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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 21: 35-49 NOV.

2003

CAPITAL SOCIAL E CONFIANÇA:


1
QUESTÕES DE TEORIA E MÉTODO

Bruno Pinheiro W. Reis

RESUMO
Este artigo empreende uma discussão de natureza teórico-metodológica da problemática levantada por
Robert D. Putnam em Making Democracy Work, de 1993. Perseguindo tanto sua estrutura lógica quanto
afinidades analíticas com literatura anterior, o trabalho procura enfocar principalmente os significados
teóricos e empíricos dos conceitos de “capital social” e “confiança”. Conclui pela identificação de uma
agenda de pesquisa certamente promissora, mas patentemente “imatura”, do ponto de vista tanto da
operacionalização empírica da teoria quanto mesmo da especificação analítica precisa do significado de
suas categorias centrais.
PALAVRAS-CHAVE: capital social; confiança; Robert D. Putnam; teoria democrática; escolha racional;
pluralismo.

I. INTRODUÇÃO ções promissoras – deixa muitas perguntas sem


resposta, legando para a sua posteridade o trabalho
Desde a publicação de Making Democracy
de detalhar de maneira mais sólida a estrutura
Work, por Robert Putnam e seus colaboradores,
analítica do argumento.
em 1993, já se produziu extensa literatura em torno
de suas principais teses; especulações em torno O presente trabalho pretende constituir-se em
das relações entre conceitos até então pouco usuais um modesto exercício de identificação de algumas
na Ciência Política – como capital social, confiança questões particularmente salientes a que se tem
interpessoal etc. – tornaram-se comuns nas salas referido certa literatura, com o intuito de contribuir
de aula das pós-graduações mundo afora, alcan- para a explicitação de alguns temas que merecem
çando até mesmo os relatórios e recomendações pesquisa e especificação analítica mais precisa.
das principais instituições multilaterais de fomento, Para tanto, após uma breve exposição do que
como o Banco Mundial2. entendo como a estrutura lógica básica da teoria
esboçada por Putnam no capítulo 6 de seu Making
Todavia, em que pesem os claros méritos do
Democracy Work, procurarei identificar algumas
trabalho de Putnam quanto ao esforço de síntese
questões analíticas ainda em aberto na literatura
de 20 anos dedicados a pesquisa empírica
quanto ao significado operacional dos conceitos
cuidadosa da vida política na península italiana, a
de “capital social” e de “confiança interpessoal”,
elaboração teórica em que o trabalho pretende
com o foco permanentemente voltado para as
fundamentar suas principais conclusões ficou
relações porventura identificáveis entre ambos. A
condenada às duas dezenas de páginas do capítulo
motivação imediata do trabalho prende-se antes
final do livro, e – embora envolva algumas intui-
de mais nada a um exercício de auto-
esclarecimento, mas espera-se que as questões
1 Quero agradecer a Célia Colen, Fernando Filgueiras,
aqui abordadas interessem também aos inúmeros
Magna Inácio, Maria Aparecida Machado Pereira e Paulo
colegas que hoje procuram se debruçar sobre o
Magalhães Araújo – interlocutores constantes durante o
período em que o presente trabalho foi concebido – e a tema.
Fábio Wanderley Reis, que fez numerosas sugestões tópicas II. FAZENDO A DEMOCRACIA FUNCIONAR?
a uma primeira versão do trabalho, induzindo-me a um
tratamento mais claro de pontos inicialmente obscuros.
OS CÍRCULOS VICIOSOS E VIRTUOSOS
DE PUTNAM
2 Isso pode ser facilmente constatado com uma visita à
página especificamente dedicada ao tema do capital social Um dos paradoxos mais salientes do argumento
no portal do Banco Mundial (2003). apresentado por Putnam em seu livro de 1993 é o

Recebido em 9 de março de 2003. Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 21, p. 35-49, nov. 2003
Aceito em 15 de agosto de 2003.
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fato de que a conotação voluntarista do título deiramente espantosa com um índice relativamente
original (Making Democracy Work) encontra no idiossincrático de “comunidade cívica” (r = 0,92)4.
conteúdo do livro talvez a mais enfática desau-
Durante uma primeira leitura, a sugestão de
torização a que já se atreveu a Ciência Política,
que essa correlação se mostre espúria, com ambas
quanto às perspectivas de sucesso de intervenções
as variáveis oscilando conjuntamente em obediên-
voluntárias da ação humana voltadas para melhorar
cia a alguma terceira, é muito forte. Particular-
o desempenho de qualquer conjunto de instituições
mente, tende a passar pela cabeça do leitor a possi-
políticas em um território dado.
bilidade de que ambas devam-se aos níveis parti-
Partindo da familiaridade advinda de suas déca- cularmente altos de bem-estar econômico obser-
das de experiência de pesquisa sobre a política váveis no Norte da Itália, que favoreceriam tanto
italiana, Putnam dedicou seu livro a tentar res- uma conduta pessoal caracterizável como “cívica”
ponder por que, afinal, as instituições políticas das quanto o bom desempenho das instituições polí-
diversas províncias italianas podem exibir ticas, presumivelmente abastecidas pelos recursos
desempenhos tão díspares de umas províncias públicos mais abundantes do que no Sul. Putnam,
para outras, já que todos os governos regionais porém, reforça seu ponto ao indicar que a corre-
dispõem, afinal, de instituições políticas lação entre comunidade cívica no passado e desen-
rigorosamente idênticas. De fato, poucas vezes volvimento econômico no presente é mais forte
cientistas sociais terão tido à sua disposição um do que sua recíproca (idem, p. 162-172). Cuidado-
caso tão parecido com um experimento desenhado so, ele trata de testar e refutar no próprio texto a
em laboratório: em 1970 o Parlamento italiano contestação óbvia segundo a qual a comunidade
atribuiu autonomia política às províncias, e – no cívica poderia ser ela própria um subproduto, re-
mesmo gesto – outorgou a todas as mesmas sultado de níveis presumivelmente mais elevados
instituições políticas, que passariam, dali em diante, de dinamismo econômico no Norte da Itália. Se o
a reger todos os governos regionais que então se Norte é hoje mais rico, nem sempre foi – e, ade-
constituíam (PUTNAM, 1997, p. 34-41). Com mais, a correlação do desempenho institucional
esse gesto, o Parlamento inadvertidamente com alguns indicadores do grau de “comunidade
propiciou aos cientistas sociais interessados no cívica” é consistentemente mais elevada que com
desempenho das instituições políticas um os indicadores de desenvolvimento econômico.
experimento em que se mantinham constantes as Sabemos que altas correlações por si só não nos
instituições enquanto faziam-se variar (dada a provêem uma boa teoria e a arbitrariedade dos
grande heterogeneidade regional da sociedade indicadores (principalmente os de “comunidade
italiana) as condições sociais e econômicas em cívica”) aconselha-nos cautela quanto à análise e
que deveriam operar essas instituições. interpretação desses dados. Mas a evidência acu-
mulada por Putnam desafiava com boas razões
O resultado – previsível – foi que, de fato, não
pelo menos as contestações mais elementares.
obstante as instituições idênticas, os governos de
certas regiões funcionaram muito melhor do que Seja como for, aqui nos interessa menos a
os de outras. Apoiado na elaboração de um indi- validação empírica das teses de Putnam do que a
cador efetivamente complexo e abrangente de de-
sempenho institucional, Putnam e seus colabora-
dores saíram em busca da identificação de alguma
fatorial baseado na renda per capita e no produto regional
variável sócio-cultural ou econômica cuja variação
bruto, nas parcelas da força de trabalho empregadas na
correspondesse às oscilações inter-regionais do agricultura e na indústria, e nas parcelas do valor adicionado
seu índice de desempenho institucional. Encon- correspondentes à agricultura e à indústria, tudo isso no
traram uma correlação positiva bastante boa com período 1970-77. Há uma estreita correlação entre esses
um índice de modernidade econômica (r = 0,77)3, componentes (ponderação média = 0,90)”.
mas também uma correlação positiva verda- 4 O índice de comunidade cívica adotado por Putnam
(1997, p. 110) compõe-se de quatro variáveis: com-
parecimento a referendos (1974-1987) e leitura de jornais
(1975) com carga fatorial positiva, e voto preferencial (1953-
3 Putnam (1997, p. 222) assim explica a sua medida: “A 1979) e escassez de associações desportivas e culturais
modernidade econômica é aqui medida por um escore (1981) com carga fatorial negativa.

