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CLIO História – Textos e Documentos

Rev. Bras. Hist. vol.19 n.38 São Paulo (...) o que evidentemente é muito processos judiciais que anulavam
1999 pouco para permitir conclusões a qualquer tipo de diversidade nos
respeito de centenas de viagens interrogatórios, pasteurizados por
Cultura marítima: marinheiros feitas durante três séculos"2. No meio da pena do escrivão3.
e escravos no tráfico negreiro decorrer desta pesquisa, tenho me Os relatos dos viajantes, por sua
deparado com o mesmo problema, vez, ao informarem sobre
para o Brasil (sécs. XVIII e qual seja, a inexistência dos diários ocorrências das viagens, trazem
XIX)1 de bordo das embarcações uma carga de choque cultural
Jaime Rodrigues negreiras. Em períodos como o quase sempre insuperável na
Doutorando - UNICAMP final do século XVIII, por exemplo, narrativa. Esse choque produziu
não havia nada que incriminasse os juízos de valor que, na maioria das
RESUMO homens que participavam do tráfico vezes, depreciavam a cultura e o
Este ensaio aborda temas a partir de africanos entre as colônias comportamento dos homens do
dos quais pode-se resgatar portuguesas. Comerciante que agia mar, freqüentemente descritos
aspectos da cultura dos homens do no interior das normas da como bárbaros e indisciplinados.
mar, em especial aqueles ligados legalidade e da moral vigentes, o Ainda assim, permitem entrever
ao tráfico de escravos africanos traficante setecentista ainda assim certas práticas de bordo que, de
para o Brasil entre fins do século não deixou rastros substanciais outro modo, seriam totalmente
XVIII e meados do XIX. A partir de como os diários de bordo - ou insondáveis para nós. Em muitos
uma discussão sobre o trabalho então esses documentos relatos de viajantes, podemos ler
com fontes lacunares, procuro simplesmente pereceram nas observações e impressões que se
definir os termos dentro dos quais viagens, no tempo ou nos arquivos. mostram estranhas à compreensão
foi entendida a cultura marítima e Já para o período posterior a 1831, contemporânea. Se aceitar o
discutir aspectos tais como a inexistência dos diários é desafio do estranhamento, o
nacionalidade e internacionalismo, relativamente óbvia: atuando em historiador pode estar diante de
condição social, idade, processo de uma atividade criminosa, não havia pistas frutíferas para seu trabalho.
trabalho, comportamento, o menor interesse dos traficantes Nas palavras de Robert Darnton,
disciplina, enfrentamentos com a ou dos capitães em deixar pistas "analisando o documento onde ele
natureza e com a hierarquia, diretas sobre o exercício do tráfico é mais opaco, talvez se consiga
linguagem, religiosidade, rituais e sobre o que ocorria dentro dos descobrir um sistema de
cotidianos e decisões de ordem navios. significados estranhos". Em seu
prática, estas últimas ligadas à Porém, nunca é demais lembrar trabalho, essa metodologia
própria sobrevivência e à que não há crime perfeito e, por revelou-se promissora; através da
segurança do grupo e da isso, indícios menos substanciais, "opacidade" dos relatos escritos,
embarcação. aliados a um método de ele pôde ensaiar uma série de
reconstrução que conjugue explicações para episódios que, de
imaginação, invenção e outro modo, seriam
I - O PROBLEMA DAS FONTES especulação, possibilitam o início incompreensíveis e relegados à
Esta pesquisa busca sondar o modo da empreitada. O primeiro passo é categoria de exotismo4.
como se davam as relações sociais identificar esses indícios: Quanto aos dicionários, eles
a bordo dos navios negreiros, interrogatórios dos tripulantes de também apresentam problemas de
envolvendo tripulantes das embarcações negreiras apreendidas significação. Considerando que o
embarcações e africanos em no século XIX; relatos de viajantes uso mais ou menos literal dos
processo de escravização que se sobre as suas próprias travessias dicionários foi objeto de uma
dirigiam ao Brasil. Porém, além do dos mares e dicionários pequena mas significativa polêmica
reconhecimento dos sujeitos dessa portugueses de marinharia. Esses entre dois consagrados
relação, tudo o que temos são três tipos de fontes permitem historiadores da cultura, não posso
evidências sumárias, indiretas e pequenos acessos para recuperar deixar de mencioná-la para situar o
escassas. O que esses homens elementos da vida cotidiana a uso e a utilidade desse tipo de
faziam, como se comportavam e bordo. fonte nesta pesquisa. Roger
que língua falavam, qual sua visão Primeiramente, os interrogatórios: Chartier vê no trabalho de Darnton
de mundo e particularmente da na situação de réus em processos uma noção equivocada dos
situação em que se encontravam judiciais, os tripulantes pegos em símbolos. Para ele, ao espancarem
são indagações que, para flagrante de contrabando até a morte os gatos de uma
conseguirem respostas no trabalho certamente buscavam dar tipografia, os trabalhadores
do historiador, precisam trilhar um respostas que negassem suas poderiam estar se manifestando de
caminho tortuoso em meio a fontes culpas, mas ainda assim suas falas maneira muito particular, e não
de natureza diversificada e díspar nos informam sobre práticas de estarem expressando um sistema
no formato e no tempo. bordo. Anteriormente, já havia me simbólico compartilhado por todos
As lacunas e ausências de fontes já deparado com as estratégias os tipógrafos (e muitos menos por
estiveram presente em outros usadas pelas tripulações em todos os franceses). Darnton
estudos. Amaral Lapa, quando situação idêntica: os processos de entende por símbolo "qualquer
iniciou sua obra sobre os navios da apreensão dos navios negreiros objeto, ato, evento, qualidade ou
Carreira da Índia, julgava poder julgados na justiça brasileira em relação que serve como um veículo
contar com os diários de bordo, meados do século XIX. Neles, os para a concepção". A essa noção
documentos que ele considera os tripulantes presos empenharam-se antropológica de símbolo, Chartier
mais esclarecedores sobre as em negar o envolvimento com a opôs o "ponto de vista do nativo",
condições de vida dos atividade ilegal e, por outro lado, recorrendo a um dicionário da
embarcadiços. "Infelizmente", diz havia uma série de repetições língua francesa editado no início do
ele, "encontraram-se diários formais no conteúdo das falas, século XVIII. Nele, encontramos a
referentes a apenas 15 viagens, devidas à estrutura mesmo dos definição de símbolo como
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(...) signo, tipo, espécie de mar em navios mercantes ou de seguintes proporções de


emblema ou representação de guerra revelaram um cotidiano distribuição conforme a
alguma coisa moral, pelas imagens profundamente marcado pelo nacionalidade: v. tabelas
ou propriedades da coisa natural. sofrimento - constatação válida
Figura ou imagem que serve para para diferentes temporalidades Se nos restringirmos ao universo
designar alguma coisa, tanto pelos históricas e cronológicas. Amaral da amostragem, a menor
significados da pintura ou Lapa apontou aspectos dessa diversidade de origem nacional não
escultura, como pelo discurso. natureza no trabalho marítimo: os significa que automaticamente
Para Darnton, tomar as definições marinheiros eram mal remunerados estava criada uma unidade cultural
dos dicionários "ao pé-da-letra" e espoliados pelos oficiais, além de maior, já que as práticas culturais
tem seus inconvenientes: lutarem pela sobrevivência tendo são informadas por muitos outros
Concordo que os dicionários da como aliados alimentação e água elementos. A maior parte dos
época podem ter utilidade para muitas vezes estragadas6. Este tripulantes era de origem
rastrear os sentidos atribuídos às resumo bastante genérico pode nos portuguesa (pouco mais de 53% do
palavras pela elite letrada. Mas não ajudar a compreender o desgaste total), seguida dos africanos (pouco
creio que um escritor refinado físico e mental que afetava esses mais de 24%).
como Furetière [o dicionarista] homens, encurtando sua vida em Excetuando os sete cabo-verdianos
possa servir como 'informante todos os sentidos - para o trabalho da amostra e outros três homens
nativo' sobre a concepção do e para o gozo. livres africanos e negros, os demais
simbolismo entre trabalhadores Mas o quadro geral carece de africanos mencionados eram ou
analfabetos. E nem acho que detalhamento no âmbito da haviam sido escravos, o que nos
Furetière ofereça um conceito historiografia brasileira. Se o remete a outros aspectos
adequado do simbolismo para a sofrimento físico e emocional era importantes na formação da cultura
análise etnográfica5. uma marca desse trabalho, marítima do tráfico negreiro: a
Trazendo os termos dessa produzindo resultados que estão no presença marcante das culturas
discussão para o campo desta cerne da cultura marítima, outros africanas e escravas a bordo e a
pesquisa, penso ser bastante elementos intervinham na diversidade social existente nas
relativa a validade dos dicionários caracterização das práticas equipagens. Os tripulantes
como repositórios de definições culturais dos marinheiros. Entre africanos, quase sempre na
unívocas. Eles foram compilados elas estava a mobilidade no condição de marinheiros - ainda
em momentos determinados e espaço, responsável pelo contato que por vezes em tarefas
podem não dar conta da dinâmica com outras práticas culturais especializadas - estavam
da transformação da linguagem, mundo (ou mar) afora, além de submetidos ao domínio dos oficiais,
bem como suas definições não têm inúmeras diversidades: a diferença como de resto todos os
necessariamente o mesmo social entre membros das marinheiros. Entretanto, sua
significado para os usuários do tripulações, a variação etária, a situação poderia ser de
mesmo léxico ou para a sociedade multiplicidade religiosa, de discriminação e eventualmente
coeva como um todo. No caso nacionalidade, de etnia etc. suas falhas no trabalho seriam
específico dos dicionários de O único fator de unidade cultural punidas de forma mais rigorosa.
marinharia, eles reúnem conceitos provavelmente era o gênero. As Algumas vezes, os africanos eram
técnicos sobre partes e peças das profissões do mar eram uma parte ainda objeto de discriminação no
embarcações e, às vezes, sobre as exclusivamente masculina do trato cotidiano com seus
técnicas construtivas, além de mundo do trabalho ocidental, e companheiros marujos: é o que
descreverem cargos e funções da principalmente homens pobres se podemos inferir de um relato
equipagem. A quantidade de empregavam nelas7. Em seu estudo datado de 1847 sobre o ritual que
dicionários editados é suficiente sobre as tripulações da marinha ocorria a bordo quando da
para permitir algumas comparações inglesa, Marcus Rediker identificou passagem pela linha do Equador. O
e sondar os diferentes pessoas de várias origens a serviço ritual, que envolvia tanto os oficiais
entendimentos que se tinha sobre de Sua Majestade britânica: quanto os marinheiros, era
determinados conceitos. Quase franceses, alemães, portugueses, permeado por brincadeiras, bebida
todos, porém, são do século XIX, o espanhóis, escandinavos, africanos, e muita algazarra, nas quais às
que impede a verificação das asiáticos e americanos. Também na vezes os negros poderiam levar a
alterações de conteúdo nos colônia francesa de São Domingos pior. Vejamos o que nos diz o
significados das palavras ao longo em fins do século XVIII havia uma relato: "Tivemos poucas
de um período mais amplo. O extraordinária diversidade de brincadeiras e as diversões
mesmo acontece com os origem entre os marinheiros costumeiras. Meteram dentro
vocabulários eventualmente europeus que ali arribavam; d'água com bastante crueldade a
compilados por homens que não espanhóis insulares, italianos, um negrinho passageiro de proa,
eram de fato dicionaristas malteses e outros de diversas brincadeira que ele não
profissionais. nacionalidades vinham ter a São compreendeu e que não lhe cabia,
Indicado assim o problema das Domingos no curso de uma longa pois que já havia cruzado a linha ao
fontes, o passo seguinte leva à viagem. Esse "caldeirão de ir à Europa"9.
