Você está na página 1de 4

See discussions, stats, and author profiles for this publication at: https://www.researchgate.

net/publication/231930385

Carlos Eugênio Líbano Soares, A capoeira escrava e outras tradições rebeldes


no Rio de Janeiro, 1808–1850 (Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2001), pp.
608, pb.

Article  in  Journal of Latin American Studies · November 2002


DOI: 10.1017/S0022216X02316717

CITATIONS READS

0 2,062

1 author:

Matthias Röhrig Assunção


University of Essex
50 PUBLICATIONS   212 CITATIONS   

SEE PROFILE

Some of the authors of this publication are also working on these related projects:

The History of Capoeira View project

Jogo do Pau - Stick playing and fighting in the Paraíba Valley, Brazil View project

All content following this page was uploaded by Matthias Röhrig Assunção on 19 May 2020.

The user has requested enhancement of the downloaded file.


CAPOEIRA E ESCRAVIDÃO

Soares, Carlos Eugênio Líbano. A capoeira escrava e outras tradições


rebeldes no Rio de Janeiro, 1808-1850. 2ª ed. Campinas, Editora da
Unicamp, 2004. 608p.

A rápida expansão da capoeira ao Kongo e Angola; e entre estes os es-


redor do mundo globalizado resultou cravos do estuário do rio Congo eram
também em um crescente interesse particularmente proeminentes. Esse
acadêmico nessa arte marcial afro- detalhe poderá não agradar àqueles
brasileira. Um número cada vez mai- que acreditam que o n’golo de
or de monografias e teses testemu- Benguela foi o principal antecessor
nha o fato de que a capoeira está se da capoeira; entretanto, dada a pre-
tornando um campo de pesquisa pró- sença de crioulos e mestiços já na-
prio. O livro de Soares, já em segun- quele estágio inicial, o autor enfatiza
da edição, é importante não só para a que a capoeira era acima de tudo uma
história da capoeira, mas, de manei- atividade escrava, mais do que “uma
ra geral, para a compreensão da gê- atividade exclusivamente africana.
nese da cultura escrava e afro-ameri- Na realidade, parece-nos que ela é
cana. O autor garimpou nos arqui- fruto da combinação de tradições afri-
vos um incrível número de fontes canas dispersas com ‘invenções’ cul-
primárias, a maior parte das quais turais crioulas.” (p. 125).
não havia sido utilizada anteriormen- Os capoeiristas atuais podem ficar
te por outros pesquisadores. desapontados pelo fato de os regis-
Tanto praticantes de capoeira quan- tros proverem tão poucos detalhes
to estudiosos ficarão interessados no concretos sobre o jogo propriamen-
material coletado acerca das origens te dito. Ele nunca é descrito pelos
da arte marcial. Algo como 84% das policiais ou outras autoridades, e em
centenas de africanos presos pela prá- razão disto nós ainda não sabemos
tica de capoeira durante o período de muito acerca de sua prática em com-
1810 a 1821 (quando ela aparece pela paração a períodos posteriores, so-
primeira vez nos registros históricos) bre os quais o próprio Soares escre-
vieram da região do antigo reino do veu um outro livro clássico (A

