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CASO DOS AUTISTAS

Impulsionado pela denúncia oferecida por um pai de autista, o Ministério Público do Estado de São Paulo
instaurou inquérito civil para verificar se o Estado de São Paulo disponibilizava tratamento e educação
específicos às necessidades de pessoas com autismo. Tendo verificado que o Estado somente
disponibilizava tratamento psiquiátrico não especializado no cuidado de autistas, o Ministério Público
tentou firmar acordo com a Administração Pública Paulista.

Conforme relatado por membro do Ministério Público, não houve interesse do Estado de São Paulo em
incluir o tratamento especializado de autistas na lista do Sistema Único de Saúde – SUS e disponibilizar
entidades especializadas no tratamento e educação de autistas.”

“Em nome dos outros autistas, ele que trouxe primeiro a denúncia pro MP, dizendo que o
Estado ou o SUS não ofereciam tratamento especializado. Na verdade, eles tratavam os
autistas com tratamento psiquiátrico, mas não especializado em autista. Aí nosso colega do
MP instaurou inquérito civil e confirmou essa informação de que realmente o SUS não
disponibilizava nada específico para autismo. Tentou acordo no inquérito civil e o Estado não
se interessou.” (Promotor)

Este cenário motivou o Ministério Público Paulista a ajuizar Ação Civil Pública, com pedido de antecipação
de tutela contra a Fazenda Pública do Estado de São Paulo, objetivando a condenação da ré ao pagamento
do valor integral necessário ao tratamento, assistência e educação de autistas em entidades de tratamento
especializadas.

A ação ajuizada pelo Ministério Público Paulista foi julgada procedente em primeira instância para
condenar a Fazenda, enquanto não dispuser de unidades próprias especializadas no tratamento de autistas,
a arcar com o valor integral do tratamento, assistência e educação de autistas em entidade privada de
tratamento especializada, bem como providenciar, no prazo de trinta dias da comprovação da situação de
autista, instituição adequada para o tratamento do autista requerente.

Abaixo está transcrito trecho da sentença:

JULGO PROCEDENTE a ação civil pública movida pelo Ministério Público do Estado de São
Paulo contra a Fazenda Pública do Estado de São Paulo, com fundamento no artigo 269, inciso
I, do código de Processo Civil, para CONDENÁ-LA, até que, se o quiser, providencie unidades
especializadas próprias e gratuitas, nunca as existentes para o tratamento de doentes mentais
“comuns”, para o tratamento de saúde, educacional e assistencial aos autistas, em regime
integral ou parcial especializado para todos os residentes no Estado de São Paulo, a: I - Arcar
com as custas integrais do tratamento (internação especializada ou em regime integral ou
não), da assistência, da educação e da saúde específicos, ou seja, custear tratamento
especializado em entidade adequada não estatal para o cuidado e assistência aos autistas
residentes no Estado de São Paulo; II – Por requerimento dos representantes legais ou
responsáveis, acompanhado de atestado médico que comprove a situação de autista,
endereçado ao Exmo. Secretário de Estado da Saúde e protocolado nas e de da Secretaria de
Estado da Saúde ou encaminhado por carta com aviso de recebimento, terá o Estado o prazo
de trinta (30) dias, a partir da data do protocolo ou do recebimento da carta registrada,
conforme o caso, para providenciar, às suas expensas, instituição adequada para o tratamento
do autista requerente; III– A instituição indicada ao autista solicitante pelo Estado deverá ser a
mais próxima possível de sua residência e de seus familiares, sendo que, porém, no corpo do
requerimento poderá constar a instituição de preferência dos responsáveis ou representantes
dos autistas, cabendo ao Estado fundamentar inviabilidade da indicação, se for ‘o caso, e
eleger outra entidade adequada; IV - O regime de tratamento e atenção em período integral
ou parcial, sempre especializado, deverá ser especificado por prescrição médica no próprio
atestado médico antes mencionado, devendo o Estado providenciar entidade com tais
características; V - Após o Estado providenciar a indicação da instituição deverá notificar o
responsável pelo autista, fornecendo os dados necessários para o início do tratamento. (grifo
nosso).

A Fazenda Pública do Estado de São Paulo interpôs recurso de Apelação contra referida decisão, à qual foi
negado provimento pela Terceira Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo.

