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Universidade do Estado do Rio de Janeiro Université Paris 1

Panthéon-Sorbonne
Centro de Ciências Sociais
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas École doctorale de Philosophie

Thèse pour l’obtention du grade de docteur en philosophie

Présentée et soutenue publiquement par


Fernanda Alt Fróes Garcia

A HANTOLOGIE DE SARTRE
SOBRE A ESPECTRALIDADE EM O SER E O NADA

Directeurs de thèse :
Monsieur Marcos André Gleizer, Professeur à L’Université de l’État de Rio de Janeiro.
(UERJ- Brésil)
Monsieur Renaud Barbaras, Professeur à L’Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne.

Composition du jury :
Monsieur Franklin Leopoldo e Silva, Professeur titulaire à L’Université de São Paulo.
Monsieur Jean-Luc Amalric, Professeur en Classes Préparatoires aux Grandes Ecoles. 

Monsieur Luiz Damon Moutinho, Professeur à L’Université Fédérale de São Carlos.

Soutenue le 11 avril 2017 



DEDICATÓRIA

A Mônica e Valérie,
pelo modo singular de presença na minha vida.

AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar, um grande e sincero agradecimento aos meus orientadores, Marcos


Gleizer e Renaud Barbaras.

Tenho muito a agradecer a Marcos Gleizer por seu verdadeiro engajamento em todos
os sentidos para que a realização deste trabalho fosse a melhor possível. Sua presença sempre
me trouxe segurança para arriscar nos caminhos imprevisíveis que surgiram durante este
percurso, tanto no sentido de poder contar com sua leitura rigorosa e com suas reflexões
essenciais, quanto no de seus posicionamentos sempre admiráveis em relação às situações
difíceis, sejam elas filosóficas ou da vida de um modo geral. Obrigada por acreditar neste
trabalho, por toda a atenção, confiança e amizade.

Agradeço enormemente a Renaud Barbaras, em primeiro lugar, por ter acreditado,


confiado e incentivado meu trabalho desde minha chegada em Paris. Não somente seus cursos
e livros compõem significativamente o corpo desta tese, como sua leitura constante de cada
passo do trabalho foi essencial para o desenvolvimento de uma reflexão mais ampla. Obrigada
por me incentivar a ousar, por confiar e por permitir que o pensamento cresça com liberdade.
Admiro sobretudo sua capacidade de saber identificar e legitimar a força do desejo que
alimenta o trabalho filosófico e a vida como um todo.

A Felipe Shimabukuro, pelas inúmeras conversas filosóficas que definiram pontos


essenciais desta tese. Pela inspiração e coragem em vários momentos. Por me mostrar a
beleza filosófica do impensado e do não dito de um texto. Pela companhia e pelo amor que
fizeram parte deste percurso.

Meu sincero agradecimento a Vincent de Coorebyter, pela atenção, incentivo,


generosidade e disponibilidade. Além disso, por seu trabalho sobre Sartre, que se mostrou
cada vez mais essencial para o desenvolvimento desta tese. Agradeço ainda a Philippe
Cabestan pela gentileza e disponibilidade de discussão. E também a Grégory Cormann pela
pela generosidade e pela importante divulgação do trabalho.

Aos professores Franklin Leopoldo e Silva e Jean-Luc Amalric por gentilmente


aceitarem fazer parte da minha banca de defesa. A Tito Marques Palmeiro pela leitura atenta
do texto e pelo retorno após meu exame de qualificação.

Às minhas amigas e meus amigos, sem os quais concluir este percurso seria
impossível.

Em especial, a Valérie Geandrot, Parviz Denis e Lucas Buquet, pelo acolhimento e


amizade que permitiram e inspiraram a conclusão desta tese. A Naira Senna e Gabriel Assis
pelo carinho e ajuda nos momentos mais difíceis e, principalmente, na reta final. A Laure
Cormier e Elise Geisler pela verdadeira amizade e ajuda em todos os sentidos. A Mônica
!4

Alvim e João Batista Ferreira pelo incentivo, força, conversas e presença, sempre. A Vanessa
Hacon, pela verdadeira amizade em todos os momentos. A Beatriz Santos com admiração e
pelas palavras de coragem. A Carlos Coelho, pela amizade e pelas inúmeras discussões
filosóficas que fazem parte deste trabalho. A Pamela Zacharias e Caroliny Pereira, pela
conexão que permite grandes saltos. A Caroline Dracxler, por estar do meu lado em momentos
importantes. Um agradecimento especial a Paulo Sergio Lima Silva.

A Carolina Mendes Campos, pelo caminho que trilhamos juntas com amizade nos
estudos sobre Sartre. A Luiz Damon Moutinho, cujos ensinamentos fazem parte desta tese,
pela amizade e por ter acompanhado e apoiado este caminho desde o início. A André Barata e
Fernando Gastal, pelo incentivo de realizar este Doutorado. A Antonio Augusto Passos
Videira, pela ajuda num momento decisivo.

A todos aqueles que compõem esta tese através de inúmeras discussões sobre a vida e
a filosofia que aconteceram ao longo deste caminho.

À minha família, em especial à minha mãe Lilian, minha irmã Carol e minha tia
Raquel, pelo apoio e amor nos momentos mais difíceis e imprevisíveis deste percurso.

Aos professores e funcionários da UERJ que, mesmo diante das maiores dificuldades,
fizeram o possível para a realização deste trabalho.

À CAPES, pelo auxílio concedido, que permitiu a realização desta tese.


L’histoire de la philosophie doit, non pas redire ce que dit un
philosophe, mais dire ce qu’il sous-entendait nécessairement, ce qu’il
ne disait pas et qui est pourtant présent dans ce qu’il dit

Gilles Deleuze

RESUMO

GARCIA, F.A.F. A hantologie de Sartre. Sobre a espectralidade em O Ser e o Nada. 2017.


450p. Tese (Doutorado cotutela em Filosofia) Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. École doctorale de Philosophie, Université Paris 1
Panthéon-Sorbonne, 2017.

É possível afirmar hoje que, desde a publicação de L’Être et le Néant, uma leitura
desta obra se consolidou e se estabeleceu como visão dominante de interpretação da ontologia
de Jean-Paul Sartre. Os traços mais marcantes desta leitura podem ser atribuídos ao trabalho
crítico de Merleau-Ponty, cuja filosofia se desenvolveu em parte por meio de uma afinidade
que, ao mesmo tempo, clamava por uma oposição ao pensamento sartriano. Na verdade, ao
invés de se caracterizar como sendo uma simples oposição, a crítica de Merleau-Ponty conduz
a um questionamento aprofundado dos pontos de base da ontologia sartriana, sobretudo no
que diz respeito ao problema do dualismo. A presente tese coloca em questão a leitura
merleau-pontyana - e com isso a visão dominante mais geral que se formou de L’Être et le
Néant - propondo outra leitura, que não visa a oferecer simplesmente respostas às aporias
consequentes de um aparente dualismo em Sartre, mas principalmente a ampliar a
possibilidade de se retomar tal pensamento por uma via original. Assim, passar pela crítica de
Merleau-Ponty não significou uma defesa de um sentido único do texto, mas sim que as
ambiguidades do próprio Sartre podem ser trabalhadas por outros caminhos, indicando uma
riqueza pouco explorada de sua filosofia. Foi preciso então apresentar em que consiste e quais
os problemas inerentes à divisão estabelecida por Sartre entre os modos de ser para-si e em-si,
assim como, a partir de um deslocamento das argumentações de Merleau-Ponty, evidenciar os
impasses revelados quando se retoma a questão do dualismo em termos de ser e nada,
subjetividade e objetividade. Nosso trabalho consistiu em demonstrar que há elementos
implícitos no texto - ou mesmo explícitos, mas não explorados - que permitem ultrapassar as
dificuldades consequentes do dualismo. Por via de uma inspiração em algumas análises de
Jacques Derrida sobre os espectros, denominamos de espectralidade a camada implícita da
obra que, ao surgir, abala a base dualista que parecia sustentá-la. Ao fazer emergir a camada
espectral, revelamos ainda a onipresença e o caráter essencial das relações de assombramento
(hantise), a ponto de compreendermos a ontologia de Sartre como uma hantologie, no sentido
de marcar a relevância e a predominância de tais relações. A partir desta perspectiva, é
possível observar não somente como um dualismo rígido entre para-si e em-si não dá conta de
abarcar uma multiplicidade de modos de ser presente no texto sartriano, como também a
importância das relações de assombramento como aquelas que garantem a imbricação das
regiões ontológicas, por vezes tomadas como incompatíveis. Esta leitura demonstra
finalmente como um modo de presença não intuitiva dos espectros abalam a suposta “pureza”
luminosa da consciência que se estabeleceu como paradigma do sujeito sartriano, na medida
em que o assombramento demonstra um tipo singular de opacidade que finalmente inscreve o
sujeito no mundo e obscurece sua relação a si mesmo.

Palavras-chave: Assombramento, Espectralidade, Dualismo, Sartre, Merleau-Ponty, Derrida. 



RÉSUMÉ

GARCIA, F.A.F., L’hantologie de Sartre. Sur la spectralité dans L’Etre et le Néant. 2017
450p. Thèse de doctorat de Philosophie en co-tutelle, Institut de Philosophie et Sciences
Humaines, Université de l’Etat de Rio de Janeiro (UERJ). École doctorale de Philosophie,
Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne, 2017.

Il est aujourd’hui possible d’affirmer que, depuis la publication de L’Être et le Néant,


s’est imposée une interprétation dominante, fondée sur la lecture de cet ouvrage, de
l’ontologie de Jean-Paul Sartre. Les traces les plus marquantes de cette lecture peuvent être
attribuées au travail critique de Merleau-Ponty, dont la philosophie s’est développée en partie
par affinité avec la pensée sartrienne et en partie en opposition avec elle. En fait, plutôt
qu’une simple opposition, la critique merleau-pontyenne opère un questionnement approfondi
des principes fondamentaux de l’ontologie sartrienne, en particulier ce qui concerne le
problème du dualisme. La présente thèse met en question la lecture de Merleau-Ponty – et
avec elle la vision dominante plus générale qui s’est constituée de L’Être et le Néant –, en
proposant une autre lecture qui vise, non pas simplement à offrir des réponses aux apories
posées par l’apparent dualisme de Sartre, mais à principalement rendre possible la reprise de
cette pensée d’une manière originale. Ainsi, le passage par la critique de Merleau-Ponty a
signifié non pas une défense unilatérale du texte, mais plutôt une exploration des propres
ambiguïtés de Sartre par d’autres chemins, indiquant une richesse peu exploitée de sa
philosophie. Il a fallu alors présenter en quoi consistent les problèmes inhérents à la division
établie par Sartre entre les modes d’être du pour-soi et de l’en-soi, à partir d’un déplacement
des argumentations de Merleau-Ponty, et rendre manifestes les impasses révélées à la reprise
de la question du dualisme en termes d’être et de néant, subjectivité et objectivité. Notre
travail a consisté à démontrer qu’il y a des éléments implicites dans le texte – ou même
explicites, mais non exploités – qui permettent de dépasser les difficultés posées par le
dualisme. Inspirée par certaines analyses de Jacques Derrida sur les spectres, nous appelons
spectralité la couche implicite de l’oeuvre qui, en surgissant, ébranle la base dualiste qui
paraissait la soutenir. En faisant émerger la couche spectrale, nous révélons aussi
l’omniprésence et le caractère essentiel des relations de hantise, à tel point que nous
comprenons l’ontologie de Sartre comme une hantologie, pour souligner la pertinence et la
predominance de telles relations. A partir de cette perspective, il est possible de voir non
seulement qu’un dualisme rigide entre pour-soi et en-soi ne rend pas compte d’une
multiplicité de modes d’être dans le texte sartrien, ni non plus de l’importance des relations de
hantise qui garantissent l’imbrication des régions ontologiques, parfois considérées comme
incompatibles. Cette lecture démontre finalement qu’un mode de présence non intuitive des
spectres ébranle la supposée “pureté” lumineuse de la conscience qui s’est établie comme
paradigme du sujet sartrien, dans la mesure où la hantise démontre un type singulier d’opacité
qui finalement inscrit le sujet dans le monde et obscurcit sa relation à soi.

Mots-clés: hantise, spectralité, dualisme, Sartre, Merleau-Ponty, Derrida.


ABSTRACT

GARCIA, F.A.F. Sartre’s hauntology. On the spectrality in Being and Nothingness. 2017.
450p. Doctoral dissertation (PhD in Philosophy). Institute of Philosophy and Human
Sciences, Federal University of Rio de Janeiro. École doctorale de Philosophie, Université
Paris 1 Panthéon-Sorbonne, 2017.

Today, it’s possible to affirm that, since the publication of Being and Nothingness (L’Être et le
Néant), a certain reading based on this work has consolidated and stablished itself as the
dominant interpretative view over Jean-Paul Sartre’s ontology. This reading’s most
remarkable traces can be attributed to Merleau-Ponty’s critical work, whose philosophy has
developed in part because of an affinity which, at the same time, claimed for an opposition to
Sartre’s thinking. Merleau-Ponty’s critical view, however, cannot actually be described as a
simple opposition, since it leads to the deeper questioning of aspects which form the
groundwork of Sartre’s ontology, specially concerning the problem of dualism. This thesis
calls into question Merleau-Ponty`s reading – as well as the more general dominant view that
has formed about L’Être et le Néant – while proposing another interpretation, which does not
aim at simply offering answers to the resulting aporias of Sartre`s apparent dualism, but
primarily at amplifying the possibility to return to such line of thought through an original
path. Thus, going over Merleau-Ponty’s critical view did not mean defending a text has a
single meaning; though it did suggest that Sartre’s ambiguities could be worked with in other
ways, indicating a seldom explored depth in his philosophical thinking. It was then necessary
to explain the division stablished by Sartre between the modes of being For-itself and Being-
in-itself, and its inherent problems. Moreover, after the displacement of Merleau-Ponty’s
arguments, it was essential to highlight the impasses revealed when reconsidering the issue of
dualism in terms of being and nothingness, subjectivity and objectivity. Our work consisted in
demonstrating there are implicit – or even explicit, but unexplored – elements in the text
which allow us to surpass the difficulties created by the dualism. By way of an inspiration
caused by a few analyses of specters by Jacques Derrida, we refer to spectrality as the implicit
layer, which might arise from the work, undermining the dualistic basis seemingly supporting
it. By making the spectral layer emerge, we also reveal the omnipresence and the essential
character of the haunting (hantise) relations, to the point of understanding Sartre’s ontology as
an hauntology, and stressing the significance and predominance of such relations. From this
perspective, it is possible to observe not only that a rigid dualism between the For-itself and
the in Being-in-itself cannot encompass the multiple modes of being present in Sartre’s work,
but also the relevance of the haunting relations as those which guarantee the imbrication of
the ontological regions, at times taken as incompatible. Finally, this reading demonstrates how
a spectral mode of non-intuitive presence disrupts the supposed luminous “purity” of
conscience which has stablished itself as a paradigm of Sartre’s view of the subject, insofar as
the haunting shows a unique kind of opacity which ultimately inscribes the subject in the
world and overshadows his relationship to himself.

Keywords: haunting, spectrality, dualism, Sartre, Merleau-Ponty, Derrida.



LISTA DE ABREVIATURAS

• Obras de J-P. Sartre

B - Baudelaire.

CL - Cahier Lutèce.

CPM - Cahiers pour une morale.

CDG - Carnets de la drôle de guerre.

CSCS- Conscience de soi et connaissance de soi.

CSCS-d. Conscience de soi et connaissance de soi - “Discussion”.

CRD.II - Critique de la Raison dialectique, Tome 2  : L’intelligibilité de l’histoire.

ETE - Esquisse d’une théorie des émotions.

EN - L’Être et le Néant.

*Tradução em português: SN - O ser e o nada.

EH - L’Existentialisme est un humanisme.

IF.I - L’Idiot de la famille. Tome 1.

I’re - L’Imaginaire.

I’on - L’Imagination.

M - Mallarmé. La lucidité et sa face d’ombre.

MP1 - Merleau-Ponty [Première version, manuscrite].

L’ARC - Jean-Paul Sartre répond. (Revista L’Arc)

LM - Les Mots.

N - La Nausée.

ŒR - Œuvres Romanesques.
QS - Qu’est-ce que la subjectivité ?

QM- Questions de méthode.

SG - Saint Genet, comédien et martyr.

S.I - Situations I.

S.II - Situations II.

S.IV - Situations IV.  

S.IX - Situations IX.

S.X - Situations X.

TC - Théâtre complet.

TE - La Transcendance de l’Ego.

V - Visages.

VE - Vérité et existence.

VP - Une vie pour la philosophie [entretien].

• Obras de M. Merleau-Ponty

AD - Les Aventures de la dialectique.

AS - Jean-Paul Sartre: un auteur scandaleux.

MPS - Merleau-Ponty à la Sorbonne: résumé de cours 1949-1952.

P.II - Parcours deux.

Php - Phénoménologie de la perception.

PP - Le Primat de la perception.

PM - La Prose du monde.

QE - La querelle de l’existentialisme.

CF - Résumés de cours. Collège de France 1952-1960.

S - Signes.

VI - Le Visible et l’Invisible.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO: Por outra leitura possível de L’Être et le Néant 16

- PRIMEIRA PARTE -
ONTOLOGIA E NEGATIVIDADE:
a formulação dos problemas.

CAPÍTULO I - A aporia do dualismo. 26


§1. Para-si e em-si: um verdadeiro dualismo? 26
§2. A transfenomenalidade dos termos como ultrapassamento do dualismo entre idealismo e
realismo. 33
O problema do em-si 42
§3. Os limites do dualismo. 48

CAPÍTULO II - A crítica de Merleau-Ponty. 55


§1. Merleau-Ponty e Sartre: duas filosofias em três tempos. 56
Noções gerais da crítica merleau-pontyana nos dois primeiros períodos. 60
Primeiro período 60
Segundo período 68
§2. A contradição entre ser e nada: a crítica no capítulo “Interrogação e dialética” em Le
Visible et l’invisible. 75
a) As consequências da filosofia do negativo para a intersubjetividade. 87
b) Dialética e hyperdialética: sobre a possibilidade do movimento. 91

- SEGUNDA PARTE -
FACTICIDADE E TEMPORALIDADE:
primeiro nível de contestação.

CAPÍTULO I - Considerações prévias: negação e facticidade. 102
§1. Nadificação e negação: as múltiplas dimensões do nada. 102
§2. A crítica de Merleau-Ponty em questão: a negligência da facticidade. 113

CAPÍTULO II - A consciência-nua diante de um mundo poético. 123


§1. Consciência nua e irreflexão. 123
a) O mundo nu e o “mundo dos profetas e dos artistas”. 131
b) A temporalidade instantaneísta: aventura e tempo nu. 138

CAPÍTULO III - A mudança: temporalidade e facticidade. 142


§1. A consciência-refúgio e a crítica da temporalidade do instante. 144
§2. Facticidade e contingência. 150
a) A facticidade como chave de compreensão do ser-no-mundo. 150
b) O terreno da ontologia: a contingência ou a existência sem fundamento. 158
§3. Temporalidade ek-stática e facticidade. 166
a) O para-si era: ser e não ser seu próprio passado. 170
b) A “duração” sartriana ou o processo de metamorfose. 181

CAPÍTULO IV - O para-si como projeto ek-stático. 189


§1. O para-si e suas estruturas imediatas. 189
a) Cogito e pré-reflexão. 189
b) “Existir para um testemunho”: a presença a si e o jogo de reflexos. 201
c) A facticidade do para-si: a situação de “ser-aí” no-meio-do-mundo. 205
d) O movimento temporal do desejo: o ser do valor e o ser do possível. 210
e) A pessoa e o circuito de ipseidade: escolha e projeto fundamental. 214

CAPÍTULO V - Os dualismos residuais. 226


§1. Conclusão do primeiro nível de contestação: oposição à crítica de Merleau-Ponty. 226
a) Facticidade e passividade: a liberdade como uma paixão. 226
§2. A reformulação dos problemas. 233

a) O dualismo entre ser e nada e o problema do mundo. 233
b) O dualismo entre subjetividade e objetividade. 235

- TERCEIRA PARTE -
A HANTOLOGIE:
segundo nível de contestação.

CAPÍTULO I - Por uma hantologie em Sartre. 244


§1. Considerações sobre a presença espectral de Derrida e de Merleau-Ponty. 245
§2. O assombramento como superação dos dualismos residuais. 248
§3. A espectralidade. 255
a) Espectros de Derrida. 255
b) Espectros de Sartre. 260

CAPÍTULO II - A translucidez e sua face sombria. 263


§1. O significado de translucidez e o problema da transparência da consciência. 263
§2. Lucidez e reflexão pura. 275
§3. Inconsciente, não-saber e má-fé. 280
§4. A face sombria. 288

CAPÍTULO III - O mundo assombrado: o campo fenomenal do “há” como campo


prático. 293
§1. O problema do conhecimento. 293
§2. “Ser-no-mundo é assombrar o mundo”. 301
§3. As estruturas de desvelamento do mundo. 310
a) O movimento temporalizador da presença ao mundo. 311
b) O “há” como campo fenomenal prático. 316
c) Tempo e espaço fantasmas. 331
CAPÍTULO IV - O acontecimento: espectros de em-si enquanto zonas de opacidade. 338
§1. O em-si nadificado: o acontecimento absoluto. 340
O passado, o corpo para-si e a afetividade original. 340
§2. O em-si projetado: a sombra. 349
a) O psiquismo. 349
Estrutura e motivação da reflexão 350
Constituição psíquica 356
Um psiquismo espectral 359
O Ego psíquico 366
O corpo psíquico 371
b) O assombramento do imaginário. 374
§3. O em-si para-outro: a presença invisível e o esboço fantasma. 382
a) O outro e o para-outro: um para-si solipsista? 382
b) A metamorfose: o assombramento do Ego-para-outro. 393
O ego para-outro 394
Existir o corpo-para-outro 396
O mundo para-outro 398
c) O assombramento do olhar. 400
A presença espectral do outro. 403
O outro presente no campo perceptivo. 409
§4. O em-si desejado. 416
a) O assombramento do valor. 417
O em-si simbolizado: a posse. 419
b) O assombramento do antivalor: o viscoso ou a “revanche do em-si”. 421

CONCLUSÃO 426

REFERÊNCIAS 437

ANEXOS
Índice de nomes próprios 447
Résumé substantiel 450

INTRODUÇÃO

Por outra leitura possível de L’Être et le Néant.

L’Être et le Néant tornou-se um clássico da filosofia e suas leituras são até hoje
numerosas e diversas. Nesta obra, Jean-Paul Sartre consolidou temas fundamentais de seu
pensamento, os quais de alguma forma construíram uma imagem que se propaga não somente
no campo filosófico, mas também no cenário da política, do teatro e da psicologia. O filósofo
da liberdade é, ao mesmo tempo, o da consciência transparente, da escolha que um sujeito faz
de si, da responsabilidade e do nada. Polos luminosos de uma ontologia problemática que é
acusada de instaurar um dualismo radical e definitivo entre sujeito e mundo, além de
promover um sujeito solipsista e individualista. Demasiado cartesiana, pouco husserliana,
equivocadamente heideggeriana, obscuramente hegeliana, esta ontologia sobrevive através de
suas críticas, as quais ressaltam seus problemas de modo a tornar quase indefensáveis seus
pontos principais. Dentre as críticas, uma leitura célebre se destaca: a do filósofo e amigo de
Sartre, Maurice Merleau-Ponty. Desde Phénoménologie de la perception é possível encontrar
argumentos merleau-pontyanos em contraposição às premissas de Sartre. Contraposição que
aumenta com o tempo, ao incorporar as tensões de conflitos políticos que dão origem ao
ataque frontal em textos como Sartre et l’ultra-bolchevisme (em Les Aventures de la
dialectique) e que toma sua forma mais elaborada no manuscrito Le Visible et l’Invisible. A
leitura que aí se formata se torna, ela também, clássica no interior do debate filosófico; a
ponto de vir a orientar significativamente não somente a recepção da filosofia sartriana como
um todo, mas, principalmente, a de L’Être et le Néant1. Não é incomum encontrar
desenvolvimentos de tal leitura em diversos livros sobre Sartre ou sobre Merleau-Ponty, na
função de demarcar a oposição de ambos e, geralmente, de demonstrar como este último, a

1 BREEUR, R. Autour de Sartre. La conscience mise à nu. Grenoble: Millon, 2005, p. 232.
!17

partir dos limites intransponíveis deflagrados na filosofia de Sartre, pôde ultrapassá-los2. Dito
isto, pensamos que esta crítica encontra-se em grande sintonia - talvez por ela ser uma de suas
origens - com a posição dominante de leitura desta obra3. Posição que Vincent de Coorebyter
resume muito bem:

Reste, malgré tout, un soupçon, voire un procès en règle, instruit dès 1943
par les marxistes et les thomistes, et qui connaîtra son apogée avec la vogue
structuraliste et la mise à mort du Sujet dans les années 60 et 70 : L’Etre et le
Néant serait un ouvrage foncièrement cartésien, reproche que Sartre lui-
même formulera à diverses reprises. L’appel au cogito, fût-il préréflexif,
comme socle heuristique ultime; le dualisme, massif, de l’en-soi et du pour-
soi, qui est sans conteste un dualisme de la matière et de la conscience; la
théorie de la liberté comme arrachement, enfin, qui postule qu’un néant vient
toujours se glisser entre deux instants de vécu et permet à la conscience de
dire « non » à tout son passé et au monde entier, de poser son acte par-delà la
pesanteur de l’être, tout cela dessine une doctrine cartésienne dans laquelle le
pour-soi joue le rôle de la pensée ou de l’âme, et l’en-soi celui de l’étendue
ou de la matière — avec la même difficulté que chez Descartes pour articuler
la conscience au corps, tous deux ayant commencé par les disjoindre4 .

Estaríamos assim fadados a uma leitura com pouco terreno de expansão, dado os
limites incessantemente demarcados pelos debates que se seguiram à publicação de L’Être et
le Néant? Seriam estas críticas um ponto final no que diz respeito às posições principais da
obra, de modo que todo retorno a esta deve se contentar em ora fazer uma defesa destes

2 Este é o gesto, por exemplo, do movimento estruturalista quando este retoma as posições de Merleau-Ponty
contra Sartre. CONTAT, M.; RYBALKA, M. Les écrits de Sartre. Chronologie et bibliographie commentée.
Paris: Gallimard, 2013, p. 370. C. Lévi-Strauss, por exemplo, busca mostrar no final de La Pensée sauvage que
Sartre é “captif de son Cogito”. LÉVI-STRAUSS, C. La Pensée sauvage. Paris: Presses Pocket, 1998, p. 297.
Fato que permanece mesmo na Critique de la raison dialectique, continua o autor, pois “en socialisant de Cogito,
Sartre change seulement de prison”. Ibid. Ironicamente ou por acaso, esta obra de Lévi-Strauss é dedicada
justamente a Merleau-Ponty, logo após sua morte. Com relação a este detalhe, no entanto, o autor procura deixar
claro que sua dedicatória nada tem a ver com a morte de Merleau-Ponty e nem com uma suposta pretensão
implícita de opor este último a Sartre. Por fim, mesmo entre os fenomenólogos a posição merleau-pontyana se
mostra mais atraente, diz Roland Breeur, pois “quel phénoménologue s’autoriserait encore quelque reserve face
au véritable progrès phénoménologique qu’accomplit une « pensée de l’ambiguïté » [celle de Merleau-Ponty] en
surmontant une doctrine encore trop marquée de cartésianisme? [celle de Sartre] ”. BREEUR, R. Autour de
Sartre, p. 232.
3 Como afirma, por exemplo, Renaud Barbaras: “C’est incontestablement Merleau-Ponty qui [...] en un premier

temps, à contribué à renforcer l’occultation de la phénoménologie sartrienne, dans la mesure où Merleau-Ponty


se construit en partie contre elle”. BARBARAS, R. Introduction. In: _____ . (Org.) Sartre: désir et liberté. Paris:
PUF, 2005, p. 11. Para Vincent de Coorebyter, “Même si elle [la critique de Merleau-Ponty] n’est pas
unanimement partagée, cette critique fait aujourd’hui autorité dans de nombreux cercles de lecteurs tant elle
traduit en termes saisissants ce qui semble bien être la leçon ontologique ultime de Sartre”. DE COOREBYTER,
V. Sartre et l’être du néant. Cahiers de philosophie de l’Université de Caen : Dire le néant, Caen, n. 43, 2007, p.
347.
4 DE COOREBYTER, V. L’Être et le néant, ou le roman de la matière. Les Temps Modernes, Paris, n. 667, p.

1-11, 2012, p. 7. V. de Coorebyter diz ainda: “Par-delà leur diversité, les critiques qui ont accueilli L’Etre et le
Néant - et qui étaient massives - s’accordaient sur un défaut majeur : Sartre aurait livré une philosophie du
sentiment, subjectiviste et irrationaliste, qui promeut des hantises personnelles au rang de vérités ontologiques.
C’est l’essor de la phénoménologie qui est visé ici, mais cette dénonciation d’une philosophie à la première
personne jette surtout les bases du malentendu qui entourera l’existentialisme”. Ibid., p. 6.
!18

mesmos pontos, ora em buscar momentos específicos de valor apesar das limitações? Ou
poderíamos encontrar uma via alternativa ao estreitamento entre estas duas opções? Isto é,
não somente buscar nas entrelinhas aquilo que não fora bem ressaltado, mas fazer daquilo que
surge de certo conteúdo implícito outra possibilidade de leitura que não se encaixe mais na
imagem dominante que se formou desta obra? Esta outra possibilidade se revelou para nós
fascinante, não no sentido de rebater as críticas e mostrar seus erros em nome da verdade do
texto, ou seja, não no sentido de uma defesa de um sentido único da obra, mas sim como
possibilidade de realização de outra leitura. Após as críticas, acreditamos que ler L’Être et le
Néant hoje implica um movimento de recolocação dos problemas apontados de modo a buscar
nas lacunas das críticas, e da própria obra, uma argumentação nova, um novo olhar. Isto se
torna possível se conseguirmos evidenciar aquilo que fora negligenciado, buscar as
ambiguidades, fazer dizer o não dito, ressaltar as entrelinhas ou, como dizia W. Benjamin a
respeito da História, “escovar a contrapelo”. Retomar o texto por este viés é possível na
medida em que o próprio texto contém aquilo que o desconstrói, como mostra o trabalho de J.
Derrida. Para o autor, se Descartes, Kant e Hegel postularam de alguma forma um “sujeito”,
as premissas do deslocamento de tal “fábula” se encontram de certo modo neles mesmos. “À
propos de Descartes, dit J. Derrida à J-L. Nancy, on pourrait découvrir, par exemple dans la
direction de ton travail, des paradoxes, des apories, des fictions”5 . Do mesmo modo, Deleuze
pôde identificar um “antiplatonismo” no Sofista de Platão, o que o levou a sustentar que
Platão fora o primeiro a indicar certa direção de inversão do platonismo6. Nosso objetivo se
alimenta deste espírito. O retorno crítico que fazemos aqui à obra deve levar em conta esta
“imagem dominante” de Sartre e questioná-la, - tendo em vista que tais críticas não consistem
num simples delírio que distorcem suas verdadeiras intenções, mas ressaltam aspectos mais
evidentes de suas ambiguidades -, de modo a não ignorar ou refutar as dificuldades
apresentadas, mas de alguma maneira incorporá-las, mantê-las presente a cada passo da
leitura, como algo que nos assombra (nous hante). Pois, como diz Jocelyn Benoist à respeito
da filosofia pós crítica heideggeriana da metafísica: “il est en effet difficile de raisonner
comme si un certain nombre de ruptures n’avaient pas eu lieu” 7.

5 DERRIDA, J. “Il faut bien manger” ou le calcul du sujet”. In: ______ . Points de suspension. Entretiens. Paris:
Galilée, 1992, p. 279.
6 DELEUZE, G. Simulacre et philosophie antique. In: ______ . Logique du sens. Minuit, 2012, p. 295.
7 BENOIST, J. L’idée de phénoménologie. Paris: Beauchesne, 2001, p. 12.
!19

Diante disso, o retorno a L’Être et le Néant encontra sua originalidade nesta tensão,
que de algum modo podemos figurar em um Sartre contra ele mesmo. Se a obra é ainda viva,
algo pode ser feito com o que foi feito dela; ela pode ainda nos dizer alguma coisa de
diferente, ou redizer o que precisa ser reforçado, acentuado, ou dizer aquilo que não é dito,
que não se encontra explicitado. Para isto, é necessário ter como contraponto uma crítica forte
e articulada, bem elaborada, como a de Merleau-Ponty. É possível encontrar em alguns de
seus textos pontos fundamentais que servirão de base para nossa releitura de L’Être et le
Néant. Esta escolha se dá ainda no intuito de delimitar um campo de problemas, visto que
seria infindável o trabalho de enumerar as críticas que compõem esta visão dominante, assim
como as leituras que escapam a esta, e não é nosso objetivo realizar uma grande resposta a
este inventário. Acreditamos que alguns pontos de certos textos de Merleau-Ponty acentuam
de tal modo problemas tão essenciais da filosofia de Sartre, que esta seleção já permite o
desenvolvimento das argumentações principais de nossa pesquisa. Isto é, não se trata
tampouco de um estudo minucioso sobre a crítica de Merleau-Ponty a Sartre - o que resultaria
em si numa tese 8 - mas sim de uma investigação que parte de alguns pontos de sua crítica a
fim de desenvolver uma leitura de modo a destacar ou explicitar outras argumentações
capazes de colocar em questão a assinatura definitiva que a escrita merleau-pontyana inscreve
em sua obra, que soa como um ponto final: “positivista”, “dualista”, “solipsista”,
“pensamento de sobrevoo” - “loucura da visão” - “idealista”, “ambivalente”, que torna
impossível a abertura ao ser e a relação ao outro (Le Visible et l’Invisible); “terrorista” e
“violenta” (Sartre et l’ultra-bolchevisme). Reforçamos que não se trata de uma simples
“resposta” aos ataques - o que nos obrigaria a enumerá-los e a rebatê-los um por um -, nem de
provar, como dizia Simone de Beauvoir9, que tal leitura consiste num pseudo-sartrismo.
Nosso objetivo se caracteriza por recolocar em questão alguns pontos da crítica merleau-
pontyana a fim de, a partir da contestação destes pontos que formatam uma leitura unilateral
da obra, podermos desenvolver uma leitura original de L’Être et le Néant. Isto significa que
estes pontos têm uma função inicial de delimitar a questão e não nos interessa aqui realizar

8 Pelo mesmo motivo de que faríamos um trabalho que nos desviaria de nosso tema, não nos concentraremos em
comentar em detalhes as rupturas pessoais e as discussões políticas que envolvem a relação de Sartre e Merleau-
Ponty. Nosso objetivo é o de selecionar pontos da crítica merleau-pontyana que interessam à discussão dos
problemas da ontologia de L’Être et le Néant. Mesmo que as acusações políticas da época de Sartre et l’ultra-
bolchevisme tomem como base as premissas ontológicas de 1943, são justamente estas e suas consequências para
os problemas filosóficos que estamos tratando que nos interessa.
9 BEAUVOIR, S. de. Merleau-Ponty et le pseudo-sartrisme. In:______ . Privilèges. Paris: Gallimard, 1955.
!20

um trabalho de comparação de ambas as filosofias ao longo das argumentações da tese. Do


mesmo modo, reforçamos que não pretendemos dar conta exaustivamente de toda a crítica de
Merleau-Ponty a Sartre. Por isso tomamos o cuidado de repetir que “alguns pontos” nos
parecem fundamentais, já que consideramos que estes - que dizem respeito às premissas da
ontologia sartriana - já são suficientes para o desenvolvimento de nossa outra leitura de L’Être
et le Néant.
Falamos em contestar. Em que sentido? No sentido de ao mesmo tempo “opor-se” e
“discutir”, mantendo a complexidade como método de investigação, isto é, tendo em vista que
em alguns pontos, a nosso ver, Merleau-Ponty não tem razão em suas argumentações, mas, se
elas forem deslocadas para outros aspectos da ontologia sartriana - o que consiste, na verdade,
num movimento nosso -, elas nos ajudam a recolocar os problemas de tal modo que se torna
possível realizar outra leitura da obra em questão. Assim, contestar no sentido de manter esta
complexidade significa pra nós desenvolver a tese em dois planos: após examinar os
problemas principais que definem o curso e o objetivo de nossa investigação (Primeira parte),
o primeiro nível de contestação (Segunda parte) busca mostrar que alguns pontos da crítica de
Merleau-Ponty não são válidos para L’Être et le Néant, dado que o autor negligencia as
mudanças ocorridas na filosofia de Sartre por volta do fim dos anos trinta em torno da
concepção de temporalidade e da introdução do conceito de facticidade. No entanto, apesar
desta negligência, a crítica desenvolvida principalmente em Le Visible et l’Invisible aponta
para uma separação radical entre ser e nada, subjetividade e objetividade, que as primeiras
argumentações não conseguem propriamente resolver. Disto surge a necessidade do segundo
nível de contestação (Terceira parte), que consiste na leitura propriamente dita da ontologia
sartriana de modo a destacar neste texto uma camada implícita que, somente ela, fornece
recursos para responder aos problemas até então insuperáveis, mesmo após o primeiro nível
de contestação. Esta camada implícita, não tematizada pelo próprio Sartre, é a
espectralidade, a partir da qual compreenderemos os temas de sua ontologia pela perspectiva
!21

de uma hantologie10. Acreditamos que somente neste plano, torna-se possível superar os
problemas provenientes de um dualismo radical, não mais entre para-si e em-si, mas entre ser
e nada, subjetividade e objetividade.
Dito isto, devemos delimitar em que medida este trabalho se inspira no movimento
filosófico de Jacques Derrida, autor do termo hantologie. Este neologismo, que encontramos
em Spectres de Marx, diz respeito, grosso modo, a uma lógica do assombramento (logique de
la hantise) “mais ampla” e “mais potente” do que uma ontologia. A hantologie, diz Derrida é
uma “catégorie que nous tiendrons pour irréductible, et d’abord à tout ce qu’elle rend
possible, l’ontologie, la théologie, l’onto-théologie positive ou négative”11. A inspiração vem
de Marx e Engels: “Un spectre hante l’Europe - le spectre du communisme”. Esta frase inicial
do Manifesto do partido comunista conduz Derrida a pensar uma hantise histórica, que marca
a própria existência da Europa, através da experiência do espectro. Dizemos isto en passant
somente no intuito de mostrar que, sem mesmo nos aprofundarmos no conceito derridiano de
hantologie, é possível observar facilmente o quanto ele se encontra distante do universo de
uma ontologia fenomenológica como o de L’Être et le Néant. Nesta obra, aquilo que podemos
identificar como assombramento não se dá em relação aos mesmos problemas colocados por
Derrida. Pois, além de Sartre não estar pensando os problemas em termos de história, ele
também não admite uma “dimension d’irrégionalité” cara a Derrida, atenta Daniel

10 O neologismo hantologie, cunhado por Derrida, é intraduzível para o português. Trata-se de uma união do
verto hanter com o termo ontologie. Encontramos as seguintes ocorrências de significados do verbo hanter em
francês: 1) “Fréquenter (un lieu) d’une manière habituelle, familière; Habiter, vivre dans (un lieu)”. 2)
“Fréquenter habituellement (qqn)”; Ex: “Dis-moi qui tu hantes, je te dirai qui tu es” 3) “Le sujet désigne un
esprit, un fantôme (angl. “to haunt”)”. Ex: “Cette maison est hantée par un esprit.” 4). “Obséder, poursuivre;
hantise. Ex: “Les rêves, les obsessions qui hantent son sommeil”. Le Grand Robert de la Langue Française.
Paris: Dictionnaires Le Robert, 2001, p. 1680-1. Na tradução brasileira de L’Être et le Néant (O ser e o nada.
Petrópolis: Vozes, 2001), Perdigão traduz “hanter” por verbos diferentes, opção que impede o leitor brasileiro de
compreender a onipresença deste verbo ao longo da obra. Na maioria das vezes, Perdigão traduz hanter por
“infestar” (cf. p. 57, p. 79, p. 96, p. 108, p. 132, p. 139, p. 141, p. 165, p. 175, p. 554, etc.); em outros momentos
por “impregnar” (cf. p. 138, p. 140-4, p. 171); e mesmo por “invadir” (p. 58). De nossa parte, optamos pela
tradução assombrar, dado que ela mantém tanto o sentido de algo que permanece ao espírito como uma
obsessão, quanto à ligação deste verbo à presença de espectros ou fantasmas (em português, dizemos, por
exemplo que uma casa é mal assombrada, assim como em francês se diz “une maison hantée”). Em segundo
lugar, optamos por manter o termo hantologie em francês, devido à impossibilidade de tradução, embora
utilizaremos a tradução de “hantise” como “assombramento”. Por fim, vale ressaltar que o termo assombramento
em português traz uma riqueza que não se encontra no francês, a saber, a ideia de “introduzir uma sombra”.
Como um dos temas centrais de nosso trabalho gira em torno das noções de translucidez e opacidade, o fato do
assombramento introduzir a ideia de sombra se mostra muito interessante. Por esta razão, optamos por manter ao
mesmo tempo: o termo hantologie em francês, no intuito de manter a riqueza do trocadilho, e o uso da tradução
da hantise por “assombramento”, já que a tradução é possível e também pelo fato de que o termo aponta para a
inserção das sombras naquilo que em Sartre podemos chamar de esfera de translucidez.
11 DERRIDA, J. Spectres de Marx. L’État de la dette, le travail du deuil et la nouvelle Internationale. Paris:

Galilée, 1993, p. 89.


!22

Giovannangeli12. Dimensão que se associa ao noema husserliano, continua o autor, cujo


caráter de irrealidade é criticado por Sartre como base de um idealismo que ele busca
ultrapassar, conforme veremos em nossas análises da “Introdução” de L’Être et le Néant.
No entanto, nos apropriamos do termo derridiano para outros fins, na medida em que
há uma verdadeira onipresença operacional do assombramento na economia da ontologia
sartriana como um todo. Giovannangeli percebe esta onipresença ao chamar a atenção para o
fato de que “le terme hanter traverse L’Etre et le Néant”13. Porém, aos seus olhos, isto não
quer dizer que este termo deva ser superestimado, uma vez que ele significa apenas
“l’insistance d’un contenu intentionnel passé ou à venir”, embora Sartre forneça o esboço de
uma “phénoménologie de la hantise” em suas análises sobre a posse. Entretanto, a nosso ver,
o “assombramento” (hantise) mostra-se como uma chave de leitura fundamental da ontologia
de L’Être et le Néant, na medida em que ele compõe predominantemente as análises das
diversas relações entre ser e nada, assim como diz respeito à própria concepção do para-si
como “ser-no-mundo”, já que, para Sartre, “être-dans-le-monde, c’est hanter le monde” 14.
Dito isto, acreditamos que a onipresença do verbo assombrar (hanter) - como bem observou
Giovannageli - atesta a relevância de um conceito que, embora não tenha sido tematizado pelo
próprio Sartre, é totalmente operacional e fundamental para as análises de sua ontologia.
Acrescentamos que é neste sentido que nos apropriamos do termo hantologie de Derrida, sem
que com isso sejamos obrigados a adotar o sentido propriamente derridiano do termo, isto é,
faremos uso do termo “hantologie” cunhado por Derrida não no sentido derridiano ou com
qualquer compromisso de estabelecer uma afinidade entre este conceito em seu autor e a
ontologia de Sartre. Esta última tentativa não é nosso objetivo, além do que, como apontou
Giovannageli, ela seria desde o início problemática.
Todavia, o fato de não adotar a perspectiva derridiana de hantologie não nos impede
de encontrar, em algumas breves análises de Spectres de Marx, uma inspiração para se pensar
o modo de ser da espectralidade em Sartre. O espectro, diz Derrida, “est une incorporation
paradoxale, le devenir-corps, une certaine forme phénoménale et charnelle de l’esprit. Il
devient plutôt quelque « chose » qu’il reste difficile de nommer : ni âme ni corps, et l’une et
l’autre” 15. Trata-se, portanto, de um modo médio entre dois termos, que se dá por uma

12 GIOVANNANGELI, D. Le Retard de la conscience: Husserl, Sartre, Derrida. Bruxelles: Ousia, 2001.


13 Ibid., p. 106.
14 EN, p. 284.
15 DERRIDA, J. Spectres de Marx, p. 25.
!23

dimensão de indicernabilidade que não pode ser compreendida através de um quadro dualista.
Este modo do espectro, entrevisto no panorama da desconstrução derridiana, é o modo da
incorporação de algo que não pode ser identificado, e é neste sentido que se trata de um “non-
objet, ce présent non présent, cet être-là d’un absent ou d’un disparu”16; um não objeto,
explica Dirce Solis, “já que não se pode tocá-lo ou senti-lo fisicamente. Porém, é possível
sentir sua presença. Sabemos que ele está lá”17 . Como veremos a respeito do problema do
dualismo, esta possibilidade realizada por Derrida - de conceber aquilo que escapa às
oposições binárias da lógica clássica -, mostra-se como um ponto de inspiração importante da
presente leitura de L’Être et le Néant. Isto em razão do fato de que pesa sobre esta obra os
impasses provenientes dos problemas mais clássicos do dualismo, conforme veremos no
primeiro capítulo. Finalmente, resumimos em três pontos a influência derridiana neste
trabalho: 1) a possibilidade de encontrar no texto elementos que de alguma forma falam
contra uma leitura unívoca do mesmo, ou seja, de encontrar paradoxos e ambiguidades que
possibilitem outra leitura 2) a possibilidade de conceber modos médios e/ou para além dos
dualismos que abalam esta mesma lógica 3) a espectralidade como uma dimensão que permite
a compreensão de tais modos. Quanto ao termo hantologie, trata-se, na verdade, mais de uma
apropriação do que de uma inspiração, como viemos de mencionar.
Apropriamo-nos do termo hantologie no intuito de evidenciar o papel fundamental do
assombramento em L’Être et le Néant. No sentido de que no contexto desta ontologia não é
possível pensar o nada que não seja assombrado pelo ser e o ser que não seja assombrado pelo
nada. O assombramento mostra-se assim como uma verdadeira via de mão dupla; e a
espectralidade consiste na dimensão deste “meio”, na qual podemos identificar a
simultaneidade entre ser e nada, assim como a especificidade e a indissociabilidade de cada
termo. Além disso, esta ideia nos fornece a possibilidade de encontrar uma resposta implícita
de Sartre aos problemas apontados por Merleau-Ponty, os quais delimitamos aos seguintes
pontos: um dualismo insuperável entre ser e nada; a transparência da consciência; uma
liberdade sem raízes; a ausência de passividade e de dialética. Por fim, a partir da perspectiva
de uma hantologie, podemos não somente nos confrontar com os problemas levantados por
Merleau-Ponty, mas também realizar uma leitura que apresenta a ontologia sartriana em toda

16Ibid., p. 26.
17 SOLIS, D. Derrida e a demarcação dos espectros. Trabalho apresentado no I Congresso Internacional de
Filosofia e Saúde em 2012, p. 2.
!24

sua riqueza, na medida em que ela nos revela a multiplicidade de modos de ser singulares que
se dão para além das restrições rígidas de um possível dualismo entre para-si e em-si, ser e
nada, subjetividade e objetividade, translucidez e opacidade. 

PRIMEIRA PARTE

ONTOLOGIA E NEGATIVIDADE:
a formulação dos problemas
Capítulo I
A aporia do dualismo

§1. Para-si e em-si: um verdadeiro dualismo?

Les doctrines contemporaines répètent volontiers que l’homme se


définit (si tant est que l’idée de définition lui soit applicable) par
l’être-dans-le-monde. Mais cette thèse requiert de toute évidence que
l’on conçoive l’existence même de l’homme hors de l’alternative du
Pour-soi et de l’En-soi. S’il est chose ou conscience pure, l’homme
cesse d’être au monde.

De Waelhens, Une philosophie de l’ambiguïté

O problema do dualismo assombra L’Être et le Néant. Sartre inicia o texto de sua


ontologia ressaltando o progresso do pensamento moderno na superação de dualismos
tradicionais, para apresentar em seguida uma dicotomia que parece restringi-lo a um novo
dualismo: a cisão entre as regiões ontológicas para-si (pour-soi) e em-si (en-soi). Este par é
predominantemente compreendido como a versão sartriana da dicotomia sujeito-objeto, como
se pode observar na citação en passant de Alain Badiou: “la conscience et son objet, l’idéation
et l’idéat, le pôle noétique et le pôle noématique, ou, dans la variante sartrienne, le pour-soi et
l’en-soi”1. Na “Introdução” de L’Être et le Néant, Sartre estabelece tais regiões ontológicas
principais, utilizando-se das análises do ser do cogito pré-reflexivo e do ser em-si dos
fenômenos, que nada mais são do que, justamente, o modos de ser para-si e em-si. Esta
divisão se dá, nos termos de Sartre, a partir de uma cisão do “concept d’être” em “deux
régions d’être absolument tranchées” et “incommunicables” 2, embora ele conclua, sem

1 BADIOU, A. Deleuze. « La clameur de l’Etre ». Paris: Hachette, 1997, p. 35.


2 EN, p. 30.
!27

fornecer maiores explicações, que as duas regiões possam ser “placées sous la même
rubrique; o que significa que “nous ne pourrons véritablement saisir le sens de l’un ou de
l’autre que lorsque nous pourrons établir leurs véritables rapports avec la notion de l’être en
général, et les relations qui les unissent”3. A cisão entre as duas regiões deu origem a uma
espécie de dualismo que Sartre parecia ao mesmo tempo em querer reforçar e evitar. Reforçar
na medida em que ele descreve o modo de ser da consciência (para-si) como “étant
radicalement autre” que o do ser dos fenômenos (em-si), que lhe é “oposto” 4. Evitar no
sentido de que ele já antevia as possíveis consequências de um dualismo quando afirmava, na
mesma página: “Il semble que nous nous soyons fermé toutes les portes et que nous nous
soyons condamné à regarder l’être transcendant et la conscience comme deux totalités closes
et sans communication possible”5 . Entretanto, apesar desta precaução, de algum modo este
problema se mantém presente até a “Conclusão” da obra, em que Sartre revela ainda a mesma
preocupação:

Mais après description de l’en-soi et du pour-soi, il nous avait paru difficile


d’établir un lien entre eux et nous avions craint de tomber dans un dualisme
insurmontable. […] Nous nous sommes demandés alors si la découverte de
ces deux types d’être n’aboutissait pas à établir un hiatus scindant l’Etre,
comme catégorie générale appartenant à tous les existants, en deux régions
incommunicables et dans chacune desquelles la notion d’Etre devait être
prise dans une acception originale et singulière.6

Diante disto, pode-se estranhar o fato de que, após todo o trabalho de sua ontologia,
ainda na “Conclusão” Sartre se coloca a questão do dualismo. Por acaso isto atesta que após
todo o percurso da obra o autor não conseguiu de fato superar o dualismo ontológico
fundamental? Mas o que é um dualismo e qual o problema que ele engendra?
Gilles Deleuze nos fornece um quadro sintético que permite melhor situar o problema
do dualismo. A seu ver, podemos compreender esta noção em ao menos três sentidos
diferentes: 1) o verdadeiro dualismo é aquele que marca uma diferença irredutível entre duas
substâncias, como no caso de Descartes ou entre duas faculdades como em Kant; 2) um
dualismo pode ser provisório na medida em que este é ultrapassado em direção a um

3 EN, p. 30.
4 EN, p. 30.
5 EN, p. 30.
6 EN, p. 665.
!28

monismo, como para Bergson e Espinosa; 3) o dualismo pode funcionar como “une
répartition préparatoire qui opere au sein d’un pluralisme”, que é a seu ver o caso de
Foucault7. Tendo em vista estas diferenças, vale evidenciar que as definições que Sartre
oferece na “Introdução” de sua obra sobre os modos de ser para-si e em-si são consideradas
pelo autor como sendo provisórias, superficiais e incompletas8. Dado que elas são alcançadas
a partir de uma investigação que é conduzida, nas palavras do próprio Sartre, por uma
“mauvaise perspective”9. Isto significa que o dualismo provisório da “Introdução” será
abandonado, complexificado, ultrapassado? Seria esta cisão inicial apenas uma etapa em
direção a um monismo ou uma oposição que opera em meio a uma pluralidade?
Quem melhor evidenciou o caráter dualista da ontologia sartriana foi sem dúvida
Merleau-Ponty, para quem esta posição funcionou como um contraponto essencial de criação
de sua própria filosofia. Já em 1945, apenas dois anos após a publicação de L’Être et le
Néant , ele observava em La querelle de l’existentialisme, a respeito de L’Être et le Néant, que
“le livre reste trop exclusivement antithétique”10. Este posicionamento crítico permaneceu
sendo ponto-chave de contraposição da parte de Merleau-Ponty à filosofia sartriana, de modo
que seus desdobramentos se deixam entrever ainda em seus últimos trabalhos. Em Le Visible
et l’Invisible, Merleau-Ponty refina suas análises críticas ao apontar um dualismo radical não
somente entre para-si em em-si, mas também entre ser e nada, termos de base, como próprio
título da obra sartriana indica. Grosso modo, o caráter demasiado antitético do para-si e do
em-si, consistiria, para Merleau-Ponty, num dualismo de tipo cartesiano, tal como Deleuze
identificou ser próprio de um verdadeiro dualismo: há uma separação radical entre nada e ser
(que Merleau-Ponty equipara a para-si e em-si)11, que estabelece os termos como
contraditórios excludentes, que não “passam” um no outro, como diríamos em linguagem
hegeliana. Deste modo, o autor de Le Visible et l’Invisible pôde afirmar que tal base dualista
condena todo o desenvolvimento posterior da obra na medida em que “d’un bout à l’autre du
livre, on parle du même néant et du même être”12. Se assim for, mesmo que Sartre tenha
definido na “Introdução” o caráter provisório de suas análises, seu dualismo inicial não

7 DELEUZE, G. Foucault. Paris: Minuit, 2004, p. 89.


8 EN, p. 33.
9 EN, p. 37.
10 QE, p. 125.
11 Abordaremos com mais detalhes as diferenças entre os dualismos para-si/em-si e ser/nada, já que esta é

fundamental para compreendermos tanto a crítica de Merleau-Ponty, quanto seus limites.


12 VI, p. 98.
!29

permitiria uma superação em direção a um monismo e nem mesmo à possibilidade de um


pluralismo, segundo os sentidos propostos por Deleuze.
No que diz respeito à consideração da obra como um todo, Philippe Cabestan, por
exemplo, pensa haver do mesmo modo uma rigidez que compromete de alguma forma seu
desenvolvimento, embora esta esteja relacionada ao modo de ser em-si:

L’introduction de L’être et le néant à partir de la compréhension


préontologique de l’être du phénomène, en établit trois caractéristiques :
l’être est en-soi, l’être est ce qu’il est, l’être en-soi est. Ajoutons toute de suite
que sur ce point nous n’en saurons pas plus car, bien que présenté comme
provisoire, cet examen de l’être du phénomène est d’une certaine manière
définitif, et L’être et le néant n’ajoutera aucune détermination nouvelle au
cours de quelque six cent cinquante pages qui suivent l’introduction. En
revanche, l’élucidation du sens de l’être de la conscience, et telle est
manifestement l’ambition première de L’être et le Néant, est menée de
manière beaucoup plus approfondie13.

No entanto, o modo de ser da região ontológica que Sartre denomina em-si está longe
de ser evidente à compreensão. Para Claude Romano, ele é “mal défini” 14, do mesmo modo
que para Gerd Bornheim ele permanece “estranho”15. Veremos em seguida com mais detalhes
o que a definição do em-si pode ter de problemática. No que diz respeito ainda ao método de
leitura de L’Être et le Néant centrado no dualismo que é definido na “Introdução”, Mikel
Dufrenne, por exemplo, é de outra opinião. A seu ver, pelo fato de Sartre começar, assim
como Descartes, por um dualismo, ocorre uma tendência de leitura que o restringe
demasiadamente a este ponto de partida: “on veut trop souvent enfermer Sartre dans les
premiers chapitres de L’Être et le Néant et l’on oublie qu’à sa façon, il suit un ‘nexus
rationum’”16. Seguir a ordem das razões fez com que Dufrenne enxergasse certas nuances que
a “Introdução” não apresenta, tal como a “solidariedade” dos modos de ser em-si e para-si na
medida em que “l’en-soi d’une part porte le pour-soi dans sa facticité, et d’autre part ne peut
devenir monde que par la conscience qui le reflète, et dont tout l’être est de le refléter”17. No
entanto, ele conclui mesmo assim que Sartre permanece finalmente dualista por não conseguir
estabelecer uma dialética (ponto que o aproxima, embora por diferentes caminhos, de uma das

13 CABESTAN, P. Sartre et la différence ontologique. Alter: Sartre phénoménologue, Dijon, n.10, p. 65-90,
2002, p. 76. (grifo nosso)
14 ROMANO, C. L’ontologie sartrienne: réflexions sur son archè et son télos. In: TAMBOURGI-HATEM, N.

(Org) Sartre sans frontières. Beyrouth: Université Saint-Joseph, 2007, p. 16.


15 BORNHEIM, G. Sartre. Metafísica e existencialismo. São Paulo: Perspectiva, 2000, p. 36.
16 DUFRENNE, M. Jalons. The Hague: Martinus Nijhoff, 1966, p. 171.
17 Ibid., p. 76.
!30

críticas de Merleau-Ponty). Na medida em que para Sartre o para-si é desejo de ser em-si e
que neste desejo ele sempre fracassa, dado que esta síntese é impossível, a filosofia de Sartre
é a história mesma destes fracassos, de maneira que tal sucessão de fracassos do para-si não
corresponde a uma dialética, a qual implicaria efetiva superação do momento de negação.
“Ainsi, admettre une ontologie dualiste - et c’est toute la différence de Sartre à Hegel -, c’est
refuser la dialectique”, conclui Dufrenne 18.
O problema de restringir a leitura de L’Être et le Néant aos primeiros capítulos foi
colocado também por Benoist em seu curso sobre L’Être et le Néant na Sorbonne em 2014 19.
Sua leitura opera com uma divisão entre uma primeira metade do livro, onde há um
solipsismo do para-si, que ele denominou de “o triunfo da ipseidade”, até o “encontro” com o
outro que se dá a partir da segunda metade. Esta chave de leitura se baseia numa divisão entre
ontologia e metafísica, realizada pelo próprio Sartre, num sentido muito próximo ao de
Levinas em Totalité et infini20 . Benoist mostra como esta distinção atravessa L’Être et le
Néant e sustenta sua economia de um modo geral. Na “Conclusão”, Sartre tematiza esta
diferença ao dizer que as perguntas do tipo “por que surge um para-si?” ou “por que ele surge
a partir do ser?” são da ordem da metafísica, enquanto que cabe à ontologia apenas a
descrição dos modos de ser21. Neste contexto, a ontologia opera somente no plano do “tudo se
passa como se…”, enquanto que a metafísica diz respeito ao caráter de acontecimento,
daquilo que pode ou não acontecer ao para-si, como o fato mesmo de seu surgimento 22.
Benoist se apoia nesta perspectiva sartriana no intuito de demonstrar justamente a importância
da segunda metade de L’Être et le Néant, isto é, precisamente a parte do texto cuja
importância perderíamos de vista se nos restringíssemos demasiadamente aos primeiros
capítulos. Além disso, este contrapeso da segunda metade em relação à primeira se dá com o
objetivo de mostrar os problemas desta última, na medida em que, como mencionamos, esta
se revelaria como uma ontologia solipsista. O passo decisivo de ruptura se caracteriza pelo

18 DUFRENNE, M. Jalons, p. 77.


19 Curso sobre L’Être et le Néant em 2014 na Sorbonne. Baseamo-nos em notas pessoais, dado que o curso não
se encontra publicado.
20 Cf. EN, p. 667-8. Segundo Benoist, Totalité et infini visa a contrapor todas as teses de L’Être et le Néant.

Levinas inverte a perspectiva sartriana pelo fato de que, apesar de Sartre ter razão em sua distinção entre
ontologia e metafísica, não se pode começar pela ontologia, pois esta está sempre sob a condição da metafísica.
O que neste contexto significa que não há para-si sem para-outro, o para-si é possível como para-si a partir
daquilo que lhe acontece.
21 Para Dufrenne, Sartre utiliza os termos de ontologia e metafísica no sentido inverso ao de Kojève: “l’ontologie

est une description de l’être et de ses régions, la métaphysique pose l’ultime problème de cet être, tel que
l’ontologie l’a révélé. DUFRENNE, M., op. cit., p. 76, n. 1.
22 Cf. EN, p. 669.
!31

momento em que surge o outro como acontecimento metafísico, o que significa que, no plano
ontológico, nada na economia do para-si e do em-si o solicitava. O outro é precisamente o
elemento que vem perturbar esta economia. Em suma, para Benoist, algo acontece ao para-si -
o surgimento o outro - acontecimento que o altera em sua estrutura ontológica mesma, de
modo que ele deixa de ser uma abstração.
Em sentido próximo, Jean Wahl valoriza a parte, digamos, não ontológica de L’Être et
le Néant, a qual ele associa às análises posteriores à “Introdução”, visto que os conceitos
introdutórios devem ser revisados a fim de preservar “tout ce qu’il y a de précieux dans la
suite de l’œuvre”23. No fundo, explica Francis Janson, “M. J. Wahl, bon gré mal gré, équivaut
finalement à regretter que Sartre ait adopté la méthode phénoménologique, et, ne se soit point
contenté d’une philosophie d’emblée existentielle, du type de celle de Kierkegaard, ou de
celle de Heidegger dans ce qu’elle a de plus opposé aux perspectives husserliennes”24 . Por
fim, vale observar que também J. Hyppolite valoriza a última parte de L’Être et le Néant -
mais especificamente a parte sobre a psicanálise existencial que, a seu ver, consiste no
verdadeiro objetivo da obra de modo que “l’ontologie qui précède est seulement ce qui rend
possible cette psychanalyse”25.

Diante destas breves observações, podemos dizer que os diferentes métodos de leitura
de L’Être et le Néant indicam aquilo que é mais valorizado por cada autor em seu objetivo de
compreender a proposta ontológica sartriana e seus desdobramentos. Para alguns autores, uma
leitura demasiado centrada na “Introdução” pode levar a uma falta de consideração da
relevância dos desenvolvimentos posteriores que contestam posições rígidas. Estamos de
acordo com este último ponto, embora consideremos ser importante observar que: mesmo
para estes que não buscam tirar conclusões que condenem toda a obra a partir das análises
introdutórias, o problema do dualismo permanece. Assim, de todo modo, ao estabelecer uma
divisão entre as regiões ontológicas para-si e em-si, Sartre se situa em meio aos problemas
mais clássicos do dualismo de modo que sua ontologia se encontra em aporia. Benoist

23WAHL, J. 1946, apud JEANSON, F. Le problème moral et la pensée de Sartre. Paris: Seuil, 1965, p. 142-3.
24JEANSON, F. ibid., p. 143.
25 HYPPOLITE, J. La psychanalyse existentielle chez Jean-Paul Sartre. In:______ . Figures de la pensée
philosophique II. Paris: PUF, 1971, p. 781.
!32

acrescentou ainda o caráter solipsista desta ontologia. Ora, ao contrário de uma ontologia
solipsista, Sartre desejava apresentar um para-si como ser-no-mundo, noção a partir da qual
não seria mais possível conceber, senão abstratamente, uma consciência sem mundo ou um
mundo sem consciência (em vocabulário sartriano). Com efeito, o problema não é de solução
fácil, na medida em que não basta estabelecer uma “ligação” entre os termos sujeito-mundo,
se inicialmente eles são dados como isolados e inconciliáveis26. Do mesmo modo, se estamos
falando de um verdadeiro dualismo, isto significa, segundo a lógica clássica, que dois termos
de uma oposição binária não podem existir ao mesmo tempo. Encontramos este princípio na
Metafísica de Aristóteles, mais conhecido como princípio de não contradição:

Existe nos seres um princípio relativamente ao qual não é possível que


alguém se engane mas, ao contrário, está sempre e necessariamente na
verdade: é o princípio que afirma não ser possível que a mesma coisa ao
mesmo tempo seja e não seja, e o mesmo vale também para os outros
atributos opostos entre si27 .

Segundo este princípio, válido para todas as oposições binárias, para que algo tenha
legitimidade de uma verdade racional, não pode haver contradição entre os termos de uma
oposição, isto é, só se pode atribuir ser ou não ser a cada vez, pois ambos não podem ser
atribuídos a uma mesma coisa ao mesmo tempo. Disto decorre ainda o princípio do terceiro
excluído, segundo o qual “não é possível que exista um termo médio entre os contraditórios,
mas é necessário ou afirmar ou negar, do mesmo objeto um só dos contraditórios, qualquer
que seja ele”28. Sendo assim, a lógica dualista mais clássica pressupõe que tudo aquilo que
não é considerado a partir de uma oposição dual é falso e, além disso, não pode haver termo
intermediário, ou seja, um entre, algo que não seja nem um nem outro termo considerado 29.
Isto significa que se Sartre de fato estabelece um dualismo clássico entre para-si/em-si, ele
acaba por se aprisionar nos problemas mais tradicionais da filosofia em relação ao dualismo.
Mais especificamente: 1) ao definir para-si e em-si a partir de uma separação radical que
impede que ser e nada coexistam num mesmo modo de ser; 2) ao pressupor
consequentemente que tudo aquilo que não pode ser considerado estritamente como para-si ou
em-si é falso, pois não há a possibilidade de modos intermediários. É neste sentido que

26 Desenvolveremos esta questão através da crítica de Merleau-Ponty no segundo capítulo desta “Primeira parte”.
27 ARISTÓTELES, Metafísica. São Paulo: Loyola, 2002. X 5, 1061 b 33-1062 a1, 2002 (p. 499).
28 Ibid., IV 7, 1011 b 23-25 (p. 179).
29 Com isso não queremos dizer que não haja modos intermediários na filosofia grega. Basta observar a presença

destes na filosofia de Platão.


!33

podemos compreender a afirmação que citamos inicialmente de Alphonse de Waelhens sobre


a impossibilidade de se pensar a noção de ser-no-mundo a partir da dicotomia para-si/em-si.
Uma vez que, ao partir de uma “consciência pura”, Sartre jamais poderia unir posteriormente
aquilo que se estabeleceria de início como separado. Do mesmo modo, Bornheim diz que ao
tomar o cogito como ponto de partida, “é fatal que se venha a emprestar um estatuto
ontológico ao dualismo entre mundo interior e mundo exterior”30; e ainda que “não existe
parentesco algum entre estes dois mundos: o reino das coisas definiu-se como totalmente
outro que não o reino humano”31. Em suma, o dualismo que é aqui considerado como para-si
e em-si é o “verdadeiro” dualismo, como dizia Deleuze, no sentido de duas substâncias
distintas, onde se encontra excluído qualquer modo intermediário, qualquer coexistência entre
os termos ou qualquer modo que não se encaixe em nenhum dos termos.
Diante disto, fica a questão: seria este “verdadeiro dualismo” de fato o destino de toda
ontologia sartriana? Ou há ainda aspectos a serem esclarecidos a fim de verificar se há outro
sentido para o dualismo provisório, de modo a desvelar uma região ontológica que escape à
restrição lógica “dogmática”, ou seja, de modo a nos apresentar uma pluralidade, um entre,
um nem…nem…(dupla exclusão), um e… e…(participação)32, que ultrapasse a aporia
dualista?

§2. A transfenomenalidade dos termos como superação do dualismo entre idealismo e


realismo.

As descrições apresentadas por Sartre na “Introdução” de L’Être et le Néant,


principalmente sobre o modo de ser em-si, são bastante relevantes na medida em que podem
definir de algum modo o método de leitura da obra. Sendo assim, devemos nos concentrar nos
pontos que consideramos serem os mais importantes das análises introdutórias, tendo em vista
a necessidade de demarcar nossa posição em relação ao problema do dualismo, sobretudo no
que diz respeito às definições iniciais dos modos de ser para-si e em-si, que serão
questionadas em seguida. Antes de nos concentrarmos nas definições que Sartre apresenta

30BORNHEIM, G. Sartre, p. 18.


31Ibid., p. 37.
32DERRIDA, J, Khôra. Paris: Éditions Galilée, 1993, p. 19. “Ni…ni..”, “Et..et…” são fórmulas exploradas por
Derrida em seu trabalho sobre a noção de Khôra no Timeu de Platão. Khôra não é “ni sensible, ni intelligible, ni
métaphore, ni désignation littérale, ni ceci, ni cela, et ceci et cela, participant et ne participant pas au deux termes
d’un couple”. Ibid., p. 3.
!34

nesta parte introdutória do texto, ressaltamos em primeiro lugar que o objetivo mais explícito
da “Introdução” é o de delimitar a “transfenomenalidade” destes dois modos de ser, o que
significa que nenhum deles pode se reduzir ao fenomenal, isto é, se limitar ao aparecer. Com
base nesta ideia, Sartre pretende superar os problemas de outro dualismo, desta vez entre
idealismo e realismo.
Desde seus primeiros trabalhos, sobretudo no texto “Une idée fondamentale de la
phénoménologie de Husserl : l’intentionnalité”, Sartre se apresenta como um crítico do
idealismo, o qual ele associava à metáfora do “espírito aranha” que “attirait les choses dans sa
toile, les couvrait d’une bave blanche et lentement les déglutissait, les réduisait à sa propre
substance”33. Através da crítica a tal “philosophie alimentaire”, Sartre visa a ultrapassar,
juntamente com um determinado grupo de jovens filósofos, os princípios de uma filosofia
francesa envelhecida34 , a qual associa conhecimento à “assimilation, unification,
identification”35, reduzindo a realidade do mundo aos conteúdos presentes na interioridade
“gástrica” da consciência. A seu ver, a ideia inovadora que permite repensar as premissas do
idealismo é justamente o conceito de intencionalidade proveniente da fenomenologia de
Husserl. Este é interpretado no sentido de caracterizar a consciência como puro movimento
para “fora” - “la conscience n’a pas de ‘dedans’” - como um “éclatement” que consiste num
“refus d’être substance”36. No entanto, esse “fora” não é explicitado e tampouco há aqui uma
descrição fenomenológica sobre a coisa mesma “en chair et en os”, ponto de partida
fundamental da fenomenologia husserliana. Sartre diz apenas que a consciência e o mundo
surgem simultaneamente e que o mundo aparece com suas significações objetivas37.
A ausência de questionamento da natureza deste “fora” tornou-se ponto de crítica de
parte de fenomenólogos. Levinas, por exemplo, pensa haver aí um dualismo que tem como
base um realismo ingênuo, como nos mostra V. de Coorebyter:

en traitant la conscience et son objet comme deux entités distinctes dont l’une
s’éclate vers l’autre afin d’assurer leur mise en relation, Sartre participe de
l’attitude naturelle pour laquelle le monde est toujours déjà donné dans son
objectivité, offert au regard d’une conscience qui se contentera de le viser

33 S.I, p. 29.
34 CDG, p. 469. Para um bom panorama sobre quem são os alvos diretos desta crítica ver: DE COOREBYTER,
V. Introduction. In: SARTRE, J-P. La Transcendance de l’Ego et autres textes phénoménologiques. Paris: Vrin,
2003. (TE, p. 8-19).
35 S.I, p. 29.
36 S.I, p. 30.
37 Falaremos deste ponto com mais detalhes na “Segunda parte”.
!35

dans l’illusion de le saisir tel qu’il est où il est, selon l’immédiateté


perceptive la plus naïve38 .

Isto se deve, continua o autor, ao fato de Sartre ignorar a teoria dos perfis39 (esquisses/
Abschattung) e da temporalidade de Husserl, de modo que ele não desenvolve ou faz menção
às múltiplas análises intencionais e suas especificidades. Por esta razão, a utilização sartriana
do conceito de intencionalidade é, segundo De Coorebyter, uma apropriação “d’un résultat
comme d’un point de départ”40 de modo que “sa phénoménologie se résout en empirisme” 41.
É neste sentido também que Gadamer se pergunta: “Sartre a compris ce que Husserl voulait
dire quand il posait la question : qu’est-ce qu’un objet de perception ?” 42.
A questão do dualismo na “Introdução” de L’Être et le Néant contém alguns resquícios
dos pressupostos apresentados no artigo sobre a intencionalidade, embora Sartre tenha se
aprofundado em sua leitura da filosofia husserliana no período que separa os dois textos,
como atesta L’Imaginaire. A “Introdução” procura fornecer bases para uma ontologia que
permita a superação do idealismo e também do realismo através de uma fenomenologia de
inspiração husserliana, mas desta vez por via de uma crítica ao próprio Husserl, cuja filosofia
é considerada agora idealista. Neste segundo momento, Sartre não ignora, mas critica, a teoria
dos perfis husserliana, censurando-a de apresentar um novo dualismo entre finito e infinito.
Entretanto, ele reconhece que, ao identificar o ser ao aparecer, a fenomenologia de Husserl
permitiu superar os dualismos mais clássicos da filosofia moderna, a saber: aparência e
essência, interior e exterior, ser e aparecer, potência e ato43. Na verdade, a curta análise de
Sartre sobre a teoria dos perfis torna de algum modo obscura a compreensão de seu
argumento sobre o dualismo restante. Porém, seu intuito principal é o de mostrar que a teoria

38 DE COOREBYTER, V. Sartre face à la phénoménologie. Autour de « L’intentionnalité » et de « La Transcen-


dance de l’Ego ». Bruxelles: Ousia, 2000, p. 31.
39 Sobre a qual Sartre faz uma breve alusão, sem desenvolver suas conseqüências, em La Transcendance de

l’Ego: “Husserl insiste sur le fait que la certitude de l’acte réflexif vient de ce qu’on y saisit la conscience sans
facettes, sans profils, toute entière (sans « Abschattungen »). C’est évident. Au contraire l’objet spatio-temporel
se livre toujours à travers une infinité d’aspects et il n’est au fond que l’unité idéale de cette infinité.” TE, p. 102.
40 DE COOREBYTER, V. Sartre face à la phénoménologie, p. 32.
41 Ibid., p. 33. Na verdade, para De Coorebyter, o fato de em L’Être et le Néant Sartre questionar justamente os

temas negligenciados no texto sobre a intencionalidade, mostra mais uma recusa do que propriamente uma
ignorância, visto que de algum modo esses temas - “la réduction phénoménologique et l’analyse constituante,
l’animation de la hylé par une visée noématique en quête de remplissement, l’attention portée aux modes
spécifiques d’implication intentionnelle qui permettent au sujet d’imposer différents sens à une même matière
[etc.] ” - se referem a uma filosofia da imanência que Sartre pretende abolir (Ibid., p. 51).
42 GADAMER, H-G. L’être et le néant de Jean-Paul Sartre. In: ______ . L’Herméneutique en rétrospective. I&II

parties. Paris: Vrin, 2005, p. 150. (Trad. J. Grondin)


43 Gesto de algum modo descontrutivo - no sentido derridiano - ao menos provisoriamente, como diz

Giovannangeli. GIOVANNANGELI, D. Le Retard de la conscience, p. 114.


!36

dos fenômenos, ao substituir “la réalité de la chose par l’objectivité du phénomène”44 , funda
esta objetividade num recurso ao infinito, isto é, numa infinidade de aparições dos perfis. Para
que algo seja captado como transcendente, é necessário que o sujeito da percepção ultrapasse
o perfil e apreenda a razão da série - a essência -, mas as aparições são infinitas na medida em
que o objeto deve ser sempre ultrapassado pelo sujeito em direção à essência e este sujeito
mesmo, não sendo estático, estará sempre apreendendo novos perfis que serão ultrapassados.
A aparição finita é assim ultrapassada em direção à infinidade de aparições, de modo que o
dualismo finito/infinito substitui, para Sartre, aquele entre ser e aparecer. Disto decorre que
outros dualismos são, a seu ver, reintroduzidos, na medida em que há um “dentro” e um
“fora” da aparição como um “aparecer” e um “não aparecer” que forjam uma espécie de
“potência” do fenômeno que pode se desenvolver numa série de aparições reais ou possíveis.
Consequentemente, para Sartre, “l’essence enfin est radicalement coupée de l’apparence
individuelle qui la manifeste, puisqu’elle est par principe ce qui doit pouvoir être manifesté
par une série de manifestations individuelles”45 . Desta conclusão surgem problemas que
motivam a tarefa sartriana de pensar o modo de ser em-si. Nosso interesse se concentra
justamente neste problema de maneira que não faz parte de nosso objetivo analisar a
pertinência ou as insuficiências desta breve crítica de Sartre à teoria dos perfis de Husserl.
Dito isto, a tarefa a que Sartre se propõe é a de interrogar o ser sobre o sentido do “ser da
aparição”, verdadeiro objetivo de uma ontologia fenomenológica.
No intuito de superar a alternativa entre o idealismo e o realismo, Sartre se propõe
assim a uma investigação que se orienta, na verdade, em duas direções: a busca pelo ser do
existente que aparece e a busca pelo ser daquele para quem o existente aparece. Sua
investigação se inicia pelo ser da aparição - já que ela tem seu ser próprio - e a dificuldade que
se apresenta ao desejar escapar das alternativas acima é a de pensar não mais um ser apartado
ou mascarado pelo seu aparecer, mas ao mesmo tempo garantir que o ser do aparecer não se
reduza à aparição, isto é, busca-se estabelecer que o ser do fenômeno vá além do fenomenal, a
fim de evitar incorrer, na concepção de Sartre, na posição idealista que presume, como
Berkeley, que “esse est percipi” (ser é ser percebido) 46. Diante desta dificuldade, Sartre
estabelece uma diferença conceitual entre o ser do fenômeno e o fenômeno de ser. Este último

44 EN, p. 13.
45 EN, p. 14.
46 EN, p. 16.
!37

corresponde à própria aparição, enquanto que o primeiro diz respeito ao ser desta aparição,
embora os dois termos sejam interdependentes na medida em que “nous ne pouvons rien dire
sur l’être qu’en consultant ce phénomène d’être”47. Contudo, mesmo que a aparição seja a
única via de acesso possível ao ser dos fenômenos, não podemos com isso concluir que ela o
mascara e nem que este se limita às próprias aparições, pois “le phénomène d’être exige la
transphénoménalité de l’être”48. Mas em que consiste precisamente este ser do fenômeno?
Seria este uma dimensão apartada de seu aparecer? Seria este o sentido da aparição? Com o
objetivo de explicar o que seria o ser do fenômeno, Sartre esboça definições “negativas” a
partir do exemplo da aparição de um objeto qualquer: seu ser não seria uma qualidade do
objeto, nem um sentido - essência do objeto -; do mesmo modo ele não poderia ser definido
como presença, já que a ausência também desvela o ser, e nem como algo que o objeto possui
ou realiza qualquer participação. A única maneira positiva de definir o ser do fenômeno é
dizer que ele é: “car l’objet ne masque pas l’être, mais il ne le dévoile pas non plus”49. Em
outro texto, a definição toma a forma de condição de desvelamento: “L’être est quelque chose
que je ne peut saisir dans son être, sauf comme phénomène à partir de l’objet qui est présenté.
L’être est ce qui fait que l’objet paraît”50.
A necessidade de estabelecer uma diferença entre o ser do fenômeno e suas aparições
surge da tentativa de não reduzir o ser ao conhecimento que um sujeito possa ter dele. Em
outras palavras, dizer que uma coisa percebida não se reduz a série de suas manifestações é
dizer que ela existe independentemente do conhecimento que se tem dela, que ela não pode
ser “assimilada” pelo “espírito-aranha” do idealismo - contraponto realista da parte de Sartre.
Nesta época, o filósofo direciona essa crítica à própria fenomenologia de Husserl, pelo fato
deste ter reduzido a realidade ao polo noemático irreal, através da redução fenomenológica.
Com isso, Husserl estabelece uma equivalência entre ser e conhecimento que Sartre não pode
aceitar, se opondo assim às premissas de um idealismo transcendental assumido nas Ideen e
cuja expressão máxima encontramos nas Méditations cartésiennes, em que “le monde est non
seulement « pour moi », mais tire « de moi » toute sa validité ontologique. Le monde devient

47 EN, p. 15.
48 EN, p. 16.
49 EN, p. 15.
50 CSCS, p. 145.
!38

« monde-perçu-dans-la-vie-réflexive »”51. É neste sentido que Sartre afirma que, após ter
saído do mundo do conhecimento pela époché fenomenológica, Husserl não retorna jamais 52.
O ideia de um ser transfenomenal do fenômeno - que não se reduz à série das
aparições - é apresentada então como uma saída aos deslizes husserlianos no idealismo e uma
crítica à primazia do conhecimento. Esta mesma crítica se estende ao modo de conceber a
própria dimensão da consciência que, como veremos mais adiante, se caracteriza por ser uma
dimensão originária que é condição do próprio conhecimento e, do mesmo modo,
transfenomenal. A oposição à filosofia husserliana implica ainda a contestação da
possibilidade de existência de uma subjetividade compreendida como esfera imanente que
seria de algum modo hipostasiada. Ao invés de radicalizar o movimento intencional como
transcendência, Husserl prefere, segundo Sartre, reduzir o ser ao “não ser”, fazer dele um
noema irreal, instaurando a realidade (reel53) na plenitude subjetiva. Neste sentido, Sartre
afirma que esta subjetividade “ne saurait sortir de soi pour poser un objet transcendant en lui
conférant la plénitude impressionnelle”54 e ainda que “en fondant la réalité de l’objet sur la
plénitude subjective impressionnelle et son objectivité sur le non-être : jamais l’objectif ne
sortira du subjectif, ni le transcendant de l’immanence, ni l’être du non-être”55. De modo
semelhante, pergunta Renaud Barbaras: “Mais on se demande comment un vécu immanent
serait en mesure de faire apparaître une transcendance, c’est-à-dire finalement de faire sortir
la conscience d’elle-même. N’y a-t-il pas une difficulté à penser comme contenu de
conscience l’acte sur lequel repose le rapport de la conscience à son autre ?” 56. Vislumbramos
assim uma questão em comum, que se refere à crítica de um imanentismo da subjetividade
husserliana que acaba por admitir “conteúdos”, embora Sartre direcione a sua crítica ao
noema e Barbaras à própria vivência (le vécu). Para este último, Husserl faz da vivência um
ser positivo e não respeita a evanescência própria do aparecer, o que o leva de alguma
maneira a interiorizar empirismo e intelectualismo no “sein de la conscience transcendantale
sous la forme de la dualité et de l’unité finalement incompréhensible de la matière et de la

51 RICŒUR, P. A l’école de la phénoménologie. Paris: Vrin, 2004, p. 15.


52 CSCS, p. 142.
53 Husserl estabelece uma distinção entre Real ou Realität, que corresponde à realidade natural, mundana, e Reel,
que abrange a realidade da esfera imanente dos vividos. Cf. HUSSERL, E. Idées directrices pour une
phénoménologie et une philosophie phénoménologiques pures. Tome premier: Introduction générale a la
phénoménologie pure. Paris: Gallimard, 2013, p. 553. (Trad. P. Ricœur). A partir de agora referido como Ideen I.
54 EN, p. 27.
55 EN, p. 27-8.
56 BARBARAS, R. La Perception. Essai sur le sensible. 2ed. Paris: Vrin, 2009, p. 71.
!39

forme”57. No entanto, Barbaras considera que a teoria dos perfis de Husserl, ao contrário da
crítica de Sartre, é justamente aquela que legitima a transcendência:

Si tant est qu’une chose (un « quelque chose ») est bien une réalité
transcendante, autrement dit se distingue des mes vécus, elle ne sera présente
comme chose qu’à la condition de ne pas l’être tout entière, de différer une
donation adéquate, de résister à l’appropriation. Une chose n’est donné
vraiment, elle-même, qu’en ne l’étant que partiellement puisque le propre de
la chose est de s’opposer au regard, de me transcender 58 .

Sartre não vê do mesmo modo este aspecto sublinhado por Barbaras sobre a teoria dos
perfis de Husserl. Enquanto Sartre considera finalmente que a subjetividade husserliana,
assim como o “espírito-aranha”, transforma a realidade transcendente em correlatos de
consciência que compõem a vida da subjetividade pura (e que a partir de então Husserl não
retorna a esfera transcendente), Barbaras acentua que é justamente a doação por perfis que faz
com que a coisa percebida escape ao conhecimento que se pode ter dela, visto que ela “excède
toute expérience qui peut en être faite, et cet excès est sans mesure, l’écart entre la chose et sa
perception singulière ne saurait être réduit”59. De fato, se atentarmos para a seguinte
afirmação de Husserl, podemos identificar sua tentativa de pensar o noema como correlato
inseparável da consciência, mas que não pode ser considerado como seu conteúdo imanente
réel:

Il est clair en même temps que cette distinction [entre l’analyse réelle
(reeller) et intentionnelle; noétique et noématique] nous conduit ipso facto à
mettre en lumière celle de deux régions d’êtres radicalement opposées et
pourtant rapportées par essence l’une à l’autre. Nous avons souligné plus haut
que la conscience en général doit être considérée comme une région originale
de l’être. Mais nous avons reconnu ensuite que la description éidétique de la
conscience renvoie à celle de ce qui dans la conscience accède à la
conscience, que le corrélat de la conscience est inséparable de la conscience,
sans pourtant être réellement (reell) contenu en elle. Ainsi le noématique se
distingue comme une objectivité qui appartient à la conscience et qui
pourtant garde son originalité60.

O ponto que Barbaras considera ser de extrema importância na teoria de Husserl não é
compreendido deste modo por Sartre, já que este último censura não a teoria dos perfis em si,

57 Ibid., p. 72.
58 BARBARAS, R. La Perception, p. 58.
59 Ibid., p. 64.
60 HUSSERL, E. Ideen I, p. 434. (grifo nosso).
!40

mas o fato das aparições serem reduzidas a uma “matière impressionnelle subjective”61, de
modo que, se Husserl define a consciência como transcendência e faz do ser um “ser
percebido”, ele é “totalement infidèle à son principe” 62. Assim, na medida em que Sartre não
considera a teoria dos perfis como via de contestação do idealismo e legitimação da esfera
transcendente, ele busca a saída destes problemas através da “transfenomenalidade” dos
modos de ser para-si e em-si. O para-si é então engajado na transcendência no sentido de
escapar a uma filosofia husserliana contemplativa, a qual pressupõe uma concepção da
consciência como uma esfera hipostasiada da subjetividade. A este engajamento Sartre dá o
nome de “prova ontológica”, que consiste numa versão particular do princípio de
intencionalidade da consciência: “La conscience est conscience de quelque chose : cela
signifie que la transcendance est structure constitutive de la conscience ; c’est-à-dire que la
conscience naît portée sur un être qui n’est pas elle”63 . Isto significa, diz ainda Sartre, que a
consciência é “intuition révélante” de algo que não é ela, e que esta intuição não é uma
relação de conhecimento, mas de ser. A consciência só existe como revelação de algo e
implica “dans son être un être non conscient et transphénoménal” 64; ela existe apenas através
desta intuição revelante do ser, por uma relação que Sartre irá denominar, como veremos, de
negação interna, de modo que não é possível pensar uma subjetividade apartada desta relação
negativa. Por outro lado, o ser a partir do qual a consciência existe como “intuição revelante”
é o ser transfenomenal dos fenômenos que, não podendo ser imanente a consciência, deve ser
ele mesmo em-si. Neste aspecto Sartre se distancia de posições fundamentais de Husserl,
chegando a ser mesmo seu contraponto, diz Barbaras, uma vez que ele esvazia a consciência e
restitui ao objeto sua realidade: “Ainsi, Sartre oppose le vide de la conscience à la plénitude
impressionnelle des vécus, et la densité de l’en-soi au non-être de l’objet. Il attribue à la
conscience le manque par lequel Husserl définissait l’objet et à l’en-soi la plénitude par
laquelle Husserl caractérisait le subjectif”65.
Como vimos, a preocupação que motiva Sartre a elaborar as noções de ser do
fenômeno e do fenômeno de ser é a de escapar ao idealismo, ou seja, a de não reduzir a
existência das coisas ao conhecimento que se tem delas. Concomitantemente, para escapar de

61 EN, p. 27.
62 EN, p. 28.
63 EN, p. 28.
64 EN, p. 28. (grifo nosso)
65 BARBARAS, R. Désir et manque dans L’être et le néant: le désir manqué. In: ______ . (Org.) Sartre: désir et

liberté. Paris: PUF, 2005, p. 139.


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um tipo de realismo ingênuo e para manter-se ainda sobre uma via fenomenológica, Sartre
estabelece que o ser do fenômenos, apesar de não vir a existência por causa da consciência
que o revela, é indissociável do fenômeno de ser. A consciência, por outro lado, só existe a
partir desta revelação. Mas isto não significa que ela seja originariamente conhecimento, pois
a relação evidenciada pela “prova ontológica” é uma relação de ser, constitutiva do próprio
modo de ser da consciência e não do seu modo de conhecer. O fenômeno de ser é o sentido do
ser do fenômeno, o qual é revelado e velado ao mesmo tempo. Ele caracteriza a maneira de
ser do ser em-si, que pode ganhar qualificações como passividade e atividade, por exemplo.
É por esta via finalmente que Sartre acredita poder ultrapassar também o realismo, na medida
em que o fenômeno de ser estabelece um “monismo do fenômeno” que comportaria

aussi bien la dimension de l’en-soi que du pour-soi, et s’opposerait à Husserl


(qui l’abîme dans l’immanentisme conscienciel) comme au transcendantisme
(qui en ferait une nouvelle sorte d’objet) : ce monisme suffirait à rappeler que
l’immanence pure sera toujours barrée par la dimension d’en-soi du
phénomène, et la transcendance pure par sa dimension de pour-soi66.

Sartre escaparia assim a um realismo ingênuo estabelecendo que a consciência só


apreende o fenômeno de ser ao mesmo tempo em que ela não pode ser determinada pelo ser
que ela não é: “Nous avons établi en effet […] que l’être du phénomène ne pouvait en aucun
cas agir sur la conscience. Par là, nous avons écarté une conception réaliste des rapports du
phénomène avec la conscience”67. No entanto, não estaríamos de algum modo no quadro do
realismo ingênuo ao considerar que há um ser dos fenômenos que ultrapassa o fenomenal,
mesmo que este só se revele como fenômeno de ser? E por mais que Sartre insista sobre o fato
de que o fenômeno de ser não esconde e nem revela totalmente o seu ser, esta divisão entre
fenômeno de ser e ser do fenômeno não estabeleceria de algum modo uma separação que fere
os princípios mais básicos da fenomenologia e que instaura finalmente um dualismo tão
problemático quando o do para-si e do em-si?

66 DE COOREBYTER, V. Sartre face à la phénoménologie, p. 273.


67 EN, p. 30.
!42

O problema do em-si

No §24 das Ideen, Husserl estabelece o princípio dos princípios da fenomenologia


caracterizando-a como um intuicionismo:

Toute intuition donatrice originaire est une source de droit pour la


connaissance; tout ce qui s’offre à nous dans « l’intuition » de façon
originaire (dans sa réalité corporelle pour ainsi dire) doit être simplement
reçu pour ce qu’il se donne, mais sans non plus outrepasser les limites dans
lesquelles il se donne alors68 .

A intuição da coisa mesma é assim o princípio da fenomenologia e sua especificidade


reside na maneira como a coisa “se dá” a uma intuição que é, ao mesmo tempo, “doadora”.
Via dupla que consiste, segundo Paul Ricœur69, numa impressionante tentativa de resumir
uma filosofia da constituição que seja ainda um intuicionismo. Não se trata assim, afirma
Natalie Depraz, de uma intuição sensível originária passiva e receptiva tal qual Kant definia
na Crítica da razão pura, mas “cela veut dire que l’intuition husserlienne me donne la chose
elle-même, l’atteint et la saisit elle-même, que cette chose soit un objet de la perception ou
une essence. L’intuition est ainsi à l’œuvre dans le cas où la visée intentionnelle d’un objet
atteint effectivement cet objet”70. Com o princípio dos princípios, Husserl estabelece que a
intuição originária é “source de droit pour la connaissance” e que o oferecer da coisa na
intuição é uma apreensão efetiva de seu ser na medida em que o sentido de sua aparição
constitui seu próprio modo de ser. Esta premissa se sustenta exatamente na intencionalidade
da consciência, que faz com que as coisas apareçam “non de manière simplement subjective,
mais bien telles qu’elles sont en elles-mêmes”71. Isto posto, Barbaras destaca em diversos
momentos que a tarefa da fenomenologia é descrita por Husserl na Krisis como sendo
justamente a elucidação do “a priori universal da correlação”, na qual se encontram ligados
de maneira essencial o ente transcendente e seus modos subjetivos de doação72. A correlação
significa que o aparecer é constitutivo do subjetivo e do transcendente, isto é, se o ser

68 HUSSERL, E. Ideen I, p. 78.


69 em nota na p. 78 das Ideen I.
70 70 DEPRAZ, N. La phénoménologie, une méthode en prise sur l’existence. In: HUSSERL, E. La crise de

l’humanité européenne et la philosophie (Krisis). Édition eletronique: la Gaya Scienza, 2012, p. 31.
71 Ibid., p. 9.
72 Barbaras cita o seguinte trecho da Krisis: “tout étant se tient dans une telle corrélation avec les modes de

donnée qui lui appartiennent dans une expérience possible […] et tout étant possède ses modes de validation
ainsi que les modes de synthèses qui lui sont propres”. Apud BARBARAS, R. Désir et manque dans L’être et le
néant. p. 113.
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transcendente fosse concebido como algo fora desta relação com o subjetivo isto implicaria
uma transcendência sem aparecer que seria uma “contradiction phénoménologique” 73.
Resumidamente:

un étant quelconque ne peut être pensé comme tel que par référence à ses
modes de donnée subjectifs, à savoir du point de vue de sa corrélation avec
un sujet, ce qui signifie que l’apparaître est une dimension constitutive de
l’être. De même, l’être du sujet et donc de l’homme, en lequel cette
subjectivité advient, ne peut être pensé comme indépendamment de son
rapport à un étant apparaissant, ce qui revient à dire que la conscience est par
essence portée sur le monde, qu’elle est de part en part rapport à lui74.

A intencionalidade - que consiste no modo de ser do polo subjetivo da correlação -


permite ultrapassar, como reafirma Depraz, a oposição sujeito-objeto como dois polos
exteriores e independentes um do outro. Mencionamos anteriormente que esta impossibilidade
de independência é radicalizada por Sartre na prova ontológica. No entanto, a crítica sartriana
ao idealismo de Husserl se dirige ao fato de que é problemático limitar a correlação entre
noese e noema à imanência subjetiva pós-redução, dado que esta posição não legitimaria a
própria transcendência. Como vimos, essa oposição faz com Sartre elabore a ideia de ser
transfenomenal do fenômeno, que é o ser em-si, a qual pode ser vista como extremamente
problemática em relação aos princípios mais básicos da fenomenologia, de modo a
comprometer sua ontologia de tal maneira que mesmo seu acento no fenômeno de ser não
poderia resolver.
Das análises sobre o fenômeno de ser, o ser do fenômeno e a prova ontológica,
podemos concluir que a consciência depende do ser que ela visa para existir, ainda que ela
não se esgote nas aparições; por outro lado, o ser em-si dos fenômenos não depende da
consciência para existir - é o que Sartre censura ao idealismo - mas ele só pode aparecer
enquanto fenômeno para uma consciência. Assim, Sartre procura manter uma correlação no
nível da fenomenalidade, mas acaba por assumir um ser em-si que de algum modo escapa à
dimensão fenomenal. Esta dissimetria faz com que Sartre recaia em uma concepção
fenomenologicamente ingênua, critica Barbaras, na medida em que ele “pose l’en-soi hors de
sa phénoménalité et postule donc une sorte d’indépendance de l’en-soi vis-à-vis du pour-soi
[…]”75, o que caracteriza uma “soumission à l’attitude naturelle, compromettant gravement la

73 Ibid.
74 BARBARAS, R. La perception, p. 44.
75 BARBARAS, R. Désir et manque dans L’être et le néant, p. 115.
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démarche phénoménologique”76. A crítica de Barbaras se estende, na verdade, até a concepção


do desejo como falta - característica do modo de ser do para-si, conforme veremos mais
adiante -, porém, o que nos interessa agora é justamente a ideia de que há um problema
relacionado não somente à cisão entre para-si e em-si, mas principalmente entre ser do
fenômeno e fenômeno de ser. Isto porque, ao admitir um ser em-si transfenomenal, Sartre
acabar por quebrar a correlação e prejudicar o próprio princípio dos princípios da
fenomenologia:

En parlant d’en-soi, Sartre introduit donc d’emblée, sur un mode finalement


réaliste, une scission, entre l’être et le phénomène. Au lieu de partir de la
phénoménalité comme l’élément au sein duquel le sens d’être du sujet et du
transcendant (en-soi) peuvent être conquis, il reconstitue au contraire la
phénoménalité à partir de la relation entre le pour-soi et un en-soi reposant en
lui-même. En ce sens, il s’agit d’une phénoménologie sans phénomènes77 .

Diante destas constatações fica mais claro porque a concepção do ser em-si tal como
Sartre estabelece, principalmente na “Introdução”, é problemática. Sobretudo se levarmos em
conta o modo positivo, de certo modo “materialista”, que Sartre o descreve: “L’en-soi n’a pas
de secret : il est massif”; “il est pleine positivité”; ele é “rempli de lui-même”78. Mas como
Sartre chega a estas definições e qual o seu objetivo ao delimitar esta região ontológica desta
maneira? Na “Introdução” (VI. O ser em-si), o autor define três características desta região
ontológica que ele denomina de em-si (não necessariamente nesta ordem): 1) O ser é (L’être
est); 2) O ser é em-si (L’être est en-soi); 3) O ser é o que é (L’être est ce qu’il est). Qual o
ponto principal de cada uma delas?

1) O ser é

Esta primeira característica diz respeito a uma das ideias primordiais da filosofia de
Sartre: a contingência da existência. Vimos que a necessidade de postular a
transfenomenalidade do ser em-si faz parte do esforço sartriano, desde seus primeiros
trabalhos, de recusa do idealismo, isto é, de admitir que a existência de algo não possa ser
derivada ou reduzida ao seu conhecimento pelo sujeito. Do mesmo modo, a existência não é

76 Ibid., p. 135.
77 BARBARAS, R. Désir et manque dans L’être et le néant, p. 136.
78 EN, p. 32-33, passim.
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pensada como produto de criação divina, descartando a hipótese do criacionismo. Sendo


assim, aquilo que existe não existe relativamente a uma fonte criadora, seja esta uma
subjetividade transcendental ou divina, seja o próprio ser que cria a si mesmo como causa sui.
O ser existe, ao contrário, como “incriado” (incrée) e por isso a existência não é passiva, isto
é, derivada de uma fonte criadora, o que leva Sartre a afirmar que o em-si não é nem ativo
nem passivo, ele simplesmente é. Na mesma linha de pensamento, o ser não considerado
como necessário e nem derivado de um possível; a existência não possui nenhuma causa, ela
não é necessária e nem tampouco é possível ou impossível, visto que a estrutura temporal das
possibilidades diz respeito à outra região ontológica - para-si - enquanto que o em-si “échappe
à la temporalité” 79. Isto significa que, ao contrário do para-si, a existência bruta não se
temporaliza. Sartre utiliza um termo a seu ver “antropomórfico” para resumir as
características da contingência do em-si: ele é supérfluo (de trop)80. Em suma, se nos
ativermos ao que significa o “é” da formula “o em-si é”, apreenderemos justamente a
condição de contingência da existência81, resumida da seguinte maneira por Sartre: “Incrée,
sans raison d’être, sans rapport aucun avec un autre être, l’être-en-soi est de trop pour
l’éternité” 82.

2) O ser é em-si

O ser é em-si significa que ele não é relação a si, como o ser para-si. Dito isto, a
denominação desta região de ser como “ser em-si” não é apropriada, visto que ela contém o
pronome reflexivo “si” na designação de um modo de ser que, ao contrário do ser para-si, não
possui nenhuma relação a si que normalmente o caracteriza 83. Sartre busca exprimir esta
ausência de relação a si através da ideia de densidade, daí suas metáforas excessivamente
materialistas, conforme citamos acima: “L’en-soi n’a pas de secret : il est massif.”, “[il est]
empâté de soi-même”; “il est pleine positivité”; “rempli de lui-même” 84. Tais metáforas

79 EN, p. 30.
80 Utilizamos a tradução de P. Perdigão na versão em português de L’Être et le Néant (O ser e o nada) para a
expressão “de trop”.
81 Este tema será desenvolvido na “Segunda parte”.
82 EN, p. 33. Veremos mais adiante, quando tratarmos do tema da contingência, que ambos os modos para-si e

em-si compartilham desta condição fundamental de existir sem fundamento, embora o para-si comporte uma
dimensão de fundação de sentidos.
83 Cf. EN, p. 112.
84 EN, p. 32-33, passim.
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podem se mostrar problemáticas no sentido de uma interpretação justamente materialista do


em-si, enquanto que esta região ontológica se estende a modos de ser que nada tem de
material, como comentaremos em seguida. No entanto, é destas metáforas materialistas que
Sartre se serve (com exceção das metáforas de luz e sombra) para dizer que o em-si não é
relação a si, logo, que ele não pode ser caracterizado em termos de imanência. Além disso, ele
não comporta negatividade, uma vez que ele é plena positividade. Por esta mesma razão, o
para-si, enquanto modo de ser que sofre negação, é descrito como um ser que foi
“descomprimido”, isto é, caracterização que se refere à negação em termos de buraco na
densidade material do em-si. A densidade do em-si se relaciona intimamente com a próxima
característica.

3) O ser é o que é

Esta última característica do em-si apresentada na “Introdução” consiste no fato de


que esta região ontológica é aquela do princípio de identidade. Afirmar isto por si só, no
entanto, não nos diz muita coisa, dado que este princípio pode designar concepções muito
diferentes ao longo da história da filosofia e seria quase impossível tentar defini-lo85. Além
disso, o próprio Sartre apresenta uma descrição peculiar do que entende por princípio de
identidade. Ele diz vagamente que não se trata de um princípio de julgamento analítico, mas
sim de um “princípio regional”, sintético, que designa uma região singular do ser 86 e que é a
“loi d’être de l’en-soi”87 . Mais adiante em sua ontologia, Sartre fala do princípio de identidade
como “la négation de toute espèce de relation”88, mas uma negação que não é um julgamento,
e sim uma síntese do em-si consigo mesmo como se a densidade fosse proveniente de uma
“compression infinie”89, tal como um ideal de unificação. Se, como nos lembra Pierre
Guenancia, toda definição de identidade pressupõe a compreensão do que é a identidade entre
duas coisas ou de uma coisa com ela mesma90, o em-si como aquele que é o que é
corresponde a uma “adéquation plénière” a si mesmo, ou seja, o infinito da adequação do em-

85 GUENANCIA, P. “L’identité”. In: KAMBOUCHNER, D. (Org) Notions de philosophie, II. Paris: Gallimard,
2002.
86 Cf. EN, p. 32.
87 EN, p. 243.
88 EN, p. 113.
89 EN, p. 110.
90 GUENANCIA, P. op. cit., p. 563.
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si consigo mesmo acaba por acarretar uma ausência total de relação a si, um “rapport nul”91. É
neste sentido que Sartre caracteriza o em-si em oposição ao modo de ser do para-si, que é
relação a si. Tendo em vista o princípio de identidade, Sartre exprime esta oposição pelas
seguintes fórmulas: enquanto o em-si é o que é , o para-si é o que não é e não é o que é, ou
tem de ser seu ser. Estas fórmulas serão importantes para nossas análises posteriores. Neste
momento gostaríamos de ressaltar apenas que o princípio de identidade diz respeito à região
ontológica que não é consciente de seu próprio ser e por isso não comporta a negação
instaurada pela consciência. É por esta perspectiva que o em-si chega mesmo por vezes a ser
designado como inconsciente 92, como uma região que não seria admitida na esfera para-si,
que deve ser totalmente consciente de si. Esta última caracterização nos remete à observação
de Romano que diz que a definição do em-si é demasiado antropomórfica, sendo o negativo
de noções humanizadas. Como por exemplo quando Sartre afirma que o em-si não possui
nenhuma relação à alteridade, “car il fait comme si toute relation était de cet ordre, de sorte
que si la pierre est dépourvue de ce type de relation, alors elle est dépourvue de toute relation
en général” 93. Assim Romano conclui que, além de censurarmos Sartre de haver feito uma
oposição radical entre para-si e em-si, deve-se censurá-lo por não haver realmente
radicalizado a oposição e

d’avoir abouti ainsi à une ontologie anthropomorphique, et, pour ainsi dire,
“animiste”. On prête à l’En-soi une réflexivité, une conscience, une “relation
à l’autre”, mais pour les retirer aussitôt, on lui accorde d’une main ce qu’on
lui reprend de l’autre, et dans ce tour de passe-passe (pour employer un terme
que Sartre affectionne), on commence par placer ‘En-soi et le Pour-soi sur le
même plan pour affirmer ensuite leur “incommensurabilité” de principe94.

Mais do que esclarecer a região ontológica denominada “ser em-si”, as três


características apresentadas acima revelam uma verdadeira dificuldade que, como vimos,
estava presente ao próprio Sartre na medida em que suas análises da “Introdução” eram
descritas como provisórias, superficiais e incompletas. No entanto, é importante ter em mente
desde já os três pontos essenciais que se destacaram desta primeira descrição: a contingência
da existência (o ser é), a ausência de relação a si (o ser é em-si) e o princípio de identidade (o
ser é o que é). Apesar destes três pontos serem relevantes para compreendermos

91 EN, p. 125.
92 Cf. EN, p. 121; p. 161.
93 ROMANO, C. L’ontologie sartrienne, p. 13.
94 Ibid., p. 16.
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posteriormente os tipos de ser que se apresentam ao longo de L’Être et le Néant, devemos


lidar exatamente com esta dificuldade de compreensão do ser em-si. Não obstante, o modo de
ser para-si também se mostra para além de uma simples definição. A dificuldade e a
ambiguidade na definição dos termos podem ser observadas se percorremos o caminho que se
segue à “Introdução”, o que nos leva a questionar a solidez da pressuposta base dualista.

§3. Os limites do dualismo

Na tentativa de superar o dualismo clássico entre idealismo e realismo, Sartre acaba


por definir os modos de ser em-si e para-si de maneira a instaurar um novo dualismo. Mesmo
que brevemente, as análises introdutórias oferecem a base que servirá às formulações mais
complexas desta ontologia. Enumeramos acima três características do modo de ser em-si.
Estas revelam ao mesmo tempo, e por contraste, o modo de ser para-si: o para-si é relação a
si, é consciente de si e é negação da identidade (veremos posteriormente que ambas as regiões
compartilham a condição de contingência da existência). Uma leitura clássica de L’Être et le
Néant consiste em partir destas definições primeiras para em seguida observar uma variedade
de combinações destes dois termos na definição de outras regiões ontológicas. Por exemplo: o
ser do valor, que é o modo de ser que realizaria uma síntese entre os contrários, é definido
como sendo um modo “para-si-em-si”. Nesta lógica, o verdadeiro dualismo fornece uma
oposição binária permanente (e não mais provisória) que funciona como esquema de base
para as possíveis combinações, neste caso: valor = em-si + para-si. Se tomássemos esta
hipótese como base de investigação da ontologia sartriana, seríamos obrigados a garantir que
tal base fundamental é de fato sólida, dado que todas as demais combinações dela dependem.
Se assim fosse, nós nos encontraríamos ao mesmo tempo em verdadeira aporia, pois nada
mais poderia ser investigado caso se trate de modos que não se enquadram no dualismo
inicial. Diante disto, cabe-nos verificar se esta base dualista inicial de fato condena as análises
posteriores a uma eterna repetição do mesmo em variadas combinações ou - e esta é nossa
hipótese - se podemos começar por questionar se esta base é de fato tão sólida assim, na
medida em que ela se revela como um terreno mais fluido e cambiante do que imaginaria seu
autor. Se assim for, todas as outras combinações tendem a se flexibilizar ou, simplesmente,
elas não correspondem verdadeiramente a ideia de combinação mas a outros modos de ser.
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Dissemos anteriormente que não é por acaso que L’Être et le Néant se inicia e termina
colocando em cena uma dificuldade, pois na medida em que Sartre necessita retomar o tema
do dualismo na “Conclusão”, ele não parece ter sido bem resolvido. É impressionante o fato
do autor terminar sua obra se perguntando ainda: “Qu’y a-t-il de commun, en effet, entre
l’être qui est ce qu’il est et l’être qui est ce qu’il n’est pas et qui n’est pas ce qu’il est?” 95.
Duas respostas são oferecidas a esta pergunta nesta altura do texto: 1) pensar o para-si sem o
em-si seria uma abstração, pois o para-si é um em-si que se nadifica96; 2) A união do para-si e
do em-si só se dá no plano ideal, dado que realmente ela é impossível: “S’il est impossible de
passer de la notion d’être-en-soi à celle d’être-pour-soi et des les réunir en un genre commun,
c’est que le passage de fait de l’un à l’autre et leur réunion ne se peuvent opérer”97. Sendo
assim, enquanto que na primeira resposta Sartre parece indicar um caminho interessante, mas
que talvez permita apenas a atenuar o dualismo98, na segunda ele acaba finamente por
arrematá-lo.
É inegável, portanto, que a problemática do dualismo atravessa L’Être et le Néant, de
modo que é possível compreender, a partir dela, uma série de dificuldades do texto. Nossa
hipótese é a de que estas dificuldades estão presentes na própria maneira de conceber o para-si
e o em-si. Abordamos anteriormente o estranhamento de parte dos comentadores no que diz
respeito à compreensão do modo de ser em-si, assim como a dificuldade do próprio Sartre, na
medida em que ele reforçava o caráter provisório das análises introdutórias, além de
classificar tal percurso como se tratando de uma “mauvaise perspective”99. Em seguida,
mostramos que há uma tendência de interpretar todas as análises do texto a partir deste quadro
inicial, tendência que reforça o dualismo. Para nós, no entanto, ao contrário do que poderia se
apresentar como uma consequência evidente do dualismo inicial, as análises posteriores sobre
os modos de ser que compõem L’Être et le Néant nos parecem muito mais complexas do que
este quadro dual poderia abranger. Isto porque, tendo em vista a dificuldade do próprio Sartre
em superar o dualismo, a chave principal para-si/em-si não dá conta exatamente de explicar
modos de ser que não se enquadram nas definições iniciais, seja porque eles se encontram

95 EN, p. 669.
96 Cf. EN, p. 665; p. 669.
97 EN, p. 671.
98 O que para Derrida resulta justamente no humanismo sartriano ao atribuir a totalidade do Ser ao para-si: “il va

de soi que cette unité métaphysique de l’être, comme totalité de l’en-soi et du pour-soi, c’est précisément l’unité
de la réalité-humaine en son projet”. DERRIDA, J. Les fins de l’homme. In: Marges de la philosophie. Paris:
Minuit, 1972, p. 137.
99 EN, p. 37.
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excluídos da oposição, seja porque os dois termos coexistem em um mesmo modo de ser,
contrariando os princípios da lógica aristotélica. A fim de exemplificar nossa posição, faremos
uma consideração prévia sobre as possíveis ambiguidades que impõem um limite ao
dualismo, sem com isso entrar em detalhes sobre as fórmulas e os exemplos que
apresentaremos neste momento, dado que estes serão aprofundados ao longo do trabalho.

Citamos anteriormente uma passagem em que Badiou faz referência à “versão


sartriana” do par clássico da filosofia moderna “sujeito-objeto”: “la conscience et son objet,
l’idéation et l’idéat, le pôle noétique et le pôle noématique, ou, dans la variante sartrienne, le
pour-soi et l’en-soi”. Esta citação resume e exemplifica a forma mais comum de compreensão
dos modos de ser para-si e em-si, que é justamente a do par consciência - objeto. O próprio
Sartre reforça por diversas vezes esta associação, ainda porque L’Être et le Néant parece dar
prosseguimento aos seus trabalhos anteriores, onde este par mostrava-se predominante: como
em La Transcendance de l’Ego, no texto sobre a intencionalidade, em l’Imagination, etc. Na
“Introdução”, este aspecto é enfatizado na medida em que para-si e em-si são apresentados ao
leitor a partir do paradigma da percepção, através de uma análise do “l’être du percipere”, que
é justamente a consciência pré-reflexiva, e “l’être du percipi”, que corresponde ao ser em-si
dos fenômenos. Ou seja, o modelo de apresentação escolhido - a tal “mauvaise perspective” -
é o da percepção, sendo que nem mesmo no que consistiria este “perceber” de fato é
explicitado nesta parte 100. Sendo assim, o em-si é apresentado incialmente como sendo “l’être
de cette table, de ce paquet de tabac, de la lampe, plus généralement l’être du monde qui est
impliqué par la conscience”101. Mas ser o ser desta mesa, deste maço de cigarros, corresponde
exatamente à mesa, ao maço de cigarros? Tendo em vista a obscuridade das definições, Sartre

100 Somente no terceiro capítulo da segunda parte de L’Être et le Néant, intitulado “A transcendência”, é que
Sartre esclarece o que entende por percepção.
101 EN, p. 29.
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estabelece ainda, de maneira bastante kantiana102, uma distinção entre objeto e ser em-si, de
modo a acrescentar elementos à dificuldade: “L’être est quelque chose que je ne peut saisir
dans son être, sauf comme phénomène a partir de l’objet qui est présenté. L’être est ce qui fait
que l’objet paraît” 103. De fato, em L’Être et le Néant encontramos a definição de objetidade
(objectité) como aquilo que se dá a partir de um tipo de negação denominada negação
interna, que é aquela que faz com que algo apareça como não sendo a consciência104. A
objetidade é, portanto, a maneira do em-si aparecer à consciência através da negação interna:
“C’est la négation interne qui révèle l’en-soi comme indépendant et c’est cette indépendance
qui constitue à l’en-soi son caractère de chose” 105. Porém, em outros momentos, o em-si é
empregado como sinônimo de coisa: “En un mot, le terme-origine de la négation interne, c’est
l’en-soi, la chose qui est là”106. Disto concluímos que ora o em-si é tomado como sinônimo de
coisa, ora ele é o ser da coisa que não se reduz à sua aparição objetiva. Definir o em-si não é
então uma tarefa fácil. O modo de ser em-si é certamente o modo de ser da objetivação de
algo, mas com isso concluir que o em-si é tudo que aparece como um objeto para a
consciência é um reducionismo, pois veremos que nem toda relação entre para-si e em-si é do
tipo sujeito-objeto, logo, o em-si não pode se restringir a este conceito. É o que observamos se
nos atentarmos para a definição sartriana do passado como ser em-si, por exemplo. Neste
caso, se retomarmos as metáforas demasiado materialistas que Sartre utilizava para se referir
ao em-si, como podemos aplicá-las ao passado? Como pode o passado ser definido como um
em-si se ele não consiste evidentemente numa realidade material? Por esta razão e em
oposição às metáforas materialistas, podemos dizer, juntamente com De Coorebyter, que
“l’en-soi ne correspond pas à la sphère ontique de la matière, à laquelle il faudrait opposer

102 Associação que ele busca, entretanto, evitar, na medida em que afirma na “Introdução” que a
transfenomenalidade do ser em-si não implica num mascaramento ou inacessibilidade de seu ser, mas apenas que
o ser não pode ser reduzido ao aparecer, dado que esta posição não supera o idealismo. É o que Jeanson procura
esclarecer quando afirma que “l’ontologie n’est pas un “nouménisme”, que l’en-soi n’est pas quelque fond
substantiel de l’objet, mais seulement le caractère d’être, fermé sur soi, plein de soi, inerte, de tout ce qui
apparaît”. JEANSON, F. Le problème moral et la pensée de Sartre, p. 150. De todo modo, Sartre parece instaurar
um realismo ao pressupor de algum modo uma matéria “bruta”. Quando questionado numa conferência em 1961
se, a seu ver, haveria um mundo antes dos homens e sem homens, ele responde: evidentemente. Obviamente ele
não se atinha ao conceito de “mundo” de L’Être et le Néant (que não é pensado independentemente da
consciência) em sua pronta resposta, mas sim ao fato de que o que existe não é criado pelo homem e nem por
Deus. Para afirmar este ponto, Sartre estabelece então uma diferença entre realidade e objetividade, a primeira
sendo independente da consciência; a segunda sendo uma relação de objetificação do real por uma subjetividade.
QS, p. 164-174. Ao fazer isso, Sartre reforça o argumento dos críticos quanto ao seu realismo ingênuo.
103 CSCS, p. 145.
104 Cf. EN, p. 312.
105 EN, p. 551.
106 EN, p. 212.
!52

quelque forme d’esprit : il s’agit d’un mode d’être fondamental qui échappe à ce dualisme
classique, comme en témoigne le fait que le passé relève de l’en-soi alors qu’il est
l’immatériel par excellence”107. Nota-se assim que tipos diferentes de modos objetivos são
colocados sob esta mesma rubrica em-si. No caso do passado, ele só pode ser objetificado se
tomado como tema de reflexão, enquanto que o passado como estrutura ek-stática do para-si
não pode ser objetificado e nem conhecido, ele apenas assombra (hante) o para-si, como um
“fantasma de em-si”. Assim, poderíamos fazer desde já uma distinção de planos entre o modo
em-si do objeto e o modo em-si espectral do passado, o qual seria um modo já atravessado
pela negatividade e que não se enquadraria mais na “plena positividade” da descrição inicial
de tal tipo de ser. O próprio Sartre parece sentir a dificuldade nas definições quando ele diz ao
mesmo tempo que “le passé que j’étais est ce qu’il est ; c’est un en-soi comme les choses du
monde”108, e que em certo sentido o passado é “à la fois pour-soi et en-soi [il] ressemble à la
valeur ou soi”109. Do mesmo modo, Sartre define normalmente o valor como um “em-si-para-
si” (como comentamos acima), mas por vezes ele atribui o Si ao valor e este ao em-si, como
neste trecho: “Ce que le pour-soi manque, c’est le soi - ou soi-même comme en-soi” 110; “[la
valeur] est comme l’en-soi absent qui hante l’être pour-soi” 111; para em seguida acrescentar:
“ll ne faudrait pas confondre, toutefois, cet en-soi manqué avec celui de la facticité. L’en-soi
de la facticité, dans son échec à se fonder, s’est résorbé en pure présence au monde du pour-
soi. L’en-soi manqué, au contraire, est pure absence”112. Sem entrar nos detalhes que estão em
jogo nesta afirmação, pois iremos explicitá-los ao longo de nosso trabalho, podemos apenas
levantar a questão: há diferença entre modos de ser em-si? Como se dão estas diferenças sob
uma mesma definição? Sartre irá apresentar ainda outros modos de ser que não são
exatamente “em-si”, mas são “sombras em-si”, “nada em-si”, “fantasma de em-si”. Todos
estes pertencem a uma mesma categoria? Eles podem realmente ser compreendidos se
mantivermos um dualismo rígido?
Tomemos agora o modo de ser para-si. O para-si é designado como o modo de ser da
consciência. O que isto significa em termos sartrianos? Que o para-si é um ser em-si que foi

107 DE COOREBYTER, V. Sartre avant la phénoménologie : Autour de « La Nausée » et de la « Légende de la


vérité ». Bruxelles: Ousia, 2005, p. 26.
108 EN, p. 151.
109 EN, p. 154. (grifo nosso).
110 EN, p. 125.
111 EN, p. 130.
112 EN, p. 125.
!53

afetado de negatividade. Como mencionamos anteriormente, Sartre se utiliza de metáforas


materialistas para falar desta nadificação do ser: um ser que sofre descompressão, um buraco
que se abre no ser, como um “verme no fruto”. Este momento dramático do “surgimento do
para-si”, por sua vez, é algo da ordem daquilo que ele chama de “metafísica”, no sentido de
algo que “acontece”, que responde à pergunta: por que há um para-si? Mas a ontologia não se
ocupa deste surgimento porque ela simplesmente descreve este modo de ser “esburacado”.
Sendo assim, o modo de ser do para-si é o de um em-si que se nadifica (veremos esta
nadificação com detalhes em nossa “Segunda parte”) e pensar um para-si fora desta
nadificação do em-si, de fato, como na primeira resposta da “Conclusão” que apontamos
acima, é uma abstração. O para-si é, grosso modo, o termo que designa o “sujeito” sartriano.
Todavia, não é somente para se referir ao “sujeito” que Sartre se utiliza do termo para-si. Este
termo é empregado para falar de toda uma região ontológica do próprio para-si “sujeito”.
Citemos brevemente as estruturas imediatas do “sujeito” para-si: a “presença a si” é uma
estrutura para-si assim como o “possível”, mas a facticidade é o “em-si” que é nadificado e o
valor “em-si-para-si”. Em suma, na descrição do próprio modo de ser do para-si “sujeito”,
Sartre se utiliza de subestruturas que são “para-si” e outras que não o são. Já entrevemos aí
uma primeira complexidade113. Em segundo lugar, as definições do modo de ser para-si valem
para todas as categorias designadas como “para-si”? Isto também não é claro. O que
caracterizaria o para-si? Todas as estruturas imediatas estão implicadas em cada subcategoria
denominada de para-si? Uma das caraterísticas do para-si em oposição ao em-si é a de ser
uma região consciente de si como “presença a si”, o que em termos sartrianos pode ser
também designada pela ideia de translucidez. Sendo o valor um “para-si-em-si”, ele seria
consciente de si e não consciente de si ao mesmo tempo? A saída de Sartre, assim como na
“Conclusão”, é a de dizer que ele é um ideal, logo, uma síntese impossível entre dois
contraditórios. Mas o valor possui uma realidade concreta justamente por ser uma estrutura do
para-si, sem a qual não se pode compreender, no quadro desta ontologia, o sentido do desejo.
Assim, ao invés de dizer que o valor é “para-si-em-si”, melhor seria dizer que este modo de
ser não é nem para-si nem em-si. Tratas-e de uma virtualidade concreta que indica uma

113 Em um dado momento, Sartre chega a identificar “para-si” e “vivência”: “Concrètement, chaque pour-soi
(Erlebnis) particulier manque d’une certaine réalité particulière et concrète dont l’assimilation synthétique le
transformerait en soi”. EN, p. 132.
!54

síntese impossível das duas regiões de modo que desde já vislumbramos uma região que não
se enquadra exatamente no dualismo.
O limite do quadro dualista fica ainda mais evidente se tomarmos como base a região
ontológica “para-outro”. A respeito do “ego-para-outro”, por exemplo, Sartre chega a afirmar
que seu modo de ser não é em-si nem para-si:

Pourtant cette limite hors d’atteinte qu’est mon Moi-objet n’est pas idéale :
c’est un être réel. Cet être n’est point en-soi car il ne s’est pas produit dans la
pure extériorité d’indifférence ; mais il n’est pas non plus pour-soi, car il
n’est pas l’être que j’ai à être en me néantisant. Il est précisément mon être-
pour-autrui, cet être écartelé entre deux négations d’origine opposée et de
sens inverse114 .

Nem em-si, nem para-si, o para-outro ultrapassa o dualismo 115? Entrevemos assim a
complexidade do problema a partir de uma série de ambiguidades que indicam que se nos
ativermos a um dualismo rígido como base da ontologia sartriana, este nos limita na tarefa de
compreendê-la em sua complexidade, na medida em que encontramos em tal ontologia uma
multiplicidade de regiões ontológicas que não se restringem ao dualismo inicialmente
esboçado. Além disso, parece-nos que os termos para-si e em-si são utilizados em contextos
diversos para designar realidades diferentes. Em outras palavras, se nos restringirmos à leitura
clássica dualista, reduziremos toda complexidade dos modos de ser da ontologia sartriana a
combinações de uma mesma base que, como vimos, não é tão segura assim; se, ao contrário,
não nos apoiarmos nesta base inicial como um verdadeiro dualismo rígido, visto que ela
mesma é mal definida e cambiante, torna-se possível realizar outra leitura capaz de apreender
a multiplicidade de modos de ser. Esta outra perspectiva é justamente a hantologie. Porém, em
primeiro lugar, devemos compreender com mais detalhes a crítica que se estabeleceu ao
dualismo sartriano através de sua vertente principal, isto é, devemos nos confrontar com os
problemas levantados por Merleau-Ponty.

114EN, p. 326. (grifo nosso).


115Sartre chega a admitir, em um momento, três modos de ser: “nous nous interrogions, en effet, au début de ce
travail, sur les rapports du pour-soi avec l’en-soi ; mais nous avons appris, à présent, que notre tâche était plus
complexe : il y a relation du pour-soi avec l’en-soi en présence de l’autre. Lorsque nous aurons décrit ce fait
concret, nous serons en mesure de conclure sur les rapports fondamentaux de ces trois modes d’être et nous
pourrons peut-être amorcer une théorie métaphysique de l’être en général”. EN, p. 401. (grifo nosso)
Capítulo II
A crítica de Merleau-Ponty

l’ouvrage de Sartre est désigné comme un poison dont il faut se


garder, plutôt que comme une philosophie à discuter.

Merleau-Ponty, La querelle de l’existentialisme

No cenário das críticas à filosofia sartriana encontramos muitas vezes uma resistência
imediata a tal pensamento, devido em grande medida às posições radicais do próprio Sartre:
sua rejeição do inconsciente, seu clamor excessivo pela liberdade e a consequente a primazia
da escolha, sua dicotomia insuperável entre os modos de ser para-si e em-si. No plano
político, estas posições também foram constantemente atacadas, principalmente por católicos,
escritores, comunistas, anticomunistas e, evidentemente, pela intelligentsia da direita
francesa. Em meio a este grupo heterogêneo, Merleau-Ponty se posicionou ora ao lado, ora
em oposição a Sartre. No plano estritamente filosófico sua contraposição no entanto é mais
constante, de modo que ela funcionou como ferramenta de construção de seu próprio
pensamento. Leitor atento, Merleau-Ponty não aderiu aos ataques imediatos, como sua própria
concepção de temporalidade exigia. Pelo contrário, ele se concentrou na tarefa de uma longa e
ampla discussão com uma filosofia que por vezes parecia se confundir com a sua própria,
embora revelasse ao mesmo tempo uma verdadeira distância. Devido ao fato de suas
argumentações retomarem de tal modo as premissas mais básicas da filosofia de Sartre,
sobretudo as de L’Être et le Néant, estas nos permitem realizar uma releitura minuciosa desta
obra a partir de sua crítica, isto é, diante de suas oposições aos pontos fundamentais da
ontologia sartriana, voltar a esta obra passou a significar um refinamento nas análises, uma
reconsideração dos problemas de modo a enxergar nela não somente os impasses que a
condenam, mas uma verdadeira “philosophie à discuter”. Neste sentido, estamos de acordo
!56

com Jean Bourgault quando ele diz que “lire Sartre à partir des critiques de Merleau-Ponty
permet-il bien souvent de souligner l’originalité et la profondeur de la position sartrienne” 1.
No presente capítulo, realizaremos um breve percurso de apresentação da crítica de
Merleau-Ponty a Sartre. Para tal, destacamos três períodos distintos, levando em conta
acontecimentos históricos e políticos que definem os caminhos dos dois filósofos e as suas
obras principais. Entretanto, nos concentraremos sobretudo na crítica desenvolvida em Le
Visible et l’Invisible por acreditarmos que ela engloba as anteriores e apresenta sua forma
mais bem elaborada.

§1. Merleau-Ponty e Sartre: duas filosofias em três tempos.

A vida e a filosofia de Sartre e Merleau-Ponty se entrecruzam desde o encontro dos


dois normaliens no fim dos anos vinte, quando Sartre intervém numa briga entre Merleau-
Ponty e outros colegas da École Normale Supérieure2. A proximidade entre eles, porém,
aconteceu durante a ocupação da França na Primeira Guerra Mundial, por volta de 1941,
quando Merleau-Ponty entra para o grupo de resistência Socialisme e Liberté, do qual Sartre
participava e cuja duração foi breve. A afinidade intelectual deste período é impressionante,
pois antes mesmo desta aproximação, ambos seguiam caminhos similares nos estudos da
fenomenologia de Husserl, da filosofia de Heidegger e da psicologia, principalmente alemã.
Em 1942, Merleau-Ponty publica La Structure du comportement e Sartre finaliza L’Être et le
Néant, publicado em 1943. Dois anos depois, vem a público a Phénoménologie de la
perception de Merleau-Ponty, obra que atesta ao mesmo tempo uma afinidade de temas entre
os dois e já uma distância de seu autor com relação à ontologia sartriana 3. Este ano coincide
com a libération da França e o fim da guerra, dando início aos debates políticos públicos até
então fadados à clandestinidade. Os dois amigos participam, juntamente com outros

1 BOURGAULT, J. La distance et l’amitié. Sartre, Merleau-Ponty et la question de la réduction


phénoménologique. Cahiers philosophiques, n. 81, p. 93-143, 1999, p. 25.
2 Merleau-Ponty narra o episódio em “Il n’y a pas de bonne façon d’être homme. La rencontre de Sartre et de

Merleau-Ponty”. P.II, p. 235-240.


3 Merleau-Ponty acompanhava desde o início o trabalho de Sartre. No mesmo ano de publicação de

L’Imagination, ele faz um compte rendu para o Journal de psychologie normal et pathologique (vol. 33, n. 9-10,
novembre-décembre 1936, p. 756-761), onde fala positivamente do livro apensar de considerar as críticas a
Bergson muito severas. CONTAT, M.; RYBALKA, M. Les écrits de Sartre. Para uma boa apresentação da
relação de Sartre e Merleau-Ponty, assim como da crítica deste último a ontologia sartriana, ver: CABESTAN, P.
L’être et la conscience: recherches sur la psychologie et l’ontophénoménologie sartriennes. Bruxelles: Ousia,
2004, p. 370-402.
!57

intelectuais, da fundação da revista Les Temps Modernes, Sartre como diretor, Merleau-Ponty
como diretor político e editorialista. No plano político, entretanto, foi Merleau-Ponty o “guia”
no caminho sartriano em direção ao marxismo, principalmente quando este último lê
Humanisme et Terreur4, de Merleau-Ponty. Tais acontecimentos, publicações e orientações
filosóficas marcam o primeiro período da relação entre Sartre e Merleau-Ponty, momento de
verdadeira amizade, intensa troca intelectual e afinidade política, embora cada um delimitasse
seu caminho individual. Sartre resume esta época da seguinte maneira:

Trop individualistes pour mettre en commun nos recherches, nous devînmes


réciproques en restant séparés. Seul, chacun se fût trop aisément persuadé
d’avoir compris l’idée phénoménologique; à deux, nous en incarnions l’un
pour l’autre l’ambiguïté : c’est que chacun saisissait comme une déviation
inattendue de son propre travail le travail étranger, parfois ennemi, qui se
faisait en l’autre. Husserl devenait à la fois notre distance et notre amitié5 .

Este trecho mostra bem a ambiguidade presente na relação entre Sartre e Merleau-
Ponty, duas filosofias que se fazem em sintonia e ao mesmo tempo em oposição. A distância
entre os dois passa a ficar mais acentuada, sobretudo no plano político, a partir de 1950, na
época da Guerra da Coréia. Em 1952, Merleau-Ponty ainda dedica a Sartre o belo texto Le
langage indirecte et le voix du silence6, mas a tensão política aumenta, levando à ruptura em
19537, no mesmo momento em que Merleau-Ponty assume a cadeira de filosofia no Collège
de France. Sartre relata o episódio da ruptura longamente em Merleau-Ponty8, texto

4 Cf. S.IV, p. 215.


5 S.IV, p. 193-4.
6 Publicado em duas partes em Les Temps Modernes, v.7 e 8, n. 80-1, junho-julho de 1952 e republicado em

Signes (S, p. 63-135).


7 Sobre a ruptura de Sartre e Merleau-Ponty ver o texto Merleau-Ponty em SARTRE, J-P, Situations IV (S.IV, p.

189-280). Este texto foi publicado em 1961, após a morte de Merleau-Ponty, no número especial de Les Temps
Modernes intitulado Merleau-Ponty vivant. Neste mesmo número, Jean Hyppolite toma para si a posição de
Merleau-Ponty contra a “filosofia do cogito sartriana”. Cf. CONTAT, M; RYBALKA, M. Les écrits de Sartre, p.
370. Ainda sobre a ruptura e o contexto político internacional no qual esta se situa, ver o excelente artigo de
Marilena Chauí “Filosofia e engajamento: em torno das cartas de ruptura entre Merleau-Ponty e Sartre.”
Disponível em: https://bibliotecadafilo.files.wordpress.com/2013/10/chaui-marilena-filosofia-e-engajamento-em-
torno-das-cartas-de-ruptura-entre-merleau-ponty-e-sartre.pdf. Este artigo, assim como o texto Merleau-Ponty de
Sartre, nos inspirou a pensar a relação de ambos em três tempos distintos. Sobre a ruptura ver ainda a introdução
de François Ewald às cartas de Merleau-Ponty e Sartre em Parcours deux (P.II). Ewald acrescenta ainda outras
referências: “Sur le context, on consultera, Annie Cohen-Solal, Sartre 1905-1980, Gallimard, 1985, p. 447-449;
coll, “Folio essais”, 116, 1991, p. 580-582 et p. 727-729; nouvelle édition, avec un postface inédit, 353, 1999,
même pagination. [édition Gallimard 1985, 447-449] -Michel-Antoine Burnier, “On ne peut pas être sartrien, on
ne peut pas être anti-sartrien”, Les temps modernes, 531-533, octobre-décembre 1990, Témoins de Sartre, vol. 2,
p. 906-950. -Myriam Revault d’Allonnes, “Le doute de Merleau-Ponty”, idem, vol. 1, p. 551-568, - Simone de
Beauvoir, La force des choses , Gallimard, 1963, p. 281-282 et p. 301-313; coll. “Folio”, 2 vol., p. 764-765,
1972, I, p. 357 et II, p. 9-25. E ainda Michel Contat et Michel Ribalka, Les écrits de Sartre, Gallimard, 1970, p.
247-248, p. 264-265 e p. 368-370, [-Denis Bertholet, Sartre, Plon, 2000, p.335,354,363-364,389,411. […]”.
8 S.IV, p. 189-280. (Cf. nota anterior)
!58

publicado após a morte repentina de seu amigo. Resumidamente, esta discordância se deu em
razão de uma defesa quase incondicional da parte Sartre - até então considerado o porta-voz
da esquerda não comunista - do Partido Comunista Francês, logo após a prisão do secretário
Jacques Duclos em uma manifestação contra a vinda do general americano Ridgway,
representante de uma nova forma de guerra que contava com o uso de armas químicas9. Nas
palavras de Sartre, que estava em Roma ao saber da notícia, este fato o levou a uma
verdadeira “conversão” e à necessidade urgente de se posicionar a favor do Partido, o que
resultou na volta à Paris para escrever passionalmente o primeiro dos três artigos intitulados
Les Communistes et la paix 10. Este posicionamento não se deu sem consequências e vem a
resultar na ruptura com Merleau-Ponty, que deixa a redação de Les Temps Modernes. Em um
primeiro momento, foi Claude Lefort que iniciou o debate, publicando na mesma revista o
texto Le Marxisme de Sartre, seguido por Réponse à Claude Lefort da parte de Sartre,
finalizando com De la réponse à la question de Lefort. A acalorada discussão não deixaria
intacto Merleau-Ponty, pois “tous les coups que nous nous portâmes, il les reçut”11 , dizia
Sartre; o que, somado a outras divergências que podem ser entrevistas nas cartas que ambos
trocaram neste ano de 1953, fez com que a conjuntura dos acontecimentos realizasse a
ruptura12. É neste contexto que Merleau-Ponty escreve finalmente o texto em que ataca
frontalmente o pensamento político e filosófico de Sartre: o extenso Sartre et l’ultra-
bolchevisme em Les Aventures de la dialectique, publicado em 1955. A relação entre filosofia
e política é tema da discórdia entre os dois, em razão de uma conferência em que Merleau-
Ponty critica Sartre publicamente, dando início a uma discussão que se prolonga nas cartas em
que Sartre escreve: “que tu [Merleau-Ponty] te retires de la politique (enfin de ce que nous,
intellectuels, appelons politique), que tu préfères te consacrer à tes recherches philosophiques,

9 COHEN-SOLAL, A. Sartre. 1905-1980. Paris: Gallimard, 1955, p. 429.


10 É neste contexto que Sartre escreve sua polêmica frase de que “un anticommuniste est un chien”, comentada
por Alain Badiou no pequeno artigo Tout antisarkozyste est-il un chien ? Le Monde em 24/07/2008. Disponível
em: http://www.lemonde.fr/idees/article/2008/07/24/alain-badiou-tout-antisarkozyste-est-il-un-
chien_1076627_3232.html. Acesso em: Maio de 2015. Segue o trecho em que Sartre pronuncia a frase e
descreve a atmosfera passional de sua “conversão”: “Les journaux italiens m’apprirent l’arrestation de Duclos, le
vol de ses carnets, la farce des pigeons voyageurs. Ces enfantillages sordides me soulevèrent le cœur : il en était
de plus ignobles, mais pas de plus révélateurs. Les derniers liens furent brisés, ma vision fut transformée : un
anticommuniste est un chien, je ne sors pas de là, je n’en sortirai plus jamais. […] Au nom des principes qu’elle
m’avait inculqués, au nom de son humanisme et de ses “humanités”, au nom de la liberte, de l’égalité, de la
fraternité, je vouai à la bourgeoisie une haine qui ne finira qu’avec moi. Quand je revins à Paris, précipitamment,
il fallait que j’écrive ou que j’étouffe. J’écrivis, le jour et la nuit, la première partie des Communistes et la Paix”.
S.IV, p. 248-9.
11 S.IV, p. 257.
12 As três cartas que Sartre e Merleau-Ponty trocaram nesta época foram publicadas em Parcours deux (P.II, p.

129-169).
!59

c’est un acte à la fois légitime et injustifiable”13. Merleau-Ponty não aceita esta dicotomia
entre filosofia e política e por isso elabora uma crítica à posição política de Sartre a partir das
premissas filosóficas de L’Être et le Néant no texto que citamos de Les Aventures de la
dialectique. É Simone de Beauvoir desta vez quem responde, ainda em 1955, aos ataques
filosóficos-políticos merleau-pontyanos em Merleau-Ponty et le pseudo-sartrisme, sobre o
qual falaremos mais adiante. Este texto de alguma forma encerra o debate público e explícito
em torno deste segundo período14.
Por fim, a última fase que destacamos aqui corresponde aos escritos finais de Merleau-
Ponty, logo, anteriores a sua morte em 1961, os quais incluem a crítica derradeira merleau-
pontyana a Sartre em Le Visible et l’Invisible. Embora este período ateste, na opinião de
Sartre, uma sutil reaproximação entre eles: “En publiant nos dissentiments, il semblait que
nous dussions les rendre irrémédiables. Tout au contraire, au moment que l’amitié semblait
morte, elle commença insensiblement de refleurir”15. É neste tom que encontramos, nas
últimas páginas do “Prefácio” de Signes em 1960, uma longa discussão em torno do prefácio
de Sartre a Aden Arabie de Paul Nizan e da relação entre eles, em que Merleau-Ponty
confessa que “ll n’était […] pas facile d’être son ami [de Sartre]”16, mas ao mesmo tempo
recomendando a leitura dos escritos de Sartre17. De todo modo, a distância das posições
filosóficas é nesta época evidente e se deixa notar por uma força explícita de oposição entre
aqueles que compartilharam uma vida, algo que podemos pressentir na expressão do último
encontro, narrado por Sartre: “Je revois son dernier visage nocturne - nous nous quittions, rue
Claude-Bernard - déçu, soudain fermé; il reste en moi, plaie douloureuse, infectée par le
regret, le remords, un peu de rancœur; en elle-même changée, notre amitié s’y résume pour
toujours”18.

13 P.II, p. 134.
14 Em 1956 ocorre um debate público entre os dois filósofos, que se encontravam em Veneza por ocasião de um
colóquio organizado pela Société européenne de Culture. Segundo Contat & Rybalka, a transcrição deste debate
é o único registro textual de uma discussão entre os dois. Para os extratos do texto ver: CONTAT, M.;
RYBALKA, M. Les écrits de Sartre, p. 300-304.
15 S.IV, p. 279.
16 S, p. 45.
17 Cf. S, p. 60.
18 S.IV, p. 286.
!60

Noções gerais da crítica merleau-pontyana nos dois primeiros períodos.

Os três tempos da relação entre Sartre e Merleau-Ponty, cujo contexto viemos de


apresentar brevemente, se caracterizam por sintonias e oposições entre os dois filósofos nos
planos pessoal, político e filosófico. A filosofia de Merleau-Ponty se confronta em todos estes
momentos com a de Sartre, embora de maneiras diferentes, de modo que podemos dizer que,
apesar de afinidades momentâneas e grande proximidade de referências e temas, seu olhar
crítico está presente desde Phénoménologie de la perception e torna-se ainda mais severo com
o passar dos anos. Os três momentos que destacamos podem ser finalmente organizados da
seguinte maneira: 1) Um período de grande amizade e proximidade intelectual e política que
se inicia em torno de 1941 e começa a mudar por volta de 1950; 2) O momento da sucessão
de acontecimentos que levaram a ruptura em 1953, até o encerramento do debate público em
1955; 3) Uma sutil reaproximação que não significava mais uma afinidade de ideias, mas, ao
contrário, que se dava apesar da distância significativa entre as duas filosofias (o que pode ser
constatado no trabalho que Merleau-Ponty realiza em Le Visible et l’Invisible, encerrando o
período de seus últimos escritos com sua morte em 1961). Diante desta breve organização,
apresentaremos em seguida, de maneira geral, alguns pontos da crítica de Merleau-Ponty à
filosofia sartriana nos dois primeiros momentos para finalmente nos debruçarmos mais
profundamente sobre a crítica de Le Visible e l’invisible. Tendo em vista que toda a obra de
Merleau-Ponty de alguma forma dialoga com a de Sartre, seja explicitamente, seja de maneira
indireta, não pretendemos fazer aqui uma exposição completa de suas críticas nos diferentes
períodos, de modo que buscamos somente destacar os temas que nos parecem mais relevantes
para as investigações posteriores de nosso trabalho.

Primeiro período

As duas grandes obras que marcam este primeiro período da relação entre Sartre e
Merleau-Ponty são, sem dúvida, L’Être et le Néant e Phénoménologie de la perception.
Conforme citamos em nota, Merleau-Ponty já acompanhava atentamente o trabalho filosófico
inicial de Sartre, que data de 1936-37, com as publicações de L’Imagination e La
Transcendance de l’Ego. A sua grande obra sobre o estudo da percepção vem a público dois
!61

anos após a ontologia de Sartre, revelando já uma distância em relação a alguns pontos
principais. Desde este primeiro período, Merleau-Ponty faz uma observação que irá perdurar
como ponto de base de sua crítica a Sartre até o fim: no texto La querelle de l’existentialisme,
ainda em 1945, Merleau-Ponty afirmava sobre L’Être et le Néant que “le livre reste trop
exclusivement antithétique : l’antithèse de ma vue sur moi-même et de la vue d’autrui sur
moi, l’antithèse du pour soi et de l’en soi font souvent figure d’alternatives, au lieu d’être
décrites comme le lien vivant de l’un des termes à l’autre et comme leur communication” 19.
No entanto, este texto é, na verdade, uma defesa de Sartre diante das críticas dos católicos
(principalmente Gabriel Marcel), que o acusavam de propor uma filosofia materialista e
também da acusação de idealismo20 por parte de marxistas, como Henri Lefebvre21 . Neste
texto, Merleau-Ponty intercede a favor de Sartre em relação a posições filosóficas que ele
mesmo irá criticar futuramente, fato que pode surpreender o leitor familiarizado com as
argumentações de Le Visible et l’Invisible que se caracterizam por ser uma oposição à
concepção de negatividade da ontologia sartriana, como por exemplo: “L’Être et le Néant
montre d’abord que le sujet est liberté, absence, négativité, et qu’en ce sens le néant est. Mais
cela veut dire aussi que le sujet n’est que néant, qu’il a besoin d’être porté dans l’être, qu’il
n’est pensable que sur le fond du monde, et enfin qu’il se nourrit de l’être comme les ombres,
dans Homère, se nourrissent du sang des vivants”22 ; e ainda: “Dans la philosophie de Sartre,
écrit un autre critique « on a d’abord éteint l’esprit »23. C’est tout le contraire : on l’a mis
partout, parce que nous ne sommes pas esprit et corps, conscience en face du monde, mais
esprit incarné, être-au-monde”24 . Posteriormente, Merleau-Ponty irá repetidas vezes afirmar
que a concepção de liberdade em Sartre é abstrata, pois se trata de uma liberdade
desencarnada e “sem situação”, enquanto que nesta época ele o defende exatamente destas
mesmas acusações: a seu ver, apesar de L’Être et le Néant não fornecer uma “teoria do
social”, “il pose le problème des relations réciproques entre la conscience et le monde social
de la manière la plus vigoureuse en refusant d’admettre une liberté sans situation et en faisant
du sujet, non pas certes un reflet comme le veut l’épiphénoménisme, mais un « reflet-

19 QE, p. 125. (grifo nosso)


20 Cf. CABESTAN, P. L’être et la conscience.
21 Dois grupos contra os quais o próprio Sartre se defende na conferência L’Existentialisme est un humanisme
(EH).
22 QE, p. 126.
23 Merleau-Ponty cita J. Mercier. Le Ver dans le Fruit, Etudes, février 1945, p. 240.
24 QE, p. 129.
!62

refletant » comme le veut le marxisme”25 , embora Merleau-Ponty acrescente que falta a Sartre
uma “teoria da passividade”. A partir desta observação, Merleau-Ponty parece indicar o
caminho que leva o próprio Sartre a escrever quase vinte anos mais tarde o primeiro tomo da
Critique de la Raison dialectique, obra em que o autor procura integrar existencialismo e
marxismo. Neste primeiro período, que é o auge do existencialismo como movimento
filosófico, político e cultural, Merleau-Ponty se encontra, na verdade, muito próximo a Sartre.
Ambos desenvolvem um pensamento da existência como movimento de engajamento no
mundo e ambos procuram reformular o cogito cartesiano reflexivo, retomando um nível de
consciência de si pré-reflexivo, como veremos logo a seguir. “Aucun homme ne peut refuser
le cogito et nier la conscience, sous peine de ne plus savoir ce qu’il dit et de renoncer à tout
énoncé, même matérialiste26”, diz a este respeito Merleau-Ponty, numa frase que poderia ser
assinada por Sartre.
Em 1947, Merleau-Ponty escreve novamente em defesa de seu amigo, contra os
mesmos opositores e mais alguns escritores, no texto Jean-Paul Sartre: un auteur scandaleux.
Desta vez, ele o faz esclarecendo o sentido em que se pode falar de um humanismo a partir da
filosofia sartriana e qual o verdadeiro alcance de sua teoria do outro. A questão da
intersubjetividade é, contudo, um dos pontos de profundo desacordo entre os dois autores,
mas nesta época Merleau-Ponty quer enfatizar que, através da teoria do olhar, Sartre mostra
uma dimensão inalienável de nossa vida, enquanto uma dimensão de nós mesmos. A respeito
das relações intersubjetivas infernais da atmosfera sartriana, colocada em cena pela peça Huis
Clos, Merleau-Ponty esclarece que “« l’enfer, c’est les autres »27 ne veut pas dire: « Le ciel,
c’est moi ». Si les autres sont l’instrument de notre supplice, c’est parce qu’ils sont d’abord
indispensables à notre salut. Nous sommes mêlés à eux de telle façon qu’il nous faut, tant bien
que mal, établir l’ordre dans ce chaos” 28. Além disso, ele prossegue dizendo que Sartre está
longe de pensar um humanismo naturalista ou religioso e que se ele (Sartre) se reclama nesta
época de um humanismo - visto que ele mesmo critica esta ideia em La Nausée - é no sentido
de uma liberdade que “dévore l’homme constitué” 29, que presume, portanto, que o ser
humano está por se fazer.

25 QE, p. 140.
26 QE, p. 138.
27 Em referência à famosa frase proclamada pelo personagem Garcin em Huis Clos.
28 AS, p. 74.
29 AS, p. 79.
!63

A partir da Phénoménologie de la perception podemos vislumbrar os primeiros


indícios da diferença filosófica entre os autores, através de uma interlocução ora implícita, ora
explícita, que faz com que Sartre esteja constantemente presente nas argumentações desta
obra como figura de afinidade e/ou oposição. Como ponto em comum entre as duas filosofias
neste período, podemos destacar o privilégio da consciência pré-reflexiva como abertura pré-
judicativa ao mundo, enquanto que esta mesma implica uma consciência de si que não é
cognitiva, como podemos observar nesta afirmação: “Il faut que l’acte par lequel j’ai
conscience de quelque chose soit appréhendé lui-même dans l’instant où il s’accomplit, sans
quoi il se briserait”30. Como pontos de oposição, destacamos: 1) a crítica à transparência da
consciência 2) a censura aos poderes ilimitados da liberdade, que implica ausência de
passividade e um sujeito criador absoluto 3) a impossibilidade de se pensar a relação com o
outro através de objetificações mútuas pelo olhar. Embora Descartes figure como opositor
principal, a terceira e última parte da Phénoménologie de la perception - “O ser-para-si e o
ser-no-mundo” -, especialmente o capítulo sobre a liberdade, concentra alguns dos pontos que
viemos de mencionar. Vejamos com mais detalhes:
1 - Apesar de defender Sartre contra seus opositores nos textos citados acima, já é
possível observar na Phénoménologie de la perception que a opção sartriana de pensar uma
consciência transparente faz com que Merleau-Ponty coloque em questão o para-si enquanto
modo de ser de uma liberdade em situação ou de uma consciência encarnada: “Si nous
sommes en situation, dit Merleau-Ponty, nous sommes circonvenus, nous ne pouvons pas être
transparents pour nous-mêmes, et il faut que notre contact avec nous-mêmes ne se fasse que
dans l’équivoque”31. Manter a ideia de uma consciência transparente na herança de Husserl e
Descartes resulta em tomar como fundamento esta esfera de percepção interna adequada que
Merleau-Ponty demonstra ser impossível, dado que “toute perception intérieur est
inadéquate”32. Pois, sendo o sujeito temporalidade e ação, ele não pode ser apreendido como
um objeto; o contato com as coisas é sempre primeiro e este contato porta a ambiguidade de
uma existência que não se possui jamais e que ao mesmo tempo não pode ser inteiramente
estrangeira para si mesma. Pensar uma consciência transparente é ser vítima de uma “illusion
retrospective”33, ao depurar a possibilidade de ilusão na esfera consciente e tomar como ponto

30 Php, p. 430.
31 Php, p. 441.
32 Php, p. 443.
33 Php, p. 440.
!64

de partida um resultado de uma operação reflexiva. O pensamento não é coincidência a si, é


ultrapassamento, e “la possession de soi, la coïncidence avec soi n’est pas la définition de la
pensée : elle est au contraire un résultat de l’expression et elle est toujours une illusion, dans
la mesure où la clarté de l’acquis repose sur l’opération foncièrement obscure par laquelle
nous avons éternisé en nous un moment de vie fuyante”34. Para sabermos que pensamos, diz
Merleau-Ponty, é preciso que pensemos efetivamente. É neste sentido que “toute conscience
est conscience perceptive, même la conscience de nous-même”35, e a percepção toma aqui um
sentido radicalmente diferente do sentido clássico do intelectualismo ou do realismo, dado
que ela é uma abertura corporal ao mundo, movimento temporal:

Le mouvement du corps ne peut jouer un rôle dans la perception du monde


que s’il est lui-même une intentionnalité originale, une manière de se
rapporter à l’objet distincte de la connaissance. Il faut que le monde soit
autour de nous, non pas comme un système d’objets dont nous faisons la
synthèse, mais comme un ensemble ouvert des choses vers lesquelles nous
nous projetons.36

Se toda consciência de si pré-reflexiva é consciência perceptiva no sentido deste


movimento corporal intencional original, e a percepção não é mais uma constituição dos
objetos mas uma inerência às coisas, logo a consciência não pode ser transparente a si, pois
ela admite a opacidade de sua inerência mesma. Em oposição ao campo purificado
transcendental que pressupõe “un monde transparent, sans ombres et sans opacité, [qui]
s’étalerait devant un spectateur impartial” 37, há na percepção um paradoxo de imanência e
transcendência. Imanência no sentido de que o percebido é familiar àquele que percebe;
transcendência porque ele sempre ultrapassa aquilo que é atualmente dado, de modo que este
paradoxo é o “verdadeiro transcendental”38 . Assim, a reflexão purificadora que visa à esfera
transparente da consciência seria uma “via curta” para alcançar um resultado livre de toda
opacidade enquanto que a reflexão que passa pelo Lebenswelt não realiza esta passagem
“impunemente”, mas leva consigo esta mesma opacidade da qual a constituição não poderá
nunca se desvencilhar39 . E isto porque “la perception est opaque, elle met en cause, au-

34 Php, p. 449-50.
35 PP, p. 34.
36 Php, p. 447.
37 Php, p. 423.
38 Cf. PP, p. 40-1.
39 MOUTINHO, L.D. Tempo e sujeito. O transcendental e o empírico na fenomenologia de Merleau-Ponty. Dois

pontos. Temporalidade na filosofia contemporânea. v. 1, n. 1, p. 11-57, 2004, p. 12.