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inquirição detalhada de seu conteúdo analítico5. confiáveis, compromissos que envolvam compen-
Com efeito, para as finalidades do presente trabalho sações futuras. A democracia, por sua vez, cons-
o aspecto mais importante do livro de Putnam tituiria um “círculo virtuoso” em virtude do fato
reside no esboço dedutivo que leva a cabo, no de que o acatamento de regras impessoais de
último capítulo, sobre as razões pelas quais se dá solução de disputas, uma vez estabelecido, pode
a relação empiricamente constatada – a lógica gerar um estado de coisas no qual a violação dessas
situacional subjacente. E isso é feito – de maneira regras, mesmo que imediatamente proveitosa, pode
talvez surpreendente para os mais habituados a tornar-se onerosa para aquele que a pratica, em
contraposições frontais entre explicações “cultu- virtude da retaliação dos demais (PUTNAM, 1997,
ralistas” e outras “individualistas” – pelo recurso, p. 163-185)6.
ainda que um tanto impressionístico, a raciocínios
Não será irrelevante sublinhar que o argumento
próprios da abordagem da “escolha racional”,
é perfeitamente análogo à solução do dilema do
incorporando sobretudo a lógica da ação coletiva
prisioneiro pela reiteração infinita do jogo com base
tal como descrita por Olson (1965) – de fato, um
em um comportamento tit-for-tat, tal como origi-
“dilema do prisioneiro”, no jargão da teoria dos
nariamente demonstrada por Michael Taylor
jogos. Muito resumidamente, Putnam aponta duas
(1976) e experimentalmente corroborada por
dinâmicas arquetípicas para o problema do
Robert Axelrod (1984). Nesse caso, os atores
desempenho institucional (que ele – talvez abusi-
seriam induzidos à cooperação por medo da reta-
vamente – passa nesse ponto a fazer corresponder
liação de seu adversário: se cada “jogador” tem
ao problema hobbesiano da instauração da ordem):
motivos para esperar que seu oponente comporte-
uma que ele chama o “círculo vicioso autoritário”
se da mesma maneira que ele próprio, então pode
e a outra, em contraste, o “círculo virtuoso
ser racional cooperar, se cada um valorizar sufi-
democrático”.
cientemente seus resultados futuros. Se, todavia,
Na primeira, o Estado (ou seus aliados, poten- parte-se da situação descrita pela teoria dos jogos
tados locais privados) garante a ordem de maneira como “egoísmo universal”, ou seja, uma situação
precipuamente coercitiva, por meio do medo e da em que todos adotam a estratégia inicial de não
repressão, deixando em segundo plano a cons- cooperar, então a cooperação não emergirá espon-
trução de qualquer relação de confiança mútua taneamente, exceto sob a condição – bastante
disseminada entre os habitantes. Na segunda, restritiva – de que uma população em equilíbrio
investe-se no estabelecimento de regras impessoais não-cooperativo veja-se “invadida” por um cluster
que devem, em princípio, ser seguidas por todos, internamente cooperativo, que mantenha pouco
economicamente poderosos ou não. Esta última contato com a população majoritária (não-
depende, para sua consecução eficaz, da gene- cooperativa), e que nesses poucos contatos dispo-
ralização da disposição de firmar compromissos e nha-se a adotar uma política de retaliação (“tit-
abrir mão de ganhos imediatos em favor de for-tat”) em relação aos não-cooperativos (ZAGA-
compensações futuras, na presunção de que a RE, 1984, p. 58-62). Além disso, se os atores
observância universal de determinadas regras encontram-se imersos em um ambiente em que
renderá frutos no longo prazo. O arranjo auto- as regras não costumam ser estáveis, tornando
ritário é um “círculo vicioso” porque o precedente plausível a possibilidade de que o “jogo” seja
da afirmação violenta do poder inibe a disse- interrompido a qualquer momento, então – mesmo
minação de comportamentos mais cooperativos que se parta da cooperação universal – todos serão
no interior da população. A vontade do poderoso induzidos a abandonar a estratégia cooperativa an-
de plantão prevalece em última instância, dificul- tes que seu oponente faça-o, já que existe a possibi-
tando o estabelecimento de laços “horizontais” de lidade de a retaliação ser impossibilitada pela inter-
confiança mútua e tornando inúteis, por pouco rupção abrupta do “jogo”, suspensão das regras

5 Há extensa literatura de trabalhos breves de caráter 6 De maneira análoga, Wanderley Guilherme dos Santos
polêmico sobre o livro de Putnam. Para ficarmos apenas (1993, p. 105-106) refere-se a um “jogo de espelhos” para
com alguns que me são imediatamente acessíveis, podem- descrever o comportamento do “conjunto de expectativas
se mencionar Burkhart e Lewis-Beck (1994), Goldberg que os indivíduos têm quanto ao governo, quanto aos seus
(1996), Levi (1996), Tarrow (1996), Prates (1997) e concidadãos e quanto a si próprios” – expectativas que
Jackman e Miller (1998). comporiam, grosso modo, a “cultura cívica” local.