Ocorrido o trânsito em julgado da sentença, iniciou-se a fase de habilitação e execução individuais ou


coletivas fundadas em título executivo judicial. Não havendo instituições públicas especializadas no
tratamento deste grupo de deficientes físicos, as habilitações ou execuções individuais requeriam a
inserção e custeio do autista em instituição particular.

Paralelamente às habilitações e execuções judiciais, em 2002 a Secretaria da Saúde editou portaria, que
determinou a inclusão de procedimentos médicos voltados ao tratamento de autistas no Sistema de
Informações Ambulatoriais do Sistema Único de Saúde – SIA-SUS.

As Secretarias da Saúde e Educação passaram então a receber e solucionar os reclames de responsáveis por
autistas sem a necessidade de intervenção judicial. Com a comprovação da condição de autista perante a
Secretaria da Saúde, o indivíduo passou a ser encaminhado pela Administração Pública Paulista a
instituições médicas e/ou educacionais especializadas no tratamento de pessoas com autismo, conforme
explica o representante da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo:

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“Basta o requerimento administrativo e a prova que a mãe é a responsável, os documentos da
criança, documento de endereço e laudo médico que dê conta que ele seja autista. Isso já está
minuciado na ação civil pública: é só a mãe se deslocar até a Secretaria da Saúde, que faz a
verificação da validade desse atestado médico. Verificada a veracidade de tudo aquilo que foi
veiculado, eles montam o processo e encaminham pra nós, daqui da chefia de gabinete vai pra
um departamento que chama CAPE – Centro de Apoio Pedagógico Especializado. No CAPE eles
viabilizam de acordo com o estudo da região geográfica que a pessoa reside e eles
disponibilizam o atendimento, sempre atentos ao prazo de 30 dias a contar do dia do
protocolo.” (Assessor da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo)

A ausência de instituições públicas capazes de prestar atendimento adequado às necessidades específicas


dos autistas forçou as Secretarias da Saúde e Educação a encaminhar os autistas a instituições particulares
de tratamento especializado.

Os altos valores cobrados pelas instituições particulares de ensino e educação, somados à crescente
demanda por esta prestação à divulgação do conteúdo da sentença entre os responsáveis por autistas,
passaram a interferir na gestão orçamentária das Secretarias. Conforme relatado por Assessor da Secretaria
da Educação, o deslocamento de verbas para atender somente às necessidades de autistas importa em
menor investimento em outras necessidades da sociedade civil.

Buscando otimizar os gastos despendidos exclusivamente no tratamento de autistas, as Secretarias da


Educação e Saúde editaram resoluções, as quais determinavam a celebração de convênios, em regime de
cooperação, entre elas e “Instituições Particulares, sem fins lucrativos, que comprovadamente ofereçam
atendimento a educandos portadores de necessidades especiais, verificada a impossibilidade de
atendimento dessa clientela em escolas da rede estadual de ensino”.

Pelos convênios, o Estado destinaria à instituição de tratamento médico e educacional, que preenchesse
determinados requisitos, verba mensal calculada conforme a quantidade de autistas por ela atendidos.
Atualmente, a Secretaria da Saúde destina R$ 610 (seiscentos e dez) reais/mês por autista internado e a
Secretaria da Educação destina R$1.000 (um mil)reais/mês por autista estudante.

Segundo informações prestadas pelo representante da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, o
valor pago às instituições que celebraram convênio com as Secretarias da Saúde e da Educação foi
calculado considerando a média dos valores cobrados no mercado pelas instituições especializadas no
tratamento de autistas.

Além da celebração de convênios, a Secretaria da Educação passou a equipar escolas públicas com
professores capacitados, material especializado e grade curricular específica para alunos portadores de
deficiências físicas, dentre elas o autismo. De acordo com informações prestadas pelo representante da

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Secretaria da Educação, a cada 2 kms (dois quilômetros) deve haver uma dessas escolas públicas
capacitadas.

Vale mencionar que as iniciativas empreendidas pelas Secretarias da Saúde e da Educação relacionadas aos
autistas não representaram significativas alterações em seus procedimentos internos. As novas atribuições
referentes aos autistas apenas foram incluídas entre os demais procedimentos das respectivas Secretarias.