!65

dessous de ce que je connais, mes champs sensoriels, mes complicités primitives avec le
monde”40, diz Merleau-Ponty.
2 - Em segundo lugar, Merleau-Ponty reprova a concepção sartriana de uma liberdade
“sans racines”41 e superpotente. Deste pressuposto fundamental derivam os problemas de se
pensar um sujeito como locus de criação absoluta e a consequente negligência da sua
dimensão de passividade, constitutiva da própria atividade. Ao definir a liberdade como
consciência não substancial, Sartre atribui a ela um “pouvoir démesuré d’évasion”42 , o qual
não encontra limites. Deste modo, cai por terra não somente a possibilidade de se pensar a
relação da consciência com o mundo através de relações de causalidade - o que Merleau-
Ponty estaria bem de acordo - mas também as relações de motivação, isto é, não somente a
consciência não pode encontrar nenhuma causa para seu agir como também nenhuma
motivação efetiva, pois mesmo as motivações surgem da liberdade, que é aquilo que lhes dá
força, de maneira que não há nada que “pese” sobre uma decisão 43. Em poucas palavras, a
liberdade não encontra barreiras pois é somente através dela que os obstáculos existem e que
as motivações ganham força. As qualidades que um sujeito livre pode adquirir (por exemplo,
de feio, bonito, doente, etc..) não atingem a liberdade, visto que esta dimensão de objetividade
é sempre para-outrem e, mais uma vez, não limitam a liberdade já que ela não pode ser
determinada de fora e não pode ser atenuada44. Consequentemente, a liberdade é “égale dans
toutes nos actions”45 e todas as dimensões da existência encontram-se sob seu poder, inclusive
os sentidos e os valores. Em outros termos, a liberdade é produção de sentido e de valores
absoluta, revelando-se como “pouvoir universel de Sinngebung [doação de sentido]” 46 ativo,
unilateral e centrífugo. Por não admitir uma esfera de passividade, a liberdade se dá como
atividade pura e criadora, sem limites nem obstáculos. Enquanto Sartre pensa a passividade
como um agir causal das coisas sobre a liberdade - o que aos seus olhos é impossível - para
Merleau-Ponty ela consiste num “investissement, un être en situation, avant lequel nous
n’existons pas, que nous recommençons perpétuellement et qui est constitutif de nous-
même”47. Por não admitir esta dimensão passiva, Sartre recai na abstração do intelectualismo

40 Php, p. 487.
41 Php, p. 520.
42 Php, p. 496.
43 Php, p. 489.
44 Php, p. 498.
45 Php, p. 500.
46 Php, p. 502.
47 Php, p. 490.
!66

ao neglicenciar um “sol de coexistence”48 , isto é, ele abstrai todos os aspectos da situação que,
ao invés de serem considerados como inerência mesma da liberdade ao mundo, são vistos
como produto de uma decisão, de uma escolha fundamental, como se fosse possível, por
exemplo, “faire de la conscience de classe le résultat d’une décision et d’un choix”49. O nível
da fenomenalidade é aquele que não se restringe a alternativa do em-si e do para-si, continua
Merleau-Ponty, mas permite a ambiguidade que abrange os dois termos: “Il est donc bien vrai
qu’il n’y a pas d’obstacles en soi, mais le moi qui les qualifie comme tels n’est pas un sujet
acosmique, il se précède lui-même auprès des choses pour leur donner figure de choses” 50, e
ainda: “Il nous faut remettre en question l’alternative du pour soi et de l’en soi qui rejetait les
« sens » au monde des objets et dégageait la subjectivité comme non-être absolu de toute
inhérence corporelle”51. Esta ambiguidade é temporal e escapa à liberdade compreendida
como poder absoluto de escolha e criação. Tal concepção de liberdade, ao negligenciar a
passividade e o solo de coexistência só pode ser compreendida como “sem raízes” e, portanto,
como criação ex nihilo, o que pressupõe, na verdade, uma temporalidade do instante. Ora, se
cada momento é criação ex nihilo e escolha absoluta, cada momento anterior é desfeito para
surgir o posterior que se dá “sem raízes”. Consequentemente, não importa o fazer da
liberdade, visto que ela é desde sempre garantida, como “notre état de nature” 52, um dom,
uma natureza de não haver nenhuma natureza. Esta liberdade não é engajada, dado que “l’idée
de situation exclut la liberté absolue à l’origine de nos engagements”53, pois se trata de uma
liberdade que “sait bien que l’instant suivant la trouvera, de toutes manières, aussi libre, aussi
peu fixée”54. Para Merleau-Ponty, ao contrário, “il faut donc que chaque instant ne soit pas un
monde fermé, qu’un instant puisse engager les suivants, que, la décision une fois prise et
l’action commencée, je dispose d’un acquis, je profite de mon élan, je sois incliné à
poursuivre, il faut qu’il y ait une pente de l’esprit”55. Isto é possível através do pensamento da
ambiguidade que admite passividade e atividade e não uma exacerbação da atividade pura e a

48 Php, p. 510.
49 Php, p. 510.
50 Php, p. 504.
51 Php, p. 258.
52 Php, p. 500.
53 Php, p. 519.
54 Php, p. 500.
55 Php, p. 500-1.
!67

exclusão da passividade: “Il n’y a donc jamais déterminisme et jamais choix absolu, jamais je
ne suis chose et jamais conscience nue” 56.
3 - O caráter “trop anti-thétique” que Merleau-Ponty identifica em L’Être et le Néant
resulta em consequências maiores para se pensar a intersubjetividade. A divisão sartriana entre
as dimensões para-si e para-outro faz com que todos os atributos positivos do sujeito se
restrinjam a sua esfera de exterioridade, a qual só aparece através da mediação do outro,
radicalizando a divisão mesma entre exterioridade e interioridade. Se este princípio se
sustenta, Merleau-Ponty se pergunta, já nesta época, como é possível então haver experiência
de um alter-ego. Pois, para que haja reconhecimento do outro, esta dimensão para-outro não
pode ser excluída da dimensão para-si, ao contrário, ela deve inerente a esta dimensão de
maneira que não há experiência “pura” de si mesmo. Logo, para Merleau-Ponty, “il faut bien
que mon expérience me donne en quelque manière autrui, puisque, si elle ne le faisait pas, je
ne parlerais pas même de solitude et je ne pourrais pas même déclarer autrui inaccessible” 57.
A subjetividade transcendental não é então “pura”, ela é revelação intersubjetiva de si e do
outro, ela é solo social anterior a qualquer objetivação. Neste ponto a crítica reencontra o
problema da transparência: “L’évidence d’autrui est possible parce que je ne suis pas
transparent pour moi-même et que ma subjectivité traîne après elle son corps”58 . A
experiência do outro, pensada a partir deste solo originário, não pode ser portanto concebida
através de relações de objetivação realizadas pelo olhar, dado que o outro não aparece ao
para-si primordialmente como objeto uma vez que a experiência é corpo perceptivo, cuja
manifestação é um comportamento. Nas palavras de Merleau-Ponty: “si le corps d’autrui n’est
pas un objet pour moi, ni le mien pour lui, s’ils sont des comportements, la position d’autrui
ne me réduit pas à la condition d’objet dans son champ, ma perception d’autrui ne le réduit
pas à la condition d’objet dans mon champ”59 . Apreender o outro como objeto é despi-lo desta
manifestação originária e pré-objetiva ao observar suas ações “comme celles d’un insecte” 60.
A revelação do outro não se restringe à descoberta de minha “transcendência-transcendida”,
como se quer Sartre, “mais qu’il dise un mot, ou seulement qu’il ait un geste d’impatience, et

56 Php, p. 518.
57 Php, p. 417.
58 Php, p. 410.
59 Php, p. 410.
60 Php, p. 419.
!68

déjà il cesse de me transcender : c’est donc là sa voix, ce sont là ses pensées, voilà donc le
domaine que je croyais inaccessible”61.
Outro problema se coloca ainda a respeito da intersubjetividade com relação ao poder
de livre doação de sentido da liberdade. Se a liberdade constitui o mundo, isto é, se ela é pura
atividade de doação de sentidos, o olhar do outro que incide sobre este poder, por ser ele
mesmo fonte de constituição, inaugura uma disputa pela criação de mundo. Este cenário é o
de um sujeito solipsista, dado que cada um é sempre o único consituínte que disputa a redução
do outro a um objeto de seu mundo. Por esta razão, mais uma vez, ao afirmar que “la position
d’autrui ne me réduit pas à la condition d’objet dans son champ, ma perception d’autrui ne le
réduit pas à la condition d’objet dans mon champ”62, Merleau-Ponty se distancia radicalmente
da posição sartriana de “luta de consciências” sobre a natureza da relação com o outro.

Segundo período

Em Sartre et l’ultra-bolchevisme, publicado em 1955 em Les Aventures de la


dialectique, alguns dos pontos anteriores de crítica se aprofundam e ganham dimensão
política, desta vez num ataque frontal e explícito às premissas sartrianas. Este é o texto mais
importante do segundo período e nele encontramos, além dos pontos anteriores como a
transparência da consciência, o poder infinito de uma liberdade sem raízes e a relação com o
outro através do olhar como luta de objetificações, um aprofundamento destes mesmos temas
somado a uma crítica filosófico-política que pode ser resumida da seguinte maneira: 1) o
problema da dicotomia entre homens e coisas e as consequências desta premissa para se
pensar o mundo 2) uma perigosa filosofia da ação “pura” baseada na liberdade radical, cuja
concepção de engajamento subentende uma temporalidade instantaneísta 3) as dificuldades
políticas e filosóficas decorrentes de uma filosofia do cogito 4) a impossibilidade de se pensar
uma dialética 5) a dificuldade de pensar o social. A partir desta nova organização de críticas,
ressaltaremos neste texto os pontos que mais nos interessam, já que toda a disputa política que
ele representa é diretamente ligada, segundo seu autor, à ontologia sartriana63.

61Php, p. 419.
62Php, p. 410.
63Apesar disso, é curioso notar que Merleau-Ponty não cita textualmente L’Être et le Néant em nenhum
momento. Todas as citações que encontramos neste texto são retiradas dos três artigos Les Communistes et la
paix e de Réponse à Lefort, além de uma breve alusão a L’Imaginaire e a La Transcendance de l’Ego.
!69

Conforme vimos anteriormente, Sartre et l’ultra-bolchevisme expõe longamente as


divergências entre os dois autores com relação a uma nova atitude política de Sartre de aliança
com o Partido Comunista. Esta divergência foi colocada a público inicialmente por Merleau-
Ponty em uma conferência em que ele travava um debate entre filosofia e política cuja parte
final era dedicada a Sartre. Na carta que Merleau-Ponty envia a Sartre posteriormente, ele
transcreve a crítica que lhe endereçou na ocasião: a ação política sartriana permanece uma
ação de “desvelamento”, ela não pressupõe mediação como em Marx, mas se limita a duas
ordens, a saber, a da consciência e do fato como “l’événement-chose”. Por esta razão, “elle
met dans une lumière inégalable la crise des rapports entre philosophie et politique qui est
aussi une crise de la philosophie et une crise de la politique”64, dado que ao não admitir uma
mediação entre as duas ordens ela pode resultar em subjetivismo ou objetivismo extremos. A
filosofia de Sartre e sua noção de engajamento exprimem então, politicamente, a situação da
relação entre liberdade e ação ao identificar a liberdade ao fazer de modo circular, isto é,
“d’une absence qui est présence (ont est libre pour s’engager) et d’une présence qui est
absence (on s’engage pour être libre)” 65 e assim não percebe que “la plus grande partie de
l’action se passe dans l’entre-deux entre les événements et les pures pensées, ni dans les
choses ni dans les esprits, mais dans la couche épaisse des actions symboliques qui opèrent
moins par leur efficace que par leur sens” 66. Estas críticas presentes nas cartas são retomadas
em Sartre et l’ultra-bolchevisme, mas desta vez enriquecidas pelo longo debate que se
desenrolou textualmente através da discussão entre Sartre e Lefort e os três artigos Les
Communistes et la paix, como citamos anteriormente.
Os artigos sobre os comunistas representam uma posição de Sartre que Merleau-Ponty
irá classificar de “ultra-bolchevista”, “où le communisme ne se justifie plus par la vérité, la
philosophie de l’histoire et la dialectique, mais par leur négation”67. Para Merleau-Ponty, esta
nova fase de Sartre - de “justification désespérée du communisme”68 - encontra apoio em sua
oposição filosófica entre fato e consciência e, consequentemente, em sua concepção da
temporalidade. As noções de escolha e liberdade, por exemplo, “deviennent conquête et
violence”69 e seu dualismo entre um sujeito puro e um objeto puro é classificado de

64 P.II, p. 164.
65 P.II, p. 161.
66 P.II, p. 163-4.
67 AD, p. 142.
68 AD, p. 143.
69 AD, p. 227.
!70

“terrorista”70. Eis que assim a “filosofia do sujeito” sartriana justifica as ações do PC como
aquelas de um “sujeito puro”: “L’autorité absolue du Parti est la pureté du sujet transcendantal
incorporé de force au monde”71. Deste modo, tal filosofia não opera uma ação efetiva no
campo político - daí a crítica ao seu “engajamento”-, mas resulta numa contemplação das
ações comunistas; ela se limita a ser um pensamento fechado que “n’est pas susceptible de
démenti”72, deixando intactos os princípios da ação pura. Pensar o Partido ou seus militantes
através das premissas da “ação pura” é ainda pensar a liberdade radical “sem raízes” já
criticada na Phénoménologie de la perception, visto que é ela - que até então era poder de
desvelamento - que, embora se pronuncie neste momento sob o signo da práxis, permanece
sendo “le pouvoir magique que nous avons de faire et de nous faire quoi que ce soit”73. A ação
pura, sendo liberdade radical, não comporta nuances (a liberdade é total ou não é), ela “est
donc dans toutes les actions et dans aucune, jamais compromise, jamais perdue, jamais
sauvée, toujours égale à elle-même”74 . Logo, o poder de fazer se equivale ao de não fazer,
dado que antes e depois da escolha ele resta o mesmo - a “distance zéro”75 de seus possíveis -,
de modo que a própria escolha serve somente de atestação a este poder virtual de fazer ou não
e por isso trata-se de uma liberdade de julgamento que não se compromete verdadeiramente e
se limita à contemplação. A filosofia da liberdade radical é, portanto, a filosofia da ação pura.
Merleau-Ponty encontra aqui o elo entre a atual posição política sartriana e suas bases
filosóficas anteriores, no sentido de que “Sartre a toujours pensé que rien ne pouvait être
cause d’un acte de conscience”76. Mesmo se ele admite motivos e características do meio
social como situação do para-si, ele os reúne somente em aparência:

Le paradoxe apparent de son œuvre est qu’elle l’a rendu célèbre en décrivant
un milieu entre la conscience et les choses, pesant comme les choses et
fascinant pour la conscience, - la racine dans La Nausée, le visqueux ou la
situation dans L’Être et le Néant, ici le monde social, - et que pourtant sa
pensée est en rébellion contre ce milieu, n’y trouve qu’une invitation à passer
outre, à recommencer ex nihilo tout ce monde écœurant.77

70 AD, p. 139.
71 AD, p. 199.
72 AD, p. 271.
73 AD, p. 185; Cf. p. 218.
74 AD, p. 264.
75 AD, p. 185.
76 AD, p. 150.
77 AD, p. 192.
!71

Sendo puro desvelamento e criação ex nihilo a ação pura impede a compreensão dos
acontecimentos como algo que se confirma na medida em que se avança, como é o caso do
movimento dialético. “Un action qui soit un dévoilement, un dévoilement qui soit une action,
bref une dialectique, voilà ce que Sartre ne veut pas considérer”78, conclui Merleau-Ponty ao
evidenciar que, para Sartre, a ação se atém a pontos de vista imediatos e isolados. Por esta
razão, a filosofia da ação pura - que representa a noção de engajamento sartriano 79 para
Merleau-Ponty - pressupõe uma temporalidade do instante, no interior da qual os
acontecimentos são compreendidos como experiências de intenções particulares e diante dos
quais é preciso fazer escolhas instantâneas para serem resolvidas em sua urgência. A simpatia
de Sartre com os comunistas se apoia nesta temporalidade de “flashes” 80, ao se justificar pelo
modo de intervenções instantâneas no mundo, o que acaba por coincidir com um fazer teórico
e não realmente com uma práxis característica do movimento dialético. Por isso Merleau-
Ponty conclui que, para Sartre, a dialética “a toujours été une illusion”81. Não há dialética,
além disso, porque nesta filosofia a consciência é “coextensive au monde”82 e não uma
transcendência que admite certa distância das coisas revelando seu grau de opacidade; a
consciência encontra as coisas imediatamente em sua transparência. A crítica à ação pura é
assim, no fundo, uma crítica ao cogito enquanto um aparecer imediato de algo à consciência e
seu aparecer a si mesma. Pensar a dimensão de opacidade é pensar a mediação no sentido de
que “c’est toujours à travers l’épaisseur d’un champ d’existence que se fait ma présentation à
moi-même”83 e é neste sentido que a crítica da transparência da consciência reencontra a
necessidade da mediação e da dialética, impossibilitadas pela ação pura.
Há ainda um aspecto fundamental ligado a esta série de temas, que já havia sido
antecipado também pela Phénoménologie de la perception: trata-se da consciência como
poder centrífugo de significação ou, simplesmente, uma consciência consitutínte. A divisão

78 AD, p. 199.
79 Vale acrescentar que termo de engajamento em Sartre é frequentemente associado à literatura visto que, a
partir em 1945, ele realiza um verdadeiro “manifesto” em torno de sua concepção de “literatura engajada” na
“Présentation de Temps Modernes”: “Je rappelle, en effet, que dans la « littérature engagée », l’engagement ne
doit, en aucun cas, faire oublier la littérature et que notre préoccupation doit être de servir la littérature en lui
infusant un sang nouveau, tout autant que de servir la collectivité en essayant de lui donner la littérature qui lui
convient” S.II, p. 226. Merleau-Ponty dirige suas críticas também para esta concepção (AD, p. 217-221),
fazendo um paralelo com a nova atitude de Sartre frente ao PC: “Hier la littérature était la conscience de la
société révolutionnaire; aujourd’hui c’est le Parti qui joue ce rôle ; dans le deux cas l’histoire, pour tout ce
qu’elle a de vivant, est une histoire de projets”. AD, p. 220-221.
80 AD, p. 268.
81 AD, p.140.
82 AD, p. 274, n. 1.
83 AD, p. 276.
!72

entre consciência e fatos, com base na qual “il n’y a que des hommes et des choses” 84
(retomando a dicotomia entre para-si e em-si) - é, novamente aqui, fundamental. Sendo a
liberdade radical, os fatos refletem somente as significações provenientes de sua criação: “Le
fait, en tant qu’il est, ne porte pas sa signification : elle est d’un autre ordre, elle relève de la
conscience et, justement pour cette raison, ne peut être en toute rigueur ni justifiée ni exclue
par les faits. Nous ne rencontrons donc jamais que des faits investis de conscience”85. A
consciência é então retratada como um “législateur souverain”86 , “le soleil d’où rayonne le
monde, le démiurge des mes purs objets”87, que impõe seu sentido às coisas justamente por
ser sua fonte absoluta; ela fabrica seus motivos, seus obstáculos e mesmo sua “passividade” 88.
Ao reabsorver tudo em sua transparência, a consciência sartriana é uma verdadeira “folie du
cogito”89, que não “laisse aucun recoin inexploré”90 , de modo que sua significação imposta
será necessariamente fechada, já que para admitirmos significações abertas e inacabadas seria
preciso abdicar da ideia de um sujeito que é pura presença a si e aos objetos. Por esta razão,
Merleau-Ponty considera a consciência constituínte em Sartre ainda mais radical que a de
Husserl, na medida em este último ainda concebe algo que já era verdadeiro anteriormente à
práxis de constituição91, no sentido de um movimento iniciado na experiência, enquanto que
em Sartre só há verdade neste fazer absoluto que é “sem raízes”. Como contraponto à esfera
“verdadeira” e certa da consciência hipercartesiana de Sartre, o mundo dos “fatos” é a esfera
do provável de modo que “le contact direct avec la chose même, c’est le rêve”92. Merleau-
Ponty retoma divisão sartriana de L’Imaginaire entre o certo e provável para afirmar que
desde então Sartre não mudou de orientação filosófica ou se mudou foi no sentido de
“attend[re] moins encore du probable”93. Tudo se passa como se o “puro fato” recebesse a
significação escolhida pela consciência soberana de modo que todo este campo significativo

84 AD, p. 278.
85 AD, p. 161.
86 AD, p. 222.
87 AD, p. 277.
88 AD, p. 196.
89 AD, p. 221.
90 AD, p. 276.
91 Para Merleau-Ponty, a diferença entre os dois é “imensa”, ainda mais se levarmos em conta a última etapa do

pensamento husserliano onde este evidencia uma gênese dos sentidos. O autor aproxima ainda Husserl do
pensamento dialético, enquanto que a consciência sartriana “ne retrouve pas dans ce qu’elle constitue un système
de signification déjà présent : elle construit ou crée. […] il y a des hommes et des choses, et rien entre eux que
des scories de la conscience”. AD, p. 193, n.1.
92 AD, p. 249.
93 AD, p. 196.
!73

permanece no âmbito do provável, o qual se torna assim “un autre nom du réel”94 . Como
alternativa ao mundo do “puro fato” “opaque et figée”, Merleau-Ponty busca apresentar,
desde a Phénoménologie de la perception , “un monde épais et qui bouge”95, uma verdadeira
“paysage de la praxis” 96.
A transparência da consciência, ligada à primazia do cogito na filosofia de Sartre,
ratifica finalmente a dicotomia entre consciência e fatos, homens e coisas, pressupondo uma
relação ao mundo onde toda possível mediação recai na ordem da probabilidade, traços
característicos de uma política da ação pura e da liberdade do instante. As consequências
maiores deste sistema para política é decisiva, na medida em que é extremamente
problemático pensar nestas condições uma relação ao outro e a concepção de social. A teoria
do olhar que sustenta o ser-para-outro sartriano, que já era objeto de ressalvas no primeiro
período, neste momento é religada à teoria da “ação pura” e à falta de mediação: “Les
relations entre personnes cessent d’être médiatisées par des choses, elles sont immédiatement
lisibles dans l’accusation d’un regard. L’ « action pure », c’est la réponse de Sartre à ce
regard; comme lui, elle atteint son but à distance”97. Merleau-Ponty evidencia novamente a
relação de uma pluralidade de consciências separadas entre si por um “mur d’être”98 , que se
objetivam imediatamente pelo olhar, numa relação face a face que pressupõe um abismo,
visto que cada consciência visa à morte do outro, pois a teoria do olhar é a teoria da luta. A
“magie du regard” passa a ser então uma resposta à “magie de l’action pure”99 , como ação de
desvelamento imediato que petrifica a consciência em seu lado de fora e, isto posto, qualquer
pensamento do social será interpretado por esta via da rivalidade do tête-à-tête entre duas
criações puras que se disputam entre si. É neste sentido que não há como não pensar em
Sartre ao ler algumas passagens da conferência de Merleau-Ponty sobre Maquiavel em 1949,
como quando ele diz, por exemplo: “Entre le pouvoir et ses sujets, entre le moi et l’autre, il
n’y a pas de terrain où cesse la rivalité. Il faut ou subir la contrainte ou l’exercer”100 . Este
terreno comum que escapa à “lutte originaire”101 - um intermundo - é assim inviabilizado pela
teoria da luta do olhar como paradigma da relação com o outro e, portanto, do social. Nesta

94 AD, p. 164.
95 AD, p. 200.
96 AD, p. 276.
97 AD, p. 214.
98 AD, p. 205.
99 AD, p. 216.
100 S, p. 344.
101 S, p. 349.
!74

filosofia, o social encontra-se sempre diante das consciências e não antes das mesmas; ele é
somente o “résidu inerte et confus de nos actions passées”102 e por isso que ele só pode sofrer
intervenção por uma “ação pura”. Se sua unidade se faz diante das consciências e não antes é
porque estas preservam sua transparência na medida em que conservam a pureza de sua esfera
para-si . “La « socialité » donnée est un scandale pour le je pense”103, exclama Merleau-
Ponty, a ação pura é aquela da “pureza” sem raízes que busca intervir nos “fatos puros”,
impondo sua significação. Esta possibilidade se sustenta na teoria do olhar e em sua
incapacidade de pensar o social visto que as consciências se dão como disputa de
objetivações, cada uma buscando preservar sua transparência. A luta instaura uma dicotomia
entre de um lado um solipsismo e de outro a perda de si, enquanto que para Merleau-Ponty,

ni dans l’histoire privée ni dans l’histoire publique la formule de leurs


rapports n’est le « ou lui, ou moi », l’alternative du solipsisme et de
l’abnégation pure, parce que ces rapports ne sont plus le tête-à-tête de deux
Pour Soi, mais l’engrenage l’une sur l’autre de deux expériences qui, sans
coïncider jamais, relèvent d’un seul monde104.

Pensar o social é pensá-lo na própria experiência do para-si, como sua dimensão de


opacidade e não como um campo de fatos diante da consciência ou como uma luta entre perda
de si ou imposição de sentidos. Este ponto é de fundamental importância para se pensar uma
política marxista, ao passo que a relação frontal entre consciências exclui “ce minimum de
détente que garantit au marxisme sa prétention à la vérité et à la politique historique”105.

Os dois períodos anteriores podem ser considerados agora, retrospectivamente, a partir


de temas principais: a crítica à transparência da consciência sartriana, a liberdade “sem raízes”
e criadora de sentidos, a dicotomia entre para-si e em-si e a relação com o outro pelo olhar
como luta de objetificações que acaba por pressupor um sujeito solipsista. Vimos que estas
críticas se desenvolveram e ganharam uma dimensão política: a liberdade soberana passa a
justificar uma teoria da ação pura e o engajamento “instantâneo” nos “acontecimentos-coisas”

102 AD, p. 139.


103 AD, p. 216.
104 AD, p. 278.
105 AD, p. 219.
!75

através de uma primazia do cogito que reduz o mundo à esfera do provável - acentuando o
poder de constituição do sujeito - e reforçando a dicotomia entre “homens e coisas”; a relação
com o outro impede uma real compreensão do social e do intermundo, da opacidade e da
ambiguidade; a dialética é apenas uma ilusão, o que afasta radicalmente o pensamento
sartriano da filosofia marxista. No entanto, apesar de ser possível demarcar uma linha de
coerência crítica, que irá permanecer atuante no “terceiro período”, as constantes oposições a
Sartre se dão concomitantemente a uma reformulação de Merleau-Ponty de sua própria
filosofia. Podemos dizer que na época da Phénoménologie de la perception a proximidade
entre os dois autores é muito grande, seja pela afinidade dos temas, seja pela intenção de
“reformular” o cogito cartesiano e postular uma primazia da pré-reflexão. Porém, como
desenvolve Barbaras em seu livro De l’être du phénomène : sur l’ontologie de Merleau-
Ponty, o filósofo da percepção irá contestar os dualismos iniciais de sua própria filosofia, -
como, por exemplo, entre reflexão e pré-reflexão - de modo a caminhar em direção a uma
ontologia que não se encontra mais restrita aos moldes da consciência e do cogito. O “terceiro
período” apresenta uma crítica a Sartre a partir desta nova posição filosófica, concentrada no
capítulo Interrogation et dialectique do manuscrito Le Visible et l’Invisible. Esta crítica
retoma os pontos anteriores através de uma nova elaboração - de acordo com a própria
mudança de Merleau-Ponty - a qual consideramos de extrema importância para pensar os
pontos colocados até aqui de modo mais bem acabado. Por esta razão, nos debruçaremos de
forma mais detalhada sobre ela.

§2. A contradição entre ser e nada: Le Visible et l’Invisible.

Les aphorismes d’Héraclite ne perdront leur saveur d’énigmes


que si l’on réussit à retrouver la syntaxe qui rendrait licite
l’union des contraires. A ce prix seulement, le paradoxe sera
neutralisé. Mais l’idée même d’une pareille entreprise est folle,
au regard de la tradition tout entière. Comment parler d’une
synthèse de prédicats qui sont tenus, par définition, pour
incompatibles ? Comment l’« union » de ces prédicats, de
quelque façon qu’on la décrive, cesserait-elle jamais d’être
contradictoire ? Il est impossible de superposer les différents,
d’harmoniser les exclusif ; on en revient toujours là, et toutes les
dialectiques d’Entendement viennent se heurter à cet interdit.

Lebrun, La patience du concept


!76

Um dos últimos textos de Merleau-Ponty - Le Visible et l’Invisible - apresenta sua


crítica à filosofia sartriana de forma bastante elaborada. Apesar da dificuldade de leitura que
pode apresentar um manuscrito, mesmo que este tenha sido bem trabalhado, o segundo
capítulo, Interrogation et dialectique, consiste numa argumentação rigorosa da oposição
merleau-pontyana às noções mais fundamentais de L’Être et le Néant, a saber, justamente as
concepções de ser e de nada. O objetivo de Merleau-Ponty neste texto é o de mostrar que a
filosofia de Sartre não dá conta de compreender nossa experiência de abertura ao mundo
implicada naquilo que ele chama de fé perceptiva (foi perceptive), isto é, ela não esclarece os
problemas que surgem desde que interrogamos esta experiência primordial que é
precisamente “une adhésion qui se sait au-delà des preuves, non nécessaire, tissée
d’incrédulité, à chaque instant menacée par la non-foi”106. Interrogação de uma experiência
original que implica colocar em questão os pressupostos naturalizados:

Nous voyons les choses mêmes, le monde est cela que nous voyons : des
formules de ce genre expriment une foi qui est commune à l’homme naturel
et au philosophe dès qu’il ouvre les yeux, elles renvoient à une assise
profonde d’« opinions » muettes impliquées dans notre vie. Mais cette foi a
ceci d’étrange que, si l’on cherche à l’articuler en thèse ou énoncé, si l’on se
demande ce que c’est que nous, ce que c’est que voir et ce que c’est que
chose ou monde, on entre dans un labyrinthe de difficultés et de
contradictions107 .

Ainda que compartilhem o sentimento de que “il suffit d’ouvrir les yeux et
d’interroger en toute naïveté cette totalité qu’est l’homme-dans-le-monde” 108, para Merleau-
Ponty, Sartre não consegue sair deste labirinto, cujos problemas consistem em compreender o
que significa este nós, esta coisa ou mundo e o que é ver. Apesar de se diferenciar da tentativa
moderna das filosofias do sujeito - que viam na reflexão um porto seguro para o
conhecimento de si e do mundo - o autor de L’Être et le Néant acaba por fracassar em dar
conta da experiência de abertura ao mundo ao propor uma solução que, apesar de oposta
àquela da filosofia reflexiva, resulta, na verdade, em apenas uma inversão do problema que
não somente não o resolve, mas o radicaliza. Podemos dizer que do mesmo modo que
Heidegger considerava, a respeito da máxima sartriana “a existência precede a essência”, que

106 VI, p. 47.


107 VI, p. 17.
108 EN, p. 38.
!77

“le renversement d’une proposition métaphysique reste une proposition métaphysique” 109,
Merleau-Ponty aponta

[qu’en] inversant les positions de la philosophie réflexive, qui mettait tout le


positif au-dedans et traitait le dehors comme simple négatif, en définissant au
contraire l’esprit comme le négatif pur qui ne vit que de son contact avec
l’être extérieur, la philosophie du négatif passe le but : encore une fois, bien
que ce soit maintenant pour des raisons opposées, elle rend impossible cette
ouverture à l’être qui est la foi perceptive110.

Em outros termos, enquanto a filosofia reflexiva suspende a fé perceptiva a fim de


encontrar no sujeito que reflete as regras de acesso ao mundo - fazendo da relação ao mundo
uma crença através da qual necessitamos de razões para acreditar em nossa abertura ao
mundo - a filosofia sartriana e seu primado da negação como acesso pré-reflexivo acaba por
esvaziar o sujeito de tal modo que ela apresenta uma afirmação total da positividade, gesto
que irá impedir a compreensão da relação sujeito-mundo como uma experiência efetiva. Para
Merleau-Ponty, a consequência de ambas as posições é equivalente, dado que, se por um lado
o primado da reflexão indica que “si nous cherchons les raisons, c’est parce que nous
n’arrivons plus à voir, ou parce que d’autres faits, comme l’illusion, nous incitent à récuser
l’évidence perceptive elle-même”111, por outro, a filosofia da pura negatividade - conforme
ele denomina a de Sartre - estabelece do mesmo modo um sujeito apartado do mundo que não
o vê efetivamente mais o sobrevoa, pois se revela como apreensão panorâmica e desencarnada
das coisas posicionadas diante de sua visão. Em suma, ambas as posições são dois lados de
uma mesma moeda, que é aquela de estabelecer um sujeito que não encontra aderência ao
mundo. Posições que transformam “l’ouverture au monde en consentement de soi à soi,
l’institution du monde en idéalité du monde, la foi perceptive en actes ou attitudes d’un sujet
qui n’a pas de part au monde” 112. É neste sentido que R. Barbaras afirma que “ce n’est n’est
qu’en apparence que la philosophie de Sartre fait alternative à la pensée réflexive”113 e que ela
representa ainda sua forma mais radical na medida em que eleva ao máximo a dualidade
consciência-mundo, isto é, a filosofia de Sartre aumenta a distância pressuposta nesta
dualidade ao estabelecer uma relação “frontal” entre nada e ser “sans même la médiation de

109 HEIDEGGER, M. Lettre sur l’humanisme. Paris: Gallimard, 2008, p.85. (trad. A. Préau)
110 VI, p. 120.
111 VI, p. 74.
112 VI, p. 75.
113 BARBARAS, R. De l’être du phénomène. Grenoble : Jérôme Millon, 2001, p. 143.
!78

l’essence”114, como era caso em Husserl. Com relação a este ultimo, aliás, Barbaras aponta
ainda para a herança sartriana das características positivista e idealista de sua fenomenologia.
Positivista no sentido de que o nada, como veremos em seguida, se caracteriza pela
positividade que encontrávamos nas “essências”: “c’est donc parce que le moment de la
phénoménalité est ressaisi contre l’essence, plutôt que contre sa positivité, qu’il est dissous
dans la néantité de la conscience” 115; idealista, no sentido de que ambas resultam num
pensamento de sobrevoo. Assim, tanto a “filosofia da essência”, quanto a “filosofia do
nada” (de Sartre) resultam em situações “simétricas”116, dado que a última restaura ou
reintroduz os problemas da primeira: “Alors qu’avec Husserl la pensée était trop fermée sur
soi pour porter l’effectivité d’un monde, le néant est trop hors de soi pour pouvoir soutenir
l’ouverture à L’Etre. L’unité de la distance et de la proximité est dans les deux cas manquée :
par réduction de la transcendance à l’immanence ; par absorption de l’immanence dans la
transcendance”117. Além disso, em ambas encontramos preservada a dicotomia entre os planos
irreflexivo e reflexivo, variando apenas o primado do segundo na filosofia reflexiva e o
primado do primeiro na filosofia de Sartre. Nenhuma das duas, portanto, supera esta divisão
de planos e consegue pensar a abertura ao mundo tendo em vista uma unidade que não
priorize ou comprometa um dos termos, ou seja, propor uma filosofia capaz “de dépasser cette
dualité abstraite au profit d’un sol où l’irréfléchi pourra apparaître comme un moment de la
réflexion, et celle-ci comme un moment de l’irréfléchi”118, tal como pretende Merleau-Ponty.
A fim de superar os impasses deste e de outros dualismos, Merleau-Ponty interroga a
experiência procurando encontrar uma alternativa para a questão, que a nosso ver pode ser
entrevista nas palavras de Gérard Lebrun, citadas acima: “comment l’“union” de ces
prédicats, de quelque façon qu’on la décrive, cesserait-elle jamais d’être contradictoire?”.
Para guiar seu pensamento, Merleau-Ponty toma como fio condutor precisamente a
problematização da ontologia sartriana da negatividade no intuito de delimitar seu fracasso no
interior do quadro maior, como veremos por fim, da filosofia dialética.
Diante desta breve introdução, podemos já de início identificar a razão pela qual o
fracasso da ontologia sartriana reside em suas bases, a saber, na forma de conceber o ser e o

114 BARBARAS, R. De l’être du phénomène, p. 144.


115 Ibid., p. 145.
116 Ibid., p. 148.
117 Ibid.
118 Ibid. p. 136.
!79

nada, visto que “tout dépend ici de la rigueur avec laquelle on saura penser le négatif ”119,
como afirma Merleau-Ponty. Ao definir de maneira geral a coisa como ser-em-si, que é
descrito como “massif” 120, “plenitude absolue et pleine positivité”121, e o sujeito como ser-
para-si que é o nada, Sartre instaura, de acordo com Merleau-Ponty, uma cisão entre duas
regiões opostas - ser e não ser -, como tal irreconciliáveis. Se por um lado o ser é em-si e não
contém nenhuma negatividade, por outro lado o ser para-si é pura negatividade, puro nada.
Com efeito, desde La Transcendance de l’Ego Sartre realiza a tarefa de “esvaziar” a
consciência ao concebê-la como pura translucidez sem qualquer conteúdo ou zona de
opacidade: nenhuma imagem, nenhuma representação, tampouco um ego que poderia “habita-
la”. O sujeito é pura abertura irrefletida sobre as coisas e “pour que cette ouverture ait lieu,
pour que décidément nous sortions de nos pensées, pour que rien ne s’interpose entre nous et
lui, il faudrait corrélativement vider l’Être-sujet de tous les fantômes dont la philosophie l’a
encombré” 122. Assim, Sartre postula a relação do sujeito no mundo como uma abertura que é
um puro nada em ek-stase sobre o ser e, para possibilitar tal acesso particular, ele purifica a
noção de subjetividade a ponto desta mesma não poder ser caracterizada senão justamente
como o “nada” (rien), o “vazio”, que necessita da plenitude do mundo para existir. Para
expressar tal posição, Sartre parafraseia a definição parmenídica “l’être est et le néant n’est
pas”123, que segundo Merleau-Ponty resulta numa solução fácil que fixa o negativo numa
espécie de essência, fazendo-o recair no positivo. Em outros termos, se o nada não pode
jamais ser incorporado ao ser - que é pura positividade -, se ele é sempre “atrás”, ou subtraído
daquilo que ele desvela ou afirma - “toujours en deçà, que, comme négativité, je suis toujours
en arrière de toutes les choses, retranché d’elles par ma qualité de témoin” 124 -, isso faz com
que o sujeito como nada acabe sendo esta esfera de não aderência ao mundo. A conseqüência
disto é a de que esta esfera de negatividade, que não pode ser “sujeito”, nem “espírito”, nem
“ego”, visto que é puro nada, reintroduz, ali mesmo onde queria expulsar, um “fantasma de
realidade”, algo como uma res cogitans, “très particulière, insaisissable, invisible, mais chose

119 VI, p. 77.


120 EN, p. 32.
121 EN, p. 49.
122 VI, p. 76.
123 Apesar de Sartre utilizar a mesma fórmula de Parmênides, não podemos dizer que ele concebe o nada no

memo sentido que o filósofo grego, pois para este último o nada não pode ser nem pensado, nem dito, visto que
ele não é. Retomaremos este ponto mais adiante.
124 VI, p. 92.
!80

tout de même” 125. Dito isto, Sartre substancializa a subjetividade por excesso de tentativas de
dessubstancializá-la, ao postular um nada hipostasiado que interdita qualquer mistura ao ser e
ao fazê-lo, Sartre cai na armadilha de pensar o negativo radical:

Il y a dans la pensée du négatif un piège : si nous disons qu’il est, nous en


détruisons la négativité, mais si nous maintenons strictement qu’il n’est pas,
nous l’élevons encore à une sorte de positivité, nous lui conférons une sorte
d’être, puisque de part en part et absolument il est rien. Le négatif devient
une sorte de qualité justement parce qu’on le fixe dans son pouvoir de refus
et d’élusion126.

Ora, se o nada pode ser concebido de tal maneira, como uma espécie de essência, de
coisa e finalmente de substância, consequentemente o dualismo que até então se estabelecia
entre ser e nada - como correspondentes a em-si e para-si -, que os postulava como dimensões
totalmente incomunicáveis, é, na verdade, um paralelismo. “C’est l’envers et l’endroit de la
même pensée”127, diz Merleau-Ponty, a partir da qual um termo “se destina”128 ao outro sem
desfazer a separação radical que os coloca face a face: “Parce que radicalement opposés, Etre
et néant ne jouent plus l’un contre l’autre et sont en même temps indiscernables”129. Neste
sentido, Merleau-Ponty demonstra a radicalidade do fato de estarmos aqui “par-delà le
monisme et le dualisme, parce que le dualisme a été poussé si loin que les opposés n’étant
plus en compétition sont en repos l’un contre l’autre, coextensifs l’un à l’autre”130. Os opostos
estão, na realidade, “em repouso” um contra o outro dado que só há a positividade, só há o
em-si que “du fond de sa primauté, tolère d’être reconnu par le Néant” 131, enquanto que cabe
ao para-si, puro nada, apenas constatar e se abster do ser positivo, deslizar em sua superfície.
Se for verdade que só há o positivo e o negativo é apenas o não ser substancializado, que tem
somente o poder de “pousser les choses jusqu’à leur vérité ou leur sens et de les saisir “telles
qu’elles sont”132, a teoria da pura negatividade é um verdadeiro positivismo. Isto porque, em
primeiro lugar, como viemos de dizer, esta teoria admite um paralelismo entre duas
positividades: ser e nada; em segundo lugar, porque se o nada é precisamente e unicamente
apenas desvelamento do ser, este não sofre nenhuma modificação por esse desvelamento, o

125 VI, p. 76.


126 VI, p. 95.
127 VI, p. 77.
128 VI, p. 77; p. 90.
129 BARBARAS R. De l’être du phénomène, p. 139.
130 VI, p. 79-80.
131 VI, p. 126.
132 VI, p. 83.
!81

nada permanece em sua “superfície” sem se introduzir em seu núcleo massivo. É neste sentido
que Merleau-Ponty sublinha a descrição de Sartre em que ele afirma que o desvelamento do
ser pelo nada “n’ajoute rien” ao ser, não o afeta, não o modifica. Se isso procede, estamos
diante de uma fenomenologia aberrante que estabelece que, caso ocorra de uma coisa ser
percebida por alguém, a percepção “n’est pas constitui[ve] de son sens de chose”133; o ser é
apenas desvelado de sua noite, sem ser afetado, sem ser modificado, pois “comme la relation
entre conscience et être n’est pas une relation de constitution, mais seulement de négation,
rien de réel ne peut advenir à l’être : nier l’être ne le modifie en rien” 134. Por outro lado, vimos
que se o para-si é “puro nada”, também ele não sofre modificações já que, sendo pura
negatividade, ele acaba se definindo por ser uma coisa monstruosa cuja substância reside em
não poder ser nada. Disto resulta que nenhum dos dois polos é afetado, transformado,
misturado por este “encontro” entre estrangeiros. Tendo isto em vista, Merleau-Ponty
denominou de negintuição (négintuition) esta negação radical que é o contraponto da intuição
do ser e é esta dupla face do “encontro” que garante ao mesmo tempo a autonomia e a
coextensividade de ambas, isto é, intuir o ser é afirmar sua pura positividade, negar a si
(negintuição) é impossibilitar que o sujeito seja algo, o que faz ele ser esta impossibilidade
mesma.
Compreendidas deste modo, as dicotomias para-si/em-si e nada/ser se caracterizam
por conter uma verdadeira ambivalência que anula toda ambiguidade. Se cada polo se
mantém apartado do outro, eles se estabelecem como contraditórios um do outro e não como
contrários, segundo uma relação de oposição que permitiria a simultaneidade entre os termos
ao invés da exclusão. No artigo “O invisível como negativo do visível: a grandeza negativa
em Merleau-Ponty”, Luiz Damon Moutinho mostra que Merleau-Ponty vai buscar justamente
a ideia de oposição real do Kant pré-crítico de Essai pour introduire en philosophie le
concept de grandeur négative para se opor à divisão de ser e nada como contraditórios, tal
como postula Sartre. Esta chave de leitura é de extrema importância para compreender a
crítica de Merleau-Ponty e o porquê da filosofia sartriana ser aquela “qui met en évidence,
plus qu’aucune autre ne l’a fait, la crise, la difficulté essentielle et la tâche de la
dialectique”135, como veremos mais adiante.

133 VI, p. 76.


134 MOUTINHO, L.D. O invisível como negativo do visível: a grandeza negativa em Merleau-Ponty. Trans/
Form/Ação, v.1, n. 27, p. 7-18, 2004, p. 12.
135 CF, p. 84.
!82

No Essai, Kant recorre ao conceito matemático de grandeza negativa para demonstrar


dois tipos de oposição: a lógica, que opera através de uma contradição entre os termos, e a
real, cuja oposição não implica em contradição, os termos são simplesmente contrários. Da
primeira oposição nenhuma conseqüência é produzida enquanto que da oposição real algo é
produzido, trata-se de uma negação que não é um simples nada mas uma grandeza negativa.
Na matemática, por exemplo, usamos os signos + e - para expressar grandezas em relação: se
o positivo é somado ao positivo, temos uma adição (5 + 3 = 8) ; no entanto, se usarmos os
termos em negativo podemos ter do mesmo modo uma adição (-5 - 3 = - 8), logo, não houve
oposição. Já se colocarmos as grandezas positiva e negativa em relação, há uma oposição que
efetua uma subtração (+ 5 - 3 = 2). Disto se pode tirar duas conclusões: a negação efetiva
produziu algo (mesmo que o resultado seja 0) e os termos ganharam sua função na relação de
oposição, não havendo um “negativo em si” e um “positivo em si”, ou seja, “une grandeur est
négative par rapport à une autre grandeur en tant qu’elle ne peut lui être réunie que par
opposition, c’est-à-dire, en tant que l’une fait disparaître dans l’autre une grandeur égale à
elle-même”136. Por exemplo, prossegue Kant, se um navio parte de Portugal ao Brasil e
contamos como positiva toda a distância percorrida graças ao vento em direção leste e
negativa aquela percorrida via vento direção oeste, podemos estabelecer entre as distâncias
uma oposição real e apreender a rota total através desta diferença. Mas, para que isso ocorra é
necessário que estejamos considerando um mesmo navio, pois no caso da oposição real, “les
contraires sont contemporains, ils appartiennent à un même genre d’être” 137. Se, ao contrário,
estivéssemos pensando em navios diferentes, veríamos com clareza que o vento que
impulsiona pra leste é uma força positiva e o vento que impulsiona para oeste também, mas
desde que estas forças se opõem no que diz respeito ao movimento de um mesmo navio, elas
produzem algo e por esta razão “dans toute opposition réelle les prédicats doivent être tous
deux positifs, mais de manière que dans la liaison les conséquences se suppriment
réciproquement dans le même sujet”138 . A grandeza negativa é, portanto, um produto efetivo
dos termos atuantes que não se excluem mas apenas se opõem, e a negação que se constitui
nesta relação - e por isso mesmo é uma negação relativa - é diferente da negação

136 KANT, E. Essai pour introduire en philosophie le concept de grandeur négative. Paris: Vrin, 1972, p. 23.
(trad. R. Kempf)
137 VERSTRAETEN, P. et al. Sartre/Kant/Hegel. De la contrariété à la contradiction, quelques itinéraires du né-

gatif. In: Hegel aujourd’hui, 1995, p. 142.


138 KANT, E. op. cit., p. 26. (grifo nosso)
!83

compreendida em termos de ausência de algo real. Na primeira, que Kant denomina de


privação (privatio), um estado de repouso seria, por exemplo, o resultado de uma força
neutralizada pela sua oposta: “la destruction de la conséquence d’un principe positif reclame
toujours un principe positif”139; a segunda caracteriza-se como falta (défaut - defectus,
absentia), que é o repouso de um corpo como simples ausência de força motora. Em suma, a
negação produzida pela oposição real, diz G. Lebrun, “entraîne la présence dans l’”Être” - ou,
du moins, dans ce que le dogmatisme prenait pour tel - de suppressions (résultats de conflits)
bien différents des simples négations, puisqu’elles exigent un principe positif et non un simple
‘fondement logique’”140, e por isso “grâce à [la grandeur négative] le Non-être n’est plus
simplement conçu comme l’Autre en général (Anderes überhaupt), mais comme la résultante
d’un conflit entre deux réalités déterminées” 141.
É esta inovação na concepção da negatividade como oposição real que L. Damon
Moutinho, no artigo que citamos, destaca como ponto chave do recurso de Merleau-Ponty em
sua crítica à filosofia da negatividade de Sartre142. Isto porque o autor de L’Être et le Néant
postula o ser e o nada como contraditórios um do outro e não como contrários, interditando
com este gesto qualquer possibilidade de pensá-los em simultaneidade e a partir desta relação.
Dado que Sartre retoma a definição parmenídica “l’être est et le néant n’est pas”, tudo
depende de como ele irá pensar esta diferença e a atenção de Merleau-Ponty está voltada
justamente, como mencionamos, para o rigor da concepção da negatividade. Entretanto, há
aqui uma nuance com relação à retomada da definição de Parmênides, pois neste ponto Sartre
e Kant convergem na medida em que restam fieis a ideia de que só há o positivo no ser, o que
implica na posterioridade do nada em relação ao ser, fazendo deste primeiro relativo ao
segundo143. Sartre concorda ainda com a ideia de Kant de que existem realidades que são uma
espécie de síntese entre o negativo e o positivo, onde a negação é condição de positividade.
Conceitos limitativos que são chamados de negatidades (négatités) no vocabulário sartriano:
“Il existe une quantité infinie de réalités qui ne sont pas seulement objets de jugement, mais
qui sont éprouvées, combattues, redoutées, etc., par l’être humain, et qui sont habitées par la
négation dans leur intrastructure, comme par une condition nécessaire de leur existence. Nous

139 KANT, E. Essai pour introduire en philosophie le concept de grandeur négative, p. 28.
140 LEBRUN, G. Kant et la fin de la métaphysique. Paris: Armand Colin, 1970, p. 194-195.
141 Id. La patience du Concept. Essai sur le Discours hégélien. Paris: Gallimard, 1972, p. 283.
142 Tema que já havia sido introduzido pelo autor em MOUTINHO, L.D. Negação e finitude na fenomenologia

de Sartre. Discurso, n. 33, p. 105-152, 2003.


143 SIMONT, J. Jean-Paul Sartre. Un demi-siècle de liberté. Bruxelles: De Boeck&Larcier, 1998, p. 32-33.
!84

les appellerons des négatités. Kant en avait entrevu la portée lorsqu’il parlait de concepts
limitatifs”144. Todavia, aponta Moutinho, apesar de haver tais aspectos da negação que
aproximam Sartre de Kant - a definição parmenídica e o caráter posicional da negação,
enquanto delimitação de uma realidade finita afetada por negações - Sartre “não vai ao ponto
de reconhecer uma oposição efetiva, de modo que a negação posicional não implica ali uma
relação real”145. Esta ausência comporta consequências significativas uma vez que ela impede
uma oposição efetiva entre ser e nada (de modo que este último “permanece no ar”146), de
maneira que, ao invés de haver conflito entre os opostos, ocorre na verdade uma dissimetria
estabelecida entre um “ser puro” e uma radicalização da negação que é o “nada puro”. Tal
distinção, como vimos, é desfeita pela oposição real kantiana na medida em que neste tipo de
relação não é mais possível se pensar o “negativo em si” e o “positivo em si” (e nisto Lebrun
tem razão de colocar Sartre ao lado dos “dogmáticos”) 147. Uma vez que o ser em-si sartriano é
pura positividade e não admite em si qualquer negatividade, o nada só pode ser seu
contraditório, isto é, ou há ser ou nada e não a simultaneidade entre ambos conforme admite a
oposição real. Mais ainda, cabe à negação um valor abstrato, já que “ela não é mais que a
expressão idealizada da maneira pela qual o objeto aparece a um sujeito”148 , definição que
corresponde à visão de sobrevoo tão ressaltada pela crítica de Merleau-Ponty. Uma negação
que não modifica o ser, incapaz de atingi-lo por dentro - dado que a identidade do ser consigo
mesmo exclui a negatividade, pois é seu contraditório -, de modo que não há

passagem pela alteridade. Essa passagem, essa negação, vem à superfície do


ser pela realidade humana, não por uma dialética própria ao ser; tais relações
são portanto externas, não internas ao ser […] Assim, o ser não “passa” no
nada e o não ser se afirma como seu contraditório: de um lado, o ser
permanece como plena positividade; de outro, o negativo se afirma como
pura negação do ser149.

Vislumbramos assim porque Merleau-Ponty pensa que a posição “dogmática”


sartriana - de pensar o negativo como contraditório do ser - acaba por impedir essencialmente

144 EN, p. 55-6.


145 MOUTINHO, L.D. O invisível como negativo do visível, p. 10; Negação e finitude na fenomenologia de
Sartre, p. 140.
146 Id. Negação e finitude na fenomenologia de Sartre, p. 139.
147 Sobre esta posição de Lebrun, ver o capítulo: “Sartre, dernier dogmatique? ou “un livre de philo sur le néant”

em SIMONT, J. Jean-Paul Sartre.


148 MOUTINHO, L.D. Negação e finitude na fenomenologia de Sartre, p. 140.
149 Id. O invisível como negativo do visível, p. 11.
!85

a tarefa da dialética. Entre o “ser puro” e o “nada puro” não pode haver passagem,
imbricação, o movimento e a transformação que a dialética reclama. Entre o puro ser e o puro
nada só há conciliação “aparente”, “ils ne sont pas vraiment unis”150. Trata-se de uma coesão
“rígida” e “frágil”151 , dado que os dois termos se solicitam, mas somente enquanto opostos
absolutos: “dès que l’un est nié, l’autre est là ; chacun d’eux n’est que l’exclusion de l’autre et
rien n’empêche, en somme, qu’ils n’échangent leurs rôles : seule demeure la coupure entre
eux ; de part et d’autre, tout alternatifs qu’ils soient, ils composent ensemble un seul univers
de pensée, puisque chacun d’eux n’est que son recul devant l’autre”152. Estamos lidando mais
com uma analítica do que com uma dialética, na medida em que o nada não “passa” no ser,
ele é somente atolado (enlisé) no ser 153, o que caracteriza uma relação típica das filosofias da
visão, onde os estrangeiros encontram-se face a face. Na verdade, tratar-se-ia, além disso, de
uma “folie de la vision”154, no sentido de uma visão de sobrevoo, desencarnada, capaz de
apreender o mundo em panorama, encontrá-lo “lá onde ele está”, dominá-lo155. Para Merleau-
Ponty, o problema não é propriamente a visão, mas o fato desta ser associada ao ato de
nadificação da consciência como aquele que transforma a coisa em-si em mundo visto, de
modo que “les parties de ce monde ne coexistent pas sans moi : la table en soi n’a rien à voir
avec le lit à un mètre d’elle, - le monde est vision du monde et ne saurait être autre chose.
L’être est bordé sur toute son étendue d’une vision de l’être qui n’est pas un être, qui est un
non-être”156. Sendo um não ser, o para-si enquanto aquele que vê é aquele que

oublie qu’il a un corps et que ce qu’il voit est toujours sous ce qu’il voit, qui
essaye de forcer le passage vers l’être pur et le néant pur en s’installant dans
la vision pure, qui se fait visionnaire, mais qui est renvoyé à son opacité de
voyant et à la profondeur de l’être. Si nous réussissons à décrire l’accès aux
choses mêmes, ce ne sera qu’à travers cette opacité et cette profondeur, qui
ne cessent jamais : il n’y a pas de chose pleinement observable, pas
d’inspection de la chose qui soit sans lacune et qui soit totale157 .
Contrariamente à filosofia da visão panorâmica, que “ignore en tout cas l’épaisseur, la
profondeur, la pluralité des plans, les arrière-mondes”158, para Merleau-Ponty é necessário sair

150 VI, p. 96.


151 VI, p. 98.
152 VI, p. 103.
153 VI, p. 105; p. 117.
154 VI, p. 104.
155 A este respeito, Barbaras afirma que a filosofia de Sartre é fundada não propriamente no desconhecimento da

experiência, mas sim na restrição de sua teorização a um tipo exclusivo de experiência: a da visão desencarnada,
do face a face do sujeito com o mundo. BARBARAS, R. De l’être du phénomène, p. 149.
156 VI, p. 104.
157 VI, p. 106-7.
158 VI, p. 95.
!86

da ilusão da pura imediaticidade pré-reflexiva enquanto relação frontal e sem mistérios, ao


pensar a experiência concreta justamente a partir daquilo que fora suprimido: a opacidade do
para-si e a profundidade do em-si. É por esta razão que, como citamos acima, Barbaras
evidencia como a filosofia do negativo renova ao invés de ultrapassar as categorias da
filosofia reflexiva que ela acreditava se opor, ao propor uma compreensão da experiência
através de moldes ainda abstratos. A filosofia do negativo, na medida em que pressupõe
negatividade e positividade como excludentes, impossibilita a unidade efetiva dos termos e
com isso uma unidade só pode ser estabelecida num plano lógico, sem movimento ou
transformação reais: “Explicitée au niveau strictement logique, l’ouverture au monde se réduit
à la nécessité abstraite, pour une opposition absolue, de s’accomplir en absolue identité” e
esta identificação dos termos faz com que “toute differénce effective entre eux se trouve
exclue” 159. Em outras palavras, se Sartre mantém as categorias da filosofia reflexiva, ele é
impedido, por esta mesma decisão, de apreender a abertura ao mundo como uma experiência
concreta, efetiva e como movimento de diferenciação, dado que os termos são postos em uma
relação lógica de contrariedade e não em uma oposição real que permite o movimento
dialético. Na verdade, prossegue Barbaras, enquanto que a filosofia reflexiva estabelecia uma
distância intransponível entre sujeito e objeto, a filosofia de Sartre propõe uma relação entre
os termos que apenas esquematiza a dualidade antes vista como antagonista numa
reconciliação que acaba por tornar essa mesma dualidade absoluta, de modo que “alors
qu’auparavant la positivité des termes entraînait une alternance qui, dès lors, était
antagonisme, les termes sont maintenant définis par leur alternance même” 160. Não é à toa que
mais do que situar Sartre num possível realismo ingênuo a partir de sua concepção
antifenomenal do em-si, Merleau-Ponty o enquadra nos moldes do idealismo 161, mais
especificamente, naquele de uma filosofia “essencialista” que, como vimos anteriormente
com Barbaras, acaba por se aproximar do “positivismo husserliano”. Consequentemente, toda
tentativa sartriana de inscrever o para-si no mundo, numa situação, é fadada ao fracasso dada
a abstração de seu ponto de partida e seu idealismo resultante. Daí o mal-estar da filosofia do
negativo, diz Merleau-Ponty, pois “elle décrit notre situation de fait avec plus d’acuité qu’on
ne l’a jamais fait, - et, pourtant, on garde l’impression que cette situation est survolée, et elle

159 BARBARAS, R. De l’être du phénomène, p. 141.


160 Ibid., p. 142.
161 VI, p. 106.
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l’est en effet : plus on décrit l’expérience comme un mélange de l’être et du néant, plus leur
distinction absolue est confirmée, plus la pensée adhère à l’expérience, et plus elle la tient à
distance”162. E por isso a “inversão metafísica” operada por Sartre - de se opor à distância
instaurada pela filosofia reflexiva através do desejo de uma proximidade absoluta do nada no
ser - resulta numa paradoxal conclusão, pois enquanto que “il est vrai tout autant que Sartre se
situe au plus près de l’expérience”, conclui Barbaras, “la vérité n’est pas qu’il part d’un
présupposé dualiste pour reconstruire après coup l’expérience : c’est plutôt sa volonté de
coïncider à cette expérience qui ramène une pensée dualiste”163 .

a) As consequências da filosofia do negativo para a intersubjetividade

A filosofia da negatividade e sua inevitável ambivalência traz ainda mais uma


conseqüência significativa que é a impossibilidade e dar conta da experiência do outro, dado
que a própria concepção de “outro” é problemática. Ainda no referido capítulo de Le Visible et
l’Invisible esta crítica se apresenta como mais um desdobramento do problema de base da
ontologia de Sartre, o qual consiste, como vimos, na concepção do sujeito como puro nada e
do ser em-si como pura positividade. Se a abertura ao mundo é pensada a partir destes
princípios, ela impede, consequentemente, qualquer acesso efetivo à alteridade, porque
partindo da divisão nada/ser como idêntica ao par consciência/mundo, tal relação de sobrevoo
é necessariamente solipsista, ponto que já havia sido mostrado anteriormente. Esta
conseqüência decorre em primeiro lugar do que Merleau-Ponty chama de “poder de
ontogênese” (pouvoir d’ontogenèse) da consciência sartriana, que consiste num poder do
sujeito de dar sentido ao mundo 164. A relação consciência-mundo forma assim uma “sphère
close”165, de maneira que o mundo se desvela numa dimensão “para-si” do sujeito que é “seul
témoin d’ontogenèse”166. Neste sentido, o outro é aquele que aparece como um segundo
testemunho do mundo do para-si, o que quer dizer que “ce sont toujours mes choses que les
autres regardent et le contact qu’ils prennent avec elles ne les incorpore pas à un monde qui

162 VI, p. 118.


163 BARBARAS, R. De l’être du phénomène, p. 151.
164 Ponto já discutido anteriormente, quando falávamos do movimento centrífugo de significação da consciência.
165 VI, p. 84.
166 VI, p. 84.
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soit leur. La perception du monde par les autres ne peut entrer en compétition avec celle que
j’en ai moi-même” 167.
Em segundo lugar, a posição sartriana no que concerne à relação com o outro opera
mais uma vez a radicalização da separação entre ser e nada, só que agora através das
dimensões para-si e para-outro de modo a “assumer et radicaliser la perspective
intellectualiste”168. Isto porque, através da aparição do outro, que se dá ao para-si como um
“encontro”, o puro nada que o sujeito é sofre uma objetificação de seu ser, por via do olhar
“medusante” do outro, que faz aparecer uma dimensão que Sartre denomina de ser-para-
outro. Esta “metamorfose” é descrita por Sartre na maioria das vezes pela experiência da
vergonha, a partir da qual o para-si perde sua soberania ao ser negado pelo olhar do outro e
assim ele passa a ser visto, julgado, medido, da mesma maneira que as outras coisas visíveis
do mundo. Para Merleau-Ponty, esta relação ao outro fornece ao puro nada que é o para-si
uma dimensão de visibilidade, de modo à inscrevê-lo em uma ordem objetiva do mundo.
Assim, cada para-si, em sua relação ao outro, sofre ou opera uma objetificação pelo olhar, de
maneira que ao menos quatro termos estão em jogo: “mon être pour moi, mon être pour
autrui, le pour soi d’autrui et son être pour moi”169. Consequentemente, este tipo de
“camadas” de para-outro, ao invés de caracterizar uma experiência de alteridade, parece ao
contrário barrá-la, na medida em que cada para-si não se relaciona propriamente com o outro
mas somente o seu ser para-outro, como resume Barbaras: “Ainsi la relation à autrui se
confond avec l’expérience du pour-autrui : la conscience n’a jamais affaire à l’autre en
personne, mais seulement à elle même”170 e ainda “si l’accès à autrui se confond avec
l’épreuve de mon être-regardé, il cesse d’être une expérience, faute de révéler quelque chose
dont il soit l’expérience : il revient à la découverte de mon être-pour-autrui, c’est-à-dire d’une
structure de ma conscience”171, de modo que, conclui Merleau-Ponty, “je n’ai pas affaire aux
autres, j’ai affaire tout au plus à un non-moi neutre, à une négation diffuse de mon néant” 172.
Vislumbramos aqui a origem desse estranho solipsismo, que não é mais aquele de um sujeito
isolado do mundo duvidando da existência deste, mas é aquele de um sujeito solitário em um
mundo positivo, onde tudo o que “há” provém do poder de ontogênese da consciência. Se o

167 VI, p. 84.


168 BARBARAS, R. De l’être du phénomène, p. 157.
169 VI, p. 110.
170 BARBARAS, R. op. cit., p. 155.
171 Ibid,, p. 159.
172 VI, p. 99.
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outro aparece, diz Merleau-Ponty, “[il] reste un habitant de mon monde, mais il me rappelle
très impérieusement que l’ipse est un rien”173. O outro constata então que nada pode me
atingir “por dentro”, pois seu olhar “ne fait que prolonger mon intime conviction de n’être
rien, de ne vivre qu’en parasite du monde, d’habiter un corps et une situation”174. Por esta
razão, Merleau-Ponty já em Les Aventures de la dialectique dizia que “il y a chez Sartre une
pluralité de sujets, il n’y a pas d’intersubjectivité” 175. Ora, se cada para-si é poder de
ontogênese de desvelamento do em-si, e se o sujeito é somente negado pelo olhar do outro
mas não verdadeiramente modificado - “comme il n’y a pas de degré dans le néant,
l’intervention d’autrui ne peut rien m’apprendre”176 -, resta que a intersubjetividade é pensada
como relação entre “foyers de négativité”177, que são somente “d’autres moi-même” 178, logo,
através de uma relação abstrata, lógica e essencialista179. Uma conseqüência direta de se
pensar tal isolamento plural entre os sujeitos é exatamente a concepção solipsista do mundo,
na medida em que não há propriamente um intermundo, já que “chacun n’habite que le sien,
ne voit que selon son point de vue” 180. Para aceder a este intermundo, conclui P. Cabestan “il
faudrait que la pensée du négatif abandonne sa conception négativiste du rapport à autrui
selon laquelle ce dernier surgit comme négation de ma négation, c’est-à-dire m’objective et
me réduit à l’être” 181.
Além disso, há ainda um problema quanto ao fato de se pensar esta relação em termos
de olhar (regard), o que se mostra, na verdade, como um acabamento final da filosofia da
visão no plano da experiência intersubjetiva182 . Se o outro é também puro nada e se somente
pressinto sua existência como olhar através de meu ser-visto, acaba que este olhar provém de
um outro abstrato, pois se trata de “un regard venu de nulle part et qui donc m’enveloppe, moi
et ma puissance d’ontogenèse, de toutes parts” 183 de maneira que “je sens seulement l’impact
sur mon corps”184. Este olhar torna-se finalmente equivalente a uma função: aquela de

173 VI, p. 85.


174 VI, p. 88.
175 AD, p. 284.
176 VI, p. 88.
177 VI, p. 85.
178 VI, p. 100.
179 BARBARAS, R. De l’être du phénomène. Pois como afirma Merleau-Ponty: “La pensée du négatif pur ou du

positif pure est donc une pensée en survol, qui opère sur l’essence ou sur la pure négation de l’essence, sur des
termes dont la signification a été fixée et qu’elle tient en sa possession” VI, p. 97.
180 VI, p. 88.
181 CABESTAN, P. L’être et la conscience, p. 383.
182 BARBARAS, R. op.cit.
183 VI, p. 88.
184 VI, p. 100.
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inscrever o puro nada para-si no ser, dar-lhe uma visibilidade corporal, situá-lo nas relações
que fazem com que ele seja reconhecido em sua “humanidade”. Mas essa inscrição já é desde
o início impossibilitada pela filosofia da visão e não pode ser efetivada posteriormente pelo
olhar, pois se ser e nada são contraditórios e se excluem, logo, toda inscrição é abstrata, seja
ela pensada na relação consciência/mundo, seja no plano da intersubjetividade através da
cisão para-si/para-outro. Do mesmo modo que a relação da consciência com o mundo não
modifica ambos os termos, toda objetificação sofrida pelo para-si realiza sua “inscrição”
enquanto para-outro mas não enquanto para-si. Em outros termos, embora Sartre evidencie
que se trata de duas dimensões do próprio para-si - para-si-para-outro - este recurso de nada
adianta contanto que se mantenha aí uma contradição entre as dimensões. Com base nessa
cisão, a “encarnação” provocada pelo olhar do outro não atinge a esfera de pura negatividade
do para-si, pois, como diz Barbaras “le pour-soi s’incarne, mais ce n’est pas en tant que pour-
soi qu’il s’incarne; s’il est capable de passer dans l’extériorité, ce passage n’appartient
cependant pas à l’essence de la présence à soi”, isto é, “en tant que néantisation ou
translucidité, le pour-soi ne peut qu’être étranger à toute extériorité”185. Em suma, a partir da
contradição entre ser e nada, toda maneira de pensar a dimensão de inscrição do para-si no
mundo torna-se problemática, o que inclui principalmente a dimensão corporal do para-si, sua
relação com o outro e seu engajamento em uma situação de maneira geral.
Finalmente, se esta tentativa de pensar o para-si atolado no ser (enlisé dans l’être) se
dá por um olhar abstrato, englobante e de sobrevoo, que atinge o mundo do solus ipse, como
pensar a alteridade justamente como alteridade? Mais especificamente, não somente há aqui o
problema do solipsismo, mas há ainda a questão de como pensar o outro como este outro, em
sua singularidade, e não como outro eu ou não eu 186. Para Merleau-Ponty, “il faut donc que
quelque chose dans le regard d’autrui me le signale comme regard d’autrui, loin que le sens
du regard d’autrui s’épuise dans la brûlure qu’il laisse au point de mon corps qu’il regarde” 187.
Como Sartre permanece restrito à esfera para-outro, ele não pode alcançar este traço de

185 BARBARAS, R. Le corps et la chair dans la troisième partie de L’être et le néant. In: MOUILLIE, J-M.
(Org.) Sartre et la phénoménologie. Fontenay-aux-Roses: ENS Éditions, 2000, p. 281.
186 Em nota, Merleau-Ponty esclarece este ponto: “Le problème d’autrui est toujours posé par les philosophes du

négatif sous forme du problème de l’autre, comme si toute la difficulté était de passer de l’un à l’autre. Cela est
significatif : c’est que l’autre n’y est par un autre, il est le non-moi en général, le juge qui me condamne ou
m’acquitte, et à qui je ne pense pas même à opposer d’autres juges.” VI, p. 111, n. 1.
187 VI, p. 101.
!91

diferenciação. Todos estes problemas resultam na impossibilidade para a filosofia do negativo


de pensar a intersubjetividade, o que Merleau-Ponty resume da seguinte maneira:

Philosophiquement, il n’y a pas d’expérience d’autrui. La rencontre d’autrui


exige pour être pensée aucune transformation de l’idée que je me fais de moi-
même. Elle actualise ce qui était déjà possible à partir de moi. Ce qu’elle
apporte est seulement la force du fait : ce consentement à mon corps et à ma
situation […] de même que « l’être est » n’ajoute rien à « le néant n’est pas »
et que la reconnaissance de l’Être comme plénitude et positivité absolues ne
change rien à la négintuition du néant, de même le regard d’autrui qui me
fige soudain n’ajoute à mon univers aucune nouvelle dimension, il me
confirme seulement une inclusion dans l’être que je savais du dedans;
j’apprends seulement qu’il y a autour de mon univers un dehors en général,
comme j’apprends par la perception que les choses qu’elle éclaire vivaient
avant elle dans la nuit de l’identité. Autrui est une des formes empiriques de
l’enlisement dans l’Être…188 .

b) Dialética e hiperdialética: sobre a possibilidade do movimento.

[d]’un bout à l’autre du livre [L’Être et le Néant], on parle du même


néant et du même être, qu’un unique spectateur est témoin du progrès,
qu’il n’est pas pris lui-même dans le mouvement et que, dans cette
mesure, le mouvement est illusoire.

Merleau-Ponty, Le Visible et l’Invisible.

Como o próprio título indica, o capítulo Interrogation et dialectique traz como


argumentação final a conclusão de que a contradição entre ser e nada na filosofia de Sartre
interdita o pensamento dialético, que é um pensamento do movimento e da transformação. No
plano geral da ontologia sartriana, encontramos, na verdade, uma analítica entre os termos
que não são verdadeiramente unidos, pois apesar de se “chamarem” (ils s’appellent)
mutuamente, eles nunca se confundem, eles se cruzam 189: “À la vérité, quand on passe ici du
néant à l’être et, de là, à l’ek-stase de l’être dans le néant qui le reconnaît « tel qu’il est », il
n’y a pas progrès ni synthèse, il n’y a pas transformation de l’antithèse initiale; on pousse
jusqu’à ses limites l’analyse initiale, qui reste valable à la lettre et qui anime toujours la vue
intégrale de l’Être” 190, diz Merleau-Ponty. É por esta razão que, a seu ver, “pour Sartre la

188 VI, p. 99.


189 VI, p. 94.
190 VI, p. 96.
!92

dialectique a toujours été une illusion”, uma vez que “entre l’être qui est pleine positivité et le
néant qui « n’est pas », il ne saurait y avoir de dialectique”191. Como recurso à analítica do ser
e do nada, Merleau-Ponty se pergunta: “ne pourrions-nous simplement exprimer cela en
disant qu’il faut substituer à l’intuition de l’être et à la négintuition du néant une
dialectique ?”192. Mas em que consiste o pensamento dialético?
No Résumés de cours do Collège de France, Merleau-Ponty enumera três pontos que
unem historicamente as chamadas “filosofias dialéticas” para além de suas diferenças: trata-se
de um pensamento de contraditórios, de um pensamento “subjetivo” e circular. Esta última
característica diz respeito ao movimento da dialética enquanto um eterno recomeço, como
uma experiência do pensamento que mantém uma verdade em ato de modo que não se
separam o passado e o porvir, ou melhor, como um movimento que une ao mesmo tempo
integração e destruição do conteúdo: “la pensée dialectique s’apparaît à elle-même comme
développement, en même temps que comme destruction, de ce qui était avant elle, et de même
ses conclusions garderont en elles-mêmes tout le progrès qui y a conduit. La conclusion n’est
à vrai dire que l’intégration des démarches précédentes”193. Dito isto, é essencial ao
pensamento dialético o fato de que “les étapes passées ne sont pas simplement passées” 194,
que elas sejam sempre integradas e ultrapassadas pelo mesmo movimento, de maneira que
nenhuma conclusão se apresenta como fixa e se estabiliza a título de verdade absoluta,
revelando “un équilibre difficile”195, sempre ameaçado pelos pensamentos positivista ou
negativista. Devido a este tipo de movimento, o pensamento dialético convida a uma revisão
das noções ordinárias de sujeito e objeto, já que não basta torná-las relativas ou dizer que o
objeto é subjetivo ou que o sujeito é objetivo. O pensamento dialético é “subjetivo” no sentido
que Kierkegaard ou Heidegger deram a esta palavra, continua Merleau-Ponty, “elle ne fait pas
reposer l’être sur lui-même, elle le fait apparaître devant quelqu’un, comme réponse à une
interrogation”196.
Por fim, a dialética é um “pensamento de contraditórios”. Mas, ora, não vimos até
então que é justamente a contradição que estabelece o movimento como uma analítica e não
como uma dialética? Como pode a dialética ser um pensamento de contraditórios? Se a

191 CF, p. 84.


192 VI, p. 121.
193 CF, p. 80-1.
194 VI, p. 121.
195 CF, p. 82.
196 CF, p. 80.
!93

contradição é de fato uma característica essencial do pensamento dialético, estaria o próprio


autor em contradição? Ou toda a argumentação apresentada por Moutinho sobre a inspiração
merleau-pontyana na oposição real de Kant como alternativa à contradição em direção ao
pensamento dialético não faria sentido? Ou, por fim, há diferentes maneiras de compreender o
que seria uma contradição e diferentes maneiras de compreender suas conseqüências?
Parece-nos que esta última alternativa é a mais pertinente. Da mesma maneira que
“l’être est et le néant n’est pas” pode ser compreendido de maneiras muito diferentes197 - pois
vimos que para Kant esta fórmula permite uma oposição real e para Sartre ela atesta uma
contradição excludente -, a própria contradição pode ser compreendida de modo distinto do
que fora até aqui exposto. Evidenciar isto significa passar pela crítica de Hegel a Kant e é
Lebrun que levanta a questão e mostra o caminho :

Admettons au contraire [de l’opposition réelle chez Kant] que chacun de ces
termes, en lui-même et pris comme tel, soit de part en part excluant de son
Autre, et seulement cela; on élaborera alors un nouveau type de relation
possible. […] Penser la contradiction, c’est d’abord poser que cette relation,
si intenable qu’elle soit, n’est pas rien et mérite d’être analysée198.

Pensar a contradição de outra maneira - a “inimaginable contradiction”199 - é


questionar as próprias bases kantianas que sustentam a diferença entre oposição real e lógica,
contrários e contraditórios, pois “Hegel ne s’est donc pas dit que deux contradictoires pourrait
bien, après tout, se composer comme se composent une grandeur positive et une grandeur
négative. Il a écarté des présupposés que Kant assumait encore, en décrivant cette
composition”200. Isto porque Kant pressupunha uma ontologia no interior da qual a
contrariedade só pode ocorrer nas relações do Ser, do Positivo, continua Lebrun, em que a
diferença não deixa de ser quantitativa entre duas realidades homogêneas e indiferentes entre
si. Lembramos que no exemplo que estudamos para pensar a oposição real era necessário que
a contrariedade de grandezas percorridas se desse para um mesmo navio e é esta
“communauté minimale”201 que permite a oposição real, mas

197 SIMONT, J. Jean-Paul Sartre, p. 36.


198 LEBRUN, G. La patience du concept, p. 288.
199 Ibid., p. 293.
200 Ibid., p. 289.
201 LEBRUN, G. La patience du concept, p. 285.
!94

faut-il pour autant que chaque opposé ne puisse rencontrer son autre que sur
une base commune qui les rende homogènes? Ce besoin d’une identité sous-
jacente à l’opposition n’est-il pas une condition superflue? Alors qu’il devrait
s’agir de rendre compte de la relation qui constitue les opposés comme tels,
dans leur pureté, on commence par décrire ceux-ci comme deux contenus
qui, avant tout, appartiennent nécessairement à la même positivité. C’est en
raison de cette commune positivité ontologique que les termes “positif” et
“négatif” dans l’opposition réelle ne sont que des stipulations
conventionnelles202.

Para Hegel, ao contrário, deve-se pensar a alteridade dos termos através da passagem
de um no outro, coisa que não era possível na esfera ainda representativa da oposição
kantiana, onde “positivo” e “negativo” não são diferentes: “Quoi d’étonnant? On les avait
taillés dans la même étoffe”203, exclama Lebrun. Se em Kant podemos dizer que cada termo é,
em Hegel não, dizemos que cada um se suprime. Isto significa que não é mais possível pensar
uma copresença, uma simultaneidade dos dois termos, mas somente o movimento onde a
“identité de ces moments, c’est leur altérité”204. Assim, encontramos uma “présentation
vertigineuse de la contradiction”205, que não é mais aquela descrita sobre as bases da
“ontologia” kantiana, mas é pensada como termos da dialética hegeliana.
Tendo em vista esta distinção, devemos compreender que Merleau-Ponty censura
Sartre de pensar ser e nada como contradição no sentido kantiano e não no sentido
hegeliano. O que nos leva a pensar: se Merleau-Ponty se inspira no conceito de oposição real
de Kant contra Sartre, como indica Moutinho, para finalmente concluir que se deve recorrer a
dialética, não há de algum modo um salto neste caminho? Associar a possibilidade de
simultaneidade entre ser e nada como grandeza negativa à contradição hegeliana não seria
passar por cima de toda a crítica de Hegel? Qual a diferença da contradição hegeliana para a
relação de contrários pensada por Merleau-Ponty? A nosso ver, este ponto não é esclarecido

202 Ibid., p. 285-6.


203 Ibid., p. 290.
204 Ibid., p. 297.
205 Ibid., p. 298.
!95

por Moutinho206, nem aventado por Merleau-Ponty e não nos cabe aqui, senão ao preço de nos
desviar de nosso caminho, mergulhar neste problema. O que nos interessa é notar que o
conceito de contradição entre positivo e negativo pode adquirir sentidos diferentes, além do
que, como toda a crítica de Merleau-Ponty se baseia neste mote principal, torna-se relevante
explicitar que ele entende a contradição sartriana em termos kantianos e que, para se opor a
ela, ele de algum modo resgata a contradição hegeliana. Todavia a posição de Merleau-Ponty
não é propriamente hegeliana207, no sentido de que mais do que uma dialética, ele propõe uma
hiperdialética, cujos contornos aparecem em contraste com o que ele denomina de uma
“mauvaise dialectique”. Vejamos.
Em primeiro lugar, quando Merleau-Ponty reivindica a dialética como possibilidade
do movimento, ele a descreve em termos próximos aos hegelianos :

la pensée dialectique est celle qui, soit dans les rapports intérieures à l’être,
soit dans les rapports de l’être avec moi, admet que chaque terme n’est lui-
même qu’en se portant vers le terme opposé, devient ce qu’il est par le
mouvement, que c’est la même chose pour chacun de passer dans l’autre ou
de devenir soi, de sortir de soi ou de rentrer en soi, que le mouvement
centripète et le mouvement centrifuge sont un seul mouvement, parce que
chaque terme est sa propre médiation, l’exigence d’un devenir, et même
d’une autodestruction qui donne l’autre208.

A potência do pensamento dialético reside nesta imbricação entre os termos que


estabelece o contato efetivo entre eles e impede qualquer pensamento de sobrevoo, pois se
trata de um “pensamento de situação” 209. O pensamento dialético “coïncide avec le
mouvement effectif de la manifestation”, nele estamos “près de notre inscription dans
l’Etre”210; ele é um movimento onde cada termo deixa de ser si para tornar-se si mesmo, “se

206 L. Damon Moutinho conclui seu artigo dizendo que toda a alternativa de Merleau-Ponty em pensar o ser e o
nada como visível e invisível “remonta a um tipo de relação bastante distinta daquela pensada por Sartre, em que
ser e nada não se imbricam, não se conjugam; é preciso pensar antes, como Kant o fizera, ‘a simultaneidade da
presença e da ausência’, uma relação real pela qual ser e nada, visível e invisível, tocável e intocável se
imbricam um no outro, pela qual um está em quiasma com o outro, em relação, segundo os termos kantianos, de
‘oposição real’”. MOUTINHO, L.D. O invisível como negativo do visível, p.17-8. O que nos leva a pensar:
como a oposição real pode garantir que os seres se “imbriquem” pela simples simultaneidade da presença e da
ausência? E como isso pode levar Merleau-Ponty a pensar uma dialética “mais radical” que a hegeliana? É
verdade que o autor conclui seu artigo dizendo que o debate com Hegel “é assunto para outro momento” e com
isso vemos que esta questão fugiria ao seu objetivo. Mas, por isso mesmo, nos fica a questão: como duas
realidades positivas que geram uma realidade negativa pensada em simultaneidade pode significar uma
imbricação dos termos?
207 Embora a crítica de Merleau-Ponty a Hegel não seja tão clara, diz Barbaras, “même aux ses propres yeux, elle

restait à clarifier”. BARBARAS, R. De l’être du phénomène, p. 163, n. 1.


208 VI, p. 122.
209 VI, p. 124.
210 BARBARAS, R. op.cit., p. 161.
!96

brise, s’ouvre, se nie, pour se réaliser”211, logo, é um movimento que clama pela mediação.
Esta ainda no sentido de que a imbricação dos termos que ela impõe não se dá como oposição,
como exclusão, mas a efetividade do movimento realizada pela mediação ocorre como
diferença: “Aussi, plutôt que dans la négation, est-ce dans la notion de différence que se tient
la vérité de la dialectique. Cette différence est non-identité plutôt qu’opposition”212, porque,
conclui Merleau-Ponty “en l’absence de toute différence, il n’y aurait pas médiation,
mouvement, transformation, on resterait en pleine positivité”213. O trabalho do negativo, diz
Merleau-Ponty no Résumé de cours do Collège de France, implica uma negação que não
exclui o positivo, mas que o reconstrói para além de suas limitações, ele “le détruit et le
sauve”214. “Il n’y a dialectique que dans ce type d’être où se fait la jonction des sujets et qui
n’est pas seulement un spectacle que chacun d’eux se donne pour son propre compte, mais
leur commune résidence, le lieu de leur échange et de leur réciproque insertion”, resume
Merleau-Ponty em Les Aventures de la dialectique215.
No entanto, o movimento dialético pode ser levado ao termo de uma “mauvaise
dialectique” no momento em que, como diz Barbaras, ele “s’érige en philosophie”216, ou seja,
quando ocorre que aquele movimento de “eterno recomeço”, de “genèse perpétuelle”217 se
fixa em uma posição final, “impose une loi et un cadre extérieurs au contenu”218 . Assim, a
“mauvaise dialectique” pressupõe uma volta ao positivo e destrói o próprio movimento de
inacabamento, de modo que ela “est celle qui croit recomposer l’être par une pensée thétique,
par un assemblage d’énoncés, par thèse, antithèse et synthèse”219, sublinha Merleau-Ponty.
Em contraposição à “mauvaise dialectique”, o autor propõe uma dialética que critica a si
mesma, que presume que toda tese é idealização e que não podemos jamais recair no positivo,
uma dialética sem síntese que ele denomina de hiperdialética. Enquanto a filosofia dialética
“impose une loi au contenu au lieu de saisir le mouvement du contenu comme sa propre
loi”220, a hiperdialética de Merleau-Ponty recusa-se a tematiza-la e se dispõe a acompanhar
seu movimento enquanto situação do pensamento e não posição de um todo: “c’est une

211 VI, p. 124.


212 BARBARAS, R. De l’être du phénomène, p. 162.
213 VI, p. 124.
214 CF, p. 79.
215 AD, p. 282.
216 BARBARAS, R. op.cit., p. 161.
217 Ibid., p. 282.
218 VI, p. 126.
219 VI, p. 127.
220 BARBARAS, R. op.cit., p. 163.
!97

pensée qui ne se constitue pas le tout, mais qui y est située”221. No interior desta proposta,
segue-se que a negação não pode mais ser aquela da filosofia da negatividade pura, pois “ce
que nous excluons de la dialectique, c’est l’idée du négatif pur, ce que nous cherchons, c’est
une définition dialectique de l’être, qui ne peut être ni l’être pour soi, ni l’être en soi”222. Em
suma, a possibilidade de pensar o movimento como hiperdialética é uma alternativa à cisão
sartriana entre para-si e em-si, nada e ser, assim como aos impasses da filosofia dialética em
geral. Merleau-Ponty reivindica mesmo os princípios básicos do movimento dialético contra a
posição sartriana, visto que esta ultima anula a possibilidade de pensar o movimento que uma
dialética de forma geral exige. E isto porque, a seu ver, a dicotomia ser/nada típica de uma
filosofia intuitiva - puro nada em ek-stase nas coisas - é pensada pelo paradigma da
temporalidade do instante, da visão de sobrevoo que tudo vê:

À la philosophie dialectique, à la vérité qui transparaît derrière les choix


inconciliables, il [Sartre] oppose l’exigence d’une philosophie intuitive qui
voudrait voir immédiatement et simultanément toutes les significations. Il n’y
a plus de renvoi réglé d’une perspective à une autre, d’achèvement d’autrui
en moi et de moi en autrui, car cela n’est possible que par le temps et une
philosophie intuitive pose tout dans l’instant223 .

Diante de todos estes problemas, Merleau-Ponty recorre à dialética - radicalizando-a


numa hiperdialética, como vimos, - para escapar ao ismos da filosofia sartriana:
instantaneísmo, essencialismo, paralelismo e positivismo/negativismo. A partir do novo
quadro desenhado por esta alternativa, o “positivo” e o “negativo” devem ser repensados. Não
sendo mais um “positivo em si” ou um “negativo em si”, ambos dados em sua “pureza”, estes
passam a ser compreendidos por Merleau-Ponty através de uma dialética entre visível e
invisível. “A relação entre ser e nada é agora a relação entre visível e invisível - com a
substancial diferença de que o visível não é aqui uma presença objetiva, um positivo objetivo,
e o invisível uma negação dele, como em Sartre”224, resume Moutinho. Não se trata portanto
de fazer uma simples transposição dos termos - o visível não é o ser e o invisível não é o nada
- pensar o visível e o invisível é realmente uma alternativa aos contraditórios ser e nada da
filosofia de Sartre, isto é, “plutôt que de l’être et du néant, il vaudrait mieux parler du visible

221 AD, p. 282. Um pensamento situado. Também como aquele que renuncia a qualquer a priori: “Rien ne lui est
plus étranger que la conception kantienne d’une idéalité du monde qui serait lui même en tous les esprits”. AD,
p. 282.
222 VI, p. 128.
223 AD, p. 283.
224 MOUTINHO, L.D. O invisível como negativo do visível, p. 16.
!98

et de l’invisible, en répétant qu’ils ne sont pas contradictoires”225. Tudo depende do rigor com
o qual pensamos o negativo, nos dizia há pouco Merleau-Ponty, logo, a negação, não sendo
mais pura, se dá como incompleta, inseparável daquilo que nega. Em contrapartida, o visível
não é a esfera da pura positividade, simplesmente porque não há pura positividade. Tal
pressuposição consiste num “[e]rreur philosophique totale qui est de croire que le visible est
présence objective (ou idée de cette présence)”226. Se a filosofia da positividade é a mesma da
negatividade pura, o invisível não pode, do mesmo modo, ser “vu comme chose”227; ambos os
termos devem ser compreendidos como movimento da hiperdialética: “Chaque terme n’est lui
même qu’en passant dans son autre, ou plutôt, il n’y a pas deux termes mais un lieu où ils sont
destinés l’un à l’autre”228. Apesar de Sartre conferir também invisibilidade ao sentido - e neste
ponto se diferenciar das filosofias da essência -, diz ainda Barbaras, ao pensar a negação como
puro nada ele acaba por afirmar a positividade de ambos os termos e perder “l’inscription de
l’invisible dans le visible” de modo que, neste ponto e mais uma vez, “il n’y a pas de
différence entre la philosophie sartrienne et l’eidétique husserlienne”229. Pensar o invisível é
então pensar a negação como “potência” do visível, como devir e não como ser, dado que
“l’invisible donne la signification véritable du néant car jamais il n’excède le visible que
néanmoins il nie”230. Neste sentido, o “ver” da visibilidade não significa aqui um retorno a um
“oculocentrismo” de uma metafísica da presença, mas a visibilidade consiste em pensar um
sensível que é ao mesmo tempo inerência e distância 231. “Ver”, define Merleau-Ponty, “c’est
par principe voir plus qu’on ne voit, c’est accéder à un être de latence. L’invisible est le relief
et la profondeur du visible, et pas plus que lui le visible ne comporte de positivité pure” 232. O
invisível não é o outro do visível, não é seu inverso, ele é justamente aquilo que se dá nesta
possibilidade de imbricação entre os termos que não são contraditórios; possibilidade de
coexistência de separação e união, distância e proximidade. Em suma, nas palavras de Claude
Lefort:

il ne s’agit pas d’un invisible de fait qui se déduit de notre assujettissement à


l’ici et au maintenant, ni d’un invisible qui serait seulement la doublure et

225 S, p. 38-9.
226 VI, p. 306. (notes de travail - Mai 1960)
227 VI, p. 305. (notes de travail - Mai 1960)
228 BARBARAS, R. De l’être du phénomène, p. 192.
229 Ibid., p. 194.
230 Ibid., p. 195.
231 ALLOA, E. La résistance du sensible. Merleau-Ponty critique de la transparence. Paris: Kimé, 2008, p. 85.
232 S, p. 38. (grifo nosso)
!99

l’envers du visible; lui faire place n’est pas se contraindre à modifier la


définition de la conscience; l’invisible devient la charpente du visible, ce qui
n’apparaîtra en aucune perspective - les pivots, les dimensions, les niveaux
du champ, absolument hors de nos prises, et dont il n’y a pourtant aucun sens
à dire qu’ils sont dissimulés au voyant puisqu’ils sont aussi bien l’armature
du voir, qu’ils ne sont pas plus au-dehors qu’au dedans de lui : une écriture en
somme qui à la fois sépare et unit choses et regard233.

Estas breves considerações sobre o visível e o invisível em movimento na


hiperdialética, como contestação da analítica entre ser e nada da ontologia sartriana,
demonstram a diferença entre os dois autores sobre a concepção de negação. Nosso objetivo
neste capítulo se concentrou em deixar claro este contraste e não nos interessa fazer uma
exposição da proposta merleau-pontyana apresentada em Le Visible e l’Invisible como
contrapartida para os problemas levantados, buscamos somente apresentar aquilo que nos faz
compreender sua crítica às bases da filosofa de Sartre. Dito isto, concluímos que os pontos
mais relevantes da crítica de Merleau-Ponty no capítulo Interrogation et dialectique podem
ser resumidos da seguinte maneira: ao postular ser e nada em sua “pureza”, Sartre estabelece
entre eles uma contradição excludente e lógica e com isso 1) sua filosofia não é capaz de
pensar efetivamente a abertura ao mundo da fé perceptiva 2) as consequências de sua filosofia
são semelhantes àquelas da filosofia reflexiva, que pressupõe um sujeito desencarnado e uma
visão de sobrevoo 3) ela consiste numa filosofia positivista que radicaliza os dualismos
consciência/ mundo; reflexão/irreflexão como base nos quais ser e nada não possuem uma
unidade 4) estando em repouso um face a outro, os termos sartrianos de ser e nada não
possibilitam o movimento e apresentam somente uma analítica e não uma dialética 5) a
filosofia da negatividade resulta num solipsismo devido ao “poder de ontogênese” da
consciência que só apreende o “seu mundo” e impede a experiência efetiva da alteridade, uma
vez que o outro se apresenta somente através das dimensões do próprio para-si. Estes cinco
pontos resumem a crítica que viemos de expor e os problemas de base em relação aos quais
nosso trabalho deve se confrontar. Eles concluem de um modo geral que o pensamento de
Sartre não é um “pensamento de situação” e disto decorre, por fim, que sua filosofia não só
não consegue resolver os problemas mais clássicos do realismo e do idealismo mas revela-se,

233 LEFORT C. Sur une colonne absente. Écrits autour de Merleau-Ponty. Paris: Gallimard, 1978, p. 153-4.
!100

na verdade, de acordo com De Waelhens, como um agravamento dos impasses dualistas do


cartesianismo:

cette ontologie souligne avec un acharnement jamais lassé l’opposition - non


plus dialectique, cette fois, mais radicalement inconciliable - de L’En-soi et
du Pour-soi. Ainsi se trouve restauré dans son principe le dualisme cartésien
de la substance-pensée et de la substance-étendue. Restauré, d’ailleurs, est
trop faible ; en réalité, c’est d’une aggravation qu’il s’agit, puisque chez
Descartes la pensée et l’étendue, si elles sont sans détermination commune,
s’unifient pourtant en une certaine mesure du fait que l’une et l’autre sont
conçues comme substance234 .

234DE WAELHENS, A. Une philosophie de l’ambiguïté. In: MERLEAU-PONTY, M. La Structure du com-


portement. Paris: PUF, 1967, p. VI.
SEGUNDA PARTE

FACTICIDADE E TEMPORALIDADE:
primeiro nível de contestação.
Capítulo I

Considerações prévias:
negação e facticidade

§1. Nadificação e negação: as múltiplas dimensões do nada.

A negação em Sartre se dá de múltiplas maneiras, embora ela tenha sua origem em um


único modo de ser: é pelo ser para-si que “o nada vem ao mundo”. Tendo em vista esta fonte
única, que pode de algum modo ser questionada como uma concepção limitada da origem da
negação, desde que “vem ao mundo”, a negação se dá em múltiplos sentidos e em diferentes
graus. Dizer que na esfera da negatividade não há graus ou nuances, como afirmava Merleau-
Ponty, é homogeneizar sua multiplicidade1. Em primeiro lugar, como veremos mais
detalhadamente adiante, o próprio modo de ser para-si surge de uma “dupla nadificação
original” a partir da qual provém as demais negações; em segundo lugar, Sartre expõe uma
série de figuras de “não ser transcendente” e de relações negativas entre elas, essenciais para a
compreensão das estruturas de desvelamento do mundo. Há, portanto, uma série de operações
que se dão em diferentes graus, além de modos de ser “negativos” - e ainda uma condição
ontológica - que são caracterizados como negação e que precisam ser compreendidos em sua
diferença.
Dito isto, a negação em L’Être et le Néant não pode ser concebida como independente
do ser de onde ela surge ou, em outras palavras, a negação não vem “do nada”. No que diz
respeito a esta necessidade, Sartre é em diversos momentos categórico: “Ainsi, en renversant
la formule de Spinoza, nous pourrions dire que toute négation est détermination. Cela signifie

1 Sartre fala, por exemplo, em “plusieurs dimensions de la néantisation” (EN, p. 172). O que se pode observar,
por exemplo, na diferença entre o nível pré-reflexivo da consciência e o nível do circuito de ipseidade: “L’ipséité
représente un degré de néantisation plus poussé que la pure présence à soi du cogito préréflexif”. EN, p. 140.
!103

que l’être est antérieur au néant et le fonde”; “le néant […] ne saurait avoir qu’une existence
empruntée : c’est de l’être qu’il prend son être ; son néant d’être ne se rencontre que dans les
limites de l’être et la disparition totale de l’être ne serait pas l’avènement du règne du non-
être, mais au contraire l’évanouissement concomitant du néant : il n’y a de non-être qu’à la
surface de l’être”; “Le néant ne peut se néantiser que sur fond d’être : si du néant peut être
donné, ce n’est ni avant ni après l’être, ni, d’une manière générale, en dehors de l’être, mais
c’est au sein même de l’être, en son cœur, comme un ver” 2. Em suma, todas as formas de
negação devem obedecer a este princípio de anterioridade do ser em relação ao nada de modo
a estabelecer uma assimetria entre os termos que não deixa de ser alvo de críticas.
A formulação deste princípio básico surge das análises que compõem a primeira parte
de L’Être et le Néant: “O problema no nada”. No primeiro capítulo, Sartre se interroga sobre a
origem da negação a fim de explicitar sua própria concepção de não ser. Tal elaboração se dá
através de um diálogo principalmente com Hegel e Heidegger e de forma mais sutil e ambígua
com relação a Kant e a Descartes. As teorias da negação dos dois primeiros são decisivas para
a mudança que se opera no pensamento de Sartre na época em que redigia os Carnets de la
drôle de guerre (conforme veremos em seguida); momento em que ocorre uma transformação
na concepção da temporalidade e, consequentemente, na própria maneira de pensar a
consciência, a qual passa a ser considerada a partir do modo de ser para-si, como negação de
ser3. Em um primeiro momento, Sartre se opõe a Hegel e sua “concepção dialética do nada”
que, a seu ver, consiste em considerar o ser puro e o não ser puro como contemporâneos que
se uniriam na produção dos existentes. Estes dois termos se dão, para Sartre, como abstrações,
pois ambos se identificam e possuem uma contemporaneidade lógica. A esta breve análise da
Petite logique hegeliana4, que o próprio Sartre admite não ser então o momento de tomá-la em
sua complexidade 5, ele contrapõe a posição de assimetria entre ser e nada, baseada na

2 EN, p. 50-56, passim. (grifo nosso)


3 Sartre diz que foi em l’Imaginaire (escrito em 1938-39) sua “découverte de la conscience comme
néant” (BEAUVOIR, S. de. La cérémonie des adieux. Suivi de Entretiens avec Jean-Paul Sartre août-septembre
1974. Paris: Gallimard, 2008, p. 247). Nesta obra é evidente a principialidade do ser em relação ao nada, dado
que “Tout Imaginaire paraît « sur fond de monde » […] réciproquement, toute appréhension du réel comme
monde implique un dépassement caché vers l’imaginaire”. I’re, p. 361. O nada é definido neste texto como “la
matière du dépassement du monde vers l’imaginaire. C’est en tant que tel qu’il est vécu, sans jamais être posé
pour soi”. Ibid.
4 A simplificação destas análises é clara, mas não nos cabe aqui desenvolver esta questão. O que pretendemos

pôr em evidência na contraposição sartriana a Hegel é precisamente a necessidade do autor de pensar a


anterioridade do ser com relação à negação e a diferença radical entre os termos. Sobre a simplificação da parte
de Sartre da posição hegeliana, ver: VERSTRAETEN, P. Sartre/Kant/Hegel. De la contrariété à la contradiction,
quelques itinéraires du négatif.
5 Cf. EN, p. 48.
!104

principialidade do ser e na diferença ontológica entre os termos. Sendo assim, contrário à


posição hegeliana que colocaria os termos em um mesmo plano, Sartre se vale da definição
parmenídica “l’être est et le néant n’est pas” 6 para marcar a diferença, assim como para
afirmar a anterioridade do ser, de modo a tomar o cuidado “de ne jamais poser le néant
comme un abîme originel d’où l’être sortirait”7.
Ao fazer uso da definição parmenídica, como comentamos de forma breve e em nota
anteriormente, Sartre abre o caminho para confusões e complexifica a questão. Isto porque, ao
longo da história da filosofia, “le non-étant se dit de multiples façons : contraire de l’être,
faux, vide, être en puissance, privation, être de raison, non-être suressentiel…” 8; porém, duas
vias maiores de se pensar o não ser se estabeleceram como dominantes, a saber: justamente a
formulação parmenídica normalmente resumida como “l’être est et le néant n’est pas”; e a
concepção platônica - a partir do “parricídio” de Parmênides - de um “non-étant relatif” que
“est en quelque manière” 9. Se tomarmos como base estas duas vias, não podemos entretanto
situar Sartre - mesmo que ele afirme contra Hegel que “l’être est et que le néant n’est pas” -
nesta primeira tradição, pois é evidente que para Sartre o nada “est en quelque manière”. O
próprio autor estabelece a ligação quando pergunta: “Qu’est-ce à dire, sinon que la conscience
est l’Autre platonicien?”10. Tal “alusão” ousada ou mesmo brutal11 quer dizer que, para Sartre,
a consciência é pensada como alteridade, no sentido que ela só pode se afirmar como negação
do outro, isto é, ela só existe em se fazendo outro do ser, por uma relação de dependência. Na
medida em que Sartre se reivindica ao mesmo tempo de Platão e da definição de Parmênides,
devemos compreender então de que modo ele pensa a negação, visto que, como dissemos
anteriormente com Juliette Simont, “une même formule (“le néant n’est pas”) peut, sans que
sa lettre change, “vouloir dire” des choses bien différentes”12:

« L’Être est, le néant n’est pas » : il n’y a sans doute pas d’énoncé
philosophique plus pesamment immémorial. Mais Sartre, tout en le
reprenant tel quel, en bouleverse le sens. Ce séculaire axiome allait de pair
avec l’évidence d’un partage qui mettait totalité et absoluité du côté de

6 A respeito do ser parmenídico, Sartre escreve em Saint Genet (fazendo um paralelo com as implicações morais
que utiliza no contexto desta obra): “Car le Bien sans le Mal c’est l’Être parménidien, c’est-à-dire la Mort; et le
Mal sans le Bien, c’est le Non-être pur”. SG, p. 211, n. 1.
7 EN, p. 50.
8 LAURENT, J.; ROMANO, C. Le Néant: contribution à l’histoire du non-être dans la philosophie occidentale.

Paris: PUF, 2006, p. 7.


9 Para uma exposição destas duas posições, ver: ibid., p. 31-40; p. 65-80.
10 EN, p. 666.
11 GIOVANNANGELI, D. Le Retard de la conscience, p. 111.
12 SIMONT, J. Jean-Paul Sartre, p. 36.
!105

l’être et faisait du néant une simple apparence. […] La solution sartrienne


de ce vieux problème, brutale et audacieuse, consiste à mettre l’absolu du
côté de l’insaisissable, de l’apparence, de la conscience, bref, du néant,
précisément parce que ce dernier, ne se laissant pas saisir, mais tout au plus
exister (c’est le sens de cette belle et étrange expression à laquelle recourt
Sartre : le néant est été13) ne peut être relatif à une appréhension qui lui soit
extérieure14.

Sartre se diferencia assim, segundo Simont, da posição clássica que tomava primazia
do ser sobre o nada como uma maneira de privilegiar o ser. Ao passo que Sartre compreende o
nada através da estrutura “presença a si” do para-si, isto é, como consciência pré-reflexiva
descrita como absoluto não substancial15. Do mesmo modo, continua a autora, devemos
compreender neste contexto a fórmula spinozista “toute determination est négation”
diferentemente: “Non plus : toute determination est négation d’une totalité préalable et toute-
positive, qui n’est pas entamée dans sa positivité par cette négation; mais : toute determination
est négation de négation : négation est la texture même de mon être (c’est en ce sens que
Sartre l’appelle négation interne)” 16. Em suma, ao colocar o absoluto no lado do nada e não
do ser, Sartre se diferencia de posicionamentos clássicos e fornece ao nada um status de
legitimidade, ao mesmo tempo em que ao colocar o nada como dependente do ser, ele retira a
possibilidade de uma negação soberana.
Vimos anteriormente que Sartre se aproxima de Kant não somente pela alusão à
definição de Parmênides, mas também pela possibilidade de pensar realidades que são
habitadas pela negação em sua estrutura, denominadas de negatidades (négatités). No entanto,
enquanto que a negação kantiana permanece no plano judicativo, toda forma de negação para
Sartre deve ser existencial, no sentido de que se trata de realidades que “sont éprouvées,
combattues, redoutées, etc., par l’être humain, et qui sont habitées par la négation dans leur
intrastructure, comme par une condition nécessaire de leur existence”17. Estas realidades da
negação, que são as negatidades, encontram seu fundamento numa negação mais original que

13 Simont se refere a formulações como esta: “Mais le néant qui surgit au cœur de la conscience n’est pas. Il est
été”. EN, p. 114.
14 SIMONT, J. Genèse du “Néant”, genèse de L’Être et le néant (À propos de la morale et de l’ontologie de

Sartre)”. In: MOUILLIE, J-M; NARBOUX, J-P. (Org.) Sartre. L’Être et le néant. Nouvelles lectures. Paris: Les
belles lettres, 2015, p. 54.
15 “mettre l’absolu du côté du néant, précisément parce que ce dernier, ne se laissant pas saisir, mais tout au plus

exister, ne peut dès lors être relatif à l’appréhension qu’on en opère. L’absolu c’est la conscience pré-réflexive,
c’est ce néant à l’état pur, et elle n’est pas absolue bien qu’elle soit non-substantielle, mais parce que non sub-
stantielle”. SIMONT, J. Jean-Paul Sartre, p. 44.
16 Ibid, p. 47.
17 EN, p. 55.
!106

é precisamente a nadificação do ser (néantisation de l’être). A inspiração para se pensar esta


nadificação existencial, assim como sua estrutura mais original, Sartre encontra em Qu’est-ce
que la métaphysique? de Heidegger, onde este postula que “le Néant est originairement
antérieur au “Non” et à la négation”18. O nada heideggeriano apresenta, aos olhos de Sartre,
um verdadeiro progresso em relação a Hegel por não considerar mais ser e nada como
“abstractions vides”19 . A via concreta demostrada por Heidegger é possibilitada pela descrição
de atitudes da “realidade-humana” que implicam a compreensão existencial do nada sem fazê-
lo recair no ente. Sartre encontra o sentido de seu “o nada não é” na formulação heideggeriana
“le néant n’est pas, il se néantise”20, ou, nas palavra de Heidegger: “le néantir [Nichten] ne se
laisse mettre au compte ni d’un anéantissement ni d’une négation. C’est le néant lui-même qui
néantit (das Nichts selbst nichtet)”21. Através deste recurso, o nada é na verdade nadificação,
dado que “le néant ne peut être néant que s’il se néantise expressément comme néant du
monde”, a partir do que Sartre conclui novamente que “le néant porte l’être en son cœur” 22.
Porém, esta ultima conclusão é sartriana, pois, diferentemente de Heidegger, para Sartre não é
o nada que nadifica mas somente o ser, dado que “seul l’être peut se néantiser, car, de quelque
façon que ce soit, pour se néantiser, il faut être”23. A nadificação do ser é pensada aqui como
estrutura mesma do para-si e é neste modo de ser que - pelo ato ontológico - “le Néant néantit
[est néantisé pour Sartre] sans interruption”24 . Entretanto, Sartre observa que, para Heidegger,
trata-se de um nada “extra-mondain”25 que se dá como “une sorte de corrélatif intentionnel de
la transcendance sans voir qu’il l’a déjà inséré dans la transcendance même, comme sa
structure originelle”26, razão pela qual seu acordo é com Hegel “lorsqu’il déclare que l’Esprit
est négatif”27. Sartre faz da nadificação o próprio movimento da transcendência, o que será

18 HEIDEGGER, M. Qu’est-ce que la métaphysique? (suivi d’extraits sur l’être et le temps et d’une conférence
sur Hölderlin). Paris: Gallimard, 1951, p. 27. (Trad. Henry Corbin).
19 EN, p. 51.
20 EN, p. 52.
21 HEIDEGGER, M, op.cit., p. 34.
22 EN, p. 53.
23 EN, p. 57.
24 HEIDEGGER, M, op.cit., p. 36.
25 EN, p. 56.
26 EN, p. 53.
27 EN, p. 53.
!107

melhor explicitado nas análises da temporalidade28. Se tomarmos o ponto de vista das


consequências que Sartre tira da nadificação heideggeriana - a ideia de que “o nada nadifica”
se apresenta como o sentido de “o nada não é” ou “o ser se nadifica” -, torna-se impossível
pensá-lo isolado do ser, dado que a própria nadificação é o ato “sans interruption” pelo qual o
ser se nadifica. Deste modo, colocamos aqui em questão o quão problemático é ver que há em
Sartre um “negativo em si” diante de um “positivo em si”, tal como apontava Merleau-Ponty,
pois isto implicaria em separar os termos que possibilitam o próprio ato de nadificação.
Contudo, isto não é suficiente para provar que ser e nada não sejam contraditórios por
exclusão, tal como vimos na discussão anterior com relação à oposição real kantiana. Pierre
Verstraeten se propõe a responder a este problema no artigo “Sartre/Kant/Hegel. De la
contrariété à la contradiction: quelques itinéraires du négatif” ao mostrar que não é possível
enquadrar a negação sartriana nos moldes estritamente hegelianos ou kantianos, pois trata-se
de “un néant à deux têtes - dialectique et critique”29. Ao retomar as noções clássicas de
contradição e contrariedade, tal qual já expusemos no capítulo anterior, Verstraeten acaba por
concluir que a negação em Sartre pressupõe ao mesmo tempo contradição no sentido
hegeliano e contrariedade no sentido kantiano: “En partant à présent de L’Être et le Néant, on
pourrait remarquer inversement combien la « contradiction » que Sartre introduit entre être et
néant, ou En-soi et Pour-soi, n’est pas exclusive d’une certaine communauté, ou est également
en un sens, « contrariété »” 30.
A fim de compreendermos seu argumento, é preciso abordar com mais detalhes o
conceito de dupla negação, que é a negação que dá origem ao para-si e ao mundo. Conforme
vimos no primeiro capítulo, Sartre redefine o princípio de intencionalidade da consciência de
Husserl transformando-o na “prova ontológica”: “la conscience est conscience de quelque
chose: cela signifie que la transcendance est structure constitutive de la conscience ; c’est-à-
dire que la conscience naît portée sur un être qui n’est pas elle”31. Esta aparição da
consciência a partir de algo que ela não é se dá por uma negação que Sartre nomeia de

28 As análises sobre a temporalidade são fundamentais para compreender o movimento de nadificação, pois
Sartre evidencia dois níveis de nadificações primordiais: 1) “la conscience n’est pas son propre motif en tant
qu’elle est vide de tout contenu. Ceci nous renvoie à une structure néantisante du cogito préréflexif” 2) “la
conscience est en face de son passé et de son avenir comme en face d’un soi qu’elle est sur le mode du n’être-
pas. Cela nous renvoie à une structure néantisante de la temporalité”. E por esta razão “il suffit de marquer que
l’explication définitive de la négation ne pourra être donnée en dehors d’une description de la conscience (de) soi
et de la temporalité”. EN, p. 69.
29 VERSTRAETEN, P. Sartre/Kant/Hegel, p. 159.
30 Ibid., p. 158.
31 EN, p. 28.
!108

negação interna. Ao contrário das negações externas, que são estabelecidas entre coisas cuja
natureza não é afetada pela negação (como por exemplo quando afirmamos que “o copo não é
a mesa”), a negação interna modifica e constitui os termos em relação, pois se trata de uma
“liaison synthétique et active des deux termes dont chacun se constitue en se niant de
l’autre” 32. Enquanto que a negação externa se caracteriza pela relação de exterioridade entre
as coisas - que não se implicam mutuamente -, o que consiste numa negação categorial e
ideal, a negação interna é um

lien ontologique concret. Il ne s’agit point ici d’une de ces négations


empiriques où les qualités niées se distinguent d’abord par leur absence ou
même leur non-être. Dans la négation interne, le pour-soi est écrasé sur ce
qu’il nie. Les qualités niées sont précisément ce qu’il y a de plus présent au
pour-soi, c’est d’elles qu’il tire sa force négative et qu’il la renouvelle
perpétuellement. En ce sens, il faut les voir comme un facteur constitutif de
son être, car il doit être là-bas hors de lui sur elles, il doit être elles pour nier
qu’il les soit33 .

A negação interna é sintética num sentido próximo ao que Husserl caracteriza como
síntese: uma forma de ligação pertencente exclusivamente à região da consciência34. Para
Sartre, a negação interna só diz respeito ao para-si, mesmo que ela só se dê enquanto
constitutiva da própria consciência e do termo negado enquanto fenômeno. Neste sentido, a
negação interna é uma contradição no sentido hegeliano35, visto que ela constitui os termos a
partir da relação, mantendo ao mesmo tempo a unidade e a separação de ambos.
Há ainda outras operações de negação que constituem o modo de ser do para-si. Além
da negação interna do em-si que o para-si não é, há a nadificação do em-si que o para-si é,
que é justamente o ato ontológico, nadificação ininterrupta de si cuja descrição encontramos
no capítulo “As estruturas imediatas do para-si - II: A facticidade do para-si” 36, o qual será

32 EN, p. 291.
33 EN, p. 212.
34 HUSSERL, E. Méditations cartésiennes. Introduction à la phénoménologie. Paris: Vrin, 2014, p. 75. (Trad. G.

Peiffer et E. Levinas)
35 Em nota, na p. 122 de L’Être et le Néant, Sartre estabelece este paralelo, mas indica que esta negação deve se

fundar sobre uma “negação interna primitiva” que é a falta (manque). Como veremos posteriormente, a falta
caracteriza justamente essa nadificação de si que descrevemos brevemente neste capítulo, a qual não pode ser
pensada sem a negação interna, ou como anterior a esta relação que é necessária para a aparição da consciência.
Como Sartre não explica o porquê de uma ser fundada na outra, parece-nos estranho ele ter estabelecido esta
relação de prioridade, já que, a nosso ver, é preciso que haja negação interna e nadificação de si ao mesmo
tempo. A fundamentação deve ser pensada então não por uma anterioridade temporal, mas ontológica. Como
Sartre admite para si a posição de Heidegger em Qu’est-ce que la métaphysique ? de que é do nada que vem a
negação e não ao contrário, todas as negações serão pensadas como derivadas dessa negação mais originária que
é, no contexto de L’Être et le Néant, a nadificação de si.
36 Podemos dizer que este é o ponto central de nossa tese e, por esta razão, voltaremos incessantemente a ele. Por

ora, precisamos apenas ressaltar o duplo ato negativo de negação interna e nadificação de si que caracteriza o
modo de ser do para-si.
!109

analisado mais adiante. Em outros termos, o para-si surge como negação interna do em-si
transcendente e nadificação do em-si que ele é - que Sartre denomina também de
acontecimento absoluto (événement absolu) - num duplo movimento de negação que faz
surgir o para-si a partir do ser. Voltaremos a este tema, mas vale destacar por ora que é nesta
dupla nadificação existencial originária que as negações derivadas se fundam e este é o
sentido da afirmação de que o nada “vem ao mundo” pelo para-si.
Verstraeten traz ainda um refinamento no que concerne à análise da negação em L’Être
et le Néant ao amplificar a esfera da negação interna em sua relação com a nadificação de si
para confirmar sua tese de que há simultaneamente contradição e contrariedade entre ser e
nada. Para tal, ele estabelece uma diferença entre dizer que o para-si “n’est pas” o ser pelo
fato dele “ne pas être” isto ou aquilo em particular, a partir de um recurso textual mas não
tematizado pelo próprio Sartre. A fórmula “n’est pas” corresponde à negação interna radical
do para-si enquanto ele não é o em-si como totalidade do ser, ao passo que “ne pas être” diz
respeito à negação interna em seu âmbito singular e qualificado: o para-si não é isto ou aquilo.
Ao admitir estes dois âmbitos da negação, que são interdependentes, Verstraeten mostra que
Sartre realiza uma “étrange synthèse”37 entre Kant et Hegel em seu uso do negativo: no
âmbito da negação interna radical - “n’est pas” - ser e nada não podem ser pensados
separadamente, assim como na contradição hegeliana. Sendo a negação sempre nadificação
do ser, os termos só podem ser concebidos numa relação de negação e assim “le Pour-soi, ou
le néant d’être que l’En-soi s’est fait être en tentant de se fonder, n’est rien hors son rapport à
l’être qu’il n’est pas et se définit exclusivement comme n’étant pas cet être”38; “La négation
radicale, le « n’être pas » ne bénéficie d’aucun substrat communautaire en dehors de la
relation néantisante articulant dans la séparation les deux sphères d’être. Être et néant s’y co-
constituent en divergeant l’un de l’autre” 39; enquanto que no âmbito da negação particular,
assim como a contrariedade kantiana, pressupõe-se outras negações contemporâneas para se
produzir uma afirmação - isto não é aquilo, nem aquilo, nem aquilo… -, ou seja, trata-se de
um “processus de détermination comme un parcours où se nient successivement « tous les
prédicats possibles »”40 . Em suma, a negação interna pressupõe estas duas negações que são
ligadas por um “fil ontologique”, a partir do qual cada negação particular se dá sob fundo da

37 VERSTRAETEN, P. Sartre/Kant/Hegel, p. 159.


38 Ibid., p. 159. (grifo nosso)
39 Ibid., p. 160.
40 VERSTRAETEN, P. Sartre/Kant/Hegel, p. 159.
!110

negação radical e “c’est ainsi que la conscience se fait n’être pas le monde ou être non-monde
ou non-en-soi en se faisant ne pas être telle ou telle région déterminée du monde”41. Estas
negações, que dizem respeito a estrutura da negação interna que faz surgir o para-si e o
campo fenomenal como mundo e, no interior deste, a coisa qualificada - isto ou aquilo (ceci
ou cela) -, não podem se dar, como vimos, sem que se leve em conta a nadificação do em-si
que o para-si é. Além do que, vimos que esta última é contemporânea da negação interna do
em-si que o para si não é, de modo que se pode concluir, acrescentando as análises de
Verstraeten, o seguinte: o para-si é nadificação do em-si que ele é e negação interna do em-si
que ele não é nem totalmente nem particularmente. Estas nuances demostram que no plano
fenomenal da transcendência, que Sartre nomeará de o há (il y a) do mundo, ser e nada são ao
mesmo tempo contrários e contraditórios: contraditórios (no sentido hegeliano) já que os dois
só se definem a partir da relação de negação; contrários visto que, através de uma
simultaneidade de relações negativas, surge uma afirmação positiva e qualificada de algo, de
maneira que positivo e negativo são pensados a partir desta contemporaneidade. Isto posto,
Verstraeten se pergunta: “Que devient alors la revendication sartrienne de la postériorité du
néant par rapport à l’être ? Elle vaut pour l’être de l’être, mais non pour son sens, pour son
« dévoilement » ou son « il y a »”42 . Ou seja, no plano ontológico esta afirmação do néant “à
deux têtes” é possível, mesmo que haja uma prioridade metafísica do ser sobre o nada. A
nosso ver, seria realmente complicado afirmar que neste último plano Sartre é hegeliano,
devido a dissimetria entre ser e nada que estabelece que o ser não precisa do nada para existir.
Mas Verstraeten demonstra que é esta própria necessidade ontológica que é condição de
possibilidade para compreensão da transcendência tal como acabamos de expor, quando diz
que

au niveau le plus structurellement ontologique, En-soi et Pour-soi


communiquent au moins en ceci que tous deux non seulement sont, mais sont
de l’être, même si le premier est ce qu’il est, et si le second n’est pas ce qu’il
est et est ce qu’il n’est pas. Cette communauté d’être de L’En-soi et du Pour-
soi, notre expérience ne cesse de l’attester, qui ne nous donne pas accès à ces
termes « abstraits » dans leur isolement, mais nous met toujours en présence
d’une « totalité synthétique dont la conscience et le phénomène ne sont que
des moments » ou encore de « cette union spécifique de l’homme au monde
que Heidegger nomme ‘être-dans-le-monde’ »43 . Ainsi En-soi et Pour-soi
seraient aussi des contraires, les extrêmes de la série continue ou de la
concrétude indissolublement synthétique qu’est l’expérience. Enfin au niveau

41 Ibid., p. 159.
42 Ibid., p. 160.
43 EN, p. 38 apud VERSTRAETEN, P. Sartre/Kant/Hegel.
!111

métaphysique, Sartre maintient la communauté relationnelle de l’être et du


néant dans la mesure où ce denier est l’être lui-même se faisant autre que soi
pour cesser d’être un Soi sans présence à soi, et pouvoir se rapporter à soi et
se fonder…échouant à se fonder dans son être, et ne parvenant à fonder que
son néant d’être44.

A “communauté d’être de L’En-soi et du Pour-soi” é a condição mesma da


experiência, já que a negação só se dá sob o ser, e o para-si existe enquanto negação do em-si
que ele é e do em-si que ele não é, a partir desta multiplicidade de negações que encontram
sua origem no acontecimento absoluto que é o para-si. Pensar a negação fora deste conjunto
de negações contemporâneas que se operam simultaneamente na relação para-si/em-si, como
uma negação pura e sem graus é justamente pensá-la como uma negação lógica, ao passo que
se trata de uma negação existencial que só se dá nadificando o ser (que ela é e que ela não é).
Disto concluímos que conceber a negação em termos de contradição lógica é simplesmente
perder as múltiplas dimensões da negação e justamente seus graus e suas nuances. É este
ponto que entrevemos ser importante sublinhar quando Sartre afirma que

[l]e pour-soi n’est pas le néant en général mais une privation singulière ; il se
constitue en privation de cet être-ci. Nous n’avons donc pas lieu de nous
interroger sur la manière dont le pour-soi peut s’unir à l’en-soi puisque le
pour-soi n’est aucunement une substance autonome. En tant que néantisation,
il est été par l’en-soi [nadificação do em-si que ele é] ; en tant que négation
interne, il se fait annoncer par l’en-soi ce qu’il n’est pas, et, conséquemment,
ce qu’il a à être45 .

Conceber o para-si como nadificação pura, ou “negação em si”, é retirar o âmbito


existencial da negação - que só se dá nadificando duplamente o em-si que o para-si é e o que
ele não é; além disso, tal concepção tem por consequência a perda de consideração das
dimensões da negação que podemos identificar no campo fenomenal, que são aquelas que
compõem o plano do há do para-si no mundo46 . Retomaremos este tema em diversos
momentos adiante, mas podemos desde já afirmar que, ao desconsiderar as especificidades da

44 VERSTRAETEN, P. Sartre/Kant/Hegel, p. 158-159. (grifo nosso)


45 EN, p. 666.
46 Mostraremos estas dimensões da negação na “Terceira parte”.
!112

facticidade do para-si47, ou o fato do para-si ser esta dupla - ou mesmo tripla48 - nadificação
do ser, a relação efetiva entre os termos se perde, de modo a ser possível pensá-los como
excludentes ou como unidos por via de uma contradição puramente lógica, tal como o faz
Merleau-Ponty.
Por fim, considerar o sujeito como negatividade pura apartada de sua facticidade é
justamente a crítica que Sartre faz a Descartes em seu texto La liberté cartésienne. Em
primeiro lugar, devemos dizer que Sartre faz um elogio à relação que ele encontra na filosofia
cartesiana entre negatividade e liberdade como “ce pouvoir de s’échapper, de se dégager, de
se retirer en arrière”, que seria até uma “préfiguration de la négativité hégélienne”49. Porém,
esta teoria da negatividade cartesiana, ao seu ver, não foi levada a seu termo. Ao colocar o
sujeito como negação pura, Descartes pensa uma “liberté désincarnante et
désindividualisante”, que Sartre aproxima da alma platônica, a qual se caracteriza por ser uma
visão de verdades eternas “mort à son corps, mort à sa vie” 50. A negatividade como liberdade
em Descartes, resume Sartre:

C’est que l’homme, étant cette négation pure, cette pure suspension de
jugement, peut, à condition de rester immobile, comme quelqu’un qui retient
son souffle, se retirer à tout moment d’une nature fausse et truquée; il peut se
retirer même de tout ce qui en lui est nature : de sa mémoire, de son
imagination, de son corps. Il peut se retirer du temps même et se réfugier
dans l’éternité de l’instant : rien ne montre mieux que l’homme n’est pas un
être de « nature ». Mais dans le moment qu’il atteint à cette indépendance
inégalable, contre la toute-puissance du Malin Génie, contre Dieu même, il se
surprend comme un pur néant : en face de l’être qui est tout entier mis entre
parenthèses, il ne reste plus qu’un simple non, sans corps, sans souvenir, sans
savoir, sans personne. Et c’est ce refus translucide de tout qui s’atteint lui-
même dans le cogito51 .

47 Luiz Damon Moutinho, por exemplo, acentua a dupla nadificação - de si e do em-si transcendente - mas sem
considerar as implicações da facticidade, na medida em que afirma que a negação interna “é inteiramente
tributaria de um retorno da negação sobre si mesma- o que significa dizer que ela não envolve o ser em-si”.
MOUTINHO, D. Negação e finitude na fenomenologia de Sartre, p. 144. Na verdade, o autor busca mostrar que
é esta negação voltada para si que faz com que o para-si seja “recusa em se cristalizar”, o que poderíamos
concordar. Mas afirmar que a negação voltada para si “não envolve o ser em-si” e que o depura de “todo
compromisso com o em-si” (ibid) é justamente não considerar as implicações da facticidade, o que, como
veremos ao longo de nosso trabalho, revela como uma estrutura fundamental por se tratar exatamente de uma
dimensão de em-si do para-si da qual ele não se livra jamais (tema que exploraremos na “Terceira parte” a partir
da ideia de uma hantologie).
48 Dupla negação do sentido da relação interna em simultaneidade com a nadificação de si, mas se

acrescentarmos as nuances de P. Verstraeten, a própria negação interna é dupla. Em um trecho de L’Être et le


Néant Sartre acrescenta ainda uma terceira operação, o que nos mostra, na verdade, a possibilidade de pensar a
multiplicidade e as diferentes especificidades da negação, apesar de, como dissemos, elas se unirem num único
modo de ser, que é o do para-si: “Néantisation, négation interne, retour déterminant sur l’être-là que je suis, ces
trois opérations n’en font qu’une. Elles sont seulement des moments d’une transcendance originelle qui s’élance
vers une fin, en me néantisant, pour me faire annoncer par le futur ce que je suis”. EN, p. 537.
49 S.I, p. 300.
50 S.I, p. 303.
51 S.I, p. 301. (grifo nosso)
!113

Toda a esfera posta entre parênteses pela dúvida metódica cartesiana transforma a
liberdade num nada (rien) que Sartre não pode aceitar. Ele acrescenta ainda que não seria
possível assim pensar a liberdade como um movimento de criação 52, visto que nada se cria
“do nada”, como vimos anteriormente a respeito da nadificação do ser. Neste breve destaque
que fazemos do texto de Sartre sobre a liberdade em Descartes53 o ponto que nos interessa é
justamente esse: Sartre elogia a ligação que ele entrevê na filosofia cartesiana entre liberdade
e negatividade, ao mesmo tempo em que se opõe a esta liberdade que não é nada (rien), que
pode suspender o corpo, o saber, a memória, entre outras estruturas da facticidade, de modo a
se caracterizar como um “refus translucide” que pode postular um cogito livre do falso e da
ilusão, como adequação a si na imanência da verdade de um instante. Contrariamente, como
diz M. Dufrenne, em Sartre, a dúvida “est plus passionné que le doute cartésien: le malin
génie, c’est moi, ou du moins l’esprit de sérieux en moi qui, pour masquer ou annuler ma
bâtardise, veut faire de moi un petit dieu - un faux dieu, - justifie et justicier”54. Tal
comparação mostra uma diferença, pois demostra que a liberdade nos termos sartrianos, por
sua finitude, seus limites, sua “face d’ombre”, se desvia do Deus cartesiano55, e por isso ela
deve ser pensada não como exclusão de toda a facticidade, mas através de um cogito
encarnado. Diante disso, pode-se curiosamente concluir que Sartre critica em Descartes o que
Merleau-Ponty aponta ser o problema de Sartre: pensar o sujeito como negatividade pura,
apartado de toda inerência ao mundo.

§2. A crítica de Merleau-Ponty em questão: a negligência da facticidade.

A respeito de uma citação de Merleau-Ponty em Les Aventures de la dialectique, em


que este compreende a consciência em Sartre como “coextensiva ao mundo”56, Simone de

52 O que Sartre procura desenvolver, por exemplo, nos Cahiers pour une morale.
53 Para uma argumentação minuciosa sobre Sartre e Descartes em relação à liberdade, ver: MOUTINHO, L.D.
Negação e finitude na fenomenologia de Sartre.
54 DUFRENNE, M. Jalons, p. 170.
55 S.I, p. 300. A ideia de “face d’ombre” está presente também no título de obra sartriana sobre Mallarmé:

Mallarmé. La lucidité et sa face d’ombre. Voltaremos ao tema na “Terceira parte”, quando tratarmos das noções
de translucidez e opacidade.
56 BEAUVOIR, S. de. Merleau-Ponty et le pseudo-sartrisme, p. 206-7. Beauvoir se refere a seguinte citação de

Merleau-Ponty: “Il y a malentendu quand on croit que la transcendance chez Sartre ouvre la conscience: la con-
science chez lui, si l’on veut, n’est qu’ouverture puisqu’il n’y a nulle opacité en elle qui la tienne à distance des
choses, et qu’elle les rejoint parfaitement là ou elles sont, au dehors. Mais c’est justement pourquoi elle n’est pas
ouverte sur un monde, qui dépasse sa capacité de signification, elle est exactement coextensive au monde”. AD,
p. 274, n. 1.
!114

Beauvoir evidencia a importância do papel da facticidade em L’Être et le Néant: “Ce que


Merleau-Ponty néglige simplement ici, c’est la théorie de la facticité qui est une des bases de
l’ontologie sartrienne” 57. Tal observação nos parece capital na medida em que designa uma
“teoria da facticidade” como um pilar fundamental na estrutura da própria ontologia sartriana.
De nossa parte, concordamos com a afirmação de S. de Beauvoir não somente em relação às
consequências resultantes desta “negligência” na leitura de Merleau-Ponty da filosofia
sartriana como um todo, mas também no sentido de que a não evidência desta estrutura do
para-si compromete justamente a compreensão deste modo de ser como engajado, como ser-
no-mundo, tal como busca mostrar seu texto Merleau-Ponty et le pseudo-sartrisme.
Negligenciar é também o verbo utilizado por M. Dufrenne em suas análises sobre o mesmo
texto de Merleau-Ponty58:

Mais peut-être apparait-il que, si l’incontestable originalité de Merleau-Ponty


par rapport à Sartre est d’avoir mis l’accent sur les limites de l’homme, sur le
conditionnement de la liberté, sur l’incarnation de la conscience dans la
réalité biologique et sociale, et somme toute d’avoir élaboré une
anthropologie pendant que Sartre faisait une ontologie et une
Phénoménologie de la perception pendant que Sartre écrivait L’Imaginaire,
cette originalité n’est pas totale59. Et peut-être Merleau-Ponty néglige-t-il
trop dans les textes et dans les intentions de Sartre ce qui pourrait le mettre à
l’abri de ses critiques: ce qui annonce ou reprend Merleau-Ponty. (On laisse
aux futurs historiens le soin d’instruire ici un procès en recherche de
paternité...). S’il faut passer par Merleau-Ponty (je ne dis pas que ce soit la
seule voie) pour pouvoir saisir le social et justifier une attitude politique,
Sartre y passe60 .

Para Dufrenne, a diferença entre Sartre e Merleau-Ponty é “surtout d’accent”, e não é


o caso de falar, como o fez Beauvoir, em “falsificação”. A seu ver, a crítica merleau-pontyana
altera o pensamento de Sartre da seguinte maneira: “il en isole et en durcit certains aspects -
d’ailleurs les plus frappants -, et il néglige tout ce par quoi Sartre nuance, en la complétant, sa
doctrine”61. V. de Coorebyter, por sua vez, chega a falar de “méprise de Merleau-Ponty dans
Le Visible et l’Invisible”62. Ele mostra como esta crítica se baseia, na verdade, num mal-

57 BEAUVOIR, S. de. Merleau-Ponty et le pseudo-sartrisme, p. 206-7. (grifo nosso)


58 Também Bourgault fala em negligência da parte de Merleau-Ponty com relação à necessidade de Sartre de
lutar contra a tendência de seu próprio pensamento à abstração. Cf. BOURGAUT, J. La distance et l’amitié, p.
27.
59 Afirmação que lembra a de Beauvoir: “On voit que si la pensée de Merleau-Ponty est originale par rapport à

celle du pseudo-Sartre, elle l’est moins si on le confronte à Sartre même; car cet engrenage sans coïncidence
qu’il décrit, c’est exactement ce mélange d’expériences irréductibles que Sartre a si souvent évoqué”.
BEAUVOIR, S. de. op.cit., p. 215.
60 DUFRENNE, M. Jalons, p. 172.
61 Ibid., p. 171. (grifo nosso)
62 DE COOREBYTER, V. Sartre face à la phénoménologie, p. 97.
!115

entendido, que consiste em não considerar uma mudança de extrema importância no


pensamento sartriano, como veremos mais adiante. A fim de delimitar um ponto de refutação
importante de boa parte da crítica de Merleau-Ponty, selecionamos estas três autores para
apresentar uma primeira contestação dos problemas que foram até aqui apresentados. Neste
intuito, evidenciaremos os pontos mais importantes da posição de S. de Beauvoir, M.
Dufrenne e V. de Coorebyter.

Em seu texto, Merleau-Ponty et le pseudo-sartrisme, S. de Beauvoir procura mostrar,


de maneira enérgica e determinada, que as críticas merleau-pontyanas em Les Aventures de la
dialectique consistem em “falsificação” e “mutilação” do pensamento sartriano, algo como
um verdadeiro “delírio” que resulta, como o próprio título indica, num pseudo-sartrismo que
seria o avesso da filosofia de Sartre: “la philosophie à laquelle notre exégète se réfère
contredit à peu près en tous points celle que Sartre a toujours professée”63. O tom passional da
autora revela a tensão do debate citado no capítulo anterior em torno das disputas políticas
que levaram à ruptura entre Sartre e Merleau-Ponty e deste último com a revista Les Temps
Modernes. Apesar da postura um tanto dogmática da parte de Beauvoir - de querer provar
“l’authentique ontologie sartrienne”64, contra a falsificação do pseudo-sartrismo, seu texto
apresenta uma boa síntese das críticas de Merleau-Ponty a Sartre, além aprofundar o debate
filosófico ao contrapor constantemente as citações de ambos os autores e as divergências
políticas interiores ao conflito65. O que mais nos interessa neste texto de S. de Beauvoir é
precisamente sua posição de ressaltar uma negligência da parte de Merleau-Ponty a uma

63 BEAUVOIR, S. de. Merleau-Ponty et le pseudo-sartrisme, p. 204.


64 Ibid.
65 Embora este texto apresente um trabalho extenso, é curioso notar que há poucas referências que apontam para
ele. No texto de Chauí, por exemplo, o esquecimento ou o não conhecimento da participação de Beauvoir no
conflito político chama a atenção (justamente por se tratar de um texto tão bem documentado). As referências
que a autora indica sobre o conflito nos leva a crer que o debate se deu somente entre Sartre, Lefort e Merleau-
Ponty, como se não tivesse havido uma resposta da parte de Beauvoir (Cf. CHAUÍ, M. Filosofia e engajamento,
p. 13, n. 2). Encontramos esta mesma ausência nas referências de F. Ewald (que citamos em nota anteriormente),
assim como na biografia de A. Cohen-Solal. “Merleau-Ponty et le pseudo-sartrisme” é, entretanto, indicado por
P. Cabestan (L’être et la conscience) e por V. de Coorebyter (Sartre face à la phénoménologie, p. 492); citado
brevemente por M. Dufrenne (Jalons) e trabalhado também brevemente por R. Breeur (Autour de Sartre). Este
último na verdade, não desenvolve, mas adota as posições de Beauvoir a respeito de um “pseudo-sartrismo”, ao
afirmar que Merleau-Ponty critica um “Sartre Imaginaire”: “Ce fantôme est, en comparaison à la pensée réelle de
L’Être et le Néant , aussi exsangue et anémique qu’une symphonie de Bruckner jouée à l’accordéon”. Ibid, p. 23.
!116

“teoria da facticidade”, conforme citamos acima, e também da não consideração a respeito da


concepção de temporalidade que Sartre desenvolve em L’Être et le Néant. Vale atentar que, ao
retomar tal texto, não pretendemos provar se Beauvoir consegue de fato responder os
problemas levantados por seu opositor, como se pudéssemos realizar uma análise da disputa a
fim de verificar finalmente quem tem razão. Nossa intenção é a de demarcar alguns pontos
que Beauvoir considera serem importantes no intuito de responder as críticas precedentes.
Dito isto, as refutações mais importante que Beauvoir dirige às críticas merleau-pontyanas em
Les Aventures de la dialectique (que ela estende, na verdade, até a Phénoménologie de la
perception66) se resumem nesta definição do pseudo-sartrismo:

Le pseudo-sartrisme est une philosophie du sujet; celui-ci se confond avec la


conscience, qui est pure translucidité et coextensive du monde; à sa
transparence s’oppose l’opacité de l’être en soi qui ne possède aucune
signification; le sens est imposé aux choses par un décret de la conscience se
motivant ex nihilo. L’existence de L’Autre ne brise pas ce tête-à-tête car
l’Autre n’apparaît jamais que sous la figure d’un autre sujet; le rapport de Je
et l’Autre se réduit au regard; chacun demeure seul au cœur de son propre
univers sur lequel il règne en souverain : il n’y a pas d’intermonde67 .

Neste trecho encontramos uma síntese das principais teses de Merleau-Ponty contra a
filosofia de Sartre. Como vimos na “Primeira parte”, a crítica merleau-pontyana demonstra
que a liberdade soberana e sem raízes representa uma filosofia do sujeito, por vezes
voluntarista, a partir de uma consciência que impõe seu sentido às coisas a cada instante. Este
sujeito é precisamente a consciência que, por ser transparente, é radicalmente distinta das
coisas opacas, ratificando o dualismo de um para-si e um em-si coextensivos. Tal relação
imediata e frontal vale também para a teoria do olhar como via de encontro com o outro, o
que resulta não num verdadeiro encontro mas na confrontação de dois mundos solipsistas e
sem terreno comum. As consequências políticas destas posições revelam uma impossibilidade
de engajamento visto que, nas palavras de Beauvoir, “une conscience pure ne peut que tenir le
monde à distance, non se projeter concrètement en lui : donc s’engager pour Sartre, ce sera
toujours se dégager; la liberté n’apparaît que comme négativité et lorsque Sartre prétend agir,
il se borne à contempler”68. O objetivo de Beauvoir é, pelo contrário, mostrar que em Sartre a

66 BEAUVOIR, S. de. Merleau-Ponty et le pseudo-sartrisme, p. 271. O que não inclui evidentemente as


argumentações de Le Visible et l’Invisible, escrito após 1955.
67 Ibid., p. 204-5.
68 BEAUVOIR, S. de. Merleau-Ponty et le pseudo-sartrisme, p. 256.
!117

consciência é sempre engajada, encarnada, e é Merleau-Ponty quem a transforma numa


“mégalomanie du sujet”69. A seu ver, a filosofia sartriana não consiste numa filosofia do
sujeito que pressupõe uma separação entre sujeito e objeto a partir de uma consciência que
não é no-mundo: “Contre la Nausée, L’Être et le Néant, contre tout ce que Sartre a écrit, il
[Merleau-Ponty] maintient que le sartrisme ne connaît rien entre le sujet et l’être en soi” 70.
Considerar os temas sartrianos através da lente que busca encontrar nela somente dicotomias é
realizar “le coup de la dichotomie”, uma estratégia metodológica que visa a “enferme[r]
l’adversaire dans une fausse alternative” 71. Por esta razão, Beauvoir demonstra, através de
citações de L’Être et le Néant e Saint Genet, que não se trata nestas obras de uma consciência
soberana doadora de sentido, pois os sentidos dos fatos são objetivos e abertos e se dão num
contexto histórico: “Le dévoilement du monde, opéré dans la dimension de l’intersubjectivité,
révèle des réalités qui résistent à la conscience et possèdent leurs lois propres”72. Pressupor
uma consciência constiuínte, como livre criação a cada instante é confundir Sartre com
Descartes, de modo que “au lieu du faire on ne rencontre dans le pseudo-sartrisme qu’un fiat
dont la dimension magique s’apparente à celle du regard”73 . Assim, através de uma concepção
instantaneísta da consciência, Merleau-Ponty negligencia não somente a teoria da facticidade,
mas ainda toda a concepção de temporalidade desenvolvida em L’Être et le Néant. Para
Beauvoir, ele não leva em consideração as análises em que Sartre demonstra que todo projeto
possui uma densidade temporal que envolve passado, presente e futuro, isto é, uma
historicidade que se dá no tempo. A ação não é, portanto, um desvelamento intuitivo que
pretende tudo abranger - o que caracterizaria uma visão de sobrevoo - mas uma ação finita e
situada que pressupõe mediações de modo que, conclui Beauvoir: “Il faut que Merleau-Ponty
soit en proie à un étrange délire pour penser que Sartre nie l’existence de ces régions

69 Ibid., p. 255.
70 Ibid., p. 209.
71 Ibid., p. 230. “Le coup de la dichotomie” significa que o dualismo é na verdade de Merleau-Ponty, que só

conseguira enxergar em Sartre que algo é ou não é, como neste exemplo: “Aux innombrables textes de Sartre qui
décrivent concrètement l’histoire et la condition prolétarienne, Merleau-Ponty oppose un des ses habituels
dilemmes : le prolétariat est ou n’est rien. C’est oublier que dans la phénoménologie - que Merleau-Ponty
estimait naguère - l’existant ne peut être enfermé dans cette alternative : il se fait”. Ibid., p. 237. (grifo nosso).
Beauvoir lista ainda outras estratégias de leitura de Merleau-Ponty que o possibilitam criar o “pseudo-sartrismo”:
“Le coup du paradoxe” que consiste em dizer que Sartre não pensa o que ele pensa (ibid., p. 209) “Le coup de
sursignification” que consiste em isolar uma frase de seu contexto e carregá-la de um sentido de modo a fazê-la
uma chave do pensamento sartriano (ibid.) e “Le coup des affirmations gratuites”, cujo nome já deixa explicito
seu sentido (ibid., p. 230).
72 Ibid., p. 216.
73 Ibid., p. 256.
!118

médiatrices […]”74. A autora continua sua argumentação demonstrando que os sentidos são
dados pela situação e devem ser considerados através das medições do circuito da ipseidade,
no interior do qual podem ser interrogadas as significações objetivas que indicam o mundo.
As noções de escolha, liberdade e ação, neste contexto, não significam decisão no sentido de
atos de um sujeito voluntário. Aos olhos de Beauvoir, Merleau-Ponty sabe disso e, por esta
razão, age de “má-fé” ao assimilar a praxis tal como Sartre a compreende a decisões
instantâneas e arbitrárias. Por não considerar a dimensão possibilitada pelo circuito de
ipseidade em Sartre, Merleau-Ponty

confond la conscience, présence immédiate à soi, et le sujet dont le


dévoilement exige une médiation. Ainsi, quand il object au pseudo-Sartre :
“C’est toujours à travers l’épaisseur d’un champ d’existence que se fait ma
présence à moi-même”, il ne fait que reprendre une des idées directrices de
L’Être et le Néant. Fidèle sur ce point à la thèse heideggerienne selon laquelle
la réalité humaine se fait annoncer ce qu’elle est à partir du monde, Sartre a
toujours insisté sur le conditionnement réciproque du monde et du moi75 .

Da mesma maneira, as relações com o outro pressupõem o movimento temporal e não


se reduzem à constatação imediata de um outro sujeito pelo olhar, pois elas são sempre
moventes e inacabadas, o significa, para Beauvoir, que elas “impliquent la possibilité d’une
dialectique et d’une histoire se déroulant dans le temps”76. Além disso, não é possível falar de
um encontro entre sujeitos fechados em um mundo solipsista visto que há em Sartre este
“terreno comum” - que Merleau-Ponty chama de intermundo - na medida em que “ l’Autre
m’est donc présent dans les choses sous figure de significations et de techniques”77. Ao
suprimir a concepção da temporalidade ek-stática de L’Être et le Néant, Merleau-Ponty não
consegue então enxergar em Sartre a possibilidade de dialética e de que o desvelamento é
sempre uma ação; por esta mesma razão, encontra-se ausente de seus argumentos uma análise

74 BEAUVOIR, S. de. Merleau-Ponty et le pseudo-sartrisme, p. 216.


75 Ibid., p. 206. É neste sentido que Beauvoir acusa Merleau-Ponty de se opor a Sartre apropriando-se de suas
próprias ideias: “Merleau-Ponty n’ignore pourtant pas les livres de Sartre : quand il répond au pseudo-Sartre, il
exprime à l’ordinaire les idées de Sartre même, et dans des termes qui sont des réminiscences de ceux dont celui-
ci s’était servi”. Ibid., p. 271.
76 Ibid., p. 220.
77 Ibid., p. 214.
!119

da teoria da facticidade que revela que as ações não se dão ex nihilo, mas através desta
espessura temporal que não pode se livrar de seu passado78.
Ao unir negatividade, temporalidade e ação para pensar a dialética, Beauvoir reponde
a Merleau-Ponty por uma via que está de acordo com a interpretação de Kojève da filosofia
de Hegel. M. Dufrenne evidencia este caminho que une marxismo e existencialismo, no
interior do qual o homem é pensado como uma negatividade que é princípio de
temporalização, o que na verdade se mostra como uma interpretação antropogênica que
arrisca perder a noção mesma da dialética hegeliana, a qual não se limita ao registro do
humano79. Ao mesmo tempo, como comentamos anteriormente, ao postular a união do para-si
e do em-si como uma impossibilidade, Dufrenne acredita que Sartre impede o curso da
dialética hegeliana, pois todas as tentativas de união se revelam em L’Être et le Néant como
uma “história de fracassos”, fazendo com que os termos não ultrapassem este nível antitético
rumo à totalidade. Entretanto, isto não significa que Dufrenne esteja de acordo com Merleau-
Ponty e o seu ponto de divergência é justamente aquele que nos interessa, que é a facticidade
do para-si, que atesta a “solidariedade” das regiões ontológicas: “sans doute l’en-soi et le
pour-soi sont-ils solidaires en ce sens que l’en-soi d’une part porte le pour-soi dans sa
facticité 80; e ainda:

le pour-soi naît porté par l’en-soi: il n’est pas le fondement de son être, il ne
fonde, tout au long du temps, que son néant d'être. Il y avait là de quoi
répondre déjà aux objections qu’au nom de Merleau-Ponty ou du marxisme
on a pu opposer à un idéalisme de Sartre. Car l’affirmation de l’être est un
point de départ obligé: ‘il y a de l’être parce que le pour-soi est tel qu’il y ait
de l’être81.

