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MÓDULO DE

LITERATURA
TURMA ITA

ANTOLOGIA POÉTICA DE CARLOS DRUMMOND


PROFESSOR PAULO LOBÃO
P SÉRIE PRÉ-VESTIBULAR
PROFESSOR(A) PAULO LOBÃO SEDE
TC
LITERATURA
ALUNO(A) Nº ENSINO
MÉDIO
TURMA TURNO DATA ___/___/___
ANTOLOGIA POÉTICA Ainda na época da faculdade, Drummond conheceu
jovens que tinham pensamentos um pouco diferentes dos
dele. Como seu pai era coronel, o autor cresceu em uma
família conservadora e tinha ideias político-sociais mais
alinhadas à direita. Contudo, quando se tornou universitário
conheceu pessoas de realidades diferentes e foi
transformando sua visão de mundo.
Juntamente com os novos amigos, o autor criou uma
publicação chamada A Revista, que tinha o intuito de
divulgar o Modernismo brasileiro. Dentre os cofundadores
do periódico estava Emílio Moura, outro escritor que foi
importante para a disseminação da literatura mineira pelo
país.
Foi também nesta época, em 1925, que se casou com
Dolores Dutra, com quem teria dois filhos: Carlos Flávio e
Maria Julieta. O primogênito, entretanto, viveu apenas 30
minutos, sendo homenageado pelo pai em um de seus
poemas mais tocantes, O Que Viveu Meia Hora e também
no poema Ser.
Não muito depois de formado, Drummond começou a
trabalhar como redator-chefe no jornal Diário de Minas.
À época, ele já produzia literatura e em 1930 publicou
Alguma Poesia, seu primeiro livro. O próprio autor pagou
pela primeira tiragem da obra, que contou com apenas 500
Autor: Carlos Drummond de Andrade exemplares.
Em 1934, o mineiro se mudou com a família para o
Rio de Janeiro, onde começou a trabalhar como chefe de
1. SOBRE O AUTOR
gabinete do então ministro da educação, Gustavo
Capanema. Segundo os biógrafos de Drummond, esse
período foi essencial na vida do autor, pois fez com que ele
observasse o governo de outra perspectiva e mudasse suas
opiniões políticas.
Pouco mais de uma década depois, ele largou o cargo e
passou a escrever para diversos periódicos e se tornou editor
do jornal Imprensa Popular, lançado pelo Partido
Comunista Brasileiro. Nessa época ele já havia lançado
outros livros que o consagraram, como Sentimento do
Mundo (1940) e Rosa do Povo (1945).
Sua poesia o tornou um dos maiores poetas brasileiros
de todos os tempos. Drummond não ganhou fama por causa
(Divulgação/ Fundação Cultural Carlos Drummond de Andrade)
do povo, mas porque foi exaltado pelos intelectuais e por
Carlos Drummond de Andrade nasceu na cidade de movimentos culturais populares, como a tropicália e a bossa
Itabira do Mato Dentro (MG), em outubro de 1902. Filho de nova, por exemplo.
pais ricos, estudou em colégios internos durante a infância e Durante sua carreira, Drummond recebeu diversos
chegou a ser expulso de uma das instituições por prêmios e foi um dos poucos escritores brasileiros que
insubordinação a um professor de português. conseguiu viver da própria literatura.
Na juventude, o escritor se formou farmacêutico pela Em 1987, sua filha faleceu por conta de um câncer,
Universidade Federal de Minas Gerais por vontade do pai. o que, segundo o escritor, o fez “perder o sentido da vida”.
Ele não chegou a atuar na profissão, e acabou dando aulas Apenas 12 dias após o enterro de Maria Julieta, Drummond
de português e geografia e trabalhando como tradutor de sofreu um infarto e morreu, deixando como legado poemas
títulos de autores como Bertolt Brecht e Federico García que exigem uma profunda imersão do leitor.
Lorca.
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2. CONTEXTO HISTÓRICO E LITERÁRIO da sociedade, assim apresentam temáticas do cotidiano


humano: repressão, guerra, censura, morte, medo e, política.
O Modernismo foi o movimento literário mais Na prosa, surge, principalmente, o romance social que
abrangente na literatura brasileira, sendo subdividido em caracterizou fortemente a segunda fase modernista,
três fases distintas: a primeira, de 1922 até 1930, estava retratando a realidade vivida em determinadas regiões do
preocupada com propostas diferentes quanto à nova Brasil, como o Nordeste que padecia com as secas.
literatura, abordando um tom irreverente e polêmico; a O mesmo espírito revolucionário dos intelectuais e artistas
segunda, de 1930 até 1945, desenvolveu de maneira para renovar a arte brasileira na Semana de 1922 é notado
completa suas propensões, abordando várias temáticas; a nas lutas contra a repressão do governo Vargas. Muitos
terceira fase ou pós-modernismo, que se inicia a partir de representantes da segunda fase modernista denunciam em
1945, com o desejo de devolver o rigor formal à poesia. suas obras os conflitos sociais vividos no Brasil durante a
A segunda fase modernista representa, no plano cultural, o era Vargas e a Segunda Guerra Mundial, e, até se
período de estabilização das conquistas adquiridas na posicionam nas frentes populares (esquerda e direita) para
primeira fase, apresentando uma ampliação das temáticas revelar os graves acontecimentos sociais e a insatisfação da
constituídas de tendência universal: social, religiosa, população. Dentre os representantes de esquerda estão
amorosa e, espiritualista. Houve, nos anos 1930, uma Graciliano Ramos, Jorge Amado, Dionélio Machado, por
espécie de convívio íntimo entre literatura e as ideologias exemplo, que manifestam nas obras o descontentamento
políticas e religiosas, ou seja, a literatura esteve atrelada aos com a realidade social daqueles anos. A mudança de foco do
movimentos sociais da época. Carlos Drummond de Modernismo nas duas primeiras fases — da preocupação
Andrade insere-se no contexto cultural e literário da segunda estética para a preocupação social ou do predomínio estético
fase do Modernismo, contribuindo de forma inquestionável para o predomínio ideológico — divide cronologicamente o
para a construção do ideário dessa corrente literária. movimento em fases, da qual a segunda, por apresentar
Esse período histórico brasileiro, de 1930 a 1945, participação dos autores e artistas nas causas políticas e
rendeu à segunda fase modernista uma visão mais próxima sociais, merece relevante destaque, pois mostra a ligação
da realidade social, pois, diferente da primeira fase entre a obra literária e a sociedade, o escritor
modernista, que estava mais preocupada com a renovação e desempenhando o “papel social”.
modernização nacional da literatura. A segunda fase volta-se
para a busca de uma mudança na sociedade, causa abraçada As fases da poesia drummondiana
pelos principais representantes desse período literário,
dentre eles Carlos Drummond de Andrade. O desejo de Assim como sua vida, o perfil de escrita de Carlos
mudar a sociedade, propor uma literatura engajada e Drummond de Andrade variou muito com o passar dos anos.
incursionar pelo sentido de estar no mundo são notados nas O autor produziu obras com versos livres (brancos), mas
obras escritas nesses anos, em que muitas apresentam cifras também resgatou estruturas clássicas, como os sonetos.
e códigos decorrentes da repressão sofrida na era Vargas. O que sempre se manifesta em seus textos é uma postura
É interessante notar que o percurso histórico do Brasil irreverente e crítica ao mundo que está ao seu redor. Outro
contribuiu significativamente para dar outro direcionamento, fator típico drummondiano é o uso de metáforas para
na segunda fase modernista, ao propósito ideológico e descrever sentimentos e situações que poderiam ser
estético difundido na primeira fase. Na primeira fase explicadas de formas mais “fáceis”. O poeta mineiro de
modernista, predominou o plano estético: discussões acerca Itabira também incursionou pela prosa, tanto em textos
das características desse novo movimento literário e a jornalísticos quanto em crônicas. Entretanto, para os
linguagem adotada; já na segunda fase, em decorrência da especialistas, é justamente o modo diferente e poético que
situação enfrentada pelo país, predominou o plano usou para retratar o mundo em seus poemas que o tornou o
ideológico: discussões sobre a literatura e sua função social, maior expoente da poesia modernista — e brasileira. A obra
ressaltando que a finalidade estética modernista na primeira do mineiro é tão vasta e complexa que sintetizá-la não é
fase era a renovação literária e a finalidade ideológica era a uma tarefa fácil, pois os eixos temáticos revelam muitas
busca pelo nacionalismo. Na segunda fase modernista, não faces desse poeta multifacetado. Considerando a trajetória
houve mudança no plano estético da poesia, pois os poetas do poeta dentro do Modernismo brasileiro e a relação do
continuaram fazendo uso dos versos livres, de uma nova poeta com os diversos desse correspondente tempo
linguagem poética e da liberdade de expressão, porém o histórico, pode-se dividir sua obra poética em quatro fases
plano expressivo estava voltado à realidade social. literárias, entretanto há quem defenda a existência de cinco
Esses poetas, como Oswald de Andrade e Murilo Mendes, períodos de escrita.
definiam suas posições sociais (esquerda ou direita) e se
engajavam nas causas defendidas pelo seu grupo.
Drummond sintetiza em dois versos do poema “Nosso
tempo”, de A rosa do povo, o contexto histórico da época:
“Este é tempo de partido, tempo de homens partidos.” No
campo literário, é possível notar um amadurecimento do
movimento modernista a partir da década de 30, quando os
escritores dessa fase já não estavam tão preocupados em
chocar os tradicionalistas, objetivo defendido pela primeira
fase modernista, mas em denunciar uma realidade social que
surgiu com a Revolução de 1930. A poesia e a prosa se Carlos Drummond de Andrade (à direita)
desenvolveram vinculadas às transformações revolucionárias com Manuel Bandeira – Foto: Wikimedia Commons

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A primeira fase A terceira fase

A primeira fase, que compreende as obras Alguma A terceira fase da obra poética de Carlos Drummond
poesia e Brejo das Almas, é “predominantemente de Andrade instaura, no espaço de sua escritura, a crítica do
individualista”, impregnada de subjetivismo do eu lírico, seu fazer literário, de modo mais consciente e sistemático.
cuja visão de mundo limita-se ao particular das emoções Constata-se uma poética marcada pelo desencanto político.
interiores do sujeito. Aqui a poesia “gauche” ganha O poeta se lança numa poesia reflexiva, filosófica e
destaque, manifestando a incompletude do poeta, condenado metafísica. Claro enigma introduz essa vertente filosófica,
pelo “anjo torto”, desses “que vivem na sombra” ao pessimista e reflexiva, abordando morte e vida, infância e
fatalismo sentimental, constituindo o paradoxo dramático velhice, amor e tempo. A metalinguagem, aspecto bastante
que reverbera na alma do poeta, revelando a impotência recorrente na obra de Drummond, corresponde à própria
diante do mundo, a dificuldade de estabelecer uma impossibilidade de construir a poesia ideal para resolver os
comunicação com o mundo. Aqui, temos um Eu > Mundo. problemas fundamentais e essenciais, por isso, universais,
da humanidade como um todo. Dessa forma, a procura
“Mundo mundo vasto mundo, incessante do poeta no fazer poético traduz a própria
angústia do homem em resolver os problemas que o afligem,
se eu me chamasse Raimundo sejam eles de ordem social, filosófica ou psicológica. Surge
seria uma rima, não seria uma solução. uma poesia desencantada, pessimista e bastante metafísica.
Mundo mundo vasto mundo, Aqui, temos um Eu = Mundo.
mais vasto é meu coração.” Principais obras: Claro Enigma (1951), Fazendeiro do ar
(1955), Vida passada a limpo (1959) e Lição de coisas
A segunda fase (1962).
“Escurece, e não me seduz
A segunda fase, que se inicia a partir de Sentimento do tatear sequer uma lâmpada.
mundo (1940) até Novos poemas (1947), passando por José Pois que aprouve ao dia findar
(1942) e Rosa do povo (1945), nota-se uma poesia muito aceito a noite”
mais preocupada com as questões sociais. Mas não se
exaure nessa poética militante. Alcançando certa maturidade A quarta fase
estética, o poeta conseguiu fundir, no espaço da poesia, um
estilo próprio a temáticas universais, distanciando-se dos Na última fase da poesia drummondiana, o discurso
preceitos estético-ideológicos do Modernismo de 1922. Por poético está impregnado do memorialismo do poeta mineiro.
isso, essas temáticas dizem respeito não mais ao Nessa quarta fase, a mineiridade, o sentimento da família e
individualismo da fase anterior, mas sim ao destino do da terra são temáticas recorrentes. Não quer dizer que com
homem em face do mundo. A vida, a morte, enfim, a isso não haja nas fases anteriores da poesia de Drummond o
existência da humanidade passa a ser questionada, sem aparecimento desses elementos como temática; claro que há.
ilusão, sem otimismo ingênuo. Há, nesse momento da Só que nessa última etapa de sua obra, a partir de Boitempo
poesia de Drummond, uma consciência dos problemas do (1968), o poeta itabirano retoma-os com mais frequência e
mundo, um interesse pelos destinos da humanidade em um relevância. Da mesma forma que Boitempo, os livros
tempo tomado pela tragédia da Segunda Guerra. Aqui, Menino antigo (1973) e Esquecer para lembrar (1979)
temos um Eu < Mundo. giram em torno da infância e adolescência dentro do
espaço-tempo da memória do poeta.
“Não, meu coração não é maior que o mundo.
“Entardece na roça
É muito menor. de modo diferente.
Nele não cabem nem as minhas dores. A sombra vem nos cascos,
Por isso gosto tanto de me contar. no mugido da vaca
separada da cria.
Por isso me dispo, por isso me grito, O gado é que anoitece
por isso frequento os jornais, me exponho e na luz que a vidraça
cruamente nas livrarias: da casa fazendeira
derrama no curral
preciso de todos. surge multiplicada
sua estátua de sal,
Sim, meu coração é muito pequeno. escultura da noite.”
Só agora vejo que nele não cabem os homens.
Observação:
Os homens estão cá fora, estão na rua.
Alguns estudiosos apontam uma 5ª fase drummondiana,
A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava. denominada “fase erótica”. Essa fase ocorreu no fim da vida
Mas também a rua não cabe todos os homens. do autor e não tem um período delimitado, pois poucos
especialistas defendem essa parte da produção literária do
A rua é menor que o mundo.
mineiro como uma fase de fato. Entretanto, quem acredita
O mundo é grande.” nesse período, aponta o erotismo e os textos curtos como
características dos poemas.

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3. OBRAS DO AUTOR Drummond é um poeta de aguda percepção entre as


convenções e a realidade, “[...] também negativo na medida
Poesias em que se ensombra com os tons cinzentos da acídia, do
desprezo e do tédio, que tudo resulta na irrisão da
• Alguma Poesia (1930) existência” (BOSI, 2006, p. 441). Desde Alguma Poesia
• Brejo das Almas (1934) (1930), o autor manifestou uma tendência, segundo Bosi
• Sentimento do Mundo (1940) (2006), pelo prosaico, pelo irônico, pelo anti-retórico,
• Poesias (1942) cortando vínculos com a expressão transparente dos afetos,
• A Rosa do Povo (1945) negando-os e colocando em “[...] evidência e condição de
• Poesia até Agora (1948) absurdo feroz em que mais uma vez está submergido o vasto
• Claro Enigma (1951) mundo” (BOSI, 2006, p. 445) em que vivemos. Tais
• Viola de Bolso (1952) tendências vão ao encontro das já citadas características de
• Fazendeiro do Ar & Poesia Até Agora (1953) sua geração, e podem ser observadas não somente nesse
• Poemas (1959) período, mas ao longo da trajetória poética desse poeta
• A Vida Passada a Limpo (1959) desconcertantemente moderno.
• Antologia poética, (1962) Após Alguma Poesia (1930), o escritor publica Brejo
• Lições de Coisas (1962) das Almas (1934), Sentimento do Mundo (1940), José
• Boitempo (1968) (1942) e A Rosa do Povo, este último publicado em 1945 é,
• Menino Antigo (1973) entre seus livros, o mais extenso e mais variado. Para
• As Impurezas do Branco (1973) Achcar (2000), a obra de 1945 mescla verso livre com
• Discurso da Primavera e Outras Sombras (1978) versos metrificados e regulares, com estilo ora grotesco em
• O Corpo (1984) suas imagens, que causam certo asco no leitor, ora sublime,
• Amar se Aprende Amando (1985) que nos provoca emoção. Nessa época, final da Segunda
Guerra Mundial, “[...] o escritor revelava a sua
Prosas perplexidade, deixando, todavia, transparecer a sua
esperança em dias menos turvos” (CHAVES, 1993, p. 14)
• Confissões de Minas (1942)
na tentativa de mudar um pouco do muito que havia de
• Contos de Aprendiz (1951) errado. Portanto, sua temática principal é o engajamento
• Passeios na Ilha (1952) social que possui um “[...] duplo compromisso – com a
• Cadeira de Balanço (1970) linguagem poética e com a participação social [...]”
• Moça Deitada na Grama (1987) (ACHCAR, 2000, p.48), colocando diversos problemas para
um escritor moderno como ele. Assim, Drummond faz da
poesia sua arma social, como no poema “Procura da
poesia”, em que se depreende uma reflexão sobre o ofício
do escritor, mas também certa intenção social ligada a este
ofício.
Em 1960, Drummond é convidado pela sua editora a
compor sua antologia poética, que ele mesmo organiza e
divide a partir de um critério temático, temas esses que o
autor nomeia poeticamente. As seções nomeadas e os
respectivos temas escolhidos por ele são: “Um eu todo
retorcido (o conflito entre o eu e o social); Uma província,
esta (a terra natal); A família que me dei (a sua família);
Cantar de amigos (homenagem aos amigos ou intelectuais);
Na década de 1970 Na praça de convites (o choque social); Amar-amaro (o
(Foto: Reprodução Wikimedia Commons)
conhecimento amoroso); Poesia contemplada
(metalinguagem poética); Uma, duas argolinhas (exercícios
4. INTRODUÇÃO lúdicos); e Tentativa de exploração e de interpretação do
A poesia de Carlos Drummond de Andrade enquadra- estar-no-mundo”. A Antologia Poética é publicada pela
se no período, entre 1930 a 1945, denominado Segunda primeira vez em 1962, com poesias “retiradas” de várias
Geração Modernista. Sua primeira publicação, em livro, se obras que são vistas como um espelho fiel de sua produção
dá em 1930 com a obra Alguma Poesia, que o vincula à poética. Vale ressaltar que cada um dos títulos das seções
Segunda geração modernista. Esse é o momento de pressupõe um modo de organização, existindo no interior de
afirmação e desenvolvimento das características marcantes cada seção, temas e figuras recorrentes que sustentam a
da primeira fase, que tinha como metas a invenção rítmica, o denominação atribuída a cada uma delas. Conforme afirma
verso livre, o humor, a paródia, temas cotidianos, o José Luiz Fiorin, em Elementos de análise do discurso: “o
coloquialismo, dentre outros. Esta nova fase, então, amplia a que dá coerência semântica a um texto e o que faz dele uma
temática já trabalhada fazendo também a diversificação das unidade é a recorrência de traços semânticos ao longo do
tendências de estilo que vieram a influenciar o perfil discurso” (FIORIN, 2014, p.112), fenômeno denominado de
isotopia.
contemporâneo. Com um estilo misto ou mesclado, os
Os poemas, divididos em nove partes, que
poetas e escritores dessa segunda geração combinam o
correspondem a diferentes universos temáticos definidos
elevado e o banal, o grave e o grotesco dentro de suas obras
pelo próprio autor, oferecem uma visão geral da criação de
e composições em geral, marcando assim o estilo
Drummond desde sua estreia até o início da década de 1960.
modernista de ser.

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O Ser e o Mundo O homem atrás do bigode


é sério, simples e forte.
A seleção que Drummond empreendeu revela alto grau Quase não conversa.
de consciência do poeta sobre o seu fazer poético. Os temas Tem poucos, raros amigos
que escolheu são basicamente os mesmos que a crítica, no o homem atrás dos óculos e do bigode,
futuro, sintetizaria como os fundamentais em sua vasta obra.
uma tensão na poesia de Drummond, principalmente a Meu Deus, por que me abandonaste
partir do livro Sentimento do Mundo (1940), que faz o poeta se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.
questionar sua atividade com extrema severidade. Tal tensão
tem como eixo temático uma oposição entre o ser do poeta e
Mundo mundo vasto mundo,
o mundo exterior. Quando o eu-lírico volta-se para si, sente se eu me chamasse Raimundo
que seria melhor dirigir-se ao mundo; quando se volta para o seria uma rima, não seria uma solução.
mundo, sente que seria menos pretensioso limitar-se à esfera Mundo mundo vasto mundo,
do ser. mais vasto é meu coração.
No “Poema de Sete Faces”, o pólo do ser tem
prioridade, como mostram os seguintes versos: Eu não devia te dizer
Mundo mundo vasto mundo, mas essa lua
mas esse conhaque
mais vasto é meu coração.
botam a gente comovido como o diabo.
Num poema posterior, “Mundo Grande”, o eu-lírico
parece responder àquela sentença: Comentário
Não, meu coração não é maior que
[o mundo. Carlos Drummond, ao se referir a sua condição
“gauche”, já consegue definir a sua personalidade, tendo em
É muito menor.
vista que essa palavra francesa é sinônimo de esquerdo, e
Nele não cabem nem as minhas como tal, o escritor considera-se um deslocado, acanhado e
[dores. sem refinamento, traços que são constantemente
Por isso gosto tanto de me contar. demonstrados em sua poesia. A predestinação anunciada
Por isso me dispo, pelo “anjo torto” coaduna com a condição do desajuste do
sujeito desde o nascimento. Na estrofe inicial, o sujeito
por isso me grito, também faz uma revelação muito importante, a sua
por isso frequento os jornais, identificação “Carlos”, o que confere um caráter
[me exponho autobiográfico ao poema.
cruamente nas livrarias: O Desajuste, a inadequação e a solidão são os
sentimentos revelados pelo eu lírico diante do mundo que se
preciso de todos. insurge. Os versos “Vai, Carlos! Ser gauche na vida” / “tem
poucos, raros amigos” / “o homem atrás dos óculos e do
Essa tensão de impulsos contraditórios será a origem bigode” / “Meu Deus, por que me abandonaste / se sabias
de todos os desdobramentos temáticos indicados pelo poeta. que eu era fraco” / “comovido como o diabo” revelam um
indivíduo em conflito consigo mesmo e com a realidade
5. ANÁLISE DE POEMAS DA OBRA: externa, não se adaptando em nenhum dos eixos. Disso
resulta uma crise entre sujeito e objeto: um desajuste social
1ª parte - Um eu todo retorcido - Os poemas desta (“tem poucos, raros amigos”); um desajuste físico (“o
seção exprimem a visão que o autor tem de si como ser homem atrás do bigode”); desajuste psicológico (“sabias
humano e como artista: um eu em conflito com o que eu era fraco”, “comovido como o diabo”). Assim, neste
mundo, um eu torto. poema, Drummond, de modo metafórico, transmite uma
visão negativa do homem, uma visão desesperançada em
POEMA DE SETE FACES relação à vida. O eu lírico se vê injustiçado diante do mundo
e do abandono de Deus. O seu referencial é o seu próprio eu
Quando nasci, um anjo torto insatisfeito, buscando, desejando, retraindo-se, bebendo.... O
desses que vivem na sombra destino é o fracasso, a concretização da previsão do anjo:
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida. “vai ser gauche na vida”.

Uma observação:
As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres. A poesia de Drummond nasce sob o signo da
A tarde talvez fosse azul, fragmentação. As Sete Faces são, na verdade, sete
não houvesse tantos desejos. fragmentos. Os nexos lógicos estão rompidos. Cada estrofe
é um motivo que surge e se extingue. O número sete é um
O bonde passa cheio de pernas: número sagrado. Numa de suas acepções simboliza a
pernas brancas pretas amarelas. totalidade do divino e do humano. Três é o número divino,
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração. representa Trindade. O número quatro é o número terrestre,
Porém meus olhos representa os quatro pontos cardeais. A soma de ambos
não perguntam nada. perfaz a harmonia do criador com a criatura.