tentativa de definição mais precisa internacionalismo", na expressão A fonte não é categórica sobre o
do objeto para o qual elas serão o de Linebaugh, era ainda mais motivo pelo qual o rapaz teria sido
instrumental de resgate. Vamos a notório nas tripulações piratas 8. tratado de forma diferente dos
ele. Contudo, a origem nacional das demais, no entanto, são
equipagens negreiras destinadas ao significativas as menções à sua cor
II - DEFININDO O OBJETO, O Brasil parece ter sido mais e à grandeza da crueldade -
QUE É CULTURA MARÍTIMA? homogênea. Os dados a respeito de "bastante". Ademais, se
Os estudos que se preocuparam em trinta tripulações negreiras do compararmos este relato com
caracterizar a vida dos homens do século XIX demonstram as outras descrições do ritual de
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travessia do Equador, veremos que embora também ocorresse cedo, denominação deve ter uma relação
raras vezes a crueldade se estava sob o arbítrio do senhor ou menor com a idade e mais estreita
concentrava em uma figura que de quem os tomava em aluguel. Na com o grau em que se
não pertencia ao corpo de oficiais. colônia, a escassez de encontravam no processo de
No que se refere à idade dos trabalhadores qualificados nos aprendizagem da profissão
tripulantes, o estudo de Rediker estaleiros - onde encontramos marítima. Certamente, os escravos
indicou que a maior parte dos profissões idênticas às dos navios - mencionados já haviam passado
marinheiros tinha entre 20 e 30 foi contornada pela formação de por outras tarefas (e talvez outros
anos, enquanto que a faixa etária mão-de-obra livre ou escrava, senhores) antes de chegarem à
média dos oficiais ficava entre 30 e comprando-se cativos vida marítima.
35 anos. A partir das mesmas especialmente destinados às Além do que, a presença de
fontes da Tabela I, temos as tarefas da construção naval ou africanos (escravos ou não) a bordo
seguintes médias de idade nas outros que já dominassem as de navios negreiros poderia se dar
tripulações do tráfico negreiro para técnicas do ofício. pela necessidade de um elo de
o Brasil oitocentista: Também para os escravos comunicação entre os tripulantes e
As idades médias de oficiais e embarcadiços do tráfico negreiro o as "cargas", pelo imperativo de
marinheiros livres coincidem com recrutamento apresentava esse saber o que murmuravam ou
as dos recortes estudados por duplo caráter compulsório e livre. tramavam os escravos
Rediker (Inglaterra e América de Ao que tudo indica, era bastante encarcerados no porão. Se os
língua inglesa, primeira metade do antigo o costume dos capitães de africanos embarcados puderam ou
século XVIII). As novidades, neste separarem os escravos mais se dispuseram a cumprir essa
caso, referem-se aos outros itens robustos do carregamento para função, pouco sabemos. Também
inseridos na tabela. substituírem os tripulantes que entre os africanos a diversidade
Criei um campo específico para morriam durante as viagens - cultural era enorme, mas é
marinheiros escravos e dois conforme esclareceu François plausível supor que um africano de
campos para "moços ou grumetes". Froger, engenheiro voluntário e etnia diversa (e inimiga) daqueles
No campo destinado aos escrivão do diário da viagem de De que vinham no porão pode ter sido
marinheiros livres, foram Gennes, que em 1695 tentou muito útil às tripulações negreiras.
computadas informações sobre fundar uma colônia francesa no Inversamente, um africano de
homens provenientes da Europa, Estreito de Magalhães11. O mesmo qualquer origem pode ter sido um
América e África, e nos campos ocorreu com o africano Ochar, que elo importante na rede de
referentes aos marinheiros e moços aparece na lista dos tripulantes a solidariedade dos "malungos"
escravos, anotei aqueles cuja bordo da escuna Dona Bárbara: contra o tratamento dispensado a
condição vinha mencionada nas pelo seu depoimento, fica claro que eles pelo restante da tripulação.
listas de tripulantes anexadas aos ele era um africano recém- Se informações como estas sobre
processos. Esses dados indicam capturado que foi colocado a as tripulações, de caráter mais
uma especificidade do engajamento serviço da embarcação12. Por outro censitário, podem nos fazer
de escravos nas equipagens. lado, os navios também vislumbrar aspectos da cultura
No caso dos moços ou grumetes funcionaram como rotas de fuga marítima, existem ainda outras
escravos, a média etária deles para escravos que se fizeram brechas possíveis. A esses
contrariava a propalada regra de passar por marinheiros livres e se elementos formativos somavam-se
que os rapazes deveriam iniciar-se engajaram no trabalho marítimo. a natureza, as condições e as
cedo no aprendizado do trabalho De acordo com Scott, relações sociais no trabalho e o
marítimo. No entanto, quase nada (...) mesmo escravos sem espaço físico do navio. Como toda
sabemos sobre as formas de experiência de navegação poderiam cultura, esta também não era
recrutamento dos tripulantes. conhecer alguns termos náuticos estática e se transformou ao longo
Amaral Lapa nos diz que a maneira através dos versos de uma ou mais do tempo, interagindo com as
mais comum de recrutar homens canções populares, e passar por alterações no processo e no local
para a Carreira da Índia era a marinheiros livres. Os capitães dos de trabalho. Ou seja, embora sem
compulsória, o que ajuda a navios normalmente não estavam um relação de determinação, as
compreender falta de civilidade dispostos a inquirir cuidadosamente novidades tecnológicas introduzidas
quando em terra e as constantes cada marinheiro engajado13. na arquitetura naval levaram a
deserções10. Entretanto, o Por isso, podemos dizer que não se mudanças inegáveis na vida de
engajamento de homens livres e deve ao acaso a presença nos bordo. Mudavam o espaço onde se
pobres em navios para aprenderem navios negreiros de "moços" um realizava o trabalho, o próprio
uma profissão também estava de pouco mais idosos na condição de processo de trabalho e a relação
acordo com as regras do mercado escravos. Moço ou grumete, de dos tripulantes entre si e no
de trabalho existente para essa acordo com a definição de um desempenho de suas funções.
camada popular, que tinha no mar dicionário de meados dos Processo de trabalho, cultura de
uma possibilidade arranjar trabalho oitocentos, é o tripulante "cuja classe, mudanças tecnológicas,
em troca de salário - e em se praça medeia entre os marinheiros espaço de trabalho: estes são
tratando do Brasil colonial, uma e os pajens, e que sobe às gáveas temas caros à história social do
das raras possibilidades de e faz outros misteres"14. Denominar trabalho, particularmente da
emprego disponíveis para esse tipo "moços" esses escravos de meia- história da classe operária. Se a
de mão-de-obra. idade não significa que, como os classe operária é, nas palavras de
Se para os homens livres e pobres moços ou grumetes brancos, eles E. P. Thompson, um processo
podemos discutir o engajamento estivessem ingressando só agora histórico e não um produto de
compulsório ou opcional no no aprendizado profissional ou que geração espontânea do sistema de
trabalho marítimo, para os simplesmente desempenhassem as fábricas15, as relações produtivas e
escravos essa opção era funções definidas pelo dicionarista as condições em que o trabalho se
inexistente: a iniciação no trabalho, contemporâneo. No caso deles, a desenvolvia estavam presentes
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antes da formação da classe, numa A vida em alto-mar resultava em providências imediatas e eficazes
época em que a luta de classes se um desligamento dos laços sociais dos calafates, que ao mesmo
travava sem a existência formal da pré-existentes por longos períodos, tempo significavam um aumento
classe operária16. na perda da liberdade e autonomia forçado da produtividade desse
A analogia entre o sistema fabril e pessoais e levava a uma tensão tripulante. Em benefício de suas
o trabalho marítimo, inspirada na intensificada pela impossibilidade próprias vidas, o trabalho, a
obra de Thompson, foi levada a de controlar condições que só a habilidade e o espírito comunitário
cabo por Linebaugh e Rediker. Em natureza podia ditar. Já o dos homens do mar atuaram
Tiempo, disciplina de trabajo y recrutamento, a negociação do sempre que necessário, mas o fato
capitalismo industrial, Thompson salário e as relações hierárquicas a é que essa conjunção não era
argumentou que a experiência de bordo dos navios talvez possam ser infalível22.
trabalho dos camponeses e definidos como um misto de A força da natureza também podia
artesãos do século XVIII ocupava "economia moral" e economia se manifestar de forma mais sutil
uma "parte" de sua vida e lhes política. Da economia moral, os do que nas tempestades em alto-
permitia assim um grau maior de marinheiros teriam herdado ou mar. Para os embarcadiços, as
autonomia17. No sistema fabril ou mantido a rede informal de calmarias - comuns especialmente
no navio, "toda" a vida era comunicação, pela qual obtinham na linha do Equador -
subordinada ao trabalho. Nesse informações sobre a qualidade do representavam um perigo muitas
sentido, a experiência dos tratamento e da ração de bordo e vezes letal e eram objeto de terror,
marinheiros precedeu a dos também sobre o salário. Dela tanto quanto os temporais. O
proletários no que se refere ao viriam ainda as formas de prussiano Leithold, que passou por
trabalho disciplinado e ao contestação às arbitrariedades a calmarias ao longo da viagem que
isolamento, fazendo com que as que os oficiais os submetiam, o trouxe ao Rio de Janeiro, afirmou
proximidades entre a fábrica e o resultando muitas vezes em motins que durante o fenômeno "reinava
navio fosse além de casos pontuais, e deserções. Seria uma economia um silêncio surdo no navio, que
como o lidar dos marinheiros com a moral peculiar, na qual as mais parecia um claustro de
maquinaria e o haver pagamento obrigações paternalistas que trapistas; ninguém falava, mesmo
de salários em dinheiro. pudessem ser transportadas da os marinheiros olhavam fixo para
O isolamento e o desligamento das terra firme teriam pouca aplicação, diante, por não haver esperança de
relações sociais anteriores, uma vez que o navio zarpasse. Por passar a linha [do Equador]"23.
