du passé et pourtant le passé n’est pas immanent au
pour-soi. Il hante le pour-soi dans le moment même où le pour-soi s’assume
comme n’étant pas telle ou telle chose particulière. Il n’est pas l’objet du
regard du pour-soi. Ce regard translucide à lui-même se dirige, par-delà la
chose, vers l’avenir. Le passé en tant que chose qu’on est sans la poser, en
tant que ce qui hante sans être remarqué, est derrière le pour-soi, en dehors de
son champ thématique, qui est devant lui comme ce qu’il éclaire.38
On peut remarquer par là qu’on doit distinguer les spécificités des différents modes
d’être qui sont placés sur la désignation d’en-soi. En même temps, on peut observer une
difficulté de Sartre lui-même dans ce qui relève de ses définitions du passé comme en-soi,
lorsqu’il nous dit aussi que « le passé que j’étais […] c’est un en-soi comme les choses du
monde »39, c’est-à-dire sans faire la distinction que nous venons d’indiquer, ou quand il dit,
après avoir défini le mode d’être du passé comme un en-soi, que « En un sens […] le passé
qui est à la fois pour-soi et en-soi ressemble à la valeur ou soi »40. De même, l’être de la
valeur est à plusieurs reprises défini comme un en-soi-pour-soi, mais on trouve en même
temps la valeur comme synonyme du Soi et celui-ci comme un en-soi : « Ce que le pour-soi
manque, c’est le soi – ou soi-même comme en-soi » ; « [la valeur] est comme l’en-soi absent
qui hante l’être du pour-soi » ; pour ajouter ensuite « [qu’]il ne faudrait pas confondre,
toutefois, cet en-soi manqué avec celui de la facticité. L’en-soi de la facticité, dans son échec
à se fonder, s’est résorbé en pure présence au monde du pour-soi. L’en-soi manqué, au
contraire, est pure absence » 41. Même sans entrer dans les détails de ce genre d’affirmation,
on peut se demander quelle est la différence entre ces modes d’être en-soi placés sous une
même définition ? En outre, Sartre décrit des modes d’être qui ne sont pas vraiment un en-soi
stricto sensu, mais qui se donnent comme une série de « figures » de l’en-soi : c’est le cas de
l’objet psychique qui est une « ombre d’être »42, du ceci qui est une chose-ustensile, des en-
soi fantômes qui sont une sorte de « néant-en-soi » qui composent la temporalité mondaine.
Bref, il s’agit des modes d’être qui apparaissent comme contradictoires au cadre dualiste, mais
qui sont pourtant des êtres réels et qui jouent un rôle fondamental dans l’ontologie sartrienne.
D’autre part, nous pouvons mettre en question aussi les définitions concernant le pour-
soi. Ce mode d’être est désigné normalement comme le mode d’être de la conscience, c’est-à-
dire comme la version sartrienne du « sujet ». Toutefois, ce n’est pas strictement pour se
référer au « sujet » qu’on retrouve la désignation de pour-soi, mais aussi pour tout ce qui
appartient à une région ontologique spécifique. Rappelons les quatre premières structures
immédiates du pour-soi « sujet »: la présence à soi est pour-soi de même que le possible, la
facticité est un en-soi néantisé, la valeur est un en-soi-pour-soi. En somme, dans la description
même du pour-soi « sujet » on retrouve des structures spécifiques « pour-soi » et d’autres qui
échappent en un certain sens à la description d’un pour-soi « pur », comme la facticité et la
valeur. Celle-ci, par exemple, étant un en-soi-pour-soi, comment peut-elle être pour-soi ?
Une dernière remarque importante sur les définitions. Dans le cas de l’ego pour-autrui,
par exemple, on raterait la complexité des modes d’être si on s’en tenait à une lecture dualiste.
Sur l’ego-pour-autrui, Sartre affirme la chose suivante :
Pourtant cette limite hors d’atteinte qu’est mon Moi-objet n’est pas idéale :
c’est un être réel. Cet être n’est point en-soi car il ne s’est pas produit dans la
pure extériorité d’indifférence; mais il n’est pas non plus pour-soi, car il n’est
pas l’être que j’ai à être en me néantisant. Il est précisément mon être-pour-
autrui, cet être écartelé entre deux négations d’origine opposée et de sens
inverse.43
d’autres termes, nous pouvons nous demander, après avoir compris que le pour-soi est en
même temps être et néant, puisqu’il « n’est pas ce qu’il est et est ce qu’il n’est pas », comment
ces termes se rapportent l’un à l’autre dans la réalité même du pour-soi ? S’excluent-ils ?