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SONETO DA PERDIDA ESPERANÇA não veio a utopia


e tudo acabou
Perdi o bonde e a esperança. e tudo fugiu
Volto pálido para casa. e tudo mofou,
A rua é inútil e nenhum auto e agora, José?
passaria sobre meu corpo.
E agora, José?
Vou subir a ladeira lenta Sua doce palavra,
em que os caminhos se fundem. seu instante de febre,
Todos eles conduzem ao sua gula e jejum,
princípio do drama e da flora. sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
Não sei se estou sofrendo seu terno de vidro,
ou se é alguém que se diverte sua incoerência,
por que não? na noite escassa seu ódio — e agora?

com um insolúvel flautim. Com a chave na mão


Entretanto há muito tempo quer abrir a porta,
nós gritamos: sim! ao eterno. não existe porta;
quer morrer no mar,
Comentário mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Em “Soneto da perdida esperança”, o espaço urbano é Minas não há mais.
visto como lugar de alienação, onde as coisas e o homem se José, e agora?
banalizam, pois se a rua é inútil, mais inútil é o homem, Se você gritasse,
ironizado, sobre o qual os autos não se dignam a passar. A se você gemesse,
presença do “carro” no poema diz, por sua vez, da se você tocasse
centralidade emblemática do automóvel numa sociedade a valsa vienense,
baseada na predominância da técnica. se você dormisse,
O poema reflete o sentimento melancólico expressado se você cansasse,
pelo sujeito diante do mundo. Ao perder o bonde, perde se você morresse…
consigo o último pedaço de felicidade que carrega. Como
vemos no terceiro verso, existe um grande cansaço da vida, Mas você não morre,
metaforicamente representada pela rua inútil. Está cansado você é duro, José!
da tristeza e dificuldade de viver sua rotina. Os caminhos se
fundem e fecham, não levando a lugar nenhum, fechando Sozinho no escuro
como qualquer rota que seguir em sua vida. qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
JOSÉ sem parede nua
para se encostar,
E agora, José? sem cavalo preto
A festa acabou, que fuja a galope,
a luz apagou, você marcha, José!
o povo sumiu, José, para onde?
a noite esfriou, Comentário
e agora, José?
e agora, você? A figura de José vem nesse poema, justamente como
você que é sem nome, representação de um problema coletivo, tornando-se uma
que zomba dos outros, personagem tipo, representando um grupo social. O poema
você que faz versos, todo está centrado na reflexão sobre a existência de José que
que ama, protesta? resiste e segue vivendo. Começa e termina de forma
e agora, José? interrogativa o que vem enfatizar o problema do
direcionamento da existência. Nos 5 primeiros versos, tem-
Está sem mulher, se a sensação de perda, de esvaziamento, que é transmitida
está sem discurso, através de uma sequência de imagens que denotam uma
está sem carinho, situação sem saída. Já o verso 7, apresenta uma perspectiva
já não pode beber, ambígua. Drummond utiliza-se desse recurso com o intuito
já não pode fumar, de chamar atenção do leitor, pois, diante desta estratégia,
cuspir já não pode, pode-se inferir que José se tornou o interlocutor, ou então,
a noite esfriou, que o leitor se identifica como José, sendo que tudo que é
o dia não veio, dito de José pode ser dito do leitor. O caráter genérico do
o bonde não veio, nome José, que serviria então para designar o ser humano
o riso não veio, em geral, transmite uma ideia de indiferença diante daquilo

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que não tem nome (v.8). Ou seja, José é apenas mais um na Vomitar esse tédio sobre a cidade.
multidão. Nos versos 13 a 18, o sujeito encontra-se sem Quarenta anos e nenhum problema
condições de expressão. São assinaladas a carência e a resolvido, sequer colocado.
solidão vivenciadas pelo indivíduo que está impedido de Nenhuma carta escrita nem recebida.
seguir certos impulsos. O uso reiterado das expressões Todos os homens voltam para casa.
“sem” e “não” contribuem para reforçar a noção de carência Estão menos livres, mas levam jornais
que define a atmosfera do poema. Os versos 19 a 27 trazem e soletram o mundo, sabendo que o perdem.
novamente a imagem de esvaziamento observada no uso da
Crimes da terra, como perdoá-los?
expressão “não veio”. Essa ideia é enfatizada pela repetição Tomei parte em muitos, outros escondi.
do vocábulo “tudo” que denota generalização do vazio. Na Alguns achei belos, foram publicados.
sequência dos versos, registra-se a inutilidade das tentativas Crimes suaves, que ajudam a viver.
de José para resolver seu problema. Nem os versos, nem o Ração diária de erro, distribuída em casa.
delírio, nem as leituras, nem a riqueza, nem a revolta, Os ferozes padeiros do mal.
metaforizadas no texto se mostraram suficientes para vencer Os ferozes leiteiros do mal.
a crise.
Para expressar a precariedade da existência de José, Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Drummond utiliza-se de expressões sem continuidade Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
semântica, frases coordenativas, nas quais não há uma Porém meu ódio é o melhor de mim.
ligação das ideias entre si. Os termos não apresentam Com ele me salvo
coerência do ponto de vista lógico. Nestes versos o sujeito e dou a poucos uma esperança mínima.
remete ao passado e faz referências de forma fragmentária,
pois todos os referenciais foram destruídos, o que fez com Uma flor nasceu na rua!
que se perdesse o sentido da existência. Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
Nos versos 45 a 51, a utilização dos verbos no
ilude a polícia, rompe o asfalto.
imperfeito do subjuntivo compondo orações condicionais,
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
anuncia a possibilidade de mudança que o verso seguinte garanto que uma flor nasceu.
desmente. Isso vem evidenciar que não há resolução para a
dúvida em relação ao futuro, já que nem mesmo morrer vale Sua cor não se percebe.
a pena, pois não resolveria o problema. Assim, “José” é a Suas pétalas não se abrem.
metonímia do próprio autor e/ou de um povo, cuja situação Seu nome não está nos livros.
é repetida dia a dia, pois não há destino certo: na escuridão, É feia. Mas é realmente uma flor.
sem amigo e sem abrigo. O poema José é símbolo de uma Sento-me no chão da capital do país às cinco horas
época de massificação, de uma “época de objetos e não de da tarde
sujeitos”. O poema de Carlos Drummond de Andrade e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
aplica-se aos milhares de “Josés” que transitam pela vida Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
sem serem notados, ouvidos ou vistos. Aos “Josés” Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas
condenados pela sociedade à solidão e ao anonimato, que em pânico.
não tiveram nenhuma oportunidade de se realizarem como É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo
homem, que gritam, protestam, amam, mas têm seu grito e o ódio.
sufocado pela indiferença, seu protesto ignorado e seu amor
Comentário
não correspondido, mas que continuam se arrastando pela
vida sem saber aonde vão chegar. O poema “A Flor e a Náusea” representa a explosão
revoltada do indivíduo diante do mundo em que vive, ao
A FLOR E A NÁUSEA mesmo tempo em que mostra a esperança quando do
aparecimento de uma flor que perturba. Ao passear pela rua
Preso à minha classe e a algumas roupas, cinzenta, o sujeito depara com a náusea; vê-se enjoado e tem
vou de branco pela rua cinzenta. o desejo de vomitar sobre tudo o que lhe incomoda e
Melancolias, mercadorias espreitam-me. perturba. No entanto, nem tudo está perdido, pois é desse
Devo seguir até o enjoo? enjoo, revolta, náusea e ódio que brota uma flor feia, que
Posso, sem armas, revoltar-me? nem se consegue classificar, mas que fura o asfalto. Isso
acontece ao mesmo tempo em que parece armar-se uma
Olhos sujos no relógio da torre: tempestade, que é símbolo de uma violenta perturbação na
Não, o tempo não chegou de completa justiça. ordem desse tempo de nojos, enjoos e vômitos. A flor, que
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações faz parte do título do poema e também do livro onde o
e espera. mesmo está inserido, simboliza o descontentamento do
poeta diante do mundo e das pessoas, procurando desabafar
O tempo pobre, o poeta pobre
o sentimento de repulsa por essa sociedade mesquinha e
fundem-se no mesmo impasse.
hipócrita. No entanto, nem tudo está perdido, pois há a
possibilidade de que do meio de tanta sujeira, náusea e
Em vão me tento explicar, os muros são surdos. enjoo brote a flor perturbadora, ou seja, acredita-se em um
Sob a pele das palavras há cifras e códigos. futuro melhor, no desabrochar da revolução socialista, de
O sol consola os doentes e não os renova. uma consciência libertária representada por uma poesia que
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas se levanta como instrumento de denúncia, engajamento e
sem ênfase. libertação.

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2ª parte - “Uma província: esta” - Os poemas enfocam a CONFIDÊNCIA DO ITABIRANO


região em que Drummond nasceu. Os poemas dessa parte
apresentam a profunda, complicada e, por vezes, triste Alguns anos vivi em Itabira.
relação com o lugar de onde ele provém, pois mesmo que o Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
indivíduo tenha abandonado este lugar, o lugar não o
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
abandona.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
CIDADEZINHA QUALQUER E esse alheamento do que na vida é
porosidade e comunicação.
Casas entre bananeiras
Mulheres entre laranjeiras A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,
vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres
Pomar amor cantar
e sem horizontes.
Um homem vai devagar E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
Um burro vai devagar é doce herança itabirana.
Um cachorro vai devagar
De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço:
Devagar... as janelas olham. [esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil;]*
Eta vida besta, meu Deus! este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;
este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;
Comentário este orgulho, esta cabeça baixa…

No poema “Cidadezinha Qualquer”, os elementos Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
linguísticos empregados pelo poeta reforçam as Hoje sou funcionário público.
características de uma cidade de interior no que ela tem de Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!
rotineira. A ideia da mesmice transmitida pelo texto
constrói-se pela estrutura que organiza o poema. Veja, por Comentário
exemplo, que na primeira estrofe, não há verbos de ação.
As palavras são justapostas, conferindo um ritmo lento ao “Confidência do itabirano” é o segundo poema da obra
cotidiano. Essa falta de ação objetiva inerente às pequenas Sentimento do mundo. Escrito em primeira pessoa, traz as
cidades do interior é enfocada pelo enunciador, percepções de um eu lírico que se funde ao próprio poeta,
evidenciando a simplicidade peculiar, isenta de qualquer uma vez que expõe, de forma saudosista, a sua relação com
fato inédito. No verso “Mulheres entre laranjeiras”, a cidade de Itabira – MG, mesma cidade de nascimento de
transparece a domesticidade da vida feminina, indicada Drummond. Após destacar a sua densa ligação com a
apenas para o casamento – sugestão entrevista na cidade de Itabira nos dois primeiros versos, o eu poético
simbologia do temo “laranjeiras”, já que a flor dessa árvore afirma que, como consequência disso, é “triste, orgulhoso:
compõe o buquê das noivas. Além disso, os três termos de ferro”. Porém, a rápida impressão de que o termo “ferro”
(“pomar”, “amor” e “cantar”) remetem a atividades ligadas possui sentido estritamente conotativo, associando-se à ideia
à mulher do interior, cuja vida se centra no amor à família e de que o eu lírico se mostra forte perante os percalços da
cujo trabalho limita-se à esfera doméstica, estendendo-se, vida, logo é complementada nos dois versos seguintes. Em
por vezes ao pomar, onde permanece durante horas, “Noventa por cento de ferro nas calçadas” e “Oitenta por
entoando em alto e bom som as canções de sua preferência. cento de ferro nas almas”, o enunciador associa denotação e
Nos três versos da segunda estofe, o emprego de estruturas conotação, dando à palavra “ferro” não somente a
em paralelismo compõe uma ordem sintática simétrica, significação de força e dureza de vida, impressa na alma dos
moradores de Itabira, mas também o sentido literal do
induzindo o leitor a colocar o homem na mesma condição
termo, referindo-se à porcentagem de ferro utilizada na
do cachorro e do burro, numa forma de animalizá-lo por ter construção das vias da cidade. Os “Noventa por cento de
um cotidiano igual ao dos animais que o cercam. A sugestão ferro nas calçadas” surgem no poema como fator de orgulho
de movimento indicada pelo verbo “vai” é freada pelo para o eu lírico; trabalho realizado de forma esmerada que,
advérbio “devagar”, contribuindo ainda mais para essa em seus quase cem por cento de presença de ferro, se mostra
paralisia da cidade. Nos últimos versos, o enunciador confiável. Aqui, não somente a cidade é exaltada em sua
destaca um comportamento dos moradores: ficar à janela grandeza repleta de saudade por parte do eu poético, mas
para observar o movimento da cidade, à espera de algo também a figura de quem tornara possível tal cidade; a
inédito, ou seja, pessoas ociosas se colocam à janela na figura indireta do trabalhador. Em “A vontade de amar, que
ânsia de que os olhos alcancem algo de novo ou com a me paralisa o trabalho, vem de Itabira, de suas noites
finalidade de tomar conhecimento da vida dos outros – brancas, sem mulheres e sem horizontes”, notamos a
hábito comum nas pequenas cidades, onde a novidade presença de forte traço saudosista, a ponto de cessar a ação
restringe-se à curiosidade de saber da vida alheia. E, como de trabalho do enunciador no momento em que lhe vêm à
em um desabafo, o eu-poético, cansado da rotina, assume a mente e ao coração as lembranças da cidade natal. Em
posição de espectador e compõe o último verso. Pensa alto síntese, Drummond evidencia no poema a tensão histórica
sobre o que vê e diz: “Êta vida besta, meu Deus”. “Êta”, entre o “eu” e a sua comunidade por meio de imagens que
palavra sincopada, nos mostra a espontaneidade com que o representam a forma como a sociedade e o mundo
sujeito expôs o seu pensamento, formando com “vida besta, colaboram para a constituição do indivíduo. O poeta
meu Deus” uma frase peculiar aos hábitos linguísticos dos itabirano revisita a Itabira de sua memória, mas essa Itabira
agora é apenas uma fotografia pendurada na parede,
habitantes de pequenas cidades.
causando a dor, a saudade.

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3ª parte – A família que me dei – Nesse bloco de poemas, Comentário


Drummond trata de suas memórias familiares, tomando-as
como atributo de reflexão, promovendo uma ressignificação Em “Retrato de família”, como o título já sugere, o
do seu passado. sujeito, a partir de uma fotografia, reflete sobre a passagem
do tempo e sua interferência na percepção do passado.
RETRATO DE FAMÍLIA Drummond, ao colocar o retrato em uma posição central
Este retrato de família nesse poema, elabora uma reflexão sobre a própria
está um tanto empoeirado. fotografia como dispositivo de memória e a aponta como
Já não se vê no rosto do pai um elemento chave nessa relação entre as lembranças
quanto dinheiro ele ganhou. familiares e o ato de lembrar em si. Já no primeiro verso,
que reitera o título, o poeta indica para o leitor de que tipo
Nas mãos dos tios não se percebem de fotografia ele está se referindo: “Este retrato de família/
as viagens que ambos fizeram. está um tanto empoeirado. Já não se vê no rosto do pai”.
A avó ficou lisa e amarela, Em “Retrato de família” podemos apreender essa narrativa
sem memórias da monarquia. no movimento que o eu lírico realiza, já que é a partir do
Os meninos, como estão mudados.
presente de seu olhar em direção ao retrato que lhe propicia
O rosto de Pedro é tranquilo,
usou os melhores sonhos. não somente recuperar, mas também ressignificar o passado.
E João não é mais mentiroso. Esse deslocamento no tempo, a passagem dos anos entre o
passado da foto e o presente do eu lírico já está explícito nos
O jardim tornou-se fantástico. primeiros versos do poema, quando o eu-lírico afirma que o
As flores são placas cinzentas. retrato de família, objeto de sua atenção, “está um tanto
E a areia, sob pés extintos, empoeirado”. É importante ainda observar que o eu lírico
é um oceano de névoa. tem diante de si uma crônica familiar, ou seja, uma história
No semicírculo das cadeiras que lhe chega pronta do passado, por meio da fotografia, em
nota-se certo movimento. que cada personagem possui uma biografia que independe
As crianças trocam de lugar, de seu olhar. A poeira, aqui, é uma imagem poética
mas sem barulho: é um retrato. plurissignificativa: por um lado, serve de metáfora para tudo
aquilo que caiu no abandono e no desuso, que já não tem
Vinte anos é um grande tempo. mais utilidade no mundo prático e na vida cotidiana; por
Modela qualquer imagem. outro, nos remete à materialidade do retrato, que, em sua
Se uma figura vai murchando, condição de papel, envelhece. Essa dupla abordagem nos
outra, sorrindo, se propõe. fornece a primeira pista de que Drummond está enxergando
Esses estranhos assentados, a memória como algo frágil e instável. A poeira também
meus parentes? Não acredito. pode ser entendida como os resíduos do passado, aquilo que
São visitas se divertindo é apenas o acúmulo de uma matéria amorfa e sem conteúdo.
numa sala que se abre pouco. Nos versos posteriores, o sujeito apresenta outras evidências
da deterioração. É o que se pode ler, por exemplo, nas
Ficaram traços da família imagens das coisas e pessoas que se tornaram cinzentas (“as
perdidos no jeito dos corpos. flores são placas cinzentas”) ou amareladas (“a avó ficou
Bastante para sugerir
lisa, amarela”), ou seja, corroídas pela ação da passagem do
que um corpo é cheio de surpresas.
tempo. Dessa forma, na sexta estrofe, quando o eu lírico
A moldura deste retrato considera a passagem dos anos, está se referindo tanto a
em vão prende suas personagens. ação visível do tempo sobre o material físico que envelhece
Estão ali voluntariamente, o retrato, quanto ao fato de que a passagem do tempo vai
saberiam — se preciso — voar. alterar também a percepção de quem está observando a
fotografia: “Vinte anos é um grande tempo/Modela qualquer
Poderiam sutilizar-se
no claro-escuro do salão, imagem./Se uma figura vai murchando,/outra, sorrindo, se
ir morar no fundo dos móveis propõe.” Nesse sentido, a concepção sobre fotografia que
ou no bolso de velhos coletes. Drummond está explicitando não é aquela encontrada no
senso-comum, de que a fotografia “congela” ou “eterniza”
A casa tem muitas gavetas um momento. A ação do tempo sob a fotografia é capaz de
e papéis, escadas compridas. dar movimento a imagem, seja deteriorando-a (como o
Quem sabe a malícia das coisas, jardim que, em decorrência da poeira acumulada no retrato,
quando a matéria se aborrece? torna-se cinzento), seja através dos olhares que a
O retrato não me responde. interpretam ao longo dos anos e, assim, a ressignificam a
ele me fita e se contempla cada nova leitura. É nessa perspectiva que o olhar do
nos meus olhos empoeirados. espectador, em “Retrato de família”, reveste-se de
E no cristal se multiplicam importância significativa para acionar o dinamismo da
fotografia. É a visão do eu lírico que faz as personagens
os parentes mortos e vivos. retratadas se movimentarem, trocarem de lugar e, até
Já não distingo os que se foram mesmo, se libertarem do “congelamento” imposto pela
dos que restaram. Percebo apenas fotografia: “A moldura deste retrato/em vão prende
a estranha ideia de família
suas/personagens./Estão ali voluntariamente/saberiam — se
viajando através da carne. preciso — voar.

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INFÂNCIA Pois sim. Teu olho cansado,


Mas afeito a ler no campo
Meu pai montava a cavalo, ia para o campo. Uma lonjura de léguas
Minha mãe ficava sentada cosendo. Entrava-nos alma adentro
Meu irmão pequeno dormia. E com pesar nos fitava
Eu sozinho menino entre mangueiras E com ira amaldiçoava
lia a história de Robinson Crusoé, E com doçura perdoava
comprida história que não acaba mais. (Perdoar é rito dos pais,
No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu Quando não seja de amantes)
a ninar nos longes da senzala - e nunca se esqueceu
“.......”
chamava para o café.
Café preto que nem a preta velha Mais adiante vês aquele
café gostoso Que de ti herdou a dura
café bom. Vontade, o duro estoicismo.
Mas, não quis te repetir.
Minha mãe ficava sentada cosendo Achou não valer a pena
olhando para mim: Reproduzir sobre a terra
- Psiu... Não acorde o menino. O que a terra engolirá.
Para o berço onde pousou um mosquito. Amou. E ama. E amará.
E dava um suspiro... que fundo! Só não quer seu amor
seja uma prisão de dois,
Lá longe meu pai campeava Um contrato, entre bocejos
no mato sem fim da fazenda. E quatro pés de chinelo.

E eu não sabia que minha história .....


era mais bonita que a de Robinson Crusoé. Mas estamos todos vivos.
Carlos Drummond de Andrade E mais que vivos, alegres.
Ninguém dirá que ficou faltando
Comentário Algum dos teus. Por exemplo:
Ali ao canto da mesa,
Esse poema apresenta claramente a rotina diária da Ali me vês tu. Que tal?
família de Drummond, cada um com a sua função: o pai Fica tranquilo: trabalho.
campeando, a mãe em casa e o menino em sua solidão, Afinal, a boa vida
lendo um livro. Há a presença também da preta velha, que Ficou apenas: a vida
provavelmente já havia trabalhado como escrava da família (e nem era assim tão boa
e cuidado das crianças e do próprio Drummond. A E nem se fez muito má).
recordação de uma cena da infância é um importante Pois ele sou eu. Repara:
momento de reflexão do eu lírico, que adulto ressignifica o Tenho todos os defeitos
passado, compreendendo, a partir da sua perspectiva do Que não farejei em ti,
E nem os tenho que tinhas,
presente, a beleza nas cenas do seu cotidiano da infância,
Quanto mais as qualidades.
muito mais bonita que a história do náufrago Robinson
Não importa: sou teu filho
Crusoé.
Com ser uma negativa
Maneira de te afirmar.
A MESA
.....
A Mesa (excerto)
Tão ralo prazer te dei,
E não gostavas de festa... Nenhum, talvez...
Ó velho, que festa grande Ou senão, esperança de prazer,
Hoje te faria a gente. É, pode ser que te desse
E teus filhos que não bebem A neutra satisfação
E o que gosta de beber, De alguém sentir que seu filho,
Em torno da mesa larga, De tão inútil, seria
Largavam as tristes dietas, Sequer um sujeito ruim.
Esqueciam seus fricotes, Não sou um sujeito ruim.
E tudo era farra honesta Descansa, se o suspeitavas,
Acabando em confidência. Mas não sou lá essas coisas.
Alguns afetos recortam
O meu coração chateado.
Ai, velho, ouviria coisas
Se me chateio? Demais.
De arrepiar teus noventa.
Esse é meu mal. Não herdei
....... De ti essa balda.
.......

