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As

risadas se elevavam sobre o som da rabeca e cantoria. A mulher de sorria enquanto se certificava em
manter as canecas dos viajantes sempre cheias. A blusa pendia convidativamente sobre seu ombro
direito enquanto piscava para o mais velho entre eles.
Johran corria os olhos rapidamente para o homem a sua frente que entre uma risada e outra, uma canção e
outra, lhe dava um sinal. O rapaz fingia que entornava a caneca contendo o líquido de gosto amargo
quando na verdade a deixava escorrer por sua boca, ensopando sua camisa de algodão e colete marrom,
até suas calças largas e escuras.
Os outros viajantes não se preocupavam do mesmo artifício. Bebiam e arrotavam enquanto limpavam a
boca com a manga de seus casacos amarrotados.
O cheiro de pão e carne assada aguçava os sentidos da pequena taberna.
– Uma excelente fartura vocês têm aqui. – o homem mais velho com um pouco de bebida escorrendo em
sua barba dizia com um sorriso largo no rosto.
A mulher se virava para o taverneiro.
– Somos todos abençoados pela deusa nessa região. – ele respondeu por trás do balcão.
– Muito abençoado eu vejo. – Outro viajante dizia corria os olhos para a mulher
O jovem Johran esboçava um sorriso enquanto o canto do olho percebia o olhar atento do homem a sua
frente para todos os que estavam na taverna.
– Não se preocupem com seus animais, meus senhores. Mandei que fossem levados para um estábulo nos
fundos e os quartos de vocês já estão sendo preparados. Quero que aproveitem a hospitalidade de Loreon
essa noite. – o taverneiro dizia com um sorriso largo.
– Pois certo que iremos aproveitar, meu bom taverneiro. – o mais velho disse enquanto apanhava um
grande naco da carne assada.
O taverneiro limpou as mãos com um trapo de pano.
– Agora aproveitem, senhores. Se me derem licença vou verificar como estão os quartos. Aniah mantenha
nossos visitantes bem servidos e não deixem a música parar. – ele concluía em meio as risadas e música.
Johran esticava a mão para apanhar um pedaço da carne, mas o olhar severo do homem a sua frente
deteve sua mão. O rapaz se lembrava das palavras do comandante antes da viagem.
* * *
– Loreon. – o comandante apontava para o ponto do mapa que ficava depois da ponte sobre o rio
Correpesca e a floresta Andarerde. – É uma pequena aldeia na região de Ester. Nossa patrulha foi
escalada para averiguar o local.
– Senhor. – o capitão Edar se adiantava – Normalmente não nos metemos nesses lugares, é função dos
lordes manter o controle sobre suas terras.
– Loreon. – o comandante continuou como se ignorasse a interrupção e seu subalterno – Fica no caminho
da costa de Ester com o forte Paran. Mercadores que acabam usando a estrada que passa por Loreon
nunca chegam à costa, e os que partem da costa nunca chegam à forte Paran.
– Com todo o respeito, senhor, passaremos a caçar salteadores por todo o Sul?
O comandante cruzou os braços coçando os cotovelos.
– Essa seria exatamente minha reação, Edar, mas quase todas as cidades nessa região estão enfrentando
problemas com a seca e a moka enquanto Loreon ainda prospera. O Grão-Mestre teme que Loreon de
alguma maneira esteja recebendo recursos do Norte, e seja um entreposto infiltrado no sul. Um
destacamento de forte Paran patrulhou as estradas por semanas e não encontrou nenhum vestígio de
assaltantes. Permaneceram estacionados na cidade por um tempo e nada aconteceu. Acreditavam que
quem quer que estivesse atacando os carregamentos fugira com a chegada dos soldados de lorde Uoden.
Alguns dias depois que eles deixaram o posto, um novo carregamento desapareceu. Os mercadores
desapareciam antes de chegar à cidade, não importava se vinham da costa ou do forte.
– Os moradores não diziam nada? – o capitão Edar dizia levando a mão ao queixo.