característicos da vida no mar, outro lado, a vida de bordo devia à Um registro mais direto das
provocavam situações extremadas economia política e às relações de inquietações de um tripulante preso
de abandono, principalmente em mercado capitalistas a erosão do a uma calmaria aparece no diário
casos de doenças advindas da paternalismo, por meio da náutico do bergantim negreiro
profissão ou no final da vida útil do mobilidade dos marinheiros e Brilhante, que zarpou do Rio de
trabalhador. De acordo com oficiais e da despersonalização Janeiro para Ambriz em 12 de
Vilhena, na segunda metade do advinda do salário monetário21. janeiro de 1838. Podemos ler nas
século XVIII a maior parte dos Esta última modalidade de anotações de 31 de janeiro,
mendigos brancos que vagavam pagamento, todavia, não era a provavelmente escritas pelo jovem
pelas ruas de Salvador era de ex- única aplicada a toda a tripulação: capitão Antonio Jorge da Costa, de
marujos convalescentes que, na a "soldada a julgar" dos 23 anos, o pedido para que "o
falta de arrimo, acabavam marinheiros (entre os quais muitos grande Criador do Universo nos dê
tornando-se pedintes - um ofício escravos), presente em muitos bom vento e feliz viagem" e, quatro
"menos laborioso e igualmente negreiros brasileiros, mantinha a dias mais tarde, a promessa de
rendoso ao de marinheiro". Não era possibilidade de o pagamento se mandar rezar
incomum que eles morressem pelas fazer dentro de critérios (...) uma missa de almas na
tavernas, vitimados pelo excesso paternalistas e subjetivos de primeira segunda-feira depois de
de álcool. No mesmo período, a avaliação por parte dos oficiais. chegar a Luanda se até amanhã
Santa Casa de Misericórdia carioca A insubordinação contumaz dos segunda-feira tivermos bom vento
recebia marinheiros necessitados marinheiros estava ligada a um dos e mais fresco, pois já são onze dias
de "curativos", que pagavam do dois confrontos que forjaram a de calma. O Grande Deus nos dê
próprio bolso as despesas do cultura marítima: a luta contra a feliz viagem e bom vento, e S.
hospital18. exploração pelos oficiais, alinhada Francisco de Paula. Ainda não
Ao investigar a importância do ao outro confronto básico, que faltou um só momento que me não
tráfico de escravos para a história envolvia o homem e a natureza. lembrasse a minha família e a
do movimento operário, Linebaugh Viver embarcado significava travar minha Leopoldina, a quem adoro.
identificou outros pontos em uma luta diuturna contra a A calmaria estendeu-se por quase
comum entre a fábrica e o navio: natureza, um lidar cotidiano que todo o mês de fevereiro,
"O grande investimento de capital, teve efeito inegável na cultura provocando no rapaz lembranças
a divisão do trabalho, o marítima. Sobreviver, nestes casos, ternas de dias menos arriscados:
disciplinamento e repetições, a era um verbo que se conjugava "A todo o momento tenho
vigilância estreita, o trabalho em coletivamente: a vida muitas vezes lembranças (...) Ah! não digo de
grupos e o afastamento do lar"19. dependia do trabalho, da habilidade quem (...)" (08 de fevereiro de
Entendido dessa forma, o navio e do espírito comunitário da 1838). "Não há hora nem instante
assume um importante papel no tripulação. que me não lembre a minha amada
capitalismo, como um modo de Nas longas travessias oceânicas, a Leopoldina, assim como a minha
produção - definido como "quadro ação contínua da água e do ar família" (24 de fevereiro). O torna-
de interação humana"20. Nele, deterioravam principalmente o viagem do Brilhante, em abril de
homens de diversas culturas casco, as peças de madeira e o 1838, também foi marcado pelos
travaram relações. material de calafetagem. A luta caprichos da natureza oceânica. Em
contra esse desgaste exigia 04 de maio, Costa anotou no
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diário: "Muita chuva, tempo muito se ali. O viajante francês D'Orbigny entre outras coisas, em aprender e
mau com vento muito forte, e o confessou a dificuldade em ensinar o jargão específico do mar:
mar queria comer o navio". A fúria descrever cada um dos elementos em parte, era por meio dessa
abrandou no dia seguinte, quando que viu naquele porto, na linguagem peculiar que os
"ao amanhecer abonançou o tempo primavera de 1826: marinheiros eram identificados por
(...)". O fim da viagem não foi Seria difícil dar uma idéia do outros grupos sociais. Todavia, a
menos desditoso, embora nada intenso comércio do Rio de Janeiro. vida no mar não se traduzia apenas
tivesse a ver com as condições do O porto, a bolsa, os mercados das em isolamento da vida terrestre e
tempo: o bergantim foi apreendido ruas paralelas ao mar ficam desligamento em relação à cultura
pelo brigue de guerra britânico abarrotados de uma multidão de de origem. O contraponto disto
Wizard em 13 de maio, próximo da negociantes, marinheiros e negros. está na própria navegação, que, se
costa fluminense24. Os vários idiomas aí falados, a de um lado isolava e desligava, de
Recorrer à força divina para salvar variedade de vestuários, os cantos outro fazia com que os homens do
o navio de uma situação de perigo dos negros que carregam fardos, o mar expressassem por intermédio
era uma dentre tantas atitudes rangido dos carros de bois que do linguajar sua alienação em
tomadas pelos tripulantes. Essa transportam as mercadorias, as relação ao mundo terrestre e,
força não era necessariamente o freqüentes salvas dos fortes e dos simultaneamente, criassem novos
deus cristão, a quem Antonio Jorge navios que entram, o toque dos laços que os unissem aos demais
da Costa recorreu com o voto de sinos que convocam à reza, os marinheiros.
missas - e do qual não sabemos se gritos da multidão, tudo isso Ao que tudo indica, essa linguagem
ele se desobrigou em Luanda. A contribui para dar à cidade uma era utilizada exclusivamente na
relação com a natureza, conectada fisionomia confusa, ruidosa e convivência entre os tripulantes,
a outros aspectos da vida marítima, original26. embarcados ou em terra. Como
implicou em atitudes religiosas (ou Assim como na capital brasileira, a toda linguagem, ela também
irreligiosas) as mais diversas. multiplicidade de origens étnicas e expressava uma série de relações
O segundo confronto que também nacionais, além de todo tipo de sociais que poderiam excluir os
exerceu influência decisiva sobre o diversidade na navegação, parecem não-iniciados. O prussiano Leithold,
desenvolvimento da cultura ter sido a tônica em todos os na viagem de volta à sua terra
marítima foi a luta de classes a portos ocidentais onde vigorava o natal, deixou um registro de como
bordo, envolvendo o poder, a trabalho escravo. Em muitos casos esse mecanismo agia, modificado
autoridade, a hierarquia, o trabalho - e talvez mesmo no Rio de Janeiro pelo (ou modificando o)
e a disciplina. Se perfilarmos as -, os trabalhadores marítimos comportamento dos homens do
atitudes de marinheiros e oficiais e formaram uma comunidade como a mar. Klaus Hoop, capitão do navio
a luta que se travava entre eles, existente no Caribe desde pelo que o conduziu do Rio de Janeiro à
talvez seja mais adequado falar em menos o final do século XVIII. Em Prússia, mudou de conduta quando
culturas marítimas, no plural. diversas ilhas, a presença dos alcançou alto-mar e passou a tratar
Afinal, as posições antagônicas marinheiros foi expressiva: cerca os passageiros como seus
geraram interesses, valores e de 21 mil marujos britânicos subordinados:
práticas distintos. Como continuarei passavam todos os anos pelas Começou a falar com seus dois
tratando da cultura marítima no Índias Ocidentais, sendo que imediatos num dialeto o mais
singular, antes de prosseguir é apenas o comércio da Jamaica em incompreensível e desagradável
preciso fazer uma ressalva sobre 1.788 empregava 500 navios e possível, o que não tínhamos
essa diferenciação: se de um lado mais de 9.000 homens. Uma ouvido antes da partida. Mesmo ao
havia uma "cultura corporativa", quantidade duas vezes maior de tratar do preço da passagem,
produto da luta com os elementos marinheiros franceses arribou em nunca lhe percebi faltar à correção
naturais, de outro havia São Domingos no ano da Revolução que se deve a estranhos e mesmo
divergências insuperáveis entre Francesa, em 710 navios. São a íntimos. De repente,
oficiais e marinheiros que números significativos, que transformou-se ele em pessoa
emergiam das relações de apontam não apenas para o fato de totalmente outra. Ficou de uma
produção básicas na navegação25. que havia muitos homens de ridícula insolência.
Veremos como isso se passagem; de toda essa população Contudo, o tradutor brasileiro de
materializava, por exemplo, nos circulante e instável, um número Leithold editou o texto de forma
processos decisórios internos dos não quantificável acabou se fixando muito particular, anotando na obra
navios, nos quais, apesar de nas Antilhas e outros se traduzida: "seguem-se seis páginas
normalmente prevalecer a estabeleceram ali por períodos irrelevantes sobre as relações
autoridade do capitão ou de outros consideráveis, vitimados por desse Hudibrás - como o capitão foi
oficiais, havia momentos em que as problemas de saúde, em busca de apelidado - com os passageiros e
decisões eram tomadas pelo engajamento em outra que nenhum interesse oferecem ao
coletivo da tripulação, embarcação, por falta de emprego, leitor brasileiro"28. Outro viajante
especialmente quando havia o deserção ou outros motivos deixou-nos um relato de um caso
perigo de soçobrar. quaisquer27. de indisciplina e a punição
III - ESTRANHA, CONCISA E A linguagem tinha um significado exemplar sofrida por um
SOFISTICADA: A LINGUAGEM especial no mundo à parte que era marinheiro. Hill, um dos tripulantes
DOS HOMENS DO MAR a navegação de longo curso. Os mais velhos do navio, falava em
Viajar na vida marítima, constituía homens do mar, ao longo de suas voz alta na proa, talvez sob efeito
parte do trabalho. Os relatos viagens ou em terra, acabavam da bebida, quando foi repreendido
demonstram que em muitos portos tendo a oportunidade de conhecer pelo capitão, que o chamou à popa
havia uma diversidade de gentes e diversas línguas em grau suficiente e o passou-lhe a carraspana:
línguas estrangeiras. No Rio de para se comunicarem com homens - Vê se te calas agora, filho de tal
Janeiro não era diferente: línguas, de origens diferentes. Porém, por qual.
nacionalidades e cores misturavam- tornar-se um marinheiro consistia, - Não sou filho de tal por qual,
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senhor. haviam saído, "afugentados pela dimensões e peças dos navios,


- Ponha-lhe as algemas, Mr. Libby - celeuma dos marinheiros no mastreação, âncoras e amarras,
disse ao primeiro oficial, que trabalho, a que se unia, num todo nomenclatura da mastreação e
procedeu de acordo. caótico, o ensurdecedor rugir da construção das âncoras, termos de
É quase certo que o adjetivo usado tempestade e das vagas, o estalar construção, feitura dos mastros e
pelo capitão ao se referir ao velho do navio, o sibilar do vento no métodos para cortar as velas e
marinheiro tenha sido um pouco mastro e na cordoalha e o grito de cálculos astronômicos35.