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Comentário OS BENS E O SANGUE

O poema, à primeira leitura, parece ser apenas uma I “Às duas horas da tarde deste nove de agosto de 1847
homenagem do poeta a seu pai, já morto, e que se acaso nesta fazenda do Tanque e em dez outras casas de rei, q
estivesse vivo estaria comemorando seus noventa anos. No não de valete, em Itabira Ferros Guanhães Cocais
entanto, Drummond reúne a todos os familiares vivos e Joanésia Capão diante do estrume em que se movem
mortos nesta mesa, fazendo uma fusão de tempos distintos nossos escravos, e da variação perfumada dos cafezais q
num mesmo espaço. O poema é composto por trezentas e
trança na palma dos coqueiros fiéis servidores de nossa
quarenta redondilhas maiores, ou seja, versos com sete
sílabas poéticas, em uma única estrofe. E o último verso paisagem e de nossos fins primeiros, deliberamos
isolado com uma só palavra “vazia”, para adjetivar a vender, como de fato vendemos, cedendo posse jus e
“mesa”, esse elemento símbolo da família, que, no final, domínio e abrangendo desde os engenhos de secar areia
estava “vazia”. A cena descrita no poema é virtual, uma vez até o ouro mais fino, nossas lavras mto nossas heranças
que seu pai, Carlos de Paula Andrade morreu em 1931, vinte de nossos pais e sogros bem amados q dormem na paz
anos antes de completar os noventa anos aludidos no poema. de Deus entre santas e santos martirizados. Por isso
Nela tudo é ilusório e o poeta transita pelos tempos verbais: neste papel azul Bath escrevemos com a nossa melhor
futuro do pretérito que se alterna com o pretérito imperfeito, letra estes nomes q em qualquer tempo desafiarão
algumas vezes o poeta faz uso do presente realizando um tramoia trapaça e treta:
jogo com o tempo. Drummond brinca com o tempo aludindo
às cenas passadas “gostavas de festa” verbo no pretérito Esmeril Pissarão
imperfeito em seguida a forma verbal no futuro do pretérito, Candonga conceição
que não chega a se realizar “que festa grande te faria a
gente”, ou seja, formas verbais não acabadas. Ao conjugar E tudo damos por vendido ao compadre e nosso amigo
os verbos no presente, consegue trazer a história para o aqui o sr Raimundo Procópio e a d. Maria Narcisa sua
e agora “e teus filhos que não bebem/ e o que gosta de mulher, e o q não for vendido, por alborque de nossa
beber”. O uso de recursos linguísticos como as anáforas e os mão passará, e trocaremos lavras por matas, lavras por
dêiticos, a primeira se refere a pressupostos já de títulos, lavras por mulas, lavras por mulatas e arriatas,
conhecimento do emissor e do seu interlocutor, como no que trocar é nosso fraco e lucrar é nosso forte. Mas
verso “e não gostavas de festa” e o uso da segunda pessoa fique esclarecido: somos levados menos por gosto do
como recurso dêitico, que conduz à presentificação, pois sempre negócio q no sentido de nossa remota
estabelece um diálogo no tempo presente. Nesse ambiente descendência ainda mal debuxada no longe dos serros.
“cordial” tudo que é narrado se desenvolve em torno da De nossa mente lavamos o ouro como de nossa alma um
“mesa”, alegoria do convívio do “homem cordial”. Todos
dia os erros se lavarão na pia da penitência. E filhos
em volta da “mesa”: os mortos e os vivos a comemorar uma
data que não chegou a existir. O poeta usa elementos netos bisnetos tataranetos despojados dos bens mais
anafóricos e dêiticos para transitar entre o passado e sólidos e rutilantes, portanto os mais completos irão
presente. E evoca ao pai e a mãe para participar da “mesa” tomando a pouco e pouco desapego de toda fortuna e
como também a irmã “que já se foi”. Nesse sentido, concentrando seu fervor numa riqueza só, abstrata e
constata-se o poder da lírica de condensar extratos muito uma.
distintos da história e do indivíduo. No poema “A mesa” a
força da autoridade patriarcal é evidenciada sem ser, no Lavra da Paciência
entanto, apresentada de modo explícito. O que revela tal Lavrinha de Cubas
força são os versos dedicados à figura paterna, os quais
expressam uma relação de poder do pai sobre os filhos, Itabiruçu
como um deus enfurecido e onipresente que está em todos
os lugares e tudo pode antever. A figura paterna é aquela II Mais que todos deserdamos
que tudo vê. E toma conta do gado e da alma dos filhos, que deste nosso oblíquo modo
“entrava-nos alma adentro/ via a lama podre” de seus um menino inda não nado
descendentes, e “amaldiçoava” e “perdoava”. Pai que (e melhor não fora nado)
representa o papel de chefe da família patriarcal, fazendeiro, que de nada lhe daremos
o símbolo do “homem cordial”. E a mãe é descrita nos sua parte de nonada
versos como a que tudo fazia parecer mágica, fazia, mas não e que nada, porém nada
aparecia, estava por traz de todas as produções de o há de ter desenganado.
“comidinhas e bebidinhas”. E também exerce o papel da E nossa rica fazenda
mãe que cuida dos filhos “marmanjos cinquentões”. A
já presto se desfazendo
representação da mãe dona-de-casa, a mãe “cordial”, papel
tradicional da família mineira, porque não dizer da vai-se em sal cristalizando
brasileira. E que nunca deixa de dar colo aos filhos, na porta de sua casa
“cosendo” a “alma frouxa e rasgada”, mulher com poder de ou até na ponta da asa
reestabelecer a paz na alma destroçada dos filhos. Mas um de seu nariz fino e frágil,
poder invisível, silencioso, mas que permanece presente de sua alma fina e frágil,
mesmo estando morta. A ela também, ele, o poeta, dedica no de sua certeza frágil
final do poema os versos: “Quem preparou? que inconteste frágil frágil frágil frágil
vocação de sacrifício pôs a mesa, teve os filhos? quem se mas que por frágil é ágil,
apagou? quem pagou a pena deste trabalho? (...) quem senta e na sua mala-sorte
do lado esquerdo, assim curvada? Que branca, mas que se rirá êle da morte.
branca mais que branca (...) quem é toda luz e é branca?’

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III Este figura em nosso VI Os urubus no telhado:


pensamento secreto. E virá a companhia inglesa e por sua vez comprará tudo
Num magoado alvoroço e por sua vez perderá tudo e tudo volverá a nada
o queremos marcado e secado o ouro escorrerá ferro, e secos morros de ferro
a nos negar; depois taparão o vale sinistro onde não mais haverá privilégios,
de sua negação e se irão os últimos escravos, e virão os primeiros
nos buscará. Em tudo camaradas;
será pelo contrário e a besta Belisa renderá os arrogantes corcéis da
seu fado extra-ordinário. monarquia,
Vergonha da família e a vaca Belisa dará leite no curral vazio para o menino
que de nobre se humilha doentio,
na sua malincônica e o menino crescerá sombrio, e os antepassados no
tristura meio cômica, cemitério
dulciamara nux-vomica. se rirão se rirão porque os mortos não choram.

IV Este hemos por bem VII Ó monstros lajos e andridos que me perseguis com
reduzir à simples vossas barganhas
condição ninguém. sobre meu berço imaturo e de minhas minas me
Não lavrará campo. expulsais.
Tirará sustento Os parentes que eu amo expiraram solteiros.
de algum mel nojento. Os parentes que eu tenho não circulam em mim.
Há de ser violento Meu sangue é dos que não negociaram, minha alma é
sem ter movimento. dos pretos,
Sofrerá tormenta minha carne dos palhaços, minha fome das nuvens,
no melhor momento. e não tenho outro amor a não ser o dos doidos.
Não se sujeitando Onde estás, capitão, onde estás, João Francisco,
a um poder celeste do alto de tua serra eu te sinto sozinho
ei-lo senão quando e sem filhos e netos interrompes a linha
de nudez se veste, que veio dar a mim neste chão esgotado.
roga à escuridão Salva-me, capitão, de um passado voraz.
abrir-se em clarão. Livra-me, capitão, da conjura dos mortos.
Este será tonto Inclui-me entre os que não são, sendo filhos de ti.
e amará no vinho E no fundo da mina, ó capitão, me esconde.
um novo equilíbrio
e seu passo tíbio VIII — Ó meu, ó nosso filho de cem anos depois,
sairá na cola que não sabes viver nem conheces os bois
de nenhum caminho. pelos seus nomes tradicionais… nem suas cores
marcadas em padrões eternos desde o Egito.
V — Não judie com o menino Ó filho pobre, e descorçoado, e finito,
compadre. ó inapto para as cavalhadas e os trabalhos brutais
— Não torça tanto o pepino, com a faca, o formão, o couro… Ó tal como quiséramos
major. para tristeza nossa e consumação das eras,
— Assim vai crescer mofino, para o fim de tudo que foi grande!
sinhô! Ó desejado,
— Pedimos pelo menino porque pedir é nosso destino. ó poeta de uma poesia que se furta e se expande
Pedimos pelo menino porque vamos acalentá-lo. à maneira de um lado de pez e resíduos letais…
Pedimos pelo menino porque já se ouve planger o sino És nosso fim natural e somos teu adubo,
do tombo que êle levar quando monte a cavalo. tua explicação e tua mais singela virtude. . .
— Vai cair do cavalo Pois carecia que um de nós nos recusasse
de cabeça no valo. para melhor servir-nos. Face a face
Vai ter catapora te contemplamos, e é teu esse primeiro
amarelão e gálico e úmido beijo em nossa boca de barro e de sarro”.
vai errar o caminho
vai quebrar o pescoço Comentário
vai deitar-se no espinho
fazer tanta besteira O longo poema “Os bens e o sangue”, que Carlos
e dar tanto desgosto Drummond de Andrade publica em Claro Enigma (1951),
que nem a vida inteira pode ser lido como a formalização literária de um contrato
dava para contar.
fundador da nação brasileira moderna. Nele encontram-se as
E vai muito chorar.
(A praga que te rogo ideias da “praga” e do “sarro”, coisas insuperáveis, que
para teu bem será.) representam resquícios do mundo patriarcal que não se acha
superado na modernidade. O poema trata da história dos

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antepassados e da deterioração do tempo; dos bens e de 4ª parte – “Cantar de amigos” – Esse bloco de poemas
Minas. Poesia e praga em “Os bens e o sangue” o poeta dá trata das amizades do poeta Drummond no plano real,
voz a seus antepassados que anteveem o futuro do “menino” intelectual e poético.
inapto aos costumes mineiros e predizem a dissolução dos
ODE NO CINQUENTENÁRIO DO POETA
bens e do destino de seu descendente, ambos, BRASILEIRO
irremediavelmente, votados à perda. Este poema tem oito
estrofes, a primeira tem a forma de um documento/contrato, Esse incessante morrer
em que são vendidas as lavras, as terras, os bens. Lavra, que nos teus versos encontro
palavra derivada de “lavrar”, significa lugar onde se extrai é tua vida, poeta,
ouro e diamante. Lavrar do latim laborare, ‘trabalhar’,1. e por ele te comunicas
sulcar a terra.2. desenhar em bordados. 3.explorar minas. com o mundo em que te esvais.
4.exarar por escrito, redigir. 5. gastar, desgastar, corroer.
Esta multiplicidade semântica do verbo “lavrar”, que além Debruço-me em teus poemas
de ter o sentido explorar mina, tem tantos outros e nelo percebo as ilhas
significados, como “desgastar”, e “corroer” que indicam a em que nem tu nem nós habitamos
corrosão do tempo e da própria paisagem da região devido à (ou jamais habitaremos!)
escavação das minas. “Lavrar” tem ainda o sentido de e nessas ilhas me banho
redigir, escrever. Esse último significado está sugerido pela
num sol que não é dos trópicos,
forma do poema que é como se fosse um contrato de compra
numa água que não é das fontes
e venda, um documento lavrado em cartório. Assim, o termo
mas que ambos refletem a imagem
“lavra” adquire todas essas nuances e reforçam a ideia do
de um mundo
desgaste do tempo, da história e de certa maneira resume a
anáfora do termo “lavras por matas, lavras por títulos, lavras amoroso e patético.
por mulas, lavras por mulatas e arriatas” intensifica a ideia Tua violenta ternura,
da desvalorização das minas e, que se não vendidas tua infinita polícia,
permutavam-se por qualquer coisa sejam “mulas” ou tua trágica existência
“mulatas”. A repetição da rima “atas” nos remete no entanto sem nenhum sulco
novamente à ideia de documento histórico, uma vez que a exterior – salvo tuas rugas,
ata é um registro escrito no qual se relata o que se passou tua gravidade simples,
numa sessão, convenção, congresso. A afirmação “trocar é o a acidez e o carinho simples
nosso fraco e lucrar esse é o nosso forte” deixa transparecer que desbordam em teus retratos,
um gesto impetuoso dos antepassados ao se desfazerem das
que capturo em teus poemas,
posses, sem pensar na consequente derrocada dos bens da
são razões por que te amamos
família e do futuro de seus descendentes “Mais que todos
e por que nos fazes sofrer…
deserdamos/ deste modo oblíquo modo/ um menino ainda
não dado”. Os versos soam como um vaticínio do qual não Certamente não sabias
se pode fugir. E no final da estrofe a praga é de certa que nos fazes sofrer.
maneira atenuada, pois no futuro fará bem ao “menino” ter
[...]
passado por todos esses percalços. Fica então configurada a
rogação da praga, como castigo bem dado ao “menino Comentário
doentio” que “não lavrará campo” e “Tirará sustento de
algum mel nojento”, e de fato o “menino” “vai muito O Poema “Ode no cinquentenário do poeta brasileiro”
chorar”. Na sexta estrofe, a história é contada com a pode ser entendido como uma homenagem do poeta
tendência para a queda, o declínio, a decadência, o fim. Drummond ao poeta Manuel Bandeira, que na época
Destacamos o primeiro verso “Os urubus no telhado” que se completava 50 anos. No decorrer do poema, Drummond
enfatiza muitos aspectos das obras e de personalidade do
configuram como um presságio da morte a espreitarem a
poeta Bandeira. O termo “Ode” remete a um canto a algo
carniça, que seria a sobra da história do lugar, e também a
sublime, superior, grandioso. Bandeira, como é de
matéria de que é feita a poesia. O poema “estabelece a
conhecimento de muitos, viveu sua vida perseguido pelo
ligação entre o passado da família e o presente do indivíduo, medo e pela dúvida, pela tuberculose e pela promessa de
através da forma altamente significativa de um testamento”. uma morte constante. Bandeira, na perspectiva de
Assim sendo, ele não só determina o modo como o sujeito Drummond, era a prova viva da resistência da vida sobre a
lírico concebe as relações familiares, mas também morte; e era inevitável que ele se comunicasse com o mundo
ressignifica traços poéticos importantes de Drummond. por meio dessa visão preciosa. Na primeira estrofe,
Drummond dirige-se diretamente a Bandeira, destacando a

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temática da morte, aspecto recorrente na poesia do intensa. A evocação de Manuel Bandeira e de seus poemas
homenageado “Esse incessante morrer/que nos teus versos destaca, em grande parte, a beleza e o lirismo do cotidiano, a
encontro/é tua vida, poeta,/e por ele te comunicas/com o capacidade insistente de amar, a fraternidade entre os
mundo em que te esvais). Segundo Drummond, Bandeira homens. Essas características, que legam Bandeira a um
cria “ilhas” utópicas nas quais o enunciador se debruça lugar de destaque na literatura nacional, aparecem no poema
como poeta. Estas ideias utópicas ocultas nos poemas de como contraponto ao contexto pessimista no qual o livro se
Bandeira de alguma maneira preenchem Drummond e o refere.
fazem refletir sobre um mundo ‘amoroso e patético’, ou
seja, sem violência e com capacidade de provocar alguma VIAGEM DE AMERICO FACÓ
comoção emocional, produzir um sentimento de piedade,
nos seres que o habitam (Debruço-me em teus poemas/e Sombra mantuana, o poeta se encaminha
neles percebo as ilhas/em que nem tu nem nós ao inframundo deserto, onde a corola
habitamos/(ou jamais habitaremos!)/e nessas ilhas me noturna desenrola seu mistério
banho/num sol que não é dos trópicos,/numa água que não é fatal mas transcedente: àqueles paços
das fontes/mas que ambos refletem a imagem/de um mundo
amoroso e patético.). tecidos de pavor e argila cândida,
Drummond lista também uma série de características onde o amor se completa, despojado
em relação à obra poética Bandeira: da cinza dos contatos. Desta margem,
diviso, que se esfuma, a esquiva barca,
(1) Tua violenta ternura,
(2) tua infinita polícia, e aceno-lhe: Gentil, gentil espírito,
(3) tua trágica existência sereno quanto forte, que me ensinas
a arte de bem morrer, fonte de vida,
no entanto sem nenhum sulco
exterior – salvo tuas rugas, uniste o raro ao raro, e compuseste
(4) tua gravidade simples, de humano desacorde, isento, puro,
(5) a acidez e o carinho simples teu cântico sensual, flauta e celeste.

Enfatiza (1) seu modo violento de tratar coisas tenras Comentário


(ou o modo tenro de tratar coisas violentas), (2) o seu
constante policiamento para com o mundo: suas dúvidas, Américo Facó era um poeta e jornalista cearense que
inquietações, revoltas, (3) sua trágica existência (a de viver atuou no Rio de Janeiro. Fundou e escreveu em vários
morto, viver marcado pela morte) que é a essência de suas periódicos. Cultivou uma poesia lírica, surrealista,
lindas obras, (4) sua gravidade simples (no sentido de ser parnasiana e modernista. Foi amigo pessoal de Carlos
sério, intenso, doloroso...), ou seja, o modo calmo como ele Drummond de Andrade. Em ocasião da publicação do livro
contava assuntos profundos, penosos… (5) o seu modo Poesia perdida, de Facó, o poeta de Itabira publicou em
ácido, ríspido, apesar de carinhoso. Drummond deixa claro
crônica os seguintes dizeres: “com seu livro belíssimo,
sua paixão por Bandeira: ‘são razões por que te amamos e
Américo Facó se incorpora à linhagem dos mais altos poetas
por que nos fazes sofrer…’. É nesse mesmo verso que se
portugueses e brasileiros”. Américo Facó teria lido os
encontra uma das mais incríveis colocações de Drummond:
manuscritos de Claro enigma e partilhado com o amigo suas
o amor por Bandeira e suas poesias é tão pleno que há
sofrimento, muito sofrimento e dor. Ainda assim, opiniões e sugestões acerca dessa obra. O poema “Viagem
Drummond deixa claro que isso não é ruim: o amor por algo de Américo Facó” é uma homenagem que Drummond faz
é mais completo quando vemos as múltiplas faces do outro, ao amigo pessoal e intelectual a quem confiou a análise da
quando é dialético. obra “Claro enigma”. No poema, a metáfora da viagem está
Manuel Bandeira é como um ‘misterioso portador’ da sugerida na barca que conduz Américo ao “inframundo”
poesia, com a capacidade sublime de trazer auroras, levar- (submundo entre a vida e a morte), evocando a
nos a mundos exuberantes e situações utópicas, impossíveis, intertextualidade com o mito de Caronte. Assim, surge a
mesmo quando na vida parece só haver morte, ou quando no ideia de travessia, de viagem realizada pelos homens. Há
mundo parece que a poesia se foi. Ele é tenro, também a exaltação do poeta cearense como aquele que
simultaneamente corroendo os corações por trás desta uniu” o raro ao raro”. Outro ponto importante diz respeito
aparência confortante, mas dialeticamente, surpreende com ao eu lírico, que se encontra à margem do rio – travessia
delicadezas vindas de coisas que realmente deveriam entre vida e morte – imagina a outra margem, onde se
corroer o coração. Afinal, Bandeira é poeta, e apenas encontra o poeta amigo. Facó lhe ensina a arte de bem
Drummond, por meio de seus olhos de poeta, poderia ver morrer, fonte de vida. Apenas rápida menção é feita à barca
que Bandeira nos confia uma mensagem, através de suas que faz a travessia. A surpresa se deve às poucas vezes em
poesias: e por isso sofremos. Sofremos porque sabemos que que Drummond aborda o tema da vida após a morte.
a mensagem não é simples, fácil: é dura, complicada,

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5ª parte – “Na praça dos convites” – No bloco de poemas Comentário


que constituem essa parte, observa-se a busca, nos
caminhos herméticos da linguagem, um sentido para a “Sentimento do mundo” é o primeiro poema do livro
atividade poética no mundo contemporâneo ao poeta. Os de título homônimo. Escrito nos anos de 1935 a 1940, fase
poemas desse bloco revelam uma consciência de em que o mundo se recuperava da Primeira Guerra Mundial
Drummond sobre as questões sociais e políticas, e em que já se encontrava iminente a Segunda Grande
reconhecendo a sua limitação, mas carregando em si o Guerra, com a imposição do Estado Novo de Getúlio Vargas
sentimento do mundo. e o crescimento do Nazi-fascismo, percebe-se em
Drummond a luta, a contestação, pela palavra, contra as
SENTIMENTO DO MUNDO atrocidades que o mundo parecia aceitar. Drummond
lançou-se ao encontro da história contemporânea e da
experiência coletiva, participando, solidarizando-se social e
Tenho apenas duas mãos
politicamente, descobrindo na luta a explicitação de sua
e o sentimento do mundo, mais íntima apreensão para com a vida como um todo.
mas estou cheio escravos, Na primeira estrofe, poeta expõe suas limitações para ver o
minhas lembranças escorrem mundo: “Tenho apenas duas mãos”, mas aponta, em
e o corpo transige seguida, alguns elementos auxiliares que o ajudarão a suprir
suas deficiências de visão: escravos, lembranças e o mistério
na confluência do amor. do amor (versos 3 a 5); escravos podem ser os meios
escusos de que nos utilizamos para tocar a vida e decifrá-la
Quando me levantar, o céu e dela nos aproveitarmos. O pessimismo denuncia-se com as
estará morto e saqueado, mortes do céu e do próprio poeta, na estrofe 2. Apesar da
eu mesmo estarei morto, ajuda incompleta dos companheiros de vida (“Camaradas”),
morto meu desejo, morto o poeta não consegue decifrar os códigos existenciais e
pede, humilde, desculpas. Nas duas últimas estrofes,
o pântano sem acordes. Drummond pinta uma visão de futuro bem negativo, mas
bem real: mortos, lembranças, tipos de pessoas que sumiram
Os camaradas não disseram nas batalhas da vida (“guerra”, na estrofe 3). Conclui, na
que havia uma guerra estrofe 5, que o futuro (“amanhecer”) é bem negro,
e era necessário tenebroso. Feita só de dois versos, sintetiza seu sentimento
trazer fogo e alimento. do mundo.
Sinto-me disperso, ELEGIA 1938
anterior a fronteiras,
humildemente vos peço Trabalhas sem alegria para um mundo caduco,
que me perdoeis. onde as formas e as ações não encerram nenhum
exemplo.
Quando os corpos passarem, Praticas laboriosamente os gestos universais,
sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo
eu ficarei sozinho sexual.
desfiando a recordação
do sineiro, da viúva e do microcopista Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas,
que habitavam a barraca e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-frio,
a concepção.
e não foram encontrados
À noite, se neblina, abrem guardas chuvas de bronze
ao amanhecer ou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas.

esse amanhecer Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra


mais noite que a noite. e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam
de morrer.
Mas o terrível despertar prova a existência da
Grande Máquina
e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis
palmeiras.
Caminhas entre mortos e com eles conversas
sobre coisas do tempo futuro e negócios do espírito.
A literatura estragou tuas melhores horas de amor.
Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo
de semear.

Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota


e adiar para outro século a felicidade coletiva.
Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego
e a injusta distribuição
porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.