– Não. É por isso que agora nós vamos agir. Normalmente enviariamos um grupo que arrancaria as
respostas. Mas se eles de fato forem um entreposto das forças do Norte, o Grão-Mestre espera usarmos
isso ao nosso favor. Um grupo de mercadores partirá de forte Paran daqui a dois dias, e nós vamos com
eles. Ou melhor, apenas dois de nós. Disfarçados de mercadores. Dois de vocês seguirão com os
mercadores.
Edar e Johran foram selecionados.
Eles chegaram a forte Paran e se misturaram aos outros comerciantes. Era imprescindível que nem
mesmo os soldados do forte Paran soubessem que a Ordem do Templo estava infiltrada com os demais
viajantes.
– Os mercadores gostam de se embebedar e de se empanturrar. – Edar dizia a Johran – Não podemos
levantar suspeitas recusando-nos a beber e comer, mas devemos nos livrar da bebida de maneira que eles
não percebam. Durante a noite tentaremos espiar a vila.
A viajem seguiria sem problemas. Os mercadores levantavam acampamento perto da estrada antes de
chegarem às margens do Correpesca. Ao atravessarem a grande ponte de madeira e cordas avistaram as
chaminés das casas de Loreon.
Johran já havia ido a outras aldeias com outras patrulhas. Todas tinham aquele aspecto miserável pelas
perdas de plantações e pastos para a peste negra que assolou todo o Sul, fazendo com que a terra ficasse
escura e impedindo que algo amis pudesse germinar naquele solo. As pessoas sempre tinham aquele
olhar de desespero, contando apenas com os desígnios da deusa Lua entregando seus filhos e filhas a
serviço da Ordem do Templo em troca de comida.
Mas Loreon era diferente. Não havia crianças na aldeia, provavelmente todas foram coletadas pela
Ordem, mas as pessoas eram fortes e bem alimentadas. Havia um curral amontoado de porcos gordos
logo ao lado de uma casa de dois andares. Cães grandes como pequenos pôneis deitavam
preguiçosamente no meio das ruas.
Os moradores receberam os viajantes com saudações e sorrisos em seus rostos.
* * *
A música animava os mercadores com seus ânimos já exaltados graças a forte bebida que era servida sem
parar junto com a carne suculenta de porco. Edar fingia o estado ébrio com risadas altas e fala mole.
Johran abaixava seus olhos para a mesa e segurava o copo com as duas mãos, sorvia o conteúdo
deixando que a bebida escorresse por sua boca, terminando num largo sorriso.
O dono do estabelecimento tinha os braços fortes e marcados, um mercador se apoiou em seus ombros
enquanto era escoltado para o quarto no andar de cima. Edar fez um sinal para Johran e eles
acompanharam o grupo.
O andar de cima era dividido por três quartos com quatro camas em cada um. A mulher deixava um deles
na cama enquanto se desvencilhava das mãos que a apalpavam. Ainda assim não desfazia o sorriso do
rosto. Johran e Edar, fingindo-se de bêbados se jogaram nas camas sem se preocupar em tirar as roupas.
Logo as risadas foram silenciando-se enquanto o som de cadeiras e vassouras tomavam o andar de baixo.
Edar levantou e observou os outros dois mercadores que estavam no mesmo quarto. O ronco deles não
deixava dúvidas de que estavam num sono pesado e tranquilo.
Ele se aproximou da cama de Johran. O rapaz se levantou seguindo o capitão. Edar experimentou a porta,
já desconfiado do resultado: estavam trancados. Ele fez um sinal com as mãos e sacou a espada curta de
dentro de sua roupa. Johran apanhou sua própria espada controlando a respiração.
Edar se dirigiu até a janela calculando a queda quando percebeu o som de passos subindo as escadas.
Ouviram a porta de um dos quartos se abrir e o distinto som da lâmina cortando a carne.
– Pela janela, agora! – Edar disse firmemente num sussurro.
Ele e Johran começaram a levantar a pesada janela de madeira quando a porta de seu quarto se abriu.
Com o canto dos olhos o garoto pode ver a mulher que antes tinha um sorriso convidativo segurando uma
espada ainda úmida de sangue. O olhar frio dela pousou nos dois.