mais pesado do que o anotado por comando dos oficiais (...)"32. Penetrar em tal especificidade era,
Samuel Arnold, o viajante em A clareza e a objetividade do jargão efetivamente, aprender outra
questão. De todo modo, além da não devem levar a uma conclusão língua. As palavras do aprendiz
prisão até a manhã seguinte, o apressada de que se tratava de inglês Jack Cremer, no século
castigo incluiu o corte do gug pelo uma linguagem pouco complexa; XVIII, demonstram claramente
resto da viagem29. O tratamento evidentemente, a terminologia esse processo: "eu não poderia
rude dispensado pelos oficiais à marítima foi alterada ao longo do dizer em que mundo estava, se
equipagem era ainda pior quando tempo e em função das entre espíritos ou demônios. Tudo
se dirigia aos marinheiros no grau transformações tecnológicas. O parecia estranho: linguagem
mais baixo da hierarquia. A navio de alto-mar era uma das diferente e expressões estranhas, e
violência parecia fazer parte da mais sofisticadas peças às vezes pensava comigo mesmo
linguagem da disciplina, a julgar tecnológicas dos tempos modernos ser um sonho, como se eu nunca
pelo relato de Manet sobre e permaneceu em constante estivesse plenamente acordado".
situações vividas a bordo: os transformação. As expressões Seus primeiros passos, como os de
quatro grumetes e os dois utilizadas para se referir às suas todo aprendiz, foram aprender as
aprendizes do navio eram tratados partes ou ao processo de trabalho tarefas do trabalho, os nomes das
a socos e pontapés pelo comissário, que nele se desenrolava não eram partes da embarcação, a hierarquia
"um negro brutal, [que] dava-lhes menos sofisticadas. de bordo, o reconhecimento dos
surras tremendas, por qualquer A transformação e o caráter vários tipos de navios e as
desobediência, segundo era uso na sintético do linguajar marítimo designações específicas dos
marinha (...). Esses métodos foram apontados por dicionaristas elementos da natureza36.
tornavam os garotos incrivelmente portugueses do século XX. Na Esta linguagem concisa, acurada e
disciplinados"30. introdução ao Dicionário da técnica era também a expressão
O jargão marítimo era utilizado no linguagem de marinha antiga e das relações sociais no interior da
trato pessoal e na imposição da atual, os autores dizem ter tripulação. Ao aprender a
disciplina, mas também e encontrado muitos termos linguagem marítima, o jovem
principalmente no aprendizado desconhecidos ao lidar com a grumete não estava apenas
profissional. Muitas vezes, as edição de um diário marítimo do enriquecendo seu vocabulário: ele
situações vividas no mar requeriam início do século XVII "que os estava também conhecendo sua
ação imediata - como em meio a dicionários não registravam, e posição na hierarquia, ao mesmo
tempestades, no salvamento de frases descuidadamente redigidas e tempo em que ingressava nas
homens que caíam do navio ou na cujo sentido se escondia em breves relações da comunidade marítima.
repressão a revoltas de escravos, palavras, como é próprio do falar Se a linguagem expressava o poder
por exemplo. Situações como de bordo"33. dos oficiais, era ao mesmo tempo a
essas, em que qualquer falha No século XIX, outros dicionaristas expressão da integração dos
poderia significar a perda de vidas deixaram patente a especificidade tripulantes e da resistência a esse
ou da própria embarcação, ajudam do jargão marítimo, afirmando que mesmo poder. Mestres e
a explicar a ausência de qualquer curioso na "arte marítima" contramestres normalmente eram
ambigüidade na linguagem técnica teria dificuldades de compreensão as figuras dominantes nessa
dos marinheiros: nela, cada objeto se não andasse embarcado e, comunidade, os maiores
e ação tinha uma palavra ou frase mesmo no caso de ser um conhecedores da linguagem e das
curta, clara e inconfundível para passageiro constante, se não se técnicas do trabalho, sendo o
designá-los. Em que pese a já interessasse por outra coisa que "modo de falar comunitário" a base
ressaltada divisão social a bordo não fosse seu negócio34. Esta pode da consciência e do sentimento de
entre oficiais e marinheiros ser uma pista para explicar o fato coletividade entre os que viviam no
comuns, a linguagem era um de que Leithold tenha qualificado a mar37.
elemento cultural necessariamente fala do capitão Hoop como "o Tudo o que foi dito até aqui sobre a
compartilhado por todos, pois era dialeto o mais incompreensível e linguagem marítima não exclui da
um instrumento que colocava em desagradável possível". experiência dos homens do mar o
campo a autoridade e afinava a Provavelmente, o viajante estava contato inter-cultural. No comércio
sintonia entre o capitão e seus interessado apenas no seu regresso de escravos na costa da África, a
subordinados31. A eficiência do à Europa, pouco se dispondo a linguagem também adquiriu
trabalho e do comando em meio a compreender o que ouvia e que lhe características próprias - as
um temporal foi testemunhada pelo soava tão estranho. chamadas línguas pidgins, criadas
mineralogista e botânico alemão A especificidade do linguajar em um processo de reelaboração
que acompanhou a imperatriz também se devia à complexidade da gramática, do léxico e da
Leopoldina ao Brasil. O viajante tecnológica. Ao publicar seu entonação. Essas línguas eram
narrou as agruras vividas pelo dicionário de marinharia em utilizadas na comunicação entre os
grupo de cientistas, dentre os quais meados do século XIX, Antonio envolvidos no negócio de compra e
apenas alguns tiveram coragem de Gregório de Freitas nos deu pistas venda de escravos, e entre elas
sair de suas cabines para observar sobre o tipo de conhecimento que estavam o inglês pidgin do século
a "luta dos elementos que bramiam os tripulantes deveriam possuir XVIII, bem como o português
em torno de nós". Estes logo para desempenhar seu trabalho. A crioulo - que também se tornou
retornaram para o lugar de onde obra inclui noções sobre as pidgin e era utilizado como "língua
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de comércio e como segunda língua Angola e Moçambique, bordo certamente possibilitou


da educação congolesa", respectivamente, para o Rio de contatos culturais com os demais
envolvendo não só o Congo e as Janeiro) se tudo transcorresse tripulantes de diversas
colônias portuguesas, mas toda a normalmente, sem calmarias ou nacionalidades européias e
costa oeste da África Central. Os outros imprevistos que atrasassem americanas que também
brasileiros que retornaram para a viagem. Apesar de uns virem no compunham a grupo de
Lagos em meados do século XIX convés e outros no porão, ambos marinheiros e o corpo de oficiais.
também procuraram disseminar o compartilhavam espaços do navio Por fim, há o fato de que o
ensino formal do idioma português, em circunstâncias diversas, mas de conhecimento mútuo entre esses
tanto para preservar sua identidade todo modo freqüentes: de um lado, dois grupos não se restringia ao
frente à introdução do inglês, como os africanos deixavam o porão em tempo de espera na costa da
também porque ele era a língua do grupos para esticar as pernas, África, às viagens ou à presença de
comércio na costa38. tomar sol ou prestar serviços no marujos africanos a bordo. Em
Se as línguas pidgins eram próprias convés; por sua vez, havia todos os portos onde a escravidão
às transações do tráfico na costa tripulantes responsáveis pelo africana existia, talvez fosse
africana, elas provavelmente tratamento dos africanos impossível controlar outras
também estavam presentes no confinados, alimentando-os e atividades que envolvessem
trato entre tripulantes e africanos a servindo-lhes água durante a escravos e marinheiros. Podemos
bordo dos navios, embora não travessia, mesmo que esses mais uma vez recorrer ao relato de
tenhamos evidências diretas disso. cuidados fossem restritos ao abrir e D'Orbigny sobre o Rio de Janeiro,
Contra essa hipótese pode-se fechar das escotilhas. Havia ainda citado acima, e acrescentar que
argumentar que o tempo da as inevitáveis revoltas a bordo, um havia nesse porto lugares por
viagem transatlântica era tipo de experiência-limite da qual excelência para contatos dessa
insuficiente para que se pudesse certamente todos os envolvidos natureza: a bica dos Marinheiros,
travar uma comunicação tiravam lições a respeito de seus construída na época do vice-rei
aprofundada entre tripulantes e oponentes. Gomes Freire de Andrade na antiga
escravos. Em terceiro lugar, não podemos praia de Braz de Pina e demolida
No entanto, apesar da falta de esquecer a já mencionada por Luís de Vasconcelos e Sousa,
indícios concretos, não estou existência de africanos de diversas local "onde vinha a maruja dos
convencido de que não havia um etnias nas equipagens. Pelos navios surtos no porto (...) fazer
meio de comunicação lingüística cálculos de Herbert Klein, entre provisão d'água", ou o chafariz do
estabelecido entre tripulantes e 1795 e 1811 os escravos Largo do Paço, onde "vão se
africanos; por isso, pretendo totalizavam 2.058 dos 12.250 abastecer os navios ancorados na
reforçar aqui a hipótese de que marinheiros nos navios do tráfico baía, ao mesmo tempo que
havia tal possibilidade. Sem ordem brasileiro (em média 14 inúmeros mulatos e negros ali se
de prioridade, podem ser marinheiros escravos por navio). acotovelam para embarcar e
apresentadas quatro situações nas Eles também estavam presentes na desembarcar mercadorias", como
quais teriam se estabelecido navegação de cabotagem do final notou o mesmo viajante francês.
contatos e amarradas do século XVIII, na qual Na mesma linha, o historiador
possibilidades de um entendimento trabalhavam cerca de dez mil Julius Scott encontrou indícios de
mútuo. marinheiros escravos39. Como contatos comerciais e culturais
Em primeiro lugar, havia o lidar afirmei anteriormente, a presença entre eles no Caribe oitocentista:
com o negócio de compra e venda de tripulantes africanos nos navios as tripulações sedentas de frutas e
do lote de escravos. Muitas vezes, negreiros poderia se dar pela legumes frescos depois de uma
a negociação entre os oficiais e os necessidade de um elo de longa estadia no mar eram o
fornecedores (africanos ou luso- comunicação entre os demais mercado natural para as roças
brasileiros, no caso de Angola) era tripulantes e as "cargas", para escravas de subsistência e, ao que
demorada, o que para a tripulação saber o que murmuravam os tudo indica, as relações entre
representava uma espera por escravos encarcerados no porão e ambos eram bastante cordiais. O
tempo variado, muitas vezes de prevenir revoltas. Esta hipótese contato entre marinheiros e negros
meses. Nesse meio tempo, a conta com o aporte testemunhal de no Caribe não poderia deixar de ter
equipagem não ficava um capitão negreiro inglês atuante conseqüências culturais: de acordo
necessariamente confinada a na África Ocidental, que certa feita com o autor, muitas canções de
bordo; tendo ou não aversão ao se lamentou por ter realizado uma trabalho no mar, disseminadas
tráfico e mesmo temendo os viagem "sem intérpretes para mundo afora pelos marinheiros
perigos representados pelas ajudar no necessário intercurso britânicos do século XIX,
doenças no litoral africano, é certo com nossos escravos. Não havia assemelham-se
que havia muitas oportunidades nenhum a bordo que conhecesse extraordinariamente às canções
para esses homens irem à terra até uma palavra do dialeto deles". A escravas do Caribe41.