De acordo com estas afirmações, assim como vimos anteriormente, é a facticidade do


para-si que impõe a necessidade de partir do ser. Sendo o para-si uma nadificação do em-si
que ele é - que é justamente o que caracteriza a facticidade -, para-si e em-si possuem pelo

78 Beauvoir chega a afirmar que “Sartre n’a jamais admis qu’un acte pût se produire sans motif ni une création
s’opérer ex nihilo”. BEAUVOIR, S. de. Merleau-Ponty et le pseudo-sartrisme, p. 233. O que é contestável, pois
em La Transcendance de l’Ego Sartre afirma esta segunda possibilidade. Este ponto ficará mais claro a partir das
análises de V. de Coorebyter. Com relação à afirmação de Beauvoir, melhor seria se ater à pergunta: “Mais quand
Sartre a-t-il pris le mot d’action pure au sens que Merleau-Ponty lui prête : une action sans racine dans les faits,
et sans prise sur le donné?”. Ibid., p. 243.
79 Cf. DUFRENNE, M. Jalons, p. 75.
80 Ibid., p. 76. (grifo nosso)
81 Ibid., p. 152.
!120

menos este ponto de partida em comum, por mais que seja impossível a união posterior e a
possibilidade de uma dialética aos olhos de Dufrenne. Assim, pelo fato de que Sartre
“souligne toujours la relation a l’en-soi qui ne lie pas seulement la conscience a son objet,
mais la liberté a la facticité”82, torna-se problemático, tal como o fez Merleau-Ponty, pensar o
para-si como “puro nada” que surge “do nada”, pois vimos que a negação é sempre um
nadificar do ser,e não pode ser pensada fora desta nadificação mesma.
Estas conclusões são válidas, no entanto, no contexto de L’Être et le Néant. Na época
de La Transcendance de l’Ego e do artigo sobre a intencionalidade em Husserl, na verdade,
Sartre admitia uma consciência nua, desencarnada, cuja temporalidade se aproxima às críticas
que ele posteriormente endereça a Descartes, no sentido de um cogito instantaneísta e de uma
criação ex nihilo. Esta mudança de posição se dá na época dos Carnets de la drôle de guerre,
que marcam justamente o período de maior influência das filosofias hegeliana e heideggeriana
no pensamento de Sartre em sua nova concepção de temporalidade, assim como em sua
reflexão sobre a facticidade. Encontramos no trabalho de V. de Coorebyter uma série de
investigações sobre estes dois períodos e ainda sobre os desenvolvimentos que decorrem desta
primeira mudança significativa do pensamento sartriano. Com base nesta periodização, o
ponto de crítica deste autor a Merleau-Ponty é exatamente o fato de sua leitura se basear nos
escritos iniciais de Sartre a ponto de não enxergar os pontos de transformação. Citando Le
Visible et l’Invisible, De Coorebyter afirma que Merleau-Ponty pretende encontrar nas
cinquenta primeiras páginas do capítulo “A transcendência”83 de L’Être et le Néant o conjunto
da obra sartriana, sendo que toda sua argumentação vale, na verdade, para os dois textos de
1934: La Transcendance de l’Ego e o texto sobre a intencionalidade. Sem acusá-lo de um
“pseudo-sartrismo” ou de falsificação, De Coorebyter diz, entretanto, que Merleau-Ponty tem
em vista

un Sartre fantasmé, qui aurait opposé à la totale positivité de l’en-soi l’aussi


totale négativité du pour-soi, son inexistence pure. Merleau-Ponty s’arrête à
L’intentionnalité et aux pages de L’être et le néant sur la connaissance […],
en oubliant que le rapport intentionnel est vécu dans une expérience concrète
(celle-là même que L’être et le néant baptise de préréflexif), et que la
négation de l’en-soi est interne et non externe, existée et non désertée par un
pur néant84 .

82 DUFRENNE, M. Jalons, p. 171.


83 De fato, este é o único capítulo de L’Être et le Néant citado por Merleau-Ponty no referido texto, com exceção
de uma pequena observação que se baseia num fragmento de citação do capítulo “a origem da negação”.
84 DE COOREBYTER, V. Sartre face à la phénoménologie, p. 347.
!121

De fato, algumas afirmações de Merleau-Ponty corroboram a tese de que apesar de


não ignorar a mudança, ele não a levou realmente em conta ou a negligenciou enquanto ponto
de transformações realmente significativas. Embora Merleau-Ponty afirme que após a guerra
Sartre desenvolvia aos poucos um pensamento “pas de tout en contradiction, mais très
différent de ses pensés initiales” 85 - que ele aponta como sendo o ponto de transformação da
posição sartriana em relação ao humanismo, à política e à coletividade -, ele o faz para
mostrar em seguida que Sartre “n’avait pas changé”86. Em Les Aventures de la dialectique,
Merleau-Ponty fala novamente desta mudança dialética que integra e destrói seu pensamento
inicial, mas de modo a chegar às mesmas conclusões, como por exemplo a impossibilidade da
experiência efetiva da alteridade. Ao seus olhos, Sartre continua sendo o mesmo filósofo de
L’Imaginaire, preso na dicotomia entre o certo e o provável, o que o leva a concluir que

Il n’y a donc aucune déviation de Sartre par rapport à lui-même, et il tire


aujourd’hui, dans un monde autre, les conséquences nouvelles de la même
intuition philosophique. Chez lui comme chez Descartes, le principe de se
changer plutôt que l’ordre des choses est une manière intelligente de rester
soi-même envers et contre tout87 .

Diante das problematizações que destacamos da crítica de Merleau-Ponty à filosofia


de Sartre, alguns pontos se mostraram fundamentais para o nosso próprio percurso de
investigação. A contestação feita por S. de Beauvoir nos aponta para a importância da “teoria
da facticidade” em L’Être et le Néant, assim como para a concepção de temporalidade que lá
se desenvolve para se pensar o para-si como ser-no-mundo. Consequentemente, as noções de
escolha e liberdade devem ser tomadas na dimensão da situação e deve-se realizar um estudo
sobre as significações objetivas. Já Dufrenne atenua a distância entre os dois filósofos ao
mostrar que se trata de uma diferença de acento. Para sustentar tal afirmação, ele se utiliza do
recurso de mostrar que a facticidade, enquanto ligação entre para-si e em-si torna-se chave de
contra-argumentação da tese merleau-pontyana de um sujeito que não possui inerência ao
mundo. Concluímos assim que ambos Beauvoir e Dufrenne evidenciam a importância da
teoria da facticidade como ponto de fundamental importância para a leitura de L’Être et le

85 P.II, p. 239.
86 Ibid.
87 AD, p. 268. (grifo nosso)
!122

Néant, sendo que a primeira ressalta a importância da temporalidade, que pode até possibilitar
um pensamento dialético, enquanto que Dufrenne considera ainda um dualismo entre para-si e
em-si que impossibilita este movimento. A partir destes dois pontos de extrema importância
que destacamos nestes autores - facticidade e temporalidade - a argumentação de V. de
Coorebyter de que há uma transformação significativa no pensamento de Sartre na época da
guerra, que não é considerada pela crítica de Merleau-Ponty, mostrou-se como decisiva para
nosso caminho. Justamente porque, no intuito de realizar nossa leitura de L’Être et le Néant,
tornou-se necessário evidenciar esta mudança em torno da facticidade e da temporalidade,
que serão fundamentais para a compreensão da camada de espectralidade, objetivo de
investigação da “Terceira parte”. A nosso ver, é exatamente a estrutura da facticidade que faz
com que Sartre reformule sua concepção de temporalidade de maneira que, a partir de então,
não faz mais sentido falar de uma “consciência pura” e desencarnada tal como o fazia
Merleau-Ponty.


Capítulo II
A consciência nua diante de um mundo poético

§ 1. Consciência nua e irreflexão

Os artigos do período de Sartre em Berlin (1933-34) - La Transcendance de l’Ego e


“Une idée fondamentale de la phénoménologie de Husserl : l’intentionnalité” 1- apresentam,
no contexto de sua jovem filosofia, uma primeira definição da consciência. Para chegar a tal
definição, Sartre se mostra tributário da fenomenologia de Husserl, mesmo que seu artigo
sobre o Ego seja em parte contra ele. Em La Transcendance de l’Ego, Sartre nos indica, sem
grandes explicações, que o termo “consciência” é utilizado no sentido da palavra alemã
Bewusstsein2, o qual, segundo sua interpretação, designa ao mesmo tempo a consciência total
- a mônada - e cada momento de consciência; além de acrescentar que ele não se utilizará do
termo “estado de consciência”, visto que ele implica uma dimensão de passividade3. A
exclusão da passividade no que se refere ao modo de ser da consciência é um tema importante
e voltaremos a ele. Neste momento podemos dizer que Sartre busca pensar uma consciência
autônoma e espontânea em oposição a qualquer tipo de concepção que a tomaria justamente
como uma mônada, isto é, como uma esfera fechada sobre si onde habitam conteúdos e
representações. Pois a consciência, nas palavras de Sartre, “n’est rien que le dehors d’elle-
même et c’est cette fuite absolue, ce refus d’être substance qui la constituent comme une
conscience”4. Para Sartre, este novo modo de conceber a consciência é possibilitado pelo
princípio de intencionalidade da fenomenologia de Husserl, que é o tema do pequeno artigo

1 Embora publicados alguns anos depois - La Transcendance de l’Ego em 1936 et “Une idée fondamentale…”
em 1939 - ambos os textos foram escritos no período de Sartre em Berlim em 1933-34 . Cf. CONTAT, M.;
RYBALKA, M. Les écrits de Sartre, p. 56; p. 71. Estes dois artigos foram objeto de estudo de V. de Coorebyter
em Sartre face à la phénoménologie.
2 Sartre volta a se referir ao seu conceito de consciência como uma tradução de Bewusstsein em L’Imaginaire,

embora desta vez de forma mais precisa : “Nous userons du terme « conscience », non pour désigner la monade
et l’ensemble de ses structures psychiques, mais pour nommer chacune de ces structures dans sa particularité
concrète […] nous inspirant d’un des sens allemands du mot Bewusstsein”. I’re, p. 13.
3 TE, p. 94, nota a.
4 S.I, p. 30.
!124

de 1934 - “Une idée fondamentale…”. Este artigo, juntamente com La Transcendance de


l’Ego, mostra o esforço sartriano de apresentar sua concepção de consciência a partir dos
resultados possibilitados pela fenomenologia de Husserl, de modo que podemos apreender em
ambos os textos as principais características desta noção neste primeiro período, a qual será
denominada posteriormente por Sartre como consciência nua.
O artigo sobre o Ego tem como objetivo mostrar que qualquer instância egológica não
somente é inútil para se pensar os problemas geralmente atribuídos a uma consciência - como
aqueles de unidade e individualidade - mas ainda que tal instância tornaria impossível
conceber a consciência como intencionalidade, ameaçando inclusive “touts les résultats de la
phénoménologie”5. A estratégia de Sartre para demonstrar seu argumento consiste em jogar o
Husserl de Recherches Logiques - que admitia uma consciência sem Ego - contra o Husserl
das Ideen e de Méditations cartésiennes - que introduz um Eu puro como “une transcendance
au sein de l’immanence” que “nous n’aurons pas le droit de [m]ettre hors circuit” 6, isto é,
trata-se de uma “sphère égologique absolue non touchée par la réduction” 7 -, e isto operando
uma passagem importante pelas Leçons pour une phénoménologie de la conscience intime du
temps. A tese de Sartre é a de que toda figura egológica é necessariamente material, mesmo o
Ego transcendental ou puro, que seria apenas um Eu formal. Isto significa que conceber um
Eu formal (Je formel) ou um Eu material (Moi matériel) é, no fundo, falar de um mesmo Ego,
pois “le Je et le Moi ne fond qu’un”8, visto que “un Je n’est jamais purement formel, [i]l est
toujours, même abstraitement conçu, une contraction infinie du Moi matériel” 9, ou ainda, “[le
Je] n’est qu’une face du Moi, la face active”10. Disto resulta que, para Sartre, todo e qualquer
Eu, sendo no fundo uma substância material, não pode ser introduzido na esfera da
consciência, pois todo o seu esforço se concentra em mostrar que a consciência não é
precisamente uma substância, logo, Ego e consciência possuem naturezas diferentes. A
diferença de natureza entre a região da consciência e a dos objetos é aqui fundamental e Sartre
expressará esta distinção nesta época entre a esfera do não substancial - consciência - e a da
substância através dos conceitos de translucidez e opacidade.

5 TE, p. 99.
6 HUSSERL, Ideen I, p. 190.
7 Id. Méditations cartésiennes, p. 69.
8 TE, p. 107.
9 TE, p. 104.
10 TE, p. 96.
!125

O conceito de translucidez concentra as características de “claire e lucide”11 da


consciência, as quais analisaremos com mais detalhes na “Terceira parte”. No artigo sobre a
intencionalidade, este conceito é associado ainda à ideia de movimento: “[la conscience] est
claire comme un grand vent, il n’y a plus rien en elle sauf un mouvement pour se fuir, un
glissement hors de soi”12 . Neste último trecho, Sartre associa a translucidez ao movimento
intencional, à natureza da consciência de existir como um “s’éclater vers” o mundo. Por esta
razão, qualquer conteúdo de consciência, mesmo um Eu formal, seria como um “centro de
opacidade” que não somente obscureceria a esfera clara mas também congelaria o fluxo que é
a consciência, de modo que esta perderia justamente aquilo que lhe é essencial que é existir
como intencionalidade, e daí a sentença de que “le Je transcendental, c’est la mort de la
conscience”13. Contudo, este existir como fluxo não é a única característica da consciência
translúcida e aqui entra em cena um dos traços mais fundamentais do pensamento de Sartre: a
translucidez significa que toda consciência - sendo intencional, portanto, consciente de
alguma coisa - aparece a si mesma ao mesmo tempo, embora de forma não posicional, daí a
sua lucidez. Ou seja, existe um aparecer a si mesma da consciência que não é posicional - ela
não é objeto para si mesma - mas que só ocorre enquanto a consciência é posicional dos
objetos. A translucidez, por não comportar esferas de opacidade, permite este aparecer total a
si, sem perfis, pois é puro fenômeno no sentido em que “ser” e “aparecer” se equivalem; a
consciência é assim um absoluto “tout simplement parce qu’elle est conscience d’elle-
même”14. Esta dupla lei de ser da consciência - consciência de alguma coisa e consciência de
si de forma não posicional -, caracteriza precisamente o modo de ser da consciência que
Sartre denomina nesta época de consciência irrefletida (conscience irrefléchie) ou de primeiro
grau. Se a consciência é translúcida, isto significa que a apreensão de um objeto pela

11 TE, p. 98.
12 S.I, p. 30. Grégory Cormann evidencia a semelhança entre a descrição de Sartre e uma passagem da segunda
meditação, em que Descartes compara a alma ao vento. CORMANN, G. Passion et liberté. Le programe
phénoménologique de Sartre. In: CABESTAN, P.; ZARADER, J-P. Lectures de Sartre. Paris : Ellipses, 2011, p.
99. A passagem em questão é a seguinte: “je ne m’arrêtais point à penser ce que c’était que cette âme, ou bien, si
je m’y arrêtais, j’imaginais qu’elle était quelque chose extrêmement rare et subtile, comme un vent, une flamme
ou un air très délié, qui était insinué et répandu dans mes plus grossières parties”. DESCARTES, R. Méditations
métaphysiques. Paris: Garnier-Flammarion, 1992, p. 75.
13 TE, p. 98.
14 Ibid.
!126

consciência implica uma vivência (vécu/Erlebnis)15 desta mesma aparição, na medida em que
ela é sempre acompanhada por este aparecer da consciência para si mesma16. Em suma, toda
consciência irrefletida é translúcida na medida em que é movimento não substancial em
direção ao objeto (centro de opacidade) e sua lei de existência consiste no aparecer para si
mesma ao mesmo tempo em que realiza sua estrutura intencional.
Sartre atribui a Husserl, em Leçons pour une phénoménologie de la conscience interne
du temps, a primeira elaboração filosófica desta consciência não posicional de si17. No intuito
de expor seu argumento sobre a consciência não posicional a fim de provar que “il n’y a pas
de Je sur le plan irréfléchi”18, Sartre recorre a uma “expérience concrète” para mostrar que
toda consciência irrefletida, como pensava Husserl, “laisse un souvenir non-thétique que l’on
peut consulter”19. Exatamente porque toda intencionalidade é vivida, isto é, toda apreensão de
objetos se dá por esta consciência que se autoaparece, torna-se possível a rememoração das
apreensões passadas sem perder de vista certa “épaisseur de conscience irréfléchie”20 que
fornece os resultados apreendidos de forma não tética, os quais podem posteriormente ser
objeto de uma tese. Para Sartre, este exemplo demonstra a possibilidade de apreender que
nestes momentos de pura irreflexão não há Eu na consciência, dado que ele só aparece na
reflexão, isto é, quando a cena rememorada é atribuída a um sujeito. Em Husserl, esta
possibilidade de refletir e rememorar é garantida pela estrutura temporal da retenção, que se
caracteriza pelo fato de que “avec le surgissement d’une donnée originaire, d’une phase
nouvelle, la précédente n’est pas perdue, mais « gardée en tête » (c’est-à-dire précisément
« retenue ») et grâce à cette rétention est possible un regard en arrière sur ce qui est écoulé ; la
rétention elle-même n’est pas ce regard en arrière qui fait de la phase écoulé un objet” 21. Este
“olhar para trás” é possibilitado assim pela retenção (que não é reflexão ou rememoração, mas

15 Optamos por traduzir Erlebnis, termo husserliano que a tradição fenomenológica francesa traduz por le vécu,
por “vivência”, de modo a acompanhar o sentido de vivência da palavra em alemão em concordância com o
substantivo francês e não com o particípio passado “vivido”. Em francês o substantivo le vécu diz respeito a uma
experiência vivida, uma vivência, mas a tradução por expérience não conseguiria fazer uma distinção do sentido
desta palavra neste contexto e naquele do empirismo.
16 Como demonstra De Coorebyter, só há consciência intencional de um objeto se há, ao mesmo tempo, esta

consciência não posicional de si como “condition vivante” da intencionalidade. Sem esta consciência, a
“consciência de alguma coisa” não seria vivida (vécue), no sentido de Michel Henry, “sartrien qui s’ignore
suberbement”. DE COOREBYTER, V. Notes. In: SARTRE, J-P. La Transcendance de l’Ego et autres textes
phénoménologiques. Paris: Vrin, p.167-217, 2003. p. 181-2, n. 24.
17 CSCS, p. 150.
18 TE, p. 102.
19 TE, p. 100.
20 TE, p. 101.
21 HUSSERL, E. Leçons pour une phénoménologie de la conscience intime du temps. Paris: PUF, 2013, p. 159.

(A partir de agora referido como Leçons)


!127

a sua possibilidade) e Sartre admite do mesmo modo esta característica da consciência que é a
de reter uma “épaisseur de la conscience irrefléchie” que “laisse un souvenir non-thétique que
l’on peut consulter”, “gardée en tête”, tanto que este é o seu recurso para provar a tese de que
não há Eu no plano irrefletido22. No entanto, há outra maneira de “olhar para trás” que não a
irreflexão, desta vez para fazer da consciência um objeto de tese, modificando sua estrutura,
que é o caso da reflexão, plano derivado do primeiro e de onde surge o Eu. Neste ponto, Sartre
se apoia ainda nas premissas de Husserl que, a seu ver, demonstra muito bem como a
passagem do irrefletido ao refletido modifica a natureza da consciência de modo que “il faut
donc distinguer : l’être pré-phénomenal des vécus, leur être avant qu’on se tourne vers eux par
la réflexion, et leur être comme phénomène. Quand on se tourne attentivement vers le vécu et
qu’on le saisit, il obtient un nouveau mode d’être” 23. Porém, enquanto na fenomenologia
husserliana esta transformação é visada em termos de “perda de ingenuidade” da atitude
natural, Sartre pensa que a mudança mais essencial é exatamente a aparição do Eu (Je) para a
consciência reflexiva24 . Esta diferença é significativa uma vez que ela evidencia que Husserl
busca fazer uma distinção entre o fluxo pré-reflexivo e a reflexão tendo em vista os resultados
da reflexão, enquanto que Sartre faz o movimento contrário, ao focar sobre a natureza do pré-
reflexivo (irrefletido). É neste sentido que V. de Coorebyter afirma que o pré-reflexivo em
Husserl é “antisartrien”, pois, enquanto que “l’irréfléchie husserlien n’est rien d’autre que
cette “possibilité de la réflexion”, que cette ébauche dont toute la dignité tient à ce qu’elle
autorise et prépare la réflexion”, em Sartre é a reflexão que deve ser definida a partir do
irrefletido25. Com base nesta diferença é que podemos compreender o porquê de Sartre
designar o campo irrefletido como esfera “pura”, ao passo que a reflexão é vista como um

22 Embora Sartre não fale aqui em retenção e nem em protensão (direção ao porvir). Além disso, em La
Transcendance de l’Ego, Sartre não confronta a teoria do tempo husserliana com a sua que, como veremos, se
caracteriza nesta época como uma temporalidade instantaneísta. A respeito da teoria do tempo em Husserl, Sartre
conclui da seguinte maneira: “On dira que pourtant il faut un principe d’unité dans la durée pour que le flux
continuel des consciences soit susceptible de poser des objets transcendants hors de lui. Il faut que les
consciences soient des synthèses perpétuelles des consciences passées et de la conscience présente. C’est exact.”
TE, p. 97. Podemos observar neste trecho que Sartre sequer fala da protensão e ainda que, segundo De
Coorebyter, trata-se de uma leitura mais kantiana do que husserliana da retenção, o que sugere o uso do termo
“síntese”, ausente do §39 das Leçons. DE COOREBYTER,V. Notes, p. 179, n. 15. Já em L’Imaginaire, Sartre se
refere novamente à teoria do tempo husserliana, desta vez utilizando-se do vocabulário das Leçons, mas ainda
nos moldes da síntese: “Une conscience est tout entière synthèse, tout entière intime à elle-même : c’est au plus
profond de cette intériorité synthétique qu’elle peut se joindre, par un acte de rétention ou de protention, à une
conscience antérieure ou postérieure.” I’re, p. 57.
23 HUSSERL, E. Leçons, p. 176.
24 Cf. TE, p. 100.
25 DE COOREBYTER, V. Sartre face à la phénoménologie, p. 305.
!128

“envenenamento”: “avant d’être « empoisonnés » mes désirs ont été purs; c’est le point de vue
que j’ai pris sur eux qui les a empoisonnés”26.
A pré-reflexividade em Husserl (que não usa este termo) pode ser considerada a partir
do jogo de intencionalidades que ele descreve no §39 das Leçons, em que procura mostrar que
é o próprio fluxo da consciência que se constitui como unidade, posição que é cara a Sartre
em seu intuito de mostrar a inutilidade de um Eu como centro unificador de consciências. La
Transcendance de l’Ego dá simplesmente como resolvida a questão por Husserl e aceita esta
autounificação do fluxo da consciência, o que soluciona de um só golpe este problema e
também o de garantia de individualidade. No entanto, nesta época, o próprio Husserl não
devia estar suficientemente convencido de suas análises quando diz que “aussi choquant
(sinon même absurde au début) que cela semble de dire que le flux de la conscience constitue
sa propre unité, il en est pourtant ainsi”27. Esta posição arbitrária, que assume um
estranhamento, nos leva a suspeitar que esta falta de argumentação teórica seja um indício do
fato de que a questão da unidade teve de ser repensada em sua filosofia com a posterior
inserção do Eu transcendental, que cumpre tal função. De todo modo, em La Transcendance
de l’Ego, Sartre só acrescenta ao problema o fato de que o próprio objeto transcendente
visado pelas consciências faz o papel de garantir a unidade, com o objetivo de provar que não
há necessidade de um Eu formal.
No contexto das Leçons, a unidade do fluxo se dá por um jogo de duas
intencionalidades que operam em cada consciência do tipo “retenção” - e que se exigem
mutuamente, dado que são “deux côtés d’une seule et même chose, enlacées l’une à l’autre” 28,
de modo a permitir a apreensão do fluxo em sua duração temporal. Em outros termos, para
que haja consciência de durar, é necessário que o fluxo de consciência apareça a si mesmo
através das retenções, senão seria impossível caracterizar uma fase como “atual” ou como
“agora”29. Assim, torna-se indispensável que uma temporalidade se dê para constituir um
outro tempo, onde qualquer coisa dura. A primeira temporalidade - constituínte - é dada pela
intencionalidade longitudinal30 , enquanto que a temporalidade de algo que dura é dada pela

26 TE, p. 107.
27 HUSSERL, E. Leçons, p. 105-106.
28 Ibid., p. 108.
29 Ibid., p. 160.
30 Que Sartre chama de “transversal”. Cf. TE, p. 97. Em L’Imaginaire, Sartre fala novamente em consciência

transversal, mas desta vez para designar a consciência não posicional de si que em La Transcendance de l’Ego
era designada unicamente como irrefletida. Cf. I’re, p. 35; p. 287.
!129

intencionalidade transversal. Nas palavras de Rudolf Bernet, enquanto a primeira é uma


temporalidade da relação a si (longitudinal) a segunda é uma temporalidade da relação as
coisas (transversal)31 . A intencionalidade que correspondente à relação da consciência consigo
mesma interessa a Sartre, como vimos, no que se refere ao plano de pré-reflexividade, isto é,
no intuito de se pensar uma consciência que deve ser consciente de si “en chacune de ses
phases”32, de modo não posicional. Mas, apesar este ponto de convergência, para Nathalie
Monnin, a versão sartriana revela, na verdade, um aspecto que não fora bem identificado por
Husserl visto que este último “ne repère pas bien la différence de plan et la distance qui sépare
le préreflexif du réflexif”33. Enquanto que Bernet chama a atenção para o fato de que “cette
intentionnalité longitudinale met en œuvre une conscience de soi d’un type tout à fait nouveau
et inattendu chez Husserl, puisqu’il s’agit d’une conscience pré-réflexive et non-objectivante
dans laquelle le soi se donne « après-coup » (nachtrâglich)”34. Discordâncias à parte a
respeito da originalidade de cada concepção de pré-reflexividade, é certo afirmar que a partir
das características da consciência dadas pela fenomenologia de Husserl, como a
intencionalidade e a pré-reflexividade, Sartre pôde elaborar sua concepção de consciência
irrefletida como pura translucidez.
A consciência irrefletida é inicialmente inspirada sobretudo na posição de Husserl em
Recherches Logiques que admite uma consciência sem Eu, a qual se unifica no tempo (e por
isso é individual) - como mostra as Leçons -, na medida em que aparece a si mesma, ao
mesmo tempo em que posiciona um objeto transcendente segundo sua estrutura intencional.
Sartre pensa esta consciência do mesmo modo que aquela que Husserl alcança por via da
redução fenomenológica: purificada de qualquer conteúdo (ponto ressaltado no artigo sobre a
intencionalidade), inclusive, como vimos, de um Eu. A partir desta ideia de uma consciência
pura, Sartre opera ainda com uma divisão entre um campo transcendental impessoal e um

31 BERNET, R. Origine du temps et temps originaire chez Husserl et Heidegger. Revue Philosophique de
Louvain. v. 85.n. 68, p. 499-521, 1987.
32 HUSSERL, E. Leçons, p. 160.
33 MONNIN, N. Une réflexion pure est-elle possible? Alter: Sartre phénoménologue. n. 10, p. 201-227, 2002, p.

207. Embora seja aqui que identificamos a tentativa husserliana de pensar uma dimensão pré-reflexiva, a
diferença de conteúdo nas elaborações de ambos os autores é significativa, conforme evidencia a própria autora.
Husserl desenvolve as descrições das intencionalidades transversais e longitudinais a fim de dar conta da
constituição do tempo, o que não parece ser o objetivo de Sartre nesta época, ao pensar uma consciência não
posicional de si; tanto que este menciona em La Transcendance de l’Ego a consciência “transversal” de Husserl
no intuito de pensar a unidade do fluxo. O ponto em comum parece ser o de que a intencionalidade longitudinal
em Husserl possui uma dimensão de “autoaparição”, mas que só pode ser apreendida por uma reflexão
objetivante. Para Monnin, é a concepção sartriana de reflexão pura que tentará dar conta deste problema.
34 BERNET, R, op.cit., p. 507.
!130

plano da humanidade. O primeiro, pura translucidez, não pode comportar nenhuma esfera
egológica35 ou qualquer outro tipo de conteúdo e por isso trata-se de um plano transcendental
sem sujeito nem objeto, como define La Transcendance de l’Ego36 . No intuito de pensar em
como se constitui o “plano da humanidade”, ou o plano pessoal, Sartre revela que segue
Husserl “dans chacune des admirables descriptions où il montre la conscience transcendentale
constituant le monde en s’emprisonnant dans la conscience empirique”37 . Este
“aprisionamento” é constituído pela esfera transcendental, mas esta última não é pensada no
sentido kantiano - como uma condição de possibilidade, somente de direito -, mas trata-se de
uma esfera “de fato”, “accessible à chacun de nous dès qu’il a opéré la « réduction »”38.
No texto em questão, Sartre demonstrará, na verdade, como se constituem os objetos
psíquicos que compõem o Ego, através de um tipo de reflexão que ele denominará de impura
ou cúmplice, conforme analisaremos na “Terceira parte”. Esta divisão entre a esfera
translúcida transcendental pura e a esfera pessoal, “niveau de l’humanité”, impura, permanece
presente pelo menos até os primeiros Carnets de la drôle de guerre, onde Sartre descreve o
que ele denomina de consciência nua (conscience nue). Dito isto, em La Transcendance de
l’Ego, Sartre atribui o Eu à esfera pessoal impura: “le Je n’apparaît qu’au niveau de
l’humanité”39. Mas esta posição suscita interrogações: se o Eu (Je) aparece somente no nível
da humanidade, isto significa que Sartre admite uma consciência que não seja humana? O que
seria esta humanidade? Como uma consciência não humana se torna consciência humana?
Estas questões não são discutidas em seu primeiro texto e nem posteriormente, mas de fato
Sartre se refere a uma consciência desumanizada ao longo do primeiro carnet como, por

35 Observamos ainda que o que o autor denomina neste texto de pessoalidade está vinculado a presença de
alguma forma de um Eu no campo transcendental da consciência. Como veremos mais adiante, há uma mudança
de posição com relação a este ponto, já que, em L’Être et le Néant, Sartre irá admitir uma concepção de
pessoalidade não mais vinculada a um Eu - dado que este continuará sendo compreendido como um objeto
transcendente para a consciência - mas através do circuito de ipseidade do para-si.
36 Ver também CSCS, p. 156. A caracterização sartriana de um campo sem sujeito nem objeto inspirou Deleuze

em suas análises sobre um puro plano de imanência, embora para ele “[...] a relação do campo transcendental
com a consciência é somente de direito”. DELEUZE, G. L’immanence: une vie… In: Deux régimes de fous:
textes et entretiens 1975-1995. Paris : Minuit, 2003, p. 359. A originalidade sartriana consiste no que J-M.
Mouillie denominou de uma “subjetividade sem sujeito”, a partir da qual se pode conceber a consciência
enquanto dimensão de aparição dos fenômenos e não um fenômeno subjetivo em si, de onde mesmo o sujeito,
enquanto fenômeno entre outros, provém. MOUILLIE, J-M. Sartre: Conscience, ego et psyche. Paris: PUF,
2000, p. 48. É ainda neste sentido que, para alguns, é possível compreender retrospectivamente esta primeira
posição sartriana, exposta principalmente em La Transcendance de l’Ego, como um primeiro sinal da “morte do
sujeito”. DE COOREBYTER, V. Introduction. In: SARTRE, J-P. La Transcendance de l’Ego et autres textes
phénoménologiques. Paris: Vrin, p. 7-76, 2003, p. 7.
37 TE, p. 95-96.
38 TE, p. 95.
39 TE, p. 96.
!131

exemplo, quando ele escreve a respeito de sua experiência na guerra: “La Guerre est une
invite à me perdre, à renoncer à moi totalement, même à mes écrits, à lâcher tout ce que je
tenais si âprement, pour n’être plus q’une conscience nue contemplant les diverses vies
interrompues de mon moi”40. A interpretação bastante peculiar que Sartre fornece à
consciência transcendental faz com que ele a considere como uma dimensão impessoal cujo
acesso permitiria um tipo de posição do olhar em relação a si mesmo que seria aquela de um
“árbitro” que julga de fora e “do alto” sua humanidade: “Ce spectateur, c’est la conscience
transcendantale, désincarnée, qui regarde “son” homme”41. A redução fenomenológica toma
aqui a forma de um desprendimento da humanidade e através dela Sartre procura se colocar
“acima do homem [em si mesmo]”42. Parece ser então neste sentido que Sartre compreende a
constituição empírica a partir da consciência transcendental como processo de “[une]
conscience transcendantale qui se fait réalité-humaine43”; e isto o leva ainda a comparar a
redução fenomenológica a uma espécie de morte que “supprime l’homme entre la conscience
et le monde […]. La mort est un événement au niveau de l’homme et non au niveau de la
conscience”44. Podemos ver claramente a partir destes trechos que a consciência nua se
caracteriza justamente por ser uma radicalização da consciência transcendental husserliana,
que se revela nesse contexto como campo sem sujeito nem objeto, impessoal, a partir do qual
a humanidade toma sua forma. Tendo em vista esta radicalização da morte como
acontecimento no nível da humanidade, conclui Sartre: “Il reste une conscience nue sans point
de vue en face d’un monde nu”45.

a) o “mundo dos profetas e dos artistas” e o mundo nu.

No pequeno artigo sobre a intencionalidade em Husserl, Sartre utiliza-se da concepção


fenomenológica da consciência como via de superação do idealismo e do realismo, conforme
vimos na “Primeira parte”. Nesta época, ele acredita que a intencionalidade husserliana, que

40 CDG, p. 184. (grifo nosso)


41 CDG, p. 234.
42 Ibid.
43 Esta frase evidencia uma tentativa ainda muito superficial da parte de Sartre de unir as filosofias heideggeriana

e husserliana. Isto porque, em Heidegger, além de não podermos compreender o Dasein com base num
paradigma da consciência, tal concepção difere radicalmente da ideia de uma “realidade-humana”, entendida
como nível da humanidade, já que a crítica heideggeriana se dirige justamente às premissas metafísicas do
humanismo.
44 CDG, p. 227.
45 Ibid.
!132

em L’Être et le Néant será criticada como uma “caricatura”46, permite pensar um mundo ao
mesmo tempo exterior à consciência - não transformado em ideias e representações pelo
“espírito aranha” do idealismo - e relativo a ela : “La conscience et le monde sont donnés d’un
même coup”47 . A seu ver, isto permite escapar também ao realismo, já que o mundo se revela
como campo fenomenal onde as coisas já aparecem à consciência contendo significações e
qualidades objetivas, conforme o exemplo aparentemente sem sentido que encontramos neste
texto: “C’est une propriété de ce masque japonais que d’être terrible, une inépuisable,
irréductible propriété qui constitue sa nature même” 48. A tarefa do autor neste breve texto
consiste em desfazer a interioridade “gástrica” do sujeito, cujos processos psicológicos ou
mentais projetariam qualidades no mundo exterior. Para tal, a consciência deve ser
movimento em direção a um mundo que já aparece com suas significações objetivas - que não
são a soma de reações subjetivas de um sujeito - mas que resultam desta maneira de “s’éclater
vers” alguma coisa; aqui Sartre conclui, em afinidade com La Transcendance de l’Ego,
dizendo que “tout est dehors, tout, jusqu’à nous-mêmes : dehors, dans le monde, parmi les
autres”49. Neste pequeno texto sobre a intencionalidade, Sartre chega a citar Heidegger e a
noção de ser-no-mundo para exprimir esta maneira intencional de se estar jogado no “fora”,
no mundo, embora ele ainda não tenha os recursos que serão essenciais para integrar esta
noção ao seu pensamento, como ocorrerá posteriormente, conforme veremos em nossas
análises de L’Être et le Néant. De todo modo, a intencionalidade permite que uma nova
concepção de mundo se desenhe aos seus olhos como campo fenomenal, onde as coisas
aparecem em sua textura mesma, mas relativas à consciência, sem que com isso sejam
interiorizadas e assimiladas por ela, pois “Husserl ne se lasse pas d’affirmer qu’on ne peut pas
dissoudre les choses dans la conscience”50. Este mundo fenomenal, referido como “le monde
des artistes et des prophètes”51 , ao ser relativo à consciência, já aparece, como dissemos,
qualificado e com suas significações próprias. A este aparecer, Sartre atribui qualidades que
seriam ligadas tradicionalmente à concepção subjetiva dos sentimentos e nisto reside seu
caráter poético: as coisas aparecem como sendo “effrayant, hostile, dangereux, avec des

46 EN, p. 145.
47 S.I, p. 30.
48 S.I, p. 32.
49 S.I, p. 32.
50 S.I, p. 29.
51 S.I, p. 32.
!133

havres de grâce et d’amour”52. Em La Transcendance de l’Ego, encontramos algumas pistas


sobre esta ideia tão brevemente evocada no artigo que viemos de citar no momento em que
Sartre se contrapõe à teoria dos sentimentos dos chamados “moralistas do amor próprio” (La
Rochefoucauld, Pascal). Para estes, todo ato de consciência seria essencialmente um “retorno
sobre si”, gesto que é identificado na argumentação sartriana como sendo próprio da função
de um Eu material. Falaremos deste último aspecto em nossas análises posteriores sobre o
Ego, mas gostaríamos de ressaltar um ponto do exemplo que Sartre fornece nesta parte do
texto, onde ele afirma que se ajudamos alguém, não o fazemos para cessarmos em nós mesmo
um estado desagradável de “não ajudar quem precisa”, mas agimos irrefletidamente atraídos
pela força com que nos aparece a cena de alguém-que-deve-ser-socorrido. Em outros termos,
se ajudo Pierre, diz Sartre, não é porque há um Eu escondido por detrás de meu ato que o
exige, mas “il n’y a pas de Moi : je suis en face de la douleur de Pierre comme en face de la
couleur de ce encrier. Il y a un monde objectif de choses et d’actions, faites ou à faire, et les
actions viennent s’appliquer comme des qualités sur les choses qui les réclament”53. Há assim
um mundo objetivo de coisas que clamam por ações, que faz com que a qualidade de “deve-
ser-socorrido” se encontre em Pierre de modo que ele age sobre a consciência “comme une
force”54. Ao estabelecer uma consciência como um plano transcendental sem sujeito nem
objeto, Sartre acredita restituir o “mundo dos artistas e dos profetas” como um campo
fenomenal qualificado e com significações objetivas que exercem uma forca de ação na
consciência, o que não quer dizer que a consciência aja passivamente, mas sim que ela é
solicitada a todo momento pelos objetos: “Quand je cours après un tramway, quand je regarde
l’heure, quand je m’absorbe dans la contemplation d’un portrait, il n’y a pas de Je. Il y a
conscience du tramway-devant-être-rejoint, etc., et conscience non positionnelle de la
conscience”55. Esta elaboração inicial sobre a estrutura de desvelamento do mundo será aos
poucos enriquecida pelos novos instrumentos conceituais que surgem posteriormente através,
principalmente, da leitura de Être et Temps de Heidegger e sua concepção prática dos
instrumentos, conforme podemos vislumbrar já em L’Imaginaire e de forma mais elaborada
em L’Être et le Néant, como veremos mais adiante.

52 S.I, p. 32.
53 TE, p. 105. (grifo nosso)
54 Ibid.
55 TE, p. 102.
!134

Diante disso, de que modo este mundo poético, de forças, colorações, “horreur et
charme dans les choses”56, pode ser comparado ao “mundo nu”, revelado pela consciência
nua? Mesmo que a formulação acima citada - il reste une conscience nue sans point de vue en
face d’un monde nu - seja feita na época do primeiro dos Carnets, ela se baseia ainda nesta
consciência desencarnada e impessoal que nos apresentam os textos do período berlinense.
Esta mesma afirmação, como vimos, se refere à visão particular sartriana da redução
fenomenológica enquanto uma consciência transcendental “qui regarde ‘son’ homme”, de
acordo com a divisão entre uma consciência transcendental impessoal - sem Eu - e o plano da
“humanidade”. O que seria então este mundo nu? Sartre não o descreve nestes textos, mas
podemos recorrer ao seu romance La Nausée para pensá-lo, assim como para investigarmos
esta divisão de planos57.

La Nausée retrata a experiência de um homem solitário58 em uma pequena cidade de


província, Bouville: “Moi je vis seul, entièrement seul. Je ne parle à personne, jamais ; je ne
reçois rien, je ne donne rien” 59, fala Antoine Roquentin, personagem que aos poucos é tomado
pela experiência da náusea, que o faz questionar a existência das coisas e a sua própria. A
partir da experiência solitária de Roquentin, podemos situar o “plano da humanidade” em
meio a hierarquia das convenções sociais que Sartre associa ao humanismo burguês. Em
contraposição, é possível captar o mundo “nu” e o “tempo nu” que vêm à luz pela náusea,
como a experiência da consciência transcendental nua, desprendida de sua humanidade:

56 S.I, p. 32.
57 Pensamos a relação entre as obras propriamente filosóficas e as obras literárias de Sartre de acordo com a ideia
de Franklin Leopoldo e Silva de “vizinhança comunicante”. Segundo este autor, falar de uma vizinhança
comunicante entre as diferentes formas de produção sartriana significa ter em vista que cada meio de expressão
resguarda sua particularidade, mas acessa o outro por uma espécie de “via interna”, sem mediação exterior. Isto
que dizer que não cabe à literatura, por exemplo, concretizar a filosofia, que seria abstrata. Ambas as expressões
se dão devido à interligação abstrato-concreto/universal-particular presente na obra sartriana como um todo.
SILVA, F. L. Ética e literatura em Sartre: ensaios introdutórios. São Paulo: Unesp, 2004. Dito isto, cremos ser
legítimo e rico explorar esta interrelação em nossa investigação, tal como faremos em seguida com La Nausée.
58 O mito do “homem só” (L’homme seul) é tema de várias análises de V. de Coorebyter sobre os romances

sartrianos La Nausée e Légende de la vérité (Ver: DE COOREBYTER, V. Sartre face à la phénoménologie).


Trata-se do retrato de “un individu dénué d’ancrage, indifférent aux attentes collectives, libéré de tous les
prismes sociaux qui aveuglent l’Université et les savants”. DE COOREBYTER, V. L’Être et le néant, ou le
roman de la matière, p. 1. É o que podemos pressentir já na epígrafe do romance, com a frase de Céline: “C’est
un garçon sans importance collective, c’est tout juste un individu”. N, p. 9.
59 N, p. 21.
!135

Je n’était pas un grand-père, ni un père, ni même un mari. Je ne votais pas,


c’était à peine si je payais quelques impôts : je ne pouvais me targuer ni des
droits du contribuable, ni de ceux de l’électeur, ni même de l’humble droit à
l’honorabilité que vingt ans d’obéissance confèrent à l’employé. Mon
existence commençait à m’étonner sérieusement. N’était-je pas une simple
apparence60 ?

Neste contexto, Sartre introduz aos poucos uma distinção entre o mundo que nos
aparece cotidianamente em sua familiaridade e a experiência da estranheza, numa afinidade
inesperada com o tema da inautenticidade heideggeriana que precede sua leitura mais
aprofundada de Être et Temps. Na verdade, antes mesmos dos episódios em que é tomado pela
náusea, Roquentin já vive certa estranheza por ser um “homem só”, pois ele evidencia a todo
tempo que os sentidos habituais são dados pela convenção social, como podemos observar na
famosa cena em que ele vê o próprio rosto diante do espelho:

[la chose grise] c’est le reflet de mon visage. Souvent, dans ces journées
perdues, je reste à le contempler. Je n’y comprends rien, à ce visage. Ceux
des autres ont un sens. Pas le mien. Je ne peux même pas décider s’il est beau
ou laid. Je pense qu’il est laid, parce qu’on me l’a dit. Mais cela ne me frappe
pas. Au fond je suis même choqué qu’on puisse lui attribuer des qualités de
ce genre, comme si on appelait beau ou laid un morceau de terre ou bien un
bloc de rocher61.

Peut-être est-il impossible de comprendre son propre visage. Ou peut-être


est-ce parce que je suis un homme seul? Les gens qui vivent en société ont
appris à se voir, dans les glaces, tels qu’ils apparaissent à leurs amis. Je n’ai
pas d’amis : est-ce pour cela que ma chair est si nue? On dirait - oui, on dirait
la nature sans les hommes62 .

Aos poucos o personagem solitário vai desfazendo aos olhos do leitor a familiaridade
dos sentidos convencionais através dos quais o mundo na maioria das vezes se apresenta, por
via de uma experiência que encontrará seu auge na náusea, com o consequente desvelamento
do “mundo nu”. O mundo “dos profetas e dos artistas” sofre assim um desencantamento que
nos convida a uma desnaturalização dos sentidos, própria à reflexão fenomenológica: “C’est
donc ça la Nausée : cette aveuglante évidence?” 63, diz Roquentin. Contudo, longe de ser uma
experiência voluntária, ou um método de filósofo, a náusea é um acontecimento que nada
pode prever ou controlar; ela é uma experiência involuntária que, ainda de acordo com La

60 N, p. 127. (grifo nosso)


61 N, p. 33-4.
62 N, p. 36.
63 N, p. 175.
!136

Transcendance de l’Ego e “Une idée fondamentale…”, não se caracteriza como experiência


subjetiva ou psicológica de um sujeito, mas como uma transformação da consciência
mergulhada no mundo: “La Nausée n’est pas en moi : je la ressens là-bas sur le mur, sur les
bretelles, partout autour de moi. Elle ne fait qu’un avec le café, c’est moi qui suis en elle” 64.
Roquentin procura manter-se a salvo da náusea pela experiência de “purificação” da
consciência transcendental sartriana, solitária, nua e desencarnada, desprendida de sua
humanidade, como uma abstenção do mundo que só vem a ser perturbada pelos outros: “La
Nausée est restée là-bas, dans la lumière jaune. Je suis heureux : ce froid est si pur, si pur cette
nuit; ne suis-je pas moi-même une vague d’air glacé? N’avoir ni sang, ni lymphe, ni chair.
Couler dans ce long canal vers cette pâleur là-bas. N’être que du froid. Voilà des gens. Deux
ombres. Qu’avaient-ils besoin de venir ici?” 65. Diante desta “consciência pura” se desvela um
“mundo nu” - “le boulevard Noir est inhumain. Comme un minéral. Comme un triangle”66 -
não como resultado de uma redução fenomenológica de saída da atitude natural, mas como
um desvelamento existencial do mundo mais radical do que um método que busca alcançar as
bases sólidas do conhecimento 67. Segue-se que o “mundo nu” revelará um dos conceitos mais
fundamentais da filosofia sartriana, que permanecerá sendo relevante nos trabalhos
posteriores: a contingência da existência. Esta “revelação” acontece na conhecida cena do
jardim público, onde Roquentin reconhece, diante de uma raiz de castanheiro, que a náusea
não era mais algo que simplesmente o tomava à sua revelia, mas era sua própria existência:

J’étais assis, un peu voûté, la tête basse, seul en face de cette masse noire et
noueuse, entièrement brute et qui me faisait peur. Et puis j’ai eu cette
illumination. Ça m’a coupé le souffle. Jamais, avant ces derniers jours, je
n’avais pressenti ce que voulait dire « exister ». J’étais comme les autres,
comme ceux qui se promènent au bord de la mer dans leurs habits de
printemps. Je disait comme eux « la mer est verte; ce point blanc, là-haut,
c’est une mouette », mais je ne sentait pas que ça existait, que la muette était
une « mouette-existante »; à l’ordinaire l’existence se cache. Elle est là,
autour de nous, en nous, elle est nous, on ne peut pas dire deux mots sans
parler d’elle et, finalement, on ne la touche pas. Quand je croyais y penser, il
faut croire que je ne pensais rien, j’avais la tête vide, ou tout juste un mot
dans la tête, le mot « être ». Ou alors, je pensais…comment dire? Je pensais
l’appartenance, je me disait que la mer appartenait à la classe des objets verts
ou que le vert faisait partie des qualités de la mer. Même quand je regardait
les choses, j’étais à cent lieues de songer qu’elle existaient : elles
m’apparaissaient comme un décor. Je les prenais dans mes mains, elles me
servaient d’outils, je prévoyais leurs résistances. Mais tout ça se passait à la

64 N, p. 38.
65 N, p. 47. (grifo nosso)
66 N, p. 46.
67 BORNHEIM, G. Sartre.
!137

surface. Si l’on m’avait demandé ce que c’était que l’existence, j’aurais


répondu de bonne foi que ça n’était rien, tout juste une forme vide qui venait
s’ajouter aux choses du dehors, sans rien changer à leur nature. Et puis voilà :
tout d’un coup, c’était là, c’était clair comme le jour : l’existence s’était
soudain dévoilée. Elle avait perdu son allure inoffensive de catégorie
abstraite : c’était la pâte même des choses […] la diversité des choses, leur
individualité n’était qu’une apparence, un vernis. Ce vernis avait fondu, il
restait des masses monstrueuse et molles, en désordre - nues, d’une effrayante
et obscène nudité68 .

O mundo nu é o mundo da existência contingente que se esconde cotidianamente


através dos sentidos socialmente construídos. Aqui o mundo cotidiano, antes celebrado como
sendo o “dos artistas e dos profetas”, ganha o ar de mascaramento de uma existência bruta que
só uma experiência radical pode revelar, onde nada mais pode ser “nomeado”69, como o era a
terrível máscara japonesa. Através da experiência da náusea, a técnica romanesca sartriana
mostra os limites mesmos da redução fenomenológica, diz De Coorebyter: “la scène du jardin
public est écrite en partie double, multipliant les variations imaginatives à la recherche
d’essences dont Sartre montre qu’elles sont sans cesse débordées par une profusion
existentielle qui requiert un traitement romanesque car elle résiste à l’analyse
intentionnelle”70. No contexto de La Nausée, Sartre faz, na verdade, uma distinção entre “o
mundo das explicações e das razões” e o “mundo da existência” 71, o primeiro como lugar dos
sentidos convencionais que se estabelecem por “preguiça”72 e que são na verdade “faibles
barrières” contra um mundo da existência onde “tout, tout pouvait arriver”73. Enquanto que a
fenomenologia husserliana introduz a possibilidade de apreender o mundo como campo
fenomenal - dos profetas e dos artistas -, colorido com suas significações objetivas e
qualidades, a experiência da náusea, enquanto uma transformação existencial de si e do
mundo, desvela o “mundo nu”, da pura contingência da existência que é, na verdade, aquele
que se revela ao “espanto” (Thaumazein) diante do existir sem explicação e sem porquê. Os

68 N, p. 181-2.
69 Segundo De Coorebyter, “c’est pourquoi La nausée est un roman et non un essai ou un récit autobiographique
: le choc décrit par Roquentin n’est ni une rencontre vécue par l’auteur, ni l’exposé d’un concept, mais le seul
moyen alors accessible de « réaliser » la contingence sous les yeux du lecteur - l’expérience de l’être brut ne se
laissant décrire que comme expérience brute de l’être, et non penser en catégories, inadéquates par nature”. DE
COOREBYTER, V. Sartre avant la phénoménologie, p. 82-3.
70 Ibid., p. 85.
71 N, p. 184.
72 Mundo no qual Roquentin, como mencionamos anteriormente, já vivia com estranheza, dado que ao se manter

isolado socialmente, ele sentia que não pertencia ao “plano da humanidade”, o qual era dado somente aos outros
e não a si: “Quand je suis sorti de la brasserie Vézelise, il était près de trois heures; je sentais l’après-midi dans
tout mon corps alourdi. Pas mon après-midi : la leur, celle que cent mille Bouvillois allaient vivre en commun”.
N, p. 79.
73 N, p. 115.
!138

planos da humanidade e da subjetividade transcendental se caracterizam, portanto, pelas


experiências de imersão em dois mundos distintos: o mergulho irrefletido no campo
fenomenal do “mundo dos profetas e dos artistas” e a experiência da náusea, mais radical que
a redução fenomenológica, de desvelamento do “mundo nu”.

b) A temporalidade instantaneísta: aventura e tempo nu.

Em La Transcendance de l’Ego, a consciência nua é descrita como um absoluto de


existência que é pura espontaneidade. Esta definição pressupõe uma concepção do tempo:
“Nous pouvons formuler notre thèse : la conscience transcendantale est une spontanéité
impersonnelle. Elle se détermine à l’existence à chaque instant, sans qu’on puisse rien
concevoir avant elle. Ainsi chaque instant de notre vie consciente nous révèle une création ex
nihilo. Non pas un arrangement nouveau, mais une existence nouvelle” 74. Dito de outro
modo, o movimento intencional da consciência é compreendido como sendo pura
espontaneidade, no sentido de produção de uma existência nova a cada momento, como uma
pura criação que se dá ex nihilo. Este puro movimento de criação é impessoal e é o mundo
que aparece como solicitando as ações da consciência a cada momento de uma nova maneira.
Como este campo é impessoal, seu Eu, trata-se de uma criação “sem criador”, que retira do
homem e suas vontades qualquer controle sobre si ou sobre o desvelamento do mundo75. O
plano da consciência desencarnada no mundo é somente um “há” a cada vez novo, das coisas
presentes, cuja experiência pode ser apresentada pela consciência caso ela opere uma reflexão
que Sartre denomina justamente de pura. Mas esta primeira descrição deste tipo de reflexão
presume uma concepção instantaneísta da temporalidade que, por sua vez, sustenta a
concepção de uma consciência pura desencarnada que é criação ex nihilo. Isto porque a
reflexão pura descrita em La Transcendance de l’Ego, diferentemente da impura ou cúmplice,
é aquela que não ultrapassa aquilo que ela apreende no instante: uma vivência (Erlebnis)
imediata. Se afirmarmos que uma vivência desagradável é um estado de “raiva”, por exemplo,
estaremos operando uma reflexão impura, já que ultrapassamos os “dados imediatos” que
estão se apresentando naquele momento. Voltaremos às diferenças entre as reflexões, mas o
que nos interessa agora é o fato de que Sartre associa a “pureza” do campo transcendental ao

74 TE, p. 127.
75 TE, p. 128.
!139

que se apresenta imediatamente para a consciência num instante, pois se a cada momento há
uma criação ex nihilo que implica uma existência nova, a reflexão que ultrapassa esta doação
instantânea recai necessariamente na esfera impura. É assim que o autor compreende nesta
época a ação, por exemplo, que, pelo fato de envolver diferentes momentos de realização,
pertence ao polo dos objetos transcendentes, isto é, a ação é relegada à esfera impura. Em
suma, a espontaneidade é assim designada como um movimento incessante de criação, cuja
verdade reside nas diversas e sucessivas presenças que não devem nada ao passado, ao corpo
e a história - os quais operam somente no nível da humanidade. Sendo assim, cada pretensão
reflexiva que busca captar aquilo que se apresenta para uma consciência para além do instante
presente, escapa à evidência do cogito, pois afirma “mais do que sabe”:

Ont voit ici deux réflexions : l’une, impure et complice, qui opère un passage
à l’infini sur le champ et qui constitue brusquement la haine à travers
l’« Erlebnis », comme son objet transcendant, - l’autre, pure, simplement
descriptive, qui désarme la conscience irréfléchie en lui rendant son
instantanéité. Ces deux réflexion ont appréhendé les mêmes donnés certaines
mais l’une a affirmé plus qu’elle ne savait et elle est dirigée à travers la
conscience réfléchie sur un objet situé hors de la conscience76.

Captar aquilo que se dá instantaneamente em plena translucidez da consciência - sem


admitir qualquer esfera de opacidade - é assim o objetivo da reflexão pura de La
Transcendance de l’Ego. A temporalidade que sustenta tal possibilidade consiste, portanto,
numa concepção instantaneísta do tempo que admite ser possível pensar um puro presente
isolado e, consequentemente, o tempo como uma soma de instantes não ligados a um passado
e um porvir. A predominância do presente é também a base da concepção da temporalidade de
La Nausée, explicitamente revelada nesta fala de Roquentin: “Je jetai un regard anxieux
autour de moi : du présent, rien d’autre que du présent. Des meubles légers et solides,
encroûtés dans leur présent, une table, un lit, une armoire à glace - et moi-même. La vrai
nature du présent se dévoilait : il était ce qui existe, et tout ce qui n’était pas présent n’existait
pas. Le passé n’existait pas. Pas du tout”77. A consciência desencarnada, sem passado, pura
presença em face de presenças, pressupõe o tempo nu, da pura existência nauseante, sem
história, sem encadeamento dos momentos, sem passado. O plano irrefletido é permeado por
pensamentos fugazes que passam logo ao esquecimento, descrito deste modo por Roquentin:

76 TE, p. 110. (grifo nosso)


77 N, p. 139.
!140

“Ça coule en moi, plus ou moins vite, je ne fixe rien, je laisse aller. La plupart du temps, faute
de s’attacher à des mots, mes pensées restent des brouillards. Elles dessinent des formes
vagues et plaisantes, s’engloutissent : aussitôt, je les oublie”78. Neste contexto, querer fixar as
próprias lembranças é sair do tempo de pura presença em busca de um “refúgio no passado”,
já que o tempo das presenças é o tempo da náusea, imersão no mundo nu, onde nenhuma
causa anuncia o acontecimento porvir e “tout pouvait arriver” 79. O passado, neste contexto, é
um “luxe de propriétaire” que Roquentin denomina de “passé de poche”, “lugar” onde se
guardam as lembranças arquivadas com a intenção de justificar, por um acúmulo de
experiências e conhecimentos, uma existência que, como pura presença, é injustificável, pura
leveza e gratuidade, por ser livre e contingente. Contra esse passado-refúgio, Roquentin
exclama: “Commode passé! Passé de poche, petit livre doré plein de belles maximes”80; e
explica: “Pour moi le passé n’était qu’une mise à la retraite : c’était une autre manière
d’exister, un état de vacance et d’inaction; chaque événement, quand son rôle avait pris fin, se
rangeait sagement, de lui-même, dans une boîte et devenait événement honoraire : tant on a de
peine à imaginer le néant. Maintenant, je savais : les choses sont tout entières ce qu’elles
paraissent - et derrière elles…il n’y a rien”81. O passado é assim visto como refúgio do tempo
nu e do mundo nu da contingência, pois é comodamente julgado e analisado por uma atitude
reflexiva, que busca a evasão do estar diante de um mundo “sem explicações”. “Pura sucessão
de acontecimentos”, é assim que Roquentin define a vida: nada acontece, os momentos se
sucedem e só. Ele diz: “Quand on vie, il n’arrive rien. Les décors changent, les gens entrent et
sortent, voilà tout. Il n’y a jamais de commencements. Les jours s’ajoutent aux jours sans
rime ni raison, c’est une addition interminable et monotone” 82. Para fugir ao massante tempo
sem sentido, La Nausée mostra que as pessoas forjam em geral aventuras, que é uma
linearidade romanceada que une acontecimentos isolados e sem razão. Na aventura, o homem
torna-se um contador de histórias, pois “il cherche à vivre sa vie comme s’il la racontait” 83.
Para Roquentin, no entanto, é preciso escolher: “viver ou narrar”, isto é, desvelar o tempo nu
da existência como pura presença se fazendo a cada instante, ou criar ilusoriamente um tempo
humano com começos e fins, onde os momentos se encadeiam como numa história literária.

78 N, p. 21.
79 N, p. 115.
80 N, p. 104.
81 N, p. 140.
82 N, p. 64.
83 Ibid.
!141

Roquentin desejava justamente o sentimento de aventura como uma experiência temporal de


doação de sentidos à vida gratuita84: “Je me disais : « Ce sentiment d’aventure, il n’y a peut-
être rien au monde à quoi je tienne tant. Mais il vient quand il veut; il repart si vite et comme
je suis sec quant il est reparti! Me fait-il ses courtes visites ironiques pour me montrer que j’ai
manqué ma vie? »”85. Afora os momentos de encantamento temporal, os dias apenas se
sucedem, e por isso não há ação a fazer - que encadeie um passado e um futuro -, somente a
fluência gratuita de existir. É por isso que Roquentin é um personagem que não faz nada, “il
ne s’occupe que d’être” 86.
O tempo nu de La Nausée encontra-se em afinidade com a temporalidade
instantaneísta de La Transcendance de l’Ego, no sentido de uma pura presença sem passado e
nem futuro, um puro ater-se da consciência ao instante, à aparência. Neste contexto, toda
historicidade é vista como sentimento de aventura ilusório, inautêntico, relegado ao terreno do
impuro, própria à fuga da angústia inerente à liberdade de uma consciência espontânea que se
cria ex nihilo.
A consciência irrefletida, mergulhada no “mundo dos profetas e dos artistas”, é a
consciência nua que se descobre pela náusea, uma experiência radical de redução. A verdade
descoberta após a desnaturalização dos sentidos convencionais é a verdade do tempo
instantaneísta do puro presente. Sem corpo, sem passado, sem história, a consciência nua vê
toda ancoragem histórica como uma ilusão que pertence ao âmbito da aventura. Nesta época,
a filosofia de Sartre encontra-se assim em acordo com boa parte das críticas de Merleau-
Ponty: consciência desencarnada, primazia da translucidez, liberdade sem raízes, uma
temporalidade de flashes, uma dicotomia entre os planos humanidade e transcendental.
Porém, por mais que algumas das características abordadas aqui permaneçam atuantes nas
elaborações sartrianas posteriores, há uma mudança significativa que contestará o quadro
teórico da consciência nua diante de um mundo nu. Esta mudança será analisada em seguida
para então retomarmos os problemas a partir da perspectiva não mais da consciência nua,
mais da ontologia de L’Être et le Néant. 


84 Daí também a crítica aos “momentos perfeitos”, colocado em cena pela personagem Anny, bem resumida por
De Coorebyter: “Puisque la vie n’offre pas d’aventures, elle [Anny] avait choisi de les provoquer, de les forcer :
le repérage inquiet de « situations privilégiées » grosses de promesses, leur métamorphoses volontaristes en
« moments parfaits » qu’un simple détail pourrait faire capoter, valent tentative de faire descendre le fatal dans le
réel”. DE COOREBYTER, V. Sartre avant la phénoménologie, p. 66. Para outras análises sobre La Nausée, ver
o capítulo - “L’épreuve du romanesque” - deste mesmo livro.
85 N, p. 86.
86 CDG, p. 185.
Capítulo III
A mudança: temporalidade e facticidade

No caderno XI dos Carnets de la drôle de guerre de 1940, Sartre admite constrangido


que até então fizera uma filosofia instantaneísta em meio a filosofias contemporâneas do
tempo. Isto porque o tempo sempre lhe pareceu um quebra-cabeça filosófico difícil de
resolver. Inicialmente, através da maneira sartriana de interpretar o pensamento de Husserl, o
passado adquirira uma espécie de inexistência, que era experimentado como uma “falta de
solidariedade consigo mesmo”1, como uma espécie de “lugar” isolado, que poderia ser
contemplado somente “do alto” de seu presente, como pode ser observado nas falas do
personagem de La Nausée. O primeiro sinal de questionamento da teoria instantaneísta da
temporalidade é atribuído por Sartre a uma conversa com Koyré2, no momento em que este
lhe mostra justamente este problema intrínseco ao artigo La Transcendance de l’Ego.
Posteriormente, sua dificuldade em pensar a temporalidade se torna evidente aos seus próprios
olhos, devido principalmente a uma releitura mais atenta de Être et Temps. Ainda no caderno
XI, Sartre descreve o momento de transição da filosofia husserliana em direção à filosofia de
Heidegger, que ocorre no fim dos anos trinta. Desde a chegada em Berlim, em 1933, seu
trabalho se concentrava no estudo da fenomenologia de Husserl, que lhe parecia, num
primeiro momento “mais acadêmico” e dotado de linguagem mais acessível do que a filosofia
heideggeriana. A virada em direção a esta outra filosofia se deu de forma mais acentuada no
final da década de trinta, influenciada principalmente pela segunda publicação da tradução de
Henri Corbin de Qu’est-ce que la métaphysique?. Para Sartre, o acento idealista da filosofia
husserliana, assim como sua “pouco conclusiva e pobre” refutação do solipsismo, serviram de
motivação para a busca de uma nova inspiração: “Certainement, c’est pour m’évader de cette
impasse husserlienne que je me tournai vers Heidegger”, conclui Sartre3. Na época da guerra,
Sartre sentia a presença e o peso dos acontecimentos, mas não via ferramentas em sua

1 CDG, p. 495.
2 CDG, p. 494; CL, p. 914.
3 CDG, p. 468.
!143

filosofia para compreender as questões históricas: “je souhaitais qu’on me procurât des outils
pour comprendre l’Histoire et mon destin”4. Ele acreditava assim, neste momento de
transição, que a filosofia heideggeriana lhe forneceria enfim recursos conceituais para o que
podemos chamar de uma primeira virada em direção à historicidade em seu pensamento,
datando uma segunda virada na integração do pensamento marxista à sua filosofia, momento
que pode ser situado em torno dos anos sessenta e cuja expressão máxima encontramos na
Critique de la raison dialectique. A influência de Heidegger, diz Sartre, “est venue
m’enseigner l’authenticité et l’historicité juste au moment où la guerre allait me rendre ces
notions indispensable”5, ou seja, no momento em que “la guerre et le Stalag6 m’avaient
disposé à comprendre l’existence”7. Esta transformação é confirmada mais tarde em uma
entrevista de 1970 como tendo sido uma mudança radical operada pela guerra que o ensinou
“a força das coisas”8. Um acontecimento histórico radical foi então essencial para a
reelaboração de sua filosofia, principalmente no que diz respeito ao conceito de “ser-no-
mundo”9, exatamente na época da redação de L’Être et le Néant. Apesar de ter lido algumas
páginas de Être et Temps anteriormente, a leitura mais aprofundada desta obra se deu durante
o período em que Sartre estava preso no Stalag 10, no momento em que elaborava sua
ontologia (1940-41). Esta leitura, muitas vezes considerada apressada e superficial, foi
responsável por transformações essenciais em seu pensamento. Por esta razão, mais do que
provar se Sartre era mau leitor de Heidegger ou justificar os possíveis erros de leitura pelo
fato de ser um pensamento ainda recente no cenário francês - levando em conta ainda a
dificuldade de unir o ideal cartesiano de clareza e a obscura profundidade da tradição
romântica alemã11 - parece-nos ser mais interessante a posição expressa por Alain Renaut,
quando ele diz: “il me semble futile, pour cerner ce qu’il a dû en être de cette relation à Sein
und Zeit, de vouloir recenser les contresens ou les mécompréhensions: plus intéressant me
paraît être de chercher à savoir comment Sartre lui-même, lisant Heidegger, se représentait
l’incidence de ce qu’il lisait (bien ou mal : c’est, en l’occurrence, secondaire) sur sa propre

4 CDG, p. 470.
5 CDG, p. 466.
6 Trata-se de um campo de prisioneiros de guerra.
7 MP1, p. 1135-6.
8 S.IX, p. 99.
9 Id. “Ser-no-mundo” é aqui referido como “être-au-monde”, enquanto que em L’Être et le Néant ele adota a

tradução “être-dans-le-monde” (falaremos sobre as diferentes traduções mais adiante em nota).


10 MP1, p. 1135-6.
11 GADAMER, H-G. L’être et le néant de Jean-Paul Sartre, p. 147.
!144

pensée”12. É tendo em vista esta posição que devemos compreender a transformação do


pensamento sartriano a partir de noções como: ter de ser, projeto, ser-no-mundo e ipseidade e,
principalmente, das concepções de facticidade e de temporalidade ek-stática, provenientes da
leitura sartriana de Être et Temps. Pois, como resume De Coorebyter:

l’effet de cette lecture sera sans retour : par son ontologie du Dasein,
Heidegger fait découvrir à Sartre l’idée d’être-au-monde, le primat du futur et
l’articulation des trois dimensions temporelles, ce qui le libérera de la
psychologie phénoménologique des facultés qu’il développait jusqu’alors sur
le thème de la réflexivité et de l’image au moyen d’un cogito étroitement
instantanéiste et d’une intentionnalité limitée à la saisie d’un objet
déterminé13.

Isto posto, devemos investigar os elementos fundamentais da mudança do pensamento


sartriano na época de elaboração de L’Être et le Néant, a saber: a mudança na perspectiva da
temporalidade e a introdução da estrutura da facticidade.

§1. A consciência-refúgio e a crítica à temporalidade do instante.

Le passage de la liberté absolue à la liberté désarmée et humaine, le


rejet du poison, s’est opérée cette année et, du même coup, j’envisage
à présent mon destin comme fini. Et mon réapprentissage doit
consister précisément à me sentir « dans le coup », sans défense. C’est
la guerre et c’est Heidegger qui m’ont mis sur le chemin.

Sartre, Carnets de la drôle de guerre

Os Carnets de la drôle de guerre, como vimos, nos fornecem textualmente os indícios


das mudanças fundamentais que ocorrem no pensamento sartriano no final da década de
trinta. O objetivo destes escritos consistia, para o próprio Sartre, em “[a]ccentuer cet
isolement où j’étais et la rupture entre ma vie passée et ma vie présente”14. Enquanto seus
primeiros trabalhos se baseavam numa consciência nua e desencarnada, os últimos carnets

12 RENAUT, A. Sartre, le dernier philosophe. Paris: Grasset&Fasquelle, 1993, p. 44. O mesmo pode ser dito
com relação à leitura de Sartre de outros filósofos, como Husserl e Descartes, por exemplo.
13 DE COOREBYTER, V. L’Être et le néant, ou le roman de la matière, p. 4.
14 CDG, p. 606.
!145

indicam que a nova perspectiva da temporalidade conduz necessariamente para uma crítica do
modo mesmo de conceber a consciência que vingava até então: a consciência nua passa a ser
descrita como consciência-refúgio. Sartre associa suas concepções filosóficas às suas
experiências pessoais e à sua classe social nos Carnets (dado que se trata de um diário
íntimo), no sentido que a ideia de uma consciência completamente desprendida de seu
passado passa a ser interpretada como uma atitude pequeno-burguesa diante dos
acontecimentos reais da guerra. Sartre passa a identificar então um “sentimento de
irrealidade”, que ele remete à literatura de Gide, que consistia em “prende le réel pour un
décor”15, com uma postura de tomar a realidade do “haut de la tour”; atitude filosófica da
consciência transcendental sartriana que do alto “olhava seu homem”, refugiada em um plano
purificado onde qualquer signo da humanidade - como o Ego, principalmente - era
considerado como um “visitante indiscreto”16. O plano da humanidade, para onde o Ego fora
rebaixado, cindido do plano transcendental que passa a ser qualificado como refúgio, era
assim um terreno de contemplação, que poderia ser olhado “à travers la vitre en toute
tranquillité, en toute sévérité”17. Esta divisão e suas consequências políticas mostram a
pertinência da crítica de Merleau-Ponty quando este argumenta - embora tendo em vista
L’Être et le Néant - que considerar o sujeito como um “puro nada” significa fazer dele uma
coisa que nada pode atingir ou modificar, de modo que esta não comporta nem mesmo graus.
Consequentemente, as ações “puras”, fundamentadas numa liberdade “sem raízes”, visam
apenas ao instante, de maneira a realizar uma política contemplativa de conquista e violência,
como mostramos anteriormente.
A guerra faz com que Sartre se retire de seu refúgio e passe a reconsiderar sua
concepção de ação assim como a cisão entre o plano da humanidade e o plano transcendental.
Isto não significa que uma espécie de divisão de planos não permaneça de algum modo
atuante e nem que a posição crítica em relação ao Ego desapareça. O que ocorre de fato é um
verdadeiro reposicionamento dos problemas a partir do qual a consciência nua, agora vista
como consciência-refúgio, não serve mais de base para o pensamento sartriano. Neste
momento, Sartre empreende um novo vocabulário, cuja influência de Hegel e Heidegger se
deixa entrever: ser e nada, projeto, “realidade-humana”, para-si e em-si, ipseidade. Entretanto,

15 CDG, p. 614.
16 CDG, p. 615.
17 CDG, p. 615.
!146

o termo consciência não é abandonado, nem suas características principais de translucidez,


pré-reflexividade e intencionalidade. Integrar estas características da consciência-refúgio às
novas intuições filosóficas resultam no esforço de L’Être et le Néant, movimento que passa
despercebido se não se presta atenção a esta primeira virada.
Renunciar à concepção da consciência nua implica, ao mesmo tempo, abandonar a
perspectiva instantaneísta da temporalidade. Se a consciência nua é desencarnada e pura
criação ex nihilo, o passado, o corpo e finalmente os acontecimentos históricos, nada pesam
sobre esta consciência e não é por acaso que ela é qualificada como “toute légereté”18. Isto
não significa que este “refúgio” seja, no entanto, um “lugar tranquilo”: há a angústia inerente
à “fatalidade da espontaneidade”, como atestam as últimas páginas de La Transcendance de
l’Ego. Esta diz respeito à necessidade da consciência de forjar um Ego justamente para
escapar à angústia de uma criação contínua que não é passível de ser dominada ou controlada
por nenhuma instância egológica, de modo que “c’est cette angoisse absolue et sans remèdes,
cette peur de soi, qui nous paraît consitutive de la conscience pure”19. No entanto, a
consciência pura, sendo criação ex nihilo, escapa ao peso da facticidade, mesmo que este
escape seja de uma leveza angustiante, isto é, ela se abstém de tudo aquilo que nesta época
fora relegado ao plano da humanidade: ao corpo, ao passado e aos outros como constitutivos
da própria subjetividade. A consciência nua possui sua verdade, como diz Merleau-Ponty, em
“flashes”, na pureza de um instante.
Dito isto, qual é de fato o problema da temporalidade do instante? Foi Heidegger
quem concentrou suas análises numa crítica à concepção tradicional ou “vulgar” do tempo,
que perdurava desde Aristoteles até seu dias (incluíndo Husserl e Bergson), no interior de uma
história que conhecemos como “história da metafísica”20. Concordando ou não com esta
generalização heideggeriana, sua intuição fundamental consiste em mostrar que a concepção
do tempo como uma sucessão de instantes presentes é problemática. Tal concepção pressupõe
que o tempo é um ente, o qual pode ser quantificado, mensurado, como o tempo dos
calendários e dos relógios, enquanto que, na verdade, esta experiência temporal não é a mais
originária. Segue-se que apreender o fenômeno do tempo diferenciando seu caráter mais

18TE, p. 98.
19TE, p. 129.
20Cf. §5 de Être et Temps.“Le traité d’Aristote sur le temps est la première interprétation circonstanciée de ce
phénomène qui nous ait été transmise. Elle a déterminé de manière essentielle toute conception ultérieure du
temps, celle de Bergson y comprise”. HEIDEGGER, M. Être et Temps. Paris: Authentica, 1985, p. 41(Trad. E.
Martineau)
!147

originário e derivado é fundamental, dado que toda ontologia está aí enraizada. Assim, em
primeiro lugar, Heidegger estabelece que “la temporalité n’“est” absolument pas un étant. Elle
n’est pas, mais se temporalise”21. A temporalização, por sua vez, diz respeito à estrutura da
cura (souci/Sorge)22 do Dasein, mais especificamente, “la temporalité se dévoile comme le
sens du souci authentique”23 de modo que compreender o fenômeno do tempo não é tomá-lo
como objeto de conhecimento, mas sim apreender o seu sentido a partir da estrutura mesma
do Dasein. Diante deste vocabulário heideggeriano, devemos optar por ressaltar a questão que
nos é aqui fundamental, visto que explicitar todas as estruturas de Être et Temps que estão em
jogo nesta compreensão seria uma tarefa extensa que nos afastaria de nosso objetivo. O que
nos interessa na articulação heideggeriana desta questão é modo como ele evidencia o
problema da concepção instantaneísta de tempo, como por exemplo no §81 de Être et Temps.
Neste parágrafo, podemos entrever a distinção de uma temporalidade originária do Dasein e
de um tempo derivado como “tempo do mundo”, distinção que será cara a Sartre e que se
encontra de algum modo já em Husserl24. O “tempo do mundo” é também nomeado por
Heidegger como “tempo do agora” (temps du maintenant) e ele corresponde à compreensão
“vulgar” de tempo que temos cotidianamente como um fluxo de instantes que chegam e
passam num curso temporal eterno. Nesta perspectiva, o passado aparece como o “agora que
não é mais” e o futuro como um “agora que ainda não é” e assim “la compréhension vulgaire
du temps […] voit le phénomène fondamental du temps dans le maintenant, plus précisément
dans le maintenant pur, amputé de sa structure pleine, que l’on nomme « présent »”25. A partir

21 Ibid., p. 253.
22 A estrutura da cura diz respeito à unidade do Dasein que é o efeito de uma temporalização e não de um
presença subsistente no interior de um quadro externo do tempo. DASTUR, F. Heidegger et la question du
temps. Paris: PUF, 1990, p. 67. Utilizamos a tradução de Márcia de Sá Cavalcante para os termos de Ser e Tempo
em português. Colocaremos, sempre que se mostrar necessário, o termo segundo a tradução francesa de E.
Martineau visto que foi a partir deste texto que se deu nossa leitura e o termo original em alemão no intuito de
evidenciar, para o leitor familiarizado com a terminologia original, a opção da tradução para o português e a
compreensão do texto a partir da tradução de Martineau. Para além deste cuidado, não é de nossa intenção aqui
realizar uma discussão a respeito das opções de tradução no Brasil e na França, faremos somente alguns
comentários quando for necessário explicitar alguma opção com relação à tradução para o português. Quanto ao
termo Dasein, optamos por não traduzir, pelo fato de que se trata de um termo já bastante difundido no meio
filosófico, além de ser também conhecida a discussão em torno dos problemas relativos às diferentes traduções
deste termo.
23 HEIDEGGER, M. Être et Temps, p. 252.
24 Sobre as semelhanças e diferenças da temporalidade em Heidegger e Husserl ver: BERNET, R. Origine du

temps et temps originaire chez Husserl et Heidegger.


25 HEIDEGGER, M, op.cit., p. 318. Ponto que é constantemente reforçado por Derrida: “De Parménide à

Husserl, le privilège du présent n’a jamais été mis en question. Il n’a pu l’être. Il est l’évidence même et aucune
pensée ne semble possible hors de son élément. La non-présence est toujours pensée dans la forme de la présence
(il suffirait de dire dans la forme tout court) ou comme modélisation de la présence. Le passé et le futur sont tou-
jours determines comme présents passés ou présents futurs”. DERRIDA, J. Ousia et grammè: note sur une note
de Sein und Zeit. In:______ . Marges de la philosophie. Paris: Minuit, 1972, p. 36-7.
!148

desta concepção temporal, toda ontologia que reside nestas bases pressupõe a presença como
modo privilegiado, visto que “l’étant, le présent, le maintenant, la substance, l’essence, sont
liés, dans leur sens, à la forme du participe présent”26. Para Heidegger, a concepção vulgar do
tempo possui sua legitimidade27, mas ela é derivada de uma temporalidade mais originária do
Dasein que é antecipação da morte, ou seja, não se trata mais de uma caracterização do porvir
como “uma presença que ainda não é”, mas de pensar uma antecipação do futuro como “la
dimension à partir de laquelle il peut y avoir un présent et un passé”28 . Assim, somente tendo
em vista o velamento da temporalidade originária do Dasein no desvelamento do tempo do
mundo que podemos compreender o tempo como sucessão de instantes presentes como tempo
derivado.
Esta “hiérarchisation de niveaux de temporalisation”29, como diz Ricœur, baseada na
divisão entre originário e derivado - que, diga-se de passagem, para Derrida30, é ainda
metafísica - não se colocava para Sartre em sua primeira concepção de temporalidade, a qual
se caracterizava justamente por uma compreensão do tempo que, neste contexto, é inautêntica.
Daí os problemas de sua primeira teoria e o motivo de seu embaraço de se ver preso numa
armadilha temporal que era, a seu ver, comum a grandes escritores: “Proust, Joyce, Dos
Passos, Faulkner, Gide, V. Woolf, chacun à sa manière, ont tenté de mutiler le temps. Les uns
l’ont privé de passé et d’avenir pour le réduire à l’intuition pure de l’instant; d’autres, comme
Dos Passos, en font une mémoire morte et close. Proust e Faulkner l’ont simplement décapité,
ils lui ont ôté son avenir, c’est-à-dire la dimension des actes et de la liberté”31. Sartre procura
justamente em Heidegger a possibilidade conceitual de abandonar sua teoria instantaneísta do
tempo ao pensá-lo como temporalização (não do Dasein, mas do ser da consciência), sob a
inspiração da ideia heideggeriana de um projeto aberto ao porvir :

Mais le temps de l’homme est-il sans avenir? Celui du clou, de la motte de


terre, de l’atome, je vois bien que c’est un présent perpétuel. Mais l’homme

26 Ibid., p. 44.
27 “Mais comme le temps-du-maintenant doit non seulement être orienté, selon l’ordre de l’explicitation possible,
sur la temporalité, mais se temporalise lui-même le premier dans la temporalité inauthentique du Dasein, il
demeure légitime, eu égard à la provenance du temps du maintenant à partir de la temporalité, d’invoquer celle-
ci comme le temps originaire”. HEIDEGGER, M. Être et Temps, p. 318.
28 DASTUR, F. Heidegger et la question du temps, p. 19.
29 RICŒUR, P. Temps et récit, tome III: le temps raconté. Paris: Seuil, 1985, p. 95.
30 DERRIDA, J. Ousia et grammè, p. 73.
31 S.I, p. 71. Os artigos de crítica literária reunidos em Situations I (redigidos entre 1938-1945), censuram em

praticamente todos os autores analisados a incompreensão do tempo como organização sintética, revelando
assim que Sartre pensa, na verdade, contra si mesmo. SIMONT, J. Jean-Paul Sartre, p. 62; p. 83-84.
!149

est-il un clou pensant? […] La conscience ne peut « être dans le temps » qu’à
la condition de se faire temps par le mouvement même, qui la fait conscience;
il faut, comme dit Heidegger, qu’elle se « temporalise ». Il n’est plus permis
alors d’arrêter l’homme à chaque présent et de le définir comme « la somme
de ce qu’il a » : la nature de la conscience implique au contraire qu’elle se
jette en avant d’elle-même dans le futur; on ne peut comprendre ce qu’elle est
que par ce qu’elle sera, elle se détermine dans son être actuel par ses propres
possibilités : c’est ce que Heidegger appelle « la force silencieuse du possible
»32.

Após adotar esta perspectiva heideggeriana, é curioso que Sartre atribua a outros
autores o que poderia ser direcionado ao seu próprio trabalho em La Transcendance de l’Ego,
quando por exemplo ele afirma do homem absurdo de Camus: “Qu’est-ce à dire sinon que
l’homme absurde applique au temps son esprit d’analyse? Là où Bergson voyait une
organisation indécomposable, son œil ne voit qu’une série d’instants. C’est la pluralité des
instants incommunicables qui rendra compte finalement de la pluralité des êtres” 33. Do
mesmo modo, Bataille “s’apparente à toute une famille d’esprits qui, mystiques ou
sensualistes, rationalistes ou non, ont envisagé le temps comme pouvoir de séparation, de
négation, et ont pensé que l’homme se gagnait contre le temps en adhérant à lui-même dans
l’instantané”34. Ora, não era precisamente esta a pretensão da reflexão pura? Apreender a
verdade de um instante? E atribuir ao homem a temporalidade do “du clou, de la motte de
terre, de l’atome” que é a do “présent perpétuel”, não era a característica principal do tempo
nu de La Nausée, do qual Roquentin só apreendia “du présent, rien d’autre que du présent” ?
Sendo assim, a mudança na concepção da temporalidade em Sartre não pode ser subestimada.
Ela rearticula toda uma ontologia, pois vimos que a concepção temporal do instante como
presente situa a investigação ontológica num plano derivado e não originário. Somente
apreendendo esta mudança na teoria do tempo sartriana podemos compreender a importância
das instâncias temporais do passado, presente e futuro em sua nova perspectiva ontológica,
isto é, na temporalidade própria do modo de ser do para-si e de suas implicações para o modo
de ser em-si. Melhor dizendo, somente através da compreensão de uma temporalidade não
mais instantaneísta mas ek-stática, podemos aprofundar nossa investigação de modo a revelar

32 S.I, p. 73.
33 S.I, p. 108. É interessante notar que as análises que Sartre faz do “homem absurdo” de Camus se assemelham
às críticas de Merleau-Ponty a Sartre. Na medida em que Camus pensa o sentimento de absurdo a partir de uma
série de “divórcios” - Ce divorce entre l’homme et sa vie, l’acteur et son décor, c’est proprement le sentiment
d’absurdité” - entre homem e mundo, postulando ao mesmo tempo uma consciência exilada ao puro presente “Le
présent et la succession des présents devant une âme sans cesse consciente, c’est l’ideal de l’homme absurde”.
CAMUS, A. Le mythe de Sisyphe. Paris: Gallimard, 2001, p. 20; p. 90. Diante disso, vale observar ainda que não
é incomum encontrar um paralelo entre os romances La Nausée e l’Étranger. O próprio Camus estabelece a
proximidade: “cette nausée, comme l’appelle un auteur de nos jours, c’est aussi l’absurde”. Ibid., p. 31.
34 S.I, p. 157. (grifo nosso)
!150

a ontologia sartriana através das dimensões de assombramento, conforme faremos na


“Terceira parte”.

§2. Facticidade e contingência.

a) A facticidade como chave de compreensão do ser-no-mundo.

Desde o artigo “Une idée fondamentale…”, Sartre cita o termo heideggeriano ser-no-
mundo (être-dans-le-monde)35 no intuito de reforçar sua leitura da consciência intencional
husserliana como um movimento de “s’éclater vers” o mundo. Ao utilizar o termo neste
contexto, o autor demonstra que seu objetivo maior é o de pensar como a consciência pode ser
caracterizada como um nada, “un grand vent”36 , jogada na esfera transcendente. Sendo assim,
não faz parte de sua preocupação de então compreender como o ser-no-mundo implica que
esta mesma consciência não possa ser este nada desencarnado - como era o caso da
consciência nua -, ou seja, como a consciência pode existir de fato como ser-no-mundo. Sem
possuir na época os instrumentos necessários para pensar esta estrutura fundamental que
impediria a concepção de uma consciência de sobrevoo como a consciência nua - pois esta
concepção se baseia ainda numa teoria instantaneísta do tempo -, Sartre permanece prisioneiro
desta posição abstrata que, como sustenta De Coorebyter, figura como modelo paradigmático
de alvo da crítica de Merleau-Ponty. De início, as primeiras leituras que Sartre faz de
Heidegger o faz passar ao largo da importância da facticidade como ponto-chave da virada
que ocorrerá na época dos Carnets, apesar do esforço de pensar uma consciência concreta tal
como considera ser a de Husserl, conforme o início de La Transcendance de l’Ego deixa
notar. Tendo em vista tal busca de concretude - o que faz parte de um movimento vers le
concret, segundo o título da obra de Jean Wahl -, tudo se passa como se a tarefa radical de

35 “Être-dans-le-monde” consiste numa tradução literal de “In-der-Welt-sein”. Porém, aponta E. Martineau,


“Heidegger distingue ici du sens verbal d’être dans (Sein in) [ser-dentro-de] le sens proprement ontologique
d’être-à... (In-Sein) [ser-em]”. (In: HEIDEGGER, M. Être et Temps, p. 63,n. *). Por esta razão, E. Martineau
adota a tradução Être-au-monde que, segundo De Coorebyter, foi feita por Roger Munier em 1957 e desde então
se tornou unanime. DE COOREBYTER, V. Notes, p. 172-3, n. 6. Nós manteremos em francês a tradução de
Sartre - “être-dans-le-monde” - a fim de nos mantermos de acordo com seu texto, apesar de considerarmos être-
au-monde mais apropriada para evitar justamente o sentido de “dentro”, que denota uma relação de extensão
espacial. Vale observar que em português, não havendo distinção correspondente ao francês “être-dans” e “être-
au”, o termo “ser-no” acaba por se aproximar do uso sartriano de “être-dans-le-monde”. Em todo caso,
mostraremos na “Terceira parte” que o ponto mais relevante do “ser-no-mundo” na perspectiva da hantologie é a
ligação que Sartre estabelece entre esta condição e a relação de assombramento.
36 S.I, p. 30.
!151

dessubstancialização do sujeito trouxesse consigo a dificuldade de pensar outra maneira, não


mais substancialista, de inscrever a consciência no mundo. O itinerário dos trabalhos
sartrianos que precedem sua ontologia demonstra de alguma maneira esta dificuldade: em
L’Imagination, Sartre sequer cita Heidegger, enquanto que em L’Imaginaire “ser-no-mundo”
significa o ultrapassamento (dépassement) que a consciência realiza ao nadificar o real e
produzir um objeto imaginário. Isto quer dizer que a imaginação não pode ser considerada
como algo que simplesmente escapa ao real, mas sim como um tipo de relação com o mundo
real - relação já caracterizada em termos de “nadificação” do mundo -, o que seria um plano
“anti-monde” que se dá sempre a partir do mundo37. Já nos Esquisse d’une théorie des
émotions, Sartre se utiliza novamente do termo ser-no-mundo, mas desta vez a fim de colocá-
lo em relação com outras ideias inspiradas em Être et Temps, que aos poucos iam se
integrando à sua filosofia: o ser-no-mundo deve ser visto como uma totalidade que coloca em
questão o sentido mesmo do mundo a fim de compreender o que é um homem em situação em
contraposição aos métodos e pressupostos de base da psicologia empírica. Sartre começa a
desenvolver neste trabalho a noção de projeto, essencial a L’Être et le Néant, que apresenta o
que ele considera fundamental no “ser-no-mundo” heideggeriano: o fato de que cada ato da
“realidade-humana” não deve ser estudado conforme os métodos da psicologia de então -
como uma coleção de fatos - visto que cada ato é assunção e manifestação da totalidade do ser
humano: “De ce point de vue, dans chaque attitude humaine […] Heidegger pense que nous
retrouverons le tout de la réalité-humaine, puisque l’émotion [par exemple] c’est la réalité-
humaine qui s’assume elle-même et se « dirige-émue » vers le monde” 38. Sendo assim, pode-
se observar que apesar da tentativa de integração de uma totalidade que será desenvolvida
posteriormente na ontologia pela conceitualização do projeto fundamental, a inspiração em
Heidegger no Esquisse ainda é muito superficial e encontra-se em afinidade com “Une idée
fondamentale…”, a saber, da consciência-no-mundo como uma maneira de “s’éclater vers le
monde”. Isto significa que o acento na facticidade ainda não aparecia como chave
fundamental para pensar de fato o “ser-no-mundo”, o que se dá somente quando se considera
a importância do passado, do corpo e da inscrição da intersubjetividade na própria
subjetividade. Entretanto, o final do Esquisse indica a necessidade da facticidade no sentido
que será desenvolvido posteriormente:

37 I’re, p. 261.
38 ETE, p. 15.
!152

Les diverses disciplines de la psychologie phénoménologique sont


régressives, encore que le terme de leur régression soit pour elles, un pur
idéal ; celles de la phénoménologie pure, au contraire, sont progressives. On
demandera sans doute pourquoi il convient dans ce conditions d’user
simultanément de ces deux disciplines. La phénoménologie pure suffirait
semble-t-il. Mais, si la phénoménologie peut prouver que l’émotion est une
réalisation d’essence de la réalité-humaine en tant qu’elle est affection, il lui
sera impossible de montrer que la réalité-humaine doive se manifester
nécessairement dans de telles émotions. Qu’il y ait telle et telle émotion et
celles-là seulement, cela manifeste sans aucun doute la facticité de l’existence
humaine. C’est cette facticité qui rend nécessaire un recours réglé à l’empirie
; c’est elle qui empêchera vraisemblablement que la régression
psychologique et la progression phénoménologique se rejoignent jamais39 .

A teoria da facticidade em L’Être et le Néant, apontada por Beauvoir e por Dufrenne


como a grande negligência da leitura de Merleau-Ponty, é assim fundamental para
compreendermos o próprio alcance desta ontologia tendo em vista os problemas que
ressaltamos até então. Por esta razão, em contraposição à negligência merleau-pontyana,
devemos, ao contrário, ressaltar a estrutura da facticidade de modo que evidenciar a mudança
que ocorre no início dos anos quarenta é para nós crucial.

No artigo “De la contingence à la situation : dimensions et configurations de la


facticité dans L’Être et le Néant”40, Laurent Husson tem por objetivo pormenorizar a “teoria
da facticidade” desenvolvida na ontologia sartriana de modo a indicar seus graus de
complexidade. Segundo Husson, a facticidade é geralmente considerada como um dos traços
pelos quais se diferencia a fenomenologia ontológica e existencial da fenomenologia clássica
e transcendental, já que, como diz De Coorebyter, “la facticité menace […] la sérénité
éidétique de la phénoménologie husserlienne”41. Este ponto também é reforçado por Jeanson
quando ele diz que “il apparaît incontestable que l’ontologie ne saurait être phénoménologie
pure au sens husserlien du terme. Ce sens fait en effet pratiquement abstraction de la facticité,
c’est-à-dire de l’envers même de cette “liberté” ambiguë, qu’il serait […] tout aussi valable de

39 ETE, p. 66-67. (grifo nosso)


40 HUSSON, L. De la contingence à la situation: dimensions et configurations de la facticité dans L’Être et le
Néant. In: In: MOUILLIE, J-M. (Org) Sartre et la phénoménologie. Fontenay-aux-Roses: ENS, 2000.
41 DE COOREBYTER, V. Sartre avant la phénoménologie, p. 105.
!153

dénommer “situation”42. Daí a importância no contexto de uma ontologia existencial das


noções de situação e de engajamento para se pensar o ser-no-mundo.
A fonte maior de inspiração com relação à facticidade e ao ser-no-mundo é, como
vimos, Être et Temps, de Heidegger43. No entanto, Husson considera que as elaborações
heideggerianas sobre a facticidade são, na verdade, difíceis de serem apreendidas e pouco
explícitas (assim como as de Merleau-Ponty), contexto no qual Sartre faz exceção, ao retomar
e reintegrar em suas análises o conceito heideggeriano e tematizá-lo explicitamente em vários
momentos. O desenvolvimento da noção de facticidade iniciado nos Carnets se apresenta
como solo de preparação para as versões mais refinadas de L’Être et le Néant. Logo no
terceiro Carnet, Sartre afirma que “la facticité n’est pas autre chose que le fait qu’il y ait dans
le monde à chaque instant une réalité-humaine. C’est un fait. Il ne se déduit de rien, comme
tel, et ne se ramène à rien. Et le monde de valeurs, la nécessité et la liberté, tout est suspendu à
ce fait primitif et absurde” 44.
O termo facticidade remete à palavra fato, razão pela qual devemos compreender em
que sentido falamos de fato já que, inicialmente, sobretudo na “Introdução” do Esquisse,
Sartre realizava uma crítica a esta noção. A fim de evitar confusão entre os sentidos dos
termos, devemos compreender que a crítica inicial sartriana aos “fatos” se dá em continuidade
com a oposição husserliana ao naturalismo de base da psicologia experimental, tal como
podemos observar no texto La philosophie comme science rigoureuse 45, em que Husserl
aponta a ingenuidade por parte da psicologia na apropriação do método e dos princípios das
ciências naturais. Tais modelos científicos funcionam de modo a estabelecer como ponto de
partida experiências datadas e localizadas numa concepção naturalizada de espaço e tempo
para então erigir sua teoria científica, o que para Husserl consiste num procedimento não
rigoroso uma vez que o saber científico terá como base acontecimentos individuais,
contingentes e não a estrutura essencial. Em outras palavras, tal método pressupõe uma
ingenuidade porque um fato individual, que poderia ser de outra forma, em outro espaço, em
outro tempo, é tomado como realidade a partir da qual a ciência visa a extrair as leis gerais do
conhecimento. Neste contexto, a psicologia enquanto ciência toma como campo de estudo a

42 JEANSON, F. Le problème moral et la pensée de Sartre, p. 112.


43 No entanto, segundo Husson, apesar de Heidegger inaugurar a problemática da facticidade, trata-se de um
conceito transitório e ambíguo que será abandonado posteriormente em sua filosofia. HUSSON, L, op.cit.
44 CDG, p. 394.
45 HUSSERL. E. La philosophie comme science rigoureuse. Paris: PUF, 1993. (Trad. M. Launay)
!154

experiência empírica, o que implica adoção da orientação positivista de observação dos fatos
para deles obter leis gerais, classificações e previsões, ao inseri-los na causalidade material do
mundo. Diante da constatação deste procedimento, Husserl afirma que a psicologia é uma
ciência dos fatos (ou ciência da experiência) 46 - que são entendidos como fatos naturais
submetidos a leis objetivas e temporais - o que a tornaria uma ciência de “matters of facts”, no
sentido de Hume. Para Husserl, as ciências dos fatos são dependentes da fenomenologia na
medida em que esta oferece o método que permite aceder às essências que estão contidas no
fato individual e ainda a revelar a subjetividade pura como esfera de constituição, solo seguro
para a constituição do conhecimento rigoroso. Torna-se necessário então, para a psicologia,
realizar uma mudança de atitude - o que necessariamente implica uma mudança metodológica
- a fim de tomar por objeto não mais uma consciência naturalizada cujos fenômenos
encontram-se submetidos às leis da física, mas sim a consciência tal qual revelada pela
fenomenologia, a consciência como intencionalidade. No entanto, a distinção entre fato e
essência nas análises de Husserl não deve ser considerada como uma nova forma de
platonismo - segundo o qual haveria um mundo das essências apartado do mundo sensível -,
ela não é um “novo mundo das ideias”, como dizia Camus 47. Ambos fato e essência devem ser
considerados em conjunto, de modo que separá-los caracteriza o esforço metodológico
realizado pela redução. É Merleau-Ponty quem mais insiste nesta inseparabilidade, pois além
de celebrar a fenomenologia como “uma filosofia que recoloca as essências na existência” 48,
possibilitando um estudo sobre o homem a partir de sua facticidade, ele afirma a relevância da
redução ao permitir “se détacher de son expérience de fait, et de ne considérer son personnage
empirique que comme une possibilité”49, mas jamais ao preço de escapar a nossa situação de
fato, isto é, “la psychologie phénoménologique cherchera l’essence ou la signification des
conduites par le contact effectif ave les faits, et dans un « a priori matériel » ”50.
No Esquisse, Sartre assume a crítica husserliana à psicologia como “ciência dos fatos”
e define o “fato” como “ceci qu’on doit le rencontrer au cours d’une recherche et qu’il se
présente toujours comme un enrichissement inattendu et une nouveauté par rapport aux faits

46 Cf. § 7 de Ideen I .
47 CAMUS, A. Le mythe de Sisyphe, p. 67.
48 Php, p. 7.
49 MPS, p. 401.
50 MPS, p. 422. (grifo nosso)
!155

antérieurs” 51. Entretanto, sua crítica aos fatos compreendidos como fatos empíricos, mostra
que ele ainda não faz a distinção entre os fatos “naturais” e a facticidade, de modo que ele
oscila entre um husserlianismo desencarnado e a necessidade de se pensar o homem em
situação52. Isto no sentido de que ao mesmo tempo em que ele acaba por reforçar a cisão que
Merleau-Ponty - e em certo sentido o próprio Husserl 53, conforme citamos há pouco -, queria
a todo custo evitar: “il y a incommensurabilité entre les essences et les faits, et celui qui
commence son enquête par les faits ne parviendra jamais à retrouver les essences”54; ele
afirma mais adiante que “d’une façon générale ce qui l’intéresse [à la psychologie] c’est
l’homme en situation. En tant que telle, elles est […] subordonnée à la phénoménologie,
puisqu’une étude vraiment positive de l’homme en situation devrait avoir élucidé d’abord les
notions d’homme, de monde, d’être-dans-le-monde, de situation”55. O que falta a Sartre aqui é
justamente a dimensão da facticidade, de modo que ele permanece restrito às análises de uma
consciência que, mesmo que considerada sob a perspectiva do ser no-mundo, não apresenta de
maneira explícita as estruturas de seu engajamento.
Conforme mencionamos há pouco, Sartre começa a desenvolver e integrar à sua
argumentação a noção de facticidade a partir dos Carnets e, desde então, passa a operar com
uma distinção implícita que consiste em compreender não mais o “fato” como fato empírico e
natural, alvo de crítica da “Introdução” do Esquisse, mas sim como facticidade, um
existencial, isto é, uma estrutura imediata do para-si 56. Esta distinção pode ser melhor
compreendida a partir da diferença que Heidegger estabelece em Être et Temps entre os
conceitos de “fatualidade” (factualité/ Tatsächlichkeit) e “facticidade” (facticité/Faktizität), ao
afirmar que a “‘factualité’ du fait du Dasein propre est ontologiquement sans commune
mesure avec la survenance factuelle d’une espèce minérale. La factualité propre au fait du

51 ETE, p. 8. A crítica se estende, na verdade, às ciências positivistas como um todo, como, por exemplo, a
sociologia de Durkheim, que trataria “les faits sociaux comme des choses”. Diz Sartre: “la Sociologie de
Durkheim est morte : les faits sociaux ne sont pas des choses, ils ont des significations et, comme tels, il
renvoient à l’être par qui les significations viennent au monde, à l’homme, qui ne saurait à la fois être savant et
objet de science”. S.I, p. 173.
52 Com relação a estas afirmações da “Introdução” do Esquisse, a “Conclusão” já demonstra uma reflexão

diferente sobre a “facticidade”, conforme demonstra a citação que transcrevemos acima.


53 Cf. §2 de Ideen I: O fato. Que o fato e a essência são inseparáveis.
54 ETE, p. 12. (grifo nosso)
55 ETE, p. 17.
56 Termo que aparece no final do Esquisse, como um existencial. Cf. ETE, p. 66-7.
!156

Dasein, ce mode en lequel tout Dasein est à chaque fois, nous l’appelons sa facticité”57 ; e
ainda: “la facticité du Dasein se distingue essentiellement de la factualité d’un sous-la-main 58.
Embora Sartre não explicite, tal como o fez Heidegger, a distinção entre fatualidade e
facticidade, a partir dos Carnets ele já parte da concepção de facticidade como um existencial,
como uma estrutura imediata do para-si que não pode ser comparada ao “fato”, no sentido de
algo que pode ser conhecido, observado, mensurado. Mesmo não tendo sido tematizada, esta
distinção é fundamental, pois somente assim podemos compreender com mais clareza de que
modo Sartre pôde integrar a dimensão fática nas elaborações de uma consciência encarnada 59,
inscrita no mundo por seu passado, seu corpo e sua dimensão intersubjetiva. Na verdade,
Sartre tematiza este pertencimento fático do para-si no mundo - que não pode ser considerado
como fato natural, mas sim como um existencial -, por meio de uma distinção entre os termos
ser-no-mundo (être-dans-le-monde) e ser-no-meio-do-mundo (être-au-milieu-du-monde):

Ainsi mon être-dans-le-monde, par le seul fait qu’il réalise un monde, se fait
indiquer à lui-même comme un être-au-milieu-du-monde par le monde qu’il
réalise et cela ne saurait être autrement, car il n’est d’autre manière d’entrer
en contact avec le monde que d’être du monde. Il me serait impossible de
réaliser un monde où je ne serais pas et qui serait pur objet de contemplation
survolante60 .

A impossibilidade de uma “contemplation survolante” é traduzida por Sartre em


termos de engajamento, que é justamente a dimensão fática do para-si. Esta, por sua vez, se
desdobra, utilizando as palavras de L. Husson, em diversos “níveis de diferenciação da
facticidade”, que ressaltamos ser: o corpo, o passado, a intersubjetividade e seu aspecto para-
outro. Voltaremos a isto. Por ora, visamos a acentuar a relação entre ser-no-mundo e a
facticidade como comportando em si a dimensão de engajamento e, consequentemente, a de
ser-no-meio-do-mundo do para-si. De algum modo podemos retornar a Heidegger mais uma
vez, a fim de apontar brevemente três características que acreditamos serem importantes para
a compreensão da facticidade em Sartre. Em primeiro lugar, vale observar a estreita ligação da
facticidade do ser-no-mundo, na estrutura unitária da cura (souci/Sorge), com a dimensão de
ser-jogado (être-jeté/ Geworfenhit) do Dasein: “L’être du Dasein est le souci. Il comprend en

57 HEIDEGGER, M. Être et Temps, p. 64.


58 Ibid. , p. 218. Ser simplesmente dado (l’être-sous-la-main/ Vorhandenheit), como a coisa que aparece para o
olhar teórico. Voltaremos a esta definição em nossa terceira parte.
59 Vale ressaltar mais uma vez que se trata de uma leitura sartriana da filosofia de Heidegger, o qual, por sua vez,

não opera no quadro da consciência e para quem tampouco faria sentido falar em encarnação.
60 EN, p. 357. (grifo nosso)
!157

soi la facticité (être-jeté), l’existence (projet) et l’échéance. Étant, le Dasein est jeté — il n’est
pas porté à son Là par lui-même”61. O que nos interessa neste trecho é justamente a
característica de jogado na existência do Dasein - que Sartre denomina de l’être-là62 do para-
si - como tudo aquilo que ele não escolheu, mas desde sempre já se encontra em seu aí e que
ele é encarregado de assumir. Em segundo lugar, destacamos a importância do papel da
facticidade no modo de ser temporal do Dasein, na medida em que este é a cada momento seu
passado:

Le Dasein est à chaque fois en son être factice, comme et « quel » il était
déjà. Expressément ou non, il est son passé, et il ne l’est pas seulement en ce
sens que son passé se glisserait pour ainsi dire «derrière» lui, qu’il
posséderait du passé comme une qualité encore sous-la-main qui parfois
manifesterait ses effets en lui. Le Dasein « est » son passé sur le mode de son
être, lequel, pour le dire grossièrement, « provient » à chaque fois à partir de
son avenir63 .

É importante notar neste trecho que o Dasein é o passado “a cada momento meu”, na
estrutura unitária da temporalidade que privilegia sua relação com o porvir. Isto é, a
facticidade implica o ter-de-ser do “a cada momento meu” (mienneté/Jemeinigkeit) e o poder-
ser do Dasein, já que ser o seu passado “provém” a cada vez do porvir (avenir). Este aspecto é
acentuado por Heidegger também em Ontology: the Hermeneutics of Facticity quando afirma
que “‘Facticity’ is the designation we will use for the character of the being of “our” “own”
Dasein. More precisely, this expression means: in each case “this” Dasein in its being-there
for a while at the particular time”64. Voltaremos em breve ao tema do “a cada momento meu”.
Em terceiro lugar, como dissemos acima, o fato da facticidade não diz respeito a um “factum
brutum” que pode ser conhecido: “le « que » de la facticité n’est jamais trouvable dans un
intuitionner”65.
Estas três características - o “ser a cada momento meu” passado e futuro, o ser-jogado,
e a impossibilidade de ser conhecido - são importantes para compreendermos a teoria da
facticidade sartriana. O ser “a cada momento meu” demonstra a ligação da facticidade com a
temporalidade ek-sática e a impossibilidade de pensar, como fizera Sartre até então, uma

61 HEIDEGGER, M. Être et Temps, p. 223.


62 Termo que é digno de confusão dado que être-là é a tradução mais corrente do Dasein para o francês.
63 HEIDEGGER, M., op.cit., p. 37. Isto não significa que se trata do passado individual de um sujeito, mas de

um passado histórico que se faz presente.


64 HEIDEGGER, M. Ontology - The Hermeneutics of Facticity. Bloomington: Indiana University Press, 1999, p.

5. (Trad. John van Buren).


65 HEIDEGGER, M. Être et Temps, p. 121.
!158

temporalidade instantanéista sem passado e sem futuro. Existir fáticamente é assumir a cada
momento as dimensões temporais de seu ser. O caráter de jogado na existência é explorado
por via do tema da contingência, por sua vez em estreita relação com a facticidade. Esta
dimensão está relacionada ao passado, como passado individual, mas também ao passado
histórico, na medida em que o para-si não escolhe as estruturas de sua situação - seu lugar,
seus arredores, seus próximos e sua morte - as quais devem ser mesmo assim assumidas:
“j’existe ma place, sans choix, sans nécessité non plus, comme le pur fait absolu de mon être-
là. Je suis là : non pas ici mais là. […] Fait de pure contingence - fait absurde” 66. Por último,
também para Sartre trata-se de uma dimensão que não pode ser conhecida, apreendida, mas,
neste caso, uma dimensão que assombra (hante) o para-si de diferentes maneiras - o passado,
o corpo como ser-no-meio-do-mundo, o ser para-outro. A facticidade, conclui Sartre, não
pode ser descrita em termos de “dentro” e “fora”, “passividade” ou “atividade” do para-si, ela
é somente o fato da existência sem fundamento do para-si67. É neste ponto que a facticidade,
em sua estreita ligação e diferença, nos remete a um dos temas mais importantes e
propriamente sartrianos: a contingência da existência.

b) O terreno da ontologia: a contingência ou a existência sem fundamento.

« On voudrait être tout », dit Bataille. Inexact : on voudrait fonder tout.


Sartre, Cahiers pour une morale

O tema da contingência da existência pode ser considerado como um fio condutor que
de algum modo une toda a obra sartriana68. Diferentemente da facticidade, que vimos ser um

66EN, p. 536.
67CDG, p. 394.
68Nossa afirmação pode parecer ousada, até porque, como evidencia V. de Coorebyter, depois de 1943 o tema da
contingência se torna discreto nas análises sartrianas. DE COOREBYTER,V. Sartre avant la phénoménologie, p.
100. Contudo, na medida em que até sua última obra sobre Flaubert, Sartre se baseia na noção de projeto
fundamental e que esta mesma depende da condição contingente da existência para se dar como “busca de ser”,
no sentido de uma “busca de fundamento”, esta afirmação nos parece pertinente. De todo modo, é no conjunto
dos trabalhos de juventude até La Nausée que encontramos a versão mais original e explícita de sua teoria da
contingência, a qual, segundo De Coorebyter, levou 14 anos para tomar sua forma: “d’un exposé sur Nietzsche
présenté à l’Ecole normale supérieure en 1924 à la parution de La Nausée en 1938”. DE COOREBYTER, V.
L’Être et le néant, ou le roman de la matière, p. 2.
!159

recurso conceitual que precisou ser integrado à filosofia de Sartre a fim de operar uma
mudança a partir da qual seria possível pensar o ser-no-mundo, a reflexão sobre a
contingência data de seus escritos de juventude. Em 1929, na época em que conheceu Simone
de Beauvoir, Sartre já discorria sobre sua “teoria da contingência” que, segundo Beauvoir,
continha em germe suas principais ideias sobre o ser, a existência, a necessidade e a
liberdade69. Isto significa que o tema da contingência já se mostra como principal no conjunto
de ideias originais do pensamento sartriano antes mesmo de seu encontro com a
fenomenologia70.
A noção de contingência significa tradicionalmente o oposto de necessidade e pode ser
compreendida também como sinônimo de acaso. Dizer que a existência é contingente é dizer
que aquilo que existe não tem nenhuma necessidade de existir e existe por acaso. Este tema é,
segundo Verstraeten, ateu por excelência, pelo fato de rejeitar todo fundamento integrador da
existência humana71. Neste sentido, a existência não pode ser considerada como derivada ou
criada por Deus e tampouco pode ser derivada de qualquer princípio essencialista (mesmo que
ateu) que traga consigo a ideia de uma natureza humana, como é o caso em Diderot, Voltaire e
Kant72, conforme exemplifica Sartre em L’Existentialisme est un humanisme a fim de
demonstrar sua máxima “a existência precede à essência”. Partir de uma existência
contingente é então se contrapor a qualquer teoria criacionista, universalista ou que
pressuponha uma natureza humana, o que faz com que a existência contingente coloque em
questão a ideia mesma de fundamento. É neste sentido que podemos afirmar que a concepção
da existência em termos de contingência vai de encontro às exigências do princípio de razão
suficiente segundo o qual “Nada é sem razão” (Nihil est sine ratione). Em Le principe de
raison, Heidegger mostra que este princípio, após um longo período de incubação na historia
do pensamento ocidental, adquire sua legitimidade e sua forma “completa e rigorosa” com
Leibniz, que o elevou a um princípio supremo: “Si le principe de raison est un principe
déterminant dans le système de Leibniz, c’est uniquement parce que ce principe concerne tout
ce qui est”73. Assim, tudo o que existe está submetido ao princípio de razão, o que significa
dizer que tudo clama por um fundamento:

69 BEAUVOIR, S. de. Mémoires d'une jeune fille rangée. Paris: Gallimard, 2013, p. 451.
70 V. de Coorebyter realiza um trabalho de análise minucioso do conjunto do pensamento sartriano desta época
em Sartre avant la phénoménologie.
71 VERSTRAETEN, P. Sartre/Kant/Hegel, p. 150.
72 EH, p. 27-28.
73 HEIDEGGER, M. Le principe de raison. Paris: Gallimard, 1978, p. 86. (Trad. André Préau)
!160

Dans tout ce qui nous entoure, nous concerne, se trouve sur notre route, nous
cherchons des raisons. L’un de nous affirme-t-il quelque chose, nous en
demandons la raison. Nous exigeons que tout comportement soit fondé sur
une raison. […] Toutes les fois que nous voulons fonder ou approfondir
quelque chose, nous sommes déjà en quête d’un fond, c’est-à-dire d’une
raison74 .

Dito isto, se nos perguntarmos pelo sentido da existência, somos conduzidos pelo
princípio de razão a buscar um fundamento. Mas o fundamento só alcança aquilo que a razão
pode dizer que é, o que para Heidegger se restringe ao plano do ente e não do ser, dado que o
ser não pode ter uma razão que o fundamente, já que ele é “sem-fundo” ou abissal75. Isto não
significa um escape ao principio de razão, diz David Lapoujade, pois “toute la méditation
heideggérienne sur le principe de raison n’a pas d’autre but : remonter au-delà de tout
fondement rationnel, vers le sans-fond, au nom même du principe de raison”76. Sobre o que
nos interessa nestas afirmações, podemos dizer que é justamente o fato da contingência em
Sartre dizer respeito a uma dimensão da existência que escapa ao princípio de razão no
sentido de que todo fundamento deve se apoiar num “sem-fundo”, que é a existência mesma.
Isto não significa que toda a esfera da existência escape à necessidade e ao fundamento, mas
há um solo de onde provém os sentidos que é ele mesmo “sem-fundo”. Sendo assim, toda a
ontologia sartriana é atravessada por esta condição ou, melhor dizendo, assombrada pela
contingência original. Esta conclusão nos remete a três consequências maiores: 1) a
contingência é o terreno mesmo da ontologia, terreno comum que escapa ao dualismo entre as
duas regiões fundamentais do para-si e do em-si, pois ambas as regiões são compreendidas a
partir desta condição; 2) este terreno faz com que o para-si seja atravessado pela náusea do
abismo, dado que seu movimento se caracteriza por uma busca de fundamento, isto é, o para-
si busca escapar do “sem-fundo” e deseja sua autofundação 3) a busca por fundamento do
para-si se desenvolve ainda no plano moral, como busca pelo direito de existir.
Em primeiro lugar, enquanto solo da ontologia sartriana, o terreno contingente é ele
mesmo “sem-fundo”. Esta condição vale tanto para o para-si quanto para o em-si (e isto na
medida em que próprio para-si é um em-si nadificado, como veremos a seguir). Neste sentido,
a contingência é a única categoria capaz de apreender todo o conjunto das regiões ontológicas,

74 Ibid., p. 247.
75 Ibid., p. 131.
76 LAPOUJADE, D. Deleuze, les mouvements aberrants. Lonrai: Minuit, 2014, p. 32. (grifo nosso)
!161

sendo que cada uma delas tem sua própria maneira de existir ou manifestar sua
contingência77. La Nausée é a obra que mais revela esta condição fundamental, dado que a
existência das coisas e do próprio Roquentin é desvelada como gratuidade absoluta, termo
que Sartre utiliza para expressar a contingência. Este romance nos mostra que a contingência
não é para Sartre uma categoria intelectual, como algo que se alcança por um tipo de razão
representativa própria do princípio de razão leibniziano, ou seja, para Sartre “la contingence
n’était pas une notion abstraite, mais une dimension réelle du monde : il fallait utiliser toutes
les ressources de l’art pour rendre sensible au cœur cette secrète « faiblesse » qu’il apercevait
dans l’homme et dans les choses”78. “La catégorie de la contingence, dit François Rouger,
comme échec du fameux « Principe de Raison » - que dénonce par ailleurs Heidegger-, n’est
pas chez Sartre une détermination prédicative, mais comme un Référentiel ultime, et la vérité
même de l’être” 79. Esta dimensão real do mundo é desvelada pela experiência da náusea ao
longo do romance, a qual leva o personagem a uma intuição fundamental: “L’essentiel c’est la
contingence. Je veux dire que, par définition, l’existence n’est pas la nécessité. Exister, c’est
être-là, simplement; les existants apparaissent, se laissent rencontrer, mais on ne peut jamais
les déduire”80. A existência contingente abrange assim homens e coisas - “Tout est gratuit, ce
jardin, cette ville et moi-même”81- e a náusea é a experiência de apreensão da gratuidade total
da existência contingente. O mundo revelado pela náusea, como vimos, é o “mundo nu”, o
mundo onde “tudo podia acontecer”, pois não há necessidade que mascare sua
imprevisibilidade, dado que estamos fora do plano de causas e efeitos e é essa a vertigem do
acaso, como demonstra L. Agostinho em sua investigação sobre o acaso em Mallarmé: “Tout
ce qui est, l’est par hasard, tout ce qui est l’est parce qu’il peut aussi être autre. C’est très
différent d’affirmer que “rien n’a de raison d’être” ou que “tout doit sans raison pouvoir être
autre”, car l’univocité du hasard ou son caractère absolu est ce qui fait être”82. Ainda segundo
a autora, o acaso transforma o ente numa multiplicidade instável e aberta, na medida em que é
ele que assegura que algo possa ser, mas possa ser sob múltiplas formas. É assim que em La
Nausée o verniz de necessidade das coisas se esvai e deixa apenas “des masses monstrueuses

77 DE COOREBYTER, V. Sartre avant la phénoménologie, p. 37.


78 BEAUVOIR, S. de. Mémoires d’une jeune fille rangée, p. 451.
79 ROUGER, F. Le monde et le moi: ontologie et système chez le premier Sartre. Paris: Méridiens Klincksieck,
1986, p. 133.
80 N, p. 187.
81 Ibid.
82 AGOSTINHO, L. Les plis et déplis du hasard à la recherche de l’infini. Poésie, philosophie et politique. 2015

(Tese) Université Paris-Sorbonne, p. 312.


!162

et molles, en désordre - nues, d’une effrayante et obscène nudité”83, que podem se transformar
em qualquer coisa.
Apesar de La Nausée demonstrar melhor que qualquer outra obra a “teoria da
contingência” sartriana, vimos que este romance se atém ao quadro da consciência nua onde o
“tempo da contingência”, como denomina De Coorebyter, se restringia ao tempo
instantaneísta, que pressupõe um puro presente. Porém, a inserção da facticidade que
transforma a filosofia do tempo sartriana, ao contrário de diminuir, irá reforçar o papel
fundamental da contingência como condição existencial dos modos de ser, agora no contexto
da ontologia. Veremos adiante como Sartre estabelece outra relação entre contingência e
necessidade a partir da noção mesma de facticidade. Por ora, podemos observar que as
consequências desta condição no modo de ser do para-si não podem ser negligenciadas. Isto
porque o próprio modo de ser do para-si se dá como fuga da contingência que o assombra de
todos os lados, isto é, o para-si é um projeto de busca de fundamento para escapar à sua
condição de “sem-fundo”. Este aspecto remete aos outros pontos, que, na verdade, encontram-
se interligados: o para-si é busca por fundamento e pelo direito de existir.
A partir de uma orientação kantiana da divisão entre fato e direito, Sartre desenvolve
sua teoria da contingência no sentido de compreender esta divisão em relação à própria
condição da existência. Em outras palavras, Sartre busca fazer uma distinção entre existência
de fato e existência de direito. A existência de fato é a condição mesma da contingência na
medida em que existir é o fato de simplesmente estar aí, como gratuidade total, sem nenhuma
justificativa. A existência de direito seria a retomada desta existência de fato por uma razão e
por uma justificativa. Na medida em que a existência do para-si é contingente, a partir de um
mundo também contingente, esta condição é vivida como absurdidade. La nausée já mostrava
esta condição, assim como La Transcendance de l’Ego, em que, como vimos, falava-se da
angústia diante da “fatalidade da espontaneidade”, que era então caracterizada como uma
liberdade que é criação ex nihilo. Em L’Être et le Néant, este fato é infraestrutural do modo de
ser projetivo do para-si, como veremos a seguir em detalhes, dado que este modo de ser é fuga
da angústia diante do sem-fundo ou, poderíamos dizer, do abismo. Sendo assim, o para-si é
caracterizado como projeto de busca de fundamento, o que pode também ser compreendido
como busca de uma existência de direito a fim de justificar a existência de fato, de modo que

83 N, p. 182.
!163

finalmente a existência seria legítima. Voltemos a citação de La Nausée que comentamos


acima, mas agora com mais elementos:

L’essentiel c’est la contingence. Je veux dire que, par définition, l’existence


n’est pas la nécessité. Exister, c’est être-là, simplement ; les existants
apparaissent, se laissent rencontrer , mais on ne peut jamais les déduire. Il y a
des gens, je crois, qui ont compris ça. Seulement ils ont essayé de surmonter
cette contingence en inventant un être nécessaire et cause de soi. Or aucun
être nécessaire ne peut expliquer l’existence : la contingence n’est pas un
faux-semblant, une apparence qu’on peut dissiper; c’est l’absolu, par
conséquent la gratuité parfaite. Tout est gratuit, ce jardin, cette ville et moi-
même. Quand il arrive qu’on s’en rende compte, ça vous tourne le cœur et
tout se met à flotter […] voilà la Nausée ; voilà ce que les Salauds […]
essaient de se cacher avec leur idée de droit84 .

Mascarar a condição contingente a partir da legitimidade dada pelo direito de existir,


significa, neste contexto, uma “resolução” para a incessante busca de fundamento
característica da existência. Resolução entre aspas, dado que esta busca é fadada ao fracasso,
justamente pela absolutidade da condição existencial da contingência. Isto posto, observamos
que contingência, fundamento e legitimidade são temas interligados não somente no interior
do pensamento sartriano, mas através de toda uma tradição filosófica que remonta a Platão e
Aristóteles. Deleuze, por exemplo, evidencia a relação entre legitimidade e fundamento a
partir de sua crítica ao platonismo, pois tradicionalmente aquilo que é legítimo é sinônimo de
bem-fundado. Encontramos esta lógica de forma explícita em Platão através da divisão entre
boas cópias e simulacros, sendo a boa cópia aquela que mais se assemelha ao modelo bem-
fundado - e por isso é a mais legítima -, enquanto que os simulacros são os “falsos
pretendentes”, porque são ilegítimos diante do direito de fundamento, devido a disparidade
que eles possuem em relação ao modelo, isto é, enquanto eles introduzem a diferença e a
alteridade em oposição à mesmidade e à semelhança das cópias mais próximas ao modelo 85.
Nesta lógica, cada fato é tomado como um pretendente à legitimidade, pois “un fait doit être
conçu comme une prétention, une exigence ou une revendication et la question quid juris ? a
justement pour fonction de juger du bien-fondé de la prétention” 86, ou seja, “le fait prétend et
le droit juge de la légitimité de la prétention, telle est la répartition”87. A nosso ver, algo desta
lógica mostra-se pertinente se formos analisar o quadro sartriano no que diz respeito à

84 N, p. 187.
85 DELEUZE, G. Simulacre et philosophie antique, p. 296-7.
86 LAPOUJADE, D. Deleuze, les mouvements aberrants, p. 24.
87 Ibid.
!164

condição contingente da existência88 . Em primeiro lugar, o modo de ser do para-si é


assombrado pela questão quid juris? (de que direito?), o que significa que cada manifestação
deste modo de ser é atravessada pela necessidade de legitimar a própria existência, como
podemos observar a respeito da situação de desejo “ser amado”, por exemplo:

Au lieu que, avant d’être aimés, nous étions inquiets de cette protubérance
injustifiée, injustifiable qu’était notre existence ; au lieu de nous sentir « de
trop », nous sentons à présent que cette existence est reprise et voulue dans
ses moindres détails par une liberté absolue qu’elle conditionne en même
temps - et que nous voulons nous-mêmes avec notre propre liberté. C’est là le
fond de la joie d’amour, lorsqu’elle existe: nous sentir justifiés d’exister89 .

Neste sentido, “vouloir être nécessaire”90 implica a necessidade de reconhecimento


que estrutura as relações intersubjetivas na medida em que não nos basta sermos reconhecidos
em nossa existência de fato, mas “nous demandons à être reconnus comme conscience
nécessaire” 91. Deste modo, conclui Sartre, pelo reconhecimento, “cette existence légitimée
par sa fin serait existence de droit, non de fait. Et il est vrai que, parmi les mille manières qu’a
le pour-soi d’essayer de s’arracher à sa contingence originelle, il en est une qui consiste à
tenter de se faire reconnaître par autrui comme existence de droit”92. Motivação que sustenta a
“luta por reconhecimento” descrita em L’Être et le Néant no capítulo sobre as relações
concretas com o outro, assim como as condutas que visam a reforçar a legitimidade do existir,
correspondentes à ideia sartriana do espírito de seriedade. De todo modo, a busca por
legitimidade compreende o próprio modo de ser do para-si enquanto busca por fundamento. É
neste sentido que, tendo em vista o quadro deleuziano de crítica ao platonismo, podemos dizer
que a condição de existência do para-si é a do pretendente, na medida em que ele busca a
perfeição do modelo bem-fundado - através do desejo de ser “em-si-para-si” ou Deus - mas

88 Recorremos a Deleuze nesta discussão a fim de mostrar a relação entre fundamento e legitimidade na sua
relação com uma existência de fato e uma existência de direito. Este paralelo se restringe somente ao ponto em
que a análise deleuziana auxilia a compreender essa afinidade entre os termos e temas. Dito isso, não
pretendemos transpor um quadro deleuziano - não fenomenológico, e que não parte da consciência (tampouco do
desejo como falta) - ao quadro sartriano, onde estas características são essenciais. Nosso objetivo é mostrar, em
suma, que a partir das análises de Deleuze, podemos compreender como um fato se dá em relação às exigências
do princípio de razão, isto é, como ele é imediatamente convocado a se posicionar diante da questão quid juris?.
Este ponto nos interessa na medida em que a contingência que assombra o para-si faz com que esta questão seja
a principal via de sua busca por legitimidade.
89 EN, p. 411.
90 CPM, p. 103.
91 Ibid.
92 EN, p. 530.
!165

está condenado a ser sempre esta dissimilitude, esta diferença de seu ideal, própria aos
simulacros. Podemos compreender então que a existência é “injustifiable”93 e ilegítima, ou
seja, não fundada. Nossa aproximação com as análises de Deleuze sobre os simulacros e as
boas cópias se restringe a este ponto, que é o que nos interessa a respeito da existência sem
fundamento: neste quadro, a existência de fato abre uma lógica dos pretendentes à
legitimidade. Na medida em que o para-si é um ser de possíveis, ele está sempre “à distância”
de si, pois “il y a possibilité lorsque, au lieu d’être purement et simplement ce que je suis, je
suis comme le Droit d’être ce que je suis. Mais ce droit même me sépare de ce que j’ai le droit
d’être”94. O para-si, por seu próprio modo de ser como busca de fundamento, insere-se na
lógica dos pretendentes ao direito, ao legítimo, de modo que cada manifestação é motivada
por esta pretensão. No entanto, sua condição primordial o faz ser esta diferença própria ao
simulacro, dado que a existência é injustificável, é sem-fundo.
Em Pour une morale de l’ambiguïté, Simone de Beauvoir desenvolve o tema da
justificação da existência contingente através de uma perspectiva que poderíamos qualificar
de “positiva”. Enquanto que em La Nausée a busca por justificativas era considerada como
mascaramento da existência contingente - como uma espécie de “mentira” e de ilusão para si
mesmo que irá caracterizar posteriormente a noção sartriana de má-fé (mauvaise fois) -, no
estudo de Beauvoir, “justifier positivement son existence” 95 corresponde ao plano mesmo de
uma moral da liberdade: “C’est dans ce moment de la justification […] que l’attitude de
l’homme se situe sur un plan moral ; la spontanéité contingente ne saurait être jugée au nom
de la liberté”96. Para Beauvoir, a moral é o triunfo da liberdade sobre o mundo nu da
facticidade, onde “rien n’arrive jamais, rien ne mérite un désir ou un effort”97 ; a liberdade é o
desejo mesmo de viver, de manter um “attachement à l’existence”, pelo qual a vida se
justifica98. Assim, Beauvoir não considera a busca por uma existência de direito um aspecto
negativo do modo de ser do para-si, como pode sugerir a ideia sartriana de fracasso (o para-si
como fracasso em ser Deus). Na medida em que “c’est à travers l’échec assumé que
[l’homme] s’affirme comme liberté”99, desejar ser este “fracasso” é um “sucesso”, pois “sans

93 EN, p. 348.
94 EN, p. 136.
95 BEAUVOIR, S. Pour une morale de l’ambiguïté. Paris: Gallimard, 2013, p. 40.
96 Ibid., p. 54.
97 Ibid., p. 59.
98 Ibid., p. 195.
99 Ibid., p. 171.
!166

échec, pas de morale”100, nem liberdade. Isto não significa, complementa Beauvoir, que
devemos consentir ao fracasso, mas “on doit consentir à lutter contre lui sans repos” 101. A
partir desta posição pode-se estabelecer uma distinção entre a busca pela justificativa do
existir como criação de sentidos pela liberdade e a tentativa de naturalização do direito de
existir como mascaramento da condição contingente do para-si, própria do espírito de
seriedade. Existir de fato é querer existir de direito, e a moral da liberdade, segundo Beauvoir,
se dá em manter este “querer”, sem mascarar jamais esta condição. Na linguagem que
utilizávamos há pouco, podemos dizer: assumir a condição da contingência é manter-se
enquanto pretendente e jamais adquirir os direitos das boas cópias.
“Vouloir être nécessaire” é assim caracterizado como próprio do movimento mesmo
do para-si, e isto se dá somente porque o para-si é atravessado, ou melhor, assombrado pela
contingência original. Do mesmo modo, o desvelamento do mundo se dá sempre em relação à
condição contingente original, e daí vem a sua multiplicidade: “mundo nu”, “mundo dos
profetas e dos artistas”, “das razões e explicações”, “imaginário”, etc. Em outras palavras, a
contingência é o terreno mesmo da ontologia, a partir do qual devemos compreender os
modos de ser para-si e em-si. A necessidade de legitimidade da existência de fato não
atravessa somente as motivações do para-si em seu desejo de reconhecimento, mas o modo
mesmo como o mundo aparece102.

§3 . Temporalidade ek-stática e factidade.

O capítulo sobre a temporalidade em L’Être et le Néant encontra-se dividido em três


partes: “I - Fenomenologia das três dimensões temporais”; “II - Ontologia da temporalidade”
e “III - Temporalidade original e temporalidade psíquica”. Neste momento nos
concentraremos em algumas análises presentes nos dois primeiros pontos: as que tratam da
ek-stase passado e do processo de metamorfose, dado que elas apresentam a concepção

100 Ibid., Cf. p.15; p.17.


101 Ibid., p. 194.
102 Como podemos observar, por fim, neste trecho de Baudelaire, em que Sartre compara - em consonância com
La Nausée - o “mundo nu”, da “pura contingência”, com o “mundo das explicações e das razões”, onde as coisas
se apresentam justificadas, desta vez a partir da diferença entre natureza e cidade: “Si l’homme prend peur au
sein de la nature, c’est qu’il se sent pris dans une immense existence amorphe et gratuite qui le transit tout entier
de sa gratuité : il n’a plus sa place nulle part, il est posé sur la terre, sans but, sans raison d’être comme une
bruyère ou une touffe de genêt. Au milieu de villes, au contraire, entouré d’objets précis dont l’existence est
déterminée par leur rôle et qui sont tous auréolés d’une valeur ou d’un prix, il se rassure : ils lui renvoient le
reflet de ce qu’il souhaite être : une réalité justifiée”. B, p. 99.
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sartriana da temporalidade como estrutura do ser para-si em sua relação com a facticidade,
neste contexto tematizada sob a forma do passado. O terceiro ponto, que consiste nas análises
sobre a reflexão, será abordado posteriormente, no momento de nossa discussão sobre este
tema. Dado este esclarecimento, nos voltamos para os desenvolvimentos de Sartre sobre a
temporalidade, que encontram-se divididos em: 1) uma investigação fenomenológica das ek-
stases temporais; 2) uma ontologia da temporalidade que consiste numa análise sob as
perspectivas estática e dinâmica, inspirada na divisão kantiana entre ordem e curso do tempo.
A investigação fenomenológica das ek-stases se desenvolve a partir de questões orientadoras
direcionadas a cada uma das dimensões do tempo, a saber, passado, presente e futuro. Como
vimos, Sartre recorre a Heidegger a fim de conceber uma estrutura temporal global e sintética,
onde cada dimensão implica necessariamente as outras. Sendo assim, o fenomenólogo Sartre
se propõe a interrogar cada ek-stase sobre seu ser e sobre o sentido de seu ser, isto é, trata-se
de interrogar passado, presente e futuro sobre seu ser sem perder de vista a dimensão da
totalidade temporal a partir da qual cada ek-stase pode ser compreendida. Neste sentido, as
análises das três dimensões do tempo se caracterizam como um “trabalho provisório” cujo
objetivo é justamente “aceder à intuição da temporalidade global” 103.
Podemos entrever o modo de ser temporal do para-si nas próprias fórmulas descritivas
que Sartre lhe atribui: enquanto o em-si “é o que é”, duas definições são fornecidas para o
para-si: ele “é o que não é e não é o que é” e ele “tem de ser” seu ser. Poderíamos acrescentar
ainda que, para o para-si, “a existência precede à essência”. Estas definições nos remetem
diretamente à temporalidade. Como afirmamos acima, ao abandonar a perspectiva
instantaneísta do tempo, Sartre reconfigura toda sua base ontológica: as regiões para-si e em-
si devem agora devem ser compreendidas a partir da temporalidade ek-stática. A fim de
precisão, observamos que a região em-si não se temporaliza, já que ela corresponde ao
princípio de identidade, que não admite a negatividade própria à temporalização, enquanto
que a região para-si é aquela que existe no tempo e cujo sentido é o de ser temporal104 . Dizer
que o para-si “é o que não é e não é o que é” significa dizer que seu modo de ser é aquele que
nadifica seu ser, conforme veremos com detalhes a respeito da estrutura imediata da
facticidade. Dissemos anteriormente que Sartre denominou de ato ontológico esta perpétua

103 EN, p. 142.


104 EN, p. 141. Mas isto não significa que possamos compreender o modo de ser em-si a partir de um plano “ex-
tratemporal”, este ponto ficará mais claro quando tratarmos das condições objetivas de desvelamento do mundo.
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nadificação de si que caracteriza o movimento temporal da existência que faz com que o para-
si tenha de ser seu ser. Novamente a influência heideggeriana se faz presente, através de sua
reconfiguração propriamente sartriana, na medida em que em Être et Temps o Dasein tem de
ser “a cada momento” o ser que ele é, o que em termos de para-si se dá através do ato
incessante de nadificação. A temporalidade ek-stática é justamente este modo de ser “a cada
momento” que diz respeito a uma existência que mantém uma relação a si que não pode mais
ser compreendida como uma relação de identidade ou de continuidade de uma substância.
Em seu livro À chaque fois mien, François Raffoul105 explora o tema do “a cada
momento meu” (mienneté/Jemeinigkeit) em Heidegger e mostra que devemos diferenciar dois
tipos de relação: uma relação a si como condição de possibilidade do Dasein de designar-se
na primeira pessoa; e uma relação a si que pressupõe um Eu sempre idêntico a si mesmo. Em
outros termos, existem diferentes modos de compreender aquilo que estaríamos pressupondo
como uma “relação a si”, visto que o próprio termo si já indica uma individualização que deve
ser esclarecida em seu modo de doação. Ricœur, por exemplo, explica em Soi même comme
un autre que há variadas formas de compreender esta relação a si. Embora ele mantenha o
termo identidade para falar das diferentes relações, ele opera com uma distinção entre os
conceitos de identidade-idem, que é aquela que pressupõe uma permanência no tempo de um
núcleo da personalidade, e identidade-alter, a qual não se baseia neste tipo de pressuposto,
mas, ao contrário, escapa a uma lógica do si como relação com o mesmo, pois se faz sob uma
dialética de si mesmo onde a alteridade é parte constitutiva106. Mostramos este ponto no
intuito de demarcar que a relação a si pode ser compreendida de maneiras distintas e ainda
que o que costuma estar em jogo nesta definição é a pressuposição ou não de um eu
substancial como ponto de partida. É neste sentido que a relação a si como ipseidade,
colocada em cena por Heidegger, pretende, em contrapartida ao pensamento lógico-metafísico
do sujeito, indicar “ce qui au fond de nous-mêmes, au-delà de toute figuration imparfaitement
substantialiste, nous fait « sujet »”107.
Se a permanência de um Eu não é mais a base para se pensar o “sujeito”, a
temporalidade torna-se o fio condutor para se conceber a relação a si diferentemente, sob a
forma da ipseidade. Para Raffoul, o tempo é agora um princípio mesmo de individuação de

105RAFFOUL, F. À chaque fois mien: Heidegger et la question du sujet. Paris: Galilée, 2004.
106RICŒUR, P. Soi même comme un autre. Paris: Seuil, 1996, p .12-13.
107BENOIST, J. La subjectivité. In: KAMBOUCHNER, D. (Org) Notions de philosophie, II. Paris: Gallimard,
1995, p. 540.
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uma existência “a cada momento” individuada, a cada vez “minha”: “Il n’y a pas d’existence
dépourvue d’ipséité, l’exister est à chaque fois un « j’existe », dans la mesure où l’exister
n’est pas la particularisation d’une essence universelle, mais la mise en jeu de l’être à la
première personne” 108. Com relação a este quadro maior, Sartre se baseia na concepção ek-
stática da temporalidade para pensar o para-si como ipseidade e projeto, a fim de escapar à
concepção do sujeito como substância e identidade, isto é, a ipseidade não tem nenhuma
equivalência ao Eu 109. Este é o sentido da ideia de que o para-si tem de ser seu ser, visto que
ele não o é - identidade, substância, - mas “être soi, c’est venir à soi”110 , o que significa que o
para-si se temporaliza e que tal movimento é singular: ele é a cada vez o seu passado, o seu
presente e o seu futuro e seu existir é um perpétuo estar em jogo de todo o seu ser.
Ter de ser seu passado, presente e futuro, leva em conta a maneira de cada ek-stase
temporal se dar neste processo. Resumidamente, a presença é descrita como fuga: o para-si
presente é nadificação do em-si que ele era e negação do em-si presente que ele não é. De
acordo com a prova ontológica, o para-si se constitui a partir do ser que ele não é, através
justamente da negação interna. Sartre chama de presentificação o movimento temporal a cada
vez desta negação e o seu sentido é a “fuga”: “Le pour-soi est présent à l’être sous forme de
fuite ; le présent est une fuite perpétuelle en face de l’être” 111. Na verdade, a fuga é
movimento duplo de nadificação - e por isso o presente não é compreendido como repouso
diante do ser que ele não é - mas a fuga é presentificante “car en fuyant l’être qu’elle n’est
pas, la présence fuit l’être qu’elle était” 112. O futuro é um modo do para-si ter de ser seu ser
ao invés de ser seu ser sob o modo da identificação. Por último, não sendo o presente uma
soma de instantes, tampouco o futuro é uma série homogênea e cronológica de instantes por
vir, isto é, como um “agora” que ainda não é, conforme a concepção tradicional de tempo que
expomos anteriormente. Acrescenta-se ainda que futuro não é uma representação, pelo
contrário, quando tomado como objeto de tese, tal fato, diz Sartre, “cesse d’être mon
avenir”113. Em suma, o futuro, assim como o passado, é meu, de acordo com a característica
do “a cada momento meu” do ter de ser do para-si, pois a ligação de “a cada momento meu”
do para-si com o seu futuro é instaurada pela dupla negação. Por fim, a ek-stase passado

108 RAFFOUL, F. À chaque fois mien, p. 213.


109 CDG, p. 320.
110 EN, p. 582.
111 EN, p. 158.
112 EN, p. 161.
113 EN, p. 159.
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indica o modo de ser era (était) do para-si, o qual é de extrema importância, dado que é a ek-
stase que indica o ponto crucial de mudança a partir da inserção da facticidade em sua relação
com a temporalidade. Por esta razão, abordaremos a seguir de forma mais detalhada este
ponto, ao passo que as outras ek-stases - presente e futuro - serão retomadas nas descrições
das estruturas imediatas do para-si e sob a perspectiva da hantologie.

a) O para-si era: ser e não ser o seu próprio passado.

A mudança na perspectiva da temporalidade está diretamente interligada à inserção da


facticidade como uma estrutura do modo de ser do para-si. O para-si é projeto jogado no
mundo em direção às suas possibilidades e se compreende a partir desta estrutura de ipseidade
temporal, assim como Heidegger dizia que “l’être-jeté est le mode d’être d’un étant qui est à
chaque fois lui-même ses possibilités, de telle manière qu’il se comprend dans et partir d’elles
(se projette vers elles)”114. Como vimos, o caráter de jogado é dado pela condição da
existência de fato que deve a cada vez nadificar seu ser rumo às suas possibilidades,
movimento que, como veremos em seguida, é compreendido em relação à falta de ser do para-
si. O que nos interessa neste momento, antes de analisarmos com detalhes as estruturas
imediatas do para-si, é a inter-relação da facticidade com a temporalidade ek-stática, no
sentido de evidenciar que tal mudança não permite mais que consideremos a espontaneidade
do para-si como uma criação ex nihilo. Para tal, é preciso compreender uma ambiguidade no
próprio texto sartriano, como podemos observar no exemplo que o filósofo nos apresenta em
L’Être et le Néant sobre um jogador que decidiu parar de jogar. Neste, Sartre busca mostrar a
relação da decisão passada de “não jogar mais” com a ação presente do jogador a partir de
uma situação específica: quando confrontado com a possibilidade de jogar, ao se ver em uma
situação que lhe impele a tal, o jogador busca em sua decisão passada a consistência e a força
que lhe impediria de jogar e apreende, na angústia, a total ineficiência da resolução anterior. A
decisão ainda “está lá”, diz Sartre, mas “figée, inefficace, dépassé du fait même que j’ai
conscience d’elle. Elle est moi encore, dans la mesure où je réalise perpétuellement mon
identité avec moi-même à travers le flux temporel, mais elle n’est plus moi du fait qu’elle est
pour ma conscience” 115. Foi justamente tal “fraqueza” do passado que levou Sartre

114 HEIDEGGER, M. Être et Temps, p. 152.


115 EN, p. 68.
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anteriormente a subestimar seu papel nas ações presentes (como em La Nausée, conforme
analisamos anteriormente). Ao passo que, em L’Être et le Néant, sendo o passado uma
estrutura da facticidade e assim constitutivo do para-si, não basta pensar os momentos anterior
e atual através de uma radical separação, mas deve-se dar conta do modo pelo qual este
passado “permanece” no para-si, mesmo que este não tenha a mesma “força” de outrora.
Assim, o que nos perguntamos a partir de tal afirmação é exatamente como uma decisão pode
ser e não ser a resolução anterior através do fluxo temporal. Dito de outro modo, como o fluxo
temporal do projeto permite este ser e não ser simultaneamente seu passado? Sartre prossegue
em seu exemplo do jogador para demonstrar esta relação:

Ce que le jouer saisit à cet instant, c’est encore la rupture permanente du


déterminisme, c’est le néant qui le sépare de lui-même : j’aurais tant souhaité
ne plus jouer; même, j’ai eu, hier, une appréhension synthétique de la
situation (ruine menaçante, désespoir des mes proches) comme m’interdisant
de jouer. Il me semblait que j’avais ainsi constitué une barrière réelle entre le
jeu et moi, et, voici que je m’en aperçois tout à coup, cette appréhension
synthétique n’est plus qu’un souvenir d’idée, un souvenir de sentiment : pour
qu’elle vienne m’aider à nouveau il faut que je la refasse ex nihilo et
librement; elle n’est plus qu’un des mes possibles, comme le fait de jouer en
est un autre, ni plus ni moins. Cette peur de désoler ma famille, il faut que je
la retrouve, que je le recrée comme peur vécue, elle se tient derrière moi
comme un fantôme sans os, il dépend de moi seul que je lui prête ma chair. Je
suis seul et nu comme la veille devant la tentation et, après avoir édifié
patiemment des barrages et des murs, après m’être enfermé dans le cercle
magique d’une résolution, je m’aperçoit avec angoisse que rien ne
m’empêche de jouer. Et l’angoisse c’est moi puisque par le seul fait de me
porter à l’existence comme conscience d’être, je me fais n’être pas ce passé
des bonnes résolutions que je suis116.

Este trecho nos indica uma série de pontos importantes, ainda que estes não sejam
aprofundados neste momento do texto sartriano: 1) A preocupação do autor parece ser a de se
opor ao determinismo, ou seja, a relação entre uma vivência passada e a vivência presente não
pode ser do tipo causa e efeito 2) A vivência passada só adquire o valor de motivação de um
ato a partir de sua assunção atual pelo para-si 3) Esta assunção é descrita como sendo livre e
criação ex nihilo, o que nos coloca um problema a ser investigado 4) de que modo o para-si
pode não ser o passado que ele é? Estes pontos são fundamentais para nossa investigação e de
algum modo toda a “Terceira parte”, a hantologie, é uma forma de respondê-los. O que
podemos dizer neste instante é que este trecho traz uma ambiguidade na medida em que o
autor afirma ao mesmo tempo uma criação ex nihilo e uma impossibilidade de não ser o

116 EN, p. 68.


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próprio passado simplesmente, isto é, o para-si se cria livremente sendo e não sendo o seu
próprio passado. De todo modo, não podemos mais compreender o para-si como não sendo
totalmente o seu passado. Se o projeto é temporalização ek-stática, passado, presente e futuro
fazem parte de uma totalidade temporal que só pode ser decomposta abstratamente para fins
de análise, tal como Sartre o faz em seu capítulo sobre a temporalidade. A solução oferecida
neste capítulo, a fim de dar conta da relação do para-si como o passado que ele é, consiste no
recurso de dizer que “o para-si era (était) seu passado”. Vejamos.
Em L’Être et le Néant, Sartre aborda a questão do ser do passado em três níveis
distintos: o passado enquanto ek-stase que compõe o processo temporizador do para-si117; o
passado como tempo do mundo - enquanto estrutura da temporalização própria do modo de
desvelamento do em-si transcendente118 -; e o passado enquanto estrutura da situação do para-
si119. Os três níveis distintos são concebidos, na verdade, a partir uma mesma dimensão ek-
stática de temporalização, que é a estrutura originária do modo de ser do para-si. Somente por
esta estrutura é possível compreender o tempo do mundo - que será abordado na “Terceira
parte” como tempo fantasma - e o caráter fático da situação que o para-si encontra-se desde
sempre inserido em sua existência concreta. Diante deste breve panorama sobre as análises do
ser do passado em L’Être et le Néant, nos concentraremos neste momento sobre o primeiro
aspecto: a ek-stase passado no modo de ser temporal originário do para-si.
Na investigação sobre o ser do passado, Sartre apresenta duas perspectivas frequentes:
a primeira caracteriza justamente o privilégio do presente que presume que o passado não é
mais e somente o presente existe; a segunda atribui ser ao passado: ele existe, mas a título de
algo isolado, que perderia a eficiência sem, no entanto, deixar de existir. Segundo Sartre, se
nos ativermos à primeira perspectiva, além de nos restringirmos ao problemas que
descrevemos anteriormente do privilégio do presente, teremos dificuldades de pensar o
fenômeno da lembrança, no sentindo de que não teríamos meios de compreender como uma
consciência poderia transcender o presente e apreender uma consciência passada. Por outro
lado, também não seria uma solução atribuir ser a um passado isolado. Sartre reconhece este
recurso em Bergson, que a seu ver pensa que um evento passado pode deixar de agir, embora
permaneça “à sa place, à sa date, pour l’éternité” 120; e também à “consciência popular”, sobre

117 Cf. EN, p. 143-155; p. 173-177.


118 Cf. EN, p. 240-245.
119 Cf. EN, p. 541-549.
120 EN, p. 144.
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a qual ele não entra em detalhes mas informa que esta seria a visão de que um evento passado
continua existindo “lá atrás”, esvaziado da “força do presente”. Disto decorre que mesmo
atribuindo ser ao passado, este se encontra dissociado da ek-stase presente, como um tipo de
existência autônoma. Do modo semelhante, a concepção husserliana das retenções, que
permite pensar um elo entre presente e passado, não escaparia a esta lógica, pois estabeleceria
ainda uma espécie de permanência e autonomia metafísica das consciências passadas em
relação às presentes. Como a própria investigação já demonstra, a compreensão do passado
envolve uma compreensão do presente (e do futuro), dado que atribuir ou não ser ao passado
revela os pressupostos implícitos na concepção do presente que, se tomado como separado de
seu passado, só pode ser compreendido como uma soma de instantes, conforme a concepção
instantaneísta da temporalidade. Em suma, Sartre conclui: “Que le passé soit, comme le
veulent Bergson et Husserl, ou ne soit plus, comme le veut Descartes, cela n’a guère
d’importance si l’on a commencé par couper les ponts entre lui et notre présent”121.
Conforme podemos vislumbrar em tais críticas, as pontes entre o passado e o presente
não podem ser cortadas, sob o risco de recairmos em concepções metafísicas do privilégio da
presença e na concepção instantaneísta do tempo. Há de haver assim um modo de ligação, que
não pode ser o de relações externas (e nisto a metáfora da ponte não é apropriada, pois ela
indica um modo de ligação entre duas instâncias autônomas e independentes, entre dois
modos de ser em-si), mas que deve ser o de relações internas, que unem de forma sintética a
estrutura global da temporalidade. Por esta razão, Sartre afirma que o para-si ao invés de “ter
um passado”, como se diz comumente, revelando uma relação de posse, “tem de ser seu
próprio passado” (avoir à être son propre passé), o que indica uma relação de ser. Entretanto,
o fato de ser um passado também pode ser mal interpretado se fizermos uma equivalência do
passado com o presente, não levando em conta a “heterogeneidade entre o passado e o
presente”122. A relação ontológica que une as ek-stases passado e presente consiste na
nadificação de si, que é melhor caracterizada pela conjugação do verbo ser no pretérito

121 EN, p. 145.


122 EN, p. 180.
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imperfeito do indicativo: era (était)123. O modo temporal era se caracteriza por ser
intermediário entre o passado e presente na medida em que ele “n’est lui-même ni toute à fait
présent ni tout à fait passé”124; ele indica justamente a lei ontológica do para-si de ser seu
próprio passado, na síntese original das ek-stases passado, presente e futuro. Ser seu próprio
passado significa ainda a especificidade da relação interna que se realiza pelo modo era que é
a de ter de ser seu passado ao invés de ter um passado. O para-si é responsável pelo seu
passado no sentido deste ter de ser a cada momento seu, pois a existência do para-si consiste
neste estar em jogo a cada vez, onde o passado é estrutura ontológica constitutiva, de modo
que assim “le passé n’est justement que cette structure ontologique qui m’oblige à être ce que
je suis par-derrière. C’est là ce que signifie « était »”125. Em outras palavras, o modo de
temporalização do para-si faz com que ele tenha de ser a cada vez seu passado (assim como
seu futuro) sob o modo do era, o que Sartre expressa figurativamente como “ser por detrás”.
Este caráter de ser a cada momento do para-si, de estar em jogo em seu ser, implica o estar em
jogo do passado que ele era. Isto revela ainda duas características fundamentais deste aspecto
da temporalidade, que consistem numa abertura e em um fechamento:

Le passé que je suis, j’ai à l’être sans aucune possibilité de ne l’être pas. J’en
assume la totale responsabilité comme si je pouvais le changer et pourtant je
ne puis être autre chose que lui. Nous verrons plus tard que nous conservons
continuellement la possibilité de changer la signification du passé, en tant que
celui-ci est un ex-présent ayant eu un avenir. Mais au contenu du passé en
tant que tel je ne puis rien ôter ni ajouter. Autrement dit le passé que j’était
est ce qu’il est ; c’est un en-soi comme les choses du monde. Et le rapport
d’être que j’ai à soutenir avec le passé est un rapport du type de l’en-soi.
C’est-à-dire de l’identification à soi126 .