Edar se colocou entre o garoto e a mulher num ataque rápido. Ela não esperava que alguém ainda
estivesse acordado, muito menos armado e preparado para um ataque. O golpe do capitão a atingiu no
abdome: o sangue espirrou forte e vigoroso assim como o grito que sai de sua boca.
Outro homem saiu de trás dela com o que parecia ser uma espada curta levemente curvada e um cutelo
para carne.
– Vá! Agora! – Edar ordenou antes de ser atingido no braço.
Os dois mercadores que estavam até agora desmaiados em suas camas abriram os olhos com dificuldade
e resmungaram alguma coisa. Johran usou o ombro forçando sua saída pela janela. A queda foi
amortecida pelo chiqueiro dos porcos logo abaixo.
– Um deles está escapando! – alguém gritava.
Johran chafurdava na lama tentando encontrar sua espada. O latido dos cães o fizeram desistir. Correu
desesperadamente para a floresta. Os moradores saíram atrás dele com tochas e com os cães.
O rapaz sabia que não conseguiria despistar os animais na floresta. Os cães conseguiriam diferenciar seu
cheiro facilmente. Sua perna estava doendo, possivelmente teria torcido o tornozelo e o joelho, se não
coisa pior: ele não conseguiria escapar.
Só teria uma chance.
* * *
Os moradores de Loreon continuaram a caçada por toda a noite. Os grandes cães negros farejavam sem
sucesso. As tochas já estavam sendo apagadas quando o sol nascia no horizonte.
Eles tiraram os corpos dos mortos de dentro da casa. Levaram tudo para a parte de trás onde três homens
já se preparavam com facões e serras. O dono da casa ainda chorava abraçado ao corpo de sua esposa.
Enquanto cavavam uma sepultura para ela, os pedaços dos corpos dos mercadores eram dados aos
porcos. Os animais guinchavam ávidos por alimento. Cresciam gordos e fortes. Os pequenos leitões
também recebiam sua parte. Os cães também deviam receber a sua cota.
Mas todos ainda estavam apreensivos pelo garoto que escapara. Temiam que ele alcançasse os soldados.
O grupo que foi enviado ao seu encalço voltava sem as boas notícias. Mas acreditavam que era provável
que ele tenha corrido até o Correpesca e se afogado em suas águas. Mesmo assim, por precaução,
enviaram duas pessoas até o forte Paran. Somente ao retornarem depois de uns quatro dias que os
moradores ficaram tranquilos.
Em nenhum momento, por mais absurda que fosse a hipótese, eles pensaram em buscar pelo foragido na
aldeia. E era com isso que Johran contava.
Escondido pela noite, usando o pouco de conhecimento aprendido com seu pai de como andar a favor do
vento, conseguiu voltar para a aldeia. As casas foram construídas um pouco acima do chão, deixando um
espaço que servia para as chuvas correrem num rio de lama, mas agora acumulavam sujeira e ninhos de
ratos. Foi num desses lugares que Johran se escondeu.
Com fome, sede, frio e sozinho. Seu tornozelo tinha se torcido e a perna estava inchada e dolorida.
Apoiar-se nela era difícil. Testemunhou em silêncio enquanto o corpo de Edar era esquartejado e dado de
alimento para os porcos.
Loreon prosperava naqueles tempos difíceis. Johran testemunhara os porcos serem alimentados com os
corpos dos que se atreviam a chegar perto o suficiente. Temiam apenas atacar soldados e sacerdotes, mas
qualquer viajante incauto que tivesse o azar de atravessar a aldeia quando precisavam alimentar seus
porcos nunca mais veria o dia novamente.
Primeiro os recebiam com alegria e os embebedavam. E de noite os matavam. Johran testemunhou isso
mais de uma vez.
Os moradores também faziam o pão com a moka, a erva que era a única coisa que crescia e podia ser
usada como alimento na terra afligida pela peste negra. Ela alimentava sem aplacar a fome, por isso
dosavam com a carne de porco.