que o negócio fosse fechado. ausência de um tripulante que Também os marinheiros
Nessas idas, era improvável que cumprisse esse papel e o uso portugueses e brasileiros tinham
não tivessem nenhuma experiência indiscriminado do chicote como por hábito trabalhar ao som de
com os habitantes naturais da "emblema da disciplina" a bordo canções próprias. Infelizmente, não
região. acabaram ensinando "a mais triste pude conhecer o conteúdo dessas
A segunda experiência pode ser das lições" ao capitão: logo depois canções; sei que elas existiam
classificada como a mais radical: da partida, ele teve de enfrentar à apenas por meio dos verbetes de
tripulantes e africanos faziam bala uma revolta de escravos40. dicionários de marinharia. Essas
juntos a travessia dos oceanos por Cumprindo ou não um papel na canções eram denominadas
um tempo que, no século XIX, prevenção das revoltas de "salomas" e, modernamente,
podia variar de sessenta a noventa escravos, o fato é que a simples "celeumas", definidas como
dias (considerando viagens de presença de marujos africanos a "cantiga, ou gritaria, que fazem os
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marinheiros, quando alam algum por clientes que desejavam saber significa que a religião formal
cabo", ou se deveriam fazer o seguro de um estivesse totalmente ausente entre
(...) cantoria com que a gente do determinado navio, assim como eles. Parece ter sido regra mais ou
mar acompanhava as fainas que havia um "guia de saber astrológico menos geral a obrigação legal de
exigissem grandes esforços. para marinheiros" escrito por um levar capelães a bordo. No início do
Costumava ser primeiramente tal John Gadbury no século XVII. A século XVIII, a lei obrigava a
entoadas só por um homem e bruxaria, sempre de acordo com marinha de guerra inglesa a
depois em coro pelos restantes. Thomas, era outro recurso para embarcar capelães e, nos navios
Cerimonial, com vozeria explicar sucessos ou fracassos em mercantes, o serviço religioso era
acompanhada por toques de ocupações profissionais, já que a feito por insistência do capitão e
trombetas, pífaros, tambores etc vida comercial na Inglaterra dos conduzido por ele ou por um
(...). Barulho. séculos XVI e XVII "era fortemente membro da tripulação.
Pelos dicionários, temos ainda a competitiva e o desejo de progredir Ocasionalmente, alguns navios
preciosa informação de que era cada vez mais aceito". A vida tinham serviço religioso45. No
"salomear" ou "celeumar" era no mar, repleta de problemas âmbito da lei, Portugal talvez tenha
proibido a bordo dos navios da muitas vezes incontornáveis, fazia sido o pioneiro na exigência de
armada portuguesa pelo menos dos marinheiros "pessoas levar um sacerdote a bordo dos
desde o final do século XVIII. notoriamente supersticiosas e navios - no caso, navios negreiros:
Quanto aos navios mercantes, no geravam um grande número de já em 1684, a Coroa lusa dava
entanto, não há referência à precauções rituais destinadas a ordens nesse sentido e estabelecia
proibição42, não havendo também garantir um clima favorável e a como punição pela falta o
nenhum motivo para supor que segurança do navio"43. Todavia, em pagamento de uma multa
estes marujos deixassem de razão da quantidade de exemplos e eqüivalente a duas vezes o valor
salomear, apesar da ausência de da magnitude da pesquisa de dos negros carregados, além de
registros. Thomas, toda a sociedade do seis anos de degredo na Índia para
Todas essas situações revelam século XVII - e não os marinheiros os culpados. De acordo com Luiz
grandes probabilidades de contato exclusivamente - eram Vianna Filho, o alvará real jamais
entre os homens do mar e os supersticiosos e crentes na magia. deixou de ser apenas letra morta,
africanos, exemplificadas no Católicas ou meramente já que os traficantes davam
linguajar marítimo mas não supersticiosas, mágicas ou propinas aos responsáveis pela
restritas a ele. Considerar essas simplesmente pagãs, o fato é que fiscalização. A determinação,
probabilidades é uma das poucas as práticas religiosas, da crença, da reiterada em 181346, não parece ter
formas que o historiador dispõe fé ou do misticismo (ou outro nome vingado, a julgar pela quantidade
para superar a ausência de que se queira dar) tinham de se ínfima de relatos acerca de
registros diretos desse contato. A compatibilizar com as necessidades presença de sacerdotes a bordo de
seguir, apresento algumas do trabalho e da sobrevivência. No navios negreiros.
reflexões sobre outros aspectos navio, os rituais não poderiam Também durante a longa espera
desse universo cultural específico. preceder o trabalho, especialmente das tripulações no litoral africano, a
IV - SUPERSTIÇÃO, FÉ E em situações de perigo iminente - possibilidade de uma assistência
RITUALISMO: A justamente aquelas onde se sentia católica formal era diminuta, se
RELIGIOSIDADE DOS HOMENS necessidade de maior ajuda vinda julgarmos pelas condições das
DO MAR do sobrenatural. Estas igrejas na Luanda colonial: na
A vida no mar também criou necessidades eram reforçadas segunda metade do século XVIII,
especificidades no que se refere à ainda pelo isolamento do navio e não havia naquela cidade
maneira dos homens expressarem pela distância física em relação à sacerdotes em número suficiente
sua religiosidade. Exemplos dessa igreja institucionalizada, bem como sequer para acompanhar o bispo
expressão foram coletados por pela "tradição plebéia de ceticismo nas procissões, apesar da grande
Keith Thomas: de acordo com ele, e anticlericalismo, fazendo dos quantidade de templos ali
em situações de perigo como marinheiros um grupo existentes47. Talvez a determinação
tempestades com risco de notoriamente irreligioso no início do da Coroa portuguesa obrigando as
naufrágio, um marinheiro poderia período moderno"44. expedições negreiras a levarem
pressionar Deus para atender às A verdade é que pouco se sabe capelães como tripulantes se
suas súplicas, prometendo "velas sobre o que esses homens prendesse a uma questão de
para um altar ou se declarar pensavam a respeito de temas consciência e ao desejo de
disposto a empreender uma teológicos clássicos do cristianismo: cristianizar os cativos africanos.
peregrinação difícil, caso escapasse o que seria do corpo e da alma Com isso, para baratear os custos
ao risco do momento". Para o após a morte, qual era o caminho da viagem e devido à dificuldade
autor, mais do que um da salvação ou a natureza do céu e em encontrar padres que
procedimento católico corriqueiro, do inferno. No entanto, pode-se desejassem viver embarcados,
este era um tipo de fé mágica, uma afirmar que o leque da filiação quase sempre a travessia se fazia
armadilha criada pela Igreja religiosa era amplo, indo do sem a presença de sacerdotes
medieval na qual ela mesma se viu catolicismo e do protestantismo à católicos. Por certo, a exigência de
enredada. imensa gama de crenças religiosas um capelão a bordo não provinha
Se esta evidência apresentada por de tripulantes africanos, asiáticos e de uma demanda dos tripulantes e
Thomas me parece questionável, o nativos americanos, todas elas a ausência deles não parece ter
autor apresentou outras, coexistindo a bordo. Assim, para criado incômodo aos marinheiros
procurando demonstrar que a autores como Rediker, a religião envolvidos com o tráfico de
crença dos homens do mar era era uma questão secundária para a escravos para o Brasil.
permeada por superstição e magia. identidade dos homens do mar, Isto não significa necessariamente
A astrologia, por exemplo, era um que pareciam subordinar a fé à que esses homens não fossem
instrumento freqüentemente usado atividade prática. Mas isto não católicos. Certamente não
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compartilhavam da ortodoxia dois barcos, um francês e outro "Meu Deus, vos peço que permitas
religiosa de grupos que viviam em inglês. No céu, aparecia a figura de que a viagem se acabe para eu me
terra firme, mas mesmo entre Cristo que, com sua mão poderosa, vingar daquele patife para lhe tirar
estes havia inúmeros problemas de protegia o navio brasileiro, de presunção que ele tem. Inimigo
fé. Muitos fatores podem ter permitindo-lhe escapar do perigo e será (sic) dele sempre". Da mesma
diminuído o vigor das idéias entrar calmamente na enseada". forma, também era comum
religiosas na consciência dos Entre os traficantes baianos, a simplesmente invocar a proteção
homens do mar. Além dos já proteção também era solicitada divina, pedindo, por exemplo, que
mencionados isolamento e com especial predileção pela figura "Nossa Senhora da Conceição nos
distância social e geográfica das de Nosso Senhor do Bonfim. Era dê feliz viagem"50.
igrejas, não se deve esquecer que assim que o traficante Salvador de Embora distantes no tempo, os
o tempo do trabalho no interior da Brito Ribeiro, estabelecido em processos instaurados durante as
navegação de longa distância era Onim, escrevia para sua irmã na Visitações coloniais do Santo Ofício
bastante diverso da vida na terra Bahia, dizendo-lhe que teve evidenciaram pecualiaridades nas
firme. Doutrinas e liturgias notícias da celebração ao Senhor formas de expressão religiosa dos
ortodoxas não se conjugavam com do Bonfim, em 21 de janeiro; marinheiros. Inversamente, há
o trabalho no mar, no qual não Ribeiro desejava ter participado da poucos sinais de que a
havia domingo ou dia santo, sendo festa, mas a demora em resolver cristianização entre esses homens
o ritmo do trabalho e do repouso os negócios africanos o teria tenha se tornado mais eficaz até o
condicionados pelas variações da impedido. Na impossibilidade de século XVIII. Nas Confissões e
natureza, pelas necessidades mais comparecer, pedia à irmã que "me Denunciações de Pernambuco
prementes das tarefas coletivas e leve o nome à sua festa e [assim] (1593-95), por exemplo, há
por imprevistos de toda sorte. me ajude na minha jornada"48. inúmeros casos de marinheiros
De qualquer forma, quando temos Se os donos do negócio que, quando aportavam, não
registros de manifestação da fé nos expressavam sua devoção dentro deixavam na embarcação crenças
santos católicos, eles não parecem de parâmetros aceitos ou costumes pouco ortodoxos. Um
ser de tipo mágico ou supersticioso, institucionalmente pelo catolicismo marujo doente da nau São Pedro,
como quer Thomas. Também não - irmandades, festas religiosas, hospedado por um casal
eram representações de uma promessas e ex-votos - os pernambucano, pronunciou
crença abnegada, mas sim uma fé marinheiros comuns blasfêmias terríveis contra Cristo e
que parecia ter implicações compartilhavam um exercício São Pedro, ouvidas por um vizinho
políticas ou de ordem prática mais menos ortodoxo da religião. indiscreto que não hesitou em
evidentes. Na Bahia de fins do Sabiam, por exemplo, do papel de denunciá-lo à Inquisição.