O fechamento se caracteriza pelo processo de metamorfose que ocorre no ato de


tornar-se passado que Sartre nomeia de passadificação (passeification) e que o faz identificar

123 Existe aqui uma dificuldade de tradução visto que o verbo être em francês pode designar em português os
verbos ser e estar. No caso das análises sobre o ser do passado, optamos por traduzir était por era, dado que
Sartre estabelece a ligação do ser do passado com o presente como uma ligação ontológica, logo, necessária. Por
esta razão, optamos pela tradução era, já que estava pode indicar uma situação ou um estado provisório e
contingente. Nos Carnets, “era” - no intuito de indicar a relação com o passado - é denominado como “est été”,
dado a inspiração numa tradução da frase de Hegel Wesen ist was gewesen ist: “l’essence, c’est ce qui a été”,
conforme veremos mais adiante.
124 EN, p. 150.
125 EN, p. 153. E por isso a decisão que deve ser retomada ex nihilo no exemplo do jogador não é propriamente

o passada, mas uma nova decisão - assombrada por seu passado - diante da anterior que aparece agora como tese
para a consciência, daí sua inconsistência de não ter mais a “força do vivido”.
126 EN, p. 151.
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o passado ao modo de ser em-si. Tudo aquilo que o para-si é, neste contexto, é equivalente ao
que ele foi, isto é, há uma objetificação em em-si do modo de ser do para-si, da qual ele
escapa pela nadificação de seu ser. Conforme veremos a respeito da estrutura da facticidade, o
para-si é nadificação do em-si que ele é - por isso a temporalidade toma o aspecto de uma
fuga - e esta nadificação é precisamente aquilo que impede que o para-si seja alguma coisa,
sob o modo da identidade: “Le pour-soi ne peut être qu’en échappant à l’être qu’il est et cette
fuite du néant devant l’en-soi constitue la temporalité”127. A descrição deste modo de ser
como “é o que não é e não é o que é” indica o processo de nadificação de ser que o caracteriza
e que faz com que o presente seja nadificação do ser que ele é, o que equivale a dizer que o
para-si é o seu passado sob o modo de o não ser. Se o nada (néant) só pode ser nadificação de
ser, este ato negativo que o para-si é se caracteriza justamente pela nadificação do passado, ou
seja, a cada momento, o para-si nadifica seu passado como passado de seu presente: “En ce
sens, tout présent se donne comme passé nié, mon présent c’est la négation de ce que je
suis”128. Da responsabilidade de ter de ser seu passado ocorre então um fechamento e uma
abertura: o fechamento do em-si e a abertura da temporalidade - nadificação do em-si -; a
possibilidade de se escolher a cada vez a significação do passado que está em jogo neste
processo129. O processo temporal de se escolher a cada momento é estruturado pelo ser em-si
do passado, já que é neste que a nadificação incide. Por esta razão, não é possível, a não ser
por um recurso de má-fé130, se “dessolidarizar” de seu próprio passado. A este respeito
acrescentamos que a negação de ser que caracteriza o para-si (nadificação), é distinta da
negação no sentido de não assumir, não se responsabilizar por algo, neste caso por seu
passado. Esta segunda descrição caracterizaria o que Sartre considera ser uma negação de má-
fé, que se traduz na ideia de que o para-si “não é o que ele era”, no interior de uma concepção
do tempo em que “o passado não é mais”. A negação no sentido da nadificação, ao contrário,

127 CDG, p. 499. Citamos as análises do caderno XI dos Carnets de la drôle de guerre em que os
desenvolvimentos sobre a temporalidade encontram-se em afinidade com os de L’Être et le Néant, isto é, logo
após a mudança da concepção de temporalidade apontada neste mesmo caderno (ibid., p. 495-496), sobre a qual
comentamos anteriormente.
128 CDG, p. 499.
129 Bento Prado Jr. resume bem e em poucas palavras este fechamento da passadificação, em sua relação com a

abertura da transformação de significação do passado: “Os meus gestos passados inscreveram-se definitivamente
no universo dos objetos. O meu presente vivido, ao tornar-se passado, cristaliza-se e ganha a inércia da
exterioridade A minha história atual pode - através do jogo da ilusão retrospectiva - transformar-lhe a
significação, sem nunca apagar a sua efetividade”. PRADO JR., B. Presença e campo transcendental.
Consciência e negatividade na filosofia de Bergson. São Paulo: Edusp, 1989, p. 104.
130 O tema da má-fé será abordado na “Terceira parte”.
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é a assunção do passado - “jamais négation sans racines”131 - o que quer dizer que o para-si só
pode existir como processo de nadificação a cada momento de tudo que ele é, numa
concepção do tempo onde o passado é estrutura da própria existência. Disto decorre a tensão
da abertura e do fechamento do modo do para-si de ao mesmo tempo ser seu passado - o que
se revela na impossibilidade de não sê-lo e na impossibilidade de sê-lo, sob o modo de
identificação. Apesar do modo de ser do para-si com o seu passado ser uma relação de
identificação (conforme o trecho acima), a realização desta operação não é possível, devido ao
processo temporal de nadificação de si que caracteriza o para-si, que se consiste justamente
num escape incessante que impede a identificação a si. Por isso, Sartre se utiliza do termo
solidariedade para com o passado, para evidenciar o aspecto da tensão entre não poder não
ser seu passado e não poder sê-lo como ser em-si.
No primeiro caderno dos Carnets, que data de outubro de 1939, ou seja, antes de sua
mudança em direção à historicidade no ano seguinte, Sartre descreve exatamente o que neste
contexto posterior poderia ser caracterizado como má-fé, neste caso como uma recusa de
“solidariedade consigo mesmo”:

Il m’est arrivé, après avoir eu des torts, dans une dispute, de les reconnaître
volontiers et de m’étonner profondément ensuite en voyant que mon
interlocuteur, malgré cet aveu, m’en voulait encore. J’avais envie de lui dire :
« Mais, voyons, ça n’est plus moi ; ça n’est plus le même ». Certainement
c’est ce qui me rend si évidente ma théorie de la liberté, qui est en effet une
manière de s’échapper à soi-même, à tout instant. Jamais je n’ai de remords.
[…] Et si, devant autrui, j’assume la responsabilité de mes actes - et cela du
moins, j’en suis sûr, je le fait toujours - c’est avec l’impression de payer
généreusement pour un autre132.

Este trecho é muito interessante, já que ele concentra uma série de aspectos que estão
envolvidos na concepção da temporalidade e do modo de ser do para-si. A falta de
solidariedade com o que o para-si foi traz implicitamente uma forma de conceber a duração,
isto é, de que modo Sartre concebe a espontaneidade da consciência como criadora de si
mesma e qual a relação das novas consciências com as consciências passadas. Esta relação é
constatada no trecho agora citado com base num plano reflexivo, que é o momento em que a
consciência nua “julga” seu homem, como se fosse uma relação com o outro. A fala: “Mais,
voyons, ça n’est plus moi; ça n’est plus le même” nos remete à espontaneidade da consciência

131 EN, p. 238.


132 CDG, p. 234.
!177

de La Transcendance de l’Ego, que a cada instante produzia uma existência nova a partir de
uma criação ex nihilo e não é a toa que neste texto Sartre parafraseia o “Je est un autre”133 de
Rimbaud. Tratava-se assim de uma existência nova a cada instante, dessolidarizada com seu
passado, a cada instante outra, como não sendo o seu passado. A mudança na concepção da
temporalidade, que permite as novas elaborações em torno do tema em L’Être et le Néant,
ocorre justamente no que tange à encarnação do para-si em sua historicidade e na
impossibilidade de não ser o seu próprio passado134. Mas isso não significa que as posições
anteriores que encontramos nestes trechos sejam rejeitadas por completo: a espontaneidade
como maneira de ser da duração se mantém, embora este criar-se a si mesmo não seja mais
compreendido como um simples desprendimento do passado. Mesmo porque, dizer que o
para-si não é mais o seu passado é conceber uma separação entre passado e presente como
estes se fossem instâncias independentes e não estruturas temporais interligadas entre si. A
partir desta premissa, como vimos, dizer que o para-si não é o seu passado é agir de má-fé.
Entretanto, a tensão do era mostrou que também não é possível dizer que ele é o seu passado:
“me perdre en lui sous la forme de l’identification : ce qui m’est refusé par essence” 135.
Parece-nos que ao invés de considerar as posições anteriores como ultrapassadas, após as
mudanças na perspectiva temporal, podemos dizer que elas são constitutivas da tensão mesma
de “ser o que não se é e não ser o que se é”. Tudo se passa como se a questão do “ça n’est plus
moi; ça n’est plus le même” estivesse mal colocada, como se Sartre ainda não tivesse os
recursos para pensar de que modo ele não é mais o mesmo. Uma das chaves de mudança de
seu pensamento neste sentido parece ter vindo da posição hegeliana de que “a essência é

133 TE, p. 127.


134 Em L’Être et le Néant, a ideia de “falta de solidariedade com o passado” é expressa como uma das maneiras
escolhidas do para-si de lidar com seu próprio passado, cujo sentido encontra-se ligado a um projeto de
progredir: “Si, dans une perspective fondamentale que nous n’avons pas à déterminer encore, un de mes
principaux projets est de progresser, c’est-à-dire d’être toujours et coûte que coûte plus avancé dans une certaine
voie que je ne l’étais la veille ou l’heure d’auparavant, ce projet progressif entraîne une série de décollements par
rapport à mon passé. Le passé, c’est alors ce que je regarde du haut de mes progrès, avec une sorte de pitié un
peu méprisante, c’est ce qui est strictement objet passif d’appréciation morale et de jugement - « comme j’étais
sot, alors ! » ou « comme j’étais méchant ! » -, ce qui n’existe que pour que je m’en puisse désolidariser. Je n’y
entre plus ni ne veux plus y entrer. Ce n’est pas, certes, qu’il cesse d’exister, mais il existe seulement comme ce
moi que je ne suis plus, c’est-à-dire cet être que j’ai à être comme moi que je ne suis plus. Sa fonction est d’être
ce que j’ai choisi de moi pour m’y opposer, ce qui me permet de me mesurer. Un pareil pour-soi se choisit donc
sans solidarité avec soi, ce qui veut dire, non qu’il abolit son passé, mais qu’il le pose pour ne pas être solidaire
avec lui, pour affirmer justement sa totale liberté (ce qui est passé est un certain genre d’engagement vis-à-vis du
passé et une certaine espèce de tradition). EN, p. 548-549. (grifo nosso)
135 EN, p. 154.
!178

aquilo que foi” (Wesen ist was gewesen ist)136, a partir da qual Sartre afirma que “toute
jugement que je porte sur moi est déjà faux quand je le porte, c’est-à-dire que je suis devenu
autre chose”137. É neste sentido que ele associa neste contexto a “essência” ao passado: “mon
essence est au passé, c’est sa loi d’être”138. Esta modificação é fundamental para compreender
a duração, no sentido de “passagem” do para-si presente ao passado (que Sartre nomeia de
passadificação), através da qual o para-si modifica-se como para-si para o modo de ser em-si.
“Le passé se donne, conclut Sartre, comme du pour-soi devenu en-soi”139, assim tudo que o
para-si pode dizer que ele é, só pode ser passado: “le passé c’est ce que je suis sans pouvoir le
vivre. Le passé, c’est la substance. En ce sens le cogito cartésien devrait se formuler plutôt :
« Je pense donc j’étais »”140. Entretanto, não podemos compreender o passado que o para-si é
como um “em-si que ele foi”, pois o para-si jamais é em-si, dado que é sempre nadificação de
seu próprio ser. Dizer que o passado é em-si só tem sentido se o passado for compreendido a
partir do processo de modificação que ocorre no modo de ser do para-si que se torna passado;
o passado só é em-si para um para-si que não pode jamais ser em-si. Caso contrário,
recairíamos no problema identificado por Sartre na perspectiva heraclitiana do devir

qui insiste uniquement sur ce que je ne suis déjà plus ce que je dis être. Sans
doute, tout ce qu’on peut dire que je suis, je ne le suis pas. Mais c’est mal dit
d’affirmer que je ne le suis déjà plus, car je ne l’ai jamais été, si on entend
par là « être en soi »; et d’autre part il ne s’ensuit pas non plus que je fasse
erreur en disant l’être, puisqu’il faut bien que je le sois pour ne pas l’être : je
le suis sur le mode du « étais »141 .

O modo do era significa justamente a síntese das ek-stases temporais que faz com que
o passado seja o em-si nadificado pelo para-si presente rumo ao futuro. Sartre descreve este
processo de temporalização através dos termos fuga e perseguição. Como mencionamos, a
fuga é o modo de ser da presença do para-si, como fuga da força objetificadora da

136 Sartre traduz Wesen ist was gewesen ist por “l’essence, c’est ce qui a été” nos Carnets (CDG, p. 496) e em
L’Être et le Néant (p. 155), embora em outro momento ele traduza por “être c’est avoir été” (EN, p. 541).
Segundo Simont em nota dos Carnets, (CDG, p. 1461, n. 66), a fonte de Sartre é provavelmente Kierkegaard,
que cita a mesma frase no Conceito de angústia. De todo modo, Simont nos indica a citação original de Hegel na
Ciência da Lógica, acrescentando o seguinte trecho (que torna mais clara a ideia): “La langue a conservé dans le
verbe sein le Wesen dans le participe passé gewesen; car l’essence est l’être passé, mais intemporellement passé”.
Ibid.
137 EN, p. 151.
138 EN, p. 155.
139 EN, p. 154.
140 Ibid.
141 EN, p. 153. (grifo nosso)
!179

passadificação; ela é ao mesmo tempo perseguição da completude do Si142, que é o sentido da


ek-stase futuro. O projeto temporalizador do para-si, cuja “présence fuit l’être qu’elle était” 143,
adquire este sentido de fuga de um suposto congelamento na identidade do em-si, que só
acontece na morte. Tudo se passa como se o para-si fosse fuga da morte, dado que neste
acontecimento contingente e absurdo, ele deixa de ser nadificação de ser e é absorvido pela
objetificação total do ser em-si. Em outros termos, o para-si que tinha de ser seu ser a cada
vez perde sua abertura e é finalmente absorvido pela identidade que o transforma em tudo que
foi, em puro passado. Este é o sentido que Sartre entrevê na frase de André Malraux, várias
vezes citada aliás, de que “a morte transforma a vida em destino”144; pois só na morte cessa o
“estar em questão” - também caracterizado como ser em sursis - próprio do modo de ser da
liberdade. Se o para-si deixa de ser fuga, o em-si passado se completa e então “par la mort le
pour-soi se mue pour toujours en en-soi dans la mesure où il a glissé tout entier au passé” 145.
Neste sentido, ao inverso de Heidegger, o para-si não é um ser-para-morte, mas seu
movimento temporalizador é, ao contrário, fuga da morte, no sentido de ser alcançado pelo
passado e ser transformado em tudo que foi. Concordando com Sartre, Ricœur diz, por
exemplo, que a morte significa “l’interruption de notre pouvoir-être plutôt que comme sa
possibilité la plus authentique” 146. A morte é então compreendida neste contexto como um
acontecimento contingente que não pode ser de nenhuma maneira “interiorizado” pelo
projeto, como um dos seus possíveis ou uma estrutura existencial. Fato contingente e absurdo,
a morte não pode ser “esperada”, não pode ser “minha”, individualizada. Contra o argumento
heideggeriano de que “ninguém pode morrer por mim”, Sartre se opõe à ideia de fazer dela
“cet événement personnalisé et qualifié qu’on peut attendre” 147, isto é, a morte não pode ser
uma estrutura do projeto, não pode ser elemento de individualização 148. Por isso ela não pode
ser esperada, dado que, inversamente, ela é o inesperado por excelência, ela é da ordem do
imprevisível: “précisément le propre de la mort, c’est qu’elle peut toujours surprendre avant

142 Sempre que o “si” significar a completude do para-si, sinônimo de valor, para-si-em-si e Deus, utilizaremos a
letra maiúscula.
143 EN, p. 161.
144 Cf. por exemplo: EN, p. 585.
145 EN, p. 150.
146 RICŒUR, P. Temps et récit III, p. 101.
147 EN, p. 579.
148 Sartre parece censurar em Heidegger uma espécie de “subjetivação da morte”. Seu argumento é longo e não é

nosso objetivo desenvolvê-lo aqui, assim como comparar sua crítica ao texto heideggeriano para ver se ela
procede. Nosso intuito é o de considerar alguns aspectos das análises de Sartre sobre a morte que ofereçam
elementos importantes para a compreensão da temporalidade.
!180

terme ceux qui l’attendent à telle ou telle date”149, diz Sartre. A morte não estrutura o projeto
exatamente porque ela é o acontecimento metafísico de aniquilação de todos os projetos; ela
não pode ser “esperada” visto que é ela mesma que confere o caráter de absurdidade a toda
espera. Trata-se, portanto, de um fato da ordem da exterioridade, que atinge o para-si em seu
ser e o transforma em exterioridade pura: “La mort est un pur fait, comme la naissance ; elle
vient à nous du dehors et elle nous transforme en dehors. Au fond, elle ne se distingue
aucunement de la naissance, et c’est l’identité de la naissance et de la mort que nous
nommons facticité”150.
A morte, o nascimento e o passado são, portanto, da ordem da facticidade do para-si.
Porém, os dois primeiros são acontecimentos que se dão externamente, enquanto que o
passado é a facticidade do próprio para-si, que é nadificação interna de seu ser. Mais
precisamente, a morte e o nascimento são acontecimentos contingentes que o para-si assume
como facticidade. Como veremos em seguida, a estrutura imediata da facticidade consiste
precisamente no em-si que o para-si é enquanto nadificação e o passado é uma das figuras do
em-si que o para-si nadifica no processo temporalizador, neste caso sob o modo do era. É
neste sentido que “facticité et passé sont deux mots pour désigner une seule et même chose.
Le Passé, en effet, comme la Facticité, c’est la contingence invulnérable de l’en-soi que j’ai à
être sans aucune possibilité de ne l’être pas”151. É contingente que o para-si tenha tal ou tal
passado, mesmo que as significações de seu passado estejam em jogo a cada vez.
Por fim, o fato de o passado ser tudo o que o para-si foi - que ele nadifica como fuga
da contingência - pode nos fazer pensar na questão do nascimento como o momento inicial do
para-si “sem passado”. Se isso fosse possível, o passado não seria uma estrutura ontológica do
para-si e a estrutura imediata da facticidade tampouco. Nesta linha de interpretação, nossa
tendência seria a de compreender este processo de fuga do para-si como uma duração linear,
como algo se solidifica constantemente por detrás. O próprio Sartre dá margem a esta
interpretação na medida em que usa os termos “par derrière”, “fuga” e “perseguição”, para se
referir ao passado, em direção ao futuro que “ainda não é”. No entanto, se assim fosse,
recairíamos no problema do instantaneísmo que comentamos anteriormente, visto que
estaríamos numa perspectiva segundo a qual só o presente existe, relegando ao passado um

149 EN, p. 581.


150 EN, p. 590.
151 EN, p. 154.
!181

modo daquilo que “não é mais” e ao futuro um “ainda não é”. Por esta razão, o nascimento,
evento absurdo e contingente, é mais um problema metafísico que ontológico152 , isto é, desde
que o para-si surge, o passado, presente e futuro são constitutivos de seu modo de ser, e o
projeto de ser, que é a estrutura temporal do para-si, se dá desde sempre como nadificação da
facticidade e fuga da contingência.

b) A “duração” sartriana ou o processo de metamorfose.

Inspirado na divisão kantiana entre ordem e curso do tempo, Sartre se propõe a pensar
uma estática e uma dinâmica da temporalidade. Esta divisão ocorre a título de organização,
dado que uma “ordem” do tempo fora de seu “curso” constituiria uma temporalidade
instantaneísta sob o modo do em-si, onde os diferentes tempos de uma ordem do “antes” e
“depois” não seriam compreendidos através das relações internas de nadificação do para-si,
mas como momentos isolados de uma sucessão. A dinâmica da temporalidade é, portanto, a
análise da temporalidade originária, processo temporalizador que se dá pelo que Sartre chama
de metamorfose. As análises sobre este processo procuram dar conta da questão da duração,
no sentido de um processo que compreende a dinâmica do devir, através do qual o para-si
presente se torna passado e com base no qual podemos compreender o que significaria o
“surgimento” de um novo presente. Revelado este processo originário, pode-se compreender
em seguida as questões relativas à “ordem” do “antes e depois” da sucessão, assim como a
questão da mudança e da permanência.
O próprio da dinâmica temporalizadora é a síntese promovida pelas relações internas
do para-si de modo que “la temporalité n’est pas, mais le pour-soi se temporalise en
existant”153, diz Sartre, parafraseando à sua maneira Heidegger. O ser projetivo do para-si é
uma unidade temporal composta de dimensões múltiplas de nadificação, multiplicidade de
maneiras de ser instauradas pela “force dissolvante”154 da temporalidade incidindo sobre
modo de ser da identidade. O para-si é o modo de ser ambíguo da simultaneidade entre coesão
e dispersão, identificado por Sartre ao movimento da “diáspora”155 do povo judeu. O para-si é
diaspórico, no sentido que “il faut toujours chercher la signification d’une dimension

152 EN, p. 174.


153 EN, p. 172.
154 EN, p. 171.
155 EN, p. 172.
!182

temporelle ailleurs, dans une autre dimension […] c’est la nécessité de réaliser la diaspora en
se faisant conditionner là-bas, dehors, dans l’unité de soi”156.
A relação entre as múltiplas dimensões possíveis de nadificação e a unidade temporal
projetiva do para-si não se equivalem a uma relação do tipo multiplicidade de mudanças em
relação à permanência. Sartre diz ser o argumento favorito de Leibniz a ideia de que “le
changement implique de soi la permanence”, ou a premissa da “subsistance d’un élément
permanent à côté de ce qui change”157 . Neste caso, identificaríamos temporalidade à mudança
e a permanência seria um elemento intemporal atravessado pelo tempo; por conseguinte, a
unidade da permanência e da mudança teria que ser dada por um terceiro termo de modo que
ela não seria inerente à mudança. Mesmo que isso fosse possível, tratar-se-ia de uma unidade
exterior entre os termos e não de uma relação de ser, que é própria do modo temporal ek-
stático. Assim, “cette unité d’être revient à exiger que le permanent soit ce qui change ; et, par
là, elle est ek-statique par essence; en outre elle est destructrice du caractère d’en-soi de la
permanence et du changement”158. Eis que reencontramos aqui a questão da unificação que
desde La Transcendance de l’Ego permanecia pouco explorada, visto que Sartre, ao retirar o
papel unificador do Ego, não desenvolveu como seria este movimento autounificador da
consciência. Sob a perspectiva da temporalidade ek-stática, a unificação é dada pelo próprio
processo temporalizador, enquanto nadificação do em-si, tendo de ser seu futuro e seu
passado. O movimento temporalizador não é multiplicidade de uma unidade já dada -
permanência - mas processo interunificado, pelas relações internas, que faz com que toda
mudança seja mudança global, isto é, uma metamorfose de “tout entier à la fois, forme et
contenu” um “changement pur e absolu qui peut fort bien d’ailleurs être changement sans rien
qui change et qui est la durée même”159. Diante desta duração que é metamorfose de ser, é a
própria permanência que se torna um problema a explicar:

Le recours à la permanence pour fonder le changement est d’ailleurs


parfaitement inutile. Ce qu’on veut montrer c’est qu’un changement absolu
n’est plus à proprement parler un changement, puisqu’il ne reste plus rien qui
change - ou par rapport à quoi il y ait changement. Mais en fait il suffit que
ce qui change soit sur le mode passé son ancien état pour que la permanence
devienne superflue ; en ce cas, le changement peut être absolu, il peut s’agir
d’une métamorphose qui atteigne l’être tout entier : il ne s’en constituera pas

156 EN, p. 238.


157 EN, p. 178.
158 EN, p. 178.
159 EN, p. 179.
!183

moins comme changement par rapport à un état antérieur qu’il sera au passé
sur le mode du « était »160 .

Se a permanência e a mudança apresentam uma concepção em-si do tempo em relação


à duração, consequentemente, o problema da sucessão é pensado a partir desta mesma
concepção como chave de interpretação da ordem do tempo, isto é, da maneira de
compreender as relações do tipo “antes e depois”. Esta ordem revela o caráter de
irreversibilidade do tempo, que se caracteriza pelo fato da sucessão instituir uma distância e
uma separação: seja como medida prática, quando, por exemplo, dizemos que uma cidade fica
a meia hora de outra, ou que precisamos de três dias para cumprir o trabalho; seja como
medida de separação do para-si presente de seu futuro ou passado: o que ele foi antes, o que
ele será daqui a alguns anos. A perspectiva tradicional de compreensão da ordem do tempo -
de sua dimensão de sucessão entre um “antes” e um “depois”, separados ou distantes - é a do
instantaneísmo. Sartre realiza a crítica a tal visão temporal através de uma comparação entre
Descartes, Proust e alguns psicólogos empiristas e associacionistas. Enquanto o primeiro
conceberia instantes justapostos e sem comunicação, Proust permaneceria na mesma questão
cartesiana de saber “comment son Moi peut passer d’un instant à autre”161. Este tipo de
posição, que abrange ainda os psicólogos, tem como base a concepção do instante como
átomo temporal - em si mesmo intemporal - que passa de um momento temporal a outro pela
ordem da sucessão. Para Sartre, é impossível estabelecer uma relação de sucessão se cada
instante for concebido como um em-si isolado, pois anterior e posterior só fazem sentido em
relação. Mesmo se esta ordem fosse dada por um testemunho, teríamos do mesmo modo que
colocar o problema da temporalidade deste testemunho, já que ele não poderia estabelecê-la
de uma posição exterior ao tempo, como sendo um ponto “extratemporal”. Esta solução,
segundo Sartre, é a de Descartes (via Deus) e de Kant (via Je pense e suas formas de unidades
sintéticas): “De toute façon c’est un intemporel (Dieu ou Je pense) qui est chargé de pourvoir
des intemporels (les instants) de leur temporalité. La temporalité devient une simple relation
externe et abstraite entre des substances intemporelles : on veut la reconstruire toute entière
avec des matériaux a-temporels”162. Vimos que, inspirado nas análises heideggerianas de Être
et Temps, Sartre concorda que temporalidade ek-stática não é um ente mas se temporaliza, o

160 Ibid.
161 EN, p. 166.
162 EN, p. 168.
!184

que quer dizer que a duração não se dá por uma unidade que é imposta de fora, de um
intemporal, mas ela é o próprio modo de ser diaspórico do para-si. O “antes” e “depois” só
são inteligíveis a partir de relações internas do para-si onde qualquer anterioridade e
posterioridade só faz sentido em relação. Assim, sendo a ordem e o curso do tempo
inteligíveis somente a partir do modo de ser ek-stático do para-si, podemos compreender
como Sartre desenvolve sua própria concepção da duração, que é o que pode ser caracterizado
de processo de metamorfose.

O fenômeno do devir temporal é um processo de modificação global do para-si, onde


as três ek-stases passado, presente e futuro são “également touchées”163 por relações internas.
A metamorfose é o processo temporal no qual um para-si presente (ek-stase presente) sofre
uma modificação de passadidade164 (modification de passéité) ao tornar-se passado
concomitantemente ao surgimento de um novo presente. O risco de interpretação deste
processo se dá justamente na adoção da concepção instantaneísta do tempo, no interior da
qual esta passagem ocorreria entre instantes isolados entre si, privilegiando necessariamente o
presente. Se a temporalidade não é mas se temporaliza, e se todas as ek-stases sofrem a
metamorfose - pois a modificação é sempre global e por isso não é possível isolá-las - a
modificação de passadidade e o surgimento de um novo presente exigem uma análise do
passado, presente e futuro a partir desta modificação.
Ao tornar-se passado, o para-si presente sofre uma modificação de passadidade que
implica em uma mudança das três ek-stases: o passado deste presente se torna passado de um
passado (que Sartre também denomina de passado-mais-que-perfeito); o presente se torna
presente passado deste passado; o futuro se torna futuro de um passado ou futuro anterior 165.
Como vimos anteriormente, o passado existe sob o modo de ser do em-si, e o presente como
fuga. Logo, através da modificação de passadidade o para-si presente se transforma em
passado, sofrendo uma alteração do modo de ser da fuga - para-si - para o modo de ser da
identidade - em-si -, de maneira que a modificação “expulsa” o nada ao preencher a fissura

163 EN, p. 180.


164 P. Perdigão traduz passéité por Preteridade (adicionando a maiúscula). SN, p. 195. Optamos traduzir por
passadidade, a fim de manter a ligação direta deste neologismo com a palavra em francês passé (passado).
165 EN, p. 180.
!185

que impedia a identidade, completando a apreensão do para-si pelo ser. O para-si “ex-
presente”, sendo presente de seu passado, se junta ao bloco de tudo que o para-si era, mas
como um presente que ele foi, uma ex-presença diante de um mundo ex-presente no qual o
para-si era. Nas palavras de Sartre:

je l’étais au milieu du monde, à la manière des choses, à titre d’existant


intramondain; […] comme présence passée à un état passé du monde.[…] le
pour-soi tombant au passé comme ex-présence à l’être devenue en-soi
devient un être « au-milieu-du-monde » et le monde est retenu dans la
dimension passée comme ce au milieu de quoi le pour-soi passé est en soi166.

O presente-passado, ou ex-presente, se coagula ao em-si passado de modo a manter


sua característica de ex-presença ao mundo, ou seja, ele é ex-fuga petrificada em em-si. Já o
passado do para-si ex-presente não sofre a transformação em em-si pois ele já o era. Ele deixa
de ser o em-si nadificado pelo ex-presente para ser o em-si nadificado pelo novo presente,
tornando-se ao mesmo tempo homogêneo ao para-si ex-presente que se tornou passado. Disto
resulta que ambos passam a ser, em bloco, nadificados pelo “novo” presente. Mas o que
significa um “novo” presente? De onde ele vem e por que ele se produz?
Desde La Transcendance de l’Ego estas perguntas estão em jogo, principalmente se
quisermos compreender aquilo que Sartre estabelece como espontaneidade. Conforme vimos
anteriormente, houve uma mudança da concepção da temporalidade que se deu em relação à
perspectiva instantaneísta, presente em La Transcendance de l’Ego, para uma concepção ek-
stática. Em L’Être et le Néant, Sartre mantém a espontaneidade como modo de ser do para-si,
mas não do mesmo modo, já que a espontaneidade passa a ser compreendida a partir da
nadificação do para-si de seu ser. Em La Transcendance de l’Ego, Sartre define a consciência
transcendental como uma espontaneidade impessoal que se caracteriza por ser criação ex
nihilo. A mudança teórica que enfatizamos ser fundamental à compreensão de L’Être et le
Néant nos leva a questionar se de fato é possível ainda pensar em uma produção ex nihilo
neste contexto, embora Sartre diga frases do tipo: “c’est la nécessité pour l’être, quel qu’il
soit, de se métamorphoser tout entier à la fois, forme et contenu, de s’abîmer dans le passé et
de se produire, à la fois, ex nihilo, vers le futur”167. Apesar desta afirmação, sabemos que o
surgimento de um “novo” presente não pode nunca ser um surgimento “do nada”, pois a

166 EN, p. 182.


167 EN, p. 179.
!186

nadificação é sempre nadificação de ser. A espontaneidade se caracteriza justamente pela


incessante nadificação de seu próprio ser, na medida em que Sartre comenta que entre para-si
e espontaneidade, a diferença é somente terminológica168. Em contraste com seu artigo sobre
o Ego, em L’Être et le Néant o autor afirma que no que diz respeito ao surgimento de um novo
presente, “il faut se garder d’y voir l’apparition d’un être neuf”169, estando posto que o que
caracteriza o presente como novo é justamente a fuga de seu passado e não mais uma
existência nova ex nihilo, tal como afirmava anteriormente. No entanto, a espontaneidade
permanece sendo autoprodutiva, no sentido de que nada pode criá-la ou produzi-la de fora. Do
mesmo modo que em Husserl, para Sartre a dinâmica temporal não provém do exterior, de
uma entidade estrangeira à consciência, mas é produção de si mesma. Porém, Gerhard Seel
observa uma oposição entre a espontaneidade sartriana e husserliana, identificado a diferença
precisamente na ideia de nadificação, que é o fator que distingue a autoprodução do para-si de
uma criatio ex nihilo: “Sartre […] voit dans le présent qui ne cesse de surgir une néantisation
constamment nouvelle du passé, donc non pas une nouvel être, mais une nouvelle
néantisation”170. A temporalidade abarca assim, como vimos, múltiplas negações. A
modificação de passadidade nadifica as ek-stases presentes metamorfoseando-as em passado;
o novo presente é nadificação-fuga do em-si passado e negação interna do em-si
transcendente, dupla negação a partir da qual a consciência “nasce”, conforme a prova
ontológica.
Resta analisar a metamorfose da ek-stase futuro que ocorre a partir da modificação de
passadidade, que é o momento em que o futuro, que até então era deste presente, passa a ser
um futuro-passado ou um futuro anterior. Após a modificação de passadidade, o presente do
qual o futuro era futuro se tornou passado, e o futuro se torna futuro passado do presente
passado, ao mesmo tempo em que o novo presente se torna futuro em relação ao ex-presente.
O importante parece ser compreender que o futuro, ao ser passadificado, passa ao em-si sem
perder seu caráter de futuro171. Com relação ao futuro, ocorrem dois tipos de relação com o
“novo” presente: o futuro como futuro imediato e o futuro como futuro distante (futur
lointain). O futuro imediato é a relação do “novo” presente com o ex-presente, no sentido de

168 Sartre equipara para-si e espontaneidade, esclarecendo que se trata de uma questão de linguagem: A
espontaneidade seria um termo “mais familiar ao leitor” do que o termo para-si. EN, p. 184.
169 EN, p. 182.
170 SEEL, G. La dialectique de Sartre. Lausanne: L’âge d’Homme, 1995, p. 181. (Trad. E. Müller, P. Muller, &

M. Reinhard).
171 EN, p. 181.
!187

que o presente atual se transforma imediatamente em futuro para o presente que passou. O
exemplo que Sartre oferece é o de uma espera que foi realizada, como no caso de quando
dizemos: “Ce que j’attendais, le voici”172. Assim, compreendemos que quando o ex-presente
era presente, havia uma espera de algo que se realizaria no futuro. Após a modificação do
presente em passado, a espera se realizou e somente numa relação com o ex-presente esta
realização pode ser compreendida como um futuro anterior que se sucedeu. Entretanto, isto
não significa que o “novo” presente de fato realiza o futuro anterior do ex-presente de
maneira a coincidir com aquilo que era esperado no futuro, o que seria um tipo de
determinismo dos acontecimentos. Pelo contrário, Sartre busca ressaltar o caráter de
irrealização do futuro anterior, que ele expressa como sendo um ideal que permanece
copresente ao “novo” presente: “le futur primitif n’est point réalisé : il n’est plus futur par
rapport au présent, sans cesser d’être futur par rapport au passé. Il devient le coprésent
irréalisable du présent et conserve une idéalité totale […]. Il demeure futur idéalement
coprésent au présent, comme futur irréalisé du passé de ce présent”173. A impossibilidade de
realização do futuro do ex-presente no “novo” presente expressa uma “decepção
ontológica”174 já que o futuro imediato é uma modificação do futuro do ex-presente em
relação ao novo presente, ou, se preferirmos, ele é o caráter de idealidade copresente ao
“novo” presente do futuro anterior que ele tinha de ser. Nas palavras de Sartre: “Le futur tout
entier du pour-soi présent tombe au passé comme futur avec ce pour-soi lui-même. Il sera
futur passé d’un certain pour-soi ou futur antérieur. Ce futur ne se réalise pas. Ce qui se
réalise, c’est un pour-soi désigné par le futur et qui se constitue en liaison avec ce futur” 175.
Outro modo de relação da ek-stase futuro com o “novo” presente, além do futuro
imediato, é o futuro distante. Este modo de relação não sofre a modificação no sentido de que
o “novo” presente é futuro para o ex-presente, mas ele permanece sendo futuro para o “novo”
presente. Isto significa que o futuro distante indica a relação do “novo” presente e suas
possibilidades com as possibilidades anteriores, e isto se dá de duas maneiras: sendo o
possível um possível que ainda se “possibiliza”, ou sendo um possível que perdeu seu caráter
de “possibilização”. No primeiro caso, trata-se de meu possível; no segundo, trata-se de um
possível indiferente. Desde que surge um “novo” presente, este é desde sempre relação com os

172 EN, p. 180.


173 EN, p. 180.
174 EN, p. 163.
175 Ibid.
!188

seus possíveis e relação com os possíveis do presente que se tornou passado. O presente que
se tornou passado se realizava na presença como fuga do em-si passado e como falta de um
faltante futuro e esta falta pode permanecer como falta em relação ao “novo” presente ou não.
Se a falta do “novo” presente não se constitui mais em consonância com a falta do ex-
presente, o possível anterior se tornou insignificante. Por outro lado, se essa falta constitui
ainda o “novo” presente em seu futuro, o possível resta como seu possível e continua a se
“possibilizar”. Sartre oferece o seguinte exemplo: “Hier, il a été possible - comme mon
possible - que je parte lundi prochain à la campagne. Aujourd’hui ce possible n’est plus mon
possible, il demeure l’objet thématisé de ma contemplation à titre du possible toujours futur
que j’ai été ”176. O ex-possível se define assim pela relação com o novo presente: ele pode ser
ainda seu possível - estruturado pela falta atual do para-si - ou ele pode se tornar um possível
indiferente como “possible donné, c’est-à-dire possible en soi d’un pour-soi devenu en-
soi”177.

A nadificação de si, os possíveis, a falta e o desejo de ser Deus, são temas que já foram
citados até aqui. Eles compõem um percurso que evidencia a mudança que ocorreu no
pensamento sartriano em relação à sua concepção de temporalidade e a inserção da estrutura
da facticidade. Este caminho nos mostrou que não podemos simplesmente equiparar as noções
que valiam para a consciência nua ao para-si, o que redefine a maneira de compreender a
forma de aparição do mundo, a estrutura da reflexão, etc. A partir da facticidade e da
temporalidade ek-stática, vimos que o para-si não pode mais ser concebido como puro nada,
pois a nadificação é sempre um ato que se dá no ser. Por esta mesma razão, a temporalidade
ek-stática indica que o processo de metamorfose só pode ser compreendido a partir da relação
com o passado e o futuro, e assim a “dessolidarização” do passado passou a ser considerada
como um ato de má-fé. Isto posto, veremos em seguida como estas condições são dadas nas
próprias estruturas imediatas do “sujeito” para-si. 


176 EN, p. 181.


177 EN, p. 181.
Capítulo IV
O para-si como projeto ek-stático

A mudança que se opera na filosofia de Sartre em torno dos anos 1939-40 consiste
principalmente, como viemos de analisar, na passagem de uma temporalidade instantaneísta à
temporalidade ek-stática, assim como na inserção da facticidade na estrutura mesma do modo
de ser da consciência. A consciência nua passou a ser considerada como consciência refúgio a
partir das novas formulações que se tornaram a base de L’Être et le Néant. Nesta obra, a
estrutura da consciência é complexificada: esta última não é mais um nada que se cria ex
nihilo, mas um para-si cujo modo de ser é nadificação do seu ser. Mesmo assim, como vimos,
essas mudanças não suprimiram por completo as posições inicias de Sartre como, por
exemplo, a condição de contingência da existência. Neste sentido, podemos acrescentar ainda
que Sartre procura pensar a consciência ainda através das características iniciais de
translucidez, pré-reflexividade e intencionalidade. Sendo assim, estes aspectos devem ser
retomados agora pelo novo prisma, isto é, pela perspectiva conceitual das regiões ontológicas
do para-si e do em-si e da temporalidade ek-stática.

§1. O para-si e suas estruturas imediatas.

a) cogito e pré-reflexão.

Êtes-vous ou n’êtes-vous pas cartésien? La question n’a pas grand


sens, puisque ceux qui rejettent ceci ou cela dans Descartes ne le font
que par de raisons qui doivent beaucoup à Descartes.

Merleau-Ponty, Signes

Apesar da mudança de perspectiva com relação a teoria do tempo e a introdução da


!190

estrutura da facticidade, Sartre permanece fiel a herança cartesiana de que a filosofia deve
partir do cogito. Vimos que em La Transcendance de l’Ego o cogito cartesiano fora descrito
como uma operação reflexiva que faz surgir o Eu para uma consciência que é originariamente
irrefletida e sem Eu. Sartre mantém essa posição, mas agora nomeia de cogito pré-reflexivo
esta esfera que até então era designada como consciência irrefletida. Mais do que uma
simples mudança de nomenclatura, Sartre introduz, na verdade, uma nuance nas suas
descrições anteriores. No contexto de L’Être et le Néant, a irreflexão continua sendo pensada
como plano primeiro e autônomo em relação à reflexão; e a intencionalidade continua do
mesmo modo a caracterizar a estrutura da consciência irrefletida como consciência de alguma
coisa que não é ela. No entanto, surge uma nuance neste novo contexto no que diz respeito ao
aparecer da consciência a si mesma, característica que neste momento é atribuída ao cogito
pré-reflexivo. Isto significa que, ao invés de modificar sua organização para compreender os
diferentes graus de consciência, Sartre complexifica a divisão anterior, que pode ser resumida
do seguinte modo: toda consciência de alguma coisa, seja de um objeto transcendente
(irreflexão), seja dela mesma (reflexão), deve ser consciente de si de forma não posicional.
Assim, através do conceito de cogito pré-reflexivo, Sartre descreve de forma mais rigorosa a
distinção dos modos de consciência, uma vez que não podemos dizer que a consciência
reflexiva é irrefletida, mas certamente ela é pré-reflexiva em sua estrutura. Além disso, há ao
mesmo tempo uma complexificação na própria estrutura de pré-reflexividade. Não basta a
Sartre apenas constatar que a consciência aparece a si mesma, agora ele busca pormenorizar o
como ocorre esta aparição a si a partir de uma descrição da estrutura da consciência pensada
como um jogo de reflexos, conforme veremos a seguir em nossa análise da estrutura imediata
presença a si.
Nesta nova configuração, Sartre passa a usar assim o termo cogito para designar a pré-
reflexividade. Este termo evidencia sua filiação à tradição cartesiana no sentido de que mais
do que abdicar deste ponto de partida fundamental, trata-se de pensá-lo de outro modo, como
uma espécie de cogito alargado (cogito élargi), com base na temporalidade ek-stática. Em
outros termos, a posição filosófica de Sartre em relação ao cogito cartesiano se mostra mais
como uma tentativa de reformá-lo do que de ultrapassá-lo, embora esta filiação tenha se dado
desde o início de seu percurso filosófico por uma via bastante crítica. Por estas razões, a
!191

relação de Sartre ao cogito é difícil de ser definida 1, visto que ela não se resume à maior ou
menor aderência da parte de Sartre aos pressupostos cartesianos mas, além disso, ela se
caracteriza pela dificuldade mesma de traçar a coerência de tal filiação, devido à fluidez das
posições do próprio Sartre2. 

Na conferência de 1947, Conscience de soi et connaissance de soi, Sartre enumera as
críticas mais comuns dirigidas até então ao cogito cartesiano: 1) o cogito isolado de seu
cogitatum é uma abstração; 2) por ser instantâneo, o cogito não pode fundar a temporalidade e
nem mesmo a verdade, se esta for compreendida como um devir, no sentido hegeliano; 3) ele
se torna então uma contemplação intemporal de um sistema de meios e fins; 4) ele não
informa nem sobre seu ser, nem sobre o ser do mundo, pois este se encontra reduzido a um
perceptum; 5) ele não permite sair do solipsismo a não ser por um recurso a Deus. Poderíamos
acrescentar ainda um último ponto que consiste na crítica sartriana à substancialidade do
cogito cartesiano.
Na tentativa de reforma do cogito, Sartre busca salvaguardá-lo ao liberá-lo de todos
estes problemas, o que seria possível por via dos recursos provenientes da fenomenologia de
Husserl, como a intencionalidade e a dimensão de pré-reflexão da consciência. Estas duas
características permitem a Sartre fazer uma distinção crucial entre consciência, como
dimensão de existência do sujeito, e conhecimento, como estrutura derivada que caracteriza a
consciência que se volta sobre si. Desde La Transcendance de l’Ego, a dimensão de pré-
reflexividade (mesmo que ele não utilize ainda o termo) permite a Sartre escapar do problema
maior dos autores que pensaram o cogito como reflexão3. Se “toda consciência é consciência
de alguma coisa”, tal como mostra o princípio de intencionalidade da consciência, a reflexão
cosiste na aplicação deste princípio à autoposição da consciência. Desta forma, o “penso, logo
existo” (je pense, donc je suis) caracteriza, na realidade, a estrutura do conhecimento onde há
um “Eu” (Je) que se volta sobre si para apreender a certeza de sua existência, ou seja, há uma
reflexão que permite a um “Eu” dizer sobre si que pensa e existe. Tendo em vista tal estrutura,
Sartre se pergunta como a consciência reflexiva (a que posiciona), que se volta sob a
consciência refletida (a que é posicionada) para afirmar um “Eu” que pensa, pode ser ela

1 Como afirma De Coorebyter: “Il y a presque autant d’interprétations sartriennes du cogito cartésien que de
textes portant sur ce thème”. DE COOREBYTER, V. Notes, p. 204 n. 21.
2 Basta comparar a mudança de tom nos argumentos de textos como: La Transcendance de l’Ego, L'Être et le

Néant, La liberté cartésienne e nas conferências Conscience de soi et connaissance de soi e L’Existentialisme est
un humanisme.
3 Cf. La Transcendance de l’Ego. Parte 1 b) O cogito como consciência reflexiva.
!192

mesma certa de sua existência4. Seria necessário então um novo ato de reflexão que
posicionasse dessa vez a consciência reflexiva para afirmar sua existência. Todavia, este novo
ato, além de manter a consciência de si sempre nos moldes da relação de conhecimento -
consciência posicional de alguma coisa -, geraria inevitavelmente um recurso ao infinito: para
que toda consciência seja consciente de ser consciente de alguma coisa é necessário que uma
consciência anterior a posicione. Enquanto que, na verdade, Sartre mostra que o recurso ao
infinito não procede, dado que há uma dimensão da consciência que é anterior a estrutura
reflexiva de autoposição, que é o cogito pré-reflexivo não posicional, anterior ao cogito
cartesiano reflexivo. Em outros termos, para que uma consciência seja consciente de si não é
necessário que ela se apreenda pela reflexão, já que o “saber” de si da consciência já é
garantido pela própria pré-reflexividade. Assim, a consciência, sendo sempre “de alguma
coisa”, surge a partir de algo que não é ela, mas deve ainda ser consciente de si enquanto
consciência de alguma coisa; a dimensão de ser consciência (de) si é imediata (utilizando-se
dos parênteses para demarcar uma diferenciação para com a consciência posicional de
consciência que caracteriza a reflexão) de modo que ela não pode ser considerada como
reenvio ao infinito da estrutura do conhecimento de uma consciência anterior por consciências
posteriores. Além disso, a relação (de) si a si não diz respeito a duas consciências em tempos
distintos – a consciência posicional do objeto e a consciência (de) si – mas sim a uma
estrutura dada na unidade e na imanência de uma mesma consciência que indica uma relação
a si não posicional, como explica Sartre: “Cette conscience (de) soi, nous ne devons pas la
considérer comme une nouvelle conscience, mais comme le seul mode d’existence qui soit
possible pour une conscience de quelque chose”5. A consciência é ainda um absoluto não
substancial, o que significa que a consciência é pura translucidez - como em La
Transcendance de l’Ego - no sentido de não comportar conteúdos ou representações. Ela é um
“vazio total”, um puro aparecer e “c’est à cause de cette identité en elle de l’apparence et de
l’existence qu’elle peut être considérée comme absolu”6. Em suma, Sartre não pensa o cogito
pela estrutura da reflexão mas como pré-reflexividade. Esta dimensão, por sua vez, se dá
somente através da consciência intencional, pelo fato de que o aparecer a si da consciência é

4 TE; EN; CSCS.


5 EN, p. 20.
6 EN, p. 23.
!193

contemporâneo à “consciência de alguma coisa”, seja esta irrefletida ou reflexiva, de modo


que não é possível conceber o cogito isolado de seu cogitatum 7.
A transformação na teoria do tempo sartriana trouxe ainda um ponto diferencial no que
se refere à sua crítica ao cogito cartesiano. Como vimos, La Transcendance de l’Ego fazia
apologia do instante como possibilidade de apreensão da vivência pura, deslocando para a
esfera do impuro tudo aquilo que ultrapassava esta tomada de consciência pontual. A partir da
crítica ao instantaneísmo, Sartre passa a considerar o cogito cartesiano como vítima desta
ilusão temporal, enquanto que sua tentativa de formulação de um “cogito alargado” deve ser
capaz de integrar a temporalidade ek-stática como movimento de temporalização que não
pode mais ser reduzido ao instante. Tendo em vista este objetivo, Sartre procura formular seu
cogito pré-reflexivo por meio de uma síntese de ideias provenientes de Husserl e de
Heidegger, mesmo que este último seja, na verdade, um grande crítico não somente do cogito,
mas da ideia de consciência em geral. A partir de então, “le sens profond du cogito c’est de
rejeter par essence hors de soi”8, e é neste sentido que Sartre busca realizar esta ousada
síntese:

il est nécessaire d’opérer un synthèse de la conscience contemplative et non


dialectique de Husserl, qui nous amène uniquement à la contemplation des
essences, avec l’activité du projet dialectique, mais sans conscience, et par
conséquent sans fondement, que nous trouvons chez Heidegger, où nous
voyons au contraire que l’élément premier est la transcendance9.

Podemos identificar desde o Esquisse este desejo de unir os dois filósofos na tentativa
de pensar uma transcendência que se “autoaparece”, através do sentido particular que Sartre
dá ao conceito heideggeriano de compreensão: “En effet exister pour la réalité-humaine c’est,
selon Heidegger, assumer son propre être dans un mode existentiel de compréhension ; exister
pour la conscience c’est s’apparaître, d’après Husserl” 10. Sartre realiza esta síntese à sua
maneira, ou seja, ele não se aprofunda em toda a dimensão temporal que o conceito de

7 Conforme já demonstrava Husserl quando dizia que “rien d’autre que cette particularité foncière et générale
qu’a la conscience d’être conscience de quelque chose, de porter, en sa qualité de cogito, son cogitatum en elle-
même”. HUSSERL, E. Méditations cartésiennes, p. 65. Ou seja, não é mais possível conceber a separação entre
cogitatione e cogitatum, a percepção é sempre de um percebido, o julgamento do julgado, o desejar do desejado,
entre outras vivências da consciência. Cf. §34 §35 Ideen I.
8 EN, p. 122.
9 CSCS, p. 164.
10 ETE, p. 15. No que diz respeito à relação de Sartre com os dois filósofos, Jeanson pensa que é Heidegger que

fornece a Sartre em última instância os elementos para se pensar o “objeto de investigação”, neste caso, a
“realidade-humana”: “pour autant qu’on puisse séparer méthode et objet, Husserl lui fournit plutôt la méthode
d’investigation, et que c’est à Heidegger qu’il demande de lui définir l’objet de cette investigation”. JEANSON,
F. Le problème moral et la pensée de Sartre, p .111.
!194

compreensão exige em Être et Temps 11 ao se limitar à ideia de “assunção de seu próprio ser”,
“c’est-à-dire en être responsable [de son être] au lieu de le recevoir du dehors comme fait une
pierre”12. Em L’Être et le Néant, a necessidade de recorrer a Heidegger é maior, ao passo que
Husserl é visto então como “enfermé dans le cogito” 13 devido à sua concepção “contemplative
et non dialectique” da consciência (conforme citação acima). O recurso a Heidegger consiste
em pensar que o projeto existencial ek-stático é dotado de compreensão de si14, só que sob a
perspectiva de uma consciência de si de forma não posicional. É através da noção de projeto
como temporalização ek-stática que Sartre procura “partir do cogito” - não no sentido de uma
apreensão instantânea de si da consciência -, mas “partir do cogito” no sentido de direcionar
uma interrogação ao próprio movimento de transcendência como temporalização 15.
É possível mesmo afirmar que a temporalização ek-stática é o ponto de apoio de Sartre
para praticamente todos os problemas apontados acima com relação ao cogito cartesiano,
assim como para os limites da fenomenologia de Husserl. Esta nova maneira de compreender
o para-si como projeto ek-stático fornece ainda instrumentos mais precisos para combater a
noção de sujeito substancial, preocupação que é presente, como vimos, desde o início de seu
caminho filosófico. A este respeito, é certo que desde os primeiros escritos até L’Être et le
Néant, a consciência não pode ser compreendida como substância, tanto que não há
contradição maior a seu ver que a ideia de uma “coisa pensante”, chegando mesmo a afirmar
que fazer da consciência uma coisa é “refuser le cogito”16. Em primeiro lugar, como vimos,
colocar o “Eu” no mesmo plano do “penso”, como o fez Descartes, é passar do cogito à ideia
de substância, já que o Eu é compreendido por Sartre em La Transcendance de l’Ego como
um centro de opacidade. Mesmo Husserl, em sua opinião, acaba por recair de algum modo na
substancialização da consciência ao introduzir o Eu puro a partir das Ideen: “Husserl, quoique

11 Cf. HEIDEGGER, M. Être et Temps, §68 a) La temporalité du comprendre.


12 ETE, p. 14.
13 EN, p. 109.
14 O que fica claro no recurso de Sartre a Heidegger é que ele encontra na temporalidade ek-stática do projeto

uma maneira de escapar ao instantaneísmo cartesiano e ao idealismo husserliano (pela ideia de transcendência),
embora ele não diga exatamente o que entende por compreensão. Conforme apontamos em nota anteriormente,
este conceito exige uma análise aprofundada no interior da dinâmica de Être et Temps, que não nos interessa
realizar aqui. De todo modo, Sartre parece concordar com a ideia de um “saber implícito de si” que, assim como
a compreensão heideggeriana, “n’est pas une connaissance acquise, née d’un acte cognitif, mais un mode d’être
originairement existential qui rend tout d’abord possible l’acte de connaître et la connaissance” (HEIDEGGER,
M. Être et Temps, p. 113) e este “saber de si” é a própria temporalização do Dasein: “saisi de manière
originairement existentiale, le comprendre signifie : être-projetant pour un pouvoir-être en-vue-de quoi le Dasein
existe à chaque fois.” (ibid., p. 258)
15 EN, p. 110.
16 EN, p. 17-18.
!195

plus subtilement, tombe au fond sous le même reproche [de Descartes]. J’entends bien qu’il
reconnaît au Je une transcendance spéciale qui n’est pas celle de l’objet et qu’on pourrait
appeler une transcendance « par en dessus ». Mais de quel droit?”17. Em face de qualquer
possibilidade de substancialização, Sartre é categórico: “En aucun cas, ma conscience ne
saurait être une chose”18 . No entanto, a “substancialização” do cogito feita por Descartes é
relativizada em sua conferência de 1947, em que ele afirma: “S’il est vrai que Descartes est
substantialiste - ce qu’il n’est pas prouvé”; atribuindo esta substancialização não ao próprio
Descartes, mas ao seus comentadores19 (dentre os quais poderíamos certamente incluí-lo, se
assim for). De todo modo, o problema maior consiste, segundo Sartre, em aplicar uma noção
de ser válida tanto para as coisas quanto para o cogito - problema também apontado por
Heidegger, conforme sublinha Dastur20 - o que também levou Husserl a considerar Descartes
como “le père de ce contresens philosophique qu’est le réalisme transcendental”21 . Com
efeito, é verdade que a substância pensante cartesiana é bem particular, dado que se trata de
uma substância imaterial “qui transforme le sens même de cette notion de substance, dans la
mesure où celle-ci est désormais interprétée dans l’horizon original de la subjectivité comme
rapport immédiat à soi, indépendant de toute autre donnée”, conclui J. Benoist22. O autor
afirma ainda que, neste contexto, substância significa “ce qui est par soi, sans avoir besoin
d’autre chose pour être”23, de modo que o cogito adquire os valores de autonomia e
fundamento.
Tendo em vista esta nuance sobre a substancialidade do cogito cartesiano, pode-se
perguntar: se nos ativermos às características do conceito de substância como autonomia e
fundamento, a reelaboração do cogito feita por Sartre pode, neste sentido, escapar da
substancialidade, isto é, o cogito sartriano é de fato não substancial? Ou ainda: mesmo que
não façamos o erro de Descartes de considerar sob a mesma noção de “res” consciência e
extensão, escaparemos à definição de substância da consciência como autonomia e
fundamento? A questão envolve, a nosso ver, alguns detalhes importantes e nos direciona ao
mesmo tempo para o papel essencial da dimensão fática da consciência no interior de L’Être

17 TE, p. 103.
18 I’on, p. 1.
19 CSCS, p. 141; p. 147.
20 DASTUR, F. Heidegger. Paris: Vrin, 2007, p. 88.
21 HUSSERL, E. Méditations cartésiennes, p. 52.
22 BENOIST, J. La subjectivité, p. 517.
23 Ibid., p. 518.
!196

et le Néant. Em primeiro lugar, a consciência não pode ser considerada autônoma se por isso
entendermos que ela existe por si, independente de toda realidade que não seja da
consciência. A estrutura da intencionalidade, que Sartre reescreve sob forma de “prova
ontológica”, mostra que a consciência nasce a partir de algo que ela não é, o que implica que a
consciência pré-reflexiva seja sempre consciência de si de forma não posicional enquanto ela
é consciência posicional de algo que ela não é. Além disso, como vimos, para haver ato de
nadificação de si - ato ontológico - há de haver um ser que sustenta a própria nadificação, ou
seja, o nada é sempre nada de ser. Esta nadificação, conforme mostramos, mas voltaremos a
este ponto mais de uma vez, devido à sua importância, é dupla: a consciência nadifica o ser
que ela não é, ao mesmo tempo em que nadifica o ser que ela é, o que Sartre denominou de
dupla negação. O ser nadificado é justamente a estrutura imediata da facticidade, e é este
aspecto que nos permite compreender uma nuance do segundo ponto, a saber, a questão do
fundamento. Esta nuance consiste precisamente no fato de que Sartre não rejeita por completo
a questão do fundamento. Talvez o traço mais cartesiano (e também husserliano) de sua
filosofia seja exatamente o de querer fundamentar toda sua ontologia no cogito, mesmo que
este seja pré-reflexivo e no-mundo. Por outro lado, o cogito como fundamento de si não dá
conta de toda a dimensão da existência no quadro de L’Être et le Néant, visto que a
facticidade é justamente a estrutura do para-si que diz respeito ao fato do para-si ter de ser
infundado e contingente, fazendo com que o papel do cogito se restrinja à possibilidade de
apreensão da condição de não ser o seu próprio fundamento. Mais detalhadamente, o para-si é
fundamento da nadificação de seu ser, mas não de seu próprio ser, ele funda as maneiras de
ser, mas não sua própria existência. Neste sentido, podemos afirmar que o cogito nas mãos de
Sartre perde sua autonomia - pela prova ontológica e pela dupla nadificação - e limita a
questão do fundamento pela razão de que não se pode negligenciar toda a dimensão da
contingência da existência, que consideramos ser o terreno mesmo de sua ontologia: “il y a en
lui [le pour-soi] quelque chose dont il n’est pas le fondement : sa présence au monde. Cette
saisie de l’être par lui-même comme n’étant pas son propre fondement, elle est au fond de tout
cogito”24.
A fim de dar conta dessa dimensão, o cogito deve ser então alargado. Neste sentido,
ele ganha a dimensão da própria existência e não do conhecimento, dado que a consciência

24 EN, p. 115.
!197

“n’est pas une connaissance retournée sur soi, mais la dimension d’être du sujet”25 . Heidegger
dizia que “Descartes, à qui l’on attribue la découverte du cogito sum comme point de départ
du questionnement philosophique moderne, a examiné — dans certaines limites — le cogitare
de l’ego. En revanche, il laisse le sum totalement inélucidé, quand bien même il le pose tout
aussi originellement que le cogito”26. Para Sartre, questionar o “sum” do cogito, significa
elucidar a dimensão da existência fática a partir de uma reconfiguração da noção mesma de
consciência que, de início, ele acreditava encontrar em Husserl. Posteriormente, em L’Être et
le Néant, a posição husserliana é classificada ao lado do “intelectualismo” de Descartes:

Husserl et Descartes, Gaston Berger l’a montré, demandent au cogito de leur


livrer une vérité d’essence : chez l’un nous atteindrons à la liaison de deux
natures simples, chez l’autre nous saisirons la structure eidétique de la
conscience. Mais, si la conscience doit précéder son essence en existence, ils
on commis l’un et l’autre une erreur. Ce qu’on peut demander au cogito, c’est
seulement de nous découvrir une nécessité de fait. C’est aussi au cogito que
nous nous adresserons pour déterminer la liberté comme liberté qui est nôtre,
comme pure nécessité de fait, c’est-à-dire comme un existant contingent mais
que je ne peux pas ne pas éprouver27 .

O cogito pré-reflexivo é assim deslocado para o plano fático de uma existência


singular “que je ne peux pas ne pas éprouver”. Não sendo mais uma dimensão intelectual, a
consciência de si do cogito sartriano é a dimensão mesma da existência, o fato de que a
existência “se experimenta” (s’éprouve), e de que “tout le monde l’est [conscience non
thétique de soi] à chaque instant; tout le monde en jouit”28. O uso das palavras experimentar
(éprouver) e gozar (jouir) não nos é indiferente, ele ressalta um aspecto de autoafecção do
cogito, distanciando-o de qualquer atitude contemplativa. Sartre visa à anterioridade desse
“saber de si” que não é propriamente um saber - na medida em que é anterior ao
conhecimento -, e que consiste numa experiência da existência que envolve uma dimensão
corporal antepredicativa e pré-reflexiva, cuja expressão mais significativa encontramos em La
Nausée. Para G. Bornheim, a radicalidade de Sartre neste romance é ainda maior do que a de
Descartes, dado que a própria existência do sujeito é colocada em dúvida29. O aspecto mais
relevante de La Nausée com relação ao cogito, a nosso ver, é o de que a certeza da existência
se dá através da experiência da náusea - como apreensão da contingência - e não por via de

25 CSCS, p. 136.
26 HEIDEGGER, M. Être et Temps, p. 56.
27 EN, p. 483. Sartre faz referência a Le Cogito chez Husserl et Descartes de G. Berger.
28 CSCS, p. 150. (grifo nosso)
29 BORNHEIM, G. Sartre.
!198

uma apreensão reflexiva do pensamento. Além disso, a paródia do cogito cartesiano que
encontramos aí retrata um círculo vicioso pela cena do personagem que tenta, na verdade, se
abster de pensar: “Je suis, j’existe, je pense donc je suis ; je suis parce que je pense, pourquoi
est-ce que je pense? je ne veux plus penser, je suis parce que je pense que je ne veux pas être,
je pense que je… parce que… pouah!”30. Ao mesmo tempo, tal círculo vicioso em nada
contribui com a tentativa do personagem Antoine Roquentin de apreender sua existência
reflexivamente, pelo contrário, esta parece sempre lhe escapar: “l’existence prend mes
pensées par-derrière et doucement les épanouit par derrière ; on me prend par-derrière, on me
force par-derrière de penser, donc d’être quelque chose, derrière moi qui souffle en légères
bulles d’existence”31. Na atmosfera de gratuidade de La Nausée, o pensamento reflexivo
aparece como fonte de angústia, na medida em que, ao invés de fornecer uma “certeza de si”,
ele afasta aquele que pensa desta certeza. O beau monsieur, figura do homem sério retratado
no romance, no sentido inverso de tal experiência, tem certeza de que existe exatamente por
não viver a angústia da dúvida que assombra Roquentin: “Le beau monsieur existe Légion
d’honneur, existe moustache, c’est tout ; comme on doit être heureux de n’être qu’une Légion
d’honneur et q’une moustache […] je ne pense pas donc je suis une moustache”32. Neste
contexto, é a experiência da náusea que revela a Roquentin a prova de sua existência de modo
que esta prova, ao invés de fornecer um solo seguro para a construção de um sistema, como
em Descartes, revela, ao contrário, uma “evidência desestabilizante”33. É por esta razão que,
para De Coorebyter, La Nausée consiste numa verdadeira “subversion” do cogito cartesiano,
na medida em que o romance mostra como Sartre se distancia de Descartes através de um
“cogito sensualista”, que se revela a partir de uma experiência involuntária que é ela mesma
corporal e que se impõe ao personagem em todas as suas dimensões. Esta subversão é dada ao
menos de quatro maneiras, que ele resume através das seguintes fórmulas anticartesianas: “Je
sens, donc je suis”, “De l’âme, et qu’elle est moins aisée à connaître que le corps”; “Je suis
une chose qui désire” ou “de la réelle indistinction entre l’âme et le corps de l’homme” e,
finalmente, “de Dieu, qu’il n’existe pas”34 . Assim, De Coorebyter demonstra a maneira pela

30 N, p. 146.
31 N, p. 148. Observamos que “par derrière” é justamente a expressão que Sartre utiliza em L’Être et le Néant
para descrever o assombramento do para-si por sua dimensão fática, conforme veremos na “Terceira parte”.
32 N, p. 147.
33 DE COOREBYTER, V. La petite Lucienne et le jardin public: la subversion du cogito dans La Nausée. Alter:

Sartre phénoménologue. n. 10, 2002, p. 92.


34 Ibid., p. 101-102. (grifo nosso)
!199

qual, em La Nausée, como dizia Ricœur, “la parenthèse qui protégeait la description pure est
levée ; le « je suis » ou « j’existe » déborde infiniment le « je pense »” 35. Diferentemente do
cogito alcançável via dúvida metódica em Descartes, a experiência da náusea se impõe
involuntariamente:

[na cena do jardim público] Roquentin est sidéré, fasciné, surpris par une
illumination qui échappe à toutes les catégories de la pensée; l’Existence en
personne le prend à la gorge, s’impose à lui. La rencontre avec l’être est si
intense qu’elle ne laisse pas place au doute, car il s’agit d’une expérience et
non d’une déduction: Roquentin ne s’en remet pas à la lumière de l’esprit
mais aux données sensibles les plus vulgaires, ce qui déplace le lieu et mode
d’évidence36.

O traço mais relevante da experiência da existência apresentada em La Nausée


consiste em mostrar que tal desvelamento ocorre num contato efetivo com o mundo, com as
coisas. A descoberta da contingência, por exemplo, é desvelada pela raiz do castanheiro, como
a presença da existência bruta e não a partir de um quadro de abstrações. Além disso, ao invés
de revelar o mundo como duvidoso, como para Descartes, é exatamente o mundo como
duvidoso que desmorona através da experiência concreta da existência. Não sendo esta
experiência concreta de ordem intelectual e voluntária, poderíamos dizer que ela é afetiva no
sentido de uma autoafecção corporal, experienciada (éprouvée) e de gozo (jouissance). O
cogito, em sua dimensão existencial, torna-se assim fundamental para o objetivo de
reestruturar uma série de questões em relação à translucidez como “império sobre si” do
sujeito. Como ressalta Ricœur, “l’affectivité est d’une manière générale le côté non
transparent du cogito” 37, e isto no sentido da afetividade como reveladora da existência e não
na concepção cartesiana, pois sabe-se que “pensar” em Descartes possui um sentido bem
alargado de “une chose qui doute, qui conçoit, qui affirme, qui nie, qui veut, qui ne veut pas,
qu’imagine aussi, et qui sent”38. Para Ricœur, é a opacidade da afetividade que conduz
justamente à tentação de considerar o corpo a partir da objetividade, excluindo-o da esfera do
cogito. Todavia, a seu ver, o corpo próprio, como corpo vivido39, com sua opacidade própria,
deve pertencer à subjetividade do cogito, precisamente, via afetividade. Para Sartre, a náusea
é a revelação privilegiada da existência corporal que compõe o cogito enquanto revelador da

35 RICŒUR, P. Philosophie de la volonté. Tome 1 : Le Volontaire et l’Involontaire. Paris: Points, 2009, p. 117.
36 DE COOREBYTER, V. La petite Lucienne et le jardin public, p. 100.
37 RICŒUR, P. Philosophie de la volonté, p. 118.
38 DESCARTES, R. Méditations métaphysiques, p. 81.(grifo nosso)
39 Este assunto é aprofundado na “Terceira parte”.
!200

existência, consciência não posicional da contingência da existência. Conforme demostramos,


no romance esta experiência se caracteriza como sendo a revelação da existência numa
atmosfera oposta a de certeza e clareza da dúvida cartesiana ou da époché husserliana.
Ao concluirmos estas breves análises sobre a diferença entre o cogito cartesiano e o
cogito pré-reflexivo sartriano, podemos afirmar que La Nausée apresenta um ponto de
extrema importância que não fora ressaltado em seus textos principais sobre o tema (citados
anteriormente em nota): o cogito sartriano é uma experiência concreta que comporta uma
dimensão corporal-afetiva. Esta afirmação, no entanto, nos coloca diante de uma série de
dificuldades: como manter ainda a ideia de transparência da consciência? (tal como
questionava Ricœur e também Merleau-Ponty que, na Phénoménologie de la perception,
mantém ainda um cogito, mas não mais transparente); como pensar corpo e consciência em
Sartre? Como validar este ponto tão importante de La Nausée se vimos que esta obra se
enquadra na primeira concepção da temporalidade, que não levava em conta a facticidade,
como viemos de demonstrar no capítulo anterior?
Não podemos responder a todas estas questões neste ponto de nossa investigação. A
primeira e a segunda questão são retomadas na “Terceira parte”, sob a perspectiva da
hantologie. Sobre a terceira questão, devemos ressaltar uma nuance importante: em L’Être et
le Néant Sartre denomina justamente de náusea a apreensão não tética do para-si de sua
própria contingência corporal, fazendo referência ao romance: “Cette saisie perpétuelle par
mon pour-soi d’un goût fade et sans distance qui m’accompagne jusque dans mes efforts pour
m’en délivrer et qui est mon goût, c’est ce que nous avons décrit ailleurs sous le nom de
Nausée. Une nausée discrète et insurmontable révèle perpétuellement mon corps à ma
conscience”40. No entanto, a facticidade é neste momento o campo de assunção desta
contingência corporal, enquanto que no romance esta é vivida passivamente. Em outros
termos, em La Nausée, Roquentin sofre a mudança corporal que o toma e o transforma; no
contexto da ontologia, esta mudança corporal sofrida é sempre assumida pela espessura de ser
que é a facticidade: um eterno ter de ser a própria dimensão contingente. Feita esta
observação, mais do que considerar como anacrônicos todos os resultados anteriores à
mudança que se opera na filosofia sartriana, melhor é compreender como a facticidade
complexifica a experiência que era vivida apenas como uma reação corporal, sem o campo

40 EN, p. 378.
!201

mais espesso da experiência. Além disso, seria interessante indagar a perspectiva de La


Nausée sobre de que modo uma consciência nua pode ser submetida a uma experiência
corporal que a transforma completamente? Porém, o que nos interessa, na realidade (e que
será desenvolvido posteriormente), é investigar justamente as características do campo de
assunção daquilo que desde o romance é a experiência da contingência. É como se o romance
mostrasse que a experiência corporal era capaz de provar a existência do sujeito de forma
mais evidente, enquanto que na ontologia este campo da experiência se alarga a ponto de
Sartre chamar a atenção para o gosto da contingência, que é da ordem da facticidade.
Além da temporalidade ek-stática e a recusa da substancialidade, a revelação da
existência fática corporal é então mais uma característica fundamental da crítica de Sartre ao
cogito cartesiano. O cogito adquire, neste contexto, a dimensão de revelação da experiência
da existência, enquanto um saber de si implícito e anterior ao próprio movimento reflexivo de
autoposição. É neste sentido que Sartre diz que Descartes não provou a existência do cogito:
“j’ai toujours su que j’existais, j’ai pratiqué le « Cogito » comme M. Jourdain faisait de la
prose”41. Este “saber” é pré-reflexivo e não corresponde, como em Husserl e Descartes, a uma
“verdade intelectual” de um sujeito que apreende a si mesmo e que instaura uma divisão
sujeito-objeto na esfera própria da consciência (um sujeito que é objeto para-si mesmo) 42.
Sartre mantém a sua contraposição a este dualismo imanente através ainda de uma descrição
do campo transcendental onde “il n’y a pas de distinction de sujet-objet”43 (como em La
Transcendance de l’Ego), ou seja, a dimensão originária da consciência é pré-reflexiva e não
reflexiva 44. Mas, se a consciência pré-reflexiva não é dada sob a forma sujeito-objeto isto
significa que ela não pode ser descrita de nenhuma forma? Caso sim, qual seria esta forma?

b) Existir para um testemunho: a presença a si como jogo de reflexos.

A primeira estrutura imediata descrita no capítulo “As estruturas imediatas do para-si”


é a presença a si. Em L’Être et le Néant, apesar de manter a ideia de consciência como um

41 CSCS, p. 137.
42 CSCS, p. 147.
43 CSCS, p. 150.
44 Com o cogito pré-reflexivo, Sartre mantém uma dimensão consciente sem sujeito nem objeto, pura “relação

imediata e não cognitiva de si a si”. EN, p. 19. Dimensão que até então valia para a consciência transcendental,
embora Sartre em 1943 afirme - em contraste com o trecho do primeiro dos Carnets de la drôle de guerre citado
anteriormente - de uma consciência que “julga” seu homem -, que a dimensão pré-reflexiva é justamente aquela
que “ne me permet ni de juger, ni de vouloir, ni d’avoir honte. Elle ne connaît pas ma perception, elle ne la pose
pas : tout ce qu’il y a d’intention dans ma conscience actuelle est dirigé vers le dehors, vers le monde”. Ibid.
!202

“vazio total”45, Sartre complexifica a estrutura da consciência que passa a ser compreendida
como uma dualidade na unidade, nomeada de díade reflexo-refletidor (dyade reflet-reflétant).
Este modo de ser é elaborado no intuito de dar conta da estrutura de pré-reflexividade não
substancial da consciência e de pôr em evidência a característica de toda consciência que é a
de “existir para um testemunho” 46: “le pour-soi est l’être qui existe sous forme de témoin de
son être”47. A fim de compreendermos o que isto significa, iniciaremos colocando em questão
o significado mesmo de presença a si, que adquire, no interior das análises de L’Être et le
Néant, um aspecto peculiar. Neste contexto, a presença a si é descrita como estrutura que faz
com que o para-si seja “questão” para si e não si, isto é, a presença a si é condição de
impossibilidade de que o para-si exista sob o modo do em-si, o que leva Sartre a afirmar que
“l’homme est libre parce qu’il n’est pas soi mais présence à soi”48. Assim, Sartre interpreta a
presença a si como não identidade a si e em termos de “separação”:

toute « présence à » implique dualité, donc séparation au moins virtuelle. La


présence de l’être à soi implique un décollement de l’être par rapport à soi.
La coïncidence de l’identique est la véritable plénitude d’être, justement
parce que dans cette coïncidence il n’est laissé de place à aucune négativité49.

A estrutura da presença a si é, portanto, “lugar” da negatividade de um modo de ser


cujo ser foi “descomprimido”50, devido à introdução do nada (néant) em seu bojo, provocando
uma fissura que corrói a plenitude do ser - como um “verme no fruto” - o que faz com que o
para-si exista sob a forma de não coincidência consigo mesmo, ou “néantisation de
l’identique”51. Tendo em vista a especificidade do “surgimento” do para-si, Sartre conclui que
“l’être de la conscience, en tant que conscience, c’est d’exister à distance de soi comme
présence à soi et cette distance nulle que l’être porte dans son être, c’est le Néant”52 . Se a
presença a si implica separação e distância a si, estas devem ser pensadas a partir da
nadificação, no sentido de que a distância e a separação promovidas pelo nada (néant) não são
uma distância e uma separação reais: nada (rien) separa o para-si de si mesmo. O nada é

45 EN, p. 23.
46 EN, p. 111.
47 EN, p. 157.
48 EN, p. 485.
49 EN, p. 113.
50 “la néantisation de l’en-soi en pour-soi n’est pas un recul en face de l’en-soi: c’est plutôt en effondrement, une

décompression”. CDG, p. 501.


51 EN, p. 114.
52 Ibid.
!203

relação de nadificação de ser que faz com que o para-si não possa coincidir consigo mesmo e
que ele exista sob a forma relacional. Por esta razão, a “separação” instaurada pela presença a
si não pode ser uma separação de fato - entre dois termos em-si -, a “separação” da presença
é, na verdade, uma estrutura ambígua de “dualidade na unidade”, onde cada termo da díade
reflexo-refletidor é e não é o outro. No intuito de oferecer um recurso que auxilie ao
pensamento a figurar tal estrutura de consciência, Sartre fala da consciência (de) si como um
“jogo de reflexos” (jeu de reflets), um jogo de “reenvio perpétuo de si a si do reflexo ao
refletidor e do refletidor ao reflexo”53. A imagem especular nos auxilia a pensar três aspectos
da estrutura pré-reflexiva: 1) a não substancialidade; 2) a estrutura de esboço de dualidade na
unidade; 3) a característica de “existir para um testemunho”.
Se o cogito pré-reflexivo é um jogo de reflexos, o que exatamente ele reflete? Ele é
reflexo infinito de si mesmo? Como vimos, Sartre nos mostra que o para-si se caracteriza pela
dupla negação: nadificação do em-si que ele é (tema que retomaremos em seguida para
descrevermos a estrutura da facticidade), negação interna do em-si que ele não é. Disto
decorre que a consciência, para existir, é dependente do em-si que ela nadifica. Não sendo
substância, a consciência é pura aparência, pois, como falamos anteriormente, a consciência é
um absoluto devido à equivalência, em seu modo de ser, entre ser e aparecer. A consciência é
o jogo de reflexos do aparecer do em-si que ela não é e do em-si que ela é54: o reflexo “se
reflète en tant que relation à un dehors qu’il n’est pas. Ce qui définit le reflet pour le reflétant,
c’est toujours ce à quoi il est présence”55. O reenvio incessante de reflexos pela díade reflexo-
refletidor assegura finalmente a não substancialidade da consciência, fazendo com que ela
escape a toda objetivação56.
A díade permite ainda compreender o aspecto contraditório da “separação” instaurada
pela presença a si de “dualidade na unidade”. Dado que a consciência não pode ser pensada de
maneira substancial, os dois termos da díade não podem ter o modo de ser do em-si, logo, não
se trata de uma separação entre duas instâncias autônomas, mas de uma relação dual entre
dois termos de uma mesma unidade de consciência. O reflexo é justamente este modo de ser

53 EN, p. 112.
54 No artigo “L’être du néant” V. de Coorebyter mostra com detalhes como o reflexo qualifica o para-si a partir
da negação interna do ser em-si que ele não é. Cf. DE COOREBYTER, V. L’être du néant. p. 356.
55 EN, p. 209.
56 Este reenvio incessante, diz Sartre, tampouco é um movimento infinito: “il est donné dans l’unité d’un seul

acte : le mouvement infini n’appartient qu’au regard réflexif qui veut saisir le phénomène comme totalité et qui
est renvoyé du reflet au reflétant, du reflétant au reflet sans pouvoir s’arrêter”. EN, p. 114-115.
!204

não substancial que é dependente do outro termo em seu ser - do qual ele é reflexo -,
compondo a unidade: “Le reflétant n’est que pour refléter le reflet et le reflet n’est reflet qu’en
tant qu’il renvoie au reflétant. Ainsi, les deux termes ébauchés de la dyade pointent l’un vers
l’autre et chacun engage son être dans l’être de l’autre”57. Além disso, o “jogo de reflexos” diz
respeito à característica da consciência de “existir para um testemunho”:

le pour-soi a l’existence d’une apparence couplée avec un témoin d’un reflet


qui renvoie à un reflétant sans qu’il y ait aucun objet dont le reflet serait
reflet. Le pour-soi n’a pas d’être parce que son être est toujours à distance: là-
bas dans le reflétant, si vous considérez l’apparence, qui n’est apparence ou
reflet que pour le reflétant; là-bas dans le reflet, si vous considérez le
reflétant qui n’est plus en soi que pure fonction de refléter ce reflet58.

Sendo assim, Sartre vincula a estrutura de “jogo de reflexos” à função de testemunho


que cada termo é para o outro, de modo a acentuar o aspecto de “jogo de espelhos” (jeu de
glaces)59 da díade. Chamaremos de “consciência olhada” (conscience regardé) a característica
que tradicionalmente vale para o plano reflexivo, mas que é mantida aqui na dimensão pré-
reflexiva e que faz com que todo vivido seja sempre “perturbado” (troublé):

nous croyons avoir montré que la condition première de toute réflexivité est
un cogito préréflexif. Ce cogito, certes, ne pose pas d’objet, il reste
intraconscientiel. Mais il n’en est pas moins homologue au cogito réflexif en
ce qu’il apparaît comme la nécessité première, pour la conscience irréfléchie,
d’être vue par elle-même ; il comporte donc originellement ce caractère
dirimant d’exister pour un témoin, bien que ce témoin pour qui la conscience
existe soit elle-même. Ainsi, du seule fait que ma croyance est saisie comme
croyance, elle n’est plus que croyance, c’est-à-dire qu’elle n’est déjà plus
croyance, elle est croyance troublée60 .

57 EN, p. 209.
58 EN, p. 158. (grifo nosso)
59 CDG, p. 499. “Les miroirs, ces consciences à l’envers” SG, p. 89. A expressão “jogo de espelhos” nos auxilia

a compreender o sentido “físico” do refletir que Sartre atribui a este nível pré-reflexivo. V. de Coorebyter nos
indica que houve uma substituição do termo “réflection” por “réflexion” na edição de L’Être et le Néant
corrigida por Arlette Elkaïm Sartre, que é a nossa edição (Cf. EN, p. 112). Para o autor, Sartre escolhe
deliberadamente o termo “réflection” - que não figura em nenhum dicionário - devido à sua proximidade com o
sentido físico de reflexo que encontramos em aparelhos “reflecteurs” de calor ou luz. Assim, torna-se mais
evidente a relação puramente de reenvio de reflexos do nível pré-reflexivo, que não é o da reflexão. Falaremos
assim em “refletidade” para nos referirmos ao nível pré-reflexivo e reflexividade quando se tratar do nível
reflexivo. Cf. DE COOREBYTER, V. Les paradoxes du désir dans L’Être et le Néant. In: BARBARAS, R. (Org)
Sartre. Désir et liberté. Paris: PUF, 2005.
60 EN, p. 110-111. (grifo nosso). O exemplo da crença não deve ser interpretado como sendo de ordem

psicológica, adverte De Coorebyter, pois se trata de algo que pode ser aplicado a todo fenômeno consciente, logo
ele possui um estatuto propriamente ontológico. DE COOREBYTER, V. , op.cit., p. 88-89.
!205

A estrutura pré-reflexiva impede a identidade da vivência consigo mesma - o que


caracterizaria a plenitude de ser -, como se uma crença, ou um prazer, ou uma alegria, por
exemplo, pudessem existir sobre o modo da identidade. A fissura de nada que instaura a díade
reflexo-refletidor da consciência no modo de ser para-si, perturba a vivência pelo carácter de
“ser olhada”61. Com efeito, desde Husserl, o fato de “ser visto” é causa de modificação no
modo de ser da consciência na medida em que o olhar altera aquilo que é olhado, fenômeno
que se dá necessariamente na reflexão. Em La Transcendance de l’Ego, Sartre adota esta
posição husserliana no intuito de garantir uma espécie de “pureza” da vivência irrefletida, esta
mesma almejada pela reflexão pura. Era neste contexto que Sartre afirmava que “a reflexão
envenena o desejo”, como comentamos anteriormente. Porém, a nova estrutura da pré-
reflexão da presença a si, como um jogo de reflexos, faz com que, por mais que não possamos
falar do “envenenamento” proveniente da objetivação própria ao ato reflexivo, esta dimensão
pré-reflexiva é de algum modo perturbada em sua estrutura mesma, que é o fato de “existir
para um testemunho”. Sendo assim, o fato de toda vivência ser consciência (de) si faz com
que esta exista sob o modo do jogo de reflexos (ou de espelhos), o que quer dizer que ela “ne
peut exister que comme troublée, [elle] existe dès l’origine comme s’échappant à soi, comme
brisant l’unité de tous les concepts où l’on peut vouloir l’enfermer”62. Em outras palavras, as
vivências não são em-si. Enquanto reflexos de em-si, elas são perturbadas pelo reenvio
evanescente de reflexos que faz com que o para-si escape a toda identidade.

c) A facticidade do para-si: a situação de “ser aí” no-meio-do-mundo.

A segunda estrutura imediata do para-si - a facticidade - consiste num ponto central e


extremamente relevante de nossas investigações. Esta estrutura evidencia que o para-si,
enquanto “fundamento ontológico da consciência”, logo, fundamento do nada em seu ser, não
é fundamento ontológico de seu ser, ou, em outros termos, enquanto fundamento de sua
presença a si ele não é o fundamento de sua presença ao mundo. Do mesmo modo que
podemos afirmar do em-si que ele é, podemos afirmar que o para-si é, mas ele é nadificando

61 Sartre fala ainda em termos de “autodestruição” da consciência de crença: “Ainsi, la conscience non-thétique
(de) croire est destructrice de la croyance […] la croyance est un être qui se met en question dans son propre
être, qui ne peut se réaliser que dans sa destruction, qui ne peut se manifester à soi qu’en se niant ; c’est un être
pour qui être, c’est paraître, et paraître, c’est se nier”. EN, p. 104.
62 EN, p. 111.
!206

seu ser, dado que o para-si é um “en-soi néantisé63”: “C’est cette facticité qui permet de dire
qu’il [pour-soi] est, qu’il existe, bien que nous ne puissions jamais la réaliser et que nous la
saisissions toujours à travers le pour-soi”64, diz Sartre. Tudo se passa como se o em-si, pelo
“acte sacrificiel” que é a nadificação de si, se “degradasse” em para-si a partir de um esforço
em ser seu próprio fundamento e a fim de escapar de sua contingência original65. Se o nada é
necessariamente “nada de ser”, vale repetir, há de haver um ser que, em seu bojo, sustenta o
ato de perpétua nadificação (ato ontológico) - “la facticité c’est l’être soutenant le Néant à
L’Etre” 66 - que caracteriza um “acontecimento absoluto”. O ser para-si é assim, segundo
Sartre, um ser que é a própria nadificação de si mesmo, como um em-si corroído pelo nada
que se degrada em para-si. Neste sentido, a facticidade do para-si se revela como uma
estrutura que de alguma forma contesta o dualismo radical que presume o em-si como sendo
outro ou oposto ao para-si. A este respeito, escreve De Coorebyter:

Cela signifie que le pour-soi n’est pas l’Autre de l’en-soi, son exact opposé,
bien au contraire : le pour-soi, c’est l’en-soi lui-même qui se fait autre que soi
en son sein, qui s’affecte de néant en son cœur, « comme un ver », par un
geste inexpliqué et contingent que Sartre appelle l’acte ontologique et qui
dépressurise l’en-soi de l’intérieur […] la facticité consacre l’indépassable
appartenance du pour-soi au monde commun de l’en-soi67. Le pour-soi,
certes, apparaît au cœur de l’en-soi par un geste de différenciation radicale :
du simple fait de n’être plus l’en-soi lui-même, mais conscience (de) soi
comme conscience de l’en-soi, le pour-soi fait apparaître l’en-soi sous son
regard et se découvre autre que lui, révélant plutôt que révélé. Mais il reste
que le pour-soi, qui est ainsi à l’origine de son propre néant, n’est jamais à
l’origine de son être, sans quoi il serait causa sui et échapperait à la
facticité68.

O para-si pode então ser compreendido em seu processo de diferenciação, que é


nadificação incessante do em-si que ele é. A facticidade, por sua vez, diz respeito ao “reste de
l’en-soi dans le pour-soi”69 . O modo como este em-si permanece no para-si é fundamental
para nossa investigação e será o tema chave de nossa perspectiva da hantologie. Sartre não

63 EN, p. 118-9.
64 EN, p. 119.
65 EN, p. 118.
66 CPM, p. 167.
67 Este mesmo ponto, conforme citamos anteriormente, é também ressaltado por Dufrenne quando ele afirma :

“sans doute l’en-soi et le pour-soi sont-ils solidaires en ce sens que l’en-soi d’une part porte le pour-soi dans sa
facticité”. DUFRENNE, M. Jalons, p. 76. E também por Romano “Sartre veut pouvoir définir le Pour-soi
comme se détachant de l’En-soi par l’opération d’une négativité, comme “jaillissant” à partir de lui, ce qui sup-
pose entre eux une espèce de connivence, une “continuité” ontologique”. ROMANO, C. L’ontologie sartrienne:
réflexions sur son archè et son télos, p. 15. Embora Dufrenne ressalte o caráter de descrição “provisória” do em-
si e para Romano, como o em-si é mal definido, sendo o para-si um modo de ser que dele depende, é toda a on-
tologia de Sartre que se torna “aporética”. Ibid., p. 16.
68 DE COOREBYTER, V. L’Être et le néant, ou le roman de la matière, p. 8. (grifo nosso). Ver também: DE

COOREBYTER, V. L’être du néant. p. 359.


69 EN, p. 120.
!207

elucida este “permanecer” nesta altura do texto, ele diz apenas que há a permanência de algo
que não pode ser apreendido pelo para-si, pois se trata de uma dimensão de seu ser - como um
“souvenir d’être”70 - não passível de ser conhecido e que o assombra (hante) a todo momento.
A facticidade é a estrutura que revela que o para-si, enquanto presença ao mundo - isto
é, ser-no-mundo (être-dans-le-monde) -, só pode sê-lo na medida em que é um ser-no-meio-
do-mundo (être-au-milieux-du-monde), na medida em que ele possui uma dimensão objetiva
que diz respeito às suas relações com as coisas e com os outros, como escreve Sartre nas notas
do Cahiers pour une morale: “Le Pour-soi, En-soi néantisé, reste en-soi par rapport à l’En-
soi”71. Esta característica corresponde ao aspecto de ser jogado do para-si que Sartre expressa
através do termo ser-aí (être là)72, que implica a posição do para-si. Em suas palavras: “Il
convient de noter que mon être-là ne peut aucunement déterminer le dépassement qui va fixer
et situer les choses, puisqu’il est pur donné, incapable de projeter”73. O “ser-aí” é descrito
então como puro dado e não como ultrapassagem projetiva; este puro dado contingente indica
a posição de cada um como ser jogado no meio do mundo, enquanto que a “ultrapassagem
que vai fixar e situar as coisas” indica, na dependência desta mesma posição, sua situação, de
modo que “aucune situation n’est jamais subie. Si l’homme était un être “au milieu du
monde”, il n’y aurait jamais de situation, il n’y aurait que des positions” 74. Assim, só há
situação a partir da apreensão da posição contingente pelo projeto consciente do para-si,
fazendo com que a situação seja o “produit commun de la contingence de l’en-soi et de la
liberté”75. O para-si é em situação no sentido em que ele não é capaz de escolher a posição de
seu engajamento no mundo, mas somente a maneira de ser no-meio-do-mundo dada pela
nadificação:

Simplement le surgissement de la liberté se fait par double néantisation de


l’être qu’elle est et de l’être au milieu duquel elle est. Naturellement, elle

70 Ibid.
71 CPM, p. 57. (grifo nosso)
72 A influência da noção de facticidade em Heidegger para pensar o aspecto de “ser jogado” do para-si é clara,
conforme vimos anteriormente. Vale destacar que, neste contexto, Sartre se utiliza da expressão “être-lá” cuja
tradução literal seria “ser-aí”, a mais utilizada em francês -e também em português - para se referir ao Dasein
heideggeriano somente para se referir ao aspecto de jogado do para-si e não como uma simples tradução. Seu
uso da expressão “être-là” é assim bastante peculiar ao afirmar apenas a posição do para-si como “ser-no-meio-
do-mundo”, como podemos observar na seguinte frase: “Être, pour la réalité-humaine, c’est être-là ; c’est-à-dire
« là sur cet chaise », « là à cette table », « là au sommet de cette montagne, avec ses dimensions, cette orienta-
tion, etc. ». C’est une nécessité ontologique”. EN, p. 347.
73 EN, p. 537.
74 CDG, p. 586.
75 EN, p. 533.
!208

n’est pas cet être au sens d’être-en-soi. Mais elle fait qu’il y a cet être qui est
sien derrière elle, en l’éclairant dans ses insuffisances à la lumière de la fin
qu’elle choisit : elle a à être derrière elle cet être qu’elle n’a pas choisi et,
précisément dans la mesure où elle se retourne sur lui pour l’éclairer, elle fait
que cet être qui est sien apparaisse en rapport avec le plenum de l’être, c’est-
à-dire existe au milieu du monde76 .

A facticidade é a assunção da contingência própria ao ser que o para-si é. Como define


De Coorebyter, “[la facticité est] la prise en charge existentielle de la contingence et non la
contingence elle-même”77 . A contingência diz respeito exatamente ao em-si que o para-si é
como nadificação, mas este ato ontológico instaura uma necessidade, a saber, a necessidade
de existir como não sendo seu próprio fundamento. Em outras palavras, é necessário ao para-
si ser o fundamento da nadificação de seu ser enquanto que o seu próprio ser é infundado e
contingente. Como diz Sartre: “Ainsi l’être de la conscience, en tant que cet être est en soi
pour se néantiser en pour-soi, demeure contingent, c’est-à-dire qu’il n’appartient pas à la
conscience de se le donner, ni non plus de le recevoir des autres”78. Esta falta de fundamento
permanece no para-si e assombra o seu projeto de recuperação de seu ser nadificado. Neste
contexto, o ato de nadificação constitutivo do ser como para-si se reveste de uma intenção de
fuga desta condição contingente e busca de fundação não somente do nada, mas também de
seu ser. Isto porque, para Sartre, a autofundação se limita à origem da consciência no seio do
ser - o que não significa uma criação de seu próprio ser -, mas criação dos sentidos de seu ser,
fundados na nadificação de si. O movimento de nadificação de si perpétuo, descrito como
fuga da contingência, faz com que o para-si busque fora de si o fundamento que lhe falta e eis
aqui um primeiro indício do movimento projetivo que nos leva, a partir das análises do ser da
consciência na instantaneidade do cogito como presença, para a distensão temporal do para-si
como projeto de ser. Fato que Alain Flajoliet resume do seguinte modo:

le pour-soi ne peut pas en rester à cette forme ontologique originelle de la


présence (à) soi facticielle, car l’échec de l’assomption du projet
d’autofondation de l’en-soi qu’elle représente suscite une nouvelle tentative,
cette fois-ci propre au pour-soi, tentative qui à son tour va échouer. L’ipséité
est la forme même de cette tentative et de cet échec79 .

76 EN, p. 531.
77 DE COOREBYTER, V. L’Être et le néant, ou le roman de la matière, p. 8.
78 EN, p. 117.
79 FLAJOLIET, A. Ipséité et temporalité. In: BARBARAS, R. (Org.) Sartre: désir et liberté. Paris: PUF, 2005, p.

61.
!209

Este aspecto se tornará mais claro a partir da terceira estrutura imediata, a do para-si
como ser do valor, e da última seção sobre o circuito de ipseidade, mas vale atentar ainda para
um derradeiro aspecto sobre a facticidade, retomando a distinção entre situação e posição.
Sartre afirma: “[le pour-soi] est en tant qu’il est jeté dans un monde, délaissé dans une
« situation »”80 para em seguida esclarecer que “le pour-soi, tout en choisissant le sens de sa
situation et en se constituant lui-même comme fondement de lui-même en situation, ne choisit
pas sa position”81. A distinção entre posição e situação pode ser compreendida à luz dos
argumentos iniciais sobre o “fenômeno de ser” e o “ser em-si dos fenômenos”. Tal divisão, na
verdade, já nos atentava para o caráter problemático do em-si, que existe de forma
independente de seu desvelamento por uma consciência. Entretanto, como vimos, o em-si se
revela na aparição como fenômeno para a consciência intencional, a qual, por sua vez,
depende desta relação para existir. Vimos que o para-si, como ser da consciência, estrutura-se
como em-si nadificado pela consciência (de) si pré-reflexiva. Logo, se o para-si é nada de ser,
há um ser contingente que ele é, a partir do qual o ato de perpétua nadificação de si o
transforma em para-si. Este aspecto foi descrito por Sartre como a facticidade do para-si e
define assim a assunção da posição deste modo de ser enquanto um ser-jogado-no-meio-do-
mundo. Como fundamento de seu nada e não de seu ser, o para-si se funda, - em outros
termos, poderíamos dizer, “se escolhe livremente” -, como maneira de ser, mas não como
origem de seu ser, como já foi dito. Por esta razão, sendo o modo de ser do para-si equivalente
em Sartre à ideia de liberdade, podemos dizer que a liberdade não pode escolher não existir e
não ser livre. Daí o sentido da famosa afirmação “somos condenados à liberdade”82, sentença
que revela justamente a facticidade da liberdade. A posição no-meio-do-mundo diz respeito
então ao ser jogado que o para-si é, enquanto existente bruto e contingente, porém esta
posição só se revela como situação. Em outras palavras, assim como “o ser dos fenômenos”
só pode ser apreendido como “fenômeno de ser”, a posição só pode ser apreendida por uma
liberdade como situação. Como na quarta parte de L’Être et le Néant (a qual estamos nos
referindo), Sartre já pode se valer das descrições do para-si como um projeto de ser, que
ilumina todo fenômeno através dos fins que persegue, a situação é justamente esta aparição
singular de uma condição dada e é pelo movimento temporal do para-si rumo aos seus

80 EN, p. 115.
81 EN, p. 119.
82 EN, p. 530.
!210

possíveis que aparece o mundo como horizonte de significações: “Nous choisissons le monde
- non dans sa contexture en-soi, mais dans sa signification - en nous choisissant”83 . A situação
nos indica assim a relação da liberdade com a contingência através da estrutura do para-si
como projeto.
Vislumbramos alguns aspectos sobre a situação presentes na quarta parte para melhor
compreendê-la por conta da estrutura da facticidade. No entanto, não fica claro ainda, levando
em conta uma espécie de orientação descritiva, como o para-si, da instantaneidade do cogito
pré-reflexivo, se estende a ponto de tornar-se uma transcendência projetiva. É certo que não
podemos pensar a presença a si que não seja pelo para-si como projeto, mas, para fins de
análise das estruturas imediatas, Sartre pretende mostrar aos poucos as estruturas que fazem
do para-si um ser que existe temporalmente, como as estruturas dos seres do possível e do
valor.

d) O movimento temporal do desejo: o ser do valor e o ser do possível.

A necessidade de partir do cogito se dá, para Sartre, somente sob a condição de deixá-
lo: “A vrai dire, il faut partir du cogito, mais on peut dire de lui, en parodiant une formule
célèbre, qu’il mène à tout à condition d’en sortir”84 . Isto não quer dizer que Sartre abandonará
o cogito pré-reflexivo, mas sim que ele busca escapar à instantaneidade da presença a si, que
ele crê ser um problema do cogito cartesiano. Neste contexto, “deixar o cogito” significa sair
das análises da “instantaneidade” do jogo de reflexos da presença a si e compreender o para-si
em seu modo temporal como projeto. As duas primeiras estruturas imediatas do para-si
consistem, portanto, no cogito pré-reflexivo da presença a si como um esboço de dualidade
reflexo-refletidor e na facticidade como assunção da impossibilidade de autofundação do ser
da consciência. Agora, podemos descrever brevemente as últimas estruturas do para-si, que
são aquelas que permitem justamente romper os limites das análises feitas até então que
pressupunham uma artificial “instantaneidade” do cogito pré-reflexivo. Evidentemente, as
estruturas anteriores permanecem sendo consideradas na descrição do para-si, mas, a partir da
análise do “ser do valor”, Sartre se se pergunta se é possível, após haver tomado o cogito em

83 EN, p. 508.
84 EN, p. 110.
!211

sua instantaneidade, “ampliá-lo sem perder as evidências reflexivas”85, ainda sem abrir mão
deste ponto de partida 86.
A principal característica que surge nas análises do “ser do valor” é a afirmação do
modo de ser do para-si como falta (manque) de ser. Apesar de já haver se referido ao ato
ontológico como “descompressão” e “fissura” - o que marca o caráter de “insuficiência” de
ser e a não coincidência consigo mesmo do para-si - somente agora Sartre lança mão destas
características como uma falta. Tal termo nos revela que o para-si não somente é um ser
“esburacado”, estático, mas que esta característica se equivale, na verdade, a uma carência
que motiva uma busca, como um movimento em direção àquilo que lhe falta. É assim que o
movimento intencional descrito desde os primeiros trabalhos adquire uma concepção
negativa, como diz De Coorebyter: “à partir de 1939-40, Sartre conçoit l’intentionnalité
comme manque, “désir” de…, non pas ouverture sereine à une plenitude d’être mais
recherche désespérée de cette plenitude” 87.
A estrutura da falta, que implica tal movimento, se dá por uma tríade: o existente que é
falta (manque), o faltante (manquant) que é aquilo que falta ao existente, e o faltado (manqué)
que é a totalidade em relação ao qual algo pode aparecer como uma falta. Sartre nos fornece
um exemplo bem simples pra demonstrar a existência deste último termo, o faltado. Para que
possamos dizer que a lua é crescente, ou que há um “pedaço de lua”, é necessário um projeto
que ultrapasse o dado presente em direção à totalidade da lua diante da qual a lua crescente é
considerada como um “pedaço de lua”. Isto é, uma falta só aparece como tal tendo como
fundo a totalidade da qual ela é falta e esta mesma totalidade, por sua vez, indica a síntese
possível do existente com aquilo que lhe falta para suprimir esta condição. Isto posto, o
faltante e o existente devem ser da mesma natureza visto que o primeiro é aquilo que falta ao
segundo para completar-se, ou seja, é um pedaço de lua que falta à lua crescente para realizar-
se como lua cheia. Tais considerações podem ser resumidas da seguinte maneira:

Ce manquant comme complémentaire de l’existant est déterminé dans son


être par la totalité synthétique du manqué. Ainsi, dans le monde humain,
l’être incomplet qui se livre à l’intuition comme manquant est constitué par le
manqué - c’est-à-dire par ce qu’il n’est pas - dans son être; c’est la pleine
lune qui confère au croissant de lune son être de croissant88 .

85 EN, p. 121.
86 Cf. EH, p. 57.
87 DE COOREBYTER, V. Les paradoxes du désir dans L’Être et le Néant, p. 96.
88 EN, p. 123.
!212

A partir de então se torna mais claro o fato de que este modo de ser é caracterizado
como para-si, no sentido de “em direção a si”, a algo que ele ainda não é. Este movimento
rompe com a instantaneidade do cogito e estabelece a estrutura do para-si como
transcendência, no sentido de que “la réalité-humaine est son propre dépassement vers ce
qu’elle manque, elle se dépasse vers l’être particulier qu’elle serait si elle était ce qu’elle
est”89. A falta adquire assim um aspecto positivo, pois é a partir dela que Sartre compreende
este movimento de ultrapassamento como desejo90 de ser aquilo que o para-si ainda não é.
Desejo e falta se implicam mutuamente na estrutura da transcendência. O desejo não é um
estado psíquico - conforme sua concepção mais comum -, ele é um movimento intencional em
direção ao desejado 91. Tal ênfase sartriana na intencionalidade como desejo é para Barbaras de
suma importância e consiste no ponto central de compreensão da relação mesma de Sartre
com a fenomenologia92 . Para o autor, a caracterização do para-si como falta permite
compreender o fundamento da abertura do para-si ao em-si que é o próprio movimento
intencional93. Dito isto, o para-si é desejo de ser Si, um si absoluto, que não seria mais falta e
que fosse fundamento não somente de seu nada, mas também de seu ser. Sartre se apoia em
certa medida na segunda prova cartesiana de Deus da terceira meditação 94 – o ser imperfeito
se ultrapassa em direção ao ser perfeito - porém, “l’être vers quoi la réalité-humaine se
dépasse n’est pas un Dieu transcendant : il est au cœur d’elle-même, il n’est qu’elle-même
comme totalité”95. É neste sentido que Sartre estabelece que o desejo do para-si consiste em
“ser Deus”, expressando seu desejo de ser Si e fundamento de si, causa sui96. O para-si seria
Deus se pudesse ao mesmo tempo ser o fundamento de seu nada e de seu ser, de maneira que

89 EN, p. 125.
90 Nos Carnets, Sartre definia a falta em seu aspecto positivo e negativo. A forma negativa é a da falta como
intencionalidade, enquanto que desejo era definido como sendo “o aspecto positivo da falta”, que o autor
igualava, nesta época, à vontade. CDG, p. 519. Esta última equivalência não é mantida em L’Être et le Néant.
91 Do mesmo modo, o desejo deve ser compreendido como não sendo da ordem da necessidade (besoin), mas

Sartre não realiza esta distinção. BARBARAS, R. Désir et manque dans L’être et le néant:, p. 127, n. 3.
92 Ibid., p. 116.
93 Ibid., p. 128. Na verdade, Barbaras afirma a importância desta relação entre intencionalidade e desejo ao

mesmo tempo em que realiza uma crítica à equivalência entre desejo e falta. A seu ver, “l’analyse sartrienne est
marquée par un écart entre une intuition particulièrement féconde - l’essence de l’intentionnalité est désir - et une
conceptualisation qui ne parvient à en restituer la signification véritable car elle l’identifie au manque”. Ibid., p.
134. Ver também: Id. Désir et totalité. Alter: Sartre phénoménologue. n. 10, 2002.
94 Cf. CSCS, p.116; EN, p. 125. “Car comment serai-t-il possible que je pusse connaître que je doute et que je

désire, c’est-à-dire qu’il me manque quelque chose et que je ne suis pas tout parfait, si je n’avais en moi aucune
idée d’un être plus parfait que le mien, par la comparaison duquel je connaîtrais les défauts de ma nature?”
DESCARTES, R. Méditations métaphysiques, p. 117.
95 EN, p. 126.
96 “Mais cette appréhension de l’être comme un manque d’être en face de l’être est d’abord une saisie par le

cogito de sa propre contingence. Je pense donc je suis. Que suis-je? Un être qui n’est pas son propre fondement,
qui, en tant qu’être, pourrait être autre qu’il est dans la mesure où il n’explique pas son être”. EN, p. 116.
!213

ele realizaria a síntese impossível do em-si e do para-si, permanecendo relação (de) si a si


consciente ao mesmo tempo em que coincidiria consigo mesmo.
Como vimos, é somente a partir da totalidade do Si que o para-si pode ser falta e, por
conseguinte, desejo. Por esta razão, a totalidade deve estar de alguma forma sempre presente
na estrutura do para-si para constituí-lo como tal. Nos termos sartrianos, a totalidade
assombra o para-si, indicando uma totalidade que ele é, mas que ao mesmo tempo não pode
ser. Ele é esta totalidade porque é pelo para-si que esta “vem ao mundo”, mas, ao mesmo
tempo, ele não pode sê-la, uma vez que ela indica a completude que ele ainda não é. Esta
estrutura de “ser e não ser” é exatamente a do para-si e a totalidade-fundo, por estar presente
ao para-si, assombrando-o, revelando-o como busca de si, deve ter um ser, não ao modo do
em-si contingente, mas um ser que existe de modo irreal; um tipo de presença-ausente que
Sartre caracterizou como sendo o valor. O para-si é o ser do valor, dado que somente por um
ser que se nadifica, constituindo-se como nada de ser, surge o valor como “le sens concret de
ce manque qui fait mon être présent”97. O valor é, portanto, a totalidade ou o faltado
(manqué). Somente tendo em vista a totalidade do valor o para-si, falta de ser, busca o faltante
que é aquilo que falta ao existente para ser si.
A estrutura do “ser dos possíveis” é apresentada em continuidade com estas
argumentações. A nadificação de si funda o para-si como liberdade, como abertura diante de
possibilidades para ser Si. O valor é o ser da totalidade que assombra o para-si como falta,
logo, desejo e busca de completude no mundo. Assim, o para-si se projeta diante das
possibilidades para realizar-se como Si, e os possíveis são justamente o faltante, isto é, aquilo
que, sendo alcançado pelo para-si, realizaria a síntese do faltado. Neste contexto, não pode
faltar ao para-si uma realidade que não seja dele; o possível faz parte da estrutura do para-si
na medida em que também é seu ser, no sentido de que o para-si é seus possíveis sob a forma
de ainda não ser. Este aspecto é relevante porque se o possível não fosse também para-si, ao
invés de o considerarmos como uma estrutura imediata, este estaria “fora” do ser para-si como
uma estrutura do mundo. Para evitar tal posição, impensável diante das outras considerações,
já que é pelo para-si que o nada vem ao mundo e também o valor, etc., Sartre afirma que “le
rapport transcendant originel du pour-soi esquisse perpétuellement comme un projet
d’identification du pour-soi à un pour-soi absent qu’il est et dont il manque”98. Isto é, não

97 EN, p. 131.
98 EN, p. 132.
!214

pode faltar ao “pedaço de lua” um “pedaço de pedra”, mas sim um ser da mesma natureza
daquele de quem ele é o complemento. Neste sentido, o faltante é o possível e o possível é
também para-si, ou ainda “être sa propre possibilité, c’est-à-dire se définir par elle, c’est se
définir par cette partie de soi-même qu’on n’est pas, c’est se définir comme échappement-à-
soi vers...”99.
Por fim, Sartre denomina de circuito de ipseidade a relação do para-si com o possível
que ele é e a totalidade de ser que é atravessada por este circuito de ipseidade é justamente o
mundo. Resta-nos finalmente abordar a última estrutura do circuito de ipseidade para
finalmente concluirmos com as análises das estruturas imediatas que caracterizam em seu
conjunto o para-si como projeto de ser no mundo.

e) A pessoa e o circuito de ipseidade: escolha e projeto fundamental.

As mudanças ocorridas a partir da inserção da facticidade e da temporalidade ek-


stática fizeram com que Sartre repensasse sua divisão anterior entre o plano da humanidade e
o plano transcendental impessoal, a qual se sustentava na concepção de consciência nua. No
interior do quadro instantaneísta da temporalidade de La Transcendance de l’Ego, o fluxo das
vivências conscientes era então compreendido a partir da “pureza” dos instantes e da
produção reflexiva de objetos psíquicos que ultrapassavam o instantâneo e adquiriam uma
espécie de permanência “impura”. A partir da introdução da facticidade e do abandono da
teoria do instante, o próprio modo de ser da consciência teve de ser repensado, assim como a
divisão de planos anterior. Em L’Être et le Néant, Sartre não fala apenas da consciência mas
do modo de ser da consciência como ser para-si e busca, através desta nova teorização
ontológica, escapar do instantaneísmo do cogito, erro que agora é atribuído a Descartes (e
também a Husserl)100, como mencionamos anteriormente. Para Sartre, o modo de ser temporal
do para-si permite resolver o problema do instantaneísmo e esta nova solução não ocorre sem
consequências para seu transcendentalismo anterior na medida em que não faz mais sentido
reforçar a cisão entre os planos transcendental e humano. Neste momento devemos
compreender o para-si como uma transcendência, um ser-no-mundo, cuja facticidade implica
a introdução da historialização como marca de pessoalidade do que até então era plano

99 EN, p. 137.
100 Cf. EN, p. 510.
!215

transcendental puro e “nu”. Em outras palavras, abstrair a dimensão fática do ser para-si,
como ocorria com a consciência nua/refúgio, acarreta na impossibilidade de se pensar a
consciência como um modo de ser-no-mundo ou, em outros termos, uma liberdade em
situação. Vejamos como Sartre procura resolver, a partir da noção de ipseidade, de um só
golpe o problema do instantaneísmo, do ser-no-mundo fático e da singularidade de cada para-
si.
Apesar das mudanças ocorridas desde La Transcendance de l’Ego até L’Être et le
Néant, Sartre permanece fiel ao seu argumento primeiro de que o Ego é um objeto
transcendente para a consciência reflexiva e não pode pertencer à esfera consciente pré-
reflexiva. No entanto, essa consciência é agora pensada como transcendência, isto é, como um
processo temporalizador que é projeto rumo aos possíveis e assombrado pelo valor, conforme
viemos de descrever. Este projeto envolve a estrutura de refletidade, não no sentido
tradicional da reflexão - de uma consciência que posiciona ela mesma - mas no sentido de um
reenvio a si não posicional que ocorre em dois graus distintos: 1) no nível pré-reflexivo, a
consciência é reenvio a si como jogo de reflexos; trata-se da estrutura da presença a si, que só
se dá a partir da dupla negação; 2) no plano do movimento que se dá pela relação entre o para-
si presente com o para-si possível. Este segundo movimento caracteriza o circuito de
ipseidade, que não pode ser compreendido no quadro teórico da temporalidade do instante
presente, no interior do qual um para-si instantâneo e presente se relacionaria com o para-si
possível que seria um instante presente que ainda não aconteceu. Ao contrário, o para-si
possível, como uma presença-ausente, estrutura o próprio para-si presente.
Como Sartre utiliza o termo “para-si” para caracterizar uma região ontológica,
algumas estruturas imediatas do para-si “sujeito” são também designadas de “para-si” por
possuírem as características de tal região (como a característica de translucidez da presença a
si, por exemplo, em contraponto à opacidade e à identidade do em-si). Em suma, o “sujeito”
para-si é caracterizado por todas as suas estruturas imediatas: presença a si, facticidade, valor,
possíveis e circuito de ipseidade. Sendo que a presença a si e os possíveis existem sob o modo
“para-si”, enquanto que a facticidade é um em-si nadificado e o valor, como vimos,
corresponde à totalidade “para-si-em-si”. Estas especificações demasiado técnicas nos
auxiliam, na realidade, a compreender que o para-si, como “modo de ser do sujeito”, deve ser
tomado como um processo temporal que envolve todas estas estruturas imediatas no quadro
!216

de um mesmo circuito: o circuito de ipseidade. É nesta configuração que Sartre se apoia para
demonstrar que sua ontologia escapa à instantaneidade do cogito - pois há um segundo
movimento de refletidade —, e que o para-si é um ser-no-mundo e não pode ser definido
como um sujeito fechado em si.
Diante disso, um detalhe se torna importante: a estrutura da ipseidade é estabelecida
nas análises do para-si presente com o para-si possível e não com o valor. Como vimos
anteriormente, o para-si é fuga de sua contingência original e busca de fundamento no futuro,
o que pode ser descrito em termos de busca de ser “para-si-em-si”, Deus ou causa sui. No
entanto, esta estrutura ontológica ainda é abstrata e não revela a singularidade de cada para-si
em sua busca de plenitude, já que ela indica apenas que todo para-si é esta busca. Sendo
assim, Sartre se utiliza, em um primeiro momento, da falta e do possível como maneiras de
singularizar cada projeto, como historialização presente nas próprias estruturas imediatas; e,
em um segundo momento, das noções de escolha original e projeto fundamental para dar
conta da situação empírica de uma liberdade em situação. Dito isso, abordaremos a
necessidade de singularização que se apresenta no circuito de ipseidade nestes dois
momentos: a singularização do modo de ser estrutural do para-si que, por sua vez, permite
compreender a singularização empírica. Não se trata, entretanto, como anteriormente, de uma
divisão entre os planos transcendental e humano, uma vez que a falta, os possíveis, a escolha e
o projeto originais dizem respeito ao modo de ser mesmo do para-si, como estruturas
ontológicas que indicam diferentes graus de singularização.
Nos Carnets de la drôle de guerre, Sartre revela que a experiência da guerra e a noção
de projeto em Heidegger o fizeram compreender a ipseidade ou a “totalidade do para-si”,
termos que se tornam equivalentes ao de pessoa (personne). “Je suis en train d’apprendre, au
fond, à être une personne”101, diz Sartre, sem explicar o termo para além da correspondência
à ipseidade. Mas em Baudelaire, o autor narra o momento da descoberta da existência pessoal
(existence personnelle) do poeta como uma “apparition fortuite et bouleversante de la
conscience de soi”102, em sentido próximo ao que S. de Beauvoir descreve em Pour une
morale de l’ambiguité como sendo a descoberta pelo adolescente de sua própria
subjetividade103. Descoberta da consciência de si, da subjetividade ou da pessoa significa aqui

101CDG, p. 616.
102B, p. 20.
103“c’est là sans doute la cause la plus profonde de la crise de l’adolescence : c’est que l’individu doit enfin
assumer sa subjectivité”. BEAUVOIR, S. Pour une morale de l’ambiguïté, p. 52.
!217

descoberta do para-si que como projeto de possibilidades: “Et comment définir en effet la
personne sinon comme libre rapport à soi?”104. A noção de pessoa é assim empregada a fim de
singularizar o que até então era campo transcendental impessoal. Sartre quer reforçar, a partir
de todas estas mudanças, o enraizamento da consciência no mundo possibilitado pela estrutura
da facticidade. Cada para-si viverá seu passado, seu corpo e sua constituição subjetiva a partir
dos outros, de maneira singular, o que na linguagem sartriana, a partir de agora, passa a ser
designado como maneira pessoal. Logo, a pessoalidade que antes era atribuída ao Ego e que
aparecia somente no plano da humanidade a partir da reflexão impura, é agora admitida na
própria dimensão pré-reflexiva da consciência, o que indica que a facticidade trouxe uma
mudança fundamental em termos de ancoragem histórica do para-si. Mesmo que L’Être et le
Néant seja uma obra normalmente considerada como carente de uma abordagem histórica
para a compreensão do “sujeito” como para-si, este ponto revela a intenção de Sartre de
historicizar o próprio campo transcendental. Além de sinônimo de pessoalidade, a ipseidade
em Sartre é também equivalente a historialização (historialisation). Mais precisamente, o
para-si historializa sua ipseidade: “le processus d’historialisation est indivisible. C’est lui qui
s’écoule, qui s’appelle du fond de l’avenir, qui s’alourdit du passé qu’il était, c’est lui qui
historialise son ipséité et nous savons qu’il est, sur le mode primaire ou irréfléchi, conscience
du monde et non de soi”105. O processo de metamorfose é assim um processo que historializa
a ipseidade. Isto significa que, sendo o circuito de ipseidade a forma projetiva da relação da
presença a si ao para-si possível um processo temporal que historializa o para-si, isto faz com
que necessariamente o para-si pertença à sua época histórica, ou seja, este pertencimento à
época histórica é dado pelas próprias estruturas imediatas do para-si. É assim que, enquanto
projeto historializante - “le projet que le Pour-soi fait de lui-même dans l’Histoire” - o para-si
é dotado de historicidade (historicité) enquanto “appartenance objective à une époque” 106.
O pertencimento histórico de cada para-si à sua época é dado pelo circuito de
ipseidade que consiste na relação do para-si com o possível que lhe falta e não em sua relação
com o valor, de modo que Sartre pensa a ipseidade em termos mais concretos e singulares ao

104EN, p. 140.
105EN, p. 194.
106VE p. 135. “Ainsi je m’historialise en me revendiquant comme conscience libre d’une époque en situation
dans cette époque, ayant son avenir dans l’avenir de l’époque et ne pouvant manifester que cette époque, ne
pouvant dépasser l’époque que si je l’assume et sachant que ce dépassement même de l’époque est d’époque et
contribue à la faire. Dès lors l’époque est mienne : en l’assumant, je m’assume; je ne me perçois de tâche que
dans cette époque et par rapport à elle”. CPM, p. 506.
!218

fazer o circuito na relação do para-si presente com o para-si possível ao invés de estabelecê-la
na relação mais geral entre o para-si e o valor. Se a singularidade é aqui a marca fundamental,
esta opção se justifica da seguinte maneira: enquanto que todo para-si é busca de ser “para-si-
em-si” (valor), estrutura mais abstrata do projeto de ser, cada projeto concreto é assombrado
por esta busca de maneira particular107. Isto porque, como vimos anteriormente (fazendo
abstração do teor substancialista de tal exemplo), não poderia faltar ao “pedaço de lua” um
“pedaço de pedra”, de modo que o possível que falta ao para-si é sempre meu possível 108,
único, singular, embora histórico, pertencente a uma época. Não somente, vimos que o
possível se dá através da falta, que é o aspecto motor do desejo de plenitude do para-si, e isto
na medida em que ele é nadificação do em-si que ele é e negação interna do em-si que ele não
é (negação interna da totalidade e de um em-si particular, como vimos com P. Verstraeten).
Disto decorre que a singularização histórica dada nas próprias estruturas imediatas é possível
graças a estrutura da facticidade e da consequente relação do para-si com seu possível,
assombrado pelo valor que, em conjunto, formam o circuito de ipseidade.
Tendo em vista estas considerações, podemos dizer que, através da estrutura da
facticidade, Sartre introduz justamente uma dimensão de historicidade no campo
transcendental que até então era desencarnado e impessoal. Veremos em seguida como esta
introdução pôde efetivamente se dar no quadro de L’Être et le Néant se, como diz Merleau-
Ponty, ser e nada se excluem e não “passam” um no outro, fazendo com que este
“enraizamento” seja superficialmente colocado. Porém, o que ressaltamos por enquanto é
apenas o aspecto de historização garantida pelo circuito de ipseidade. Nos termos que estamos
apresentando aqui, este gesto presente em L’Être et le Néant - passando pelos detalhes
conceituais de interiorização e exteriorização centrais na Critique de la raison dialectique que
não desenvolveremos aqui - se aproxima da ideia de subjetividade apresentada quase vinte
anos depois em uma conferência em Roma, onde Sartre diz que “la subjectivité, c’est vivre
son être, on vit ce qu’on est, et ce qu’on est dans une société, car nous ne connaissons pas
d’autre état de l’homme, c’est précisément un être social, un être social qui, dans le même

107 Apesar de Sartre afirmar que “Le soi est individuel, et c’est comme son achèvement individuel qu’il hante le
pour-soi” (EN, p. 127), acreditamos que é de fato o possível que aparece como estrutura mais concreta de
singularização do para-si, uma vez que ele é sempre particular e datado, enquanto que o valor é
“irrealizável” (Falaremos sobre a característica de “irrealizável” do valor mais adiante). Este aspecto fica mais
claro quando Sartre afirma que o o projeto de ser Deus é o sentido do desejo, mas o desejo nunca é constituído
por este sentido pelo fato de que ele representa sempre uma invenção particular de seus fins, e estes serão
sempre visados a partir de uma situação empírica. Cf. EN, p. 612.
108 EN, p. 141.
!219

temps, vit la société entière de son point de vue”109 . Como vimos, os Carnets demonstram a
mudança em direção à facticidade e historicidade e eles já nos apresentam afirmações como a
seguinte: “Il n’y a d’histoire que lorsqu’il y a assomption du passé et non pure action causale
de celui-ci”110. Isto significa que a ideia de projeto como assunção do passado é a
historialização mesma do para-si. Fenômeno cuja compressão será o objetivo do método de
psicanálise existencial esboçado já nos Carnets. Em outros termos, tal método visa a
apreender “comment l’homme historique s’historialise librement dans le cadre de certaines
situations111”. Aliás, neste primeiro esboço de psicanálise existencial, a atenção de Sartre ao
movimento de historialização é tão predominante a ponto de ele afirmar, numa breve análise
de Guillaume II, que o seu ser é um ser-para-reinar (être-pour régner), e que o próprio reino
“c’est lui”112.
As observações precedentes nos orientam em direção ao segundo nível de
singularização, já antecipado pela historialização, que é justamente a singularidade que se dá
como assunção da facticidade através das experiências empíricas, introduzindo as noções de
escolha original e projeto fundamental. No capítulo de L’Être et le Néant sobre a psicanálise
existencial, Sartre estabelece três graus na “arquitetura simbólica” do desejo de ser Si: 1) uma
estrutura abstrata et significante que é o desejo de ser em geral, válida para todo para-si e que
Sartre exprime como sendo “a realidade humana na pessoa”; 2) o nível de singularização
pessoal que é o desejo fundamental e que consiste na maneira singular escolhida por cada um
de viver a estrutura ontológica desejo de ser 3) os desejos empíricos em geral que pertencem a
uma camada simbólica do desejo fundamental, que será interrogada pela psicanálise
existencial113. Em outros termos, considerando esta divisão, podemos esclarecer que todo
para-si é um projeto de ser - estrutura ontológica abstrata - que se dá sob a forma de uma

109 QS, p. 119-20.


110 CDG, p. 590.
111 CDG, p. 590.
112 CDG, p. 595.
113 Cf. EN, p. 612. Esta divisão é o alvo da critica de Hyppolite no que diz respeito à relação entre

particularidade e generalidade em Sartre. Para o autor, Sartre estabelece um desejo ontológico de ser Si do para-
si em geral para em seguida pensar como esse projeto se “particulariza”, do mesmo modo que a substância
espinozista se exprime somente em seus modos particulares. Este “essencialismo” sartriano (bem peculiar, pois é
o de não ter nenhuma essência) leva Hyppolite a se perguntar se o que ocorre não é o contrário, isto é, se Sartre
não acaba por generalizar algo que seria da ordem de um projeto particular: “ce projet universel n’est-il lui-
même qu’un certain projet empirique, sinon singulier, du moins particulier ?”. É assim que o autor conclui que
“il est curieux de remarquer que, quand Sartre parle de Baudelaire ou de Jean Genet, il retrouve toujours les
mêmes thèmes directeurs, ceux qui expriment son ontologie propre”. A seu ver, Sartre é mais um moralista do
que um filósofo, pois ele se apoia sobre uma experiência subjetiva ao invés de realizar de fato uma ontologia.
HYPPOLITE, J. La psychanalyse existentielle chez Jean-Paul Sartre, p. 800; p. 799.
!220

estrutura significante de concretizações diferentes - projeto fundamental -, que é escolhido a


partir de experiências empíricas, que por sua vez simbolizam esta escolha fundamental.
Quando Sartre diz de Jean Genet: “Enfant sans mère, effet sans cause, Genet réalise dans la
révolte, dans l’orgueil, dans le malheur le superbe projet d’être cause de soi”114, ele busca
demonstrar que, a partir da situação fática da orfandade, Genet assume na revolta e no orgulho
- escolha singularizada - o desejo de ser em geral - de ser causa sui -, e ainda que seus desejos
empíricos, como os exemplos de desejo sexual retratados em Saint Genet demonstram,
simbolizam seu projeto fundamental.
É muito importante deixar claro o que significa o termo escolha neste contexto, já que
ele pode ser comumente compreendido como decisão de um sujeito voluntário. A escolha que
um para-si faz de si é pré-reflexiva e involuntária (mas não por isso inconsciente) e ela é o
fundamento mesmo de toda deliberação115 . Manter a escolha no nível consciente significa,
para Sartre, que há uma relação de sentido que, embora não seja conhecida reflexivamente, se
manifesta em algum nível para o para-si, em virtude do “saber de si” implícito pré-reflexivo
que faz com que tudo aquilo que é vivido por ele adquira um sentido de acordo com a
totalidade do projeto. No Esquisse, por exemplo, Sartre indica que devemos considerar no
mesmo plano consciente “le fait, la signification, et le signifié” 116, o que implica o fato de que
a significação faz parte da estrutura da consciência e não se encontra em uma esfera
inconsciente à parte. Voltaremos ao assunto do inconsciente. No que concerne à noção de
escolha pré-reflexiva, devemos entendê-la a partir da condição da contingência do para-si que
é o terreno mesmo de sua liberdade. Isto quer dizer que na medida em que é necessário que o
para-si se escolha, mas não é necessário que ele se escolha de tal ou tal modo, toda
concretização, toda singularização, toda manifestação, não sendo um efeito de uma causa, não
sendo determinada por caracteres a priori, não sendo uma manifestação de uma natureza, é
uma escolha. “Le choix, dit Sartre, […] précisément parce qu’il est choix, rend compte de sa
contingence originelle, car la contingence du choix est l’envers de sa liberté”117 . Se o para-si é
liberdade, cada ato é criação de si, é uma escolha. Nos Cahiers pour une morale, Sartre
identifica criação e escolha original, a qual ganha a dimensão de “operador de criação”: a

114 SG, p. 85.


115 Cf. EN, p. 506.
116 ETE, p. 36.
117 EN, p. 617.
!221

escolha é a “realidade humana” se criando como ser-no-mundo118. Se o para-si é projeto


temporalizador e este projeto só pode ser um fazer-se, este fazer-se é sinônimo de escolher-se,
de modo que não há um para-si que escolhe, mas o seu próprio modo de ser é escolha: “Ainsi,
liberté, choix, néantisation, temporalisation, ne font qu’une seule et même chose”119, e ainda:
“lorsque je dit que l’homme est un projet qui décide de lui-même, ce que je veux dire, c’est
précisément que la conscience telle que nous l’avons définie, n’est jamais rien avant
d’exister”120. Há assim uma equivalência entre existir como para-si e escolher-se, pois cada
manifestação é uma criação singular de um projeto de ser e compreender a escolha é sempre
compreendê-la a partir da condição de contingência, ou seja, cada escolha é criação a partir da
não necessidade de ser de tal ou tal maneira. É por isso que, para Hyppolite, neste caso o
termo escolha convém, já que ele indica que “d’une part, j’éprouve dans mon être-au-monde
la marge d’autres possibilités et que, d’autre part, je suis conscient de ce prétendu destin
comme d’un irréductible qui est mien et non comme d’une nature qui me serait conférée”121.
Se a facticidade é justamente a impossibilidade do para-si de se desprender de sua
contingência original, segue-se que toda escolha é finita. Em outras palavras, “tout choix est
choix de la finitude. Ainsi la liberté ne saurait-elle être vraiment libre qu’en constituant la
facticité comme sa propre restriction” 122. Sartre estabelece a finitude como “condition de ma
liberté”123, como um estrutura ontológica do para-si ligada à escolha, ao fazer-se, e não como
uma estrutura como a do ser-para-morte heideggeriano:

la réalité-humaine demeurerait finie, même si elle était immortelle, parce


qu’elle se fait finie en se choisissant humaine. Etre fini, en effet, c’est se
choisir, c’est-à-dire se faire annoncer ce qu’on est en se projetant vers un
possible, à l’exclusion des autres. L’acte même de liberté est donc assomption
et création de finitude. Si je me fais, je me fais fini et, de ce fait, ma vie est
unique124.

Existir é, portanto, escolher-se. Através da noção de projeto fundamental, Sartre


estabelece ainda uma hierarquia entre as escolhas, assim como há uma hierarquia entre os
graus da “arquitetura simbólica” do desejo. Para sermos mais precisos, devemos observar que
se o desejo é movimento intencional, cada ato do para-si é concomitantemente desejo e

118 Cf. CPM, p. 134.


119 EN, p. 510.
120 CSCS-d, p. 81.
121 HYPPOLITE, J. La psychanalyse existentielle chez Jean-Paul Sartre, p. 796.
122 EN, p. 540.
123 EN, p. 368.
124 EN, p. 591.
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escolha. As noções de escolha original e projeto fundamental vêm introduzir neste


movimento livre e incessante do processo historializador de metamorfose uma unidade de
sentido.
Desde o Esquisse, Sartre tenta pensar a “realidade humana” 125 como uma totalidade, e
é este o sentido que ele entrevê na noção de ser-no-mundo de Heidegger. Para Sartre, o modo
de existir como tendo que “assumir” seu próprio ser implica que esta assunção seja sempre
global, como uma metamorfose do sujeito e do próprio mundo126. Por outro lado, como
vimos, esta assunção de ser “a cada momento minha” - e o que constituiria esta unidade do
“meu” - não pode ser uma entidade egológica, uma personalidade ou um caráter. A
singularidade do “meu” é dada pelo circuito de ipseidade sob a forma de um projeto
fundamental ou original. O projeto fundamental não é uma unidade de uma substância que
permanece a mesma e cujas alterações são acidentes, mas é uma unidade de sentido que se
refaz a cada momento no processo de metamorfose. Se o desejo de ser se realiza sempre como
maneira de ser, o projeto fundamental consiste exatamente nesta maneira, no estilo de cada
um de realizar o desejo de ser. Em suma, o projeto fundamental ou original consiste numa
unidade e “cette unité - dont la substance n’était qu’une caricature - […] doit être unité de
responsabilité, unité aimable ou haïssable, blâmable ou louable, bref personelle. Cette unité
qui est l’être de l’homme considéré est libre unification. Et l’unification ne saurait venir après
une diversité qu’elle unifie. Mais être […] c’est s’unifier dans le monde”127.
Se em La Transcendance de l’Ego a unidade da consciência já era garantida pela
própria estrutura intencional, em L’Être et le Néant Sartre utiliza-se da ideia de projeto
fundamental para pensar uma unidade de sentido que envolva a história passada de cada para-
si, visto que agora o passado é compreendido pela estrutura imediata da facticidade, logo, ele
é constitutivo do modo de ser do para-si. Isto significa que a escolha é assunção das três ek-

125 Termo emprestado da tradução de Henri Corbin do Dasein heideggeriano. Tradução que, para Derrida, é uma
“monstruosité aux conséquence illimitées que les quatre premiers paragraphes de Sein und Zeit avaient
prévenue”. DERRIDA, J. L’écriture et la différence. Paris: Seuil, 1979, p. 405, n. 2. Isto porque tal tradução
atribui ao Dasein um caráter humanista que, para Heidegger, pertence às concepções metafísicas do sujeito que
ele busca ultrapassar. Segundo Derrida, é significativo que Sartre adote a tradução de Corbin na medida em que
seu existencialismo é ainda um humanismo: “Malgré cette neutralisation prétendue des présuppositions
métaphysiques [par le concept de réalité-humaine], il faut bien reconnaître que l’unité de l’homme n’est pas en
elle-même interrogé. Non seulement l’existentialisme est un humanisme, mais le sol et l’horizon de ce que Sartre
appelle alors son “ontologie phénoménologique” […] restent l’unité de la réalité-humaine. En tant qu’elle décrit
les structures de la réalité-humaine, l’ontologie phénoménologique est une anthropologie philosophique”. Id. Les
fins de l’homme, p. 136-7.
126 No Esquisse, por exemplo, a conduta emotiva define o modo de aparição do mundo como “mágico” . Cf.

ETE, p. 62.
127 EN, p. 606.
!223

stases temporais - passado, presente e futuro a cada momento. Por isso cada escolha presente
se dá como ligada por uma estrutura de significação a seu passado e seu futuro singular, dado
que “un choix qui serait choix à partir de rien, choix contre rien ne serait choix de rien et
s’anéantirait comme choix”128. Daí a importância cada vez maior que Sartre atribui à infância,
como momento primeiro onde ocorre uma escolha de si que será denominada de escolha
original. Esta concepção aproxima Sartre da psicanálise. Ele chega mesmo a comparar a
escolha original com a noção de “complexo”, no sentido de que se trata de um “centre de
références d’une infinité de significations polyvalentes”129, neste caso sem ser da ordem do
inconsciente. Assim, após L’Être et le Néant, Sartre realiza seus trabalhos de psicanálise
existencial mostrando como o momento da escolha original é revivido em diferentes níveis de
significação ao logo da vida de um sujeito, como o movimento de uma espiral: “une vie se
déroule en spirales; elle repasse toujours par les mêmes points mais à des niveaux différents
d’intégration et de complexité”130. A escolha original consiste assim numa escolha da maneira
de ser o ser que se é. Mas esta escolha não pode ser compreendida por uma perspectiva
instantaneísta da temporalidade, pois ela só se dá como projeto fundamental que é processo
temporal. No entanto, ela parece ser um momento decisivo de determinação de todos os níveis
de complexidade de significação que o projeto não cessa de reviver. É o que podemos
observar quando Sartre diz, por exemplo, que:

Adopter une attitude mentale, c’est se donner une prison sans barreaux. Il
semble à tout moment qu’on puisse s’en évader et, par le fait, il n’est pas de
mur ni de grille qui puissent empêcher la pensée d’aller aussi loin qu’elle le
veut. Simplement, à l’instant précis où cette pensée croit dépasser l’attitude
choisie et déboucher dans le monde par une voie nouvelle, avec un point de
vue neuf comportant de nouveaux engagements, elle s’aperçoit qu’elle est
revenue à son point de départ131 .

Sendo assim, a noção de escolha fundamental parece de alguma forma determinar a


“livre unificação” que é o projeto, de modo que resta compreender a pertinência deste aspecto
no contexto antideterminista sartriano. Com efeito, Sartre fala em termos de “continuité
ontologique”132 do processo de metamorfose, mas somente na medida em que este processo

128 EN, p. 525.


129 EN, p. 615.
130 QM, p. 71. Sartre mantém esta ideia até seu último trabalho sobre Flaubert. Ao dizer que a escolha original de

Flaubert é a de escolher a irrealidade, ele retoma a imagem da espiral: “Mais ce que nous devons nous demander
avant toute chose - puisque cet élément demeure dans chaque révolution de la spirale et qu’on le trouve dès la
première -, c’est que signifie le choix de l’irréel”. IF.I, p. 660.
131 SG, p. 85.
132 EN, p. 512.
!224

seja incessante retomada da escolha fundamental de ser e que esta retomada seja livre. A
escolha original não pode assim determinar aquilo que é incessantemente retomado e
escolhido no movimento em espiral. Do mesmo modo, não se trata de uma escolha
intemporal, ou que se dá a partir do nada, como a “escolha do caráter inteligível” em Kant: a
escolha deve ser sempre no-mundo e em-situação133. Daí surge a dificuldade em delimitar os
tipos de relações que podem haver entre a escolha original e as escolhas particulares, entre o
projeto original e os projetos particulares, tendo em vista que entre eles há uma espécie de
hierarquia. A saída de Sartre é a de dizer que é o para-si mesmo que escolhe a hierarquia de
significações e que, para compreender o tipo de relação entre os diferentes níveis de
hierarquização, deve-se pensar como fazem os gestaltistas: “[ils] nous ont montré que la
prégnance des formes totales n’exclut pas la variabilité de certaines structures secondaires” 134.
Este princípio é utilizado como analogia para se estabelecer a relação entre “possíveis
secundários” (leia-se também “escolhas secundárias”) e projeto fundamental, no intuito de
esclarecer que estes primeiros não são dedutíveis do segundo, mas são caracterizados a partir
de uma ligação entre totalidade e estrutura parcial. Assim, os possíveis secundários são em
certa medida contingentes - eles poderiam ser outros -, e em certa medida necessários: eles
indicam a totalidade como forma a partir da qual eles são compreendidos. Do mesmo modo,
os projetos parciais do para-si não são determinados pelo projeto global: “ils doivent être eux-
mêmes des choix et une certaine marge de contingence, d’imprévisibilité et d’absurde est
laissée à chacun d’eux, encore que chaque projet, en tant qu’il se projette, étant spécification
du projet global à l’occasion d’éléments particuliers de la situation, se comprend toujours par
rapport à la totalité de mon être-dans-le-monde”135.
Por fim, a imprevisibilidade compõe a continuidade ontológica do projeto fundamental
a partir de uma liberdade que corrói a si mesma136; porque cada escolha, por ser precisamente
uma escolha, designa outras escolhas como possíveis. O para-si vive esta absurdidade da
escolha como experiência de sua contingência, pelo sentimento que Sartre nomeia de
injustificabilidade. Assim, cada escolha é um absoluto, mas este absoluto é “frágil”, pois há
sempre a possibilidade de escolher-se outro, de tornar-se outro. O projeto fundamental é então
sempre ameaçado pelo acontecimento do que Sartre denomina neste contexto do instante: um

133 EN, p. 525.


134 EN, p. 514.
135 EN, p. 526. (grifo nosso)
136 “ma liberté ronge ma liberté” EN, p. 525.
!225

acontecimento que provoca “l’apparition d’un nouveau projet sur l’effondrement de


l’ancien137”. Ou seja, mesmo que haja continuidade ontológica do projeto fundamental, a livre
hierarquização dos possíveis em relação à escolha fundamental de si, juntamente com o
projeto, podem, num instante, desabar. Em outras palavras, a livre retomada em espiral da
escolha fundamental é desde sempre “hanté par le spectre de l’instant”138 , isto é, ameaçada
pela possibilidade de uma brusca metamorfose. Porém, contrariamente ao instantaneísmo de
La Transcendance de l’Ego, o instante, neste contexto, enquanto aparição de um novo projeto
de ser, não confere ao para-si uma “existência nova”: “le pour-soi ne peut se conférer une
existence neuve : dès lors qu’il repousse le projet périmé dans le passé, il a à être ce projet
sous la forme du « était » - cela signifie que ce projet périmé appartient désormais à sa
situation”139.
Esta relação ao passado e, portanto, às escolhas passadas, só pode ser compreendida a
partir do momento em que esclarecermos a especificidade relação do para-si presente com o
passado para além de um quadro do tipo “causa e efeito”. Uma relação de assombramento que
será analisada pela perspectiva da hantologie. 


137 EN, p. 525.


138 EN, p. 512.
139 EN, p. 525.
Capítulo V
Os dualismos residuais

§1. Conclusão do primeiro nível de contestação: oposição à crítica de Merleau-Ponty.

Facticidade e passividade: a liberdade como uma paixão.

Após todo este percurso, podemos finalmente concluir que, ao estabelecer a


equivalência entre para-si e nada e em-si e ser, Merleau-Ponty negligencia a facticidade do
modo de ser para-si - o fato de ser nadificação de ser -, razão pela qual ele não compreende a
mudança que ocorre no pensamento sartriano de uma temporalidade instantaneísta para uma
temporalidade ek-stática. Por diversas vezes no texto de Merleau-Ponty, como vimos,
encontramos a referência ao para-si como sinônimo de “puro nada” e, consequentemente, a
liberdade sartriana, sendo precisamente esta pura negação, consistiria em uma “liberdade sem
raízes”, desencarnada e desprendida de seu passado, criação ex nihilo. Comentamos
anteriormente que adotamos a tese de Vincent de Coorebyter de que esta crítica de Merleau-
Ponty vale para a consciência nua dos primeiros trabalhos sartrianos escritos 1934, mas não se
sustenta com relação a L’Être et le Néant1 e por isso nos concentramos em demonstrar esta
mudança. Além disso, De Coorebyter afirma que Merleau-Ponty procurou encontrar
ilusoriamente, no primeiro e quinto parágrafo do capítulo “A transcendência” de L’Être et le
Néant, o mesmo quadro teórico dos trabalhos iniciais de Sartre, de modo a interpretar, a partir
deste ponto localizado, o conjunto da obra2 . Devemos detalhar este ponto, pois ele é de
extrema importância para nossa investigação. De fato, é neste capítulo sobre a transcendência
que Merleau-Ponty se concentra para realizar sua crítica em Le Visible et l’Invisible3, de onde

1Cf. DE COOREBYTER, V. Sartre face à la phénoménologie, p. 98.


2Cf. Ibid., p. 98-9.
3 Observamos anteriormente que, em Les Aventures de la dialectique, Merleau-Ponty não cita nenhuma vez
L’Être et le Néant. Por outro lado, na Phénoménologie de la perception, ele cita outras partes da ontologia
sartriana, principalmente sobre a liberdade e suas motivações.
!227

ele retira, com exceção de uma pequena citação da parte “concepção dialética do nada”,
praticamente todas as citações de L’Être et le Néant4. Disto decorre que esta estratégia de
leitura merleau-pontyana é problemática e entenderemos brevemente o porquê. Em primeiro
lugar, é certo que no capítulo em questão de L’Être et le Néant, há afirmações que a princípio
fornecem provas textuais à interpretação de Merleau-Ponty. Como quando Sartre diz coisas do
tipo: “En un mot, le terme-origine de la négation interne, c’est l’en-soi, la chose qui est là ; et
en dehors d’elle il n’y a rien, sinon un vide, un néant qui ne se distingue de la chose que par
une pure négation dont cette chose fournit le contenu même”5 ; “le pour-soi n’est rien d'autre
que le vide où se détache l’en-soi”6; “En ce sens tout dévoilement d’un caractère positif de
l’être est la contrepartie d’une détermination ontologique du pour-soi dans son être comme
négativité pure”7. No entanto, tais afirmações dizem respeito a um tipo de ser que Sartre
denomina de conhecimento (connaissance), que é caracterizado como a contrapartida positiva
da negação interna do para-si ou como aquilo que podemos chamar de intuição. Sartre
demonstra assim, pelas análises do conhecimento, que a intencionalidade possui um aspecto
positivo - tematização do em-si que a consciência não é - e negativo - negação interna que faz
a consciência surgir como não sendo este em-si que ela não é. Este duplo aspecto do
conhecimento encontra-se na base das análises de Merleau-Ponty sobre a teoria da
negatividade pura em Sartre, uma vez que ele põe em evidência o duplo movimento de
intuição do ser e de negação interna (denominado neste contexto de negintuição). Segue-se
que, como Merleau-Ponty negligencia ou mesmo abstrai a facticidade do para-si, ele toma
para-si como sinônimo de conhecimento, o que é um reducionismo. Em outros termos, como
Merleau-Ponty não apreende o caráter duplo da negação que faz surgir o para-si8, ele
confunde este modo de ser com a especificidade do “tipo de ser” do conhecimento, que é o
âmbito puramente negativo da presença. Contudo, como marcamos em vários momentos, a

4 As citações encontram-se nas seguintes páginas da edição que utilizamos de L’Être et le Néant: p. 219; p.
234-235; p. 252; p. 254-255. (Cf. VI, p. 79; p. 80-1) A única referência que aponta para outro capítulo da
ontologia sartriana consiste numa definição do ser em-si como “plénitude absolue et entière positivité”, na p. 49
de EN. (Cf. VI, p. 77).
5 EN, p. 212-213. (grifo nosso)
6 EN, p. 213. (grifo nosso)
7 EN, p. 215. (grifo nosso). Não somente neste capítulo, como podemos observar, por exemplo, nesta frase

problemática que encontramos no capítulo sobre a temporalidade “Le pour-soi n’est rien de plus que ce rien
translucide qui est négation de la chose perçue”. EN, p. 176. No capítulo sobre a transcendência, o que ocorre é
que este aspecto aparece ressaltado e frequente, visto que nele Sartre descreve o modo de ser do conhecimento.
8 De Coorebyter diz que Merleau-Ponty passa ao largo do conceito de “negação interna”. DE COOREBYTER,

V. Sartre face à la phénoménologie, p. 99. A nosso ver, o que Merleau-Ponty não considera não é propriamente a
negação interna, mas o caráter “duplo” da negação, isto é, ele considera somente que o para-si não é o em-si que
ele não é e não considera que ele não é o em-si que ele é.
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presença é apenas uma das estruturas ek-státicas do para-si, que não pode ser concebida
separadamente das outras, senão para fins de análise. Voltaremos ao assunto com mais
detalhes posteriormente, mas, no intuito de concluirmos este primeiro nível de contestação,
devemos desde já afirmar que, ao confundir a estrutura da presença com o modo geral do
para-si, Merleau-Ponty reduz seu modo de ser e se baseia em um “tipo de ser” específico para
desenvolver sua crítica a uma concepção de negatividade pura em Sartre. É por esta razão que
ele pôde definir o para-si como “puro nada”, enquanto que em L’Être et le Néant este modo
de ser é inúmeras vezes descrito pela fórmula é o que não é e não é o que é, e não
simplesmente: não é. Em suma, esta estratégia de leitura faz com que Merleau-Ponty
generalize os resultados de sua argumentação sobre o conhecimento para a ontologia sartriana
como um todo, enquanto que, se compreendermos detalhadamente a negação e as estruturas
imediatas do para-si, não é possível pensá-lo como um puro nada. Isto posto, a maior parte
das argumentações merleau-pontyanas sobre L’Être et le Néant não procede, na medida em
que elas se sustentam na concepção do para-si como “puro nada”. Dizemos “a maior parte”
porque ele parece ter razão em alguns pontos, que serão explicitados adiante como sendo os
dualismos que permanecem valendo, mesmo após este primeiro nível de contestação. No
entanto, é importante considerar minimamente as consequências desta concepção do para-si
como “puro nada” já que ela é a base para se pensar a filosofia da negatividade sartriana como
um pensamento de sobrevoo, não engajado e que não encontra aderência ao mundo. A
liberdade considerada “sem raízes” seria aquela cindida do seu passado, criação ex nihilo de si
mesma e dos sentidos que ela projeta no em-si por seu poder de Sinngebung, poder de
ontogênese. Esta concepção só faria sentido se Sartre permanecesse vítima da ilusão de uma
temporalidade do instante, pois a temporalidade ek-stática do para-si implica a
indissociabilidade das ek-stases passado, presente e futuro. Assim, o sujeito sartriano só seria
um “sujeito puro” da “ação pura” - que apenas sobrevoa os fatos como “événement-chose” -
caso ele não fosse considerado como projeto temporalisador ek-stático.
Como Sartre pensa a noção de “passividade” no sentido de uma relação de “causa e
efeito” - o que não é o caso em Merleau-Ponty, como comentamos anteriormente -, o fato dele
não admitir a consciência como passiva levou à interpretação de que o sujeito sartriano é um
“legislador soberano”, desprendido de sua dimensão fática. Mas se a facticidade é uma
estrutura imediata do para-si, não é possível fazer abstração de tudo aquilo que o para-si é,
!229

ou melhor, é nadificando seu ser. Em outras palavras, o fato de Sartre não admitir que algo
incida sobre a consciência em termos de atividade e passividade, não significa que a
facticidade do para-si não atue de algum modo nesta tensão do modo de ser para-si que
consiste em ser o que não se é e não ser o que se é. Acentuar a estrutura da facticidade é ainda
tentar compreender em que medida o para-si pode ser ao mesmo tempo uma liberdade que é,
por exemplo, uma paixão, ou seja, qual o caráter problemático de se pensar uma paixão
livre?9 Isto porque, do grego pathos - “o sofrimento, affecção, paixão”10, este termo remete à
ideia de passividade, que é incompatível com a pura espontaneidade de uma liberdade. Se a
obra de Sartre é aquela que busca descrever “la passion de la conscience incarnée”, como
disse Beauvoir11, que é a história de uma “passion inutile”12 - busca fracassada de
autofundamento -, falar da existência livre em termos de paixão aponta para a relevância da
facticidade como condenação da liberdade à fuga da contingência: “Toute réalité-humaine est
une passion, en ce qu’elle projette de se perdre pour fonder l’être et pour constituer du même
coup l’en-soi qui échappe à la contingence en étant son propre fondement, l’En causa sui que
les religions nomment Dieu”13. Neste projeto de autofundação o para-si “se perde” para que
“haja um mundo”: “Mais notre surgissement est une passion en ce sens que nous nous
perdons dans la néantisation pour qu’un monde existe”14. Projeto, por sua vez, condenado ao
fracasso: “c’est en vain que j’aurai tenté de me perdre dans l’objectif : ma passion n’aura servi
de rien: l’autre m’a renvoyé - soit par lui-même, soit par les autres - à mon injustifiable
subjectivité”15. A paixão é dramática pois se identifica com a condenação da liberdade:
“condamné à être libre”16. “Toute passion est malheureuse, dit Ricœur, […] le rien projeté
entraîne l’âme dans une poursuite sans fin et inaugure le « mauvais infinit » de la passion” 17.
A paixão introduz um infinito, da perseguição condenada ao fracasso, uma desmedida que se
identifica com o “sofrimento”, neste caso o drama do para-si de ser perpétua busca de ser seu
próprio fundamento, ou totalidade “em-si-para-si”: “La réalité-humaine est souffrante dans
son être, parce qu’elle surgit à l’être comme perpétuellement hantée par une totalité qu’elle est

9 CORMANN, G. Passion et liberté, p. 93.


10 Tradução de Henrique Muracho no Língua grega: visão semântica, Lógica, Orgânica e Funcional. V.II Práti-
ca. Petrópolis: Vozes, 2001.
11 BEAUVOIR, S. de. Merleau-Ponty et le pseudo-sartrisme, p. 207.
12 EN, p. 662.
13 Ibid.
14 EN, p. 505.
15 EN, p. 417.
16 EN, p. 598.
17 RICŒUR, P. Philosophie de la volonté I, p. 44.
!230

sans pouvoir l’être, puisque justement elle ne pourrait atteindre l’en-soi sans se perdre comme
pour-soi”18. Sartre une assim liberdade e paixão no sentido de que o para-si é uma aventura -
“mon être-aventurier, en tant que j’ai à être l'événement qui m’arrive du dehors” 19-, um
projeto de autofundamento que ele vive sem poder dirigir, sem domínio de si (maîtrise sur
soi), mas que deve ser responsável por tudo que lhe acontece pelo simples fato de que existir é
ser o fundamento da maneira de não ser o seu próprio fundamento: “tout ce qui m’arrive est
mien”20; “tout ce qui m’arrive a un double caractère : d’une part cela m’est donné, en vertu de
ma facticité et de ma gratuité […] et d’autre part j’en suis responsable puisque je me motive
moi-même à le découvrir […]. En conséquence je n’ai aucun droit à ce que cela ne m’arrive
point. Par exemple, pour la guerre”21. Isto significa que Sartre não associa paixão e vontade,
nem a um determinismo psicológico; a paixão se identifica ao projeto de ser do para-si22. A
facticidade do para-si evidencia justamente que o para-si nadifica o em-si que ele é de modo a
instaurar o fundamento da maneira de ser do ser que ele é, do qual não pode ser o
fundamento, de modo que a “réalité-humaine demeure prisonnière de son injustifiable facticit,
avec elle-même à l’horizon de sa quête, partout”23. Na “Introdução”, Sartre afirma que as
ideias de passividade e relatividade só podem se referir a maneiras de ser e não ao próprio ser,
ao definir a passividade do seguinte modo: “je suis passif lorsque je reçois une modification
dont je ne suis pas l’origine - c’est-à-dire ni le fondement ni le créateur. Ainsi mon être
supporte-t-il une manière d’être dont il n’est pas la source” 24. Ora, a paixão do para-si, na
medida em que instaura uma condenação de ter de ser tudo que lhe acontece (arrive) não
atesta certa dimensão de passividade? Além disso, quando Sartre descreve a dimensão ser-
para-outro da facticidade, não estaria ele de algum modo apontando para uma dimensão que
faz com que o para-si seja de fora (dehors) de modo que ele “[reçoit] une modification dont
[il n’est] pas l’origine - c’est-à-dire ni le fondement ni le créateur”? Não estaríamos aqui
justamente no âmbito da escravidão, da condenação à liberdade? No sentido em que

je suis esclave dans la mesure où je suis dépendant dans mon être au sein
d’une liberté qui n’est pas la mienne et qui est la condition même de mon
être. En tant que je suis objet de valeurs qui viennent me qualifier sans que je

18 EN, p. 126.
19 S.IX, p. 187.
20 EN, p. 598.
21 CDG, p. 399.
22 Cf. EN, p. 485-7.
23 CDG, p. 296.
24 EN, p. 24 (grifo nosso)
!231

puisse agir sur cette qualification, ni même la connaître, je suis en


esclavage25.