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Comentário MÃOS DADAS


Diante da decadência de uma sociedade que perde Não serei o poeta de um mundo caduco.
gradualmente seus referenciais, o poeta critica a Também não cantarei o mundo futuro.
mecanização do homem e a falta de sentido da vida. Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Os temas políticos, o sofrimento do ser humano e as guerras, Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
a solidão, o mundo frágil, os seres solitários e impotentes Entre eles, considero a enorme realidade.
ante o sistema são uma das facetas da poesia
drummondiana. Num mundo em que se prezam os conflitos O presente é tão grande, não nos afastemos.
(sobretudo com os quais não se aprende, mas se destrói), a Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
automatização do homem, o cinismo, a indiferença, a
hipocrisia, cabe ao poeta, lírico e angustiadamente (dada a Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
sua impotência), cantar este mundo tal como ele é, visto que não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem
não pode, sozinho, modificá-lo — é o que se percebe no vista da janela,
poema “Elegia 1938”, de Carlos Drummond de Andrade. não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
Importante destacar que “Elegia”, termo presente no título, não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
se refere a um poema lírico de tom terno e triste; canção de O tempo é a minha matéria, do tempo presente,
lamento — conceitos que se encaixam plenamente com o os homens presentes,
tom e a temática do poema de Drummond. a vida presente.
As descrições oferecidas do sujeito lírico constroem a
imagem do homem do mundo, cujas ocupações maiores se Comentário
resumem às questões do trabalho e relações sociais, tão
banalizadas e uniformes entre as pessoas, e talvez por isso O poema Mãos Dadas, de Carlos Drummond de
mesmo desprovidas na essência de significado e exemplo; Andrade, foi publicado no livro Sentimento do Mundo
assim parece que este sujeito não encontra satisfação nas (1940). Retratado no contexto histórico de uma civilização
ações que executa com tanto labor, e tampouco enxerga desleal e cada vez mais destruída pela busca do poder
razão num mundo que nomeia como ‘caduco’: “Trabalhas político e econômico das duas grandes guerras (1914-1918;
sem alegria para um mundo caduco,/Onde as formas e ações 1939-1945), a obra é um alicerce para entendimento e a
não encerram nenhum exemplo./Praticas laboriosamente os crítica do sofrimento e desigualdade no mundo. No poema,
gestos universais.” há a descrição do compromisso do poeta com sua sociedade
A inadaptação do sujeito torna-se visível em várias e com o próximo; há nele o reconhecimento no outro e a
passagens da poesia, e em especial por meio da exposição participação na causa política e social. No primeiro verso:
da sociedade que lhe rodeia, e suas diferenças em relação a “Não serei o poeta de um mundo caduco./”, o poeta afirma
esta. O quadro que desenha essa sociedade expõe bastante que não se prenderá ao passado nem ao futuro: “Também
de seus preceitos e problemas, além da posição divergente não cantarei o futuro./”, mas sua preocupação é com o ser
do sujeito lírico diante de seus contemporâneos, os quais são humano, com o semelhante: “Estou preso à vida e olho
alcunhados como ‘heróis’ numa provável demonstração da meus companheiros./”, que apesar de calados e insatisfeitos
ironia do autor. Fica evidente no poema o sentimento do mostram-se esperançosos por dias melhores: “Estão
desencaixe e pequenez de Drummond diante desse contexto taciturnos mas nutrem grandes esperanças./”. O poeta afirma
de injustiças e tragédias. É indiscutível o derrotismo e que a dura realidade pode ser vista entre os insatisfeitos:
ceticismo que envolvem a última estrofe da poesia, na qual “Entre eles, considero a enorme realidade./”, finalizando a
há um total reconhecimento da incapacidade desse individuo estrofe propondo a união dos descontentes contra aquela
em relacionar-se e alterar a ordem da grande máquina em realidade: “O presente é tão grande, não nos afastemos./
que vive, uma ‘máquina do mundo’ certamente Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.” Uma
movimentada pela ordem capitalista a julgar pela referência possível interpretação para esses descontentes é que eles
a um dos centros comerciais apontada por meio da ‘Ilha de representariam a classe operária da época, uma classe de
Manhattan’. Em virtude de tudo isso, basta (infelizmente) trabalhadores contrariada com as más condições de trabalho.
conformar-se, adiar para outro século a felicidade coletiva, Na segunda estrofe do poema “Mãos dadas”, o poeta declara
aceitar (a chuva, contra a qual nada se pode fazer), a guerra, que não se limitará a falar de coisas que não estejam
o desemprego e a injusta distribuição (contra as quais muito vinculadas a sua realidade social, pois ele sente necessidade
se poderia (e pode) fazer, mas se…), pois não é possível, de priorizar os fatos reais da sociedade: “Não serei o cantor
sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan (símbolo, no de uma mulher, de uma história,/não direi os suspiros ao
passado, e mesmo agora, do sistema capitalista, o qual é o anoitecer, a paisagem vista da janela,/”. Nesses versos, o
corresponsável por tudo (ou nada). Resta, portanto, a revolta poeta afirma que não exaltará aspectos melódicos que
contida, a incapacidade — a frustração. contemplem a figura da mulher, nem falará de temáticas
relacionadas à natureza. Nesses versos, há uma posição
contrária do poeta ao lirismo derramado e afetado dos
românticos. Nas estrofes seguintes, o poeta discursa sobre o
que ele não incitará em suas poesias: “não distribuirei
entorpecentes ou cartas de suicida,/ não fugirei para as ilhas
nem serei raptado por serafins./”, finalizando o poema com
a afirmação do que é constituída a sua poesia, do material
poético contemplado: a realidade social e o ser humano que
padecia naqueles anos de tormento e dificuldades: “O tempo
é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,/
a vida presente.”

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NOSSO TEMPO como o do enterro que não foi feito, do corpo esquecido na
mesa,
I conduz à copa de frutas ácidas,
Esse é tempo de partido, ao claro jardim central, à água
tempo de homens partidos. que goteja e segreda
Em vão percorremos volumes, o incesto, a bênção, a partida,
viajamos e nos colorimos. conduz às celas fechadas, que contêm:
A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua. papéis?
Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos. crimes?
As leis não bastam. Os lírios não nascem moedas?
da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se Ó conta, velha preta, ó jornalista, poeta, pequeno historiados
na pedra. urbano,
Visito os fatos, não te encontro. ó surdo-mudo, depositário de meus desfalecimentos, abre-te
Onde te ocultas, precária síntese, e conta,
penhor de meu sono, luz moça presa na memória, velho aleijado, baratas dos
dormindo acesa na varanda? arquivos, portas rangentes, solidão e asco,
Miúdas certezas de empréstimos, nenhum beijo pessoas e coisas enigmáticas, contai;
sobe ao ombro para contar-me capa de poeira dos pianos desmantelados, contai;
a cidade dos homens completos. velhos selos do imperador, aparelhos de porcelana partidos,
Calo-me, espero, decifro. contai;
As coisas talvez melhorem. ossos na rua, fragmentos de jornal, colchetes no chão da
São tão fortes as coisas! costureira, luto no braço, pombas, cães errantes, animais
Mas eu não sou as coisas e me revolto. caçados, contai.
Tenho palavras em mim buscando canal, Tudo tão difícil depois que vos calastes...
são roucas e duras, E muitos de vós nunca se abriram.
irritadas, enérgicas,
comprimidas há tanto tempo, IV
perderam o sentido, apenas querem explodir. É tempo de meio silêncio,
de boca gelada e murmúrio,
II palavra indireta, aviso
Esse é tempo de divisas, na esquina. Tempo de cinco sentidos
tempo de gente cortada. num só. O espião janta conosco.
De mãos viajando sem braços, É tempo de cortinas pardas,
obscenos gestos avulsos. de céu neutro, política
Mudou-se a rua da infância. na maçã, no santo, no gozo,
E o vestido vermelho amor e desamor, cólera
vermelho branda, gim com água tônica,
cobre a nudez do amor, olhos pintados,
ao relento, no vale. dentes de vidro,
Símbolos obscuros se multiplicam. grotesca língua torcida.
Guerra, verdade, flores? A isso chamamos: balanço.
Dos laboratórios platônicos mobilizados No beco,
vem um sopro que cresta as faces apenas um muro,
e dissipa, na praia, as palavras. sobre ele a polícia.
A escuridão estende-se mas não elimina No céu da propaganda
o sucedâneo da estrela nas mãos. aves anunciam
Certas partes de nós como brilham! São unhas, a glória.
anéis, pérolas, cigarros, lanternas, No quarto,
são partes mais íntimas, irrisão e três colarinhos sujos.
e pulsação, o ofego,
e o ar da noite é o estritamente necessário V
para continuar, e continuamos. Escuta a hora formidável do almoço
na cidade. Os escritórios, num passe, esvaziam-se.
III As bocas sugam um rio de carne, legumes e tortas
E continuamos. É tempo de muletas. vitaminosas.
Tempo de mortos faladores Salta depressa do mar a bandeja de peixes argênteos!
e velhas paralíticas, nostálgicas de bailado, Os subterrâneos da fome choram caldo de sopa,
mas ainda é tempo de viver e contar. olhos líquidos de cão através do vidro devoram teu osso.
Certas histórias não se perderam. Come, braço mecânico, alimenta-te, mão de papel, é tempo
Conheço bem esta casa, de comida,
pela direita entra-se, pela esquerda sobe-se, mais tarde será o de amor.
a sala grande conduz a quartos terríveis,

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Lentamente os escritórios se recuperam, e os negócios, lesões que nenhum governo autoriza,


forma indecisa, evoluem. não obstante doem,
O esplêndido negócio insinua-se no tráfego. melancolias insubornáveis,
Multidões que o cruzam não veem. É sem cor e sem cheiro. ira, reprovação, desgosto
Está dissimulado no bonde, por trás da brisa do sul, desse chapéu velho, da rua lodosa, do Estado.
vem na areia, no telefone, na batalha de aviões, Há o pranto no teatro,
toma conta de tua alma e dela extrai uma porcentagem. no palco? no público? nas poltronas?
Escuta a hora espandongada da volta. há sobretudo o pranto no teatro,
Homem depois de homem, mulher, criança, homem, já tarde, já confuso,
roupa, cigarro, chapéu, roupa, roupa, roupa, ele embacia as luzes, se engolfa no linóleo,
homem, homem, mulher, homem, mulher, roupa, homem, vai minar nos armazéns, nos becos coloniais onde passeiam
imaginam esperar qualquer coisa, ratos noturnos,
e se quedam mudos, escoam-se passo a passo, sentam-se, vai molhar, na roça madura, o milho ondulante,
últimos servos do negócio, imaginam voltar para casa, e secar ao sol, em poça amarga.
já noite, entre muros apagados, numa suposta cidade, E dentro do pranto minha face trocista,
imaginam. meu olho que ri e despreza,
Escuta a pequena hora noturna de compensação, leituras, minha repugnância total por vosso lirismo deteriorado,
apelo ao cassino, passeio na praia, que polui a essência mesma dos diamantes.
o corpo ao lado do corpo, afinal distendido,
com as calças despido o incômodo pensamento de escravo, VIII
escuta o corpo ranger, enlaçar, refluir, O poeta
errar em objetos remotos e, sob eles soterrados sem dor, declina de toda responsabilidade
confiar-se ao que bem me importa na marcha do mundo capitalista
do sono. e com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas
Escuta o horrível emprego do dia prometa ajudar
em todos os países de fala humana, a destruí-lo
a falsificação das palavras pingando nos jornais, como uma pedreira, uma floresta
o mundo irreal dos cartórios onde a propriedade é um bolo um verme.
com flores,
os bancos triturando suavemente o pescoço do açúcar, Comentário
a constelação das formigas e usurários,
a má poesia, o mau romance, Entre todos os poemas de “A Rosa do Povo” (1945),
os frágeis que se entregam à proteção do basilisco, “Nosso Tempo” é considerado o mais enfático na análise
o homem feio, de mortal feiúra, crítica da sociedade da década de 40, uma vez que retrata a
passeando de bote visão social do eu lírico sobre o “tempo do homem partido”,
num sinistro crepúsculo de sábado. que, ao longo dos versos do poema, é caracterizado pela
descrição da massacrante rotina capitalista. Dividido em oito
VI partes, que formam uma espécie de corrente, o poema é um
Nos porões da família grande mosaico da vida cotidiana da época em que foi
orquídeas e opções composto. Ele retrata a dilaceração dos “homens partidos”
de compra e desquite. por conflitos no Brasil e no mundo, uma vez que foi escrito
A gravidez elétrica entre os anos do Estado Novo e a Segunda Guerra Mundial.
já não traz delíquios. Nessa perspectiva, a partir de uma leitura minuciosa dos
Crianças alérgicas elementos constituintes do poema, é possível perceber que o
trocam-se; reformam-se. momento histórico que o poeta reproduz representa a
Há uma implacável fragmentação e a alienação do homem pelo mundo
guerra às baratas. capitalista que cada vez mais se firmava historicamente e
Contam-se histórias socialmente, visto que era tempo de fome, de dor, de
por correspondência. destruição, de multidões. Nessa sequência, o poema também
A mesa reúne retrata o tempo de homens fragmentados, massacrados e
um copo, uma faca, maquinizados que vão e vêm pelas ruas asfaltadas, mas não
e a cama devora se cruzam, não se veem e não se enxergam, porque estavam
tua solidão. completamente mergulhados em suas vidas solitárias,
Salva-se a honra rotineiras, “modernas”, escravizados por seus empregos
e a herança do gado. “progressistas”. Nesse sentido, em decorrência desse quadro
caótico da sociedade dos anos de 1940, na qual os homens
VII eram vítimas dos horrores da guerra, explorados por um
Ou não se salva, e é o mesmo. Há soluções, há bálsamos modelo econômico cruel e oprimidos por uma política
para cada hora e dor. Há fortes bálsamos, ditatorial, o poeta vale-se da poesia para denunciar todos
dores de classe, de sangrenta fúria esses fatores que destruíram a consciência humana e
e plácido rosto. E há mínimos transformaram os homens em almas penadas que vagam,
bálsamos, recalcadas dores ignóbeis, pelo mundo, cansadas, exaustas e destruídas.

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6ª parte – “Amar-amaro” – O conhecimento amoroso, o Que pode, pergunto, o ser amoroso,


amor altruísta. Isento de sentimentalismo ou derramamento sozinho, em rotação universal, senão
lírico romântico, Drummond, ademais de revelar que as rodar também, e amar?
relações são formas de conhecimento do outro, destaca a amar o que o mar traz à praia,
áspera experiência amorosa. o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?
QUADRILHA
Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
João amava Teresa que amava Raimundo
e amar o inóspito, o áspero,
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili um vaso sem flor, um chão de ferro,
que não amava ninguém. e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento, rapina.
Este o nosso destino: amor sem conta,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para a tia,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes doação ilimitada a uma completa ingratidão,
que não tinha entrado na história. e na concha vazia do amor à procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.
Comentário
Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa,
O poema trata do desencontro amoroso. Apresenta-se amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.
como poema-piada, em versos livres, tipicamente
modernista e drummondiano: carregado de antilirismo, de Comentário
ironia seca e amarga, sobre os desconcertos do amor, sobre a
O sentimento, sempre presente, não surge como uma
cadeia de desencontros e a permanente falta de
solução para as dores da vida. O amor se apresenta em
correspondência das relações amorosas, mas com humor,
“concha vazia”, incapaz de saciar a carência do eu lírico,
que se acentua na figura de Lili, a que não amava e que se
que procura “mais e mais amor”. Essa é uma busca
casa… Como se o casamento nada tivesse a ver com as condenada ao fracasso, porque já nasce definida pela
histórias de amor. O registro linguístico é coloquial, ausência, pela falta, pelo vazio. No poema, o aspecto
aproximando-se da narração, da prosa. Possui uma antitético do amor não se faz presente, concebendo este
elasticidade no ritmo e o esquema métrico é irregular. sentimento ao recorrente dualismo: “construção-destruição”.
O poema tem uma única estrofe e é uma radiografia da “ganho-perda”, “instante-eternidade”. Para representar esta
hipocrisia mundana. O tom é brincalhão. O poema apresenta antítese, o eu-lírico utiliza-se de imagens marinhas.
uma serialização de desencontros amorosos, através de Neste sentido o mar, no dicionário de símbolos representa a
associações ligadas aos nomes próprios. No texto aparecem dinâmica da vida. Tudo sai do mar e retorna a ele: é o lugar
três pares hipoteticamente vinculados entre si devido à dos nascimentos, das transformações. Outros símbolos
negação reversa do não amor de um dos casais da sequência manifestos na poesia como as palavras “concha” e “deserto”
de personagens envolvidos na trama. O único par verdadeiro também comportam essa ambivalência. O primeiro
é Lili e J. Pinto Fernandez e com este desfecho resta-nos a “evocando as águas onde se forma, participa do simbolismo
conclusão de que o Amor não imperou, não se concretiza da fecundidade própria da água. Sua forma e sua
profundidade lembram o órgão sexual feminino...”, mas a
em nenhuma relação apesar da presença teimosa do verbo
“concha está ligada também à ideia de morte pelo fato de ser
amava nos três primeiros versos do poema.
a prosperidade que ela simboliza, para uma pessoa ou para
uma geração, o resultado da morte do ocupante primitivo da
AMAR
concha, ou da morte da geração precedente.” A palavra sal
também apresenta um fio semântico muito expressivo no
Que pode uma criatura senão, poema. Neste caso, sal é antítese do amor representando
entre criaturas, amar? amargura, mas também é o tempero deste. (dialética). Este
amar e esquecer, conflito que perpassa a poesia, acaba se traduzindo entre o
amar e malamar, “efêmero e o eterno”, “transitório e definitivo”, tendo em
vista que a continuidade que se requer do amor enquanto
amar, desamar, amar?
sinônimo de vida, o coloca no mesmo nível que o tempo:
sempre, e até de olhos vidrados, amar? destruidor.

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AMAR-AMARO semelhança dos sentimentos a língua é frágil. A dor do ato


de amar, a sua face amarga e o alto preço do amor estão
porque amou por que amou postos na fragilidade das formas, na inconsistência e
se sabia fugacidade dos objetos e na inconstância da própria
proibido passear sentimentos existência humana. Tudo isto nos conduz a experiências
ternos ou desesperados inusitadas com as palavras e, como decorrência de tais
nesse museu do pardo indiferente contatos, teremos ampliado a nossa visão em relação ao
me diga: mas por que objeto central do poema: o amor na sua configuração
amar sofrer talvez como se morre máxima. “AMAR-AMARO” foge à regra do tradicional
de varíola voluntária vágula evidente? poema de amor pela manipulação da linguagem como forma
de poder, capaz de nos guiar pelos intrincados labirintos
ah PORQUE AMOU deste sentimento.
e se queimou
todo por dentro por fora nos cantos ecos INSTANTE
lúgubres de você mesm(o, a)
irm(ã, o) retrato espetáculo por que amou? Uma semente engravidava a tarde.
Era o dia nascendo, em vez da noite.
se era para Perdia amor seu hálito covarde,
ou era por e a vida, corcel rubro, dava um coice,
como se entretanto todavia
toda via mas toda vida mas tão delicioso, que a ferida
é indignação do achado e aguda espotejação no peito transtornado, aceso em festa,
da carne do conhecimento, ora veja acordava, gravura enlouquecida,
sobre o tempo sem caule, uma promessa.
permita cavalheir(o, a)
amig(o, a) me releve A manhã sempre-sempre, e dociastutos
este malestar eus caçadores a correr, e as presas
cantarino escarninho piedoso num feliz entregar-se, entre soluços.
este querer consolar sem muita convicção
o que é inconsolável de ofício E que mais, vida eterna, me planejas?
a morte é esconsolável consolatrix consoadíssima O que se desatou num só momento
a vida também não cabe no infinito, e é fuga e vento.
tudo também
mas o amor car(o,a) colega este não consola Comentário
nunca de núncaras.
O poema figura o momento em que irrompe uma
Comentário paixão, ou, dizendo-o imprecisamente, algo que prenuncie
amor. A semente que “engravidava a tarde” realiza o
Um tema recorrente na poética do mineiro Carlos trabalho de trazer para o poeta, ao invés da noite, o dia,
Drummond de Andrade, como de resto na poesia universal, metáfora de começo e recomeço. O amor perde seu “hálito
é o amor. O poeta perscruta, nas diferentes representações covarde” ao impacto do “coice” com que a vida, “corcel
líricas, os fatores que atuam nas escolhas humanas na busca rubro” (o vermelho simboliza classicamente paixão,
da satisfação em amar e ser amado, as estratégias e o vitalidade, luta), machuca o peito. Este, atingido, acende-se
malogro sofrido nessa empreitada. Daí ser o amor assumido (sublinhe-se a antítese contida na relação entre “ferida” e
como necessidade, controvérsia, transgressão, enunciação, “festa”), deixando que a dor acorde “uma promessa”.
insistência. No poema “AMAR-AMARO”, Drummond Note-se, nos quartetos, que os versos “era o dia nascendo,
coloca em evidência um processo comunicativo, um eu em vez de noite” e “acordava, gravura enlouquecida” trazem
lírico que questiona acerca do que leva o seu interlocutor, palavras semanticamente afins, “dia” e “acordava”, cujas
não nomeado, por isso universal, a “amar”. sílabas tônicas aliteram em “d” e recaem sobre o mesmo
O questionamento é feito pelo motivo de o emissor presumir icto, o que ocupa a terceira sílaba do verso em que
ser do conhecimento desse interlocutor o que pode ser assim respectivamente se inserem, reforçando a aludida metáfora
sintetizado: é proibido amar, porque amar e sofrer criam o do dia como início de um processo. O jogo de gêneros
mesmo efeito. A assertiva a respeito dessa lógica comparece ao poema; cite-se a última estrofe: o poeta, que,
apresentada pelo poeta em “AMAR-AMARO” já se impões com o vocativo, personifica a “vida eterna”, faz com que a
no título, visto que compõe uma paronomásia, figura de ela se ligue, por afinidade de gênero (o feminino) à palavra
harmonia sonora que consiste na aproximação de palavras “fuga”, assim como a “momento” somam-se, pelo mesmo
diferentes que contenham em parte, ou no todo, fonemas, processo, “vento” e “infinito”. Essas associações não são
sons semelhantes, oferecendo a impressão de fusão aos gratuitas; sua presença ajuda a compor o sentido que articula
elementos diferentes. Nesse caso, verifica-se que o adjetivo perenidade e fugacidade, permanência e finitude e que se
“amaro” contém o verbo “amar”, envolve-o totalmente. pode reivindicar como básico nesse soneto de Drummond.
É verdade que o significado dessas palavras pode indicar A metáfora escolhida para figurar a procura e o encontro
uma antítese, “amaro” significa amargo, relaciona-se com amorosos – que, sob o fundo da permanência
amargura, e “amar”, por outro lado, é o mesmo que apreciar, paradoxalmente associada a finitude, podem resumir o tema
gostar de alguém, portanto, não causar dor, ou amargura, à desse texto – é a da caça. O corcel dispara, levando no dorso
pessoa amada. Outro ponto que merece atenção é o aspecto os eus que perseguem presas desejosas da entrega. O
subversivo da linguagem na escrita do poema, indicando a instante da paixão renova-se, e a manhã instala uma série de
fragilidade da forma numa clara intenção de, por meio da momentos infinitos em que os paradoxos do amor não se
analogia com o sentimento amoroso, revelar também que à cansam de recomeçar.