século XVIII, São José era intermediário desempenhado por Juntamente com os santos, aos
especialmente venerado pelos Santo Antônio nas questões do padres por vezes eram dirigidas as
traficantes - por duas razões, de amor, e foi por meio desse blasfêmias dos marujos: dois deles
acordo com Pierre Verger: a conhecimento que o viajante denunciaram seu companheiro
primeira devia-se à homonimia francês La Flotte pode presentear Lianor Fernandes em 1594, que
entre o santo e o soberano reinante uma cortesã que conhecera no Rio teria chamado o padre e sua
em Portugal, em cuja de Janeiro em 1757. A "dama de paróquia de "bêbado, filho de
administração planejou-se a criação alto coturno" desejava ter uma cornudo e de puta", acrescentando
de uma companhia de comércio imagem do santo, com o detalhe de ainda que "mais vale se confessar o
com a Costa da Mina. A segunda que deveria ser européia mas não homem ou mulher de seus pecados
razão ligava-se à existência de uma portuguesa. Percorrendo sem ao faxono que a vós"51.
imagem desse santo na capela de sucesso as várias lojas de artigos No cômputo das denúncias contra
Santo Antônio da Barra, em torno religiosos da cidade, La Flotte só pescadores e tripulantes existentes
da qual se erigira uma irmandade conseguiu arranjar tal imagem nas Confissões (atingindo 35
congregando os comerciantes da junto a um marinheiro genovês de pessoas), Luiz Geraldo Silva
Costa da Mina. Há uma pequena passagem pelo Rio49. Para os assinalou que a heresia era a falta
história edificante sobre essa marinheiros engajados no tráfico mais comum em meio aos
imagem: ela teria sido resgatada de africanos, a crença no Deus processos instaurados, denotando o
do castelo de São Jorge em 1637, católico não parecia incompatível caráter de cristãos-velhos dos
quando os holandeses foram com a atividade que homens do mar no mundo
expulsos daquela feitoria desempenhavam - afinal, não era ultramarino português do século
portuguesa, sendo trazida para incompatível mesmo para a Igreja XVI. A principal base para essa
Salvador em 1752 "com zelo e católica. Portanto, não havia conclusão é um caso ocorrido em
devoção" pelo capitão de um navio incongruência no fato de que eles 1588: Manuel Luís vinha como
negreiro. Desde então, os pudessem jurar pelos "Santos piloto em uma caravela com
traficantes passaram a invocar a Evangelhos" ao prestarem destino a Pernambuco, quando
proteção do santo para os seus informações precisas sobre suas parte da tripulação considerou que
negócios, realizando anualmente cargas, como fizeram os tripulantes ele "não governava bem e que não
festividades para agradecer o da barca Eliza. Por vezes, na merecia soldada de marinheiro
"patrocínio" que recebiam. Além religiosidade popular dos senão de grumete". Indignado com
dos santos, os traficantes marinheiros, era legítimo até a ofensa, respondeu que "se tal
chegaram mesmo a invocar a mesmo pedir a intercessão de Deus houver de ser, dizei que Deus não
proteção do próprio Cristo para para atingir um objetivo pouco é Deus". O homem que o
seus negócios: uma pintura votiva nobre como a vingança. O capitão denunciou por essas palavras
avistada na Bahia pelo Barão Forth do Brilhante pedia boa viagem à impulsivas achou que talvez mais
Rouen, em 1847, representava "um divindade e rogava: "Ó meu Deus, estranha do que elas fosse a reação
navio negreiro sob pavilhão lembrai-vos de quem navega". Dias da equipagem: "toda mais gente do
brasileiro, sendo perseguido por depois, anotou no diário náutico: serviço da nau que o ouviu não
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falou palavra"52. Este pelos homens do mar54. A deitando alguns baldes d'água
comportamento herético foi representação desse deus sobre a cabeça da pobre vítima e
claramente motivado por uma mitológico foi reinventada pelos abandonando-a depois". Em outras
ocorrência profissional. Ocorrências marinheiros da era dos versões, o batismo era feito por
como essa não eram incomuns nos descobrimentos, quando meio de um mergulho diretamente
navios: um tripulante que não começaram a realizar um no mar, domínio privilegiado de
estivesse cumprindo sua função a importante rito de passagem ao Netuno.
contento era imediatamente atravessarem a linha do Equador - Havia entre os passageiros aqueles
avaliado por seus companheiros, talvez como júbilo pelo fato de que que não desejavam participar do
até porque de seu desempenho os navios não derretiam sob o sol e ritual - possibilidade com a qual os
dependia muitas vezes a vida de nem o mar terminava em abismo, marinheiros não contavam, já que
todos. Em se tratando do piloto, a conforme pregavam os dogmas o rito estava ligado à construção da
vigilância certamente era ainda antigos e medievais. Talvez própria identidade. Para escapar
mais estrita; afinal, era ele quem também se deva dizer que a das troças, a solução era pagar
governava o navio - e, no caso em passagem pela linha era um dos uma multa, como o fizeram
questão, mal. O que os marinheiros poucos momentos de relaxamento Burmeister - que não quis ser
fizeram foi apontar sua deficiência em relação à faina intermitente do "batizado" nem permitiu que seu
como piloto nos moldes da trabalho no mar: ali, de acordo filho o fosse, pagando para isso um
linguagem marítima - rebaixando-o com inúmeros relatos de viajantes, valor em dinheiro - e Seidler e seus
a grumete, ou seja, aprendiz. as famosas calmarias eram mais companheiros, que "com algumas
Temos aqui um caso exemplar do freqüentes que em outros lugares. piastras espanholas compramos a
uso da linguagem marítima nas Embora provocassem transtorno à dispensa do grande batizado que
relações sociais a bordo: de um viagem e medo nos marinheiros era celebrado no convés". Os que
lado, marinheiros sutilmente quando se prolongavam aceitavam as regras por vezes se
insubordinados; de outro, um demasiadamente, a calmaria divertiam: o jovem Eduardo Manet,
oficial tentando impor a disciplina. provocava uma diminuição no ritmo que veio ao Brasil com dezessete
Luiz Silva julga ter sido herética a de trabalho que poderia ser anos em 1848, descreveu o ritual
reação do piloto, bem como o ocupada com uma rara de travessia do Equador, do qual
denunciante pensou o mesmo a possibilidade de festa a bordo. ele e seus companheiros
respeito de seus companheiros que Mesmo depois de desfeito o participaram, com alegria e
se mantiveram calados. Todavia, se mistério equatorial, o ritual foi disposição, e o próprio Seidler
a reação foi herética do prisma dos preservado na cultura marítima, acabou participando da "imensa
critérios canônicos, ela estava sendo uma das poucas galhofa" que era o ritual, mesmo
bastante de acordo com a cultura oportunidades que os marujos depois de haver pago a "gorjeta"
dos homens do mar: contra a tinham de relaxar temporariamente para ser dispensado dele56.
indisciplina, era empregada a a disciplina a bordo. Na passagem O cerimonial continha uma certa
linguagem dura da manutenção da do Equador, eram abolidas as dose de violência característica.
ordem. Frente a uma reação barreiras entre o capitão e o Burmeister afirmou que ele se
disciplinar, avaliadas as restante da tripulação, e muitos parecia muito com "as grosserias
circunstâncias, talvez fosse capitães eram tratados com com que os artesãos costumavam
estrategicamente mais interessante desprezo e escárnio. Era Netuno receber seus novos colegas de
manter-se calado. quem presidia o ritual pagão, ofício", ou com a recepção que os
No interior da religião constituída, representado por um tripulante que calouros recebiam ao ingressarem
não era fácil encontrar indicações subia do mar para o navio pela nas Universidades. Ao fazer esse
sobre o que fazer em situações de proa - vestido de branco, com tipo de comparação (como de resto
emergência causadas pelas forças longas fitas de madeira no lugar toda sua descrição), o viajante
da natureza: o capitão do dos cabelos, coroado e com um comportou-se como um legítimo
Brilhante, por exemplo, acreditava tridente na mão, secundado por representante da "alta cultura":
que iria encontrar brevemente um dois tritões, na descrição de sabia da existência da "cultura
pojo onde pudesse consertar o Burmeister, ou com um séquito de popular" mas não compartilhava
mastro e o velame destruídos em seis pequenos grumetes que dela e a classificava como pouco
um temporal, pois embora não representavam o demônio, na civilizada. Todavia, o que ele
pudesse avistar a terra, sabia que opinião de Le Vayer, verdadeiros também fez - talvez sem se dar
ela não estava muito longe "porque "anabatistas mascarados", na visão conta - foi apontar as semelhanças
passa (sic) muitas caravelas e do luterano Seidler55. Uma vez a entre ritos plebeus (artesãos e
desovação de peixe"53. bordo e depois de saudado pelo marinheiros) e de membros da
Acostumados à lida com ventos, comandante, Netuno indagava "alta cultura" (estudantes
tempestades e calmarias e a ler os sobre a rota e a finalidade da universitários), denotando uma
sinais da natureza para prever viagem, pedia informações a circularidade cultural que vinha
mudanças de rota, arribadas não respeito da tripulação e se dirigia pelo menos desde o início dos
previstas ou mudanças na posição aos novatos, "falando-lhes do seu tempos modernos57.