Passent-ils l’un dans l’autre ? Sont-ils contemporains ? On peut également poser la question
en termes de subjectivité et d’objectivité : si le pour-soi est en même temps pour-soi et pour-
autrui, comment ces deux dimensions, décrites par Sartre comme incompatibles, peuvent-elles
coexister dans un même être qui est pour-soi-pour-autrui ? Autrement dit, comment est-il
possible que « cet étranger qu’on me présente je l’assume aussitôt, sans qu’il cesse d’être un
étranger »45 ?
Hantologie et spectralité
Nous croyons que pour conclure finalement que L’Être et le Néant n’est pas une
ontologie dualiste, c’est-à-dire non pas dualiste au sens d’un véritable dualisme entre le pour-
soi et l’en-soi, mais en raison d’une incompatibilité entre être et néant – qui ne sont pas
synonymes du premier couple –, il faut trouver un lien entre les deux termes, une manière de
comprendre comment être et néant peuvent être effectivement en rapport constant, dans leur
incompatibilité même. À cet égard, nous pensons qu’on peut trouver des pistes dans la
philosophie sartrienne pour répondre à ce problème du dualisme, si on prend en compte une
notion très présente et opératoire, surtout dans son ontologie, mais non thématisée par Sartre
lui-même, et qui est indiquée dans l’affirmation suivante : « Ainsi suis-je sur le même plan
objet spécifique et sujet libre mais jamais les deux à la fois et toujours l’un hanté par
l’Autre »46 . Sans entrer dans le détail, nous croyons que c’est justement par la hantise qu’on
peut comprendre le lien entre être et néant dans la réalité même du pour-soi, lui-même hanté
par sa contingence originelle, par la valeur, par ses prochains et par son être-pour-autrui. Et
c’est aussi par la hantise que l’on peut comprendre le monde comme champ phénoménal
pratique, puisque si pour Sartre « être-dans-le-monde c’est hanter le monde »47, cela veut dire
aussi que le monde « se dévoile comme hanté par des absences à réaliser et chaque ceci paraît
avec un cortège d’absences qui l’indiquent et le déterminent »48. Ainsi, on peut remarquer
45 EN, p. 314.
46 SARTRE, J-P. Cahiers pour une morale, Paris, Gallimard, 1983, p. 101. (nous soulignons)
47 EN, p. 284.
48 EN, p. 235.
!16
l’importance du fait que, comme dit Daniel Giovannangeli, « le terme hanter traverse L’Être
et le Néant »49. Finalement, si le monde est l’être hanté par le néant, et s’il n’y a pas de néant
qui ne soit hanté par l’être, on a affaire à une véritable hantologie, pour utiliser un mot de
Derrida50. Cette hantologie dépasse un possible dualisme entre être et néant, et affirme la
simultanéité des termes soit dans le mode d’être du pour-soi « sujet », soit pour comprendre le
monde comme champ phénoménal. De plus, elle permet d’envisager une multiplicité des
modes d’être qui sont en jeu dans L’Être et le Néant et qui seraient exclus d’un cadre dualiste
au nom du principe de contradiction. Ainsi, c’est par la hantise qu’on peut non seulement
répondre aux lectures trop simplistes de l’ontologie sartrienne, soucieuses de l’enfermer dans
un dualisme strict, mais surtout se donner une possibilité réelle de saisir la multiplicité de
modes d’être qui s’y présente en l’envisageant dans toute sa richesse.
La hantise nous dévoile finalement une région ontologique implicite de l’ontologie
sartrienne que nous identifions comme la spectralité. Ce terme n’est pas utilisé par Sartre lui-
même, mais il reste néanmoins pertinent pour comprendre le thème de la hantise, omniprésent
dans L’Être et le Néant, comme nous venons de le mentionner. Dans cette perspective,
Derrida montre très bien comment le thème de la hantise est lié à l’idée d’une forme de
présence propre aux spectres. Il s’agit d’une présence de quelque chose qui est là mais
échappe au regard intuitif et frontal. En vérité, les spectres dépassent les divisons dualistes du
genre présent/absent, existant/non-existant, vivant/mort. Néanmoins, ils provoquent un effet
de spectralité qui correspond à la perturbation du champ où ils rendent visite. Dans le
contexte de L’Être et le Néant, les modes spectraux qu’on y trouve hantent, justement, le
champ translucide, en perturbant le rapport à soi du sujet. Derrida a montré comment le
spectral est l’élément qui vient justement perturber la contemporanéité à soi du sujet, dans la
mesure où il relève d’une temporalité qui n’est plus une succession de présents ; le spectral
apparait même comme ce qui met l’idée de présence en question. Le propre d’un spectre c’est
de venir et revenir, fréquenter, habiter sans résider dans un champ d’apparition qui lui est
propre. Ce champ est caractérisé par Derrida comme possédant une sorte de visibilité de nuit
49 GIOVANNANGELI, D. Le retard de la conscience : Husserl, Sartre, Derrida. Bruxelles: Ousia, 2001, p. 106.
50 Dans le chapitre intitulé « L’être et l’autre : ontologie et “hantologie” », Daniel Giovannangeli montre l’impo-
rtance de la hantise dans L'Être et le Néant, même si, à son sens, « il ne s’agit pas de surestimer la force de ce
terme chez Sartre ». De plus, il y met en évidence le caractère problématique d’une interprétation qui verrait
chez Sartre une « hantologie » au sens derridien du terme. Ibid.