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FRAGA E SOMBRA vontade de anular a criatura reside nos planos mais


profundos do sujeito, abaixo dos instintos de existir, em
A sombra azul da tarde nos confrange. camadas subterrâneas, justificando, portanto, a força da
Baixa, severa, a luz crepuscular. palavra calcar. Isso mostra também que o espaço do lírico
Um sino toca, e não saber quem tange acontece no mais profundo do ser. É possível concluir que
é como se este som nascesse do ar. nesse soneto, o eu lírico que anseia por liberdade e ao
mesmo tempo se sente oprimido, a natureza, a luz
Música breve, noite longa. O alfanje crepuscular que aflige.
que sono e sonho ceifa devagar
mal se desenha, fino, ante a falange CAMPO DE FLORES
das nuvens esquecidas de passar.
Deus me deu um amor no tempo de madureza,
Os dois apenas, entre céu e terra, quando os frutos ou não são colhidos ou sabem a verme.
sentimos o espetáculo do mundo, Deus-ou foi talvez o Diabo-deu-me este amor maduro,
feito de mar ausente e abstrata serra. e a um e outro agradeço, pois que tenho um amor.
Pois que tenho um amor, volto aos mitos pretéritos
E calcamos em nós, sob o profundo e outros acrescento aos que amor já criou.
instinto de existir, outra mais pura Eis que eu mesmo me torno o mito mais radioso
vontade de anular a criatura.
e talhado em penumbra sou e não sou, mas sou.
Comentário
Mas sou cada vez mais, eu que não me sabia
É certo que “Fraga e sombra” tematiza a angústia e o e cansado de mim julgava que era o mundo
tédio advindos do cair da tarde. É certo, também, que essa um vácuo atormentado, um sistema de erros.
tarde é típica da paisagem mineira, feita de pedras e Amanhecem de novo as antigas manhãs
crepúsculos, e que a boa quantidade de pares opostos mostra que não vivi jamais, pois jam ais me sorriram.
um lado um tanto barroco mineiro de Drummond. Mas
queremos acrescentar que a angústia pelo cair da tarde não Mas me sorriam sempre atrás de tua sombra
consiste apenas numa angústia existencial-psicológica, é imensa e contraída como letra no muro
também angústia resultante do ofício de escrever, de quem e só hoje presente.
trabalha com concretos e abstratos, pedras e sombras – este Deus me deu um amor porque o mereci.
poeta que se nomeou fazendeiro do ar é quem melhor pode De tantos que já tive ou tiveram em mim,
falar da atividade de lidar com mares ausentes e serras o sumo se espremeu para fazer vinho
abstratas.
ou foi sangue, talvez, que se armou em coágulo.
A paisagem mineira está toda aqui. A serra, o
campanário a sonar o angustioso tom que se arrasta no
silêncio da vila. A Lua em minguante, na forma de um E o tempo que levou uma rosa indecisa
alfanje, escondida pelo exército de nuvens. E tudo isso a tirar sua cor dessas chamas extintas
anunciado pela cair da tarde e do crepúsculo. Em “Fraga e era o tempo mais justo. Era tempo de terra.
sombra” o pronome é da primeira pessoa do plural. Esse Onde não há jardim, as flores nascem de um
plural afasta um pouco o poeta, tira um pouco o peso de um secreto investimento em formas improváveis.
ego que muitas vezes aparece demasiadamente carregado
em outros poetas. Ainda assim a presença de um eu se faz Hoje tenho um amor e me faço espaçoso
de maneira maciça, pelo ambiente, pela descrição das para arrecadar as alfaias de muitos
paisagens, caracterizando a voz lírica. Todo um mundo amantes desgovernados, no mundo, ou triunfantes,
descrito pelo poema (desde o som do sino, até a imagem da e ao vê-los amorosos e transidos em torno,
sombra saindo da pedra) é filtrado pela interioridade do o sagrado terror converto em jubilação.
eu lírico, de modo que mesmo o mundo externo é reflexo
dos movimentos emocionais do sujeito. A interioridade da
Seu grão de angústia amor já me oferece
paisagem é tema do poema. O anoitecer da paisagem
na mão esquerda. Enquanto a outra acaricia
mineira é anoitecer também no poeta. A construção de um
tempo e de um espaço ocorre tanto pelo mundo externo, por os cabelos e a voz e o passo e a arquitetura
meio dos sinais de anoitecer, quanto pelo mundo interno, e o mistério que além faz os seres preciosos
por meio das impressões. O verbo “calcar” é exemplo da à visão extasiada.
interiorização. Significa comprimir, pisar, arrochar.
Notemos que a raiz da palavra gera outras de efeito similar. Mas, porque me tocou um amor crepuscular,
“Decalcar” é copiar uma imagem em papel vegetal para se há que amar diferente. De uma grave paciência
reproduzir em outro local; “recalcar” é, além de um ladrilhar minhas mãos. E talvez a ironia
introduzir com força, uma repressão, um mecanismo mental tenha dilacerado a melhor doação.
de defesa do ego contra ideias ameaçadoras, muitas vezes Há que amar e calar.
levando tais energias a manifestações como o sonho. O Para fora do tempo arrasto meus despojos
calcar no ser o impulso de autoanulação, a vontade de anular e estou vivo na luz que baixa e me confunde.
o próprio ser refletem-se no cair da noite. Notemos que essa

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Comentário e não há ameaça


e nem há sevícia
No poema rememoram-se amores pretéritos, celebra-se que as traga de novo
o gozo do amor atual, além de projetá-lo para o futuro. É a ao centro da praça.
chegada de um amor que surge quando nada mais se espera
da vida, e quando o próprio amor já parece não ser possível, [...] Lutar com palavras
talvez até patético; isto é, mostra-se imoral conforme o parece sem fruto.
avanço da idade. Esse é o pano de fundo da tensão que Não têm carne e sangue...
expressa as dúvidas do sujeito diante da paixão – enfim Entretanto, luto.
correspondida – mas aparentemente anacrônica, que chega
tarde, tal como a revelação que sugeri na breve interpretação Palavra, palavra
de “A máquina do mundo”. É este o dilema vivenciado na (digo exasperado),
primeira estrofe de “Campo de flores”: “Deus me deu um se me desafias,
amor de madureza, quando os frutos ou não são colhidos ou aceito o combate. [...]
sabem a verme. Deus – ou foi talvez o Diabo – deu-me este
amor maduro, e a um e outro agradeço, pois que tenho um O ciclo do dia
amor.” Trata-se de um amor que oscila entre a predestinação ora se conclui
– “Deus me deu” – e a dúvida quanto a sua validade devido e o inútil duelo
à condição de madureza, repetida duas vezes só nesta jamais se resolve.
primeira estrofe, que em princípio assume uma carga O teu rosto belo,
negativa graças à imagem de putrefação contida no segundo ó palavra, esplende
verso. Há um embate constante entre a aceitação deste amor na curva da noite
como dádiva tardia e o mal-estar gerado pela própria que toda me envolve.
condição de maturidade, a ponto de gerar um Tamanha paixão
relacionamento amoroso que não seria propriamente e nenhum pecúlio.
sagrado, pois pode ser inclusive um presente demoníaco. O Cerradas as portas,
amor é mais adiante chamado de “crepuscular” e exige a luta prossegue
cuidados diferentes, “uma grave paciência”, sendo uma nas ruas do sono.
recompensa tardia às cicatrizes de amores anteriores.
“Campo de flores” é o primeiro dos poemas de Drummond a Comentário
apresentar o convite amoroso numa idade hostil, “onde os
frutos não são colhidos”. Drummond ecoa a dúvida diante Pensar o fazer poético é pensar a relação entre o poder
de um sentimento que se revela fora do tempo demarcado das palavras e o trabalho árduo do poeta ao utilizar as
para a experiência carnal, e, a partir das dúvidas, engendra a palavras. A poesia não pode reduzir-se a apenas um jogo de
superação de tais padrões através da imagem que fecha interioridade questionadora, porque poderia perder o prazer
“Campo de flores”, quando a presença do amor arrasta o literário dela tirado. Seria impossível pensar a poesia apenas
sujeito para fora do tempo crepuscular: “e estou vivo na luz com palavras de evasão. O poeta como lutador aceita o
que baixa e me confunde”. combate ao sentir-se desafiado por elas, confrontando a
reflexão com as palavras, pois só assim nascerá a poesia.
7ª parte – Poesia contemplada – Os poemas que compõem Isso é o que podemos observar em todos os versos do poema
esse bloco apresentam um cunho metalinguístico, propondo “O LUTADOR”: “Lutar com palavras/ É a luta mais vã./
uma reflexão sobre o fazer poético. Entanto lutamos /Mal rompe a manhã.’ Nos versos, o poeta
lutador se sente impotente perante as palavras, sente-se tão
O LUTADOR pequeno e frágil, até mesmo fraco. As palavras o desafiam,
mas ele não se esconde e vai à luta, aceitando o combate ali
Lutar com palavras travado. Para Drummond, a luta com palavra é a luta mais
é a luta mais vã. inútil que se possa combater por não existir carne e sangue,
Entanto lutamos não há uma concretude nesta luta, no entanto ele luta; ‘Sem
mal rompe a manhã. me ouvir deslizam,/Perpassam levíssimas /E viram-me o
São muitas, eu pouco. rosto./ Lutar com palavras/ Parece sem fruto. /Não tem
Algumas, tão fortes carne e sangue.../ Entretanto, luto”. O ato de fazer poesia
como o javali. tem uma dimensão erótica, no sentido de que a palavra,
Não me julgo louco. tomada como se fosse uma mulher, seduz, se mostra, foge,
Se o fosse, teria num jogo de sedução que encanta e atrai o poeta. Esta
poder de encantá-las. similaridade com o evento amoroso fica evidente nos versos
Mas lúcido e frio, a seguir: “Palavras, palavras (digo exasperado)./ Se me
apareço e tento desafias, /Aceito o combate. Quisera possuir-te/ Neste
apanhar algumas descampado, /Sem roteiro de unha /Ou marca de dente
para meu sustento /Nessa pele clara”. E como se tais palavras, objeto de desejo
num dia de vida. do poeta, fossem a mulher desejada: “Preferes o amor/ De
Deixam-se enlaçar, uma posse impura”, ao possuí-la ele entra num estado de
tontas à carícia êxtase. Esta “tortura” que é apontada por Drummond é o
e súbito fogem que lhe dará prazer em sua poesia: “E que venha o gozo/ Da

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maior tortura”. Assim, poeta tem essa luta com as palavras Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
como um ato de sedução, exigindo-lhe esse empenho para a Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.
materialização de seu desejo: o ato poético. Importante Espera que cada um se realize e consume
destacar que o poema trabalha com a repetição da estrutura com seu poder de palavra
do verso em redondilho menor, sugerindo o ato constante de e seu poder de silêncio.
lutar, uma ação permanente. Ao final do poema, o poeta Não forces o poema a desprender-se do limbo.
conclui que o duelo é inútil e que jamais se resolverá. Mais Não colhas no chão o poema que se perdeu.
uma vez a figura feminina, talvez por se tratar de palavras, Não adules o poema. Aceita-o
aparece nos versos: “O teu rosto belo/na curva da noite/ que
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
toda me envolve.” Mesmo o duelo sendo inútil o poeta
no espaço.
prossegue com a luta, pois não houve nenhuma corrupção,
somente “paixão”.
Chega mais perto e contempla as palavras.
PROCURA DA POESIA Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
Não faças versos sobre acontecimentos. e te pergunta, sem interesse pela resposta,
Não há criação nem morte perante a poesia. pobre ou terrível que lhe deres:
Diante dela, a vida é um sol estático, Trouxeste a chave?
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes Repara:
pessoais não contam. ermas de melodia e conceito
Não faças poesia com o corpo, elas se refugiaram na noite, as palavras.
esse excelente, completo e confortável corpo, Ainda úmidas e impregnadas de sono,
tão infenso à efusão lírica. rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.
Tua gota de bile, tua careta de gozo ou dor no escuro Comentário
são indiferentes.
Não me reveles teus sentimentos,
Dividida em duas partes, o poema de Drummond trata
que se prevalecem de equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia. do exercício do fazer poético. Na primeira parte, Drummond
Não cantes tua cidade, deixa-a em paz. enumera uma série de mandamentos do que, afirma, não
O canto não é o movimento das máquinas nem deve ser feito no exercício da produção poética: “não faças
o segredo das casas. versos sobre acontecimentos”, “não faças poesia com o
Não é música ouvida de passagem, rumor do corpo”, iniciando, de forma imperativa, uma lista de
mar nas ruas junto à linha de espuma. instruções ao leitor, o que acaba dando ao poema uma feição
injuntiva. Se na primeira estrofe já observamos essas
O canto não é a natureza orientações, na segunda estrofe, o eu lírico expande os
nem os homens em sociedade. mandamentos, acrescentando que, como os
Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada “acontecimentos” dos quais a primeira estrofe fala, os
significam. “sentimentos” e os “pensamentos”, também não são poesia,
A poesia (não tires poesia das coisas) principalmente por serem “equivocados”, como dito no
elide sujeito e objeto. terceiro verso da estrofe. É importante notar, contudo, que o
eu lírico utiliza o advérbio “ainda” no último verso, o que
Não dramatizes, não invoques, funciona como a primeira referência à diferença da matéria-
não indagues. Não percas tempo em mentir.
prima da poesia com o que a poesia realmente é, o “que
Não te aborreças.
pensas e sentes, isso ainda não é poesia”, mas pode vir a ser.
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de Na segunda parte, o poeta, embora adotando o imperativo,
família propõe um conselho ao seu interlocutor, afirmando qual a
desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável. natureza verdadeira do exercício poético, a sua essência:
“Penetra surdamente no reino das palavras. /Lá estão os
Não recomponhas poemas que esperam ser escritos./ Estão paralisados, mas
tua sepultada e merencória infância. não há desespero, há calma e frescura na superfície intata.
Não osciles entre o espelho e a /Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.” Pode-se
memória em dissipação. dizer, então, que o poeta acentua o caráter autônomo do
Que se dissipou, não era poesia. universo poético: por mais que trate de questões relativas ao
Que se partiu, cristal não era. mundo concreto, a verdadeira poesia não pode prescindir do
trabalho íntimo e constante com a linguagem. Também
Penetra surdamente no reino das palavras. pode-se concluir que a proposta de criação de Drummond
Lá estão os poemas que esperam ser escritos. difere daquela apresentada pelos românticos em geral, pois
Estão paralisados, mas não há desespero, estes defendiam a poesia como sinônimo de “expressão da
há calma e frescura na superfície intata. subjetividade”.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.

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OFICINA IRRITADA 8ª parte – Uma, duas argolinhas - Nesse bloco de poemas,


o poeta realiza jogos com palavras, conferindo uma
Eu quero compor um soneto duro atmosfera lúdica na concepção dos poemas.
como poeta algum ousara escrever. Aparentemente, há um tom insólito, até mesmo infantil,
Eu quero pintar um soneto escuro, entretanto os versos revelam a essência do trabalho poético.
seco, abafado, difícil de ler.
SINAL DE APITO
Quero que meu soneto, no futuro,
não desperte em ninguém nenhum prazer. Um silvo breve. Atenção, siga.
E que, no seu maligno ar imaturo, Dois silvos breves: Pare.
ao mesmo tempo saiba ser, não ser.
Um silvo breve à noite: Acende a lanterna.
Esse meu verbo antipático e impuro Um silvo longo: Diminua a marcha.
há de pungir, há de fazer sofrer, Um silvo longo e breve: Motorista a postos.
tendão de Vênus sob o pedicuro.
(A este sinal todos os motoristas tomam lugar nos
Ninguém o lembrará: tiro no muro, seus veículos para movimentá-los imediatamente.)
cão mijando no caos, enquanto Arcturo,
claro enigma, se deixa surpreender. Comentário

Comentário O poema explora o contexto da modernidade,


empregando, de forma inusitada, a linguagem do trânsito
Forma poética: para exprimir o modus operandis da metrópole, alertando
para os riscos de uma vida mecanizada, automatizada,
Soneto Métrica – Decassílabo – isometria Rimas - despersonalizando o sujeito. Pode-se dizer que esse poema
Esquema de rimas binário com alternâncias de paroxítonas e de Drummond traduz seu antifuturismo, pois esse novo
oxítonas. Presença da anáfora como recurso de construção modelo sócio-técnico-industrial produz uma existência
do poema – “Eu quero...” O emprego da sinestesia em: duro, reduzida aos maquinismos de gestos e sinais. Vale destacar
pintar, escuro, seco e abafado. Emprego de volição (verbo que no poema, há a nítida presença de um outro texto: a
volitivo) - “Eu quero compor...” \ “Eu quero pintar...” \ descrição dos sinais sonoros de apito, emitidos pelo agente
“Quero que meu soneto...” A repetição da construção “Eu da autoridade de trânsito. Esse diálogo evidencia a presença
quero...” – Reafirma o desejo consciente que impulsiona o da intertextualidade, também se observa a interdiscursividade
poema. Intertextualidade – “ao mesmo tempo saiba ser, não pela presença das normas de trânsito.
ser” – Evoca Sheakspeare.
POLÍTICA LITERÁRIA
Sobre o poema:
Por meio do verbo volitivo, o eu lírico manifesta o A Manuel Bandeira
desejo de um poema (“Eu quero pintar um soneto
escuro,\seco, abafado, difícil de ler.”) desagradável, O poeta municipal
incômodo, quebrando a lógica do que é comum à poesia. O discute com o poeta estadual
poema apresenta uma pauta: a agressividade. O poema é um qual deles é capaz de bater o poeta federal.
exercício de metalinguagem, constituindo-se em um
instrumento de reflexão sobre a poesia. Há neste soneto, Enquanto isso o poeta federal
uma exasperação em relação ao ideário contemporâneo e o tira ouro do nariz
vazio da estética despida de sentidos, o poeta sugere um
exame na ordem das coisas e cobra responsabilidade na Comentário
condução do verso, e não por acaso convoca os bardos para
o seu verso. O poema “Política literária” ilustra o típico poema-
piada. Nos versos, observa-se a sátira mordaz de
Observação: Drummond, voltando-se para os costumes literários do país
– o ciúme, o desejo de poder, a mesquinharia provinciana e
Na mitologia romana, conforme relatado por Higino, ridícula daquele grupo que o grande poeta romano Horácio
Arcturus é o ateniense Icário. Ele morava com sua filha (século I a C.) chamou de ‘a irascível raça dos vates’.
virgem Erígone e seu cão Maera. Ele hospedou Liber Pater, (Anote-se, a propósito, que Drummond sempre teve grande
que o ensinou o segredo do vinho. Icário deu o vinho a uns desprezo pela chamada ‘vida literária’ e sempre evitou as
pastores que, acreditando que Icário os tinha envenenado, o corriolas intelectuais, como comprova, por exemplo, o fato
mataram a pauladas. Seu cão Maera, latindo sobre o corpo de ele nunca ter aceito entrar para a Academia Brasileira de
morto do dono, chamou Erígone, que se enforcou. Liber Letras.)” No poema, o verso “tira o ouro do nariz” explicita
Pater então afligiu as mulheres atenienses com uma praga, que esse “poeta federal” mostra a inutilidade das atitudes
que só terminou quando eles puniram os pastores e dos poetas que estão à margem do circuito do prestígio
instituíram um festival em honra dos dois. Os deuses então literário, privilegiados pela localização em que atua o poeta
transformaram ambos em estrelas: Erígone virou a federal, e tentam iludidamente suplantar este.
constelação de Virgem e Icário a estrela Arcturus.

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9ª parte – Tentativa de exploração e de interpretação do Comentário


estar-no-mundo. Nesse bloco de poemas, observa-se o
questionamento sobre o que significar estar no mundo e O poema “Os mortos de sobrecasaca” explora o tema
seus desdobramentos a partir das conjecturas propostas pelo das heranças que trazemos do passado evocado por meio de
poeta Drummond. um álbum de fotografias dos familiares. O álbum também
pode ser considerado um jazigo, um túmulo, sugerido na
NO MEIO DO CAMINHO hipérbole do 2° verso: “alto de muitos metros e velho de
No meio do caminho tinha uma pedra infinitos minutos”; e também na 2ª estrofe: “Um verme [...]
roeu as páginas”. Drummond ainda ressalta que mesmo o
tinha uma pedra no meio do caminho
verme tendo destruído páginas do álbum, jamais destruirá as
tinha uma pedra
lembranças. Embora todos estejam mortos (destruição
no meio do caminho tinha uma pedra. física), os sentimentos de vida permanecem vivos, estão
Nunca me esquecerei desse acontecimento presentes, por exemplo, no eu lírico. Essa consideração pode
na vida de minha retina tão fatigadas. ser compreendida na imagem de que os nossos mortos
vivem dentro de nós, nas nossas lembranças. Quando os
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
revisitamos, embora empoeirados e carcomidos pelo tempo,
tinha uma pedra
eles ganham vida em nosso íntimo. Nesse sentido, o poeta
tinha uma pedra no meio do caminho estabelece com seus ancestrais falecidos, pelo viés da
no meio do caminho tinha uma pedra. lembrança, uma forma de convívio e logo na primeira
estrofe já nos deparamos com a menção da morte em um
Comentário tom irônico: “Havia a um canto da sala um álbum de
fotografias intoleráveis,/ alto de muitos metros e velho de
O poema “No meio do caminho” exemplifica a poesia infinitos minutos,/ em que todos se debruçavam / na alegria
antipoética, de lírica antilírica; ilustra a travessia do poeta e
de zombar dos mortos de sobrecasaca”. A primeira estrofe já
de todos nós entre o individual e o social, o coração e a
se inicia com um verbo impessoal – havia – que traça o
pedra no meio do caminho, o mundo. Controverso, o poema
distanciamento do eu lírico com os mortos de sobrecasaca.
é uma manifestação significativa dos novos valores estéticos
Ele não compartilha do momento descrito na foto e apenas o
aportados pelos modernistas. “No meio do caminho” sugere
observa com seu olhar irônico. As fotografias intoleráveis
a experiência frustrada. O poema gira sobre si mesmo e
são a ponte que liga o passado ao presente e gera uma
fecha-se. No seu movimento circular, a pedra se move em
torno do observador. Age como um sortilégio, só quebrado diversão naqueles que as contemplam e zombam deste
pela experiência da reflexão. Na sua imobilidade, a pedra se passado. Observe que o terceiro e quarto versos “em que
transforma em oponente, pois é densa e inerte, fatigando as todos se debruçavam na alegria de zombar dos mortos de
retinas do sujeito-observador, tornando-o também inerte na sobrecasaca” revelam que o eu enunciador destaca que
sua escrita que circula, não vai além deste obstáculo da existe uma dor da perda e que para suplantar essa dor é
pedra. O caminho sugere o ir, mas a pedra nega. A pedra necessária a alegria de uma zombaria, recordando momentos
pode simbolizar muitas possibilidades, talvez a própria felizes, e irrepetíveis, graças à morte, mas não apagados por
dificuldade de encarar o fazer poético, a dificuldade de ela e pelo tempo, e só a lembrança daria cor a vida
escrever a poesia ou mesmo a existência negada, precária, o novamente. Note que a morte é trazida de maneira mais
nada. descontraída, alegre, que é um caminho estratégico para
alcançar um efeito de sentido mais positivo para a discussão
OS MORTOS DE SOBRECASACA sobre a temática. Já na segunda estrofe, o verme se torna
uma metáfora para o tempo que tudo apodrece, devorando
Havia a um canto da sala um álbum de as páginas do álbum, os retratos e inclusive a poeira. No
fotografias intoleráveis, segundo verso desta estrofe, o eu lírico demonstra que tudo
alto de muitos metros e velho de infinitos minutos, após a morte é corroído, desde o material corporal até o pó
em que todos se debruçavam de que somos feitos e a ele retornamos um dia. A única
na alegria de zombar dos mortos de sobrecasaca. coisa que o verme não consegue roer é a memória. Ademais,
a memória é eternizada por meio das lembranças, ao passo
Um verme principiou a roer as sobrecasacas que a morte é versificada por Drummond como uma
passagem que tem dia e hora para acontecer, inclusive
indiferentes
demonstrada por ações da natureza. Enfim, por meio da
e roeu as páginas, as dedicatórias e mesmo a poeira
ironia, a morte é abordada como uma espécie de libertação,
dos retratos. sublimando o “soluço de vida”, que o eu lírico conjectura
Só não roeu o imortal soluço de vida que rebentava num ensejo de redescoberta, por meio de um mero álbum de
que rebentava daquelas páginas. fotografias de seus antepassados.