das velas, os homens do mar futuro como súditos do deus do A exaltação dos marinheiros no
acreditavam que era possível mar". Depois do discurso, vinha o ritual era acentuada pelo consumo
utilizar esse mesmo conhecimento batismo propriamente dito: todo de álcool. Ernest Ebel, que também
também para ler o futuro. aquele que atravessava pela passou pela inevitável travessia do
Netuno era a mais proeminente de primeira vez a linha era Equador ao vir da Europa para o
todas as figuras do panteão "emporcalhado com fuligem, Brasil, comentou que seu maior
marítimo, produto da combinação dissolvida em aguardente; em erro foi ter presenteado a
de referências cristãs e pré-cristãs, seguida, a cara é-lhe raspada com tripulação com algumas garrafas de
da mitologia clássica, dos relatos uma faca cega até que os conhaque: "(...) as conseqüências
bíblicos e das tradições inventadas espectadores se apiedem dele, foram sérias, já que a alegria
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festiva se transformou numa A maneira de tomar decisões de Quando o navio fazia quarenta
algazarra que só a custo pode ser ordem prática também demarcou polegadas de água a cada hora, o
apaziguada: que isto sirva de especificidades na cultura dos capitão achou por bem chamar os
advertência a futuros passageiros homens do mar. A negociação demais oficiais e a tripulação,
para que, a título de generosidade, salarial ou decisões relativas ao comunicando-lhes que grande parte
não incorram no mesmo erro". conjunto da tripulação são as duas dos mantimentos e da água
Para finalizar seu relato, Ebel brechas que encontrei para sondar perdera-se no temporal, além de
alertava seus leitores para que não esse universo. Neste artigo, quarenta e cinco escravos. Em vista
caíssem no mesmo engano de ser concentrarei a análise nos da situação, todos concordaram
generoso com marujos, pois a processos decisórios coletivos, que o navio arribasse no porto mais
gente do mar não tinha "noção da finalizando este ensaio de próximo - o de Moçambique60. O
medida" e "o gesto só acarretará interpretação da cultura marítima. mesmo teria ocorrido com o
inconvenientes". De modo similar O isolamento dos navios em alto- Brilhante, em viagem de Ambriz
pensava Burmeister, para quem "a mar criava quase que um mundo à para Montevidéu, quando o navio
tripulação não era capaz de parte. Todavia, esse isolamento e a enfrentou ventos fortes e o mestre
conceber a festa sem tais inexistência de poderes consultou os demais oficiais e a
escândalos e grosserias; ficaria institucionais mais comuns - como tripulação, que resolveram arribar
faltando alguma coisa se não o família, igreja e Estado - não no primeiro porto - Cabo Verde -,
fizessem, pois os marujos não criaram um vácuo. Ao contrário: ao pois o mastro grande estava podre
compreendem que outros sejam invés de ser fragmentado em e o pano também ia "todo
poupados aos rituais bárbaros por diversas instituições, toda a esfrangalhado". O capitão cometeu
que a seu tempo passaram (...)"58. autoridade concentrava-se o deslize de mencionar o
Assim como na terra firme, a praticamente nas mãos do capitão, verdadeiro destino da embarcação
passagem de uma a outra fase da que normalmente a exercia com no diário náutico, bem como
vida (no trabalho, no lendária arbitrariedade. Porém, já demonstrou que chamar a
desenvolvimento biológico, na vimos que os marinheiros eram tripulação para uma decisão
educação formal) era marcada por homens determinados quando se coletiva era o recurso do qual se
rituais. A primeira travessia do tratava de obter um certo grau de lançava mão para resolver
Equador era, nesse sentido, um autonomia, até porque o situações desse tipo. Ao longo dos
marco da identidade individual e isolamento da vida no mar produziu dias, foi registrando as mudanças
coletiva entre os homens do mar entre eles a certeza de que a ajuda climáticas e as seqüelas deixadas
de todas as nacionalidades, em casos de necessidade só no navio em razão do confronto
simbolizando a passagem para o poderia vir do próprio grupo. Se com a natureza marinha: depois de
mundo cultural e social dos muitas vezes sua própria vida grossa tempestade, o vento
marinheiros. dependia da medição de forças com tornou-se "muito bonança, porém o
Além desse, havia outros rituais, a natureza, era certo que faziam navio dá grandes balanços, e o
como o que se realizava em algo semelhante para obliterar a mastro que vá agüentando até a
homenagem aos que morriam a autoridade ou forçar a negociação Bahia", ao que se seguiu um "vento
bordo. Na impossibilidade de com os poderosos oficiais. calmo e sol de rachar", "borraceira
preservar os corpos - que eram Mesmo com a concentração do e chuviscos", "chuvas" e
jogados ao mar -, a cerimônia era poder em suas mãos, parece ter se "horizontes carregados", sucessão
simples e feita imediatamente criado o direito costumeiro de fazer de fenômenos que transformaram
depois da morte, pois os uma assembléia da tripulação, as velas em farrapos, não havendo
marinheiros consideravam de mau quando o caso era decidir o destino lona para consertá-las61.
augúrio carregar defuntos no navio. de todos em uma situação de Outro motivo que poderia
Segundo Rediker, o ritual incluía perigo. No tráfico de africanos, determinar a convocação dos
preces em honra do morto, essas situações ocorriam com tripulantes para decidir o que fazer
seguidas de tiros de canhões e, por relativa freqüência - ou então os era a perda dos mantimentos vitais
vezes, algumas "palavras em tripulantes presos por crime de para a continuidade da viagem em
memória do irmão marinheiro contrabando de escravos direção ao destino originalmente
morto". Evidentemente, havia utilizavam-se desse argumento previsto. Foi o que ocorreu no
distinções relativas ao status do como estratégia para se livrarem Maria da Glória, quando os
falecido, resultando em maior condição de réus. Mesmo assim, só tripulantes foram inspecionar a
elaboração nas cerimônias poderiam se utilizar de argumentos farinha que ainda havia e
destinadas a marcar a passagem plausíveis, baseados na própria encontraram "pequena porção, e
de capitães e outros oficiais para o experiência da vida no mar. essa arruinada". Resolveram então
além59. Não tenho notícia de Tempestades, aparelho danificado, "de comum acordo" parar em São
cerimônias dessa natureza em piratas ou navios ligados à Tomé em 08 de abril de 1824. No
navios negreiros, mas é de se repressão da atividade eram os entanto, ao verificarem que a
supor que o grau de elaboração riscos mais comumente bandeira portuguesa tremulava na
fosse muito menor quando se mencionados pelos tripulantes ilha e sabedores de que o Brasil
tratava de um africano carregado. interrogados na Comissão Mista ainda não tivera sua independência
Morto a bordo, é possível que o Anglo-Brasileira do Rio de Janeiro. reconhecida pela antiga metrópole,
africano fosse simplesmente jogado Assim foi com a barca Eliza, consideraram arriscado aportar ali
ao mar sem maiores delongas - assolada durante a viagem com as um brigue do Império brasileiro.
especialmente se a causa-mortis "grandes e crescidas vagas, como Novamente, o mestre convocou
estivesse ligada a alguma doença pela grande violência do vento do seus oficiais e tripulação, que "de
epidêmica. noroeste" que lhe levou o velame comum acordo assentaram não
V- AS DECISÕES DOS pelos ares. Outro tufão "inundou o entrar naquela ilha, por recearem
MARINHEIROS navio todo" e para dar vazão à talvez que fosse o brigue ali
água, abriram-se as portinholas. prisioneiro" e decidiram ir para
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Lagos, onde em 25 de outubro do francesa. Rio de Janeiro, Graal, condições de trabalho na Revolução
mesmo ano o navio foi apreendido 1986, pp. XV e 103-139. Industrial não foram impostas
5
por um brigue espanhol sob o CHARTIER, Roger. "Text, Sym- sobre um material bruto, mais
argumento de que o pavilhão bols, and Frenchness". In The Jour- sobre ingleses livres (...). A classe
imperial não era conhecido pelo nal of Modern History, nº 57, fasc. operária formou a si própria tanto
capitão apreensor62. 04, dez.1985, pp. 684-685; 690 e quanto foi formada". THOMPSON,
Se o espírito comunitário prevalecia 688; DARNTON, Robert. "História e E. P. A formação da classe operária
em situações de perigo como estas, Antropologia". In O beijo de inglesa. Rio de Janeiro, Paz e Terra,
havia outras em que o Lamourette: mídia, cultura e 1987, II, pp. 17-18.
16
individualismo predominava. revolução. São Paulo, Cia. das Ver "La sociedade inglesa del
Quando uma embarcação negreira Letras, 1990, p. 285, siglo XVIII: lucha de clases sin
era apreendida e levada até um respectivamente. clases?" In Tradición, revuelta y
6
porto para julgamento, nada mais LAPA. op. cit., p. 189. consciencia de clase. Barcelona,
7
havia a fazer além do salve-se- Encontrei apenas uma exceção: a Crítica 1979, p. 37.
17
quem-puder: era isto o que queria presença da africana Dadah como THOMPSON. "Tiempo, disciplina
dizer a atitude do mestre, piloto, tripulante da escuna Dona Bárbara; de trabajo y capitalismo industrial".
contramestre e mais três ela foi alçada do porão para prestar In Tradición, revuelta..., p. 245.
18
marinheiros do Aracaty, que serviços na equipagem, talvez em VILHENA, Luís dos Santos.
fugiram em um escaler assim que razão da morte de algum marujo. Recopilação de notícias
um oficial do navio apreensor subiu Arquivo Histórico do Itamaraty soteropolitanas e brasílicas.
a bordo para inspecionar o porão, (doravante AHI), Lata 3, Maço 5, Salvador, Itapuã, 1969, Livro IV, p.
deixando a bordo apenas dois Pasta 1 (Dona Bárbara, 1829). 133; "Almanaque da cidade do Rio
8
marinheiros e o cozinheiro da REDIKER, Marcus. Between the de Janeiro para o ano de 1794". In
tripulação63. Devil and the Deep Blue Sea: Mer- RIHGB, nº 266, jan.-mar.1965, p.
Nesta abordagem da cultura chant Seamen, Pirates, and the An- 286.
19
marítima, ensaiei algumas glo-American Maritime World LINEBAUGH. op. cit., p. 32. Para
reflexões sobre temas consagrados (1700-1750). Nova York, Cam- uma crítica ao trabalho de
no interior daquilo que se costuma bridge University Press, 1989, pp. Linebaugh, centrada no problema
denominar "cultura", como língua e 155-156; SCOTT, Julius Sherrard. da descontinuidade da tradição, na
religião. Inserir no mesmo quadro The Common Wind: Currents of linguística e na falta de rigidez
de reflexão um tema como as Afro-American Communication in conceitual, ver SWEENY, Robert.
decisões coletivas dos marinheiros the Era of the Haitian Revolution. "Outras canções de liberdade". In
significa ir além dos marcos Ann Arbor, Duke University, 1986, RBH, vol. 08, nº 16, mar.-
tradicionais do conceito de cultura. p. 66; LINEBAUGH, Peter. "Todas ago.1988, pp. 205-219. A resposta
Nela, cabe igualmente a análise de as montanhas atlânticas de Linebaugh está no mesmo
práticas cotidianas que são, ao estremeceram". In Revista número da Revista: ver "Réplica",
mesmo tempo, formativas e Brasileira de História (doravante pp. 221-231.
20
transformadoras das práticas RBH), nº 06, set.1983, pp. 07-46 "Como modos de produção quero
culturais de grupos sociais. Isso respectivamente. considerá-los não como fontes de
9
significa dizer que a noção de ARNOLD, Samuel Greene. Viaje riqueza ou meios de criação de
cultura com a qual estou lidando por América del Sur 1847-1848. valor, nem como etapas de
defende uma amplitude para o Buenos Aires, Emecé, 1951, p. 56. crescimento econômico, e menos
10
termo, permitindo ver a cultura não LAPA. op. cit., p. 220. ainda como maneiras de satisfazer
11
apenas nos elementos consagrados Cf. TAUNAY, Affonso d'E. "Rio de os desejos humanos. Considero-os
(língua, religião, educação formal, Janeiro de antanho". In Revista do apenas como um quadro de
arte ou registros materiais), como Instituto Histórico e Geográfico interação humana, quadro que
também nos conflitos e no Brasileiro (a partir daqui RIHGB), tanto conduz como molda a
comportamento cotidianos, que vol. 90, nº 144, 1921, pp. 402- experiência humana". LINEBAUGH.
desempenham um papel relevante 405. op. cit., p. 32.
12 21
na formação da própria identidade Embora por apenas três dias, THOMPSON. "La economia moral
dos grupos sociais. tempo que a escuna navegou entre de la multitud". In Tradición, re-
NOTAS a partida e o apresamento. AHI, vuelta..., pp. 62-134; e "The Moral
1
Este artigo é parte de minha Lata 3, Maço 5, Pasta 1 (Dona Economy Reviewed". In Customs in
pesquisa de doutoramento em Bárbara, 1829), depoimento de 20 Common. Londres, Merlin, 1991,
História Social, em andamento no mar.1829, fl. 15. pp. 259-351.