!17
qui dépasse une division du type visible/invisible, parce que le spectre apparaît toujours
latéralement sans se donner à l’intuition. Selon les mots de Derrida :
Les analyses derridiennes sur la spectralité nous ont servi d’outil pour penser une
pluralité des modes d’être de l’ontologie sartrienne et les effets de hantise qui traversent
L’Être et le Néant. Le premier mode spectral que l'on peut identifier correspond à l’un de
principes de base de l’ontologie sartrienne, à savoir la conception de conscience préréflexive.
Bien qu’immédiate et transparente, la conscience qui correspond au cogito préréflexif chez
Sartre n’implique ni un vécu plein ni une adéquation à soi, caractéristiques normalement
attribuées à une conscience transparente. Dans ce sens très particulier de « présence à soi », la
conscience est au contraire l’élément qui brise l’unité, la plénitude et l’identité du sujet. Toute
conscience est ainsi, selon l’expression de Sartre, « conscience troublée »52, « déjà
contestation en elle-même » 53. La présence à soi étant la séparation (ambiguë parce non
effective) intraconscientiel qui empêche l’identité de toute conscience avec elle-même. Ainsi
dans l’exemple que Sartre donne de la « croyance » :
51 DERRIDA, J. & STIEGLER, B. Spectrographies. In: Échographies de la télévision : entretiens filmés. Paris :
Galilée, 1996, p. 130.
52 EN, p. 111.
53 SARTRE, J.-P. Conscience de soi et connaissance de soi. In:. La transcendance de l’Ego et autres textes
phénoménologiques. (textes introduits et annotés par V. de Coorebyter). Paris: Vrin, 2003, p. 156.
54 EN, p. 114.
!18
(textes introduits et annotés par V. de Coorebyter). Paris: Vrin, 2003, p. 122. (nous soulignons)
!19
particulièrement sa « hantise ontologique »65 d’être un voleur pour les autres ; il est, nous dit
Sartre, « hanté par cet Autre qui est lui-même »66. Son être-pour-autrui est comme un
fantôme, « mais ce fantôme - précisément parce qu’il n’est rien - ne se laissera pas faire :
61 EN, p. 205
62 EN, p. 198.
63 EN, p. 193.
64 EN, p. 260.
65 SARTRE, J.-P. Saint Genet: comédien et martyr. Paris: Gallimard, 2011, p. 88.
66 Ibid., p. 79.
!20
quand l’enfant se retourne vers lui, il disparaît ; quand Genet cherche à le fuir, brusquement,
comme l’oiseau rebelle de Carmen, il est là »67. Dans L’Être et le Néant Sartre fait déjà
référence à l’être-pour-autrui comme une « esquisse-fantôme de mon être »68 qui n’est pas
susceptible d’être connu puisqu’il est comme « un fardeau que je porte sans jamais pouvoir
me retourner vers lui pour le connaître »69. C’est précisément ce qui fait que l’être-pour-autrui
résiste à la description si on demeure prisonnier d’une vision dualiste de l’ontologie sartrienne
qui divise tous les modes d’être entre les catégories de « pour-soi » et d’« en-soi ». En ce qui
concerne l’être-pour-autrui on a vu que Sartre affirme bien qu’il n’est ni pour-soi ni en-soi ;
une double négation (ni...ni...) qui convient bien aux modes spectraux, dont le caractère
réfractaire aux cadres dualistes a été montré par Derrida.