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vigentes e imposição arbitrária de novas regras. de ganhos imediatos com apoio em uma presunção
de reciprocidade futura. O mau desempenho
É por isso que Putnam (1997, p. 186-187)
institucional reafirma e reforça, assim, os traços
afirma que a “solução hobbesiana” – isto é, o
de desconfiança mútua disseminados no interior
círculo vicioso autoritário – é não só um equilíbrio
da população, completando a lógica do chamado
estável (ou não seria um “círculo vicioso”), mas
“círculo vicioso autoritário”8.
também mais estável que a solução cooperativa
do “círculo virtuoso democrático”. Isso porque a Vale a pena destacar aqui o curioso lugar
generalização da estratégia da não-cooperação ocupado pela categoria “confiança” no argumento
incondicional sempre permanece como uma de Putnam. Em um livro abundante em evidência
possibilidade de comportamento estável a longo empírica, ela é elevada no último capítulo à con-
prazo, uma vez alcançada – ao contrário da solução dição de crucial mecanismo causal do argumento
cooperativa, que dependerá sempre de uma taxa – mas ela mesma não é objeto de qualquer tentativa
de desconto suficientemente baixa na preferência de mensuração empírica. Não há um índice de
temporal dos atores, de modo a permitir que eles confiança interpessoal em Putnam. Embora seu
abram mão da possibilidade de um ganho imediato argumento acabe alçando vôos mais altos, é preciso
que seria propiciado pelo abandono da estratégia lembrar que o propósito inicial de Putnam é
cooperativa, em nome de evitar-se um equilíbrio modesto. Ele não está investigando, em princípio,
pior no futuro (ou seja, a cooperação universal é, algo genericamente descritível como “as condições
na melhor das hipóteses, um equilíbrio condi- sociais (ou culturais) da democracia” – mas sim
cional). Mais importante ainda: o contexto em que buscando a explicação para diferenciais de desem-
estão imersos os atores deverá permitir-lhes abrir penho de instituições (democráticas) idênticas em
mão de ganhos imediatos com alguma segurança
de que não serão impedidos de desfrutar de seus
ganhos esperados no futuro7.
8 A aproximação aqui efetuada entre Putnam e Taylor é
Assim, a interpretação que Putnam empresta a compatível com a importância atribuída por Margaret Levi
seus dados corrobora fortemente a análise do dile- (1990, p. 407-410) à vigência do que ela chama de
ma do prisioneiro realizada por Taylor. De um “consentimento contingente” (contingent consent) na
lado, a existência de laços de confiança mútua estabilidade de uma instituição qualquer. Ali, Levi ajunta à
coerção, aos “pagamentos paralelos” (side payments) e às
reforça os mecanismos de cooperação entre os
normas um quarto mecanismo de indução à obediência: a
habitantes e favorece o desempenho das institui- obtenção de um consentimento apoiado em uma norma de
ções políticas; esse mesmo desempenho institu- fairness (“justiça”). Segundo a exposição de Levi (idem, p.
cional eficiente atua positivamente sobre o con- 409-410), “[...] part of contingent consent is conditional
texto, reduzindo a incerteza e reforçando ainda cooperation [...] in which low discount rates, repeated
mais o nível de confiança e cooperação no interior interactions, knowledge of others and reciprocity over time
permit the emergence of rational decisions to comply. In
da população – esse o círculo virtuoso demo-
the case of formal institutions, an individual’s cooperation
crático. De outro lado, na ausência de formas or compliance is conditional upon the provision of promised
espontâneas de cooperação, a ordem impõe-se por benefits by institutional managers and personnel and upon
uma organização hierárquica vertical da autoridade the continued compliance of others. No one wants to be a
e – onerosamente – pela força. As instituições, sucker. Thus, any particular individual’s decision to comply
subordinadas à vontade dos poderosos do momen- is based on confidence that others are doing their share”
[“[…] parte do consentimento contingente é cooperação
to, funcionam precariamente (quando não mudam
condicional [...] em que baixas taxas de desconto, interações
constantemente), submergindo os atores em um repetidas, conhecimento dos outros e reciprocidade ao longo
elevado grau de incerteza quanto ao futuro e do tempo permitem a emergência de decisões aquiescentes
inviabilizando qualquer disposição de abrir-se mão racionais. No caso das instituições formais, a cooperação
ou aquiescência de um indivíduo é condicionada pela
provisão de benefícios prometidos por administradores e
funcionários institucionais e pela aquiescência contínua dos
outros. Ninguém quer ser um otário. Assim, qualquer decisão
7 Barbara Geddes (1994, p. 29-30) também aponta os de um indivíduo particular em aquiescer baseia-se na
efeitos deletérios da incerteza sobre as possibilidades de confiança de que os outros estejam fazendo sua parte” –
cooperação, sublinhando o fato de que contextos instáveis Nota do revisor]. Não é por mera coincidência que Levi
como os que costumam viger no Terceiro Mundo tendem a remete esta fundamentação a Michael Taylor (1987), de
elevar significativamente o desconto de pay-offs futuros. fato fundamentalmente uma versão revista de Taylor (1976).

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contextos sociais distintos. Identifica uma variável O livro de Huntington partia da constatação
independente tremendamente relevante em seu empírica de que nos países periféricos, de mo-
“índice de comunidade cívica”, que inclui medidas dernização tardia, a igualdade política (expressa
de comparecimento a referendos, leitura de jor- no direito à participação) desenvolveu-se muito
nais, proliferação de associações desportivas e mais rapidamente que as instituições políticas – o
culturais e uma proxy de identificação partidária. que explica seu foco sobre o problema da “institu-
Especulando sobre os mecanismos que poderiam cionalização”, sobretudo estatal9. Mas, ainda
prover uma explicação da extraordinária correlação assim, a diferença fundamental entre Putnam e
encontrada, recorre à noção de “capital social” Huntington é muito mais formal que substantiva,
(que passa a substituir a idéia de “comunidade pois enquanto Putnam pergunta-se o que faz as
cívica”) e produz a conjectura de que seria a instituições funcionarem e encontra resposta na
confiança interpessoal o mecanismo por excelência “arte da associação” (para usar a expressão de
pelo qual o capital social produziria seus efeitos Tocqueville), estabelecendo nexo causal entre
sobre o desempenho institucional. “comunidade cívica” e desempenho institucional,
Huntington pergunta-se como fazer instituições que
Mas isso é tudo, quanto à confiança. Essa última
funcionem, e nas primeiras páginas de seu livro
conjectura jamais é, ela mesma, testada empi-
praticamente identifica, implicitamente, a ausência
ricamente; sequer são sugeridas estratégias de
da “arte da associação” com a fragilidade das
operacionalização empírica posterior do conceito
instituições. Ainda que o desdobramento da sua
de confiança. Essa lacuna, de resto perfeitamente
exposição venha a qualificar esta identificação, sob
compreensível em um livro que afinal já cumpria
o enquadramento inicial de Huntington, associar-
ali a tarefa de oferecer uma resposta fundamentada
se é institucionalizar. O raciocínio implícito é que,
para o problema que formulara, lega para a lite-
ao estabelecerem-se múltiplas associações “hori-
ratura posterior as tarefas da especificação con-
zontais” no interior da população, multiplicam-se
ceitual e da operacionalização empírica dessa
os laços de interdependência recíproca entre os
categoria-chave da teoria proposta por Putnam: a
habitantes, fundamentais na produção da coor-
confiança.
denação de expectativas necessária para assegurar-
III. PERSEGUINDO ELOS: O ARGUMENTO DE se alguma previsibilidade no comportamento alheio
PUTNAM E SEUS ANTEPASSADOS – em uma palavra, criam-se as organizações, que
Huntington (idem, p. 19) – em seu realismo even-
Adiante voltaremos a essas categorias mais
tualmente autoritário – julgou mais importantes que
detalhadamente. Antes, cabe descermos um pouco
a realização de eleições10.
mais atentamente sobre o conteúdo substantivo
da teorização de Putnam em seus próprios termos, Convém lembrar que também em William
para apontar que o argumento apresentado – apesar Kornhauser (1959), que igualmente se ocupou da
da forma original que lhe é conferida e do farto problemática legada por Tocqueville, era a baixa
repertório de técnicas mobilizado – não chega a disponibilidade das não-elites que distinguia a
constituir-se propriamente em uma inovação sociedade pluralista da sociedade de massa – ou
teórica, mas antes na reafirmação de um argumento
de longa tradição na Ciência Política moderna,
mediante a provisão de uma alentada corroboração
9 Robert Dahl (1997, p. 51-62) endossa o ponto no capítulo
empírica. Lembremo-nos, por exemplo, de que
Samuel Huntington (1975, p. 16-17) nos anos 1960 sobre “seqüências históricas” de seu clássico Poliarquia.
Também ali, a propósito, alude-se à confiança: em duas
apresentava seu argumento sobre a importância
breves páginas de um longo capítulo (49 páginas) dedicado
da institucionalização (comumente tido como às “crenças dos ativistas políticos” (idem, p. 147-149).
conservador e mesmo pouco democrático) a partir Não deixa de manifestar-se naquela passagem uma
da constatação de um problema derivado da superposição entre confiança interpessoal e confiança nas
expansão da igualdade da participação política instituições: Dahl alude à Itália apenas para remeter a
quando esta se dá sem a concomitante expansão comentário de Joseph LaPalombara sobre a falta de
confiança dos italianos nas instituições e nos atores
da “arte da associação”, contrariando a máxima
políticos. Sinal dos tempos.
de Tocqueville segundo a qual esta deve crescer
10 Admita-se desde logo que, neste como em outros pontos,
na mesma proporção em que se expande a
a estrutura analítica do argumento de Huntington permanece
“igualdade de condições”.
um tanto ambígua, e ocasionalmente obscura. Seja como