13 22
IFCH/UNICAMP. Para isso, conto SCOTT. op. cit., pp. 109. De acordo com Lapa, até meados
14
com o apoio financeiro da FAPESP. Cf. FREITAS, Antonio Gregório do século XVIII, os naufrágios se
Agradeço também a ajuda de de. Novo dicionário de marinha de deviam mais à precariedade dos
Fernanda Carvalho. guerra e mercante. Lisboa, navios e da inabilidade dos pilotos
2
LAPA, José R. Amaral. A Bahia e a Imprensa Silviana, 1855, p. 209. do que aos elementos naturais. Ver
15
Carreira da Índia. São Paulo, Cia. "Ela [a classe operária] não foi LAPA. op. cit., pp. 86-87 e 111.
23
Ed. Nacional/Edusp, 1968, p. 189. gerada espontaneamente pelo LEITHOLD, Theodor von. "Minha
3
Ver RODRIGUES, Jaime. O infame sistema fabril. Nem devemos excursão ao Brasil ou viagem de
comércio: propostas e experiências imaginar alguma força exterior - a Berlim até o Rio de Janeiro e
no final do tráfico de africanos para 'revolução industrial'- atuando volta". (Berlim, 1820). In O Rio de
o Brasil (1800-1850). Campinas, sobre algum material bruto, Janeiro visto por dois prussianos
IFCH/UNICAMP, 1994, caps. 04 e indiferenciado e indefinível de em 1819. São Paulo, Cia. Ed.
05. humanidade, transformando-se em Nacional, 1966, pp. 98-99.
4 24
DARNTON, Robert. O grande seu outro extremo, uma 'vigorosa Diário náutico do Brilhante. AHI,
massacre de gatos e outros raça de seres'. As mutáveis Lata 4, Maço 3, Pasta 1, (Brilhante,
episódios da história cultural relações de produção e as 1831-1839).
CLIO História – Textos e Documentos

25 48
REDIKER, op. cit., pp. 154-155. 1985, pp. 171-172, Cf. VERGER, Pierre. Notícias da
26
D'ORBIGNY, Alcide. Viagem respectivamente. Bahia. Salvador, Corrupio/F. C. Ba,
39
pitoresca através do Brasil. Belo KLEIN, Herbert S. A escravidão 1981, pp. 48-49; Carta de Salvador
Horizonte/São Paulo, africana: América Latina e Caribe. de Brito Ribeiro, 06 fev.1821,
Edusp/Itatiaia, 1976, p. 167. São Paulo, Brasiliense, 1987, pp. apreendida na escuna Emília. AHI,
Mesmo antes da abertura dos 91-92. Lata 13, Maço 1 (Emília, 1821), fl.
40
portos, o testemunho de Thomas MAYER, Brantz. Captain Canot: or 137.
49
Lindley (1802) menciona o "grande Twenty Years of an African Slaver. Cf. TAUNAY, Affonso d'E.
afluxo de navios ao Rio", razão pela Nova York, Arno Press, 1968, p. Visitantes do Brasil colonial
qual "os portugueses 272. (séculos XVI-XVIII). São Paulo, Cia.
41
acostumaram-se com os FAZENDA, José Vieira. Ed. Nacional, 1933, pp. 90-91.
50
estrangeiros, tendo-se portado, "Antiqualhas e memórias do Rio de AHI, Lata 12, Maço 4, Pasta 1;
pelo menos até agora, com a maior Janeiro". In RIHGB. vol. 88, nº Diário náutico, 26 abr. e 29
civilidade". Narrativa de uma 142, 1920, p. 279; COSTA, Nelson. abr.1838, respectivamente. AHI,
viagem ao Brasil. São Paulo, Cia. Rio de ontem e hoje. Rio de Lata 4, Maço 3, Pasta 1, (Brilhante,
Ed. Nacional, 1969, p. 188. Janeiro, Leo, 1958, p. 62; 1831-1839); e Diário náutico, 02 e
27
Cf. SCOTT. op. cit., pp. 60-61. D'ORBIGNY. op. cit., p. 165; 04 nov.1820. AHI, Lata 13, Maço
28
LEITHOLD. op. cit., p. 97. SCOTT. op. cit., pp. 64-65, 1A (Emília, 1821),
29
ARNOLD. op. cit., pp. 53-54. O respectivamente. respectivamente. O escrevente do
42
gug era a porção diária de CAMPOS. op. cit., p. 93; LEITÃO Emília pediu ainda, em 24 de
aguardente a que cada tripulante e LOPES., op. cit., pp. 117-118 e outubro do mesmo ano, "dia de
tinha direito. 360. A proibição estava presente Todos os Santos (sic)", que eles
30
BENTO, Antonio. Manet no Brasil. desde a edição do Regimento rogassem por todos os tripulantes.
51
Rio de Janeiro, MEC, s/d, p. 15. provisional para o serviço e Cf. LAPA. op. cit., p. 209. Em seu
31
REDIKER. op. cit., p. 163. disciplina das esquadras e navios estudo sobre as visitações, Sonia
32
POHL, João Emanuel. Viagem no da Armada Real, que por ordem de Siqueira listou os nomes de 49
interior do Brasil empreendida nos S. M. deve servir de regulamento tripulantes de navios processados.
anos de 1817 a 1821. Rio de aos comandantes das esquadras e Ver A Inquisição portuguesa e a
Janeiro, INL, 1951, p. 29. navios da mesma senhora [D. sociedade colonial. São Paulo,
33
LEITÃO, Humberto e LOPES, José Maria I], em 1796, e que vigorou Ática, 1978.
52
Vicente. Dicionário da linguagem de no Império brasileiro, sendo SILVA, Luiz Geraldo. "Pescadores,
marinha antiga e atual. Lisboa, reeditado sem alterações até 1868. 'homens do mar' e a Inquisição no
Centro de Estudos Históricos No Cap. I, art. 74, lemos a Brasil colonial". In MAUÉS,
Ultramarinos, 1963, p. VII. seguinte determinação: "Observar- Raymundo H. (org.). Anais da 3a.
34
"Qualquer pessoa que se dedica a se-á geralmente em todos os Reunião Regional de Antropólogos
professar a Arte Marítima, não navios a estreita ordem de falar do Norte e Nordeste. Belém,
pode saber os nomes, que se tem com vozes moderadas, tanto nas UFPA/MPEG/CNPq/SEBUC-PA/SECU
dado aos cabos, e mais cousas, que práticas ordinárias a gente, uma LT-PA/ABA, 1993, pp. 672 e 670,
servem em os navios, sem que com outra, mas muito respectivamente. Devo esta
andem embarcado, e faça neles principalmente em ocasiões de indicação a Jane Felipe Beltrão.
53
viagens longas, ou continuadas: manobra e fainas, proibindo toda a Diário náutico, 26 nov.1831. AHI,
não é isto só bastante; porque um saloma" (p. 20). Lata 4, Maço 3, Pasta 1, (Brilhante,
43
passageiro, que embarca sempre, THOMAS, Keith. Religião e 1831-1839). Pojo é o "lugar em
não lhe importando mais do que o declínio da magia: crenças que se poja, se desembarca", cf.
seu negócio, certamente não populares na Inglaterra, séculos Leitão e Lopes. Dicionário, p. 322.
54
saberá já mais os nomes dos ditos XVI e XVII. São Paulo, Cia. das REDIKER, op. cit., pp. 184 e 187.
55
cabos: é necessário pois, que esta Letras, 1991, pp. 49; 35-36; 613; BURMEISTER, Hermann. Viagem
pessoa aprenda, e procure saber 436-437 e 529, respectivamente. ao Brasil através das províncias do
44
cuidadosamente os nomes de todos REDIKER. op. cit., pp. 169 e 175. Rio de Janeiro e Minas Gerais. São
os cabos, que servem para o Em abono de sua tese, o autor cita Paulo, Martins, 1952, pp. 27-28; LE
aparelho dos navios, e também de os trabalhos de Cristopher Hill e VAYER, Théophile de Ferrière. Une
todos aqueles de que se faz uso Keith Thomas, entre outros. ambassade française en Chine:
45
dentro deles (...)". CAMPOS, Idem, pp. 172; 174 e 171, journal de voyage. Paris, D'Amyot,
Maurício da Costa. Vocabulário respectivamente. 1854, pp. 30-32, SEIDLER, Carl.
46
marujo. Rio de Janeiro, Of. de Silva "Registro de uma lei que Sua Dez anos no Brasil. Belo
Porto, 1823, p. 01. O autor era Majestade manda se guarde neste Horizonte/São Paulo,
professor de Marinha da Nova Estado sobre a condução dos Itatiaia/Edusp, 1980, p. 32. As
Academia Militar de Goa. negros cativos de Angola (Bahia, descrições referem-se aos anos de
35
FREITAS. op. cit. 07 nov.1684)". In Documentos 1850, 1844 e 1826.
36 56
REDIKER. op. cit., pp. 162-163. Históricos, vol. 89, 1948, pp. 383- BURMEISTER. op. cit., p. 28;
37
Idem. p. 164. 385; VIANNA FILHO, Luiz. O negro BENTO. op. cit., p. 15; SEIDLER.
38
Cf. LINEBAUGH. op. cit., pp. 33- na Bahia. Rio de Janeiro, José op. cit., p. 32.
57
34; THORNTON, John K. "African Olympio, 1946, p. 34; VIANA, BURMEISTER. op. cit., p. 27.
58
Dimensions of Stono Rebelion". In Hélio. "Um humanitário alvará de EBEL, Ernst. O Rio de Janeiro e
American Historical Review. nº 96, 1813, sobre o tráfico de africanos seus arredores em 1824. São
fasc. 04, out.1991, pp. 1103 e em navios portugueses". In RIHGB, Paulo, Cia. Ed. Nacional, 1972, p.
1107; CUNHA, Manuela Carneiro nº 256, jul.-set.1962, pp. 79-88. 07; BURMEISTER. op. cit., p. 28.
47
da. Negros, estrangeiros: os Cf. AMARAL, Ilídio do. "Luanda: Praticamente todos os viajantes
escravos libertos e sua volta à estudo de geografia urbana". In que cruzaram a linha mencionaram
África. São Paulo, Brasiliense, Memórias da Junta de Investigação o ritual de travessia do Equador.
do Ultramar. vol. 53, p. 48, 1968.
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Ver ainda, entre outros, POHL. op.


cit., pp. 46-48.
59
REDIKER. op. cit., pp. 193-196.
60
Cf. Termo de Protesto de
Arribada, 18 fev.1830. AHI, Lata
12, Maço 4, Pasta 1 (Eliza,1829-
1830).
61
Diário náutico, 10, 14, 17, 18, 19
e 22 nov.1831. AHI, Lata 4, Maço
3, Pasta 1 (Brilhante, 1831-1839).
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