Par ailleurs, c’est aussi Derrida qui révèle le rapport significatif entre la spectralité et
le regard, dès lors que pour lui « le regard est la spectralité même »70. En analysant une scène
de Hamlet, Derrida développe dans Spectres de Marx l’idée qu’il y a une asymétrie propre à
la spectralité du regard. Cette asymétrie consiste dans le fait d’être regardé sans pouvoir se
retourner pour voir ou localiser qui nous regarde et participe de ce que Derrida appelle l’«
effet de visière », à savoir justement le fait que « nous ne voyons pas qui nous regarde »71 :
qu’il y a « quelqu’un qui me regarde sans réciprocité possible »72. Chez Sartre c’est
précisément cette condition d’asymétrie qui provoque l’apparition de l’être-pour-autrui : le
pour-soi pâtit de la métamorphose à partir du moment même où il se sent regardé, si bien qu’il
n’y a pas besoin d’une présence effective de l’autre dans le champ perceptif pour que le
regard de l’autre provoque l’apparition du pour-autrui. Il suffit un bruit, une lumière qui
s’allume, etc., pour que se signale le regard de l’autre. Ainsi, non seulement le mode d’être de
cet être-pour-autrui est spectral mais le mode de présence de l’autre en général est également
de l’ordre de la spectralité dans la mesure où il s’agit d’un mode de « présence immense et
67 Ibid., p. 47.
68 EN, p. 304.
69 EN, p. 301.
70 DERRIDA, J.; STIEGLER, B. Spectrographies, p. 137.
71 DERRIDA, J. Spectres de Marx, p. 26.
72 Ibid., p. 164.
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invisible »; autrui étant ce « vers qui je ne tourne pas mon attention. Il est celui qui me
regarde et que je ne regarde pas encore », sa présence « n’est jamais plus présente, plus
urgente que lorsque je n’y prends pas garde »73. Il y a au final deux niveaux de hantise dans le
rapport à autrui : la hantise issue de la présence spectrale du regard de l’autre et la hantise de
l’être-pour-l’autre, qui est une conséquence de la première.
Finalement, la facticité correspond au fait que le pour-soi existe son être contingent,
autrement dit, qu’il doit avoir à être l’être qu’il est, assumer son être. Être-au-monde est pour
Sartre un fait absurde et contingent. Le sujet vit cette absurdité de la contingence comme
facticité, c’est-à-dire qu’il assume son être par son propre mouvement d’existence. Ce
mouvement ouvre à chaque fois et incessamment une sorte de champ factice qui correspond,
pourrait-on dire, à la « contingence vécue ». A chaque assomption, le pour-soi, dit Sartre,
néantise l’être qu’il est (plus précisément l’en-soi qu’il est) de telle manière que celui-ci -
l’en-soi néantisé - vient hanter le sujet comme sa contingence originelle. Cela signifie que cet
acte de néantisantion désigné par Sartre comme acte ontologique ne réalise pas une vraie
rupture (comme on a tendance à le croire) qui scinderait en deux dimensions le sujet : une
dimension qu’il est et une dimension qu’il n’est pas, ou plutôt une dimension d’être et une
dimension de néant. Si après l’acte de néantisation il y a toujours un reste, une trace qui
continue à hanter le pour-soi, cela veut dire que le pour-soi ne se détache pas complètement
de l’être qu’il est et que ce reste d’en-soi est d’une certaine manière présent dans ce champ,
comme perturbateur de la supposée « pureté » attachée à la dimension subjective. Dans ce
sens nous comprenons l’acte de néantisation propre à la facticité du pour-soi comme un «
passage au spectral », en vertu du fait que le pour-soi est toujours hanté par sa contingence
originelle. C’est aussi cette hantise perpétuelle qui fait que le sujet est compris par Sartre
comme fuite de la contingence de son être et désir d’être un être fondé par soi-même, un être
causa sui ou simplement Dieu. La hantise est même essentielle pour expliquer la « fuite » - vu
que s’il n’y a pas un « reste », il n’y a non plus rien à fuir -; un des aspects caractérisant le
mode d’être du sujet sans lequel on ne peut pas comprendre le mouvement du désir en général
chez Sartre.
Tous ces éléments présents dans la pensée sartrienne concernant la facticité du pour-
soi et l’être-pour-autrui et les autres modes spectraux, attestent que la hantise est une part
73 EN, p. 308.
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essentielle du mode d’être du pour-soi. Nous pourrions en relever bien davantage encore et
montrer comment le pour-soi est hanté par la valeur (et aussi par ce que Sartre appelle une
anti-valeur), par l’instant temporel, par la mort, etc. En outre, la spectralité vient finalement
mettre en question la signification de la translucidité comme garante de l’identité à soi du
sujet, de la possibilité d’une « maîtrise de soi » et d’une subjectivité pure. La dyade fantôme
montre déjà l’impossibilité de l’identité et la méconnaissance propre à l’invisibilité du
préreflexif. La hantise vient encore ajouter une couche spectrale qui renforce l’opacité, en
vertu de la présence des spectres dans ce champ normalement compris comme une «
subjectivité pure ». Cette présence spectrale, vient de plus perturber les dualismes entre être et
néant, subjectivité et objectivité qui semblent hanter la philosophie de Sartre. La spectralité
nous autorise donc à envisager une autre lecture possible, parfois même en opposant Sartre à
lui-même.
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