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seja, a sociedade que se pode presumir verdadeira- na alta acessibilidade das posições de elite para
mente democrática daquela que, embora mobili- explicar a natureza conflituosa e instável da socie-
zada, queda-se à mercê da condução do seu líder. dade de massas, deixando de fazer distinção entre
Partindo da descrição da “sociedade de massas” esta e a “sociedade pluralista”, que se caracterizaria
como caracterizada por alta acessibilidade das por alta acessibilidade das elites, mas com baixa
posições de elite e, igualmente, alta disponibilidade disponibilidade das não-elites. A crítica democrá-
das não-elites para eventual manipulação como tica, por sua vez, preocupa-se sobretudo com os
recurso de poder (Tabela 1), Kornhauser (1959, efeitos nefastos que a eventual fragilidade dos laços
p. 31) distingue duas críticas opostas à sociedade associativos intermediários – típica da sociedade
de massas: uma aristocrática, como a de Ortega y de massas – venha a produzir no que tange à dis-
Gasset em A rebelião das massas (temerosa quanto ponibilidade das não-elites. Aqui, para Kornhauser,
à “hiperdemocracia”) e outra democrática, como deixa-se de distinguir a sociedade de massas da
a de Hannah Arendt em As origens do totalitarismo “sociedade totalitária”, caracterizada por alta dis-
(temerosa em relação à “tirania ilimitada”). A ponibilidade das não-elites, mas baixa acessi-
primeira crítica – aristocrática – concentrar-se-ia bilidade das elites.

TABELA 1 – TIPOS DE SOCIEDADE CONFORME A ACESSIBILIDADE DAS ELITES E A


DISPONIBILIDADE DAS NÃO-ELITES
Disponibilidade das não-elites
Baixa Alta
Acessibilidade Baixa sociedade comunal sociedade totalitária
das elites
Alta sociedade pluralista sociedade de massas
FONTE: Kornhauser (1959, p. 40).

Mesmo que se admita a presença de alguma ao contrário do que se depreende da “crítica


dose de inevitável esquematismo nesse quadro, democrática”, uma alta disponibilidade das não-
ele tem o mérito de explicitar uma lógica subjacente elites não seria suficiente para caracterizar uma
à importância do associativismo autônomo no sociedade totalitária, que requereria igualmente
adequado funcionamento da democracia moderna, uma baixa acessibilidade das posições de elite.
por ajudar a manter baixa a disponibilidade das Assim, em Kornhauser obtivemos, mediante a
não-elites no que toca a mobilizações orientadas fórmula “alta acessibilidade das elites e baixa
“de cima” – ou, como se costuma dizer, disponibilidade das não-elites”, um guia básico
“orquestradas” por elites. Diferentemente da visão para uma política pluralista que tente evitar os males
usual da crítica “aristocrática”, para Kornhauser da massificação na sociedade moderna. É quase
(idem, p. 34-35) a alta acessibilidade das posições desnecessário sublinhar, a esta altura, que Putnam
de elite não é condição suficiente (embora seja (1997) produz uma enfática corroboração empírica
necessária) para a emergência dos males da das conclusões de Kornhauser no que concerne a
“política de massas” – seria igualmente necessária esse tópico.
a alta disponibilidade das não-elites. Similarmente,
Mas tanto Huntington como Kornhauser
seguem de perto, nesse ponto, a melhor tradição
for, observe-se que não chego a atribuir-lhe a tese de que
pluralista da Ciência Política norte-americana – do
“toda associação é uma instituição”. Minha interpretação elogio às “filiações múltiplas”. Expressamente
atribui-lhe uma versão mais fraca dessa relação: o que se advogada nos Federalist Papers, particularmente
afirma é que “associar-se é institucionalizar”, ou seja, no Artigo n. 10, sobre o problema das facções, a
deflagrar um processo de institucionalização, que, todavia, tese da proliferação das facções foi inicialmente
pode vir ou não a consumar-se. Isto é, uma associação, uma brandida contra certa recepção de Rousseau e
vez criada, pode vir ou não a transformar-se em uma
organização adaptável, complexa, autônoma e coesa – para
Montesquieu, para quem a sobrevivência das
usar os atributos imaginados pelo próprio Huntington (1975, repúblicas dependeria da virtude dos cidadãos e
p. 23-36). da eliminação de todo facciosismo interno.