Sartre não explora esta ligação entre paixão e escravidão, nem mesmo de que modo
esta vinculação admitiria um aspecto de passividade. L. Husson diz que a facticidade, sendo
um conceito provisório em Sartre, assim como em Heidegger, é retomada nos Cahiers pour
une morale justamente pelo viés da passividade, o que é questionável26 . O autor leva em conta
uma passagem onde Sartre afirma que “il y a un point de vue de l’en-soi sur le pour-soi : c’est
la passivité” e Sartre complementa ainda que “la passivité est très exactement ma liaison avec
l’En-soi; ma liaison ontologique e pratique à la fois”27, logo, podendo ser interpretada em
termos de facticidade. Mas Sartre parece manter ainda nestas anotações a ideia de passividade
de L’Être et le Néant enquanto maneira de ser que vem ao mundo pelo para-si quando diz que
“je suis celui par qui passivité et activité viennent au monde pour l’En-soi et pour moi-
même”28. Se atentarmos precisamente para esta passagem de L’Être et le Néant - “la passivité
ne saurait concerner l’être même de l’existant passif : elle est une relation d’un être à un autre
être et non d’un être à un néant” 29 - vemos que aqui a equivalência entre passividade e
facticidade não se sustenta, dado que esta última não é uma relação de um ser a outro ser. De
todo modo, vimos que há uma dimensão do para-si como ser-no-mundo que Sartre denomina
de ser-no-meio-do-mundo (être-au-milieu-du-monde), que diz respeito justamente ao modo
objetivo que o para-si é enquanto é ao mesmo tempo nadificação de seu ser. Este aspecto diz

25 EN, p. 307.
26 HUSSON, L. De la contingence à la situation: dimensions et configurations de la facticité dans L’Être et le
Néant, p. 165. Husson observa em nota que o termo “facticidade” não aparece no index dos Cahiers pour une
morale e afirma que mesmo que Sartre retome a ideia de um em-si nadificado, ele o faz sem referência ao termo.
Ibid. p. 174; n. 57. Apesar de Husson citar três ocorrências do termo “facticidade” ao longo dos Cahiers (p.
123-4; p. 167), acreditamos que ele se restringiu a poucas páginas para tal afirmação, visto que podemos
encontrar o termo “facticidade” ao longo desta obra de acordo ainda com as análises adquiridas em L’Être et le
Néant (Além das páginas citadas pelo autor, podemos acrescentar: p. 102; p. 106; p.134; p. 144; p. 159; p.
182-184; p. 187; p. 193; p. 212; p. 217-219; p. 224-225; p. 235; p. 238; p. 240; p. 268; p. 272; p. 296; p. 298; p.
300…entre outras). Além disso, o autor afirma que a facticidade é um conceito transitório que “disparaîtra de la
plume de Sartre après L’être et le néant (pour être repris - au sein de Cahiers pour une morale - dans les notions
de contingence et de passivité)”. É verdade que tal conceito se encontra praticamente ausente da Critique de la
raison dialectique Tome I. Mas vale notar que no Tome II da Critique ele é mencionado como sendo ainda válido
e operante, conforme pode-se observar neste trecho: “Mais ce n’est pas tout, et le caractère essentiel de la
facticité, je l’ai montré ailleurs [dans L’Être et le Néant], c’est, pour chaque individu, la nécessité de sa
contingence : par là il faut entendre que chacun d’eux n’est pas en situation de fonder sa propre existence,
qu’elle lui échappe dans la mesure même où il l’ek-siste, qu’elle se caractérise enfin par un engagement singulier
dans le monde, qui exclut a priori tout survol : il n’y a d’individu que par cette finitude, que par la singularité de
ce point de vue; et tous les dépassements ultérieurs, loin de supprimer les facticités originelles, les conservent en
eux comme l’exigence même qui qualifie l’action et préesquisse le contenu des changements”. CRD.II, p. 214.
27 CPM, p. 57.
28 Ibid.
29 EN, p. 25.
!232

respeito à dimensão do para-si enquanto um ser do mundo, que sofre tudo o que lhe acontece
de modo a ultrapassar esta mesma passividade por sua paixão, o que se traduz na escravidão.
Para Ricœur, a paixão indica do mesmo modo a escravidão de uma liberdade por um viés não
determinista: “Le principe des passions réside dans un certain esclavage que l’âme se donne à
elle-même : l’âme se lie elle-même. Cet esclavage n’a rien à voir avec le déterminisme qui
n’est que la règle de nécessité qui lie des objets pour une conscience théorique. L’esclavage
de passions est quelque chose que arrive à un sujet, c’est-à-dire à une liberté”30. Pelo fato de
não poder admitir que algo de fora determine mesmo a escravidão da liberdade, Sartre não
adota uma perspectiva da passividade no sentido determinista, embora descreva toda uma
dimensão sofrida do para-si, como algo que lhe acontece e da qual ele não é o fundamento. A
saída contra o determinismo da passividade encontra-se no fato de que o para-si sempre vai
além daquilo que ele é, ou seja, tudo que o para-si sofre é ao mesmo tempo assumido: “Ce
que signifie : « Nous sommes condamnés à être libres. » On ne l’a jamais bien compris. C’est
pourtant la base de ma morale. Partons du fait que l’homme est-dans-le-monde. C’est-à-dire
en même temps une facticité investie et un projet-dépassement. En tant que projet il assume
pour la dépasser sa situation”31. A paixão é então a assunção daquilo que o para-si sofre, de
modo que não podemos anular sua dimensão sofrida: “venir au monde comme liberté en face
des autres, c’est venir au monde comme aliénable. Si se vouloir libre, c’est choisir d’être dans
ce monde-ci en face des autres, celui qui se veut tel voudra aussi la passion de sa liberté” 32.
Finalmente, nos Cahiers pour une morale essa assunção é descrita como uma reflexividade
que se revela como um consentimento do para-si em “ser homem”: “Par la réflexivité, je
consens à être homme c’est-à-dire à m’engager dans une aventure qui a les plus fortes chances
de finir mal, je transforme ma contingence en Passion”33.
Quais seriam então estas dimensões? Isto é, a dimensão sofrida do para-si e a que ele
tem de ser, que faz dele uma paixão e um projeto fundamental? A nosso ver, a “teoria da
facticidade” consiste justamente em evidenciar esta dimensão que o para-si tem de ser sem ser
seu próprio fundamento; uma dimensão experimentada (éprouvé), que consiste na assunção
das dimensões fáticas como uma paixão. Esta conclusão nos leva a vislumbrar dois eixos
fundamentais: a dimensão que o para-si tem de ser e a dimensão que o para-si é. Duas

30 RICŒUR, P. Philosophie de la volonté I, p. 43. (grifo nosso)


31 CPM, p. 447.
32 EN, p. 571.
33 CPM, p. 498.
!233

dimensões que apontam para dois dualismos ainda atuantes: os dualismos entre ser e nada e
entre subjetividade e objetividade.

§2. A reformulação dos problemas.

a) O dualismo entre ser e nada e o problema do mundo.

Em nossa introdução levantamos dois pontos importantes que devem ser retomados
agora, pois temos as condições de precisá-los: 1) Merleau-Ponty não tem razão no que diz
respeito aos princípios de suas argumentações, o que não impede que, após certo
deslocamento, elas ainda sejam válidas para problematizarmos a presença de dualismo
específicos 2) O próprio texto sartriano apresenta ambiguidades que devem ser exploradas.
Após o percurso do primeiro nível de contestação, podemos afirmar, com relação ao primeiro
ponto, que Merleau-Ponty se equivoca ao negligenciar a facticidade e a temporalidade ek-
stática, o que o leva a conceber o para-si como puro nada e criação ex nihilo. Mostramos que,
em L’Être et le Néant, o para-si surge a partir de uma dupla negação, isto é, não somente da
negação interna do em-si que ele não é, mas da nadificação de ser do em-si que ele é (ato
ontológico), pois o ele só pode ser-no-mundo como sendo ao mesmo tempo “no-meio-do-
mundo”. Nisto consiste a “solidariedade ontológica”, como diz Dufrenne, ou “comunidade de
ser” como diz Verstraeten e também De Coorebyter: “La différenciation ontologique du pour-
soi par rapport à l’en-soi n’annule pas leur communauté d’être originelle : le pour-soi est de
l’en-soi devenu pour-soi, mais qui reste marqué d’en-soi” 34. Isto implica que não podemos
identificar o “dualismo” para-si/em-si ao “dualismo” nada/ser. Em primeiro lugar porque não
o para-si equivalente ao nada; em segundo lugar dado que não há dualismo entre para-si e em-
si se admitirmos a “comunidade ontológica” que impede de considerá-los como radicalmente
separados. Este último caso atestaria um verdadeiro dualismo, a partir do qual não seria
possível compreender o próprio modo de ser do para-si. A característica de ser e não ser do
para-si “sujeito” está em jogo em seu próprio modo de ser de maneira que, se o definirmos
como “puro nada”, não poderemos compreender a sua dimensão de ser do dilema ser e não

34DE COOREBYTER, V. L’Être et le néant, ou le roman de la matière, p. 9. Ver também: Id. Sartre et l’être du
néant, p. 359.
!234

ser35. A questão é ainda mais complexa, daí o nosso segundo ponto, se admitirmos que as
definições de “para-si” e “em-si” não se encontram isentas de ambiguidades, como vimos
incialmente quando falávamos dos limites do dualismo. Por isso fizemos uma distinção entre
para-si como “sujeito” e da região ontológica “para-si”, assim como entre o “em-si” como
objeto transcendente e o em-si como região ontológica. Em seguida, observamos que o
próprio para-si “sujeito” possui estruturas imediatas que são “para-si” (região ontológica) e
outras que não o são em sentido estrito - como a facticidade e o valor -, e que o em-si não
pode ser sinônimo de objeto. Em suma, dado que para-si e em-si podem aparecer no texto de
Sartre com o significado de “sujeito” e “coisa”, isto não quer dizer que possamos reduzi-los a
este par e concluir a partir daí um dualismo, já que a própria realidade do para-si deve ser
compreendida levando em conta as regiões ontológicas para-si e em-si.
Isto posto, Merleau-Ponty poderia ainda argumentar: “sim, podemos então abrir mão
desta equivalência sujeito = para-si = nada, objeto = em-si = ser, mas ainda assim restaria o
dualismo entre ser e nada, isto é, entre as regiões de ser e nada no próprio para-si e também o
problema da pureza do em-si que não admite negatividade”. A questão nestes termos nos
parece melhor colocada, na medida em que Sartre teria que mostrar que não há exclusão entre
ser e nada no próprio para-si e ainda resolver o problema da pura positividade do em-si
transcendente. Na verdade, o fato de o para-si ser negação do em-si não significa que a partir
deste “acontecimento absoluto” que é o surgimento do para-si como nadificação do em-si que
ele é, que ele “se livrou” do em-si que ele é e virou um “puro nada”, pois Sartre afirma que
“cet en-soi englouti et néantisé dans l’événement absolu qu’est l’apparition du fondement ou
surgissement du pour-soi demeure au sein du pour-soi comme sa contingence originelle” 36. O
problema é que Sartre não explicitou o como este em-si nadificado permanece no para-si de
modo que toda a questão de como um termo “passa” no outro, como dizia Merleau-Ponty em
linguagem hegeliana, precisa ainda ser elucidada. Por outro lado, com relação ao em-si
transcendente, é certo que Sartre o define como “pura positividade”, identidade e não
consciente de si. Porém, parece-nos que Sartre não explicita os modos intermediários que
surgem a partir de um em-si que sofre nadificação, ou seja, os modos deste em-si que
permanece no para-si que, não sendo mais um em-si no senso estrito do termo, não pode ser

35 É assim que o para-si modifica o dilema de Hamlet, comenta J. Ireland a partir de uma ideia de D. Hollier,
não mais o de “ser ou não ser” mas o de “ser e não ser”. IRELAND, J. Notice: Kean. In: TC, p. 1448.
36 EN, p. 118.
!235

pura e simplesmente definido como um para-si. Do mesmo modo, seria necessário mostrar
como o em-si pode ser pensado como pura positividade, já que conceber o ser dos fenômenos
sem o fenômeno de ser é pura abstração. Se quisermos pensar o fenômeno devemos pensar a
simultaneidade entre ser e nada, condição indispensável para compreendermos as estruturas
de desvelamento do mundo. Assim, Merleau-Ponty fez bem em problematizar a “pura
positividade” do em-si, dado que se nos mantivéssemos restritos a esta definição não
poderíamos compreender o mundo como campo fenomenal e, além disso, a dimensão de “em-
si nadificado” do para-si. Consequentemente, o problema do mundo deve ser recolocado,
dado que ao fazer um recorte no capítulo sobre a transcendência, concentrando-se no aspecto
intuitivo do conhecimento, Sartre minimiza pontualmente a facticidade e dá margem à
interpretação solipsista de sua ontologia. Concluímos indicando que o primeiro dos dualismos
que poderíamos chamar de residuais, tendo em vista o percurso do primeiro nível de
contestação, não é mais um dualismo entre para-si e em-si, mas sim entre ser e nada, devido
ao fato de que Sartre não demonstra explicitamente como se dá a simultaneidade dos termos,
seja para compreender o modo de ser do para-si “sujeito”, seja para compreender o mundo
como campo fenomenal.

b) O dualismo entre subjetividade e objetividade.

Étranger: rage étranglée au fond de ma gorge, ange noir troublant la


transparence, trace opaque, insondable.

Kristeva, Étrangers à nous-mêmes.

Cet étranger qu’on me présente je l’assume aussitôt, sans qu’il cesse


d’être un étranger.

Sartre, L’Être et le Néant.

Desde que contestamos o dualismo entre para-si e em-si e sua equivalência a ser e
nada, concluímos que Merleau-Ponty não tem razão em afirmar essa paridade mas tem razão
em problematizar uma exclusão lógica entre ser e nada, caso não seja possível mostrar como
!236

um termo “passa” no outro ou como é possível haver simultaneidade entre eles. Isto significa
que Merleau-Ponty formulou mal o problema ao reduzir o para-si ao puro nada, mas, se
deslocarmos sua crítica para um possível dualismo entre ser e nada, a mudança no
pensamento sartriano a partir da facticidade, por si só, ainda não é capaz de resolvê-lo. Assim,
nos deparamos com a situação de compreender um problema pertinente, porém colocado em
termos impróprios. O mesmo ocorre quando consideramos a crítica merleau-pontyana à
divisão para-si/para-outro em L’Être et le Néant.
Como vimos, Merleau-Ponty estende sua crítica ao sujeito sartriano como pura
negatividade à teoria do olhar desenvolvida em L’Être et le Néant que estabelece que,
somente pela mediação do outro, o para-si adquire visibilidade e objetividade. De fato, Sartre
estipula que, através do olhar do outro, o para-si ganha uma dimensão nova de ser37 que
corresponde à sua objetivação, também denominada por vezes de seu lado de fora (son
dehors). Para Sartre, “autrui est d’abord pour moi l’être pour qui je suis objet, c’est-à-dire
l’être par qui je gagne mon objectité”38, o que quer dizer que a aparição do outro faz surgir no
para-si uma dimensão de ser-olhado que Sartre nomeia de ser-para-outro. Esta nova
dimensão, o autor deixa claro, não é uma “imagem” que o outro faz de mim, mas é o meu
próprio ser na medida em que eu sou este ser-para-outro39. Contudo, se a lei de ser do para-si
é a de “ser e não ser”, como ele pode ser este para-outro ? Isto é, “avec cet être que je suis
[…], quelle sorte de rapport puis-je entretenir?”40.
Sartre estabelece uma divisão entre o “sujeito” tal como ele é “para-si” e tal como ele
é “para-outro” e se pergunta sobre o modo de relação entre estes dois “planos ontológicos”
que ele postula como sendo “différents et incommunicables, […] irréductibles l’un à
l’autre” 41. Podemos formular o problema em outros termos sartrianos específicos: enquanto o
para-si “tem de ser” seu ser, o para-outro “é”, de modo que se deve pensar como é possível “le
fait que je ne suis rien sans avoir à être ce que je suis et que pourtant, en tant que j’ai à être ce
que je suis, je suis sans avoir à être” 42. Mas esta dupla necessidade de ter de ser seu ser e ser
sem ter de ser é compreendida por Sartre, como viemos de comentar, por uma separação
radical de planos: “je ne puis mettre en rapport ce que je suis dans l’intimité sans distance,

37 EN, p. 568.
38 EN, p. 309.
39 Cf. EN, p. 325.
40 EN, p. 301.
41 EN, p. 344.
42 EN, p. 348-349.
!237

sans recul, sans perspective du pour-soi avec cet être injustifiable et en-soi que je suis pour-
autrui”43. Neste sentido, a dimensão para-outro é uma dimensão de ser do ser-para-si que é e
permanece sendo estrangeira ao para-si, e que tende de ser vivida como tal.
Merleau-Ponty apoiou-se neste ponto para mostrar como a contradição excludente
entre ser e nada é válida para se pensar o problema do ser-para-outro em Sartre. Como para
Merleau-Ponty o para-si é um puro nada, o outro é aquele que dá a este puro nada uma
dimensão objetiva que permanece estrangeira ao sujeito, na medida em que ela não “toca” sua
esfera “interior”. O nada é então hipostasiado em coisa invisível, que não pode ser modificada
e permanece isolada. Segue-se que, somente pela dimensão objetiva, o para-si encontraria sua
inscrição no mundo, uma vez que o outro fornece ao para-si um “ser coisa”, uma visibilidade
corporal. Isto resultaria numa concepção cartesiana que divide uma res cogitans e uma res
extensa, verdadeiro sentido das dimensões para-si/para-outro. R. Barbaras resume o problema
da seguinte maneira:

L’appréhension d’une « mienneté » dans l’extériorité est contradictoire : entre


l’intériorité absolue de la conscience et l’extériorité de l’objet, il ne saurait y
avoir de mélange ; le corps est dépourvu de conscience et la conscience est
étrangère à l’extériorité puisqu’elle en est la condition de dévoilement. Sartre
retrouve donc ici, à la substantialité près, la distinction cartésienne de la
pensée et de l’étendue44 .

Isto não significa que o corpo seja um em-si. Sartre mostra em L’Être et le Néant a
diferença entre os planos ontológicos de um corpo-para-si e um corpo-para-outro. No entanto,
ao defini-los como incompatíveis, ele acaba por admitir que o para-si só adquire objetividade
corporal pelo olhar do outro, o que traz como consequência o fato de que esta esfera para-si,
mesmo sendo ela também “corpo”, é colocada no fim das contas como uma subjetividade
isolada e apartada do mundo, como uma esfera solipsista e de sobrevoo. Porém, dissemos há
pouco que o problema está mal colocado visto que Merleau-Ponty parte de uma concepção do
para-si como “puro nada” enquanto que pela facticidade ele é engajado no mundo. Isto se dá
imediatamente pelo seu corpo e seu passado e, mediatamente, pelo seu ser-para-outro. Nestes
termos, o problema verdadeiro não consiste mais em considerar o para-si como uma
subjetividade de sobrevoo, mas em estabelecer uma incompatibilidade dos planos ontológicos
subjetivo e objetivo no próprio para-si “sujeito”. Em outras palavras, como pode o para-si ser

43 EN, p. 260.
44 BARBARAS, R. Le corps et la chair dans la troisième partie de L’être et le néant, p. 281.
!238

e não ser este estrangeiro que é o seu ser-para-outro ao mesmo tempo? Se Sartre estabelece
tais regiões como incompatíveis, ele não tem como explicar rigorosamente esta coexistência.
Os dois planos ontológicos do para-si “sujeito” - para-si e para-outro -, podem ser
então interpretados em termos de subjetividade e objetividade. Segundo Sartre, a
subjetividade é “l’obligation où nous sommes d’avoir à être notre être, et non pas simplement
à l’être passivement”45. Isto significa que o para-si é um movimento de assunção de seu ser,
na medida em que é sempre nadificação de ser, de maneira que a facticidade é a dimensão
existencial, assumida, vivida, de sua contingência original. Isto posto, poderíamos esboçar
então uma divisão de planos entre

tout ce qui participe de la facticité du pour-soi, de son caractère d’être parmi


les êtres : son corps, sa situation, sa coexistence avec d’autres pour-soi
également facticiels, sa naissance, son insertion dans des groupes et dans
l’Histoire c’est-à-dire dans l’espace et dans le temps, sa mort enfin, qui n’est
pas le fait de sa dimension de conscience mais d’en-soi. D’autre part, tout ce
qui alimente un rapport actif à l’en-soi au cœur du pour-soi, ce qui renvoie à
deux sous-axes46.

Neste contexto, o drama de “ser e não ser” do para-si traduz-se em termos de assunção
da contingência pelas estruturas de engajamento da facticidade. S. de Beauvoir denomina esta
condição de existir como assunção livre da facticidade de ambiguidade. Entretanto, ao
mostrar que para o existencialismo a condição da existência é a ambiguidade, ela tende a
radicalizar o par liberdade/facticidade a fim de provar que a moral é “le triomphe de la liberté
sur la facticité”47. Este triunfo não implicaria na supressão da facticidade - tal como nas
filosofias que negam a ambiguidade -, mas num gesto da vontade de assumir a condição fática
de uma liberdade, o que coloca o para-si numa situação de escolha moral. Grosso modo,
Beauvoir radicaliza a separação entre liberdade e facticidade, embora o faça no intuito de
mostrar que não há separação, já que a ambiguidade é a condição do humano. Mesmo assim,
ao usar esta estratégia ela acaba interpretando a ambiguidade a partir de um dualismo -
esboçado no próprio Sartre - entre as dimensões de ser e de nadificação de ser inerentes ao
para-si, o que nos remete ao primeiro dualismo residual que é aquele entre ser e nada. Ao
separar, mesmo que seja para pensar a união, os dois planos - fático e livre - do para-si, e além

45 QS, p. 77.
46 DE COOREBYTER, V. L’Être et le néant, ou le roman de la matière, p. 9.
47 BEAUVOIR, S. de. Pour une morale de l’ambiguïté, p. 58.
!239

disso não mostrar como um “passa” no outro, Beauvoir enfraquece a ambiguidade por causa
de tais princípios48.
Dito isto, se conseguirmos resolver o problema do dualismo entre ser e nada, a
separação entre os planos fático e livre do para-si é abstrata. Em segundo lugar, na medida em
que a dimensão fática é aquela que permite a inscrição do para-si no mundo, segue-se que não
levá-la em conta colabora para o mal-entendido que está na origem da crítica de Merleau-
Ponty do para-outro. O que ocorre nesta leitura é uma confusão entre a facticidade do para-si
e sua dimensão objetiva, a qual é adquirida através do olhar do outro. No intuito de
compreendermos este ponto, operemos com uma distinção presente no vocabulário do próprio
Sartre: enquanto o para-si é engajado no mundo (inscrito pela estrutura imediata da
facticidade), o para-outro, como objetivação do engajamento, é enraizado no mundo. Isto
significa que o olhar do outro não provoca uma inscrição do para-si no mundo, mas ele
objetiva esta inscrição, que é o que Sartre vai denominar de transcendência-transcendida, que
consiste na alienação das estruturas do para-si. O olhar do outro fornece um caráter objetivo
ao movimento de transcendência do para-si de maneira que suas “estruturas para-si” adquirem
uma forma degradada: o engajamento se torna enraízamento (um “engagement-objet”49), as
possibilidades se tornam probabilidades, etc. “Existir-no-meio-do-mundo-em-presença-dos-
outros”, diz Sartre, consiste num aprofundamento do engajamento de fato do para-si
provocado pela “visibilidade” desta inscrição original:

Il est hors de doute que mon appartenance à un monde habité a la valeur d’un
fait. Elle renvoie, en effet, au fait originel de la présence d’autrui dans le
monde, fait qui, nous l’avons vu, ne peut être déduit de la structure
ontologique du pour-soi. Et, bien que ce fait ne fasse que rendre plus profond
l’enracinement de notre facticité, il ne découle pas non plus de notre facticité,
en tant que celle-ci exprime la nécessité de la contingence du pour-soi; mais
plutôt, il faut dire : le pour-soi existe de fait, c’est-à-dire que son existence ne
peut être assimilable ni à une réalité engendrée conformément à une loi, ni à
un libre choix ; et, parmi les caractéristiques de fait de cette « facticité »,
c’est-à-dire parmi celles qui ne peuvent ni se déduire ni se prouver, mais qui
se « laissent voir » simplement, il en est une que nous nommons l’existence-
dans-le-monde-en-présence-d’autres50 .

48 É neste sentido que compreendemos que a noção de facticidade pode designar ainda empiria, como comenta
Barbaras em De l’être du phénomène, p. 273.
49 EN, p. 331.
50 EN, p. 557. (grifo nosso)
!240

O ser-olhado é assim uma característica que surge ao para-si a partir do olhar do outro,
contanto que este para-si já seja desde sempre engajado no mundo. O outro é a “condição
concreta e transcendente”51 da objetividade do para-si e não de sua facticidade.
Pelo fato de haver negligenciado a estrutura fática de engajamento do para-si,
Merleau-Ponty confunde facticidade e objetividade, fazendo do para-si um puro nada que não
encontra aderência ao mundo. Segue-se que se o para-outro é uma dimensão do para-si que
não é constitutiva de seu modo de ser, mas provém apenas de um “encontro” contingente com
o outro, a confusão entre facticidade e objetividade resulta ainda em atribuir a um
acontecimento contingente o fato do para-si ter um corpo, um passado, uma
intersubjetividade. No que diz respeito ao corpo, por exemplo, Sartre esclarece que sua
dimensão objetiva não deve ser confundida com sua dimensão fática, embora uma dependa da
outra: “le corps d’autrui ne doit pas être confondu avec son objectivité. L’objectivité d’autrui
est sa transcendance comme transcendée. Le corps est la facticité de cette transcendance. Mais
corporéité et objectivité d’autrui sont rigoureusement inséparables”52. Veremos na “Terceira
parte” a particularidade do que Sartre denomina de carne (chair), que é um tipo de apreensão
da contingência do corpo do outro que não passa pela objetivação: “la chair est contingence
pure de la présence. Elle est ordinairement masquée par le vêtement, le fard, la coupe de
cheveux ou de barbe, l’expression, etc.”53. Assim, a distinção entre facticidade e objetividade
se mostra relevante não somente para combater a crítica de Merleau-Ponty de ver a inscrição
do para-si no mundo através do para-outro, mas também para compreender uma série de
regiões ontológicas em L’Être et le Néant.
Por outro lado, resta ainda um dualismo entre subjetividade e objetividade que é o que
deve ter contribuído para o acento de Merleau-Ponty numa divisão radical entre os lados de
“dentro” e de “fora” do para-si. Pois é certo que, ao estabelecer uma divisão entre uma região
de estruturas para-si e sua dimensão alienada, que é a do para-outro, Sartre estabelece ao
mesmo tempo uma incompatibilidade tais planos ontológicos, como mencionamos acima.
Tendo esclarecido a distinção entre facticidade e objetividade, podemos afirmar então que,
embora a dimensão para-si seja engajada, ela se dá como um tipo de “interioridade” -
subjetividade - separada da “objetividade” - que o outro lhe fornece -, e nesse ponto Merleau-

51 EN, p. 313.
52 EN, p. 391.
53 EN, p. 384.
!241

Ponty tem razão em considerá-la como uma esfera que é de algum modo “intocável”.
Comentamos ainda que Sartre não esclarece como o para-si pode ser e não ser ao mesmo
tempo este estrangeiro para si mesmo se há uma incompatibilidade de planos. Em Saint
Genet, ele esquematiza minimamente esta divisão, a qual serve para pensar este dualismo no
próprio para-si:

1 - Catégories de l’Être 2- Catégories du Faire

Objet Sujet, Conscience


Soi-même comme Autre Soi comme soi-même
Essentiel qui se révèle inessentiel Inessentiel qui se révèle essentiel
Fatalité Liberté, volonté
Tragédie Comédie54

As categorias do fazer consistem precisamente na “assunção” projetiva do para-si das


categorias do ser, que neste contexto é o ser-para-outro. Mas se esta objetividade só pode ser
se for concomitantemente assumida, isto é, pelo fato do para-si “ter de ser” o ser que o outro
faz dele, como, perguntamos mais uma vez, subjetividade e objetividade podem coexistir no
para-si? E ainda: se subjetividade e objetividade devem coexistir, a dimensão para-si
translúcida não se encontraria de algum modo perturbada por este “trace opaque, insondable”
que é o estrangeiro em si mesmo?
No que diz respeito à relação entre as duas dimensões, podemos entrever uma pista na
seguinte passagem dos Cahiers pour une morale: “Ainsi suis-je sur le même plan objet
spécifique et sujet libre mais jamais les deux à la fois et toujours l’un hanté par l’Autre” 55.
Ora, no que consiste este assombrar que une os termos incompatíveis? Além disso: se o
encontro com o outro se dá somente através de objetificações, como podemos de fato
encontrar o outro se a experiência do sujeito se restringe ao encontro de seu ser-para-outro e
não do outro, tal como afirmava Merleau-Ponty?

54 SG, p. 77. Retiramos do quadro as categorias que dizem respeito ao esquema simbólico vivido por Genet e
deixamos aquelas que acreditamos valer para o para-si de modo geral.
55 CPM, p. 101.
!242

Diante destas perguntas, concluímos o primeiro nível de contestação, que teve como
fio condutor a crítica de Merleau-Ponty, enumerando a reformulação dos problemas da
seguinte maneira: 1) se há uma contradição lógica entre ser e nada, de modo que um termo
não passa no outro, não podemos compreender como o para-si “é e não é” ao mesmo tempo;
2) do mesmo modo, se há um dualismo entre uma subjetividade transparente “para-si” e uma
objetividade opaca “para-outro”, também não sabemos a rigor como pode haver esta
coexistência no sujeito; 3) o dualismo entre ser e nada consiste ainda num problema referente
à concepção de mundo, na medida em que o em-si como “pura positividade” - separado das
estruturas objetivas de desvelamento, que são negatividades -, é uma abstração 4) o dualismo
entre ser e nada não permite compreender como um em-si pode ser afetado de negatividade e
“permanecer” no para-si; 5) por fim, ao estabelecer a alteridade por via de objetificações do
olhar, Sartre não mostra como pode haver uma experiência efetiva de alteridade já que o
“encontro” se dá na realidade com um ser-para-outro do para-si e não com o outro 6) se o
para-si de fato não é solipsista, é preciso mostrar como a intersubjetividade está presente na
própria esfera subjetiva - através da facticidade - antes mesmo do encontro que o transforma
para-si em objeto.
Para responder a estes problemas resultantes do primeiro nível de contestação é
preciso passar a hantologie. Isto significa que será necessário realizar uma leitura de L’Être et
le Néant a partir de outro plano, a fim de apreender uma camada implícita que possibilite
repensar estas questões sob outra perspectiva. Se nos restringíssemos a uma leitura clássica da
obra, que não faz ressaltar o plano implícito da espectralidade, seria difícil, senão impossível,
ultrapassar os problemas que ainda restam após este primeiro percurso. Em suma, acreditamos
que somente a partir desta mudança de perspectiva torna-se possível confrontar, através de
argumentos do próprio Sartre, não somente os problemas levantados por Merleau-Ponty e que
ainda restam, mesmo que deslocados, mas de certa maneira, Sartre ele mesmo.
TERCEIRA PARTE

A hantologie:
segundo nível de contestação.
Capítulo I
Por uma hantologie em Sartre.

Ao iniciarmos a terceira parte deste trabalho, que trata da hantologie, optamos por
evidenciar o caráter de uma proposta de leitura: “Por uma hantologie”. Isto significa que de
algum modo iremos além das análises sartrianas propriamente ditas, no sentido de que nestas
não encontramos qualquer referência a uma possível hantologie e nem mesmo uma
tematização sobre o tema da espectralidade. Sendo assim, evidenciar os espectros, assim
como identificar modos de ser da ontologia sartriana como espectrais, a ponto de falar de uma
hantologie, consiste em um movimento nosso. Esta proposta de leitura vai portanto além do
comentário da obra, embora de maneira a não abrir mão do rigor no estudo do texto sartriano.
A fim de caracterizar tal movimento, podemos dizer que se trata de ao mesmo tempo manter
uma fidelidade ao texto e uma distância criativa, tarefa motivada pela necessidade de
responder aos problemas levantados anteriormente. Dito isto, sublinhamos a respeito de nosso
percurso o fato de que, até aqui, as questões foram delimitadas e os problemas confrontados a
partir de temáticas explícitas do texto de Sartre. A partir de agora, este nível explícito se
mantém, como ficará claro no que se segue, mas há um acento na tentativa de evidenciar uma
camada implícita, o que pode ser compreendido em termos de fazer dizer o não dito, ou não
tematizado pelo próprio Sartre. Sobre este gesto, poderiam nos questionar: se tal movimento
faz-se necessário, isto quer dizer que de algum modo Sartre não conseguiu resolver os
problemas referentes ao dualismo em seu pensamento, dado que é preciso propor esta outra
leitura? Ao que respondemos que em certo sentido esta observação procede, em outro não.
Esta resposta se deixa entrever no fato de que procuramos constantemente demarcar a
ambiguidade do autor de modo a evidenciar os pontos em que ele reforça dualismos, ao
mesmo tempo em que ele mesmo fornece ferramentas, mesmo explícitas, que os contestam.
Dissemos ainda que, devido a tal ambiguidade, o problema do dualismo não somente
atravessa, mas assombra L’Être et le Néant. Concluímos ainda que na medida em que Sartre
!245

não mostra como ser e nada, subjetividade e objetividade - o que chamamos de “dualismos
residuais” - podem coexistir numa mesma realidade e “passar” um no outro, ele finalmente
não consegue, neste sentido, superá-los. Por outro lado, o fato dele não evidenciar
suficientemente não impede que possamos achar em seu próprio texto este como, de modo
que é o próprio Sartre que de alguma maneira responde a tais problemas. Se a hantologie
consiste em uma leitura nossa e num movimento nosso de explicitação do implícito, isto só é
possível, por sua vez, graças às possibilidades inerentes ao texto sartriano. Dito isto, podemos
dizer que a hantologie é uma leitura da ontologia sartriana de modo a evidenciar seu caráter
espectral, o qual não somente nos permite ir além dos enquadres dualistas, mas funciona de
maneira a colocar estes mesmos enquadres em questão1. Finalmente, é certo que para realizar
nossa leitura evidenciamos os aspectos mais relevantes da ontologia de Sartre em relação aos
problemas levantados anteriormente. O que quer dizer que não pretendemos esgotar todos os
temas ali presentes - uma tarefa um tanto ingênua dado à infinidade de temas que podem
surgir de uma obra, sobretudo nas dimensões de L’Être et le Néant -, mas sim de nela ressaltar
aquilo que não somente melhor responde aos problemas, mas também aquilo que pode nos
dar um verdadeiro panorama do que a proposta de uma leitura pode abarcar.

§1. Considerações sobre a presença espectral de Derrida e Merleau-Ponty.

Até agora nosso percurso se definiu por um confronto com a crítica de Merleau-Ponty.
Não simplesmente por uma oposição a todos os pontos levantados por ele, mas
principalmente por uma contestação de alguns pontos - digamos, as bases ontológicas de
Sartre - tendo em vista uma reelaboração dos problemas a partir de sua crítica. Neste sentido,
pode-se afirmar a constante “presença” de Merleau-Ponty como opositor no diálogo que
possibilitou o percurso e os desenvolvimentos teóricos da “Segunda parte”. Com relação a
isto, o que dizer desta “Terceira parte” que se inicia, evidenciada por nós como um segundo
nível de contestação? Algumas observações se fazem necessárias, sobretudo no que diz
respeito à ideia de hantologie, termo cunhado por Derrida.

1E nisto outros textos de Sartre podem nos auxiliar, desde que demarcadas suas diferenças e aproximações com
L’Être et le Néant.
!246

Dissemos inicialmente que nos apropriamos do neologismo hantologie sem qualquer


compromisso com o sentido propriamente derridiano do termo. Todavia, acrescentamos que
algumas análises do filósofo sobre os espectros servem de inspiração para as elaborações
desta “Terceira parte”. Agora se apresenta o momento de precisar estas posições e de definir
de algum modo a “presença” de Derrida em nosso trabalho, o que derridianamente falando,
nos aponta não para uma “presença viva”, mas para uma presença espectral. Tendo em vista
este objetivo, surgiram algumas dificuldades ao tentar delimitar tal influência. Em primeiro
lugar, isto se deve à distância significativa entre duas filosofias como as de Sartre e Derrida,
uma como filosofia da consciência e da presença a si, outra como operadora da desconstrução
destas mesmas bases metafísicas. Em segundo lugar, em nenhum momento fez parte de nosso
objetivo uma tentativa de aproximação teórica destas duas filosofias, mesmo se, por vezes,
ocorram aproximações inusitadas, ou seja, como algo que acontece, mas que não foi colocado
de início como objetivo. No entanto, é certo que há uma presença espectral de Derrida na
elaboração de nossa outra leitura de L’Être et le Néant. Esta se dá principalmente pela forma
como as análises derridianas sobre os espectros modificaram nossa maneira mesma de ler o
texto, tornando-nos sensíveis ao uso frequente de termos como assombramento (hantise) e
fantasma (fantôme), assim como à impressionante relação entre assombramento e olhar na
escrita de Sartre. Outra influência importante pode ser notada com relação ao tema do
dualismo. Ainda que não tenhamos como objetivo tratar deste tema por via das análises de
Derrida, estas chamam atenção ao propor um pensamento que de alguma forma legitima
aquilo que escapa às oposições binárias, seja pela fórmula do nem…nem…, seja pelo e…e….
A partir de então, os dualismos sartrianos passaram a ser considerados através de uma
interrogação decisiva: é possível encontrar modos de ser nesta ontologia que escapem à
definição inicial que estabelece uma divisão entre para-si e em-si, ou mesmo entre ser e nada?
A releitura da obra atravessada por tal pergunta fez com que o texto passasse a revelar uma
multiplicidade de modos de ser. Diante disso, a maneira de legitimar os diferentes modos
tornou-se bastante relevante, no sentido de que a forma pela qual passa-se a considerar tais
modos, não simplesmente como “figuras inautênticas” em contradição com as verdadeiras
definições de para-si e em-si, mas, ao contrário, como legítimos em sua diferença, revela ao
mesmo tempo como a divisão dualista de base, diante de tal multiplicidade, consiste no ponto
frágil de L’Être et le Néant.
!247

Por fim, mais um movimento derridiano de algum modo serviu de grande inspiração
para a elaboração de nossa própria hantologie. Trata-se da possibilidade de inverter os termos
de um dualismo onde um polo prevaleceu como dominante no pensamento filosófico. Neste
sentido, podemos dizer, com base principalmente nas críticas de Merleau-Ponty, que na
filosofia sartriana valoriza-se frequentemente aquilo que poderíamos chamar de “polo
luminoso”, a saber, a ideia de pureza, de translucidez da consciência, de liberdade, etc. Não há
dúvidas, como dissemos anteriormente a respeito das ambiguidades do próprio Sartre, de que
ele mesmo reforçou o pertencimento a tal campo filosófico, sobretudo através de seu
declarado cartesianismo. Por outro lado, se vimos em nossa “Segunda parte” que a facticidade
impossibilita justamente a concepção de algo como uma “subjetividade pura”, restou ainda,
sob o efeito da presença espectral de Merleau-Ponty, o problema da separação dos polos, da
exclusão entre os termos e, por fim, do dualismo. A “Terceira parte” vem, portanto, contestar
em um segundo momento e em um segundo plano, o problema do dualismo. E em tal intuito
podemos identificar um gesto desconstrutivo, no sentido de que no plano da hantologie
visamos a evidenciar as zonas de sombreamento, em contraposição à leitura “luminosa” de
Sartre. Este primeiro gesto, na verdade, não se dá sem consequências e já nos abre a
possibilidade de ir além do quadro dualista, na medida em que ao fazer surgir as sombras em
sua legitimidade própria, a espectralidade se revela como o plano mesmo da multiplicidade de
modos de ser da ontologia sartriana. E isto no sentido de que ela coloca em questão a própria
“presença a si” do para-si “sujeito”. Sendo esta presença espectral, sempre assombrada, de
que modo ela pode se fazer substância isolada, relação a si adequada e transparente, tal como
o dualismo parecia exigir? Todas estas questões estão em jogo no objetivo de ler L’Être et le
Néant a partir do privilégio das sombras, do assombramento e dos espectros.
Dito isto, já é possível entrever de que modo Merleau-Ponty se faz presente neste
segundo nível de contestação, pois é certo que, após todo este percurso de oposição à sua
crítica, sua “presença espectral” permanece. Sobre esta ressaltamos uma questão importante:
ao longo das análises que se seguem é possível observar que, ao responder as críticas de
Merleau-Ponty, a filosofia de Sartre acaba, por esta outra leitura, por se aproximar dela. Há
uma aproximação no instante mesmo da inversão dos polos citada acima, já que esta nos
remete a um lugar privilegiado que a filosofia de Merleau-Ponty dá à opacidade, por
exemplo. Entretanto, o risco de tal aproximação é aquele de que Merleau-Ponty assombre a
!248

elaboração da hantologie sartriana como um paradigma de solução para os problemas da


filosofia de Sartre. Em outros termos, o risco consiste em tentar uma leitura original da
filosofia de Sartre que será mensurada e valorada de acordo com a sua capacidade de se
aproximar ou não da filosofia de Merleau-Ponty. O que se perderia aí é a solução
propriamente sartriana para os problemas, ou as soluções possíveis a partir de Sartre, ao
reduzi-lo a um “pseudo-merleau-pontysmo”. Por esta razão, mesmo que tal aproximação se
deixe pressentir ao longo de nossas análises, não nos concentraremos em acentuá-la. Segue-
se que o mesmo pode ser dito a uma possível aproximação com Derrida, ou seja, a
possibilidade de valorizar ou legitimar posições sartrianas na medida em ocorram eventuais
aproximações com a filosofia de Derrida. Como esta última possibilidade é mais rara, dada a
distância mais nítida entre a filosofia de ambos, é realmente em relação a Merleau-Ponty que
o caráter de assombramento se torna mais marcante. Isto posto, podemos passar agora à
hantologie de Sartre, tendo em vista que as presenças espectrais, principalmente de Derrida e
Merleau-Ponty (pois poderíamos ainda falar de Heidegger, Descartes, etc.), sem dúvida
tornam mais rica esta leitura, mas desde que estas auxiliem a encontrar as soluções
singularmente sartrianas para os dualismos que a assombram.

§2. O assombramento como superação dos dualismos residuais.

Na conclusão de nosso primeiro nível de contestação da crítica de Merleau-Ponty ao


dualismo sartriano, apontamos que restavam ainda dois dualismos não problematizados, que
denominamos de “dualismos residuais”: os dualismos entre ser e nada e entre subjetividade e
objetividade. Estes dois dualismos nos parecem ser mais pertinentes no que diz respeito ao
objetivo de apontar se de fato L’Être et le Néant recai em aporia por conta dos dualismos de
base de sua ontologia, que neste caso seriam insuperáveis. Acreditamos que, se nos ativermos
aos problemas que viemos de apontar neste último capítulo da “Segunda parte”, torna-se
difícil, com efeito, escapar aos impasses provenientes das conceptualizações demasiado
dualistas do próprio Sartre. Porém, como viemos de mencionar acima, nossa tese é a de que
podemos encontrar no próprio texto sartriano uma alternativa a estes impasses.
No capítulo consagrado ao “problema do nada”, Sartre marca sua posição,
diferenciando-se de Hegel e Heidegger, ao afirmar que “la condition nécessaire pour qu’il soit
!249

possible de dire non, c’est que le non-être soit une présence perpétuelle, en nous et en dehors
de nous, c’est que le néant hante l’être”2 . Assim, neste primeiro momento, o filósofo coloca
como condição necessária de toda negação o assombramento do ser pelo nada, cujo
significado ele busca esclarecer mais adiante:

Cela signifie que l’être est antérieur au néant et le fonde. Par quoi il faut
entendre non seulement que l’être a sur le néant une préséance logique mais
encore que c’est de l’être que le néant tire concrètement son efficace. C’est ce
que nous exprimions en disant que le néant hante l’être. Cela signifie que
l’être n’a nul besoin de néant pour se concevoir et qu’on peut inspecter sa
notion exhaustivement sans y trouver la moindre trace du néant3 .

Com base nestes trechos, apreendemos então que a afirmação “o nada assombra o ser”
significa em primeiro lugar uma condição de toda negação. Isto na medida em que, para que
haja negação, é preciso haver anterioridade do ser sobre o nada, pois, como mostramos
anteriormente, o nada é sempre nadificação de ser e nunca um nada puro ou algo que surge
“do nada”. De acordo com estas primeiras descrições, podemos identificar então que o
primeiro sentido de assombramento entre ser e nada é o da dependência do nada em relação
ao ser e segue-se que a recíproca não é verdadeira, pois o ser não depende do nada para
existir. Se nos restringíssemos a este ponto, poderíamos dizer apenas que o termo
“assombramento” indica tal dependência e que, se em certo sentido ele nos faz contestar o
dualismo - visto que o nada só pode ser pensado como nadificação de ser e não como uma
instância separada -, ele mostra ao mesmo tempo uma assimetria e uma noção problemática
de ser como pura positividade, tal como apontava, por diversas vezes, Merleau-Ponty.
Acontece que a relação de assombramento aparece em múltiplos contextos das
análises sartrianas e não somente como condição da negação. É isto que torna difícil de
precisar o seu sentido, mas, ao mesmo tempo, é o que nos permite explorar sua riqueza e
constatar sua importância. Ao longo desta terceira parte do trabalho iremos percorrer temas
importantes de L’Être et le Néant tendo em vista o papel fundamental das relações de
assombramento e de que modo elas nos remetem para além dos enquadres dualistas. Com
relação ao dualismo entre ser e nada, veremos que não somente a condição necessária de toda

2 EN, p. 46.
3 EN, p. 50-51. É curioso observar que nos Cahiers pour une morale, Sartre se utiliza da fórmula inversa - o ser
assombra o nada - para dizer a mesma coisa: “Ainsi l’absence d’Etre qui est au fond de la preuve ontologique
c’est un Non-être hanté par l’Etre et défini par lui : il est le Non-être de cet Etre et existe pour lui comme néant
de cet Etre. Mais comme précisément le Néant doit être été, il convient que le Néant d’être s’enlève sur le
fondement d’un être”. CPM, p. 159.
!250

negação é a de que o nada assombre o ser, mas também que, apesar da afirmação sartriana da
pura positividade de um ser que não seria assombrado pelo nada, encontramos esta
contrapartida no próprio texto.
Em primeiro lugar, tomemos o caso do modo de ser do “sujeito” para-si, que vimos
existir como tensão entre ser e não ser. O para-si surge do “acontecimento absoluto” de
nadificação de seu ser como fuga da contingência, mas esta fuga só continua a ser fuga se a
contingência original da qual ele foge permanece de algum modo motivando a própria
estrutura da fuga, caso contrário, não haveria mais nada a fugir. Esta “permanência” da
contingência original no para-si é dada pelo assombramento próprio à estrutura da facticidade
do para-si, como mostra Sartre:

Cette contingence perpétuellement évanescente de l’en-soi qui hante le pour-


soi et le rattache à l’être-en-soi sans jamais se laisser saisir, c’est ce que
nous nommerons la facticité du pour-soi. C’est cette facticité qui permet de
dire qu’il est, qu’il existe, bien que nous ne puissions jamais la réaliser et que
nous la saisissions toujours à travers le pour-soi4 .

O assombramento é, portanto, constitutivo do modo de ser para-si “sujeito”, pois ele


existe necessariamente assombrado pela contingência original. Não somente, desde que esta
fuga da contingência faz com que o para-si busque um fundamento para o seu ser que o
tornaria completo, dado que é falta, ele é ainda assombrado pelo valor: “La valeur, c’est le soi
en tant qu’il hante le cœur du pour-soi comme ce pour quoi il est”5. O para-si é do mesmo
modo assombrado por seus possíveis, pelo passado, pelo outro, enfim, o assombramento,
como veremos, é constitutivo do modo de ser do para-si “sujeito”. Além disso, Sartre define o
ser-no-mundo como presença, mas esta presença é do tipo de um assombramento, de onde ele
conclui que “être-dans-le-monde, c’est hanter le monde” 6. Veremos ainda o quanto esta
concepção de ser-no-mundo como assombramento faz com que o próprio mundo se desvele
como um mundo assombrado. Pensar o ser como pura positividade é abrir mão da ideia de
mundo uma vez que isto implica retirar o caráter de assombramento que corresponde
justamente ao âmbito da fenomenalidade, essencial a um mundo. Sendo assim, compreender a
proposta propriamente fenomenológica da ontologia sartriana é analisar as estruturas de
assombramento do mundo, isto é, analisar em que medida o mundo assombrado pressupõe ao

4 EN, p. 119. (grifo nosso)


5 EN, p. 130.
6 EN, p. 284.
!251

mesmo tempo ser e nada. Deste modo, o assombramento é não somente uma característica
estrutural do modo de ser do para-si “sujeito”, mas também do mundo, ou seja, do campo
fenomenal. A relação de assombramento nos mostra então que se nos ativermos ao dualismo
entre ser e nada não compreenderemos de fato o modo de ser do para-si como ser-no-mundo e
nem mesmo o modo de aparição de um mundo.
Tendo em vista agora o segundo dualismo residual - entre subjetividade e objetividade
-, podemos perguntar: de que modo o assombramento opera para nos fazer sair deste quadro
de oposição? Novamente encontramos nas análises de Sartre sobre o assombramento uma
resposta aos seus próprios impasses, pois é verdade que ele coloca estes dois planos como
incompatíveis, e por isto nos perguntávamos anteriormente de que modo o para-si pode existir
ao mesmo tempo como ser-para-outro e ser-para-si se estas regiões são realmente
incompatíveis ou, em outras palavras, como o para-si pode ser e não ser este estrangeiro que é
o seu ser-para-outro ao mesmo tempo? O que para Sartre, como citamos, se resume na
pergunta “avec cet être que je suis […], quelle sorte de rapport puis-je entretenir?”7 Como um
possível caminho para uma resposta a tal questão, citamos ainda um trecho dos Cahiers pour
une morale, em que Sartre dizia: “Ainsi suis-je sur le même plan objet spécifique et sujet libre
mais jamais les deux à la fois et toujours l’un hanté par l’Autre”8. O assombramento aparece
então novamente como um modo de relação entre os termos que, no quadro dualista,
apareciam como separados, seja por serem sem relação, seja por se “unirem” a partir de uma
relação puramente lógica. Neste momento, esta questão encontra-se diretamente relacionada à
intersubjetividade, por tratar do modo como Sartre pensa o outro e ainda este “outro” em si
mesmo. Disto decorrem dois níveis de assombramento: o assombramento da presença
espectral do outro em geral, através de seu poder de objetificar o para-si, e o assombramento
da própria objetividade fornecida pelo outro que passa a assombrar o para-si como um
estrangeiro que ele ao mesmo tempo é e não é. Mesmo colocando como incompatíveis os
planos ontológicos para-si e para-outro, Sartre estabelece que “un être-pour-autrui hante ma
facticité non-thétiquement vécue”9, ou seja, trata-se de uma subjetividade assombrada por sua
facticidade: seja por sua contingência original, seja pela objetividade adquirida pela mediação
do olhar do outro, seja ainda, como veremos, pela quase-objetividade que o para-si busca

7 EN, p. 301.
8 CPM, p. 101.
9 EN, p. 397.
!252

adquirir pela reflexão cúmplice ou impura. Em Saint Genet, obra em que o assombramento
pelo outro em si mesmo, fundado no olhar dos outros, se mostra de forma exemplar - “Genet,
hanté par cet Autre qui est lui-même”10 -, Sartre chega a falar em termos de “hantise
ontologique”11. Nesta obra, o autor discorre sobre os modos de relação de Genet com este
outro que é ele mesmo em momentos diferentes da sua vida, utilizando-se frequentemente da
noção de assombramento. Além disso, ao falar (de maneira crítica e irônica) da relação de
identificação das “pessoas honestas” com seus respectivos Egos, Sartre pergunta “s’ils sont
bien sûrs d’être eux-mêmes”12, para em seguida concluir que “je n’aime pas les âmes
habitées”13. Neste e em outros momentos a relação de assombramento se aproxima da ideia de
“ser possuído” (être possédé) por algo: possuído pelo Outro14; “Genet sacré hantant l’âme
quotidienne de Genet profane” 15; “il est possédé dans l’imaginaire par son comportement
fondamental”16; “Voici l’argument de ce drame liturgique : un enfant meurt de honte, surgit à
sa place un voyou; le voyou sera hanté par l’enfant”17. Estas considerações nos remetem à
rede de significados do termo hanter em francês, que retomamos aqui: 1) “Fréquenter (un
lieu) d’une manière habituelle, familière; Habiter, vivre dans (un lieu)”. 2) “Fréquenter
habituellement (qqn)”; Ex: “Dis-moi qui tu hantes, je te dirai qui tu es” 3) “Le sujet désigne
un esprit, un fantôme (angl. “to haunt”)”. Ex: “Cette maison est hantée par un esprit.” 4).
“Obséder, poursuivre; hantise. Ex: “Les rêves, les obsessions qui hantent son sommeil” 18.
Tendo em vista estes significados, o que podemos concluir da relação de assombramento?
A nosso ver, é bastante significativo que Sartre fale nestes termos, pois tendo em vista
os sentidos enumerados acima, especialmente aquele ligado ao habitar de um fantasma, pode-
se observar o quanto o termo “assombramento” diz respeito a um modo de presença que não é
localizável, mas ainda assim está “presente” e produz efeitos reais. A ideia de habitar indica
este estar presente, ao mesmo tempo em que se trata de um presença não substancial: a
presença de uma ideia fixa ou a presença de um fantasma, por exemplo. O sentido de
frequentação também pode encontrar-se ligado a este habitar de um fantasma, que não é algo

10 SG, p. 79.
11 SG, p. 88. O que neste contexto significa o momento em que Genet decide fazer o mal para ser o malvado e
assim ser o que os outros fizeram dele.
12 SG, p. 100.
13 Ibid.
14 SG, p. 167.
15 Ibid.
16 SG, p. 142.
17 SG, p. 10.
18 Le Grand Robert de la Langue Française. Paris: Dictionnaires Le Robert, 2001, p. 1680-1681.
!253

que está presente e perdura no tempo, mas que frequenta no sentido de uma temporalidade
singular que é da ordem da repetição, do ir e voltar, como veremos em seguida com Derrida.
Quando Sartre descreve que “être-dans-le-monde, c’est hanter le monde”, ele complementa:
“non pas y être englué”; isto é, não podemos compreender este estar no mundo como uma
presença física (como já mostrava Heidegger), mas um habitar, um frequentar característico
do modo de ser para-si.
Finalmente, há em Sartre outro aspecto do assombramento que escapa às definições do
dicionário: a relação entre assombramento e olhar, este último em sua concepção
propriamente sartriana. Desde nossas análises sobre o cogito pré-reflexivo, vimos que o fato
da consciência “existir para um testemunho” faz com ela seja consciência perturbada
(conscience perturbée). O olhar, como ficará claro nas análises sobre o outro, é justamente
aquilo que perturba, que altera - no caso do olhar do outro, que objetifica, - aquele que é
olhado; assim como no mito da Medusa, no qual o olhar tem o poder de transformar em pedra
quem o encara. O assombramento do olhar no contexto de L’Être et le Néant consiste no fato
deste poder de objetificação vir ao para-si através de um outro não localizável, o que significa
que ele se dá por uma relação de ser olhado sem poder ver quem o olha:

Tout d’abord, il [autrui] est l’être vers qui je ne tourne pas mon attention. Il
est celui qui me regarde et que je ne regarde pas encore, celui qui me livre à
moi-même comme non-révélé, mais sans se révéler lui-même, celui qui m’est
présent en tant qu’il me vise et non pas en tant qu’il est visé : il est le pôle
concret et hors d’atteinte de ma fuite, de l’aliénation de mes possibles et de
l’écoulement du monde vers un autre monde qui est le même et pourtant
incommunicable avec celui-ci. Mais il ne saurait être distinct de cette
aliénation même et de cet écoulement, il en est le sens et la direction, il hante
cet écoulement, non comme un élément réel ou catégoriel, mais comme une
présence qui se fige et se mondanise si je tente de la « présentifier » et qui
n’est jamais plus présente, plus urgente que lorsque je n’y prends pas garde.
Si je suis tout entier à ma honte, par exemple, autrui est la présence immense
et invisible qui soutient cette honte et l’embrasse de toute part, c’est le milieu
de soutien de mon être-non-révélé19 .

Retomaremos esta citação mais adiante, talvez mais de uma vez, pois ela é
fundamental para nossas análises sobre o assombramento do olhar do outro. Por ora, nossa
intenção é a de acentuar as características do assombramento. Dito isto, podemos destacar
neste trecho que o assombramento do olhar do outro consiste exatamente neste poder de
objetificação vindo de algo não localizável, algo que por sua vez não é olhado. Sartre

19 EN, p. 308. (grifo nosso)


!254

descreve o outro em termos de presença invisível, cuja presença é ainda maior “lorsque je n’y
prends pas garde”. Esta impossibilidade de olhar aquele ou aquilo que assombra de frente
aparece em outras descrições de relações de assombramento, como por exemplo, o passado,
“qui hante sans être remarqué”20: “le passé est ce qui est hors d’atteinte et qui nous hante à
distance, sans que nous puissions même nous retourner en face pour le considérer”21. Do
mesmo modo, o ser do valor “transit [la conscience] de sa présence fantôme”22 de maneira
que ele “n’est pas posé par et devant la conscience ; il n’y a pas conscience de cet être,
puisqu’il hante la conscience non-thétique (de) soi” 23. Voltaremos a estas citações com mais
detalhes, mas neste momento já podemos observar as principais características do
assombramento. Elas dizem respeito ao caráter deste modo paradoxal de uma presença não
localizável e que, no entanto, estrutura o modo de ser do para-si. O assombramento
corresponde assim a esta presença das estruturas fáticas do para-si no próprio plano
translúcido, não tético, de modo que podemos afirmar que não há translucidez que não seja
assombrada. Como Sartre não admitia pensar esta presença em termos de passividade - que
para ele consiste num conceito próprio à descrição de relações causais -, ele acaba por
conferir ao assombramento esta função de mostrar de que modo o para-si pode “ser e não ser”
ao mesmo tempo seu passado, seu ser-para outro, etc. Se o para-si é e não é o seu passado,
como descrevemos anteriormente, é porque este o assombra: “Le passé peut bien alors être
conçu comme étant dans le présent, mais on s’est ôté les moyens de présenter cette
immanence autrement que comme celle d’une pierre au fond de la rivière. Le passé peut bien
hanter le présent, il ne peut pas l’être; c’est le présent qui est son passé”24 .
Assombramento do passado, do valor, do outro, dos possíveis; uma presença
“assombrante” num mundo ele mesmo assombrado pelas ausências, pelas qualidades, pelo
valor em sua forma concreta; tendo o para-si seu projeto original assombrado pelo espectro do
instante que tudo pode mudar, assombrado pela morte, que assombra o “cœur même de
chacun de […] projets [du pour-soi] comme leur inéluctable envers”25, L’Être et le Néant nos
apresenta uma verdadeira hantologie. Ao acentuar as relações de assombramento, podemos ler
a ontologia sartriana para além dos dualismos, de modo que podemos investigar como ser e

20 EN, p. 176.
21 EN, p. 541.
22 EN, p. 127.
23 Ibid.
24 EN, p. 148. (grifo nosso)
25 EN, p. 592.
!255

nada, subjetividade e objetividade estão implicados justamente por esta relação peculiar. Não
obstante, este modo de presença-ausente não localizável, característico do assombramento,
nos revela ao mesmo tempo um plano de investigação de modos de ser intermediários entre
ser e nada que denominamos de plano da espectralidade. Somente a partir da perspectiva da
hantologie, podemos considerar os modos espectrais da ontologia sartriana que revelam, na
realidade, toda sua riqueza.

§3. A espectralidade.

Qu’est-ce que suivre un fantôme ? Et si cela revenait à être suivi


par lui, toujours, persécuté peut-être par la chasse même que
nous lui faisons ? Là encore ce qui paraît au-devant, l’avenir,
revient d’avance : du passé, par-derrière.

Derrida, Spectres de Marx

Mais ce fantôme - précisément parce qu’il n’est rien - ne se


laissera pas faire : quand l’enfant se retourne vers lui, il
disparaît; quand Genet cherche à le fuir, brusquement, comme
l’oiseau rebelle de Carmen, il est là.

Sartre, Saint Genet

a) Espectros de Derrida.

A complexidade do tema dos espectros e do assombramento em Derrida, sobretudo em


Spectres de Marx, é notável e se perderia se nos forçássemos a resumi-la. Teríamos de mostrar
minimamente a relação dos espectros com o tema da herança, da lei, do luto, do traço, da sua
relação com a psicanálise e com a tecnologia moderna, entre outros, através de uma inserção
teórica distinta de nosso objetivo. O que devemos fazer então é um recorte, delimitando
aquilo que, ao ler sobre os espectros em Derrida, transformou nossa leitura de L’Être et le
Néant e nos fez ver aí um plano espectral.
!256

O que nos interessa investigar, parafraseando Derrida, é “qu’est-ce que l’être-là d’un
spectre? quel est le mode de présence d’un spectre ?” 26. Dissemos no início deste trabalho que
Derrida caracteriza o espectro como uma incorporação paradoxal, um “algo” difícil de ser
nomeado: nem alma, nem corpo, e alma e corpo, que consiste num “devenir-corps, une
certaine forme phénoménale et charnelle de l’esprit” 27. Em uma entrevista intitulada
Spectrographies, Derrida acentua ainda o modo de visibilidade de um espectro:

Le spectre, c’est d’abord du visible. Mais c’est du visible invisible, la


visibilité d’un corps qui n’est pas présent en chair et en os. Il se refuse à
l’intuition à laquelle il se donne, il n’est pas tangible. Fantôme garde la
même référence au phainesthai, à l’apparaître pour la vue, à la brillance du
jour, à la phénomenalité. Et ce qui se passe avec la spectralité, avec la
fantoménalité […], c’est que devient alors quasiment visible ce qui n’est
visible que pour autant qu’on ne le voit pas en chair et en os. C’est une
visibilité de nuit28.

Os espectros, portanto, não se dão, como diria Husserl, “em carne e osso” à intuição,
dado que se trata de uma aparição não intuível, que só adquire visibilidade justamente quando
não é visada, uma “visibilité de nuit”. Para Derrida, a lógica do espectro desconstrói a divisão
mesma entre visível e invisível, fenomenal e não fenomenal: “à la fois visible et invisible, à la
fois phénoménal et non phénoménal : une trace qui marque d’avance le présent de son
absence”29. Já podemos entrever nestas afirmações que a lógica espectral vem colocar em
questão aquilo que Derrida identifica como metafísica da presença, aqui em sua versão
husserliana, na medida em que esta última se atém ao motivo da presença plena, ao
imperativo intuicionista a partir do qual o projeto de conhecimento comanda o conjunto da
descrição30. Em outros termos, Derrida evidencia que o princípio dos princípios da
fenomenologia “signifie d’abord la certitude, elle-même idéale et absolue, que la forme
universelle de toute expérience (Erlebnis) et donc de toute vie, a toujours été et sera toujours
le présent. Il n’y a et il n’y aura jamais que du présent. L’être est présence ou modification de
présence”31. Voltaremos a este ponto, mas já podemos observar que, em contraposição ao
privilégio do presente vivo do intuicionismo, Derrida pensa o modo de “presença” do espectro
como uma presença daquilo que não pode ser intuído, pois se trata de um não objeto, de um

26 DERRIDA, J. Spectres de Marx, p. 69.


27 Ibid., p. 25.
28 DERRIDA, J. & STIEGLER, B. Spectrographies. In: Échographies de la télévision : entretiens filmés. Paris :
Galilée, 1996, p. 130.
29 Ibid., p. 131.
30 DERRIDA, J. La voix et le phénomène. Paris: PUF, 2012, p. 114.
31 DERRIDA, J. La voix et le phénomène, p. 63-64.
!257

presente não presente: “être-là d’un absent ou d’un disparu ne relève plus du savoir. Du moins
plus de ce qu’on croit savoir sous le nom de savoir. On ne sait pas si c’est vivant ou si c’est
mort”32. Esta indiscernibilidade entre presente e não presente, vivo e morto, própria ao
espectro, coloca em questão lógicas binárias (e também dialéticas) que opõem a “presença
efetiva” a seu outro, como diz Derrida:

S’il y a quelque chose comme de la spectralité, il y a des raisons de douter de


cet ordre rassurant des présents, et surtout de la frontière entre le présent, la
réalité actuelle ou présente du présent et tout ce qu’on peut lui opposer :
l’absence, la non-présence, l’ineffectivité, l’inactualité, la virtualité ou même
le simulacre en général, etc. Il y a d’abord à douter de la contemporanéité à
soi du présent. Avant de savoir si on peut faire la différence entre le spectre
du passé et celui du futur, du présent passé et du présent futur, il faut peut-
être se demander si l’effet de spectralité ne consiste pas à déjouer cette
opposition, voire cette dialectique, entre la présence effective et son autre33 .

Disto decorre uma temporalidade própria ao espectro, que não é mais a do eterno
presente, como na temporalidade instantaneísta que demarcamos anteriormente, mas a de um
tempo que escapa à identidade a si do presente, um tempo desajustado, intempestivo, não
contemporâneo a si, “out of joint”, como diz Derrida, a partir de uma fala de Hamlet. O autor
demarca assim o caráter de acontecimento da aparição dos espectros, que se deixa notar pela
ideia de visitação: os espectros frequentam, visitam. Trata-se da “fréquence d’une certaine
visibilité”34, uma visibilidade invisível que não pode ser tematizada mas que visita (rend
visite) frequentemente sem propriamente habitar, ou habita sem habitar, sem residir35: “voilà
le lieu hors lieu des fantômes partout où ils feignent d’élire domicile”36. Isto significa que os
espectros assombram, pois o assombrar é próprio desta visitação, desse modo de aparição de
algo que não está presente “em carne e osso”, mas que frequenta; como um ir e vir repetitivo,
mas a cada vez provido do caráter inusitado de uma primeira vez. Um dos efeitos mais
perturbadores dos espectros, mostra Derrida, é justamente esta possibilidade de reaparecer, de
ir e voltar, de forma surpreendente, não esperada, não controlada37 . “Um espectro (Gespenst)
ronda a Europa” diziam Marx e Engels no início Manifesto do partido comunista. Nada mais

32 DERRIDA, J. Spectres de Marx, p. 26.


33 Ibid., p. 72. Ver também na p. 108 a oposição entre “effectivité (présente, actuelle, empirique, vivante - ou non)
et idéalité (non-présence régulatrice ou absolue)”.
34 Ibid., p. 165.
35 Cf. Ibid., p. 165; p. 42.
36 Ibid., p. 173.
37 Derrida, citando Hamlet, destaca uma fala de Marcellus que mostra o caráter de surpresa da aparição. O

personagem se refere ao espectro como “esta coisa” (this thing), perguntando a Barnardo se “isso” tinha voltado
na noite anterior. Cf. ibid., p. 26.
!258

assustador do que um fantasma e sua impossibilidade de “morrer”, de estar sempre porvir e


poder sempre voltar (toujours à venir et à re-venir), que assombra através de uma espera da
aparição.
O caráter perturbador do assombramento dos espectros provém ainda, e
principalmente, do que Derrida nomeia, a partir de uma cena de Hamlet, de efeito de viseira
(effet de visière), que se caracteriza pelo fato de que “nous ne voyons pas qui nous regarde” 38.
Aqui, Derrida estabelece uma relação entre espectralidade, assombramento e olhar que é de
extrema importância para nossas análises. Dissemos há pouco que a presença dos espectros é
a de algo que não pode ser intuído. Podemos acrescentar agora que, por isso mesmo, este tipo
de presença produz efeitos importantes de assombramento, na medida em que, para Derrida, o
espectro é “virtuellement plus efficace que ce qu’on appelle tranquillement une présence
vivante”39. Isto devido ao “efeito de viseira”, isto é, ao fato de que um espectro é aquele que
“nous regarde. Le spectre, ce n’est pas simplement quelqu’un que nous voyons venir revenir,
c’est quelqu’un par qui nous nous sentons regardés, observés, surveillés”40. Ou seja, o
espectro não é somente a invisibilidade visível que não se deixa intuir, mas ele é
principalmente “quelqu’un qui me regarde sans réciprocité possible”41 e que possui o direito
de olhar. Há, portanto, uma dissimetria, uma heteronomia, no direito de olhar, que faz do
olhar a própria espectralidade. A “presença” do espectro é assim este sentir-se olhado sem
poder ver quem olha, sem poder localizar o olhar, embora haja o sentimento de que ele está lá:
“Et même quand il est là, c’est-à-dire là sans être là, on sent que le spectre regarde”42 , já que
“le spectre d’abord nous voit. De l’autre côté de l’oeil, effet de visière, il nous regarde avant
même que nous ne le voyions ou que nous ne voyions tout court. Nous nous sentons observés,
parfois surveillés par lui avant même toute apparition” 43.
A assimetria do olhar própria à espectralidade, juntamente como seu caráter refratário
a todo modo de conhecimento objetivo - seu escape às definições conceituais, por exemplo -,
compõem seu caráter perturbador. Isto aponta para uma tendência à conjuração dos espectros,

38 Ibid., p. 26. A “viseira” é a parte que cobre os olhos na armadura que porta o fantasma do rei em Hamlet. Na
cena em questão, ela estaria levantada, mas isto não muda nada, diz Derrida, “même quand elle est levée, enfait,
sa possibilité continue de signifier que quelqu’un, sous l’armure, peut à l’abri voir sans être vu ou sans être
identifié” ibid., p. 28.
39 Ibid., p. 35.
40 DERRIDA, J. & STIEGLER, B. Spectrographies, p. 135.
41 Ibid., p. 137.
42 DERRIDA, J. Spectres de Marx, p. 164.
43 Ibid., p. 165.
!259

normalmente compreendida por vias misteriosas ou místicas, mas que pode ser observada em
procedimentos analíticos e raciocínios argumentativos e mesmo em traduções. É o que
Derrida chama de exorçanalyse, que consiste numa tentativa de retirar precisamente o caráter
espectral dos espectros, ou de negar que um morto pode ser mais potente que um vivo e com
isso a necessidade de repetir e garantir incessantemente que o morto está realmente morto 44.
Esta atitude se encarna na interessante figura daquilo que Marcellus, personagem de Hamlet,
chama de scholar. Vale mostrar este trecho de Spectres de Marx sobre isso:

Or ce qui paraît presque impossible, c’est toujours de parler du spectre, de


parler au spectre, de parler avec lui, donc surtout défaire ou de laisser parler
un esprit. Et la chose semble encore plus difficile pour un lecteur, un savant,
un expert, un professeur, un interprète, bref pour ce que Marcellus appelle un
scholar. Peut-être pour un spectateur en général. Au fond, le dernier à qui un
spectre peut apparaître, adresser la parole ou prêter attention, c’est, en tant
que tel, un spectateur. Au théâtre ou à l’école. Il y a des raisons essentielles à
cela. Théoriciens ou témoins, spectateurs, observateurs, savants et
intellectuels, les scholars croient qu’il suffit de regarder. […] Un scholar
traditionnel ne croit pas aux fantômes - ni à tout ce qu’on pourrait appeler
l’espace virtuel de la spectralité. Il n’y a jamais eu de scholar qui, en tant que
tel, ne croie à la distinction tranchante entre le réel et le non-réel, l’effectif et
le non-effectif, le vivant et le non-vivant, l’être et le non-être (to be or not to
be, selon la lecture conventionnelle), à l’opposition entre ce qui est présent et
ce qui ne l’est pas, par exemple sous la forme de l’objectivité45.

É em nome da objetividade exigida pelo scholar que a espectralidade é ignorada, ou


“conjurada” das análises teóricas nos mais diversos campos do conhecimento. Derrida
identifica traços deste gesto, em maior ou menor grau, até mesmo nas filosofias de Heidegger
e Marx, por exemplo. Na verdade, o gesto consiste em “dénier à toute spectralité une dignité
scientifique, philosophique, technique, une dignité de pensée ou de question”46. As vezes, é
ainda em nome “de la scientificité de la science qu’on conjure les fantômes ou qu’on
condamne l’obscurantisme, le spiritisme, bref tout ce qui traite de hantise et de spectres”47 . O
ponto que consideramos interessante nestas últimas posições é a forma como Derrida legitima
o modo espectral. E isso, a nosso ver, é importante em dois sentidos: em primeiro lugar, falar
dos espectros não significa adentrar num campo místico, religioso, etc., pois este é o lugar que
a espectralidade ocupa para um olhar objetivo que acredita “qu’il suffit de regarder”; em
segundo lugar, o espectro tem um modo de presença próprio, um tempo próprio, e não se trata
de algo ilusório, que “não existe”, porque ele desafia a própria lógica entre existente e não

44 Cf. Ibid., p. 84-86.


45 Ibid., p. 32-33.
46 DERRIDA, J. & STIEGLER, B. Spectrographies, p. 142.
47 Ibid., p. 133.
!260

existente. Por isso, em sua breve participação no filme Ghost dance, Derrida diz “vive les
fantômes” ao invés de responder com um sim ou um não à pergunta se ele acredita ou não em
fantasmas48. Atuar num filme, continua Derrida, é como deixar falar em si um fantasma, como
um ventríloquo que deixa parasitar a voz de outro; não de outro qualquer, mas de “seu próprio
fantasma”. Assim, o fantasma diz respeito a este outro em si, que perturba a identidade de um
sujeito: “il n’y a pas de Dasein du spectre mais il n’y a pas de Dasein sans l’inquiétante
étrangeté, sans l’étrange familiarité (Unheimlichkeit) de quelque spectre”49. O espectro vem
surgir nesta quebra da identidade da presença a si, nesta disjuntura que abre um espaço e
“c’est dans cet espace, ce chez-soi hors de chez-soi, que le spectre arrive”50.

b) Espectros de Sartre.

A lógica espectral vem abalar os dualismos por via do movimento desconstrutivo de


Derrida. Neste sentido, é certo que fazer uma crítica aos dualismos sartrianos a partir de
Derrida seria um caminho possível para uma pesquisa que mostraria em que medida Sartre
pode ser situado dentre os scholars, isto é, em meio aqueles que privilegiam a visão e que
retiram o caráter de espectralidade dos fenômenos de modo a se inserir nos pressupostos da
metafísica da presença. Como viemos de afirmar, este seria um caminho de investigação
possível e de alguma maneira ele está de acordo com a imagem mais difundida do
pensamento de Sartre, que vimos ser aquela de uma filosofia dualista. Entretanto, ao delimitar
aspectos das análises derridianas sobre a espectralidade, nosso caminho não se define por tal
via. O que de fato ocorre é que tais análises modificaram nossa leitura de L’Être et le Néant a
ponto de aí encontrarmos implicitamente um plano espectral, que supera o quadro dualista. Se
nos ativéssemos à leitura dualista clássica, todos os modos de ser de L’Être et le Néant que
serão identificados como espectrais seriam considerados apenas como contraditórios. O
próprio Sartre, por algumas vezes, falou nestes termos. Vimos que Merleau-Ponty, por sua
parte, interpretou a contradição em termos lógicos e não dialéticos e viu aí um dualismo

48 The Science Of Ghosts - Derrida In 'Ghost Dance’. Direção: Ken McMullen. (5’23). Disponível em: <https://
www.youtube.com/watch?v=0nmu3uwqzbI> . Acesso em junho de 2016.
49 DERRIDA, J. Spectres de Marx, p. 165. Em “Spectrographies” Derrida traduz Unheimlichkeit como

“inquiétante étrangeté” se referindo não somente à Freud, referência mais clássica com relação ao termo, mas
também a Heidegger em Être et Temps como “l’élément de la hantise (autre chez soi, le réapparition des spectres,
etc.).” DERRIDA, J. & STIEGLER, B. Spectrographies, p. 146.
50 Ibid., p. 147.
!261

insuperável entre ser e nada. Entretanto, o que dizer destes modos contraditórios se os
considerarmos de forma legítima, assim como Derrida o fez para com os espectros? Qual a
importância de tais modos de ser na ontologia sartriana? Ora, é impressionante que Sartre
tenha se dedicado a descrever tal diversidade de modos de ser “contraditórios”, apenas para
demonstrar sua falsidade diante de uma consciência “pura” e de um ser que é pura
positividade. Mesmo que pensemos rapidamente nas análises sobre o psíquico, sobre o
imaginário, sobre a afetividade original, sobre o ser-para outro, sobre as relações mágicas,
entre outros, já é possível observar que a predominância de modos de ser em L’Être et le
Néant é justamente a dos modos “contraditórios”. Em outros termos, como já mencionamos
inicialmente, talvez o mais difícil seja apreender ao longo da obra os modos “para-si” e “em-
si” em toda sua pureza. Sendo assim, de duas uma: ou afirmamos que há um dualismo
insuperável entre ser e nada, subjetividade e objetividade e encerramos a questão; ou, ao
contrário, saímos dos dualismos a fim de realizar um estudo sobre a multiplicidade dos modos
de ser. Este segundo movimento nos parece mais rico e mais interessante de modo que aquilo
que era visto como contraditório para um olhar centrado no dualismo, mesmo que este seja
por vezes do próprio Sartre, passa a ser espectral para um olhar que se desprende deste quadro
reducionista. Isto é, também em nosso contexto, o espectral vem abalar a lógica dualista e os
espectros surgem neste espaço de quebra.
É importante demarcar que neste segundo caminho de leitura, que é o nosso, a escolha
pelo espectral não é, entretanto, arbitrária. A linguagem sartriana para se referir aos modos
“contraditórios”, como veremos ao longo desta “Terceira parte”, é marcada
predominantemente pelo termo fantasma (fantôme)51 . Sartre fala em “presença fantasma”,
“díade fantasma”, “escoamento fantasma” de uma “temporalidade fantasma”, “em-si
fantasma”, entre outros. Em alguns casos, como na descrição do psíquico, trata-se também de
um modo intermediário com relação a um dualismo: os objetos psíquicos são sombras, nem
translúcidos, nem opacos; enquanto que os objetos imaginários são “objetos-fantasmas”.
Outro aspecto predominante no texto sartriano, como dissemos há pouco, é o assombramento.
Ora, o assombramento é próprio de um espectro, de uma presença de algo não localizável, que
visita e frequenta um campo, perturbando-o por via de seus efeitos espectrais.

51Sartre fala em fantasma (fantôme) e não em espectro. Falaremos em espectro dado que a inspiração da leitura
partiu das análises de Derrida, que utiliza os termos como sinônimos. Basta verificar sua tradução de Gespenst,
do Manifesto do partido comunista, por espectro.
!262

É neste sentido que a consideração sobre os espectros feita por Derrida nos remete ao
assombramento intrínseco a L’Être et le Néant. Os modos que denominamos espectrais nesta
obra, assim como os espectros derridianos, perturbam aquilo que é assombrado. Esta
proximidade fica ainda mais nítida na relação entre assombramento e olhar. Quem, senão
Sartre, falou de modo emblemático do assombramento próprio ao sentir-se olhado pelo outro?
E, além disso, de uma assimetria do olhar, isto é, do fato de não poder olhar aquele que olha?
Veremos assim que aquilo que Derrida denominou de efeito de viseira corresponde de algum
modo ao assombramento pelo olhar do outro em Sartre, indicando-nos de forma interessante a
espectralidade própria ao modo de presença do outro.
Diante disso, concluímos que a hantologie consiste numa leitura que faz surgir os
espectros de Sartre. Derrida mostrou bem que é próprio ao espectro surgir das sombras, numa
“visibilidade da noite” e é exatamente os planos de sombra e de opacidade que buscamos
priorizar a fim de poder falar dos espectros. Isto significa que a hantologie não privilegiará a
translucidez, mas sua face sombria (sa face d’ombre), e ainda de que maneira esta última
perturba a própria translucidez.

Capítulo II
A translucidez e sua face sombria

§1. O sentido da translucidez e o problema da transparência da consciência.

Le monde où ils l’avaient enfermé, où de toutes parts ils


l’encerclaient, était sans issue. Partout leur atroce clarté, leur lumière
aveuglante qui nivelait tout, supprimait les ombres et les aspérités.

Sarraute, Tropismes.

[Sartre] a bien vu (il y insiste dans La Nausée) le caractère


impénétrable des objets: en aucune mesure les objets ne
communiquent avec nous. Mais il n’a pas situé de façon précise
l’opposition de l’objet et du sujet. La subjectivité est claire à ses yeux,
elle est ce qui est clair!

Bataille, Genet et l’étude de Sartre sur lui.

De La Transcendance de l’Ego a L’Être et le Néant, a consciência pré-reflexiva não


perde sua característica de translucidez. Do mesmo modo, tudo aquilo que é da ordem do
objeto é designado pela qualidade de opacidade. O argumento de Sartre nos primeiros
escritos, como vimos, é o de que o Ego, ou qualquer outro objeto, consiste num centro de
opacidade e não pode ser admitido na região consciente senão ao preço de substancializa-la.
Após a mudança no pensamento sartriano, a consciência não é mais nua, pois Sartre passa a
falar do para-si “sujeito” como modo de ser da consciência, estabelecendo a tensão entre “ser
e não ser”. Porém, a transparência continua sendo uma qualidade da consciência e isto
!264

significa que tudo o que diz respeito à região ontológica “para-si” deve ser translúcido1, como
reforça Sartre ainda em L’Être et le Néant: “Introduire dans l’unité d’un cogito préréflexif un
élément qualifié extérieur à ce cogito, ce serait en briser l’unité, en détruire la translucidité; il
y aurait alors dans la conscience quelque chose dont elle ne serait pas conscience, et qui
n’existerait pas en soi-même comme conscience” 2. A região ontológica para-si, que é a da
consciência pré-reflexiva, deve ser caracterizada então pela translucidez, que é o plano da
relação imediata da consciência (de) si, também compreendida como presença a si ou jogo de
reflexos.
Ao dotar a consciência da característica de translucidez, Sartre se inscreve numa
tradição filosófica em torno da ideia de luminosidade, a qual Derrida, em seu texto La
mythologie blanche, identifica como sendo “le cercle de l’héliotrope”3. Podemos dizer que
desde Platão é à luz do sol que se contempla às verdades, no momento em que o olhar se
habitua a não mais estar nas sombras da caverna, e que daí em diante as metáforas do círculo
e do sol são utilizadas de maneiras distintas pelos mais diversos filósofos. Para Descartes,
ressalta Derrida, é a “lumière naturelle [que] constitue l’éther même de la pensée et de son
discours propre”4. O cogito cartesiano passa a ser então um novo paradigma não somente do
lugar de luminosidade divina, mas também da transparência do sujeito a si mesmo,
atravessado por tal luminosidade. Desde então, na tradição idealista clássica pós-cartesiana,
resume Badiou, “le sujet désigne ce point d’être transparent, en posture de donation
immédiate à lui-même, par où passe tout accès à l’existence comme telle” 5. Ao falar de
luminosidade, translucidez, sombras, opacidade e, principalmente, ao “partir do cogito”,
Sartre se inscreve na herança desta tradição filosófica, pois Bataille tem razão ao dizer que “la
subjectivité est claire à ses yeux, elle est ce qui est clair!”. Para Badiou, o não ser da
consciência livre sartriana é o verdadeiro nome da transparência, de modo que seria até
excessivo dizer que aquilo que se dá a si mesmo em transparência é. O cogito sartriano é
“transparence de sa transparence”6 , e o que o cogito nos dá, neste caso, e que torna uma

1 Transparência e translucidez, neste contexto, são sinônimos, embora Sartre utilize o segundo termo mais
frequentemente. Translucidez indica ainda o caráter de lucidez da consciência, como comentaremos adiante.
2 EN, p. 114.
3 DERRIDA, J. La mythologie blanche. In: Marges de la philosophie. Paris: Minuit, 1972, p. 318.
4 Ibid., p. 319.
5 BADIOU, A. Théorie du sujet. Paris: Éditions du Seuil, 1982, p. 294.
6 Ibid.
!265

ontologia possível, é o nada (rien), conclui Badiou. Quais seriam então as implicações da
posição sartriana ao afirmar uma consciência transparente?
Tendo em vista as notas de Vérité et existence, pode-se fazer uma distinção mais
precisa entre subjetividade e claridade. Nestas, Sartre se refere ao conhecimento intuitivo em
termos de iluminação: “connaître, c’est tirer l’Être de la nuit de l’Être sans pouvoir l’amener à
la translucidité du Pour-soi. Connaître, c’est malgré tout conférer une dimension d’être à
l’Être : la luminosité”7. Mais adiante no texto, ele afirma ainda que “l’Être se dévoile toujours
à un point de vue et l’on est tenté de faire de ce point de vue la subjectivité. Mais cela n’est
pas. La subjectivité, c’est seulement l’éclairement” 8. A subjetividade é definida então como
possibilidade de iluminar um campo temático, este último designado em L’Être et le Néant
como aquilo que se encontra “devant lui [le pour-soi] comme ce qu’il éclaire”9. Todavia,
pode-se perguntar: a translucidez é ela mesma a luminosidade projetada no mundo? Pois a
qualidade de translúcido é a de algo que deixa passar a luz e não a luz ela mesma. Como
Sartre, diferentemente de Descartes, não admite uma fonte divina de luminosidade, tal
iluminação é brevemente descrita em termos de intuição e o que nos interessa é que ela diz
respeito à relação da consciência com o mundo e não com ela mesma. A relação da
consciência com ela mesma é o meio pelo qual uma luz a atravessa, é a dimensão ontológica
da translucidez. Sendo assim, quais são as consequências deste posicionamento sartriano em
relação à histórica aproximação metafórica entre verdade, conhecimento, luz e consciência de
si? Na realidade, tal pergunta é demasiado ampla e poderia por si só consistir numa
investigação à parte; por isto devemos recolocá-la, não somente restringindo sua amplitude,
mas também com o objetivo de apontar os problemas que daí decorrem, isto é, qual a
consequência de pensar a consciência em termos de translucidez?
Ricœur, nas análises sobre o inconsciente em Philosophie de la Volonté I, faz algumas
considerações sobre no que consiste o “fracasso da doutrina da transparência da
consciência”10. Seus argumentos, grosso modo, nos fazem compreender que uma filosofia da
consciência transparente se baseia num preconceito simétrico ao do “realismo do
inconsciente”. Este último problema, F. Worms nos esclarece, foi explorado não somente por
Ricœur, mas também por outros, incluíndo Sartre, a partir da influência da crítica feita por

7 VE, p. 19.
8 VE, p. 25.
9 EN, p. 176.
10 RICŒUR, P. Philosophie de la volonté I, p. 471.
!266

Politzer à psicanálise em seu trabalho Critiques des fondements de la psychologie, publicado


em 1928, em que ele coloca a seguinte questão central, resumida por Worms: “l’ignorance du
sujet sur lui-même, qui est la grande découverte de la psychanalyse, doit-elle conduire à
l’affirmation (ontologique, biologique en son fond) de l’inconscient, ou bien celle-ci au
contraire trahit-elle le sens de cette découverte?”11 . Para Ricœur, é possível encontrar uma
resposta original a esta pergunta ao abrir mão ao mesmo tempo de uma concepção realista do
inconsciente e idealista da consciência. A ilusão desta última perspectiva é a de que a
consciência pode se autoposicionar de maneira a se apreender completamente, num
movimento cujo paradigma encontra-se no cogito cartesiano. Além disso, a consciência
transparente é pura espontaneidade e não admite passividade, de modo que os filósofos que a
pressupõem “ont refusé à la pensée ce fond obscur et cette spontanéité cachée à elle-même” 12.
A alternativa entre um realismo do inconsciente e uma consciência transparente, para Ricœur,
é, por fim, “um falso dilema”, pois há de se pensar uma passividade inerente à atividade, dado
que é justamente ao admitir este “fond obscure” que ele acredita ser possível à fenomenologia
“dépasser une eidétique trop claire, jusqu’à élaborer des « index » du mystère de
l’incarnation” 13.
Tendo em vista esta última afirmação, nota-se em seguida que o problema da
transparência da consciência encontra-se em estreita ligação com o problema da encarnação,
ponto que já podíamos entrever nas críticas de Merleau-Ponty. A “purificação” da consciência
que Sartre realiza em La Transcendance de l’Ego faz com que a consciência transparente seja
consciência nua, desencarnada. Em contraposição, para Merleau-Ponty, “si nous sommes en
situation, nous sommes circonvenus, nous ne pouvons pas être transparents pour nous-même,
et il faut que notre contact avec nous-mêmes ne se fasse que dans l’équivoque” 14. Conceber
uma consciência transparente é assim se filiar a herança cartesiana do cogito de uma
apreensão imediata e adequada de si desprendida da facticidade. A esse respeito, continua
Merleau-Ponty, “le contact de ma pensée avec elle-même, s’il est parfait, me ferme sur moi-
même et m’interdit de me sentir jamais dépassé, il n’y a pas d’ouverture ou d’“aspiration” à
un Autre pour ce Moi qui construit la totalité de l’être et sa propre présence dans le monde,

11 WORMS, F. Le problème de l’inconscient dans le moment de l’existence. Les Temps Modernes. Sartre avec
Freud. n. 674-675, p. 4-15, 2013.
12 RICŒUR, P. Philosophie de la volonté I, p. 473.
13 Ibid., p. 275.
14 Php, p. 441.
!267

qui se définit par la “possession de soi” et qui ne trouve jamais au-dehors que ce qu’il y a
mis”15. Por esta razão toda “percepção interior” é inadequada, pois tal coincidência a si é
impossível, e por isso na Phénoménologie de la perception o cogito só continua válido se
invertido, isto é, “ce n’est pas mon existence qui est ramenée à la conscience que j’en ai, c’est
inversement le Je pense qui est réintégré au mouvement de transcendance du Je suis et la
conscience à l’existence”16. Ao seguir esta linha de pensamento, pressupor uma consciência
transparente significa ao mesmo tempo conceber uma filosofia idealista e uma ideia solipsista
de sujeito, na medida em que tal apreensão de si só ocorreria caso a consciência pudesse se
apreender apartada de sua facticidade. Sendo assim, se colocarmos estas questões à luz de
nossa argumentação até aqui, levando em conta que a mudança ocorrida na filosofia de Sartre
se deu precisamente nos pontos que são neste momento cruciais - facticidade e temporalidade
- como a consciência pode manter ainda sua característica de translucidez? Acreditamos que
só podemos responder a esta perguntas se atentarmos para o que significa tal característica no
contexto de L’Être et le Néant, assim como seus limites.

Com base nestas breves considerações sobre a posição de Ricœur em Philosophie de


la Volonté I e Merleau-Ponty em Phénoménologie de la perception, podemos observar três
problemas que estão em jogo na ideia de uma consciência transparente: 1) A identidade e
adequação do sujeito a si; 2) Um domínio total do sujeito sobre si (maîtrise sur soi), sem
possibilidade de ilusão e erro, já que não se admite uma esfera inconsciente; 3) A concepção
de uma subjetividade pura, apartada de sua facticidade. Não é por acaso que colocamos neste
momento Ricœur e Merleau-Ponty lado a lado, já que ambos - nas obras referidas - procuram
pensar ainda um cogito, porém, encarnado, no intuito de escapar exatamente do problema de
uma consciência transparente. Com relação à concepção de um sujeito consciente como
“domínio de si”, podemos acrescentar ainda uma observação de M. Foucault sobre sua
incompatibilidade com a filosofia sartriana, que rejeita o inconsciente: “Moi je ne ressens
aucune compatibilité avec l’existentialisme tel que l’a défini Sartre. L’homme peut avoir le
contrôle complet de ses propres actions et de sa propre vie, mais il existe des forces

15 Php, p. 431-432.
16 Php, p. 443.
!268

susceptibles d’intervenir que l’on ne peut ignorer” 17. Trata-se de uma breve fala de entrevista
que é muito genérica para que possamos tirar conclusões. Contudo, pode-se entrever aí a ideia
de que a filosofia de Sartre, que é uma filosofia da consciência, suporia um “domínio de si”
do sujeito, um controle completo do homem sobre as suas ações e sua vida, em razão de não
haver espaço para o inconsciente. O ponto fundamental deste tipo de constatação nos remete
ao problema da transparência da consciência dado que a recusa do inconsciente, somada a
ideia de uma consciência transparente, resultariam na impossibilidade de um
desconhecimento de si (méconnaissance de soi) do sujeito, ou na impossibilidade de erro ou
ilusão na relação a si. Merleau-Ponty resume bem a ligação entre estes pontos: “Celui devant
qui tout paraît ne peut être dissimulé à lui-même, il s’apparaît tout le premier, il est cette
apparition de soi à soi, il surgit de rien, rien ni personne ne peut l’empêcher d’être soi, ni l’y
aider. Il fut toujours, il est partout, il est roi dans son île déserte” 18.
Solipsismo, domínio de si, idealismo, identidade, seriam estas as consequências do
conceito de translucidez na filosofia de Sartre? A mudança na concepção de temporalidade e a
inserção da facticidade não abalariam de algum modo tal translucidez? Translucidez e
opacidade seriam termos de mais um dualismo sartriano? Eis algumas questões que devemos
abordar minimamente a fim de pensar de que modo compreendemos as características de
translucidez e opacidade na perspectiva da hantologie.
Em primeiro lugar, sabemos que em L’Être et le Néant a definição do “sujeito” como
para-si é desenvolvida como uma crítica à identidade. Colocamos sujeito entre aspas
precisamente por esta razão, pois, se como diz Descombes, “de façon générale, on appelle
sujet (subjectum) le terme que l’on retrouve identique à lui-même en différentes
circonstances”19, este, definitivamente, não é o caso do modo de ser para-si. Sendo o para-si

17 FOUCAULT, M. Conversation sans complexes avec le philosophe qui analyse les « structures du
pouvoir » (entretien avec J. Bauer, 10, octobre 1978). In:______ . Dits et écrits 1954-1988. II (1976-1988).
Paris : Gallimard, 2001, p. 671. (grifo nosso). Em outra entrevista, Foucault inclui Merleau-Ponty em sua crítica
à recusa do inconsciente: “Le problème, c’était précisément l’inconscient, l’inconscient qui ne pouvait pas entrer
dans une analyse de type phénoménologique. La meilleure preuve qu’il ne pouvait pas entrer dans la
phénoménologie, au moins telle que les Français le concevaient, c’est que Sartre, ou Merleau-Ponty – je ne parle
pas des autres – n’ont pas cessé d’essayer de réduire ce qui était pour eux le positivisme, ou le mécanisme, ou le
chosisme de Freud au nom de l’affirmation d’un sujet constituant.” Id. Structuralisme et poststructuralisme.
Entretien avec G. Raulet. In: ______ . Dits et écrits 1954-1988. II (1976-1988). Paris : Gallimard, 2001, p.
1.254.
18 S, p. 27. Afirmação que nos remete a de V. de Coorebyter: “en évitant ainsi l’opacification de la conscience

Sartre la menace de substantialisation par narcissisme, par inhérence à soi ou fascination sur soi, au risque d’une
rechute dans l’abîme autocentré du sens interne”. DE COOREBYTER, V. Sartre face à la phénoménologie, p.
255.
19 DESCOMBES, V. L’inconscient malgré lui. Paris : Gallimard, 2004, p. 22.
!269

negação da identidade e nunca idêntico a si20, devemos compreender da mesma maneira a


noção de presença a si, que vimos ser uma das estruturas imediatas do para-si “sujeito”. Isto
porque, ao usar termos clássicos das filosofias do sujeito como consciência de si e presença a
si, Sartre encontra-se no interior desta tradição, embora sua concepção de “presença a si” se
apresente como uma crítica às anteriores. A este respeito, diz Sartre: “Cette présence à soi, on
l’a prise souvent pour une plénitude d’existence et un préjugé fort répandu parmi les
philosophes fait attribuer à la conscience la plus haute dignité d’être. Mais ce postulat ne peut
être maintenu après une description plus poussée de la notion de présence” 21. Qual é então a
diferença?
Comentamos há pouco a relação entre a ideia de transparência da consciência e a
adequação do sujeito a si que implica identidade. Esta posição envolve certamente uma
concepção da temporalidade, a qual Derrida, a partir de Heidegger, mostrou muito bem ser
própria da “metafísica da presença”. Em La voix et le phénomène a crítica derridiana à
fenomenologia de Husserl concentra-se no fato de que este deixa intacto um pressuposto ao
praticar a redução fenomenológica, a saber: “le présent ou la présence du sens à une intuition
pleine et originaire”22. Isto significa que, segundo o princípio dos princípios que marca o
intuicionismo husserliano, o “presente vivo”, por mais que sua teoria da temporalidade possa
apresentar uma complexidade interessante, permanece sendo o “point-source”23 de suas
investigações fenomenológicas. Fato que leva Derrida a concluir que “malgré toute la
complexité de sa structure, la temporalité a un centre indéplaçable, un œil ou un noyau vivant,
et c’est la ponctualité du maintenant actuel”24. A presença a si indica, portanto, esta

20 A este respeito é curioso observar novamente uma afirmação de Foucault que atribui identidade ao sujeito
sartriano: “Dans une philosophie comme celle de Sartre, le sujet donne sens au monde. Ce point n’était pas remis
en question. Le sujet attribue les significations. La question était : peut-on dire que le sujet soit la seule forme
d’existence possible ? Ne peut-il avoir des expériences au cours desquelles le sujet ne soit plus donné, dans ses
rapports constitutifs, dans ce qu’il a d’identique à lui-même ? N’y aurait-il donc pas d’expériences dans
lequelles le sujet puisse se dissocier, briser le rapport avec lui-même, perdre son identité ?”. Entretien avec
Michel Foucault. Avec D. Trombadori, 1980. In: FOUCAULT, M. Dits et écrits 1954-1988 II, p. 869. Que o
sujeito sartriano dê sentido ao mundo é de fato uma questão a ser discutida, como veremos no capítulo sobre o
mundo, mas no que diz respeito ao fato de “perder sua identidade”, em que sentido ele poderia perder algo que
não tem, já que o para-si é definido como negação de identidade? Em outra entrevista, entretanto, Foucault
esclarece este ponto ao observar que ele enxerga a identidade do sujeito nas análises de Sartre através da noção
de autenticidade, e não do próprio “si” do sujeito: “Du point de vue théorique, je pense que Sartre écarte l’idée
de soi comme quelque chose qui nous est donné, mais grâce à la notion morale d’authenticité, il se replie sur
l’idée qu’il faut être soi-même et être vraiment soi-même”. À propos de la généalogie de l’éthique : un aperçu du
travail en cours. Entretien avec H. Dreyfus et P. Rabinow, 1983. In: FOUCAULT, M. Dits et écrits 1954-1988. II,
p. 1.212.
21 EN, p. 113.
22 DERRIDA, J. La voix et le phénomène, p. 3.
23 “le principium renvoie toujours, dans la phénoménologie, à ce “point-source”. Ibid, p. 73.
24 DERRIDA, J. La voix et le phénomène, p. 73.
!270

proximidade do sujeito a si mesmo que o permite apreender a própria vivência, como mostra
Derrida:

La valeur de présence, ultime instance juridique de tout ce discours, se


modifie elle-même sans se perdre chaque fois qu’il s’agit (aux deux
sens connexes de la proximité de ce qui est exposé comme objet d’une
intuition et de la proximité du présent temporel qui donne sa forme à
l’intuition claire et actuelle de l’objet) de la présence d’un objet
quelconque à la conscience dans l’évidence claire d’une intuition
remplie ou de la présence à soi dans la conscience, « conscience » ne
voulant rien dire d’autre que la possibilité de la présence à soi du
présent dans le présent vivant25.

O ponto que nos interessa nestas análises de Derrida é justamente o fato da noção de
“presença a si” acarretar de algum modo nesta identidade do sujeito consigo mesmo, já que há
possibilidade de apreensão da própria vivência pela reflexão, o que presume ser possível
posicionar e apreender a si mesmo no presente. Diante disso, se para Sartre a temporalidade
não é mais instantaneísta, como ele pode falar em “presença a si”, já que é a temporalidade
que faz com que “contrairement à l’assurance que nous en donne Husserl […] “le regard” ne
peut pas “demeurer”26? Evidentemente, ao pensar a consciência como “presença a si”, Sartre
se inscreve então no quadro mais clássico da metafísica da presença. No entanto, esta
inscrição não é identificação, considerando que se trata de uma presença que, como viemos de
citar, não se refere mais a uma plenitude ou a um imanentismo e nem mesmo é descrita
através dos moldes da reflexão, visto que é pré-reflexiva. Nosso objetivo neste momento é o
de mostrar que a “presença a si” sartriana não envolve um sujeito pleno, idêntico a si, e que
esta presença é na verdade um “escape” a si, uma diferença, uma “ausência”, uma presença
finalmente estranha às definições tradicionais do termo. Christina Howells, em Sartre and the
deconstruction of the subject27, chega mesmo a ver nesta “presença” sartriana - onde
“presence is precisely what prevents identity”28 -, uma antecipação da desconstrução do
sujeito husserliano realizada por Derrida em La voix et le phénomène29. Sem entrar no mérito

25 Ibid., p. 8.
26 Ibid., p. 122.
27 HOWELLS, C. Sartre and the deconstruction of the subject. In:______ . (Org). The Cambridge Companion to

Sartre. Cambridge: Cambridge University Press, 1992.


28 Ibid., p. 332.
29 HOWELLS, C. Sartre and the deconstruction of the subject, p. 333. A opinião da autora é a de que Derrida não

enxerga este potencial em Sartre, o que permitiria mesmo a estabelecer um diálogo com sua filosofia: “But in the
case of Sartre, Derrida focuses on selected terminology of existentialism and contrives to ignore its real emphasis
on negation. His rejection of Sartre’s humanism relegates Sartre’s own critique of humanism in La Nausée to a
footnote. Such a representation of his predecessor’s thinking brings in its wake a refusal to recognize basic
analogies between Sartre’s philosophy and his own”. Ibid., p. 334.
!271

se esta afirmação procede, pensamos que se torna assim importante, a partir do que foi
exposto até aqui, mostrar em que sentido a presença a si em Sartre não implica adequação a si
ou identidade a si de um sujeito, características que normalmente são atreladas às filosofias da
consciência, sobretudo à consciência compreendida como transparência. Vimos na “Segunda
parte” que a estrutura pré-reflexiva da consciência é descrita por Sartre como um jogo de
reflexos e que isto faz com que a consciência nunca seja plenitude, mas que, desde que
“olhada”, ela é “déjà contestation en elle-même”30 no plano pré-reflexivo, ela é consciência
perturbada (troublée). A consequência desta descrição é a de que o ser da consciência “ne
coïncide pas avec lui-même dans une adéquation plénière”31 ; dado que a consciência é “une
façon de ne pas être sa propre coïncidence, d’échapper à l’identité”32. Cada termo da díade
reflexo-refletidor (que vimos ser a estrutura intraconsciencial da pré-reflexão) se dá nesta
tensão paradoxal típica de uma contradição hegeliana onde cada termo “renvoie à l’autre et
passe dans l’autre, et pourtant chaque terme est différent de l’autre”33. A existência da
consciência como tensão neste jogo de reflexos, como “un jeu perpétuel d’absence et de
présence”34, faz com que seu modo de ser adquira - ao contrário de uma plenitude que pode
ser intuída - um caráter espectral que veda qualquer tipo de intuição. Assim, a “díade
fantasma” (dyade fantôme)35 consiste num tipo de ser que, se quisermos apreendê-lo, “il glisse
entre les doigts” 36. Do mesmo modo, se quisermos apreender o nada (néant) que “separa” um
termo do outro isto não seria possível, pois “ce néant n’est pas saisissable”. Se pensarmos na
consciência de crença, por exemplo,

la séparation qui sépare la croyance d’elle-même ne se laisse ni saisir ni


même concevoir à part. Cherche-t-on à la déceler, elle s’évanouit : on
retrouve la croyance comme pure immanence. Mais si au contraire on veut
saisir la croyance en tant que telle, alors la fissure est là, paraissant
lorsqu’on ne veut pas la voir, disparaissant dès qu’on cherche à la
contempler37.

30 CSCS, p. 156.
31 EN, p. 110.
32 EN, p. 113.
33 EN, p. 111.
34 CSCS, p. 156. “Autrement dit, on ne trouvera jamais la conscience non thétique comme mode d’être qui ne

soit, en même temps, en quelque sorte, absence à elle-même, précisément parce qu’elle est présence à elle-
même”. Ibid.
35 EN, p. 209.
36 EN, p. 112.
37 EN, p. 114. (grifo nosso)
!272

Trata-se portanto de um modo de existência que possui as características de um


espectro. Quando buscamos desvelá-lo, ele se esvai, quando não o olhamos, ele está lá:
“paraissant lorsqu’on ne veut pas la voir, disparaissant dès qu’on cherche à la contempler”.
Desta existência fantasmática concluímos que a “presença a si” em Sartre, ao contrário da
plenitude do idêntico, se dá pela fissura, pelo escape, pela quebra, próprios a este modo
espectral. Falamos assim de uma translucidez perturbada, assombrada, vedada à autointuição
que faz com que seja uma “obligation pour le pour-soi de n’exister jamais que sous la forme
d’un ailleurs”38. Sobre isso, De Coorebyter conclui muito bem:

Contrairement aux reproches faits à Sartre le translucide n’est pas


connaissance de soi, illusion d’auto-intuition, fantasme métaphysique
d’adéquation de la pensée à soi dans une pensée de soi : alors que Sartre
entend les distinguer, ces critiques confondent le retour sur soi du cogito avec
l’exil inhérent au préréflexif. Ce dernier s’échappe au profit de l’illumination
du visé : de même que la lumière ne peut éclairer la lumière, la conscience
translucide ne peut se saisir comme telle car elle n’aurait rien à saisir ; elle
n’est pas réflexion au sens cartésien mais, comme le dit Heidegger, au sens
optique du terme […] La translucidité est aux aintipodes des figures de la
maîtrise ; la conscience se perd pour se récupérer sur la visée des choses39.

A citação acima introduz nosso segundo ponto, que consiste num suposto domínio
sobre si do sujeito, dado que a consciência é translúcida de ponta a ponta, sem deixar espaço
para o inconsciente. Como mencionamos brevemente, esta posição de maîtrise sur soi, ratifica
um verdadeiro “império sobre si”, como diz Ricœur40, de modo que a transparência da
consciência impediria de algum modo que o sujeito pudesse desconhecer a si mesmo
(méconnaître soi-même). Se, como diz Derrida, “la conscience est la présence à soi du vivre,
de l’Erleben, de l’expérience. Celle-ci est simple et n’est jamais, par essence, affecté par
l’illusion puisqu’elle ne se rapporte qu’à soi dans une proximité absolue”41, como manter
então, ao mesmo tempo, a possibilidade do cogito e da ilusão sobre si? Merleau-Ponty, por
exemplo, ao falar da opacidade inerente à percepção, instaura o desconhecimento de si no
nível pré-reflexivo, na medida em que “la perception est opaque, elle met en cause, au-
dessous de ce que je connais, mes champs sensoriels, mes complicités primitives avec le
monde”42. Para Ricœur, é o desconhecimento de si no nível consciente mais imediato que

38 Ibid.
39 DE COOREBYTER, V. Sartre face à la phénoménologie, p. 259.
40 RICŒUR, P. Philosophie de la volonté I.
41 DERRIDA, J. La voix et le phénomène, p. 69.
42 Php, p. 487.
!273

aproxima fenomenologia e psicanálise, embora seja justamente o núcleo de “presença vivente


a si” (présence vivante à soi/ die lebendige Selbstgegenwart) que as diferenciam. Apesar deste
núcleo ser o “point-source” da fenomenologia, como dizia Derrida, Ricœur mostra que a
experiência não se restringe a ele, pois há um horizonte do “propriamente não
experiencial” (proprement non-expérienciel/eingentlich niche erfahren), horizonte do
“necessariamente co-visado” (nécessairement co-visé/ notwendig mitgemeint) implícito na
experiência e finalmente “c’est cet implicite qui permet d’appliquer au cogito lui-meme la
critique d’évidence appliqué auparavant à la chose : lui aussi est une certitude présumée; lui
aussi peut se faire illusion sur lui-même; et nul ne sait jusqu’à quel point” 43.
E para Sartre, como fica esta questão? Sabemos que a possibilidade de ilusão na
reflexão é dada a partir do momento em que ele distingue reflexão pura e impura, sendo que,
como veremos adiante, esta primeira é alvo de grande dificuldade de elaboração conceitual.
Mas, ao designar a consciência pré-reflexiva como transparente e recusar o inconsciente,
Sartre eliminaria com isso a possibilidade de desconhecimento de si do sujeito no nível mais
imediato? Para responder esta pergunta devemos ter em vista o fenômeno que Sartre
denomina de má-fé (mauvaise foi), que abordaremos em seguida. O que pretendemos mostrar
agora é simplesmente o que significa translucidez no interior desta questão, isto é, em que
medida o fato de Sartre ter qualificado a consciência de transparente fez com que tenhamos
dificuldade em compreender que tal transparência implica num “saber de si” que envolve um
desconhecimento de si. Este caráter paradoxal foi notado por Romano, quando ele afirma:
“Mais voici le paradoxe : justement parce que le Pour-soi n’“est” que l’être qu’il se choisit
être, parce qu’il est toute transparence, présence à soi inaliénable, il est aussi de ce fait même
opaque, sans quoi nulle “psychanalyse existentielle” ne serait requise”44. De que modo então
esta translucidez pode ser opaca? Como pode o para-si ser, segundo a fórmula de Barrès, um
“mistério em plena luz”45? Estas questões nos remetem a duas características: 1) A
invisibilidade própria à translucidez 2) a face sombria da translucidez, que é o tema do
terceiro ponto levando acima, a saber, a ideia de que a transparência da consciência diz
respeito a uma filosofia que pressupõe uma subjetividade pura.

43 RICŒUR, P. De l’interprétation: essai sur Freud. Paris: Seuil, 1965, p. 368.


44 ROMANO, C. La liberté sartrienne, ou le rêve d’Adam. In: ______ . Il y a. Paris: PUF, 2003, p. 167.
45 Cf. EN, p. 582.
!274

Com relação à primeira característica, podemos dizer que, ao contrário de afirmar um


conhecimento sobre si do sujeito, a translucidez se caracteriza por ser um campo de
invisibilidade total. Como vimos, Sartre distingue logo no início de L’Être et le Néant
consciência de conhecimento. Conhecer a si é um ato de reflexão que é derivado do plano
mais originário e predominante na vida da consciência que é a irreflexão (e mesmo assim com
dificuldades: seja pelo quase-conhecimento da reflexão impura, seja pelo problema da
reflexão pura, como veremos adiante). Vimos também que seja qual for o grau de consciência
- irreflexiva ou reflexiva - a estrutura da consciência é sempre pré-reflexiva e é esta estrutura
que é designada como sendo translúcida. A translucidez significa que aquilo que é designado
como tal não é da ordem do observável, pois se trata de uma esfera que não pode ser
objetivada, que não consiste numa interioridade que pode ser conhecida, dado que, como já
citamos de início, “s’atteindre soi-même, c’est être lumineux pour soi-même, mais ce n’est
nullement chose nommable, exprimable pour soi-même” 46. Ocorre então que a translucidez,
ao contrário de indicar um domínio de si por via de um saber autodirecionado, ou como diz
De Coorebyter, “loin de constituer un territoire inviolable où la conscience jouirait d’une
parfaite maîtrise de soi”47, “la conscience parce que translucide, n’est pas visible : c’est tout
au plus un voyant invisible, voyant puisqu’elle (s’)éprouve, mais invisible au sens où elle
n’éprouve rien d’autre que l’éclaircie même du corrélat intentionnel, seul “phénomène” à
proprement parler”48. A translucidez impede assim, conclui o autor, “séjour intérieur ou
d’autoillumination fascinée”49. Sartre já havia descrito a consciência como um vento, que
expulsaria de si todo conteúdo interior no texto sobre a intencionalidade - fazendo com que a
translucidez signifique exatamente o oposto de um imanentismo - ; ela implica o próprio
movimento para fora, verdadeiro terreno da “aveuglante lumière”. A radicalidade desta
exteriorização é dada em La Transcendance de l’Ego, em que mesmo os sentimentos são
descritos como objetos transcendentes que podem ser intuídos tanto pelo sujeito que os vive
quanto pelo outro - “le sentiment de Pierre n’est pas plus certain pour Pierre que pour Paul. Il
appartient pour l’un et pour l’autre à la catégorie des objets qu’on peut révoquer en doute” 50.
Uma claridade impiedosa que Sartre comparava a “une salle d’opération, hygiénique, sans

46 CSCS, p. 150.
47 DE COOREBYTER, Sartre face à la phénoménologie, p. 275.
48 Ibid., p. 261. (grifo nosso)
49 Ibid., p. 275.
50 TE, p. 126.
!275

ombre, sans recoins, sans microbes, sous une lumière froide”51, desde que ele sentia o olhar
do outro em si mesmo obrigando-o, em suas palavras, “à m’éclairer au plus vite, à
pourchasser la pénombre en moi et, dès qu’une pensée m’appartenait en toute transparence,
du même coup elle leur appartenait aussi [aux autres]”52.
A partir destas últimas observações, podemos concluir dizendo que esta primeira
característica - a invisibilidade própria à translucidez - aparece desde o início das reflexões
filosóficas de Sartre significando a impossibilidade de objetivação da consciência, no fundo,
de substancializa-la. Tudo o que for da ordem do objeto - neste vocabulário, do opaco -, diz
respeito a uma visibilidade que só é possível adquirir por um olhar externo. Sendo assim, tudo
se passa como se em cada tentativa de olhar para si, o sujeito ou tenta fazer-se outro para
apreender algo de visível em si - o que caracterizará o plano das sombras produzido pela
reflexão impura, como veremos mais adiante -, ou realiza aquilo que Sartre chama de reflexão
pura, comparável a um clarão, onde a consciência apenas se experimenta, sem poder
conhecer a si mesma.

§.2 Lucidez e reflexão pura.

Como pensar uma reflexão que apreenderia a consciência em sua translucidez se a


invisibilidade impede exatamente a possibilidade de autocontemplação? Este é o ponto que
faz com que o conceito de reflexão pura adquira um caráter problemático em sua própria
elaboração. Por outro lado, a transparência, diz Sartre, é “l’image de la lucidité”53, isto é, há
um traço de lucidez próprio à translucidez da consciência. As elaborações sobre a reflexão
pura nos remetem justamente para o que deve significar tal lucidez, já que a invisibilidade
pré-reflexiva não pode ser tomada como plano de conhecimento.
Em entrevista ao Le Monde, em 1971, a partir de um olhar retrospectivo sobre sua
obra, Sartre declara o seguinte a respeito da reflexão pura:

Vous savez bien que cette réflexion je ne l’ai jamais décrite, j’ai dit qu’elle
pourrait exister mais je n’ai montré que des faits de réflexion complice. Et
par la suite j’ai découvert que la réflexion non complice n’était pas un regard

51 CDG, p. 560.
52 Ibid.
53 B, p. 110.
!276

différent du regard complice et immédiat mais était le travail critique que l’on
peut faire pendant toute une vie sur soi, à travers une praxis54.

Tendo em vista esta afirmação, podemos ressaltar três pontos importantes: o primeiro
consiste na dificuldade presente no percurso filosófico sartriano em oferecer uma descrição
suficiente da reflexão pura; o segundo se refere ao fato de que pensar sobre a reflexão foi uma
tarefa que acompanhou seu percurso desde o início, ao longo do qual o ponto de diferenciação
de um modo de reflexão para outro varia um pouco (ora uma mudança de atitude, ora de
motivação; no trecho acima ele afirma que não é uma mudança de olhar); o terceiro: como a
reflexão pura pode ser um trabalho crítico a ser feito durante toda uma vida? Este último não
parece ser muito claro até os rascunhos dos Cahiers pour une morale.
Com relação à dificuldade na descrição ou mesmo no desenvolvimento teórico sobre a
reflexão pura, a primeira questão que se apresenta é muito bem colocada por N. Monnin:

une réflexion, c’est d’abord une connaissance qui, en cela, respect la scission
entre connu et connaissant. […] Mais, autant la réflexion impure a tout le
caractère d’une réflexion classique, visant une connaissance objectivante de
soi, autant la réflexion pure peut nous faire douter, par la distance minimale
qu’elle instaure entre réfléchi et réflexif, qu’il s’agisse encore bien d’une
réflexion55.

A autora acrescenta ainda a seguinte questão: se a estrutura da reflexão pura não é


bem a de uma reflexão - relação de conhecimento - porque esta não seria então um novo tipo
de pré-reflexibilidade? Estas perguntas são relevantes, pois talvez a dificuldade maior de
Sartre ao descrever a reflexão pura venha justamente do fato de que, em algum nível, é
contraditório falar de uma reflexão não objetivante. Já Husserl apontava para o fato de que a
reflexão “altera a ‘espontaneidade’ primitiva da consciência irrefletida”56, produzindo uma
“modificação de consciência” visto que “toute réflexion procède essentiellement de certains
changements d’attitude qui font subir une certaine transmutation au vécu préalablement donné
[…] ils deviennent ainsi des modes de la conscience réfléchie (ou de l’objet de conscience
réfléchi)”57. Se a atitude reflexiva é por princípio objetivante e se é ela que instaura a estrutura
sujeito-objeto na consciência, de fato torna-se complicado pensar como uma reflexão que não

54 S.X, p. 104-5.
55 MONNIN, N.Une réflexion pure est-elle possible?, p. 205.
56 Cf. HUSSERL, E. Méditations cartésiennes, p. 66.
57 HUSSERL, E. Ideen I, p. 252.
!277

implica mais estes resultados seria ainda uma reflexão. Por esta razão, também para De
Coorebyter, tendo em vista a proximidade entre consciência pré-reflexiva e a reflexão pura, há
uma dificuldade de diferenciação entre estes dois modos de consciência, dado que seus
“objectifs sont identiques, de sorte que, idéalement, rien ne devrait les distinguer” 58.
No entanto, a descrição mais refinada da reflexão introduzida em L’Être et le Néant –
a díade reflexo-refletidor -, nos permite notar a diferença estrutural entre a consciência pré-
reflexiva e a reflexão pura. Esta última é então caracterizada como sendo a apreensão da
consciência refletida pela reflexiva na pureza do jogo de reflexos, ou seja, ambas se revelam
como sendo a mesma consciência que se reflete em duas faces reflexo-refletidor, na unidade
da consciência intencional em sua pura transparência. Em outras palavras, a reflexão pura é a
revelação da consciência refletida como díade reflexo-refletidor, que é a face refletida da
consciência reflexiva, isto é, na dualidade-unidade. Logo, enquanto na pré-reflexividade a
consciência é díade reflexo-refletidor, na reflexão pura a díade é duplicada, de modo a esticar
a distância inicial: a consciência reflexiva reflexo-refletidor apreende a consciência refletida
como reflexo-refletidor e não como se fosse um em-si (reflexão impura, como veremos mais
adiante). A este respeito De Coorebyter diz que

le quasi-dédoublement réflexif ne trahit pas mais accomplit le quasi-


dédoublement du reflet/refletant. L’accentuation de cette scissiparité modifie
tellement peu le vécu qu’elle est incapable de lui conférer la plénitude d’être
recherchée : si la réflexion reste pure elle se contente de reconduire en
l’exacerbant, la dualité toujours virtuelle du reflet et du reflétant, sans se
donner l’illusion d’accéder à cette dualité comme si le reflétant était en
position de témoin par rapport au réfléchi59.

Não é possível assim, na reflexão pura, adotar um “ponto de vista” com relação ao
refletido de modo que, por esta razão, ela se caracteriza mais como um reconhecimento do
que como conhecimento, diz Sartre. Reconhecimento pelo fato de que ela revela o refletido
como para-si e não como esboço de alteridade (reflexão impura); já que “elle le découvre
comme le « réfléchi », par excellence, l’être qui n’est jamais que comme soi et qui est toujours
ce « soi » à distance de lui-même, dans l’avenir, dans le passé, dans le monde”60. A reflexão
pura consiste então numa apreensão angustiante da consciência em sua pura translucidez e a
ausência de sombras faz com que esta apreensão seja “intuition fulgurante et sans relief, sans

58 DE COOREBYTER, V. Sartre face à la phénoménologie, p. 351.


59 Ibid., p. 352-353.
60 EN, p. 193.
!278

point de départ ni point d’arrivée”61. A reflexão cúmplice ou impura, por outro lado, é aquela
que se coloca na estrutura sujeito-objeto do conhecimento, que supõe “des reliefs, des plans,
un ordre, une hiérarchie”62 , de modo que a captação da consciência refletida pela reflexiva
não revela a estrutura translúcida da consciência pré-reflexiva reflexo-refletidor, mas o
refletido como se fosse um em-si, sob a forma de objeto psíquico 63.
Neste contexto, com relação ao segundo ponto da afirmação que destacamos, podemos
compreender a necessidade de pensarmos sobre a motivação das diferentes reflexões, já que a
motivação de má-fé da impura parece ser mais clara - num primeiro momento como fuga da
angústia própria à fatalidade da espontaneidade (La Transcendance de l’Ego) e num segundo
como fuga da contingência e tentativa de autofundação (L’Être et le Néant) -, do que a
motivação da reflexão pura. Isto porque não fica claro quais seriam o papel e a vantagem
desta reflexão se a pré-reflexividade já possuía a transparência não substancial da consciência.
Além do que, cabe perguntar, se a reflexão não adquire finalmente um papel relevante,
estaríamos então num impasse diante da inutilidade da reflexão? Isto é, entre a má-fé (que
veremos ser característica da reflexão impura) e a constatação de uma transparência já
existente? Sobre essa questão, De Coorebyter afirma ainda que “la réflexion au sens classique
est au rouet, tantôt inacceptable car, opacifiant le translucide, elle barre l’accès au vécu et
signe la mort de la phénoménologie, tantôt inutile parce que, respectant l’invisible
transparence de l’irréfléchi, elle reproduit une situation déjà acquise” 64.
Diante deste possível impasse, pensamos que o movimento de purificação da reflexão
é mais importante do que a “reprodução de uma situação já dada” por duas razões. Em
primeiro lugar, dado que, de acordo com a própria estrutura do projeto, tendemos à fuga da
contingência e busca de autofundamento. Se as tentativas de objetivação de si são inevitáveis,
a reflexão pura aparece como uma quebra possível do movimento de tentativas de
substancialização. Em segundo lugar, a pura transparência a si é, como vimos, invisibilidade
total. Neste sentido, diz De Coorebyter, o campo pré-reflexivo sartriano, para ter seu papel,
deve tornar o trabalho fenomenológico possível e necessário: “la connaissance qu’il autorise

61 EN, p. 190. Descrição que se assemelha muito àquela sobre a reflexão husserliana em A transcendência do
Ego: “Husserl insiste sur le fait que la certitude de l’acte réflexif vient de ce qu’on y saisit la conscience sans
facettes, sans profils, toute entière (sans « Abschattungen »)” TE, p. 102, embora Sartre afirme que a reflexão
pura “n’est cependant pas forcément la réflexion phénoménologique”. TE, p. 110.
62 EN, p. 191.
63 Este tema será desenvolvido no capítulo IV desta “Terceira parte”.
64 DE COOREBYTER, V. Sartre face à la phénoménologie, p. 320.
!279

doit être requise par la méconnaissance qu’il enveloppe” 65. Para o autor, enfim, “le
translucide invisible du fait même qu’il s’éprouve, entre dans la lumière à la faveur de cette
intentionnalité autocentrée : Sartre y insistera dans L’Idiot de la famille, voir “réaliser” ce que
l’on est”66.
Vislumbra-se, portanto, que a questão da realização de si oferece um papel à reflexão
pura em meio à primazia do que veremos ser a má-fé. Mas é nas notas dos Cahiers pour une
morale que a questão da motivação parece ficar mais clara, assim como a ideia de que a
reflexão pura deve ser uma práxis, nosso terceiro ponto. Neste texto, Sartre afirma que a
reflexão não é contemplativa, uma vez que ela é projeto de realização prática da liberdade.
Como práxis, o projeto escolhe empreender aquilo que Sartre entende como conversão moral,
que consiste na passagem de um plano inautêntico ao autêntico, motivada pela vontade de
realização e não de apropriação de si. Sartre estabelece neste momento uma oposição entre
uma decisão de autonomia ou de heteronomia segundo os projetos de reflexão cúmplice ou
purificante. A autonomia é o regime da reflexão pura em sua vontade de acordo e aliança do
para-si consigo próprio, isto é, momento onde o para-si assume sua unidade não através de
uma identidade, mas sim através de uma aliança moral67. A unidade é dada pela vontade, o
que significa que o para-si, não podendo afirmar o que ele é, afirma o que ele quer: “La
réflexion pure et authentique est un vouloir de ce que je veux. C’est le refus de me définir par
ce que je suis (Ego) mais par ce que je veux”68. Esta assunção é autônoma na medida em que
o para-si decide não mais buscar sua legitimidade e justificação em sua face objetiva para-
outro, ao reconhecer-se como um “absoluto subjetivo”, pura “contingência vista de fora”, que
não tem nenhuma justificação69. A reflexão pura comporta assim a assunção da
injustificabilidade da existência a partir de sua impossibilidade de síntese consigo mesma sob
a modalidade da identidade. A unidade acordada é então de outra ordem, já que ela reside na
revelação do abismo do para-si em relação a si, de modo que a existência pode apreender-se
como sendo “em questão”. Dizer que a reflexão é projeto significa dizer que a reflexão é
escolha de si como reflexivo no intuito de não apenas existir enquanto questão para si mesmo,
mas de querer existir como tal. É neste sentido que a reflexão pura é uma práxis de

65 DE COOREBYTER, V. Sartre face à la phénoménologie, p. 322.


66 Ibid., p. 287.
67 Ponto que, vimos em nota, foi criticado por Foucault. No entanto, Sartre busca aqui precisamente diferenciar

tal aliança autêntica da vontade de identidade própria à má-fé.


68 CPM, p. 496.
69 CPM, p. 498.
!280

recuperação do projeto por si mesmo, ao mesmo tempo em que renuncia que esta recuperação
seja sob o modo da identificação ou apropriação, conforme a motivação da reflexão impura.
Sartre conclui: “En un mot l’existant est projet et la réflexion est projet d’assumer ce
projet”70.
Tendo em vista estas considerações sobre a reflexão pura nos Cahiers, podemos dizer
que Sartre a pensa, em tempos diferentes, como tendo pelo menos três formas: além desta
assunção voluntária que acabamos de descrever, também como um “acidente” e como
“catarse”. Em La Transcendance de l’Ego, ao se opor à ideia de que a épochè seria um
método intelectual, Sartre pensa que reflexão está relacionada à angústia própria à “fatalidade
da espontaneidade” da consciência, o que faz dela “à la fois un événement pur d’origine
transcendantale et un accident toujours possible de notre vie quotidienne”71. Também em La
Nausée, Sartre fala em súbita “iluminação”72, pela qual Roquentin vivencia a contingência da
existência diante da raiz do castanheiro. Em L’Être et le Néant, por sua vez, ele fala em
termos de uma experiência de catarse, secundária com relação à reflexão impura. Trata-se,
portanto, nestes últimos casos, de uma experiência involuntária e não de um procedimento
metodológico deliberado. Para que haja conhecimento de tal experiência, conclui Sartre em
seu capítulo sobre a psicanálise existencial, é preciso que um outro venha dar objetividade à
invisibilidade total, mesmo reflexiva. Sendo assim, pela noção de reflexão pura, Sartre mostra
que o saber de si próprio à lucidez do para-si é um experienciar-se que impossibilita o
autoconhecimento graças a invisibilidade da consciência, seja no nível pré-reflexivo, seja no
nível reflexivo puro. Segundo os Cahiers, resta à reflexão pura somente assumir e querer a
condição de desconhecimento de si.

§3. Inconsciente, não saber e má-fé.

[…] ce que je nommerai “le mystère en pleine lumière; la


face d’ombre de la lucidité”. Il y a, en effet, un inconscient
au cœur même de la conscience : il ne s’agit pas de
quelque puissance ténébreuse et nous savons que la

70 CPM, p. 495.
71 TE, p. 130.
72 N, p. 181.
!281

conscience est conscience de part à part; il s’agit de la


finitude intériorisée.

Sartre, Mallarmé. La lucidité et sa face d’ombre

Um leitor familiarizado com a crítica de Sartre ao inconsciente pode ficar espantando


com uma afirmação deste tipo: “Il y a, en effet, un inconscient au cœur même de la
conscience”. O trabalho sobre Mallarmé, de onde retiramos esta citação (que se encontra em
nota de rodapé), data de 1953, ou seja, dez anos após a publicação de L’Être et le Néant. Isto
não significa que Sartre tenha mudado radicalmente sua crítica ao inconsciente freudiano, mas
sobretudo que ele aos poucos passou a admitir explicitamente que a consciência envolve em
certo sentido opacidade. Este aspecto se deixa entrever se tomarmos as declarações de Sartre a
respeito do uso cada vez maior da noção de vivência (vécu) no lugar de consciência. Esta
noção permite compreender tal opacidade implicada na “presença a si”, como explica Sartre
em uma entrevista: “L’introduction de la notion de vécu représente un effort pour conserver
cette ‘présence à soi’ qui me paraît indispensable à l’existence de tout fait psychique, présence
en même temps si opaque, si aveugle à elle-même qu’elle est aussi ‘absence de soi’. Le vécu
est toujours, simultanément, présent à soi et ‘absent de soi’”73. Do mesmo modo, na
conferência proferida em Roma em 1960, publicada sob o título Qu’est-ce que la
subjectivité?, Sartre fala em termos, por exemplo, de “obscurité à soi”74. Vejamos este trecho
do debate que se seguiu à conferência:

Voix: Si, permettez, il y a peut-être une chose à observer : la vie de la


province, de Flaubert, son père, son frère, le collège, le médecin, etc.
On pourrait dire : c’est en Flaubert comme quelque chose qu’il garde
en lui, dans son obscurité et dans l’épaisseur de son obscurité. Alors,
on a la preuve que quelque chose que l’on appelle l’inconscient est
l’extérieur qui se trouve en moi-même. Êtes-vous d’accord?

Sartre: Exact. C’est ce que je voulais dire. C’est l’extérieur : c’est la


société même, je la pense en la reconnaissant dehors et je me projette,
c’est-à-dire je la projette sur elle-même. Au fond, si vous voulez, ce
sont deux stades différents qui se rejoignent, deux socialités ; et c’est
la même socialité, c’est le même conditionnement.

Voix: Ce qui est important c’est que sur ça on peut travailler, en


analysant le mot « inconscient » sous une autre forme.

73 S.IX, p. 112. Entrevista publicada em 1970. A noção de vivência é desenvolvida a partir de conceitos da Cri-
tique de la raison dialectique, como o de totalização: “Ce que j’appelle le vécu, c’est précisément l’ensemble du
processus dialectique de la vie psychique, un processus qui reste nécessairement opaque à lui-même car il est
une constante totalisation, et une totalisation qui ne peut être consciente de ce qu’elles est.” S.IX, p.111
74 Cf. QS, p. 123-124.
!282

Sartre: J’ai dit non-savoir, en général, parce que c’est de la réalité.

Voix: Oui, oui, justement, mais c’est la réalité de l’objectivité que je


garde en moi, ce n’est pas quelque chose d’intelligible : c’est ça le
point. Êtes-vous d’accord?

Sartre: Je suis parfaitement d’accord75.

Segundo esta fala, onde o interlocutor nos esclarece mais do que do próprio Sartre o
que está em jogo, este último prefere chamar de “não saber” esta realidade objetiva em nós,
que consiste numa espessura de obscuridade. Não se trata portanto de uma concepção de
inconsciente psicanalítico, aquele que Deleuze e Guattari diziam ser um teatro, mas algo da
realidade objetiva interiorizada na própria subjetividade, um tipo de “não saber”.
A rejeição de Sartre ao inconsciente psicanalítico é marcante e tornou-se um fato
conhecido e por diversas vezes criticado. Todavia, sua relação com a psicanálise é, na
verdade, bastante paradoxal, de modo que para Pontalis, “il faudra un jour écrire l’histoire du
rapport ambigu, fait d’une attirance et d’une réticence également profondes, que Sartre
entretient depuis trente ans avec la psychanalyse, et peut-être même relire son œuvre dans
cette perspective” 76. No Esquisse, Sartre faz uma breve e bem resumida apresentação da sua
posição com relação à teoria psicanalítica, onde conclui que o paradoxo é, na verdade,
constitutivo desta própria teoria, a qual busca ao mesmo tempo explicar os fenômenos por
relações causais e compreender seus sentidos. Duas atitudes que, segundo Sartre, seguindo os
passos de Dilthey e Jaspers, são incompatíveis77. Não há como negar assim a importância já
citada da crítica de Politzer à psicanálise em Critique des fondements de la psychologie sobre
o “realismo do inconsciente”, sobre a qual A. Tomès identifica uma proximidade com as de
Sartre, embora ele se pergunte qual foi de fato a sua influência. Segundo o autor, “sans utiliser
la terminologie de Politzer, Sartre part exactement du même constat : la fascination des
psychologies pour le modèle des sciences de la nature est précisément ce qui leur interdit de
comprendre ce qui fait la spécificité de la vie psychique humaine”78, embora para Politzer isto
não signifique um retorno a uma filosofia da consciência. Em L’Être et le Néant, Sartre
desenvolve alguns pontos de sua crítica à psicanálise freudiana (que ele chama por vezes de
psicologia empírica), mas esboça ao mesmo tempo uma afinidade com relação ao caráter

75 QS, p. 127-8.
76 Réponse à Sartre par J.-B. Pontalis. In: S.IX, p. 360.
77 Cf. ETE, p. 37.
78 TOMÈS, A. Sartre et la critique des fondements de la psychologie : Quelques pistes sur les rapports de Sartre

et de Politzer. Bulletin d’analyse phénoménologique. n. XVIII, v.1, p. 223-244, 2012, p. 232.


!283

hermenêutico de seu método, que consiste na possibilidade de interrogação dos sentidos de


cada conduta humana79. Desta afinidade surge a psicanálise existencial, um método
propriamente sartriano que, por não ser clínico, “ainda não achou seu Freud”80. Nome
polêmico para seu método, já que Sartre não aceita justamente a hipótese fundamental da
psicanálise - o inconsciente -, o que seria equivalente, como diz A. Tomès, a algo como “un
cartésianisme sans cogito, ou un marxisme sans lutte des classes”81. De todo modo, trata-se,
como dizia Pontalis, de uma relação bastante ambígua 82 que, segundo Badiou, retrata
perfeitamente a combinação entre cumplicidade e rivalidade entre psicanálise e filosofia, uma
das marcas do século XX83.
Mencionamos há pouco que esta posição de rejeição do inconsciente psicanalítico,
somada a ideia de uma consciência transparente, fez com que a posição sartriana sobre a
relação do sujeito a si pudesse ser interpretada em termos de domínio autocentrado, sem
possibilidade de desconhecimento de si. No entanto, a questão é mais complicada se
considerarmos que a crítica ao inconsciente freudiano não quer dizer que Sartre não admita
um desconhecimento do sujeito sobre si, um “não saber”, por fim, uma “opacidade” própria à
translucidez, explicitamente tematizada nas entrevistas que viemos de citar. Cabestan, por
exemplo, afirma mais de uma vez que o fato de não admitir o inconsciente freudiano não
significa que Sartre não admita a ideia mesma de inconsciente84. O autor identifica que o
desconhecimento de si possibilitado pela noção de vivência não é tão original em relação a
L’Être et le Néant, já que nesta obra há uma distinção entre consciência e conhecimento, que
faz com que o para-si viva seu projeto sem conhecê-lo85. Este ponto nos remete a

79 Método que posteriormente irá ser cada vez mais relevante para Sartre na medida em que ele permite realizar o
estudo da “manière dont l’enfant vit ses relations familiales à l’intérieur d’une société donnée” QM, p. 47.
80 EN, p.620. Sobre a relação entre psicanálise existencial e prática clínica, ver o artigo: Alt, F.; Barata, A.;

Mendes-Campos, C.;“Psicologia Fenomenológica, Psicanálise existencial e possibilidades clínicas a partir de


Sartre”. Estudos e pesquisas em psicologia. v. 2, p.706-723, n. 3. 2012.
81 TOMÈS, A. La critique sartrienne de l’inconscient. Les Temps Modernes. Sartre avec Freud. n. 674-675, p. 51-

67, 2013, p. 51.


82 A relação paradoxal de Sartre com a psicanálise pode se estender às suas breves observações sobre Lacan,

quem a seu ver lhe “esclareceu o que é o inconsciente” S.IX, p. 97. À dificuldade em relação a Freud, Sartre
atribui à cultura cartesiana francesa “imbu de rationalisme, que l’idée d’inconscient choquait profondément”
S.IX, p. 105. É curioso pensar ainda sobre o episódio que envolve a produção do filme de John Huston - Freud,
the secret passion -, cujo roteiro fora encarregado a Sartre. O projeto finalmente deu errado, pois, segundo
Sartre, “on ne choisit pas quelqu’un qui ne croit pas à l’inconscient pour faire un filme à la gloire de Freud”. VP,
p. 42; porém, Sartre diz em outro momento que foi Huston que não compreendeu o que é o inconsciente! Cf.
S.IX, p. 103.
83 BADIOU, A. L’aventure de la philosophie française : Depuis les années 1960. Paris: La fabrique, 2012, p. 21.
84 Cf. CABESTAN, P. L’inconscient est structuré comme un langage. Sartre et le primat lacanien du signifiant.

Les Temps Modernes. Sartre avec Freud. n. 674-5, p. 34-50, 2013, p. 36; Id. Qui suis-je?. Sartre et la question du
sujet. Paris: Hermann, 2015, p. 204; p. 234.
85 Cf. CABESTAN, P. Qui suis-je?, p. 204-205.
!284

invisibilidade que destacávamos acima, ou seja, para o fato de que a translucidez indica a
impossibilidade de tomar-se a si mesmo como objeto de conhecimento, o que corresponde a
um tipo de “não saber” - para usar o termo de Sartre - próprio da relação a si. A questão é que
este não saber não é pensado como sendo uma instância à parte da compreensão de si do
sujeito, isto é, Sartre acredita ser um problema Freud ter “scindé en deux la masse
psychique”86, dotando a consciência de um caráter passivo com relação ao inconsciente. Para
Sartre, tal separação substancializa o psíquico ao hipostasiar os termos que se encontram
separados, o que ele não pode admitir. Como vimos anteriormente a respeito da pré-reflexão,
Sartre busca realizar uma ousada síntese entre o “aparecer a si” próprio da consciência
husserliana com o saber implícito de si caraterístico do existencial compreensão em
Heidegger. Isto significa que, aos seus olhos, não é possível haver uma cisão efetiva, na
medida em que o para-si é projeto e, logo, assunção de todo o seu ser (característica ressaltada
no Esquisse, como vimos). Deste modo, se há autoengano do sujeito por si mesmo, as duas
funções - a do enganador e a do enganado - devem ser integradas no mesmo movimento
projetivo, o que em outras palavras pode-se dizer que o sujeito é ao mesmo tempo e sem
duplicidade efetiva aquele que engana e aquele que é enganado. Segue-se que a coexistência
destas duas posições no para-si é característica do fenômeno que Sartre denomina de má-fé
(mauvaise fois), por sua vez possibilitado pela sua própria estrutura “semi-dual” de “ser o que
não se é e não ser o que se é”. Em outros termos, sendo o para-si esta tensão entre “ser e não
ser”, ele encontra-se sempre diante da possibilidade de fazer-se de má-fé, isto é, de negar que
ele seja esta própria tensão.
Dito isto, é importante fazer uma distinção neste momento entre o não saber que é o
desconhecimento de si da invisibilidade pré-reflexiva e a má-fé, visto que não são sinônimos.
No caso da má-fé, a consciência se motiva a não saber, enquanto que, no primeiro caso, trata-
se de uma característica do modo ontológico da pré-reflexão, embora a presença a si, como
esboço de dualidade na unidade, seja condição de possibilidade para o para-si “sujeito”
realizar este esboço sob a forma de autoengano. Para explicar este fenômeno, Sartre se utiliza
da estrutura da mentira - alguém que sabe a verdade engana alguém que a desconhece - como
paradigma desta relação dual e unitária da relação a si: o para-si engana a si mesmo. Em
contraposição a algo que pudesse ludibriar a consciência “de fora”, a má-fé “ne vient pas du

86 EN, p. 85.
!285

dehors […]. On ne subit pas sa mauvaise foi , on n’en est pas infecté, c’est n’est pas un
état”87. Este fenômeno consiste portanto num fazer-se de má-fé, com o objetivo de “masquer
une vérité déplaisante ou de présenter comme une vérité une erreur plaisante”88. Podemos
dizer de outra maneira, e resumidamente, que a má-fé é uma fuga da angústia própria ao
modo de ser sempre em questão, em sursis, negação da identidade ou simplesmente,
liberdade. No entanto, o modo deste fazer-se da fuga de má-fé é bastante peculiar, dado que
ele não é da ordem da deliberação. Sartre o compara a um adormecimento:

Entendons bien qu’il ne s’agit pas d’une décision réfléchie et


volontaire, mais d’une détermination spontanée de notre être. On se
met de mauvaise foi comme on s’endort et on est de mauvaise foi
comme on rêve. Une fois ce mode d’être réalisé, il est aussi difficile
d’en sortir que de réveiller : c’est que la mauvaise foi est un type
d’être dans le monde, comme la veille ou le rêve, qui tend par lui-
même à se perpétuer, encore que sa structure soit du type métastable89.

Este é o verdadeiro problema da má-fé, o fato dela ser um tipo de fé, ou seja, de
crença. Não se trata de um ato reflexivo voluntário, mas de um querer pré-reflexivo que
decide sobre a natureza da fé, como uma “foi qui se veut mal convaincu”90. Fazer-se de má-fé
é assim um modo de estar no mundo, de desvelar um mundo da má-fé, assim como dormir
revela um “mundo” imaginário 91. Acontece que esta escolha pré-reflexiva é uma decisão que
“n’ose pas dire son nom, elle se croit et ne se croit pas de mauvaise foi. Et c’est elle qui, dès
le surgissement de la mauvaise foi, décide de toute l’attitude ultérieure et, en quelque sorte, de
la Weltanschauung* de la mauvaise foi”92. O projeto de má-fé decide (pré-reflexivamente,
pois vimos que ser para-si é equivalente a escolher-se) sobre a natureza insatisfatória das
verdades, a menor exigência nas evidências, não se colocar à prova, etc. Entretanto, sendo a
crença sempre consciência (de) crença, a consciência é sempre olhada, de modo que por mais
que ela se encontre cativa de sua própria armadilha - que é o caso na má-fé -, não há como
escapar do paradoxo de ser ao mesmo tempo aquela que se engana e aquela que é enganada e
ainda ser o testemunho do próprio autoengano. Se esse não fosse o caso, não haveria como

87 EN, p. 83.
88 Ibid.
89 EN, p. 103-104. (grifo nosso)
90 EN, p. 104.
91 “Mundo” num sentido metafórico e não de acordo com a ideia de mundo de L’Être et le Néant. Sobre a

imprecisão ao utilizar-se do conceito de mundo nestes casos, ver: I’re, p. 254.


92 EN, p. 103. * visão de mundo.
!286

realizar toda esta metamorfose a fim de mascarar o próprio modo de ser liberdade, pois só há
como fugir de algo na medida em que se se sabe de algum modo do que se deve fugir. Em
outros termos,

si je suis ce que je veux voiler, la question prend un tout autre aspect :


je ne puis en effet vouloir « ne pas voir » un certain aspect de mon être
que si je suis précisément au fait de l’aspect que je ne veux pas voir.
Ce qui signifie qu’il faut que je l’indique dans mon être pour pouvoir
m’en détourner ; mieux encore, il faut que j’y pense constamment
pour prendre garde de ne pas y penser […] En un mot, je fuis pour
ignorer mais je ne peux ignorer que je fuis 93.

É neste ponto que as análises sartrianas sobre a má-fé convergem com a crítica ao
inconsciente freudiano, ou talvez encontrem aí a própria razão de sua formulação. Isto em
dois sentidos. Primeiro porque, ao pensar sobre a concepção de censura em Freud, Sartre
encontra argumentos para afirmar seu ponto sobre a dualidade na unidade própria ao
autoengano; em segundo lugar, pela razão de que ele acaba atribuindo a pressuposição mesma
da hipótese do inconsciente freudiano a uma conduta de má-fé, isto é, no sentido de que
conceber tal inconsciente pode servir aos fins de mascaramento da liberdade. Sendo assim, se
a versão sartriana de oposição ao “realismo do inconsciente” ou ao biologismo da psicanálise
não é assim tão original, pode-se dizer que o fato dele ter considerado o inconsciente
freudiano como possibilidade de justificativa de má-fé é realmente uma peculiaridade de sua
filosofia. Esta consiste na discussão propriamente sartriana das consequências morais e
políticas da hipótese do inconsciente freudiano, que é o fato de que tal hipótese pode servir
como fuga da responsabilidade da existência.
No conto L’Enfance d’un chef, Sartre já esboçava esta crítica em prosa. Neste, o
personagem Berliac, um jovem típico da Paris dos anos vinte, imbuído de psicanálise e
surrealismo, diz desejar sua mãe. Para além do traço excessivamente caricatural de tal
crítica94, é na construção do personagem principal, Lucien Fleurier, que identificamos o ponto
mais relevante: Lucien não suporta a contingência do existir e encontra na explicação
psicanalítica proposta por Berliac uma razão para o seu mal, um tipo de resolução de seu
“estar em questão”:

93 EN, p. 78-79.
94 Assim como na já famosa afirmação em Les Mots : “je n’ai pas de Sur-moi”. LM, p. 8.
!287

« C’est donc ça, se répétait Lucien, en marchant au hasard par les rues,
c’est donc ça! » […]. Cette impression étrange de ne pas exister, ce
vide qu’il y avait eu longtemps dans sa conscience, ses somnolences,
ses perplexités, ses efforts vains pour se connaître, qui ne
rencontraient jamais qu’un rideau de brouillard… « Parbleu, pensa-t-
il, j’ai un complexe » […]. Le véritable Lucien était profondément
enfoui dans l’inconscient; il fallait rêver à lui sans jamais le voir,
comme à un cher absent 95.