Durante a noite Johran tinha coragem o suficiente para sair de seu esconderijo e tentar roubar um pouco
de pão. Temia ser denunciado pelos cães, mas como ele mesmo viu, sem os caçadores instigando-os, eles
eram dóceis e calmos.
Ele ficou assim por semanas, escondido na sujeira sobre as casas, alimentando-se do que conseguia
roubar durante a noite. Testemunhando todo o funcionamento e organização da aldeia enquanto sua perna
se recuperava.
A moka o deixava forte, mesmo que seu corpo definhava numa fome implacável. Todos os dias ele ficava
atento e apreensivo pensando que seria descoberto. A todo instante, uma criança correndo, ou um
cachorro latindo fazia seu peito doer. Uma vida se passara daquela maneira.
Durante a noite sua mente vagava seguindo as estrelas viajantes no céu de onde ele imaginava terras
longínquas longe da guerra, longe da peste negra.
Pensava em sua própria aldeia, em como a vida era simples e alegre enquanto os moradores esperavam
os resultados da pesca em alto mar. Em eu pai que o ensinava a caçar. Mas alternava pesadelos com os
salteadores que os atacaram, incendiaram sua casa e o mataram. Tudo para levar comida, ou qualquer
outra coisa de valor. Assassinos desesperadas tentando garantir sua sobrevivência. Assim como os
moradores de Loreon.
O lugar não era um entreposto do Norte: isso não deixava dúvidas. Eram apenas pessoas desesperadas
em tempos desesperadores fazendo a única coisa que podiam para sobreviverem, para que suas crianças
tivessem a chance de conhecer uma vida melhor.
Sempre que forasteiros se aproximavam, eles escondiam os menores em suas casas. E se não fossem
soldados ou membros da Ordem, eram atacados e dados de alimento aos animais.
Quando despertou de um devaneio febril, seus olhos brilharam de medo ao ver que uma criança olhava
diretamente para ele. Mesmo na distância em que estavam um do outro, mesmo escondido pelas sombras
e pela sujeira, não tinha dúvida: a criança olhava diretamente para ele. Seus olhinhos brilhavam
intrigados. Ela vinha cambaleante em sua direção, até se agachar na beirada da casa. Johran pode ver o
sorriso que ela deu para ele.
Como um animal acuado ele rastejou para fora de seu esconderijo. Já não teria mais tempo para esperar
sua perna se recuperar totalmente. Ele abaixou a cabeça e correu em direção as árvores.
Ele sentia seu peito estourar. Ignorava as queixas de sua perna enquanto desviava de galhos e arbustos.
Pensava ouvir os latidos e os gritos dos caçadores quando alcançou as margens do Correpesca. Jogou-se
nas águas deixando que a sujeira se soltasse de seu corpo, mas seu corpo era a própria sujeira.
* * *
O comandante Aurun observava as chaminés de Loreon à distância. Seu rosto duro e frio não deixava
transparecer o que estava pensando. Ele virou para o lado e deitou seus olhos sobre Johran.
O jovem soldado não percebia que estava sendo observado. Sua mente pensava apenas nos pedaços de
corpos sendo jogados aos porcos. Seu relatório completo ao comandante deixava apenas uma linha de
ação. Depois de tantos dias desaparecido, sua patrulha acreditava que eles estavam mortos e Aurun
planejava outra forma de revelar o mistério da aldeia, mas tudo isso mudou quando o jovem os
encontrou.
– Soldados, avancem! – Aurun anunciava de seu cavalo enquanto cinquenta templários vestidos com suas
armaduras e túnicas azuis com o desenho prateado da lua no centro marchavam. O escudo e a lança
preparada para o ataque.
A coluna se deslocou em direção a pequena aldeia e o massacre teve seu início.
Homens, mulheres, velhos e crianças. Nenhum morador seria poupado. Os cães foram içados pelas
lanças. Os porcos foram confiscados e as casas foram incendiadas.
Johran reconheceu entre os corpos o rosto da criança que o encontrou sob a casa. Os olhos sem vida
semiabertos refletiam as chamas sobre os telhados das casas.
O fogo dançava melancolicamente e uma chuva de cinzas se espalhava até as margens do Correpesca.

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