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Madison constatou rapidamente que essa (diacrônicas) para deter-se nas condições
eliminação seria incompatível com um governo hipotéticas de operação do subsistema político no
livre – e, embora toda a tradição apelasse à virtude interior da sociedade como um todo. Aqui, mais
como fundamento do governo popular, o mundo que sua descrição do “interior” do sistema político
que o cercava parecia muito pouco propício a tal por suas “funções de conversão” de inputs em
expectativa. Como se sabe, ele veio a prescrever outputs13 , interessam-nos suas considerações
a solução contrária, que ditaria o tom da Ciência sobre o desempenho do sistema político em seu
Política do século XX: a proliferação das facções, ambiente a partir da distinção entre cinco
de maneira a impedir-se que qualquer delas “capacidades” (capabilities) a serem desenvolvidas
alcançasse posição majoritária, logrando, assim, pelo sistema: extrativa, reguladora, distributiva,
sua neutralização recíproca11. simbólica e responsiva. Excetuada a capacidade
responsiva, que se define pela relação entre outputs
Em um contexto como esse, será incumbência
do sistema e os inputs recebidos de seu ambiente,
do governo atuar, por meio do monopólio do uso
as outras quatro “capacidades” relativas ao desem-
legítimo da força, como mediador em última
penho do sistema político dizem respeito especi-
instância dos acordos, costumes e valores oriundos
ficamente a outputs (ALMOND, 1966, p. 109).
da livre interação e cooperação – e, naturalmente,
Como seria de esperar-se, essas “capacidades”
também dos conflitos – entre os indivíduos e
correspondem em larga medida às “crises” do de-
grupos diversos na sociedade. Ele permanece, de
senvolvimento político identificadas na colabora-
qualquer maneira, sendo ator crucial para o
ção com Lucien Pye nas pesquisas então pa-
funcionamento das instituições, isoladamente de
trocinadas pelo Social Science Research Council
longe o mais importante, poderosamente capaz de
(SSRC)14. Mas a elaboração particular de Almond
influenciá-las – para melhor ou pior – tanto no
permite-nos manejar mais facilmente determinadas
seu formato quanto no seu desempenho. Pois é
relações lógicas entre os componentes analíticos
somente ao constituir a forma legal que lhe
do sistema, livres de considerações muito detalha-
permitirá desempenhar seu papel de fiador dos
das – necessariamente em alguma medida arbitrá-
acordos firmados no interior da sociedade que o
rias – sobre “crises” ou “seqüências” históricas
governo propriamente institucionaliza esses
efetivamente ocorridas aqui ou ali (ainda que Al-
acordos; transforma acordos circunstanciais ou
mond pretenda, sim, estabelecer uma seqüência
formas momentâneas de cooperação em insti-
de desenvolvimento típica). Dessa forma, a
tuições propriamente ditas.
seqüência das crises que se encontra idealmente
A alusão ao papel desempenhado pelo Estado – ainda que de maneira um tanto forçada –
nessa problemática permite trazer à baila um último
antecessor da contribuição de Putnam que nos
13 Almond (1966, p. 104) sugere uma classificação das
parece merecer menção. Trata-se de Gabriel
funções de conversão em seis tipos: “(1) the articulation of
Almond (1966) e sua abordagem abertamente
interests or demands, (2) the aggregation or combination of
funcionalista do estudo comparativo da política, interests into policy proposals, (3) the conversion of policy
particularmente bem-vinda se se têm em mente proposals into authoritative rules, (4) the application of
as dificuldades que enfrentavam em seu tempo as general rules to particular cases, (5) the adjudication of
tentativas de generalizarem-se seqüências rules in individual cases, and (6) the transmission of
históricas típicas para o processo de construção information about these events within the political system
from structure to structure and between the political system
do estado nacional12. Pois, adotando um marco
and its social and international environments” [“(1) a
parsoniano de referência teórica geral, Almond articulação de interesses ou demandas; (2) a agregação ou
relega a segundo plano considerações históricas combinação de interesses em propostas de políticas; (3) a
conversão de propostas de políticas em regras dotadas de
autoridade; (4) a aplicação de regras gerais a casos parti-
11 Para uma breve exposição do teor do “Federalista” n. culares; (5) a adjudicação das regras em casos individuais e
10, pode-se recorrer a Fernando Limongi (1989, p. 252- (6) a transmissão da informação sobre esses eventos no
255). sistema político de estrutura para estrutura e entre o sistema
12 É numerosa a bibliografia relevante produzida por político e seus ambientes social e internacional” – N. R.].
Almond, sendo particularmente célebre Almond e Powell 14 São vários os livros sobre “desenvolvimento político”
(1966). Aqui me apóio, todavia, em Almond (1966), em publicados sob os auspícios do Social Science Research
que se apresentam resumidamente alguns dos temas centrais Council durante os anos 1960. Um volume-síntese do pro-
daquele livro. grama de pesquisa pode ser encontrado em Binder (1971).

41
CAPITAL SOCIAL E CONFIANÇA: QUESTÕES DE TEORIA E MÉTODO

esboçada nos trabalhos da série do SSRC sobre sua capacidade de gerar apoio, que Almond chama
desenvolvimento político pode encontrar nos “the support aspect of capability”16. Almond não
trabalhos de Almond uma correspondência mais o afirma nesses termos, mas a capacidade de gerar
fundamentada em considerações sobre a maneira apoio caracteriza-se, inversamente às demais
como a capacidade do sistema político de capacidades, como um output da população em
desempenhar determinadas funções condiciona ou resposta a inputs fornecidos pelo sistema político.
não sua capacidade de cumprir outras funções. Pela relação entre o que o sistema político
Assim, por exemplo, Almond pôde substituir a efetivamente obtém comparativamente àquilo que
seqüência das “crises” pela postulação da ele demanda da população. Nas palavras de Almond
anterioridade lógica da capacidade extrativa frente (idem, p. 111), “[…] the support aspect of
às demais (ou, melhor dizendo, pela postulação capability has to be measured [...] in terms of the
da dependência de todas as demais capacidades resources delivered in relation to the resources
em relação à extrativa), bem como condicionar a levied, the obedience accorded in proportion to
capacidade distributiva à capacidade reguladora: the obedience required, the allocations accepted
“What we have said about political capabilities in relation to the allocations imposed, the
suggests a logic of capability analysis. An extractive responsiveness of the population to symbolic
capability implies some regulation and distribution, outputs in relation to that which is expected”17.
though these consequences may be unintended. A
Constituindo, segundo Almond (idem, p. 111-
regulative capability implies an extractive capability,
112), uma “reserva” de autoridade do sistema, essa
if only to gain the resources essential to regulation;
capacidade de gerar apoio pode em princípio ser
and it is difficult to conceive a regulative capability
tomada como base empírica aproximada da noção
which would not in some way affect the
de “cultura política”, caracterizada a partir das
distribution of values and opportunities. They are
diferentes propensões de diversos estratos da
not only logically related. They suggest an order
população a apoiar seu sistema político (“support
of development. Thus political systems which are
propensities”).
primarily extractive in character would appear to
be the simplest ones of all. They do not require Para Almond, a análise das “capacidades” do
the degree of role differentiation and specialized sistema político poderia ajudar a preencher o hiato
orientations that extractive-regulative systems or existente entre os estudos “científicos” e os
extractive-regulative-distributive ones do.
Regulative systems cannot develop without afete, de alguma forma, a distribuição de valores e
extractive capabilities; thus the development of the oportunidades. Elas estão relacionadas não apenas
one implies the development of the other. logicamente. Elas sugerem uma ordem de desenvolvimento.
Increasing the extractive capability implies an Assim, sistemas políticos de característica primariamente
increase in the regulative capability, as when, for extrativa pareceriam ser os mais simples de todos. Eles não
requerem o grau de diferenciação de papéis e de orientações
example, political systems move from intermittent
especializadas que os sistemas extrativo-regulatórios ou os
collection of tribute or raids to some form of extrativo-regulatório-distributivos requerem. Sistemas
regularized taxation. Similarly, a distributive regulatórios não podem desenvolver-se sem capacidades
system implies an extractive capability, and extrativas; assim, o desenvolvimento de um implica o
obviously can reach a higher distributive level if it desenvolvimento do outro. Aumentar a capacidade extrativa
is associated with a regulative capability as well”15 implica um aumento da capacidade regulatória, como quando,
por exemplo, sistemas políticos passam da cobrança
(idem, p. 108).
intermitente de tributos ou da rapinagem para alguma forma
Mas além das “capacidades” relacionadas ao de taxação regularizada. Similarmente, um sistema
desempenho do sistema, é igualmente relevante distributivo implica uma capacidade extrativa, e obviamente
pode alcançar um nível distributivo mais alto se está
associado também a uma capacidade regulatória” [N. R.].
16 Algo como “aspecto de apoio da capacidade” [N. R.].
15 “O que dissemos sobre capacidades políticas sugere
uma lógica da análise de capacidades. Uma capacidade 17 “[…] O aspecto de apoio da capacidade tem que ser
extrativa implica alguma regulação e distribuição, embora medido […] em termos dos recursos entregues em relação
essas conseqüências possam ser não-intencionais. Uma aos recursos tributados, a obediência acordada em proporção
capacidade regulatória implica uma capacidade extrativa, à obediência requerida, as alocações aceitas em relação às a-
quando nada para ganhar os recursos essenciais à regulação; locações impostas, a responsividade da população aos pro-
e é difícil conceber uma capacidade regulatória que não dutos simbólicos em relação àquela que é esperada” [N. R.].