O romance deixa claro este aspecto da posição sartriana que consiste em enxergar na
psicanálise uma tendência que seria típica dos “ídolos explicativos”96 de nossa época. Estes
são precisamente as teorias que funcionam como apaziguadoras da angústia própria à
existência, que oferecem um meio de legitimar a existência, tornando-a de direito, com fins de
fuga do caráter contingente de fato. Em suma, Sartre não critica somente o biologismo ou
mecanicismo da psicanálise, mas ainda de que modo esta teoria pode ser utilizada para fins de
má-fé, ou seja, como maneira de legitimar a existência através de explicações deterministas
que desresponsabilizam o sujeito. “Être sujet, dit Sartre, c’est si fatigant et, sur le divan, tout
invite à remplacer l’angoissante responsabilité d’être un seul par la société anonyme des
pulsions”97. Porém, como mencionamos a respeito da contradição intrínseca à psicanálise
apontada por Sartre no Esquisse, o caso não é tão simples assim. Em L’Être et le Néant, Sartre
reconsidera posições de Freud na medida em que seja possível sair da “langage et [de] la
mythologie chosiste de la psychanalyse”98. Desta vez, o psicanalista existencial acredita
encontrar na própria concepção freudiana de censura razões que evidenciam a relação
compreensiva a si do pré-reflexivo, na medida em que “la censure, pour appliquer son activité
avec discernement, doit connaître ce qu’elle refoule. Si nous renonçons en effet à toutes les
métaphores représentant le refoulement comme un choc de forces aveugles, force est bien
d’admettre que la censure doit choisir et, pour choisir, se représenter”99 . Sartre pretende
então, através da análise da censura, mostrar que o fenômeno da má-fé não presume mais uma
cisão entre aquele que engana e aquele que é enganado - “un mensonge sans menteur”100 -
mas um autoengano do sujeito por ele mesmo, com a finalidade de fuga da existência
contingente.

95 ŒR, p. 339.
96 “hérédité, éducation, milieu, constitution physiologique” EN, p. 604.
97 S.IX, p. 334.
98 EN, p. 87.
99 Ibid.
100 EN, p. 86.
!288

Finalmente é importante salientar que tal crítica ao inconsciente psicanalítico não


resulta em seu oposto, a saber, uma apologia do domínio de si do sujeito. Dada a
invisibilidade da pré-reflexão - que é um desconhecimento de si e não um autoengano como
na má-fé -, a translucidez traduz-se paradoxalmente em um sentido de opacidade estranho
àquele que estamos habituados a encontrar no texto sartriano, normalmente atribuído a uma
realidade substancial. Como este último sentido foi bastante utilizado por Sartre, como
qualidade de objetos que justamente substancializariam a consciência, devemos esclarecer que
tal opacidade que agora está em jogo diz respeito a um desconhecimento de si pelo sujeito
próprio do plano pré-reflexivo, uma definição que acaba por escapar a um possível dualismo
entre translucidez e opacidade101. Isto porque este sentido de opacidade revela uma união
paradoxal entre os dois termos, isto é, a translucidez, na medida em que é invisibilidade, traz
consigo uma opacidade do sujeito na relação a si no sentido de que nela ele se desconhece, o
que o caracteriza como sendo “um mistério em plena luz”. Chamaremos tal opacidade de
opacidade espectral, a fim de demarcar tanto este não saber próprio à invisibilidade da díade
fantasma pré-reflexiva, quando sua diferenciação para com a opacidade que é sinônimo de
substancialidade e ainda sua capacidade de ir além do dualismo translucidez/opacidade.
Ademais, não é somente esta característica da opacidade como “não saber” que contesta tal
dualismo. Pela perspectiva da hantologie, devemos levar em conta a “face sombria” da
translucidez e em que medida esta dimensão é desde sempre uma translucidez assombrada.
Isto nos remete ao terceiro ponto mencionado acima, que dizia respeito ao questionamento do
sentido da transparência da consciência sartriana como pressupondo uma subjetividade pura,
apartada da facticidade.

§4. A face sombria.

On est condamné à une liberté sans ombre et sans excuse.

Sartre, Carnets de la drôle de guerre.

101Para De Coorebyter, não se pode nem mesmo assimilar translucidez e opacidade a um dualismo do tipo
espírito e matéria: “Sartre ne tient pas l’opaque pour une catégorie sui generis de l’objet matériel, mais pour le
mode d’être du phénomène en général”. DE COOREBYTER, V. Sartre face à la phénoménologie, p. 262.
!289

É a liberdade sartriana de fato sem sombras? Se não, no que consistiria sua face
sombria? A esta altura de nossas argumentações, já sabemos que nenhum objeto, nenhuma
opacidade (neste último sentido), pode pertencer à região ontológica translúcida denominada
para-si. Mas isto não significa que esta mesma região não seja assombrada por suas faces
objetivas. O assombramento, ao se caracterizar justamente por esta ligação entre os planos
subjetivo e objetivo do para-si, faz com que toda translucidez seja atravessada, e por isso
mesmo perturbada, pelos espectros. Estes, por sua vez, se caracterizam pelo modo de
presença, de “habitação”, do polo objetivo no subjetivo, de maneira a contestar esta divisão
mesma. Por isso, trata-se de um plano de sombras, pois não pode haver densidade material a
ponto de substancializar o plano translúcido - sentido sartriano de opacidade - mas há de
algum modo zonas de sombreamento que perturbam a translucidez já fantasmática do para-si.
Em Mallarmé, como citamos, Sartre fala da face sombria como “finitude
interiorizada”102. Já em La liberté cartésienne, a finitude é comparada ao poder de negação, e
é ainda pelo nada que Sartre escapa ao Deus de Descartes: “par ma finitude et mes limites, par
ma face d’ombre, je me détourne de lui” 103. Finitude interiorizada e facticidade atestam o
engajamento do para-si no mundo e fazem da face sombria uma dimensão que assombra
constantemente o para-si, atravessando sua translucidez. Em Sartre, a transparência da
consciência não corresponde, portanto, a uma subjetividade pura, “sem sombras”, visto que a
consciência não é mais nua e é agora encarnada. O para-si adquire assim uma espessura em
seu modo de ser que inclui a translucidez e sua face sombria.
Por esta razão, pode-se falar em graus de clareza e opacidade na realidade do para-si, o
que possibilita o trabalho da psicanálise existencial. Desde o Esquisse, Sartre admite que dizer
que para a consciência ser e aparecer se equivalem, não é o mesmo que dizer que suas
significações são explícitas, pois “il y a bien de degrés possibles de condensation et de
clarté”104. Em um momento mais tardio do seu pensamento, como vimos, a obscuridade que
habita o para-si é manifestamente tematizada a partir da noção de vivência (vécu), a qual de

102 Descrição que lembra aquela de Sartre a respeito Kierkegaard: “Kierkegaard nous ensine que le Moi, l’acte et
l’œuvre, avec leur face d’ombre et leur face de lumière, sont parfaitement irréductible à l’une ou à l’autre […] la
face d’ombre est déjà lumière parce qu’elle est le moment de l’intériorisation des hasards extérieurs” S.IX, p.
181.
103 S.I, p. 300. Assim, Sartre abre as portas do cogito ao gênio maligno: “si je me considère comme participant en

quelque façon du néant ou du non-être, c’est-à-dire en tant que je ne suis pas moi-même le souverain être, je me
trouve exposé à une infinité de manquements, de façon que je ne me dois pas étonner si je me trompe” S.I, p.
135-136.
104 ETE, p. 36.
!290

alguma forma substitui a de consciência. Com o emprego desta noção, Sartre sai de uma
postura de “rejeição do inconsciente”, a fim de mostrar como ele mesmo pensa o que seria um
modo “conscient-inconscient”105, termo que anteriormente atestaria a seus olhos uma
contradição absurda. Ele descreve então a vivência como “un ensemble dont la surface est
tout à fait consciente et, sans être de l’inconscient, vous est caché” 106; o que torna possível
mostrar, por exemplo, “comment Flaubert ne se connaît pas lui-même et comment en même
temps il se comprend admirablement”107 . Esta ideia encontra-se portanto em continuidade
com aquela de dez anos antes (1961), momento em que Sartre diz que “il est nécessaire qu’il
y ait une espèce d’épaisseur obscure qui est la façon dont on se comprend soi-même”108, que é
a do não saber do desconhecimento de si que comentamos acima. Tudo indicaria assim um
possível abandono progressivo da ideia de transparência da consciência dado que esta não
admite zonas de obscuridade. No entanto, é curioso notar que, ainda em 1966, embora de
forma mais discreta, Sartre diz que “la subjectivité apparaît comme l’unité d’une entreprise
qui renvoie à elle-même, qui est dans une certaine mesure translucide à elle-même, et qui se
définit à travers sa praxis”109, isto é, sem abrir mão por completo da ideia de translucidez.
Além disso, outro ponto mostra certa continuidade sobre o tema, quando Sartre, ao falar da
vivência como “la vie en compréhension avec soi-même, sans que soit indiquée une
connaissance, une conscience thétique” 110, nos faz pensar na distinção entre consciência e
conhecimento já dada em L’Être et le Néant, conforme comentário de Cabestan que
mencionamos anteriormente.
Tais observações nos levam a tomar então em conjunto, e não em relação de exclusão
entre os termos, a translucidez e sua face sombria. As conclusões destas análises nos mostram
ainda, em oposição ao sentido de “domínio de si” normalmente atribuído a uma consciência
transparente, três níveis de desconhecimento de si: a invisibilidade pré-reflexiva translúcida, o
plano das sombras que assombram esta mesma dimensão e a invisibilidade que é desvelada
pela angústia do fazer-se reflexivo purificante. Quando Sartre fala das intuições fulgurantes,
dos clarões de Flaubert, por exemplo, ele nos diz em seguida que este se encontra “na

105 S.X, p. 110.


106 S.X, p. 111.
107 Ibid.
108 QS, p. 123.
109 L’Arc, p. 93. (grifo nosso)
110 S.X, p. 111.
!291

sombra” antes e depois de tal momento111. A reflexão pura, ao invés de produzir


autoconhecimento, é uma experiência compreensiva pré-reflexiva da própria condição da
liberdade. Esta condição implica ao mesmo tempo translucidez e sombras, boa fé e má-fé, ser
e nada: “La conscience est donc plaisir en question, joie en question, profondeur, clarté,
sécurité, bonne foi, mauvaise foi en question, avec cette totale responsabilité qui lui incombe
qu’elle seule décide du degré de clarté, ou de mauvaise foi, ou de bonne foi, où elle se
trouve”112. Mas este escolher, como vimos, não é da ordem da deliberação, pois é equivalente
a ser a cada vez nadificação de seu ser. Se o para-si escolhe pré-reflexivamente seu ser, e se
este nível pré-reflexivo envolve um desconhecimento de si, o qual por sua vez é acentuado
pelas tentativas reflexivas - seja pela angústia da reflexão pura, seja pelo fracasso da reflexão
impura (como veremos) -; se a consciência é ainda presença perturbada a si, e ela mesma
assombrada em seu ser, trata-se finalmente de uma curiosa liberdade. Não mais aquela da
subjetividade pura, do domínio de si que exclui qualquer autoengano, mas uma liberdade
assombrada, desde sempre em situação no mundo, este também assombrado.

111 S.X, p. 111.


112 CSCS, p. 154.
Capítulo III

O mundo assombrado:
o campo fenomenal do “há” como campo prático.

§1. O problema do conhecimento.

Após o esforço inicial em distinguir os planos da consciência e do conhecimento e,


através deste mesmo esforço, realizar uma crítica ao idealismo e à primazia do conhecimento
sobre a existência, Sartre denomina, no capítulo III da segunda parte de L’Être et le Néant,
intitulado “A transcendência”, a relação originária do para-si com o em-si transcendente
justamente de conhecimento (connaissance). Levando em conta esta decisão conceitual,
devemos atentar para algumas questões que se colocam: Qual a diferença entre o
conhecimento cuja primazia fora criticada na “Introdução” para o conhecimento como relação
originária do para-si com o em-si? Isto é, que tipo de conhecimento é compreendido nesta
relação? Quais as consequências de se pensar esta relação em termos de conhecimento? Estas
questões são importantes a fim de compreendermos a dimensão de assombramento do mundo,
a partir de uma concepção prática do projeto temporal do para-si.
No intuito de explicitar o caráter problemático de se pensar a relação originária do
para-si com o em-si em termos de conhecimento, recorreremos brevemente à posição
heideggeriana em Être et Temps sobre o primado da ocupação manual em relação ao olhar
contemplativo na estrutura de ser-no-mundo do Dasein. Este recurso nos auxilia a colocar os
problemas que estão em jogo na posição sartriana em sua própria maneira de pensar o para-si
como ser-no-mundo.

*
!293

No § 12 de Être et Temps, Heidegger estabelece como ponto de partida de sua analítica


existencial a premissa de que as determinações de ser do Dasein devem ser compreendidas a
priori, a partir da constituição de ser que ele denomina ser-no-mundo (être-au-monde/In-der-
Welt-sein). Isto posto, ele interroga esta estrutura unitária tendo em vista três perspectivas:
como seria a estrutura ontológica “no-mundo”, pela qual se pode compreender o que seria a
mundanidade (mondanéité/Weltlichkeit); o Dasein como resposta a questão de quem é o ente
que é-no-mundo - a questão “quem?” -; e o “ser-em…” (L’être-à…/In-sein), que diz respeito
justamente à maneira do Dasein ser-no-mundo. Segundo Heidegger, esta última não pode ser
compreendida como um “ser dentro do mundo”, como uma inclusão espacial, mas como um
existencial, isto é, como uma constituição ontológica a partir da qual o Dasein é a cada
momento. Este ponto de partida se torna fundamental para os desenvolvimentos posteriores da
analítica existencial na medida em que o “l’être-au-monde est une constitution a priori
nécessaire du Dasein”1, o que significa que tais desenvolvimentos posteriores devem ser de
alguma forma derivados dessa condição primeira.
Heidegger aponta em seguida que a maneira de “ser-em” do Dasein não pode ser
compreendida como a das coisas espaço-temporais, cujas características são nomeadas de
categorias, de forma que os modos ontológicos de ser do Dasein - cuja condição é ser-no-
mundo -, em oposição às categorias, são os existenciais (existentiaux/Existenzialien). Tal
distinção torna-se fundamental na explicitação da diferença entre o modo de ser do ente em
geral e o modo de ser do Dasein, cujas estruturas essenciais revelam o sentido de seu ser.
Segue-se que a explicitação dos existenciais do Dasein se dá a partir do modo cotidiano em
que o Dasein se encontra, como diz Heidegger, “de início e na maior parte das
vezes” (zunächst und zumeist)2, conforme podemos observar desde o § 5:

Or ce mode doit bel et bien montrer cet étant en ce qu’il est de prime abord et
le plus souvent, dans sa quotidienneté moyenne. Et sur la base de celle-ci, ce
ne sont pas des structures arbitraires et fortuites qui doivent être dégagées,
mais des structures essentielles, qui se maintiennent, à titre de déterminations
de son être, dans tout mode d’être du Dasein factice. C’est donc dans la
perspective de la constitution fondamentale de la quotidienneté du Dasein

1 HEIDEGGER, M. Être et Temps, p. 62.


2 Traduzido por E. Matineau por “de prime abord et le plus souvent” e por M. Cavalcante por “numa primeira
aproximação e na maioria das vezes”. Esta fórmula é explicitada por Heidegger no §71 da seguinte maneira: “«
De prime abord » signifie : la guise en laquelle le Dasein, dans l’être-l’un-avec-l’autre de la publicité, est «
manifeste », même si « dans le fond » il a justement pu « surmonter » existentiellement la quotidienneté ; « le
plus souvent » signifie : la guise en laquelle le Dasein se montre non certes toujours, mais « régulièrement » à
tout un chacun”. Ibid., p. 281.
!294

qu’il convient d’entreprendre la mise en relief préparatoire de l’être de cet


étant3 .

A condição fática de ser-no-mundo do Dasein, na qual ele se encontra de início e na


maior parte das vezes, é, portanto, a cotidianidade mediana, cujo sentido temporal se expressa
pela “monotonie, l’habitude, le “aujourd’hui comme hier et demain comme aujourd’hui” e “le
plus souvent”4, isto é, no modo do impessoal (On/das Man), no qual o Dasein se encontra
“todos os dias”, cujo sentido Heidegger desenvolve no §71. É precisamente a partir deste
modo que podemos compreender o primado do que veremos ser a ocupação (préoccupation/
Besorgen) do Dasein em sua maneira de “ser-em” do ser-no-mundo como um existencial.
Enquanto “ser-em”, o Dasein encontra-se em relação prática com os outros entes no mundo,
que são as diversas maneiras do Dasein “ser-em”, como: produzir alguma coisa, tomar conta
de alguma coisa, interrogar alguma coisa ou ainda renunciar ou omitir alguma coisa. Trata-se
de um modo de ser ontológico do Dasein que caracteriza a ocupação. Segue-se que, de acordo
com a questão que orienta sua ontologia fundamental - a questão do sentido do ser em geral -,
Heidegger se interroga, no §15 de Être et Temps, a respeito do ser do ente que faz encontro ao
Dasein na ocupação, ou seja, qual o modo de ser dos entes intramundanos dos quais Dasein
faz uso através das várias maneiras da ocupação. O desenvolvimento deste ponto é
fundamental no que se refere ao problema do conhecimento na medida em que explicitar o
modo quotidiano da ocupação sob a forma do uso dos entes intramundanos significa revelar
um primado pré-teórico da maneira pela qual os entes se apresentam ao Dasein, ao deslocar,
ao mesmo tempo, a relação de conhecimento teórico a um plano derivado e secundário. Isto é,
“dans le champ de la présente analyse, dit Heidegger, est pris pour étant pré-thématique celui
qui se montre dans la préoccupation au sein du monde ambiant. Cet étant n’est alors
nullement l’objet d’une connaissance théorique du « monde », il est ce dont on se sert, qu’on
produit, etc.”5. Neste sentido, a “coisa mesma” que se desvela na ocupação do Dasein é o ente
pré-temático, que é o ente que é utilizado. Assim, o acesso fenomenológico ao ente consiste
em renunciar a tendências explicativas, que na cotidianidade tendem a se obscurecer, a fim de
desvelar o “solo pré-fenomenal”, a partir do qual o próprio ente pode aparecer enquanto
“coisa”, dotada de realidade, substância, etc. Por isso, torna-se necessário, neste contexto,

3 HEIDEGGER, M. Être et Temps, p. 35.


4 Ibid., p. 281.
5 Ibid., p. 72.
!295

colocar em questão a própria “coisidade” da coisa, visto que a concepção de algo como
“coisa” já se encontra dotada de preconceitos que obscurecem o seu desvelamento. No intuito
de interrogar o ser do ente da coisa, Heidegger resgata o significado grego da coisa enquanto
pragmata. Esta se refere àquilo que se faz uso na ocupação, embora, ao seu ver, os gregos não
desvelaram justamente o caráter pragmático das coisas, determinando-as por fim numa
concepção metafísica que se tornou dominante desde então, que é aquela das coisas como
presença, dotadas de substância e propriedades. Se é a partir da lida prática que as coisas se
revelam como pragmata, isto significa que é pelo Dasein, em seu caráter prático da ocupação,
no qual ele se encontra de início e na maioria das vezes, que os entes se desvelam como tal.
A primazia da ocupação como modo de ser cotidiano do Dasein e sua relação com a
praxis grega foram aspectos explorados por Franco Volpi em seu artigo Dasein as praxis:
Heidegger and Aristotle6, em que o autor busca mostrar que Heidegger faz o movimento de
tornar os conceitos aristotélicos, principalmente da Ética a Nicômaco, em conceitos
ontológicos, dentre estes o de práxis, além de theoria e poiésis. Segundo Volpi, na verdade
Heidegger identifica em Aristóteles um duplo emprego do conceito: uma concepção ôntica,
indicando praxis particulares, e uma concepção ontológica onde praxis designa uma
modalidade de ser. Mas como em Aristoteles o termo praxis é compreendido a partir daquilo
que será considerado por Heidegger como uma concepção metafísica - do homem como
animal rationale e das coisas como presença substancial -, torna-se necessária uma visão
purificada dos preconceitos metafísicos a fim de compreender a práxis como determinação
ontológica. Assim, para Volpi, Heidegger não só retoma os conceitos aristotélicos, mas “in
taking them up, he profoundly modifies the structure, the character and the connection of
these determinations”7. Isto feito, a partir do Dasein enquanto práxis a coisa se revela como
pragmata, o que no contexto de Être et Temps se traduz pelo conceito de utensílio (outil/
Zeug)8. O utensílio é justamente o ente que faz encontro ao Dasein na ocupação cotidiana, no
seu uso prático, como aquilo que é utilizado para a realização de tarefas. Isto significa que o
utensílio em si não existe, pois seu ser consiste num “para…”, desde sempre no interior de um

6 VOLPI, F. Dasein as praxis: Heidegger and Aristotle. In: MACANN, C. Martin Heidegger: Critical
assessments. New York: Routledge, 1992.
7 Ibid., p. 104.
8 Para o termo “Zeug” não utilizaremos a tradução “instrumento” em português feita por M. Cavalcante.

Traduziremos por utensílio pela única razão desta estar mais próxima ao uso do termo “ustensile” por Sartre.
Martineau traduz Zeug por “outil” e Werkzeug por “ustensile”, e também M. Cavalcante traduz este último termo
por “utensílio”.
!296

complexo de utensílios, a partir do qual ele pode aparecer como tal. Nas palavras de
Heidegger:

L’outil, conformément à son ustensilité, est toujours par son appartenance à


un autre outil : l’écritoire, la plume, l’encre, le papier, le sous-main, la table,
la lampe, les meubles, les fenêtres, les portes, la chambre. Ces « choses » ne
commencent pas par se montrer pour elles-mêmes, pour constituer ensuite
une somme de réalité propre à remplir une chambre. Ce qui fait de prime
abord encontre, sans être saisi thématiquement, c’est la chambre, et encore
celle-ci n’est-elle pas non plus l’« intervalle de quatre murs » dans un sens
spatial géométrique — mais un outil d’habitation. C’est à partir de lui que se
montre l’« aménagement », et c’est en celui-ci qu’apparaît à chaque fois tel
outil « singulier ». Avant tel ou tel outil, une totalité d’outils est à chaque fois
déjà découverte9.

É, portanto, no interior desta totalidade de reenvios já descoberta, que um utensílio


aparece. Mas, como vimos a respeito deste modo de desvelamento, este aparecer não se dá
sob a forma de um objeto que aparece para um sujeito, para um olhar teórico. Pelo contrário,
quanto menos “olhado”, mais a utensilidade do utensílio se revela em seu uso prático, mais “à
mão” ele se encontra, disponível a ser usado e manuseado. Por esta razão, Heidegger designa
o modo de ser do utensílio como manualidade (l’être-à-portée-de-main/ Zuhandenheit),
enquanto que a coisa que aparece para o olhar teórico se revela como ser simplesmente dado
(l’être-sous-la-main / Vorhandenheit). No entanto, não podemos com isso estabelecer um
dualismo entre os modos de aparecer da coisa segundo a atitude do Dasein através de uma
distinção do tipo “prática e teoria”, o que pressuporia, por exemplo, um agir que fosse “cego”
e uma apreensão teórica abstraída de uma práxis 10. Deve-se estar atento, por esta razão, ao
uso das aspas feito por Heidegger ao se referir a teoria e prática, pois ao privilegiar o caráter
“prático” do Dasein, Heidegger busca ao mesmo tempo evitar incorrer em tal dualismo entre
teoria e prática, isto é, não há uma separação radical entre conhecimento e prática, na medida
em que a ocupação “possède sa « connaissance » propre”11. O agir tem sua visão própria -
denominada de circunvisão (circon-spection/Umsicht) -, que é justamente esta visão que não
se concentra num objeto a fim de descrever ou apreender suas propriedades, mas trata-se de
uma visão alargada, capaz de abranger o mundo circundante e a rede de reenvios dos
utensílios. O comportamento teórico é, por sua vez, a interrupção da circunvisão e o
desvelamento do ente como simplesmente dado, a partir de um método.

9 HEIDEGGER, M. Être et Temps, p. 74.


10 “Le comportement « pratique », n’est pas « athéorétique » au sens d’une absence de vision”. Ibid., p. 74.
11 Ibid., p. 72.
!297

Esta diferença não dualista, entre uma práxis da ocupação e a interrupção do modo
pré-teórico, é o ponto que nos interessa neste momento, no que se refere ao problema do
conhecimento. Por esta razão, nos concentraremos no §13, no qual Heidegger evidencia o
caráter derivado do conhecimento relativamente ao modo cotidiano de ser-no-mundo do
Dasein. Neste parágrafo, com efeito, dois pontos importantes são elucidados: 1) o caráter
derivado do conhecimento como comportamento que faz cessar a praxis da ocupação 2) o
problema do conhecimento em sua concepção clássica, que consiste na relação entre um
sujeito e um objeto. Na verdade, este último ponto é problemático já que, se para Heidegger
“sujet et objet […] ne coïncident point avec Dasein et monde”12 , o problema de saber como
um sujeito pode sair de sua “esfera interior” para conhecer o objeto “fora dele”, resulta, como
diria Bergson, num “falso problema”. No sentido de que, nas palavras de Deleuze, “le
problème a toujours la solution qu’il mérite en fonction de la manière dont on le pose, des
conditions sous lesquelles on le détermine en tant que problème, des moyens et des termes
dont on dispose pour le poser” 13. Em outras palavras, empenhar-se na busca de uma solução
para o problema do conhecimento de um objeto por um sujeito, na medida em que este
problema pressupõe a existência de duas instâncias separadas e preexistentes, consiste num
falso problema dado que ele é formulado a partir de premissas inquestionadas, como afirma
ainda Deleuze: “La notion même de faux problème implique en effet que nous n’avons pas à
lutter contre de simples erreurs (fausses solutions), mais contre quelque chose de plus profond
: illusion qui nous entraîne, ou dans lesquelles nous baignons, inséparable de notre condition.
Mirage, comme dit Bergson”14. Neste sentido, Heidegger considera ainda insuficiente a crítica
da fenomenologia de Husserl, via conceito de consciência intencional, a uma concepção de
consciência entendida como uma espécie de caixa e reservatório; pois se é possível ainda na
filosofia husserliana falar de uma esfera de imanência de um sujeito transcendental, as
questões permanecem:

En fait, de quelque manière que cette sphère intérieure soit interprétée, dès
l’instant qu’est posée la question de savoir comment le connaître peut réussir
à en « sortir » et à conquérir une « transcendance », il apparaît avec éclat que
l’on ne peut que trouver le connaître problématique tant que l’on n’a point
d’abord clarifié la modalité et l’essence de ce connaître si riche en énigmes.
En adoptant un tel point de départ, on demeure aveugle à ce que la

12 HEIDEGGER, M. Être et Temps, p. 67.


13 DELEUZE, G. Le bergsonisme. Paris: PUF, 2004, p. 5.
14 Ibid., p. 10.
!298

thématisation la plus provisoire du phénomène de la connaissance implique


déjà tacitement : le connaître est un mode d’être du Dasein comme être-au-
monde, il a sa fondation ontique dans cette constitution d’être15 .

O ponto de partida que orienta a discussão em torno problema do conhecimento


consiste assim na elucidação do caráter derivado deste - fundado na estrutura ser-no-mundo
do Dasein- e, consequentemente, na elucidação do conhecimento não como uma relação
sujeito-objeto, mas como recuo do modo de ser da ocupação para um modo de ser residual,

que Heidegger designa como acolhimento (accueil/Vernehmen) do conhecido. O acolhimento,

por sua vez, ocorre quando o ente se apresenta não mais a partir do uso manual, mas como um
ser simplesmente dado, isto é, como uma coisa presente diante do sujeito, cujo caráter de
derivado, desde Aristóteles, foi obscurecido pela tese de “realidade”. Em outros termos, a
coisa que desde então se apresentava como substância presente e cujo modo de ser se tornou
paradigma de realidade ao longo da história da metafísica, é desvelada por Heidegger em seu
aparecer para o comportamento teórico do Dasein como tal, sendo que neste surgimento
mesmo vela-se o modo mais originário de aparição da coisa que se dá na ocupação cotidiana.
Além disso, o problema do conhecimento não consiste mais na questão de como o sujeito
pode “sair de si” a fim de conhecer o objeto “lá fora”, dado que tudo está “fora”, o uso ou o
conhecimento da coisa ocorrem ambos no comportamento no-mundo do Dasein; a mudança
não é tampouco de “ponto de vista”, mas é uma mudança de situação, do modo de ser-no-
mundo do Dasein.

As considerações heideggerianas a respeito do caráter derivado do conhecimento


teórico permitiu uma verdadeira guinada das questões epistemológicas e da teoria do
conhecimento para a dimensão da existência concreta. Neste contexto, as concepções de
sujeito e objeto mostram-se problemáticas à medida que a desconstrução da metafísica visa à
ultrapassá-las, em sintonia com a “[i]dée fixe de toute la pensée contemporaine”, como diz
Levinas16. No entanto, a fenomenologia francesa se dirige a Être et Temps num intuito
paradoxal, diz Benoist - a partir de uma afirmação de Jean-Luc Marion de que “la

15 HEIDEGGER, M. Être et Temps, p. 67.


16 LEVINAS, E. Humanisme de l’autre homme. Paris: Fata Morgana, 2012, p. 29.
!299

phénoménologie française sera une phénoménologie du sujet ou elle ne sera pas”-, ainda para
encontrar nesta obra as linhas fundamentais do esboço de uma teoria do sujeito17. Movimento
paradoxal em razão de que a obra de Heidegger realiza um questionamento radical da
subjetividade e suas propriedades. O que se caracteriza por aquilo que Badiou chama de
“operação alemã” da filosofia francesa contemporânea, que diz respeito ao uso de “armas”
provenientes da filosofia alemã no campo de batalhas francês, muitas vezes para fins
estranhos a esta última18.
De todo modo, as questões de Être et Temps se revelam neste sentido incontornáveis.
No que nos concerne neste momento, mesmo que a fenomenologia (pelo menos anterior aos
anos 60) tente ainda se inscrever num debate que de algum modo conserva uma tentativa de
pensar o sujeito, isso se dá por via de um reposicionamento de todas as questões, tendo em
vista não mais o privilégio do conhecimento do tipo sujeito-objeto, mas, ao contrário, um
primado da existência sob o sujeito do conhecimento. Disto decorre que o caráter ocupacional
faz com que seja necessário questionar aquilo que se compreende como subjetivo ou objetivo,
já que o sujeito não pode mais ser pensado como esfera monádica fechada em si e a coisa em
seu aparecer não pode mais ser pensada como objeto de conhecimento, a não ser a partir de
atitudes secundárias e derivadas do modo de ser mais fundamental de ser-no-mundo.
Estas considerações são relevantes se quisermos compreender o que está em jogo na
concepção sartriana de ser-no-mundo e sue posicionamento com relação ao problema do
conhecimento. Em primeiro lugar, Sartre se insere de algum modo na herança heideggeriana
de crítica à primazia do conhecimento compreendido como relação entre um sujeito que
posiciona um objeto para fins de contemplação teórica, embora ainda pela via da consciência
(já mencionamos o quanto essa “herança” não é uma filiação). A reflexão, por exemplo, é uma
atitude de recuo do sujeito em relação a si com o objetivo de tomar-se como objeto. Esta
atitude é possibilitada e, portanto, derivada, da pré-reflexividade. Do mesmo modo, a
irreflexão é pré-reflexiva e consiste numa relação imediata de negação interna do para-si com
o em-si que ele não é. O problema é que Sartre denomina, no capítulo “A transcendência”,
esta relação originária de conhecimento, sem fazer a distinção entre os dois sentidos do termo.
Iremos explicitar em seguida o que Sartre entende por conhecimento neste segundo sentido,
mas por ora devemos deixar claro que o conhecimento como “modo de relação originário

17 BENOIST, J. L’idée de phénoménologie. Paris: Beauchesne, 2001, p. 16.


18 BADIOU, A. L’aventure de la philosophie française, p. 14.
!300

entre o para-si e o em-si” não é um modo epistemológico do conhecimento. Isto porque, assim
como Heidegger, Sartre busca mostrar que é pela lida prática do para-si que as coisas se
revelam - anteriormente a qualquer olhar de teorização sobre elas - como utensílio: “La chose
n’est point d’abord chose pour être ensuite ustensile ; elle n’est point d’abord ustensile pour
se dévoiler ensuite comme chose: elle est chose-ustensile”19. E é somente para o olhar teórico
que ela aparece como coisa objetivada: “Il est vrai, toutefois, qu’elle [la chose] se découvrira
à la quête ultérieure du savant comme purement chose, c’est-à-dire dépouillée de toute
ustensilité”20. Como veremos em seguida, Sartre concebe, neste momento do texto, o
conhecimento em termos de intuição, mas sua preocupação é a de pensar uma intuição não
contemplativa e constituinte como a de Husserl21, mas como processo de temporalização ek-
stática do para-si, estabelecendo deste modo uma indissociabilidade entre conhecimento
intuitivo e ação: “Toute action est connaissance (encore qu’il s’agisse dans la plupart des cas
d’un dévoilement non intellectuel) et toute connaissance, même intellectuelle, est action” 22.
Sendo assim, a relação originária do para-si com o em-si em termos de conhecimento não é
aquela de um sujeito que posiciona um objeto teórico, mas é aquela de um sujeito que é ação
para a qual a coisa se desvela como pragmata. A ação torna possível pensar a intencionalidade
num sentido alargado, como mostra Ricœur, na medida em que aquilo que é o “objeto” do
agir não é o movimento da ação, mas “c’est la transformation même de mon environnement,
c’est le factum réciproque du facere, le « fait » comme parfait passif, le « étant fait par moi »,
le pragma”23. Tal afirmação é válida para o para-si, dado que o projeto temporalizador que o
caracteriza faz com que sua “intencionalidade prática” desvele um mundo como campo
prático:

la perception ne se distingue aucunement de l’organisation pratique des


existant en monde. Chaque ustensile renvoie à d’autres ustensiles […] Mais
ces renvois ne seraient pas saisis par une conscience purement contemplative:
pour une semblable conscience le marteau ne renverrait point au clous; il
serait à côté d’eux; encore l’expression de « à côté » perd-elle tout son sens
si elle n’esquisse point un chemin qui va du marteau au clou et qui doit être
franchi”24.

19 EN, p. 236.
20 Ibid.
21 Como se pode observar nestas notas de Vérité et existence: “Et si la connaissance se fonde sur le contact
immédiat ou intuition, qu’est-ce donc qu’une intuition qui n’est pas contemplative (passive) sans être l’intuition
constitutive de Husserl?”. VE, p. 20 ; “l’intuition n’est pas instantanée : toute intuition se temporalise” Ibid., p.
63.
22 VE, p. 39.
23 RICŒUR, P. Philosophie de la volonté I, p. 264.
24 EN, p. 361.
!301

Utilizando-se ainda da Gestalttheorie para pensar tal campo prático, Sartre mostra que
toda aparição de algo para um sujeito será a aparição de uma forma sob um fundo, o que é
estrutural do desvelamento prático do mundo. Ao pensar o para-si como ser-no-mundo,
através da primazia da ação pré-reflexiva, mas ainda em termos de consciência e coisa, Sartre
se inscreve na herança heideggeriana paradoxal da fenomenologia francesa de ainda se pensar
uma filosofia do sujeito, de acordo com o que comentamos acima. Entretanto, não se trata
mais de um sujeito do conhecimento, protagonista de postura teórica, mas sim de um sujeito
que não sobrevoa o mundo (contrariamente às críticas de Merleau-Ponty), um sujeito
engajado. A ação é projeto temporalizador, que é a forma originária daquilo que Sartre
denomina de “presença ao mundo”. A ideia de presença, por sua vez, deve ser compreendida
em sua dimensão de assombramento, ou seja, não um como um sujeito estático presente a um
objeto também presente, mas como um sujeito “ek-stático” que faz com que tanto o sujeito
quanto a coisa apareçam como “presentes” através das demais estruturas de temporalização.
Neste momento de nosso trabalho, iremos, portanto, demonstrar como o capítulo “A
transcendência” de L’Être et le Néant - descrito por Sartre como um “rapide esquisse du

dévoilement du monde au pour-soi” 25 -, nos apresenta as principais características da

concepção sartriana do mundo como campo fenomenal prático. Ao nos situarmos no plano da
hantologie, iremos considerar as análises sartrianas de modo a ressaltar que o mundo deve ser
compreendido através das relações de assombramento e de seus modos espectrais. Assim,
trata-se de um mundo assombrado, que é o mundo do há (il y a), dotado de uma ambiguidade
fundamental. Esta consiste no fato de que, , ao mesmo tempo que somente pelo projeto
temporalizador do para-si“há” um mundo, este campo possui suas estruturas próprias de
desvelamento que não são “subjetivas” e não pertencem ao para-si, mas ao próprio mundo.

§2. “Ser-no-mundo é assombrar o mundo”.

on sait que “dans” doit s’entendre au sens de “colo”, “habito” non à


celui de “insum”; être-dans-le-monde, c’est hanter le monde, non pas
y être englué.

Sartre, L’Être et le Néant .

25 EN, p. 253.
!302

Na primeira parte deste trabalho, abordamos o “problema do em-si” e o quanto uma


concepção realista da parte de Sartre o fez de algum modo estabelecer uma distinção entre o
“ser do fenômeno” e o “fenômeno de ser”. Por meio de tal divisão, Sartre conceberia uma
dimensão que escapa à fenomenalidade, contrariando o princípio dos princípios da
fenomenologia. Neste contexto, vimos com Barbaras o que significa o a priori da correlação,
que retomamos aqui:

[u]n étant quelconque ne peut être pensé comme tel que par référence
à ses modes de donnée subjectifs, à savoir du point de vue de sa
corrélation avec un sujet, ce qui signifie que l’apparaître est une
dimension constitutive de l’être. De même, l’être du sujet et donc de
l’homme, en lequel cette subjectivité advient, ne peut être pensé
comme indépendamment de son rapport à un étant apparaissant, ce qui
revient à dire que la conscience est par essence portée sur le monde,
qu’elle est de part en part rapport à lui26.

O que identificamos como sendo o “problema do em-si” corresponde à assimetria


estabelecida por Sartre entre para-si e em-si, no sentido de que enquanto o primeiro existe
como nadificação do em-si que ele é, portanto dele dependente em seu ser, o segundo existe
por si e não possui nenhuma negatividade, de maneira que Sartre não consegue estabelecer
um a priori da correlação fenomenologicamente legítimo. Isto porque somente o sujeito seria
dependente do outro polo em seu modo de ser, mas o ser dos fenômenos seria independente
de sua relatividade ao sujeito - fenômeno de ser - em seu ser. Todavia, se nos ativermos à
noção sartriana de mundo, como veremos em seguida, esta só faz sentido como campo
fenomenal, o qual pressupõe simultaneidade entre ser e nada, o que em nossa perspectiva da
hantologie é caracterizado como mundo assombrado. Dito isto, Merleau-Ponty tem razão ao
apontar para o caráter problemático da descrição sartriana do em-si como “pura positividade”,
visto que esta afirmação hiper-realista da parte de Sartre exclui os espectros que permitem
compreender a sua própria concepção do mundo como campo fenomenal do “há” (il y a) e
suas estruturas de desvelamento. O em-si aparece no contexto do mundo assombrado não
mais como um em-si stricto sensu - descrito nas análises provisórias da “Introdução” como

26 BARBARAS, R. La perception, p. 44.


!303

pura positividade -, mas como região ontológica própria a certos modos de ser espectrais nos
quais convergem ser e nada. Por esta razão, não podemos denominar este modo de ser
propriamente de em-si, mas trata-se de um em-si fantasma, de um modo espectral.
Com o objetivo de apresentar sua concepção da transcendência, Sartre inicia suas
análises descrevendo, como comentamos, um tipo de ser que ele denomina de conhecimento
(connaissance). Este gesto está na origem do mal-entendido que se tornou a base da crítica de
Merleau-Ponty, dado que, como dissemos anteriormente, é neste capítulo que o autor de Le
Visible et l’Invisible se baseia para afirmar sua oposição à filosofia da negatividade em Sartre.
O que ocorre é que Merleau-Ponty toma o tipo de ser que Sartre chama de conhecimento
como paradigma do sujeito em L’Être et le Néant e assim generaliza para toda a obra os
resultados que derivam desta descrição localizada. Por esta razão, é importante atentarmos
para a especificidade deste tipo de ser em relação ao modo de ser do para-si, a fim de
delimitarmos o problema de tal reducionismo e simultaneamente compreendermos, ao logo de
nosso trabalho, a pertinência de uma “épaisseur existentielle du pour-soi”27.
O conhecimento é sinônimo em Sartre de presença ao mundo. A nosso ver, o texto
sartriano mostra que a ideia de “presença” deve ser pensada em termos espectrais: a “presença
a si” como díade fantasma, a presença ao ser como assombramento e, como ficará claro mais
adiante, a presença ao outro como assombramento de ser visto. Se ser-no-mundo é “assombrar
o mundo”, isto se dá pela presença que é o movimento temporalizador ek-stático do para-si
que vimos surgir de uma dupla negação. Logo, a facticidade é parte integrante do
desvelamento do mundo, dado que ela é uma estrutura imediata do para-si. Porém, se nos
ativermos ao âmbito puro da presença, poderemos compreender isoladamente a especificidade
deste “tipo de ser” ou “modo de ser” que é o conhecimento, descrito por Sartre como “un
néant qui ne se distingue de la chose que par une pure négation”28 . Trata-se assim de uma
breve abstração provisória da presença das outras ek-stases, com o objetivo de compreender o
modo de ser do conhecimento; breve abstração que se restringe às primeiras páginas do
capítulo, nas quais Sartre se refere ao para-si como “conhecedor” e não como “para-si”,
indicando deste modo a sutileza da diferença entre os dois termos29. O modo de ser do

27 DE COOREBYTER, V. Sartre face à la phénoménologie, p. 347. É precisamente tal “épaisseur existentielle


du pour-soi” que De Coorebyter aponta como não sendo levada em conta por Merleau-Ponty em Le Visible et
l’Invisible.
28 EN, p. 213.
29 Basta observar que na p. 238, por exemplo, Sartre já menciona o passado e como este faz com que toda

negação seja qualificada. Por esta razão, dissemos que a abstração é provisória.
!304

conhecimento, que é sinônimo de presença, consiste na contrapartida positiva da negação


interna - um dos atos de dupla negação que faz surgir o para-si - que Sartre define em termos
de intuição. Tudo se passa como se o autor invertesse seu olhar descritivo para o polo
afirmativo da intencionalidade - posicionamento de algo - e não mais para o polo negativo,
que faz com que o sujeito se apareça como não sendo aquilo que é afirmado. Como esta
relação não é a do conhecimento teórico, mas a da presença “assombrante”, Sartre procura
reforçar que não se trata de uma posição de julgamento ou teorização de um objeto, mas
simplesmente da correlação consciência-mundo que instaura o plano do “há” (il y a). O modo
de ser do conhecimento adquire assim uma radicalidade própria do a priori da correlação
fenomenológica: o surgimento do sujeito a partir do ser instaura o há de modo que só
podemos pensar a coisa a partir de sua relação ao sujeito, isto é, não somente o sujeito “ne
peut être pensé comme indépendamment de son rapport à un étant apparaissant”, como “un
étant quelconque ne peut être pensé comme tel que par référence à ses modes de donnée
subjectifs, à savoir du point de vue de sa corrélation avec un sujet”, retomando as palavras de
Barbaras. É assim que a afirmação de que “ser-no-mundo é assombrar o mundo” revela seu
sentido mais fundamental, uma vez que se trata do âmbito puramente negativo do ser-no-
mundo do para-si - assombramento - que faz com que este seja ao mesmo tempo “présence
immédiate et distance infini”30 do mundo, e não um pertencimento ao mundo do tipo “y être
englué”. E é nesta mesma direção ainda que compreendemos a expressão, por diversas vezes
citada, de que o para-si “n’ajoute rien” ao ser, pois não há um para-si anterior que modificará
um em-si independente, mas o há é o surgimento mesmo da correlação original, de modo que
o conhecimento (presença) é “le fondement a priori de toute expérience” 31:

Le connaître n’est ni un rapport établi après coup entre deux êtres, ni une
activité de l’un de ces deux êtres, ni une qualité ou propriété ou vertu. C’est
l’être même du pour-soi en tant qu’il est présence à…, c’est-à-dire en tant
qu’il a à être son être en se faisant ne pas être un certain être à qui il est
présent32.

30 “dans sa négation interne le pour-soi affirme ce qui ne peut s’affirmer, connaît l’être tel qu’il est alors que le «
tel qu’il est » ne saurait appartenir à l’être. En ce sens, à la fois le pour-soi est présence immédiate à l’être et, à la
fois, il se glisse comme une distance infinie entre lui-même et l’être”. EN, p. 254.
31 EN, p. 210
32 EN, p. 210. (grifo nosso)
!305

O termo conhecimento (connaissance) parece traduzir com dificuldade neste contexto


o sentido de relação originária de surgimento do para-si e do mundo (do mundo, como
nadificação de ser e não o surgimento do ser). Diante dos possíveis mal-entendidos de tal
terminologia, melhor seria falar então, como Claudel, em co-naissance, no intuito de ter em
vista - dado que a negação interna faz surgir ao mesmo tempo o sujeito e o mundo sob o
monismo do há -, que o conhecimento não diz respeito à reflexão de um sujeito sobre o
mundo, mas ao próprio “nascer-com” (co-naître) 33 do sujeito e do mundo. Neste momento,
Sartre se aproxima de suas intuições primeiras a respeito do “mundo dos profetas e dos
artistas” onde “la conscience et le monde sont donné d’un même coup”34. Não é por acaso que
o que estava em jogo então é, do mesmo modo, o caráter intuitivo, “positivo”, da
intencionalidade, e também não é por acaso que, se nos ativermos unicamente às análises do
conhecimento, reencontraremos os mesmos riscos da consciência nua.
O conhecimento, como contraponto da negação interna, é, portanto, caracterizado
como intuição. Se toda consciência é consciência de algo, como postula a fórmula da
intencionalidade, este princípio adquire em Sartre duas vias, uma positiva e uma negativa. A
via positiva já havia sido explorada desde o “mundo dos profetas e dos artistas” no artigo
sobre a intencionalidade. Agora há de se acrescentar a via negativa da negação interna, que
faz com que o para-si não seja aquilo que ele afirma. Merleau-Ponty é atento a este duplo
movimento da intencionalidade em Sartre e denomina de negintuição a negação interna, que é
precisamente a contrapartida negativa da intuição. No entanto, o movimento duplo que escapa
a Merleau-Ponty não é o das faces positiva e negativa da intencionalidade da consciência, e
sim, como dissemos anteriormente, o da dupla negação própria ao surgimento do para-si -
nadificação de si e negação interna -, de modo que ele toma o aspecto conhecedor do para-si
“sujeito” como sinônimo de para-si. Isto mostra que, ao descrever a relação de conhecimento
como presença, Sartre não estabelece que o para-si se reduza a este modo de seu ser, já que a
presença é apenas uma das ek-stases temporais, indissociável das demais. O conhecimento é

33 Evidentemente, nos apropriamos do termo de Claudel para nossos fins, ou seja, para demonstrar o caráter
originário do que Sartre denomina de conhecimento na medida em que este próprio termo dificulta esta
compreensão por razões que já mencionamos acima. É neste sentido que observamos uma força expressiva no
jogo que Claudel faz com a palavra connaissance, o que nos permite ligá-lo a este caráter “originário”. Para isso,
devemos ter em vista que Sartre não pensa em termos de “nascimento”, mas sim de um surgimento que é sempre
uma nadificação de ser e nunca uma criação “do nada”. Dito isto, vale transcrever a bela frase de Claudel: “Nous
ne naissons pas seuls. Naître, pour tout, c’est co-naître. Toute naissance est une connaissance”. CLAUDEL, P.
Art Poétique. Paris : Gallimard, 2002.
34 S.I, p. 30.
!306

definido apenas como a relação do para-si com o em-si que ele não é, de modo a não abordar
temporariamente o fato de que a facticidade do para-si encontra-se implicada nesta negação
mesma. Sartre descreve apenas este “não ser a coisa” pela via da estrutura de refletidade da
díade reflexo-refletidor: o para-si em seu caráter de refrator daquilo que ele não é de maneira
que “cela signifie que le pour-soi ne peut être que sur le mode d’un reflet se faisant refléter
comme n’étant pas un certain être”35. Neste tipo de ser que Sartre descreve como
conhecimento,

l’être que je ne suis pas représente la plénitude absolue de l’en-soi. Et je suis,


au contraire, le néant, l’absence qui se détermine à l’existence à partir de ce
plein. Ce qui signifie que dans ce type d’être qu’on appelle le connaître, le
seul être qu’on puisse rencontrer et qui est perpétuellement là, c’est le connu.
Le connaissant n’est pas, il n’est pas saisissable. Il n’est rien d’autre que ce
qui fait qu’il y a un être-là du connu, une présence - car de lui-même le
connu n’est ni présent ni absent, il est simplement36 .

Este trecho é significativo na medida em que fornece indícios de como se dá a


correlação neste tipo de ser do conhecimento: o sujeito como pura negação e a coisa
representando a plenitude do em-si. Na relação de conhecimento, o em-si que não é nem
presente, nem ausente, se dá como presença em relação à qual o sujeito é presente. O há é o
campo fenomenológico da presença instaurada pelo conhecimento. Como a presença do para-
si a algo é a de um projeto temporalizador, as estruturas temporais compõem, por sua vez, o
campo da presença da coisa, mas adquirem autonomia. Em outros termos, apesar das
estruturas terem sua origem na negação que “vem ao mundo” pelo para-si, fazendo com que o
sujeito abra um mundo, elas são inerentes a própria aparição do mundo a um para-si e não são
simples projeções subjetivas deste. Assim, as estruturas de desvelamento do mundo só podem
ser consideradas “projeções” do para-si num plano metafísico (no sentido sartriano), a saber,
desde que se tem em vista o surgimento de um para-si como “acontecimento absoluto”, que
instaura negatividade no ser. Mas, se nos situarmos no plano fenomenológico-ontológico, é
possível compreender que o campo do há não pode ser caracterizado estritamente como
subjetivo ou objetivo. Esta é a ambiguidade fundamental inerente à dimensão da
espectralidade: na medida em que podemos dizer que o mundo é ao mesmo tempo subjetivo e
objetivo - o que o faz ser nem subjetivo nem objetivo no fim das contas -, o há não pode ser

35 EN, p. 210.
36 EN, p. 213. (grifo nosso)
!307

reduzido a uma simples projeção das estruturas do para-si e nem pode ser pensado como
apartado destas mesmas estruturas37. Em suma, uma vez que “le surgissement du pour-soi fait
se dévoiler la chose avec la totalité de ses structures” 38, segue-se que “le monde m’apparaît
comme objectivement articulé ; il ne renvoie jamais à une subjectivité créatrice mais à l’infini
de complexes ustensiles”39. É neste sentido que podemos compreender o caráter espectral
revelado pelo conhecimento, o qual é por sua vez definido como um modo “intermédiaire
entre l’être et le non-être, [que] me renvoie à l’être absolu si je la veux subjective et me
renvoie à moi-même quand je crois saisir l’absolu”40.
A ambiguidade fundamental do mundo como o há deu origem a mal-entendidos. Isto
se manifesta, principalmente, numa leitura subjetivista ou solipsista do campo transcendente
descrito por Sartre. Talvez haja uma dificuldade dele próprio em explicitar a ambiguidade da
espectralidade: pois em que sentido ele pode dizer ao mesmo tempo que o mundo é “meu” e
que ele “nous renvoie exactement, par son articulation même, l’image de ce que nous
sommes”41 e que, desde que o mundo aparece, ele possui regras de aparição que “ne doivent
pas être considérées comme subjectives et psychologiques : elles sont rigoureusement
objectives et découlent de la nature des choses”42? A nosso ver, Sartre diz que o mundo é
“meu” em dois sentidos: em primeiro lugar, dado que é pelo surgimento do para-si que se abre
um mundo e como o para-si é projeto temporalizador, as estruturas de desvelamento do
mundo, embora sejam “objetivas”, se dão como correlativas às estruturas ek-státicas do para-
si. Em segundo lugar, visto que como o para-si é separado de si pelo circuito de ipseidade -
para-si presente em relação ao para-si possível -, a aparição do mundo se dá como sua
“imagem” na medida em que seus possíveis são sempre singulares, e daí o risco da
interpretação solipsista (o mundo seria reduzido a um espelho de Narciso). Neste último
sentido, Sartre procura mostrar que o mundo aparece orientado em utensílios ao para-si a
partir de suas possibilidades, que é o sentido da afirmação de que o para-si encontra-se
“engagé dans son image” 43, mas esta afirmação é imprecisa. Isto porque a imaginação, como

37 Nos Carnets, Sartre usa o recurso do “nem…, nem…” para se referir ao mundo: “Le monde n’est ni subjectif
ni objectif : il est l’en-soi investissant la conscience et en contact avec elle, tel qu’elle le dépasse dans son
néant”. CDG, p. 465.
38 EN, p. 234.
39 EN, p. 362.
40 EN, p. 255. (grifo nosso)
41 EN, p. 507.
42 EN, p. 356.
43 EN, p. 332.
!308

veremos, deve ser considerada ou como o contrário da percepção - que realiza o mundo,
enquanto a primeira o irrealiza -, ou como intrínseca ao real e nunca como imaginação
“pura”, como veremos no próximo capítulo. Além disso, tal afirmação “subjetiviza”
demasiadamente o campo fenomenal, na contramão do esforço de apresentação das estruturas
objetivas do desvelamento do mundo, com a consequente supressão da ambiguidade. No
entanto, o aspecto ressaltado por Sartre neste tipo de afirmação é o de que a apreensão ek-
stática do em-si implica uma projeção pré-temática das possibilidades do para-si que compõe
o sentido do campo fenomenal de modo a estabelecer, com efeito, uma relação de
dependência entre mundo e ipseidade, na medida em que Sartre postula que “sans monde pas
d’ipséité, pas de personne; sans l’ipséité, sans la personne, pas de monde”44. Em outras
palavras, como o para-si é projeto de ser causa sui, o mundo aparece com suas estruturas
objetivas próprias, mas sempre assombrado pelo projeto fundamental de um para-si que busca
completude.
Tendo em vista tais observações, podemos distinguir dois níveis do assombramento: 1)
a negatividade que abre um mundo faz com que o próprio mundo se desvele como ser e nada,
e não como “pura positividade”, embora o nada mundano seja correlativo da negação original
do para-si; 2) a singularidade de um projeto fundamental acrescenta uma camada justamente
singular na “imagem” pela qual o mundo aparece ao para-si, pois neste os entes se desvelam
como sendo ora obstáculos ora facilitadores no caminho do projeto individual do sujeito que
busca ser Si. A relação de assombramento não é assim uma relação de um sujeito diante de
um mundo objetivo, mas é a presença ao mundo do para-si, modo pré-reflexivo de
assombramento que faz o mundo ser “meu”: “Il serait absurde de dire que le monde en tant
qu’il est connu, est connu comme mien. Et pourtant cette « moiïté » du monde est une
structure fugitive et toujours présente que je vis. Le monde (est) mien parce qu’il est hanté
par des possibles dont sont consciences les consciences possibles (de) soi que je suis et ce
sont ces possibles en tant que tels qui lui donnent son unité et son sens de monde”45. Se o
mundo é o há o ser, que por sua vez caracteriza o que Sartre entende por “realidade”, é neste
sentido que podemos entrever o uso sartriano da tradução de Henri Corbin, “realidade-
humana”. O há é propriamente o mundo humano, no sentido de que aquilo que existe aparece
relativamente a um sujeito que se projeta para além do mundo. Ciente do que pode significar

44 EN, p. 141.
45 Ibid. (grifo nosso)
!309

isso em termos de um mundo “solipsista”, Sartre procura explicitar em outros momentos a


ambiguidade de um mundo que é “meu”, mas que não pode ser reduzido a uma subjetividade:

le monde est à la fois humain et inhumain. Il est humain au sens où ce


qui surgit dans un monde qui naît par la surgissement de l’homme.
Mais cela n’a jamais voulu dire qu’il était adapté à l’homme. C’est la
liberté qui est perpétuel projet de s’adapter au monde. Le monde est
humain mais non anthropomorphique. Autrement dit, le Pour-soi saisit
d’abord sur L’Être le refus silencieux de sa propre existence46.

Donc les choses sont humaines, nous n’y pouvons rien. Elles
annoncent l’homme à l’homme. Mais il ne faut pas entendre par là que
leur sens humain s’est déposé sur elles par couches successives, au fil
de générations, au fil de la vie individuelle. Il suffit d’exister, de se
jeter dans le monde une fois, par une trouée de néant, et de jeter à
l’horizon de l’existant notre réalité-humaine comme un idéal à fonder,
pour que chaque chose nous renvoie, nous annonce cette réalité-
humaine, mais en la réfractant avec son indice propre 47.

No entanto, no capítulo sobre a transcendência, Sartre não evidencia muito bem a


estrutura da facticidade do para-si, que é a que faz com que a concepção de mundo não recaia
em solipsismo. Isto porque, como falamos a respeito da posição de J. Benoist, tudo se passa
como se Sartre descrevesse um verdadeiro “triunfo da ipseidade” na medida em que o
aparecimento do mundo se dá a partir da relação do para-si “consigo mesmo” (pelo projeto de
ser si), como se não houvesse neste contexto necessidade do outro para compreender a
natureza da transcendência. Com efeito, isto é um problema caso o mundo perca sua
ambiguidade e seja concebido como sendo uma pura projeção de um para-si individual, como
um puro correlato de um projeto singular, pura produção do poder de ontogênese da
consciência, como dizia Merleau-Ponty. O que ocorre é que neste capítulo passa-se
discretamente pelo papel do passado, do outro e do para-outro e faz-se abstração do corpo na
apresentação da concepção de mundo (sobre o que o próprio Sartre se justifica como sendo
por um motivo do tipo “ordem de razões”). Consequentemente, não está explicitamente
colocado no texto sartriano de que maneira as estruturas de desvelamento do mundo implicam
a facticidade e sobretudo a intersubjetividade. Se é verdade que “faire « qu’il y ait » de l’être,
c’est communiquer à travers l’être avec autrui”48, como diz S. de Beauvoir em consonância
com as teses de Sartre, devemos mostrar como “on ne peut révéler le monde que sur un fond

46 VE, p. 83.
47 CDG, p. 432-433.
48 BEAUVOIR, S. de. Pour une morale de l’ambiguïté, p. 90.
!310

de monde révélé par les autres hommes” [e que] aucun projet ne se définit que pas son
interférence avec d’autres projets”49. Por esta razão, abordaremos em seguida as estruturas de
desvelamento do mundo de modo a levar em conta não somente o papel do passado e do
outro, mas também do corpo no movimento temporal de desvelamento do mundo.

§3. As estruturas de desvelamento do mundo.

A ligação ontológica originária do conhecimento corresponde à abertura do campo do


há, que deve ser compreendido como relação entre ser e nada nos dois polos da correlação:
ser e nada na própria estrutura do para-si e ser e nada como mundo. Isto significa que estamos
investigando o plano da espectralidade que é dado por relações de assombramento: no para-si
pelo sua face sombria e no mundo pela presença ao mundo do para-si. Assim, devemos
compreender o movimento de assombramento do para-si como presença ao ser e o caráter de
assombrado do mundo como presente ao para-si. Desde que nos situamos neste plano, pensar
um em-si como pura positividade, seria pensá-lo não como mundo, mas como coisa bruta
apartada da fenomenalidade de modo que, como dizia Barbaras, tratar-se-ia de uma
fenomenologia sem fenômenos. Se, por outro lado, nos situarmos no plano da hantologie,
tomando como base a própria concepção sartriana do há, não falaremos mais do para-si como
“sujeito” e o em-si como “objeto transcendente”, mas sim da relação que é a do para-si como
ser-no-mundo com o “isto” (ceci), verdadeira correlação fenomenológica em L’Être et le
Néant.
A título de organização, iremos apresentar o conjunto de características envolvido em
cada polo da correlação para-si “sujeito”- mundo, introduzidos por Sartre em diferentes
momentos de seu texto. Se nos voltarmos para o polo “sujeito” da correlação do “há”,
apreendemos o para-si como um movimento que possui as seguintes características: o sujeito
é movimento de 1) realização e totalização e 2) abstração. Acrescentamos que este movimento
implica o saber e a orientação. Já se nos voltarmos para o polo das estruturas de
desvelamento do mundo encontramos 1) a forma ou o isto (ceci) e a utensilidade; 2) o “para-
quem” e as técnicas; 3) as potencialidades e 4) a qualidade e o coeficiente de adversidade. O
“há” possui ainda estruturas que são modos de relação: 1) a relação externa 2) o espaço (e a

49 Ibid.
!311

quantidade) 3) o tempo do mundo. Todas estas características só podem ser compreendidas


pela dimensão da espectralidade, isto é, pela simultaneidade entre ser e nada, na medida em
que só há ser assombrado pelo nada e vice-versa.

a) O movimento temporalizador da presença ao mundo.

O movimento temporalizador do para-si faz com que o conhecimento intuitivo seja


realizador. Realizar, neste contexto, diz Sartre, comporta a dupla significação de fazer com
que algo exista e ao mesmo tempo “se dar conta”50 da própria condição de fazer com que algo
exista. Assim, realizar implica duplamente para o sujeito: abrir um mundo e vivenciar esta
mesma abertura, pois vimos que toda consciência intencional deve ser consciência (de) si de
forma não posicional. Realizar é, portanto, neste quadro, conhecer, e o real é realização, este
último como sinônimo de transcendência. Além disso, o para-si realizador-conhecedor-
desvelador é também totalizador. Sartre mostra através desta característica que somente pelo
para-si algo como uma “totalidade” pode advir ao ser. Por isso, uma pergunta do tipo “A quel
être le pour-soi est présent?” é mal colocada, porque algo como uma unidade, um ente
específico, só pode fazer sentido em relação a uma multiplicidade e uma variedade de entes.
Sartre recorre a Gestalttheorie a fim de pensar esta relação entre o aparecer de uma forma
singular que ele denomina de “isto” (ceci), sob um fundo, de modo que a presença do para-si
a algo só se dá tendo como fundo sua presença ao mundo. É o próprio para-si, pela negação
original, que nega “isto” especificamente como não sendo “todo o ser”, ou melhor, “la
présence au monde du pour-soi ne peut se réaliser que par sa présence à une ou plusieurs
choses particulières et, réciproquement, sa présence à une chose particulière ne se peut
réaliser que sur le fond d’une présence au monde”51 . Por outro lado, como o próprio para-si
não pode ser uma totalidade, visto que isto implicaria um fechamento em seu modo de ser
faltante, ele mesmo totaliza o ser enquanto é uma “totalidade destotalizada”. Sendo assim, se
o seu movimento original é totalização do mundo, “c’est par le monde que le pour-soi se fait
annoncer à lui-même comme totalité détotalisée”52, e isto significa que somente o mundo é

50 Como o uso em inglês, por exemplo, de “to realize”.


51 EN, p. 217. Reencontramos aqui a diferenciação feita por Verstraeten entre “n’est pas être” o ser - a negação
interna do para-si como não sendo a totalidade do ser - e “ne pas être” como negação interna em seu âmbito
singular e qualificado: o para-si não é isto ou aquilo.
52 EN, p. 217,
!312

apreendido como totalidade, como todo o ser que é fundo para o “isto” específico que aparece
ao para-si como a coisa que ele não é. O para-si desvela o ser como totalidade que é o mundo
de maneira que ele só apreende seu caráter de “totalidade destotalizada” no mundo, como algo
que se mostra “fora” de si. A realidade-humana é totalidade-destotalizada na medida em que
ela escapa a negação concreta atual de um ente específico por outras negações que o
ultrapassam em direção ao “fundo total”. Assim, o mundo aparece como totalidade - fundo - a
partir de uma negação concreta do em-si transcendente que, por sua vez, aparece como forma
em relação ao fundo e que consiste juntamente no isto. Voltaremos a este ponto em seguida,
pois nos resta apresentar a última característica do projeto temporalizador do para-si como
presença ao mundo que é a abstração. Sartre adverte que não devemos compreender este
termo no sentido de que abstrair significaria separar aquilo que se encontra unido, mas a
abstração neste contexto está relacionada ao sentido futuro de um isto concreto. Sendo o para-
si um projeto temporalizador, seu movimento no mundo faz com que o ser se revele a partir
de estruturas que são “para-além-do-ser” (par-delà-l’être). A dimensão “para-além-do-ser” é
constitutiva da aparição do isto, no sentido de que um ente sempre aparece como tendo uma
dimensão futura implicada em seu aparecer. Dimensão que é da ordem de uma negação que
não é originária - que “vem ao mundo” pelo para-si -, mas de uma negação “figée en en-soi”,
algo como um nada intramundano. Como o próprio para-si-desvelador assombra o mundo
com suas estruturas temporais, consequentemente o desvelamento do mundo se dá como
desvelamento de um mundo que tem um passado e um futuro próprios. Porém, as dimensões
de passado e de futuro do mundo não são equivalentes à temporalidade do para-si, que é ek-
stática; enquanto que a temporalidade mundana adquire uma substancialização própria da
temporalidade instantaneísta. Voltaremos a este ponto. A abstração é assim a dimensão das
estruturas de desvelamento de um “para-além” do concreto, o que significa que ela consiste
em tudo aquilo que dá ao concreto uma dimensão de porvir. Esta dimensão de porvir,
caracteriza, por sua vez, o modo de ser da aparição, dado que ela é justamente a essência da
aparição: “L’existant ne possède pas son essence comme une qualité présente. Il est même
négation de l’essence : le vert n’est jamais vert. Mais l’essence vient du fond de l’avenir à
l’existent, comme un sens qui n’est jamais donné et qui le hante toujours” 53. A essência do
existente é uma negação correlativa da relação do para-si com seus possíveis, mas ideal, pois

53 EN, p. 230. (grifo nosso)


!313

o para-si apreende no mundo, e não em si mesmo, a possibilidade da fusão que completaria


sua falta constitutiva, isto é, o para-si apreende o ideal de plenitude do valor no mundo e não
como estrutura não tética que o assombra constantemente. No mundo, esta fusão ideal se
apresenta como sendo a fusão “du ceci existant avec son essence à-venir”54 e esta realizaria a
síntese da totalidade temporal e suprimiria a falta55. Segue-se que a relação do concreto com o
abstrato é de assombramento: “l’abstrait hante le concret comme une possibilité figée dans
l’en-soi que le concret a à être” 56. Isto significa que o assombramento é constitutivo do campo
fenomenal do mundo, na medida em que todo isto aparece assombrado por seu sentido, que é
a dimensão para-além-do-ser. Dito de outro modo, toda presença é assombrada por ausências.
Ausências não no sentido de algo que está presente em outro lugar, ou como ausências a
serem “presentificadas” pelas coisas, mas como designando as próprias estruturas de
desvelamento do mundo, cujo modo de ser é um “nada” mundano, que assombra a presença.
A partir de tais considerações, Sartre conclui:

Ainsi, le monde se dévoile comme hanté par des absences à réaliser et


chaque ceci paraît avec un cortège d’absences qui l’indiquent et le
déterminent. […] les absences indiquent le ceci comme ceci et, inversement,
le ceci pointe vers les absences. Chaque absence étant être-par-delà-l’être,
c’est-à-dire en-soi absent, chaque ceci pointe vers un autre état de son être ou
vers d’autres êtres57.

Por outro lado, enquanto a dimensão futura ek-stática encontra seu correlativo na
dimensão para-além-do-ser do mundo, a ek-stase passado atua no desvelamento do isto
através do saber (savoir). Estas duas características concentram a dupla dimensão de
assombramento na aparição do isto presente: o assombramento pelas ausências da dimensão
para-além-do-ser futura e o assombramento “por detrás”, que faz com que cada negação seja
negação qualificada. Por via deste segundo aspecto, Sartre afirma que não há “négation sans
racines”58, pelo contrário, dizer que a negação é qualificada é dizer que ela “traîne sa
qualification derrière elle comme l’être qu’elle a à ne pas être sous la forme du « étais ». La

54 EN, p. 230.
55 Este ideal de completude que aparece como um irrealizável no mundo é caracterizado por Sartre como sendo o
“belo” (beau). A relação deste ideal com o mundo é a de assombramento: “le beau n’est pas plus une potentialité
des choses que l’en-soi-pour-soi n’est une possibilité propre du pour-soi. Il hante le monde comme un
irréalisable”. EN, p. 231.
56 EN, p. 225.
57 EN, p. 235. (grifo nosso)
58 EN, p. 238.
!314

négation surgit comme négation non-thétique du passé, sur le mode de la détermination


interne, en tant qu’elle se fait négation thétique du ceci”59. Logo, a negação de conhecimento
que faz surgir o isto envolve necessariamente a negação não tética do passado, que é a
estrutura da facticidade do para-si. A presença, como vimos, não pode ser pensada
independentemente da inter-relação entre as ek-stases temporais. As três ek-stases encontram-
se implicadas no próprio desvelamento da coisa, de modo que “c’est à partir de ce passé que
le pour-soi se fait annoncer ce qu’il est à l’avenir”60. Dito isto, é importante considerar o
saber como relação de assombramento, dado que, como dimensão passada que o para-si era
(était), “il n’est pas un donné inerte. Il est derrière le pour-soi, sans doute, inconnaissable
comme tel et hors d’atteinte” 61. Apesar da incidência do saber na presentificação do isto ser
descrita por Sartre em termos de algo que se encontra “atrás” do para-si, ressaltamos que não
podemos com isso considerar o saber como um estoque ou um acúmulo de conhecimentos
que o acompanha. Isto seria substancializar o passado (como o “passado de bolso” de La
Nausée), enquanto que Sartre o descreve como “inconnaissable comme tel et hors d’atteinte”.
Em L’Imaginaire esta característica já se encontra ressaltada: o saber se revela no objeto,
“touchant l’objet”62; “il est vide, il implique des compréhensions passées et futures mais lui-
même n’est pas une compréhension” 63; ele é como “le souvenir des compréhensions
passées”64. Na verdade, “souvenir” não é propriamente um bom nome para o saber, já que a
lembrança é um modo intencional da consciência enquanto que o saber atravessa cada
consciência na medida em que a ek-stase passado é constitutiva do próprio modo de ser do
para-si65. Finalmente, em L’Être et le Néant, Sartre define o saber como “signification vécue
et interiorisée, sans jamais être objet pour la conscience qui se projette vers ses fins
propres”66. Ele resta como um resíduo do processo de passadificação da metamorfose dado
que ele é justamente a forma como estas significações permanecem atuantes na nadificação
presente. Por esta razão, o passado “morto”, em-si, “hante le présent sous l’aspect d’un

59 EN, p. 238.
60 EN, p. 231.
61 Ibid.
62 I’re, p. 29.
63 I’re, p. 201.
64 I’re, p. 200.
65 Ainda não tendo o recurso conceitual da temporalidade ek-stática, Sartre pensa o saber em L’Imaginaire numa

inspiração mais husserliana, através do jogo de protensões e retenções.


66 EN, p. 512.
!315

savoir”67 de modo que todo desvelamento implica em sua estrutura o saber enquanto ek-stase
que permite o desvelar do isto como presente, dotado de potencialidades e qualidades.
Tendo em vista que Sartre aponta o saber como característica estrutural do modo de
aparição da coisa, podemos dizer que ele não comete o erro nestas análises de abstrair
completamente a facticidade do para-si, apesar de deixar de lado um de seus aspectos mais
fundamentais: a posição corporal do para-si no mundo. No entanto este aspecto é
extremamente relevante, pois ele situa a aparição que deve se dar sob o modo da orientação, a
partir de um ponto de vista que é “assimilable à la facticité, est qualification ek-statique de la
négation comme rapport originel à l’en-soi” 68. Na verdade, Sartre apenas comenta, e não
desenvolve neste capítulo, que o para-si é sempre um ponto de vista, pelo fato de ser corpo-
no-mundo. Posteriormente, no capítulo em que Sartre descreve o corpo-para-si - versão
sartriana do corpo próprio (Leib) -, ele deixa bem claro que o corpo, dimensão fática do para-
si, é estruturante da percepção: “La perception, en effet, ne peut se faire qu’à la place même
où l’objet est perçu et sans distance. Mais en même temps elle déploie les distances et ce par
rapport à quoi l’objet perçu indique sa distance comme une propriété absolue de son être,
c’est le corps”69 . Veremos ainda que Sartre estabelece uma associação entre corpo e passado
que não pode ser negligenciada, já que ambos são dimensões da facticidade, o que faz do
para-si um “ser-no-meio-do-mundo”: “Dans chaque projet du pour-soi, dans chaque
perception, le corps est là, il est le Passé immédiat en tant qu’il affleure encore au Présent qui
le fuit70”. Se o corpo é o passado imediato que “emerge” no para-si - o que poderíamos
caracterizar como assombramento -, corpo e passado adquirem em certos contextos do texto
sartriano uma equivalência. Sendo o corpo uma dimensão fática do para-si, isto é, um em-si
nadificado e não um em-si no para-si, o corpo é todo para-si. E o ser-no-mundo corporal não é
simplesmente o fato de ter um corpo (no sentido de ter estas mãos, estes órgãos, etc.), mas é o
desvelamento que se dá por um ponto de vista, em relação ao qual o mundo se abre a partir de
uma orientação. Se o corpo é para-si, ele é presença ao mundo e o mundo assombrado é o
campo fenomenal que se desvela orientado. É neste sentido que Sartre diz que

mon corps est partout sur le monde: il est aussi bien là-bas, dans le fait que le
bec de gaz masque l’arbuste qui croît sur le trottoir, que dans le fait que la

67 EN, p. 494.
68 EN, p. 238.
69 EN, p. 365.
70 EN, p. 366. (grifo nosso)
!316

mansarde, là-haut, est au-dessus des fenêtres du sixième ou dans celui que
l’auto qui passe se meut de droite à gauche derrière le camion, ou que la
femme qui traverse la rue paraît plus petite que l’homme qui est assis à la
terrasse du café. Mon corps est à la fois coextensif au monde, épandu tout à
travers les choses et, à la fois, ramassé en ce seul point qu’elles indiquent
toutes et que je suis sans pouvoir le connaître71.

Assombrar o mundo significa que a relação de conhecimento originária não consiste


numa relação de conhecimento no âmbito epistemológico do termo. O há implica uma relação
imediata entre sujeito e mundo, no sentido de que não se trata de um para-si em face do
mundo, mas o próprio modo do para-si já é no-mundo, como fica evidente no trecho acima,
sob o modo de não ser isto ou aquilo sob fundo de mundo em geral. O engajamento do para-si
no mundo é imediato pois existir é simplesmente o ter de ser o ser, haver o ser, em suma:
“lorsque nous disons que le pour-soi est-dans-le-monde, que la conscience est conscience du
monde, il faut se garder de comprendre que le monde existe en face de la conscience comme
une multiplicité indéfinie de relations réciproques qu’elle survolerait sans perspective et
contemplerait sans point de vue”72. O desvelamento não é uma teorização do ser, é a própria
abertura do mundo e dos entes em geral e é por isso que a presença não projeta estruturas
subjetivas no ser, mas assombra o ser de modo que ele próprio se mostra “tal como ele é”.
Como Merleau-Ponty criticava esta expressão no texto de Sartre, vale ressaltar que o “tal
como ele é” não significa aqui um realismo ingênuo; “tal como ele é” é a própria aparição da
coisa “em carne e osso” no campo do há, que não pode ser reduzida a uma projeção do
sujeito. Quando Sartre afirma que o movimento conhecedor-desvelador-totalizador-abstrator-
orientador do para-si no mundo não “acrescenta nada ao ser” (n’ajoute rien), ele mostra a
ambiguidade do mundo: todas estas características do para-si são modos de abertura do “há”,
mas o próprio mundo possui suas estruturas objetivas de desvelamento. Em outros termos, o
para-si não cria o ser, como um Deus criando o mundo, mas a relação do para-si com o mundo
faz com que toda coisa apareça relativamente ao para-si e com que todo para-si só exista a
partir da negação do ser da coisa.

b) o há como campo fenomenal prático.

71 EN, p. 357-358.
72 EN, p. 345.
!317

No intuito de compreendermos as ausências que assombram a presença, devemos


passar às estruturas de desvelamento do mundo, tendo em vista que, pelo projeto
temporalizador do para-si, o mundo aparece como totalidade, realidade orientada, abstrato-
concreto. Desde os Carnets, Sartre desenvolve a ideia de que “toute chose est une présence
immédiate que nous ne pouvons atteindre que dans le futur. Tel est le sens de la transcendance
ou dépassement de l’investissant présent vers la: « chose-à-venir » du monde”73. O aparecer
da coisa é estruturado pela temporalidade do para-si, a qual adquire outro modo de ser no
campo do há. O isto é a forma que se destaca de um fundo e, para que tal forma se dê como
“presença”, deve-se levar em conta a projeção das ek-stases passado e futuro do para-si: “il y
a un ceci parce que je ne suis pas encore mes négations futures et que je ne suis plus mes
négations passées”74. O aparecer como forma é uma das características da aparição das coisas
no mundo. Sartre define ainda, em partes dispersas do texto, outras estruturas fundamentais da
aparição, que organizamos da seguinte maneira: além da forma sob um fundo, as
potencialidades, a qualidade e o coeficiente de adversidade, a utensilidade - e suas
características de “para que” e “para-quem” - e as técnicas.
Em primeiro lugar, as potencialidades dizem respeito justamente à dimensão do para-
além-do-ser que é diretamente relacionada com a ek-stase futuro do para-si. Sartre descreve
como potencialidade sobretudo a característica da permanência, mas podemos encontrar ainda
em seu texto aquilo que poderíamos identificar como sendo as “tarefas a cumprir”, a
exigência ou o apelo. As potencialidades são desveladas pelo processo temporal do projeto
para-si na medida em que é ele que desvela o isto numa relação com o futuro, pois, como o
em-si stricto sensu é atemporal, sua dimensão de potencialmente futuro só aparece através da
temporalização do para-si. A característica de permanência da potencialidade é um bom
exemplo para compreendermos o “compromis entre l’identité intemporelle et l’unité ek-
statique de temporalisation”75. A percepção de uma mesa como “presente”, por exemplo, se
estrutura através da percepção da mesa como algo que permanecerá sendo mesa no futuro a
não ser que um acontecimento de fora se interponha e a destrua. A mesa aparece como um
objeto que continuará aparecendo no futuro ao para-si futuro, e este “futuro” da mesa,
juntamente com o “passado” da mesa - que estrutura sua aparição presente - é a permanência.

73 CDG, p. 520.
74 EN, p. 219.
75 EN, p. 241.
!318

Esta potencialidade, por sua vez, apesar de aparecer como sendo inerente ao ser da mesa,
pertence ao desvelamento temporal do isto. O para-si, como vimos na descrição da ek-stase
futuro, existe diante de suas possibilidades, mas o em-si, sendo atemporal, não pode abrir
possibilidades, e nem mesmo potencialidades, afinal o dualismo ato e potência deve ser
superado, conforme a afirmação de Sartre na “Introdução”. As potencialidades são as
ausências que estruturam a presença do isto no desvelamento temporal, o que significa que o
para-si não desvela o em-si como se fosse ele também processo temporalizador ek-stático,
mas o desvela como tendo uma temporalidade própria, projetada sobre o em-si e hipostasiada
em potencialidades, o que Sartre exprime pela ideia de exterioridade: “Mon surgissement
dans le monde fait surgir corrélativement les potentialités. Mais ces potentialités se figent
dans leur surgissement même, elles sont rongées par l’extériorité” 76. O isto aparece assim
cercado de potencialidades, pelas quais ele adquire um aspecto de permanência em
exterioridade, mas ele indica ao mesmo tempo tarefas a cumprir e exigências a realizar. Estas
últimas potencialidades estão relacionadas à ek-stase futuro do para-si em seu caráter de
aberto às possibilidades, visto que seu modo de ser é caracterizado pela falta. Em outros
termos, isto significa que a ausência que aparece como “algo a ser realizado por mim”
encontra-se em relação direta com minha falta de ser na medida em que ela é o “corrélatif de
l’être-possible dont je manque” 77. O ser da ausência como correlativo no mundo da relação
não tética do para-si que é falta com os seus possíveis que lhe faltam, aparece como
potencialidades objetivas do próprio isto. Assim, o isto exige a realização de suas
potencialidades como tarefas a cumprir, algo que Sartre explicita bem no Esquisse, ao dar o
exemplo de um processo de escrita:

les mots que j’écris sont des exigences. C’est la façon même dont je les saisis
à travers mon activité créatrice qui les constitue comme tels : ils apparaissent
comme des potentialités devant être réalisées. Non pas devant être réalisées
par moi. Le moi n’apparaît point ici. Je sens simplement la traction qu’ils
exercent. Je sens objectivement leur exigence. Je les vois se réaliser et en
même temps réclamer de se réaliser davantage. Et je puis bien penser les
mots que trace mon voisin comme exigeants de lui leur réalisation : je ne sens
pas cette exigence. Au contraire, l’exigence des mots que je trace est
directement présente, pesante et sentie. Ils tirent et conduisent ma main. Mais
non pas à la manière de petits démons vivants et actifs qui la pousseraient et
tireraient en effet: ils ont une exigence passive78.

76 EN, p. 232.
77 EN, p. 240.
78 ETE, p. 41. (grifo nosso)
!319

Este trecho demonstra que há primazia da irreflexão e do caráter prático da criação, ao


evidenciar que o processo de escrita, como ação de um para-si no mundo, se orienta a partir
de exigências passivas 79 das potencialidades dos próprios isto que conduzem a mão. Em
L’Être et le Néant encontramos do mesmo modo a descrição das exigências quando Sartre
descreve o trabalho de um sapateiro: “il saisit la situation comme exigeant telle ou telle
action, ce bout de cuir, là, comme réclamant un clou, etc.” 80. Apesar das potencialidades só
aparecerem a partir da projeção temporal do para-si no mundo, o desvelamento mesmo do há
possui regras próprias que não podem ser atribuídas à vontade do para-si. O desvelamento se
estrutura de modo que as potencialidades constituem as próprias exigências do isto presente,
fazendo com que o mundo se apresente como “tarefas a cumprir”. O movimento de irreflexão
se orienta assim pela “força” das exigências, como ressalta De Coorebyter: “conformément à
ce qu’annonçaient La Transcendance de l’Ego et l’article sur l’intentionnalité, lorsqu’un
écrivain rédige, il est totalement oublieux de soi, aux antipodes du modèle réflexif-décisionnel
qui domine la conception traditionnelle de l’action, du travail”81. De fato, como vimos em
relação ao “mundo dos profetas e dos artistas”, em La Transcendance de l’Ego, Sartre realiza
uma crítica da concepção subjetivista dos “moralistas do amor próprio”, ao colocar que a
qualidade de “deve-ser-socorrido” de Pierre, age “comme une force” para a consciência82. Em
L’Être et le Néant encontramos do mesmo modo tais exigências, quando Sartre descreve que
“prendre un porte-plume, c’est déjà dépasser mon être-là vers la possibilité d’écrire, mais
c’est aussi dépasser le porte-plume comme simple existant vers sa potentialité et celle-ci,
derechef, vers certains existants futurs qui sont les « mots-devant-être-tracés » et finalement le
« livre-devant-être-écrit ». C’est pourquoi l’être des existants est ordinairement voilé par leur
fonction”83. A percepção é, portanto, originariamente ação que implica um engajamento

79 Embora para De Coorebyter não se trata realmente de falar aqui em passividade, mas sim em receptividade e
sensibilidade da consciência. DE COOREBYTER, V. Le corps et l’aporie du cynisme dans l’Esquisse d’une
théorie des émotions », Bulletin d’analyse phénoménologique, VIII, n° 1, 2012, p. 275.
80 EN, p. 566. Em Saint Genet, por exemplo, Sartre fala que um objeto manufaturado no interior de uma

sociedade de consumo “se révèle à la fois comme une chose dans le monde et comme une exigence; il réclame
dans son être d’être consommé”. SG, p. 222.
81 DE COOREBYTER, V., op.cit., p. 276. (grifo nosso). Para Coorebyter, como o Esquisse fala na realidade da

emoção, Sartre deveria demonstrar que é justamente este ser-no-mundo prático que se “quebra” no momento em
que a emoção aparece, fenômeno que consiste num “décentrement de la conscience pratique”. Ibid., p. 277.
82 TE, p.105. Exemplo apresentado acima, no capítulo II da “Segunda parte”.
83 EN, p. 434. Vale observar que já em La Nausée o “mundo nu” aparece quando se esvai o véu que o recobre

com sua função. É ainda esta a ideia que entrevemos na seguinte afirmação de Sartre em Baudelaire: “Une
réalité naturelle, lorsqu’elle est travaillée et passée au rang d’ustensile, perd son injustifiabilité. L’ustensile a une
existence de droit pour l’homme qui le considère”. B, p. 99.
!320

prático no mundo e não uma relação de conhecimento de um sujeito que tematiza um objeto.
A percepção, diz Sartre, “ne peut se dévoiler que dans et par des projets d’action […] ce que
je saisis objectivement dans l’action, c’est un monde d’instruments qui s’accrochent les uns
aux autres et chacun d’eux, en tant qu’il est saisie dans l’acte même par quoi je m’y adapte et
le dépasse, renvoie à un autre instrument qui doit me permettre de l’utiliser”84 . O engajamento
pressuposto na ação significa que o para-si, tendo de ser a cada momento, realiza o mundo
que lhe aparece a partir de “tarefas a cumprir” e solicitado pelas exigências. Sendo assim,
podemos observar novamente que são as ausências - neste caso as exigências e “as tarefas a
cumprir” - que estruturam a presença:

l’appréhension perceptive d’un objet quelconque [se fait] sur fond de monde.
Nous entendions par là que ce que le psychologues ont coutume d’appeler
« perception » ne pouvait pas se limiter aux objets proprement « vus » ou
« entendus », etc., à un certain instant, mais que les objets considérés
renvoient par des implications et de significations diverses à la totalité de
l’existent en soi à partir de laquelle ils sont appréhendés […] je ne puis
percevoir une chose-ustensile quelconque, si ce n’est à partir de la totalité
absolue de tous les existants car mon être-premier est être-dans-le-monde85 .

Há, portanto, um “mundo de instrumentos” (ou utensílios), que se manifesta pela ação.
Este trecho nos indica ainda mais uma das características próprias do aparecer do isto no
interior do circuito de ipseidade: a utensilidade. Como vimos anteriormente com relação as
análises de Heidegger em Être et Temps, principalmente no §15, o modo cotidiano do Dasein
é, na ocupação, lida “prática” com os entes manuais (être-à-porté-de-la-main/Zuhandenheit),
na qual o Dasein se encontra de início e na maior parte das vezes. Ressaltamos anteriormente
ainda que o ponto de extrema importância desta elaboração conceitual heideggeriana é
justamente o caráter pragmático do utensílio como relação primeira e cotidiana, enquanto que
a relação teórica com os entes acarreta na interrupção do manual e aparição do ente como ser
simplesmente dado (être-sous-la-main/Vorhandenheit). Nas palavras de Sartre: “dans le
monde heideggérien, l’existant est d’abord « Zeug », ustensile. Pour voir en lui « das Ding »,
la chose temporo-spatiale, il convient de pratiquer sur soi-même une neutralisation. […].
Alors apparaît la chose, qui n’est, en somme, qu’un aspect secondaire de l’ustensile - aspect
qui se fonde en dernier recours sur l’ustensibilité, - et la Nature, comme collection de choses
inertes”86. Em Sartre, mutatis mutandis, o para-si existe como projeto engajado prático que

84 EN, p. 362.
85 EN, p. 505.
86 S.I, p. 237.
!321

faz com que o mundo se desvele como um “mundo de instrumentos”. Dito isto, podemos
afirmar que a relação imediata do para-si com as coisas no mundo é também pensada sob o
primado da práxis, e a coisa, antes de ser objeto para um sujeito, é um utensílio no interior das
“tarefas a cumprir”. Neste sentido, a filosofia da consciência em Sartre não significa a
primazia da percepção na perspectiva de uma relação temática de um objeto diante de um
sujeito, nem mesmo no sentido de uma faculdade psicológica; a percepção é o engajamento
que faz com que um “campo perceptivo”87 se revele concretamente, como campo de ação do
para-si estruturado pelas ausências. Em suma, na apreensão antepredicativa do campo prático,
estruturada pelas ausências, o isto se revela como coisa-utensílio indicando “tarefas a
cumprir”. Mas esta aparição do isto não se dá a uma consciência desencarnada, ela é
polarisada em direção a um ponto de vista que faz com que o desvelamento do mundo seja
desde sempre desvelamento para um para-si situado, isto é, “un complexe d’ustensilité ne peut
se dévoiler que par la détermination d’un sens cardinal de ce complexe et cette détermination
est elle-même pratique et active - planter un clou, semer des graines”88. Por esta razão,
compreender o desvelamento do mundo como campo prático, significa compreender o papel
do corpo, enquanto ponto de vista fático a partir do qual a totalidade mundana se manifesta
como orientação. O corpo não é um ponto de vista no sentido de uma posição teórica, mas de
algo como “un médium en transe”, como um meio pelo qual se realiza certa potencialidade
das coisas89. Há uma relação intrínseca entre o corpo e utensilidade como modo de
desvelamento, uma vez que

mon corps s’étend toujours à travers l’outil qu’il utilise : il est au bout du
bâton sur lequel je m’appuie, contre la terre ; au bout des lunettes
astronomiques qui me montrent les astres ; sur la chaise, dans la maison tout
entière, car il est mon adaptation à ces outils […] Nous avons renoncé à nous
doter d’abord d’un corps pour étudier ensuite la façon dont nous saisissons
ou modifions le monde à travers lui. Mais, au contraire, nous avons donné
pour fondement au dévoilement du corps comme tel notre relation originelle
au monde, c’est-à-dire notre surgissement même au milieu de l’être. Loin que
le corps soit pour nous premier et qu’il nous dévoile les choses, ce sont le
choses-ustensiles qui, dans leur apparition originelle, nous indiquent notre
corps. Le corps n’est pas un écran entre les choses et nous : il manifeste
seulement l’individualité et la contingence de notre rapport originel aux
choses-ustensiles90.

87 Cf. EN, p. 356.


88 EN, p. 363.
89 EN, p. 198.
90 EN, p. 365. (grifo nosso)
!322

Na medida em que o para-si é corpo, a orientação e a organização da aparição em


complexos de utensílios são inerentes a própria estrutura do mundo. A orientação é “une
structure constitutive de la chose”91; um isto sempre aparece numa relação com todos os
outros sob o fundo de mundo, o qual se apresenta como fundo indiferenciado. Em outras
palavras, o acontecimento da aparição se dá de acordo com o projeto existencial do para-si: o
campo fenomenal se abre organizado e orientado em rede de utensílios; estes se formam por
reenvios entre si, formando ao mesmo tempo o fundo a partir do qual surge o isto, na medida
em que o para-si os realiza. Além disso, os utensílios aparecem de acordo com o uso, o que
significa que cada função só adquire sentido em uma rede correlativa às possibilidades que
estão em jogo para o para-si. No entanto, o isto não é simplesmente uma imagem projetada,
em plena harmonia com as intenções do para-si, pois o desvelamento tem suas regras próprias
e a coisa-utensílio surge com suas exigências. O para-si encontra-se assim na situação
paradoxal de encontrar suas possibilidades fora de si, já que as possibilidades “tirent leur
objectivité transcendante de la matière à travers quoi elles sont saisies, qui est précisément
l’objet présent à modifier. Ainsi sont-elles des existences extérieures d’un type très particulier.
Nommons-les des exigences. Par là il faut entendre des objets qui exigent d’être réalisés” 92.
Se o para-si conhecedor encontra-se todo inteiro “fora”, nas coisas, pois não há nada (rien)
entre ele e as coisas, é no campo transcendente que ele apreende as suas possibilidades. E se o
desejo do para-si é justamente o de integração a si - ser um “para-si-em-si” - é, do mesmo
modo, no mundo, que este desejo de integração busca se realizar. Sendo assim, as coisas
aparecem assombradas pelo desejo de completude do para-si, como um “appel perpétuel ver
l’intégration” 93. Em outras palavras, pela aparição de uma forma destacada do fundo, o para-si
sofre o apelo das coisas como via possível de sua integração total, que corresponde ao
assombramento imediato do valor, - que, como vimos, é a totalidade da completude que
assombra o para-si faltante -, no mundo, onde as próprias coisas assombram o para-si em seu
desejo de completar a totalização. O valor que assombra o para-si é portanto captado no
próprio mundo, ou seja, “cette indication perpétuelle d’une fusion irréalisable doit
s’apparaître non pas comme structure de la conscience irréfléchie, mais comme indication

91 EN, p. 356.
92 CDG, p. 318. (grifo nosso)
93 EN, p. 505.
!323

transcendante d’une structure idéale de l’objet”94 . Resumidamente, o desvelamento do isto


pelo para-si ek-stático se dá de modo a fazer aparecer a coisa-utensílio como dotada de
potencialidades e exigências - objetificação das possibilidades -, e como apelo (appel) de
integração, objetificação do valor.
Outro ponto importante a ser elucidado é o fato de que embora o desvelamento da
coisa-utensílio seja correlativo à ação do para-si, isto não significa que esta mesma aparição
não comporte relação aos outros, a um “mundo comum” compartilhado, o que Sartre indica
ao falar do “dado” (le donné):

le pour-soi surgit dans un monde qui est monde pour d’autres pour-soi. Tel
est le donné. Et, par là même, […] le sens du monde lui est aliéné. Cela
signifie justement qu’il se trouve en présence de sens qui ne viennent pas au
monde par lui. Il surgit dans un monde qui se donne à lui comme déjà
regardé, sillonné, exploré, labouré dans tous le sens et dont la contexture
même est déjà définie par ces investigations95.

Surgir neste “mundo comum” dado significa que a própria aparição do utensílio
contém “propriedades laterais e secundárias” que dizem respeito a orientação das coisas em
direção a outros centros de referência, que é o corpo de outrem. Como o para-si transcende
este centro de referência que é o outro em direção a seus fins - metamorfoseando-o em
transcendência-transcendida - segue-se que ele apreende esta transcendência a partir de seu
mundo, onde a disposição das coisas-utensílios se organiza indicando este centro de referência
secundário, isto é, o outro se torna um “indicateur de fins”96. São as coisas, portanto, que
indicam lateralmente o outro como centro de referência objetificado (corpo-objetificado) 97.
Pode-se acrescentar ainda que é contingente que estas propriedades laterais sejam relativas a
tal outro ou se organizem de tal maneira, mas é necessário que o para-si surja num mundo
“qui est monde pour d’autres pour-soi”, e que o mundo “se donne à lui comme déjà
regardé” (conforme citação acima). Por esta razão, a coisa-utensílio comporta sempre um
“para quem” (pour qui/Worumwillen98 ) que “apparaît constamment derrière les
instruments”99. Um instrumento x serve para algo, a ser feito por alguém, e esta função - e a
indicação a alguém - compõem a própria aparição das coisas-utensílios na medida em que elas

94 EN, p. 230. Para Sartre, é o desejo de integração a partir das coisas que motiva a filosofia idealista, “filosofia
alimentar”, a associar o conhecimento à apropriação e assimilação. Cf. EN, p. 223; p. 624-5.
95 EN, p. 565.
96 Ibid.
97 Cf. EN, p. 379-380.
98 O termo é de Heidegger, traduzido por Sartre como “para quem”.
99 EN, p. 237.
!324

se organizam infinitamente em complexos correlativos à imersão prática de um para-si no


mundo.
Além das propriedades laterais e secundárias e do “para quem”, Sartre mostra que a
ação no mundo do para-si se dá por meio de técnicas coletivas que indicam a situação de co-
presença a um mundo comum. É através das técnicas que o para-si se encontra inserido em
coletividades, as quais caracterizam sua inserção social100. Sartre esclarece o papel das
técnicas no desvelamento do mundo da seguinte maneira:

Or, il est évident - bien que mon appartenance à telle classe, à telle nation ne
découle pas de ma facticité comme structure ontologique de mon pour-soi -
que mon existence de fait, c’est-à-dire ma naissance et ma place, entraîne
mon appréhension du monde et de moi-même à travers certaines techniques.
Or, ces techniques que je n’ai pas choisies, elles confèrent au monde ses
significations. Ce n’est plus moi, semble-t-il, qui décide à partir de mes fins
si le monde m’apparaît avec les oppositions simples et tranchées de l’univers
« prolétarien », ou avec les nuances innombrables et retorses du monde
« bourgeois ». Je ne suis pas seulement jeté en face de l'existant brut, je suis
jeté dans un monde ouvrier, français, lorrain ou méridional qui m’offre ses
significations sans que j’aie rien fait pour les déceler101 .

A fim de evidenciar o que entende por técnicas, Sartre mostra que estas consistem em
desde um saber elementar e geral, como saber falar, andar, etc. - que denota o pertencimento a
algo como uma “espécie humana”, à coletividade nacional, ao grupo familiar, entre outros -
até um saber típico de uma cultura local: falar um dialeto, por exemplo. Na verdade, é
somente pelo fazer particular - maneira singular de uma pessoa falar, andar, etc., que podemos
pensar neste pertencimento à generalidade. Isto significa que não devemos pressupor uma
existência prévia de técnicas gerais que seriam em seguida aplicadas ao particular, mas é o
fazer singular que desvela o mundo através de técnicas coletivas: “c’est le coup de hache qui
révèle la hache, c’est le marteler qui révèle le marteau”102. Sendo as técnicas sempre situadas,
elas localizam socialmente e historicamente a aparição do mundo para o para-si, indicando
seu pertencimento a uma época onde tais técnicas e não outras são possíveis de serem
aplicadas. As técnicas são, portanto, produtos intersubjetivos na medida em que se trata de
uma objetivação da conduta de um para-si por outro para-si com relação a um co-
pertencimento a uma época histórica; elas são ainda o meio pelo qual o mundo se revela com

100 A inserção em uma coletividade diz respeito à “alienação coletiva”, que é a experiência de pertencimento de
um para-si a um “nós-objeto” (nous-objet). Cf. EN, p. 461.
101 EN, p. 558-559. (grifo nosso)
102 EN, p. 563.
!325

significações práticas e objetivas que não são simples projeções do para-si, dado que elas se
formam a partir de uma conduta objetificada de outrem - que se revela como técnica a um
para-si - de modo que este pode interiorizá-las pela sua própria práxis. No entanto, a partir
deste movimento de interiorização, a técnica perde seu caráter de técnica e se integra ao
movimento projetivo livre do para-si de maneira que Sartre retoma novamente sua oposição
entre subjetividade e objetividade, ao colocar a técnica na esfera da objetivação da conduta de
outrem e a reapropriação desta objetividade pela subjetividade de um para-si como dissolução
de seu caráter objetivo pela assunção do projeto: “du fait qu’elle est intériorisée, la technique,
qui était pure conduite signifiante et figée d’un quelconque autre-objet, perd son caractère de
technique, elle s’intègre purement et simplement au libre dépassement du donné vers les fins;
elle est reprise et soutenue par la liberté qui la fonde”103.
Devido a esta última divisão sartriana entre subjetividade e objetividade em relação à
técnica, devemos, por motivos já explicitados, retomar esta análise particular pela perspectiva
da hantologie. Pois somente ultrapassando o dualismo entre ser e nada, podemos compreender
em que medida uma técnica, que se transforma novamente em práxis do para-si, pode manter
de algum modo seu caráter geral. Em outros termos, se cada para-si singular fala uma língua
particular, com seu sotaque, gírias e maneirismos próprios, seria absurdo dizer que a
linguagem perde sua relação geral ao ser assumida por um projeto. Se há infinitos modos de
falar português, por exemplo, há algo em comum que nos permite dizer que tal grupo de
pessoas fala português. Neste sentido, é somente pela compreensão de como essa assunção
das técnicas pelo para-si não faz com que ele se livre se sua situação de fato, ou seja, é apenas
pela apreensão de seu pertencimento a uma época, que podemos compreender finalmente a
relação do geral com o particular no próprio para-si, de tudo que ele é e não é, não é e é,
enfim, de como ser e nada se imbricam pela relação de assombramento. É então
significativamente em termos de assombramento que Sartre pensa a “existence-dans-le-
monde-en-présence-des-autres”104:

Vivre dans un monde hanté par mon prochain, ce n’est pas seulement pouvoir
rencontrer l’autre à tous les détours du chemin, c’est aussi se trouver engagé
dans un monde dont les complexes-ustensiles peuvent avoir une signification
que mon libre projet ne leur a pas d’abord donnée. Et c’est aussi, au milieu
de ce monde pourvu déjà de sens, avoir affaire à une signification qui est

103 EN, p. 568.


104 EN, p. 557.
!326

mienne et que je ne me suis pas donnée non plus, que je me découvre comme
« possédant déjà »105 .

Sendo assim, podemos concluir que, além do próprio mundo se manifestar através de
suas estruturas de desvelamento, sua significação não é simplesmente um produto do “poder
de ontogênese” de uma consciência. Pelo contrário, a significação do mundo é dada pelo fato
mesmo da co-presença (que Sartre chama de simultaneidade106) do para-si a um mundo
comum. É o que fica claro, por exemplo, na experiência do nós-sujeito (nous-sujet), que
poderíamos chamar de o “impessoal” sartriano. Trata-se da experiência de impessoalidade que
fazemos ao utilizar um objeto manufaturado, por exemplo. Este foi feito para “todos” e ele
mesmo indica seu uso, o gesto a fazer, etc. Neste caso, um fim do para-si é do mesmo modo
um fim do mundo, pois se quero me apoiar no objeto, me sentar, ou empurrá-lo, por exemplo,
este fim já foi previsto na própria fabricação do objeto, de modo que ele “appartient à présent
à l’objet comme sa potentialité la plus propre. Ainsi, est-il vrai que l’objet manufacturé
m’annonce comme « on » à moi-même, c’est-à-dire me renvoie l’image de ma transcendance
comme celle d’une transcendance quelconque”107. É neste sentido que podemos compreender
a afirmação de Sartre nos Cahiers pour une morale de que “l’artisan, l’ingénieur, le technicien
me regardent à travers l’outil qu’ils ont fait pour moi”108. Trata-se assim da revelação de um
“ser-indiferenciado” que pode ser alargada na experiência do nós-sujeito. Esta última, é um
tipo de experiência de grupo onde um projeto singular aparece de forma indiferenciada em
meio a outros projetos, que buscam os mesmos fins. Porém, Sartre repete algumas vezes, o
nós-sujeito é de ordem psicológica e não une efetivamente os sujeitos numa unidade
ontológica do tipo Mit-sein. Dado que esta experiência subjetiva e não originária - de ser
“religado” a uma coletividade por um nós comum, um ritmo comum (pensemos num grupo de
pessoas marchando ritmicamente, seguindo as placas indicativas das estações de metrô, que já
determinam de alguma forma seus caminhos) -, é possibilitada constantemente pelas próprias
coisas:

A vrai dire, il y a, dans le monde, une foule de formations qui m’indiquent


comme quelconque ; d’abord tous les ustensiles, depuis les outils proprement
dits jusqu’aux immeubles, avec les ascenseurs, leurs conduites d’eau ou de

105 EN, p. 554. (grifo nosso)


106 Cf. EN, p. 565.
107 EN, p. 464.
108 CPM, p. 184.
!327

gaz, leur électricité, en passant par les moyens de transport, les magasins, etc.
Chaque devanture, chaque vitrine me renvoie mon image comme
transcendance indifférenciée. En outre, les rapports professionnels et
techniques des autres avec moi m’annoncent encore comme quelconque:
pour le garçon de café, je suis le consommateur ; pour le poinçonneur de
tickets, je suis l’usager du métro109 .

Após este breve percurso de análise das estruturas de desvelamento do mundo,


podemos dizer com mais clareza que se nos mantivermos na “pura presença” do
conhecimento não captaremos a abrangência das estruturas constitutivas da aparição dos
fenômenos. Pois a ek-stase futuro do para-si assombra o mundo de modo correlativo às
potencialidades que compõem a dimensão “para-além do ser” do mundo. Do mesmo modo, as
diferentes dimensões da facticidade do para-si são fundamentais para a apreensão do mundo
como campo prático de um para-si engajado: o corpo faz com que o mundo apareça orientado
em complexos de utensílios de acordo com o uso prático; o pertencimento do para-si a uma
coletividade indica as técnicas que estão em jogo neste uso; os instrumentos reenviam aos
outros como centro de referência de uso e ao próprio para-si como “alguém qualquer”, o que é
constatado pela experiência do nós-sujeito. Por fim, o passado participa do desvelamento dos
isto sob a forma de um saber pré-temático que qualifica a negação de conhecimento. Esta
última característica nos remete então a qualidade como mais uma estrutura de desvelamento
do mundo e também de que modo ela comporta um coeficiente de adversidade.
O isto, em seu desvelamento, é ao mesmo tempo impossível de ser apropriado pelo
para-si e polo de negação a partir do qual este último surge. A qualidade é justamente o modo
de ser do em-si enquanto este é revelado como matéria e forma concreta e contingente, a
partir da qual o para-si é negação: “le dévoilement d’une qualité de la chose apparaît toujours
comme une gratuité de fait saisie à travers une liberté”110, diz Sartre. Isto significa que a
negação do para-si de um em-si particular é sempre qualificada, singular e concreta, mas esta
qualidade se apresenta como estrutura da própria coisa e não a partir de sínteses psicológicas
que permitiriam à consciência apreender uma qualidade, ou então aos moldes de uma
impressão subjetiva, pois, segundo Sartre, “l’odeur que je respire soudain les yeux clos, avant
même que je l’aie rapportée à un objet odorant, est déjà un être-odeur et non une impression
subjective”111, por exemplo. Sartre chega mesmo a dizer que nós “comemos a cor”, que o

109 EN, p. 466.


110 EN, p. 224.
111 EN, p. 224.
!328

amarelo do limão é sua acidez - “[il] n’est pas un mode subjectif d’appréhension du citron : il
est le citron”112. Não havendo necessidade de uma consciência que uniria sinteticamente cor e
forma, é a coisa que se apresenta qualificada por inteiro. Esta posição indica uma proximidade
com a de Merleau-Ponty em sua visão da coisa que se apresenta em “carne e osso”, quando
ele diz:

Cézanne disait qu’un tableau contient en lui-même jusqu’à l’odeur du


paysage. Il voulait dire que l’arrangement de la couleur sur la chose (et dans
l’œuvre d’art si elle ressaisit totalement la chose) signifie par lui-même toutes
les réponses qu’elle donnerait à l’interrogation des autres sens, qu’une chose
n’aurait pas cette couleur si elle n’avait aussi cette forme, ces propriétés
tactiles, cette sonorité, cette odeur, et que la chose est la plénitude absolue
que projette devant elle-même mon existence indivise113 .

Para o autor da Phénoménologie de la perception, a coisa se apresenta na percepção de


modo que seu sentido religa as qualidades sensíveis, e estas traduzem uma única maneira de
ser. Não pretendemos fazer uma equivalência entre a noção de percepção em Sartre e em
Merleau-Ponty, mas apenas mostrar que, também para Sartre, a apreensão da coisa não se dá
por uma operação intelectual, dado que é o próprio desvelamento que revela a coisa
qualificada como unidade de sentido e é a própria coisa que se apresenta com suas qualidades.
Isto não significa, porém, que a qualidade seria “dotada de um suporte misterioso análogo à
substância”114, ela é simplesmente o modo de ser singular da maneira pela qual um isto
particular se revela por um perfil a um para-si engajado. Neste sentido, a qualidade manifesta
mais a singularidade do que a individualidade da coisa, na medida em que ela indica a
“maneira insubstituível” pela qual esta coisa é desvelada em direção a um para-si particular.
Nas palavras de Sartre: “A chaque acte négateur par quoi la liberté du pour-soi constitue
spontanément son être correspond un dévoilement total de l’être « par un profil ». Ce profil
n’est rien qu’un rapport de la chose au pour-soi réalisé par le pour-soi lui-même” 115. Desde
que o para-si realiza o há, o isto particular do em-si nadificado se apresenta por um perfil, e o
para-si o apreende por um ponto de vista, ao passo que esta apreensão é reveladora da
qualidade do isto para o para-si. A qualidade não é, portanto, uma operação subjetiva,

112 EN, p. 649.


113 Php, p. 374.
114 EN, p. 224.
115 Ibid.
!329

tampouco um suporte da coisa, mais a coisa aparece qualificada: “la qualité, c’est l’être tout
entier se dévoilant dans les limites du « il y a »”116. Sendo mais uma característica objetiva da
coisa desvelada no interior do circuito da ipseidade, a qualidade assombra o para-si — “elle
« est là », elle nous hante”117.
Há ainda um aspecto próprio do aparecer da coisa que Sartre elabora a partir da crítica
que Bachelard faz às fenomenologias de Heidegger e Husserl. Segundo a leitura sartriana
inspirada em Bachelard, ambos os fenomenólogos não refletiram sobre o que seria o
coeficiente de adversidade das coisas e a significação própria de sua materialidade. Para
Sartre, este conceito é útil para se pensar um tipo de resistência das coisas-utensílios em meio
ao mundo de instrumentos, como aquela que faz com que um utensílio seja mais ou menos
resistente no objetivo de cumprir sua função no campo prático. Em L’Imaginaire, Sartre fazia
alusão à “carne dos objetos” como sua “contextura íntima”118, o que a partir de sua
interpretação do conceito de Bachelard passa a ser considerado como coeficiente de
adversidade, “un residuum innommable et impensable qui appartient à l’en-soi considéré et
qui fait que, dans un monde éclairé par notre liberté, tel rocher será plus propice à l’escalade
et tel autre non”119. O coeficiente de adversidade seria assim um “quid insaisissable”120 que só
se revela através da rede de utensílios e não como uma propriedade material. Como vimos, o
projeto do para-si faz como que “haja” ser no sentido de abrir o campo fenomenal como
mundo, de maneira que o mundo indica a própria “imagem” do projeto que, por sua vez, se
conhece “fora” de si. Em seguida observamos mais de uma vez que a situação paradoxal do
para-si é justamente a de ser aquele pelo qual o mundo se abre como mundo, mas somente na
medida em que o mundo possui suas próprias regras de desvelamento. Sendo assim, o mundo
revela o para-si a si mesmo de uma maneira que é própria ao seu desvelamento e não como
obedecendo ao seu desejo de completude de si mesmo. Disto decorre que o mundo não é uma
projeção do para-si no sentido subjetivo, isto é, como se os isto aparecessem em sua rede de
referencialidade de acordo com suas condições psíquicas ou com seus sentimentos ou
disposições interiores. O projeto existencial indica que o mundo é desvelado a partir de um
ponto de vista que revela as próprias significações do ponto de vista do para-si. Como as

116 EN, p. 223.


117 Ibid.
118 I’re, p. 38.
119 EN, p. 527.
120 EN, p. 533.
!330

significações do projeto existencial do para-si não se encontram numa interioridade psíquica


ou afetiva, mas no próprio mundo, a “psicanálise das coisas” de Bachelard se torna
interessante aos olhos de Sartre 121.
No ponto III do segundo capítulo da quarta parte de L’Être et le Néant, intitulado “Da
qualidade como reveladora do ser”, Sartre elabora uma breve versão de uma psicanálise das
coisas de acordo com sua ontologia sobre o ser do viscoso, em que define este modo de ser
como o símbolo da possibilidade de transformação do para-si em coisa. O modo material da
viscosidade simboliza para o para-si o oposto do valor de ser “em-si-para-si”, ele é algo como
um “antivalor”, que assombra constantemente o para-si em sua possibilidade de ser
metamorfoseado em coisa. O viscoso simboliza um ideal “qui va hanter perpétuellement la
conscience comme le danger constant qu’elle fuit”122. É esta apreensão da qualidade em sua
dimensão simbólica que torna mais compreensível o trecho que vimos anteriormente de “Une
idée fondamentale…” em que Sartre descreve o “mundo dos profetas e dos artistas”, que é
dotado de qualidades mas ainda sem a indicação de tal dimensão simbólica. Neste trecho,
Sartre diz:

Voilà que, tout d’un coup, ces fameuses réactions “subjectives”, haine,
amour, crainte, sympathie, qui flottaient dans la saumure malodorante de
l’Esprit s’en arrachent; elles ne sont que des manières de découvrir le monde.
Ce sont les choses qui se dévoilent comme haïssables, sympathiques,
horribles, aimables. C’est une propriété de ce masque japonaise que d’être
terrible, une inépuisable, irréductible propriété qui constitue sa nature même -
et non la somme de nos réactions subjectives à un morceau de bois sculpté123.

O traço interessante da “psicanálise das coisas” de Bachelard para Sartre é justamente


a possibilidade da apreensão de uma dimensão simbólica dessubjetivada, ao passo que “il
s’agit, en effet, d’appliquer non au sujet, mais aux choses, une méthode de déchiffrement
objectif qui ne suppose aucun renvoi préalable au sujet” 124. Assim, a significação da rede de

121 Worms ressalta que se trata de uma crítica de Sartre a Bachelard, no sentido de apontar o aspecto subjetivista
deste último, que estaria ainda presente em sua psicanálise material. WORMS, F. Le problème de l’inconscient
dans le moment de l’existence. A nosso ver, não se trata propriamente de uma crítica, mas do gesto filosófico de
ser ainda mais radical do que o próprio autor. É interessante notar ainda que Badiou, ao selecionar três textos
principais que mostram a relação de cumplicidade e rivalidade entre filosofia francesa e psicanálise, coloca
justamente a proposta da “psychanalyse des éléments” de Bachelard em La Psychanalyse du feu seguida da
psicanálise existencial de Sartre em L’Être et le Néant (e ainda a “squizo-analyse” de Deleuze e Guattari no
quarto capítulo de L’Anti-Œdipe). Todos estes, conclui Badiou, “ont proposé de remplacer la psychanalyse par
autre chose”. BADIOU, A. L’aventure de la philosophie française, p. 20-21.
122 EN, p. 657. Este tema é detalhado no §4 do capítulo IV desta “Terceira parte”.
123 S.I, p. 32.
124 EN, p. 646.
!331

reenvio dos isto pode ser interrogada “sans recours à la subjectivité qui l’a établi”125, na
medida em que se trata de um “symbole objectif de l’être et du rapport de la réalité-humaine à
cet être” 126. Sartre distingue ainda o “coeficiente de adversidade” da “sensation d’effort” de
Maine de Biran, a qual, a seu ver, seria ainda pensada nos moldes subjetivos das sensações, ao
invés de ser uma experiência de resistência da própria coisa. Se quisermos trazer um copo à
boca, diz Sartre, sentimos mais seu peso e sua resistência no interior do complexo de
utensílios do que a sensação de nosso esforço127.
Resumidamente, o desvelamento que ocorre pela negação originária que inaugura o
há, faz com que o isto apareça dotado de potencialidades, exigências, apelo de integração,
qualidade e coeficiente de adversidade no interior de um mundo de instrumentos e “tarefas a
cumprir”. O fato do para-si ser busca de completude assombra ainda o mundo como valor,
onde o campo fenomenal se mostra como apelo e via de realização da ipseidade do para-si.
Mas estes não são os únicos elementos que estruturam o campo da aparição, pois há ainda os
modos de relação próprios do campo prático do há, que possui um tempo e um espaço
característicos.

c) tempo e espaço fantasmas.

O para-si, enquanto projeto temporalizador, encontra-se num mundo que possui uma
espacialidade e uma temporalidade peculiares. Do mesmo modo que as estruturas objetivas de
desvelamento, o espaço e tempo do mundo128 “vêm ao mundo” pelo para-si, mas adquirem
autonomia e modo de ser próprios. O para-si, embora ele seja a “fonte” temporal, não se
encontra “de início e na maior parte das vezes”, como diria Heidegger, reflexivamente voltado
para esta característica de seu modo de ser, de maneira que a apreensão irrefletida da
temporalidade se dá “sur l’être, c’est-à-dire dehors”129 . Ambos espaço e tempo, neste
contexto, são, a nosso ver, da ordem da espectralidade, já que se caracterizam por ser um
medium entre ser e nada; algo como um contraditório “nada em-si” - em linguagem sartriana

125 EN, p. 648.


126 EN, p. 649.
127 EN, p. 364.
128 É o próprio Husserl que designa o tempo objetivo como “tempo do mundo”, que ele descreve como sendo

aquele que “je détermine avec la montre et le chronomètre […] que je fixe par rapport à la terre et au soleil”.
Este tempo vem abaixo com a redução fenomenológica, que revela, por sua vez, o tempo pré-empírico ou
fenomenológico. HUSSERL, E. Leçons, p. 168.
129 EN, p. 240.
!332

-, que é equivalente a um modo de existência que é fantasmático (fantômatique). Enquanto


que Sartre descrevia inicialmente o ser em-si como atemporal, o isto, por sua vez, em sua
aparição no mundo, “paraît originellement comme temporel ; mais en tant qu’il est ce qu’il
est, il refuse d’être sa propre temporalité, il reflète seulement le temps ; en outre il renvoie le
rapport ek-statique interne - qui est à la source de la temporalité - comme une pure relation
objective d’extériorité”130. A temporalidade mundana é espectral na medida em que ela não
pertence ao plano da temporalidade original ek-stática do para-si, e nem pode ser
compreendida simplesmente como em-si atemporal. Assim, trata-se de uma região ontológica
que não é nem para-si, nem em-si, do que decorre que “la temporalité, en tant qu’elle est saisie
objectivement, est donc un pur fantôme, car elle ne se donne pas comme temporalité du pour-
soi, ni non plus comme temporalité que l’en-soi a à être” 131. Esta temporalidade fantasma é a
temporalidade mundana e ela se dá ao para-si sob uma perspectiva instantaneísta, como
sucessão de unidades temporais sob o modo da identidade do em-si, embora seja produzida
por nadificações. Por esta razão, não podemos simplesmente descrever tais unidades
temporais como ser em-si stricto sensu - o qual é independente de uma nadificação -, devido
ao fato de que estas se caracterizam pelo modo de ser contraditório (relativamente a um
quadro dualista), de um nada substancializado que Sartre chama de “en-soi fantôme”132. Mas
como uma nadificação só ocorre a partir do ser, é a atemporalidade do em-si a base da
objetivação do tempo ek-stático em tempo do mundo: o para-si como projeto temporalisador
apreende uma temporalidade objetiva pelo desvelamento do isto e esta, por sua vez, é uma
negação da atemporalidade do em-si, isto é, “l’atemporalité de l’être est représentée dans son
dévoilement même”133, dado que é ela que “fonde la manière d’être du temps universel”134 .
É por perspectiva que se pode compreender como se tornam inteligíveis, a partir da
temporalidade mundana e universal, as noções de “antes” e “depois” e as de movimento e
repouso. A coesão do tempo instantaneísta é, ela também, diz Sartre, “un pur fantôme” 135,
dado que se trata de uma coesão estabelecida entre unidades temporais objetificadas e em
relação de exterioridade, ou seja, independentes entre si. Como vimos, quando percebemos
algo como sendo da ordem do presente esta aparição é estruturada pela característica da

130 EN, p. 241.


131 EN, p. 242. (grifo nosso)
132 Ibid.
133 EN, p. 241.
134 Ibid.
135 EN, p. 232.
!333

permanência, que é uma potencialidade, de forma que apreendemos a coisa como algo que já
estava lá e que continuará sendo no futuro, a não ser que algo externo a destrua. Esta estrutura
temporal própria à ação perceptiva de desvelamento do isto, no entanto, não aparece como
temporalidade da própria coisa, pois “c’est ainsi que se révèlent à moi ce verre ou cette table :
ils ne durent pas, ils sont ; et le temps coule sur eux” 136. Há, portanto, um passado e um futuro
universais, correlativos às ek-stases temporais passado e futuro do para-si, que estruturam a
presença da coisa, mas estes não se revelam como temporalidade do isto, já que este se mostra
como estando em repouso no interior do tempo universal. Sendo assim, o caráter dinâmico da
temporalidade mundana só pode se revelar a partir do movimento, ou seja, “c’est le
mouvement qui sera chargé de réaliser le temps universel, en tant que le pour-soi se fait
annoncer son propre présent par le présent du mobile”137 , e ainda, “la dimension présente du
temps universel serait […] insaisissable s’il n’y avait le mouvement”138. Movimento e
repouso, no entanto, não são da ordem da temporalidade original, mas são duas maneiras de
desvelamento do isto. É importante ressaltar que, com isso, o movimento nada tem a ver com
o devir ou com qualquer termo que significaria um processo original e temporal do sujeito.
Compreender o movimento no contexto da temporalidade mundana e universal é compreendê-
lo como uma maneira pela qual algo é desvelado como sendo um mesmo que passa de uma
unidade temporal anterior - um “agora” no passado -, para um “agora” no futuro, sem que
haja transformação qualitativa. Como viemos de dizer, a própria coisa não aparece em
repouso como sendo antes e depois a mesma - sem mudança qualitativa -, ela simplesmente é
desvelada como sendo no presente, representando a atemporalidade do em-si, o que faz dos
“mouvements des choses inertes […] des curieux mélanges de néant et d’éternité”139. Dito de
outro modo, o movimento da coisa faz aparecer a temporalidade universal como “antes” e
“depois” da passagem de um ponto a outro fazendo com que ela se revele como um mesmo
que passa. Segue-se que esta passagem, não sendo uma mudança na qualidade daquilo que
passa, se dá como relação intrínseca à espacialidade, pois passar, é passar de um lugar a
outro. O ser que passa, na verdade, está e não está em um lugar, diz Sartre, já que não
podemos dizer que ele não está em lugar nenhum ou alhures, mas se dissermos que ele está,

136 EN, p. 242.


137 EN, p. 250.
138 Ibid.
139 V, p. 562.
!334

seu “l’être-de-passage” se esvai e ele volta ao repouso140, traço que acentua o caráter
espectral. É por isso que o movimento, além de “realizar o tempo universal”, faz surgir
também o espaço, embora este esteja do mesmo modo implicado na concepção do repouso. A
diferença é que “quand le ceci est en repos l’espace est ; quand il est en mouvement, l’espace
s’engendre ou devient”141.
Sartre denomina trajetória esta união entre movimento e espaço, no sentido de que ela
é o engendramento do espaço no tempo universal. É por ela que podemos “medir” o tempo
como algo espacial, calcular um “lapso de tempo” que separa a realização de projetos projetos
como “la trajectoire de mon acte”142, por exemplo. A trajetória é fantasmática, pois ela é “la
forme d’un devenir évanescent”, “une fantôme d’unité temporelle de l’espace” 143. Se o tempo
universal é uma unidade fantasma de unidades temporais também elas fantasmáticas (“em-si
fantasma”), a trajetória estabelece, por sua vez, uma relação entre o isto e o espaço.
Considerando que o isto não aparece como temporal, sua relação ao espaço e aos outros isto é
uma relação de exterioridade. Em outros termos, o isto é “exterior a si” e “l’exteriorité-à-soi
n’étant nullement ek-statique, en effet, le rapport du mobile à soi-même est pur rapport
d’indifférence et ne peut se découvrir qu’à un témoin”144. Reencontramos aqui a relação entre
espectralidade, olhar e assombramento, pois a “exterioridade a si” do isto só aparece com
relação a um testemunho, e neste sentido é uma exterioridade olhada. Ser olhado no contexto
da hantologie não é equivalente a ser um objeto de uma teorização que interromperia a
relação prática ao mundo, mas a um tipo de apreensão não objetiva das ausências que se dá
pela presença que assombra o mundo que é o para-si. Neste caso particular, a ausência
consiste numa falta de relação efetiva que é ela mesma um tipo especial de relação, pois se
trata de “rapport-d’absence-de-rapport”145 que Sartre define como relação externa e que se
caracteriza por ser um “pur lien d’extériorité établi entre deux êtres par un témoin” 146. Este
“pur lien d’extériorité”, contrariamente às relações internas, é uma relação entre os seres que

140 Sartre conclui com isso que a relação do ser que passa com o lugar não é de “ocupação” EN, p. 248.
141 EN, p. 249.
142 EN, p. 252. Ainda sobre o “lapso de tempo”, Sartre diz: “c’est en étant mes possibilités par delà l’être

coprésent, que je découvre le temps objectif comme le corrélatif, dans le monde, du néant qui me sépare de mon
possible. De ce point de vue le temps apparaît comme forme finie, organisée, au sein d’une dispersion indéfinie;
le laps de temps est comprimé de temps au sein d’une absolue décompression est c’est le projet de nous-même
vers nos possible qui réalise la compression”. Ibid.
143 EN, p. 250.
144 EN, p. 249.
145 EN, p. 244.
146 EN, p. 211.
!335

não os modifica qualitativamente. Trata-se ainda de mais uma camada de espectralidade do


mundo, na medida em que as relações externas permanecem “« en l’air », extérieure au pour-
soi comme à l’en-soi”147 , elas tem “le double caractère d’être-en-soi et d’être idéalité pure” 148.
Na verdade, esta camada de espectralidade que é a relação externa é constitutiva da própria
temporalidade e da espacialidade fantasmas, uma vez que é por relações externas que o para-
si apreende a relação entre as unidades temporais (em-si fantasma), e as unidades de “néant
en-soi séparants les ceci”149 espacialmente. Este nada (néant) en-soi que separa os isto é a
quantidade, que é para Sartre, assim como para Bergson, sinônimo de espaço, como evidencia
Bento Prado Jr.:

o estabelecimento da identidade entre quantidade e espacialidade conduz os


dois filósofos [Sartre e Bergson] ao estabelecimento de uma tese simétrica:
por oposição a espaço e quantidade estabelece-se a identidade entre
temporalidade e qualidade. Num caso, a qualidade é a projeção de um ser-
para-si que é definido como “temporalização”; noutro caso, ela é momento
ou matiz de uma duração interna da consciência150.

O movimento temporalizador do para-si realiza assim não somente o tempo mas o


espaço. Ele espacializa, como diz Sartre em tom heideggeriano151. A espacialização realizada
pelo para-si encontra-se em estreita relação com seu caráter totalizador que é o fato de que,
pela presença “assombrante” do para-si no mundo, o ser lhe aparece como totalidade. Mas
esta totalização é frágil e instável, porque ela corre o risco constante de desagregação em
“multiplicidade externa”. O espaço é justamente esta totalidade evanescente, ele “n’est pas le
fond ni la forme, mais l’idéalité du fond en tant qu’il peut toujours se désagréger en
formes”152 e a espacialidade é a “relation désagrégative du monde aux ceci, des ceci au
monde”153. A relação entre totalização e desagregação confere ao mundo um caráter de

147 EN, p. 222. (grifo nosso)


148 EN, p. 227.
149 Ibid.
150 PRADO JR., B. Presença e campo transcendental, p. 96. Bento Prado Jr. diz ainda que há identidade entre

quantidade e espacialidade nos dois filósofos, dado que ambas são definidas como “esquemas de organização em
que o conteúdo é indiferente, em que a totalidade é apenas o fruto de uma totalização finita sempre ameaçada de
desagregação”. Ibid. p. 95
151 Sartre explicita no seguinte trecho a influência ao mesmo tempo de Heidegger e da Gestalttheorie em sua

concepção de espaço: “Nous admettrons volontiers avec Heidegger que la réalité-humaine est « déséloignante »,
c’est-à-dire qu’elle surgit dans le monde comme ce qui crée, et, à la fois, fait s’évanouir les distances (ent-
fernend). Mais ce déséloignement, même s’il est la condition nécessaire pour « qu’il y ait » en général un
éloignement, enveloppe l’éloignement en lui-même comme la structure négative qui doit être surmontée. En vain
tentera-t-on de réduire la distance au simple résultat d’une mesure : ce qui est apparu, au cours de la description
qui précède, c’est que les deux points et le segment qui est compris entre eux ont l’unité indissoluble de ce que
les Allemands appellent une « Gestalt »”. EN, p. 55.
152 EN, p. 220.
153 EN, p. 234.
!336

ambiguidade, contanto que ele “se dévoile à la foi comme totalité synthétique et comme
collection purement additive de tous les ceci”154. Isso mostra, como diz ainda B. Prado Jr, que
o espaço e a quantidade estão constantemente, de algum modo, em sursis155.
Por fim, acrescentamos que o espaço em sua dimensão de “totalidade sintética” se
aproxima, para Sartre, do que Kurt Lewin nomeava de “espaço hodológico”. Trata-se de um
modo de espacialização próprio à intuição sartriana do “mundo dos profetas e dos artistas”,
que vimos ser, a partir de L’Être et le Néant, o da aparição de um campo prático correlativo a
ação do para-si, que só pode ser situada. Sartre começa a desenvolver esta concepção de
espaço já no Esquisse. Ao tentar definir o que entende por “le monde agi”, ele nos indica que
podemos “dresser une carte « hodologique » de notre umwelt, carte qui varie en fonction de
nos actes et de nos besoins”156, de acordo com as exigências e as tensões do mundo que nos
rodeia. Tal é a interpretação sartriana do conceito alemão Umwelt: “le monde de nos désirs, de
nos besoins et de nos actes apparaît comme sillonné de chemins étroits et rigoureux qui
conduisent à tel ou tel but déterminé”157. Esta concepção permanece em L’Être et le Néant,
desta vez através do refinamento conceitual dado pelas estruturas de desvelamento. É o
espaço hodológico, portanto, que está em jogo no mundo assombrado pelas ausências, com
suas exigências, qualidades e tarefas a cumprir. A semelhança das descrições do Esquisse com
as de L’Être et le Néant a este respeito se deixa notar quando Sartre diz, por exemplo, nesta
última obra, que “l’espace originel qui se découvre à moi est l’espace hodologique ; il est
sillonné de chemins et de routes, il est instrumental et il est le site des outils. Ainsi le monde,
dès le surgissement de mon pour-soi, se dévoile comme indication d’actes à faire, ces actes
renvoient à d’autres actes, ceux-là à d’autres et ainsi de suite”158. O espaço é uma totalidade
frágil pronta a se desagregar e a se reformar de acordo com a ação situada do para-si, e é por
isso que sua composição é sempre singular. Trata-se assim de uma relação de espacialização
ligada aos sentidos que surgem do processo temporalizador do para-si no mundo e por esta
razão, Sartre afirma que “[un] être n’est pas situé par son rapport avec les lieux, par son degré
de longitude et son degré de latitude : il se situe dans un espace humain, entre le « côté de

154 EN, p. 219.


155 PRADO JR., B. Presença e campo transcendental, p. 96.
156 ETE, p. 42.
157 Ibid.
158 EN, p. 361.
!337

Guermantes » et le « côté de chez Swann », et c’est la présence immédiate de Swann, de la


duchesse de Guermantes qui permet de déplier cet espace « hodologique » où il se situe” 159.

159 EN, p. 318.


Capítulo IV

O acontecimento:
espectros de em-si enquanto zonas de opacidade.

son ombre une nuit


lui reparut
s’allongea pâlit
se dissolut

Beckett, poèmes.

Nos Carnets de la drôle de guerre, Sartre faz uma descrição interessante daquilo que
ele nomeia então de acontecimento (l’événement). Tal descrição mostra-se rica em elementos
importantes para nossa leitura de L’Être et le Néant. Por esta razão, iremos retomá-la
brevemente no intuito de situar o tema do capítulo que se inicia, que diz respeito à
espectralidade própria ao que caracterizamos como “zonas de opacidade”.
A descrição do para-si como um “em-si nadificado”, que vimos ser a da estrutura
imediata da facticidade em L’Être et le Néant, tem início nos Carnets. Nas notas de 19 de
janeiro do caderno XI, Sartre se refere ainda à facticidade do para-si como “le dehors du pour-
soi”1. A facticidade é então descrita em termos de uma reapreensão do para-si pelo em-si, após
seu surgimento como nadificação do em-si. Segue-se que este em-si que “ressaisit le pour-soi
par contrecoup”2, diz Sartre, não pode ter a consistência do em-si, sob o risco de
substancializar o para-si. O autor procura então descrever as características deste em-si que
reapreende o para-si em termos que, a nosso ver, remetem ao que é próprio da espectralidade.
A facticidade é então descrita como um “réflet nécessaire de l’en-soi sur le pour-soi”3, que
consiste num “fantôme inconsistant d’en-soi”4. Além disso, esta reapreensão do para-si por tal

1 CDG, p. 498.
2 Ibid.
3 Ibid.
4 Ibid.
!339

fantasma é apresentada por Sartre como uma condição necessária: “En un mot: pour se faire
néantisation de l’en-soi, au-dedans de lui-même et au-dehors, il ne suffit pas que le pour-soi
ait avec l’en-soi le seul rapport synthétique de la négation; il faut qu’il soit ressaisi par cet en-
soi sous la forme d’une unité synthétique venant cette fois de l’en-soi”5. Segue-se que o modo
do em-si que se dá após nadificação é descrito em termos espectrais:

Je comparerai cet « en-soi » qui vient teinter le pour-soi et lui constituer un


dehors à ces reflets qu’on peut voir sur une vitre lorsqu’on la considère de
biais et qui masquent soudain sa transparence pour s’évanouir aussitôt qu’on
change de position par rapport à la vitre […] Seulement, ce reflet évanescent,
irisé et mobile de l’en-soi, qui se joue à la surface du pour-soi et que je
nomme facticité, ce reflet totalement inconsistant, ne peut être considéré à la
façon de l’existence opaque et compacte des choses. L’être-en-soi du pour-soi
dans son insaisissable réalité, c’est ce que nous nommerons l’événement.
L’événement n’est pas un accident ni quelque chose qui se produit dans les
cadres de la temporalité. L’événement est la caractéristique existentielle de la
conscience en tant qu’elle est ressaisie par l’en-soi6.

O acontecimento é assim o termo utilizado nos Carnets para descrever de algum modo
esta reapreensão do para-si pelo em-si após o seu surgimento, o que é ainda colocado em
termos de uma condição necessária. Este “em-si fantasma” que é aqui chamado de
acontecimento nos remete à espectralidade própria deste reflexo que, apesar de ser
inconsistente e inapreensível pelo olhar - pois o para-si é reapreendido pelo em-si por detrás 7
- é aquilo que permite dizermos que o para-si é. Isto significa que o fato do acontecimento ser
“indescritível” não denota que ele seja uma ilusão, ou algo da ordem do imaginário, pois é
esta condição necessária da facticidade que faz com que o para-si tenha um “lado de fora”,
que ele se localize como um ser-no-meio-do-mundo. Assim, diz Sartre, a facticidade é o
“limite à la transparence de la conscience. Non pas qu’il y ait rien derrière cette transparence
mais simplement le fait d’être-comme-pour-soi est la limite opaque de cette translucidité.
Autrement dit, c’est un fait en soi, échappant à toute néantisation, qu’il existe en ce moment
un pour-soi qui est néantisation de l’en-soi” 8. Se a consciência busca apreender
reflexivamente a facticidade que é o acontecimento, acrescenta Sartre, “elle ne le voit pas, elle
ne voit que la liberté infinie et néantisante de ses propres motivations”9, e é por isso que ele a
assombra por detrás.

5 CDG, p. 498.
6 Ibid.
7 CDG, p. 491; p. 587.
8 CDG, p. 492.
9 Ibid.
!340

Podemos dizer que esta breve descrição sobre o acontecimento nos indica um caminho
a seguir nas análises de L’Être et le Néant. Nesta obra, Sartre não se refere a esta reapreensão
do para-si pelo em-si em termos de acontecimento, mas este assombramento “por detrás”
continua a ser condição necessária para o para-si. O que a descrição anterior sobre o
acontecimento nos mostra é que este “retorno do em-si” é da ordem de um “retorno do
espectro” e não de algo que finalmente substancializaria o para-si. Se vimos que este retorno
não é mais de um em-si opaco - no sentido da materialidade das coisas -, mas de um “em-si
fantasma”, ocorre que o que é chamado agora de “acontecimento absoluto”, que é o
surgimento do para-si a partir do em-si, envolve aquilo que chamamos de “passagem ao
espectral”, o que indica que aquilo que “resta” de em-si no para-si só pode ter um modo de ser
bastante peculiar, tal como o acontecimento. Se este em-si que permanece no para-si, de modo
a habitá-lo como um espectro, não pode ser equivalente ao modo de ser “opaco” das coisas,
devemos ter em vista um outro plano, que chamaremos agora de “zonas de opacidade”, este
último termo em seu sentido espectral. Veremos a seguir no que consistem tais zonas e de que
modo elas assombram o para-si em seu modo mais imediato.

§1. O em-si nadificado: o acontecimento absoluto.

O passado, o corpo-para-si e a afetividade original.

O para-si não tem um passado e nem um corpo: o para-si era o seu passado e existe
seu corpo. A ligação existencial que substitui uma concepção possessiva com relação ao corpo
e ao passado é de extrema importância para compreendermos estas figuras da facticidade do
para-si. Já abordamos este tema antes: a facticidade é uma estrutura imediata do para-si
“sujeito” que atesta o fato de sua existência contingente, isto é, o fato de que o para-si é. No
entanto, se fossemos considerar simplesmente sua existência contingente, o para-si existiria
sob o modo do ser em-si e não como “acontecimento absoluto”, que é o surgimento do para-si
a partir da nadificação do em-si que ele é. Abordamos este aspecto algumas vezes acima.
Nosso objetivo agora consiste em voltar a atenção para aquilo que “reste de l’en-soi dans le
pour-soi comme facticité”10 . Em outras palavras, veremos em que medida este em-si, após

10 EN, p. 120.
!341

sofrer a nadificação do ato ontológico, permanece no para-si assombrando-o como sua


contingência original. Dado que, como falamos anteriormente, sem este assombramento
constante, o para-si não seria mais fuga da contingência, pois não haveria mais nada a fugir.
Pelo acontecimento absoluto surge um para-si que é projeto e cujas ek-stases
temporais - passado, presente e futuro -, encontram-se em interdependência sintética por
ligações internas. Desde então o para-si não cessa de “durar” como um processo de
metamorfose, que vimos se caracterizar por uma incessante passadificação. Através desta, o
passado se coagula a cada vez no modo de ser em-si, a partir do qual as nadificações
presentes se dão, já que elas são sempre nadificações do ser. Disto concluímos que, além da
contingência original, o para-si é assombrado perpetuamente por seu passado, que o
“persegue” - o termo é de Sartre - como seu modo de ser a cada vez ultrapassado. A
familiaridade entre os termos ultrapassado (dépassé) e passado (passé) é evidenciada aqui:
“Le passé c’est l’en-soi que je suis en tant que dépassé”11. O passado, sendo da ordem da
facticidade, faz parte da dimensão fática que o para-si é, mas este é adquire esta
particularidade de ser a cada vez ultrapassado:

Il s’agit là d’une nécessité inconditionnelle : quel que soit le pour-soi


considéré, il est en un certain sens, il est puisqu’il peut être nommé,
puisqu’on peut affirmer ou nier de lui certains caractères. Mais en tant qu’il
est pour-soi, il n’est jamais ce qu’il est. Ce qu’il est est derrière lui, comme le
perpétuel dépassé. C’est précisément cette facticité dépassé que nous
nommons le passé12 .

Este ultrapassamento que se dá pela nadificação de si a cada vez é frequentemente


interpretado em termos de ruptura, logo, de uma separação efetiva provocada pelo ato de
nadificação entre a consciência presente e as consciências passadas. No entanto, este “néant
de la facticité”13 de fato rompe, separa o presente de seu passado? Esta nadificação realmente
provoca, como diz Bento Prado Jr., uma “ruptura, [uma] separação através da intromissão de

11 EN, p. 153.
12 EN, p. 173.
13 Ibid.
!342

uma fissura de negatividade”?14. Se assim fosse, o para-si não seria mais o seu passado, o que
não é possível por motivos que já explicitamos acima. Qual é então o modo de relação
interna que une as ek-stases temporais passado e presente por via da nadificação? Sartre
responde: “Le passé peut bien hanter le présent, il ne peut pas l’être ; c’est le présent qui est
son passé. Si donc on étudie les rapports du passé au présent à partir du passé, on ne pourra
jamais établir de l’un à l’autre des relations internes”15. O assombramento consiste assim
neste tipo de relação interna que une passado e presente de uma maneira peculiar, devido ao
fato de que não se trata de uma instância que “contém” outra - como “ter um passado” -, mas
do fato do que o passado “ainda está lá” - e por isso ele era - embora não possa ser localizado
e descrito como tal. Em outros termos, trata-se de uma presença espectral16. O trecho a seguir
resume todos estes pontos:

Reste à étudier la façon même dont le pour-soi « était » son propre passé. Or
on sait que le pour-soi paraît dans l’acte originel par quoi l’en-soi se néantise
pour se fonder. Le pour-soi est son propre fondement en tant qu’il se fait
l’échec de l’en-soi pour être le sien. Mais il n’est pas parvenu pour autant à
se délivrer de l’en-soi. L’en-soi dépassé demeure et le hante comme sa
contingence originelle. Il ne peut jamais l’atteindre, ni se saisir jamais
comme étant ceci ou cela, mais il ne peut non plus s’empêcher d’être à
distance de soi ce qu’il est. Cette contingence, cette lourdeur à distance du
pour-soi, qu’il n’est jamais mais qu’il a à être comme lourdeur dépassée et
conservée dans le dépassement même, c’est la facticité, mais c’est aussi le
passé17 .

O assombramento do passado que atravessa cada presente é metaforicamente descrito


por Sartre como algo que atinge o para-si “por detrás” (par derrière). Como é típico do

14 PRADO JR., B. Presença e campo transcendental, p. 107. “Para Sartre, com efeito, a liberdade é solidária à
possibilidade, para a consciência, de distanciar-se de seu passado, de separar-se dele através da negação. Mais do
que isso, essa ruptura - essa separação através da intromissão de uma fissura de negatividade - reproduz-se em
todas as dimensões da temporalidade. Se a consciência está separada irremediavelmente de seu passado e de seu
futuro, é porque ela é separação entre ela e ela mesma”. Id. Esta afirmação encontra-se em sintonia com a
seguinte afirmação de Sartre: “si la négation vient au monde par la réalité-humaine, celle-ci doit être un être qui
peut réaliser une rupture néantisante avec le monde et avec soi-même”. EN, p. 483. (grifo nosso). No entanto, a
ideia de ruptura é questionável, pois vimos que a presença a si consiste numa “separação” que não separa de
fato, tendo em vista a paradoxal característica de “dualidade na unidade” e ainda devido a relação interna entre
as ek-stases que atesta que o para-si não pode não ser o seu passado.
15 EN, p. 148. (grifo nosso)
16 Ao falar do em-si nadificado que permanece no para-si, Sartre se utiliza do termo “souvenir d’être”: “Le pour-

soi correspond donc à une destruction décomprimante de l’en-soi et l’en-soi se néantit et s’absorbe dans sa
tentative pour se fonder. Il n’est donc pas une substance dont le pour-soi serait l’attribut et qui produirait la
pensée sans s’épuiser dans cette production même. Il demeure simplement dans le pour-soi comme un souvenir
d’être, comme son injustifiable présence au monde.” EN, p. 120. No entanto, não é em termos de uma
“lembrança” que compreendemos esta presença espectral da facticidade que assombra o para-si. A lembrança é
um ato intencional específico, cuja estrutura é distinta do assombramento que ocorre no bojo mesmo da
consciência pré-reflexiva. Assim, como vimos a respeito do espectro, trata-se de um modo de ser peculiar que
vem a estruturar o para-si “sujeito”.
17 EN, p. 153.
!343

assombrar, seus efeitos são produzidos a partir de algo que não se intui, que não se encontra
diante do campo temático da consciência: “[le passé] n’est pas l’objet du regard du pour-soi.
Ce regard translucide à lui-même se dirige, par delà la chose, vers l’avenir” 18.
Consequentemente, o assombramento do passado vem perturbar a translucidez da
consciência, na medida em que ele é “chose qu’on est sans la poser, en tant que ce qui hante
sans être remarqué, [il] est derrière le pour-soi, en dehors de son champ thématique, qui est
devant lui comme ce qu’il éclaire”19. O campo luminoso é, portanto, o da intuição, enquanto
que o assombramento atinge o para-si “por detrás”, fazendo-se presente na própria dimensão
translúcida. Para compreendermos isto, devemos precisar ainda o que significa neste contexto
o movimento do projeto como um ultrapassar (dépasser), já que este pressupõe, pela
facticidade, o engajamento do para-si no mundo: “dépasser le monde, c’est précisément ne
pas le survoler, c’est s’engager en lui pour en émerger, c’est nécessairement ce faire cette
perspective de dépassement”20 . Tal impossibilidade de sobrevoo é dada pela facticidade, que
atesta o aspecto de “ser-no-meio-do-mundo” do para-si, definindo, como vimos, um centro de
referência corporal. O engajamento do para-si é corpo, visto que ele é situado no mundo como
sendo ao mesmo tempo “no-meio-do-mundo” e ultrapassamento desta condição a cada vez.
Ultrapassamento que, tal como a Aufhebung hegeliana, supera e conserva aquilo que é
ultrapassado - “dépassé et conservée dans le dépassement même”-, conforme citação acima.
Porém, o que temos sublinhado é que este modo de “conservação” é dado como passagem ao
espectral, o que se revela finalmente como fator característico da facticidade sartriana. Nos
termos de Sartre:

le pour-soi est soutenu par une perpétuelle contingence qu’il reprend à son
compte et s’assimile sans jamais pouvoir la supprimer. Nulle part le pour-soi
ne la trouve en lui-même, nulle part il ne peut la saisir et la connaître, fût-ce
par le cogito réflexif, car il la dépasse toujours vers ses propres possibilités et
il ne rencontre en soi que le néant qu’il a à être. Et pourtant elle ne cesse de le
hanter et c’est elle qui fait que je me saisisse à la fois comme totalement
responsable de mon être et comme totalement injustifiable21 .

O mesmo que vale para o passado, vale para o corpo em sua dimensão para-si
(veremos outros planos corporais mais adiante), mais uma figura da facticidade imediata de

18 EN, p. 176.
19 EN, p. 176. (grifo nosso)
20 EN, p. 366.
21 EN, p. 348. (grifo nosso)
!344

seu modo de ser. Vimos o aspecto deste modo corporal em sua relação com a percepção e a
necessidade do desvelamento orientado do mundo, agora podemos nos concentrar sobre a
espectralidade própria à facticidade corporal.
Do mesmo modo que o passado, “le corps est perpétuellement le dépassé”22, e o
ultrapassamento se dá novamente como assombramento. O corpo é para-si, mas o em-si
nadificado relativo ao “acontecimento absoluto” que estrutura o modo de ser para-si
assombra-o não mais como um em-si, mas como um espectro. Isto porque, contra uma
possível interpretação do tipo cartesiana de que o corpo seria um em-si no para-si, Sartre
afirma que “[le corps] n’est rien d’autre que le pour-soi ; il n’est pas un en-soi dans le pour-
soi, car alors il figerait tout”23. No plano do corpo para-si, o corpo não pode tampouco ser
objetificado. Por esta razão, dizer que o corpo é uma dimensão da facticidade, enquanto em-si
nadificado, não significa dizer que o em-si que é nadificado é o corpo e que o para-si é o nada
- “car alors il figerait tout” -, mas trata-se de um modo espectral de corporeidade. Somente
assim podemos compreender a dimensão corporal pré-reflexiva em toda sua amplitude, como
o fato de que o corpo “est partout : la bombe qui détruit ma maison entame aussi mon corps,
en tant que la maison était déjà une indication de mon corps. C’est que mon corps s’étends
toujours à travers l’outil qu’il utilise […] il est mon adaptation à ces outils”24. Por isso, “le
corps dans l’action, en tant que corps pour-soi, s’évanouit, il est le dépassé : l’action révèle le
marteau et les clous non la main que martèle”25. Trata-se então de um “insaisissable corps” 26,
na medida em que “ce donné que je suis sans avoir à l’être - sinon sur le mode du n’être-pas -
je ne puis ni le saisir ni le connaître, car il est partout repris et dépassé, utilisé pour mes
propres projets, assumé”27. Como estrutura da facticidade, o corpo é ultrapassamento do
mesmo modo que o passado28. Ambos dizem respeito à facticidade como estrutura imediata
de nadificação do em-si que o para-si é a cada vez, que adquire nestes casos o aspecto de
ultrapassamento de seu ser-no-meio-do-mundo. Na perspectiva do corpo, este

22 EN, p. 365.
23 EN, p. 348.
24 EN, p. 365.
25 CABESTAN, P. Qui suis-je?, p. 163. Cabestan ressalta a originalidade da teoria sartriana sobre o corpo em

relação a Husserl e Heidegger, dois anos antes da Phénoménologie de la perception de Merleau-Ponty. Segundo
Cabestan, Heidegger chega a afirmar no Séminaire de Zurique que está de acordo com a crítica de Sartre sobre o
silêncio desta questão em Être et temps. O autor aponta, por fim, uma apropriação por parte de Sartre das
análises heideggerianas sobre a espacialidade do ser-no-mundo e como aparição do mundo orientado ao corpo-
para-si. (Cf. Ibid., p. 155; p. 160).
26 EN, p. 368.
27 EN, p. 366.
28 “Ainsi le, corps étant le dépassé, est le Passé”. Ibid.
!345

ultrapassamento se dá pelo engajamento corporal prático no mundo, na lida situada e a cada


vez sua de desvelamento dos instrumentos. É neste sentido que o corpo-para-si é a prova da
finitude de seu modo de ser, no sentido de que “c’est précisément la nécessité qu’il y ait un
choix, c’est-à-dire que je ne sois pas tout à la fois”29, diz Sartre. Esta última afirmação nos
esclarece o sentido da conhecida definição do corpo como “la forme contingente que prend la
nécessité de ma contingence” 30, pois a assunção pelo projeto para-si de sua própria
contingência toma forma de uma necessidade, que, por sua vez, é contingente. Em outros
termos, se atentarmos para esta definição, podemos observar que a estrutura da facticidade -
necessidade de minha contingência - toma no corpo uma forma (desvelamento orientado), que
se reveste novamente de uma contingência. A contingência diz respeito ao fato de que o para-
si existe sem razão mas como necessidade de existir sob a forma de ser-aí (être-là)31, jogado
no mundo, em uma posição, um lugar, uma história, um passado individual e coletivo, o que
faz com que o para-si seja engajado em um ponto de vista 32. A contingência original que “ne
cesse de le hanter” significa que é totalmente contingente o fato do para-si existir engajado
neste ponto de vista no mundo, ao mesmo tempo em que o próprio mundo lhe reenvia, como
unidade sintética e ordenada, a sua injustificabilidade original. Neste sentido, o corpo-para-si
se identifica com a ordem necessária e injustificada de aparição da totalidade dos entes, a
ponto que ele mesmo não pode ser conhecido. O engajamento do ponto de vista do para-si se
dá então por via da estrutura de em-si nadificado da facticidade, através da dupla negação que
é a necessidade de nadificar ao mesmo tempo o ser-no-meio-do-mundo que o para-si é - no
sentido de existir jogado neste mundo, nesta posição, neste lugar, a partir deste passado, etc. -,
ao nadificar este em-si transcendente que ele não é. A dupla negação é, por fim, sempre
situada, dado que “[il faut partir] de notre rapport premier à l’en-soi : de notre être-dans-le-
monde”33; do mesmo modo, sempre negação engajada e concreta daquilo que ela nega. A
posição situada da dupla nadificação é precisamente o corpo, e disto resulta “[qu]’il découle
nécessairement de la nature du pour-soi qu’il soit corps, c’est-à-dire que son échappement
néantisant à l’être se fasse sous forme d’un engagement dans le monde”34.