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A INGAIA CIÊNCIA OS ANIMAIS DO PRESÉPIO

A madureza, essa terrível prenda Salve, reino animal:


todo o peso celeste
que alguém nos dá, raptando-nos, com ela, suportas no teu ermo.
todo sabor gratuito de oferenda
sob a glacialidade de uma estrela, Toda a carga terrestre
Carregas como se
fosse feita de vento.
a madureza vê, posto que a venda
interrompa a surpresa da janela, Teus cascos lacerados
o círculo vazio, onde se estenda, na lixa do caminho
e tuas cartilagens
e que o mundo converte numa cela.
e teu rude focinho
A madureza sabe o preço exato e tua cauda zonza,
dos amores, dos ócios, dos quebrantos, teu pelo matizado,
e nada pode contra sua ciência tua escama furtiva
as cores com que iludes
e nem contra si mesma. O agudo olfato, teu negrume geral,
o agudo olhar, a mão, livre de encantos,
teu voo limitado,
se destroem no sonho da existência. teu rastro melancólico,
Carlos Drummond de Andrade tua pobre verônica
em mim, que nem pastor
Comentário soube ser, ou serei,
se incorporam num sopro.
“Ingaia Ciência” é um soneto italiano ou petrarquiano, Para tocar o extremo
composto por dois quartetos e dois tercetos. O esquema de de minha natureza,
rimas escolhido (abab|abab|cde|cde) é bem estabelecido. limito-me: sou burro.
O registro do poema é erudito, elegante, com termos como
“glacialidade”, “estrela” (coluna mortuária) e inversões Para trazer ao feno
o senso da escultura,
como “agudo olfato”, “que o mundo converte”. Não há
concentro-me: sou burro.
qualquer marca coloquial, chula ou gíria. Como texto pouco
extenso e de forte intensidade emotiva, o poema enquadra- A vária condição
se na lírica; e seus traços estilísticos também são fortemente por onde se atropela
líricos, pois, apesar de levemente narrativo, ele é composto essa ânsia de explicar-me
por enunciados emocionais do sujeito poético expressados agora se apascenta
no presente atemporal. Tanto a linguagem formal quanto o à sombra do galpão
lirismo são associados ao soneto tradicional. Quase todos os neste sinal: sou anjo.
versos (exceto o 8 e o 14) terminam suspensos, forçando
enjambement com o verso seguinte e tornando necessária Comentário
para compreensão uma leitura contínua. Esses
enjambements aparecem inclusive nas divisas de estrofes Inicialmente, o poema trata, conforme indica o próprio
título, de um presépio. Entretanto, o foco não reside no
entre os versos 4–5 e 11–12, forçando unidade entre os
menino Jesus, mas nos animais que o circundam. São eles
pares de estrofes—unidade reforçada ainda pelo esquema que carregam o mundo nas costas, que sofrem por nós, que
rímico; as rimas dos quartetos não se repetem nos tercetos. levam as chagas nos cascos, sugerindo que os nossos
Notamos que os versos são decassílabos bastante regulares redentores fossem tais bichos. Também se sugere que a cena
isometria. No poema, o autor faz menção à madureza, e esse da epifania fosse a revelação da santidade deles e não da
amadurecimento condiz com a situação do próprio sagrada família. Nesse deslocamento entre o humano e o
Drummond, que atingia sua maturidade poética. Ele vê na bicho, entre quem domina e quem não domina a linguagem,
maturidade, a passagem para uma vida onde nada mais é está presente a questão da subjetividade enunciativa. O
novo, nada mais traz prazer e as coisas na verdade poema causa o estranhamento pelo fato de que os animais
ocupam o lugar de Jesus, podendo ser vistos como mártires
acontecem de forma triste. No título do poema, o poeta
ou santos. Nos versos “em mim, que nem pastor soube ser,
mineiro formou “Ingaia” a partir do termo a partir do ou serei, se incorporam num sopro”, o sujeito lírico indica
adjetivo “gaio”, de étimo provençal, que significa “alegre”, que todas as incumbências atribuídas aos animais
“jovial”, acrescentando-lhe o prefixo latino in, marca da incorporam-se nele como um sopro. E confessa a sua
negação. A relação do título com o corpo do poema seria limitação de alcançar o extremo de sua essência, assumindo
essa: quando o homem consegue o dom de chegar à uma natureza animal, considerando-se “burro”. Note
maturidade, à compreensão profunda da realidade, essa também que o eu lírico faz uma pequena reflexão sobre sua
sabedoria o torna infeliz, pois lhe mostra o mundo como um condição de poeta, aqui percebida pela construção “essa
“círculo vazio”, uma “cela”, destruindo-lhe o “sonho da ânsia de explicar-me” como um fardo a carregar em suas
costas.
existência”.

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A MÁQUINA DO MUNDO As mais soberbas pontes e edifícios,


o que nas oficinas se elabora,
E como eu palmilhasse vagamente o que pensado foi e logo atinge
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados
se misturasse ao som de meus sapatos e as paixões e os impulsos e os tormentos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas e tudo o que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
lentamente se fossem diluindo
e chega às plantas para se embeber
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,
no sono rancoroso dos minérios,
a máquina do mundo se entreabriu dá volta ao mundo e torna a se engolfar
para quem de a romper já se esquivava na estranha ordem geométrica de tudo,
e só de o ter pensado se carpia.
e o absurdo original e seus enigmas,
Abriu-se majestosa e circunspecta, suas verdades altas mais que tantos
sem emitir um som que fosse impuro monumentos erguidos à verdade;
nem um clarão maior que o tolerável
é a memória dos deuses, e o solene
pelas pupilas gastas na inspeção sentimento da morte, que floresce
contínua e dolorosa do deserto, no caule da existência mais gloriosa,
e pela mente exausta de mentar
tudo se apresentou nesse relance
toda uma realidade que transcende e me chamou para seu reino augusto,
a própria imagem sua debuxada afinal submetido à vista humana.
no rosto do mistério, nos abismos.
Mas, como eu relutasse em responder
Abriu-se em calma pura, e convidando a tal apelo assim maravilhoso,
quantos sentidos e intuições restavam pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,
a quem de os ter usado os já perdera
a esperança mais mínima — esse anelo
e nem desejaria recobrá-los,
de ver desvanecida a treva espessa
se em vão e para sempre repetimos
que entre os raios do sol inda se filtra;
os mesmos sem roteiro tristes périplos,
como defuntas crenças convocadas
convidando-os a todos, em coorte, presto e fremente não se produzissem
a se aplicarem sobre o pasto inédito a de novo tingir a neutra face
da natureza mítica das coisas,
que vou pelos caminhos demonstrando,
assim me disse, embora voz alguma e como se outro ser, não mais aquele
ou sopro ou eco ou simples percussão habitante de mim há tantos anos,
atestasse que alguém, sobre a montanha,
passasse a comandar minha vontade
a outro alguém, noturno e miserável, que, já de si volúvel, se cerrava
em colóquio se estava dirigindo: semelhante a essas flores reticentes
“O que procuraste em ti ou fora de
em si mesmas abertas e fechadas;
teu ser restrito e nunca se mostrou, como se um dom tardio já não fora
mesmo afetando dar-se ou se rendendo, apetecível, antes despiciendo,
e a cada instante mais se retraindo,
baixei os olhos, incurioso, lasso,
olha, repara, ausculta: essa riqueza desdenhando colher a coisa oferta
sobrante a toda pérola, essa ciência que se abria gratuita a meu engenho.
sublime e formidável, mas hermética,
A treva mais estrita já pousara
essa total explicação da vida,
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
esse nexo primeiro e singular,
e a máquina do mundo, repelida,
que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardente se foi miudamente recompondo,


em que te consumiste… vê, contempla, enquanto eu, avaliando o que perdera,
abre teu peito para agasalhá-lo.” seguia vagaroso, de mãos pensas.

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Comentário O homem atrás do bigode


é sério, simples e forte.
O poema estabelece uma conexão direta com Quase não conversa.
Os Lusíadas, de Camões. E não só pelo tamanho — o termo Tem poucos, raros amigos
máquina do mundo também aparece nos versos de Camões.
o homem atrás dos óculos e do bigode.
A máquina do mundo é um termo usado para representar, de
forma alegórica, o sistema como o mundo funciona, e é
sobre isso que o autor versa. Ainda em comparação aos Meu Deus, por que me abandonaste
clássicos, lembra também A Divina Comédia, onde se sabias que eu não era Deus
Drummond faz uma jornada como a de Dante — menos se sabias que eu era fraco.
esotérica e mais cética, com um pé na realidade, como é
característico do poeta. Os versos decassílabos bem Mundo mundo vasto mundo,
construídos, uma reverência ao clássico não tão comum aos se eu me chamasse Raimundo
modernos, promove uma reflexão sobre o homem e a seria uma rima, não seria uma solução.
linguagem e, principalmente, ao seu tempo, e a
Mundo mundo vasto mundo,
intertextualidade do poema é o ponto alto do seu
entendimento. No poema de Drummond, a máquina do mais vasto é o meu coração.
mundo abre-se para o poeta em determinado momento,
oferecendo-lhe uma “total explicação da vida”. Quando isso Eu não devia te dizer
ocorre, ele, que por longo tempo havia buscado exatamente mas essa lua
essa explicação, enigmaticamente a desdenha. Essa rejeição mas esse conhaque
talvez se explique pelo fato de o poeta não só não mais botam a gente comovido como o diabo.
acreditar na possibilidade de tal explicação como não mais a
deseja. (ANDRADE, Carlos Drummond de. In Nova Reunião - 19 Livros de
Poesia / Carlos Drummond de Andrade. Rio de Janeiro. Ed. José
Se o poeta desdenha “colher a coisa oferta/que se abria
Olímpio, 1983. p.3-4.)
gratuita” a seu engenho, é que a razão já lhe mostrou que a
aceitação de uma “total explicação do mundo” não pode ser
senão o mergulho em mais uma ilusão, que inevitavelmente 1. Avalie as seguintes afirmações sobre o texto anterior.
lhe custará mais uma desilusão. I. Como se observa, o poema de Carlos Drummond de
É, pois, com ironia que chama de “gratuita” a “coisa Andrade apresenta sete estrofes, equivalentes às sete
oferta”, no momento mesmo em que explica havê-la faces referidas no título;
desdenhado, “incurioso e lasso”. Segundo ele, um dom tão II. Como numa colagem cubista, o poema revela uma
dúbio e tardio – não apenas em relação à idade individual do aparente desconexão entre as estrofes, como se o
poeta, mas, principalmente, em relação à época moderna do poeta captasse flashes da realidade;
mundo – já não lhe era “apetecível, antes despiciendo”.
III. O poema pode ser tomado como autobiográfico,
Sem abrir mão da sua liberdade e ironia, avaliando o que
perdeu ao abandonar o mundo fechado, o poeta segue o seu contribuindo para essa constatação, além da
caminho “de mãos pensas” ou, como se lê no poema autocitação presente na primeira estrofe, todos os
“Legado”, “a vagar taciturno entre o talvez e o se”. versos da quarta “face”;
IV. Ao identificar-se com um anjo, o poeta sugere uma
EXERCÍCIOS visão de si mesmo como torto, ser às avessas, não
enquadrado, incapaz de estabelecer uma ligação com
• Texto para as questões 1 e 2. a realidade circundante. Essa espécie de autocrítica
jamais será totalmente deixada de lado nas obras
POEMA DE SETE FACES subsequentes, em toda a trajetória poética do autor;
V. Definindo-se como gauche, Drummond, numa
Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra atitude de irreverência típica herdada da primeira
disse: Vai Carlos! Ser gauche na vida. fase modernista (que faz lembrar Oswald de
Andrade), acena para o fato de que o humor e a
As casas espiam os homens ironia são os elementos essenciais desse poema,
que correm atrás de mulheres. desvestido, assim, de qualquer intenção reflexiva ou
A tarde talvez fosse azul, filosófica.
não houvesse tantos desejos.
Está correto o que se diz em:
O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas. a) I, II, III e V.
Para que tanta perna, meu Deus, b) I, II, III e IV.
pergunta meu coração. c) II, IV e V.
Porém meus olhos d) I, II e IV.
não perguntam nada. e) II, III e IV.

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2. Avalie as seguintes afirmações sobre o texto em Carlos Drummond de Andrade é um dos expoentes do
questão. movimento modernista brasileiro. Com seus poemas,
I. Sem deixar de lado o humor irônico, o poeta, na penetrou fundo na alma do Brasil e trabalhou
terceira estrofe, alude ao desajustamento entre a poeticamente as inquietudes e os dilemas humanos. Sua
poesia é feita de uma relação tensa entre o universal e o
realidade interior e a exterior, aliado à percepção da particular, como se percebe claramente na construção
sexualidade; do poema Confidência do Itabirano. Tendo em vista os
II. Servindo-se do recurso da intertextualidade (“Meu procedimentos de construção do texto literário e as
Deus, por que me abandonaste”), o poeta evidencia concepções artísticas modernistas, conclui-se que o
certo índice de religiosidade, que serve de poema anterior
contraponto ao espírito até certo ponto galhofeiro da a) representa a fase heroica do modernismo, devido ao
estrofe seguinte; tom contestatório e à utilização de expressões e usos
III. Numa perspectiva metalinguística, o poeta, na sexta linguísticos típicos da oralidade.
estrofe, sugere que a atividade poética não consiste b) apresenta uma característica importante do gênero
lírico, que é a apresentação objetiva de fatos e dados
apenas em fazer rimas, condenando dessa maneira o históricos.
esteticismo, o beletrismo contra os quais os c) evidencia uma tensão histórica entre o “eu” e a sua
modernistas, como ele, insurgiram-se; comunidade por intermédio de imagens que
IV. Com os dois últimos versos da sexta estrofe, o poeta representam a forma como a sociedade e o mundo
pretende afirmar que seu “coração” é separado do colaboram para a constituição do indivíduo.
mundo, confirmando seu individualismo e d) critica, por meio de um discurso irônico, a posição
isolamento em relação ao meio social, características de inutilidade do poeta e da poesia em comparação
da fase inicial de sua obra, identificada como fase com as prendas resgatadas de Itabira.
irônica (ou fase gauche); e) apresenta influências românticas, uma vez que trata
da individualidade, da saudade da infância e do
V. A última estrofe do poema mostra que, amor pela terra natal, por meio de recursos retóricos
diferentemente dos poetas da primeira fase pomposos.
modernista (da qual retém o humor irônico),
Drummond não recusa o lirismo, elemento que será 4. Leia o poema José, de Carlos Drummond de Andrade.
depurado ao longo de sua obra.
E agora, José? e tudo fugiu
a) todas corretas, sem exceção. A festa acabou, e tudo mofou,
a luz apagou, e agora, José?
b) todas corretas, com única exceção. o povo sumiu,
c) todas corretas, exceto III e V. a noite esfriou (...)
d) todas corretas, exceto II e V. e agora, José?
e) todas incorretas, exceto I e IV e agora, você? Se você gritasse,
Você que é sem nome, se você gemesse,
que zomba dos outros, se você tocasse,
3.
Você que faz versos, a valsa vienense,
CONFIDÊNCIA DO ITABIRANO se você dormisse,
que ama, protesta?
e agora, José? se você cansasse,
Alguns anos vivi em Itabira. se você morresse....
Principalmente nasci em Itabira. Está sem mulher, Mas você não morre,
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro. está sem discurso, você é duro, José!
está sem carinho,
Noventa por cento de ferro nas calçadas. Sozinho no escuro
já não pode beber,
Oitenta por cento de ferro nas almas. já não pode fumar, qual bicho-do-mato,
E esse alheamento do que na vida é porosidade e cuspir já não pode, sem teogonia,
a noite esfriou, sem parede nua
[comunicação. para se encostar,
o dia não veio,
A vontade de amar, que me paralisa o trabalho, sem cavalo preto
o bonde não veio,
vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e o riso não veio, que fuja a galope,
[sem horizontes. não veio a utopia você marcha, José!
e tudo acabou José, para onde?
E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
é doce herança itabirana. Assinale a alternativa correta sobre o poema.
De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço: a) O diálogo com José, interlocutor, pode ser lido
esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil, como uma forma de o sujeito-lírico refletir sobre o
desamparo existencial.
este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval; b) O poema em versos curtos apresenta o caminho para
este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas; superação dos impasses de José.
este orgulho, esta cabeça baixa... c) As repetições indicam a monotonia da existência do
Tive ouro, tive gado, tive fazendas. trabalhador comum, José, em crise com sua
condição operária.
Hoje sou funcionário público. d) O sujeito lírico, na ausência de respostas, não
Itabira é apenas uma fotografia na parede. consegue decifrar para onde José marcha, embora
Mas como dói! este saiba seu caminho.
e) A expressão “e agora, José?” põe em relevo a
ANDRADE, C. D. Poesia completa. Rio de Janeiro:
Nova Aguilar, 2003.
indignação do sujeito-lírico com seu interlocutor,
incapaz de se definir.

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5. A partir da leitura do trecho de A Flor e a Náusea, O emprego do verbo no presente do indicativo, embora
poema do modernista Carlos Drummond de Andrade, na primeira estrofe associado ao passado e ao futuro,
assinale a alternativa em que o conceito é adequado à
pode ser compreendida como:
temática apresentada nos versos.
a) Disciplina: obediência às regras, aos superiores, aos a) A ciclicidade de uma existência marcada pela
regulamentos, postura que é defendida pelo eu lírico. desilusão de viver.
b) Dissimulação: ocultação, por um indivíduo, de suas b) A perene dor que move a humanidade em sua
verdadeiras intenções, uma vez que o eu lírico tenta
trágica existência.
esconder sua reação diante do surgimento da flor.
c) Esperança: sentimento vivido pelo eu lírico, pois ele c) A força vital que nos move para continuarmos a
vê como possíveis a confiança em algo promissor e viver.
a realização de mudanças. d) A batalha constante que arranca o sentido da vida.
d) Nostalgia: melancolia profunda causada pelo e) A luta do homem pela sobrevivência diante de um
distanciamento entre o eu lírico e sua terra natal.
e) Resignação: submissão à vontade do destino, mundo de guerra e sofrimento.
postura adotada pelo eu lírico que se mostra
alienado e indiferente. 9.
CIDADEZINHA QUALQUER
6. O poema em questão evidencia um dos eixos da
literatura da geração de Drummond:
a) a espiritualidade. Casa entre bananeiras
b) o egocentrismo. mulheres entre laranjeiras
c) a busca da identidade nacional.
pomar amor cantar
d) a consciência social.
e) o niilismo existencial.
Um homem vai devagar
7. De todos os sinais de pontuação, a vírgula é aquela que Um cachorro vai devagar
desempenha maior número de funções. Considerando
essa informação, assinale a alternativa em que a vírgula Um burro vai devagar
foi empregada para isolar o adjunto adverbial, com o Devagar...as janelas olham
objetivo de destacá-lo:
a) “Melancolias, mercadorias espreitam-me.”
Eta vida besta, meu Deus.
b) “Posso, sem armas, revoltar-me?”
c) “Não, o tempo não chegou de completa justiça.”
ANDRADE, Carlos Drummond de.
d) “O tempo é ainda de fezes, maus poemas, De alguma poesia (1930).
alucinações e espera.”
e) “Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Na visão de Fávero (2000), há paralelismo a partir do
8. momento em que as estruturas são reutilizadas, mas
O ENTERRADO VIVO com diferentes conteúdos, ou seja, “um meio para
deixar fluir o texto” (p. 81). Diante disso, depreende-se
É sempre no passado aquele orgasmo,
que
é sempre no presente aquele duplo,
a) no título há paralelismo, visto que é ativado um
é sempre no futuro aquele pânico.
frame: o retrato da vida em uma cidadezinha do
É sempre no meu peito aquela garra. interior.
É sempre no meu tédio aquele aceno. b) no último verso há paralelismo, visto que se tem
É sempre no meu sono aquela guerra. resumida a concepção sobre a vida que aí se leva:
É sempre no meu trato o amplo distrato. “Eta vida besta, meu Deus”.
Sempre na minha firma a antiga fúria. c) em “Vai devagar”, a recorrência imprime ao texto
Sempre no mesmo engano outro retrato. um caráter concreto: na cidadezinha tudo vai
devagar e a única ação está nas janelas.
É sempre nos meus pulos o limite. d) a semelhança lexical entre “bananeiras” e
É sempre nos meus lábios a estampilha. “laranjeiras” acentua o fluxo do texto, tornando as
É sempre no meu não aquele trauma. diferenças semânticas lexicais reutilizáveis, em meio
ao conteúdo paralelo do poema.
Sempre no meu amor a noite rompe.
e) em “um”, a recorrência imprime ao texto um caráter
Sempre dentro de mim meu inimigo.
imaginário da existência de um objeto referido e
E sempre no meu sempre a mesma ausência.
paralelo ao conteúdo dos versos.

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10. De acordo com o texto, afirma-se:


FRAGMENTO DO POEMA “A MORTE DO I. Em plena madrugada, o leiteiro cumpre um papel
LEITEIRO”, DE CARLOS DRUMMOND DE fundamental na distribuição de um leite bom que
ANDRADE. alimenta inclusive gente ruim.
II. Na sua ríspida e barulhenta marcha, o leiteiro acorda
Há pouco leite no país preciso todos que dormem nas casas nas quais o leite é
entregá-lo cedo.
entregue.
Há muita sede no país,
III. De forma premeditada, o morador mata o raivoso
é preciso entregá-lo cedo.
Há no país uma legenda, leiteiro que se aproxima também para assaltá-lo.
que ladrão se mata com tiro. IV. Devido a um trágico engano, um cidadão inocente é
Então o moço que é leiteiro morto no exercício da profissão.
de madrugada com sua lata
sai correndo e distribuindo As afirmativas corretas são, apenas,
leite bom para gente ruim. a) I e IV.
(...) b) II e III.
c) II e IV.
E como a porta dos fundos d) I, II e III.
também escondesse gente e) I, III e IV.
que aspira ao pouco de leite
disponível em nosso tempo,
11. Para responder à questão, leia o poema “Retrato de
avancemos por esse beco,
peguemos o corredor, família” de Carlos Drummond de Andrade.
depositemos o litro...
Sem fazer barulho, é claro, RETRATO DE FAMÍLIA
que barulho nada resolve.
Meu leiteiro tão sutil Este retrato de família
de passo maneiro e leve, está um tanto empoeirado.
antes desliza que marcha. Já não se vê no rosto do pai
É certo que algum rumor quanto dinheiro ele ganhou.
sempre se faz: passo errado,
vaso de flor no caminho, Nas mãos dos tios não se percebem
cão latindo por princípio, as viagens que ambos fizeram.
ou um gato quizilento. A avó ficou lisa, amarela,
E há sempre um senhor que acorda, sem memórias da monarquia.
resmunga e torna a dormir.
Os meninos, como estão mudados.
Mas este entrou em pânico
O rosto de Pedro é tranquilo,
(ladrões infestam o bairro),
não quis saber de mais nada. usou os melhores sonhos.
O revólver da gaveta E João não é mais mentiroso.
saltou para sua mão.
Ladrão? se pega com tiro. O jardim tornou-se fantástico.
Os tiros na madrugada As flores são placas cinzentas.
liquidaram meu leiteiro. E a areia, sob pés extintos,
Se era noivo, se era virgem, é um oceano de névoa.
se era alegre, se era bom,
não sei, No semicírculo de cadeiras
é tarde para saber. nota-se certo movimento.
(...) As crianças trocam de lugar,
mas sem barulho: é um retrato.
Da garrafa estilhaçada.
no ladrilho já sereno
escorre uma coisa espessa Vinte anos é um grande tempo.
que é leite, sangue... não sei Modela qualquer imagem.
Por entre objetos confusos, Se uma figura vai murchando,
mal redimidos da noite, outra, sorrindo, se propõe.
duas cores se procuram,
suavemente se tocam, Esses estranhos assentados,
amorosamente se enlaçam, meus parentes? Não acredito.
formando um terceiro tom São visitas se divertindo
a que chamamos aurora. numa sala que se abre pouco.

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Ficaram traços da família 12.


perdidos nos jeitos dos corpos.
Bastante para sugerir Convívio
que um corpo é cheio de surpresas. Cada dia que passa incorporo mais esta verdade,
A moldura deste retrato de que eles não vivem senão em nós
em vão prende suas personagens. e por isso vivem tão pouco; tão intervalado; tão débil.
Estão ali voluntariamente, Fora de nós é que talvez deixaram de viver, para
saberiam – se preciso – voar. o que se chama tempo.