42
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 21: 35-49 NOV. 2003

normativos do sistema político, ao acrescentar o preocupações de Putnam dirigem-se precisamente


“what” ao “who” e ao “how” típicos da Ciência para a agenda de pesquisa que Almond (idem, p.
Política do século XX – ou seja, ao acrescentar 112) propôs então: “The system reserve component
“substância” às discussões de procedimento que of capability is an aspect of political culture, the
ocuparam o núcleo da Ciência Política contem- ‘support propensities’ which are distributed among
porânea. Ao fazer isso, o sistema de Almond the various strata of the population, and the various
incorpora uma inequívoca dimensão normativa à roles of the political system. We have to estimate
análise, sem renunciar à investigação empírica das the content of this reserve, its magnitude, and its
condições práticas de funcionamento do sistema mobility, if we are going to be able to explain and
político. E aqui Almond parece tocar rapidamente predict political performance”18.
em um ponto que pode ter implicações importantes
Claramente Almond esperava ter proporciona-
para o presente trabalho. A especificação de um
do, a partir do seu esquema conceitual, uma base
elenco de tarefas a serem desempenhadas pelo
empírico-analítica para manejar-se o sempre
sistema político a partir de uma definição, mais
escorregadio conceito de “cultura política”. E
abrangente (de natureza parsoniana), da própria
Putnam é certamente um capítulo relevante da
“função política” coloca-nos diante da necessidade
história desse conceito19. Infelizmente, se Putnam
de reconhecer que sistemas diferentes desempe-
estiver correto, a magnitude dessa “reserva” será
nharão diferentemente suas funções – e, talvez,
muito mais rígida no tempo do que se esperaria
que alguns sistemas desempenharão suas funções
nos anos 1960. De qualquer modo, tendo em vista
de maneira mais eficaz ou mais eficiente que
o marcante conteúdo simultaneamente empírico
outros. Se essa empreitada é bem-sucedida, isso
e normativo do trabalho de Putnam (e inde-
possibilitará à Ciência Política, em princípio, esta-
pendentemente da avaliação que se faça quanto às
belecer uma conceituação universalmente válida
perspectivas da pesquisa futura em torno do tema
de “desenvolvimento político” (ou, se se quiser,
da cultura política), as afinidades aqui esboçadas
de um indicador operacional mais modesto, o “de-
entre Putnam e Almond tornam particularmente
sempenho institucional”), que possa funcionar
persuasiva a rápida menção feita por Almond às
como referência normativa, sem estar atada à pre-
possibilidades de preenchimento do hiato entre
sunção de que esse desenvolvimento necessaria-
estudos normativos e “científicos” da política a
mente se dê. Persistiria o risco de fracasso do
partir do estudo das capabilities.
sistema, de incapacidade de desempenhar suas
funções, de decadência política – enfim, da suces- IV. AS HESITAÇÕES DO CAPITAL SOCIAL
são relativamente imprevisível de eventos histó-
A face mais flagrantemente normativa da “for-
ricos. Mas a Ciência Política poderia dispor de
tuna crítica” do argumento de Putnam materializa-
um critério teoricamente informado para a análise
se na abundante literatura recente sobre “capital
(e, inevitavelmente, para a avaliação) comparativa
social” e – principalmente – na sua elevação a va-
de diferentes casos empíricos.
riável-chave para identificar as potencialidades de
Se voltarmos agora a Putnam, poderemos implementação bem-sucedida de políticas e pro-
constatar que, em termos analíticos, o que ele faz gramas públicos em contextos variados. Contudo,
é identificar na existência de uma “comunidade o conceito permanece insatisfatoriamente vago,
cívica” e na disseminação da cooperação e da portador de ambigüidades importantes que proble-
confiança mútua no interior da população o mais matizam sua operacionalização teórica.
eficaz e importante componente daquilo que
Almond chamou de “the support aspects of 18 “O componente de reserva sistêmica da capacidade é
capability”, que configurariam aquela espécie de um aspecto da cultura política, as ‘propensões de apoio’
“reserva” do sistema político, ao determinar o seu que são distribuídas entre os vários estratos da população
e os vários papéis do sistema político. Temos que estimar
“potencial de apoio” (“support potential”). Putnam o conteúdo dessa reserva, sua magnitude e sua mobilidade,
identificou, sob o rótulo da civic community, um se desejamos estar aptos a explicar e predizer o desempenho
conjunto de características mensuráveis, presentes político” [N. R.].
na sociedade, capaz de expandir formidavelmente 19 Cabe mencionar, contudo, a forte crítica de James
o potencial de apoio de um sistema político, de Johnson (2003) à maneira, digamos, “subconceitualizada”
expandir o “retorno” esperável pelo sistema a partir como toda a tradição da ciência política americana nas
de suas próprias iniciativas. Efetivamente, as últimas décadas aborda o tema da cultura política.

43
CAPITAL SOCIAL E CONFIANÇA: QUESTÕES DE TEORIA E MÉTODO

Preliminarmente, é necessário sublinhar que – torna-se difícil de especificar.


a despeito da enorme popularização do conceito
Essa distinção não é uma questiúncula irre-
que produziu – o estudo de Putnam não é sobre
levante, típica de escolasticismo acadêmico.
capital social, que desempenha ali o papel de uma
Edwards e Foley (2001) e Foley, Edwards e Diani
espécie de coadjuvante que rouba a cena nos
(2001) fazem-nos ver que, conforme carac-
momentos finais do filme. Pois – a julgar pelo
terizamos o capital social como uma disposição
índice remissivo da edição brasileira (PUTNAM,
atitudinal individualmente identificável ou como um
1997) – o capital social só faz sua entrada no livro
atributo sócio-estrutural dependente do contexto
na página 177, quando Putnam aponta-o como
(como a existência efetiva de redes de interação
elemento facilitador da cooperação voluntária,
que venham a facilitar ações coletivas no interior
decisiva para a instauração dos círculos virtuosos
do grupo), a natureza do argumento varia bastante
favorecedores do bom desempenho institucional
– e muito especialmente o lugar nele ocupado por
– esta sim a variável dependente fundamental de
sua variável-chave, a confiança. No primeiro caso
todo o estudo. A partir desse ponto (ou seja, pelas
(fortemente sugerido pela maneira como Putnam
últimas 18 páginas do livro), a alusão ao capital
(1997) inicialmente expôs seu argumento), a con-
social – com sua evocação econômica – substitui
fiança interpessoal vê-se promovida a um parâ-
com aparente vantagem as ressonâncias poten-
metro exógeno do sistema, constituindo-se em va-
cialmente chauvinistas e autoritárias da alusão a
riável independente, principal explicação do “mon-
“comunidades cívicas” que permeara todo o livro
tante” de capital social disponível. Essa seria a
até ali. Contudo, o conceito de capital social per-
versão propriamente “culturalista” do argumento.
manece surpreendentemente impreciso durante to-
No segundo caso, se concebemos o capital social
da a exposição do capítulo final – pois Putnam
como variável “sócio-estrutural”, atinente ao con-
jamais o define. Feita a alusão inicial ao capital
texto, então se torna endógena a confiança inter-
social, tudo o que se segue é, inicialmente, uma
pessoal, que passa a ser variável dependente no
remissão à exposição do conceito feita por James
modelo. Ainda capaz de produzir um efeito de
Coleman (apud PUTNAM, 1997, p. 241, n. 20) e
feedback sobre o capital social, certamente, e de
outros autores, seguida por uma enumeração um
ajudar a constituir círculos virtuosos ou viciosos
tanto vaga de atributos do capital social, que jamais
de cooperação ou conflito, mas agora atuando no
chega perto de uma definição.
argumento como resposta relativamente indireta
Vejamos como Putnam (1997, p. 177) dirige- a um input organizacional do contexto social em
se ao conceito: “Aqui o capital social diz respeito que operam as pessoas.
a características da organização social, como con-
De fato, estudo de natureza empírica conduzido
fiança, normas e sistemas, que contribuam para
por Lúcio Rennó (2001) encontrou pouca corro-
aumentar a eficiência da sociedade, facilitando as
boração para a hipótese da confiança como variável
ações coordenadas [e passa a citar Coleman (1990,
independente. Ao contrário, encontram-se indícios
p. 302)]: ‘Assim como outras formas de capital,
de que ela seja resultado de variáveis sócio-es-
o capital social é produtivo, possibilitando a reali-
truturais – particularmente a previsibilidade do
zação de certos objetivos que seriam inalcançáveis
comportamento alheio, tipicamente embutida na
se ele não existisse [...]’”.
aplicação consistente de sanções e recompensas
Seguem-se exemplos e mais exemplos, tanto diversas. Esse resultado, a confirmar-se, endossa
citados de Coleman quanto concebidos pelo pró- a concepção inicial do próprio James Coleman,
prio Putnam. Mas, para além do fato de não che- que, segundo observa Andrew Greeley (2001, p.
garmos a ter uma definição propriamente dita, a 236-239), favorecia explicitamente uma concepção
vaga enumeração de atributos do capital social peca “estrutural” (ou “relacional”) do capital social, o
por admitir dentro dela fenômenos de natureza fun- que de resto é a única opção que permite plena
damentalmente distinta: “confiança, normas e siste- exploração da analogia econômica que o conceito
mas” admitem qualquer coisa sob o seu guarda- incorpora (LIN, 2001, p. 3-18).
chuva. Mais precisamente, englobam simultanea-
Mas se concebemos o capital social não como
mente tanto variáveis “estruturais” quanto “atitu-
atitude individual, mas como um atributo da
dinais”, formando uma caixa-preta conceitual cujo
sociedade, dependente do contexto em que operam
significado teórico preciso dentro da explicação
os indivíduos, então se impõe reconhecer a
dada por Putnam para o desempenho institucional