29 EN, p. 368.
30 EN, p. 348.
31 Não confundir com o Dasein heideggeriano, como dissemos anteriormente. Ser-aí, neste contexto, indica a
posição do para-si.
32 “Ponto de vista” que, como vimos, não é uma relação diante de um mundo, mas um engajamento prático.
33 EN, p. 345.
34 EN, p. 349.
!346

Tudo isto posto, segue-se que a descrição do corpo-para-si não se resume a uma
relação objetiva com os instrumentos a partir de um ponto de vista, se reconhecermos que,
citando Cabestan, “le corps tel qu’il a été décrit jusqu’ici manque singulièrement de
‘chair’”35. Com relação a este ponto, podemos dizer inicialmente que, como Sartre não foi
leitor das Ideen II tal como o foi Merleau-Ponty, ele não parte das descrições husserlianas
sobre a encarnação do sentir desenvolvida a partir do exemplo da mão que toca e da que é
tocada, de modo que seu caminho de elaboração das características do corpo próprio (Leib) se
constrói de outra maneira 36. Sartre se concentra na ideia de uma afetividade original
(originelle) própria ao existir seu corpo do para-si, que diz respeito a sua maneira peculiar de
ser afetado por sua própria contingência. Uma relação a si que se assemelha ao que
conhecemos como tonalidade afetiva (Stimmung) em Heidegger, afirma Cabestan, enquanto
abertura ao mundo e a si, anterior a todo conhecimento e todo querer37.
O corpo-para-si identifica-se à facticidade, que é uma estrutura imediata. Esta, por sua
vez, corresponde ao que há que espectral em meio à própria dimensão translúcida, que é desde
sempre perturbada pelo assombramento. Na relação de ultrapassamento que é a facticidade
corporal, a consciência assume, ao mesmo tempo, sua contingência original, agora em seu
aspecto de afetividade original. Se a consciência existe seu corpo, esta ideia não pode ser
interpretada, como vimos, como união de duas instâncias autônomas. Ela significa que esta
relação imanente da presença a si com sua própria facticidade corporal é um modo de
autoafetação, que Sartre descreve em termos de uma “conscience latérale et rétrospective de
ce qu’elle est [la conscience] sans avoir à l’être” 38. Neste tipo de descrição, o assombramento
ganha um papel privilegiado, enquanto revelador de uma espécie de experiência constante
desta presença espectral comparada pelo autor a um “gosto de si” que é a náusea: “Cette
saisie perpétuelle par mon pour-soi d’un goût fade et dans distance qui m’accompagne jusque
dans mes efforts pour m’en délivrer et qui est mon goût, c’est ce que nous avons décrit
ailleurs sous le nom de Nausée. Une nausée discrète et insurmontable révèle perpétuellement

35 CABESTAN, P. Qui suis-je?, p. 164.


36 Cabestan diz que, diferentemente de Merleau-Ponty, Sartre não conhecia este texto, o qual durante um longo
tempo era ainda inédito na França. Entretanto, é justamente em oposição à abordagem da corporeidade através
do fenômeno da dupla sensação que Sartre irá realizar sua descrição do corpo. CABESTAN, P. Qui suis-je? p.
158. Para o desenvolvimento do caráter problemático do fato de Sartre criticar a dupla sensação ver:
BARBARAS, R. Le corps et la chair dans la troisième partie de L’être et le néant, p. 282-285.
37 Ibid., p. 167.
38 EN, p. 370.
!347

mon corps à ma conscience”39. Neste contexto, a náusea (afetividade original) é a própria


experiência da facticidade, é uma espécie “gosto” - para utilizar o termo sartriano - do
assombramento, apreensão constante do “resto” de em-si, espectro, que perturba a
translucidez. A afetividade original é a espectral “texture même de la conscience”40, ela é a
náusea de existir como tendo sempre este assombramento que incide por detrás, do qual só
pode haver consciência lateral, nunca frontal:

La conscience non-positionnelle est conscience (du) corps comme de ce


qu’elle surmonte et néantit en se faisant conscience, c’est-à-dire comme de
quelque chose qu’elle est sans avoir à l’être et par-dessus quoi elle passe
pour être ce qu’elle a à être. En un mot, la conscience (du) corps est latérale
et retrospective; le corps est le négligé, le « passé sous silence », et cependant
c’est ce qu’elle est; elle n’est même rien d’autre que corps, le reste est néant
et silence41 .

A afetividade original não é a afetividade em seu caráter intencional, do tipo de uma


consciência emocionada que se exprimiria em termos de “toda raiva é raiva de alguém ou de
alguma coisa”. Neste momento, Sartre vai além das descrições do Esquisse d’une théorie des
émotions que se concentravam na consciência emocional como consciência do mundo. Na
verdade, já neste trabalho anterior a afetividade aparece como sendo parte constitutiva do
modo de ser da consciência, mas as investigações estão voltadas a maneira emotiva de
apreensão do mundo e não para esta afetividade que se confunde como o corpo original 42. No
contexto de L’Être et le Néant, a afetividade original é uma relação imediata a si, o que mostra
que “la conscience sartrienne n’est pas pure intentionnalité, le soi de la conscience (de) soi
n’est pas seulement élan vers l’objet intentionnel puisque, d’emblée, ce soi est conscience
affective (de) soi, “possède” une coloration, un goût, une qualité affective”43. Trata-se de uma
qualidade vazia de conteúdo, caracterizada como uma “tonalité pure de mes motivations,
unité originaire, indivise, du Transcender et de L’Etre facticiel”44; tal qualidade afetiva é pura
experiência imediata da contingência e daí seu caráter tipicamente sartriano de náusea. Pela

39 EN, p. 378. Para De Coorebyter, La Nausée antecipa a tese de L’Être et le Néant de que a consciência existe
sua facticidade como corpo, ao explorar por diversas vezes a dimensão cinestésica e passiva deste. DE
COOREBYTER, Sartre face à la phénoménologie, p. 546.
40 EN, p. 371.
41 EN, p. 369-370.
42 CABESTAN, P. Qui suis-je?, p. 165.
43 Ibid., p. 165, n. 29.
44 ROUGER, F. Le monde et le moi, p. 135.
!348

mesma razão, a náusea como afetividade original não é um fenômeno fisiológico, ao


contrário, é sobre a primeira que se fundamentam todas as náuseas empíricas.
Após uma breve consideração sobre as “qualidades afetivas puras” de Scheler e os
“abstratos emocionais” de Baldwin 45, sem esquecer da contraposição já citada a Maine de
Biran e sua “sensação de esforço”, Sartre conclui sua versão de uma “tonalité affective non-
thétique” que consiste em “tout ce qu’on nomme cœnesthésique”46. A afetividade original,
como consciência lateral de existir seu corpo, é assim própria ao modo da dimensão corporal
pré-reflexiva do para-si, fazendo de seu caráter afetivo uma experiência constante, um
“gosto” de si, uma apreensão imediata da contingência, uma textura espectral e não uma
entidade psíquica. A fim de exemplificar este aspecto, Sartre oferece uma descrição
interessante de uma experiência de “leitura com dor nos olhos” que evidencia a especificidade
desta relação de assombramento própria à contingência corporal. O exemplo em questão
mostra que o corpo encontra-se implícito na experiência perceptiva da leitura, no sentido de
que a dor é vivida e não tematizada pela consciência. A dor nos olhos se anuncia através dos
próprios objetos da leitura: pelas dificuldades, pela confusão dos sentidos, pelas frases que
aparecem como “a ler mais uma vez”; a consciência tética da leitura existe sua dor de modo
que “la douleur n’est pas envisagée d’un point de vue réflexif, elle n’est pas rapportée à un
corps-pour-autrui. Elle est douleur-yeux ou douleur-vision; elle ne se distingue pas de ma
façon de saisir les mots transcendants” 47. Neste caso, a “dor” não pode nem mesmo ser
nomeada, conhecida. Ela não pode ser tampouco localizada no tempo e no espaço, de modo
que ela apenas se distingue em si mesma de outras maneiras possíveis de existir
dolorosamente. Ao tentar definir justamente esta dor como vivência pura, Sartre conclui que
ela não é passível de ser apreendida: “elle serait de l’espèce des indéfinissables et des
indescriptibles qui sont ce qu’ils sont”48. Descrição que nos leva a pensar se neste caso tratar-
se-ia do modo de ser em-si, já que ele “é o que é”, mas que não pode ser descrito. Não está
claro, mas, ao invés de nos atermos a este ponto da “dor pura”, melhor é nos concentramos no
fato do para-si existir sua dor, isto é, no fato de que a afetividade original é caracterizada
como sendo a “matière translucide de la conscience, son être-là, son rattachement au

45 Cf. EN, p. 370-371.


46 EN, p. 371.
47 EN, p. 372.
48 EN, p. 373. (grifo nosso)
!349

monde”49. Nesta segunda descrição, chama a atenção o fato de Sartre descrever a afetividade
original em termos de “matière translucide” e ainda de “contexture” 50, designações no
mínimo surpreendentes caso se mantenha o dualismo entre o conceito de translúcido como
correspondente a algo da ordem da consciência e opaco como qualidade própria à dimensão
dos objetos. Por esta razão, só podemos compreender a afetividade original no plano da
espectralidade, em virtude da opacidade característica deste modo de ser. Neste sentido, a
contingência original que assombra o para-si encontra na náusea sua expressão máxima:
“Nulle part ailleurs nous ne toucherons de plus près cette néantisation de l’en-soi par le pour-
soi et le ressaisissement du pour-soi par l’en-soi qui alimente cette néantisation même” 51,
conclui Sartre. A reapreensão pelo em-si que vimos ser o acontecimento nos Carnets, ocorre
produzindo o efeito do retorno do espectro: “Par ailleurs - et c’est le propre de l’existence
corporelle - l’ineffable qu’on veut fuir se retrouve au sein de cet arrachement même, c’est lui
qui va constituer les consciences qui le dépassent, il est la contingence même et l’être de la
fuite qui veut le fuir”52. O passado e o corpo-para-si correspondem, portanto, à primeira
dimensão de assombramento do para-si, próprias ao acontecimento absoluto de seu
surgimento e à incessante nadificação de si do ato ontológico. A afetividade original, por fim,
vem ainda atribuir uma textura à facticidade da dimensão corporal pré-reflexiva do para-si.

§2. O em-si projetado: a sombra.

a) O psiquismo.

Em La Transcendance de l’Ego, Sartre desenvolve sua tese sobre a constituição


psíquica a partir da distinção entre consciência e psychè. Tal distinção visa problematizar uma
psicologia que se baseia numa concepção naturalizada dos fenômenos psíquicos,
compreendidos como fatos substanciais. Para Sartre, a fenomenologia husserliana fornece um
método que permite, ao contrário, que compreendamos os fenômenos psíquicos em seu
caráter derivado e constituído pela consciência, mais especificamente pela reflexão impura ou
cúmplice. De acordo com esta tese, o plano psíquico adquire um caráter contingente, uma vez
que ele não pertence à vida autônoma irrefletida da consciência. No entanto, sua constituição

49 Ibid. (grifo nosso)


50 EN, p. 374.
51 EN, p. 373.
52 Ibid.
!350

se dá por atos cujas essências podem ser descritas pelo fenomenólogo, o que mostra sua
relevância. Não é o caso, portanto, de subestimar a importância da constituição psíquica e sua
presença cotidiana na vida do sujeito, nem tampouco de desvalorizar a psicologia, mas sim de
apresentar uma concepção fenomenológica que pode servir de base à psicologia, na medida
em que esta não pressuponha mais o psíquico como um fato natural, mas como um fenômeno
derivado, constituído pela reflexão.
Este posicionamento, diferentemente da teoria da temporalidade instantaneísta de La
Transcendance de l’Ego, permanece válido em L’Être et le Néant. Por esta razão, ambos os
textos são importantes para o nosso próprio desenvolvimento da teoria do psíquico em Sartre,
sobretudo na medida em que o primeiro é extremamente rico sobre o tema - o qual será em
certa medida dado como já trabalhado na ontologia sartriana -, de modo que nesta
encontramos apenas alguns aspectos diferenciais que serão apontados ao longo das análises
seguintes. Dito isto, podemos considerar ainda a importância deste plano ontológico que é a
psychè no contexto da hantologie, pelo fato desta evidenciar um plano espectral de forma
exemplar. Em nenhuma parte da ontologia sartriana pode-se vislumbrar com mais clareza um
modo intermediário entre as regiões para-si e em-si, expresso muitas vezes no texto sartriano
pela ideia do “quase”: quase-conhecimento, quase-objeto, quase-fora, etc. Transpondo em
termos de translucidez e opacidade, trata-se do plano das sombras, figuras que são como uma
matiz intermediária entre o claro e o escuro. É importante ressaltar que, de imediato, tal
característica do objeto psíquico não é apontada por Sartre como uma possível superação
deste último dualismo, pelo fato deste objeto ter sido relegado a um “fora” da consciência,
como objeto transcendente no mundo, que em nada perturbaria a translucidez. Mas é
exatamente este ponto que salta aos olhos quando se considera atentamente que a relação do
para-si com os objetos psíquicos não é a mesma da consciência irrefletida com as coisas no
mundo. Dito isto, quais seriam então as consequências deste modo de relação de um “quase-
fora”, “quase-outro” para um para-si que se relaciona intimamente (veremos este conceito
mais adiante) com os produtos de sua própria reflexão? Responder a esta questão torna-se
extremamente importante para que possamos ter em vista a relevância do assombramento no
que diz respeito ao plano das sombras.

Estrutura e motivação da reflexão


!351

Em L’Être et le Néant, o psíquico, do mesmo modo que em 1934, é um produto da


reflexão impura ou cúmplice, agora também denominada de constituínte (constituante) 53.
Cabe a este tipo de reflexão constituir os objetos psíquicos ao mesmo tempo em que um tipo
específico de temporalidade: a temporalidade psíquica. Na verdade, a reflexão impura produz
e desvela de uma só vez este tipo de objeto que deve ser descrito pelo fenomenólogo em seu
modo de aparição peculiar, relativo a uma temporalidade também específica. Como esta
constituição se dá justamente pela reflexão impura, deve-se de início compreender
minimamente algumas características deste tipo de ser que é a reflexão, a qual pode ocorrer de
duas maneiras distintas: como reflexão impura ou pura, como dissemos algumas vezes acima.
Para tal, devemos atentar para a estrutura da reflexão e sua razão de ser, isto é, devemos
retomar a questão da motivação que faz com que haja reflexão, já que o plano irrefletido é
autônomo e não depende deste segundo momento para existir. Vale observar também a
característica da frequência da reflexão impura.
Em primeiro lugar, a reflexão impura é a mais cotidiana, ela é primeira e espontânea,
mas não original54. A forma original (e ideal) de reflexão é a pura, que é rara e que Sartre
compara a uma espécie de catarse 55, como mostramos anteriormente. Agora podemos indagar
a respeito da reflexão impura sobre o que motiva sua produção do psíquico, já que a
consciência irrefletida é independente deste gesto autocentrado para existir.
Em La Transcendance de l’Ego, Sartre retoma a questão que Fink endereçava a
Husserl sobre a motivação da reflexão fenomenológica: não há na atitude natural razão ou
motivo para que se pratique a redução. Disto Sartre conclui que a redução em Husserl se dá
como uma espécie de “milagre” 56, enquanto que, a seu ver e diferentemente de seu antecessor,
há uma motivação constante na própria consciência irrefletida para operar tanto a reflexão
pura quanto a impura. Devido à “fatalidade da espontaneidade”, aspecto já abordado acima,
há um “medo de si”, uma “angústia absoluta e sem remédios”57, constitutiva da consciência
pura, que motiva a fuga da espontaneidade com o objetivo de mascaramento desta mesma
condição. Nesta época, o conceito de má-fé ainda não aparece em seu texto, mas em 1943,
Sartre diz claramente que a reflexão impura é de má-fé 58, no sentido de que ela é uma decisão

53 EN, p. 195.
54 EN, p. 195.
55 Cf. EN, p. 190; p. 195.
56 TE, p. 129.
57 Ibid.
58 EN, p. 196 . Ver também: CPM p. 18-19.
!352

da consciência de tomar-se como objeto, embora nesse caso seja através de um voltar sobre si
reflexivo e não um fazer-se de má-fé pré-reflexivo. Para compreendermos rigorosamente as
consequências deste tipo de decisão, devemos passar então à estrutura reflexiva para em
seguida voltarmos à motivação.
No contexto de La Transcendance de l’Ego, como comentamos brevemente em outro
capítulo, os dois tipos de reflexão são caracterizados no quadro da temporalidade
instantaneísta: as duas reflexões apreendem os mesmos dados de consciência, mas uma -
impura - vai além da vivência atual e visa a um objeto transcendente através da consciência
refletida59. Em L’Être et le Néant não se admite mais a ideia de apreensão de um instante
(veremos adiante as características do modo ek-stático da reflexão), mas a reflexão impura
continua sendo um movimento de intencionar um objeto através da consciência refletida.
Outra mudança significativa entre os textos, também já comentada acima, diz respeito à
própria estrutura da pré-reflexão como “jogo de reflexos”, o que traz uma conceitualização
mais refinada do fenômeno reflexivo. Vejamos esta modificação estrutural em detalhes.
Sartre caracteriza em 1943 o cogito pré-reflexivo como uma díade reflexo-refletidor,
na qual cada termo encontra-se separado e unido ao outro, o que vimos ser um esboço de
dualidade na unidade. Do mesmo modo, a reflexão se estrutura por uma díade - não mais
reflexo-refletidor (reflet-reflétant), mas reflexivo-refletido (réflexif-réfléchi) - que possui a
mesma característica de dualidade na unidade, embora num segundo grau. Ocorre então que
ao fazer-se reflexivo - pois se trata de um ato motivado do para-si - esta distância de nada
(néant) entre os termos da díade pré-reflexiva originária aumenta sem, no entanto, separá-los
efetivamente. Em outros termos, o para-si que até então era consciência (de) si enquanto
consciência posicional dos objetos na irreflexão volta-se para si a fim de posicionar-se e
tomar-se como objeto, de modo a esticar a distância de nada da primeira estrutura reflexo-
refletidor60. O que antes era dualidade evanescente, onde os termos “avaient une telle
incapacité à se présenter séparément […] que chaque terme, en se posant pour l’autre devenait
l’autre” 61, agora é quase-alteridade, embora nada (rien), de fato, os separe. Sartre adverte em
seguida que não devemos pensar esta mudança como sendo um surgimento de uma

59 Cf. TE, p. 110.


60 Visto que “ni le réflexif ni le réfléchi ne peuvent sécréter ce néant séparateur, sinon la réflexion serait un pour-
soi autonome venant se braquer sur le réfléchi, ce qui serait supposer une négation d’extériorité comme condition
préalable d’une négation d’intériorité. Il ne saurait y avoir de réflexion si elle n’est pas tout entière un être, un
être qui a à être son propre néant”. EN, p. 337-338.
61 EN, p. 337.
!353

consciência nova, independente da pré-reflexiva, dado que a reflexão é uma modificação


intraestrutural, a partir de uma “néantisation plus poussé”62 que a nadificação de si original.
Quanto a este tipo de modificação, Sartre se apoia novamente na ideia husserliana traduzida
em seus termos de que o olhar reflexivo altera a “consciência olhada”. Podemos dizer que a
consciência reflexiva, ao direcionar seu “olhar” tético para a consciência refletida, introduz
um caráter de assombramento nesta estrutura na medida em que o refletido “se sait regardé; il
ne saurait mieux se comparer, pour user d’une image sensible, qu’à un homme qui écrit,
courbé sur une table et qui, tout en écrivant, sait qu’il est observé par quelqu’un qui se tient
derrière lui”63. Se a consciência existe para um testemunho desde a pré-reflexão, neste
momento reflexivo todas as estruturas anteriores encontram-se potencializadas: a consciência
adquire um esboço de um lado de fora de modo que se intensifica a tensão entre unidade e
separação. Esta intensificação é dada pela tentativa do para-si de obter um conhecimento de
si, de posicionar-se como objeto sem, no entanto, ser capaz de efetuar completamente esta
operação. Isto porque, se por um lado é necessário que a consciência reflexiva seja a refletida,
por outro, não pode haver uma identificação entre estas duas consciências a ponto de suprimir
a estrutura reflexiva: “la réflexion exige, si elle doit être évidence apodictique, que le réflexif
soit le réfléchi. Mais, dans la mesure où elle est connaissance, il faut que le réfléchi soit objet
pour le réflexif, ce qui implique séparation d’être. Ainsi faut-il à la fois que le réflexif soit et
ne soit pas réfléchi” 64.
A motivação do fazer-se objeto de conhecimento para si pode ser compreendida no
quadro maior da ontologia sartriana a partir do que Sartre chama também de três ek-stases,
embora neste momento não esteja se referindo ao passado, presente e futuro, mas ao que
poderíamos chamar de “diferentes níveis de nadificação”. A primeira ek-stase define-se pelo
ato ontológico; enquanto que a segunda consiste precisamente na reflexão (ek-stase reflexiva),
que retoma a primeira através do esforço de substancializá-la ao lançar sobre ela um ponto de
vista objetivador. A terceira é uma negação mais radical que realiza uma separação de fato
entre o para-si e o seu ser-para-outro, na medida em que este não encontra o seu fundamento
na reflexão, mas em outrem: “Pour que la conscience réfléchie soit « vue du dehors », et pour

62 EN, p. 188; p. 337.


63 EN, p. 187. (grifo nosso). Grifamos este aspecto do exemplo de Sartre no intuito de chamar a atenção para um
traço do assombramento que já identificamos anteriormente: o de se saber olhado por um olhar não localizável,
que chega “por detrás”.
64 Ibid.
!354

que la réflexion puisse s’orienter par rapport à elle, il faudrait que le réflexif ne fût pas le
réfléchi, sur le mode de n’être pas ce qu’il n’est pas : cette scissiparité ne sera réalisée que
dans l’existence pour autrui”65. A terceira ek-stase efetiva então uma separação dada por um
“fantôme d’extériorité”66, que vem a realizar aquilo que até então era impossível à reflexão:
ela só podia apreender um “quase-objeto”, o que faz dela “un stade de néantisation
intermédiaire entre l’existence du pour-soi pur et simple et l’existence pour autrui”67. Diante
destes três níveis de nadificação, podemos observar que enquanto a primeira ek-stase se refere
a um desprendimento da identidade do ser em-si que o para-si é, as duas outras mostram, ao
contrário, uma tendência à objetivação (sendo que pela reflexão tal tendência é motivada
próprio para-si, enquanto que pelo olhar do outro ele sofre a objetivação). O que nos interessa
nestas análises é o fato de que a motivação da reflexão - de fazer-se objeto para si - se opõe de
algum modo à estrutura da fuga do em-si contingente do ato ontológico, revelando uma
situação paradoxal. A diferença entre a identidade de base e a identidade desejada reside no
fato de que no ato ontológico o para-si surge como nadificação de seu ser contingente, ao
passo que o projeto se define pela busca de fundamento não somente de sua maneira de ser
mas também de seu ser. A reflexão é então uma “tentative de reprise d’être”, um “deuxième
effort pour se fonder”, com o intuito de fazer da fuga um dado (donné) ao “ramasser en l’unité
d’un regard cette totalité inachevée”, ao “dominer sa propre fuite” 68. Esta motivação estrutural
e pré-reflexiva do para-si como desejo de ser é retomada pela reflexão que, por ser
constituinte de novos objetos, oferece a possibilidade para o para-si de se identificar com o
objeto que ele mesmo produz de modo a realizar o desejo de ser seu próprio fundamento.
Neste contexto, a reflexão adquire um papel privilegiado ao realizar um recuo da consciência
sobre si mesma para se fundamentar não somente como maneira de ser, mas também como ser
total, causa sui e não mais gratuito e contingente. Dito de outro modo, a reflexão surge da
motivação do para-si em recuperar-se, ao colocar-se como objeto para si de maneira a adotar
um ponto de vista a partir de uma distância, de onde ele pode afirmar aquilo que ele é. Por
esta razão, torna-se paradoxal o fenômeno reflexivo, já que ele aumenta ainda mais a distância
a si (já dada na estrutura reflexo-refletidor) na tentativa da recuperação de si, logo, ambição
de suprimir a distância a si. Assim, a reflexão tem a mesma estrutura ontológica do para-si, de

65 EN, p. 190.
66 EN, p. 338.
67 EN, p. 190. (grifo nosso)
68 EN, p. 188-189.
!355

esboço de dualidade na unidade, mas não a mesma significação69. A diferença reside


exatamente na motivação da reflexão, que “consiste en une double tentative simultanée
d’objectivation et d’intériorisation. Etre à soi-même comme l’objet-en-soi dans l’unité
absolue de l’intériorisation”70. Objetivação no sentido de captar-se a si mesmo como se
tomasse um ponto de vista exterior sobre si ao distanciar-se do refletido, e interiorização
correspondendo à recuperação do refletido como em-si na estrutura da própria consciência, a
fim de ser totalmente si. Pode-se perceber a partir disso que, enquanto a presença a si revela-
se como sendo uma “descompressão” de ser, ao introduzir o nada como fuga da contingência,
a reflexão é esforço de recuperação do ser. A estrutura primeira, portanto, impede
ontologicamente a realização da presunção reflexiva. Dado que “nous adhérons trop à nous-
mêmes”71, tal esforço está condenado ao fracasso: “Cet effort, pour être à soi-même son
propre fondement, pour reprendre et dominer sa propre fuite en intériorité, pour être enfin
cette fuite, au lieu de la temporaliser comme fuite qui se fuit, doit aboutir à un échec, et c’est
précisément cet échec qui est la réflexion”72.
Se a reflexão é condenada ao fracasso pela própria estrutura ontológica do para-si,
qual sua razão de ser? Por causa disso ela perde afinal o papel que a enobrece aos olhos de
filósofos como Descartes e Husserl? Sartre parece condenar o para-si a este esforço reflexivo
inútil, mas não atribui à reflexão fracassada todo o papel dado à reflexividade no interior de
sua filosofia. O fracasso, na verdade, conduz à possibilidade da reflexão pura, que não
ambiciona captar-se como objeto e que por isso indica o caminho da filosofia da liberdade
sartriana para uma abrangência ética a partir da ontologia. De todo modo, o projeto encontra-
se de início e na maior parte das vezes, como diria Heidegger, na inautenticidade da busca de
completude, e daí resulta que a reflexão impura ou cúmplice, mesmo sendo tardia a este
movimento primeiro, “participe de l’impureté de l’irréfléchi, puisqu’elle prend naissance dans
l’irréflexion […] Elle est originellement mauvaise foi parce qu’elle ne veut pas voir son
échec” 73, ou ainda: “la réflexion complice n’est que le prolongement de la mauvaise foi qui se
trouve au sein du projet primitif à titre non-thétique” 74. É por esta razão que a reflexão impura

69 EN, p. 187.
70 EN, p. 189.
71 B, p. 79.
72 EN, p. 189.
73 CPM, p. 18.
74 CPM, p. 578.
!356

é cúmplice da tentativa espontânea 75 do para-si de recuperação de seu ser pela objetivação de


si.
Estas últimas notas dos Cahiers, no entanto, podem surpreender o leitor de La
Transcendance de l’Ego na medida em que neste texto Sartre valorizava justamente a pureza
do irrefletido, enquanto que era a reflexão que “envenenava” o campo sem sujeito nem objeto,
ou seja, ela não era caracterizada como sendo uma continuação de uma impureza preexistente.
Nota-se assim uma tendência tardia de conceber a motivação de má-fé como inerente à
dimensão pré-reflexiva, como estrutura mesma do projeto de ser “para-si-em-si” ou causa sui.
Porém, comentamos que já em La Transcendance de l’Ego Sartre falava em fuga da
“fatalidade da espontaneidade” e do papel da constituição psíquica como mascaramento desta
condição original. Esta intuição primeira se desenvolve a ponto do autor falar agora na
impureza do irrefletido. Não vamos com isso concluir, entretanto, que Sartre passa a
introduzir os objetos psíquicos no plano translúcido. Podemos apenas afirmar que, no que diz
respeito à motivação, a reflexão cúmplice visa a constituir seus próprios objetos para com eles
se identificar e poder por esta via realizar a completude desejada pelo seu projeto de ser
original.

Constituição psíquica

O fenômeno reflexivo - pelo qual a consciência, díade fantasma reflexo-refletidor, se


desdobra em consciência reflexiva e refletida -, faz aparecer a estrutura sujeito-objeto na
dimensão da consciência. Tal retorno sobre si faz com que surjam, na verdade, três formas:
duas modalidades de consciência e um fenômeno produzido por ela, a partir da reflexão
impura. As três formas são: 1) a consciência reflexiva 2) a consciência refletida (que se
distingue na unidade de um mesmo ser da consciência reflexiva) e 3) um em-si que o reflexivo
tem de ser “por detrás” do refletido. De modo próximo, mas não idêntico, à descrição de La
Transcendance de l’Ego, a reflexão impura vai além de seus domínios e intenciona um objeto
que ultrapassa as vivências. Neste contexto, tal objeto é “comme la projection dans l’en-soi du
réfléchi-pour-soi”, diz Sartre. Ao invés de captar a consciência refletida como para-si (díade
reflexo-refletidor), a reflexão impura vai além e projeta uma sombra “derrière le réfléchi-

75 “la réflexion impure, [...] est le mouvement réflexif premier et spontané (mais non originel)”. EN, p. 195.
!357

pour-soi”76, que se dá como um tipo especial do modo de ser em-si. Um em-si sui generis,
visto que “son être n’est point d’être mais d’être été, comme le néant”77, o qual Sartre
denomina significativamente de sombra. Se o em-si em geral é o modo de ser do objeto e
possui sua opacidade característica, eis que surge aqui um modo de ser que não é nem para-si
translúcido nem em-si opaco, mas é um “quase-objeto” 78, uma sombra.
Quando o reflexivo toma um ponto de vista sobre o refletido, ele faz aparecer,
portanto, uma sombra do refletido projetada atrás deste como um em-si, que pode ser
qualificado e determinado, embora seja algo que “le langage à peine à nommer”79. O ato
objetivante, de tomar um ponto de vista, aprofunda a distância de nada presente na estrutura
reflexo-refletidor de modo a colocar o refletido como se não fosse o reflexivo. Com isso, a
consciência busca alcançar uma separação de fato na estrutura da díade reflexiva para se
conhecer como objeto, visto que “connaître, c’est se faire autre”80. Esta separação, como
vimos, não é possível na estrutura una da consciência, senão como esboço de dualidade.
Consequentemente, o refletido só pode aparecer também como esboço de objetividade, logo,
como uma sombra de objetividade que, na verdade, não perde sua estrutura reflexo-refletidor,
mas a mantém transformada. Caso o refletido se transmutasse efetivamente em em-si, a
unidade do para-si seria cindida entre para-si e em-si no interior da estrutura do projeto, o que
faria desmoronar toda sua estrutura global temporal, além de substancializá-la. Por esta razão,
o refletido não pode ser transformado em em-si pela reflexão cúmplice, de modo que ocorre
apenas a projeção de uma sombra por detrás dele, a qual aparece como se fosse um em-si. Em
outras palavras, apesar da reflexão cúmplice visar à apreensão do refletido como não sendo o
reflexivo, o primeiro não pode deixar de ser para-si na unidade da consciência, de modo que
somente sua sombra lhe aparece como se não fosse si e por isso que Sartre conclui que “la
réflexion impure est un effort avorté du pour-soi pour être autrui en restant soi”81.
Acrescenta-se a isto que esta sombra de ser é ainda um “corrélatif nécessaire et
constant de la réflexion impure, que le psychologue étudie sous le nom de fait psychique” 82.
Os fatos, na verdade, são sombras, e estas possuem ainda uma peculiaridade: elas retêm “les

76 EN, p. 195.
77 Ibid.
78 EN, p. 190.
79 EN, p. 202.
80 EN, p. 190.
81 EN, p. 196.
82 Ibid.
!358

caractères du réfléchi réel, mais dégradés en en-soi ” 83. Assim, no fenômeno reflexivo há
projeção de objetos virtuais a partir do refletido, movimento que faz com que todas as
estruturas imediatas deste último encontrem-se degradas em em-si. O mesmo vale para o
modo da temporalidade ek-stática original que se encontra degradada em temporalidade
psíquica. As três dimensões ek-státicas da temporalização do para-si - passado, presente e
futuro - são agora apreendidas sob o modo de ser do em-si, tal como eram concebidas no
instantaneísmo dos primeiros textos sartrianos: uma sucessão de “agoras” isolados, de modo
que “la cohésion intime du psychique n’est rien autre que l’unité d’être du pour-soi
hypostasiée dans l’en-soi”84, pois “l’unité ek-statique se morcelle en une infinité de
« maintenant »”85 e assim “ils sont dans la tranquille indifférence de la juxtaposition” 86. A
sombra em-si do refletido que é o objeto psíquico possui então suas estruturas temporais
degradadas, isto é, há um presente, um passado e um futuro do refletido que sofrem a
perturbação da objetificação. As três ek-stases degradadas se encontram, no entanto, sob o
privilégio do passado, modo típico de objetivação: “Le réflexif projette un psychique pourvu
des trois dimensions temporelles, mais il constitue ces trois dimensions uniquement avec ce
que le réfléchi était”87 . Com isso os objetos psíquicos se dão à reflexão como “já feitos”, “já
estando lá”, como uma “totalité achevée et probable”88 e não em seu caráter de constituído.
Não obstante, os objetos psíquicos povoam permanentemente uma temporalidade particular
que se dá, por sua vez, como duração. Tal temporalidade fornece ao para-si um tipo de
“permanência” no tempo que não vem de um modo de ser substancial - visto que ele se
caracteriza por ser negação da identidade -, mas provém de sua reflexão sobre si. Segue-se
que com o privilégio da reflexão cúmplice em nossa vivência mais cotidiana, o que captamos
frequentemente é justamente a duração psíquica que acontece no interior do tempo do mundo
como tempo universal. Dito de outro modo, a temporalização do para-si é projetada no mundo
onde há um Eu que dura em meio às coisas, no contexto do tempo dos relógios, nomeado pela
linguagem. Tomando a si como uma mesmidade que dura, o para-si em sua vida cotidiana se
resume a um ser que apenas realiza uma trajetória no interior do tempo do mundo e a
temporalidade psíquica, assim como a temporalidade universal, é uma temporalidade

83 EN, p. 197.
84 EN, p. 201.
85 EN, p. 202.
86 EN, p. 200.
87 Ibid.
88 Ibid.
!359

fantasma, pois é projeção degradada da temporalidade originária. A temporalidade psíquica


derivada adquire assim uma espécie de permanência na vida reflexiva do para-si, como um
datum inerte que Sartre equipara à duração explicitada por Bergson que é “multiplicidade de
interpenetração”89. Desde La Transcendance de l’Ego, Sartre considera a duração bergsoniana
como “projeção degradada da interioridade” - como se a interioridade fosse vista de fora -, o
que caracterizaria uma relação de indistinção entre o Ego e a consciência 90. Nesta duração,
que é a psíquica em nosso contexto, só pode haver interpenetração entre formas estruturadas
que se relacionam passivamente “sur le mode de « l’ayant-été », et qui s’influencent à
distance les unes les autres” 91. Esta duração acontece por sucessões de formas organizadas
que constituem “le tissu concret d’unités psychiques d’écoulement”92, que é justamente a vida
psíquica na filosofia sartriana, modo oposto da historicidade própria à ipseidade.

Um psiquismo espectral

Desde que a reflexão impura projeta sombras por detrás do refletido, diz Sartre, “un
monde entier apparaît, qui peuple cette temporalité. Ce monde, présence virtuelle [...] il est
« mon ombre », il est ce qui se découvre à moi quand je veux me voir”93. Resta-nos entender o
estatuto ontológico deste “mundo virtual”, deste plano de sombras que é fantasmático, mas
não por isso uma ilusão94. Dissemos anteriormente que ele evidencia a espectralidade de
forma exemplar e agora devemos compreender o porquê desta afirmação.
O psiquismo é composto de objetos psíquicos onde “coexistent deux modalités d’être
contradictoires” 95, a partir de uma temporalidade também contraditória com relação a uma
base dualista, visto que “participant à la fois de l’en-soi et du pour-soi, la temporalité
psychique recèle une contradiction qui ne se surmonte pas”96, isto é, trata-se de “un dehors

89 Cf. EN, p. 202; p. 205; TE, p. 118.


90 É interessante notar que, mesmo após a mudança da teoria de temporalidade em sua filosofia, Sartre continua a
fazer este tipo de crítica à temporalidade bergsoniana. Ricœur faz uma crítica semelhante: “Bergson croit le
dépasser [le déterminisme psychologique] en assouplissant et en diluant les états de conscience dans la durée
mais ne remonte jamais à la racine de la naturalisation de la conscience” RICŒUR, P. Philosophie de la volonté
I, p. 98. Embora a seu ver o mais importante na duração bergsoniana é o fato dela fazer a descrição pura sair da
instantaneidade, concepção temporal que consiste justamente na ilusão de Sartre em La Transcendance de l’Ego:
“Bergson nous a enseigné que la durée est la vie même de notre liberté”. Ibid., p. 99.
91 EN, p. 203.
92 EN, p. 193.
93 EN, p. 205.
94 “Nous ne saurions appeler illusion cette durée psychique” EN, p. 194.
95 EN, p. 201.
96 EN, p. 202.
!360

esquissé dans l’immanence”97. Nem translúcido, nem opaco, o plano das sombras possui suas
características próprias de doação ao olhar reflexivo cúmplice. O espectral não é uma ilusão,
mas um modo concreto de ser dos objetos psíquicos - os quais “quoique virtuels, ne sont pas
des abstraits”98 - de modo que “ce monde fantôme existe comme situation réelle du pour-
soi”99. O caráter de assombramento neste momento não é contudo tão explícito, pois Sartre
não explicita se estes objetos assombram de fato o plano translúcido pré-reflexivo para-si.
Porém, consideramos ser muito importante compreender qual é a relação entre o para-si e suas
próprias sombras e desde já nos chama a atenção a descrição de que tais objetos estão
presentes ao para-si como “une sorte de visitation”100. Neste contexto, é difícil pensar que
tratar-se-ia de uma relação de indiferença, na medida em que as sombras assombram o para-si
como miragem e promessa de autofundamento. Além do que, elas estão presentes como um
“cortège permanent”101 e cotidiano - através ainda de uma temporalidade que é “un être
virtuel dont l’écoulement fantôme ne cesse d’accompagner la temporalisation ek-statique du
pour-soi”102 -, desde que ocorra o fazer-se reflexivo.
Apreender o modo de aparição do psiquismo é tomá-lo como o plano das sombras e
não como fatos naturalizados. A investigação deste plano, portanto, deve seguir seu caráter de
constituído e compreender o modo de aparição dos fenômenos psíquicos. Sendo o psíquico
um plano contraditório para uma divisão rígida entre para-si e em-si, devemos apreendê-lo a
partir de suas contradições mesmas e não como uma ilusão que deve ser descartada ao longo
da investigação; se o mundo psíquico existe como situação constante do para-si, é de suma
importância descrever seus modos de aparição na vida cotidiana do sujeito. Tal relevância do
papel do psíquico na vida cotidiana se deixa notar ainda quando Sartre diz que a
temporalidade psíquica “apparaît à la fois comme incompatible avec le mode d’être de notre
être et comme une réalité intersubjective, objet de science, but des actions humaines” 103, e
também que “c’est au niveau du fait psychique que s’établissent les rapports concrets entre les
hommes, revendications, jalousies, rancunes, suggestions, luttes, ruses, etc.”104. Assim, para
Sartre, o psíquico diz respeito a uma realidade intersubjetiva e ele é ainda o objeto da

97 EN, p. 193.
98 Ibid.
99 EN, p. 205.
100 EN, p. 193.
101 EN, p. 198.
102 EN, p. 205.
103 EN, p. 194.
104 Ibid.
!361

psicologia. Esta ciência, por sua vez, ao partir da fenomenologia husserliana via Sartre, pode
ter em vista a realidade espectral do psíquico de maneira a abrir mão de pressupostos
naturalistas - os quais estão na base de uma interpretação substancial - ao reorientar seu
trabalho e pesquisa. O tipo de interpretação substancialista do psíquico tem como
consequência uma análise mecanicista da relação de tais objetos entre si, que agiriam
conforme leis gerais (como a de causa e efeito, por exemplo), o que para Sartre é o modelo de
uma “psicologia do inerte” e não fenomenológica. A nosso ver, se o psíquico é o objeto da
psicologia e se este plano é espectral, o psicólogo que parte da fenomenologia - sartriana -
deve se ater às características justamente espectrais deste plano ontológico. Dito de outro
modo, o psicólogo estudará o fato psíquico como sombra projetada da reflexão e não como
fato em-si substancial e, com isso, a psicologia se dirige à exterioridade da sombra com
relação à consciência que a produz, abrindo mão de considerar a reflexão como um tipo de
“introspecção” (como uma forma de aceder à interioridade) e, do mesmo modo, das
interpretações mecanicistas. Se os objetos psíquicos são sombras, faz-se necessário outro
modo de interpretação da relação entre eles a partir da maneira pela qual eles aparecem ao
olhar reflexivo cúmplice, isto é, se os objetos podem aparecer como fatos naturais à
consciência reflexiva, isto não significa que eles efetivamente o são. Cabe à reflexão
fenomenológica mostrar este “se revelar como”, esta maneira também “contraditória” - que
identificamos como espectral - de relação entre objetos também espectrais. Estas relações de
tipo especial, “étranges relations presque interhumaines”105, Sartre denomina de
irracionalidade mágica. Enquanto que a “interprétation mécaniste du psychique qui, sans être
plus intelligible, déformerait complètement sa nature” 106, a compreensão das relações entre os
objetos como mágicas revela, ao mesmo tempo, o caráter de sombra projetada de tais objetos
e o modo de relação entre eles tal como se apresentam à reflexão. A partir de então, “le
psychologue doit décrire ces liens irrationnels et les prendre comme une donnée première du
monde psychique”107 . O modo mágico de relações entre os espectros é próprio a este tipo de
realidade virtual, ele define tipos de relações que se dão no “écoulement fantôme” da duração
psíquica. O caráter mágico é o que permite compreender as especificidades do psíquico na
medida em que se trata de uma “psychè striée, organisée, dynamique : malléable et perméable

105 EN, p. 204.


106 Ibid.
107 EN, p. 205.
!362

dans ses couches de constitution les plus fraîches, figée dans ses couches plus anciennes” 108.
Segundo J.-M. Mouillie, “distinguer conscience et vie psychique ne ramène pas celle-ci au
déterminisme - fût-il déterminisme spécial. Il y a refonte incessante, réorganisation dans de
nouvelles synthèses”109.
Para compreendermos os modos de relações mágicas, devemos passar aos tipos de
objetos psíquicos que, desde La Transcendance de l’Ego, Sartre definiu como sendo os
estados, as ações e as qualidades, que encontram-se unificados no Ego. Tais objetos são
transcendentes para a consciência e constituem a trama da vida psíquica com a qual ela tem de
se relacionar. O texto mais rico a este respeito é sem dúvida La Transcendance de l’Ego, cujas
análises sobre o psíquico continuam sendo válidas ao longo do percurso filosófico sartriano,
apesar das diferenças que já demarcamos acima.
Para Sartre, o estado é a unidade transcendente das vivências da consciência. Como
tal ele é objeto de uma intuição concreta, isto é, ele é “présent devant le regard de la
conscience réflexive, il est réel”110. O estado é formado por uma espécie de substancialização
dos sentimentos, os quais adquirem uma forma inerte e passiva, podendo ser nomeados, como
o amor e a raiva, por exemplo. Em La Transcendance de l’Ego, Sartre faz uma distinção entre
os estados e as vivências, as quais são posteriormente unificadas pela reflexão impura,
compondo os estados. Também no Esquisse d’une théorie des émotions, Sartre comenta a
diferença entre a vivência emocionada e os estados, acrescentando que o erro dos psicólogos é
justamente a confusão entre eles, já que enquanto as emoções se dão como uma maneira da
consciência irrefletida se relacionar com o mundo, os estados são produtos reflexivos. Neste
tipo de constituição, ocorre que a consciência reflexiva cúmplice unifica as diversas vivências
irrefletidas num estado, o qual, por sua vez, adquire permanência e vai além das próprias
vivências, embora apareça através delas. Se o estado adquire permanência, isto ocorre
justamente porque, a partir desta constituição de um objeto, a consciência realiza uma cisão
entre ser e aparecer, de modo que o estado se dá como “continuant d’être même lorsque je
suis absorbé dans d’autres occupations et qu’aucune conscience ne la révèle”111. Isto significa

108 MOUILLIE, J.-M. Sartre, p. 67.


109 Ibid.
110 TE, p. 108. Consideramos que esta afirmação de Sartre retira o caráter propriamente espectral do estado. No

intuito de mostrar que não se trata de uma ilusão, o autor busca acentuar sua realidade e a possibilidade dele ser
apreendido pela consciência reflexiva. Entretanto, como o amor ou a raiva, por exemplo, podem se apresentar de
maneira a serem descritos pela reflexão? Parece-nos que a dificuldade que aí se apresenta se dá justamente pelo
modo de presença que é de algum modo indescritível, próprio à espectralidade.
111 TE, p. 109.
!363

que há um “futuro” do estado, que é na verdade uma forma de “appréhender le mouvement de


la futurition comme passéification en puissance”112. François Rouger esclarece bem este
ponto ao mostrar que o “futuro” do estado é aquilo que faz com que o sentimento apareça
sempre como “já dado”, ou seja, “son futur [de l’état] lui appartient donc essentiellement dans
la mesure où l’état, débordant infiniment les données apodictiques de la réflexion pure,
gouverne et prédétermine un certain avenir”113. Em L’Être et le Néant, Sartre exemplifica esta
ideia da seguinte maneira: “après l’action de Pierre et le ressentiment que j’en ai éprouvé, ma
haine survit comme une réalité actuelle, bien que ma pensée soit présentement occupée d’un
autre objet”114. Assim, é possível pensar a relação da consciência com um estado como algo
que é dela, mas que a atinge de fora, como quando alguém afirma: “é a minha raiva que
voltou” ou “é a minha crise do meio-dia”. Na visão de Sartre, esta “autonomia” do estado com
relação às vivências é o que motiva a concepção de luta sentimentos versus moral, tão
frequentemente retratada na literatura, especialmente em Balzac e Proust. Este último, em
particular, realiza ainda uma decomposição intelectualista dos sentimentos de tal modo que se
poderia pensar em uma espécie de “química” psíquica, reduzindo o psíquico a átomos
elementares que se combinam formando compostos, como se uns pudessem agir sobre outros.
Na lida cotidiana de maneira geral, também não é incomum esta visão de que “os ciúmes
diminuíram o amor” e o efeito disso foi “aumentar a raiva”. Mas, para Sartre, esta forma de
aparecer do psíquico é típica exatamente da constituição cúmplice, mais especificamente, da
irracionalidade mágica. A posição semelhante que se dá na lida natural do senso comum, na
literatura intelectualista e na psicologia não fenomenológica, é a de não compreensão da
relação de constituição dos estados a partir das vivências. Esta posição se atém assim,
ingenuamente, à forma como o estado aparece à consciência reflexiva, que é a do fato natural,
enquanto que ocorre, na realidade, uma inversão da relação de constituição que faz com que o
este se apresente como fonte ou produtor de emoções. Em outras palavras, há um
mascaramento do movimento de inversão quando se apreende os acontecimentos temporais da
vida psíquica de modo que o estado - posterior às vivências, já que unificação das mesmas -,
aparece como sendo seu produtor. Na lida natural da vida psíquica, portanto, captamos o
inverso da ordem ontológica, uma vez que apreendemos as vivências como se emanassem dos

112 ROUGER, F. Le monde et le moi, p. 85.


113 Ibid., p. 88.
114 EN, p. 197.
!364

estados. É o que ocorre quando dizemos, por exemplo, que “minha irritação provém da minha
crise habitual”. Este tipo de interpretação causal, para Sartre, se dá sobre um fundo de
irracionalidade total e diante disso “il faut renoncer à réduire l’irrationnel de la causalité
psychique : cette causalité est la dégradation en magique, dans un en-soi qui est ce qu’il est à
sa place, d’un pour-soi ek-statique qui est son être à distance de soi. L’action magique à
distance et par influence est le résultat nécessaire de ce relâchement des liens d’être.” 115
Do mesmo modo, as qualidades aparecem na lida natural como atualizações de
potencialidades inerentes do sujeito, mascarando o caráter de indeterminação do para-si.
Como o próprio nome indica, sua função é a de qualificar reflexivamente a si mesmo a partir
da apreensão dos estados como provenientes de uma “disposição psíquica”. A título de
exemplo, podemos dizer “sou rancoroso” ou “sou capaz de odiar” com base na experiência
em relação a diversos estados como ódio e raiva. Em La Transcendance de l’Ego, Sartre
coloca as qualidades como sendo um intermediário entre os estados e as ações, dado que seu
grau de virtualidade é mais evidente. Isto porque ela aparece como uma potencialidade (e não
como uma possibilidade) que pode ou não ser atualizada, mas nem por isso deixa de ser um
objeto psíquico. A participação da qualidade na composição da trama psíquica é então
facultativa, dado que a qualidade só existe ao “se atualizar” em estados e ações, enquanto que
estes não possuem esta dependência essencial. Sartre define em La Transcendance de l’Ego
estes tipos de “ser em potência” como sendo “les défauts, les vertus, les goûts, les talents, les
tendances, les instincts, etc.”116, para concluir em seguida, sem maiores explicações, que a
influência de ideias preconcebidas e de fatores sociais é neste caso preponderante. Somente
em L’Être et le Néant ele acrescenta, embora também de forma muito breve, um tipo de
qualidade que tem a história pessoal por origem, como as características que são adquiridas
com o tempo, que são os hábitos117.
Além disso, as ações podem ser também objetos transcendentes para a consciência. No
entanto, não se trata aqui da ação irrefletida enquanto projeto de ser-no-mundo, mas sim da
ação orquestrada, sob a forma de um empreendimento que demanda tempo, momentos. A
reflexão impura apreende neste caso uma gama de consciências ativas sob a forma de uma

115EN, p. 204-205.
116TE, p. 113.
117Cf. EN, p. 197. Sartre acrescenta ainda um tipo intermediário entre estados e qualidades, mas a este respeito
ele oferece somente um pequeno exemplo que, a nosso ver, não esclarece esta nova forma psíquica. Ver: EN, p.
197-198.
!365

ação total, como “tocar piano”, ou mesmo “construir um argumento”. Em L’Être et le Néant,
como Sartre evidencia o caráter prático de ser-no-mundo do para-si, a distinção entre a ação
pré-reflexiva e o ato psíquico (aqui o autor fala em atos ao invés de ação) torna-se ainda mais
importante. Desde o texto inicial sobre o Ego, Sartre assume que estabelecer uma distinção
entre a consciência ativa e a consciência espontânea parece ser “un des problèmes les plus
difficiles de la phénoménologie” 118. No contexto de sua ontologia, o ato mantém as mesmas
características das ações nas descrições anteriores, mas de modo a ressaltar esta diferença: o
ato psíquico não é equivalente ao projeto de ser do para-si rumo às suas possibilidades, ele se
apresenta como “la face objective du rapport du pour-soi avec le monde”119.
Atos, qualidades e estados são os objetos que compõem a psychè sartriana. Veremos a
seguir que eles encontram unidade no Ego psíquico, o qual, por sua vez, aparece ao olhar
cúmplice como produtor de tais objetos.
Uma última observação sobre o psiquismo antes de nos concentrarmos na
especificidade do papel do Ego psíquico: qual é afinal a diferença entre La Transcendance de
l’Ego e L’Être et le Néant a respeito dos objetos psíquicos, já que houve uma mudança da
teoria do tempo em Sartre? A este respeito, é possível afirmar em primeiro lugar que a
temporalidade instantaneísta inicial é agora atribuída à temporalidade psíquica. Com efeito,
Sartre já falava em duração psíquica anteriormente, tanto que a crítica à substancialidade da
multiplicidade de interpenetração da duração em Bergson permanece. Mas neste momento
soma-se a esta crítica o caráter degradado e mágico do instantaneísmo psíquico. De todo
modo a questão é bem sutil, dado que Sartre mantém a ideia de que a consciência reflexiva
cúmplice visa um objeto através da consciência refletida. Mas, o importante a ser ressaltado é
que, neste momento posterior, o objeto psíquico não é simplesmente descrito como opaco em
referência às coisas do mundo, ele agora é caracterizado como sombra. Além disso, o
refletido, não sendo mais instantâneo, é ek-stático. Ocorre então que a reflexão impura, ao
projetar sua sombra, projeta do mesmo modo as características originais ek-státicas agora
degradas em em-si, como podemos observar nesta afirmação sobre o futuro: “l’ombre projetée
du pour-soi comme pour-soi réfléchi possède naturellement un futur dégradé en en-soi et qui
fait corps avec elle en déterminant son sens” 120. Há, portanto, um presente, um passado e um

118 TE, p. 112.


119 EN, p. 198.
120 EN, p. 199.
!366

futuro do objeto psíquico, degradados das ek-stases originárias, que compõem sua aparência
de substancialidade e que sustentam sua condição de permanência no tempo.

O Ego psíquico

Toda a formação psíquica é um processo de constituição: a reflexão impura constitui


seus objetos e estes, por sua vez, aparecem de uma forma especial ao olhar reflexivo.
Devemos compreender agora de que maneira a constituição psíquica se concentra na figura do
Ego e qual o modo particular de doação deste tipo de objeto à reflexão impura, ou seja, de que
maneira extremamente peculiar o ego psíquico aparece àquele que reflete sobre si.
A tese de La Transcendance de l’Ego é forte e inovadora: “Nous voudrions montrer
ici, dit Sartre, que l’Ego n’est ni formellement ni matériellement dans la conscience : il est
dehors, dans le monde; c’est un être du monde, comme l’Ego d’autrui”121. Dissemos
anteriormente que, apesar das diferenças entre este primeiro texto e L’Être et le Néant, esta
tese específica sobre o Ego se mantém. Nesta última obra, Sartre se refere ao seu artigo
anterior dando como já explicitada a questão e acrescentando apenas o seu novo vocabulário:
o Ego é um em-si122. Todavia, há uma espécie de imprecisão nestas duas afirmações, dado que
se o Ego é simplesmente definido como sendo um “être du monde”, ou um “em-si”, não é
possível compreender precisamente a natureza peculiar de seu modo de ser, que em nada tem
a ver com um objeto percebido, por exemplo. Sartre diz mais adiante em seu artigo de 1934
que o Eu (Je) é um “objet nouveau” que “[n’est] ni sur le même plan que la conscience
irréfléchie […], ni sur le même plan que l’objet de la conscience irréfléchie (chaise, etc.)” 123.
Diferentemente dos objetos perceptivos, o Ego é um objeto “isolado”, “qui ne paraît qu’à la
réflexion et qui, de ce fait, est radicalement tranché du Monde. Il ne vit pas sur le même
plan”124. Levando em conta estas diferenças, pode-se observar o caráter problemático de
considerar o Ego simplesmente como um objeto do mundo, razão pela qual devemos
evidenciar a peculiaridade de seu modo de ser.
Uma primeira característica que podemos ressaltar do Ego é a de que ele é o centro de
unidade e de origem dos objetos psíquicos, a saber, dos estados e ações e, facultativamente,

121 TE, p. 93.


122 Cf. EN, p. 139.
123 TE, p. 104.
124 TE, p. 119.
!367

das qualidades. Enquanto os estados são formados como unidade de vivências e as ações
como unidade de momentos de ação, o Ego é unidade daquilo que já se encontra unificado, o
que significa que nele a unificação incide sobre outros objetos psíquicos e não sobre as
vivências. No entanto, apesar do Ego ser constituído pela reflexão cúmplice, este não é o
modo pelo qual ele aparece ao olhar reflexivo, o qual o apreende como produtor e não como
produto. O Ego aparece assim, diz Sartre, como aquele que produz os objetos psíquicos, num
tipo de “produção poética”125 mágica, assim como a emanação era atribuída aos estados e a
atualização às qualidades. O que acontece é que no modo de apreensão do Ego ocorre, mais
uma vez, uma inversão da ordem de constituição, a qual corresponde ao processo de
objetificação e unificação das vivências em estados e ações até por fim serem atribuídas ao
Ego. Este processo de objetificação e unificação, que vai encontrar seu auge no Ego, não faz
dele posteriormente um simples “suporte” abstrato de seus produtos. O Ego é criador ao
mesmo tempo em que se encontra “comprometido” com seus produtos126, de modo que ele
sofre uma dimensão de passividade, no sentido de que ele “est susceptible d’être affecté”; “[il]
subit le choc en retour de ce qu’il produit”127. Sendo o Ego na verdade composto pelos
objetos psíquicos que aparecem como dependentes dele, ele é constantemente feito e refeito
pelas novas unificações e pelo efeito de seus produtos. Por isso, ressalta De Coorebyter, “son
mode de composition annonce son incessante recomposition”128 e “son identité est
récapitulative donc précaire, incessamment révisée, soumise à la loi du devenir” 129.
Através da inversão na ordem de constituição, a consciência projeta sua
espontaneidade no Ego, como se fosse ele o polo de constituição e não a própria reflexão
impura. É o que Sartre chama de “pseudo-espontaneidade” do Ego, que é apenas uma
aparência na medida em que a consciência “projette sa propre spontanéité dans l’objet Ego
pour lui conférer le pouvoir créateur qui lui est absolument nécessaire. Seulement cette
spontanéité, représentée et hypostasiée dans un objet, devient une spontanéité bâtarde et

125 TE, p. 116. No sentido da poiesis grega.


126 Sartre evidencia ainda que o Ego é psíquico e não psicofísico, o qual seria “un enrichissement synthétique de
l’Ego psychique, qui peut fort bien (et sans réduction d’aucune sorte) exister à l’état libre” TE, p. 114. V. de
Coorebyter ressalta a este respeito a diferença entre as posições de Sartre e Husserl: “là où Husserl juge que c’est
par son entrelacement au corps que la conscience devient conscience humaine et animale inscrite dans l’ordre de
la nature, dans le real, Sartre récuse cette clé d’explication qui ne respecte pas suffisamment le mode de donation
du psychique et cherche le motif de la dégradation des vécus en quasi-nature dans le mode de constitution du
psychique lui-même”. DE COOREBYTER, V. Notes, p. 189, n. 61.
127 TE, p. 119.
128 DE COOREBYTER, V. Sartre face à la phénoménologie, p. 452.
129 Ibid., p. 453.
!368

dégradée, qui conserve magiquement sa puissance créatrice tout en devenant passive”130. Em


suma, a partir desta projeção da espontaneidade da consciência no Ego, ele “apparaît à la
réflexion comme un objet transcendant réalisant la synthèse permanente du psychique”131 , por
via de uma “spontanéité fantomale”132.
O caráter fantasmático e mágico da espontaneidade do Ego nos indica assim sua
natureza peculiar, que é a de uma “synthèse irrationnelle d’activité et de passivité, […]
synthèse d’intériorité et de transcendance” 133. Para Rouger, o Ego é como um “monstre
métaphysique. Impossible synthèse de la transcendance et de l’immanence, de la spontanéité
et de la passivité, de l’opacité et de la présence à soi”134. Tal caracterização mostra o problema
de considerá-lo simplesmente como um em-si, o qual em sua definição mais básica não
comporta negatividade, logo, não poderia ser caracterizado por sínteses deste tipo. No
contexto de L’Être et le Néant, portanto, este “objeto transcendente” que é o Ego desde La
Transcendance de l’Ego, é uma sombra e seu modo de ser é, para nós, espectral. Como
evidenciamos a respeito dos espectros, este tipo particular de ser não se reduz a uma fantasia,
ou a algo irreal. Se o Ego é uma “mirage perpétuellement décevant”135 ou uma “fiction
éminemment rassurante”136, é somente em seu modo mesmo intermediário entre realidade e
irrealidade. Sartre procura mostrar o caráter de realidade quando diz que o Ego é duvidoso
mas não hipotético, isto é, podemos nos enganar a seu respeito, mas somente na medida em
que “le Je é un existant”137. É o que mostra De Coorebyter em suas reflexões sobre a
“modernidade do Ego”. Para o autor, esta espécie de anúncio da morte do sujeito feito por
Sartre, “n’enlève donc rien à sa concrétude : si je dois vivre avec cette identité seconde,
soumise au doute et incessamment recomposée, c’est dans la mesure exacte où elle n’a rien
d’“hypothétique”, où il n’est pas possible de ne pas se reconnaître un moi psychique”138. Não
se trata portanto de uma condenação do Ego “qui serait relégué parmi les choses comme s’il
s’agissait là d’un signe d’infamie contrastant avec le triomphe de la conscience

130 TE, p. 118-119.


131 TE, p. 114.
132 TE, p. 119.
133 Ibid.
134 ROUGER, F. Le monde et le moi, p. 72.
135 TE, p. 122.
136 EN, p. 77.
137 TE, p. 104.
138 DE COOREBYTER, V. Sartre face à la phénoménologie, p. 465. A este respeito, Sartre diz, por exemplo: “Je

ne dit pas ‘Peut-être que j’ai un ego’, comme je peux me dire ‘Peut-être que je hais Pierre’” TE, p. 116.
!369

phénoménologique ou absolue”139 , diz ainda De Coorebyter, mas sim de uma maneira de


apreender o Ego pela forma com a qual ele se apresenta. A nosso ver, apreender ao mesmo
tempo esta natureza fantasmática do Ego e sua concretude e realidade é justamente legitimar
aquilo que é próprio do espectral, e por isso um estudo destes modos de ser que não se
resumem simplesmente às regiões para-si e em-si se faz necessário.
Outra característica a ser ressaltada é a de que a relação da consciência com o Ego,
além desta ilusão retrospectiva, é uma relação distinta daquela que a consciência irrefletida
mantém com os objetos intramundanos, que são aqueles que aparecem como não sendo a
consciência pela negação interna. Este ponto acentua mais uma diferença entre o Ego e os
outros tipos de “seres do mundo”, em contraposição às afirmações iniciais de Sartre. O Ego
aparece à consciência reflexiva como sendo uma interioridade fechada em si mesma e a
consciência que o produz não é indiferente a esta característica. Tudo se passa como se a
consciência reflexiva, ao projetar sombras objetivas por detrás da consciência refletida,
provocasse uma degradação de uma espécie “interioridade” - vivida e nunca contemplada -
própria ao esboço de dualidade na unidade que caracteriza a reflexão. Isto faz com que o Ego
apareça como íntimo, como se ele pertencesse ao para-si140. Mas, na medida em que ele é um
“quase-objeto”, ele é também indistinto, que é o aspecto da interioridade “vista de fora”.
Intimidade e indistinção caracterizam então esta interioridade degradada em sua forma
específica do modo de doação do Ego. São ainda estas características que estão em jogo na
pretensão da reflexão impura ao constituir um Ego, pois, se a consciência não o captasse de
alguma forma como “seu”, não haveria sentido na motivação reflexiva de produzir um objeto
para com ele se identificar e enfim resolver a questão aberta pela contingência. Em outras
palavras, é somente pelo de fato de que o Ego aparece como interioridade degradada que ele
pode funcionar como “miragem” correlativa ao desejo de completude do para-si. Do mesmo
modo, é somente neste sentido que tal ficção pode ser “tranquilizadora”, já que,
diferentemente dos outros objetos do mundo, o Ego aparece à consciência reflexiva como
uma sombra de si que contém a promessa de realização da desejada identidade.

139DE COOREBYTER, V. op.cit., p. 451.


140Há um tipo de aparição de um Eu que Sartre denomina de “Eu-conceito” (Je-concept), que não é o Ego
psíquico reflexivo. Este diz respeito a um conceito vazio de Eu, uma simples forma sintáxica, utilizado em frases
como “é preciso que eu faça isso”, “eu encontrei com um amigo ontem”, etc. O Eu-conceito é o esvaziamento do
Ego ao recair no plano irrefletido fazendo com que ele perca a característica de intimidade. Cf. TE, p. 123.
!370

Outra característica diferencia ainda o Ego dos demais objetos do mundo e reforça a
ideia de que não somente ele não pode ser definido simplesmente como um “objeto” ou um
“em-si” mas, além disso, seu modo de ser é espectral: sua maneira de aparecer é
especialmente fugidia às pretensões do conhecimento. Sartre estabelece uma analogia entre os
modos de aparição do Ego e do mundo - “L’Ego est aux objets psychiques ce que le Monde
est aux choses”141 - no intuito de evidenciar o caráter de “horizonte” deste último, na medida
em que ele ultrapassa e engloba os objetos psíquicos. F. Rouger esclarece o sentido desta
analogia: “En son ordre propre l’Ego, comme le Monde, « se donne » pour assumant un
double rôle de Fond et d’Horizon. A titre de Fond , il est une profondeur inépuisable qui se
déploie et n’en a « jamais fini » de se déployer” 142. Mas o mundo, acrescenta Sartre, aparece
raramente como horizonte das coisas enquanto que o Ego aparece sempre como horizonte dos
estados, no sentido que “chaque état, chaque action se donne comme ne pouvant être sans
abstraction séparée de l’Ego”143. O ponto importante em tal analogia é o de que o Ego aparece
mais como horizonte do que como objeto de uma intuição específica, o que acarreta no fato de
que ele não pode ser conhecido. Como dizia Camus, “si j’essaie de saisir ce moi dont je
m’assure, si j’essaie de le définir et de le résumer, il n’est plus qu’une eau qui coule entre mes
doigts”144.
A impossibilidade de conhecimento deste tipo especial de objeto é o ponto que revela
seu caráter propriamente espectral. Vimos ser próprio do espectro este modo de “presença”
particular não localizável e, portanto, impassível de ser apreendida pela intuição. Ora, tal é o
modo de existência do Ego psíquico, este “fantôme de la transcendance”145 que não se deixa
conhecer já que “une visée directe, ou frontale, de l’Ego, susciterait sa dissolution
radicale”146. Para Sartre, o Ego não somente é fugidio por natureza mas ele possui este modo
de aparição que a nosso ver é próprio do assombramento de um espectro: “En effet, l’Ego
n’apparaît jamais que lorsqu’on ne le regarde pas” 147; o Ego só pode ser pressentido “« du
coin de l’œil »”, por uma visada lateral e, desde que o olhar se dirige para apreendê-lo, “il

141 TE, p. 115.


142 ROUGER, F. Le monde et le moi, p. 54. Embora Rouger acrescente que “la notion de Fond est équivoque et
dangereuse, en ce qu’elle risquerait de suggérer l’idée d’une productivité, même inépuisable, interprétée en ter-
mes de causalité, ou de passage de l’intériorité essentielle à l’extériorité phénoménale”. Ibid.
143 TE, p. 115.
144 CAMUS, A. Le mythe de Sisyphe, p. 36.
145 ROUGER, F., op.cit, p. 87.
146 Ibid., p. 49.
147 TE, p. 122.
!371

s’évanouit”148. É a relação de intimidade do Ego com a consciência que, segundo Sartre,


impede a promessa de autoconhecimento, pois ele é “trop présent pour qu’on puisse prendre
sur lui un point de vue vraiment extérieur. Si l’on se retire pour prendre du champ, il nous
accompagne dans ce recul. Il est infiniment proche et je ne puis en faire le tour”149. Se ele é
demasiado presente, é difícil não admitir um caráter de assombramento do Ego psíquico,
sobretudo pelo fato de que ele contém exatamente a promessa de fornecer ao para-si a
possibilidade de ser seu próprio fundamento. A projeção do para-si de uma sombra de si
encontra-se assim em sintonia com o desejo de ser si, e esta busca de coincidência consigo
mesmo adquire aqui, nas palavras de De Coorebyter, a ideia de perseguição de um fantasma
(fantôme): “tout se passe comme si l’on sautait sur son ombre pour la rejoindre ou la saisir,
l’Ego se déplaçant avec le réflexif comme une doublure invisible et indéchirable mais
incessamment devinée. Cet effort avorté vaut poursuite d’un fantôme; la quasi-intériorité de
l’Ego invite à en profiter pour le connaître mais c’est précisément elle “qui nous barre la
route”150. Finalmente, se como diz J-M. Mouillie, “[L’ego] est “un enjeu: il n’est pas
seulement synonyme d’aliénation et désigne aussi le pôle d’une structuration psychique
nécessaire” 151, há de se considerar o Ego psíquico como a figura principal de assombramento
no plano fantasmático desta “totalité organisée de ces existants qui font un cortège permanent
à la réflexion impure” que é o psíquico.

O corpo psíquico

Se as sombras são projeções degradadas do para-si em em-si, o que ocorre com a


dimensão afetiva original? Vimos anteriormente que o para-si existe seu corpo e que a
afetividade original é a textura da facticidade corporal. Desta vez, ao produzir as sombras, o
para-si projeta do mesmo modo a afetividade original do refletido de modo a degradá-la em
em-si, constituindo o que Sartre denomina de corpo psíquico. Este, no entanto, não se forma
como um “objeto”, mas como “la matière implicite de tous les phénomènes de la psychè” 152.
Sendo assim, o corpo psíquico, apesar de ser constituído pela reflexão cúmplice, não pode, do
mesmo modo que a afetividade original, ser conhecido; o objeto conhecido, ou melhor, o

148 Ibid.
149 TE, p. 121. (grifo nosso)
150 DE COOREBYTER, V. Sartre face à la phénoménologie, p. 515.
151 MOUILLIE, J-M. Sartre, p. 67-68.
152 EN, p. 377. (grifo nosso)
!372

“quase-objeto” “quase-conhecido” é o psíquico, e não tal “matéria implícita”, que é na


verdade um “milieux passif” que faz do objeto psíquico um “objet affectif”153. Sartre descreve
este “meio” ainda em termos de espaço psíquico, não no sentido de uma espacialidade que
comporta medidas e localizações, mas na qualidade de uma tendência própria aos objetos
psíquicos de se dividirem em partes autônomas e exteriores entre si ao mesmo tempo em que
realizam sua coesão mágica, tal como o exemplo da “química dos sentimentos” que expomos
acima. O corpo psíquico é então, segundo Sartre, a substância e a perpétua condição de
possibilidade do psíquico; ele é ainda o que permite que este possa ser nomeado.
Estas últimas análises sobre o psíquico, tendo em vista seu aspecto corporal, nos
auxiliam a identificar uma última particularidade das dimensões de espectralidade e
assombramento do plano das sombras. Como Sartre descreve este último plano como sendo
uma projeção em em-si do refletido, devemos nos perguntar qual a relação entre o para-si e
suas próprias sombras, já que estas não pertencem ao plano translúcido para-si. Neste sentido,
após nossas descrições sobre o psíquico, podemos concluir que devido a característica da
intimidade o para-si não é indiferente às suas sombras, que o assombram como um espectro.
Este modo do assombramento ficou mais claro quando falávamos do Ego como promessa de
completude e autofundamento para o para-si; assombramento possibilitado exatamente pela
ambiguidade de ser e não ser ao mesmo tempo pertencente ao para-si, própria ao Ego. Agora,
se retomarmos o exemplo da dor nos olhos que abordamos anteriormente para falar da
afetividade original, é possível mostrar de forma mais evidente, através da continuação que
Sartre dá a este exemplo, o tipo de relação de assombramento entre o para-si e suas sombras.
Através do exemplo da dor nos olhos, Sartre esclarece como a reflexão cúmplice pode
constituir, através da dor pré-reflexiva pura, um objeto afetivo, que ele diz ser o “mal”.
Levando em conta as conclusões que viemos de apresentar, podemos nos concentrar em
esclarecer o que seria o mal como objeto psíquico e como se dá corpo psíquico como meio
que sustenta este quase-objeto, ambos da ordem da espectralidade. O caráter de
assombramento do mal chama a atenção quando Sartre diz que ele “n’est donc point connu, il
est souffert” e além disso que “le corps, pareillement, se dévoile par le mal et la conscience le
souffre également” 154. De que modo então, nos perguntamos, pode a consciência sofrer o
efeito de suas próprias sombras, de suas próprias projeções? A consciência que existia seu

153 Ibid.
154 EN, p. 377.
!373

corpo como dor nos olhos, vem a realizar, pela reflexão, uma cisão: ela distingue o mal da dor
vivida. A partir de então, o mal ganha uma espécie de autonomia e a assombra: “il vient et
s’en va”155, diz Sartre, que fala ainda de um “animisme du mal : il se donne comme un être
vivant qui a sa forme, sa durée propre, ses habitudes” 156. O mal é um espectro. E isto tanto
pelo seu caráter de sombra, quanto pela maneira pela qual ele assombra o para-si: “il apparaît
et disparaît autrement que les objets spatio-temporels : si je ne vois plus la table c’est que j’ai
détourné la tête ; mais si je ne sens plus mon mal, c’est qu’il « est parti »” 157. Assim, o
assombramento é neste caso a relação íntima entre o para-si e suas próprias sombras, pois
como pode, ao mesmo tempo, o mal encontrar-se “hors de la conscience”158 - visto que é
sombra projetada - e ser dela? Sartre responde a esta questão da seguinte maneira: “le mal est
transcendant mais sans distance. Il est hors de ma conscience, comme totalité synthétique, et
déjà tout près d’être ailleurs, mais d’un autre côté il est en elle, il pénètre en elle, par toutes
ses dentelures, par toutes ses notes, qui sont ma conscience”159. Podemos dizer então que o
mal habita, assombra, a consciência de modo que ela o sofre. O mal é da consciência na
medida em que o psíquico é sombra projetada não no sentido de uma imagem, mas como
corpo psíquico, o que significa que ele é produzido com a própria “matéria translúcida” da
afetividade original. É esta textura que sofre objetivação e sustenta corporalmente toda a
produção psíquica, criando uma dimensão de passividade sofrida pela própria consciência já
que ela não se separa de seus quase-objetos. Sartre resume da seguinte maneira todos estes
pontos:

Au niveau réflexif où nous nous sommes placé, c’est-à-dire avant


l’intervention du pour-autrui, le corps n’est pas explicitement et
thématiquement donné à la conscience. La conscience réflexive est
conscience du mal. Seulement, si le mal a une forme qui lui est propre et un
rythme mélodique qui lui confère une individualité transcendante, il adhère
au pour-soi par sa matière, puisqu’il est dévoilé à travers la douleur et
comme unité de toutes mes douleurs de même types. Il est mien en ce sens
que je lui donne sa matière. Je le saisis comme soutenu et nourri par un
certain milieu passif, dont la passivité est l’exacte projection dans l’en-soi de
la facticité contingente des douleurs et qui est ma passivité160 .

155 EN, p. 376.


156 EN, p. 376. (grifo nosso)
157 EN, p. 375-6. (grifo nosso)
158 EN, p. 375.
159 EN, p. 376. (grifo nosso)
160 EN, p. 377. (grifo nosso)
!374

Tendo em vista estas afirmações, podemos concluir que, pela dimensão do corpo
psíquico, Sartre estabelece o tipo de relação das sombras com o para-si, na medida em que
estas são compostas da própria textura da afetividade original. Com isso, Sartre faz com que o
para-si seja atravessado pelas próprias sombras, de modo a sofrer seus efeitos. Se não fosse
assim, não haveria como compreender a relação íntima do para-si com o seu mal, cuja
frequentação ocorre como uma espécie de visitação. É a camada espectral do corpo psíquico -
“ce milieux [qui] n’est pas saisi pour lui-même […] et pourtant il est là” - que estabelece
finalmente a ligação do para-si reflexivo com suas próprias sombras, as quais, ao ganhar
autonomia, passam a assombrar o próprio plano irrefletido.

b) O assombramento do imaginário.

Após o trabalho crítico realizado em torno das teorias sobre a imagem dos “grandes
sistemas metafísicos” filosóficos desde Descartes e da psicologia experimental em
L’Imagination, Sartre conclui que, por via da fenomenologia de Husserl, “la voie est libre
pour une psychologie phénoménologique de l’image”161. Neste primeiro trabalho, Sartre
anuncia o programa do que virá em seguida em L’Imaginaire: “On doit chercher à constituer
une eidétique de l’image […] [Puis] il faudra passer du certain au probable et demander à
l’expérience ce qu’elle peut nous apprendre sur les images telles qu’elles se présentent dans
une conscience humaine contemporaine”162. Esta segunda obra, publicada em 1940 (quatro
anos após a primeira), consistia, segundo Contat & Rybalka, numa parte da primeira que fora
descartada para fins de publicação163. De fato, é possível notar claramente um tom de
continuidade entre as duas obras, embora, como vimos anteriormente, esta seja a época em
que Sartre reconfigura as bases de sua filosofia164. Certa descontinuidade pode ser entrevista,
entretanto, com relação à parte final de L’Imaginaire, mais precisamente a partir do capítulo
intitulado de “Vida imaginária” e, principalmente, na “Conclusão”. Enquanto que a primeira e

161 I’on, p. 133.


162 I’on, p. 120.
163 CONTAT, M.; RYBALKA, M. Les écrits de Sartre, p. 55.
164 Uma periodização precisa é dada por V. de Coorebyter em DE COOREBYTER, V. De Husserl à Sartre. La

structure intentionnelle de l’image dans L’Imagination et L’Imaginaire. Disponível em < https://


methodos.revues.org/2971>.2012. Acesso em: junho de 2016. O autor ressalta o fato de que a primeira parte de
L’Imaginaire foi publicada em 1938 na Revue de métaphysique et de morale e que, a seu ver, o fato que mais
chama a atenção entre as duas obras é a mudança de posição de Sartre em relação a Husserl; L’Imaginaire
revelando um real afastamento.
!375

segunda parte seguem o programa anunciado em L’Imagination - a tal divisão cartesiano-


husserliana entre “Le certain” e “Le probable” 165 -, as análises finais parecem vir colocar em
questão aquilo que Merleau-Ponty apontava como sendo “le clivage du réel et de
l’imaginaire”166.
No intuito de demonstrar que a imagem não é uma coisa ou uma representação do
sujeito, Sartre descreve a imaginação como um ato intencional que implica uma tese de
irrealidade, diferentemente do ato perceptivo, que posiciona seu objeto como real. Este
esforço o leva a estabelecer uma cisão entre percepção e imaginação, realidade e irrealidade,
reforçada várias vezes ao longo do texto. Trata-se de duas formas distintas de se relacionar
com o mesmo objeto. Tomemos como exemplo a percepção de uma cadeira. Assim como na
teoria dos perfis (Abschattungen) de Husserl, percebemos somente um lado a cada vez, e o
objeto percebido “cadeira” é dado pela multiplicação dos perfis. Na percepção, há observação
e aprendizagem, conclui Sartre. Em seguida podemos fechar os olhos e imaginar a cadeira.
Isto não faz com que a “imagem cadeira” passe a existir na consciência, mas a consciência é
agora relação imaginante com a mesma cadeira da percepção (a qual funciona como suporte
material - analogon - para a imaginação): “que je perçoive ou que j’imagine cette chaise,
l’objet de ma perception et celui de mon image sont identique : c’est cette chaise de paille sur
laquelle je suis assis”167. Segue-se que a imagem não é o objeto da imagem, isto é, não é a
cadeira “real”. A consciência imaginante visa ainda à cadeira, mas em imagem. A imagem é
um ato e constituir um objeto em imagem envolve uma crença distinta da percepção:
enquanto a consciência perceptiva posiciona a cadeira como real, a consciência imaginante
posiciona o objeto em imagem como irreal, e isto pode se dar de quatro formas: como
inexistente, como ausente, como existindo em outro lugar ou como “neutralizado”, isto é, não
o posicionando como existente. Sartre irá percorrer estes diferentes modos ao longo de
L’Imaginaire, mas em todos eles trata-se de uma consciência imaginante que “pose son objet
comme un néant”168, e disto decorre que “la chair de l’objet n’est pas la même dans l’image et
dans la perception”169. Enquanto na percepção havia observação, momentos e aprendizagem,
na imaginação há “quase-observação”: “Ce que je perçois, c’est ce que je sais; l’objet ne

165 Divisão criticada por Merleau-Ponty. Cf. AD, p. 196


166 CF, p. 69.
167 I’re, p. 20-21.
168 I’re, p. 30.
169 I’re, p. 38.
!376

saurait rien apprendre, et l’intuition n’est que du savoir alourdi, dégradé”170 , ou seja, posso
formar uma imagem de um livro, olhar suas linhas e suas frases, “mais je ne lis pas. Et, au
fond, je ne regarde même pas, car je sais déjà ce qui est écrit”171. Esta característica leva
Sartre a identificar um “empobrecimento” próprio à imaginação, devido a uma espécie de
isolamento do mundo (por isso sem aprendizagem), enquanto que na percepção algo só se dá
como uma coisa através de infinitas relações. No “mundo” das imagens “nada acontece”, “pas
une seconde de surprise : l’objet qui se meut n’est pas vivant, il ne précède jamais
l’intention”172. Diferentemente da relação ao psíquico, a consciência neste caso não se
apreende como produto de seus objetos, mas, ao contrário, ela se sabe criadora, “comme une
spontanéité qui produit et conserve l’objet en image”173.
A clivagem entre percepção e imaginação se mantém até a “Conclusão” de
L’Imaginaire174. Em contraposição a esta divisão anterior, no momento final da obra Sartre
define como condição de possibilidade da imaginação o modo essencial da consciência como
negação. A dimensão do nada (néant) adquire aqui um papel fundamental, próprio a esta
época de primeiras elaborações do que virá a ser L’Être et le Néant, razão pela qual o
imaginário ocupa um papel importante nesta ontologia. Ao colocar a estrutura da negação
como condição de possibilidade da imaginação, Sartre chega a afirmar que “l’imagination
[…] s’est dévoilée comme une condition essentielle et transcendantale de la conscience” 175.
Tendo em vista esta última posição, há um contraste entre a postulação de uma clivagem entre
real e imaginário e a decisão final de colocar a imaginação como condição essencial e
transcendental da consciência. Este ponto é evidenciado por Giovannangeli em seu artigo
“Imaginaire, monde, liberté”, em que ele mostra justamente que no final de L’Imaginaire
Sartre “va même renvoyer toute négation à l’imagination”176, o que o leva a concluir que “pas
d’imagination sans négation; mais pas davantage de négation sans imagination”177 . A partir de
considerações sobre o livro Phénoménologie de l’expérience esthétique de Mikel Dufrenne,
Giovannangeli pontua, entre outras coisas, uma distinção entre o aspecto transcendental da

170 I’re, p. 62.


171 I’re, p. 28.
172 I’re, p. 29.
173 I’re, p. 35.
174 “Or, la thèse de la conscience imageante est radicalement différente de la thèse d’une conscience réalisante”.

I’re, p. 346. Este ponto é ainda mencionado em L'Être et le Néant. Cf. EN, p. 298; p. 646.
175 I’re, p. 361.
176 GIOVANNANGELI, D. Imaginaire, monde, liberté. In: BARBARAS, R. (Org.) Sartre: désir et liberté. Paris:

PUF, 2005, p. 42.


177 Ibid.
!377

imaginação, como abertura de um mundo, e da imaginação empírica que viria preencher o


campo aberto pela imaginação transcendental. Para Dufrenne, continua o autor, Sartre
descreve a imaginação empírica enquanto que é a imaginação transcendental que possibilita a
primeira. Através da crítica de Dufrenne a Sartre, Giovannangeli retoma a “Conclusão” de
L’Imaginaire no intuito de demonstrar que neste momento “le lien de l’imagination à la
liberté semble définitivement scellé dès lors que l’imagination se trouve investie d’une
dimension qu’il faut bien dire transcendental, puisqu’elle est identifiée à la conscience elle-
même”178, ou seja, “l’imagination n’est plus le strict contraire de la perception. Elle est ici ce
qui permet à la perception de constituer le réel en monde”179. Este mesmo aspecto é acentuado
por Annabelle Dufourcq no artigo “La vie imaginaire : échec ou réussite ? L'imaginaire et
L’idiot de la famille de Sartre”180. A autora se concentra também no final de L’Imaginaire,
mais especificamente na quarta parte, “La vie imaginaire”, a fim de responder à pergunta: “la
vie imaginaire est-elle l’autre de la vie réelle ou bien la vie réelle comporte-t-elle une
irréductible dimension imaginaire ?”181. A seu ver, se o imaginário se limita a um lugar
periférico da vida, tal concepção tornaria inepta a noção mesma de “vida imaginária”, pois é
esta mesma noção que demonstra certa consistência do imaginário, suficiente a formar este
complexo de experiências, emoções e encontros que poderiam designar uma vida. Seu ponto
consiste então em mostrar, através de extensas análises que englobam desde L’Être et le Néant
até L’Idiot de la famille182, que há uma “irréductible dimension imaginaire de la vie réelle” 183.
Para a autora, em L’Être et le Néant isto pode ser investigado no modo de compreender a
percepção e na dimensão de comédia inerente a todo comportamento do para-si, isto é, que
“l’existence a partie liée avec l’art de la comédie et qu’elle est constituée dans sa chair même
par une certaine absence, un jeu incessant de reflets et de symboles”184 . Com efeito, vimos
anteriormente que é a dimensão de negatividade da consciência que fazia o isto aparecer
como forma sob o fundo de mundo, o que revela a coisa-utensílio correspondente à dimensão
prática do para-si como ser-no-mundo. A nadificação própria ao conhecimento (negação

178 GIOVANNANGELI, D. Imaginaire, monde, liberté, p. 51.


179 Ibid.
180 DUFOURCQ, A. La vie imaginaire : échec ou réussite ? L’imaginaire et L’idiot de la famille de Sartre. Sens

Public, p. 1-44, 2010. Disponível em: http://www.sens-public.org/article.php3?id_article=775. Acesso em: Junho


de 2016.
181 Ibid., p.1.
182 Estudo de Sartre sobre Flaubert, considerado por ele mesmo como uma continuação de L’Imaginaire.
183 DUFOURCQ, A, op. cit., p. 14.
184 Ibid. p. 1. Ver também: p. 14.
!378

interna) implicada no modo mesmo de aparição da coisa percebida, remete à condição de


possibilidade da consciência imaginante na medida em que, diz Sartre, “pour qu’une
conscience puisse imaginer il faut qu’elle échappe au monde par sa nature même, il faut
qu’elle puisse tirer d’elle-même une position de recul par rapport au monde. En un mot il faut
qu’elle soit libre”185. Sobre esta ligação intrínseca, Dufourcq pensa que a especificidade da
imaginação é a de que ela “est plus révélatrice du mode d’être de la conscience que la
perception, laquelle, dans une certaine mesure, cache son jeu et se donne comme pure et
simple présence de ce qui est. La dimension d’absence dans la présence n’est pas une
spécificité que l’imagination fait surgir, elle y est simplement plus accentuée donc plus
manifeste”186. Assim, a autora mostra o caráter decisivo deste alargamento na definição de
imaginário que ocorre na “Conclusão” de L’imaginaire - o que nos remete à diferença que
Giovannangeli entreviu, a partir de Dufrenne, entre imaginação transcendental e empírica -,
quando ela diz: “Il faut distinguer de l’imaginaire qui est effectivement posé (viser tel objet
absent comme absent et non seulement en horizon) de ce même imaginaire non encore
thématisé, mais qui est déjà ce vers quoi l’on dépasse l’objet perçu et qui donc est déjà là au
cœur de la perception”187 de modo que “ce qui faisait la vanité de la vie imaginaire telle que la
décrivait alors Sartre doit maintenant entrer dans l’existence même, dans la vie réelle, comme
l’une de ses composantes essentielles”188. De fato, é o que pode ser observado se tomarmos
em conjunto as seguintes afirmações de Sartre na “Conclusão”:

Pour pouvoir imaginer, il suffit que la conscience puisse dépasser le


réel en le constituant comme monde, puisque la néantisation du réel
est toujours impliquée par sa constitution en monde.

l’imagination n’est pas un pouvoir empirique et surajouté de la


conscience, c’est la conscience tout entière en tant qu’elle réalise sa
liberté; toute situation concrète et réelle de la conscience dans le
monde est grosse d’imaginaire en tant qu’elle se présente toujours
comme un dépassement du réel.

Il ne saurait y avoir de conscience réalisante sans conscience


imageante et réciproquement.

l’imaginaire représente à chaque instant le sens implicite du réel.


L’acte imageant proprement dit consiste à poser l’imaginaire pour
soi, c’est-à-dire à expliciter ce sens189.

185 I’re, p. 353.


186 DUFOURCQ, A. La vie imaginaire : échec ou réussite ?, p. 16. (grifo nosso)
187 Ibid., p. 16.
188 Ibid., p. 17.
189 I’re, respectivamente, p. 354; p. 358; p. 361; p. 360. (grifo nosso)
!379

Se assim for, a dimensão imaginária intrínseca ao real não é constatada sem


consequências para a ontologia sartriana. A nosso ver, ela evidencia o caráter de
espectralidade próprio ao ser-no-mundo como assombramento. E isto em três pontos
principais: 1) novamente não faz sentido aqui pensar o em-si como pura positividade, pois, se
cada situação real é “grosse d’imaginaire”, há de se compreender o mundo pela
simultaneidade entre ser e nada; 2) Se a dimensão imaginária é essencial à consciência, não
somente o mundo só aparece em seu caráter espectral, como “la conscience est constamment
entourée d’un cortège d’objets-fantômes”190, que são os objetos irreais. 3) O espectral é aquilo
que ultrapassa a cisão entre real e irreal. Assim, em primeiro lugar, podemos entrever que a
irrealidade própria ao ato imaginante, faz com que a visão do ser como pura positividade seja,
na verdade, uma visão que, em nossos termos, vela o caráter de espectralidade. Esta ideia
encontra-se de alguma forma neste trecho de Dufourcq:

Certes le sujet percevant a l’impression d’être en prise directe sur l’être,


celui-ci l’envahit, lui impose sa richesse, son opacité et une foule de qualités
qu’il constate comme des faits bruts. Pourtant la dimension d’absence est
déjà là, cachée mais absolument essentielle puisque cet objet que je perçois je
ne le suis pas, je ne coïncide pas avec lui et c’est même là une condition
indispensable pour que je puisse le laisser se dévoiler comme spectacle pour
moi191 .

Em segundo lugar, poderíamos compreender ainda como o para-si se relaciona com


tais objetos-fantasmas que o assombram constantemente. Para isso, vejamos algumas breves
observações sobre o caráter especial de tais objetos, cujas definições são dadas em
L’Imaginaire, justamente no capítulo sobre a vida imaginária192 . Diferentemente dos objetos
psíquicos, que são virtuais mas “reais”, os objetos imaginários são irreais. No entanto, as
descrições sob o modo espectral que os caracteriza nos remetem às das sombras. Trata-se, do
mesmo modo, de algo que se dá por um caráter mágico: um ato imaginário, “c’est une
incantation destinée à faire apparaître l’objet auquel on pense, la chose qu’on désire, de façon
qu’on puisse en prendre possession”193. Contudo, não se trata de uma produção reflexiva, mas

190 I’re, p. 260.


191 DUFOURCQ, A. La vie imaginaire : échec ou réussite ?, p. 15.
192 Dado que esta obra contém inúmeras especificidades, nos limitaremos a evidenciar somente o que diz respeito

à natureza fantasmática dos objetos irreais.


193 I’re, p. 239.
!380

de uma constituição feita por uma “espontaneidade” que pode adquirir um caráter voluntário,
mas que em si mesma não é voluntária, podendo chegar ao caso em que a consciência se vê
prisioneira de seu próprio imaginário. O ponto que pretendemos evidenciar é o caráter
espectral dos objetos irreais, ou seja, temos em vista um objeto que “est présent mais, en
même temps, […] hors d’atteinte”194 e isto porque “il apparaît, disparaît, revient et ce n’est
plus le même”195. Na descrição do objeto irreal, Sartre ressalta seu caráter ambíguo e, por
vezes, “híbrido”, como na imitação gestual, por exemplo, cujo modo de ser não é “ni tout à
fait perception ni tout a fait image, qui vaudrait d’être décrit pour lui seul”196. Uma
ambiguidade que “constitue la seule profondeur de l’objet en image. Elle représente en lui
comme un semblant d’opacité”197, que Sartre chega a comparar a uma sombra, que aparece
em um espaço e tempo também “sombras”: “C’est une ombre de temps qui convient bien à
cette ombre d’objet, avec son ombre d’espace”198. Como é próprio dos modos de ser que
possuem a característica da magia, estes “objetos-fantasmas”, continua Sartre, “sont ambigus,
fuyants, à la fois eux-mêmes et autre chose qu’eux-mêmes, ils se font les supports de qualités
contradictoires” 199; eles são “[des] êtres étranges qui échappent aux lois du monde. Ils se
donnent toujours comme des totalités indivisibles, des absolus. Ambigus, pauvres et secs en
même temps, apparaissant et disparaissant par saccades, ils se donnent comme un perpétuel
« ailleurs », comme une évasion perpétuelle”200. Segue-se que tais objetos assombram a
consciência como possibilidade de evasão do mundo, de enclausuramento em uma vida
imaginária, caracterizando um “anti-mundo”, no qual a consciência só pode agir se se tornar
ela também imaginária, irrealizando-se. O anti-mundo imaginário é visto então como uma
fuga do mundo real, mas uma fuga assombrada, pois ao contrário de uma percepção clara e
distinta, que é “tranquilizadora”, o imaginário é perturbador: “Si nous avons peur dans la nuit,
dans la solitude, c’est que les objets imaginaires qui nous hantent sont, par nature, louches”201.
A natureza de tais objetos nos remete ao terceiro ponto listado acima, que se referia
aos espectros como superação da clivagem entre real e irreal. É próprio do espectro, que não é
nem vivo nem morto, nem existente nem não existente, surgir nestas zonas intermediárias.

194 I’re, p. 240.


195 I’re, p. 259.
196 I’re, p. 64. (grifo nosso)
197 I’re, p. 254.
198 I’re, p. 253.
199 I’re, p. 254.
200 I’re, p. 260. (grifo nosso)
201 I’re, p. 254.
!381

Assim, ao colocar o imaginário como intrínseco ao real, Sartre espectraliza aquilo que era
dado como real, de forma que os objetos-fantasmas imaginários passam a habitar
constantemente o mundo. É o que podemos observar na famosa descrição de L’Être et le
Néant onde o autor relata a situação imaginária de um encontro de seu amigo Pierre num café.
O excesso de plenitude que poderia ser entrevisto na cena é quebrado pelo fato de que Pierre
“não está” lá. Mas esta ausência de Pierre não é localizável em alguma parte do café, ele “est
absent de tout le café”. Acontece ainda que é esta ausência mesma que organiza o café em
fundo indiferenciado em torno de uma forma; mas esta forma é um nada, um “évanouissement
perpétuel, c’est Pierre s’enlevant comme néant sur le fond de néantisation du café”202. Se a
consciência imaginante se estrutura pelo posicionamento de um nada, seja como inexistente,
como ausente, como existindo em outro lugar, ou como “neutralizado”, o fato de haver
intuição de Pierre como não estando no café mostra bem o papel constitutivo do imaginário na
percepção. Este exemplo acentua este aspecto ao falar de uma “dupla nadificação”: a do café
como fundo e a da ausência de Pierre como forma, de modo que a negação “Pierre não está no
café” não é judicativa, ela é a própria organização da percepção em fundo e forma. O caráter
imaginativo da percepção faz então com que a realização seja ao mesmo tempo uma
realização irrealizante, dando margem a aparição do espectral como simultaneidade de ser e
nada. Neste caso, a presença-ausente de Pierre “hante ce café”203 pelo fato dele estar ausente
de todo o café e não de um ponto localizável, e ainda de modo de que este assombramento é a
própria condição da organização concreta do café em fundo.
Por fim, diante destas breves posições anteriores a L’Être et le Néant, nos
perguntamos, após identificar a dimensão imaginária intrínseca ao real e ainda a distinção
entre a imaginação empírica e a transcendental, qual é o papel do imaginário no modo de ser-
no-mundo do para-si? Já mencionamos a espectralidade própria do mundo assombrado e
também o papel cotidiano do plano de sombras que é o psíquico na existência do para-si, de
modo que podemos abordar agora o assombramento relativo a mais um plano de sombras que
ocorreria nos momentos do que foi aqui chamado de “imaginação empírica”. L’Être et le
Néant não fornece muitas respostas neste sentido talvez por Sartre considerar como já
resolvida a questão em L’Imaginaire, do mesmo modo que La Transcendance de l’Ego fez
sua tarefa em relação ao psíquico. No entanto, se adotarmos a tese explicitada acima da

202 EN, p. 44.


203 EN, p. 45.
!382

imaginação transcendental e empírica, podemos fazer valer para o para-si o plano de sombras
de L’Imaginaire. Em outros termos, podemos identificar não somente o psíquico como uma
zona de sombreamento que assombra constantemente o para-si, mas também que a
consciência “est constamment entourée d’un cortège d’objets-fantômes”204, que é o
imaginário. É este o ponto que Sartre vai explorar em trabalhos de psicanálise existencial
posteriores à sua ontologia, principalmente em Saint-Genet e L’Idiot de la famille, obras onde
o caráter de fuga pelo imaginário se expressa de forma tão acentuada a ponto de cumprir um
papel de alienação do sujeito.

§3. O em-si para-outro: a presença invisível e o esboço fantasma.

je suis hanté par cet être que je crains de rencontrer un jour


au détour d’un chemin, qui m’est si étranger et qui est
pourtant mon être et dont je sais, que, malgré mes efforts,
je ne le rencontrerai jamais.

Sartre, L’Être et le Néant

a) O outro e o para-outro: um para-si solipsista?

Na terceira parte de L’Être et le Néant, ocorre uma passagem para o que Benoist
denominou, a partir dos referenciais do próprio Sartre, de momento propriamente metafísico
da obra. Isto no sentido de que o outro (autrui) vem ao encontro do para-si como “algo que
lhe acontece”, revelando-lhe sua dimensão para-outro (pour-autrui)205. Este encontro,
continua Benoist, perturba toda economia da ontologia precedente, a qual se restringia ainda
às análises das regiões ontológicas para-si e em-si, o que resultava numa teoria formal de um
sujeito solipsista caracterizada pelo “triunfo da ipseidade”. A partir do encontro com o outro,
que é da ordem de um “acontecimento”, ocorre uma mudança no centro de gravidade da obra,
visto que se até então “rien dans l’économie dialectique de l’en-soi et du pour-soi ne requiert
autrui”206, enquanto que agora “on thématise un pour soi dont il est devenu essentiel qu’il soit
un pour autrui”207. Segue-se que, a seu ver, deveríamos fazer o gesto de Levinas que consiste

204 I’re, p. 260.


205 Notas pessoais do curso ministrado na Sorbonne sobre L’Être et le Néant em 2014.
206 Id.
207 Id.
!383

em privilegiar tal caráter metafísico de modo que “l’ontologie est toujours sous condition de
la métaphysique, il n’y a pas de pour-soi sans pour autrui, le pour-soi est rendu possible
comme pour-soi par ce qui lui arrive”208. Conforme já comentamos inicialmente, Benoist
realiza um corte radical entre as duas primeiras partes da obra - correspondentes à ontologia -
e a parte que se inicia com o capítulo do para-outro, metafísica. No entanto, como
evidenciamos anteriormente, este corte não acentua suficientemente a estrutura da facticidade
do para-si, que é fundamental para compreendermos a inserção fática intersubjetiva do para-si
enquanto movimento de historialização 209. De todo modo, Benoist destaca de fato um
momento capital da obra, revelando claramente o quão absurda seria a visão de um para-si
sem os outros.
A divisão entre um para-si solipsista no quadro de uma ontologia e a aparição do outro
como um acontecimento que torna essencial a dimensão para-outro do para-si nos remete à
descrição de Sartre em Saint Genet : comédien et martyr da saída de Jean Genet da inocência
através da descoberta de sua singularidade. A partir de uma imersão em temas míticos que
são próprios ao quadro simbólico que melhor permite a compreensão dos temas fundamentais
de Genet, carregado de figuras religiosas, Sartre descreve o momento de um acontecimento
que é a “aparição do outro” como operador de uma metamorfose 210. Assim como na obra de
Kafka não há nada que anteceda ou explique a metamorfose de Gregor Samsa em uma
criatura monstruosa, a transformação de Genet em ladrão se dá, do mesmo modo, por um fato
contingente, num instante fatal211, que tudo muda e que o arranca da inocência: “A l’instant
s’opère la métamorphose : il n’est rien de plus que ce qu’il était, pourtant le voilà
méconnaissable. Chassé du paradis perdu212, exilé de l’enfance, de l’immédiat, condamné à se
voir, pourvu soudain d’un « moi » monstrueux et coupable, isolé, séparé, bref, changé en
vermine”213. Sartre identifica assim, a partir do encontro com o outro que produz a
metamorfose, a aparição do “eu” com a quebra da imediaticidade. E isto de tal modo que a

208 Id.
209 Cf. “Segunda parte”, capítulo IV, §1, e).
210 Neste contexto não se trata mais (ou apenas) do processo de metamorfose que descrevemos na “Segunda
Parte” (Cap.III, §3, b), como a tentativa sartriana de descrever uma espécie de “duração”, mas de um
acontecimento que modifica inteiramente a maneira de ser que o precedia.
211 “Or qui dit « instant » dit instant fatal : l’instant c’est l’enveloppement réciproque et contradictoire de l’avant

par l’après; on est encore ce qu’on va cesser d’être et déjà ce qu’on va devenir; on vit sa mort, on meurt sa vie;
on se sent soi-même et un autre, l’éternel est présent dans un atome de durée; au sein de la vie la plus pleine on
pressent qu’on ne fera plus que survivre, on a peur de l’avenir”. SG, p. 9.
212 Sartre identifica a inocência infantil ao paraíso perdido: “Le mythe de l’innocence enfantine est une forme

abâtardie, positive et commode du mythe du Paradis Perdu”. SG, p. 14.


213 SG, p. 27.
!384

inocência se assemelha ao para-si solipsista apontado por Benoist: “A présent il n’y a plus
personne dans la pièce : une conscience abandonnée reflète des ustensiles”214; “Jusqu’à la
« crise », il vivait dans la « douce confusion » de l’immédiat, il ignorait qu’il fût personne : il
apprend et, du même coup, que cette personne est un monstre” 215. De maneira diferente, mas
também como uma quebra causada por um acontecimento que promove a descoberta da
alteridade, Sartre indica a metamorfose provocada pela “crise” de Baudelaire, a qual o revela
sua “existência pessoal”: ele que vivia até então numa fusão com a mãe - “il se sentait uni au
corps et au cœur de sa mère par une sorte de participation primitive et mystique” 216 - foi “jeté
sans transition dans l’existence personnelle”217 no momento em que sua mãe se casa
novamente, provocando uma ruptura na relação fusional que a psicanálise de um modo geral
denomina de simbiose. Este episódio foi vivido por Baudelaire como uma experiência de
separação que o fez descobrir uma profunda solidão, ao mesmo tempo em que “il a éprouvé
qu’il était un autre, par le brusque dévoilement de son existence individuelle”218.
Diante destes exemplos extraídos de textos sartrianos de psicanálise existencial,
podemos confirmar o caráter da descoberta do outro como um acontecimento que provoca
uma metamorfose no projeto de ser do para-si de modo a instaurar uma ruptura entre: um
estado de inocência, sem eu, puro reflexo imediato do mundo, e a existência pessoal, que
nasce a partir de uma separação, de onde surge um “eu” e um “outro”, através do que em
L’Être et le Néant é descrito como sendo a apreensão do para-si de seu ser ser-olhado (être-
regardé).
Neste contexto, pode-se observar a presença de temas bíblicos do Gênesis não
somente em relação a Genet, mas também nas descrições sobre o surgimento do ser olhado
em geral. Até porque, a figura de Deus, além de ser identificada ao ser do valor, é aquela que
representa um olhar onipresente e “invasivo”, motivo pelo qual Sartre ainda jovem resolve
com ele “romper relações”: “Il ne me regarda plus jamais”219, diz o autor em tom de decisão.
A ausência de um Deus morto não é o mesmo que sua simples não existência, como ele
mostra longamente em Mallarmé. Neste caso, há o trabalho do luto e o vazio do lugar de
testemunho, de modo que a condição de ser-olhado passa a ser atribuída aos homens. A

214 SG, p. 26.


215 SG, p. 31-32.
216 B, p. 18.
217 B, p. 19.
218 B, p. 20.
219 LM, p. 55.
!385

inocência de Genet, a queda de Flaubert220 , a vergonha como reveladora da existência para-


outro: todos estes fatores necessitam de um testemunho divino, porém, não mais de um Deus,
que uma época precisou matar, mas de um outro que faz existir uma dimensão nova e ao
mesmo tempo constitutiva da humanidade do para-si221. Assim, como mostra André Barata,
não devemos compreender tais referências como um trabalho sobre a Escritura, mas como
experiências existenciais sobre as quais por vezes o discurso religioso se refere222. Dito isto,
Sartre privilegia a vergonha como experiência ontológica fundamental de queda na existência
para-outro. A vergonha é sempre vergonha de si diante de alguém, uma vergonha que não diz
respeito a uma característica específica do para-si, mas à condição ontológica de ser objeto 223:

La honte pure n’est pas sentiment d’être tel ou tel objet répréhensible
mais, en général, d’être un objet, c’est-à-dire de me reconnaître dans
cet être dégradé, dépendant et figé que je suis pour autrui. La honte est
sentiment de chute originelle, non du fait que j’aurais commis telle ou
telle faute, mais simplement du fait que je suis « tombé » dans le
monde, au milieu des choses, et que j’ai besoin de la médiation
d’autrui pour être ce que je suis224.

Sartre explicitará em seguida o sentido de outros sentimentos, como o medo e o


orgulho, por exemplo, como maneiras diferentes de experimentar afetivamente a vergonha
original de ser objeto. O fato é que mesmo a vergonha empírica, datada, provocada por uma
cena qualquer, encontra seu sentido nesta vergonha mais originária, assim como a náusea
empírica é segunda com relação à náusea como afetividade original. É por isso que, segundo

220 O seguinte trecho mostra bem o tema da inocência e da queda no caso de Gustave Flaubert: “la Chute, c’est la
découverte de la « différence » à travers le jugement des autres. […] un enfant monstrueux connaît, malgré tout,
l’âge d’or de la petite enfance : il n’est pas encore appris sa « nature » puisque nul n’exige rien de lui […] Et
puis, un jour, à sept ans, un juge souverain découvre sa particularité et la lui désigne : le voilà autre. Autre que
l’homme” IF.I, p. 188. No caso de Gustave, a Queda é a descoberta não somente de seu ser visto mas de uma
diferença vivida como “anomalia”, o que o separa de todos os outros homens. Cf. Ibid., p. 337.
221 Deus seria este outro elevado a máxima potência de sujeito, como um sujeito que não pode jamais ser objeto.

Cf. EN, p. 329.


222 BARATA, A. Vida temporal comum. O carácter temporal da intersubjetividade afetiva. Disponível em https://

www.academia.edu/2764856/Vida_temporal_comum_-_O_carácter_temporal_da_intersubjectiva_afectiva.
Acesso em: Agosto de 2016. Acrescentamos que em Mallarmé, por exemplo, é possível compreender como a
religião ou a falta dela, em diferentes épocas, revelam tais experiências existenciais. O tema pode ser investigado
ainda nos outros trabalhos de psicanálise existencial.
223 Se o para-si vive num mundo onde há outros, e se a vergonha é a experiência de revelação do para-outro, é

pertinente falar em uma hontologie, como faz Stéphane Dawans se referindo a Lacan. Para o autor, a vergonha é
“un fil conducteur qui relie l’ontologie, la morale et l’esthétique [chez Sartre], mais qui se noue et se resserre,
rendant le démêlage difficile autant que nécessaire” DAWANS, S. Sartre: le spectre de la honte. Une
introduction a la philosophie sartrienne. Liège : Ulg, 2001, p. 12 . Dawans chega mesmo a afirmar, no final de
seu trabalho, que “l’hontologie est une hantologie”, sem no entanto explicar o que isto significa ou desenvolver
esta relação. Ibid., p. 118. Ver também: p. 40.
224 EN, p. 328.
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Sartre, “chacun reconnaîtra, dans cette description abstraite, cette présence immédiate et
brûlante du regard d’autrui qui l’a souvent rempli de honte”225.
Por se tratar de um acontecimento, a aparição do outro é melhor descrita por via de
exemplos concretos: em L’Être et le Néant pelo exemplo de alguém que olha uma cena
proibida através do buraco de uma fechadura; em Saint Genet pela situação em que Genet,
ainda com dez anos de idade, é flagrado “roubando”226. Na verdade, o que mais importa para
análise é a cena, não sua comprovação empírica datada: “Cela s’est passé ainsi ou
autrement”227, diz Sartre, embora seja importante considerar que o rótulo de “ladrão” foi dado
a Genet quando criança, ou seja, no momento em que ele não tem “la ressource de se défendre
en accusant : les adultes sont de dieux pour cette petite âme religieuse”228. A cena é a
descrição concreta do acontecimento da revelação súbita do ser-olhado como uma nova
dimensão do para-si “sujeito”.
No que estes exemplos podem nos auxiliar frente ao problema do solipsismo?
Analisemos as duas cenas: Em L’Être et le Néant, a cena de alguém que olha pelo buraco da
fechadura é reveladora do sentido do olhar do outro e da dimensão para-outro que surge
mediada pelo olhar. Sartre inicia uma descrição na primeira pessoa, baseada em uma situação
imaginária: o ato de olhar pelo buraco de uma fechadura motivado por “jalousie, intérêt, ou
vice”229. Este primeiro momento da cena se assemelha à descrição da inocência de Genet, que
vimos estar de acordo com o para-si solipsista apontado por Benoist: “Je suis seul et sur le
plan de la conscience non-thétique (de) moi. Cela signifie d’abord qu’il n’y a pas de moi pour
habiter ma conscience. […] Je suis pure conscience des choses et les choses, prises dans le
circuit de mon ipséité, m’offrent leurs potentialités comme répliques de ma conscience non-

225 EN, p. 309.


226 Só é possível caracterizar a ação de Genet como “roubo” a partir da relação social que define o roubo na
estrita relação com o direito de propriedade: “La notion de « voleur » est par principe incommensurable avec les
réalités du sens intime; elle est d’origine sociale et suppose qu’on ait préalablement définit la Société, le régime
de la propriété, un code, un appareil judiciaire et un système éthique des relations entre les personnes”. SG, p.
51.
227 SG, p. 26. Em L’Idiot de la Famille, Sartre chega a admitir uma experiência de “illumination peut-être

fictive”, que é apenas lembrada por Flaubert como sendo um instante fatal: “Mais qui peut affirmer que cette
métamorphose a eu lieu en un moment précis ? come il arrive souvent - et en des domaines tout différents -
l’enfant a pu vivre longtemps avant l’intuition totalisante puis continuer sa vie après elle sans qu’il y ait eu
jamais l’instant de foudre qui l’eût fait vivre pendant l’illumination. En d’autres termes, le plus vraisemblable est
qu’il n’y ait jamais eu d’actualisation brusque de l’archétype et que, dans la continuité du vécu, Gustave s’y soit
référé comme à quelque chose qui s’est déjà produit, et que, de ce point de vue, le vécu lui-même n’ait jamais eu
la fraîcheur saisissante de la nouveauté”. IF.I, p. 482.
228 SG, p. 31.
229 EN, p. 298.
!387

thétique (de) mes possibilités propres”230. Sartre prossegue afirmando que neste plano seus
atos não possuem “um lado de fora” (aucun dehors), são inteiramente vividos e não
conhecidos, uma maneira de se perder no mundo, de ser absorvido pelas coisas que aparecem
organizadas em complexos de utensílios de acordo com o fim projetado pelo para-si. E isso a
ponto de que “il n’y a là aucune contrainte, puisque ma liberté ronge mes possibles et que
corrélativement les potentialités du monde s’indiquent et se proposent seulement”231; “il n’y a
rien là qu’un pur néant entourant et faisant ressortir un certain ensemble objectif se découpant
dans le monde”232. Ao descrever a “inocência” desta maneira, Sartre acentua a solidão da
imediaticidade que motivou as críticas de Merleau-Ponty e que Benoist aponta como sendo o
mundo da “ipseidade triunfante”, ou seja, o fato de que “le solus ipse […] donne son sens au
monde”233.
O elemento que perturba o sistema é o olhar, o surgimento do outro e o consequente
desvelamento do ser-olhado. Sartre descreve a cena reforçando seu caráter de acontecimento
surpreendente: “Or, voici que j’ai entendu des pas dans le corridor: on me regarde”234; Genet:
“Pris la main dans le sac : quelqu’un est entré qui le regarde. Sous ce regard l’enfant revient à
lui. Il n’était encore personne, il devient tout à coup Jean Genet”235. Este acontecimento, que
pode ter se passado assim ou de outra forma, provoca uma verdadeira metamorfose no modo
de ser do para-si e faz com que este veja a si mesmo a partir de uma perspectiva exterior, que
era vedada ao para-si em pura ipseidade: “Que s’est-il produit? Presque rien en somme : une
action entreprise sans réflexion, conçue et menée dans l’intimité secrète et silencieuse où il se
réfugie souvent, vient de passer à l’objectif. Genet apprend ce qu’il est objectivement”236.
Antes de adentramos nos detalhes das descrições sobre as transformações que ocorrem
no ser do para-si, uma questão se coloca que nos remete ao problema do solipsismo: antes de
tal acontecimento, era possível de fato conceber um para-si que seria “sozinho no mundo”?
Vivia o para-si num mundo sem outros? A nosso ver, ao se concentrar demasiadamente nas
descrições sobre as implicações da metamorfose a partir do olhar, Sartre não evidencia
suficientemente estas questões e suas repercussões, de modo que precisamos de alguma forma

230 Ibid.
231 EN, p. 299.
232 Ibid.
233 Notas pessoais do curso de J. Benoist.
234 EN, p. 299.
235 SG, p. 26.
236 SG, p. 27.
!388

resgatar outros elementos de L’Être et le Néant, mesmo que implícitos, a fim de podermos
respondê-las.
Neste intuito, destacamos três características implícitas que contestam o estado da
“inocência” como um mundo solipsista: a afetividade, a linguagem e as significações
intersubjetivas. Em primeiro lugar, mesmo a inocência de Genet, afirma Sartre, “lui vient
d’autrui : tout nous viens d’autrui même l’innocence”237 ; dado que a inocência é
compreendida a partir de uma situação, é absurdo pensar em uma condição apartada das
relações que configuram o modo de ser mesmo de tal condição. Em segundo lugar, na
situação imaginária do exemplo do “buraco da fechadura”, Sartre aponta como motivação de
sua ação os sentimentos de “jalousie, intérêt, ou vice”, o que nos leva a pensar como seria
possível o ciúme, por exemplo, sem alguém de quem se tem ciúme, ou seja, ciúme de quem
ou do que em relação a quem? Como o para-si solipsista pode agir motivado por ciúme?
Mesmo que seja ciúme de “alguma coisa” e não de alguém, o ciúme só faz sentido na relação
desta coisa com algum outro diante de quem o ciúme se faz ciúme. É evidente que, para
Sartre, esta vivência não aparece imediatamente ao para-si como ciúme, pois o para-si é todo
inteiro “consciência (de) ciúme de algo ou de alguém” em direção à cena a ser vista pelo
buraco da fechadura, mas de alguma forma a relação pré-reflexiva com o outro deve
configurar esta motivação afetiva. Em terceiro lugar, a linguagem estrutura a metamorfose:
“on me regarde”238. A metamorfose de Genet é dada por “un mot vertigineux”, pois “son
aventure, c’est d’avoir été nommé”239: “Une voix déclare publiquement : « Tu es un
voleur »”240. A partir de então,

les Autres, tous les Autres disposent à volonté de cette intuition : un


voleur, c’est une réalité sensible, comme un arbre, comme une église
gothique. Voici un homme que deux flics entraînent, je demande :
« Qu’a-t-il fait? » On me répond : « C’est un voleur. » Le mot vient
frapper contre son objet comme un cristal tombant dans une solution
sursaturée : aussitôt la solution cristallise enfermant le mot en elle241.

Ser ladrão passa a ser, através da palavra, a verdade objetiva de Genet, algo como um
princípio que passa a orientar seu projeto fundamental no interior das relações sociais. A

237 SG, p. 14.


238 EN, p. 299.
239 SG, p. 57.
240 SG, p. 26.
241 SG, p. 51.
!389

linguagem, que é relação ao outro, não surge, obviamente, no momento da metamorfose, mas
participa deste último como um operador crucial: “Le tour est joué : de l’enfant truqué nous
avons fait un poète; il est hanté par un mot, un seul mot qu’il contemple à l’envers et qui
contient son âme. Il cherche à s’y mirer comme en une glace sans tain, il passera sa vie à
méditer sur un mot”242.
Finalmente, como vimos a respeito do mundo como campo prático, o para-si surge
num mundo que é mundo para os outros, o que Sartre diz ser o dado (le donné). Isto posto,
como pensar a “inocência” fora deste mundo intersubjetivo? Vimos que as coisas-utensílios
são compostas por propriedade laterais e secundárias que reenviam a outros centros de
referência e que cada utensílio revela ao mesmo tempo seu “para quem” (Worumwillen);
dissemos ainda que o para-si age através de técnicas coletivas e surge num mundo
assombrado pelo seu próximo, o que significa surgir “au milieu de ce monde pourvu déjà de
sens”243. Sendo assim, ao descrever a metamorfose, Sartre coloca o acento na experiência que
revela a existência do outro de maneira privilegiada, mas isto não significa que não havia o
outro anteriormente a este instante fatal. Por esta razão, distinguir certa presença do outro
anterior à metamorfose e a cena que faz surgir o ser-olhado como uma nova dimensão do ser-
para-si nos parece um gesto de investigação essencial.
O foco de Sartre na experiência privilegiada do ser-visto se deve ao fato deste ser o
seu recurso para escapar ao solipsismo, no sentido de uma prova indubitável da existência do
outro. Neste ponto Sartre é mais uma vez cartesiano, ao exigir que esta prova pertença à
esfera de evidência do cogito. Enquanto que o outro como objeto no campo perceptivo pode
ser apenas provável, é o ser-olhado que comprova que este outro no campo perceptivo é um
outro sujeito e não um mero autômato244. De todo modo, o risco a evitar é o de fazer da
relação ao outro uma relação epistemológica. Husserl, por exemplo, é compreendido por
Sartre como estando preso a este último tipo de relação, na medida em que ele, a partir da
divisão entre o empírico e o transcendental, pensa a intersubjetividade restrita a este primeiro
plano. E isto a ponto de Sartre identificar a posição husserliana como sendo próxima a de
Kant, no sentido de promover uma espécie de solidão do sujeito transcendental. Para Sartre,

242SG, p. 54. (grifo nosso)


243EN, p. 554. Todos estes temas foram desenvolvidos no Cap. III, §3, b), desta “Terceira Parte”.
244“En bref, autrui peut exister pour nous sous deux formes : si je l’éprouve avec évidence, je manque à le
connaître ; si je le connais, si j’agis sur lui, je n’atteints que son être-objet et son existence probable au milieu du
monde ; aucune synthèse de ces deux formes n’est possible.” EN, p. 341.
!390

Husserl pensa a existência do outro como necessária à constituição de um mundo


“intermonadique”, o que ele está de acordo, mas o que faltaria mostrar é como se dá “la
liasion des sujets transcendantaux par delà l’expérience”245, de modo a não fazer do outro uma
simples “catégorie supplémentaire qui permettrait de constituer un monde”246. Em suma,
apesar de Husserl evidenciar o papel do outro na constituição das camadas significativas do
mundo, a relação fundamental do sujeito transcendental com outro sujeito transcendental não
se estabelece, visto que esta constituição, assim como a dos “eus” psicofísicos, permanece no
plano natural que deve vir a baixo com a redução. Contrariamente, para Sartre, “autrui n’est
jamais ce personnage empirique qui se rencontre dans mon expérience : c’est le sujet
transcendantal auquel ce personnage renvoie par nature. Ainsi le véritable problème est-il
celui de la liaison des sujets transcendantaux par delà l’expérience”247 de modo que “la seule
façon d’échapper au solipsisme serait, ici encore, de prouver que ma conscience
transcendantale, dans son être même, est affecté par l’existence extra-mondaine d’autres
consciences de même type”248.
Já Hegel, a seu ver, avança nesta questão ao colocar o outro como mediação
indispensável à própria consciência de si, estabelecendo aquilo que na linguagem sartriana
denomina-se de negação interna. Esta se caracteriza, como vimos, por uma relação de
unidade pela negação, a partir da qual as consciências se excluem mutuamente de modo que
por esta exclusão se faz o si, isto é, trata-se de uma imbricação interna que se opera através de
uma dialética que define a apreensão mútua de si através do outro: “Ainsi le “moment” que
Hegel nomme l’être pour l’autre est un stade nécessaire du développement de la conscience
de soi ; le chemin de l’intériorité passe par l’autre” 249, conclui Sartre. Para em seguida
acrescentar que “l’intuition géniale de Hegel est ici de me faire dépendre de l’autre en mon
être. Je suis, dit-il, un être pour soi qui n’est pour soi que par un autre. C’est donc en mon
cœur que l’autre me pénètre […] l’être-pour-autrui apparaît comme une condition nécessaire
de mon être pour moi-même”250. No entanto, Sartre difere de Hegel em dois pontos: em
primeiro lugar, ele considera a formulação hegeliana “Je suis je” como um tipo de identidade

245 EN, p. 273.


246 EN, p. 273.
247 Ibid.
248 EN, p. 274.
249 EN, p. 275. A dialética do Senhor e do Escravo hegeliana mostra a importância do reconhecimento pelo olhar

do outro que inspira o desenvolvimento da “dialética do outro” em L’Être et le Néant. Cf. EN, p. 324; p. 401-
453.
250 EN, p. 276.
!391

do sujeito251. Em segundo lugar, ele constata que Hegel permanece finalmente restrito ao
plano do conhecimento ao se posicionar num ponto de vista teórico sobre a consciência de si,
próprio ao idealismo que identifica ser e conhecimento. Neste sentido, a distância de Sartre
com relação à filosofia hegeliana se caracteriza pela crítica da possibilidade de
ultrapassamento do particular rumo à totalidade de conhecimento que o absorve. Tal como a
oposição kierkegaardiana a Hegel que, nas palavras de Sartre, afirma que “l’homme existant
ne peut être assimilé par un système d’idées”252, na medida em que “la vie subjective, dans la
mesure même où elle est vécue, ne peut jamais faire l’objet d’un savoir”253 ou, simplesmente,
tratar-se-ia de um “faux savoir”254. Ao adotar o ponto de vista da totalidade e não partir do
cogito (o que para Sartre é um problema), Hegel age como se pudesse anular sua própria
existência a fim de apreender a existência do outro pelo ponto de vista do conhecimento
absoluto.
Concluindo esta linha de argumentação, Sartre acaba por atribuir a Heidegger o passo
decisivo em direção a uma concepção ontológica da relação ao outro. O motivo não consiste,
evidentemente, em “partir do cogito”, mas no fato de que em Être et temps a relação com o
outro é um existencial do Dasein e não uma relação de conhecimento. Entretanto, logo se
impõe um ponto de discordância quando Sartre critica a noção heideggeriana de Mit-Sein (ser-
com) como pressupondo uma “solidariedade ontológica” que, a seu ver, é uma estrutura
abstrata que não permite compreender um “ser-com” concreto, perdendo de vista a dimensão
ôntica da relação do para-si com o outro, logo, a luta por “reconhecimento”. Sartre pensa o ser
com o outro tal como Heidegger descreveu em termos de uma experiência do nós (nous), o
que seria um enriquecimento empírico da relação para-outro e, portanto, derivada deste tipo
de relação ontológica. Segundo Sartre, Heidegger corre ainda o risco de recair no solipsismo
se o ser-com significar que é pelo Dasein que se deduz de alguma forma a existência dos

251“la conscience est un être concret et suis generis, non une relation abstraite et injustifiable d’identité, elle est
ipséité et non siège d’un Ego opaque et inutile […] On conçoit mal en effet que la lutte ardente et périlleuse du
maître et de l’esclave ait pour unique enjeu la reconnaissance d’une formule aussi pauvre et aussi abstraite que le
« Je suis je »” EN, p. 278. Posição contestada, por exemplo, por Vladimir Safatle que vê na consciência de si
hegeliana um conceito renovado de identidade. Para o autor, na verdade, “a consciência-de-si hegeliana é o locus
de uma experiência fundamental de não identidade que se manifesta através das relações materiais do sujeito ao
outro” SAFATLE, V. O amor é mais frio que a morte: negatividade, infinitude e indeterminação na teoria
hegeliana do desejo. Kriterion, n. 117, p. 95-125, 2008, p. 98. O que Sartre não pode aceitar é que este “retour en
soi-même à partir de l’être-autre” da consciência de si resulte num “mouvement par lequel son égalité avec soi-
même vient à l’être”. HEGEL, F. La Phénoménologie de l’esprit. Paris : Aubier, 1947, p.146-7. (Trad. J.
Hyppolite) (Embora Sartre cite a Propedeutik. Cf. EN, p. 277).
252 QM, p. 19.
253 Ibid. Ver ainda: EN, p. 278.
254 S.IX, p. 156.
!392

outros, o que na linguagem sartriana significaria deduzir o outro de uma estrutura imediata do
para-si.
Por fim, tendo em vista esta breve análise do problema do outro em Husserl, Hegel e
Heidegger, Sartre estabelece suas condições, organizadas e enumeradas da seguinte maneira
por Barbaras255: 1) a relação ao outro é interna e não externa (como no conhecimento), trata-
se de uma relação de ser; 2) o único ponto de partida possível é a interioridade do cogito; 3) a
relação a outrem não pode ser de constituição; o outro não pode ser deduzido de uma estrutura
ontológica. Esta última condição é importante pelo fato de que se o outro não provém de uma
estrutura do para-si, “c’est comme fait - comme fait premier et perpétuel -, non comme
nécessité d’essence que nous étudierons l’être-pour-autrui”256. Por isso a relação com o outro
é um encontro, ela é da ordem de um acontecimento, como resume Benoist:

Sartre ne reproduit pas le geste traditionnel qui essaie de déduire


autrui depuis la conscience. Autrui se rencontre, ne se déduit pas. Le
pour soi va rencontrer quelque chose qui n’est pas thématisable en
vertu de la simple structure ontologique du pour soi : il faut qu’il lui
arrive quelque chose. […] En même temps cet événement ne peut
arriver qu’à une structure ontologique qui existe par elle-même,
pensable indépendamment de cette événementialité 257.

Não é simples, entretanto, manter ao mesmo tempo e em conjunto estas condições: a


ideia de um encontro e uma relação ontológica a partir de uma estrutura imediata. Como
ressalta Barbaras, “bien qu’autrui fasse l’objet d’une rencontre, la relation à lui n’est pas de
négation externe ni, par conséquent, de connaissance ; le rapport à autrui est donc interne,
mais il n’y a pas pour autant de lien structurel de la conscience à autrui”258. Neste ponto
parece residir o risco, desta vez sartriano, de cair no solipsismo, dado que o outro não pode
ser uma estrutura ontológica do para-si, mas é somente revelado por uma relação de negação
interna através da dimensão para-outro. Em outros termos, se a existência do outro é
evidenciada pela dimensão para-outro do para-si, e se esta dimensão só surge a partir de um
encontro contingente, o que garante que haja o encontro e, finalmente, que o outro exista?
Ainda não temos condições de responder a esta questão, pois nos resta percorrer alguns
detalhes envolvidos nesta tensão entre o encontro e a negação interna. De todo modo, não

255 BARBARAS, R. Le corps et la chair dans la troisième partie de L’être et le néant, p. 285-286.
256 EN, p. 322.
257 Notas pessoais do curso de J. Benoist.
258 BARBARAS, R., op.cit., p. 286.
!393

podendo ser o outro deduzido das estruturas do para-si, o modo de ser para-outro, em
contrapartida, é uma estrutura ontológica:

A titre de conscience, autrui est pour moi à la fois ce qui m’a volé mon
être et ce qui fait « qu’il y a » un être qui est mon être. Ainsi ai-je la
compréhension de cette structure ontologique ; je suis responsable de
mon être-pour-autrui, mais je n’en suis pas le fondement ; il
m’apparaît donc sous forme d’un donné contingent dont je suis
pourtant responsable, et autrui fonde mon être en tant que cet être est
sous la forme du « il y a »; mais il n’en est pas responsable, quoiqu’il
le fonde en toute liberté, dans et par sa libre transcendance259.

Se o para-outro é uma estrutura ontológica do para-si, de qual das cinco descritas no


capítulo sobre as estruturas imediatas do para-si se trata? Certamente a da facticidade, como já
mencionamos anteriormente. Mais precisamente, a dimensão para-outro diz respeito ao que o
para-si é e a facticidade é o existir seu ser. Assim, a metamorfose dota o para-si, como
podemos notar nos exemplos precedentes, de um “Eu” para-outro, de mais uma dimensão
fática de seu ser que ele tem de assumir. Mas se o para-si não é solipsista na “inocência”, o
outro deve estar presente anteriormente ao instante da metamorfose, e é neste sentido que
devemos investigar um duplo assombramento: o assombramento do olhar do outro e o
assombramento do eu-para-outro, ambos presentes na dimensão para-si. Para tal, iremos
primeiramente investigar o para-outro e em seguida o assombramento do outro.

b) A metamorfose: o assombramento do eu-para-outro.

A metamorfose é um acontecimento que provoca a aparição da dimensão para-outro


do para-si, que é “un type d’être nouveau qui doit supporter des qualifications nouvelles” 260.
Sartre a descreve como uma “modificação brusca”, que consiste numa “solidification et une
stratification brusque de moi-même qui laisse intactes mes possibilités et mes structures
« pour-moi », mais qui me pousse tout à coup dans une dimension neuve d’existence : la
dimension du non-révélé”261. Mas o que de fato ocorre nesta transformação? No que
consistem essas qualificações novas?

259 EN, p. 404. (grifo nosso)


260 EN, p. 206.
261 EN, p. 307.
!394

A nova dimensão é caracterizada pela alienação das estruturas do para-si-no-mundo,


que são as suas estruturas só que objetivadas. Além disso, a metamorfose faz surgir um Ego
de tipo distinto do Ego psíquico, que é o Ego-olhado ou Ego-para-outro, a partir de um corpo-
para-outro, num mundo também transformado. É esta nova dimensão que irá assombrar
constantemente a dimensão para-si como um espectro de em-si, como um esboço fantasma de
seu ser.

O Ego-para-outro

Na cena acima citada, de alguém que olha no buraco de uma fechadura, Sartre mostra
que um “barulho de passos no corredor” é suficiente para operar a metamorfose. Logo em
seguida, ele diz o seguinte sobre o momento posterior à transformação: “voici que j’existe en
tant que moi pour ma conscience irrefléchie”262. Esta afirmação chama a atenção se
considerarmos que, desde La Transcendance de l’Ego, o Ego é caracterizado como sendo um
produto da reflexão impura, que surge através do esforço do para-si em apreender a si mesmo.
Agora, eis que por meio da metamorfose produzida pelo olhar do outro, o Ego aparece não
mais à reflexão, mas à estrutura mais imediata de um para-si engajado no mundo, isto é, trata-
se neste momento de um objeto para a consciência irrefletida: “Le moi existe donc pour elle
[la conscience irréfléchie] sur le plan des objets du monde ; ce rôle qui n’incombait qu’à la
conscience réflexive : la présentification du moi, appartient à présent à la conscience
irréfléchie” 263. Disto decorre uma diferença importante entre o Ego-para-outro (Ego-olhado) e
o Ego psíquico, já que enquanto o segundo era constituído pela reflexão impura, o primeiro
afeta o para-si desde que ele sofre a objetificação264. Resta ao para-si somente escolher o
sentido e a maneira pela qual ele vive sua objetificação, não a metamorfose em si. Em outras
palavras, enquanto o Ego psíquico se caracteriza pela autoalienação reflexiva, o Ego-para-
outro é uma figura da facticidade da própria estrutura pré-reflexiva do para-si, embora ele não

262 EN, p. 299.


263 Ibid.
264 Distinção também ressaltada e tematizada por V. de Coorebyter em Sartre face à la phénoménologie.
!395

seja o seu fundamento265. Ou seja, não se trata mais de um Eu (Moi) que o para-si constitui
via reflexão, mas de um Eu que ele é, que compõe seu ser mais imediato.
O modo de ser do Ego-para-outro é contraditório se levarmos em conta a cisão das
regiões ontológicas diretrizes de L’Être et le Néant, visto que Sartre o define como um modo
de ser que não é para-si nem em-si:

Cet être n’est point en-soi car il ne s’est pas produit dans la pure
extériorité d’indifférence; mais il n’est pas non plus pour-soi, car il
n’est pas l’être que j’ai à être en me néantisant. Il est précisément mon
être-pour-autrui, cet être écartelé entre deux négations d’origine
opposée et de sens inverse […] produit par l’un et assumé par l’autre,
[ce moi] tire sa réalité absolue de ce qu’il est la seule séparation
possible entre deux êtres foncièrement identiques quant à leur mode
d’être et qui sont immédiatement présents l’un à l’autre, puisque, la
conscience pouvant seule limiter la conscience, aucun terme moyen
n’est concevable entre eux266 .

O Ego-para-outro é descrito como um modo de ser bastante peculiar na medida em


que reúne em si as características do nem…nem…e a simultaneidade do “ser e não ser” (no
sentido de que para-si é e não é este eu-para-outro). Sartre o descreve ainda em termos
espectrais quando compara o Ego-para-outro a um esboço fantasma (esquisse fantôme) do ser
para-si: “cette esquisse-fantôme de mon être m’atteint au cœur de moi-même, car, par la honte
et la rage et la peur, je ne cesse pas de m’assumer comme tel. De m’assumer à l’aveuglette,
puisque je ne connais pas ce que j’assume : je le suis, simplement”267. Trata-se assim de uma
objetidade própria ao que não é passível de conhecimento, como “un fardeau que je porte sans
jamais pouvoir me retourner vers lui pour le connaître”268. Mas isto não faz do Ego-para-outro
uma imagem que um outro faz de um para-si, trata-se de um ser “real”269, que o para-si é, ao
mesmo tempo em que, diz Sartre “[il] me fuit par principe, [il] ne m’appartiendra jamais. Et,
pourtant, je le suis […] il m’est présent comme un moi que je suis sans le connaître”270. É
neste sentido que sua presença é um assombrar, dado que ela é da ordem de uma presença não

265 Por esta razão, nem mesmo uma reflexão pura poderia dissipar esta figura ligada à facticidade do para-si.
CPM, p. 18. Sobre a relação entre os dois Egos, De Coorebyter mostra que o Ego recebido pela objetificação
pode suplantar o Ego constituído e eles podem realizar uma espécie de combate. Além disso, o Ego psíquico
aponta a seu ver para uma alternativa para além da alienação: “Cette distinction de plans permet de comprendre
que, loin d’être toujours aliénant ou réifiant, l’Ego psychique puisse servir à rétablir la vérité, à restaurer la
lucidité du sujet face à son Ego-pour-autrui”. DE COOREBYTER, V. Sartre face à la phénoménologie, p. 599.
266 EN, p. 326. (grifo nosso)
267 EN, p. 304.
268 EN, p. 301.
269 EN, p. 326.
270 EN, p. 300.
!396

localizável de uma espectralidade: “La présence d’autrui ne fait donc pas « apparaître » le
moi-objet : je ne saisis rien qu’un échappement à moi vers…”271; pois “mon moi-objet n’est
ni connaissance ni unité de connaissance, mais malaise, arrachement vécu à l’unité ek-statique
du pour-soi, limite que je ne puis atteindre et que pourtant je suis. Et l’autre, par qui ce moi
m’arrive, n’est ni connaissance ni catégorie, mais le fait de la présence d’une liberté
étrangère”272. O para-si, não podendo apropriar-se de seu ser-para-outro, o vive como mal-
estar (malaise), dado que este Ego-olhado não foi “produzido por si mesmo”, mas deve ser
assumido como uma dimensão fática de seu ser. Esta assunção revela então que embora o
para-si sofra a transformação, esta não se dá como pura passividade e sim como uma
metamorfose vivida, um lado de fora que se torna seu lado de fora 273, sua “natureza”. O ser
para-outro está presente como um espectro que introduz, pela dimensão da objetidade, uma
zona de opacidade na existência translúcida do para-si-no-mundo. Sartre o compara a uma
sombra que “se projetterait sur une matière mouvante et imprévisible et telle qu’aucune table
de références ne permettrait de calculer les déformations résultant de ces mouvements. Et
pourtant, il s’agit bien de mon être et non d’une image de mon être”274. Por esta razão, o ser-
para-outro conserva os aspectos de indeterminação e imprevisibilidade que constituem a
condição de “estar em perigo” diante do outro, uma “structure permanente de mon être-pour-
autrui”275.

Existir o corpo-para-outro

Se a metamorfose implica a alienação das estruturas do para-si “sujeito”, o que se


passa com o corpo? Sartre mostra como o para-si ganha uma dimensão objetiva corporal para-
outro que enraíza sua facticidade de modo a estabelecer, ao mesmo tempo, uma divisão entre:
a dimensão corporal para-si - corpo vivido - e a dimensão corporal para-outro - corpo
objetificado -, cisão correspondente ao plano propriamente corporal do que chamamos de
dualismo entre subjetividade e objetividade. Entretanto, esta divisão deve ser assumida em

271 EN, p. 314.


272 Ibid.
273 EN, p. 325.
274 EN, p. 301.
275 EN, p. 307.
!397

conjunto pelo para-si na medida em que ele deve existir seu corpo-para-outro, que é o que
Sartre denomina de “terceira dimensão ontológica do corpo”.
Uma esclarecedora descrição da metamorfose corporal e a assunção desta nova
dimensão pelo para-si encontra-se no conto sartriano L’Enfance d’un chef na cena em que o
personagem Lucien Fleurier descobre seu corpo-para-outro. Tal metamorfose é desencadeada
por uma frase escrita no banheiro da escola do adolescente Lucien, a qual dizia ser ele um
“grande aspargo”. Neste momento, Lucien se dá conta pela primeira vez de que todos os seus
colegas são menores do que ele e as cenas que se sucedem mostram suas tentativas
desesperadas de ora apropriar-se deste corpo-para-outro, ora de livrar-se dele. A partir de
então, todos os seus movimentos são sentidos como movimentos do “grande aspargo”, seu
corpo vivido é permanentemente marcado pelo olhar. Embora seja este um corpo que só exista
para outro, trata-se de seu corpo, o que pode ser observado nesta passagem:

[Lucien] pensa : « Je suis grand ». Il était écrasé de honte : grand


comme Barataud était petit - et les autres ricanaient derrière son dos.
C’était comme si on lui avait jeté un sort : jusque-là, ça lui paraissait
naturel de voir ces camarades de haut en bas. Mais à présent, il lui
semblait qu’on l’avait condamné tout d’un coup à être grand pour le
reste de sa vie. Le soir il demanda à son père si on pouvait rapetisser
quand on le voulait de toutes ses forces. M. Fleurier dit que non : tous
les Fleurier avaient été grands et forts et Lucien grandirait encore.
Lucien fut désespéré. Quad sa mère l’eut bordé il se releva et il alla se
regarder dans la glace : « Je suis grand ». Mais il avait beau se
regarder, ça ne se voyait pas, il n’avait l’air ni grand ni petit. Il releva
un peu sa chemise et vit ses jambes; alors il imagina que Costil disait à
Hébrard : « Dis donc, regarde les longues jambes de l’asperge » et ça
lui faisait tout drôle 276.

Este trecho é bastante revelador da terceira dimensão ontológica do corpo. Através da


mediação do olhar do outro, não somente o espectro de em-si da dimensão fática da
nadificação originária assombra o para-si, mas desta vez o assombra seu esboço fantasma
para-outro: “Le choc de la rencontre avec autrui, c’est une révélation à vide pour moi de
l’existence de mon corps, dehors, comme un en-soi pour l’autre”277. Ocorre então uma
objetificação da estrutura da facticidade imediata de modo a “multiplier la contingence de la
facticité”278, como um tipo de “prolongement de la facticité vécue”279. O corpo não é somente
um centro de referência de desvelamento das coisas-utensílios, mas é ponto de vista sobre o

276 ŒR, p. 327.


277 EN, p. 392.
278 EN, p. 383.
279 EN, p. 395.
!398

qual os outros tomam um ponto de vista. O para-si vive assim uma dimensão de seu corpo que
lhe escapa constantemente e por todos os lados, daí o mal-estar e a apreensão de si como
“irremediável”.
O que o trecho acima mostra com clareza é, em primeiro lugar, justamente o aspecto
irremediável da facticidade corporal: Lucien está condenado a existir o seu “ser alto”. Em
segundo lugar, o trecho mostra a necessidade da mediação do outro para que haja apreensão
do corpo para-outro no nível para-si: não basta a Lucien o espelho, ele precisa fazer um
exercício imaginário para se apreender como “alto” (outras cenas do conto retratam este
mesmo ponto); sua vivência é apenas o sentir escapar-se. É o que revela de forma geral,
segundo Sartre, a experiência da timidez. Trata-se de uma experiência de viver seu corpo tal
como ele é para-outro, em sua dimensão espectral. O para-si tenta em vão apropriar-se deste
corpo de modo a apreender concomitantemente o seu caráter de “inapreensível”, ou seja, o
fato de que por princípio ele encontra-se fora de alcance. Com isso “l’effort du timide, après
qu’il aura reconnu la vanité de ces tentatives, sera pour supprimer son corps-pour-l’autre.
Lorsqu’il souhaite « n’avoir plus de corps », être « invisible », etc., ce n’est pas son corps-
pour-lui qu’il veut anéantir, mais cette insaisissable dimension du corps-aliéné”280 . É o que se
passa com diversos personagens dos romances sartrianos que desejam ser invisíveis, como
Ève de La Chambre, cujo corpo lhe faz mal por ser muito vivo e indiscreto, por não saber o
que fazer com as mãos281.

O mundo para-outro

A metamorfose é uma transformação global do ser-no-mundo do para-si de modo que


devemos compreender as possibilidades, as potencialidades dos utensílios, a situação, a
temporalidade e a espacialidade a partir desta nova configuração. Isto não significa que o
para-si perde sua dimensão para-si de engajamento no mundo, mas sim que ele sofre ao
mesmo tempo a alienação desta dimensão, como explica Sartre:

sans doute, je suis toujours mes possibilités, sur le mode de la


conscience non-thétique (des) ces possibilités ; mais, en même temps,
le regard me les aliène : jusque-là, je saisissais thétiquement ces
possibilités sur le monde et dans le monde, à titre de potentialité des
ustensiles […] Mais avec le regard d’autrui, une organisation neuve

280 EN, p. 394.


281 Cf. ŒR, p. 252-253.
!399

des complexes vient se surimprimer sur la première. Me saisir comme


vu en effet, c’est me saisir comme vu dans le monde et à partir du
monde […] l’aliénation de moi qu’est l’être-regardé implique
l’aliénation du monde que j’organise282.

Essa passagem evidencia justamente o caráter da metamorfose como alienação brusca


das estruturas originárias, dado que Sartre fala de um plano do para-si que “até então” não
sofria a alienação e que agora se apresenta como uma “organização nova de complexos”.
Divisão que está em consonância com a leitura de Benoist de um para-si solipsista e que
identificamos, a partir de Saint Genet, como sendo o estado da inocência. O que ocorre então
é uma metamorfose global que aliena todas as estruturas de ser-no-mundo do para-si: a
possibilidade de utilizar os utensílios passa a ser uma possibilidade que escapa ao para-si na
medida em que ela é ultrapassada pelas possibilidades do outro em utilizá-los: “elle est là,
cette possibilité, je la saisis, mais comme absente, comme en l’autre” 283, o que significa que o
para-si apreende sua possibilidade “pelo lado de fora”, como uma dimensão sua que adquire
exterioridade. Ao mesmo tempo, não somente as possibilidades do para-si de utilização dos
utensílios são alienadas mas também suas possibilidades de agir são objetificadas e se
transformam, para-outro, em probabilidades, podendo adquirir o carácter de utensílio para o
outro. O olhar do outro transforma a situação do para-si globalmente: o para-si que estendia
suas distâncias é espacializado; que existia como processo temporalizador é “jogado no tempo
universal”284 e mesmo seu olhar é olhar-olhado. Neste sentido, Sartre estabelece uma
diferença entre o mundo para-si e o mundo para-outro, que é o mundo alienado. Este último é
o mundo do para-si enquanto escape e fuga em direção a outro, uma “desmundanização” do
para-si, uma “dissolução” brusca (que Sartre compara a uma “hemorragia”) de sua relação
mais imediata: “le monde se désintègre pour se réintégrer là-bas en monde, mais cette
désintégration ne m’est pas donnée, je ne puis ni la connaître ni même seulement la
penser”285. A alienação da situação do para-si é denominada por Sartre, utilizando um termo
de Gide, de “a parte do diabo”, que caracteriza a imprevisibilidade da situação real do para-si
alienado: “l’apparition de l’autre fait apparaître dans la situation un aspect que je n’ai pas
voulu, dont je ne suis pas maître et qui m’échappe par principe, puisqu’il est pour l’autre” 286.

282 EN, p. 302-303.


283 EN, p. 303.
284 EN, p. 306.
285 EN, p. 301.
286 EN, p. 304-305. “L’envers de la transcendance : l’échappement. Je transcende tout e tout ce que je fais

m’échappe”. CPM, p. 57.


!400

O outro é o polo de escoamento do mundo do para-si, que até então revelava sua imagem, em
direção a seu avesso. Uma direção imprevisível que escapa por princípio ao para-si e que
revela uma gestalt híbrida - espectral -, que constitui a situação para-outro como uma
“synthèse qui possède à la fois la cohésion ek-statique et le caractère de l’en-soi” 287. Segundo
Sartre, a imprevisibilidade da situação ressaltada por Gide é também aquela demonstrada por
Kafka em O processo e O castelo. Nestas obras este autor apresenta o escape constante do
sentido dos atos dos personagens, impossíveis de serem conhecidos. A atmosfera processual
“dolorosa e fugidia” do Processo é a do para-si alienado: “cette ignorance qui, pourtant, se vit
comme ignorance, cette opacité totale qui ne peut que se pressentir à travers une totale
translucidité, ce n’est rien d’autre que la description de notre être-au-milieu-du-monde-pour-
autrui”288. A alienação lança o para-si como “coisa” no meio do mundo, como transcendência-
transcendida, ao transformar suas possibilidades em probabilidades e em utensiliaridade para-
outro; define sua inserção no tempo universal; situa-o a partir dos espaços que outros
estendem ao redor dele; transforma seu engajamento no mundo em enraizamento289. A partir
de então, a “parte do diabo” transforma a situação em atmosfera processual, composta por
zonas de opacidade das sombras de si, reveladas pela dimensão para-outro: “Par le regard
d’autrui, je me vis comme figé au milieu du monde, comme en danger, comme irrémédiable.
Mais je ne sais ni quel je suis, ni quelle est ma place dans le monde, ni quelle face ce monde
où je suis tourne vers autrui”290.

c) O assombramento do olhar.

As descrições acima sobre a metamorfose e a “inocência” revelaram que o ponto


fundamental da relação com o outro como um encontro contingente consiste na aparição
brusca de uma nova dimensão de alienação das estruturas do para-si. Ao mesmo tempo, o
dualismo que indicamos ser aquele entre subjetividade e objetividade baseia-se no fato de
que, embora estas duas dimensões componham desde então o “sujeito” para-si, Sartre as
define como incompatíveis. Se tomarmos estas dimensões em conjunto para compreender o
“sujeito” para-si, nosso recurso frente a este dualismo específico é mostrar, através de

287 EN, p. 305. (grifo nosso)


288 Ibid. (grifo nosso)
289 EN, p. 331.
290 EN, p. 307.
!401

argumentos sartrianos, que o assombramento é a forma de presença espectral do ser-para-


outro na dimensão para-si. Por esta razão, o esboço fantasma - que é o termo que destacamos
para nomear este tipo específico de presença espectral - apresenta-se como mais um aspecto
deste campo que denominamos ser o das zonas de opacidade. Isto posto, faremos a seguir um
desdobramento da questão do assombramento típico da relação com o outro a fim de mostrar
que não somente o para-outro assombra o para-si, como viemos de expor, mas ainda o outro
de forma geral. A sutileza desta diferença pode ser esclarecida se evidenciarmos em primeiro
lugar o sentido do assombramento neste contexto particular, que é o assombramento do olhar,
para em seguida delimitar as especificidades dos assombramentos próprios à presença e à
ausência do outro no campo perceptivo do para-si.