Poderiam sutilizar-se E essa eternidade negativa não nos desola.


no claro-escuro do salão, Pouco e mal que eles vivam, dentro de nós,
ir morar no fundo de móveis é vida não obstante.
E já não enfrentamos a morte, de sempre
ou no bolso de velhos coletes.
trazê-la conosco.
Mas, como estão longe, ao mesmo tempo que nossos
A casa tem muitas gavetas atuais habitantes
e papéis, escadas compridas. e nossos hóspedes e nossos tecidos e a circulação nossa!
Quem sabe a malícia das coisas, A mais tênue forma exterior nos atinge.
quando a matéria se aborrece? O próximo existe. O pássaro existe,
E eles também existem, mas que oblíquos! e mesmo
O retrato não me responde, sorrindo, que disfarçados…
ele me fita e se contempla
nos meus olhos empoeirados. Há que renunciar a toda procura.
E no cristal se multiplicam Não os encontraríamos, ao encontrá-los.
Ter e não ter em nós um vaso sagrado,
um depósito, uma presença contínua,
os parentes mortos e vivos.
esta é nossa condição, enquanto,
Já não distingo os que se foram sem condição, transitamos
dos que restaram. Percebo apenas e julgamos amar
a estranha ideia de família e calamo-nos.

viajando através da carne. Ou talvez existamos somente neles, que são omissos,
e nossa existência,
Carlos Drummond de Andrade.
apenas uma forma impura de silêncio, que preferiram.
Com base no texto, afirma-se: Carlos Drummond de Andrade, em “A família que me dei”, no livro
I. Ao remontar lembranças familiares, o retrato assume “Carlos Drummond de Andrade – Antologia poética” [organizada
contornos fantasmáticos nos seus pequenos detalhes, pelo autor].
54ª ed., Rio de Janeiro: Record, 2004, p. 98.
que parecem metamorfosear elementos como o
jardim e os próprios parentes. Com relação ao poema, considere as assertivas:
II. Os limites físicos do retrato, definidos pela moldura, I. Na primeira estrofe, o eu lírico afirma que os nossos
são ultrapassados pela sugestão de imagens que mortos têm uma existência dentro de nós, portanto
simbolizam uma realidade lírica de reminiscências. esparsa e curta.
III. O retrato de família caracteriza-se como um II. Nos versos da segunda estrofe, o eu lírico afirma
elemento mágico que responde fielmente às dúvidas que as lembranças dos familiares causam um
do cotidiano dos familiares. sentimento negativo, desolador no sujeito.
IV. O poema propõe uma metáfora sobre a invenção do III. Na terceira estrofe, identificamos o emprego da
figura de linguagem denominada paradoxo.
passado, enquanto perspectiva do observador.
Está correto o que se diz em:
A(s) afirmativa(s) correta(s) é/são: a) I, II e III.
a) I, apenas. b) I e II.
b) II, apenas. c) II e III.
c) III, apenas. d) I apenas.
d) I, II e IV, apenas. e) I e III.
e) I, II, III e IV.

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13. 14. Leia a primeira estrofe do famoso poema “Mãos


ODE NO CINQUENTENÁRIO DO Dadas”, de Carlos Drummond de Andrade, publicado
POETA BRASILEIRO no livro O Sentimento do Mundo.

(...) “Não serei o poeta de um mundo caduco. Também não


cantarei o mundo futuro. Estou preso à vida e olho meus
Certamente não sabias
companheiros. Estão taciturnos mas nutrem grandes
que nos fazes sofrer. esperanças. Entre eles, considero a enorme realidade. O
É difícil de explicar presente é tão grande, não nos afastemos. Não nos
esse sofrimento seco (...) afastemos muito, vamos de mãos dadas. [...]”
Não é o canto da andorinha, debruçada (ANDRADE, C. Nova Reunião: 23 livros de poesia - volume 1. Carlos
Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: BestBolso, 2009. p. 99.)
nos telhados da Lapa,
anunciando que tua vida passou à toa, à toa. Identifique, entre as alternativas a seguir, aquela que
melhor sintetiza a(s) ideia(s) principal(is) do poema.
Não é o médico mandando exclusivamente a) A realidade é uma fantasia que só pode ser
tocar um tango argentino, compreendida à base de afeto.
diante da escavação no pulmão esquerdo b) O eu lírico expresso pelo autor está preso e
e do pulmão direito infiltrado. conectado ao tempo passado.
c) O foco do poema está exclusivamente nas ações
Não são os carvoeirinhos raquíticos futuras.
voltando encarapitados nos burros velhos. d) Percebe-se um sentimento de satisfação com a
Não são os mortos do Recife dormindo tradição poética.
e) O poema expressa uma importância extrema com o
profundamente na noite.
momento presente e aqueles que o vivem.
Nem é tua vida, nem a vida do major veterano
da guerra do Paraguai, 15. Leia o poema a seguir de autoria de Carlos Drummond
a de Bentinho Jararaca de Andrade.
ou a de Christina Georgina Rossetti: SENTIMENTO DO MUNDO
és tu mesmo, é tua poesia,
tua pungente, inefável poesia, Tenho apenas duas mãos
e o sentimento do mundo,
ferindo as almas, sob a aparência balsâmica,
mas estou cheio de escravos,
queimando as almas, fogo celeste, ao visitá-las; minhas lembranças escorrem
é o fenômeno poético, de que te constituíste e o corpo transige
o misterioso portador na confluência do amor.
e que vem trazer-nos na aurora o sopro Quando me levantar, o céu
quente dos mundos, estará morto e saqueado,
das amadas exuberantes e das situações eu mesmo estarei morto,
morto meu desejo, morto
exemplares que não suspeitávamos.
o pântano sem acordes.
O trecho anterior integra o poema “Ode no Os camaradas não disseram
Cinquentenário do Poeta Brasileiro”, da obra Sentimento que havia uma guerra
do Mundo de Carlos Drummond de Andrade. Dele não é e era necessário
correto afirmar que trazer fogo e alimento.
a) utiliza construção que se faz por um jogo antitético Sinto-me disperso,
consubstanciado por significativo uso de anáforas. anterior a fronteiras,
b) indicia a figura do poeta Manuel Bandeira, objeto da humildemente vos peço
Ode (homenagem), pelas citações de expressivos que me perdoeis.
poemas que conformam seu universo estético.
c) revela que o que importa não são os poemas nas Quando os corpos passarem,
particularidades de seus temas, mas o fenômeno eu ficarei sozinho
poético mesmo em sua essência e que faz do poeta desfiando a recordação
do sineiro, da viúva e do microscopista
seu misterioso portador.
que habitavam a barraca
d) apresenta uma quebra do ritmo poético motivada
e não foram encontrados
pelo uso reiterado do gerúndio e pela ausência de ao amanhecer
correlação sintática entre as orações que se mostram
propositalmente incompletas. esse amanhecer
e) Constitui um poema de homenagem, incursionando mais noite que a noite.
pela obra do poeta Manuel Bandeira e apresentando
ANDRADE, Carlos Drummond. Sentimento do mundo. In: ______.
características e temas do discurso do poeta Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1964
pernambucano.

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Sobre o poema, “Sentimento do mundo”, é correto Com base na leitura do trecho do poema de Carlos
afirmar que: Drummond de Andrade, que integra a coletânea
a) O sujeito lírico é otimista em relação à sua atuação Sentimento do mundo, pode-se afirmar que o autor
no mundo. a) demonstra uma preocupação maior com a forma em
b) O sujeito lírico se sente impotente diante dos detrimento do tema desenvolvido.
acontecimentos.
b) enfatiza a injustiça social, priorizando esse tema em
c) O sujeito lírico mostra-se alienado dos problemas
cotidianos. relação às propostas estéticas cultivadas pelo
d) O sujeito lírico revela-se pragmático em relação à Modernismo.
vida. c) passa a cultivar uma nova maneira de fazer poesia,
e) O sujeito lírico manifesta uma postura de abandonando as pressões estéticas do Modernismo.
radicalização ideológica em relação ao mundo. d) revela dubiedade entre apegar-se à estrutura formal
do poema e dar vazão à crescente confusão
16. sentimental que caracteriza a fase madura de sua
MÃOS DADAS poesia.
e) passa a apresentar preocupações que não se
Não serei o poeta de um mundo caduco.
mostravam presentes nas primeiras fases de sua
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros. trajetória poética.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade. 18.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas. Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história. Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Não direi suspiros ao anoitecer, a paisagem vista na Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
janela. Entre eles, considero a enorme realidade.
Não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida.
Não fugirei para ilhas nem serei raptado por serafins.
Os versos anteriores, do poema “Mãos dadas”, de Carlos
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os Drummond de Andrade, prendem-se a uma fase de sua
homens presentes, poesia na qual o poeta mineiro,
a vida presente a) promovendo um balanço crítico de sua poesia,
ANDRADE, C. D. Sentimento do mundo. aventura-se em novas formas poéticas, de caráter
São Paulo: Cia. das Letras, 2012.
experimental.
Escrito em 1940, o poema Mãos dadas revela um eu b) influenciado diretamente por Oswald de Andrade,
lírico marcado pelo contexto de opressão política no passa a compor epigramas irônicos.
Brasil e da Segunda Guerra Mundial. Em face dessa c) relativizando a ironia que caracterizava momentos
realidade, o eu lírico anteriores, escreve poemas de cunho político-social.
a) considera que em sua época o mais importante é a d) desiludido com os rumos do mundo contemporâneo,
independência dos indivíduos. recolhe-se à intimidade e passa a refletir sobre o
b) desvaloriza a importância dos planos pessoais na absurdo da existência.
vida em sociedade. e) já na casa dos setenta anos, entrega-se a um
c) reconhece a tendência à autodestruição em uma memorialismo em tom de crônica, revivendo suas
sociedade oprimida.
experiências juvenis.
d) escolhe a realidade social e seu alcance individual
como matéria poética.
e) critica o individualismo comum aos românticos e 19.
aos excêntricos. “Não faça versos sobre acontecimentos,
Não há criação nem morte perante a poesia.
17.
Diante dela, a vida é um sol estático,
MÃOS DADAS
Não aquece nem ilumina.”
Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro. [...] Uma das constantes da obra de Carlos Drummond de
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história, Andrade, como se verifica nos versos anteriores, é:
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista a) a louvação do homem social.
da janela, não distribuirei entorpecentes ou cartas b) negativismo destrutivo.
de suicida, não fugirei para as ilhas nem serei raptado c) a violação e desintegração da palavra.
por serafins. d) pessimismo lírico.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, e) questionamento da própria poesia.
os homens presentes, a vida presente.

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20. Sobre o soneto “A Ingaia Ciência”, é possível afirmar


que para o poeta
PROCURA DA POESIA a) A maturidade proporciona a aquisição de
conhecimento, o que provoca uma visão mais
Não faças versos sobre acontecimentos.
engajada do sujeito poético.
Não há criação nem morte perante a poesia.
b) A existência é destituída de força poética, visto que
Diante dela, a vida é um sol estático,
formalmente rígido, não apresenta nenhum recurso
não aquece nem ilumina.
estilístico.
(...) c) A maturidade, ao proporcionar um maior
conhecimento da realidade, produz desencanto e
Penetra surdamente no reino das palavras. inquietação.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos. d) A poesia é dominantemente constituída pela
Estão paralisados, mas não há desespero, expressividade lírica, afastando-se da enganosa
há calma e frescura na superfície intata. ciência.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário. e) A ciência apresenta uma face poética, tornando-se
razão para discutir a maturidade do sujeito.
(...)
22.
No contexto do livro, a afirmação do caráter verbal da
poesia e a incitação a que se penetre “no reino das O LUTADOR
palavras”, presentes no excerto, indicam que, para o
poeta Lutar com palavras
a) a prática da arte pela arte é a maneira mais eficaz de é a luta mais vã
se opor ao mundo capitalista.
Entanto lutamos
b) a procura da boa poesia começa pela estrita
observância da variedade padrão da linguagem. mal rompe a manhã
c) fazer poesia é produzir enigmas verbais que não (...)
podem nem devem ser interpretados. Lutar com palavras
d) as intenções sociais da poesia não a dispensam de ter parece sem fruto.
em conta o que é próprio da linguagem.
Não têm carne e sangue…
e) os poemas metalinguísticos, nos quais a poesia fala
apenas de si mesma, são superiores aos poemas que Entretanto, luto.
falam também de outros assuntos. Palavra, palavra
(digo exasperado),
21. Leia o poema para responder à questão.
se me desafias,
A INGAIA CIÊNCIA aceito o combate.
Carlos Drummond de Andrade
A madureza, essa terrível prenda
que alguém nos dá, raptando-nos, com ela, Tema frequente na poética de Drummond, os versos
sugerem o fato de:
todo sabor gratuito de oferenda
a) os homens insistirem, ao longo da história, numa
sob a glacialidade de uma estrela,
discussão político-ideológica, sabendo tratar-se de
a madureza vê, posto que a venda um embate inútil.
interrompa a surpresa da janela, b) o homem moderno travar, desde o início da vida
(“manhã”), uma luta contra a existência, luta essa
o círculo vazio, onde se estenda,
completamente frustrada.
e que o mundo converte numa cela.
c) o “eu” lírico questionar a força da poesia, ou do
A madureza sabe o preço exato discurso, e mesmo assim não abdicar de enfrentar,
dos amores, dos ócios, dos quebrantos, com esse instrumento de luta, as adversidades.
d) a palavra ser um instrumento ineficaz de luta,
e nada pode contra sua ciência
aspecto que conduz o “eu” lírico coletivo a um
e nem contra si mesma. O agudo olfato, pessimismo quase destrutivo.
o agudo olhar, a mão, livre de encantos, e) haver uma desarmonia social a qual não pode ser
se destroem no sonho da existência. solucionada apenas com o uso de discursos ou
ideologias vãs.

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23. 25. Leia, atentamente, o seguinte poema:


INGAIA CIÊNCIA
Que pode uma criatura senão,
A madureza, essa terrível prenda entre criaturas, amar?
que alguém nos dá, raptando-nos, com ela, amar e esquecer,
todo sabor gratuito de oferenda amar e malamar,
sob a glacialidade de uma estela¹, amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?
a madureza vê, posto que a venda
interrompa a surpresa da janela,
Que pode, pergunto, o ser amoroso,
o círculo vazio, onde se estenda,
sozinho, em rotação universal, senão
e que o mundo converte numa cela.
rodar também, e amar?
A madureza sabe o preço exato amar o que o mar traz à praia,
dos amores, dos ócios, dos quebrantos, e o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
e nada pode contra sua ciência é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

e nem contra si mesma. O agudo olfato, Amar solenemente as palmas do deserto,


o agudo olhar, a mão, livre de encantos, o que é entrega ou adoração expectante,
se destroem no sonho da existência. e amar o inóspito, o áspero,
ANDRADE, Carlos Drummond de. Claro enigma. 4. um vaso sem flor, um chão de ferro,
ed. Rio de Janeiro: Record, 1991, p. 18 e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave
de rapina.
Em “Ingaia Ciência”, o eu lírico de Carlos Drummond
de Andrade revela-se: Este o nosso destino: amor sem conta,
a) revoltado contra a alienação imposta pelo
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
amadurecimento, que aprisiona o ser humano em
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
uma realidade ilusória.
b) resignado em face da madureza, que afasta o ser e na concha vazia do amor a procura medrosa,
humano dos prazeres e impõe a triste constatação do paciente, de mais e mais amor.
vazio da existência.
c) engajado em combater os efeitos nocivos do Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
envelhecimento, fenômeno responsável por amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.
enclausurar o ser humano em uma “cela”. O poema “Amar” integra a segunda parte, “Notícias
d) perplexo ao compreender que a madureza, apesar de Amorosas”, do livro Claro enigma, de Carlos
consistir no envelhecimento do corpo, liberta o ser Drummond de Andrade. Sobre esse poema, assinale a
humano dos prazeres mundanos. alternativa correta.
a) As indagações repetitivas, nas duas primeiras
24. estrofes, reiteram a inviabilidade do amor diante de
Tenho apenas duas mãos um mundo em que tudo é perecível.
o sentimento do mundo, b) O poeta estabelece uma intensidade da manifestação
mas estou cheio de escravos, do amor com relação ao belo diferente da
minhas lembranças escorrem intensidade do amor dispensado ao grotesco.
e o corpo transige c) Para acentuar a condição inexorável de amar, o
na confidência do amor. poema enumera coisas que, por sua concretude e
delicadeza naturais, justificam o amor que já
Da leitura do texto anterior, trecho de “Sentimento do recebem.
mundo”, de Carlos Drummond de Andrade, só não d) O poema postula uma condição universal, na qual se
está presente a alusão à fundem o sujeito, a ação praticada e os objetos a que
a) precariedade do indivíduo. essa ação se dirige.
b) sensibilidade ao sofrimento coletivo. e) A última estrofe é a chave explicativa desse soneto e
c) consciência social.
reitera a ineficácia do amor diante de um mundo
d) presença do passado.
caótico e insensível.
e) busca da religiosidade.

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26. Leia o poema de Carlos Drummond de Andrade: 27.


CANTIGA DE ENGANAR
A FEDERICO GARCIA LORCA
(...)
Sobre teu corpo, que há dez anos O mundo não tem sentido.
se vem transfundindo em cravos O mundo e suas canções
de timbre mais comovido
de rubra cor espanhola,
estão calados, e a fala
aqui estou para depositar que de uma para outra sala
vergonha e lágrimas. ouvimos em certo instante
é silêncio que faz eco
Vergonha de há tanto tempo e que volta a ser silêncio
viveres — se morte é vida — no negrume circundante.
Silêncio: que quer dizer?
sob chão onde esporas tinem
Que diz a boca do mundo?
e calcam a mais fina grama Meu bem, o mundo é fechado,
e o pensamento mais fino se não for antes vazio.
de amor, de justiça e paz. O mundo é talvez: e é só.
Talvez nem seja talvez.
Lágrimas de noturno orvalho, O mundo não vale a pena,
mas a pena não existe.
não de mágoa desiludida, Meu bem, façamos de conta.
lágrimas que tão-só destilam De sofrer e de olvidar,
desejo e ânsia e certeza de lembrar e de fruir,
de que o dia amanhecerá. de escolher nossas lembranças
e revertê‐las, acaso
(Amanhecerá.) se lembrem demais em nós.
Façamos, meu bem, de conta
Esse claro dia espanhol, – mas a conta não existe –
composto na treva de hoje que é tudo como se fosse,
sobre teu túmulo há de abrir-se, ou que, se fora, não era.
(...)
mostrando gloriosamente
— ao canto multiplicado Carlos Drummond de Andrade, Claro Enigma.
de guitarra, gitano e galo —
Em Claro Enigma, a ideia de engano surge sob a
que para sempre viverão perspectiva do sujeito maduro, já afastado das ilusões,
os poetas martirizados. como se lê no verso‐síntese “Tu não me enganas,
mundo, e não te engano a ti.” (“Legado”). O excerto de
Disponível em: http://bit.ly/2vxBkG8 “Cantiga de enganar” apresenta a relação do eu com o
mundo mediada
Federico Garcia Lorca foi um poeta e dramaturgo a) pela música, que ressoa em canções líricas.
espanhol morto na Guerra Civil Espanhola. Os detalhes b) pela cor, brilhante na claridade solar.
de seu assassinato, bem como o paradeiro de seu corpo, c) pela afirmação de valores sólidos.
até hoje são incertos e motivo de grande discussão entre d) pela memória, que corre fluida no tempo.
os estudiosos de sua obra. No poema anterior, Carlos e) pelo despropósito de um faz‐de‐conta.
Drummond de Andrade:
a) denuncia a vergonha que sente de Federico Garcia 28.
Lorca, já que o artista foi morto por demonstrar Quando nasci, um anjo torto
ideais com os quais Drummond não concordava. desses que vivem na sombra
b) homenageia o poeta, no aniversário de dez anos de disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.
sua morte, mostrando tristeza e vergonha por nunca
As casas espiam os homens
ter sido feita justiça pelo seu assassinato.
que correm atrás de mulheres.
c) demonstra total descrença em um futuro melhor para
A tarde talvez fosse azul,
o povo espanhol, pois mortes como a de Lorca
não houvesse tantos desejos.
marcaram de maneira muito profunda o povo.
d) reclama da maneira como se deu a morte do poeta e O bonde passa cheio de pernas:
dramaturgo, garantindo que por isso Garcia Lorca pernas brancas pretas amarelas.
acabará por ser esquecido pelas futuras gerações. Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
e) exalta o poeta e dramaturgo espanhol Federico Porém meus olhos
Garcia Lorca, anos após a morte do artista, mas não não perguntam nada.
menciona nada sobre a sua cidade natal. [...]
ANDRADE, Carlos Drummond. Antologia Poética.

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No trecho do “Poema de sete faces”, o eu lírico ilustra o Que cruel, obscuro instinto
seu “gauchismo”, evidenciado pelo (a): movia sua mão pálida
a) desajuste do sujeito, entendido como uma danação sutilmente nos empurrando
figurativamente decretada por um “anjo torto”.
pelo tempo e pelos lugares
b) angústia do eu lírico diante de um mundo que o
condenou e o desprezou. defendidos?
c) dilema do sujeito em relação ao seu destino de poeta
num mundo que entrava em Guerra. Olhei-o nos olhos brancos.
d) desprezo do poeta pela humanidade, pela religião e Gritei-lhe: Fala! Minha voz
pela modernidade da máquina. vibrou no ar um momento,
e) solidão do eu lírico, vítima do isolamento social, o bateu nas pedras. A sombra
que o afasta da realidade social de seu tempo.
prosseguia devagar
29. aquela viagem patética
“O bonde passa cheio de pernas: através do reino perdido.
pernas brancas pretas amarelas. Porém nada dizia.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos [...]
não perguntam nada.”
DRUMMOND, Carlos Drummond. Antologia Poética.
Nos versos do “Poema de sete faces”, constata-se que o
eu lírico manifesta um sentimento de: Com relação ao poema, considere as assertivas:
a) alívio por não se sentir parte do mundo, o que I. Tomando a sombra do pai como guia de sua viagem,
confirma seu comportamento gauche.
Drummond constrói gradualmente imagens
b) revolta ao confrontar-se com a realidade de um
mundo tomado pela modernidade. associadas à sua história e ao passado de sua família;
c) resignação diante de sua destinação profética II. Conjugando um cenário silencioso e agonizante, os
anunciado pelo anjo que vive na sombra. versos são marcados pela sensação de
d) resiliência, observada na perseverança do eu lírico incomunicabilidade;
no enfrentamento de seus dramas. III. Revisitando o passado familiar, o eu lírico busca a
e) perplexidade do sujeito diante de um mundo em que expiação de seus erros, reconstruindo um reino
não se encaixa, o que produz o isolamento.
perdido em suas memórias antigas.
30.
VIAGEM NA FAMÍLIA Está correto o que se diz em:
a) I, II e III.
No deserto de Itabira b) I, apenas.
a sombra de meu pai c) II, apenas.
tomou-me pela mão.
d) II e III.
Tanto tempo perdido.
Porém nada dizia. e) I e II.
Não era dia nem noite.
Suspiro? Voo de pássaro? • Texto para as questões 31 e 32.
Porém nada dizia.
CONGRESSO INTERNACIONAL DO MEDO
[...]
No deserto de Itabira
as coisas voltam a existir, Provisoriamente não cantaremos o amor,
irrespiráveis e súbitas. que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
O mercado de desejos Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
expõe seus tristes tesouros: não cantaremos o ódio porque esse não existe,
meu anseio de fugir; existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
mulheres nuas; remorso;
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
Porém nada dizia.
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
Pisando livros e cartas, cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
viajamos na família. cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte,
Casamentos; hipotecas; depois morreremos de medo e sobre nossos túmulos
os primos tuberculosos; nascerão flores amarelas e medrosas.
a tia louca; minha avó
traída com as escravas, Carlos Drummond de Andrade, Sentimento do mundo.
rangendo sedas na alcova. In: Poesia e prosa.
Porém nada dizia.