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 21: 35-49 NOV. 2003

“neutralidade” moral do capital social, no sentido das para atividades de “rent-seeking” serão menos
de que sua presença facilita a realização de objetivos propensas a alimentar laços comunitários de reci-
pelos atores, sejam esses objetivos moralmente procidade que associações de proteção das escolas
ou socialmente desejáveis ou não: assim, a presen- ou dos parques públicos de uma dada localidade.
ça da máfia ou a constituição de uma organização A hipótese básica subjacente ao raciocínio – preli-
criminosa controlada por traficantes de drogas minarmente corroborada pelos dados apresentados
significam uma expansão do estoque de capital – é que a variável crucial para determinar-se o
social. Mais genericamente, a presença de assime- impacto potencial de uma dada associação sobre
trias sociais pode significar que a constituição de o capital social público será a inclusividade da as-
determinadas formas de capital social potencialize sociação: operacionalmente, o grau de diversidade
seus efeitos ao propiciar oportunidades de ação de seus membros (idem, 2001, p. 144).
que sejam assimetricamente aproveitadas. Michael
Aparentemente, haverá várias maneiras de pro-
Schulman e Cynthia Anderson (2001) apontam
curar-se incorporar os matizes envolvidos na in-
para essa possibilidade, ilustrada a partir do estudo
vestigação do papel das associações na operação
do caso de uma comunidade têxtil do sul dos Esta-
da democracia (WARREN, 2001). Para além dos
dos Unidos, onde se constitui o que eles deno-
tipos de associação identificados segundo a natu-
minam como “capital social paternalista”. O ponto
reza do issue tratado e a heterogeneidade social de
relevante aqui deriva da possibilidade de que as
seus membros, como em Stolle e Rochon (2001),
identidades e solidariedades parciais, e os esforços
diversas variáveis podem em princípio ser consi-
correspondentes de organização, devem inevitavel-
deradas: permitindo-me simplesmente mencionar
mente ser vistas como fontes de capital social, in-
o que me vem à mente de maneira bastante ime-
dependentemente do fato de que podem compro-
diata, pode-se distinguir entre associações de filia-
meter o potencial de apoio geral para o sistema
ção voluntária e compulsória, assim como por seu
político, o governo etc. Essa é uma implicação de
processo de constituição – se “espontâneo” ou
adotar-se de uma concepção estrutural do capital
induzido a partir de elites externas ao grupo. Seja
social que é expressamente endossada por vários
como for, a consideração de todos esses matizes
colaboradores do volume organizado por Edwards,
na análise da relação entre capital social e demo-
Foley e Diani (2001) – e que recupera o sentido
cracia recomenda-nos cautela ao tomarem-se indi-
original que foi atribuído ao conceito por seus for-
cadores nacionais (ou regionais) de capital social
muladores iniciais, Pierre Bourdieu (1986) e James
apoiados na agregação de dados de surveys em
Coleman (1988).
grandes “médias” – pois, como lembram-nos Fo-
Se isso é assim, então ganha relevância crucial ley, Edwards e Diani (2001, p. 267-270), a adoção
não apenas a identificação da presença ou ausência de tal procedimento pode-nos levar a perder de
de redes interativas propiciadoras de capital social vista as complexidades envolvidas no problema.
no interior de uma dada sociedade, mas sobretudo
V. DESCONFIANDO DA CONFIANÇA
sua tipificação e contextualização – tarefa
relativamente negligenciada desde que Tocqueville Isso nos traz de volta à consideração do papel
identificou na “arte da associação”, enunciada de da confiança no argumento sobre os impactos
maneira genérica, o germe fundamental da Amé- políticos do capital social. A categoria-chave do
rica democrática. E, de fato, a literatura recente raciocínio sugerido por Putnam para conferir
começa a experimentar alguns passos nessa plausibilidade analítica à sua explicação do
direção. Dietlind Stolle e Thomas Rochon (2001) desempenho institucional tem recebido atenção
procuram especificar mais precisamente a teoria crescente na literatura – um processo amplificado
do capital social ao explorar os impactos que após o sucesso do trabalho de Putnam (1997),
diferentes tipos de associação produzirão sobre o certamente, mas que o antecedeu pelo menos no
desenvolvimento de capital social público20. Sua trabalho seminal de Diego Gambetta (1988),
presunção é que, por exemplo, associações orienta- referência importante para o próprio Putnam.
No contexto do Brasil, todavia, ganha
irrecusável saliência o tratamento que é dado à
20 “Capital social público” é atributo genérico de uma confiança pela Pesquisa Mundial sobre Valores
sociedade, para além de qualquer grupo específico dentro (World Values Survey), coordenado por Ronald
dela (STOLLE & ROCHON, 2001, p. 143-144). Inglehart a partir da Universidade de Michigan.