Como vimos a respeito da crítica de Merleau-Ponty, ao estabelecer a relação com o


outro em termos de olhar, Sartre parece prolongar os princípios lógicos e abstratos
característicos de uma filosofia da visão. No entanto, tal argumento, como mostrou nossa
“Segunda parte”, baseava-se numa concepção de consciência desencarnada que só adquiria
incorporação no mundo pelo olhar do outro. Se este ponto não se sustenta mais, devemos
compreender qual o sentido deste olhar, na medida em que a relação com o outro não se reduz
simplesmente a um confronto de pontos de vista, ou de luta entre olhares posicionais, o que
corresponderia a um encontro frontal entre os sujeitos. Se há luta de consciências, como
Sartre evidencia no capítulo sobre as relações concretas com o outro em L’Être et le Néant,
deve-se compreender qual o plano de confronto próprio ao conflito de tal dialética, que é este
assombramento mais originário. Isto posto, a primeira dificuldade que podemos identificar se
quisermos apreender o sentido do que Sartre está descrevendo em termos de olhar é aquela
causada pelos próprios termos empregados pelo autor para descrever esta relação: a saber,
como uma relação entre um sujeito e um objeto. Isto porque, se Sartre tem por objetivo
mostrar que a relação com o outro não é de conhecimento, ao falar do olhar por meio deste
vocabulário, ele emprega justamente os termos mais clássicos desta relação. Em outras
palavras, ao estabelecer a relação com o outro em termos de olhar, Sartre parece então cair
naquilo que a todo custo buscava evitar: que a relação com o outro seja uma relação de
!402

conhecimento, do tipo sujeito-objeto. Além disso, ao demonstrar a inessencialidade do


fenômeno da dupla sensação, sublinha Barbaras, Sartre privilegia o ver ao tocar (toucher),
passando ao largo da encarnação do corpo próprio e pressupondo uma filosofia da consciência
subordinada ao modelo da visão 291. Mas o que seria este modelo?
Podemos dizer resumidamente que há uma relação histórica que une visão e
conhecimento. Esta pode ser observada desde o Fédon de Platão, pela ideia do movimento da
alma que contempla a verdade, como aponta Levinas292 e também Derrida, quando diz:
“Idein, eidos, idea : toute l’histoire, toute la sémantique de l’idée européenne, dans sa
généalogie grecque, on le sait, on le voit, assigne le voir au savoir”293. Posteriormente, a visão
adquire no interior das filosofias do sujeito o aspecto do conhecimento como acesso intuitivo
desencarnado, como aquele que posiciona o ente sem que nada se interponha nessa apreensão.
E isto de maneira hegemônica a ponto de Lefort, por exemplo, se perguntar se “le désir de
circonscrire avec l’œil l’ouverture de l’homme au monde ne gouverne-t-il pas la
métaphysique entière?”294. Raffoul, na mesma direção e a partir de Être et temps, afirma que
“le motif de la vision est indissociable de la détermination occidentale de la connaissance
comme mode d’accès à l’étant” de modo que “[l]a « destruction » de l’ontologie du
substantiel dans l’élucidation ontologique du Dasein doit s’accompagner, sinon dépendre,
d’une « destruction » du voir intuitif, compris au sens large comme mode d’accès privilégié à
l’étant et à l’être”295. Sartre, por sua vez, não ignora esta relação entre a visão (voir) e o saber
(savoir). Ao falar sobre o que entende por conhecimento apropriativo, ele diz que “si l’on
examine les comparaisons ordinairement utilisées pour exprimer le rapport du connaissant au
connu, on voit que beaucoup d’entre elles se présentent comme un certain viol par la vue” 296.
A ideia de que conhecer é “comer com os olhos” é típica deste modo de conhecimento, o qual
já havia sido criticado no artigo de 1934 sobre a intencionalidade, cujo propósito é escapar a
este modelo297. Se a relação com o outro é descrita em termos de olhar e se a base das

291 BARBARAS, R. Le corps et la chair dans la troisième partie de L’être et le néant.


292 LEVINAS, E. Totalité et infini. Essai sur l’extériorité. Paris: Kluwer Academic, 2000.
293 DERRIDA, J. Mémoires d’aveugle. L’autoportrait et autres ruines. Paris : Réunion des musées nationaux,

1990, p. 18. A este respeito, Lefort diz o seguinte: “N’est-ce pas Platon déjà, comme le relève Heidegger, qui
force le mot eidos pour lui faire nommer l’essence, alors qu’il désignait l’aspect sensible de la chose; qui fait
surgir pour un pur regard ce qui n’apparaît pas aux yeux du corps? Avec lui ne s’inaugure-t-il pas un mouvement
qui, jusqu’à Husserl, soutiendra l’élection du voir, et au cœur des plus amples variations conservera le lien de la
vérité, et à l’intuitus mentis ou à la Wesenschau?”. LEFORT, C. Sur une colonne absente, p. 145.
294 LEFORT, C. Ibid., p. 152.
295 RAFFOUL, F. A chaque fois mien, p. 153.
296 EN, p. 624.
297 Cf. S.I, p. 29.
!403

argumentações encontra-se limitada a uma chave do tipo sujeito-objeto, como Sartre se situa
finalmente em relação ao problema da visão, já que ele insistentemente afirma que a relação
originária com o outro não pode ser uma relação epistemológica? Ou sua posição recai por
fim naquilo que ele gostaria de evitar, ou devemos fazer uma distinção entre a visão como
conhecimento apropriativo e o olhar em seu sentido particularmente sartriano. Dado que falar
da visão em si não conduz necessariamente à posição filosófica tradicional, como mostra
Lefort a respeito de Merleau-Ponty, que a seu ver é “celui qui interroge la vision comme nul
autre ne l’a fait”298, de maneira que ele “bouleverse déjà l’idée que nous nous faisions de la
vision et de l’ouverture”299. Neste sentido, devemos compreender a relação ao outro em Sartre
a partir da concepção do olhar em sua peculiaridade, a qual reside, a nosso ver, no fato desta
ser uma relação de assombramento.

A presença espectral do outro

Le spectre, ce n’est pas simplement ce visible invisible


que je peux voir, c’est quelqu’un qui me regarde sans
réciprocité possible, et qui donc fait la loi là où je suis
aveugle, aveugle par situation. Le spectre dispose du droit
absolu, il est le droit de regard même.

Derrida, Spectrographies

“On me regarde”. Vimos a força que esta constatação tem enquanto produtora de uma
metamorfose. Quem me olha? Alguém, todos ou ninguém, pois o olhar transcende um sujeito
localizável, isto é, a experiência do ser-olhado em Sartre é mais fundamental que a presença
dos olhos de uma pessoa particular em meu campo perceptivo. O olhar é a “présence immense
et invisible”300 do outro para além do mundo, transmundana, extramundana, nas palavras de
Sartre. Esta presença, que o autor chama de outro-sujeito ou totalidade-sujeito, é para nós um
dos modos de presença espectral do outro, uma vez que ela não é localizável e nem passível
de conhecimento. Trata-se de uma “transcendance omniprésente et insaisissable, posée sur
moi sans intermédiaire en tant que je suis mon être-non-révélée, et séparée de moi par l’infini

298 LEFORT, C. Sur une colonne absente, p. 147.


299 Ibid., p. 152.
300 EN, p. 308. (grifo nosso)
!404

de l’être, en tant que je suis plongé par ce regard au sein d’un monde complet avec ses
distances et ses ustensiles : tel est le regard d’autrui, quand je l’épreuve d’abord comme
regard”301. A única possibilidade de apreender tal presença é a experiência transformadora de
ser olhado; a presença espectral do outro como tal não pode ser conhecida, é algo que está lá
mas que não se mostra a um olhar intuitivo. Aqui reencontramos o efeito de viseira do qual
falava Derrida, como “regard dissymétrique, échangé au-delà de tout échange possible…” 302,
que neste contexto pode ser compreendido como a condição mesma de ser-no-mundo-com-o-
outro do para-si. Para Derrida, “le regard est la spectralité même”303 , dado que ele instaura
uma heteronomia própria a esta relação que é a de ser olhado sem poder ver quem olha. Em
Sartre, esta heteronomia espectral é a condição de todo tipo de objetividade do para-si, na
medida em que “[l’autre-sujet] est toujours là, hors de portée et sans distance lorsque j’essaie
de me saisir comme objet”304. Neste sentido o outro assombra o para-si, ele está presente por
todos os lados de modo que ele não está presente diante do para-si, como um objeto, pois ele
é “l’être vers qui je ne tourne pas mon attention” 305. A presença espectral do outro-sujeito,
pela dissimetria que ela comporta, não é nunca uma presença frontal, assim como para
Merleau-Ponty, para quem a presença do outro é lateral ou “chega por detrás”: “Autrui n’est
nulle part dans l’être c’est par-derrière qu’il se glisse dans ma perception…”306. A descrição
de Merleau-Ponty em La prose du monde desta presença do outro em meu campo perceptivo,
aliás, comporta um caráter significativo do assombramento de um espectro, quando ele diz
que “tout autre est un autre moi-même. Il est comme ce double que tel malade sent toujours à
son côté, qui lui ressemble comme un frère, qu’il ne saurait jamais fixer sans le faire
disparaître, et qui visiblement n’est qu’un prolongement au dehors de lui-même, puisqu’un
peu d’attention suffit à le réduire”307. Sartre, por outro lado, ao qualificar a presença espectral
do outro como extramundana, parece de algum modo tornar esta presença independente do
campo perceptivo. No entanto, ele diz que “toute regard dirigé vers moi se manifeste en
liaison avec l’apparition d’une forme sensible dans notre champ perceptif, mais contrairement
à ce qu’on pourrait croire, il n’est lié à aucune forme déterminée”308. É neste sentido que a

301 EN, p. 309. (grifo nosso)


302 DERRIDA, J.; STIEGLER, B. Spectrographies, p. 135.
303 Ibid., p. 137.
304 EN, p. 310.
305 EN, p. 308.
306 PM, p. 190.
307 PM, p. 186. (grifo nosso)
308 EN, p. 297.
!405

presença espectral do outro assombra como “barulho de passos no corredor”, “estalar de


galhos”, ou por uma janela que se abre, por exemplo. Lacan, inspirado pela dialética do olhar
em Sartre, resume bem este ponto:

Le regard dont il s’agit ne se confond absolument pas avec le fait, par


exemple, que je vois ses yeux. Je peux me sentir regardé par
quelqu’un dont je ne vois pas même les yeux, et même pas
l’apparence. Il suffit que quelque chose me signifie qu’autrui peut être
là. Cette fenêtre, s’il fait un peu obscur, et si j’ai des raisons de penser
qu’il y a quelqu’un derrière, est d’ores et déjà un regard. A partir du
moment où ce regard existe, je suis déjà quelque chose d’autre, en ce
que je me sens moi-même devenir un objet pour le regard d’autrui 309.

Os passos, os barulhos e a janela podem indicar a possível presença efetiva de um


outro que virá ao encontro do para-si, mas pode ser que estas indicações sejam apenas um
“falso alerta”, diz Sartre. Na verdade, continua o autor, não importa se o outro está ou não
presente efetivamente no campo perceptivo do para-si, pois isto não faz desaparecer o olhar:
“Loin qu’autrui ait disparu avec ma première alerte, il est partout à présent, en dessous de
moi, au-dessus de moi, dans les chambres voisines et je continue à sentir profondément mon
être-pour-autrui”310. Por esta mesma razão, o olhar não poderia ser de um outro ou de uma
pluralidade de outros, o olhar diz respeito a uma realidade “pré-numérica”311: “Il s’agit plutôt
d’une réalité impalpable, fugace et omniprésente qui réalise en face de nous notre Moi non-
révélé et qui collabore avec nous dans la production de ce Moi que nous échappe”312.
Se assim for, podemos dizer que esta relação é então mais originária que as
experiências datadas da metamorfose, pois se algo é capaz de anunciar um olhar é porque já
há previamente a condição de ser olhado. “Si je tressaille au moindre bruit, dit Sartre, si
chaque craquement m’annonce un regard, c’est que je suis déjà en état d’être-regardé”313. Se
o outro já se encontra presente em qualquer objetivação do para-si - como a condição mesma
de sua objetivação - e se Sartre estabelece que a relação originária do olhar, ao contrário de
Husserl, não pode se ater ao plano dos “eus psicofísicos”, mas deve atingir o próprio “sujeito

309 LACAN, J. Le séminaire I. Les écrits techniques de Freud. Paris : Seuil, 1975, p. 241.
310 EN, p. 316.
311 “il ne saurait être question de s’opposer à l’autre par une pure détermination numérique. Il n’y a pas ici deux

ou plusieurs consciences: la numération suppose un témoin externe en effet et elle est pure et simple constatation
d’extériorité. Il ne peut avoir d’autre pour le pour-soi que dans une négation spontanée et prénumérique”. EN, p.
324
312 EN, p. 321.
313 EN, p. 317. (grifo nosso)
!406

transcendental” 314, concluímos que a metamorfose que diz respeito a uma transformação
datada é possibilitada pela condição de um para-si já assombrado pelo outro, isto é, há na
“inocência” a condição de “já olhado”.
A experiência datada da metamorfose pode ser revelada principalmente, como vimos,
pela vergonha, pelo orgulho, pelo medo, etc., mas é certo que o para-si já se encontra desde
sempre no-mundo, imerso na linguagem, numa história passada, existindo seu corpo, imerso
nas significações intersubjetivas, de forma que seria de fato absurdo pensar um para-si fora
desta imersão, o que para Sartre seria pensar um para-si abstraído de sua “humanidade”.
Assim, mesmo que a relação com o outro seja da ordem de um encontro, desde o surgimento
do para-si como ser-no-mundo, ele é lançado nesta condição de “vivre dans un monde hanté
par mon prochain” 315. Dito isto, a metamorfose significa, a nosso ver, o paradigma da
experiência reveladora não somente da condição de ser-olhado, mas da aparição de um Eu-
olhado. Isto nos leva a crer que a experiência de objetificação se dá em vários níveis, até
porque a cena de alguém que é flagrado ao olhar pelo buraco da fechadura não irá
necessariamente se cristalizar como uma “crise original”, tal como foi para Genet ser rotulado
de ladrão e para Flaubert a descoberta de que era o idiota da família. Dito de outro modo, nem
toda objetificação, que é própria ao ser no mundo com os outros, faz surgir o polo norteador
de um projeto original. No mesmo sentido, seria absurdo pensar que qualquer objetivação do
para-si seria vivida como “traumática”, para usar um termo da psicanálise. Como Sartre não
faz a distinção entre as objetificações da condição de já-olhado com a objetificação mais
potente da metamorfose, ele corre o risco teórico de reduzir toda a relação com o outro a este
instante fatal.
Isto posto, podemos constatar que há o assombramento próprio à presença espectral do
outro e o assombramento que se dá a partir da metamorfose, isto é, próprio ao Eu-para-outro.
Assim como há experiências de objetivação (estando o outro presente efetivamente ou não no
campo perceptivo) que oferecem um “lado de fora” ao para-si sem que isto represente uma
“crise original” a ponto de orientar um projeto fundamental. A presença invisível do outro
assombra cotidianamente e incessantemente o plano translúcido para-si, e a experiência
concreta da metamorfose se sustenta nesta condição, além de levá-la ao limite. Isto porque, a

314 Fazemos uso das aspas dado que em Sartre não se trata, como vimos anteriormente, de um sujeito
transcendental. O uso destes termos aqui é para mostrar o ponto de discordância para com Husserl.
315 EN, p. 554.
!407

partir de tais cenas empíricas, o assombramento se acentua e se duplica: primeiramente no


sentido de que dado que meu mundo escoa em direção ao outro, o outro “hante cet
écoulement, non comme un élément réel ou catégoriel, mais comme une présence qui se fige
et se mondanise si je tente de la « présentifier » et qui n’est jamais plus présente, plus urgente
que lorsque je n’y prends pas garde” 316. Em segundo lugar, porque a partir da metamorfose
surge um Eu-para-outro que passa a assombrar o para-si, na sua dimensão para-si:

La honte est révélation d’autrui non à la façon dont une conscience


révèle un objet, mais à la façon dont un moment de la conscience
implique latéralement un autre moment, comme sa motivation.
Eussions-nous atteint la conscience pure, par le cogito, et cette
conscience pure ne serait-elle que conscience (d’être) honte, la
conscience d’autrui la hanterait encore, comme présence
insaisissable, et échapperait par là à toute réduction317.

A presença espectral do outro se dá, portanto, nestes dois níveis. Podemos observar
este segundo nível pelo exemplo de Jean Genet, que é assombrado pela frase “tu est un
voleur”. A frase se cristaliza e habita permanentemente seu ser de modo que ele passa a
desejar existir como um “objeto sagrado” - seu ser objetivo para os outros - para um
testemunho fictício. Porém, diz Sartre, “le témoin n’est personne”318: “il est un monstre, il sent
passer sur sa nuque le souffle de ce monstre, il se retourne et ne trouve personne”319. Do
mesmo modo Baudelaire, que deseja se sentir “culpado” diante de um Bem absoluto,
necessita de um Bem que se dá pelo olhar: “Un regard qui commande et qui condamne […] le
regard qui le transperce, qui le remet à sa place et qui « l’objective », le grand regard « porteur
de Bien et de Mal », est-il celui de sa mère, du général Aupick ou de Dieu « qui voit tout »?
C’est tout un” 320. Um olhar, não no sentido numérico - pois vimos que se trata de uma
realidade pré-numérica - mas no sentido da condição de objetividade que não é em si mesma
objetificável, pois “un œil, l’œil-un, le monocle, n’est jamais un objet”321 , como diz Derrida.
E é neste sentido que Sartre afirma que “par le regard d’autrui, la société tout entière
(institution, organisme, classe) me hante”322.

316 EN, p. 308. (grifo nosso)


317 EN, p. 312. (grifo nosso)
318 SG, p. 57.
319 SG, p. 58.
320 B, p. 55. (grifo nosso)
321 DERRIDA, J. Mémoires d’aveugle, p. 94.
322 CPM, p. 118.
!408

Há ainda um modo distinto de presença espectral do outro, que consiste num tipo de
presença corporal de um outro que está ausente do campo perceptivo. Neste caso,
identificamos que se trata ainda de uma presença espectral só que desta vez correspondente a
uma modalidade que Sartre identifica ser a do outro como objeto (não mais como totalidade-
sujeito). Veremos em seguida as especificidades da relação com o outro como objeto na
presença deste outro no campo perceptivo de um para-si, ou seja, na relação do para-si com o
outro que se apresenta “em carne e osso”. Porém, nesse momento, falamos ainda de uma
presença espectral no sentido de que se trata de uma presença pré-numérica dos outros como
ausentes. A ausência, diz Sartre, é um modo de relação com a existência concreta de alguém
em algum lugar, isto é, trata-se de uma modalidade de copresença, de modo que a morte, por
exemplo, não é uma ausência. Neste sentido, a ausência é um componente ativo da situação
de cada para-si no mundo, a partir de uma “presença originária” cujas distâncias não se dão
somente por estradas e continentes, mas também por línguas e condições sociais:

Mais ces remarques peuvent être généralisées : ce ne sont pas


seulement Pierre, René, Lucien qui sont absents ou présents par
rapport à moi sur fond de présence originelle ; car ils ne contribuent
pas seuls à me situer : je me situe aussi comme Européen par rapport à
des Asiatiques ou à des nègres, comme vieillard par rapport à des
jeunes gens, comme magistrat par rapport aux délinquants, comme
bourgeois par rapport à des ouvriers, etc. En un mot c’est par rapport à
tout homme vivant que toute réalité-humaine est présente ou absente
sur fond de présence originelle323.

Sendo assim, podemos dizer que a ausência do outro “em carne e osso” no campo
perceptivo não significa, neste contexto, que o outro não está de algum modo presente como
componente da situação de cada para-si. Este modo particular de presença do outro é descrito
por Sartre como sendo a facticidade implícita do ausente indicada pelas coisas-utensílios 324.
Falamos anteriormente desta característica em termos de “propriedades laterais” dos
utensílios ou de significações intersubjetivas. A nosso ver, esta facticidade do outro ausente
indicada pelas coisas-utensílios é também um modo de presença espectral na medida em que
“elle m’est donnée dès là qu’autrui existe pour moi dans le monde, la présence d’autrui ou
son absence n’y change rien” 325. A diferença para com o modo de presença espectral que
viemos de descrever acima - do outro-sujeito - é que agora se trata da presença espectral do

323 EN, p. 319.


324 Cf. EN, p. 382.
325 EN, p. 382. (grifo nosso)
!409

outro como facticidade corporal e não como olhar desencarnado. Na presença espectral do
outro como sujeito, os objetos assombravam enquanto indicação de um olhar capaz de
objetificar o para-si, ao passo que, neste outro modo de assombramento, os objetos apenas
indicam outro centro de referência de orientação dos utensílios, que é o corpo de outrem,
mesmo ausente do campo perceptivo.
Isto posto, pensamos que tais condições trazem como consequência justamente a
problematização da ideia do outro neste contexto como “objeto”, dado que não há um outro
“em carne e osso” sendo objetificado, mas uma indicação lateral dos isto da presença fática do
outro no mundo. De todo modo, trata-se da facticidade do outro como objeto no meio do
mundo, logo, como transcendência-transcendida, e não da facticidade vivida pelo outro como
sujeito. Esta facticidade do outro objeto se espectraliza ao se fazer presente sobre o modo da
ausência como uma facticidade corporal implícita nas coisas. Ela é “partout présent” 326, em
razão de que sua corporeidade não é objetivável, como se pode observar neste exemplo: “Dès
que je reçois une lettre de mon cousin d’Afrique, son être-ailleurs m’est donné concrètement
par les indications mêmes de cette lettre, et cet être-ailleurs est un être-quelque-part : c’est
déjà son corps”327. Assim, a aparição do outro no campo perceptivo do para-si parece vir
enriquecer, prolongar ou confirmar sua presença espectral que já se fazia anunciar ou indicar
pelos objetos assombrados. É sobre esta última modalidade que iremos nos concentrar em
seguida.

O outro presente no campo perceptivo.

Se é verdade que “je ne connais pas d’ustensiles qui ne se réfèrent secondairement au


corps de l’autre”328 e que a presença espectral do outro se encontra por todos os lados, o
momento que Sartre descreve como sendo secundário, que é o da aparição do corpo do outro
no campo perceptivo, faz surgir uma modalidade diversa do outro como objeto. Este segundo
momento encontra-se diretamente relacionado com à primeira modalidade que viemos de
mencionar, embora haja novas estruturas corporais em jogo. Vejamos a descrição que Sartre
faz deste momento:

326 EN, p. 381.


327 EN, p. 382.
328 EN, p. 380.
!410

Mais voici que Pierre paraît, il entre dans ma chambre. Cette


apparition ne change rien à la structure fondamentale de mon rapport à
lui : elle est contingence, mais comme son absence était contingence.
Les objets l’indiquent à moi : la porte qu’il pousse indique une
présence humaine quand elle s’ouvre devant lui, de même le fauteuil
où il s’assied, etc. ; mais les objets ne cessaient de l’indiquer, pendant
son absence. Et, certes, j’existe pour lui, il me parle ; mais j’existais
pareillement hier, lorsqu’il m’envoyait ce pneumatique qui est
présentement sur ma table pour m’aviser de sa venue. Pourtant, il y a
quelque chose de neuf : c’est qu’il paraît à présent sur fond de monde
comme un ceci que je peux regarder, saisir, utiliser directement.
Qu’est-ce que cela signifie? Tout d’abord, c’est que la facticité
d’autrui, c’est-à-dire la contingence de son être, est explicite à présent,
au lieu d’être implicitement contenue dans les indications latérales des
choses-ustensiles329.

Sartre estabelece que, a partir da aparição do outro no campo perceptivo, a facticidade


corporal implícita indicada pelos isto se torna explicitamente presente. Além disso, o outro
como transcendência-transcendida, que era somente indicado pelas coisas-utensílios, aparece
agora dotado de uma objetividade visível que faz com que ele possa aparecer como um
instrumento no meio do mundo, ou sob outras formas objetivas. Porém, esta objetividade do
outro presente “em carne e osso” nunca é a mesma objetividade com a qual nos aparecerem os
objetos tematizados na relação de conhecimento. Dizer que o para-si apreende o corpo do
outro como transcendência-transcendida não é eliminar o caráter de transcendência daquilo
que sofre objetificação. Este seria o caso do cadáver, que é o corpo do outro tomado como
objetividade pura, cortado das relações significantes que sua transcendência estabelece com o
mundo. Sendo assim, o que Sartre está chamando aqui de outro-objeto, não é propriamente
um objeto. É um corpo que é ação e que é em situação, e é como tal que ele é transcendido
pelo para-si que o encontra. Logo, o que é denominado de corpo-para-outro é uma
modalidade corporal difícil de ser enquadrada em termo de “para-si” e “em-si”, assim como o
para-outro em geral, como já mencionamos mais de uma vez. Por esta razão, o corpo-para-
outro é qualificado por Sartre como “l’objet magique par excellence”330.
As descrições sartrianas sobre a possibilidade de apreensão do outro como objeto
esbarram sempre neste limite: se o outro é um “objeto”, ele é um objeto que me escapa, “un
instrument explosif que je manie avec appréhension, parce que je pressens autour de lui la

329 EN, p. 382.


330 EN, p. 391.
!411

possibilité permanente qu’on le fasse éclater et que, avec cet éclatement, j’éprouve soudain la
fuite hors de moi du monde et l’aliénation de mon être”331. A dialética do outro, que é a
estrutura conflitual de consciências que mencionamos anteriormente, é uma tentativa
incessante de lidar com esta objetividade “explosiva” do outro, justamente pela
impossibilidade de reduzir o outro a um objeto332 . Do mesmo modo, se há níveis de
objetivação, esta nunca se dá por completo, ou seja, o outro, para ser puramente e
completamente um objeto, deve ser abstraído de sua dimensão de transcendência, como no
caso do cadáver. A apreensão do outro no campo perceptivo é assim uma apreensão imediata
do outro como corpo-em-situação: uma forma contingente sob um fundo corporal organizado
pela inserção fática do outro no mundo, como um outro centro de referência de orientação dos
isto. Um corpo vivo, que estende suas distâncias e revela seus sentidos a cada momento, de
modo que é este corpo que aparece como transcedência-transcendida e não o cadáver.
Outro ponto importante é o fato de que Sartre não distingue, no que diz respeito à
apreensão imediata do corpo do outro, as dimensões psíquica e corporal para-outro, tal como
ele o faz entre o plano das sombras e a dimensão para-si. Em outros termos, o corpo não é
uma dimensão exterior ao psíquico, como se seu papel fosse o de expressar uma interioridade
psíquica; o corpo em sua dimensão para-outro é, segundo Sartre, “un objet psychique par
excellence, le seul objet psychique”333. Ao definir o corpo-para-outro como objeto psíquico,
Sartre estabelece então que, devido a um golpe de objetivação, o psíquico se encarna
finalmente, de modo que o corpo para-outro é corpo psíquico. Porém, não fica clara a
diferença entre o corpo psíquico como corpo-para-outro e o corpo psíquico constituído
reflexivamente e sofrido pelo para-si, tal como apresentamos em nossas análises sobre o plano
de sombras. Por isso, devemos por nossa parte distinguir finalmente que, para o para-si, o
corpo psíquico é o suporte da sua dimensão de sombras, e que para-outro o para-si aparece
como corpo psíquico, sem haver diferença entre a dimensão para-si e a dimensão de sombras.
Neste sentido, o para-si nunca irá apreender o outro em sua vivência de repulsa, por exemplo,
mas somente como corpo que é a própria raiva, ou seja, para o olhar objetivo, o corpo é ação
significante. É como se o olhar do outro só pudesse apreender o conjunto, e por isso ele é

331 EN, p. 336.


332 A raiva, por exemplo, implica o reconhecimento da liberdade do outro. Sartre descreve a raiva como uma
atitude concreta com o outro que visa a tomá-lo como um objeto para destruí-lo, de modo a “supprimer du même
coup la transcendance qui le hante” EN, p. 451.
333 EN, p. 387.
!412

objetificador, de toda a dimensão fática do para-si. Tentar descrever essa dimensão fática em
conjunto, por exemplo, é ainda apontar no outro um caráter, como uma unidade fática, sem
distinguir os níveis de assombramento.
Já para o para-si, a integração das dimensões para-outro e psíquica só ocorre
reflexivamente, no momento em que ele toma em relação a si mesmo a atitude objetivante.
Pela reflexão impura o para-si integra agora - a partir da mediação do outro - uma nova
camada de constituição aos objetos psíquicos: uma “couche aliénante cognitive”334, que
consiste num saber proveniente do conhecimento dos outros sobre si, transmitidos pela
linguagem. Isto faz com que o para-si reflexivamente se volte para si mesmo numa intenção
cognitiva, no intuito de apreender o psíquico como objeto de conhecimento, integrando as
significações provenientes do conhecimento dos outros. Forma-se assim um novo objeto
psíquico, intersubjetivo, que tem como suporte corporal o corpo psíquico sofrido - o qual “sert
de noyau, de matière aux significations aliénantes”335 - e que passa a assombrar o para-si. O
psíquico que era a constituição em estado da dor nos olhos, segundo exemplo já citado, passa
a ser agora um objeto para outro: o médico pode diagnosticar uma doença, passa-se a falar
desta doença, a organizar as ações de acordo com o tratamento. Eis aqui então um “novo
objeto” mágico, que possui os “caractères de spontanéité magique, de finalité destructrice, de
puissance mauvaise, sur sa familiarité avec moi et sur ses rapports concrets avec mon être (car
c’est, avant tout, ma maladie)” 336. Este novo objeto, que poderíamos chamar de psíquico-
para-outro, passa a assombrar o para-si pela sua dimensão de corpo psíquico, para além do
assombramento imediato do para-outro: “Ainsi, de même qu’un être-pour-autrui hante ma
facticité non-thétiquement vécue, de même un être-objet-pour-autrui hante, comme une
dimension d’échappement de mon corps psychique, la facticité constituée en quasi-objet pour
la réflexion complice”337, diz Sartre.
Na apreensão imediata do corpo do outro no campo perceptivo o que se apresenta é
então um corpo psíquico, em situação. Se o corpo pode ser descrito pelo funcionamento de
seus órgãos pelo médico, ou como caráter pelo psicólogo, estes níveis de objetivação não
suprimem a condição de corpo-em-situação do corpo-para-outro, visto que a apreensão pode
variar em maior ou menor grau a dimensão de objetividade do corpo do outro sem transformá-

334 EN, p. 396.


335 Ibid.
336 EN, p. 397.
337 EN, p. 397-398.
!413

lo em cadáver. Com isso concluímos que o corpo-para-outro não é simplesmente o lado


objetivo do para-si subjetivo. Assim como Sartre descrevia o ser para-outro como não sendo
nem para-si, nem em-si, o mesmo é válido para a dimensão corporal para-outro, “objeto
mágico” por excelência. Dito isto, a especificidade deste modo de ser corporal contesta o
dualismo entre subjetividade e objetividade como correspondentes às dimensões corporais
para-si e para-outro. Uma vez que as dimensões para-si e para-outro encontram-se interligadas
pela relação de assombramento, é este conjunto que aparece para o outro como corpo-em-
situação. Mas isso diz respeito ainda ao modo de aparição do corpo do outro, que é a
verdadeira análise de Sartre nas páginas sobre “o-corpo-para-outro”, o que, “por razões de
comodidade”, pode ser posteriormente aplicada ao para-si. Falta-nos mostrar como este
dualismo pode ser contestado em relação ao que ocorre no para-si quando este corpo-em-
situação aparece em seu campo perceptivo. A este respeito já mencionamos a constituição do
objeto psíquico intersubjetivo. A tomada reflexiva do conhecimento do outro sobre si,
corresponde a um aspecto (reflexivo) da “terceira dimensão ontológica do corpo”, que vimos
ser a assunção pelo para-si de seu corpo para-outro. Vimos ainda que o corpo-para-outro
assombra a experiência corporal imediata para-si (como no exemplo do personagem Lucien
Fleurier), enquanto que o novo objeto psíquico formado a partir do conhecimento proveniente
do outro assombra em um segundo nível o para-si em seu corpo psíquico. Contudo, além
disso há ainda um aspecto da apreensão imediata do corpo do outro que assombra o nível
mais imediato do para-si que é o que Sartre denomina de carne (chair) do outro. A carne
atesta uma comunidade fática que o para-si e o outro compartilham, dado que a contingência é
o terreno ontológico comum. O para-si, como vimos, existe seu corpo como afetividade
original, que é a náusea de existir sua contingência. O outro, por sua vez, vive do mesmo
modo a náusea de sua contingência, o que Sartre também denomina de gosto. A carne é a
apreensão da facticidade correspondente ao gosto do outro, o que revela uma condição fática
compartilhada: “Je ne saisis jamais autrui comme corps sans saisir en même temps, de façon
non explicite, mon corps comme le centre de référence indiqué par autrui”338, afirma Sartre. A
apreensão da carne do outro é a apreensão de sua afetividade original para outro, não como
um objeto de conhecimento, mas como “un type particulier de nausée”, que reforça ao para-si
o gosto de sua própria contingência.

338 EN, p. 384.


!414

A noção de carne, por fim, tem ainda uma função fundamental no conjunto das
condições sartrianas da relação com o outro. A este respeito, Barbaras mostra como a divisão
sartriana entre a transmundaneidade do outro (o outro-sujeito) e sua aparição no campo
perceptivo é problemática. Isto porque, além de ser uma divisão abstrata que crava um abismo
entre o empírico e o transcendental, ela revela uma tensão entre as condições que Sartre havia
estabelecido de início no que concerne relação com o outro: entre a caracterização desta
relação como um encontro e do outro como condição permanente da situação humana do
para-si. Ao desenvolver a ideia de carne, segundo Barbaras, Sartre torna inútil e até
inadequada a condição de que a relação com o outro deva se dar pela negação interna, que é a
experiência do ser-olhado. No sentido de que ela coloca em questão a divisão entre
subjetividade e objetividade, transposta para as dimensões de um corpo para-si (o que, para o
autor, Sartre não desenvolve) e de um corpo objetivo para outro. Em suas palavras:

L’analyse phénoménologique conduit donc Sartre à assouplir


l’opposition simple et radicale qui inaugurait la troisième partie de
L’Être et le Néant : alors que, au seuil de cette troisième partie, Sartre
entendait l’objectité en un sens univoque, il met ici au jour une
corporéité qui n’existe pas sur le mode, objectif, du corps physique,
c’est-à-dire finalement du corps connu. Par-delà l’opposition de la res
cogitans et de la res extensa, il pressent, sous le nom de « chair », la
possibilité d’un psychisme incarné, distinct du pour-soi mais aussi de
la pure extériorité des objets spatiaux339.

A apreensão do outro no campo perceptivo deve ainda preceder a experiência do ser-


olhado, pois a carne é justamente a impossibilidade da divisão entre subjetividade e
objetividade, dado que “dans la mesure même où l’être-pour-autrui peut ne pas être pure
objectité, le sujet peut cesser d’exister comme immanence subjective” 340, conclui Barbaras.
Como Sartre aposta todas as fichas contra o solipsismo na experiência do ser-olhado, ele não
reconhece finalmente, segundo o autor, a originalidade da carne341.
Tendo em vista esta posição, pensamos que se atentarmos para a própria concepção do
corpo-para-outro já podemos contestar o dualismo entre subjetividade e objetividade, na
medida em que ele não pode aparecer como pura objetividade, senão como cadáver. A carne é
a apreensão afetiva da contingência do outro, o que só ocorre pelo fato do corpo do outro ser

339BARBARAS, R. Le corps et la chair dans la troisième partie de L’être et le néant, p. 294.


340Ibid., p. 295.
341 Vale dizer que vários outros pontos são abordados neste artigo, texto se tornou para nós uma leitura
fundamental para a elaboração deste capítulo como um todo. Porém, como seguimos uma linha diversa de
argumentação, optamos por ressaltar apenas a posição de Barbaras com relação às possibilidades e os limites do
conceito sartriano de carne.
!415

desde sempre em-situação; a carne é a apreensão afetiva da náusea-para-outro. Como no


capítulo sobre o corpo-para-outro Sartre se concentra na maneira pela qual o corpo do outro
aparece ao para-si, ele não desenvolve neste momento as implicações da metamorfose, isto é,
como o para-si sofre a objetivação corporal. Em seguida, ao descrever a “terceira dimensão
ontológica do corpo”, este aspecto também não é abordado isoladamente, pois o que se tem
em vista é como o para-si existe sua dimensão alienada. Neste sentido, o ponto mais difícil de
encontrar nas descrições sartrianas do corpo-para-outro é exatamente o corpo como pura
objetividade, aspecto resultante da metamorfose. Em outras palavras, ora Sartre se concentra
em mostrar como o corpo do outro aparece como transcedência-transcendida a um para-si, ora
ele desenvolve a assunção do para-si de seu corpo-para-outro de modo que o corpo como pura
objetividade não encaixa em nenhum dos casos: no primeiro ele é desde sempre em-situação;
no segundo ele é a assunção de aspectos corporais objetivos. Talvez isto ocorra exatamente
pelo fato deste aspecto isolado ser uma abstração (ou, concretamente, o cadáver). Se o corpo
do outro é sempre em-situação, em maior ou menor grau de objetividade, ele é
incessantemente vivido fáticamente pelo para-si como carne. Além disso, o para-si existe
assombrado pré-reflexivamente por esta objetividade corporal e reflexivamente pelo
assombramento dos objetos psíquicos que adquiriram a nova camada de significação alienada,
o que coloca em questão a “pura subjetividade”. Em suma: não há corpo do outro puramente
objetivo e a carne reforça esta conclusão; além disso, o para-si é assombrado em seu nível
mais imediato por suas objetificações de modo que não há subjetividade isolada. Conclusões
que nos fazem pensar em conjunto as dimensões fundamentais interligadas pelo
assombramento.
Por fim, considerarmos que por haver focado demasiadamente na metamorfose, Sartre
não esclarece todos estes aspectos envolvidos na questão do solipsismo, o que não significa
que estes outros pontos que ressaltamos não se encontrem elaborados de alguma maneira no
seu texto. O problema é que o caminho cartesiano adotado por Sartre para provar a existência
do outro é demasiadamente centrado no cogito, mesmo sendo este um cogito assombrado que
atesta uma experiência não intelectual do ser-olhado. Neste ponto Barbaras tem razão ao
apontar que a carne já indica uma experiência do outro que não é a da negação interna, de
modo a tornar questionável esta estratégia. Na perspectiva que tomamos aqui - da hantologie -
o que importa é que há níveis de assombramento próprios da relação com o outro, e que este é
!416

o sentido propriamente sartriano do olhar. O encontro com o outro, como vimos, se dá por um
olhar não localizável, por uma presença espectral. Mas esta só faz sentido na medida em que
no campo perceptivo há algo que indique um outro, cuja existência é experienciada pela
carne. Se há uma divisão entre os momentos anterior e posterior à metamorfose, esta divisão
diz respeito aos níveis de objetificação e não marcam um “primeiro encontro com o outro”.
Por outro lado, como pensar esta presença espectral do outro como primeira em relação à
presença do outro no campo perceptivo se sem a experiência da carne do outro nada teria o
poder de indicá-lo como olhar? A condução do problema por Sartre nos revela então um
verdadeiro labirinto, do qual só podemos sair ao desfazer os possíveis dualismos que por
vezes se apresentam. É neste sentido que a relação de assombramento mostra: 1) que a
presença espectral do outro e a carne são dois aspectos da experiência do outro e não podem
ser pensados separadamente, pois sem o segundo a primeira não teria o poder de assombrar;
2) que o corpo-para-outro sendo corpo-em-situação não pode ser considerado como pura
objetividade, o que viria a instaurar um dualismo entre subjetividade e objetividade; 3) que a
experiência da metamorfose dota o para-si de um grau máximo de objetividade, cristalizando
uma dimensão que passa a assombrá-lo em seu nível mais imediato, isto é, a “terceira
dimensão ontológica” do corpo é a assunção e integração deste Eu-para-outro pelo para-si,
que consiste numa segunda dimensão de assombramento. A partir desta reorganização das
condições finais, concluímos dizendo que o para-si é duplamente assombrado pelo outro: pela
carne e pela presença espectral em sua dimensão mais imediata; pelo seu Eu-para-outro, que é
o grau limite de objetivação (que não a morte), a ponto de se cristalizar num espectro que,
desde então, passa a assombrá-lo.

§4. O em-si desejado.

Até então percorremos ao longo deste capítulo algumas dimensões do assombramento


que revelaram zonas de opacidade na dimensão para-si do para-si “sujeito”. Falta-nos
investigar uma última dimensão: o assombramento típico ao desejo do para-si de completar
seu ser faltante. Este assombramento específico é dado pelo que Sartre definiu como ser do
valor e sua importância se desdobra numa peculiaridade do projeto de ser do para-si que é a
relação de posse como meio de realizar seu projeto de autofundação. Por via desta última,
!417

Sartre nos mostra o papel de uma dimensão simbólica do mundo em sua relação com o
assombramento do valor, mas também em relação a um assombramento em direção contrária
e não menos importante: o assombramento daquilo que veremos ser um antivalor342.

a) O assombramento do valor

Vimos na “Primeira parte” que o valor é uma estrutura imediata do para-si e que ele
corresponde à totalidade “faltada” em relação à qual o para-si se constitui como falta de ser.
Esta totalidade é também, na maioria das vezes, denominada de “para-si-em-si” ou
simplesmente Deus, o que faz do para-si um “pur effort pour devenir Dieu”343. Sobre o modo
de ser do valor, citamos em outro momento que, segundo Sartre, “il ne faudrait pas confondre
[…] cet en-soi manqué avec celui de la facticité. L’en-soi de la facticité, dans son échec à se
fonder, s’est résorbé en pure présence au monde du pour-soi. L’en-soi manqué, au contraire,
est pure absence”344 . Trata-se então de um modo de ser distinto do em-si nadificado da
facticidade e que é definido como um “em-si ausente”, que assombra constantemente e
imediatamente o para-si 345. O argumento que legitima o ser do valor como uma estrutura
imediata, como vimos, é o de que se o para-si fracassa em sua incessante tentativa de
autofundação e se isto se apresenta como um fracasso é porque o para-si “se saisit lui-même
comme échec en présence de l’être qu’il a échoué à être”346. Sendo assim, o para-si é falta em
presença de um em-si ausente, o qual, por sua vez, o atravessa de sua “présence fantôme” 347
constituindo-o como falta. Segue-se que o modo de presença-ausente do valor na dimensão
para-si é o assombramento, a ponto de Sartre definir o próprio cogito como “cogito hanté par
l’être” 348. Como é típico do assombrar de um espectro, este “em-si” presente-ausente que é o
valor, ou esta síntese impossível entre para-si e em-si, nunca é objeto de tese do para-si, isto é,
ele não se encontra em face do para-si, mas “il hante la conscience non-thétique (de) soi” 349,

342 Neste momento analisaremos alguns aspectos das seções II. e III. do capítulo “Faire e avoir” na quarta parte
de L’Être et le Néant. Nossa intenção não é a de trabalhar exaustivamente as argumentações sartrianas no
referido capítulo, mas sim a de ressaltar o caráter de assombramento do valor e do antivalor, assim como indicar
um traço de opacidade próprio à dimensão simbólica do mundo.
343 EN, p. 621.
344 EN, p. 125.
345 “[la valeur] elle est comme l’en-soi absent qui hante l’être pour soi” EN, p. 130.
346 EN, p. 125.
347 EN, p. 127.
348 EN, p. 125.
349 EN, p. 127.
!418

“au cœur du rapport néantisant « reflet-reflétant »”350, de modo que em toda consciência de
alguma coisa, “il est là”351, porém, inapreensível como tal. Este modo de ser é, portanto,
estrutural do para-si - “[i]l n’y a point de conscience qui ne soit hantée par sa valeur”352 -,
mas o assombramento indica que a consciência não é idêntica ao valor, de maneira que este
possui suas especificidades.
Sartre diz que a consciência “é e não é” ao mesmo tempo o valor, sendo que este modo
de ser é ele mesmo definido em termos de “ser e não ser”. Se não há consciência que não seja
assombrada pelo valor - vide os exemplos da sede assombrada, do sofrimento assombrado353 -
este, por sua vez, está presente à consciência como um ideal irrealizável e não como algo que
ela é. Por outro lado, “dirons-nous qu’il n’existe pas ?” 354, pergunta Sartre. Ele só nos
responde que se trata de um ser que não pode ser realizado, para em seguida demostrar a
dificuldade própria à descrição do valor no quadro de uma simples oposição entre ser e não
ser: “La valeur semble donc insaisissable : à la prendre comme être, on risque de méconnaître
totalement son irréalité […] Mais, inversement, si on n’a d’yeux que pour l’idéalité des
valeurs, on va à leur retirer l’être et, faute d’être, elles s’effondrent”355. Além disso, é próprio
do ser do valor subverter posições contraditórias: ele encontra-se ao mesmo tempo no coração
do para-si e “fora de alcance”; “partout et nulle part […], présente et hors d’atteinte”356; é uma
estrutura imediata do para-si, mas comporta características do em-si; sua relação ao para-si é
a de “une immanence totale qui s’achève en totale transcendance”357, ou seja, trata-se de um
modo de ser cuja natureza é a de “enfermer en soi-même sa propre contradiction”358. Tais
características reforçam o modo espectral do valor que “peut à la foi être et ne pas être”, que
se dá como presença fantasmática perpétua e evanescente.
Se o valor é uma estrutura imediata do para-si, isto significa, segundo uma formulação
frequente no texto sartriano, que ele “vem ao mundo” pelo para-si. Porém, como vimos, sua

350 EN, p. 131.


351 EN, p. 127.
352 EN, p. 131. E ainda: “Ainsi le pour-soi ne peut apparaître sans être hanté par la valeur et projeté vers ses

possibles propres” EN, p. 133; “La fusion idéale de ce qui manque avec ce à quoi manque ce qui manque,
comme totalité irréalisable, hante le pour-soi et le constitue dans son être même comme néant d’être. C’est,
disions-nous, l’en-soi-pour-soi, ou la valeur. Mais cette valeur n’est pas, sur le plan irréfléchi, saisie
thétiquement par le pour-soi, elle est seulement condition d’être”. EN, p. 230. (grifo nosso)
353 Cf. EN, p. 125-129; p. 138.
354 EN, p. 127.
355 EN, p. 129.
356 EN, p. 131.
357 EN, p. 127.
358 Ibid.
!419

“presença” indica de algum modo aquilo que o para-si não é e deseja ser e é neste sentido que
o desejo “est hanté en son être le plus intime par l’être dont il est désir”359. O valor diz
respeito a um “para-além” do ser que instaura uma promessa de completude nas relações do
para-si no mundo e este aspecto faz parte das estruturas de desvelamento dos isto. Em outros
termos, o mundo se desvela através do circuito de ipseidade que se estabelece entre o para-si e
o que lhe falta para realizar seu valor. Mas as estruturas de desvelamento presentes no interior
de tal circuito são próprias ao “há” (il y a), de modo que o para-si surge num mundo dotado
de significações. Estas, por sua vez, contêm seu caráter de “promessa” de uma fusão ideal que
completaria o para-si: a promessa de que, ao possuir aquilo que aparece com a solidez do em-
si, o para-si suprimiria a falta e realizaria seu desejo fundamental. Nesta perspectiva, o projeto
de ser adquire o aspecto de um projeto de apropriação do mundo, dotando os entes
intermundanos de um coeficiente simbólico.

O em-si simbolizado: a posse

O para-si, enquanto desejo de se apropriar do mundo, é assombrado pela união ideal


entre o possuidor e aquilo que ele possui. A posse funciona então como uma mediação, no
interior do circuito de ipseidade e por via dos objetos possuídos, de realização do desejo de
ser ontológico e fundamental do para-si. Sartre coloca deste modo os desejos de ter
subordinados ao desejo de ser, ao mesmo tempo em que distingue o objeto do desejo do ideal
do desejo. Neste contexto, o que está em jogo não é o fato de adquirir ou não um certificado
de propriedade de certos objetos, mas qual o tipo de relação ontológica interna entre o para-si
e o objeto desejado; em outros termos, de que modo o objeto desejado aparece como
promessa de união do para-si a este objeto no intuito de realizar sua completude. Por esta
razão, todo desejo apropriativo é assombrado pelo valor, no sentido de que “ce rapport serait
hanté par l’indication idéale d’une identification entre ce pour-soi et l’en-soi possédé”360. Não
sendo uma relação externa e, ao mesmo tempo, sendo esta uma relação interna irrealizável
(uma vez que a “fusão” é impossível), a posse é um modo mágico de relação. Ela se situa
numa camada espectral que diz respeito ao modo do para-si ser os objetos que possui, no
sentido de possuir a si mesmo nos objetos. Além disso, a relação espectral de posse atua no

359 EN, p. 124.


360 EN, p. 635.
!420

uso dos objetos e se esvai desde que se pretende contemplá-la: “si je veux la contempler, le
lien de possession s’efface” 361. O para-si só pode então usufruir (jouir) da relação de ser si
mesmo nos objetos possuídos, sem jamais conhecer tal relação. A relação de posse é espectral
ainda a ponto de adquirir certa autonomia de um desvelamento datado de um para-si, na
medida em que é possível apreender a relação de posse nos próprios objetos desde que estes
se revelem como sendo de alguém. O melhor exemplo, oferecido pelo próprio Sartre, é o do
que conhecemos como uma “casa mal-assombrada”. Nos objetos mal-assombrados “le spectre
n’est rien que la matérialisation concrète de l’« être possédé », de la maison et des meubles.
Dire qu’une maison est hantée, c’est dire que ni l’argent ni la peine n’effaceront le fait
métaphysique et absolu de sa possession par un premier occupant”362. Além deste tipo de
posse de um simples pertencimento pelo uso, algumas atividades criam objetos assombrados
“autônomos”, como é o caso de uma obra de arte, ou de um artefato qualquer. Na criação, o
para-si usufrui de seu ser exteriorizado, mas enquanto “l’objet soit totalement moi et
totalement indépendant de moi” 363, uma independência a tal ponto que Sartre diz, em outro
momento, que um acontecimento na obra de arte é “un ouvrage en train de créer son
auteur”364. A criação, diz Sartre, “n’est pas une pensée, c’est un acte : elle produit un objet
qui se retourne contre elle et dont le sens, s’il en a un, émane de lui seul”365. Na relação
mágica de posse, portanto, “le terme fort c’est la chose possédée”366 e é por isso que o ato de
criação de uma obra é um “desvelamento-encontro”, o que define a particularidade neste
contexto do pronome possessivo meu ou minha. Assim como o termo “era” (était) significava
um modo intermediário entre passado e presente para exprimir que o para-si “tem de ser” o
seu passado, o termo “meu” é utilizado por Sartre para se referir a “une relation d’être
intermédiaire entre l’intériorité absolue du moi et l’extériorité absolue du non-moi. C’est, dans
un même syncrétisme, le moi devenant non-moi et le non-moi devenant moi”367. A síntese
impossível da relação mágica de posse se revela por fim como a melhor “solução” para a
questão ontológica que é o para-si, caso fosse possível realizá-la. Já que, enquanto seu ser-
para-outro encontrava seu fundamento em um outro para-si - evidenciando sua

361 EN, p. 637.


362 EN, p. 633.
363 EN, p. 637.
364 S.IV, p. 46.
365 M, p. 157-158.
366 EN, p. 637.
367 EN, p. 635.
!421

vulnerabilidade ontológica -, na relação de posse o para-si usufrui de seu “eu não subjetivo”
que encontra seu fundamento em sua própria criação. Mas, desde que a posse não realiza
verdadeiramente o usufruir apropriativo e possui um valor somente “encantatório”, o objeto
possuído é apenas promessa ao para-si de existir como seu próprio fundamento, através deste
objeto. Isto não significa que estamos aqui no plano da ilusão e nem de que se trata de uma
fabricação imaginária. Trata-se de uma relação mágica, para além do real e irreal, que faz com
que o para-si surja num mundo dotado de uma dimensão simbólica.
A conduta de posse se define como ação simbólica do desejo de fusão do para-si com
o mundo. Concretamente, cada para-si opera uma cristalização368 particular em torno do
objeto desejado, que funciona como via de alcance da totalidade do mundo. Mas a dimensão
simbólica que se estabelece no interior do circuito entre o para-si e seu ideal, não é decifrável
pelo próprio para-si. A camada espectral simbólica que é inerente ao desvelamento do mundo
traz uma opacidade intrínseca à relação imediata do para-si no mundo de modo que “le circuit
de l’ipséité étant non-thétique et, par suite, l’annonciation de ce que je suis demeurant non-
thématique, cet « être-en-soi » de moi même que le monde me renvoie ne peut qu’être masqué
à ma connaissance. Je ne puis que m’y adapter dans et par l’action approximative qui la fait
naître”369. Cabe à psicanálise existencial interrogar as condutas simbólicas sobre o projeto
fundamental singular de cada para-si em sua relação com o desejo de ser em geral. Tarefa que
para o para-si é impossível, visto que, sendo a conduta de posse mágica e espectral, “elle
s’évanouit sans révéler sa structure profonde et sa signification dès que nous voulons prendre
du recul par rapport à l’objet et le contempler”370.

b) o assombramento do antivalor: o viscoso ou a “revanche do em-si”.

A dimensão simbólica não se restringe a uma “simbólica a cada vez singular”371 que
diz respeito a cada projeto fundamental particular que surge no interior do circuito de
ipseidade. Sartre procura pensar uma dimensão simbólica alargada, situada no plano da
ontologia, servindo de base para a psicanálise existencial. É neste ponto que, como

368 Processo nomeado e descrito por Stendhal sobre o amor, utilizado neste contexto por Sartre para falar do
objeto possuído. Cf. EN, p. 642.
369 EN, p. 641. (grifo nosso)
370 Ibid.
371 Cf. EN, p. 618-620.
!422

mencionamos anteriormente, Sartre se interessa pela “psicanálise das coisas” de Bachelard,


por esta buscar apreender um simbolismo “objetivo” das coisas, não correspondente a uma
projeção subjetiva. Na verdade, na perspectiva da hantologie, esta “camada significativa” que
vem “reforçar a estrutura do ‘há’”372 é a camada onde subjetivo e objetivo perdem sua razão
de ser, na medida em que temos em vista o terreno comum de significações em meio as quais
surge o para-si, dado que “venir au monde, c’est surgir au milieu de ces significations” 373.
Neste plano, para Sartre, a psicanálise existencial deve interrogar as significações sobre as
relações ontológicas, no intuito de revelar um “coeficiente metafísico” próprio à intuição do
ser. O uso do termo metafísico mostra o que está em jogo: já vimos que a qualidade é
estrutural do aparecer do isto, mas agora Sartre busca compreender como a qualidade
simboliza a impossibilidade de apreensão de um “em-si puro”, para além dos limites do
campo fenomenal, o que caracterizaria neste contexto o “puramente metafísico”. Assim, o
simbólico surge novamente na relação de uma impossibilidade, mas desta vez esta se resume
a uma absurda separação entre ser do fenômeno e fenômeno de ser:

Dans chaque appréhension de qualité, il y a, en ce sens, un effort


métaphysique pour échapper à notre condition, pour percer le manchon de
néant du « il y a » et pour pénétrer jusqu’à l’en-soi pur. Mais nous ne
pouvons évidemment que saisir la qualité comme symbole d’un être qui nous
échappe totalement, encore qu’il soit totalement là, devant nous, c’est-à-dire,
en somme, faire fonctionner l’être révélé comme symbole de l’être en soi.
Cela signifie justement qu’une nouvelle structure du « il y a » se constitue,
qui est la couche significative, encore que cette couche se révèle dans l’unité
absolue d’un même projet fondamental. C’est ce que nous appellerons la
teneur métaphysique de toute révélation intuitive de l’être ; et c’est
précisément ce que nous devrons atteindre et dévoiler par la psychanalyse374 .

Não é de se subestimar a dificuldade destas linhas, sobretudo no que diz respeito ao


dualismo antifenomenológico da “Introdução”. De todo modo, a impossibilidade de tal
cisão entre o ser do fenômeno e seu aparecer, encontra agora na camada simbólica mais
uma estrutura objetiva de desvelamento do mundo. Se nos situarmos no plano da
hantologie, é esta camada que nos interessa, e nosso objetivo é investigar seus aspectos
espectrais, quer dizer, em que sentido ela se situa entre o que poderia ser atribuído
propriamente ao para-si e propriamente ao “em-si”, ou em que medida ela desestabiliza
esta cisão mesma. Assim, a dimensão simbólica faz parte da situação do para-si e Sartre

372 EN, p. 650.


373 EN, p. 647.
374 EN, p. 650.
!423

busca mostrar, através de breves análises, o que seria nesta dimensão uma “psicanálise das
coisas”. Dentre os exemplos citados, o que nos chama mais atenção é a descrição do
viscoso, dramaticamente caracterizado como simbolizando “a revanche do em-si”375.
Ao falar do viscoso, Sartre estabelece que a experiência de um sujeito com a
viscosidade de certos elementos do mundo revela uma significação ontológica ligada ao
risco de uma metamorfose metafísica. Entrar em contato com uma substância viscosa pela
fascinação, nojo ou repulsa, não é indiferente ao psicanalista existencial, dado que esta
maneira particular de se relacionar com a viscosidade possui sua verdade na ontologia, na
medida em que é ela que esclarece o modo de ser do para-si como fuga do em-si e desejo
do valor. Somente neste contexto, o viscoso, com seu coeficiente metafísico próprio, será
interpretado à luz de cada projeto. Além disso, Sartre se empenha em mostrar que o
coeficiente metafísico do viscoso não é simplesmente uma projeção subjetiva de um
sujeito, pois ele se encontra, na verdade, “par delà la distinction du psychique et du non-
psychique”376 e corresponde a uma simbólica própria à significação material das coisas.
Dito isto, o viscoso é um bom exemplo deste “entre” que é o há, o mundo, e que cada para-
si vive como situação. Isto porque ele diz respeito a um assombramento fundamental a
todo e qualquer para-si que é aquele próprio ao risco de ser absorvido pela substância. É
neste sentido que “la viscosité est hantée”377, ou melhor, “il y a, dans l’appréhension même
du visqueux, substance collante, compromettante et sans équilibre, comme la hantise d’une
métamorphose. Toucher du visqueux, c’est risquer de se diluer en viscosité”378. Num plano
metafórico-simbólico, Sartre nos fala como a água, por exemplo, já foi pensada por
filósofos como símbolo da fluidez da consciência. Nesta mesma linha, é interessante
observar que ele mesmo se utiliza com frequência da imagem da pedra como densidade
material e símbolo do em-si como “pura positividade”. O viscoso, neste contexto, é o
símbolo do “entre”. Nem líquido, nem sólido, “un fluide aberrant”379, que se apresenta
como “dócil” ao desejo de posse, mas que acaba por se colar ao para-si: “le visqueux est
docile. Seulement, au moment même où je crois le posséder, voilà que, par un curieux
renversement, c’est lui qui me possède. C’est là qu’apparaît son caractère essentiel : sa

375 EN, p. 656.


376 EN, p. 658.
377 CDG, p. 433.
378 EN, p. 656.
379 EN, p. 653.
!424

mollesse fait ventouse” 380. Por ser assombrado pelo valor, o para-si se vê fascinado pelo
viscoso como promessa de fazer-se “em-si-para-si”, mas eis que o viscoso “inverte os
termos” e compromete o para-si, ameaçando-o de perder sua transcendência, logo, sua
liberdade. O para-si é assim assombrado pela possibilidade de se metamorfosear
completamente em coisa por “[u]n type d’être non réalisé, mais menaçant, qui va hanter
perpétuellement la conscience comme le danger constant qu’elle fuit et, de ce fait,
transforme soudain le projet d’appropriation en projet de fuite”381. Enquanto que o valor é
promessa ao para-si de livrar-se de sua contingência e ser seu próprio fundamento, o
viscoso é a ameaça em direção oposta: através dele o para-si se resumiria à sua
contingência e perderia a dimensão de fundamento do seu nada. Por esta razão, o viscoso é
um antivalor - “un être idéal que je réprouve de toutes mes forces et qui me hante comme
la valeur me hante” 382 - correspondente à contrapartida do assombramento do valor no
para-si. Em outros termos, o para-si é duplamente assombrado em direções contrárias:
cada assombramento visando a suprimir uma de suas dimensões fundamentais. Por isso
mesmo, podemos compreender por esta breve análise do viscoso, como, por este duplo
assombramento, uma dimensão passa na outra e ultrapassa o dualismo entre ser e nada na
dimensão para-si. O para-si encontra-se exatamente neste “entre” dois assombramentos
contrários. Precisamente, enquanto o valor é uma estrutura imediata do para-si, o antivalor
é revelado por uma experiência metafísica, ou seja, é um assombramento que provém da
sua relação com o mundo, por via de experiências com as coisas viscosas. O viscoso vem
então finalmente simbolizar o “acontecimento”, este último no sentido que explicitamos no
início deste capítulo e que retomamos aqui : “En un mot: pour se faire néantisation de l’en-
soi, au-dedans de lui-même et au-dehors, il ne suffit pas que le pour-soi ait avec l’en-soi le
seul rapport synthétique de la négation; il faut qu’il soit ressaisi par cet en-soi sous la
forme d’une unité synthétique venant cette fois de l’en-soi”383. O viscoso simboliza,
portanto, este assombramento próprio à reapreensão do para-si pelo em-si, nos revelando
deste modo a interligação de suas duas dimensões fundamentais. Além disso, estas análises
mostram que a dimensão simbólica é uma estrutura de desvelamento do mundo que não se

380 EN, p. 655.


381 EN, p. 657. (grifo nosso)
382 Ibid. Neste sentido, no par valor/antivalor, a oposição não se daria mais pela dupla predominante para-si/em-

si, mas pela oposição entre “para-si-em-si” versus em-si.


383 CDG, p. 498.
!425

restringe a um projeto particular e que introduz um caráter de opacidade no desvelamento


intuitivo do ser: as significações não são decifráveis ao para-si, elas podem ser interrogadas
pela psicanálise existencial desde que esta encontre sua verdade na ontologia.
CONCLUSÃO

No início da “Terceira parte” deste trabalho, dissemos que a proposta de leitura


denominada de hantologie não pretende esgotar o tema da espectralidade em L’Être et le
Néant. Nosso objetivo consistiu em demonstrar a pertinência desta tese interpretativa ao
desenvolver seus pontos principais. Neste sentido, ao invés de concluir um trabalho, a
hantologie, na verdade, abre novas perspectivas de investigação, seja no que se refere à
própria ontologia sartriana, seja no que se refere aos textos posteriores, sobretudo aos
trabalhos de psicanálise existencial. No que diz respeito ao percurso de investigação que
percorremos, devemos agora recolocar os problemas e mostrar de que maneira a hantologie
pôde respondê-los ao mesmo tempo em que pôde demarcar alguns limites das posições
sartrianas. Este último movimento conclusivo se caracteriza, portanto, por evidenciar a
problematização de pontos que surgiram ao longo do trabalho, o que é distinto de um
movimento de simples adesão ou refutação da obra como atitude final. Em outros termos,
como dissemos inicialmente, manter a complexidade como estratégia de investigação
significa não ter que aderir ou rejeitar completamente as teses de L’Être et le Néant, mas sim
delimitar por outras vias seus problemas, suas soluções e seus limites.
Neste contexto, a oposição a Merleau-Ponty não consiste em simples refutação de seus
argumentos. Na medida em que ele e Sartre compartilham um campo de problemas, a relação
de proximidade e distância entre os autores se revela frutífera para o objetivo de colocar em
questão suas posições, neste caso as de Sartre. Por esta razão, no que denominamos de
primeiro nível de contestação, foi possível confrontar alguns argumentos merleau-pontyanos
sem refutar sua crítica por completo, já que esta última mostrou-se fundamental para a tarefa
de identificar outras dificuldades e ambiguidades de Sartre com relação aos dualismos que
assombram sua filosofia. Consequentemente, o segundo nível de contestação ainda teve de se
confrontar com o que chamamos de “dualismos residuais” do primeiro nível, de modo a
propor uma alternativa ainda sartriana que de alguma maneira contesta posições do próprio
autor. E isto no sentido de termos identificado que Sartre por vezes reforça posições dualistas,
enquanto que ele mesmo mostra, mesmo que indiretamente, que elas não se sustentam. Sendo
!427

assim, podemos dizer que enquanto o primeiro nível contesta a crítica de Merleau-Ponty, o
segundo nível contesta o próprio Sartre, a partir de seus argumentos. Esta afirmação, por sua
vez, não tem por objetivo mostrar que a ambiguidade do autor anula ou enfraquece suas teses
ou sua proposta filosófica. Pelo contrário, acreditamos que são justamente as afirmações
dualistas que aparecem enfraquecidas quando confrontadas com uma elaboração refinada
sobre os modos de ser de sua ontologia. Além disso, identificamos que enquanto uma leitura
clássica de L’Être et le Néant ressalta apenas um lado dessa ambiguidade - o que chamamos
de “polo luminoso” -, faz-se necessário realizar o movimento contrário, que é o de ressaltar o
polo das sombras, não no intuito de apenas inverter os termos de mais um dualismo, mas com
o objetivo de mostrar como este movimento abala a própria lógica dualista. Esta última
consequência corresponde ao efeito de espectralidade, que Derrida dizia ser aquilo que desfaz
lógicas dualistas e mesmo dialéticas. No nosso caso, vale perguntar quais são os abalos
provocado pelo surgimento da camada implícita espectral no quadro da ontologia sartriana, a
partir dos problemas apresentados por uma dimensão específica da crítica de Merleau-Ponty.
Antes de organizarmos os pontos conclusivos e mostrarmos as consequências do
surgimento da camada espectral, vale apontar para alguns breves exemplos da abertura
permitida pela hantologie que mencionamos acima. Com isso, pretendemos indicar caminhos
possíveis de investigação “hantológica” presentes ainda em L’Être et le Néant e em outros
trabalhos. A noção de irrealizável é um bom exemplo. Esboçada ainda nos Carnets a partir de
uma ideia de Simone de Beauvoir, cuja relevância fora apontada em L’Être et le Néant, os
irrealizáveis dizem respeito a uma noção que, segundo De Coorebyter, “est resté pratiquement
inaperçu” 1 nas leituras da obra sartriana. Este autor define o irrealizável da seguinte maneira:
“l’irréalisable désigne un destin qui m’est imposé par autrui et que je ne peux ni récuser [...]
ni réaliser [...] : ce destin restera un « irréalisable-à-réalizer », un impératif intériorisé par ma
liberté comme limite indépassable car il révèle mon incapacité à devenir ce que je suis censé
être”2. Neste sentido, o irrealizável é uma espécie de assunção do ser-para-outro com o
objetivo de realizar uma identidade e de transformar o próprio ser numa espécie de
“personagem social”. Nas palavras de Sartre: “Pour-moi, je ne suis pas plus professeur ou
garçon de café que beau ou laid, Juif ou Aryen, spirituel, vulgaire ou distingué. Nous

1 DE COOREBYTER, V. Sartre avant la phénoménologie, p. 49.


2 Ibid., p. 50.
!428

appellerons ces caractéristiques des irréalisables”3. Mesmo se tratando de tal tipo de ser, os
irrealizáveis são compreendidos por Sartre como limites que são obrigatoriamente
interiorizados, já que não há como não assumir o ser-para-outro. Isto faz com que nós sejamos
“entourés à l’infini d’irréalisables”, que se apresentam como “d’irritantes absences” 4.
Ausências concretas, reais (que Sartre diferencia dos objetos imaginários), descritas em
termos espectrais: “Il s’agit d’objets existants que nous pouvons penser de loin et décrire mais
jamais voir. Pourtant ils sont là, à portée de la main ; ils sollicitent notre regard, nous nous
tournons vers eux et nous ne trouvons rien”5; “Ils sont réels, ils sont partout, mais hors de
portée”6. Na verdade, Sartre estende este conceito para além do sentido de uma identidade
social a ser realizada pelo sujeito, quando ele afirma que o belo, por exemplo, “hante le
monde comme un irréalisable”7. Seria interessante investigar o assombramento dos
irrealizáveis nas relações intersubjetivas, tanto no que diz respeito ao desejo do sujeito de
aderir ao personagem social que lhe é atribuído, quanto no que se refere às relações que
buscam atingir um ideal (como pode ocorrer no amor, por exemplo, quando este é assombrado
por um ideal que “hante mon projet de moi-même en présence d’autrui” 8). Este tema está
diretamente relacionado à noção de má-fé e de sua vertente social denominada por Sartre de
espírito de seriedade; assim como à compreensão das relações sociais no sentido sartriano de
comédia, o que significa justamente a arrumação de papéis identitários que assombram o
sujeito como identidades a realizar. Em L’Idiot de la famille, por exemplo, seria interessante
investigar a trama que interliga todos estes pontos ao assombramento particular de Gustave
Flaubert em relação ao meio social-familiar que o constitui. Nesta obra, Sartre explora o
assombramento do ser-para-outro de Gustave sob forma de alienação na relação deste com
seu pai, Achille-Cléophas. Este caminho de investigação mostra claramente como o caráter
passivo das vivências provém do assombramento de modos espectrais, como se pode observar
neste trecho: “chez Gustave, ce qui était praxis en Achille-Cléophas devient nécessairement
pathos; c’est une activité fantôme qu’il ne peut même pas concevoir et qui hante - comme une
inquiétude, comme un remords, comme une sollicitation permanente et irréalisable - l’inerte

3 EN, p. 572.
4 EN, p. 572.
5 CDG, p. 483. (grifo nosso)
6 CDG, p. 484.
7 EN, p. 231.
8 EN, p. 406.
!429

écoulement du Vécu”9. O assombramento e a espectralidade são, portanto, noções importantes


resultantes da presente leitura de L’Être et le Néant que possibilita uma investigação original
dos trabalhos de psicanálise existencial. Não obstante, acreditamos que tal chave de leitura é
frutífera para se pensar de maneira geral, como tema de pesquisa e não somente como modo
de leitura de textos sartrianos, a relação de um sujeito com o outro que o habita.
No que diz respeito ao percurso realizado neste trabalho, podemos apontar
sumariamente os problemas em torno dos quais se desenvolveram uma série de
argumentações. Em primeiro lugar, identificamos a questão do dualismo como ponto central
de crítica à ontologia sartriana. Nossa posição sobre esta crítica pode ser resumida da seguinte
maneira: de fato, a questão do dualismo assombra, isto é, está constantemente presente sem
ser necessariamente desenvolvida ou tematizada, L’Être et le Néant desde a “Introdução” até a
“Conclusão”. Esta observação, somada ao fato de Sartre por vezes reforçar diferentes
dualismos em suas afirmações, nos leva a concluir que a crítica é pertinente e que um estudo
sobre essa obra deve confrontar-se com ela. No entanto, uma leitura clássica, que acreditamos
ser fortemente influenciada pela crítica de Merleau-Ponty, tende a identificar um dualismo
entre os modos de ser para-si e em-si. Isto se deve muitas vezes a uma estratégia de leitura da
obra focada principalmente na “Introdução”, o que leva à identificação deste par ao de
consciência-objeto percebido, embora Merleau-Ponty tenha chegado a esta conclusão baseado
no capítulo sobre a transcendência (que volta ao tema esboçado na “Introdução”). Sobre o
para-si e o em-si, dissemos que não é simples, entretanto, defini-los, na medida em que Sartre
não explicita a diferença entre o “para-si” como “sujeito” e como região ontológica e o em-si
como modo de ser não só do objeto percebido, mas também do passado, por exemplo; ou
quando ele diz que há um em-si ausente que é diferente do em-si presente ao para-si, etc.
Além disso, o foco na estrutura da facticidade mostrou que o para-si é um em-si que se
nadifica incessantemente. Devido a estas conclusões e a partir da crítica de Merleau-Ponty
sobre a exclusão lógica entre ser e nada, deslocamos o problema do dualismo para-si/em-si
para os dualismos entre ser/nada, subjetividade/objetividade.
Diante destas observações, concluímos que a hantologie é uma proposta de leitura que
oferece duas alternativas ao problema do dualismo: 1) o assombramento é o modo de relação
entre as dimensões consideradas excludentes; ele indica o modo de presença de uma dimensão

9 IF.I, p. 352.
!430

na outra; 2) há uma multiplicidade de modos de ser que não se encaixa nas definições (dadas
por Sartre, mesmo que não rigorosas) de para-si e em-si, que são modos que chamamos de
espectrais, por razões já explicitadas ao longo da “Terceira parte”. Com relação ao primeiro
ponto, ao definir o para-si como em-si que se nadifica, Sartre precisa dizer que o para-si é,
para que ele tenha de ser o que ele é. Em alguns momentos, esta distinção parece separar as
dimensões “contingente em-si” - que o para-si é - e “translúcida-subjetiva”, que o para-si tem
de ser. Essa separação é problemática e é ela que está na base do dualismo entre ser e nada.
Todavia, ela não pode ser totalmente anulada no sentido em que dizer que o para-si é um em-
si nadificado é dizer que ele é contingente e é do mundo, mas somente enquanto ele existe
como nadificação incessante de seu ser. A nadificação corresponde ao que chamamos de
passagem ao espectral, que é o movimento incessante do ato ontológico. Ao mostrar que há
essa passagem, nos interessamos por aquilo que “resta” de em-si no para-si, que é o espectro
da facticidade, já que a facticidade é caracterizada como a assunção da contingência. Se a
facticidade não é a dimensão contingente em-si mas justamente o ter de ser, ela abala esta
divisão mesma entre as duas dimensões fundamentais, na medida em que a dimensão
“translúcida-subjetiva” é o campo de presença dos espectros provenientes do ato ontológico,
dualidade na unidade que é expressa pela definição do para-si como “é o que não é e não é o
que é”. Em poucas palavras: a facticidade é o campo espectral que coloca em questão a “pura
subjetividade” do para-si. Veremos mais adiante as consequências disto. O outro dualismo
apontado como fundamental e de algum modo derivado do primeiro, corresponde à divisão
sartriana entre para-si e para-outro, que identificamos à cisão entre subjetividade e
objetividade. Com relação a esta divisão entre uma dimensão subjetiva e uma dimensão
objetiva do para-si, mostramos que o assombramento é novamente o modo de relação entre as
dimensões e que o “eu-para-outro” habita o para-si de maneira a orientar radicalmente seu
modo de ser-no-mundo. Além disso, mostramos que o para-outro não pode ser associado a
uma “pura objetividade” na medida em que ele corresponde justamente a um modo de ser
difícil de ser definido, nem para-si nem em-si e espectral (esboço-fantasma). O corpo-para-
outro, por exemplo, é sempre em-situacão, e a “objetidade” do outro é sempre “explosiva”.
A divisão entre para-si e em-si finalmente não dá conta de uma série de modos de ser
presente na ontologia sartriana. Se esta base é rígida, o olhar centrado no dualismo entre para-
si e em-si tende a menosprezar os modos ditos “contraditórios”. Nossa tese é a de que a
!431

predominância dos modos de ser nesta obra é justamente a dos modos que não se encaixam no
dualismo, seja por serem definidos como “nada em-si”, “para-si-em-si”, seja por serem
referidos como “sombra”, “intermediários” “nem para-si, nem em-si”, “mágico”, etc. Isto vale
tanto para modos fantasmáticos como a unidade temporal e espacial do mundo e as
temporalidades mundana e psíquica, quanto para os modos “sombra” - como o psíquico e os
objetos imaginários -, quanto para modos de desvelamento do mundo como o espaço, o
“mundo-para-outro”, assim como para modos de relações - como as relações externas e,
sobretudo, mágicas. No entanto, identificamos uma região ontológica comum a tal
multiplicidade de modos de ser que é a espectralidade. Procuramos mostrar que esta escolha
argumentativa não é arbitrária em virtude das descrições carregadas de elementos espectrais,
os quais o trabalho de Derrida auxilia a identificar. A indicação ao espectral no texto sartriano
é por vezes explícita: como no caso do uso constante do verbo assombrar (hanter) e do uso
significativo da palavra fantasma (fantôme); e por vezes implícita: como aquilo que está
presente sem ser passível de intuição, que assombra “por detrás”, que visita, que perturba, que
retorna, etc. Assim, cada modo que chamamos de espectral tem sua especificidade mas todos
escapam de algum modo à plena positividade do ser ou à plena negatividade do nada. Além
disso, são os próprios modos espectrais que surgem no espaço de quebra da rigidez dualista,
contestando esta divisão mesma.
Outra questão que deve ser ressaltada a título de conclusão se refere a uma espécie de
tensão entre os elementos que Sartre qualifica como sendo da ordem da “metafísica” e as
análises propriamente ontológicas da obra. Sem entrar em uma discussão maior entre a
divisão que o autor estabelece entre metafísica e ontologia, o ponto que acreditamos ser
importante na crítica de Merleau-Ponty consiste em sua oposição teórica à concepção do em-
si como “pura positividade”. Identificamos esta questão ao falarmos do “problema do em-si”,
ligado à divisão antifenomenológica entre ser do fenômeno e fenômeno de ser. Se tomarmos
estas questões a partir de um plano metafísico - que trata do surgimento, do “por que há o
ser?” - caímos no dualismo entre ser e nada no que se refere ao em-si, já que ele pode ser
considerado como “puro ser do fenômeno”, mesmo que o para-si não seja “puro nada”.
Assim, é com relação ao em-si que o plano metafísico é problemático, dado que, de fato, o
que seria este em-si que é pura positividade? Qual o sentido de falar de um em-si anterior ao
surgimento do mundo? A hantologie, por sua vez, se situa num plano ontológico-
!432

fenomenológico, que não trata do “surgimento do mundo”, mas descreve as estruturas do há


(il y a), de acordo com a distinção sartriana de planos: “l’ontologie nous paraît pouvoir se
définir comme l’explicitation des structures d’être de l’existant pris comme totalité et nous
définirons plutôt la métaphysique comme la mise en question de l’existence de l’existant” 10.
Neste sentido, enquanto o plano metafísico se preocupa em dizer que o nada “vem ao mundo”
pelo para-si, o plano ontológico-fenomenológico estuda o ser-no-mundo, dado que é neste
nível que se estabelece a correlação fenomenológica entre o para-si e o isto, objetivo mais
plausível de um ensaio de ontologia fenomenológica. Não é por acaso que “em-si” passa a
designar neste outro nível de investigação a característica de uma região ontológica, que pode
ser mesmo atribuída a negatidades (como “nada em-si”, por exemplo), como vimos no
contexto das estruturas de desvelamento do mundo. Por outro lado, a descrição do para-si
como nadificação do ser que ele é se mantém nesta mudança de planos, uma vez que esta
característica não diz respeito somente ao seu “surgimento” como “acontecimento absoluto”,
mas também ao seu modo de ser que é ato ontológico incessante. Sendo assim, tanto o para-si
“sujeito” é simultaneamente ser e nada, quanto as coisas-utensílios, os objetos imaginários,
psíquicos, entre outras formas espectrais são, do mesmo modo, estruturados por ser e nada.
Outra posição que sustentamos ao longo do trabalho diz respeito ao fato de Sartre
concentrar suas análises sobre o outro no encontro que provoca uma metamorfose. Mostramos
que o para-si não está sozinho no mundo na “inocência” e que nem toda objetificação é uma
metamorfose “traumática”. Ao apostar todas as fichas no momento da metamorfose, Sartre se
apoia na negação interna para escapar ao solipsismo, enquanto que, como mostrou Barbaras,
é a carne a experiência mais originária do outro, na medida em que, sem esta experiência (nós
acrescentamos), a presença espectral do outro não teria o poder de assombrar.
Em suma, no que se refere aos limites da proposta sartriana, tudo se passa como se
Sartre tivesse ido longe demais na tentativa de escapar ao idealismo - pelo ser dos fenômenos
-, e do solipsismo - pela negação interna. A nosso ver, a estratégia de leitura mais interessante
é a de descrever o há e a presença simultaneamente espectral e carnal do outro na inocência,
para então compreender a metamorfose e os diferentes níveis de objetificação.
Apresentada a posição final dos problemas, podemos passar finalmente à última tese
de nosso trabalho, que se caracteriza por ser uma consequência teórica da articulação dos

10 EN, p. 337.
!433

elementos que ressaltamos na hantologie. Perguntávamos acima: quais são os abalos


provocados pelo surgimento da camada implícita espectral no quadro da ontologia sartriana?
Em outros termos, quais são as consequências do efeito de espectralidade sobre os elementos
centrais desta obra, ou seja, o que o surgimento dos espectros provoca como consequência na
própria estrutura da obra e na dinâmica de seus conceitos e argumentações? Nossa hipótese
final é de que ao explicitar os espectros o que se coloca em questão é a ideia clássica de um
sujeito translúcido.
Em primeiro lugar, é importante deixar claro que já problematizamos a simples
associação da ideia de translucidez tal como ela é interpretada geralmente na tradição
filosófica pós-cartesiana à translucidez sartriana, ao dizermos que em Sartre esta se
caracteriza por seu aspecto de invisibilidade - termo de De Coorebyter - que comporta um
desconhecimento sobre si. Além disso, vimos que a espectralidade própria à estrutura pré-
reflexiva da consciência (díade fantasma) é o oposto de uma adequação a si, dado que, ao
contrário, ela se caracteriza como uma presença-ausência, um escape que é a negação da
identidade. Assim, já neste primeiro nível pré-reflexivo, que é a dimensão “translúcida-
subjetiva” que falávamos acima, a espectralidade é a característica da consciência que atesta
um desconhecimento sobre si e a não coincidência a si do sujeito. É esta mesma estrutura que
Sartre denominava de “presença a si”, que vimos ser uma “presença-ausência”, que faz com
que a consciência seja consciência perturbada (troublée):

Nous l’avons vu, la croyance, ni le plaisir, ni la joie ne peuvent exister avant


d’être conscients, la conscience est la mesure de leur être ; mais il n’en est
pas moins vrai que la croyance, du fait même qu’elle ne peut exister que
comme troublée, existe dès l’origine comme s’échappant à soi, comme
brisant l’unité de tous les concepts où l’on peut vouloir l’enfermer11.

Neste contexto, a consciência é elemento perturbador, anti-identitário, de escape. Sartre


radicalizou a tal ponto o caráter evanescente da consciência que nada de substancial pôde lhe
ser atribuído, já que ela não é suporte de conteúdos imanentes. A ideia de opacidade designava
modos de ser substanciais que petrificariam, congelariam, a natureza não substancial da
consciência. Do mesmo modo, Sartre se opôs à ideia de que a consciência pudesse ser
passiva, já que a seu ver esta noção faria da consciência um efeito de uma causa exterior. No

11 EN, p. 111.
!434

entanto, há outro modo de compreender a opacidade, que é o que denominamos de opacidade


espectral. Esta se define pelo caráter anti-intuitivo, antiposicional da relação da consciência
consigo mesma. A presença a si sartriana é, como dizia Derrida a respeito do tempo dos
espectros, “out of joint”; e é nesta disjuntura, “c’est dans cet espace, ce chez-soi hors de chez-
soi, que le spectre arrive”12. Assim, a díade fantasma da presença-ausência a si é condição de
possibilidade para que surjam os espectros neste espaço de quebra da contemporaneidade a si.
O efeito deste surgimento é a perturbação e o obscurecimento deste mesmo campo translúcido
espectral.
Tendo em vista estas afirmações, é interessante evidenciar que, ao falar do desejo sexual,
Sartre estabelece uma analogia entre a consciência e a água transparente a fim de mostrar que
o para-si existe sua facticidade num plano de existência particular, que ele compara à água
turva (troublée):

Le désir est défini comme trouble. Et cette expression de trouble peut nous
servir à mieux déterminer sa nature : on oppose une eau trouble à une eau
transparente ; un regard trouble à un clair regard. L’eau trouble est toujours
de l’eau; elle en a gardé la fluidité et les caractères essentiels; mais sa
translucidité est « troublée » par une présence insaisissable qui fait corps
avec elle, qui est partout et nulle part et qui se donne comme un empâtement
de l’eau par elle-même13.

Observemos os elementos espectrais deste trecho: há a presença fática de algo


“insaisissable qui fait corps avec elle, qui est partout et nulle part”. Em seguida, Sartre
acrescenta: “Notre saisie originelle de l’eau trouble nous la livre comme altérée par la
présence d’un quelque chose d’invisible qui ne se distingue pas d’elle-même et se manifeste
comme pure résistance de fait. Si la conscience désirante est trouble, c’est qu’elle présente
une analogie avec l’eau trouble”14. Ora, se tal analogia é permitida, é significativo prestar
atenção nos termos, neste caso na ideia de trouble. O termo é o mesmo em francês - troublée -
para se referir tanto à consciência perturbada quando ao desejo sexual em sua analogia com a
água turva (e ainda na oposição do olhar claro ao olhar “trouble”, conforme citação acima).
Considerando esta proximidade de ideias, seria forçado, no entanto, simplesmente equiparar a
consciência pré-reflexiva ao desejo sexual, já que Sartre insiste que neste último a consciência
escolhe existir num plano distinto, que é o de ser tomada pela facticidade numa languidez

12 Ibid., p. 147.
13 EN, p. 427. (grifo nosso)
14 EN, p. 427. (grifo nosso)
!435

própria a um adormecimento. Por outro lado, é significativo que Sartre permita a analogia
através do termo que é utilizado justamente para caracterizar a consciência pré-reflexiva. No
caso do desejo, a ideia de trouble é a de que há “la présence d’un quelque chose d’invisible
qui ne se distingue pas d’elle-même [la conscience]”, de algo “insaisissable qui fait corps
avec elle”, que perturba e obscurece o nível translúcido sem com isso substancializa-lo:
“L’eau trouble est toujours de l’eau; elle en a gardé la fluidité et les caractères essentiels; mais
sa translucidité est « troublée »”15. Neste sentido, sem forçar uma equivalência entre o plano
do desejo sexual e da consciência pré-reflexiva, podemos nos ater a analogia proposta no
intuito de compreender como o assombramento dos espectros perturba e “turva” (trouble) o
plano pré-reflexivo espectral. As figuras espectrais são figuras da facticidade, já que
correspondem à passagem ao espectral da dimensão contingente que o para-si é. Em outros
termos, a facticidade do para-si é esta maneira particular de existir seu ser contingente, é o
plano dos espectros, onde o dualismo entre ser e nada não faz mais sentido já que o espectro
não pode ser caracterizado simplesmente como ser ou como nada. Se a facticidade
corresponde ao fato da consciência escolher pré-reflexivamente sua maneira de ser, o
assombramento dos espectros perturba este próprio movimento por ser algo da ordem
contingente de alguma forma presente na dimensão escolhida, algo que chega “por detrás”.
Como vimos a respeito das zonas de opacidade da dimensão para-si do para-si “sujeito”,
este se encontra constantemente assombrado não somente por sua contingência original, mas
também por uma série de figuras espectrais. Dentre elas é significativo que Sartre se utilize do
termo sombra (ombre) para se referir ao psíquico e por vezes aos objetos imaginários. Se o
assombramento é a relação entre estes objetos e o nível pré-reflexivo, como um tipo particular
de presença e visitação, podemos concluir que as sombras vêm obscurecer a dimensão até
então considerada “subjetiva-translúcida”. É o corpo psíquico, neste contexto, o meio passivo
que faz com que a consciência sofra a ação dos objetos psíquicos, intimamente ligados à
dimensão pré-reflexiva pela afetividade original que é a textura da facticidade corporal.
Curiosa liberdade a que se apresenta finalmente sob a perspectiva da espectralidade. O
nível pré-reflexivo é invisibilidade, logo, desconhecimento de si, opacidade espectral. Ao
fazer-se reflexivo o para-si pode apenas experienciar a reflexão pura pela angústia ou
constituir quase-objetos pela reflexão impura, que passam em seguida a assombrá-lo. Além

15 EN, p. 427.
!436

disso, o olhar do outro dota o para-si de uma dimensão alienada que assombra constantemente
e provoca uma metamorfose corporal que ele existe a cada vez. O assombramento acaba por
questionar os poderes da liberdade, dado que ela sofre o efeito de espectralidade que acentua
finalmente a contingência que a habita. Contingência que, embora adquira uma dimensão de
necessidade ao passar à facticidade, não cessa nunca de assombrar como contingência
original. Ou seja, o assombramento evidencia que nem tudo se transforma ao passar ao campo
de fundação do nada, há sempre um resto, um traço de infundado que atravessa a existência
de cada sujeito de sua própria absurdidade, constantemente vivida como náusea. Fazer
emergir a camada espectral é acentuar outros modos de presença, a partir de outro regime de
visibilidade, uma “visibilidade da noite”. Legitimar o espectral é ainda se contrapor à busca
pelos direitos de uma identidade, seja de um sujeito, seja de polos dualistas que não
comportam movimentos16. Os espectros perturbam (troublent) o domínio de si do sujeito. A
partir desta constatação, as noções de escolha, de projeto fundamental, de má-fé, a relação
com a psicanálise e com a ideia de inconsciente, entre outros lugares-comuns do pensamento
sartriano, merecem um novo olhar. 


16 Uma ideia que nos inspira no sentido de ser possível pensar ainda uma ontologia, mas em conjunto com uma
crítica aos modos indentitários, consiste no que Safatle chama de ontologia subtrativa. Ontologia que “não visa
fornecer determinações normativas sobre o ser, descrevendo o regime de sua substancialidade, seus atributos de
permanência e estabilidade nocional”, visto que é “crítica das formas atuais de determinação e apresentação de
“formas gerais de movimento” que desarticulam o campo das identidades”. SAFATLE, V. O circuito dos afetos.
Corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. São Paulo: Cosac Naify, 2015, p. 37. É próprio do espectral
tal desarticulação.
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ÍNDICE DE NOMES PRÓPRIOS

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Alloa, E. p. 98.
Alt, F. p. 283.
Aristóteles. p. 32; p. 146; p. 163; p. 295; p. 298
Badiou, A. p. 26; p. 50; p. 58; p. 264-265; p. 283; p. 299; p. 330.
Barata, A.; p. 4; p. 283; p. 285.
Barbaras, R. p. 3; p. 17; p. 38 et. seq.; p. 42 et seq.; p. 75; p.77-78; p.80; p. 85 et seq.; p.
95-96; p. 98; p. 204; p. 208; p. 212; p. 237; p. 239; p. 302; p. 304; p. 310; p. 346; p. 376; p.
392; p. 402; p. 414-415; p. 432.
Bataille, G. p. 149; p. 158; p. 263-264.
Beauvoir, S. de. p. 19; p. 57; p. 59; p. 103; p. 113 et seq.; p. 152; p. 159-60; p. 165-6; p. 216;
p. 229; p. 238-9; p. 309; p. 427.
Beckett, S. p. 338.
Benoist, J. p. 18; p. 30-31; p. 168; p. 195; p. 298-299; p. 309; p. 382 et seq.; p. 392; p. 399.
Bernet, R. p. 129; p. 147.
Bornheim, G. p. 29; p. 33; p. 136; p. 197.
Bourgault, J. p. 56 ; p. 114 .
Breeur, R. p. 16-17; p. 115.
Cabestan, P. p.3; p. 29; p. 56; p. 61; p. 89; p. 115; p. 283; p. 290; p. 344; p. 346.
Camus, A. p. 149; p. 154; p. 370.
Chauí, M. p. 57; p. 115.
Claudel, P. p. 305.
Cohen-Solal, A. p. 57-58, p. 115.
Contat, M., & Rybalka, M., p. 17; p. 56-57; p. 59; p. 123; p. 374.
Cormann, G. p. 3; p. 125; p. 229.
Dastur, F. p. 147-148; p. 195
Dawans, S. p. 385.
De Coorebyter, V. p. 3; p. 17; p. 34-35; p. 41; p. 51-52; p. 114-115; p. 119-120; p. 122-p.123;
p. 126-127; p. 130; p. 134; p. 137; p. 141; p. 144; p. 150; p. 152; p. 158, p. 159; p. 161-162; p.
191, p. 198; p. 199; p. 203-4; p. 206; p. 208; p. 211; p. 226-227; p. 233; p. 238; p. 268; p. 272;
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L’HANTOLOGIE DE SARTRE
Sur la spectralité dans L’Être et le Néant

Résumé substantiel

L’Être et le Néant est devenu un classique en philosophie. Les lectures qui portent sur
cet ouvrage sont aujourd’hui nombreuses et diversifiées. Jean-Paul Sartre y a consolidé des
thèmes fondamentaux de sa pensée, faisant de ce travail un objet d’inspiration forte, tant dans
le champ philosophique, que dans ceux de la politique, du théâtre et de la psychologie. Le
philosophe de la liberté est en même temps celui de la conscience transparente, du choix
qu’un sujet fait de lui-même, de la responsabilité et du néant. On pourrait dire des pôles
lumineux d’une ontologie problématique qui est accusée d’avoir instauré un dualisme radical
et définitif entre le sujet et le monde, ainsi que d’avoir proposé une conception solipsiste et
individualiste du sujet. Trop cartésienne, pas assez husserlienne, heideggerienne à tort,
obscurément hégélienne, cette ontologie survit aux critiques qui rendent quasi insoutenables
ses points principaux.
En vue de se confronter à ces problèmes de base, notre travail propose donc une autre
lecture possible de l’ontologie sartrienne, par le biais d’une reprise de cette pensée selon une
voie originale. Nous appelons hantologie cette autre lecture que nous avons réalisée, en raison
du fait qu’elle met en évidence les relations de hantise omniprésentes, mais non thématisées,
dans L’Être et le Néant. À travers la perspective de l’hantologie, il a surtout été possible de
surmonter le problème du dualisme, en montrant qu’il y a en réalité, une pluralité de modes
d’être au lieu, selon une division plus répandue entre l’être du pour-soi et de l’en-soi. Cette
pluralité correspond à un plan implicite de l’œuvre que nous avons nommé, à partir de
certaines idées de Jacques Derrida, spectralité. Cette lecture démontre finalement qu’un mode
de présence non intuitive des spectres ébranle la supposée “pureté” lumineuse de la
conscience qui s’est établie comme paradigme du sujet sartrien, dans la mesure où la hantise
!2

démontre un type singulier d’opacité qui finalement inscrit le sujet dans le monde et obscurcit
sa relation à soi.
Parmi les critiques qui portent sur L’Être et le Néant, une lecture est devenue célèbre :
celle du philosophe et ami de Sartre, Maurice Merleau-Ponty. Depuis la Phénoménologie de
la perception, on retrouve fréquemment les arguments merleau-pontyens en opposition aux
prémisses de Sartre. Opposition qui devient de plus en plus évidente par les tensions et les
conflits politiques qu’elle incorpore, qui sont à l’origine de textes comme l’attaque frontale
dans Sartre et l’ultra-bolchevisme (dans Les Aventures de la dialectique) et, d’une forme plus
élaborée, dans le manuscrit Le Visible et l’Invisible. Cette lecture devient, elle aussi, classique
à l’intérieur du débat philosophique, de manière à orienter la réception de la philosophie
sartrienne comme un tout, plus particulièrement dans L’Être et le Néant. Il n’est pas rare de
trouver des développements de cette lecture dans des livres sur Sartre ou sur Merleau-Ponty,
montrant généralement comment ce dernier, à partir des limites insurmontables identifiées
dans la philosophie de Sartre, a su les dépasser. Cela dit, on croit que cette critique se trouve
en syntonie - peut-être parce qu’elle en est une de ses origines - avec la position dominante de
lecture qui s’est établie sur L’Être et le Néant1.
La critique de Merleau-Ponty à Sartre est vaste et parfois minutieuse. En raison de
cela, il faut choisir un point spécifique de cette critique qui soit suffisamment important pour
conduire la réflexion. Le problème majeur que nous avons identifié dans la philosophie de
Sartre, via la lecture de Merleau-Ponty, est, justement le problème du dualisme. En effet, les
risques du dualisme traversent L’Être et le Néant. Ses toutes premières lignes affirment que la
pensée moderne a réalisé un véritable progrès qui aurait permis la suppression d’un certain
nombre de dualismes classiques, pour présenter ensuite une division de modes d’être qui a été
considérée par la plupart des critiques comme la base d’un nouveau dualisme, cette fois-ci
sartrien : à savoir la scission entre les régions ontologiques du pour-soi et de l’en-soi.
Dans l’« Introduction » de L’Être et le Néant, Sartre affirme avoir divisé le « concept
d’être » en « deux régions d’être absolument tranchées » et « incommunicables », même s’il

1 D’après Renaud Barbaras, “c’est incontestablement Merleau-Ponty qui [...] en un premier temps, à contribué à
renforcer l’occultation de la phénoménologie sartrienne, dans la mesure où Merleau-Ponty se construit en partie
contre elle”. BARBARAS, R. Introduction. In: _____ . (Org.) Sartre: désir et liberté. Paris: PUF, 2005, p. 11.
Pour Vincent de Coorebyter, “Même si elle [la critique de Merleau-Ponty] n’est pas unanimement partagée, cette
critique fait aujourd’hui autorité dans de nombreux cercles de lecteurs tant elle traduit en termes saisissants ce
qui semble bien être la leçon ontologique ultime de Sartre”. DE COOREBYTER, V. Sartre et l’être du néant.
Cahiers de philosophie de l’Université de Caen : Dire le néant, Caen, n. 43, 2007, p. 347.
!3

envisage que les deux régions « puissent être placées sous la même rubrique »2, sans pourtant
nous expliquer ce qu’il voudrait dire par là. Il nous dit seulement que « nous ne pourrons
véritablement saisir le sens de l’un ou de l’autre que lorsque nous pourrons établir leurs
véritables rapports avec la notion de l’être en général, et les relations qui les unissent 3 ».
Encore dans l’« Introduction », Sartre semblait à la fois renforcer et éviter le dualisme entre le
pour-soi et l’en-soi. Renforcer, lorsqu’il dit que le pour-soi est « radicalement autre » que
l’en-soi, qui lui est « opposé »4. Et éviter, au sens où il était attentif au danger d’avoir « fermé
toutes les portes et que nous nous soyons condamné à regarder l’être transcendant et la
conscience comme deux totalités closes et sans communication possible5 ». Cependant,
malgré cette précaution, ce qui est frappant c’est que l’on peut encore retrouver ce problème
dans la « Conclusion » de l’ouvrage : « Mais après description de l’en-soi et du pour-soi, il
nous avait paru difficile d’établir un lien entre eux et nous avions craint de tomber dans un
dualisme insurmontable6 ». Il s’agit ainsi d’une question qui traverse L’Être et le Néant, en
posant un problème auquel Sartre était attentif, mais qu’il n’a pas forcément réussi à résoudre.
Notre travail a donc consisté à reprendre la question du problème du dualisme dans la
philosophie de Sartre à travers la critique de Merleau-Ponty. Dans un premier temps, il a fallu
identifier en quoi consiste ce problème et quelles sont ses conséquences philosophiques. Dans
un deuxième temps, nous avons questionné l’idée de Merleau-Ponty selon laquelle il y aurait
un dualisme entre les modes d’être pour-soi et en-soi, ainsi que l’équivalence entre ces deux
modes d’être et les notions d’être et de néant. Nous avons appelé premier niveau de
constestation le parcours que nous avons réalisé pour montrer comment un changement
théorique dans la philosophie de Sartre vers la fin des années trente met en question la critique
merleau-pontyenne en ce qui concerne spécifiquement L’Être et le Néant, en reprenant une
position de Vincent de Coorebyter. Ce changement s’illustre dans la transition d’une
conception instantanéiste de la temporalité à une conception ekstatique liée à l’introduction de
la structure de facticité dans la conception du mode d’être du sujet ; changement que Merleau-
Ponty semble avoir négligé dans sa lecture de l’ontologie de Sartre. Toutefois, en déplaçant
quelques éléments de la critique merleau-pontyenne, on a pu identifier ce qu’on a appelé les

2 SARTRE, J.-P. L’Être et le Néant, Paris, Gallimard, 2012, p. 30. (Désormais EN)
3 EN, p. 30.
4 Ibid.
5 Ibid.
6 EN, p. 665.
!4

dualismes résiduels, face auxquels le premier niveau n’avait pas été capable de proposer des
solutions. La troisième partie de la thèse, deuxième niveau de contestation que nous avons
appelé l’hantologie, pour des motifs que nous allons exposer brièvement dans ce qui suit, a
finalement pour vocation de dépasser les problèmes résultants du dualisme, à partir des
éléments implicites ou peu travaillés dans le texte de Sartre.

Le problème : quelques considérations sur la critique du dualisme sartrien dans Le


Visible et l’Invisible.

Le Visible et l’Invisible constitue la forme la plus élaborée de la critique de la


philosophie sartrienne menée par Merleau-Ponty. Malgré la difficulté que la lecture d’un
manuscrit peut présenter – même s’il a déjà été beaucoup travaillé –, on pourrait dire que le
deuxième chapitre intitulé « Interrogation et dialectique » présente une argumentation
rigoureuse de l’opposition merleau-pontienne aux notions les plus fondamentales de L’Être et
le Néant, à savoir précisément les concepts d’être et de néant. L’ambition de Merleau-Ponty
dans ce texte est de montrer que la philosophie de Sartre ne rend pas compte de notre
expérience concrète de l’ouverture au monde impliquée dans ce qu’il appelle la foi perceptive.
Celle-ci relève d’une foi et non d’un savoir, dit Merleau-Ponty, parce que « le monde ici n’est
pas séparé de notre prise sur lui, qu’il est plutôt qu’affirmé, pris comme allant de soi, plutôt
que dévoilé, non réfuté »7. La philosophie, poursuit Merleau-Ponty, « doit s’approprier et
comprendre cette ouverture initiale au monde » qui est « une adhésion qui se sait au-delà des
preuves, tissée d’incrédulité, à chaque instant menacée par la non-foi » 8. Nous verrons très
brièvement les principales raisons pour lesquelles Merleau-Ponty croyait que Sartre a échoué
dans la tâche de penser concrètement l’expérience d’être-au-monde – donc de dépasser le
dualisme entre sujet et objet – en demeurant, finalement, idéaliste. Afin de présenter cette
critique, nous ferons d’abord quelques remarques sur la conception de la négativité chez
Sartre selon Merleau-Ponty et le dualisme qui s’ensuit entre être et néant, puis sur les
problèmes que pose la conception sartrienne du rapport à autrui, ce qui nous amène à
identifier un autre dualisme entre subjectivité et objectivité.

7 MERLEAU-PONTY, M. Le Visible et l’Invisible / Notes de travail. Paris: Gallimard, 2013, p. 48. (Désormais
VI)
8 VI, p. 47.
!5

Pour Merleau-Ponty, l’échec de l’ontologie sartrienne réside dans ses bases mêmes,
alors que « tout dépend ici de la rigueur avec laquelle on saura penser le négatif 9 ». En
définissant de manière générale la chose comme l’être en-soi qui est décrit comme « massif »,
« plénitude absolue et pleine positivité »10, et le sujet comme l’être pour-soi qui est le néant,
Sartre instaure, selon Merleau-Ponty, une scission entre deux régions opposées – être et non-
être – et comme telles irréconciliables. Si d’un côté, l’être est en-soi et ne contient en lui-
même aucune négativité, de l’autre l’être pour-soi est pure négativité, pur néant. En effet,
depuis La Transcendance de l’Ego, Sartre travaille à « vider » la conscience en l’affirmant
comme pure translucidité sans aucun contenu ou zone d’opacité, aucune image, représentation
ou ego qui puissent « habiter » la conscience. Le sujet est pure ouverture irréfléchie sur les
choses et « pour que cette ouverture ait lieu, pour que décidément nous sortions de nos
pensées, pour que rien ne s’interpose entre nous et lui, il faudrait corrélativement vider l’Être-
sujet de tous les fantômes dont la philosophie l’a encombré »11. Ainsi, Sartre postule le
rapport du sujet et du monde comme une ouverture qui est pur néant en ek-stase sur l’être, et
pour rendre possible cet accès particulier il purifie la notion de subjectivité au point qu’elle ne
peut être caractérisée précisément que par le rien, le vide, qui a besoin de la plénitude du
monde pour exister. Pour Merleau-Ponty cette solution « facile » transforme le négatif en une
sorte d’essence, en retombant sur le positif. En d’autres termes, si le néant ne peut jamais être
incorporé à l’être – qui est pure positivité –, s’il est toujours « derrière », ou soustrait à ce
qu’il dévoile ou affirme, le sujet comme néant finit par être cette sphère de non-adhérence au
monde. Il en résulte que cette région de négativité, qui ne peut être ni « sujet » ni « esprit », ni
« ego », vu qu’elle est pur néant, réintroduit à la place même où l’on voudrait l’expulser, un
« fantôme de réalité » du type d’une res cogitans « très particulière, souligne Merleau-Ponty,
insaisissable, invisible, mais chose tout de même »12. Ce faisant, Sartre substantialise la
subjectivité par excès de tentatives de la désubstantialiser, en postulant un néant hypostasié
qui interdit tout mélange à l’être. Dans ces conditions, être et néant sont, en réalité, « en
repos » l’un contre l’autre du fait qu’il n’y a que de la positivité ; et, pour cela même il n’y a
que de l’en-soi qui « du fond de sa primauté, tolère d’être reconnu par le Néant »13, alors qu’il

9 VI, p. 77.
10 EN, p. 32.
11 VI, p. 76.
12 Ibid.
13 VI, p. 126. (nous soulignons).
!6

revient au pour-soi, pur néant, de seulement constater et de s’abstraire de l’être positif, de


glisser sur sa surface. S’il est vrai qu’il n’y a que du positif et que le négatif est seulement le
non-être substantialisé, il faut conclure que la théorie de la négativité pure est un véritable
positivisme. Et cela parce que, en premier lieu, comme on vient de le dire, cette théorie admet
un parallélisme entre deux positivités, être et néant ; en second lieu, parce que si le néant est
précisément et uniquement dévoilement de l’être, celui-ci ne subit aucune modification par ce
dévoilement lui-même, le néant demeurant en « surface » de l’être sans s’introduire dans son
noyau massif. C’est dans ce sens que Merleau-Ponty met en lumière la description de Sartre
où il affirme que le dévoilement de l’être par le néant ne lui ajoute rien, ne l’affecte pas, ne le
modifie pas. Si cela est vrai, nous sommes devant une phénoménologie aberrante qui établit
que s’il arrive à quelque chose d’être perçu par quiconque, cette même perception « n’est pas
constituti[ve] de son sens de chose14 », l’être est seulement dévoilé de sa nuit, sans être
affecté, modifié, puisque « comme la relation entre conscience et être n’est pas une relation de
constitution, mais seulement de négation, rien de réel ne peut advenir à l’être : nier l’être ne le
modifie en rien15 ». Par ailleurs, nous avons vu que si le pour-soi est « pur néant », il ne subit
pas non plus de modifications puisque, en étant pure négativité, il finit par être cette chose
monstrueuse dont la substance réside en ne pas pouvoir être rien. Par conséquent, aucun des
deux pôles n’est affecté, transformé, mélangé par cette « rencontre » entre étrangers. À cet
égard, Merleau-Ponty a appelé négintuition cette négation radicale qui est le contrepoids de
l’intuition de l’être, et c’est cette double face de la « rencontre » qui garantit à la fois
l’autonomie et la co-extensivité des deux termes, c’est-à-dire intuitionner l’être c’est affirmer
sa positivité pure, nier à soi (négintuition) c’est l’impossibilité que le sujet soit quelque chose,
ce qui fait que le sujet est justement cette impossibilité même.
La philosophie de la négativité et son inévitable ambivalence nous amène encore,
selon Merleau-Ponty, à une conséquence importante, à savoir l’impossibilité de rendre compte
de l’expérience d’autrui. Dans le même chapitre du Visible et l’Invisible, cette critique
consiste en un dédoublement du problème de base de l’ontologie sartrienne qui, comme nous
venons de le dire, présuppose une conception du sujet comme pur néant et de l’être en-soi
comme pure positivité. Si l’ouverture au monde est pensée à partir de telles principes, elle se

14VI, p. 76.
15MOUTINHO, L.D., « O invisível como negativo do visível : a grandeza negativa em Merleau-Ponty », Trans/
Form/Ação, vol. 1, n° 27, 2004, p. 12. (Traduit librement du portugais.)
!7

trouve dès lors empêchée d’accéder effectivement à l’altérité, parce que si on part de la
division néant/être comme identique au couple conscience/monde, un tel rapport de survol est
nécessairement solipsiste. En premier lieu, cette conséquence résulte de ce que Merleau-Ponty
appelle le « pouvoir d’ontogenèse » de la conscience sartrienne, qui consiste en un pouvoir du
sujet de donner sens au monde. Le rapport conscience-monde forme ainsi une « sphère
close16 », de sorte que le monde se dévoile dans une dimension « pour-soi » du sujet qui est
« seul témoin d’ontogenèse »17. En ce sens, autrui est celui qui apparaît comme un deuxième
témoin du monde du pour-soi, ce qui revient à dire que « ce sont toujours mes choses que les
autres regardent et le contact qu’ils prennent avec elles ne les incorpore pas à un monde qui
soit leur. La perception du monde par les autres ne peut entrer en compétition avec celle que
j’en ai moi-même »18.
En second lieu, la position sartrienne concernant le rapport à autrui est développée
comme une radicalisation de la séparation entre être et néant, mais à présent dans la
perspective du pour-soi en rapport avec sa dimension pour-autrui, étant donné que le néant
que je suis et la dimension positive qui vient au monde par l’autre sont contradictoires et sans
mélange. Pour comprendre les grandes lignes de cette dimension, nous pouvons résumer la
position sartrienne de la manière suivante : l’apparition d’autrui est pour Sartre de l’ordre
d’une rencontre, où il arrive au pour-soi de souffrir d’une objectivation de son être qui fait
apparaître ce que Sartre nomme le « pour-autrui ». Cette « métamorphose » est souvent
décrite par Sartre comme ce qui s’opère à partir d’une expérience de la honte dans laquelle, à
travers le regard d’autrui, le pour-soi peut être vu, jugé, mesuré de même que les choses du
monde. Pour Merleau-Ponty, cette relation à autrui donne au pur néant qu’est le pour-soi une
dimension de visibilité, de manière à l’inscrire dans un ordre objectif du monde. Ainsi, chaque
pour-soi, dans son rapport à autrui, subit ou opère une objectification de l’autre, de façon
qu’au moins quatre termes sont en jeu : « mon être pour moi, mon être pour autrui, le pour soi
d’autrui et son être pour moi » 19. Par suite, il semble que cette sorte de « couche » de pour-
autrui, au lieu de caractériser une expérience d’altérité, empêche cette expérience même, dans
la mesure où chaque pour-soi ne se trouve pas en rapport avec l’autre proprement dit mais
avec soi-même, avec son pour-autrui. Bref, comme le dit Merleau-Ponty, « je n’ai pas affaire

16 VI, p. 84.
17 Ibid.
18 Ibid.
19 VI, p. 110.
!8

aux autres, j’ai affaire tout au plus à un non-moi neutre, à une négation diffuse de mon
néant »20. Nous pouvons constater ainsi l’origine de cet étrange solipsisme qui n’est plus celui
d’un sujet isolé du monde en doutant de son existence, mais celui d’un sujet solitaire dans un
monde plein et positif, où tout ce « qu’il y a » vient du pouvoir d’ontogenèse de la conscience.
Si autrui apparaît, dit Merleau-Ponty, « [il] reste un habitant de mon monde, mais il me
rappelle très impérieusement que l’ipse est un rien21 ». Autrui constate ainsi que rien ne peut
m’atteindre du « dedans », puisque son regard « ne fait que prolonger mon intime conviction
de n’être rien, de ne vivre qu’en parasite du monde, d’habiter un corps et une situation22 ».
C’est pourquoi déjà dans Les Aventures de la dialectique, Merleau-Ponty disait que s’« il y a
chez Sartre une pluralité de sujets, il n’y a pas d’intersubjectivité »23. Or, si chaque pour-soi
est pouvoir d’ontogenèse de dévoilement de l’en-soi, et que le sujet est seulement nié à travers
le regard d’autrui mais pas vraiment modifié en tant que négativité, il reste que
l’intersubjectivité est pensée comme une relation entre « foyers de négativité »24, qui ne sont
que « d’autres moi-même »25, donc comme une relation abstraite, logique et essentialiste.

Les limites de la critique de Merleau-Ponty

Afin de mettre en question les fondements de la critique de Merleau-Ponty, nous


pouvons indiquer trois problèmes centraux : 1) la manière abstraite dont Merleau-Ponty
conçoit la négation sartrienne et non pas la manière dont Sartre lui-même la conçoit ; 2) le fait
que Merleau-Ponty confond le couple être/néant et le couple pour-soi/en-soi ; 3) les
conséquences du fait que la lecture de Merleau-Ponty s’appuie sur le chapitre « La
transcendance » de L’Être et le Néant où Sartre décrit le mode d’être de ce qu’il appelle
« l’être de la connaissance ».
1) Dans Le Visible et l’Invisible, Merleau-Ponty parle à plusieurs reprises du pour-soi
comme un « pur néant » ou comme une négation pure. De même que dans Les Aventures de la
dialectique, il faisait une critique de « l’action pure » chez Sartre, à partir de cette même
conception du pour-soi. Cette équivalence entre le pour-soi et une négation pure a deux

20 VI, p. 99.
21 VI, p. 85.
22 VI, p. 88.
23 MERLEAU-PONTY, M. Les Aventures de la dialectique, Paris, Gallimard, 2000, p. 284.
24 VI, p. 85.
25 VI, p. 100.
!9

problèmes majeurs, qui sont internement liés : en premier lieu, la négation dans L’Être et le
Néant est toujours un acte de négation de l’être et jamais une négation pure, ou ex nihilo.
Voici quelques passages : « l’être est antérieur au néant et le fonde » ; « le néant […] ne
saurait avoir qu’une existence empruntée : c’est de l’être qu’il prend son être » ; « Le néant ne
peut se néantiser que sur fond d’être : si du néant peut être donné, ce n’est ni avant ni après
l’être, ni, d’une manière générale, en dehors de l’être, mais c’est au sein même de l’être, en
son cœur, comme un ver»26. La lecture que fait Sartre de Qu’est-ce que la métaphysique ? de
Heidegger a été là encore décisive pour sa conception de négativité. À partir de là, il
interprète à sa manière l’idée heideggérienne du néantir du néant (das Nichten des Nichts)
comme un acte de néantisation de l’être. C’est pourquoi on peut comprendre que toute
négation est existentielle, ce qui revient à dire que la négation est toujours un acte
ontologique. Cet acte de négation pour Sartre est l’être même du sujet qui est néantisation de
son être et sur ce point l’accord est total avec Hegel « lorsqu’il déclare que l’Esprit est négatif
»27 . Cette caractéristique ontologique nous amène au deuxième point.
2) Dans la deuxième partie de L’Être et le Néant – lorsque Sartre décrit les structures
immédiates du pour-soi –, le mode d’être du pour-soi est défini à partir de la structure de la
facticité comme un « en-soi néantisé » : « C’est cette facticité qui permet de dire qu’il [le
pour-soi] est, qu’il existe, bien que nous ne puissions jamais la réaliser et que nous la
saisissions toujours à travers le pour-soi »28. Tout se passe comme si l’en-soi – à partir d’un
effort pour échapper à sa contingence pour être son propre fondement ou causa sui –, se
néantisait en faisant surgir le pour-soi. Si le néant est nécessairement « néant d’être », comme
nous venons de le dire, il faut qu’il y ait un être qui soutient en son sein l’acte incessant de
néantisation. Or, si l’être pour-soi est un en-soi néantisé, nous ne pouvons pas négliger une
« communauté ontologique » entre les deux modes d’être qui va mettre en question l’idée
d’un dualisme entre le pour-soi et l’en-soi. Car, comme nous dit Vincent de Coorebyter:

le pour-soi n’est pas l’Autre de l’en-soi, son exact opposé, bien au contraire :
le pour-soi, c’est l’en-soi lui-même qui se fait autre que soi en son sein, qui
s’affecte de néant en son cœur, « comme un ver », par un geste inexpliqué et
contingent que Sartre appelle l’acte ontologique et qui dépressurise l’en-soi
de l’intérieur. Le pour-soi, c’est de l’en-soi conscient (de) soi, motif pour
lequel il est affecté de la contingence propre à l’en-soi […] C’est là, très

26 EN, p. 50-56, passim.


27 EN, p. 53. (nous soulignons)
28 EN, p. 119.
!10

exactement, ce que Sartre appelle la facticité, qui est propre au pour-soi car
elle désigne la prise en charge existentielle de la contingence et non la
contingence elle-même. Définie de la sorte, la facticité consacre
l’indépassable appartenance du pour-soi au monde commun de l’en-soi.29

Cette « communauté ontologique » entre le pour-soi et l’en-soi a aussi été soulignée


par Mikel Dufrenne lorsqu’il dit que « sans doute l’en-soi et le pour-soi sont-ils solidaires en
ce sens que l’en-soi […] porte le pour-soi dans sa facticité »30. Et aussi par Claude Romano
quand il parle de « continuité ontologique »31 entre le pour-soi et l’en-soi ; de même que par
Pierre Verstraeten qui y voit une « communauté d’être »32. Tout cela pour dire que si le pour-
soi est défini comme un mode d’être qui est un en-soi néantisé, et si toute négation est un acte
de néantisation d’être, nous ne pouvons pas, comme le fait Merleau-Ponty, identifier le pour-
soi à une négation pure. Autrement dit encore, si Merleau-Ponty veut affirmer un dualisme
entre être et néant chez Sartre, celui-ci ne peut pas être conçu comme un dualisme entre pour-
soi et en-soi. D’abord parce qu’il n’y a pas de dualisme entre pour-soi et en-soi si on prend en
considération la structure de la facticité et la communauté d’être qu’elle atteste ; et
deuxièmement parce que le pour-soi ne peut pas être un « pur néant » mais toujours une
néantisation concrète de son être et que Sartre décrit ce mode d’être comme un être « qui n’est
pas ce qu’il est et qui est ce qu’il n’est pas » et non simplement comme un être qui « n’est
pas » ; c’est-à-dire le pour-soi est la tension elle-même entre être et non-être.
3) Nous pouvons mettre en question la stratégie de lecture de L’Être et le Néant mis en
œuvre par Merleau-Ponty. Ce qui est frappant dans le texte de Les Aventures de la dialectique,
par exemple, intitulé « Sartre et l’ultra-bolchevisme », c’est que Merleau-Ponty ne cite jamais
L’Être et le Néant, même si son argument en réponse au texte sartrien « Les communistes et la
paix » repose sur l’ontologie de 1943. Mais, à ce sujet Le Visible et l’Invisible est encore plus
significatif puisque sauf une brève citation de la partie « Conception dialectique du néant » où
Sartre parle de Hegel, toutes les citations de Merleau-Ponty sont extraites du chapitre sur « La
transcendance » où Sartre décrit le mode d’être de ce qu’il nomme « l’être de la
connaissance ». Grosso modo, dans cette partie, il veut décrire la liaison ontologique du pour-
soi à l’en-soi transcendant à partir, disons, de la contrepartie positive de l’intentionnalité de la

29 DE COOREBYTER, V. « L’Être et le néant, ou le roman de la matière », Les Temps Modernes, n° 667, 2012,
p. 1-11, p. 8 pour la citation (nous soulignons).
30 DUFRENNE, M. Jalons, La Haye, Martinus Nijhoff, 1966, p. 76.
31 ROMANO, C. « L’ontologie sartrienne : réflexions sur son archè et son télos », dans N. TAMBOURGI-

HATEM (Org.), Sartre sans frontières, Beyrouth, Université Saint-Joseph, 2007, p. 15.
32 VERSTRAETEN, P. « Sartre/Kant/Hegel. De la contrariété à la contradiction, quelques itinéraires du

négatif », dans Hegel aujourd’hui, Paris, Vrin, 1995, p. 158.


!11

conscience. Le pour-soi est l’être de la conscience, et la conscience, comme chez Husserl, a


l’intentionnalité comme structure. Toutefois, Sartre modifie la formule « toute conscience est
conscience de quelque chose » pour lui faire dire que « la conscience naît portée sur un être
qui n’est pas elle33 », ce qu’il appelle « preuve ontologique ». Cela dit, dans ce chapitre, Sartre
appelle connaissance l’intuition de l’en-soi transcendant qui fait que la conscience naît
comme n’étant pas un en-soi particulier – une négation que Sartre nomme négation interne et
que Merleau-Ponty a appelée négintuition. Intuition et négation interne sont ainsi les côtés
positif et négatif de l’intentionnalité chez Sartre. Mais le pour-soi ne se réduit pas à cet aspect
intentionnel, puisqu’il surgit surtout d’un acte ontologique consistant dans la néantisation de
l’en-soi qu’il est. Donc, acte ontologique et négation interne sont les deux négations à
l’origine du mode d’être du pour-soi, ce qui revient à dire qu’il surgit à partir d’une double
négation et pas seulement de la négation interne. Si cela était le cas, on ferait justement
abstraction de la facticité du pour-soi à l’origine de l’acte ontologique et, en conséquence, on
pourrait l’interpréter comme un « pur néant », comme le fait Merleau-Ponty. En ce sens, si
nous écrivions tout à l’heure que Merleau-Ponty prélève ses citations du chapitre concernant
le mode d’être de la connaissance, on peut maintenant constater les conséquences de cette
démarche. Lorsque Merleau-Ponty interprète la modalité de connaissance comme le mode
d’être du pour-soi, il prend la partie pour le tout et par là il oublie l’acte ontologique, c’est-à-
dire il oublie le fait que le pour-soi n’est pas seulement négation de l’en-soi qu’il n’est pas,
mais qu’il est aussi néantisation de l’en-soi qu’il est. C’est pour cette raison que Beauvoir,
mais aussi Dufrenne, parlent d’une négligence de la facticité chez Sartre par Merleau-Ponty 34.
D’un autre côté, d’après De Coorebyter il s’agit en vérité d’un malentendu dans la mesure où
Merleau-Ponty ne voit pas le changement qui s’opère dans la philosophie de Sartre à la fin des
années trente, à l’époque où il écrivait les Carnets de la drôle de guerre. À cette époque,
Sartre admet avoir changé sa conception de temporalité qui était jusque-là une temporalité
instantanéiste. À nos yeux, c’est justement la facticité qui joue un rôle fondamental dans ce
changement, étant donné que le pour-soi ne peut plus être dissocié de son passé, comme
c’était le cas dans le cadre de la temporalité de l’instant. À partir de la perspective d’une
temporalité maintenant ek-statique, passé, présent et futur sont indissociables. Pour De

33 EN, p. 28.
34 Cf. DUFRENNE, M. Jalons, p. 172 ; BEAUVOIR, S. de « Merleau-Ponty et le pseudo-sartrisme », dans Priv-
ilèges, Paris, Gallimard, 1955, p. 206-207.
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Coorebyter, comme Merleau-Ponty ne prend pas en considération ce changement, il croit


trouver dans ces pages du chapitre sur la transcendance une philosophie sartrienne identique à
celle de La Transcendance de l’Ego et du petit texte sur l’intentionnalité de Husserl, tous les
deux écrits en 1934, c’est-à-dire presque dix ans avant L’Être et le Néant35.

La multiplicité des modes d’être dans L’Être et le Néant.

Compte tenu de ces trois points, il nous est possible d’envisager les limites de la
critique de Merleau-Ponty. À cet égard, on peut ajouter encore une conséquence d’une lecture
dualiste de L’Être et le Néant : à savoir l’impossibilité de rendre compte de la richesse des
modes d’être qu’on y trouve. Autrement dit, si on fait une lecture qui prend en considération
les divers modes d’être décrits tout au long de l’ontologie sartrienne, celle-ci se révèle
beaucoup plus complexe que l’on ne pourrait l’imaginer à partir d’une lecture dualiste. En
premier lieu, parce que c’est n’est pas si simple de définir de manière rigoureuse – non
seulement en ayant en vue l’« Introduction », mais aussi la suite de l’ouvrage –, les modes
d’être du pour-soi et de l’en-soi. Ce couple de termes est souvent compris comme la version
sartrienne de la dichotomie sujet-objet, comme nous pouvons l’observer à partir d’une
affirmation d’Alain Badiou : « la conscience et son objet, l’idéation et l’idéat, le pôle noétique
et le pôle noématique, ou, dans la variante sartrienne, le pour-soi et l’en-soi » 36. Une telle
réduction tient au fait que Sartre lui-même a choisi ladite « mauvaise perspective » en partant
d’un paradigme perceptif (l’être du percipere et l’être du percipi) pour présenter ces deux
régions d’être au début de l’ouvrage. Dans l’« Introduction » donc, l’en-soi nous est d’abord
présenté comme étant « l’être de cette table, de ce paquet de tabac, de la lampe, plus
généralement l’être du monde qui est impliqué par la conscience » 37. En effet, le mode d’être
de l’en-soi est sûrement un mode objectif parce que sa loi d’être c’est le principe d’identité,
mais on ne peut pas en conclure pour cela que l’en-soi soit toujours un objet qui apparaît à la
conscience perceptive, car il y a bien des modes d’être en-soi qui ne se donnent pas à travers
ce type de relation entre un sujet et un objet. C’est ce qu’on peut observer par rapport à la
définition sartrienne du passé – il est un en-soi et son mode d’être ne peut pas être perçu, par

35 Cf. DE COOREBYTER, V. Sartre face à la phénoménologie : autour de « L’intentionnalité » et de « La tran-


scendance de l’Ego », Bruxelles, Ousia, 2000, p. 97-100.
36 BADIOU, A. Deleuze : la clameur de l’Etre, Paris, Hachette, 1997, p. 35.
37 EN, p. 29.
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exemple. À la différence de l’en-soi perçu, l’en-soi passé n’est pas un objet pour la
conscience :

Ainsi n’y a-t-il pas thèse du passé et pourtant le passé n’est pas immanent au
pour-soi. Il hante le pour-soi dans le moment même où le pour-soi s’assume
comme n’étant pas telle ou telle chose particulière. Il n’est pas l’objet du
regard du pour-soi. Ce regard translucide à lui-même se dirige, par-delà la
chose, vers l’avenir. Le passé en tant que chose qu’on est sans la poser, en
tant que ce qui hante sans être remarqué, est derrière le pour-soi, en dehors de
son champ thématique, qui est devant lui comme ce qu’il éclaire.38

On peut remarquer par là qu’on doit distinguer les spécificités des différents modes
d’être qui sont placés sur la désignation d’en-soi. En même temps, on peut observer une
difficulté de Sartre lui-même dans ce qui relève de ses définitions du passé comme en-soi,
lorsqu’il nous dit aussi que « le passé que j’étais […] c’est un en-soi comme les choses du
monde »39, c’est-à-dire sans faire la distinction que nous venons d’indiquer, ou quand il dit,
après avoir défini le mode d’être du passé comme un en-soi, que « En un sens […] le passé
qui est à la fois pour-soi et en-soi ressemble à la valeur ou soi »40. De même, l’être de la
valeur est à plusieurs reprises défini comme un en-soi-pour-soi, mais on trouve en même
temps la valeur comme synonyme du Soi et celui-ci comme un en-soi : « Ce que le pour-soi
manque, c’est le soi – ou soi-même comme en-soi » ; « [la valeur] est comme l’en-soi absent
qui hante l’être du pour-soi » ; pour ajouter ensuite « [qu’]il ne faudrait pas confondre,
toutefois, cet en-soi manqué avec celui de la facticité. L’en-soi de la facticité, dans son échec
à se fonder, s’est résorbé en pure présence au monde du pour-soi. L’en-soi manqué, au
contraire, est pure absence » 41. Même sans entrer dans les détails de ce genre d’affirmation,
on peut se demander quelle est la différence entre ces modes d’être en-soi placés sous une
même définition ? En outre, Sartre décrit des modes d’être qui ne sont pas vraiment un en-soi
stricto sensu, mais qui se donnent comme une série de « figures » de l’en-soi : c’est le cas de
l’objet psychique qui est une « ombre d’être »42, du ceci qui est une chose-ustensile, des en-
soi fantômes qui sont une sorte de « néant-en-soi » qui composent la temporalité mondaine.

38 EN, p. 176. (nous soulignons).


39 EN, p. 151.
40 EN, p. 154. (nous soulignons).
41 EN, p. 125-130 passim.
42 Cf. EN, p. 196-197; p. 199.
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Bref, il s’agit des modes d’être qui apparaissent comme contradictoires au cadre dualiste, mais
qui sont pourtant des êtres réels et qui jouent un rôle fondamental dans l’ontologie sartrienne.
D’autre part, nous pouvons mettre en question aussi les définitions concernant le pour-
soi. Ce mode d’être est désigné normalement comme le mode d’être de la conscience, c’est-à-
dire comme la version sartrienne du « sujet ». Toutefois, ce n’est pas strictement pour se
référer au « sujet » qu’on retrouve la désignation de pour-soi, mais aussi pour tout ce qui
appartient à une région ontologique spécifique. Rappelons les quatre premières structures
immédiates du pour-soi « sujet »: la présence à soi est pour-soi de même que le possible, la
facticité est un en-soi néantisé, la valeur est un en-soi-pour-soi. En somme, dans la description
même du pour-soi « sujet » on retrouve des structures spécifiques « pour-soi » et d’autres qui
échappent en un certain sens à la description d’un pour-soi « pur », comme la facticité et la
valeur. Celle-ci, par exemple, étant un en-soi-pour-soi, comment peut-elle être pour-soi ?
Une dernière remarque importante sur les définitions. Dans le cas de l’ego pour-autrui,
par exemple, on raterait la complexité des modes d’être si on s’en tenait à une lecture dualiste.
Sur l’ego-pour-autrui, Sartre affirme la chose suivante :

Pourtant cette limite hors d’atteinte qu’est mon Moi-objet n’est pas idéale :
c’est un être réel. Cet être n’est point en-soi car il ne s’est pas produit dans la
pure extériorité d’indifférence; mais il n’est pas non plus pour-soi, car il n’est
pas l’être que j’ai à être en me néantisant. Il est précisément mon être-pour-
autrui, cet être écartelé entre deux négations d’origine opposée et de sens
inverse.43

Ni en-soi ni pour-soi, le moi-objet pour-autrui dépasse-t-il le dualisme ? Toutes ces


questions montrent que si on fait ce que Beauvoir, en parlant justement de Merleau-Ponty, a
nommé « le coup de la dichotomie » 44, qui consiste à effectuer une lecture qui ne trouve que
des dualismes, alors toute la diversité des modes d’être est perdue. Mais il n’est pas question
ici de dire que le dualisme ressort seulement d’une mauvaise lecture. Comme nous l’avons dit
plus haut, la question du dualisme traverse L’Être et le Néant et, en ce sens, il nous paraît qu’il
y a vraiment une difficulté. Toutefois, le problème majeur à nos yeux ne réside pas tant dans
un dualisme entre pour-soi et en-soi, pour toutes les raisons qui ont été exposées plus haut,
mais, si on déplace la critique de Merleau-Ponty à un autre niveau, dans un possible dualisme
entre être et néant dans la réalité même du pour-soi. Le problème paraît alors mieux posé. En

43 EN, p. 326. (nous soulignons).


44 BEAUVOIR, S. de « Merleau-Ponty et le pseudo-sartrisme », p. 230.
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d’autres termes, nous pouvons nous demander, après avoir compris que le pour-soi est en
même temps être et néant, puisqu’il « n’est pas ce qu’il est et est ce qu’il n’est pas », comment
ces termes se rapportent l’un à l’autre dans la réalité même du pour-soi ? S’excluent-ils ?
Passent-ils l’un dans l’autre ? Sont-ils contemporains ? On peut également poser la question
en termes de subjectivité et d’objectivité : si le pour-soi est en même temps pour-soi et pour-
autrui, comment ces deux dimensions, décrites par Sartre comme incompatibles, peuvent-elles
coexister dans un même être qui est pour-soi-pour-autrui ? Autrement dit, comment est-il
possible que « cet étranger qu’on me présente je l’assume aussitôt, sans qu’il cesse d’être un
étranger »45 ?

Hantologie et spectralité

Nous croyons que pour conclure finalement que L’Être et le Néant n’est pas une
ontologie dualiste, c’est-à-dire non pas dualiste au sens d’un véritable dualisme entre le pour-
soi et l’en-soi, mais en raison d’une incompatibilité entre être et néant – qui ne sont pas
synonymes du premier couple –, il faut trouver un lien entre les deux termes, une manière de
comprendre comment être et néant peuvent être effectivement en rapport constant, dans leur
incompatibilité même. À cet égard, nous pensons qu’on peut trouver des pistes dans la
philosophie sartrienne pour répondre à ce problème du dualisme, si on prend en compte une
notion très présente et opératoire, surtout dans son ontologie, mais non thématisée par Sartre
lui-même, et qui est indiquée dans l’affirmation suivante : « Ainsi suis-je sur le même plan
objet spécifique et sujet libre mais jamais les deux à la fois et toujours l’un hanté par
l’Autre »46 . Sans entrer dans le détail, nous croyons que c’est justement par la hantise qu’on
peut comprendre le lien entre être et néant dans la réalité même du pour-soi, lui-même hanté
par sa contingence originelle, par la valeur, par ses prochains et par son être-pour-autrui. Et
c’est aussi par la hantise que l’on peut comprendre le monde comme champ phénoménal
pratique, puisque si pour Sartre « être-dans-le-monde c’est hanter le monde »47, cela veut dire
aussi que le monde « se dévoile comme hanté par des absences à réaliser et chaque ceci paraît
avec un cortège d’absences qui l’indiquent et le déterminent »48. Ainsi, on peut remarquer

45 EN, p. 314.
46 SARTRE, J-P. Cahiers pour une morale, Paris, Gallimard, 1983, p. 101. (nous soulignons)
47 EN, p. 284.
48 EN, p. 235.
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l’importance du fait que, comme dit Daniel Giovannangeli, « le terme hanter traverse L’Être
et le Néant »49. Finalement, si le monde est l’être hanté par le néant, et s’il n’y a pas de néant
qui ne soit hanté par l’être, on a affaire à une véritable hantologie, pour utiliser un mot de
Derrida50. Cette hantologie dépasse un possible dualisme entre être et néant, et affirme la
simultanéité des termes soit dans le mode d’être du pour-soi « sujet », soit pour comprendre le
monde comme champ phénoménal. De plus, elle permet d’envisager une multiplicité des
modes d’être qui sont en jeu dans L’Être et le Néant et qui seraient exclus d’un cadre dualiste
au nom du principe de contradiction. Ainsi, c’est par la hantise qu’on peut non seulement
répondre aux lectures trop simplistes de l’ontologie sartrienne, soucieuses de l’enfermer dans
un dualisme strict, mais surtout se donner une possibilité réelle de saisir la multiplicité de
modes d’être qui s’y présente en l’envisageant dans toute sa richesse.
La hantise nous dévoile finalement une région ontologique implicite de l’ontologie
sartrienne que nous identifions comme la spectralité. Ce terme n’est pas utilisé par Sartre lui-
même, mais il reste néanmoins pertinent pour comprendre le thème de la hantise, omniprésent
dans L’Être et le Néant, comme nous venons de le mentionner. Dans cette perspective,
Derrida montre très bien comment le thème de la hantise est lié à l’idée d’une forme de
présence propre aux spectres. Il s’agit d’une présence de quelque chose qui est là mais
échappe au regard intuitif et frontal. En vérité, les spectres dépassent les divisons dualistes du
genre présent/absent, existant/non-existant, vivant/mort. Néanmoins, ils provoquent un effet
de spectralité qui correspond à la perturbation du champ où ils rendent visite. Dans le
contexte de L’Être et le Néant, les modes spectraux qu’on y trouve hantent, justement, le
champ translucide, en perturbant le rapport à soi du sujet. Derrida a montré comment le
spectral est l’élément qui vient justement perturber la contemporanéité à soi du sujet, dans la
mesure où il relève d’une temporalité qui n’est plus une succession de présents ; le spectral
apparait même comme ce qui met l’idée de présence en question. Le propre d’un spectre c’est
de venir et revenir, fréquenter, habiter sans résider dans un champ d’apparition qui lui est
propre. Ce champ est caractérisé par Derrida comme possédant une sorte de visibilité de nuit

49 GIOVANNANGELI, D. Le retard de la conscience : Husserl, Sartre, Derrida. Bruxelles: Ousia, 2001, p. 106.
50 Dans le chapitre intitulé « L’être et l’autre : ontologie et “hantologie” », Daniel Giovannangeli montre l’impo-
rtance de la hantise dans L'Être et le Néant, même si, à son sens, « il ne s’agit pas de surestimer la force de ce
terme chez Sartre ». De plus, il y met en évidence le caractère problématique d’une interprétation qui verrait
chez Sartre une « hantologie » au sens derridien du terme. Ibid.
!17

qui dépasse une division du type visible/invisible, parce que le spectre apparaît toujours
latéralement sans se donner à l’intuition. Selon les mots de Derrida :

Le spectre, c’est d’abord du visible. Mais c’est du visible invisible, la


visibilité d’un corps qui n’est pas présent en chair et en os. Il se refuse à
l’intuition à laquelle il se donne, il n’est pas tangible. Fantôme garde la
même référence au phainesthai, à l’apparaître pour la vue, à la brillance du
jour, à la phénoménalité. Et ce qui se passe avec la spectralité, avec la
fantoménalité [...], c’est que devient alors quasiment visible ce qui n’est
visible que pour autant qu’on ne le voit pas en chair et en os. C’est une
visibilité de nuit51.

Les analyses derridiennes sur la spectralité nous ont servi d’outil pour penser une
pluralité des modes d’être de l’ontologie sartrienne et les effets de hantise qui traversent
L’Être et le Néant. Le premier mode spectral que l'on peut identifier correspond à l’un de
principes de base de l’ontologie sartrienne, à savoir la conception de conscience préréflexive.
Bien qu’immédiate et transparente, la conscience qui correspond au cogito préréflexif chez
Sartre n’implique ni un vécu plein ni une adéquation à soi, caractéristiques normalement
attribuées à une conscience transparente. Dans ce sens très particulier de « présence à soi », la
conscience est au contraire l’élément qui brise l’unité, la plénitude et l’identité du sujet. Toute
conscience est ainsi, selon l’expression de Sartre, « conscience troublée »52, « déjà
contestation en elle-même » 53. La présence à soi étant la séparation (ambiguë parce non
effective) intraconscientiel qui empêche l’identité de toute conscience avec elle-même. Ainsi
dans l’exemple que Sartre donne de la « croyance » :

la séparation qui sépare la croyance d’elle-même ne se laisse ni saisir ni


même concevoir à part. Cherche-t-on à la déceler, elle s’évanouit : on
retrouve la croyance comme pure immanence. Mais si au contraire on veut
saisir la croyance en tant que telle, alors la fissure est là, paraissant
lorsqu’on ne veut pas la voir, disparaissant dès qu’on cherche à la
contempler54.

Dans ce cas, il est intéressant de remarquer l’élément spectral de cette dernière


affirmation : « Mais si au contraire on veut saisir la croyance en tant que telle, alors la fissure
est là, paraissant lorsqu’on ne veut pas la voir, disparaissant dès qu’on cherche à la

51 DERRIDA, J. & STIEGLER, B. Spectrographies. In: Échographies de la télévision : entretiens filmés. Paris :
Galilée, 1996, p. 130.
52 EN, p. 111.
53 SARTRE, J.-P. Conscience de soi et connaissance de soi. In:. La transcendance de l’Ego et autres textes

phénoménologiques. (textes introduits et annotés par V. de Coorebyter). Paris: Vrin, 2003, p. 156.
54 EN, p. 114.
!18

contempler ». Contrairement à la plénitude de l’identique, la présence à soi fantomatique


décrite par Sartre (qu’il appelle dyade fantôme55) signifie en vérité un échappement à soi, une
disjonction dans le rapport du sujet à lui-même, une temporalité, comme le dit Derrida à partir
de Hamlet, « out of joint »56. Le niveau de conscience que Sartre appelle cogito préréflexif
n’est donc pas, finalement, susceptible d’être connu ; la présence à soi est un échappement de
soi et la translucidité comporte une invisibilité totale. Dans ce sens, c’est précisément la
structure spectrale de la conscience qui implique un type d’opacité dans le rapport du sujet à
lui-même. Une opacité comprise non plus comme une caractéristique propre aux objets mais
signifiant désormais l’aveuglement propre du rapport à soi, la « perturbation » caractéristique
de la dyade fantôme qui brise toute sorte d’adéquation à soi et par conséquent de connaissance
de soi. Nous appelons opacité spectrale cette autre manière de comprendre l’idée d’opacité,
cette fois-ci liée à la méconnaissance de soi de la transparence sartrienne. Spectrale parce que
le propre du spectre réside dans cette façon de perturber un champ en brisant la présence
effective au profit d’un mode de présence non-intuitive. L’opacité spectrale correspond enfin
au fait que le préréflexif est une sorte de « savoir implicite de soi » qui comporte
nécessairement un « non-savoir », ce qui fait du sujet, tel que le décrit Sartre paraphrasant
Maurice Barrès, « un mystère en pleine lumière » 57.
Les autres modes spectraux qui viennent perturber la dimension translucide du pour-
soi sont issus de la structure de la facticité, de la réflexion et de l’imagination. Les objets
imaginaires, par exemple, sont désignés déjà dans L’Imaginaire comme des objets-fantômes
qui hantent le sujet pendant « la nuit » 58, caractérisés comme étant « ambigus, fuyants, à la
fois eux-mêmes et autre chose qu’eux-mêmes, […] supports de qualités contradictoires » 59.
D’autre part, si on pense aux objets sortis de la réflexion nommée « impure », ceux-ci sont
décrits comme étant des ombres d’être. L’Ego psychique, par exemple, est un objet de ce type.
Il accompagne le sujet comme une ombre de soi, de sorte qu’il ne se laisse pas intuitionner :
« En effet, l’Ego n’apparaît jamais que lorsqu’on ne le regarde pas »60. Les ombres, crées par

55 Cf. EN, p. 209.


56 DERRIDA, J. Spectres de Marx. L’État de la dette, le travail du deuil et la nouvelle Internationale. Paris:
Galilée, 1993, p. 21.
57 EN, p. 582.
58 SARTRE, J.-P. L’Imaginaire. Paris: Gallimard, 1986, p. 254. Idée que nous remet à la visibilité de nuit dont

parlais Derrida, que nous avons cité plus haut.


59 Ibid.
60 SARTRE, J.-P. La transcendance de l’Ego. In: La transcendance de l’Ego et autres textes phénoménologiques.

(textes introduits et annotés par V. de Coorebyter). Paris: Vrin, 2003, p. 122. (nous soulignons)
!19

la réflexion impure, composent finalement un « monde fantôme »61 où les objets-psychiques


font un « cortège permanent »62 à la conscience, dans la mesure où ils la hantent par « une
sorte de visitation »63.
Il y a chez Sartre un autre point qui met en lumière le rôle essentiel et constitutif de la
hantise des spectres dans le mode d’être du pour-soi : c’est que l’être pour soi est toujours un
être-pour-autrui. Cela signifie qu’autrui est capable, par son regard, de donner une sorte
d’extériorité à ce mode d’être qui était, dans sa dimension pour-soi, purement vécu. Nous
avons résumé plus haut la théorie du regard chez Sartre : la médiation du regard de l’autre
affecte le pour-soi d’une métamorphose honteuse qui lui confère dès lors une dimension
d’objet. Cette dimension n’est pas une image que l’autre a du sujet regardé, elle fait partie de
ce que le pour-soi est. Mais Sartre semble y établir à nouveau quelque chose comme une
division entre les dimensions d’être et d’avoir à être, dans ce cas sous l’aspect d’une
dimension subjective pour-soi et une autre, objective, pour-autrui. Ainsi affirme-t-il, par
rapport à la question du corps, que le « corps-pour-soi » et le « corps-pour-autrui ». Même
pour penser les différents aspects de la corporéité Sartre insiste sur l’idée que « je ne puis
mettre en rapport ce que je suis dans l’intimité sans distance, sans recul, sans perspective du
pour-soi avec cet être injustifiable et en-soi que je suis pour-autrui »64 . Or, s’il est vrai qu’il
n’y a pas de rapport entre les deux dimensions, il faudrait se demander comment le pour-soi
peut être en même temps pour-soi et pour-autrui ? Notre travail a montré comment la hantise
représente le mode de présence d’une dimension dans l’autre. Dès que le pour-soi gagne une
dimension d’extériorité - qui fait partie de son être - il doit néantiser cet être de manière à ce
que son être-pour-autrui ne cesse pas de le hanter. Les travaux de psychanalyse existentielle
sont à ce titre exemplaires : ainsi Saint Genet nous montre comment Jean Genet a vécu

particulièrement sa « hantise ontologique »65 d’être un voleur pour les autres ; il est, nous dit

Sartre, « hanté par cet Autre qui est lui-même »66. Son être-pour-autrui est comme un
fantôme, « mais ce fantôme - précisément parce qu’il n’est rien - ne se laissera pas faire :

61 EN, p. 205
62 EN, p. 198.
63 EN, p. 193.
64 EN, p. 260.
65 SARTRE, J.-P. Saint Genet: comédien et martyr. Paris: Gallimard, 2011, p. 88.
66 Ibid., p. 79.
!20

quand l’enfant se retourne vers lui, il disparaît ; quand Genet cherche à le fuir, brusquement,
comme l’oiseau rebelle de Carmen, il est là »67. Dans L’Être et le Néant Sartre fait déjà

référence à l’être-pour-autrui comme une « esquisse-fantôme de mon être »68 qui n’est pas

susceptible d’être connu puisqu’il est comme « un fardeau que je porte sans jamais pouvoir
me retourner vers lui pour le connaître »69. C’est précisément ce qui fait que l’être-pour-autrui
résiste à la description si on demeure prisonnier d’une vision dualiste de l’ontologie sartrienne
qui divise tous les modes d’être entre les catégories de « pour-soi » et d’« en-soi ». En ce qui
concerne l’être-pour-autrui on a vu que Sartre affirme bien qu’il n’est ni pour-soi ni en-soi ;
une double négation (ni...ni...) qui convient bien aux modes spectraux, dont le caractère
réfractaire aux cadres dualistes a été montré par Derrida.
Par ailleurs, c’est aussi Derrida qui révèle le rapport significatif entre la spectralité et
le regard, dès lors que pour lui « le regard est la spectralité même »70. En analysant une scène
de Hamlet, Derrida développe dans Spectres de Marx l’idée qu’il y a une asymétrie propre à
la spectralité du regard. Cette asymétrie consiste dans le fait d’être regardé sans pouvoir se
retourner pour voir ou localiser qui nous regarde et participe de ce que Derrida appelle l’«

effet de visière », à savoir justement le fait que « nous ne voyons pas qui nous regarde »71 :

qu’il y a « quelqu’un qui me regarde sans réciprocité possible »72. Chez Sartre c’est
précisément cette condition d’asymétrie qui provoque l’apparition de l’être-pour-autrui : le
pour-soi pâtit de la métamorphose à partir du moment même où il se sent regardé, si bien qu’il
n’y a pas besoin d’une présence effective de l’autre dans le champ perceptif pour que le
regard de l’autre provoque l’apparition du pour-autrui. Il suffit un bruit, une lumière qui
s’allume, etc., pour que se signale le regard de l’autre. Ainsi, non seulement le mode d’être de
cet être-pour-autrui est spectral mais le mode de présence de l’autre en général est également
de l’ordre de la spectralité dans la mesure où il s’agit d’un mode de « présence immense et

67 Ibid., p. 47.
68 EN, p. 304.
69 EN, p. 301.
70 DERRIDA, J.; STIEGLER, B. Spectrographies, p. 137.
71 DERRIDA, J. Spectres de Marx, p. 26.
72 Ibid., p. 164.
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invisible »; autrui étant ce « vers qui je ne tourne pas mon attention. Il est celui qui me
regarde et que je ne regarde pas encore », sa présence « n’est jamais plus présente, plus
urgente que lorsque je n’y prends pas garde »73. Il y a au final deux niveaux de hantise dans le
rapport à autrui : la hantise issue de la présence spectrale du regard de l’autre et la hantise de
l’être-pour-l’autre, qui est une conséquence de la première.
Finalement, la facticité correspond au fait que le pour-soi existe son être contingent,
autrement dit, qu’il doit avoir à être l’être qu’il est, assumer son être. Être-au-monde est pour
Sartre un fait absurde et contingent. Le sujet vit cette absurdité de la contingence comme
facticité, c’est-à-dire qu’il assume son être par son propre mouvement d’existence. Ce
mouvement ouvre à chaque fois et incessamment une sorte de champ factice qui correspond,
pourrait-on dire, à la « contingence vécue ». A chaque assomption, le pour-soi, dit Sartre,
néantise l’être qu’il est (plus précisément l’en-soi qu’il est) de telle manière que celui-ci -
l’en-soi néantisé - vient hanter le sujet comme sa contingence originelle. Cela signifie que cet
acte de néantisantion désigné par Sartre comme acte ontologique ne réalise pas une vraie
rupture (comme on a tendance à le croire) qui scinderait en deux dimensions le sujet : une
dimension qu’il est et une dimension qu’il n’est pas, ou plutôt une dimension d’être et une
dimension de néant. Si après l’acte de néantisation il y a toujours un reste, une trace qui
continue à hanter le pour-soi, cela veut dire que le pour-soi ne se détache pas complètement
de l’être qu’il est et que ce reste d’en-soi est d’une certaine manière présent dans ce champ,
comme perturbateur de la supposée « pureté » attachée à la dimension subjective. Dans ce
sens nous comprenons l’acte de néantisation propre à la facticité du pour-soi comme un «
passage au spectral », en vertu du fait que le pour-soi est toujours hanté par sa contingence
originelle. C’est aussi cette hantise perpétuelle qui fait que le sujet est compris par Sartre
comme fuite de la contingence de son être et désir d’être un être fondé par soi-même, un être
causa sui ou simplement Dieu. La hantise est même essentielle pour expliquer la « fuite » - vu
que s’il n’y a pas un « reste », il n’y a non plus rien à fuir -; un des aspects caractérisant le
mode d’être du sujet sans lequel on ne peut pas comprendre le mouvement du désir en général
chez Sartre.
Tous ces éléments présents dans la pensée sartrienne concernant la facticité du pour-
soi et l’être-pour-autrui et les autres modes spectraux, attestent que la hantise est une part

73 EN, p. 308.
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essentielle du mode d’être du pour-soi. Nous pourrions en relever bien davantage encore et
montrer comment le pour-soi est hanté par la valeur (et aussi par ce que Sartre appelle une
anti-valeur), par l’instant temporel, par la mort, etc. En outre, la spectralité vient finalement
mettre en question la signification de la translucidité comme garante de l’identité à soi du
sujet, de la possibilité d’une « maîtrise de soi » et d’une subjectivité pure. La dyade fantôme
montre déjà l’impossibilité de l’identité et la méconnaissance propre à l’invisibilité du
préreflexif. La hantise vient encore ajouter une couche spectrale qui renforce l’opacité, en
vertu de la présence des spectres dans ce champ normalement compris comme une «
subjectivité pure ». Cette présence spectrale, vient de plus perturber les dualismes entre être et
néant, subjectivité et objectivité qui semblent hanter la philosophie de Sartre. La spectralité
nous autorise donc à envisager une autre lecture possible, parfois même en opposant Sartre à
lui-même.

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