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31. É correto afirmar que, nesse poema, o eu lírico 34.


a) mostra a atitude anarquista própria da primeira A MÁQUINA DO MUNDO
geração modernista, expressa no uso da ironia e do E como eu palmilhasse vagamente
humor. uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco
b) resgata ideais da poesia romântica, trazendo à cena
uma visão falseada da realidade. se misturasse ao som de meus sapatos
c) aponta para o contexto histórico em que o poema foi que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas
produzido, tematizando questões que afetavam a
vida social. lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
d) explicita uma clara propensão à nostalgia, e de meu próprio ser desenganado,
procurando valorizar o tema clássico da fuga da
realidade aterradora. a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e) distancia-se de temas que possam associar-se à ideia e só de o ter pensado se carpia.
de consciência crítica do mundo.
Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
32. Na leitura desse poema, podem-se apontar uma seleção nem um clarão maior que o tolerável
de palavras que permitem afirmar que sua temática é
pelas pupilas gastas na inspeção
relacionada à Segunda Guerra Mundial. Essa escolha contínua e dolorosa do deserto,
lexical está indicada na alternativa: e pela mente exausta de mentar
a) amor, medo e abraços. toda uma realidade que transcende
b) companheiro, sertões e desertos. a própria imagem sua debuxada
c) internacional, ditadores e morte. no rosto do mistério, nos abismos.
d) subterrâneos, mães e flores. Abriu-se em calma pura, e convidando
e) igrejas, democratas e medrosas. quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera
33. e nem desejaria recobrá-los,
OS MORTOS DE SOBRECASACA se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,
[...]
Havia a um canto da sala um álbum de fotografias
intoleráveis, Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
alto de muitos metros e velho de infinitos minutos, pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,
em que todos se debruçavam
a esperança mais mínima — esse anelo
na alegria de zombar dos mortos de sobrecasaca.
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;
Um verme principiou a roer as sobrecasacas indiferentes [...]
Antologia Poética, Carlos Drummond de Andrade.
e roeu as páginas, as dedicatórias e mesmo a poeira dos
retratos. Considerando as estrofes do poema “A Máquina do
Só não roeu o imortal soluço de vida que rebentava Mundo”, analise as afirmações:
I. O poema é costurado por um tom sombrio e
que rebentava daquelas páginas.
monótono, demarcando uma atmosfera de
Antologia Poética, Carlos Drummond de Andrade. pessimismo, aspecto confirmado pelo uso de
expressões como “céu chumbo”, “formas pretas”,
“escuridão maior” e “ser desenganado”;
Com base na leitura do texto, não se pode concluir que: II. Os versos revelam o lirismo filosófico e existencial
a) o poema desenvolve um sentimento sutil, mas do poeta sob a configuração de uma máquina que se
profundo sobre objetos que rodeiam o sujeito lírico. mostra a um desiludido viajante;
b) o “álbum de fotografias” pode ser entendido como III. O poema personifica um caminhante que aceita o
convite que lhe é feito, decifrando a máquina do
um sinal de lirismo, pois remete às sensações mundo e compreendendo, assim, o sentido íntimo da
íntimas do sujeito lírico. vida e de tudo;
c) o poema se afasta de qualquer traço de lirismo, pois IV. As estrofes iniciais do poema revelam que o
não se trata de um texto amoroso. enunciador caminha sozinho, identificando-se com a
paisagem árdua através da escuridão maior, vinda
d) o poema trata da experiência afetiva da memória, dos montes e de seu próprio ser desenganado.
uma das marcas da poesia de Carlos Drummond de
Andrade. Está correto o que se diz em:
a) I, II, III e IV.
e) o “verme” que rói as fotografias simboliza a b) I, II e III.
passagem do tempo, que envelhece as coisas e as c) II, III e IV.
pessoas. d) I, II e IV.
e) I e IV, apenas.

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35. Em “A rosa do povo”, Carlos Drummond buscou obter • Texto para as questões 36 e 37.
um ponto de equilíbrio entre a função social e a função
estética do texto poético. Uma de suas estratégias para A MÃO SUJA
tal baseava-se na exploração da palavra pelo poeta em
sua potencialidade máxima, como se revela no poema Minha mão está suja. Ai, quantas noites
“Procura da poesia”. Sob essa perspectiva, leia o poema Preciso cortá-la. no fundo de casa
“Áporo” e depois a definição da palavra “áporo” do Não adianta lavar. lavei essa mão,
dicionário.
A água está podre. poli-a, escovei-a.
Nem ensaboar. Cristal ou diamante,
Um inseto cava
cava sem alarme O sabão é ruim. por maior contraste,
perfurando a terra A mão está suja, quisera torná-la,
sem achar escape. suja há muitos anos. ou mesmo, por fim,
uma simples mão
Que fazer, exausto, A princípio oculta branca,
em país bloqueado, no bolso da calça, não limpa de homem,
enlace de noite quem o saberia? que se pode pegar
raiz e minério? Gente me chamava e levar à boca
na ponta do gesto. ou prender à nossa
Eis que o labirinto
Eu seguia, duro. num desses momentos
(oh razão, mistério)
presto se desata: A mão escondida em que dois se
no corpo espalhava confessam
em verde, sozinha, seu escuro rastro. sem dizer palavra...
antieuclidiana, A mão incurável
uma orquídea forma-se. E vi que era igual abre dedos sujos.
Antologia Poética, Carlos Drummond de Andrade usá-la ou guardá-la. [...]
O nojo era um só.
“Áporo, s. m. (Didát.) Problema difícil ou impossível de Antologia poética, Carlos Drummond de Andrade
resolver // (Bot.) Gênero de plantas da família das
orquidáceas, composto de várias espécies, todas 36. Considerando que o poema foi publicado no livro
herbáceas, de flores quase solitárias, ordinariamente “José”, obra da 2ª fase da poesia de Drummond, analise
esverdinhadas. // (Zool.) Gênero de insetos as assertivas:
himenópteros, da família dos cavadores, cujo tipo é o I. Cortar a própria mão denota simbolicamente o
áporo-bicolor. // F. gr. Aporos (difícil, sem saída).” empenho do poeta em manter-se isolado, distante do
Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa Caldas Aulete. mundo moderno, validando sua ligação com Itabira;
Apud. PIGNATARI, Décio. “Áporo”. In: Contracomunicação. 3. ed. II. Decepar o próprio corpo seria a maneira de
Cotia: Ateliê Editorial, 2004, p. 138.
purificação da sujeira impregnada na mão,
metonímia para o corpo todo;
Com base nas informações dadas e no poema “Áporo”,
III. Observa-se nos versos a ideia de mutilação como
assinale a alternativa correta.
forma drástica, agressiva e punitiva do poeta
a) É um poema metalinguístico, em que o áporo é
consigo mesmo.
metáfora do poeta (o inseto cavador) e da poesia (a
orquídea), mas indica também a dificuldade de
Está correto o que se diz em:
elaborar uma poesia de resistência sócio-política.
a) I e III
b) Os versos “enlace de noite / raiz e minério”
b) II e III, apenas.
introduzem uma crítica contra a mineração
c) I e II, apenas.
predatória em Itabira(MG), terra natal do poeta,
d) II, apenas.
onde a extração de ferro degradou boa parte da
e) I, II e III.
paisagem.
c) A forma do poema é solta e desordenada,
37. Com base no poema, pode-se inferir que o eu lírico
apresentando estrofes e métrica irregulares, o que
manifesta
remete ao caos labiríntico de onde o inseto busca
a) a autonegação provocada pelo sentimento de culpa e
escapar ou ao desenho confuso da orquídea.
de limitação.
d) O termo “antieuclidiana” refere-se a Euclides (pai da
b) a vocação como poeta engajado e como formador de
geometria clássica), indicando a negação do
opinião.
racionalismo por Drummond, o que o levou a
c) a autocrítica ao seu fazer poético, propondo uma
configurar esse poema como um texto ininteligível.
revisão de seu discurso.
e) O poema resume-se a um mero exercício lúdico, em
d) o engajamento social, sugerindo a mutilação das
que as palavras são contempladas, manipuladas,
injustiças sociais.
transformadas, destituídas de qualquer significado
e) a ideia de transformação e renovação por meio do
ou intenção implícita.
sacrifício pessoal.

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38. Minha mãe ficava sentada cosendo


I / SÃO FRANCISCO DE ASSIS* olhando para mim:
– Psiu… Não acorde o menino.
Senhor, não mereço isto.
Para o berço onde pousou um mosquito.
Não creio em vós para vos amar.
E dava um suspiro… que fundo!
Trouxestes-me a São Francisco
e me fazeis vosso escravo.
Lá longe meu pai campeava
Não entrarei, senhor, no templo, no mato sem fim da fazenda.
seu frontispício me basta.
Vossas flores e querubins E eu não sabia que a minha história
são matéria de muito amar. era mais bonita que a de Robinson Crusoé.
Antologia poética, Carlos Drummond de Andrade.
Dai-me, senhor, a só beleza
destes ornatos. E não a alma. No poema, o eu lírico, em sua revisitação ao passado,
Pressente-se dor de homem, alude ao romance Robinson Cruzoé, escrito por Daniel
paralela à das cinco chagas. Defoe. Nesse livro, o personagem Robinson Cruzoé, na
Mas entro e, senhor, me perco condição de náufrago, passou 28 anos em uma remota
na rósea nave triunfal. ilha tropical. No texto de Drummond, o passado
Por que tanto baixar o céu? também se apresenta na condição de ilha para o poeta,
por que esta nova cilada? representando:
a) o espaço das reflexões existenciais, restaurando a
Senhor, os púlpitos mudos formação do sujeito.
entretanto me sorriem. b) o refúgio do poeta em relação ao mundo ordinário,
Mais que vossa igreja, esta tornando-se espaço de liberdade.
sabe a voz de me embalar. c) o individualismo exacerbado, revelando um poeta
Perdão, senhor, por não amar-vos. em conflito com a sua história.
Antologia poética, Carlos Drummond de Andrade. d) a fonte de suas angústias e desencontros
existenciais, manifestando uma perspectiva niilista.
As estrofes anteriores integram “Estampas de Vila e) o ideal de felicidade, incorporando a tendência
Rica”, constituído de 5 poemas ligados a prédios
ultrarromântica da poética de Casimiro de Abreu.
históricos da cidade mineira. No poema, um aspecto
presente no seu discurso é:
a) a dualidade entre pecado e perdão, produzindo um 40. (ITA) Leia atentamente, a primeira estrofe de “Morte do
barroquismo de linguagem. leiteiro”, da seção “Na praça de convites”. Em seguida,
b) o jogo de imagens contrastantes, evocando a assinale a alternativa correta.
natureza dilemática do sujeito.
c) o arrebatamento do eu lírico diante de Deus, Há pouco leite no país,
buscando redenção. é preciso entregá-lo cedo.
d) o delineamento do poema feito em tom de oração.
e) o conflito do eu lírico em dirigir-se a Deus, mas sem Há muita sede no país,
acreditar em sua existência. é preciso entregá-lo cedo.
Há no país uma legenda,
39.
INFÂNCIA que ladrão se mata com tiro.

Meu pai montava a cavalo, ia para o campo. a) os verbos, advérbios e complementos representam
Minha mãe ficava sentada cosendo. uma situação perigosa para quem bebe pouco leite.
Meu irmão pequeno dormia. b) a construção repetitiva dos versos sugere uma tensão
entre as condições de vida, a repetição própria do
Eu sozinho menino entre mangueiras
trabalho moderno e uma moralidade social violenta.
lia a história de Robinson Crusoé,
c) o estilo coloquial do poema está em perfeita
comprida história que não acaba mais.
consonância com os preceitos da poética romântica
do autor.
No meio dia branco de luz uma voz que aprendeu
d) os versos tematizam a luta no campo entre grandes e
a ninar nos longes da senzala – nunca se esqueceu
pequenos pecuaristas dedicados à produção de
chamava para o café.
laticínios no país.
Café preto que nem a preta velha e) a escassez de recursos linguísticos é uma metáfora
café gostoso da escassez de recursos na produção social de
café bom. laticínios no país.

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41. (ITA) Assinale a alternativa que confirma a seguinte 44.


afirmação: a poética de Drummond mantém uma MEMÓRIA
relação ambígua com a memória, com traços de
esperança, embora sem saudosismo ou idealização. Amar o perdido
a) “Eta vida besta, meu Deus.” (“Cidadezinha qualquer”). deixa confundido
b) “amanhecem de novo as antigas manhãs/que não este coração.
vivi jamais, pois jamais me sorriram.” (“Campo de Nada pode o olvido
flores”). contra o sem sentido
c) “Não cantarei amores que não tenho,/;e, quando
apelo do Não.
tive, nunca celebrei.” (“Nudez”).
d) “E como ficou chato ser moderno./Agora serei As coisas tangíveis
eterno.” (“Eterno”). tornam-se insensíveis
e) “Então nos punimos em nossa delícia./O amor à palma da mão.
atinge raso, e fere tanto.” (“Ciclo”).
Mas as coisas findas,
42. (ITA) Para apresentar a sua Antologia poética, Carlos muito mais que lindas,
Drummond de Andrade escreveu: “Algumas poesias essas ficarão.
caberiam talvez em outra seção que não a escolhida, ou Antologia Poética, Carlos Drummond de Andrade
em mais de uma. A razão da escolha está na tônica da
composição, ou no engano do autor.” (“Informação – Com base na leitura do poema, assinale a afirmação que
Nota da primeira edição”). Diante do trecho citado, é não encontra correspondência:
possível afirmar que a) O poema delineia a relação do poeta com o tempo
a) o poeta quer dizer que a divisão é rígida e espelha passado e sua permanência pulsante no tempo
fielmente as fases de sua obra. presente.
b) o poeta admite, com ironia, a própria falibilidade e b) O poema insinua a ideia de que só amamos o que
faculta ao leitor a liberdade de outra organização dos não temos, já que o verdadeiro desejo nunca é
poemas. satisfeito.
c) a Antologia poética deve ser entendida c) O poema apresenta um tom melancólico, sentimento
normativamente, isto é, segundo uma “ordem deflagrado pelo objeto perdido.
interna” inalterável e que representa a chave da d) O poema coloca em oposição o tangível e o
poética de Drummond. intangível, para ressaltar que as coisas findas
d) o poeta retira do leitor a possibilidade de interpretar permanecem na memória.
a sua poesia. e) O poema expressa um eu lírico inconformado com a
e) é evidente a falta de critério para a seleção dos chegada da velhice, apegado à nostalgia das
poemas, o que indica apenas a intenção de lembranças amargas da sua vida.
amostragem, sem qualquer planejamento ou
organização. • Texto para as questões 45, 46 e 47.
43. (ITA) Leia atentamente, os versos destacados de CONSOLO NA PRAIA
“Amar”, da seção “AMAR-AMARO”. Em seguida,
assinale a alternativa correta. Vamos, não chores.
A infância está perdida.
Este o nosso destino: A mocidade está perdida.
amor sem conta, Mas a vida não se perdeu.
distribuído pelas coisas
O primeiro amor passou.
pérfidas ou nulas, O segundo amor passou.
doação ilimitada a uma O terceiro amor passou.
completa ingratidão, Mas o coração continua.
e na concha vazia do
Perdeste o melhor amigo.
amor a procura medrosa, Não tentaste qualquer viagem.
paciente, de mais e mais Não possuis carro, navio, terra.
amor Mas tens um cão.
a) os versos evidenciam que o amor, na poética de Algumas palavras duras,
Drummond, não representa um tema importante e é em voz mansa, te golpearam.
apenas ligeiramente abordado em seus poemas. Nunca, nunca cicatrizam.
b) os versos evidenciam a centralidade do amor erótico Mas, e o humor?
na poética de Drummond, por meio do qual a
subjetividade individual se exprime. A injustiça não se resolve.
c) os versos evidenciam que, na poética de Drummond, À sombra do mundo errado
o amor vai além do sentimentalismo individual para murmuraste um protesto tímido.
englobar relações humanas mais profundas. Mas virão outros.
d) nestes versos, o poeta reduz o amor ao ato sexual, ao Tudo somado, devias
desejo carnal entre homem e mulher.
precipitar-te, de vez, nas águas.
e) nestes versos, o amor restringe-se a um
Estás nu na areia, no vento…
sentimentalismo convencional, evidenciado pela
escolha da forma tradicional do soneto para exprimir Dorme, meu filho.”
o tema. Poema: Carlos Drummond de Andrade.

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45. Considerando que o poema foi publicado originalmente 49.


no livro “A rosa do povo” e levando em conta as SONETO DA PERDIDA ESPERANÇA
características próprias da poesia de Carlos Drummond
de Andrade, a relação de pertença de sua obra ao Perdi o bonde e a esperança.
movimento modernista estabelecida pela crítica e Volto pálido para casa.
considerando o poema apresentado, é possível afirmar A rua é inútil e nenhum auto
que o enunciador passaria sobre meu corpo.
a) rejeita o amor romântico como o objetivo maior das Vou subir a ladeira lenta
relações humanas. em que os caminhos se fundem.
b) revela, desde o título, um otimismo em relação às Todos eles conduzem ao
angústias cotidianas. princípio do drama e da flora.
c) evidencia o humor para ironizar as situações do
cotidiano e as demandas da vida. Não sei se estou sofrendo
d) manifesta uma equação cujo resultado é sempre a ou se é alguém que se diverte
impossibilidade ou o irremediável. por que não? na noite escassa
e) defende que o grande consolo para o poeta é
privilégio da poesia. com um insolúvel flautim.
Entretanto há muito tempo
46. Com base no poema, considere as assertivas: nós gritamos: sim! ao eterno.
I. O título do poema estabelece uma relação de
Com base na leitura do poema, considere as assertivas:
contradição com o percurso do texto;
I. O espaço urbano é visto como lugar de alienação,
II. O poema encaminha o texto para a negatividade e
onde as coisas e os homens se banalizam, pois se a
não para o consolo;
rua é inútil, mais inútil é o homem;
III. As referências aos amores vividos revelam a
II. A referência ao automóvel, na primeira estrofe,
esperança do encontro definitivo.
revela o descompasso entre o poeta e o seu tempo
histórico, produzindo um eu lírico crítico e
Está correto o que se diz em:
engajado;
a) I e III.
III. O final do poema sugere que a desilusão observada
b) I, II e III.
nos versos poderia advir de uma certeza: a
c) II e III.
inevitabilidade da morte;
d) I, apenas.
IV. O último verso aponta para o desejo de o homem
e) I e II.
buscar a imortalidade, equiparando-se a Deus,
aspecto corporificado no vocábulo “eterno”.
47. O emprego da conjunção adversativa no final de cada
quadra, no conjunto do poema, sugere a ideia de: Está correto o que se diz em:
a) esperanças firmadas. a) I, II e III.
b) consolos ilusórios. b) I e II.
c) retomada da vida. c) I e III.
d) satisfação desejada. d) I, II, III e IV.
e) projetos de realização. e) II e IV.

48. Leia as estrofes a seguir: 50. Leia os versos a seguir:

Texto 1 “Olhos sujos no relógio da torre:


Não, o tempo não chegou de completa justiça.
“O primeiro amor passou. O tempo é ainda de fezes, maus poemas,
O segundo amor passou. alucinações e espera.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.” O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.
Texto II
Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
“Se você gritasse, Sob a pele das palavras há cifras e códigos.”
se você gemesse,
se você tocasse Considerando o contexto histórico representado pela
a valsa vienense obra “A rosa do povo”, os versos “Olhos sujos no
se você dormisse” relógio da torre” e “Em vão me tento explicar, os muros
são surdos” evidenciam as seguintes figuras de
Nos fragmentos poéticos, observa-se o recurso do (a): linguagem:
a) intratextualidade entre poemas do autor. a) metáfora e paradoxo.
b) emprego de paralelismo na construção dos versos. b) quiasmo e antonomásia.
c) sequência coesiva por reiteração de imagens. c) perífrase e eufemismo.
d) paráfrase textual para reforçar imagens. d) zeugma e aliteração.
e) reiteração temática pela repetição de ideias. e) hipálage e metonímia.

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• Texto para as questões 51, 52 e 53. 51. Com base na leitura do poema, a intenção do poeta é a
de realizar:
ROMARIA a) uma reconstrução da memória da beleza das
procissões que marcaram seu tempo de infância,
A Milton Campos
revisitando-as nostalgicamente.
Os romeiros sobem a ladeira b) uma crítica à religiosidade, desmascarando as
cheia de espinhos, cheia de pedras, motivações religiosas de interesse pessoal que
sobem a ladeira que leva a Deus movem os fiéis.
c) revelar o sacrifício dos penitentes em busca da
e vão deixando culpas no caminho.
salvação, destacando todo o cenário de religiosidade
Os sinos tocam, chamam os romeiros: de Minas Gerais.
Vinde lavar os vossos pecados. d) revisitar o passado de sua infância e reconstruir o
painel de suas memórias, recompondo as tradições
Já estamos puros, sino, obrigados,
itabiranas.
mas trazemos flores, prendas e rezas. e) evidenciar que a fé dos peregrinos é rejeitada por
No alto do morro chega a procissão. Jesus, que no alto da cruz lamenta os pecados dos
fiéis.
Um leproso de opa empunha o estandarte.
As coxas das romeiras brincam no vento. 52. O verso “o pó das feridas e o pó das muletas”, na quinta
Os homens cantam, cantam sem parar. estrofe, constitui um exemplo da seguinte figura de
linguagem:
Jesus no lenho expira magoado.
a) hipérbato.
Faz tanto calor, há tanta algazarra. b) quiasmo.
Nos olhos do santo há sangue que escorre. c) antonomásia.
Ninguém não percebe, o dia é de festa. d) metonímia.
e) disfemismo.
No adro da igreja há pinga, café,
imagens, fenômenos, baralhos, cigarros 53. Embora modernista, o poema apresenta um ideal
e um sol imenso que lambuza de ouro Barroco, aspecto observado no (a):
o pó das feridas e o pó das muletas. a) tensão revelada no desajuste entre os desejos
humanos e o ideal de espiritualidade.
Meu Bom Jesus que tudo podeis, b) ironia entre a busca pela espiritualidade penitente e a
humildemente te peço uma graça. imagem distante da salvação.
Sarai-me Senhor, e não desta lepra, c) antagonismo entre a fé refreada pelos desejos da
carne e a busca pela de satisfação espiritual.
do amor que eu tenho e que ninguém me tem.
d) jogo entre a imagem do sofrimento de Cristo na cruz
Senhor, meu amo, dai-me dinheiro, e o sacrifício dos romeiros.
muito dinheiro para eu comprar e) imagem de um Cristo ornamentado e distante e a
imagem pobre dos penitentes.
aquilo que é caro mas é gostoso
e na minha terra ninguém não possui.
54.
Jesus meu Deus pregado na cruz, “Os romeiros pedem com os olhos,
me dá coragem pra eu matar pedem com a boca, pedem com as mãos.
um que me amola de dia e de noite Jesus já cansado de tanto pedido
e diz gracinhas à minha mulher. dorme sonhando com outra humanidade.”

Jesus Jesus piedade de mim. A religião desempenha um papel fundamental na poesia


Ladrão eu sou mas não sou ruim não. de Drummond. Na estrofe acima, a imagem da
Por que me perseguem não posso dizer. possibilidade de Jesus que dorme sonhando com outra
Não quero ser preso, Jesus ó meu santo. humanidade se constrói em razão do (a)
a) excesso de sacrifícios dos homens
Os romeiros pedem com os olhos, b) fragilidade moral do homem moderno.
pedem com a boca, pedem com as mãos. c) incapacidade do arrependimento humano.
Jesus já cansado de tanto pedido d) força propulsora do pecado.
e) falseamento da fé do poeta.
dorme sonhando com outra humanidade.

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BIBLIOGRAFIA ANOTAÇÕES

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Belo Horizonte: Itatiaia, [s/d].
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alegoria. In:______. Céu, inferno: ensaios de crítica literária
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GABARITO

1 2 3 4 5 6 7 8
B D C A C D C D
9 10 11 12 13 14 15 16
C A D E D E B D
17 18 19 20 21 22 23 24
E C E D C C B E
25 26 27 28 29 30 31 32
D B E A E E C C
33 34 35 36 37 38 39 40
C D A B A D B B
41 42 43 44 45 46 47 48
B B C E C E B B
49 50 51 52 53 54
C E B D A B

DIG.: CLAUDIA – REV.: RITA DE CÁSSIA

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