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CAPITAL SOCIAL E CONFIANÇA: QUESTÕES DE TEORIA E MÉTODO

Em parte por limitações próprias a um questionário relevantes quanto aqueles que dizem respeito ao
de survey restrito a questões atitudinais, ali a capital social. Recentemente, Susanne Lundåsen
confiança é tratada de maneira muito simples, pelas (2002) levou a cabo um levantamento detalhado
respostas a uma questão dicotômica em que o dos múltiplos significados que o termo compor-
entrevistado opta entre declarar de um modo geral ta21. Ali se identificam pelo menos 15 significados
se se pode ou não confiar na maioria das pessoas. distintos para confiança interpessoal, que Couch
Sua simplicidade suscita uma variedade e Jones (apud Lundåsen, 2002, p. 310) sin-
problemática de interpretações possíveis, mas seu tetizaram em três níveis fundamentais: “confiança
interesse entre nós decorre do fato de que o Brasil generalizada” (voltada para a “natureza humana”,
tem resultado ser uma espécie de campeão mundial a humanidade como um todo), “confiança rela-
da desconfiança, com um consistente padrão de cional” (voltada para pessoas específicas, “conhe-
respostas em que mais de 90% da população opta cidos”) e “confiança na rede” (nível intermediário,
por responder que não se pode confiar na maioria voltado para redes sociais ou familiares). Parece
das pessoas (INGLEHART, 1997, p. 174, 359). bastante evidente que Putnam (1997) pensa na
confiança generalizada em sua teoria: ela seria
É verdade que em um dado como esse a
gerada e realimentada pelas redes horizontais de
confiança apresenta-se como uma caixa-preta
cooperação recíproca disseminadas no interior de
conceitual, passível de variadas interpretações. Está
uma população. Sua carência entravaria processos
implícita na rationale da pergunta a concepção da
cooperativos espontâneos que de outra maneira
confiança como um atributo individual que
poderiam vir a desonerar as instituições políticas,
responde de maneira relativamente previsível (e,
favorecendo seu desempenho.
em princípio, relativamente homogênea) a certos
estímulos do contexto social em que operam esses Desse ponto de vista, talvez fosse de esperar-
indivíduos, acabando por configurar uma se uma forte correlação entre confiança inter-
“síndrome” coletiva a partir da qual se identificaria pessoal (“generalizada” ou “na rede”) e confiança
um indicador de certa “cultura política” específica, nas instituições. Contudo, não é o que se observa.
favorável ou não à boa operação das instituições Kenneth Newton (1999), ao contrário, constata
políticas naquela dada sociedade. É claro que isso que elas relacionam-se fracamente, e Foley,
passa ao largo dos variados sentidos que a alusão Edwards e Diani (2001, p. 269) acrescentam que
à confiança no contexto do survey podem evocar isso sequer chega a ser surpreendente, tendo em
no entrevistado: para além do problema – em si vista os problemas de natureza estatística
mesmo exasperantemente complexo – de provocados pela utilização de médias nacionais.
produzirem-se traduções “confiáveis” de um Contudo, não obstante a pertinência das pon-
questionário de survey em pesquisas comparativas derações levantadas, que efetivamente reco-
internacionais (BEHLING & LAW, 2000), João mendam pesquisa empírica mais detalhada, é justo
Feres Jr. e José Eisenberg (no prelo) propiciam- admitir que o mecanismo pelo qual Putnam vincula
nos alentada discussão dos labirintos semânticos a confiança interpessoal ao desempenho insti-
em que nos enredamos ao passarmos da palavra tucional não necessariamente passa pela mistura
inglesa trust, de raiz germânica, para a portuguesa de ambos comportada na confiança nas insti-
“confiança”, com origem na latina fides. Seria tuições. Conforme já foi apontado aqui em variadas
possível acrescentar ainda ressonâncias da palavra passagens, o mecanismo apóia-se em uma dinâ-
inglesa people, presente na formulação original da mica social virtuosa que facilitaria a operação das
questão, que também significa “povo” – com instituições políticas, em princípio de maneira
conotações drasticamente distintas da alusão em largamente independente da opinião que os
português às “pessoas”. Seja como for, no entanto, cidadãos mantivessem acerca de seu governo ou
um resultado empírico consistentemente replicado de suas instituições. Deve-se admitir, a propósito,
deve poder ser explicado. E o padrão de respostas que cidadãos “cívicos”, confiantes uns nos outros,
observado no Brasil para questões de confiança é poderão tender a cultivar em relação às suas
fortemente atípico também quando comparado a instituições uma atitude vigilante e crítica, de
outros países latinos – e tem resistido às tentativas
de replicação realizadas até aqui.
Em todo caso, é fato que o conceito de 21 Sou grato a Maria Aparecida Machado Pereira por
confiança comporta matizes pelo menos tão chamar minha atenção para o trabalho de Lundåsen.

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 21: 35-49 NOV. 2003

efeitos potencialmente corrosivos quanto a indica- V. NOTAS FINAIS: RUMO A UMA TEORIA
dores de “confiança institucional”. Ronald In- OPERACIONALIZÁVEL?
glehart (1997, p. 293-323) concilia em termos
Ao cabo, resta a percepção de uma agenda de
análogos a decadência da confiança nos governos
pesquisa certamente promissora, mas patente-
e nas instituições políticas registrada no Ocidente
mente “imatura”, do ponto de vista tanto da ope-
durante as últimas décadas com sua postulação
racionalização empírica da teoria quanto mesmo
de uma “mobilização cognitiva” que resultaria em
da especificação analítica precisa do significado
um paralelo aumento da intervenção direta dos
de suas categorias centrais. E aqui parece operar
cidadãos em assuntos públicos22. E Russell Hardin
um curioso paradoxo. Se o “capital social” aparece
(1999) traça distinção cuidadosa entre confiança
inicialmente como um conceito “guarda-chuva”
no governo e confiança individual induzida por
um tanto vago e aparentemente intratável, sua
bom governo, antes de problematizar ricamente
origem em categoria analítica de significado
os significados possíveis do ato de confiar-se em
razoavelmente preciso e – sobretudo – larga
instituições ou organizações, e de se perguntar se-
tradição em economia (“capital”) parece propiciar-
riamente até que ponto a confiança em governos
lhe uma pista por onde uma teorização
é sequer desejável. Sob essa perspectiva, é impos-
minimamente sistemática pode avançar. O recente
sível recusar liminarmente a pergunta sobre até
trabalho de Nan Lin (2001) constitui certamente
que ponto a presença de “capital social” e “con-
um passo encorajador nessa direção. Infelizmente,
fiança” (interpessoal ou nas instituições) não po-
temo que talvez o oposto dê-se com o papel
deria eventualmente ser vista como manipulação
reservado à confiança nessa problemática. De uso
ideológica bem-sucedida.
corrente na vida cotidiana de povos do mundo
todo, e (por isso mesmo) de enorme poder
sugestivo na exposição original do argumento de
Putnam, receio que a precisão analítica do lugar
da confiança no argumento venha a ser irre-
22 Reis e Castro (2001) depararam-se com resultado que mediavelmente comprometida pela polissemia em
pode ser interpretado de modo análogo: se a propensão a que se enreda – particularmente quando, diferen-
endossar normas éticas socialmente estabelecidas – como temente do que se passa com o capital social, não
solidariedade e altruísmo – aumenta com a sofisticação resistimos à tentação de alcançá-la por meio de
política, por outro lado aumenta igualmente a propensão a perguntas diretas, talvez excessivamente simples,
um comportamento oportunista diante de circunstâncias
em nossos surveys atitudinais. Será crucial, talvez,
desfavoráveis. Ou seja, o “cívico” e o “cínico” não são
necessariamente duas pessoas, mas a mesma: o indivíduo para a preservação de seu papel em uma teoria
mais sofisticado tende tanto a vocalizar mais prontamente empírica da democracia, mostrarmo-nos capazes
a norma coletivamente aceita quanto a fexibilizar a sua de traduzir o que esperamos da confiança em
aplicação a partir de uma avaliação lúcida do seu contexto. padrões comportamentais observáveis.

Bruno Pinheiro W. Reis (brunopwr@fafich.ufmg.br) é Doutor em Ciência Política pelo Instituto


Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ) e Professor do Departamento de Ciência Política
da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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