Afro-Ásia, 31 (2004), 365-367 365


negregada instituição: os capoeiras sofriam uma “correção imediata” de
na Corte Imperial, 2ª ed., Rio de Ja- cem a trezentos açoites, além de se-
neiro, Access 1999). Mas o autor rem muitas vezes enviados à prisão
fornece um denso relato sobre como com trabalho (galés) nos estaleiros.
a capoeira estava enraizada nas vi- Praticantes livres que incorressem
das dos escravos urbanos e dos li- nesse comportamento inaceitável em
bertos. Exercícios de capoeira, inclu- companhia de escravos eram também
indo as sempre mencionadas cabe- freqüentemente maltratados e
çadas, eram praticados nas praças da engajados nas forças armadas. Uma
cidade, na área do porto, ao redor parte substancial do livro trata da vida
de igrejas que abrigavam irmanda- de capoeiras, e de escravos de forma
des de negros e próximo aos zungus, mais geral, nas diferentes prisões da
as residências e espécie de estalagens cidade e no arsenal da Marinha. So-
de escravos de ganho e “pessoas de ares vê especialmente este último
cor” livres. A capoeira oferecia um como um espaço importante para a
espaço fundamental para a sociabi- geração de práticas de resistência
lidade escrava masculina, mas tam- mais abrangentes, dado que ali os
bém era uma arma para enfrentar escravos socializavam com prisionei-
outros escravos ou a polícia. Os pri- ros políticos, marinheiros e soldados.
meiros capoeiras usavam laços co- Seu livro também cobre o papel
loridos, chapéus ou gorros que pro- crucial dos capoeiras na repressão ao
vavelmente marcavam seu pertenci- motim promovido por soldados irlan-
mento étnico. Soares sugere que lu- deses e alemães em 1828, e o papel
tas pelo acesso às fontes e pelo con- desempenhado pelos cativos que che-
trole de praças resultaram na forma- gavam da Costa da Mina (a região
ção de gangues, mas, como ele mes- do Golfo do Benim, na África) na
mo reconhece, a evidência de que comunidade escrava carioca. Ele
essas gangues existissem antes da enfatiza a divergência de interesses
década de 1840 é na verdade fraca. entre o Estado e os senhores de es-
Muito bem documentadas, ao con- cravos, estes sempre se queixando da
trário, são as tentativas das autori- intromissão daquele em seus direitos
dades de erradicar a capoeira, e a de propriedade.
forma como as políticas em relação O quadro que emerge é o de dois ter-
a ela mudaram ao longo do tempo. rores paralelos. As autoridades ado-
Nenhuma outra prática cultural ja- tavam políticas de intimidação contra
mais foi objeto de tão intensa (e em os capoeiras, e estes por sua vez
última análise mal-sucedida) repres- instilavam o medo entre as elites. So-
são. Os escravos que fossem pegos ares insiste reiteradamente nas dores

366 Afro-Ásia, 31 (2004), 365-357


de cabeça dos chefes de polícia e nos mente, ele tende a repetir evidências
pesadelos das elites. Essa imagem ex- e argumentos. Por que repetir o que
tremamente tenebrosa de uma bata- cada estudioso alguma vez possa ter
lha desesperada para impor a lei e a dito sobre a capoeira do século XIX?
ordem sobre uma população escrava Isso pode ser um problema comum
rebelde é claramente um reflexo do em se tratando de terminar uma tese
tipo de fonte utilizada. Alguns podem de doutorado sob a pressão dos pra-
considerar esta uma visão exagerada, zos, mas poderia se esperar de uma
já que afinal nenhuma grande revolta editora acadêmica que tivesse um
escrava jamais ocorreu na cidade do cuidado maior na revisão e na edi-
Rio de Janeiro. Mas este seria o julga- ção. O livro se beneficiaria enorme-
mento fácil do observador contempo- mente de uma compactação do texto
râneo que olha para trás. A capoeira e da correção de certas estatísticas
emerge deste estudo não como um estranhas (por exemplo, as percenta-
irrelevante nicho para os historiado- gens na p. 601 somam 200% e ainda
res culturais, mas como uma lente deixam de fora os 9 % de moçambi-
através da qual se pode apreender a ques!). Apesar desses problemas edi-
interação mais complexa da cultura toriais o livro permanece uma con-
escrava com a política da elite. tribuição relevante para a história
Uma vez que o livro é estruturado social da escravidão e um marco nos
tanto temática quanto cronologica- estudos sobre a capoeira.
Mathias Röhrig-Assunção
Professor do Departamento de His-
tória da Universidade de Essex, In-
glaterra. Esta resenha foi original-
mente publicada no Journal of Latin
American Studies (Londres). Tradu-
ção do inglês de Fábio Baqueiro
Figueiredo

Afro-Ásia, 31 (2004), 365-367 367

View publication stats

Você também pode gostar