Ocorre que, devido à complexidade e individualidade de cada caso, bem como ao constante surgimento de
situações inusitadas relacionadas ao atendimento médico e educacional de autistas, nem sempre é simples
a realização de acordos entre o responsável pelo autista e a Administração Pública. Nesses casos, há, em
regra, intervenção do Ministério Público e da Defensoria Pública.

Os representantes de ambas as instituições informaram que buscam aproximar o responsável pelo autista à
Administração Pública (Secretarias da Saúde e Educação) e, somente quando inviável a conversa, ajuízam
ações, habilitações, execuções individuais e/ou execuções coletivas.

Deste modo, a despeito das medidas e soluções extrajudiciais empreendidas pelas Secretarias da Saúde e
Educação, pelo Ministério Público e pela Defensoria Pública, grande número de habilitações e execuções
individuais continuaram a ser ajuizadas. Tamanha foi a quantidade de incidentes propostos junto à ação
civil pública que o magistrado julgou necessário extinguir todas as habilitações e execuções, conforme
revela a transcrição a seguir:

“Portanto, sob pena de ofensa à dignidade da Justiça e de litigância de má fé, depois de oito
anos do ajuizamento da ação civil pública, é chegado o momento de resolver, definitivamente,
a questão do tratamento dos autistas. (...) São inúmeros os comparecimentos pessoais de
parentes dos autistas no cartório judicial, muitos deles pessoas sem recursos vindas de
diversas regiões do Estado, os quais solicitam o empenho pessoal do magistrado para que
recebam os seus valores ou que haja a internação em clínica privada. A partir de hoje, isso vai
mudar (os interessados e os advogados devem, diretamente, procurar o Secretário de Estado
da Saúde ou o Ministério Público). (...) Assim, para todos os autistas residentes no Estado de
São Paulo, nos termos da sentença confirmada pela superior instância, como a executada
Fazenda Estadual deve manter registro de quem procurou o serviço especializado, determino
que o Estadode São Paulo, por intermédio da Secretaria de Estado da
Saúde,diretamente,recebaosrequerimentosdosrepresentanteslegaisou responsáveis dos
autistas, instruído com o atestado médico que comprove a situação clinicado paciente, a ser
protocolado na Sede da Secretaria da Saúde (endereço: Av. Doutor Enéas de Carvalho Aguiar,
nº 188, CEP nº 05403-000, São Paulo, Capital) ou no gabinete do Secretário Estadual de Saúde,
Dr. Luiz Roberto Barradas Barata (tel 3066- 8656/gabinete e 3085-4315/fax), e providencie, às
suas expensas, em 30 dias, instituição adequada para o tratamento do autista, (...) Finalmente,

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recebido o tratamento de saúde, educacional e assistencial aos autistas, pertinentes à
condenação judicial, na hipótese de algum responsável do autista discordar da forma do
tratamento ou da indicação da clínica especializada pela Secretaria do Estado e da Saúde,
deverá procurar o Ministério Público (Rua Riachuelo, 115, 3º andar, sala 335, São Paulo,
Capital, tel. 3119- 9090/gabinete do GAESP ou 3119-9355/fax da Secretaria.), para que o
próprio promova a execução complementar do julgado, de uma única só vez, com relação a
todos os descontentes. (...) A partir de agora, por isonomia aos demais autistas ainda não
atendidos, todas as habilitações em curso serão extintas (carência superveniente da ação, nos
termos do artigo 462 do Código de Processo Civil), não serão processadas novas habilitações
(os interessados deverão, diretamente, diligenciar perante a Secretaria de Estado da Saúde) e
o julgador somente intervirá para fins de execução da multa diária (não é necessária a
presença física do interessado no cartório judicial).

Esta decisão foi cassada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. Embora extremada e contrária ao princípio
da inafastabilidade da jurisdição, a decisão trouxe à baila importantes aspectos relacionados à dificuldade
de se judicializar determinados conflitos, quais sejam:

a) necessidade de tratamento isonômico a todos os autistas:

E, mesmo a Lei nº 7.347/85, a qual disciplina a ação civil pública, prevê a possibilidade de habilitação dos
interessados, nota-se que apenas um número reduzido de autistas (levando-se em conta a população em
todo Estado de São Paulo) está sendo beneficiado porque somente aqueles que contratam advogados
particulares estão recebendo assistência estatal mediante ordem deste juízo. É preciso que a sentença seja
cumprida, em todos seus termos, porque o procedimento seguido pela executada (nítido caráter
protelatório) e a postura adotada pelo Ministério Público, autor da ação (limita-se a lançar cotas nos autos
das habilitações e não toma nenhuma providência para que o comando da sentença seja, efetivamente,
respeitado) em nada contribuem para garantir assistência, educação e saúde específicos dos autistas.

b) falta de estrutura institucional de um único cartório judicial para processar dezenas ou centenas de
habilitações e execuções vinculadas a uma única sentença genérica:

Diante do número diminuto de escreventes na 6º Ofício da Fazenda Pública da Capital (em torno de
quatorze) e da notícia de que o Tribunal de Justiça pretende a relotação de 450 escreventes de primeira
instância para ocupar o cargo de 2º escrevente nos gabinetes dos ilustres desembargadores, não há pessoal
para atender os parentes dos autistas que procuram o cartório judicial esperançosos de receber o auxílio
objeto da condenação judicial.

c) falta de formação técnica de um juiz para analisar e resolver problemas relacionados à área médica
ou finanças públicas:

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Não cabe ao julgador, nos termos da sentença proferida, como vem sendo feito (atualmente), verificar a
situação pessoal de cada autista e, particularmente, determinar o abrigo em uma determinada instituição;
verificar se o atestado médico comprova ou não a condição de autista; mandar a executada providenciar o
recolhimento do valor da mensalidade da instituição privada de educação; expedir guia de levantamento;
suspender a internação; promover a remoção do autista para outra entidade especializada ou outras coisas
do gênero. Conforme o dispositivo da sentença, acima destacada, é o Secretário de Estado da Saúde que, a
requerimento dos responsáveis do autista, mediante atestado médico comprobatório, deve verificar,
individualmente, a instituição indicada ao paciente mais próximo possível de seus familiares, facultando-se
a indicação de outra entidade adequada, se houver fundamentação válida para isso. Não há, no dispositivo
da sentença, previsão para que o juiz da execução substitua atividade cabente, exclusivamente, ao
Secretário de Saúde do Estado de São Paulo (o julgador não é médico para identificar um quadro de
autismo, não sabe escolher a instituição mais adequada para cada caso específico e não possui
conhecimento técnico para analisar a prescrição médica para saber qual é o regime de tratamento cabível a
uma situação específica).

Esta decisão instaurou verdadeiro tumulto processual tendo, inclusive, sido oferecida exceção de suspeição
contra o magistrado por “falta de sensibilidade à causa autista”. Apesar de julgada improcedente a
exceção, o juiz foi afastado da causa.

Conforme relatado por membros do Ministério Público, outra peculiaridade do caso foi constatada no
primeiro pedido de execução, que foi instrumentalizado na via coletiva. Objetivou-se, por meio de uma
mesma execução, a inserção de diversos autistas em instituições especializadas de tratamento médico e
educacional. Ocorre que o quadro clínico dos autistas é bastante variado, sendo o tratamento variável
conforme as características de cada paciente. Assim, a tentativa de liquidar objetos distintos em um mesmo
incidente processual também contribuiu para tumulto no processo.

Esta dificuldade, entretanto, foi rapidamente solucionada pela dissolução da execução coletiva em
execuções individuais. Importante ressaltar que nem sempre a execução coletiva relacionada à ação civil
pública dos autistas é inviável, como no exemplo de questionamento sobre a qualidade dos serviços
prestados por instituição conveniada.

Atualmente a ação continua em curso. Novas habilitações e execuções (individuais ou coletivas) são
ajuizadas quando não é possível a solução pacífica do conflito entre o responsável pelo autista e a
Administração Pública.

BRASIL, MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, O DESENHO DO SISTEMA DE RESOLUÇÃO ALTERNATIVA DE DISPUTAS


PARA CONFLITOS DE INTERESSE PÚBLICO, SÉRIE PENSANDO O DIREITO, PESQUISA 38, 2011, P. 41-52.

Perguntas:

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1) Houve isonomia de tratamento dos membros da coletividade lesada?

2) Aponte as características do litígio estratégico descrito?

3) Aponte erros e acertos na solução adotada?

4) Na sua opinião, a solução adotada é legítima? Justifique.

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